UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO O PÚLPITO COMO CÁTEDRA: retórica e educação nos sermões do Pe. Antônio Vieira (1608-1697) Rodson Ricardo Souza do Nascimento Orientador: Profº. Drº. José Willington Germano Natal / RN 2007 RODSON RICARDO SOUZA DO NASCIMENTO O PÚLPITO COMO CÁTEDRA: retórica e educação nos sermões do Pe. Antônio Vieira (1608-1697) Tese apresentada ao Programa de Pós - Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como exigência para a obtenção do título de Doutor em Educação, sob a orientação do Prof. Dr. José Willington Germano. Natal / RN 2007 2 Rodson Ricardo Souza do Nascimento O PÚLPITO COMO CÁTEDRA: Retórica e educação nos sermões do Pe. Antônio Vieira (1608-1697) Tese apresentada ao Programa de Pós - Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como exigência para a obtenção do título de Doutor em Educação, sob a orientação do Prof. Dr. José Willington Germano. Aprovada em ____/____/_____ ____________________________________________________________ Prof. Dr. José Willington Germano Orientador – UFRN ____________________________________________________________ Profª. Dra. Maristela Oliveira de Andrade Membro - UFPB ____________________________________________________________ Profª. Dra. Josineide Silveira de Oliveira Suplente - UERN ____________________________________________________________ Profª. Dra. Maria da Conceição Xavier de Almeida Membro - UFRN ____________________________________________________________ Profª. Dra. Marlúcia Menezes de Paiva Membro - UFRN ____________________________________________________________ Profª. Dra. Sônia Meire Santos Azevedo de Jesus Suplente - UFS ____________________________________________________________ Profª. Dra. Marta Maria de Araújo Suplente - UFRN Natal / RN 2007 3 DEDICATÓRIA DI, TIBI SE COR NEUM TOTUM SUBICIT CUM CARITAS ET SPES AMEN. 4 AGRADECIMENTOS Adoro te devore, latens Deitas, Quae sub his figuris vere latitas Tibi se cor neum totum subicit, Quia te contemplans torum deficit. Alguém já disse que agradecer é um momento de alegria e angústia. Alegria por mais uma batalha vencida, uma fase superada, por podermos expressar nossa gratidão àqueles que conosco dividem essa conquista, pelo reconhecimento que isso não teria sido possível sem a ajuda de muitas pessoas, pois como lembra o poeta “um galo sozinho não faz uma manhã”. Ele sempre precisará de outros galos que unindo seu canto aos dele, façam juntos nascer um sol de esperança e sucesso. A angústia surge precisamente do perigo de esquecermos alguns desses cantos, dessas vozes, desses rostos que tornaram tal sonho possível. Por isso é preciso tomar cuidado. Comecemos pelos acordes primários de toda sinfonia. Sou grato principalmente à minha família: meu pai João Ricardo, minha mãe Izabel Souza, minha tia-avó Terezinha Bizinho e minha irmã Fabiana Ricardo, “dignos herdeiros do sonho de Prometeu. Trabalhadores que com suor, lágrimas e esperança me ajudaram a chegar onde estou”. A eles minha eterna gratidão. Ao mestre e orientador e professor José Willington Germano, a quem devo minha vida acadêmica. Dos primeiros passos na iniciação cientifica à tese de doutorado. Mais que um educador um exemplo de ser humano, num mundo cada vez mais técnico e insensível. Obrigado professor por tudo. Espero que tenha valido a pena tanto trabalho! Às professoras que participaram da banca de qualificação: Dra. Maristela Oliveira de Andrade; Dra. Maria da Conceição Xavier de Almeida e Dra. Marlúcia Menezes de Paiva. A elas, e ao meu orientador, atribuo as possíveis qualidades dessa tese. Aos amigos de ontem, de hoje e de amanhã. Em especial a Maria de Fátima Souza Araújo (Fatinha), pela generosa ajuda com a correção do texto final. A todos, citados e omitidos, meu muito obrigado! 5 RESUMO Este trabalho objetiva analisar a relação entre cultura, educação e retórica nos sermões do Padre Antonio Vieira (1608-1697). Discute-se a presença da oratória no ensino ocidental das suas origens gregas a formação do Ratio Studiorum no século XVII. A sociedade brasileira é definida como barroca e a retórica surge como elemento essencial na elaboração dos discursos e imaginários sociais, ocupando o centro das polêmicas sobre questões como a razão e a fé, a ética e a política, a natureza dos povos indígenas e africanos, e mesmo sobre a própria construção do sujeito moderno. Nesse contexto a pregação vieirense desempenha as funções de kerigma (pregação), didachê (ensino) e política (ação). A pesquisa constituiu-se da leitura minuciosa de cinco desses sermões, proferidos perante diferentes auditórios. O púlpito era a cátedra onde Vieira usara dos seus sermões como forma de mobilização social, que buscava não apenas ensinar um determinado conhecimento da realidade, mas alterar situações cruéis como a da escravidão dos índios e pobres em sua época. A educação em Vieira consiste numa tensão entre as esperanças utópicas e as urgências da prática. A tradição retórica afirma a interdependência dos aspectos técnicos, éticos e políticos. Não basta saber é preciso convencer e mover, realizando a passagem do teórico ao prático – vivencial. Pressupõe ainda a preocupação com a solidez da argumentação e do raciocínio, uma formação cultural ampla, a exigência de uma ética cívica e, principalmente, a adequação entre o conteúdo às especificidades do auditório. PALAVRAS – CHAVES: Antonio Vieira, Cultura, Educação, Retórica, Brasil Colonial. 6 ABSTRACT This work aims to analyze the relationship among culture, education and rhetoric on the sermons of the Priest Antonio Vieira (1608-1697). It discusses the presence of oratory on the Western teaching since its Greek origins until the formation of the Ratio Studiorum in 17th-century. Brazilian society is defined as baroque and the rhetoric arises as element essential in the elaboration of the social imaginary speeches and, occupying as an essencial element in the elaboration of discursese and social imaginaries, occupying the centre of controversies, about questions like reason and the faith, ethics and the politics, the nature of the Indian and African peoples, even over the own construction of the modern subject. In this context the vieira´s preaching discharges the functions of kerigma (preaching), didachê (education) and politics (action). The research consisted in a finicky reading over five of these sermons that were returned in the presence of different audiences. The pulpit was the cathedra where Vieira used his sermons as a manner of social mobilization that aimed not only teaching a determined knowledge of reality, but altering cruel situations like Indian and poor people slavery in his epoch. Education by Vieira consist in a tension between utopian hopes and urgencies of practice. The rhetorical tradition affirms the interdependence of technical ethics and politics aspects. To know is not enough is necessary to convince and to move, realizating passage from theorical to practical – liverly. It presupposes still the preoccupation with the solidity of argumentation and of reasoning, a wide cultural formation, the requirement of a civic ethics and, mainly, the adequacy between content and the specifics of audience. KEY WORDS: Antonio Vieira, Culture, Education, Rethoric, Colony Brazil. 7 RESUMEN Este trabajo objetiva analizar la relación entre la cultura, la educación y la retórica en los sermones del Padre Antonio Vieira (1608-1697). Discutesse la presencia del oratoria en enseñanza occidental desde sus orígenes griegas a la formación del Ratio Studiorum en el siglo XVII. Definen a la sociedad brasileña como barroca y el retórico aparece como elemento esencial en la elaboración de los discursos imaginarios sociales y, ocupando el centro de las controversias en preguntas como la razón y la fe, el ética y la política, la naturaleza de la gente aborigen y africana, e miesmo en la construcción apropiada del sujeto moderno. En este contexto la pregaria vieirense juega las funciones del kerigma (pregaria), del didachê (educación) y de la política (acción). La investigación consistió en la lectura minuciosa de cinco de estos sermones, pronunciado ante diversas audiencias. El púlpito era la silla donde Vieira utilizara de su sermões como forma de movilización social, de que él buscado no sólo para enseñar un conocimiento definitivo de la realidad, sino para modificar situaciones crueles en fecha la esclavitud de los indios y de las personas pobres en su tiempo. La educación en Vieira consiste en una tensión entre las esperanzas utópicas y las urgencias de el práctico. La tradición retórica afirma la interdependencia del técnico de los aspectos, ético y de políticos. No ser bastante saber, es necesario convencer y moverse, realización el boleto del teórico práctico - el existencial. Todavía estima la preocupación con la solidez de la discusión y del razonamiento, amplia una formación cultural, el requisito del ética cívico e, principalmente, la suficiencia entre el contenido y los especificidades de las audiencias. Palabras-Clave: Antonio Vieira, Cultura, Educación, Retórica, Brasil coloniale. 8 SUMÁRIO 1. EXÓRDIO: Introdução-----------------------------------------------------------------------11 2. NARRAÇÃO: primeira parte----------------------------------------------------------------21 2.1. A eloqüência silenciada---------------------------------------------------------------------21 2.2. O nascimento da retórica -------------------------------------------------------------------22 2.3. Retórica, sofística e filosofia---------------------------------------------------------------23 2.4. Retórica e dialética --------------------------------------------------------------------------30 2.5. Retórica e dialética em Aristóteles --------------------------------------------------------42 2.6. Retórica latina--------------------------------------------------------------------------------48 2.7. Retórica e cristianismo----------------------------------------------------------------------55 2.7.1.A retórica nos primeiros séculos do cristianismo--------------------------------------56 2.7.2. A retórica medieval------------------------------------------------------------------------ 72 2.8. A retórica no século XVII------------------------------------------------------------------ 75 3. CONFIRMAÇÃO: arautos do rei, argonautas da cruz---------------------------------- 78 3.1. As origens da Companhia de Jesus------------------------------------------------------- 80 3.2. O imaginário religioso europeu e a chegada da Companhia no Brasil---------------92 3.3. Humanismo, Ratio Studiorum e retórica jesuíta--------------------------------------- 103 3.4.A sermonística de Vieira: primeiras aproximações------------------------------------ 122 4. DIGRESSÃO: o púlpito como cátedra ---------------------------------------------------129 4.1. Vieria e o Xadrez de palavras------------------------------------------------------------- 129 4.2.O homem-------------------------------------------------------------------------------------139 4.3. O contexto-----------------------------------------------------------------------------------141 4.3.1. O barroco----------------------------------------------------------------------------------141 4.3.2. Barroco e póscolonialismo--------------------------------------------------------------145 4.4. A obra----------------------------------------------------------------------------------------154 4.4.1. Sermão da Sexagésima------------------------------------------------------------------160 4.4.2. Sermão de Santo Antonio aos Peixes--------------------------------------------------168 4.4.3. Sermão XIV da Série Maria Rosa Mística--------------------------------------------178 4.4.4. Dois sermões educativos: Santa Catarina e São Francisco Xavier----------------184 9 5. PERORAÇÃO-------------------------------------------------------------------------------200 6. BIBLIOGRAFIA----------------------------------------------------------------------------208 EXÓRDIO: introdução Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. (Fernando Pessoa, O Infante) 10 11 EXÓRDIO: a retórica dos vencidos Demócrito ria, porque todas as coisas humanas lhe pareciam ignorâncias; Heráclito chorava, porque todas lhe pareciam misérias: logo maior razão tinha Heráclito de chorar, que Demócrito de rir; porque neste mundo há muitas misérias que não são ignorâncias, e não há ignorância que não seja miséria. VIEIRA, Padre Antonio. Sermão sobre as Lágrimas de Heráclito. (Pregado no Palácio da Rainha Cristina da Suécia, 1674). Há personagens do passado que o tempo aproxima em vez de afastar: Antônio Vieira é uma delas. Este texto pretende expor as linhas gerais da pesquisa de doutoramento em Educação, na área de Cultura e História, intitulada “O púlpito e a cátedra: retórica e educação nos sermões do Pe. Antonio Vieira (1608-1697)”. O trabalho pretende analisar a importância da obra do jesuíta na formação intelectual e moral das elites do século XVII. Antônio Vieira, a quem o poeta Fernando Pessoa chamou de o “imperador da língua portuguesa”, foi um personagem multifacetado: um dos mais extraordinários oradores sacros de todos os tempos, homem de Estado, diplomata, articulador político, missionário e defensor dos cristãos novos. Nada estava fora da área do seu interesse. Sua obra extensa e variada (mais de 200 sermões, textos exegéticos, cartas, profecias, relatórios políticos, etc) tem sido objeto de diversas interpretações. Esses estudos têm buscado compreender as principais características da sociedade colonial, extraindo da leitura da obra de Vieira toda riqueza de contrastes e contradições do sistema colonial luso – brasileiro, desse período do qual sua vida e obra são expressões paradigmáticas. Há, todavia, poucos estudos analisando sua obra sobre o âmbito educativo, educação compreendida aqui, como processo formativo e cultural. Nessa perspectiva, o trabalho pretende esclarecer as seguintes questões: 1º) Qual a relação entre educação e retórica na educação seiscentista? 2º) Como esses elementos se configuram na sermonística de Vieira? 3º) Qual o lugar de Vieira no interior do pensamento colonial luso - brasileiro? 12 Trata-se, portanto de compreender e explicar a relação entre educação, cultura, retórica e política no seu pensamento. Por se tratar de um estudo essencialmente teórico é enfatizado o trabalho de revisão bibliográfica sobre o período. A utilização do texto como elemento fundamental da pesquisa, invoca, evidentemente, a questão da sua relevância, leitura e interpretação. Estamos, portanto nos “caminhos de Hermes”, nos “horizontes da hermenêutica”. Etimologicamente a palavra “hermenêutica” deriva do verbogrego hermenêuoh: dizer, traduzir e explicar), e do substantivo traduzido por hermeneia (: explicação). Palmer (1989) chama a atenção, em especial, a dimensão da “tradução” por sua relação com a história e a antropologia. Na verdade, a questão da interpretação para o ser humano é intrínseca a sua existência: “pois basta falar com alguém em nossa própria língua ou numa língua estrangeira, para já estarmos interpretando e sendo interpretados, na medida em que compreendermos e nos fizermos compreender” (NUNES, 1998 p. 10). Há, porém o problema da distância e da pertença. Há os “abismos” de cultura, tempo e espaços. Ora, a tarefa do tradutor - pesquisador é superar esta barreira e tornar compreensível estes diferentes mundos. Para isso é necessário que o seu horizonte se encontre com o horizonte do “outro” para usar a belíssima metáfora de Gadamer: o intérprete - tradutor tal como o deus Hermes, tem o papel de mediar mundos diferentes. A hermenêutica é a arte de compreender, de interpretar, de traduzir de maneira clara signos inicialmente obscuros. Sua primeira função foi entregar aos profanos o sentido de um oráculo. Progressivamente, penetrou no domínio das ciências humanas e da filosofia. Sua origem está relacionada ao deus Hermes: Hermes é volátil e ambíguo, é o pai de todas as artes, mas também o deus dos ladrões- juvenis et senex- ao mesmo tempo. No mito de Hermes, encontramos a negação do principio da identidade, da não contradição e do terceiro excluído, e as cadeias causais enrolam-se sobre si mesmas em espirais: o ‘depois’ precede o ‘antes’, o deus não conhece limites espaciais e pode, de diferentes formas, estar em diferentes lugares ao mesmo tempo. (ECO, 1993, p. 34). Assim a hermenêutica moderna surge como uma proposta de conhecimento que se contrapõe às tentativas de compreensão científica fundamentadas apenas na racionalidade dos procedimentos empírico - formais de explicação causal, predominante nas ciências naturais, como foi o caso do positivismo clássico e determinadas correntes do estruturalismo. Como afirma Hermann (2002, p. 14): “segundo esse tipo de 13 racionalidade, o saber só teria validade quando atendesse à verificação empírica, ao estabelecimento de relação causal, à eliminação de todo pressuposto subjetivo e à hostilização da historicidade”. O racionalismo cartesiano inaugurou essa tradição pensante, segundo a qual o método é tomado como meio eficaz e adequado para se chegar à verdade: “veritas eadaequatio intellectus ad rem” (“a verdade é a adequação do intelecto às coisas”). Como conseqüência desse paradigma, tudo aquilo que não estivesse “diretamente” ligado ao objeto seria excluído de sua compreensão (fragmentação do conhecimento). Além disso, por meio da utilização de rigorosos procedimentos metódicos seria garantido o controle científico do objeto cognoscível pelo sujeito cognocente autônomo. A hermenêutica, herdeira de uma longa tradição humanista relacionada à interpretação dos textos bíblicos, à filologia clássica e à jurisprudência, propõe um outro caminho para o conhecimento. Ao negar o monismo metodológico defende a validade de outras formas de conhecimento, como a experiência artística, e, ao mesmo tempo, afirma a impossibilidade de redução da experiência de conhecimento da realidade à aplicação de um método, uma vez que a verdade está sempre imersa na dinâmica da cultura e do tempo. Além disso, a hermenêutica contemporânea (especialmente a pós - heidggeriana) mantém, seguindo de perto os “mestres da dúvida” (Marx, Nietzsche e Freud), uma atitude de crítica e suspeita contra a Filosofia e cultura tradicionais, baseadas na inocência e transparência do Cogito cartesiano: assim, a genealogia da moral no sentido de Nietzsche, a teoria marxista das ideologias e a teoria freudiana dos ideais e ilusões surgem como formas diferentes e convergentes de se aprofundar a compreensão da realidade. Isso não significa abdicar de uma posição crítica. Pelo contrário, pois como bem lembra Gadamer (2002, p. 390): “Compreender não é, em todo caso, estar de acordo com o que ou quem se compreende. Tal igualdade seria utópica. Compreender significa que eu posso pensar e ponderar o que o outro pensa. Ele poderia ter razão no que diz e no que propriamente quer dizer”. Porém, para compreender, explicar e traduzir precisamos antes saber ler o “texto”. Ler é o primeiro passo. Ler pensando e pensado lendo. Ler com os olhos fechados e o coração aberto. Este é “o passeio da alma”, como explica Chauí (1994, p. 21): “Ler é aprender a pensar na esteira deixada pelo outro. Ler é retomar a reflexão de 14 outrem como matéria-prima para o trabalho de nossa própria reflexão”. Ler é colher as flores da vida. Pois segundo Bosi (1988, p. 274-275): A palavra que eu leio (lego: colho) na sua ingrata resistência sobre a página do livro desafia-me como a pergunta da Esfinge: a resposta pode variar ao infinito, mas o enigma é sempre o mesmo: o que eu quero dizer? Ler é colher tudo quanto vem escrito. Mas interpretar é eleger (ex-legere: escolher), na messe de possibilidades semânticas, apenas aquelas que se movem no encalço da questão crucial: o que o texto quer dizer? Na hermenêutica contemporânea o conceito de interpretação sofreu uma enorme ampliação. O seu centro, ao concentrar-se na dialética “consciência – ilusão,” passa a abranger não apenas os textos escritos, mas um conjunto de signos capazes de serem considerados como um texto a decifrar pelo seu duplo sentido, sejam eles constituídos por sonhos, ritos, mitos, imagens ou crenças. Esta ênfase, na necessária compreensão dos fenômenos históricos e culturais, em contraste com a tendência de explicação nas ciências “duras,” tem por base as peculiaridades dos temas e objeto das “Ciências do Homem”1 que seriam “qualitativamente” diferentes daquele produzido pelas “Ciências da Natureza”. No entanto, seguiremos Paul Ricouer (1905-2002) que estabelece o campo da hermenêutica como definido em torno do texto: “a hermenêutica é a teoria das operações da compreensão em sua relação com a interpretação dos textos”. Ao adotar essa definição conceitual, concordamos com a efetivação do “discurso como texto” feito por ele bem como sua tentativa de superar uma das principais “aporias” do pensamento hermenêutico: a superação romântica do conflito entre explicar (erklären) e compreender (verstehen). Nesse sentido, a perspectiva metodológica defendida por Paul Ricoeur, procura, no plano epistemológico, por meio do conceito de “mundo do texto”, conseguir uma interação entre esses dois momentos da compreensão. Outro aspecto importante nesse trabalho é a aceitação do conceito heidggeriano de “círculo hermemêutico”2 segundo o qual “ser é compreender”. Nessa perspectiva não 1 Esta divisão surge com o filosofo alemão Wilhelm Dilthey (1833-1911). Segundo ele, as Ciências da Natureza (Naturwissenschaft) têm o objetivo de explicar (erklären) o mundo e as Ciências do Espírito (Geisteswissenschaften) o propósito de compreender (verstehen) a vida. 2 A expressão “círculo hermenêutico” surge com os estudos de Martin Heidegger (1889-1976). Segundo Gadamer (1992: p. 320): “o conceito de círculo hermenêutico significa que no âmbito da compreensão não se pretende deduzir uma coisa de outra, de modo que o defeito lógico da circularidade não é nenhum defeito de procedimento, senão que representa a descrição adequada da estrutura do compreender (...) a expressão ‘circulo hermenêutico sugere na realidade a estrutura do ser – no - mundo, quer dizer, a superação da cisão entre sujeito e objeto na analítica transcendental do ser-aí, levada a cabo por 15 há a “objetividade pura” nem o pensamento é visto como uma operação oposta à vida, senão a sua manifestação mais original. Não há neutralidade em hermenêutica. Sempre há pressuposições. Nadja Hermann sintetiza as idéias de Heidegger sobre isso ao afirmar que: A compreensão se torna possível porque o homem habita um mundo que não é o universo como vê o cientista, tampouco o conjunto de todos os seres, mas a totalidade de relações em que o homem está mergulhado. O mundo antecede qualquer separação entre pessoa e mundo objetivado. O mundo é o próprio ser e o homem é o ser-no- mundo. A compreensão se mundaniza, permeia todos os momentos da vida, de modo que somos nós que temos o sentido da existência. O modo prático de ser no mundo abre as possibilidade de compreensão, de tal maneira que o compreender não existira se não compreendesse o contexto em que surge. (HERMANN, 2002, p. 34). A hermenêutica, ao enfatizar a historicidade radical de toda interpretação, reivindica para si um “discurso fraco”, fruto de sua própria finitude e de seu caráter interpretativo. Ao fazer isso ela pode contribuir de forma valiosa para as Ciências Humanas e Educação. Ela nos lembra que ao trabalharmos com a razão não produzimos apenas ciência, que o conhecimento é complexo e que a compreensão deve ser situada num contexto histórico bem mais amplo. O processo hermenêutico, como lembra Benedito Nunes (1988: p. 27), consiste: “em firmar as condições do compreender, restaurar o direito da interpretação em sua maior generalidade, circulando do texto para o mundo, lido como um texto que tem várias significações”. Essas questões estão presentes para todo aquele que decide ler uma obra “distante” de si pelo tempo ou pela cultura. Para que ele possa entendê-la da melhor maneira, precisará analisar três aspectos hermenêuticos denominados por Antônio Cândido (1975: p. 34), de “elementos de compreensão”: “Em primeiro lugar os fatores externos, que a vinculam ao tempo e se podem resumir na designação de sociais; em segundo lugar o fator individual, isto é, o autor, o homem que a intentou e realizou, e está presente no resultado; finalmente, o texto, contendo os elementos anteriores e outros, específicos, que transcendem e não se deixam reduzir a eles”. A ênfase em um deles provocará diferentes interpretações da obra e Cândido adverte que é preciso procurar, sob a pena de se tornar reducionista, “referir-se a estas três ordens de realidade, ao mesmo tempo”. Mas é exatamente aí que se encontra “o problema hermenêutico”, ou seja, da relação entre leitor, texto e autor. Heidegger”. 16 Segundo Recouer ao passar pela mediação da leitura, toda escrita precisa essencialmente da hermenêutica. Por esse motivo, toda leitura torna-se um problema hermenêutico. Isso gera uma dialética da “distanciação – aproximação”. Devido a “autonomia semântica do texto” da “intenção original do autor” surge o problema da “apropriação do sentido” do texto feita pelo leitor. Apropriar-se é fazer “seu” o que é “alheio”, tornando “nosso” o que nos era “estranho”. Isso caracteriza a tensão entre o distanciamento e aproximação no ato de ler. Segundo ele, essa distância “não é apenas o hiato espaço-temporal entre o leitor e o aparecimento de uma obra de arte ou de um discurso. É um traço dialético, o princípio de uma luta que denuncia a existência de uma alteridade de um lado e de uma ipseidade do outro”. Assim dessa luta entre a “ipseidade ontológica do leitor3” e a “alteridade textual” surge a necessidade de o leitor utilizar a perspectiva hermenêutica, como tentativa de superação da alienação cultural que caracteriza essa dialética, visto que o texto não é o leitor e o leitor não é o texto. Assim se for respeitado o “mundo do texto”, fruto de sua necessária distância do “mundo do leitor” há possibilidade de se obter uma compreensão verdadeira. Essa “viagem literária”, esse “discentramento” possibilitará uma “ampliação dos horizontes” do leitor e, conseqüentemente, uma ampliação do sentido do texto. A leitura torna-se uma espécie de “phármacon”, um remédio através do qual podemos vencer o estranho distanciamento da alteridade do texto, tornando-o mais próximo e descobrindo os seus significados exatamente na percepção de suas diferenças. A proximidade almejada pelo leitor no embate com o texto procura ultrapassar as distâncias que impedem a compreensão das diferentes épocas e culturas, tentando incluir a alteridade na ipseidade, ao mesmo tempo em que preserva a alteridade do texto como “outra realidade” que evidencia o “ser do outro” para além da utilização dos puros procedimentos hermenêuticos. Percebe-se, assim, que a experiência hermenêutica não é monológica nem mesmo dialética, mas sim dialógica, pois impõe a necessidade de que o intérprete descubra “a pergunta a que o texto vem dar a resposta”. É nessa lógica da pergunta - resposta, que o texto acaba por ser um acontecimento atualizado na compreensão do leitor. Nas palavras de Bleiche (1980: p. 160): “nesta concepção dialógica, os conceitos 3 Por “ipseidade” entendemos aqui “a singularidade da coisa individual” conforme o termo foi criado por John Duns Scotus (1266 – 1308) e desenvolvido por Ricoeur. Por “ontológico” (ou “metafísico”) entendemos aquilo que diz respeito ao “ser em geral”, isto é, aos caracteres essenciais do ser, aqueles que todo ser tem e não pode deixar de ser para ser considerado como tal. 17 usados pelo Outro, seja um texto, seja um tu, ganham nova força, por se inserirem na compreensão do intérprete. Ao entendermos a pergunta colocada pelo texto, fizemos já perguntas a nós próprios e, por conseguinte, abrimo-nos novas possibilidades de sentido”. Nessa perspectiva não é possível falar da “História”, a realidade separada dos agentes que dela fazem parte. Daí a impossibilidade de escrevemos uma história da educação definitiva ou completa. As fontes, os documentos, os textos, os acontecimentos não vêem a nós como facta bruta a partir do qual possamos tranqüilamente reconstruir o passado e a verdade. Antes são mediados, e semantizados por narrativas e discursos, eles mesmos socialmente datados. Não podemos conhecer a “História” como ela “realmente foi”, mas sempre como uma “história interpretada”. Esses pressupostos inspiram as novas pesquisas e novas leituras do passado. Sobre isso afirmou NUNES (1996, p.142-143): É o caso de Roger Chartier e Jacques Revel. Ambos foram influenciados pela crítica de Foucault aos pressupostos fundamentais da história social e ambos afirmam que as próprias representações do mundo social são componentes da realidade social. Assim, as relações econômicas e sociais não seriam propriamente anteriores às práticas culturais, nem as determinariam. Elas mesmas seriam campos de prática e produção cultural. É partindo desse pressuposto, que será realizada a presente leitura dos sermões do Padre Antonio Vieira. A obra de Vieira é clássica, e um clássico, é sempre uma obra aberta. Nesse sentido sua leitura nunca é definitiva ou completa. Isso porque “Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura” (CALVINO, 1994, p. 11). Por seu caráter aberto ele é sempre submetido a releituras e a críticas atuais. Toda obra clássica é filha do seu tempo, embora não se deixe amordaçar por ele. Calvino afirma que: “os clássicos são aqueles livros que chegam até nós, trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes)” (Idem, p. 11). A busca pelos clássicos não deve ser apenas pelo que eles podem explicar sobre a realidade de seu tempo, mas sim, sobre como ele busca compreender essa realidade: 18 Isso vale tanto para os clássicos antigos quanto para os modernos. Se leio a Odisséia, leio o texto de Homero, mas não posso esquecer tudo aquilo que as aventuras de Ulisses passaram a significar durante os séculos e não posso deixar de perguntar-me se tais significados estavam implícitos no texto ou se são incrustações, deformações ou dilatações. Lendo Kafka, não posso deixar de comprovar ou de rechaçar a legitimidade do adjetivo kafkiano, que costumamos ouvir a cada quinze minutos, aplicado dentro e fora de contexto (CALVINO, 1994, p. 11). Ler um clássico é aventurar-se, é buscar através do texto um encontro, uma “fusão de horizontes” capaz de gerar a compreensão do sentido da obra, ao mesmo tempo provisória e densa. Não é tanto uma indagação sobre a forma ou sobre os eventos passados, mas sobre nós mesmos enquanto partes do fluxo histórico e da textura da sociedade4. Desse modo: A leitura de um clássico deve oferecer-nos alguma surpresa em relação à imagem que dele tínhamos. Por isso, nunca será demais recomendar a leitura direta dos textos originais, evitando o mais possível bibliografia crítica, comentários, interpretações. A escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questão; mas fazem de tudo para que se acredite no contrário (...) Podemos concluir que: Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe. (CALVINO, 1994, p. 12). Buscando uma melhor interação entre “conteúdo-forma” a tese se estrutura a partir da exposição clássica de um sermão: Exódio, Narração, Confirmação, Digressão e Peroração. Assim, no Exórdio ou introdução, encontra-se a contextualização do tema e a delimitação da pesquisa, a explicitação dos procedimentos teórico - metodológicos e a exposição da estrutura formal do texto. Na primeira parte ou Narração, é realizado um levantamento filosófico da história da retórica no Ocidente, mostrando sua origem na “Grécia” do séc. V, sua relação com a democracia ateniense, a sofística, a filosofia e o cristianismo. É feito uma descrição do uso da retórica como saber, procurando demonstrar sua influência na educação e em especial na constituição da obra de Vieira. 4 Essa relação entre história - temporalidade, sentido – existência está na base da teoria hermenêutica heidggeriana. Para esse autor a compreensão histórica projeta novas possibilidades porque compreender é o modo de ser da existência considerada em seu poder – ser. Interpretar um evento para Heidegger: “Não é tomar conhecimento do que se compreendeu, mas elaborar as possibilidades projetadas na compreensão” (HEIDGGER, 2002, p. 42). 19 Na Confirmação, ou segunda parte, é analisada a relação entre a retórica e a modernidade, em especial na construção da Companhia de Jesus e do Ratio Studiorum. Procura-se compreender o imaginário do século XVII e o caráter da ordem inaciana e a sua intervenção nos debates políticos do século XVII. A tese que estrutura esse capítulo é que, do ponto de vista cultural, as sociedades européias, em especial as católicas ibéricas desse século, podem ser definidas como “civilizações da palavra” (HANSEN, 2003). Nesse sentido, a retórica, como elemento essencial para elaboração dos discursos e imaginários sociais, estava no centro das polêmicas sobre a relação entre razão e fé, a natureza dos povos indígenas e africanos e mesmo na própria construção do sujeito moderno (CERQUEIRA, 2002). É nesse contexto, nessa Sitz im Leben da hipótese de uma “unidade teológico – retórico – político” e não como sendo sua obra “essencialmente contraditória” (BOSI, 1992). O modelo sacramental possibilita, além da fuga de certas leituras anacrônicas ou simplistas, uma melhor mediação com o contexto barroco da época. Como afirma Pécora (2003,11): “Considerado em seus termos básicos, o sermão católico que organiza a fé do Novo Mundo atinge seu apogeu ao longo do século XVII e ordena-se segundo um modelo sacramental, que supõe a projeção permanente de Deus nas formas de existência do universo criado. Aqui, não se pode interpretar o mundo nem se recusando a sua natureza histórica particular, nem supondo a autonomização da história face ao divino”. Nesse capítulo analisa-se o uso do sermão como kerigma (pregação), didachê (ensino) e política (ação). Finalmente, na Peroração são feitas as considerações finais sobre o trabalho, ressaltando-se a relação entre o uso da oratória, a política, a atuação do “professor – intelectual” e a possibilidades da tradição retórica para uma nova educação. Como obra em aberto aplica-se a esse texto o que Juan Bosscán dizia no prólogo do seu do livro “e se alguma coisa não suceder como ele (o livro) deseja, pense que em todas as artes os primeiros fazem bastante em começar e os outros que vêem depois ficam obrigados a serem melhores”. NARRAÇÃO: primeira parte 20 A Europa jaz, posta nos cotovelos: De Oriente a Ocidente jaz, fitando, E toldam-lhe românticos cabelos Olhos gregos, lembrando. (Fernando Pessoa, Os Castelos) 21 2. NARRAÇÃO – Primeira Parte “No princípio era a Palavra”. São João. A linguagem é a morada do Ser. Martin Heidegger. 2.1. A eloqüência silenciada: notas sobre a história da retórica Uma das grandes características de nosso tempo é a perda do sentido, banalização e vulgarização de termos e movimentos. Essa deterioração semântica tem nas palavras “retórica” e “retórico” dois casos exemplares. No senso comum ou no jargão jornalístico fala-se de ambos sem o menor rigor ou conhecimento da venerável tradição intelectual que estão investidas. Particularmente, no caso da retórica, esse fenômeno é totalmente nocivo. De uma rica tradição de conhecimento tão antiga quanto a própria Civilização Ocidental a transformação em sinônimo de coisa embolada, artificial, declamatória ou falsa. Quando o homem moderno pensa em retórica, imagina alguma coisa arcaica, exótica ou destituída de praticidade. Mas nem sempre foi assim. Esse processo de declínio da retórica está nas origens da própria episteme moderna. Abolida dos programas de ensino da Europa no século XIX, o termo foi silenciado em nome do “progresso” e da “objetividade cientifica”. Por isso que sua volta ao cenário público no final dos anos 60 no século passado (“Grupo UM” e “Nova Retórica”) está associada, precisamente, às mutações dessa mesma modernidade. A retórica é “a arte de convencer pelo discurso”; mas não é simplesmente isso. Implica, também, uma teoria desse discurso e uma reflexão filosófica sobre a relação desse discurso com o mundo, e sobre o próprio ser humano. Era esse o sentido que os romanos entendiam quando a incorporaram na sua história, como sinônimo de Educação e de Civilização (Humanitas). Por isso, é que a melhor introdução à retórica é a sua história. Vamos, portanto, expor alguns de seus principais momentos. Antes, porém, é necessário lembrar que ao nos reportamos a Grécia Antiga como “berço” da retórica não estamos querendo dizer 22 que ela é uma particularidade desse povo, ou mesmo que não existisse “retórica” em outras culturas. A historiografia relata exemplos de importantes obras retóricas entre os hindus, hebreus e egípcios. 2.2. O nascimento da retórica Apesar disso, a retórica está intimamente ligada à herança grega, assim como a geometria, a tragédia e a filosofia. Se outros povos praticaram a retórica, apenas os gregos lhe deram uma teoria. O mais impressionante sobre a retórica grega é que ela, criada entre os séculos V e IV a.C., manteve-se intacta por aproximadamente dois milênios, “de Górgias a Napoleão III” (REBOUL, 2004). Suas origens precisas perdem-se no tempo, no entanto é consenso que ela surgiu no período clássico, após a “Batalha de Salamina” (480 a.C.) em que os gregos coligados expulsaram os persas de seu território. Assim, a retórica grega não nasce no continente, mas na Silícia, na Magna Grécia, por volta dos 465 a.C. sua origem não é literária ou filosófica, mas jurídica e prática. Numa época em que não havia advogados, era necessário proporcionar aos litigantes um meio de defender sua causa: “Certo Córax, discípulo do filósofo Epêndocles, e o seu próprio discípulo, Tisias, publicam então uma ‘arte retórica’ (Τέχνη ρητορική, tekné rhetoriké), coletânea de preceitos práticos que continham exemplos para o uso das pessoas que recorressem à justiça. Ademais, Córax dá a primeira definição da retórica: ela é “criadora de persuasão”. (PERSOUL, 2004, p. 2). Não é de se estranhar, portanto, que ainda no século V a.C., a retórica se espalhasse pela Ática, conquistando Atenas. Essa situação foi favorecida pelas semelhanças sociais e políticas dessa com a Silícia, marcada pela livre reivindicação de direitos por via jurídica. As relações da retórica com o direito irão determinar a história da disciplina, visto que não há, no âmbito judiciário, a “certeza plena dos fatos”, (pois se assim fosse não haveria necessidade de julgamentos e os tribunais se reduziriam à câmara de registro), a retórica não argumentará a partir do “verdadeiro”, mas a partir do “verossímil”. Na Atenas de Péricles, a palavra “torna-se o instrumento político por excelência, a chave de toda autoridade no Estado, o meio de comando e de domínio sobre outrem” (VERNANT, 2002: 53,54). No encontro entre a polis ateniense e a tekné rethoriké surgirá a nova Paidéia grega. 23 Essa nova educação completa do ser humano só seria possível por meio dessa técnica de domínio da linguagem, educação essa realizada no espaço público, na “ágora”, a praça pública da Cidade-estado. Assim como afirmou Tucídides, toda a cidade tornou-se “uma empresa educativa”, visto que desenvolvia “uma atividade educativa total e permanente, que faz da pólis inteira uma “comunidade pedagógica” (CAMBI, 2004). Convém lembrar, porém, que a relação histórica dos gregos com a palavra é bem mais antiga, ligando-se a tradição homérica: “Os heróis da Ilíada e da Odisséia são pródigos em discursos longos e pomposos, e as narrativas não se limitam a mimetizar as falas, referindo-se constantemente às próprias palavras e noções conexas” (SOUZA, 199, p. 5). Isso é verdade, principalmente para os educadores (pedagogos e θεράπον, theràpon) que exibem seus dotes retóricos em longos discursos, ratificando a antiga areté (virtude) “das armas e da palavra”. Essa valorização do uso do logos (palavra que também significa “razão”, “escolha”, “organização” e “discurso”) como um elemento distinto da espécie, portanto, indispensável à formação humana encontra-se belamente registrado na “Ode ao Homem”, do coro da peça Antígona, de Sófocles (496-406 a.c.): Há muitas maravilhas neste mundo, mas nenhuma maior que o homem. Ele é o ser que sabe atravessar o mar cinzento, na hora em que sopram o vento Sul e suas tempestades, e que percorre seu caminho no meio dos abismos que lhe abrem as vagas revoltas.(...) Soube aprender sozinho a usar a fala e o pensamento mais veloz que o vento e as leis que disciplinam a cidade (...). Não tardou para que essa relação entre “palavra”, “homem” e “sabedoria” fosse tematizada pela igualmente jovem filosofia grega. Essa questão era tão clara que mesmo um inimigo declarado da retórica como Platão acabou estabelecendo uma sinonímia entre os conceitos de filosofia (amizade pelo saber) e filologia (amizade pela fala). (SOUZA, 1999). 2.3. Retórica, sofística e filosofia. A chegada da retórica coincidirá com a ascensão de Atenas no mundo grego, durante o governo de Sólon, em 594 a.C., em meio às lutas sociais e efervescência 24 cultural. Esse momento fundante na história do Ocidente terá na retórica um dos seus principais elementos: Esse modelo de cultura essencialmente democrática deu lugar àquele período de “iluminismo grego” que foi interpretado de maneira exemplar pelos sofistas. Estes eram mestres de retórica (e não mestres da verdade como os sapientes Tales até Demócrito). Os sofistas, portanto, indicam uma dupla virada na cultura tradicional, naturalista e religiosa, cosmológica, que é submetida a uma dura crítica (CAMBI, 2004, p. 84). Atenas, após a derrota dos persas na batalha de Maratona (490 e 475) se impôs como centro cultural e político da Grécia. Com a reforma de Clístenes, Atenas torna-se a primeira democracia da história. O fato desse poder não ser, de fato, exercido por todos (vistos que as mulheres, os escravos e estrangeiros não participavam) não deve fazer com que esqueçamos isso. Não o “governo de um”, ou “dos melhores” ou da “falta de governo”, mas o “governo dos cidadãos, através das leis”. No período compreendido entre 440 e 404 a.C., o “Século de Péricles”, Atenas consolidará suas tendências democráticas, e incentivada por Péricles, tornar-se-á o centro do mundo grego e o berço do Ocidente. Como sabemos, a participação dos cidadãos na democracia ateniense se dava de forma direta, através das eleições para a ekklesía (assembléia), por meio dos direitos de isonomia (igualdade de todos perante a Lei) e isegoría (direito de expor sua opinião em publico e vê-la discutida e votada durante a assembléia). Notemos que a idéia de competência ou técnica só aparecerá num momento posterior ao exercício da política. A priori, todos eram iguais perante a lei para exercer seu poder na polis democrática. Como lembra Chauí: Para um cidadão ateniense seria inconcebível que alguém pretende- se ter mais direitos e mais poderes que os outros valendo-se do fato de conhecer alguma coisa melhor do que os demais (...) A democracia ateniense julgava tirano todo aquele que pretende-se ser mais, saber mais e poder mais do que os outros em política. Neste sentido a noção de “verdade” ligava-se a “doxa” (opinião) e a confiança na decisão soberania da assembléia. Falso ou mentiroso era, portanto, todo aquele que não aceitasse tal decisão. Como veremos será precisamente isso o motivo da acusação e condenação de Sócrates (...) (CHAUÍ, 2002, p.134). 25 Por hora, entendamos a idéia de Nomos (Lei) fundamental à existência da polis democrática. Como sabemos, durante o século VI a.C, foi a noção de Physis, o mundo natural, que despertou a atenção e o estudo racional dos gregos. “A filosofia nasceu como física, e os primeiros filósofos foram, acertadamente chamados físicos” (IGLÉSIAS, 2002 p. 20). A palavra “física” para eles não tinha, evidentemente, o sentido da física atual. Antes ligava - se à etimologia do verbo phyein (φυειν), que significa “emergir”, “nascer”, “crescer”, designando tudo o que “surge”, “vem a ser”. A palavra physis relacionava-se ainda com outro termo importante: o Kósmos. A noção de kósmos (mundo organizado) como bem afirma Jaeger (2004) “é uma projeção da polis no universo.” Desse modo, kósmos significa, inicialmente, a ação das pessoas num comportamento conforme ao estabelecido, “depois, indica a ação humana que produz ordem às coisas e, finalmente, com a filosofia, passa a referir-se à ordem e organização do mundo” (CHAUÍ, 2002, p. 45-46). No conceito de kósmos se entrelaçam noções jurídicas e poéticas, visto que o mesmo é tido como “justo”, normativo e causal (termo jurídico que implica em ser responsável ou representar alguém ou alguma coisa diante do júri). Além disso, as coisas unem-se e separam-se movidas pelo amor ( éros) e pelo ódio ( neîkos). A questão levantada pelos físicos e desenvolvida pelos sofistas e filósofos será, precisamente, a relação entre a phyisis (natureza) e o nomos (cultura). Trata-se de saber se existe uma lei universal e imutável, as quais os homens precisariam se submeter e como essa lei se relacionaria com o mundo da cultura, reconhecidamente fundado nos costumes e na linguagem humana. Os Sofistas foram os primeiros a perceberem a importância dos condicionamentos históricos e culturais para o conhecimento e a ética, bem como a tematizarem a separação entre o pensamento, o mundo e a linguagem. Para nós, em especial, eles são importantes por terem desenvolvimento o campo e significação da retórica e por terem se tornado os primeiros professores profissionais da história. Porém, por seu caráter fragmentário e particularista, a sofística será muito mais um “modo de ensinar” que “uma doutrina a ser seguida”. Inicialmente precisamos entender que a relação entre sofística e filosofia era bem mais próxima que imaginamos. Basta lembrarmos que no início os gregos usavam as palavras Sophistés (professor) e Sophós (sábio) como sinônimos, embora a primeira sempre estivesse mais ligada à idéia de ensino. 26 Os sofistas caíram rapidamente no gosto dos jovens da nova elite (como Péricles, por exemplo) e se tornaram verdadeiros “pop star” da Antigüidade. Essa relação dos sofistas com o dinheiro e as multidões, não passaria despercebida pelos seus críticos aristocráticos ou por Sócrates. A partir de então, a areté (αλετή, virtude) já não era um privilégio de nascimento. Todos os que quisessem e pudessem, poderiam aprendê-la. Essa mudança provocada pelo movimento sofístico no século V a.C, colocou numa base inteiramente nova à visão grega do mundo, que ainda assentava-se sobre as premissas da Paidéia aristocrática. O novo modelo de educação, difundido no teatro (especialmente com a tragédia) e na ekklesía, propunha agora uma Paidéia do discurso e da ação, em oposição à idéia de kalo kagathia ( beleza física e bondade) característica do antigo regime. Do cultivo do corpo para guerra à produção de politikós (cidadãos) racionais, competentes e eloqüentes. Eis a novidade da retórica grega: Pela primeira vez na história da humanidade o objetivo da educação é a formação de intelectuais. Basta recuar até Píndaro e suas zombarias cáusticas a respeito dos “eruditos” para avaliar a profundidade do abismo que separa o mundo dos sofistas do mundo dos mestres espartanos de educação física. No mundo dos sofistas, deparamos pela primeira vez com a concepção de uma classe intelectual que não constitui uma profissão ou casta fechada, como era o caso dos sacerdotes da idade homérica; ao contrário, é uma classe concebida como um reservatório dotado de capacidade suficiente para fornecer sempre candidatos devidamente preparados para o exercício da liderança política (HAUSER, 1995, p. 91). No debate entre nomos ou physis e entre doxa ou alethéia eles tomaram o partido dos primeiros. A preocupação com o arkhé e com a própria physis é esquecida. Em seu lugar surge a preocupação com a solução dos problemas práticos do ser humano, parte inseparável da cidade – Estado. Para os sofistas todo conhecimento passava sempre pelo uso do logos (palavra), que era entendida como dóxa (opinião) e não como episteme (ciência). O exercício consciente da palavra (retórica) era o que caracterizava plenamente o ser humano. A retórica compreendia o relacionamento da palavra com três dimensões filosóficas: a “justiça” (δικέ, diké), a confiança e a fidelidade (πιστίς, pístis) e a doce ou suave persuasão (πειθό, peithó)” (CHAUÍ, 2002, p. 43). Em oposição a elas não estava a “ciência” ou a “verdade”, mas a injustiça (αδικία, adikía), a desconfiança e infidelidade (πσευδές, pseudés) e a sedução “mentirosa” (απάτε, apáte).Portanto os destinos do ser 27 humano estavam ligados ao uso da palavra e essa era inseparável da assembléia democrática. Ninguém que compreendeu a “virada lingüística da filosofia” e das ciências sociais pode ignorá-la. Nenhum “pós-estruturalista” ou “neo-pragmático” a descreveria melhor. Os sofistas foram o fármakon (φάρμακον, simultaneamente cura e veneno) da filosofia. Mas o que pensavam? O que propunham os “professores da sabedoria”? Segundo Abbagnano (2000, p. 918): 1º. O interesse filosófico concentra-se no homem e em seus problemas, no que os sofistas tiveram em comum com Sócrates; 2 º. O conhecimento reduz à opinião e o bem, à utilidade. Conseqüentemente, reconhecendo-se da relatividade da verdade os valores morais, que mudam segundo o lugar e o tempo; 3º. Erística: habilidade em refutar e sustentar ao mesmo tempo teses contrárias; 4º. Oposição entre natureza e lei. Na natureza, prevalece o direito do mais forte. Nem todos os sofistas defendem essas teses: os grandes sofistas da época de Sócrates (Protágoras e Górgias) sustentam principalmente as duas primeiras. As outras foram apanágio da segunda geração de sofistas. Protágoras ao afirmar que “o homem é a medida de todas as coisas”, estava provocando uma profunda mudança na história da disciplina. Por conseqüente: a) rompia com a identificação entre pensamento, mundo e palavra; b) abandonava a busca por um “fundamento” da physis que não fosse a própria palavra e c) elegia o ser humano como “medida” última da justiça e da verdade. Os homens, e não os deuses ou a ciência passam a ser o “critério” da realidade. As teses de Protágoras fundamentam-se nos exemplos da história e da cultura e, em sua leitura da ciência médica hipocrática (veremos posteriormente como esse será um ponto de contato e divergência com Sócrates), assim a medicina, embora parta de casos particulares, permite a construção de um saber universal. Esse conhecimento, indutivo, não só era possível pela ação do paciente, que se tornava o “critério”, a medida da ação do médico e o objeto da ciência. Embora existisse um saber médico esse nada determina, cabendo sempre ao paciente a decisão da melhor escolha a ser feita, e por outro lado, o próprio conhecimento médico das doenças só é possível por meio da retórica: anaminesis e diagnóstico. Não há, portanto, conhecimento “objetivo” ou fora da “ação discursiva”. Mas será com Górgias de Leontini (427- 375 a.C), que a retórica encontrará sua expressão sofística mais radical. Riboul, ironicamente, afirma que “Nascido por volta de 28 485, Górgias viveu cento e nove anos, sobrevivendo, pois, a Sócrates” (2004, p. 4). Com ele a retórica se distanciará de qualquer traço “científico” e se tornará uma arte (tekné) essencialmente literária. Até Górgias, os gregos pensavam a literatura como sinônimo de poesia. Ao criar um novo tipo de discurso, o “epidíctico” (elogio público), Górgias rompeu as fronteiras entre prosa e poesia, ficção e realidade. No seu eloqüente Elogio de Helena (no qual fará uma defesa inusitada de Helena de Tróia), é difícil saber se ele está a defender a personagem ou a própria arte retórica: “O discurso é um tirano poderosíssimo; esse elemento material de pequenez extrema e totalmente invisível alçam à plenitude as obras divinas: porque a palavra pode pôr fim ao medo, dissipar a tristeza, estimular a alegria, aumentar a piedade” (GÓRGIAS Apud RIBOUL, 2004, p. 5). Atentemos para as possibilidades da palavra: alegrar a vida e aumentar o prazer (“dissipar a tristeza” e “estimular a alegria”) e nos dar algum sentido moral (“aumentar a piedade”). O que a retórica não pode e nem deve fazer é “buscar a verdade”, visto que para Górgias: “Nada existe; se existisse alguma coisa, não poderíamos conhecê-la; se pudéssemos conhecê-la; não poderíamos comunicar nosso conhecimento aos outros”. É dessa atividade como sofista, de “sábio no uso da palavra” que surge sua descrença da incapacidade de “dizer o que o Ser é”. Jogando com os dois sentidos do verbo ser (ειμί, eimí). Ser como existir e verbo de ligação de um predicado (“o ser é” e “o ser é o ser”) Com Górgias é quebrada, pela primeira vez, a identidade do logos – ser-pensar – agir, estabelecendo-se uma autonomia entre pensamento e linguagem. Isso nos torna consciente do caráter lingüístico, interpretativo do nosso pensamento. Não temos, como pensavam os antigos, um contato direto com a realidade. Todo conhecimento externo é nos dado por meio da palavra. Assim, não vejo o mundo ou as coisas que nele habitam imediatamente, mas desde sempre, os vejo mediados pela linguagem, organizo-os com palavra e os exponho no discurso. Não posso, no entanto, pelas palavras “dizer” as coisas; pelas palavras digo apenas “palavras” sobre as coisas: “Portanto, mesmo que o ser possa ser e possa ser pensado, não pode ser dito ou comunicado. Comunicamos palavras sobre as coisas dadas pelos sentidos, não comunicamos coisas, seres” (CHAUÍ, 2002, p. 173). Concretamente o que muda? O que ocorre, do ponto de vista lógico-formal se reconhecer como válidas as teses de Górgias? Que conseqüências isso traz para a prática pedagógica? Se soubermos que não há “ser humano” em abstrato, mas que todo ser é 29 sempre um ser “no mundo”, “para os outros”, imerso numa determinada cultura, dentro de uma determinada história, com os valores de um determinado contexto? Em primeiro lugar mudar o objetivo do ensino, da retórica. Se o discurso não pode mais tratar da verdade, nem pretende ser verdadeiro (nem mesmo “verossímil”) só lhe resta ser “eficaz”, ou mais precisamente “útil para convencer”, vencer o outro, “deixá - lo sem palavras”, “sem réplica”. A finalidade da retórica deixa de ser a busca pelo verdadeiro ou pelo consenso e passa a ser o exercício agonístico do poder. Mas não seria essa a pior das violências? Não seria a linguagem “o pior dos tiranos?” Não estaria sepultada, ainda no seu nascedouro, a idéia de liberdade e autonomia do projeto filosófico? Não teria a retórica condenado a paidéia (παιδέια, educação) a algo essencialmente “desumano”? Como diz com precisão Riboul (2004, p. 10): os sofistas foram com certeza os primeiros pedagogos, e o objetivo de sua educação não deixa de ser nobre: capacitar os homens a “governar bem suas casas e suas cidades”. Entretanto, eles excluem todo saber, e levam em conta apenas o saber fazer a serviço do poder. Com a sofística, a retórica é a rainha, mas rainha despótica porquanto ilegítima. Agora, o elo entre retórica e sofistica é fatal: seria possível salvar a primeira da segunda? É com essa intenção que Sócrates (c. 470-399 a.C), construirá seu projeto de uma “dupla retórica” filosófica. 2.4. Retórica e dialética Mas quem afinal foi Sócrates? Um santo, um herói ou um sábio? Ironicamente, sabemos que não há como saber com certeza. Isso porque, semelhante a Jesus, Sócrates nada escreveu sobre si ou sobre suas idéias. Tudo que dele sabemos são discursos e interpretações. Depois de Hegel (1770-1831) aprendemos que existem “vários Sócrates” (De Platão, de Xenofonte, de Aristóteles, de Schleirmacher, de Nietzsche e o do próprio Hegel). Mas nenhum deles é, verdadeiramente, Sócrates. Mas isso não deve nos fazer desistir, a exemplo de seu pensamento, o melhor da filosofia não é a posse da verdade, mas sua incansável busca. O conhecimento que temos de Sócrates é mediado pela visão de pelo menos três autores. Dois deles foram seus discípulos e compartilharam o interesse em perpetuar o seu legado, Platão e Xenofonte, o terceiro, um comediógrafo, crítico descompromissado de seu tempo e de seus contemporâneos, Aristófanes. 30 Dentre as diversas faces de Sócrates, destaca-se a cômica, registrada na peça As Nuvens, que segundo o helenista inglês K. J. Dover, estudioso de Aristófanes, trata-se de uma amálgama dos vários tipos intelectuais que circulavam pela Atenas do século V a.C. e, muito especialmente, dos sofistas. Os sofistas merecem destaque na composição do Sócrates de Aristófanes na medida em que este se caracteriza pelo ensino remunerado da arte retórica. O personagem principal, Estrepsíades, afogado em dívidas, espera aprender com o filósofo um discurso que o isentasse de pagá-las. É assim que ele se refere a Sócrates e aos seus discípulos no prólogo da comédia: “Se a gente lhes der algum dinheiro, eles ensinam a vencer com discursos nas causas justas e injustas (di- kaia /dika).” Como sabemos, Platão registra a prática dos sofistas que prometiam treinar os interessados na oratória, habilitando-os a vencer as causas mais difíceis, ministrando também conteúdos filosóficos e ensinamentos relativos à natureza da linguagem. Tudo isso mediante um substancioso pagamento. O surpreendente é que Sócrates, cujas restrições a essa atuação dos sofistas, destacada nos diálogos platônicos, tenha sido escolhido por Aristófanes como representante dessas práticas, o que nos leva a imaginar que os atenienses percebiam semelhanças entre ambos (DUARTE, 2005; CASTILLO, 2000). Mas quem foi esse “homem – paradoxo”, que como bem lembra novamente Chauí “Figura estranha, a de Sócrates. Seus contemporâneos o consideram excêntrico, um átopos (literalmente, deslocado, sem lugar). Numa sociedade que, apesar da nova areté, cívica, aprecia acima de tudo a beleza física, Sócrates é de uma feiúra inigualável": rosto chato, nariz grande e aberto, olhos de boi saltados, baixo, lábios grossos, mal vestido, sempre enrolado num manto pouco limpo e gasto, sempre apoiado num bordão” (CHAUÍ, 2002, p, 180). Dessa forma, a vida pessoal e obra de Sócrates confunde-se numa amálgama. Isso porque Sócrates não apenas ensinou filosofia; ele a viveu plenamente até as últimas conseqüências. Precisamos compreender a vida e a filosofia socrática como expressão máxima da tragédia grega, que na época de Sócrates, desempenhava a função de “instituição social”. O teatro grego era mais retórico que dramático. As tragédias eram escritas e representadas durante as grandes festas cívicas e financiadas com recursos públicos. Nelas, eram representados diante do povo o presente democrático (representado pelos cidadãos do coro) e o passado despótico (representado pelos atores, heróis e heroínas na 31 oligarquia). A tragédia era pedagógica porque ensinava ao povo que a pólis, com suas leis (nomoi), é superior à justiça (diké) aristocrática, visto que há sempre um crime sangrento nas peças a ser igualmente vingado. A tragédia, geralmente, servia para reforçar o otimismo grego numa visão de “progresso” da história da cidade; narrava, portanto o advento da polis, da lei e do direito democrático. Já não havia mais porque fazer perguntas desconfortáveis sobre justiça e verdade. Atenas comemorava seu destino confortavelmente, embalada pela eloqüência dos sofistas. Pensemos na peça As Eumenides, de Ésquilo (525-456 a.C): “No palco, está o passado aristocrático terminado; no coro, o presente democrático da cidade”. Vejamos o trecho que narra o surgimento mitológico do Areópago e da concepção de justiça democrática: Cidadãos de Atenas!Como ireis agora julgar pela primeira vez um crime sangrento, escutai a lei de vosso tribunal. Sobre esse rochedo de Ares, doravante, sentar-se-a perpetuamente o tribunal que fará raça toda dos Egeus ouvir o julgamento de todo homicídio (...) Esse rochedo é chamado de Areópago. Aqui, Respeito e Temor, seu irmão, noite e dia igualmente, manterão maus cidadãos longe do crime, enquanto conservarem inalteradas as leis (...) não mancheis a pureza das leis com a impureza de estratagemas (...) guardai bem e com reverência vossa forma de governo. Nem anarquia nem despotismos, eis que aconselho a cidade a conservar com respeito. E não expulseis todo temor para fora das muralhas de vossa cidade (...) Aqui fundo um tribunal inviolável, sagrado, mantendo uma fiel observância para que os homens possam dormir em paz. Interpretando o texto percebemos a visão de justiça desse momento. Assim é a guerra (Ares) que dá aos homens o direito de julgar outros homens. Após esse momento o direito passa, novamente a ser “inviolável” e “sagrado”. “Temor” e “Respeito” habitarão para sempre a cidade, e vigiarão para que a lei seja cumprida “noite e dia” para que todos “possam dormir em paz”. Retórica e justiça formam uma única realidade. Sófocles (496-406 a.C), porém, com sua peça Antígona, irá polemizar com esse modelo sofístico de justiça. O conflito já não ocorrerá apenas “no passado”, na distância simbólica entre o coro e os atores, mas no centro do palco, no interior da própria cidade. Antígona defende a lealdade à sua família (o direito de enterrar seu irmão, acusado de traidor) contra a insistência de Cleonte de impedí-lo em nome da lei da cidade. Movida pelo amor ao irmão e convicta de estar agindo em “nome de uma lei maior”, Antígona sepulta o irmão e sela o seu destino, condenando-se a morte. 32 O conflito, portanto não é apenas entre as leis não escritas do passado (aristocrático) e as leis escritas do presente (democrático). Ele tem uma dimensão bem maior. O conflito é entre os “direitos do indivíduo” e os “direitos da cidade”, que por sua vez, nos levam tensões entre as esferas do “particular” e do “universal” (tema também abordado por Isócrates, nos suplicantes, só que nesse caso com um final diferente). Antígona faz referência, na analogia com os deuses, a existência de um “direito natural” em oposição ao “direito legal” da pólis grega, como tematizado por Aristóteles: “Da justiça civil uma parte é de origem natural, outra se funda numa Lei. Natural é aquela justiça que mantém em toda parte o mesmo efeito e não depende do fato de que pareça boa a alguém ou não; fundada na lei é aquela, ao contrário, de que não importa se suas origens são estas ou aquelas, mas sim como é uma vez sancionada” (ARISTÓTELES apud BOBBIO, 1999, p. 16). A questão, portanto, é como conciliar esse impasse? O projeto filosófico, com toda sua amplitude e dramaticidade, volta ao coração da cidade-Estado. Porém, não como tema de alguns poucos cientistas (os físicos “pré - socráticos”), mas de todos os interessados. Não se trata mais de discutir a estrutura da natureza (phisis e arque), mas da própria cultura, da educação, da ética e da política atenienses. A pergunta instaura-se como núcleo estrutural do “novo discurso retórico”. Mas Sócrates afirma não ter nenhuma resposta. Todavia ele estava disposto a dar a vida para responder a essas questões. Por considerá- las importantes e não estar disposto a abandonar o projeto filosófico iniciado pelos físicos, nem muito menos se conformar ao pragmatismo dos sofistas. Ele será, tal como Antígona, condenado a morte e executado em 404 a.C, por envenenamento. Sócrates foi um cidadão exemplar. Era um homem devoto às tradições (procurava cumprir seus votos aos deuses da cidade) e às obrigações cívicas (tomou parte em várias campanhas militares, destacando-se como valoroso soldado). A desconfiança de Sócrates com a retórica sofista se deu depois de sua participação política na assembléia. Como cidadão ateniense, após ser escolhido em um sorteio, Sócrates participou por duas vezes do “júri” da cidade: no julgamento de seis generais derrotados na batalha de Arginusa em 404 e no de um proscrito, Leão de Salamina, em 400, que se encontrava no ostracismo e que havia sido condenado à morte. Em ambas as ocasiões, em cumprimento da lei e de sua consciência, ele se recusou a cumprir as ordens da cidade. No primeiro caso ele defendeu o princípio que 33 cada general fosse julgado separadamente, mas a multidão (insuflada por um hábil sofista?) se recusou a ouví-lo, condenou os generais coletivamente à morte e ainda o acusou de traição. Da segunda vez, ele, conhecendo a antiga lei do ostracismo (que proibia que alguém exilado de Atenas fosse condenado à morte), recusou-se trazê-lo de volta e foi novamente acusado de traição. Tudo isso fez com que ele duvidasse que a “vontade da maioria” fosse o melhor critério para a justiça e a verdade. Para entendermos o projeto filosófico de Sócrates, convém fazermos uma referência a duas influências importantes: a medicina de Hipócrates e a Geometria de Pitágoras (365-275 a.C). A consolidação dessas duas novas ciências aliadas à crise da religião tradicional (Homero, “o pedagogo de todos os gregos” já não era mais aceito ou conhecido, propagavam-se inúmeras “religiões de mistério”) e ao surgimento da poesia lírica (a paidéia socrática, diferente da homérica ou sofística, será uma “pedagogia da consciência individual”), possibilitaram a Sócrates pensar a educação do ser humano em novas bases. Especialmente a medicina grega serviu como alegoria para Sócrates pensar a condição humana. Para o médico grego (como lemos nos Corpus hippocraticus) a doença era causada pela perda de equilíbrio (isonomia) com a phisys (natureza, entendida tanto como particular como universal). Cabia ao médico fazer o diaknóstikos, ou seja, descobrir por meio de perguntas e respostas, dessa forma o doente, diferente de hoje, desempenhava papel decisivo na sua cura. Caberia ao médico, por meio do diálogo (literalmente, “através da palavra”) descobrir, comparando aquele quadro com os já conhecidos, o tipo de doença e o melhor tratamento. Perceba que Sócrates admitiu uma parte das teses sofísticas, ou seja, que não temos conhecimento direto das coisas, mas mediante o uso das palavras, mas mantém como Hipócrates, a confiança de se chegar à verdade, embora reconheça a limitação humana para isso, como lemos no famoso aforismo hipocrático “a vida é breve, a arte é longa, o momento oportuno, fugidio, prova, vacilante, o juízo, difícil”. Por outro lado, Sócrates adotará elementos do pensamento de Pitágoras (séc. VI a.C), entre eles a própria definição de filosophía como “amor à sabedoria” e de filosophos como amigo ou “amante do saber”, e não como sophós (sábio) ou sophistés (sofista); a crença na estrutura racional da phýsis, que para ele seria o número (αριτμός, arithmós). Haveria, portanto um conhecimento real, apodítico e anterior ao sujeito. Um conhecimento científico (epistemé) fundado na verdade (aletheia) e não apenas na 34 simples opinião (doxá), mas que só seria acessível através da “intersubjetividade” e do “diálogo”. Tanto a retórica de Górgias quanto a filosofia de Sócrates possuem ligações com a escola pitagórica. Górgias, na adoção dos conceitos de “tempo retórico”, que origina a questão da “oportunidade retórica” e da necessária adaptação do discurso ao público e, principalmente, nessa doutrina como psicagogia (ψυγαγογία) “sedução ou agradável doença da alma” (PLEBE, 1978). Sócrates concorda com Pitágoras ao definir a retórica como psicagogia, porém, diferente de Górgias considera esse o pior dos males. Além disso, Pitágoras, a exemplo de tantos físicos, era também um místico. Por ser adepto de Apolo Delfo (o deus dos oráculos), ele sabe que a verdadeira sabedoria brota da inspiração divina, é fruto da busca e do esforço individual, e nunca poderá ser inteiramente possuída: somente deus possui a sabedoria. Os homens podem apenas ser seus amantes e a desejarem ardentemente. Este conhecimento levaria a uma vida de contemplação (βιός θεορέτικος, bios theorétikós), que não se opunha à vida prática (βιός ποέσις, bios poésis), mas a“transcendia”. “Conhece-te a ti mesmo” (γνωθι σεαυτόν, gnôthi seautón) e “Sei que nada sei.” Eis as máximas socráticas. Suas origens também remontam ao misterioso Oráculo de Delfos, foi lá que ele afirma ter tido sua “conversão” (μετανόια, metanóia) à filosofia. Lá teria ouvido a voz de Apolo sussurrando aos seus ouvidos uma frase, que mais que um elogio, era uma convocação para a guerra: “Sócrates é o homem mais sábio entre os homens”. Espantado, ele fará a pergunta que moverá novamente a roda da filosofia grega e que caracterizará toda sua pedagogia: “O que é a sabedoria?”. De posse dessa bússola “O que é...” ele percorrerá as mais famosas escolas de retórica e filosofia e se instruirá com os melhores professores da época (foi aluno de Anaxágoras) e descobrirá, enfim, que eles nada sabiam. E o que é mais importante: descobriu que ele próprio era um ignorante. Pronto! Sócrates já pode compartilhar sua “douta ignorância” com sua querida Atenas. Vagando pelas ruas de Atenas, mal vestido e conversando com quem deseja, Sócrates não ensina, “dialoga”. Defende que a sabedoria não é uma coisa que se possui ou um estado que se chega, mas um processo, uma longa busca por algo que de antemão, já sabemos fugidio e complexo: para cada conhecimento obtido novas procuras. A verdade sempre será maior que nossos discursos sobre ela. É evidente que podemos aqui perceber semelhanças de Sócrates com os sofistas: crença na 35 possibilidade de aprendizado e ensino da areté, caráter público dos debates de suas teorias, ênfase na importância da linguagem como meio de acesso à realidade etc. Porém existem importantes diferenças. Se o sofista era um professor de técnicas, de política, de virtude e de sabedoria, Sócrates não se apresenta como professor, mas como interlocutor. Não ensina, pesquisa. Não responde, pergunta. Não disputa, demonstra. Se as aulas dos sofistas eram monólogos ou infindáveis disputas entre opiniões, os diálogos de Sócrates procuravam incorporar os pontos de vista contrários. Se os sofistas são céticos e só se interessam pelas diferenças e pela multiplicidade das coisas, Sócrates é um apaixonado pela sabedoria, deseja, com sua dialética, passar da multiplicidade à unidade, das aparências à essência, da opinião à ciência. Mas Sócrates não despreza inteiramente a retórica, porém acrescentará algo novo a ela: a dialética. Essa “dupla retórica” é “a técnica de colaboração de duas ou mais pessoas, segundo o procedimento socrático de perguntar e responder.” A dialética socrática era segundo Platão: “a atividade própria de uma comunidade e de educação livre” (ABAGANNANO, 2002, p. 268). Por isso Marilena Chauí afirma que “o diálogo é a medicina socrática da alma”. Por ser filho de uma parteira (Fenareta) e de um escultor (Sofronisco) não caberia a ele fazer nascer a verdade ou a beleza. Elas já estavam lá, latentes no mármore frio ou na alma (ψυχέ, psyché) do discípulo. A ele cabia simplesmente ajudar no parto (μαιηυτίκα, maiêutica): “Seu trabalho era suscitar no interlocutor o desejo de saber (como o médico suscita o desejo da cura) e auxiliá-lo a realizar sozinho esse desejo” (CHAUÍ, 2004, p. 189). Resumidamente, poderíamos lembrar que Sócrates dividia seu método em ironia, indução e maiêutica. Segundo Aristóteles, devemos a ele o desenvolvimento de duas coisas: 1) o raciocínio indutivo (das particularidades à generalidade) 2) e a definição universal de um conceito ou idéia (a partir da reunião de todos os casos particulares). Tomemos como exemplo os diálogos Mênon e Langue. No primeiro, Sócrates dialoga com Mênon, um ex-aluno dos sofistas, sobre no que consiste a noção de virtude (areté), tão importante para a educação grega. Ao perguntar o que era virtude, Menôn apresenta a Sócrates uma série de respostas para o tema como se existisse uma para cada tipo de classe de pessoas: virtudes do homem, da mulher, das crianças, dos velhos, etc., compreendida pelo filósofo como um enxame de virtudes. Finaliza o seu diálogo 36 com a seguinte frase: “quanto à virtude, mesmo que muitas e de muitas formas, todas as virtudes têm a mesma característica pela qual são virtudes, e nesta deve pensar quem quiser responder a quem lhe pergunta que é virtude”. (PLATÃO, S/d, p.40). Da mesma forma no Lanque, em que a questão da educação é explicitada mais claramente nesse diálogo que acontece entre Sócrates e dois amigos: Lisímaco e Nicias, para saber o que devem ensinar a seus filhos. Os amigos têm posição diferente sobre a incorporação da disciplina de esgrima no currículo militar da cidade. Após negar ser um professor e assumir o papel de sofista, Sócrates pergunta para ambos como procederam para decidir, e eles respondem que a partir da vontade da maioria. Indignado, Sócrates responde que “Não é pelo número, mas pela ciência que devemos julgar essas coisas.”E então, introduz novamente a voz dos amigos no debate. Dessa vez sobre o significado da própria noção de Paidéia e não mais o uso ou não da esgrima como parte do currículo. Para Sócrates virtude e ciência são inseparáveis. Por isso sua crítica aos sofistas que só ensinavam por dinheiro, comprometendo, assim, a sua autonomia na busca pela verdade (Sócrates foi, portanto, o primeiro a perceber as tensões das relações entre os intelectuais e o poder); também critica a heteronímia que os sofistas, enquanto mestres do saber exerciam sobre seus alunos, negando-lhes a palavra e a autonomia do pensamento; critica ainda a idéia da filosofia, ou da educação (como hoje defende muitos “pensadores”), como simples exercício de combate verbal, e, nesse sentido, “uma relação de violência recíproca, para que vença o mais forte e não a verdade, comum a todos” (CHAUÍ, 2004, p. 202). Resumindo, Sócrates questiona todo projeto socrático e ao fazer isso coloca em xeque também o sistema político. Por isso passou a ser visto como um subversivo corruptor de menores e praticante de indignidades. A dialética não morreu com Sócrates. Sabemos que ele teve inúmeros discípulos e que esses se dividiram após sua morte em várias escolas: a cínica, a cirenáica e a megárica. No entanto, a sua obra chegou-nos pelas mãos de um dos seus discípulos: Platão (c.427 – 348 a. C), que começou a freqüentar as aulas com Sócrates ainda jovem. O assassinato de Sócrates deixou marcas indeléveis na vida do jovem discípulo. Platão estava consciente do significado da morte de Sócrates para a cultura helênica. Sua condenação demonstrou os perigos da retórica. Sócrates não apenas exaltou homem como portador do logos fazendo da relação dialógica a questão humana fundamental, como também definiu o ser humano como essencialmente um “ser da palavra”. A 37 questão para Platão era como realizar a passagem do pensamento à ação, mais precisamente, como converter esse zoon logikón (ser da palavra e do pensamento) em um zoon politikón (ζοων πολιτιικόν, ser do poder e do governo). Essa é a origem de sua “teoria do rei-filósofo” e de sua “ampliação” da dialética socrática. Como sabemos, o diálogo foi o método por excelência da prática socrática. Nessa perceptiva, Filósofo é exatamente aquele que está aberto ao diálogo, a um diálogo vivo, livre e inacabado. Nessa forma peculiar de ensino socrático, o papel do educador é muito mais o de perguntar e inquirir do que o de responder ou contestar. Mas o que significa pensar a relação entre educação e filosofia “depois de Sócrates?” O que significa relacionar Paidéia e política de forma consubstancial novamente? Platão tirou a seguinte conclusão sobre a morte de Sócrates: O filósofo, que, entretanto deveria dominar, é impotente no quadro do Estado existente, e, se assim é, porque este Estado é injusto em si. Importa, antes de tudo, reformar o Estado para o tornar justo e conforme a sabedoria. Entretanto se espera esta reforma indispensável das instituições e para tornar possível, importa prever a educação dos que deverão, no momento adequado, assegurar seu funcionamento. O êxito deste empreendimento essencialmente político requer, pois, o retorno de uma filosofia ligada, por assim dizer, substancialmente, a uma pedagogia. (MAIRE, 1966, p. 21). Mas quais as conseqüências disso para a Paidéia? Veremos mais a diante. Nesse momento cabe entender porque o projeto socrático já não era suficiente. Era preciso “desenvolver” o seu método, “ampliando a dialética”. Já não bastava elevar o conhecimento das multiplicidades à unidade. Era preciso que ela se tornasse um método realmente seguro de obtenção da verdade; onde “Uno e múltiplo se fundem e se juntam na síntese, possibilitando a unidade na multiplicidade”, tema que será desenvolvido posteriormente por Hegel e pela tradição marxista. A dialética busca agora a noésis (a ciência suprema). Esse conhecimento, no entanto, já não é acessível a todos. Se a maioria dos homens é incapaz de ir além da opinião, e alguns, através das matemáticas chegam à dianóia , somente o filósofo, por meio da dialética, alcança a noésis. O filósofo é o dialético por excelência. A dialética é este proceder pelo qual a inteligência passa do sensível ao inteligível e vai de idéia em idéia até intuir a Idéia Suprema, ou seja, o Bem, o Uno, o incondicionado. Já não basta saber. É preciso poder para tornar essa verdade “realidade”. É necessário que os filósofos sejam reis, ou melhor, ainda, que os reis sejam filósofos. 38 Isso só correrá na “cidade perfeita” ainda uma u-topia (lugar inexistente), mas sempre uma possibilidade, pois “(...) é na sociedade perfeita que o filósofo se poderá tornar no que deve ser, quer dizer, um sábio, enquanto viver numa cidade perfeita, nas nossas cidades humanas, nunca será mais que um filósofo, quer dizer, alguém que procura a sabedoria sem nunca a atingir e possuir inteiramente” (KOINÉ, 1966, p. 70). É isso que Platão nos ensina na sua Carta Sétima e na República (capítulos VI e VII), na famosa Alegoria da caverna, metáfora da condição humana e chave para compreensão de sua Paidéia. Particularmente nesse mito, Platão estabelece uma relação intrínseca e necessária entre Paidéia e alétheia (Heidegger). Assim para Platão: (...) a filosofia é educação ou pedagogia para a verdade. Essa relação é proposta pelo mito com a analogia entre os olhos do corpo e os olhos do espírito quando passam da obscuridade à luz: assim como os primeiros ficam ofuscados pela luminosidade do Sol, assim também o espírito sofre um ofuscamento no primeiro contato com a luz da idéia do Bem, que ilumina o mundo das idéias. A trajetória realizada pelo prisioneiro é a descrição da essência do homem (um ser dotado de corpo e alma) e sua destinação verdadeira (o conhecimento intelectual das idéias). Essa destinação é seu destino: o homem está destinado à razão e à verdade. Porque, então, a maioria dos homens permanece prisioneira da caverna? Porque suas almas não receberem a paidéia adequada à destinação humana. Assim a Paidéia, alegoricamente descrita no mito, é “uma conversão do olhar”, isto é, a mudança na direção de nosso pensamento, que, deixando de olhar as sombras (pensar sobre as coisas sensíveis), passa a olhar as coisas verdadeiras (pensar as idéias). (CHAUÍ, 2002, p. 265-266). Platão opera, se concordarmos com Heidegger, uma profunda mudança no conceito de verdade (a- létheia) que deixa de ser o “não – esquecido”, o “inesgotável” para se tornar o “evidente” e “já conhecido”. Na mudança dos órgãos do sentido (dos ouvidos da retórica aos olhos da ciência). “Verdade” torna-se “evidência”, visibilidade plena e total, conhecimento positivo, definitivo. Por isso não haverá espaço para o poeta na nova República, e muito menos ainda para a retórica. Essa por não ter a precisão das “matemáticas” e das “ciências” como a medicina, não passará de uma “imitadora” ou uma simples “mentirosa”. Assim, se os olhos foram feitos para ver, a alma foi feita para conhecer a Verdade. E a dialética é, precisamente, a “técnica” libertadora dos olhos do espírito. Essa paidéia não será feita sem violência. Mas será uma “violência legitimada pela 39 verdade”. Num mundo sem retórica não há espaços para persuasão ou consenso: a Verdade, tal qual um teorema, se impõe “por si mesma”. A dialética, sistematizada em Platão, é dinâmica (possui um duplo movimento ascendente e descendente com passagem de diversos estágios (eikasía, pistis ou dóxa, diánoia, nóesis e epistéme), converte-se agora na técnica de formação da nova oligarquia platônica: a dos reis – filósofos e, em nome dela, Platão permite até mesmo que as autoridades mintam e enganem o povo. (República: 459e). Como resultado, embora continue a falar de bondade e justiça, e de realização plena do ser humano, seu Estado é totalitário e anti-humanista (muito mais que a “horrível democracia ateniense”, até porque na República platônica, não há mais necessidades de júris ou advogados). Eis o motivo da violenta crítica de Popper (Apud TEIXEIRA, 199, p. 111): “Platão só reconhece o interesse do Estado. Tudo o que beneficia o Estado é bom, virtuoso e justo e tudo quanto o ameaça é mau, perverso e injusto. As ações que o servem são morais, as que o põem em perigo, imorais. Em outras palavras, o código moral de Platão é estritamente utilitário. O critério de moralidade é o interesse do Estado. A moralidade nada mais é do que uma higiene política”. Há, todavia um modelo alternativo ao platônico, que influenciará o modo antigo tornando-se o “fio de Ariadne” da educação humanística no Ocidente. Trata-se no sistema retórico – filosófico de Isócrates (436-338 a.C), o filósofo – sofista. Como afirma Jaeger (2001, p. 1060), “Dentro do panorama da universal peleja do espírito em redor da essência da verdadeira paidéia, que a literatura grega do século IV, Isócrates, como mais destacado representante da retórica, personifica a antítese clássica do que Platão e a sua escola representam.” Isócrates personifica a disputa entre a Filosofia e da retórica, cada uma das quais pretendendo ser a melhor forma de educação, mas além disso, torna-se o elo histórico entre a antiga cultura grega e a tradição humanista. Como Sócrates, Isócrates foi igualmente um personagem paradoxal. Aluno de Protágoras tornou-se o primeiro sofista ateniense. Fundará uma escola de retórica em Atenas onde procurará incorporar as contribuições das duas visões (sofística e socrática). Nessa escola ele procurou garantir o rigor, a beleza e a erudição da arte da oratória em um curso com duração de quatro anos, compreendendo não só a dicção e o estilo, mas também do que ele chamava de “filosofia de vida prática”. E isso o distanciará tanto dos sofistas tradicionais, quanto das teorias especulativas do platonismo. 40 Embora fosse um professor de retórica, realizou uma crítica ao caráter exageradamente pragmático e superficial dos inúmeros “manuais de retórica” que proliferavam em sua época e, contra os quais escreveu o primeiro manifesto educacional da História: Contra os sofistas, de 390 a.C. Uma das maiores críticas feitas à retórica é a sua dimensão pedagógica. Platão afirma que ela não é de forma alguma autêntica educação, posto que não é nem ciência (επιστεμέ), nem técnica (τέχνη).Seguindo ao seu modo a definição gorgiana ele afirmará que a retórica é produtora de persuasão, “geradora de fé” (πιστευτική, pisteutiké), mas não de “ensinamento” (διδασκαλική, didaskaliké) (PLEBE,1978). Isocrates, por outro lado, no seu livro Antidosis ou Sobre o intercâmbio, de 354 a.C, defenderá a retórica como uma verdadeira paidéia, preocupada com a formação integral do ser humano (teoria e prática), corpo e alma (ginástica e filosofia). Coube a ele a fixação e organização das partes que compõem o discurso: proêmio ou introdução; diegésis, ou narração; pistis, ou confirmação; parekbasis ou digressão e epílogos ou peroração. Inverterá os termos da disputa e colocará Platão entre os sofistas enquanto intitulará seu projeto retórico de filosofia. A beleza e a ordem do discurso equivalem ao próprio sentido da vida. Ética e estética se unem no uso da palavra, “(...) O ensino literário é uma escola de estilo, de pensamento e de vida. Idéia bem grega, de que a harmonia, é o valor por excelência, que rege a existência tanto quanto rege o discurso”. Por isso conclui Rebolul: “Estamos aqui na origem do humanismo, para o qual Isócrates contribui, aliás, com um fundamento antropológico” (REBOUL, 2004, p. 12). Se, como ele mesmo afirma, a palavra “é a única vantagem que a natureza nos deu sobre os animais, tornando-nos assim superiores em todo o resto”, é somente por meio dela que seria possível chegar-se ao consenso e à verdade: “Em outras palavras, todas as nossas técnicas, toda a nossa ciência, tudo o que somos devemos à fala. Donde ele infere uma conclusão política: os gregos, povo da palavra, formam na verdade uma única nação, não pela raça, mas pela língua e pela cultura. Devem, portanto, renunciar às guerras fratricidas e unir-se” (REBOUL, 2004, p. 12). A filosofia realiza-se na retórica e essa se fundamenta na filosofia, ambas formam a “cultura geral” característica da Grécia clássica e origem da tradição humanista. Outra grande contribuição de Isócrates para a retórica foi a importância da beleza, como ele mesmo afirma no seu Elogio de Helena, que a beleza é o mais venerado e o mais preciso e o mais divino de todos os bens. 41 A obra de Isócrates consiste em ligar a retórica a alguma moralidade. Pois se abandonada simplesmente ao desejo e à vontade dos oradores como faziam alguns sofistas, isso a condenaria à arbitrariedade e à violência. É essa a resposta de Sócrates, a Pólos, discípulo de Górgias, que sem as sutilezas e os escrúpulos do mestre, defende a onipotência tirânica das opiniões. A retórica de “rainha das ciências” é reduzida a uma simples técnica culinária: “Assim como a culinária cujo objetivo único seja lisonjear nossa gula não nos dá saúde, pelo contrario, também a retórica apenas lisonjeia, sem preocupação com o verdadeiro bem. Aquilo que a culinária é para a medicina, ciência da saúde, a retórica é para a justiça, ou seja, sua falsa cara, sua imitação” (REBOUL, 204, p. 17). Por isso Sócrates afirma no Górgias que “os oradores e os tiranos são os mais fracos dos homens” (466 d). Porque ambos, por trás de sua aparência de poder e sabedoria, são frágeis e ignorantes. Noutro texto Platão afirma que a retórica que não é ciência, muito menos filosofia, nem se quer é uma técnica confiável: “A autêntica arte do discurso, desvinculada do verdadeiro, não existe e não poderia existir” (FEDRO, 260e). No entanto, o argumento de Sócrates só prevalece se acreditarmos que é possível uma ciência humana tão precisa e certa quanto a medicina e a matemática. Para Platão essa ciência era a dialética. Por isso ele podia desqualificar a retórica e a culinária. Essa ciência, mais divina que humana, proporciona um conhecimento das questões éticas e políticas mais seguro inclusive que as ciências da natureza (República livros VII e VIII). Hoje em dia, poucas pessoas acreditam nisso. Para essas (os positivistas, neopositivistas e certo tipo de marxismo) existe uma ciência da política, da cultura, da ética e da educação que lhes permitiria condenar, como fez Platão, tudo o que não é “científico” é visto como “retórico”, “literário” ou “filosófico”. Mas como lembra Reboul, “se tal ciência existisse todos saberiam disso!” Estaríamos livres de ações errôneas ou precipitadas, conheceríamos com clareza o passado, o presente, e até mesmo o futuro. Mas tal ciência já não seria obra humana mais um produto dos deuses, no melhor estilo prometéico. No entanto, como afirmava Isócrates, somos ainda seres da linguagem, portanto poderosos mais limitados. Desse modo “A ciência que Platão opõe à retórica ainda está para ser feita, e sem dúvida, estará sempre”. (REBOUL, 2004, 19). 42 Mais seria possível uma outra retórica? Uma outra perspectiva de se entender a relação entre língua e verdade? É isso que se propõe Aristóteles. 2.5. Retórica e a dialética em Aristóteles Aristóteles de Estagira (384-322 a.C.) foi discípulo de Platão, nasceu 15 anos depois da morte de Sócrates. As questões políticas e culturais da Grécia já não eram as mesmas de seu mestre. Já não havia a autonomia da Cidade-Estado e ele mesmo, após abandonar a academia de Platão depois de 20 anos de estudos, trabalhou como preceptor do filho do rei Filipe da Macedônia: Alexandre, que mais tarde se tornará um dos maiores gênios militares e políticos da antiguidade, conquistando não apenas a pequena Grécia mais todo o Oriente, do Egito à Índia. Aristóteles foi um dos maiores sábios da história. Sua cultura era a realização máxima da paidéia isocrática (poesia, filosofia, matemática, lógica, botânica, astronomia, política, teológia...). Sábio universal e homem prático, ao fundar o Liceu, pretendia conciliar tendências opostas, como a preocupação com a observação, a sistematização, a dialética e a retórica. O seu livro a Retórica (em grego Τέχνη ρητορική) é composto por três partes (“Livros” I: 1354a - 1377b, II: 1377b - 1403a, III: 1403a - 1420a) e não existem dúvidas acerca da sua autenticidade. Essa obra se tornará o texto base para os estudos retóricos no Ocidente. Ao que tudo indica, o objetivo de Aristóteles com sua Retórica era dar um tratamento eminentemente filosófico ao tema em oposição à abordagem técnica que os retores e sofistas haviam dado. Dessa forma, de modo mais específico, tratava-se de uma outra resposta à concepção retórica de Isócrates de Atenas. Ao contrário de Platão, que como vimos no Górgias condena a retórica e no Fedro subordina-a à filosofia, a investigação aristotélica — mesmo que fundamentalmente filosófica — procura conferir autonomia à técnica retórica, desvinculando-a da vigilância estrita da filosofia (coisa que Platão discordava, como sabemos, por considerá-la eticamente perigosa). Para o estagira, a retórica se justifica, antes de tudo, por sua utilidade, mas diferente, dos sofistas, para ele isso não é suficiente. É preciso fundamentá-la racionalmente. E Aristóteles faz isso com maestria. Em primeiro lugar ele afirma que o uso da retórica não se dá tanto como forma de dominação, mas de defesa e conhecimento. Ela tem uma função benéfica para o filósofo e a cidade. É precisamente por ser “boa” (agathon) que ela pode ser pervertida. Para Aristóteles a retórica não é um 43 instrumento neutro, validado exclusivamente pelo uso, antes ele lhe confere um valor positivo, ainda que relativo. Na verdade, a retórica é útil, precisamente por ser relativa. Isso porque diferente de Platão. A filosofia aristotélica concebe valor ao mundo físico e aos seus “entes” e não apenas ao “ser”. Aceita assim, a existência de diferentes níveis de certeza e de ciências. Ao reconhecer os limites da ciência, Aristóteles redefiniu o lugar da retórica. O domínio da retórica e da dialética, as questões judiciárias e políticas, não é o mesmo da “verdade matemática” mas do “verossímil”: “Seria tão absurdo aceitar de um matemático discursos simplesmente persuasivos quanto exigir de um orador (retor) demonstrações invencíveis” (Ética a Nicômago: I, 1094b). No sistema platônico, a índole de toda verdade é sempre a matemática. Se não é possível conhecimento científico do singular, a compreensão correta do mundo, dependeria, em última estância, da existência de um plano superior da realidade, atingido apenas pelo intelecto: o mundo das idéias. A dialética em Platão é responsável, como virmos, por fazer essa passagem da multiplicidade das ilusões dos sentidos à contemplação da verdade única. Isso fazia com que os objetos particulares e corpóreos, perdessem sua importância, pois eram apenas cópias imperfeitas das idéias eternas. É exatamente isso que Aristóteles rejeita no mestre: a problemática duplicação da realidade sensível. Para ele a realidade é sempre constituída pelos seres singulares, e por isso mesmo, concretos e mutáveis. A partir dessa premissa é que a ciência poderá criar suas pesquisas e hipóteses, buscando atingir o universal e o necessário, como “fim último”. Com Aristóteles tem início a longa busca pela fundamentação das estruturas de pensamento. Para ele a prova racional silogística era a mais adequada para a ciência. No entanto, isso não significava que ela fosse a única possível. O que distingue a retórica aristotélica da demonstração científica e da especulação filosófica é raciocinar a partir do provável, do confronto e da incerteza. E o que difere a retórica aristotélica da erística dos sofistas é o raciocinar de modo rigoroso, respeitando estritamente as regras da lógica (REBOUL, 2004). Portanto a Retórica retira suas bases da Tópica buscando não apenas os argumentos prováveis (que têm capacidade de persuadir) como as regras para o uso estratégico desses argumentos. Usando uma metáfora moderna, a retórica seria como um jogo de xadrez, em que os jogadores são livres para usarem suas táticas e estratégias, em que não há 44 moralidade externa, o importante é ganhar a partida, mas com uma condição: não é possível trapacear, desrespeitar ou ignorar as regras do jogo e da lógica. A retórica, afirma Aristóteles, possui três tipos de prova (pisteis) persuasiva: o ethos, o pathos e o logos. Esse terceiro tipo de prova, que apela ao raciocínio, constitui o elemento propriamente dialético da retórica: “Numa palavra, a dialética constitui a parte argumentativa da retórica” (REBOUL, 2004, p. 37). No entanto a retórica é muito mais que um jogo ou exercício mental. Ela é um instrumento de ação social, de deliberação sobre temas fundamentais como a paz ou a guerra de uma cidade, condenação ou absolvição de um justo etc. Ela nos ajuda a deliberarmos sobre fatos incertos e verossímeis, mas que podem realizar-se e realizam- se em parte por meio de nossas palavras e ações: A retórica só é exercida em situações de incerteza e conflitos, em que a verdade não é dada e talvez jamais seja alcançada senão sob a forma de verossimilhança. Afinal de contas, o debate entre Creonte e Antígona, entre razão de Estado, que exige a ordem para garantir a paz, e a lei divina, ética, que se resigna com a injustiça, esse debate não se encerrou, e pode-se acreditar que nunca se encerrará (REBOUL: 2004, p.39). Antecipando-se aos frankfurtianos, Aristótoles defenderá a existência de diferentes formas e níveis de cientificidade. Há, em sua epistemologia, espaço para as ciências do “necessário”, como a Lógica e as ciências naturais; do “provável” como as ciências humanas, a filosofia e a teologia; e o “verosímil” como a política, a propaganda e o Direito. Na classificação de Reboul (2004; p.41), a metafísica passa ao segundo plano enquanto as ciências da natureza tornam-se demonstrativas. As ciências humanas, a filosofia e a teologia encontram-se entre as ciências argumentativas ou interpretativas. A sofística permanece como limite ético do verossímil. Aristóteles se preocupou ainda com a análise da estrutura do discurso, com os tipos de auditório e mensagem, com o uso das figuras de pensamento e, principalmente, com a argumentação. A ele devemos a elaboração do primeiro sistema retórico que se manterá vigente por mais de cinco séculos. No seu livro I, Aristóteles analisa e fundamenta os três gêneros retóricos: o deliberativo (que procura persuadir ou dissuadir), o judiciário (que acusa ou defende) e o epidítico (que elogia ou censura). Além disso, argumentos em favor da utilidade da 45 retórica são apresentados bem como uma análise da natureza da prova retórica que é o entimema, uma espécie de silogismo derivado. O sistema começa com a classificação da retórica em quatro partes, que são os diferentes momentos existentes na elaboração de qualquer discurso. A primeira delas é a invenção (heurésis), em que se realiza a pesquisa sobre todos os possíveis argumentos a sua causa; seguindo-se da disposição (taxis), a ordenação dos argumentos, donde resultará a ordem interna no discurso, seu plano; a elocução (legis) a escrita, que é o momento de criação, arte, estilo do orador e a ação (hypocrisis), a proferição efetiva do discurso, com todo o manejo técnico da voz, da postura corporal e dos gestos. Essas quatro tarefas (erga) são indispensáveis a qualquer um que queira proferir um discurso com eficácia, seja ele um advogado, um médico, um sacerdote, um político ou um professor. O abandono de uma dessas fases tornará seu discurso vazio, desordenado, feio ou incompreensível. Todo aquele que vai empreender um discurso necessita antes saber sobre o quê e para quem ele se destinará. Portanto precisa conhecer com clareza os tipos e os gêneros que convém a cada assunto. A questão do gênero e da interpretação dos discursos estão intimamente ligadas. Sabemos que Aristóteles elaborou uma rica classificação dos discursos divididos em três gêneros oratórios: judiciário, deliberativo ou político e epidíctico. Os três gêneros do discurso Auditório Tempo Ato Valores Argumento- Tipo Judiciário Juízes Passado (fatos por julgar) Acusar, Defender Justo, Injusto Estimema (dedutivo) Deliberativo Assembléia Futuro Aconselhar Desaconselhar Útil Nocivo Exemplo (indutivo) Epidíctico Espectador Presente Louvar Censurar Nobre Vil Amplificação REBOUL, Oliver. Introdução à retórica, 2004.p. 47. Para Aristóteles há três diferentes gêneros retóricos porque existem três tipos gerais de auditório. O orador precisa entender como se estrutura cada um desses gêneros retóricos para poder melhor se adaptar a ele. É isso que confere os traços específicos a cada um deles, portanto ele não pode se dirigir da mesma maneira a uma assembléia, a 46 um tribunal ou a um velório. Os três gêneros também se referem a deferentes dimensões temporais: o judiciário ao passado; o deliberativo ao futuro e o epidíctico centraliza-se no presente, no caráter paradigmático de um acontecimento ou personagem. Aristóteles afirma que dos três ele é o mais claramente pedagógico. Determinando o gênero do discurso convém escolher o tipo de argumento, que segundo Aristóteles, são igualmente em número de três: ethos, pathos e logos. Os dois primeiros são de ordem emotiva e o último racional. O primeiro dirige-se a um auditório móvel e popular e se concentra na argumentação por meio de exemplos; o segundo trata-se de um discurso mais emotivo, que faz uso da amplificação dos efeitos de um acontecimento, mostrando sua importância e beleza. Finalmente o último, típico do judiciário, faz uso das leis e argumenta por base nos silogismos retóricos(εντιμενας, entimenas). O orador, na elaboração de seu discurso faz uso de provas advindas de uma “grande fonte”, que se definem em extra-retóricas ou extrínsecas (atekhnai), como testemunhos, leis, contratos etc e provas intra-retóricas ou intrínsecas (enteknai). São essas últimas que desafiam o talento e a inteligência do orador. São os chamados topoi (τόποι). Essa palavra pode significar “lugares” ou “argumentos consagrados”. Assim topos é tudo aquilo que possibilita ou facilita a invenção. Por isso é do equilíbrio entre seu uso mecânico e criativo que se diferenciará o orador (estilo). No livro III, o estilo e a composição do discurso retórico são analisados. Além de elementos como clareza, correção gramatical e ritmo, o uso das figuras (schemata), como as metáforas e as partes que compõem um discurso. A divisão clássica seguida por Aristóteles compreende quatro momentos: o Exórdio (proêmio) predominantemente fático, que inicia o discurso e que tem como função conseguir que o auditório torne-se dócil, atento e benevolente com o orador; a narração (diegésis) em que o “logos” supera o “ethos” e o “pathos”, onde o orador expõe sua tese de forma aparentemente objetiva, com clareza, brevialidade e credulidade (durante a Idade Média a narração ganha espaço e, desligando-se do gênero judiciário, se confundirá com o gênero religioso, pregação, por meio do uso das exempla - histórias muitas vezes fictícias usadas como ilustrações e comprovações para os sermões); a confirmação (pistis) parte mais longa, composta pelas provas e refutação (confutatio) dos argumentos do adversário, pode estar ou não separada da narração; o 47 importante é que a força do argumento principal (tesis) seja demonstrada em todo o discurso. No discurso há um momento de “relaxamento” que pode ser dispensado: a digressão (parekbasis) em preparação à peroração (epílogos), que finaliza o discurso. Essa pode ser feita com o uso da ampliação (auxese), da paixão (pathos) ou da recapitulação (anacefalose) dos argumentos já citados. Concluída a invenção e a digressão, resta a elocução (léxis), ou a redação do discurso. Cabe, aqui, um parêntese sobre a relação entre a fala e a escrita na retórica e no pensamento de Platão. A elocução é o ponto em que a retórica encontra a literatura .Para os retóricos é um dos momentos essenciais da arte retórica. Os discursos tinham caráter predominantemente escrito, eram feitos para serem decorados e interpretados (como uma partitura musical). A retórica foi a primeira prosa genuinamente literária, visto que ela surgiu entre o preciosismo arcaizante da poesia homérica e a desmazelo da fala cotidiana (REBOUL). Há, aqui, um aspecto importante: Platão discordava dessa crença na língua escrita como meio de entendimento de qualquer coisa. A tradição platônica defenderá um primado ontológico da oralidade sobre toda a forma de manifestação escrita, desde sempre fictícia e deturpada. Por isso que Derrida (2004) fará dessa questão a origem de todo logocentrismo (de “logos”: fala, palavra, razão) ou “metafísica da presença”. O logocentrismo é a crença de que existe algum ponto estável fora da linguagem – a fala, a razão, a revelação, as idéias platônicas - a partir do qual se possa assegurar que as palavras que se usam, assim como todo sistema de distinção que ordena nossa experiência, corresponda realmente ao mundo “como ele é em si mesmo”, sem a medição da linguagem. Por isso que para Derrida a história do logocentrismo (e da metafísica) é na verdade uma série de notas de rodapé a Platão. Por isso a ambivalência com relação à literatura em Platão. Se ele é próspero no uso de mitos e metáforas para apresentar suas idéias, não permite igual liberdade aos poetas, banidos de sua República. A literatura, especialmente a escrita, é perigosa e subversiva. Deve ser mantida em constante vigilância porque fala de um mundo substituto: alternativo e fictício. Distante da verdade das “coisas em si” é apenas uma imitação do mundo real, que por sua vez, nada é além de uma sombra do mundo das idéias. Por isso seu ódio à retórica e aos sofistas: O grande adversário de Sócrates é o sofista, que tenta persuadir os ouvintes não com argumentos, mas por meio de uma manipulação da linguagem. Segundo Platão, o 48 pensamento filosófico - a lógica, o logocentrismo - nada tinha que ver com a retórica ou sofisma. Apenas um uso astuto da linguagem não conduz ninguém à verdade. Na análise (descontrução) do Fedro feita por Derrida a questão entre oralidade e escrita mostra-se de forma evidente: A escrita está mais afastada do pensamento do que a fala. Tomar nota de um pensamento significa correr o risco de confusão e ambigüidade. Platão aparentemente acreditava que a linguagem estava mais próxima da mente quando permanecia em estado de fala. Na fala, em oposição à escrita, o falante está “presente” para garantir que as palavras sejam relacionadas ao mundo da maneira pretendida (DERRIDA, 2004 p. 63). Derrida aponta como essa fixação na fala em oposição à escrita é um equívoco, e sustenta todo um paradigma que relaciona linguagem, pensamento e mundo: “A ironia, que Derrida apresenta, é que embora Sócrates não escreva, Platão o faz. Além do mais a maneira que Platão escolhe para avisar os outros sobre os perigos da escrita é escrever a respeito.” (VANHOOZER, 2005, p. 63). A questão parece ser se nós podemos realmente recusar a esse estado de “fala pura”, desprendendo-nos da escrita, nos colocando acima da própria linguagem para nos certificarmos se as palavras que usamos correspondem realmente ao mundo “em si mesmo” ou teríamos que buscar esse conhecimento no exercício continuo da fala e da escuta, da hermenêutica e da retórica? Parece-me que o segundo caminho é mais condizente com a nossa “condição humana”. Por isso na retórica aristotélica lógica e estética estão bem próximas. Era preciso escolher bem as frases para que elas sejam simultaneamente corretas e bonitas, garantindo o sentido e a utilidade do discurso. Finalmente havia a ação (hypocrisis), o momento de encontro do orador e do público, a proferição do discurso. Como lembra Reboul “Sua função, diria Jakobson, é acima de tudo fática. Ao lhe perguntarem qual a primeira qualidade do orador, Demóstenes respondeu: a ação; e a segunda: a ação; e a terceira: a ação” (REBOUL, 2004, p. 67). Assim a retórica preserva sua origem pública e democrática. Com sua obra (a Retórica), Aristóteles lança as bases da oratória ocidental. Sua importância está em ter feito a distinção entre meios retóricos (entimenas, exemplo etc) e não retóricos (tortura, testemunho etc) da persuasão; a classificação entre os recursos psicológicos (pathos), culturais (ethos) e racionais (logos) na construção do discurso e a definição e classificação dos tipos de discursos (deliberativo judiciário e 49 demonstrativo). Teoricamente, a evolução da retórica ao longo dos séculos representou muito mais um aperfeiçoamento da reflexão aristotélica sobre o tema do que construções verdadeiramente originais. Finalmente, em outro texto importante Da interpretação (Περί ερμηνέιας, De Interpretatione), Aristóteles apresenta o ato de interpretar (ερμηνέυειν) como “significar mediante o enunciado”(τη λέξει σημαίνειν), relacionando retórica e hermenêutica como momentos complementares da compreensão do sentido dos discursos: “Em Περί ερμηνέιας, Aristóteles pressupõe o que se pode entender por hermenêutica, sugerindo sua definição como da análise da linguagem que estuda uma sintaxe e uma semântica lógicas, com que se eluda o mal –entendido ou a deformação do sentidos das proposições (λόγος αποφάντικος) que expressam o pensamento” (TESHE, 2000, p. 85). O texto de Aristóteles nos chama atenção para a relação intrínseca entre retórica e interpretação, entre texto e ação. A leitura retórica dos textos aborda o texto perguntando-lhe o que ele possui de persuasivo? Quais são seus elementos argumentativos e retóricos. Essa leitura é vista essencialmente como um diálogo (REBOUL: 2004), apropriando-se da perspectiva de Baktin (1986, p. 125) para quem o encontro com o texto “é uma relação dialógica que requer duas consciências e dois sujeitos”. A atenção a essa “retoricidade” da interpretação ajuda a nos tornarmos mais cônscios das restrições textuais e contextuais de uma época, as relações sociais, políticas, religiosas e ideológicas que estão ativas antes, durante e depois da leitura. Ao relacionar a dupla auto-reflexão (do texto-autor e do intérprete) a nova crítica retórica (EAGLETON, 1989; MILLER, 1989) chama a atenção para o estudo das “práticas discursivas” como formas de atividades inseparáveis das relações sociais mais amplas entre autores e leitores na formação permanente dos próprios textos. Essa é uma questão importante para a compreensão, não apenas da Antigüidade e do cristianismo, mas de toda a história da interpretação dos textos bíblicos, de São Paulo ao Padre Antônio Vieira. 2.6. Retórica latina Para entendermos a função e o significado da retórica latina convém analisar a relação entre Roma e o helenismo.O momento do “cuidado de si” (Foucault) e da enkyklios paidéia (cultura geral) coincidirá com a conquista romana da Hélade. Como 50 escreveu Horácio: “Gracia capta, ferum victorem coepit” (“A Grécia conquistada, conquistou seu feroz vencedor”). Roma tornou-se a principal divulgadora da cultura grega em seu império, de modo que, “a idéia de Alexandre de uma ecumene grega realizou-se, portanto, com Roma, mas mantendo no centro a cultura grega, do modo como vinha definindo e se organizando sobretudo em Alexandria: como cultura científica e como cultura de humanitas” (CAMBI, 2004, p.95-96). No centro pedagógico helenístico situa-se a formação ética, que se realiza como um cuidado de si, como autocontrole, equilíbrio e criação de um habitus interior que marque a personalidade do homem civilizado. Após enfrentar as reações tradicionalistas, a influência grega a retórica conquistou o império. Por volta do ano de 169 a.C, surgia a primeira escola de literatura (gramática) e posteriormente de retórica. A retórica encontrou em Roma um campo fértil para se desenvolver. Na verdade, a retórica romana encontra-se entre as principais contribuições desse povo à cultura ocidental, e no interior dessa cultura, ela ocupou, ao longo de séculos, um papel fundamental na formação do caráter e da personalidade humana. Sua permanência posterior na história do Ocidente, da Idade Média à Renascença, a associou a própria idéia de arte e pensamento. Entre seus principais representantes destaca-se Quintiliano e Cícero, e dentre suas obras axiais Do orador e O orador (55 e 46 a.C) de Cícero e a Instituição oratória de Quintiliano (93 a.C). Essas obras constituem-se em verdadeiros paradigmas da retórica no Ocidente. Em Roma a tekhné rhetoriké se converterá em ars oratória. Com o nome de ars se denomina tanto a prática da disciplina, quando os manuais, cujo Intitutio de Quintiliano será o exemplo máximo. Por outro lado, a palavra grega rhetor terá duas traduções: rhetor será sinônimo de professor de retórica enquanto orador será o executor dos discursos. Essa dualidade se explica pela relação entre ciência e arte romana: o rhetor é o professor de eloqüência, que possui o conhecimento da técnica, com seus topos e figuras de estilo, mas é o orador que ao fazer a escolha (electio) das palavras e argumentos, e principalmente o ritmo, faz o discurso tornar-se vida e arte. Diferente dos gregos, os romanos tinham advogados. Esses, embora não fossem remunerados por seus serviços, podiam receber presentes e honrarias. Cícero e Quintiliano foram grandes advogados, que em seus livros, “teorizaram sobre sua prática” (REBOULL, 2004, p. 71). 51 Assim por ars oratoria, ou ars rethorica, compreendia-se tanto o exercício da oratória, quanto, seu ensino e sistematização. Na verdade, o ensino e a aprendizagem da retórica englobava o essencial da paidéia romana. Era em torno dela que se estruturava todo o saber superior, como lembra o próprio Quintiliano: Além disso, a gramática, tendo que tratar dos metros e dos ritmos, não pode ser perfeita sem a música, e, ignorando o movimento dos astros, não poderia entender os poetas ou outros textos que, muitas vezes, para esclarecer os tempos, falam do levantar e pôr dos astros, como também não pode desconhecer a filosofia pelas numerosíssimas passagens, especialmente poéticas, que se baseiam nos mais profundos raciocínios sobre questões naturais..., e precisa muito da eloqüência para poder falar com propriedade e elegância sobre tudo aquilo que já dissemos (QUINTILIANO apud MANACORDA, 2000, p. 87). A retórica era o elemento estruturante das disciplinas fundamentais: música, astronomia e filosofia (artes sermocinales, artes reales, trivium e quadrivium). A escola de gramática, na verdade era uma escola de formação geral (a enkyklios paidéia) centrada no uso da palavra. Outra característica da compreensão da retórica pelos romanos é a idéia que todo sistema de regras implica em uma utilização “boa” ou “má” pelos seus praticantes. Por isso a retórica romana é uma moral, ou dizendo com mais clareza é, simultaneamente, um modo ético de vida, um projeto político e estético. Isso explica a dificuldade em se separar claramente o campo da literatura, da retórica e da política em Roma. Um exemplo disso é a obra de Cícero. O critico inglês T . Eagleton (1998) observa que o sentido estético da retórica romana está bem próximo ao uso atual de “teoria do discurso”, ou seja, analisar os efeitos reais de determinados usos da linguagem em determinadas conjunturas sociais. Mais do que uma preocupação estética trata-se do que, hoje chamaríamos de uma “teoria dos atos da fala”. É por isso que dentre os distintos gêneros oratórios Quintiliano destaca o deliberatium, próprio da vida política, e não o demostratium, mais ligado à dimensão estética ou literária, como espaço ideal para a realização do orador. E o maior dos oradores romanos foi Cícero. Marco Túlio Cícero (106-43 a.C), advogado de origem rica é o primeiro grande orador de Roma. Conhecedor profundo da cultura grega (chegou a freqüentar a academia cética em Atenas e formou-se na escola retórica de Rodes) preocupou-se tanto com a vida política (foi defensor da república e da autonomia do Senado além de crítico 52 da corrupção moral e política), quanto com a reflexão retórica e pedagógica (CAMBI, 2004). A obra máxima de Cícero, De inuentione, é composta de seis livros que tratam de assuntos retóricos: De oratore (55 a.C.), Partitiones oratoriae (54 a.C.), Brutus (46 a. C.), Orator (46 a. C.), De optimo genere oratorum (46 a. C.) e a Topica (44 a. C.). Geralmente o conjunto de sua obra retórica é interpretado como resultante de um compromisso entre uma visão filosófica helênica do mundo (fortemente platônica) com sua teória retórica clássica (Isócrates e Aristóteles) aplicada à conjuntura política romana do final do período republicano, cujo De oratore (55 a. C) é a expressão máxima. É precisamente no De Oratore que Cícero expõe sua visão educacional: O verdadeiro orador é o homem ideal que reúne em si a capacidade de palavra, riqueza de cultura e capacidade de participar da vida social e política, como protagonista. É o homem da polis grega, reativado e universalizado pelo culto da humanitas, que se completa com o estudo das artes liberais, das humane literae e da retórica em particular. (CAMBI, 2004, p. 109). A visão de retórica de Cícero aproxima-se da concepção de Aristóteles, ao sustentar o caráter “intercomplementar” da retórica e da filosofia. “Cícero nega que possa surgir um verdadeiro orador sem a filosofia e lembra o exemplo de Platão, que no Fedro sustentava que Péricles foi superior aos outros oradores contemporâneos pelo fato de que fora discípulo do filósofo Anaxágoras; e lembra ainda o exemplo de Demóstenes, que foi ouvinte apaixonado de Platão”, por outro lado, a filosofia não deve e nem pode ignorar a retórica: “Infelizmente, acrescenta Cícero, surgiram também pensadores que, abundantes de doutrina e de engenho, aborreciam a vida social e política e se puserem, então, a desprezar a disciplina típica daquela vida, isto é, a retórica: o primeiro deles foi Sócrates” (PHEBE,1978, p. 67-68). Para Cícero não se deve separar a forma (retórica) do conteúdo (filosofia): “Isso direi de modo breve: que não se podem encontrar palavras brilhantes se antes não se concebem e se expressam os pensamentos, nem algum pensamento pode ser elevado sem a luz das palavras” (CÍCERO Apud PHEBE, 1978, p. 69). Esse processo de busca de equilíbrio entre “forma” e “conteúdo” no discurso se consolida com Quintiliano que estabelecerá as bases para uma pedagogia retórica latina, precisamente no momento em que essa inicia seu declínio. 53 Marco Fábio Quintiliano (35-96 d.C) nascido em Calaguris, na Espanha. Após estudar, praticar (foi titular da cátedra de retórica instituída por Vespasiano e preceptor dos sobrinhos do imperador Domiciano) e lecionar retórica por 20 anos em Roma, dedicou os últimos anos de sua vida à elaboração do maior tratado de oratória da antiguidade: o de Institutio oratoria, composto de 12 livros, sobre a relação entre o orador e o educador. Seguidor do modelo aristotélico buscou unir a técnica ao conhecimento e a moral. Segundo ele não bastava ao orador ser eloqüente, era preciso ser sábio. Também não bastava ser somente sábio, precisava ser eloqüente. A retórica é um conhecimento, uma arte funcional, que exclui tudo o que seja “inútil”. Procedente “do mesmo espírito dos aquedutos romanos e da disciplina legionária. O estilo deve seu brilho à função, analogicamente ao brilho das armas da legião em ordem de batalha” (REBOUUL, 2004, p. 73). Porém, muito mais que uma técnica é a retórica sinônimo de cultura e educação. A Institutio oratoria apresenta-se como um tratado sobre a formação do orador – educador, a partir da primeira infância. Nele, o orador aparece como um verdadeiro pedagogo (literalmente que guia a criança pela mão), ensinando-lhe por meio de debates e questões. Como lembra Reboull (2004 p. 73): “Diga-se que ele abre o campo do ensino retórico por incluir a gramática, como explicação dos textos; e a dialética, como técnica de argumentação. Ao definir a retórica como scientia bene discendi (ciência do bem dizer), a palavra bem tem sentido não apenas estético, mas moral. Para ele “o nome do mais belo dos ofícios não pode ser usado por quem aconselhe perversidades” (QUINTILIANO apud REBOULL, 2004, p. 74). O seu modelo de orador é o do vir bonus, discendi peritus: Na realidade, o que reconcilia retórica e moral é a cultura, para Quintiliano valor supremo. Concordando com Isócrates ele escreve que, sendo a linguagem e a razão características do homem, a retórica que as cultiva constitui a virtude humana por excelência. Falar bem é ser homem de bem; inversamente só o homem de bem, honesto, culto, fala bem. Pode-se dizer que a Institutio oratoria nos deu os fundamentos da educação humanista (REBOUUL, 2004, p. 74). A Institutio oratoria de Quintiliano é o mais completo tratado de retórica da Antigüidade, resultado de 20 anos de experiência docente e de pesquisa sobre o tema. A formação do orador-professor é a busca pelo “orador perfeito”, entendido por ele como uma pessoa simultaneamente sábia, boa e com uma ampla erudição. Nos primeiros 54 livros trata das questões propriamente retóricas da formação elementar do futuro orador. Neste ponto, ele defende a virtude da educação pública sobre a privada, a conveniência de se estimular desde cedo as crianças e a inutilidade dos excessivos castigos corporais, além de demonstrar a necessidade de uma ampla formação da criança (música, geometria, astronomia, ginástica, literatura e filosofia). Um aspecto importante introduzido por Quintiliano é o papel da memória na formação humanística. Em sua obra desenvolve a sua teoria retórica (inuentio) propriamente dita, através da análise das cinco partes do discurso. Quintiliano segue a tradição latina, iniciada por Cícero, acrescenta as quatro partes do discurso estudadas por Aristóteles (invenção, disposição, elocução e ação) uma quinta: a memória. Era necessário decorar (“colocar no coração”) a estrutura do discurso e, portanto compreender como potencializar ou adquirir a memória (mnmé) considerada como indispensável e diretamente ligada à inteligência. Para Quintiliano era dentro do argumentacio (narração) que se concentrava a parte propriamente retórica do discurso. Essa argumentação poderia ocorrer por meio de dois grupos de topos: os ligados ao raciocínio ou aos sentimentos. Caberia ao orador, que era um artista, escolher o gênero adequado ao assunto e ao auditório. Nisso consistiria o seu estilo. O melhor estilo é sempre aquele que é eficaz, ou seja, que se adapta melhor ao assunto. Os latinos distinguiam três gêneros de estilo; o nobre (grave), o simples (tênue) e o ameno (medium) que possibilita inclusive o humor e a anedota como fazia Cícero. Para os latinos, a retórica era uma ciência prática e suas regras buscavam a eficácia da ação. Por isso que a primeira regra é a adequação ou conveniência (prepon, decorum) do gênero ao público, seguido pela clareza e a pela postura do orador que deve ser “vivaz” (alerta, dinâmico, engraçado ou caloroso) na execução do discurso. Quintiliano não era um teórico estruturalista. O discurso precisa além de eficaz, ser saboroso, e isso não dependia de regra alguma: só o autor poderia lhe dar essa propriedade. Na verdade, será a retórica o elemento de ligação e continuidade do “mundo antigo” e da nova cultura que emergirá dos escombros do antigo império, fruto principalmente do mais importante “encontro de mentalidades” do Ocidente: o do kerigma jadaico-cristão com a paidéia grego-romana? 55 2.7. Retórica e cristianismo O cristianismo é uma religião da palavra. O seu núcleo central gira em torno do Kerigma (anúncio) da pessoa de Jesus de Nazaré, como o Cristo. Os relatos desse evento, bem como as palavras de Jesus (as logia) foram registradas por seus discípulos no Novo Testamento. Jesus mesmo, nada escreveu. O que nós sabemos sobre ele é já fruto de uma interpretação dessa proclamação original, que por sua vez é uma releitura dos eventos do Antigo Testamento: “A relação entre a escrita e a palavra e entre a palavra e o evento, seu significado é o centro do problema hermenêutico” (RICOUER, 2004, p. 45). A atualização desse evento só é possível, no entanto, por meio da pregação. Portanto o sermão atualiza o kerigma, fazendo com que ele se estenda hodie usque ad (mesmo até nós hoje). A palavra (אמך, dãbar em hebráico) tem lugar central na tradição bíblica. Deus cria o mundo do nada, pelo poder da palavra (Gn 1,3); no rito de aliança do Sinai a aspersão com sangue e o banquete cultual selam o pacto estabelecido por Deus “sobre base de todas essas palavras” (Ex 24,8), a teologia judaica, constitui no “ruminar” das palavras proclamadas por Moisés ao povo e depois escritas e lidas: a Torá. É na recitação pública dessas palavras que sobrevive a fé histórica de Israel. A base de todo monoteísmo judáico é desde sempre anúncio e convite - o “shemá” (Dt 8.6); recitado ao povo aos sábados: “Ouve, ó Israel, o Senhor nosso Deus é o único Deus!” A exposição dessa palavra sempre teve lugar privilegiado no culto judáico e na formação de suas tradições orais, anteriores ao próprio texto. O livro de Esdras (398-397 a.C) relata que após a volta do exílio babilônico todo o povo, unido em assembléia, junto com os levitas “liam no livro da lei de Deus em trechos distintos e com explicações do sentido e, assim, faziam compreender a leitura” (Esd 8,8). Semelhantemente os profetas usam com abundância o poder da palavra: “Amós (7, 12-17) toma a palavra no “santuário do rei e no templo do Senhor” (v.28). Na tradição bíblica, o ministério do profeta (literalmente “que fala em lugar de alguém, “embaixador”) começa com a expressão “veio a mim a Palavra do Senhor”. Esta piedade centrada na palavra permanece até o século I como podemos ler no relato de Fílon (20 a.C-54 d.C): 56 Moisés prescreveu que o povo se reúna em assembléia no mesmo lugar neste sétimo dia e, todos sentados juntos com respeito e ordem, escutem a leitura das leis de modo que ninguém possa ignorá-las, e, na verdade, sempre se reúnem e se encontram juntos geralmente em silêncio, exceto quando tiverem que dizer algo do que foi lido. Mas algum sacerdote presente ou um dos anciãos lê para eles as santas leis e as explica ponto por ponto, até o entardecer; depois vão-se embora tendo adquirindo conhecimento seguro das santas leis e notável progresso na piedade (FÍLON apud SARTORE E TRIACA, 1992, p. 557). Neste relato encontram-se as origens do culto cristão e de sua retórica (homilética). Eis porque E. C. Dargan (1914), na sua famosa obra de dois tomos History of Preaching (História da pregação), afirma, talvez de forma exagerada, que “a pregação é a parte essencial e a característica distinta do cristianismo” e que ela “é distintamente uma instituição cristã”. A fé cristã se fundamenta no anúncio e na escuta: fides ex auditu (a fé que vem pelo ouvir). As fontes são as Escrituras (“antigas” e “novas”) que precisam sempre ser reinterpretadas. Este é o “círculo hermenêutico” (Heidegger e Bultmann) em que não apenas a bíblia mas o próprio intérprete, a vida, o mundo, toda a realidade torna-se um texto a ser decifrado. Líber et speculum (livro e espelho) diriam os antigos: o mundo é um texto; as Escrituras são o espelho, no qual busca-se o sentido da história e de si mesmo por meio da Palavra (RICOUER: 2004). Dessa forma retórica e hermenêutica encontram-se unidas ao conteúdo mesmo da fé cristã. Essas idéias serão desenvolvidas de forma brilhante pela sermonística vienense no Brasil do século XVI. 2.7.1. A Retórica nos primeiros séculos do cristianismo (Séc. I ao V. d.C) É Lucas quem descreve os inícios da pregação de Jesus nas sinagogas (4,15). Além disso, após o “evento pascal”, o ressuscitado explica as Escrituras aos dois discípulos de Emaús, e aos doze: “Era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos (24,44)”. Além das prováveis homilias encontradas durante a celebração da “ceia do Senhor” (At 20,7.11), podemos encontrar exemplos de homilias nas cartas de Pedro, em Hebreus e, de forma mais elaborada, nas cartas de Paulo. Com relação a Paulo, temos os sermões transcritos em Atos. O primeiro na sinagoga de Antioquia da Psídia (capítulo 13); o segundo no Areópago, em Atenas 57 (capítulo 17); o terceiro em Mileto, aos anciãos da Igreja em Éfeso (capítulo 20); o quarto ao povo judeu, em Jerusalém (capítulos 21-22) e o último na presença do rei Agripa (capítulo 26). Além disso, as treze epístolas atribuídas à autoria paulina igualmente contém exemplos de uso da retórica, particularmente a Primeira Carta aos Coríntios (9-10) (AICHELE: 2000). Esse uso da palavra, fortemente influenciado pela hagadá pascal, é o mais antigo tipo de discurso cristão. Essa conversação era chamada pelos gregos de homilia e pelos romanos de sermo (semonis). Neste primeiro momento a comunicação da mensagem cristã, por se tratar de comunidades pequenas e não muito cultas (a exceção de Coríntios), era bastante informal e marcada pelo diálogo existente entre os ouvintes e o receptor. (SILVA: 2005). Assim, Paulo, ao dar disposições sobre a disciplina das primeiras assembléias cristãs, admite que tanto o homem quanto a mulher “oram e profetizam” (1 Cor 11,4ss) desde que com “decência e ordem”. O uso da palavra tem grande importância na “teologia paulina”. Dentre os “carismas” (dons) dados por Deus, os relacionados à palavra são os mais numerosos (1 Cor 12, 8ss; Rm 12,6ss). Ele mesmo afirma que “quando estais reunidos, cada um de vós pode cantar um salmo, proferir um ensinamento ou uma revelação, falar em línguas ou interpretá-las; mas que faça para a edificação” (Cor 14,26). Esse caráter dialógico e homilético das primeiras comunidades cristãs diferencia-se das práticas cúlticas das antigas religiões pagãs. Nessas, prevalece o aspecto “cênico” e “mistagógico” não havendo realmente necessidade de uma prédica religiosa. Além disso, “(...) a educação religiosa era, além de tradicional, doméstica, não havendo, portanto, o costume e muito menos a obrigação de alguém comunicar sua religião a pessoas de regiões geográficas distantes. Os gregos são os criadores da retórica, mas de fundo exclusivamente político, forense, epidídico e filosófico” (SILVA, 2005, p. 17). Mas, também, a palavra é lugar de vigilância e subversão. Nem toda palavra poderia ser pronunciada ou aceita pela comunidade cristã. O medo das “heresias” faz Paulo recomendar a seus discípulos, Tito e Timóteo, que evitem “as falsas doutrinas e o falar vazio” (2Tm 4,1-5; Tt 2,1). Era preciso criar a censura para preservar a “ortodoxia” (idéia verdadeira). Desse modo “A tarefa da ‘leitura, exortação, ensinamento’ compete ao chefe da comunidade em virtude do dom recebido, mas a sua designação deve ter ocorrido por indicação dos profetas (1Tm 4,13s)” (SARTORE E TRIACA, 1992, p. 558). 58 Concluindo, podemos dizer que o cristianismo primitivo conserva o modelo cúltico sinagogal, sendo o seu paradigma de homilia realizada por Jesus na Sinagoga de Nazaré, onde “Depois de ter lido o trecho de Isaias, ele começou a dizer: “Hoje se cumpriu aos vossos ouvidos essa passagem da Escritura” (Lc 4,16-20). A palavra proclamada na assembléia cultual interpreta o que foi escrito, que se torna evento atual e se abre para o futuro. Mas o cristianismo não quis ser apenas uma religião dos judeus. Desde o século XIX que os historiadores e teólogos têm chamado a atenção para a importância da cultura grega nas origens do cristianismo. Se não fosse esse elemento clássico, o cristianismo teria permanecido como mais uma seita apocalíptica judáica (a exemplo dos essênios). Foi graças ao helenismo que o cristianismo rompeu as fronteiras judáicas e tornou-se uma religião universal. Sem esse ambiente cosmopolita pós-clássico da cultura grega, a ascensão do cristianismo como religião universal, com seus dogmas, liturgias e teologia (vejam quantas palavras gregas!), não teria sido possível. A palavra helenismo é um substantivo originado do verbo helenizo, “falar em grego”. O termo foi usado primeiramente pelos professores de retórica, helenismo seria principalmente o uso culto da língua grega. Somente mais tarde significaria a adoção dos costumes gregos (JARGER). Com exceção dos ditos primitivos de Jesus (logia) e do livro das revelações (apocalipse) toda a literatura cristã é de origem grega: evangelhos, epístolas e atos têm suas origens no mundo pagão. É claro que o uso de uma língua nunca é simplesmente uma questão técnica. Com o uso da língua grega todo um mundo de conceitos e categorias de pensamentos são incorporados à fé cristã (basta lermos o prólogo do Quarto Evangelho para percebermos isso). Todavia “é claro que este processo de cristianização do mundo de língua grega dentro do império romano não foi de forma alguma unilateral, pois significou ao mesmo tempo a helenização da religião cristã” (JAEGER, sd, p.16). O helenismo já era parte constitutiva do próprio texto bíblico. Todo o novo testamento foi escrito em grego e suas citações da Torá e dos profetas eram feitas da Septuaginta, a lendária tradução grega dos LXX. Mas é com Paulo que o cristianismo deixa o campo específico do judaísmo palestino em busca das comunidades da diáspora, nas sinagogas dos judeus helenizados (Atos). Foi dessa “facção helenizada”, mais universal e aberta, que surgiram os primeiros pregadores missionários, dos quais 59 Estevão é o primeiro mártir (Atos 6). Será precisamente numa cidade grega, Antioquia, que a nova seita receberá o nome de Cristianoi (cristãos). O grego koiné era falado nas synagogai e em todo o mediterrâneo e pelas elites intelectuais de todo o império. Por isso que “toda a actividade missionária de Paulo se baseou nesse facto. As suas discussões com os judeus a quem se dirigia nas suas cidades e a quem tentava levar o evangelho de Cristo eram conduzidas em grego e com todas as sutilezas da argumentação lógica” (JAERGER, Sd, p. 19-20). Isso está registrado de forma dramática por Lucas, no capítulo 17 (vs. 16-32) do Livro dos Atos dos Apóstolos no “discurso de Paulo em Atenas”. Aqui temos o primeiro encontro da paidéia grega com o kerigma cristão. E será precisamente um sermão que marcará esse momento decisivo no encontro entre Gregos e Cristãos. No Areópago, Paulo pregará para um público compostos das principais escolas filosóficas (estóicos e epicuristas), utilizando-se com habilidade da cultura e retórica clássica. Convém analisarmos melhor esse sermão. O texto mostra que o encontro é provocado pela própria situação missionária: em Atenas Paulo dirigi-se igualmente a judeus e gregos, aos primeiros na sinagoga e aos segundos na praça pública (v. 16-17). Na praça ele se defronta com a diversidade cultural, representada na figura dos filósofos epicuristas e estóicos (v. 18a). Indagado sobre sua missão (v. 18b-21), Paulo utiliza ferramentas do discurso retórico clássico. Ele utiliza elementos da ação na postura do corpo “De pé no meio do Areópago, Paulo tomou a palavra (...)” (v22a), da invenção em que procura conquistar o público: “Atenienses, eu vos considero, sob todos os aspectos, homens quase religiosos demais” (v.22). Sua disposição dos argumentos “Ao Deus desconhecido” é bem fundamentada e progressiva. Para persuadir o auditório faz uso (pela memória?) de versos do poeta “filósofo grego Cleanto (Fenômenos de Áratos, verso 5, séc. III a.C Pois nós somos sua e estepe” (v. 29). Não bastava a fé para a propagação do cristianismo. Era necessário um “ponto de contato” com o mundo pagão. A retórica e a filosofia darão essa “base comum”, não é claro, sem conflitos, como veremos posteriormente. Na verdade Paulo recorria à literatura grega em seus textos com certa freqüência (cf. Tito 1,12 ou 1 Coríntios 15,33 etc). Mas nada se compara ao prólogo do Quarto Evangelho (São João 1, 1-8). Nele a tradição joanina apresenta Jesus como a Palavra de Deus (logos tou theou) em claro diálogo com o pensamento neo-platônico, gnóstico e estóico (DODD, 2003). Com relação apenas a esse último, é conhecida a importância do conceito de logos no seu sistema: “Em torno do logos organizava-se, pois, o sistema 60 estóico segundo as três dimensões do conhecimento da verdade (Lógica), do conhecimento da physis (Física) e do conhecimento do fim (Ética)” (VAZ, 1991, p. 43). Esse evangelho, diferente dos três sinóticos, servirá de base para as reflexões pedagógicas dos padres gregos no século IV d.C. Essa originalidade do prólogo joanino também será percebida por Goethe séculos depois: Há uma cena na primeira parte do Fausto de Goethe, na qual o herói, suspirando pela luz da revelação (que em nenhum outro lugar brilha com mais fulgor que no Novo Testamento), Põe-se a traduzir o Evangelho segundo João. Mas logo na primeira frase ele encontra uma dificuldade. Como traduzi-la? “No princípio era o verbo”. Mas como pode ser atribuído à simples palavra um tão grande valor? Sem dúvida: “No princípio era o pensamento”. Mas ainda assim, foi realmente pelo pensamento que todas as coisas foram feitas? Não foi antes pelo Poder? Ou deveria ele audaciosamente exprimir o sentido da passagem: “No princípio era a ação?” (DODD, 2003, p. 18). Lembramos assim de Demóstenes para quem a retórica é antes de tudo ação, acontecimento. Esse caráter “pragmático-pastoral” caracterizará os discursos cristãos dos três primeiros séculos5, em que o uso da palavra tinha uma importância fundamental na estrutura eclesiástica (DIDAQUÉ 15,1-2). Durante os séculos II e III d.C, uma maior distinção entre o clero e o laicato se disseminou rapidamente. Como conseqüência das perseguições e heresias, uma estrutura hierárquica começou a consolidar-se em torno da figura do bispo (episcopê). Em virtude destas mudanças, o antigo modelo homilético – carismático teve problemas para ajustar-se a essa nova estrutura eclesiástica. O desaparecimento dos carismas foi acompanhado de um grande crescimento de conversões, inclusive de membros da elite. Muitos oradores e filósofos pagãos se tornaram cristãos. Como resultado, o debate sobre a relação com a retórica e a paidéia clássica ganharam força no interior da Igreja. Muitos desses convertidos viriam a se tornar os primeiros teólogos da igreja Cristã. São conhecidos como “Pais da igreja”, e o período de sua atuação (séculos I ao V) de “Patristica”. Um deles foi João Crisóstomo (347-407 d.C.). Natural de Antioquia, filho de uma família cristã abastada e influente. Estudou filosofia, retórica e direito. Por seus sermões de cunho fortemente social, recebeu o qualificativo que passou a fazer parte inseparável do seu nome: crisóstomo, isto é, boca de ouro. Junto com Teodoro de 5 A homilia, mas antiga que temos é a II Carta de Clemente aos Coríntios, do final do século I. De caráter “parenético” (moral), procura solucionar a existência de conflitos internos usando alguns topos da tradição clássica. 61 Mopsuéstia (+429) fundou a Escola de Antioquia, em oposição à Escola de Alexandria dirigida por Clemente e Orígenes. Os antioquinos davam maior importância ao sentido literal do texto. Para Crisóstomo o orador cristão precisava, a exemplo do modelo ciceroniano, unir virtudes morais e competências políticas. Seus sermões, mais de 600, foram tão eloqüentes que eram muitas vezes interrompidos pelos aplausos da congregação, fato que também se repetirá com Agostinho no Ocidente. Um contemporâneo seu “profetizará” que “Constantinopla nunca escutará sermões tão poderosos, brilhantes e sinceros como os pregados por Crisóstomo”. A prédica de Crisóstomo era tão estimulante que, eventualmente, as pessoas tinham que se espremer na frente para melhor escutá-lo. Foi eleito bispo de Constantinopla em 397 d.C . Outro importante movimento foi representado pelas apologias. Os apologistas foram os autores cristãos do século II que se esforçaram por defender (apologein) a nova religião das hostilidades dos pagãos e, em menor intensidade, dos judeus (LACOSTE: 2004). Escrevendo geralmente em segunda pessoa buscavam convencer os imperadores, o senado ou a elite romana, do caráter benéfico e aceitável do cristianismo. O mais importante é que esses autores, geralmente leigos convertidos do helenismo, possuíam uma sólida formação intelectual: geralmente eram professores de retórica e filosofia. Entre os apologistas, as figuras de Tertuliano e Justino (100-165 d.C.) são importantes por representarem posições distintas no interior da Igreja sobre a relação da fé cristã com a cultura clássica. A posição de Tertuliano pode ser compreendida, precisamente, por uma pergunta retórica: “Que tem Roma a ver com Jerusalém?” O seu Apologeticum, que pretendia ser uma defesa da religião cristã é muito mais um ataque à tradição clássica. Polemista agressivo irrita-se contra todos (contra o império porque persegue os mártires, contra os mártires porque fogem ao martírio, contra os que morrem por não terem uma fé ortodoxa e contra a ortodoxia por violentar as consciências, perdoar os hereges etc). Semelhante aos puritanos ingleses do século XVII discursará contra os males do teatro e da poesia grega ou romana. Para ele a fé cristã é objetiva e imutável, enquanto a especulação filosófica é subjetiva e inserta: “Pelo exposto, não admira que Tertuliano adotasse uma atitude radicalmente hostil para com a filosofia”. Para ele “os filósofos são não apenas partidários dos hereges: são os próprios patriarcas dos heréticos. Nenhum filósofo antigo, nem mesmo Sócrates, consegue fugir a esse veredicto 62 impiedoso”. (GILSON, 1995, p. 1333). Dessa forma, não existe lugar no cristianismo para a filosofia ou cultura grega, pois são “perigosas à fé”. Evidentemente que a retórica não terá destino melhor para Tertuliano “ó infortunado Aristóteles, tu lhes ensinastes a dialética, esta arte de construir e destruir, tão ardilosa em suas sentenças, tão afetada em suas supostas conclusões, tão teimosa em seus argumentos, tão atarefada com logomaquias, a ponto de enfadada consigo própria, tudo revogar, para terminar sem haver tratado de nada!”. Para Tertuliano não havia nenhuma possibilidade de diálogo entre a tradição clássica e a nova religião: Que tem a ver Atenas com Jerusalém?Ou a Academia com a Igreja? Ou os hereges com os cristãos? A nossa doutrina vem do pórtico de Salomão, que nos ensina a buscar o Senhor na simplicidade do coração. Que inventem, pois, se o quiserem, um cristianismo de tipo estóico, platônico ou dialético! Quanto a nós, não temos necessidade de indagações depois da vinda de Cristo Jesus, nem de pesquisas depois do evangelho. Nós possuímos a fé e nada mais desejamos crer. Pois começamos por crer que para além da fé nada existe que devamos crer. (De paescriptione Haereticorum, c7). Posição oposta teve Justino. Ele foi o primeiro filósofo a se converter ao cristianismo. Morreu martirizado no século II, vítima da perseguição imperial. De formação platônica desiludiu-se com as escolas filosóficas existentes e encontrou no cristianismo “a verdadeira filosofia”. Particularmente importante é a sua doutrina do Logos, fundamental para a síntese Alexandrina. Como lembra Gilson (1995, p. 29): “Justino admite, sem hesitar, que os antigos filósofos que conheceram e praticaram a verdade, tais como Platão e os estóicos, tiveram parte no Logos; contudo, eles não O possuíram integralmente. O Logos total (όπας λόγος) aparece em Cristo, ao passo que aqueles filósofos possuíram-no apenas germinalmente ou em parte (έμφυτα σπέρματα [μέρη] του λγου)” (GILSON, 1995, p. 29). Nisso consiste a sua teoria da “semente do Verbo” (σπέρμα του λογου) espalhada no mundo inteiro que deu origem a todo humanismo cristão e a categoria de mediação com a tradição clássica. Se Jesus é o Logos, como afirma o prólogo do Evangelho de João, os filósofos gregos têm participação nele, visto que buscavam a verdade e o bem com determinação. Eis os traços de uma filosofia da história cristã e de uma nova paidéia. Percebe-se o antagonismo dessa teologia progressista ao tradicionalismo de Tertuliano. Estamos diante de um “conflito de interpretações” que permanecerá como uma constante na história do cristianismo. Com Justino o cristianismo solicita pela primeira vez a sua 63 “cidadania universal” e, em especial, reivindica ser o legítimo herdeiro de toda tradição clássica. Mas era necessário algo mais para que o cristianismo hegemonizasse o paganismo. Como percebe Jaeger: “Os apologistas do século II eram homens de notáveis conhecimentos intelectuais, mas o Cristianismo precisava agora do serviço dos intelectos e personalidades mais desenvolvidas que se podiam encontrar no ambiente cultural de Alexandria, capital do mundo helenístico” (sd, p. 56). Nesta cidade, fundada pelo próprio Alexandre Magno no ano 90 a.C, havia se encontrado o Ocidente e o Oriente, tradição e modernidade: A cidade de Alexandria cabe a honra de haver produzido o primeiro instituto cristão de ensino. Ponto de convergência da cultura helenística nos inícios do século II, Alexandria era, sem dúvida, o lugar mais indicado para a formação de uma escola deste tipo. Contava este empório industrial e comercial com cerca de quinhentos mil habitantes. Suas instituições de ensino superior eram um modelo de organização; cultivavam-se ali com raro brilho a filologia e as ciências da natureza. O Museion e o Serapion podiam gloriar-se de possuir duas das mais amplas bibliotecas da Antigüidade. Ao lado destes grandes centros havia as escolas judaicas, que ensinavam a memória de Fílon, bem como as escolas gnósticas, onde ensinavam Basilides e Carpócrates. Era natural que os cristãos não quisessem ficar atrás (GILSON, 1995, p. 33). Não poderia haver lugar mais propício para essa “fusão de horizontes” cultural que a cidade de Alexandria. Não foi por coincidência que no interior de uma escola essa síntese aconteceria fruto da ação de dois intelectuais – professores: Clemente de Alexandria (153-220 d.C), dirigente da Escola dos Catequistas da cidade e seu discípulo e sucessor Orígenes (185-250 d.C). Diferente dos Padres latinos, os orientais cedo perceberam o valor da tradição grego-romana. Tito Flávio Clemente ou simplesmente Clemente de Alexandria é considerado por muitos como o primeiro erudito cristão. Filho de pais pagãos, sucedeu a Pantenus, filósofo estóico convertido, como diretor da escola. Sua obra é composta de três livros Protrepticus (Exortação aos pagãos), Stromata (Miscelânea) e o Paedagogus (O Instrutor). É na obra Paedagogus que Clemente começa a consolidar a hegemonização da cultura pagã. No texto, Cristo é apresentado em conformidade com as Leis de Platão (X.897b: ho theos paidagogei ton kosmon. “Deus é pedagogo do mundo inteiro”) como o “educador de toda a humanidade” (pedagogos tou theou). Já não se trata de apenas 64 garantir um espaço do cristianismo dentro da paidéia grega, mas de afirmar que essa foi propaideia (propedêutica) para o surgimento do próprio cristianismo, “á filosofia antiga coube a tarefa pedagógica de encaminhar os gentios para Cristo (παιδαγωγος εις Χριστόν), como a antiga Lei servira para conduzir a Ele os judeus” (GILSON, 1995, p. 35). Mas se a verdadeira paidéia era agora a teologia de Clemente o sonho de Isócrates de uma educação universal (encyclyos paidéia) tornava-se possível, “ao tomar essa cultura internacional por base, o Cristianismo tornava-se agora a nova paidéia que tinha por fonte o próprio Logos divino, o Verbo que criara o mundo. Gregos e bárbaros eram igualmente seus instrumentos” (JAEGER, sd, p. 87). Caberá a seu discípulo, Orígenes o desenvolvimento desse projeto por meio do seu conceito de paideusis (educação divina) desenvolvida em seus sermões e comentários bíblicos. Com ele, a Escola de Alexandria atingiu o seu ponto máximo. Orígenes (185-250 d.c) foi um professor excepcional e querido que produziu uma obra de mais de 600 volumes; a maioria de conteúdo exegético e teológico- filosófico. Suas obras mais importantes são o De principiis (Περι αρχων) e o Contra Celsum (Κατα Κελσου). Na controvérsia contra Celso, emerge a crítica fundamental dos filósofos pagãos à doutrina cristã: seu caráter mitológico. Orígenes se lançou à tarefa de “traduzir” a bíblia para a linguagem filosófica, elevando-a do seu sentido literal para o espiritual. Ao fazer isso ele iniciou a leitura retórica das Escrituras. Nas mais de duzentas homilias conservadas até nós, procura seguir a tradição alegórica de Fílon (25 - 40. d.C); captar o sentido espiritual do texto e retirar dele as orientações práticas. Com isso, Orígenes preservou na paidéia cristã a sua fundamentação bíblica, tal como os estóicos haviam feito com a teologia de Homero (JAERGER, SD). Assim, retórica e hermenêutica se unem em um estilo que terá grande influência por toda a Idade Média. Propõe a existência de três sentidos ou interpretações da Escritura. São eles: o sentido material ou literal, o psíquico ou moral e o pneumático ou místico. Esses três sentidos relacionam-se com a própria estrutura do ser humano: corpo (σωμα), alma (ψυχή) e espírito (πνευμα). Que por sua vez relacionam-se com as diferentes dimensões da verdade: histórica, moral e mística. Essa antropologia originista reflete a estrutura triática da realidade superior de Plotino: Uno-Inteligencia-Alma (VAZ:199). 65 Orígenes deu à religião cristã uma teologia própria ao estilo da mais alta tradição grega. Mas isso não era o bastante. Era preciso ir além, tornar o cristianismo o padrão cultural de todo o império. Essa tarefa foi desempenhada, no Oriente pelos Pais Capadócios e no Ocidente, por Agostinho. A expressão “Pais Capadócios” faz referência aos três importantes intelectuais dessa Região, Basílio de Cesaréia (329-379 d.C), Gregório de Nazianzo (330-390 d.C) e Gregório de Nissa (331-394 d.C), que viveram no século IV da era comum. Com eles chega ao fim o conflito entre retórica clássica e pregação cristã. A tradução de suas homilias, juntamente com as obras de Orígenes possibilitaram a emergência de uma paidéia christiana. Gregório e seus amigos estavam conscientes do que era preciso fazer. A respeito disso Jaeger (sd, p. 101) nos lembra que “Enquanto os tremendos conhecimentos de Orígenes ficaram enterrados nos seus volumosos comentários, os capadócios comunicaram os seus a todo o mundo cristão, em especial através da arte da retórica das suas homilias”. A principal tarefa, portanto, era assimilar a retórica, a exemplo do que a Escola de Alexandria havia feito com a filosofia. “A retórica e a filosofia tinham competido desde o século IV a.C, pelo primeiro lugar no campo da cultura e da educação. Era imperativo para o Cristianismo pôr ambas ao seu serviço. Foi o que efetivamente aconteceu no final do século IV d.C.: a retórica e a filosofia cristãs dominaram a cena”. (JAEGER, sd, p. 103). As homilias de Gregório são um exemplo dessa assimilação cristã da retórica grega. Suas homilias “estão cheias de alusões clássicas; domina perfeitamente Homero, Hesíodo, os poetas trágicos, Pindaro, Aristófanes e os oradores áticos, os modernistas alexandrinos, mas também Plutarco e Luciano e os escritores do Segundo movimento Sofista, que são os modelos directos do seu estilo” (JAEGER, sd, p. 102). Sua obra tornou-se objeto de estudo e treino retóricos em todo o império bizantino. Neste processo de construção da base dessa nova sociedade um conceito ganha importância na obra de Gregório de Nissa: Morphosis. Para Jaeger essa palavra que significa “formação”, “crescimento”, é a categoria ponte entre a paidéia antiga grego- romana e a nova pedagogia cristã. É a raiz da tradição humanista. Jaeger afirma que Gregório de Nisa foi capaz de perceber os principais aspectos da antiga paidéia grega, em sua busca por um modelo de formação humana, oferecendo a paidéia cristã como resposta à altura das maiores exigências da filosofia clássica. 66 Se o paradigma da antiga formação foram os textos de Homero, a nova educação, igualmente literária, se organizaria em torno da Bíblia, pois “Assim como a paidéia grega consistia na totalidade do corpo da literatura grega, a paidéia cristã é a bíblia. A literatura é Paidéia, mas na medida em que contém as normas mais elevadas da vida humana, que nela tomam sua forma mais duradoura e marcante” (JAEGER, sd, p. 117). A partir daqui, o padre capadócio desenvolve uma teoria dos graus dos caminhos místicos da theognosis (conhecimento divino) que encontra nos Salmos e nas Epístolas de São Paulo o seu maior representante. Um exemplo da visão pedagógica e normativa que tinha as Escrituras para Gregório é a substituição que ele faz dos termos “dizer” (laleo) e “ensinar” (paideuei). Em vez de escrever “o profeta diz” ele prefere afirmar que “Cristo ensinou” ou “o apóstolo nos ensina”. De fato, a Bíblia, todo unitário inspirado pelo Espírito Santo, interpretada em diversos níveis, ocupa na educação cristã, o mesmo lugar que a retórica na educação grega. Literatura paidêutica de primeira ordem, oferece o paradigma pelo qual o crente deve moldar-se. A formação do cristão, a sua morfosis, está diretamente associada ao estudo e interpretação da Bíblia. Como lembra Jaeger: “A forma é Cristo, a paidéia do cristão é imitatio Christi: Cristo nele tomar forma” (SD, p. 118). Nesse sentido, a formação do homem, a morphosis, se constitui numa metamorphosis, numa radical mudança interior do ser humano caído cada vez mais conforme ao modelo divino. Dentro das linhas teóricas da nova fé, a idéia de morphosis completa-se com o conceito de graça. De fato, o esforço humano para a salvação é ineficaz sem a synenergeia, a cooperação divina. Por seus próprios recursos o homem, que em São Gregório de Nissa, ainda numa inspiração platônica, por natureza tende para o bem e, comete o mal, falo-a apenas por ignorância. Esse processo de formação não é espontâneo ou natural, mas fruto da ação e do cuidado dos professores e mestres. Era necessário o desenvolvimento de uma nova aretê (virtude) difundida pelo cristianismo. Neste processo de salvação, a crença numa vida futura, onde o castigo é catarse (purificação) da alma, faz-se indispensável, ainda que o próprio São Gregório não acreditasse numa punição divina eterna. Por trás da idéia de salvação individual coloca-se a de um plano mais amplo de apocatástasis, tomada a Orígenes, que leva a uma restauração final da obra divina originária: “É pela mesma razão que Cristo é para Gregório, o médico, o que cura. Pois 67 todo o mal é para ele privação do bem”(JAEGER, sd, p. 115). Com a teologia pedagógica de Gregório o cristianismo poderá consolidar sua “revolução cultural”: O advento do cristianismo operou uma profunda revolução cultural no mundo antigo, talvez a mais profunda que o mundo ocidental tenha conhecido em sua história. Uma revolução da mentalidade, antes mesmo que da cultura e das instituições sociais e, depois, políticas também. Trata-se da afirmação de um novo tipo de homem (...) Novos valores- que são geralmente o inverso dos clássicos: a humildade diante do poder, a paz diante da força etc- se difundem e se colocam no centro de um novo modelo antropológico, cultural e social: são, propriamente, os valores negativos do mundo antigo que são colocados no centro: a fraqueza, a tolerância, a compaixão (...). (CAMBI, 2004, p. 121-122). Mas se no Oriente as bases intelectuais dessa revolução encontram-se nos capadócios, no Ocidente elas derivam das obras de Agostinho de Hipona (354-430 d.C). Aurélio Augustus nasceu em Tagaste, em 13 de novembro de 354, filho de uma mãe cristã (Mônica) e de um pai pagão. Estudou filosofia e retórica em Tagaste, Mardura e Cartago. Foi professor famoso de retórica em Milão até 387, quando após ouvir um sermão do bispo Ambrósio, converte-se e é batizado, sendo depois instituído pregador e sagrado bispo de Hipona, na África. Portador de uma profunda cultura humanista e de uma sensibilidade desenvolvida, Agostinho foi um dos maiores pensadores do Ocidente. Sua obra é vasta, compreendendo temas de filosofia, teologia, literatura, retórica e ciências. Nesse trabalho nos concentraremos na sua produção retórica, particularmente seu tratado e alguns de seus sermões. Agostinho é responsável pelo primeiro tratado exegético - homilético do Ocidente: De doctrina Christiana, composto por quatro volumes. Esta obra recebeu também o nome de A arte da pregação e influenciou toda a Idade Média. No De Proferendo, um dos quatro livros que constituem a sua Doctrina Christiana encontramos o conceito agostiniano de “ótimo pregador”, “aquele de quem a congregação ouve a Verdade, compreendendo o que ouve”. Portanto, para Agostinho a vitória do pregador consistia em levar o ouvinte à ação. Inicialmente, Agostinho altera a divisão ciceroniana: docere (ensinar), delectare (agradar) e movere (persuadir). Assim o docere, torna-se ofício do doutor que conhece a verdade, o delectere que defende a verdade e o movere (flectere para ele), o que é capaz de levar as pessoas à conversão. 68 No primeiro livro ele estuda a res, isto é, a verdade que deve ser descoberta; no segundo estuda os signa, os sinais a serem interpretados e por fim, no terceiro capítulo, as regras de interpretação necessárias ao sermão correto. Agostinho desenvolve um complexo pensamento que coloca em pauta a importância da linguagem no mundo. Para Agostinho, todo conhecimento é originado ou de signos (signa) ou de coisas (res). Os signos podem ser próprios ou figurativos. No primeiro caso sua relação com as coisas é literal (por exemplo: aquela rosa tem espinhos) e no segundo quando fazem reverência indicam uma coisa significando outra (por exemplo: aquela pessoa é uma rosa). Para ele o “signo natural” seria o único verdadeiro. Argumenta pela analogia da fumaça em relação ao fogo, afirma que o signo era um ícone vazio, que remeteria a uma Verdade anterior a ele. Deus, para amparar o homem nessa falta, teria elaborado uma segunda Escritura, com o fim de esclarecê-lo face aos signos divinos. Nesse processo elucidativo surge uma terceira Escritura, que seria justamente a reunião de comentários e glosas acerca desse conjunto de signos. Como conseqüência dessa doutrina, Agostinho pensa o mundo como um livro a ser decifrado e reflete sobre a validade da utilização dos recursos retóricos para fins de conversão. Mas como eram os sermões de Agostinho? Apesar de toda sua eloqüência e cultura filosófica ele preferia falar sapienter (com sabedoria) que eloquenter (com eloqüência). Para ele “o pregador é ouvinte da Palavra não menos do que os outros ouvintes”. E o objetivo da retórica cristã é “fazer escutar com inteligência, com prazer e com docilidade”. Uma de suas característica era o conteúdo bíblico dos seus sermões. As pessoas pobres, as massas iletradas, eram o componente enormemente majoritário da sociedade antiga. Assim, a mensagem cristã se faz inculta entre a gente pobre, entre as massas iletradas, falando com a linguagem e a cultura delas. O próprio Agostinho mostra, no momento da sua pregação, o desejo de fazer-se entender pelos humildes destinatários de suas palavras: “Que importa a nós as pretensões dos gramáticos? É melhor que vós nos compreendais quando proferimos os barbarismos, do que sejais por nós abandonados quando falamos com eloqüência”; ou: “Ser redargüidos pelos mestres da gramática é preferível a não ser compreendidos pelo povo”. Além do mais, a Bíblia já possuía inúmeros recursos retóricos. Rica em metáforas, exemplos e alegorias. Agostinho sabia que a Escritura precisava ser decifrada e, para isso, seria essencial entender o jogo entre a “linguagem divina” e a “linguagem dos homens”. Essa é a base da leitura retórica das Escrituras por Agostinho. 69 Hermenêutica e homilia construíam o imaginário, o mundo cristão. A ampliação desse mundo - que se caracteriza por uma descida de Deus até a coletividade dos homens, através de sua realização na história - já que o mundo constituiria sua primeira Escritura - traz consigo uma perspectiva amplamente discursiva: A palavra ganha absoluto destaque em um contexto onde a realidade empírica é interpretada como a realização da própria retórica divina. Na época de Agostinho, o sermão era um dos grandes acontecimentos da cultura e da sociedade: “logo cedo, normalmente aos sábados e domingos, o bispo vinha ao encontro da elite intelectual de seus fiéis. O povo, como era de costume na antigüidade, pregador, ou mesmo do calor” (LAURAND, 1995, p.8). Enquanto manifestação oficial do pensamento da Igreja, o sermão também era uma demonstração do poder hierárquico. Em sua época apenas os bispos podiam pregar. Agostinho, que recebeu autorização para pregar ainda sacerdote, sempre criticou esses costumes. Com ele, o sermão latino alcançou as alturas da estilística e da popularidade. O estilo do sermão latino era mais prosáico que o estilo grego. Agostinho enfocava o “homem comum”, no seu cotidiano, fazendo alusões às suas atividades diárias e profissionais com os textos bíblicos: “calcado nessa contínua referência escriturística, Agostinho punha a forma a serviço dos fins pedagógicos – catequéticos e, portanto, da memória que alimentava a inteligência e a conduta moral e a vida interior dos fiéis durante aquela semana, no trabalho, na vida familiar etc”. (LAURAND: 1995). Como já afirmamos, a preocupação principal dos seus sermões era pastoral e não retórica. Como cristão Agostinho estava consciente do papel pedagógico que a Igreja desempenhava desde o fim da Antigüidade e, continuaria por toda a Idade Média, de ser a grande educadora do povo (mater et magister), tanto nos aspectos intelectuais, quanto políticos e morais. Mas Agostinho também era um homem formado na tradição grego- romana. O que significava reconhecer a importância pedagógica da memória e da beleza. Como afirma Laurand (1995, p.9): Ao contrário da pedagogia atual, que não valoriza e até chega a desprezar a memória, Agostinho e todos os grandes medievais sabiam reconhecê-la como o tesouro por excelência, como um precioso dom de Deus. A memória, muito mais do que a mera faculdade natural de “lembrar-se” ou o exercício de habilidades mnemônicas, era vista como a base de todo o relacionamento humano com a realidade. 70 É preciso entender essa importância medieval da memória relacionando-a às questões materiais e espirituais do período. O analfabetismo e a dificuldade de escrever ou ler algo “impresso” era a norma daqueles tempos. Por outro, lado a importância dessa estava associada à tradição platônica com sua teoria das “reminiscências” exposta nos Mêmnon e no Fedro. Segundo Nascimento (2004, p. X), na mitologia grega, o rio lhqh (Lethe) é aquele que atravessa o reino dos mortos. Quem bebia de suas águas, perdia as lembranças de si mesmo, portanto, a memória. Não é por acaso que alhqeia (a- letheia), “a-lethe”, palavra grega para “verdade”, originalmente possuía o sentido de “não-esquecimento”, ligando-se diretamente à capacidade, de “re - viver” o passado, de “re – memorar” os sentidos (...) Em seus primeiros Diálogos (Mêmnon e Fedro) desenvolveu a chamada “Teoria da reminiscência” (anamnese, anamnsiV, em grego), segundo a qual, todo conhecimento seria apenas lembrança ou recordação de experiências anteriores. E assim seria, visto que não é possível ao homem indagar o que sabe ou o que não sabe, pois seria inútil indagar o que se sabe e impossível indagar quando não se sabe o que indagar. Para Platão saber é relembrar e lembrar é ser. Para Agostinho, filósofo neo - platônico, “a memória é a primeira realidade do espírito, a partir da qual se originam o pensar e o querer; assim constitui uma imagem de Deus Pai, de quem procedem o Verbo e o Espírito Santo”(PIPER apud LAURAND, 1998, p. 9-10). Dessa forma o sermão se dirigia mais a lembrar verdades já sabidas do que transmitir novas idéias. A memória era, portanto, o principal instrumento de aprendizagem. Não deve nos causar espanto o fato de que tanto Agostinho quanto Vieira decorassem seus sermões inteiros e que muitos os sabiam de cor, “que professor ou que pregador hoje em dia atrever-se-iam a sugerir que alguém decorasse um discurso de uma hora de duração? Para os antigos, porém, este pedido fazia sentido” (LAURAND, 1995, p. 10). O sermão era um dos poucos eventos democráticos daquela época: Só levando em conta este vínculo entre religião e vida é possível compreender o impacto educacional que a homilética de então provocava. O último camponês analfabeto e o trabalhador mais rústico podiam estar destituídos de tudo. Tinham, porém, uma riqueza inalienável: a de encontrar na Igreja (e na igreja) a abertura da alma para a grandiosidade, tanto arquitetônica e plástica como a da inteligência e da palavra (LAURAND, 1998, p.8). 71 A homilia seguia as leituras litúrgicas da missa. Não havia cadeiras para a audiência. Os fiéis ouviam em pé, muitas vezes apoiados em um cajado. Apenas o bispo permanecia sentado em sua sé (cadeira) e de lá fazia sua homilia que “podiam durar dez minutos ou duas horas, dependendo da conveniência pastoral, do número e da formação dos assistentes, da ocasião litúrgica, da complexidade do tema, da disposição do espaço” (LAURAND, 1995, p.8). Em sua tarefa retórica - educadora, Agostinho, no seu primeiro livro sobre o belo (Do belo e do conveniente), reconhecia que a beleza era fundamental, não apenas pelo valor que possuía por si mesma, mas principalmente por sua importância como recurso didático. A eloqüência, a beleza das palavras, os jogos de linguagem, o ritmo e a cadência do discurso mantiam o auditório atento e facilitava o uso da memória. Além da poesia Agostinho utilizava-se de “fórmulas – resumo” das teses de seus sermões, capazes de se tornarem um gancho de memória entre a pregação que se ouviu hoje e a realidade que se enfrentará amanhã (LAURAND, 1995). Um dos sermões mais importantes de Agostinho é De urbis excidio (Sobre a devastação de Roma) pregado no ano de 410 ainda sobre o forte impacto da noticia da devastação da capital do império. Diante desse evento, que para muitos marca o início da Idade Média, e naquele tempo confundia-se com a própria derrota do cristianismo, Agostinho utilizou toda sua perspicácia retórica e hermenêutica para tentar compreender e explicar o que estava acontecendo: “Neste célebre discurso, resumem-se as grandes idéias que serão expostas ao longo dos 22 livros da cidade de Deus” (LAURAND, 1995, p. 15). Essa capacidade de sintetizar a beleza da forma com a capacidade de se fazer compreender pelo povo mais simples é uma das grandes qualidades do bispo de Hipona. Isso explica o fascínio que seus sermões despertava naquele momento e ainda nos comove hoje. Desse modo, Agostinho traduziu para o orador cristão as características do vir eloquens apresentadas no Orador de Cícero. Assim como Cícero ele acreditava na tese da interdependência entre eloqüência e a sabedoria. Também, Agostinho defende a erudição dos pregadores, porém essa já não é apenas mundana mas bíblica. Além disso, Agostinho exige dos oradores cristãos a manutenção das três funções clássicas da oratória latina: docere, delectare e movere. Para Agostinho, Paulo é o modelo cristão de eloqüência. Ao fazer isso ele não apenas justificou a existência de uma oratória cristã, como também a transformou num instrumento indispensável para a educação do mundo antigo. Convertido pela Palavra, coube a ele a possibilidade de “cristianizar” a retórica. 72 2.7.2. A Retórica medieval cristã Após o ápice alcançado com a sermonística de Crisóstomo no Oriente e com Agostinho no Ocidente, a pregação cristã entrou num processo de declínio pelo menos seis séculos até o surgimento do movimento humanista. No final do século V, a proibição formal de que monges ou leigos, independente de sua cultura ou ciência, pudessem pregar nas missas apenas dificultou as coisas, visto que inexistia instituições de formação do clero diocesano (os seminários só foram criados no século XVII, no Concilio de Trento) e a situação do clero regular era precária6. Nos séculos seguintes a maioria dos sacerdotes pregava com base em coletâneas homiléticas de Padres como Agostinho e Gregório, dispostas segundo o ano litúrgico. A situação, a exemplo do que ainda hoje acontece quando não se prioriza a educação, apenas piorou com os anos: “Cesário de Arles, no século VI, compõe as suas homilias e as reúne “para suprir a incapacidade dos padres e dos bispos do seu tempo... põe à disposição deles uma catequese elementar, porém sólida, com os principais aspectos da vida cristã...O mais longo destes sermões (admonitiones) pode ser pronunciado em vinte minutos; para a maior parte bastam dez ou quinze minutos (SARTORE, 1992, p. 560). O surgimento da Escolástica, no início do século XII, trouxe duas grandes novidades para a retórica: a doutrina do quádruplo sentido da Escritura e o aparecimento das pregações temáticas. Desde a alta escolástica que os textos da Sagrada Escritura passaram a ser interpretados em relação direta com as questões da teologia especulativa e sistemática, secundarizando as discussões sobre seu sentido exegético - pastoral. Isso fez com que a interpretação simbólica e alegórica (tipológica) dominasse toda a pergunta pelo sentido do texto. Essa é a origem da doutrina do quádruplo sentido da Escrituras: Segundo essa doutrina, que tem sua influência em Orígenes e que se consolida com Gregório e Cassiano, o mesmo texto pode ser interpretado sob quatro perspectivas superpostas: o sensus literalis, o sentido histórico ou somático que será obtido pelos estudos gramaticais; o sensus allegoricus, a herança estóica do sentido alegórico que, geralmente, engloba os dogmas da Igreja; o sensus tropologicus, um sentido moral, destinado a orientar a ética do fiel; e o sensus anagogicus, um sentido místico que revela as verdades de ordem escatológica (TESCHE, 2000, p. 111). 6 A situação era análoga no mundo monástico, onde se conservara a tradição primitiva da lectio divina muitas vezes sobre a forma de collatio (...), a palavra é tirada dos plures pelos abades cultos, os únicos com boa oratória, e a collatio passa a ser a “conferencia” e a lectio divina se reduz a “leitura espiritual”. (SARTORE, 1992, p. 560). 73 Essa teoria da divisão em quatro planos semânticos no interior de único texto, a bíblia vista como textus plenus, o texto total da sociedade medieval, foi sintetizada no dístico escolástico de Agostinho de Dácia: Littera gesta docet, quid credas allegoria, moralis quid agas, tendas anagogia. O sentido literal (littera) ensina o que aconteceu; o alegórico (allegoria) o que se deve crer; o moral (moralis) como devemos agir e o anagógico (anagogia) o que devemos esperar. Assim, Jerusalém, na bíblia, pode ter quatro significados: historicamente é a cidade dos judeus; alegoricamente, a igreja de Cristo; moralmente, a alma humana e anagogicamente, a cidade celeste. É importante ressaltar que mesmo com todas as dificuldades de formação já vistas, o monarquismo desempenhou um papel fundamental na preservação da cultura clássica e mais do que isso, ele ampliou o número de leitores, antes circunscrito a pequenos grupos. Em torno da interpretação da bíblia surge um universo de comentários, dicionários e antologias. A função de leitor passou a ser requisitada, chegando mesmo a substituir a do orador. Porém, o despreparo intelectual do clero e o predomínio da interpretação alegórica acabou afastando ainda mais a relação entre o sermão e os problemas das comunidades, tendo o próprio texto sido, gradativamente, afastado da vida dos padres seculares: “nesta época utilizava-se a postilla, uma brevíssima paráfrase do texto bíblico, e que apenas alguns privilegiados tinham direito a assistí-la. Estes privilegiados eram chamados akpoumenoi na Igreja grega e audientes na latina”. Entre as explicações para esse declínio da oratória cristã podemos citar a consolidação da separação da teologia do cotidiano das comunidades (escolástica), a pouca preparação do clero (que já não tinha o mesmo contato com a tradição clássica), o desenvolvimento das formas litúrgicas (que substituíram o espaço da pregação pelas manifestações cênicas – sacramentais), a elevação das funções sacerdotais e acadêmicas (teológicas) sobre as de pregador e pastor e o predomínio das controvérsias doutrinais cada vez mais abstratas (a “questão dos universais”, por exemplo) sobre as questões políticas e sociais. Como conseqüência do academicismo teológico, a escolástica desenvolveu também uma nova homilética: a pregação temática, “A Escritura oferece o tema em uma frase textual, que depois será desenvolvida com ordem, segundo divisões, subdivisões, definições e explicações que fazem da prática da pregação uma construção complexa e engenhosa” por outro lado, “perdeu-se a referência aos textos bíblicos na sua 74 complexidade (...), mas também a ligação com a realidade dos ouvintes”. (SARTORE, 199, p. 561). Um exemplo disso podemos encontrar nos relatos de um dos sermões de Bernardo de Claraval (1090-1153) Sobre o conhecimento e a ignorância, do século XII. Bernardo era um místico de grande capacidade especulativa. Chegou a escrever cerca de 86 sermões apenas sobre os primeiros três capítulos do “Cântico dos Cânticos de Salomão” (3,1). A posição de Bernardo aproxima-se de Tertuliano em sua desconfiança com a filosofia e a retórica e em seu apego a uma teologia mais bíblica e mística. Isso explica o incidente relatado por ele durante a pregação dos sermões 37 e 38, sobre o versículo 7 do primeiro capitulo: Finalmente, chega o momento de ouvir o mestre falar das ignorâncias. Mas, quando o sermão (que Bernardo tinha planejado para que fosse um pouco mais longo do que o costumeiro) atinge duração habitual, um curioso incidente impede o prosseguimento da exposição: alguns ouvintes manifestam cansaço. Inicialmente, de modo sutil, concordando de modo explicito com o óbvio, ante a pergunta, meramente retórica, do pregador - “E achas que podes alcançar a salvação sem temor de Deus e sem humildade?” -, o auditório realmente responde, murmurando: “Não, não!”, como que, delicadamente, dizendo: “Já basta!”(p. 259). Percebe-se o quanto se está distante de Crisóstomo, Agostinho e Paulo. A conversa tornou-se um monólogo e a homilia uma aula, “Vejo alguns bocejando e outros dormitando. E não é de se admirar, pois a longuíssima vigília de oração que tivemos hoje os desculpa”. (b, p. 259). A reforma do papa Gregório VII, possibilitou uma recuperação da retórica sacra nos séculos XII e XIII. Como parte do esforço da Igreja Romana de combater “os hereges”, que sempre faziam amplo uso das pregações públicas. Surgiram as cruzadas, nascidas das mobilizações de massas em torno dos sermões da época. Nestas mobilizações as homilias eram sempre feitas nas línguas e dialetos locais. A disciplina Retórica entrou fortemente nos meios eclesiástico e a Igreja passou a fazer largo uso da pregação eloqüente e ornamentada, sempre procurando diferenciar-se do discurso pagão pelo recurso a autoridade do texto bíblico. No Renascimento, a forte tendência humanista fez com que a retórica abandona- se a clausura do universo escolástico para o embate com o homem comum ocorre, então, uma imensa ‘reciclagem’ dos preceitos retóricos, a sua utilização nas praças, o retorno aos clássicos, tornou obrigatória a comunicação entre tantas tendências. Lia-se 75 Quintiliano à luz de Aristóteles, pensava-se Platão através de Agostinho, e assim por diante. Papel fundamental na preservação do valor da prédica cristã foi o surgimento das ordens missionárias e mendigantes, como os dominicanos e franciscanos no século XIII. Já nos séculos XIV e XV, após um novo declínio da pregação clerical, surgiram numerosos movimentos populares que retomaram o direito da pregação leiga, em sintonia com a leitura da Bíblia, em língua vulgar, pelo povo, origem dos primeiros movimentos reformistas (Wicliffe e os lolardos, por exemplo). Uma nova ênfase na pregação viria com o século XVI. 2.8. A retórica católica no século XVI Como já foi visto, existe uma relação intrínseca entre retórica e fé cristã. Cristo exortou seus fiéis à pregação; o discurso seria o veículo da verdade; a palavra deveria ser semeada pelo mundo (Mc 16,15). Como conseqüência, o cristianismo se disseminou no mundo “através do verbo”. Porém, até Agostinho a Igreja ainda não tinha um conhecimento sistematizado sobre a oratória. Ironicamente isso ocorreu por influência das idéias do seu maior pregador: São Paulo. Segundo ele a mensagem divina seria tão poderosa que sua simples proclamação seria suficiente, não necessitando, de nenhum estudo ou teorização para isso (1 Cor 2, 1-5). Como conseqüência durante muito tempo a Igreja preocupou-se apenas com “o que pregar” negligenciando “o como se prega”. Na época de Vieira a situação era diferente. A teologia dos sacramentos iniciada por Agostinho e desenvolvida pela escola tomista possibilitava uma revalorização da prática retórica. Essa teologia se mostra em categorias como “mistério”, “união mística” e “sacramento”, temas indispensáveis à correta compreensão da retórica vienense. Assim, na oratória sacra de Vieira está presente a idéia de uma ampliação do mundo cristão - que se caracteriza por uma descida de Deus até a coletividade dos homens, através de sua realização na história, já que o mundo constituiria sua primeira Escritura – trazendo consigo uma perspectiva amplamente discursiva e simbólica. O verbo mantinha absoluto destaque em um contexto onde a realidade empírica era interpretada como a realização da própria retórica divina. Eis a chave para se entender a relação entre fé, texto e política nesse período: 76 A oratória sacra de Antonio Vieira, SJ (1608-97), evidencia um importante deslocamento na maneira de tratar a questão teológica da união mística. Refere menos a ação de um raptus, em que o homem é arrebatado até junto de Deus por obra de sua Graça, do que aponta para a ação humana capaz de instaurar no mundo uma vontade análoga à divina. Apenas no interior dessa apropriação de um tema contemplativo por disposição militante, pode- se entender que a tópica dos sacramentos - e, exemplarmente, a do mistério eucarístico – assinale o nó argumentativo da melhor retórica do período. Agora, o movimento da ascese individual para Deus inverte a sua direção e multiplica as pessoas constituídas nele; torna-se, enfim, um movimento de descida de Deus até o chão impuro em que vive a coletividade dos homens. (PÉCOLA, 2003, p. 11-12). Nesse contexto a arte oratória desempenha então uma espécie de “missão social”, visto ser a principal forma de comunicação coletiva da época. A oratória reinava absoluta nas vias públicas, escolas, igrejas e parlamentos. Ao se tornar pública, na busca pela educação e conversão das almas, a oratória sacra retomou um importante traço ciceroniano e a figura do orador passou a gozar de grande prestígio social, antes só atribuído aos teólogos e aos monges contemplativos. Na verdade, essa nova posição do pregador e da prédica é uma reação da Igreja Católica Romana às teses da Reforma Protestante. Foi o Concílio de Trento (1545- 1563), que concedeu ao pregador o status de “porta-voz divino”, o “imitador de Cristo”. Como lembra Fumaroli: “A rhetorica sacra, filha do Verbo divino e herdeira de sua eficácia, pôde se prevalecer, não apenas de uma memória greco-latina, mas de uma majestosa tradição oratória cristã, de que a Igreja católica se prevalece com orgulho face a uma Reforma que quer se ater apenas à Escritura sagrada” (FUMAROLIM, 1995, 205). Nesse sentido, a difusão das escolas da Companhia de Jesus, por toda Europa e também pelas colônias, como a brasileira, foi determinante para o desenvolvimento da eloqüência. Vieira se forma professor de Retórica nessas escolas e, com certeza, os jesuítas foram aqueles que mais intensamente abraçaram essa comunhão entre teologia e verbo. 77 CONFIRMAÇÃO: segunda parte O MYTHO é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus É um mytho brilhante e mudo- O corpo morto de Deus, Vivo e desnudo. (Fernando Pessoa, O Ulysses) 78 3. CONFIRMAÇÃO: Arautos do Rei, argonautas da cruz Que historiador houve de tão limpo no coração e tão inteiro amador da verdade, que não inclinasse o respeito, a lisonja, a vingança, o ódio, o amor, ou da sua, ou da alheia nação, ou do seu ou do estranho príncipe? Todas as penas nasceram em carne e sangue, e todos na tinta de escrever misturam as cores do seu afeto. Padre Antonio Vieira. Livro antepenúltimo da história do futuro. Muito se tem escrito sobre a Companhia de Jesus, sobretudo, em relação a sua atuação no processo de educação e colonização dos povos nativos. Inegáveis o papel da ordem inaciana na história do Ocidente, e sua influência cultural, tão marcante, não apenas no Brasil, mas em várias partes do mundo. Porém, se existe um determinado consenso sobre sua importância, não há qualquer concordância quanto ao significado de sua presença na história. A “questão jesuítica” tem despertado acirrados debates entre os historiadores. Parece haver uma clara divisão entre os que se especializam no louvor aos méritos civilizatório e humanísticos dos “Soldados de Cristo” e seus críticos com seu acervo de crimes cometidos contra esses mesmos povos e ao obscurantismo dos seus métodos pedagógicos. Para além do inevitável “conflito de interpretações” sobre esse tema há um outro aspecto que deve ser lembrado: a questão do anacronismo da maioria dessas análises. Nesse sentido, a advertência de Matos (2001: p. 15) é fundamental: “não nos cabe julgar os nossos antepassados e suas ações. Aplicar mecanicamente critérios de hoje na interpretação histórica pode ser uma operação perigosa e suspeita. É desvirtuamento exigir de nossos maiores padrões e normas que naquele contexto histórico simplesmente não poderiam existir”. Ao interpretarem a ação jesuíta com base em categorias e conceitos, pretencialmente universais, como “liberdade”, “igualdade”, “direito”, “elite”, “educação”, “ciência”, “indivíduo” etc, a maioria dos estudos sobre a educação nesse período acaba julgando o passado com base num determinado modelo iluminista, visto como definitivo, negando o próprio fluxo do tempo. Hansen (2002) lembra que, “ao fazê-lo, produzem anacronismos, como a afirmação de que, passada a fase ‘heróica’ da catequese, no século XVI, o ensino jesuítico teria ficado mais e mais elitista e livresco, divorciando-se da realidade como origem de uma tradição bacharelesca (...)”, por trás 79 dessas interpretações encontram-se dois grandes pressupostos, de ordem política e epistemológica: (...) a explicação segundo a qual, no início da modernidade, a Península Ibérica teria escolhido soluções reacionárias para as questões postas pelos Descobrimentos, pela Reforma e pela colonização da América, em oposição às soluções progressistas da Inglaterra. O esquema é evolucionista, etapista e etnocêntrico, pois pressupõe uma história única, uma única temporalidade e um único sentido da experiência, universaliza a concepção positivista de ‘ciência’; generaliza as noções de ‘igualdade’ e ‘liberdade’ para práticas que não as conheciam; não consideram a eficácia prática da reatualização católica de Aristóteles e de santo Tomás de Aquino, tão adequados quanto o experimentalismo de Bacon e as doutrinas políticas de Locke para teorizar e manter a hierarquia e regular processos econômicos e políticos da dominação colonial, como o escravismo, a censura intelectual e o monopólio comercial (...). (HANSEN, 2002. p. 15). Para o mesmo autor esse é um grave erro das leituras “modernas” e “pós- modernas” desse período, pois estas incorrem em anacronismos e generalizações, principalmente por não desconhecerem (ou menosprezarem), a “autoconsciência” jesuítica nesse período. É preciso evitar a tendência, presente em muitos trabalhos, de ocupar a posição de juiz das gerações passadas. Tal postura, embora agrade a alguns, esquece que cada geração encontra-se ligada ao seu próprio momento histórico; cada uma tendo que responder “de onde vem e para onde vai” e compartilhar ou não as responsabilidades advindas dessas respostas sejam elas negativas ou não. Cada geração tem o seu próprio universo semântico, visto que “só é passado para uma cultura algo que ela pode entender - e só posso compreender sempre a partir de uma situação consciente, historicamente condicionada” (HUIZINGA apud CHACON, 2001, p. 29). Essa foi a grande descoberta da “história das mentalidades “cada época forja mentalmente seu universo. Não o elabora apenas com todos os materiais de que dispõe, com todos os fatos (verdadeiros ou falsos) que herdou ou que foi adquirido. Elabora-o com seus próprios dotes, com seu engenho específico, suas qualidades e inclinações, com tudo o que a distingue das épocas anteriores”. (LEBVRE apud CHACON: 2001 p. 29). Essas são questões que devem estar presentes para todos os estudiosos da história, mas, em especial, para aqueles que adotam a perspectiva de interpretação das 80 culturas como textos ou, as culturas por meio deles. Em ambos os casos emergem a importância do “contexto”. Se a cultura é um texto, cujo significado encontra-se na polissemia produzida pelo encontro de diferentes campos semânticos é preciso reconhecer a existência de um tríplice contexto: o histórico, em que foram produzidos os acontecimentos; o narrativo, em que se articularam as informações e a escrita e o cultural, na qual os textos são lidos e interpretados. Vejamos então como se deu o surgimento e a consolidação da ordem inaciana nesse período. 3.1. As origens da Companhia de Jesus O século XVI foi um período conturbado para o cristianismo católico, momento de grandes transformações e conflitos na Cristantande. A Igreja se recuperava do trauma da Reforma, envolta com intensos debates internos que envolviam desde humanistas até religiosos dogmáticos. Sua autoridade estava sendo questionada por reis e mendigos e ela precisava encontrar novos caminhos capazes de garantir sua sobrevivência na Europa, bem como expandir sua influência no “Novo mundo” frente às Igrejas Reformadas. Nessa tumultuada conjuntura a Igreja parecia não se movimentar no campo de batalha ideológica com a sua tradicional desenvoltura. Faltava-lhe o dinamismo que as novas circunstâncias exigiam. Não era suficiente organizar concílios, elaborar tratados, bulas ou inquisições. Era preciso reconquistar o rebanho, sacudir os apáticos e hesitantes, refutar os adversários e “converter os pecadores”. Para isso as ordens poderiam ser de grande ajuda, se elas não estivessem também precisando de uma “reforma” e não fossem demasiadamente apegadas ao interior dos seus mosteiros “desejava-se uma autêntica milícia, um laborioso exército de homens de religião, que vivessem só para ela, no permanente alerta da prevenção combativa. O exército surgiu na hora própria.chamou-se Companhia de Jesus e o seu comandante supremo foi Inácio de Loyola” (CARVALHO, 2001, p. 283). É nesse contexto que, no dia 15 de agosto de 1534, no intrior da Igreja de Santa Maria, na cidade de Montmartre, nasceu a “Companhia de Jesus”. Seu surgimento, como já mencionado, está diretamente ligado à vida e ação de um ex-soldado espanhol: Inácio de Loyola (1491-1556). Nascido na Espanha, proveniente de uma familia de nobres bascos, Inácio teve, incialmente, sua vida dirigida para a carreira militar e cortesã, chegando inclusive a ser 81 vice-rei da cidade de Navarro. Mas isso tudo mudou em 1521. Após ser gravemente ferido pelos franceses em ambas as pernas, no cerco a cidade de Pamplona, ele é tomado por uma profunda crise religiosa e inicia um longo processo de conversão e convalescença como eremita em Manresa e Montserrat próximo a Barcelona. O resultado desse reexame radical de sua vida são os Exercícios Espirituais e a decisão de criar uma nova ordem religiosa: a Companhia de Jesus. Para isso decide se capacitar e aprende os rudimentos de latim com 33 anos. Aos 39 anos vai a Paris, onde freqüenta alguns cursos universitários. Em Paris estuda filosofia, e somente com 43 anos de idade recebe o grau de mestre em artes. Foi ainda, em Paris que Inácio encontrou seis estudantes recém-convertidos (Pedro Fabro, Francisco Xavier, Alfonso Salmeron, Diego Laynez, e Nicolau Bobedilla, todos espanhóis e um português, Simão Rodrigues (1510-1579) que com ele fundaram a nova ordem. A Companhia de Jesus nasce estruturada nos moldes de uma verdadeira “milícia” a serviço da Igreja Romana. Suas principais características eram a forte disciplina militar, a preparação intelectual e a espiritualidade missionária. Seu objetivo era desenvolver o trabalho de acompanhamento hospitalar e missionário em Jerusalém, ou para ir aonde o papa os enviasse, sem questionar. Em outubro de 1538, a congregação de cardeais deu parecer positivo à constituição da nova ordem, e em 27 de Setembro de 1540, Paulo III confirmou sua criação através da Bula Regimini militantis Ecclesiae. Inicialmente o número de membros estava limitado a 60, o que foi posteriormente modificado através da bula Injunctum nobis de 14 de Março de 1543. Após receber a autorização papal, Inácio, que havia sido escolhido como o primeiro Superior Geral da Ordem, escreveu as “Constituições Jesuítas” (1554), que serviu de base para a organização da Companhia no mundo inteiro. Os membros da Ordem, os “soldados de Cristo”, seguiam uma disciplina rígida, com ênfase na absoluta auto-abnegação e na obediência ao Papa e os superiores hierárquicos, as expressões “perinde ac cadaver” (“disciplinado como um cadáver”) e “Ad Majorem Dei Gloriam” (“Tudo por uma maior glória de Deus”), tornaram-se o lema dos jesuítas. A nova ordem nasceu também profundamente ligada à educação e oratória. Os jesuítas tornaram-se os principais propagadores do espírito tridentino. O Concílio de Trento (1546-1563) marcou uma inflexão na doutrina católica. Convocado para dar resposta à ruptura da unidade da cristandande provocada pelas idéias dos reformadores, 82 o concílio, embora tendo desagradado aos setores mais progressistas da época (rinovatio), serviu como ponto de partida para importantes reformas na estrutura da Igreja. O Concílio não apenas confirmou os pontos essenciais da fé católica em oposição às teses dos reformadores (essencialidade da Igreja, caráter dos sacramentos e da Graça etc), como também definiu novas tarefas eclesiásticas no plano disciplinar (publicação do Index libro proibitorum, revitalização da Inquisição, controle das escolas religiosas, defesa da “auctoritas magistri” nos colégios etc) e pastoral, com ênfase na preparação do clero (criação dos seminários, estímulo aos estudos biblícos e teológicos). No entanto, como destaca Cambi (2000, p. 259) “O elemento mais importante da pedagogia da Contra –Reforma, porém, aquele que terá sucessivos desenvolvimentos na história educativa da Europa, é fornecido pela sua capacidade de dar a novas instituições escolares ligadas ao modelo do colégio/internato e a currículos formativos que se referem, em parte, à tradição pedagógica do humanismo”. Ora, nenhuma ordem religiosa desempenhou tão bem esse papel como os jesuítas. Nesse sentido é visivel as relações vocação religiosa e projeto pedagógico, como podemos perceber numa citação de França (1952: p.118), do Ratio Studiorum (1599), “como um dos ministérios mais importantes da nossa Companhia é ensinar ao próximo todas as disciplinas convenientes ao nosso Instituto, de modo a levá-lo ao conhecimento do amor do Criador e Redentor nosso, tenha o Provincial como dever seu zelar com todo o empenho para que os nossos esforços tão multiformes no campo escolar correspondam plenamente o fruto que exige a graça da nossa vocação religiosa”. O pensamento inicial de Inácio de Loyola e seus companheiros, ao planejarem a criação da companhia, era fundar uma ordem religiosa cujos membros tivessem por missão difundir “o verbo” a todos os povos (Ásia, Américas, Europa e África). Como missionários, desde o início eles demonstraram grande consideração pela educação. Assim, tão logo foi possível, Inácio enviou os seus companheiros e missionários para vários países europeus, com o fim de criar escolas, liceus e seminários. Percebe-se ainda, o caráter de disputa hegemônica da atuação educativa da Companhia7. Segundo Cambi (2000: p. 261), “nesse sentido, compreende-se a instituição por parte da 7 Sobre a relação entre hegemonia e educação, afirma Gramsci (1978, p. 37): “Toda relação de ‘hegemonia’ é necessariamente uma relação pedagógica, que se verifica não apenas no interior de uma nação, entre diversas forças que a compõem, mas em todo o campo internacional, e mundial, entre conjuntos de civilizações nacionais e continentais”. 83 Companhia de inúmeros colégios para religiosos, depois abertos também aos leigos, em grande parte na Europa e do mundo, que se tornaram, assim, o instrumento mais eficaz para elaboração de uma nova forma de cultura mais próxima dos princípios da Igreja católica”. Esse objetivo foi posto em prática com a fundação dos seus primeiros colégios, Goa (Índia), fundado por Francisco Xavier em 1543, e Messina (1548) e Palermo (1549) ambos na Silícia, pelo próprio Inácio de Loyola. Pouco tempo depois (1550), foi fundado o colégio de Roma, bem mais famoso e de importância simbólica indiscutível para a Companhia. Em pouco tempo surgem colégios em toda a Europa, particularmente na Itália. Em 1586 já somam 162, sendo 147 abertos no exterior. A base desse currículo era a triáde: “gramática, humanidades e doutrina cristã”. O papel desses colégios, entre eles os da Bahia (1568), Rio de Janeiro e Olinda (1576), foi fundamental para que a Igreja Católica, e a própria Companhia, conseguissem a hegemonia política e cultural na Europa Central, nos reinos que haviam resistido à Reforma (França, Espanha, Portugal e nos estados italianos) e no “Novo mundo”. Na verdade desde que chegaram ao Brasil que os jesuítas começaram a ensinar a ler, contar, escrever e cantar, como lemos Nóbrega na sua primeira carta “O irmão Vicente Rijo ensina a doutrina aos meninos cada dia e também escola de ler e escrever” (Apud PAIVA, 2003, p. 3). A autora faz uma importante interrogação “O que representava a alfetização para os jesuítas a ponto de quererem, desde o início, alfabetizar os índios, quando nem mesmo em Portugal o povo era alfabetizado? Mais do que o resultado dessa intenção, interessante é observar a mentalidade. As letras deviam significar adesão plena à cultura portuguesa” (Idem, p. 3). A atuação educacional dos inacianos atendia simultaneamente aos interesses da coroa e da Igreja. Nos primeiros tempos os colégios serviram de suporte para a ação catequética, base de toda pedagogia jesuíta. Segundo Leite (p. 31), “a instrução foi um meio” de se conseguir a conversão do índio e a “civilização” da colônia. Por meio da instrução elementar, ler, escrever e contar, era transmitido os princípios da fé cristã, elementos básicos da cultura européia, objetivos principais da vinda dos jesuítas às colônias. Desse modo: 84 Com o tempo, os colégios começaram a buscar outros objetivos, além daqueles originais. Era necessário formar quadros capazes de levar adiante a obra evangelizadora.Muitos jesuítas chegaram da Europa sem ter concluído seus estudos, era preciso completá-los. A escola de ler e escrever transformava-se num colégio cujo currículo visava à formação humanística e teológica. Desde a promulgação da Ratio Studiorum, os colégios foram orientados por seus princípios pedagógicos. (FRAZEN, 2003, p. 52). O humanismo da Ratio, no entanto, possuía algumas particularidades. A principal delas é que ele será interpretado num contexto de Contra-reforma e descobrimentos. No primeiro caso temos o modelo da educação como theatrum sacrum, ou “teatro sacro”. Para Hansen (2003, p. 25), “já no século XVI, os jesuítas passaram a definir a representação em geral como theatrum sacrum, teatro do sacro ou encenação da sacralidade da teologia política que reativa a eloqüência dos antigos autores pagãos e dos padres e doutores da Igreja patrística e escolástica como modelo oral para os pregadores contra-reformados”. Dessa forma, a retórica passará a ocupar lugar de destaque na formação jesuítica. Isso acontece porque, como bem destaca Carvalho (20001: p. 283) “precisava-se de gente nova, combativa, piedosa sem dúvida, mas que fizesse da palavra divina uma arma aguerrida, que estivesse presente em toda a parte, que em todo momento fizesse ouvir a sua palavra de ordem e de certeza, insinuante e inabalável, que determinasse seu apelo, que dirigisse sem enfraquecimento, que vigiasse o inimigo a todo instante como se o assalto às almas estivesse sempre eminente”. Se os séculos XVI e XVII na Península Ibérica podem ser definidos como “civilizações da palavra” isso só é compreendido nos quadros da Contra-Reforma. Hansen nos lembra que: A retórica efetivamente nunca havia deixado de estar presente, embora até o início do século XVI sua presença no ensino fosse por assim dizer muito mais modesta, como é o caso do seu emprego na arte medieval de escrever cartas, a ars dictaminis. Na situação pós- tridentina, no entanto, tornou-se uma das principais disciplinas do ensino jesuítico, sendo generalizada em Portugal como modelo para todas as práticas de representação, pelo menos até o final do século XVIII e, no caso do Brasil, até mais tarde, como pode se evidenciar um rápido exame do currículo seguido pelo Colégio Pedro II na segunda metade do século XX. (HANSEN, 2003, p. 26). Além da retórica, que será abordada posteriormente, uma das principais ferramentas dos Jesuítas para conseguir “conquistar as almas” foi a utilização da “devoção moderna” (“devotio moderna”) entre a população, e em especial, entre os 85 membros da elite. A espiritualidade jesuíta se funda nos retiros espirituais de Inácio, sistematizadas por esse nos seus “Exercícios espirituais” (Ejercicios espirituales) de 1548. Se quanto à forma o texto não contém nenhuma novidade (é possível perceber a presença da mística da devoção à humanidade de Cristo franciscana, a influência agostiniana das “três potências da alma”: memória, inteligência e vontade, da ascese dos padres do deserto etc), no seu conjunto, o manual marca o surgimento de uma nova espiritualidade no Ocidente. Como sabemos, um elemento que une as espiritualidades desse período, católicas e reformadas, é serem uma resposta aos fracassos da teologia e da devoção medievais tardias (SHELDRAKE, 2005). Os séculos XVI-XVII são reconhecidos como um momento de transição no imaginário europeu, de profundas transformações na sua percepção sobre o mundo, Deus, a vida e a morte (ARIÉS, 1977; FOUCAULT, 2000). São “as origens do sujeito moderno”, com suas culpas, medos e angústias. Em muitos sentidos, a vida e as lutas internas de Martinho Lutero (1483-1546) são paradigmas do dilema desse novo homem, particularmente quanto ao tema da certeza do perdão dos pecados e da salvação individual: “Deus exigia a perfeição, mas o problema era como alguém poderia saber se a havia alcançado ou falhado. O resultado de Lutero foi um sentimento de inutilidade e quase desespero, do qual foi libertado pela percepção da justificativa pela fé unicamente” (SHELDRAKE, 2005, p. 161). Esse mesmo sentimento de “desespero”, que quase levou Inácio de Loyola ao suicídio (SHELDRAKE, 2005) e a sua libertação é à base dos Exercícios. O livro dos Exercícios Espirituais estrutura-se como um manual para ser usado num retiro de um mês. O corpo principal da obra é uma série de meditações bíblicas ou contemplações ordenadas, de forte caráter sistemático e prático. O propósito geral dos exercícios é ajudar no crescimento da “liberdade interior” para que o praticante pudesse responder inteiramente a vocação pessoal a Cristo. O retiro está dividido em quatro “semanas”. Cada uma com um foco específico a ser vivenciada pelo recluso. A primeira “semana” focaliza o pecado e o reconhecimento das fraquezas humanas; na segunda “semana” é feita a contemplação da vida e do ministério de Jesus humano, onde o recluso é, gradualmente, confrontado com a escolha, por ou contra Cristo; na terceira “semana” é vivenciado o caminho da Paixão de Cristo na terra e na quarta e última “semana” a esperança da Ressurreição. O ápice desse processo de “retiro interior” é a contemplação final sobre como encontrar Deus 86 presente em todas as coisas. Isso implica num redirecionamento da espiritualidade do recluso, do retiro para a vida cotidiana, do céu a terra, numa vivência espiritual marcada pelo profundo engajamento no cotidiano. (SHELDRAKE, 2005) Os Exercícios são assim, o resultado de um processo de “autoconhecimento” do sujeito, e da superação dos excessos medievais tardios. Como conseqüência emerge dessa viagem do eu duas importantes categorias: a da liberdade e a da consciência militante. Assim: O fim dos exercícios é dispor-se, por uma experiência de união com Deus suficientemente estruturada para levar a uma decisão plenamente livre que comprometa um destino. Esclarecem assim a consciência ante um problema fundamental da modernidade, “o da atualidade histórica e da livre decisão pela qual nela se constitui a realidade humana, tanto social quanto individual. (LACOSTE, 2004, p. 883). Nasce assim uma “espiritualidade da decisão” e uma “mística do serviço” que, segundo as palavras do próprio Inácio: “precisa buscar e encontrar Deus em todas as coisas”. Essa verdadeira “contemplação na ação”, não aprofundada por Weber8, é fundamental para a compreensão da ação dos jesuítas e para sermonístiva de Vieira. Um aspecto importante dos exercícios é a linguagem bélica e hierárquica. Como não poderia deixar de ser o entendimento de Deus e de seu relacionamento com a criação é culturalmente condicionado: o Deus de Inácio é um “Deus que fala sempre do alto”: Não é surpreendente que Inácio de Loyola use metáforas masculinas para Deus, tais como Rei e Senhor. A famosa meditação de Inácio sobre ‘As Duas Medidas’ (Exx 136-148) é uma das partes vitais da ‘eleição’ na Segunda Semana. Ela retrata dois líderes espirituais, Cristo e Satanás, a ponto de se enfrentarem em batalha e convocando seus seguidores. Isso tem conexão óbvia com a mentalidade das cruzadas que ainda permeava a Espanha depois de sete séculos de combate com os ocupantes árabes. Ela aponta um mundo dominado por uma divisão fundamental entre o bem e o mal. O Reino de Deus é antecipado por combate, coragem, luta e obediência, bem como renúncia à segurança, tranquilidade e domesticidade. Se Deus é imaginado essencialmente na figura de 8No capítulo 3, da Ética protestante e o espírito do capitalismo (São Paulo: Pioneira, 1992, p.54), ao analisar as concepções de vocação religiosa e modernidade ele afirma: “Em tal ponto, não há dúvida de que essa qualificação moral da atividade terrena foi uma das elaborações cheias de conseqüências do Protestantismo, e especialmente do próprio Lutero, a tal ponto disso já constitui um lugar comum. Difere muito essa atitude do ódio profundo manifestado por Pascal, em sua disposição contemplativa, a toda atividade secular, que, segundo sua convicção mais intima, apenas podia ser entendida e, termos de vaidade ou malicia. Difere ainda mais do utilitário compromisso liberal dos jesuítas (...)”. (grifos nossos). 87 Jesus, a cristologia das Duas Medidas retrata Jesus como um lider confiante e inspirador. O retrato inaciano de Jesus, com o convite para estar com ele e trabalhar com ele, é instrutivo naquilo que inclui e exclui. (SHELDRAKE, 2005, P. 173-174). As conseqüências políticas dessa teologia são bastante óbvias. Se a adesão espiritual a Cristo pode ser comparada à fidelidade moral a um rei temporal, não havia qualquer possibilidade de uma crítica consistente à colonização indígena (como o fará Bartolomeu de las Casas, posteriormente). Como lemos no comentário pastoral a “Meditação das duas bandeiras: a de Cristo, supremo chefe e senhor nosso e a de Lúcifer, mortal inimigo de nossa natureza humana”: O primeiro ponto é colocar diante de mim um rei humano, escolhido pela mão de Deus Nosso Senhor, a quem fazem reverência e obedecem todos os príncipes cristãos. O segundo é contemplar como este rei fala a todos os seus dizendo: Minha vontade é conquistar toda a terra aos infiéis; portanto, quem quiser vir comigo [...] tem de trabalhar comigo de dia e de noite, etc., para que depois tenha parte comigo na vitória, como teve nos trabalhos. O terceiro é considerar o que devem responder os bons súditos a um rei tão liberal e tão humano; e, por conseguinte, se alguém não aceitar o pedido de tal rei, mereceria ser muito vituperado por todos, e tido como mau soldado. (GONZALES, 1965, p. 40). Ao enfatizar os aspectos ligados à autoridade e ao controle, Inácio produz uma visão de Jesus Cristo bastante próxima à mentalidade guerreira da época. Esse “recorte hermenêutico” implica na eliminação ou diminuição de outros elementos da mensagem cristã, “não há referência àquelas passagens do Evangelho que falam de cura ou perdão, a parábolas ou referências ao Jesus que sofre a companhia do vulnerável, do marginal e do pecador [Exx 158-161]. O Deus de Inácio chega perto de nós em Jesus, mas nunca é realmente íntimo” (SHELDRAKE, 2005, p. 174). Finalmente os exercícios estendem a espiritualidade cristã a todo estado da vida e tornam a santidade uma meta de todo batizado “por seu enfoque sobre a eleição e sua adaptabilidade, visam a integração da existência na vida segundo o espírito” (LACOSTE: 2004, p. 883). Para Inácio, a união mística com Deus não se dá somente pela ação ou oração, mas na “união das vontades”, termo que implica o total controle da “nova subjetividade” (“o conhecimento interior do Senhor que por mim se fez homem a fim de melhor amá-lo e servi-lo”). Nesse sentido a espiritualidade inaciana: 88 Foi sempre marcada pela tensão entre a oração e a ação. Embora Inácio, homem de grande oração, tivesse manifestado sua preferência pela busca de Deus no serviço do próximo – donde sua insistência no “exame” - , tendências nitidamente contemplativas (Baltasar Alvarez, Cordeses de Paz) vieram à tona desde as primeiras gerações. Numa carta do Geral Aquabiva sobre a oração dirimiu-a em 1590 o debate: a oração deve atender sempre um fim prático e não parar nas alegrias da contemplação, sempre que as necessidades apostólicas tornam presente a ação. (LACOSTE, 2004, p. 88). Isso nos ajuda a entender a complexa relação do poder na teologia jesuíta. Não há na espiritualidade inaciana “nada do desprendimento budista na indiferença, mas antes o princípio de uma ação tanto mais encarnada quanto mais for deprendida das ‘afeições desordenadas’ e ratificada pela ‘reta intenção’. Deus, com efeito, ‘deseja ser glorificado e servido com o que ele dá como autor da graça, que é sobrenatural [carta de 18 e junho de 1548]” (LACOSTE: 200, p. 884). O poder é, nessa perspectiva visto como positivo e perpassa todas as coisas. Não há, nessa teologia ruptura radical (como preconizada pela Reforma) entre criador e criatura, mundo e palavra: Isso subentende que o Criador fala à criatura por meio do que a constitui como criatura (sensibilidade, memória, inteligência, vontade). E leva também à regra inaciana do agir, (formuldada por Hevensi 91705): “Confia em Deus como se o sucesso dependesse inteiramente de ti, e nada de Deus. Contudo, utiliza todos os meios como se nada tivesse a fazer, e Deus tudo”. (LACOSTE, 2000, p. 885). Como conseqüência dessa teologia os jesuítas conquistaram rapidamente o controle da educação em Portugal. Em 1542 criaram a primeira casa em Portugal, o Colégio de Santo Antão o Velho, em Lisboa, seguidos pelos de Coimbra (1542), Évora (1551) e o de Lisboa (1553). Em 1555 consquistaram o Colégio das Artes em Coimbra e em 1559 a Universidade de Évora. Assim, desde a segunda metade do século XVI os jesuítas controlaram o ensino luso, das primeiras letras à universidade. No fim do século, já possuiam mais de 2.000 alunos somente no Colégio das Artes de Coimbra (STEPHANOU, 2005). Em conseqüência, rapidamente a ordem foi aumentando sua influência na cultura e sociedade. A conquista dessa posição de destaque nos períodos iniciais da idade moderna (séculos XVI e XVII) deveu-se ao fato dos seus padres possuírem uma grande disciplina, uma sólida formação intelectual e uma enorme capacidade de 89 adaptação às situações políticas desfavoráveis. Além disso, os padres jesuítas foram por muitas vezes os educadores e confessores dos reis (é o caso de Vieira, por exemplo), com o claro interesse de influenciar favoravelmente nas suas decisões. Em Portugal as relações com as Companhias foram bastante intensas e produtivas. Portugal foi o primeiro país a subescrever as decisões do Concílio de Trento. Como resultado dessa aceitação, em Portugal a Companhia acabou tornando-se uma poderosa arma para o Estado. O rei D. João III, aconselhado por André de Gouveia, solicitou a Loyola o envio de irmãos para a evangelização do Oriente. Em 1540 chegaram a Portugal, o basco Francisco Xavier (depois São Francisco Xavier) e o português Simão Rodrigues. O primeiro partiu para o Oriente em missão evangélica, chegando ao Ceilão e às Molucas em 1548, tocando a China em 1552. As missões iniciais ao Japão obtiveram a concessão aos jesuítas do enclave feudal em Nagasaki em 1580, onde permaneceram até 1587. Os jesuítas penetraram ainda no Congo (1547), no Marrocos (1548) e na Etiópia (1555). O cristianismo na Península Ibérica estruturava-se como uma cristandade, ou seja, na utopia de se construir uma sociedade integralmente cristã, em que a religião penetrava todos os segmentos da vida pessoal e coletiva. Segundo Azzi (2005, p. 15) “a concepção da Igreja como Cristandade constitui a base de toda a construção teológica no reino lusitano, e transplantada em seguida para a colônia brasileira. Ao longo dos três primeiros séculos de colonização lusitana perdurou no Brasil o modelo de Igreja – Cristandade”. Para a teologia da época seria necessária a união dos poderes civil e eclesiástico para realização do Reino de Deus aqui na terra. Diferente de nossas sociedades classistas modernas, nesse momento todas as esferas da sociedade eram vistas como sacralizadas, tendo como ponto de convergência a pessoa do monarca (MATOS: 2001). Na teologia que fundamentava essa visão de mundo estava a idéia da origem divina da monarquia e de Portugal como “povo escolhido”. A defesa medieval da autoridade do monarca português era alimentada ainda pelos cronistas oficiais e pelas inúmeras lendas associadas às origens do Reino no século XII. As figuras de D.Alonso Henriques (1110-1185) e de D. Sebastião (1554-1578) tornaram-se paradigmáticas desse processo. Assim “o monarca cristão tornava-se, portanto o representante visível da divindade sobre a terra, e o encarregado de fazer cumprir a vontade de Deus por parte do povo dele dependente”. (AZZI, 2005: p.16) 90 Essa idéia do reino como Corpo Místico teve em Portugal um significado diferenciado. Ao iniciar a expansão marítima, a Europa encontrava-se cronologicamente no início da modernidade, da consolidação dos Estados nacionais e da independência desses em relação à Igreja. Em Portugal o rei reunia em sua pessoa a dupla função de chefe político e superior religioso. Essa relação está claramente presente nos tratados de retórica sacra da época, inspirados nas teorias de Agostinho e nas decisões do Concílio de Trento: Na América espanhola, o tratado de Frei Diego de Valadés, Rhetorica Crishiana, de 1579, imitou o tratado de Frei de Granada e teve grande circulação. Valadés repete as instruções do Concílio quando afirma que:“...o orador cristão não deve buscar sua própria glória, mas a de Jesus Cristo a quem deve desejar sempre frente aos olhos , e buscar a edificação de seu corpo místico que é a Igreja unanimemente católica. (HANSEN, 2003, p. 27). O modelo de orador, e de sociedade, que emerge dos púlpitos é de uma sociedade hierarquizada, em que o “ideal civilizatório” e o “governo das almas” é realizado por meio da Palavra. O ensino visa edificar esse “corpo místico” de cujo rei é a cabeça. Seguem Agostinho que no seu “De Doctrina christiana”, havia adaptado apregação às três grandes funções retóricas da eloqüência ciceroniana clássica: docere (ensinar), delectare (agradar), movere (persuadir). Desse modo segundo as diretivas do Concílio, o novo tipo de pregador deveria fundir, na invenção oratória e na ação da pregação, os modelos do orador ciceroniano e do doutor agostiniano segundo as fontes autorizadas, a traditio e as Escrituras (HANSEN, 2003). Por outro lado a doutrina do “corpo místico” serviu de base para o fenômeno do Padroado. Assim, se o papa era o “Vigário de Cristo na terra” e a “suprema autoridade religiosa da cristandade”, o rei, por sua relação histórica como “Grão-mestre da Ordem de Cristo” em Portugal, era seu “representante plenipotenciário”. Assim, por um juramento de fidelidade todos os eclesiásticos submetiam-se oficialmente à autoridade sagrada do rei. Tanto no catolicismo português, como na Inglaterra anglicana, o rei era o “papa efetivo” da Igreja nos seus domínios. Dessa forma, o padroado tornou-se o meio mais efetivo para que a Santa Sé expandisse sua influência no mundo, e principalmente nas “novas” terras. Suas origens remontam à aliança efetivada entre o Império Romano e a nascente Igreja Católica. 91 Constantino tornou-se assim o “Bispo do exterior”, cuja missão era proteger a nova religião. Seu ponto auge se deu com Carlos Magno, na Idade Média. Como conseqüências dessa situação emergem dois importantes elementos: a sacralização do monarca como “patrono” ou “protetor” da Igreja e a perda de capacidade crítica da instituição frente ao poder civil. O que importava era a o “objetivo final”: “dilatar a fé e o império”, na remitente expressão da época. Da parte dos jesuítas, essa aliança com a Coroa portuguesa justificava-se plenamente pelo fim maior da ordem ser o combate pela ortodoxia e a conversão dos nativos. Os jesuítas acreditavam estar cumprindo a vontade de Deus ao agirem dessa forma, mas sabiam também que estavam trabalhando pelo Estado português, e muitas vezes utilizaram-se dessa situação para negociar com a própria coroa, não havia, portanto nenhum mal- estar moral intrínseco para eles. Se o estabelecimento da monarquia portuguesa era a coroação da teologia do povo eleito – como ficava evidente no mito da aparição de Cristo a D.Afonso Henriques-cabia ao povo português assumir sua vocação missionária e apostólica. Vieira retifica essa idéia quando afirma “os outros homens, por instituição divina, tem só obrigação de ser católicos; o português tem o dever de ser católico e apostólico. Os demais cristãos são obrigados a crer a fé; o português, além de crer, deve propagá-la”. Se Portugal havia nascido na luta contra os “mouros”, num clima de “guerra santa” e luta contra os “infiéis’, não seria de admirar a convocação do jesuíta a uma nova cruzada contra-reformista “não são só apóstolos os missionários, senão também os soldados e capitães, porque todos vão buscar gentios (pagãos) e trazê-los ao lume da fé e ao grêmio da Igreja” (VIEIRA apud HOORNAERT, 1991, p. 35). Nesse contexto, “a história de Portugal é a História de salvação, é história sagrada. As caravelas portuguesas são de Deus, e nelas vão juntos os missionários e os soldados. [...] Neste contexto, a separação entre Igreja e Estado não tem significado, pois poderia enfraquecer a obra missionária”. (HOORNAERT, 1981, p. 65). Mas em que contexto cultural aconteceu essa expansão? Como o Brasil foi originalmente interpretado pelos missionários jesuítas? 92 3.2. O imaginário religioso europeu e a chegada da Companhia no Brasil Há uma frase do poeta inglês William Blake9 que sintetiza a importância do imaginário10: “O que hoje é evidente, uma vez foi imaginário” (What is now proved was once only imaginin’d). Se isso é verdadeiro para toda história humana é ainda mais forte com a história americana. A chegada dos europeus ao “novo mundo”, contada nos livros muitas vezes como movida apenas pela “cobiça capitalista” e possibilitada pelas “descobertas científicas” foi, na verdade, muito mais fruto da imaginação e da vontade, “em 1483, Macróbio propôs um mapa completamente imaginário, como não poderia ser de outro modo. Nesses tempos a geografia, para além do mundo conhecido, era especulação em imagens” (LAPOUJADE, 2005, p. 228). Com base nesse mapa imaginário, um genovês chamado Cristóvão Colombo (1451-1506), apaixonado pelas profecias do profeta Isaías, morto a mais de 2.000 anos, foi convencido da existência de uma terra nunca vista: “Ilha da terra”. Movido por essa racionalidade enfrentou inúmeros perigos até confirmar seus sonhos em 1492. Sua viagem modificou tudo o que se sabia sobre a natureza, as culturas e o próprio homem. Ele mesmo, afirma, na “Carta escrita aos Reis”, de 1501, que “para a empresa das Índias não me aproveitou razão, nem matemática, nem mapa - mundos; plenamente cumpriu- se o que disse Isaías”. A situação não foi muito diferente com relação ao Brasil. O mesmo imaginário era compartilhado por Vieira, na sua “história do futuro” de 1666 “(...) que falou Isaías da América e do Novo Mundo, se prova fácil e claramente (...). Digo, primeiramente, que o texto de Isaías se entende do Brasil (...)”. Por isso Goethe11 afirma que “Colombo antes de descobrir o novo mundo já o levava em sua imaginação”. Como o Almirante, também os jesuítas e viajantes traziam com eles sua cosmovisão, seus conceitos e imagens. Foi um dos maiores encontros, alguns preferem o termo “choque”, de imaginários da história, em que “a cartografia incipiente se debate entre as representações em imagens dos a priori imaginários e os a posteriori empíricos incômodos e inclassificáveis” (LAPOUJADE, 2005, p. 229). 9 William Blake (1757 -1827) foi pintor e estapador e um dos maiores poetas ingleses.Sua poesia romântica é fortemente influenciada por temas bíblicos, místicos e sociais. 10 Segundo o conceito de Jacques Le Goff, para quem o imaginário constitui-se “pelo conjunto das representações que exorbitam do limite colocado pelas constatações da experiência e pelos encadeamentos dedutivos que estas autorizam”(A História Nova. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. P. 291). 11 Johann Wolfgang von Goethe (1749 —1832) escritor, além de cientista, botânico e filosófo. Como escritor, Goethe foi, juntamente com Schelling (1775-1854), uma das mais importantes figuras da literatura alemã e do Romantismo europeu, nos finais do século XVIII e inícios do século XIX. Entre suas maiores obras está o Fausto. 93 Os relatos de viagem são a melhor expressão desse “processo de invenção da América”, na definição de O’Corman (apud POMPA, 2005, p. 35). A imagem dos indígenas descritos pelos viajantes e missionários desse período é fruto muito mais da tradição medieval européia que da realidade da vida dos nativos. Os cronistas contam bem mais sobre seu próprio sistema cultural que sobre os primeiros habitantes do Brasil. Na verdade, os relatos de viagem, a partir de Colombo, encontram e descrevem apenas o que já conhecem do “Reino do prestes João”, as sereias, amazonas, do Paraíso Perdido ou do Inferno. Nesse “itinerário teológico”, o modelo hermenêutico para a argumentação decisiva, não eram “provas empíricas”, mas o discurso, autorizado pelos santos e eruditos (POMPA: 2005; TODOROV: 2003). A chegada dos europeus significava não apenas a conquista de uma nova terra, mas a descoberta que o eu faz do outro. Segundo Todorov: Em primeiro lugar, a descoberta da América, ou melhor, a dos americanos, é sem duvida o encontro mais surpreendente de nossa história. Na “descoberta” dos outros continentes e dos outros homens não existe, realmente, este sentimento radical de estranheza. Os europeus nunca ignoraram totalmente a existência da África, o da Índia, ou da China. A Lua é mais longe do que a América, é verdade, mas hoje sabemos que ali não há encontro da mesma espécie. (...) No inicio do século XVI, os índios da América estão ali bem presentes, mas deles nada se sabe, ainda que, como é de se esperar, sejam projetadas sobre os seres recentemente descobertos imagens e idéias relacionadas a outras populações distantes. O encontro nunca mais atingirá tal intensificada, se é que esta é a apalavra adequada. O século XVI veria perpertuar-se o maior genocídio da historia da humanidade. (TODOROV, 2003, p. 5-6). É esse terrível encontro que funda a nossa identidade presente: somos todos “filhos de Colombo” (Todorov). A construção dessa alteridade americana foi forjada na dialética entre o real e o imaginário, na aplicação dos modelos interpretativos que os europeus (e nativos) dispunham no século XVI. E não poderia ser diferente. A mente humana não reflete diretamente a realidade. A compreensão do mundo só acontece através da linguagem, com sua estrutura de códigos e convenções, esquemas e estereótipos, que divergem de uma cultura para outra. Assim a imago mundi só adquiriu sustentação e coerência quando associado à teologia cristã. Tratava-se de um pensamento alegórico e não descritivo, em que, “mesmo quando os horizontes oníricos e fantásticos se apagaram, a “observação” da realidade 94 continuou se dando através da mediação dos esquemas culturais familiares ao observador, mediação esta necessária para organizar e até mesmo perceber os “fatos”, pois a comparação analógica era o único instrumento epistemológico de compreensão cultural” (POMPA, 2005, p. 35). Nesse quadro o próprio conceito de “descoberta” precisa ser novamente repensado, para além da dicotomia “dominante – dominado”. A compreensão da construção da alteridade indígena será fundamental, inclusive para própria identidade iluminista séculos depois (TODOROV, 2003). A América surge como o “antimodelo” a partir do qual o Ocidente se identifica, na dialética entre o “diverso” e o “igual”, pela primeira vez numa dimensão planetária (POMPA, 2005 p. 36). É exatamente isso que chama a atenção a Michel de Certeau (1982) ao analisar a obra de Jean de Léry (1534- 1611), em que se confunde história, literatura e teatro “a narrativa é uma viagem em busca do Eu, cujo produto final é a inversão do selvagem”. A relação entre o imaginário, política e subjetividade tem sido analisada por diversos pensadores12. Dentre eles se destaca a do filósofo Cornelius Castoriadis (1922- 1997). Segundo ele, o imaginário é construído pela dinâmica entre o imaginário instituído e instituinte. O primeiro aponta para a ordem e o segundo para o novo e a autonomia. O imaginário é o campo simbólico, vivenciado de forma difusa, informe, fluida e inconsciente. Um espaço aberto, que simultaneamente, indica limites e oferece possibilidades para o pensamento e a política. Para Castoriadis a psique e a realidade não são realidades simplesmente orgânicas ou materiais, mas principalmente simbólicas. E isso é verdade particularmente para as instituições “as instituições não se reduzem ao simbólico, mas elas só podem existir no simbólico, são impossíveis fora de um simbólico em segundo grau e constituem cada qual sua rede simbólica” (CASTORIADIS, 1992, p. 142). Essa rede simbólica é resultado de um fluxo de representações sociais, ligadas a uma multiplicidade de outras representações psíquicas e a materialidades, capazes de auto-atividade construtiva, de criar um mundo, de instituir algo, imaginariamente. Essa capacidade simbólica - imaginativa é o que caracteriza a espécie humana: 12Gilbert DURAND (Mito, símbolo e mitologia; Mito e Sociedade; As estruturas antropológicas do imaginário; O imaginário: ensaio sobre as ciências da filosofia da imagem) e Edgar MORIN (O Método III - o conhecimento do conhecimento; Cultura de massas no século XX ; O Método IV - as idéias: a sua natureza, vida, habitat e organização). 95 Tudo o que se nos apresente, no mundo social-histórico, está indissociavelmente entrelaçado com o simbólico. Não que se esgote nele. Os atos reais, individuais e coletivos – o trabalho, o consumo, a guerra, o amor, a natalidade, os inumeráveis produtos matérias sem os quais nenhuma sociedade poderia viver um só momento, não são (nem sempre, não diretamente) símbolos. Mas uns e outros são impossíveis fora de uma rede simbólica (CASTORIADES, 1992, p. 142). O imaginário possibilita, não apenas a socialização-interiorização da ordem simbólica no eu – o “imaginário instituído” - com suas normas e significações imaginárias que a organizam possibilitando um sentido para a vida e para a morte; mas igualmente os elementos que podem lhe possibilitar a superação, o rompimento com esse mundo instituído - o “imaginário instituinte”. A realidade é fruto dessa instituição imaginária da sociedade, que embora abstrata e invisível é existente e materializada nos signos. Pensar é manipular signos. Dessa forma o simbólico dá a base para a sustentação do imaginário. E é a partir dela que a imaginação pode existir. O simbólico é então o lugar da criação continuada do imaginário. Esses elementos estão presentes nas instituições e guiam sua ação no mundo. É essa tensão entre passado e futuro, ordem e transformação que caracteriza o campo de atuação das instituições: Todo simbolismo se edifica sobre as ruínas dos edifícios simbólicos precedentes, utilizando seus materiais, mesmo que só para preencher as fundações de novos templos, como fizeram os atenienses após as guerras médicas”, no entanto, lembra o filósofo que “por mais conexão natural e histórica encontrada o significante ultrapassa sempre a ligação rígida a um significado preciso, pondendo conduzir a lugares totalmente inesperados (CASTORIADIS, 1992, p. 147). O imaginário dos conquistadores encontrava-se dividido entre o maravilhoso e o demoníaco. Nos diários de bordo, nas cartas dos missionários e nos relatos dos viajantes há inúmeras referências à exuberância das novas terras. Da beleza de suas praias imensas, a variedade de sua fauna e flora, a fertilidade de seu solo à da inocência de seus habitantes, que viviam como Adão e Eva antes de serem expulsos do Paraíso (Gn 3). Esse mito do “Paraíso Terrestre” na América, brilhantemente tematizado por Sérgio Buarque de Holanda, em “Visões do Paraíso” (1959), servirá de alimento para todo o imaginário do período. Lê-se na famosa Carta de Pero Vaz de Caminha a El Rei Don Manuel Sobre o Achamento do Brasil que as “águas são muitas; infindas. E em tal 96 maneira graciosa que, querendo-se aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem”. O Brasil surge nesse texto, como em muitos outros: Um imenso jardim perfeito: a vegetação é luxuriante e bela (flores e frutos perenes), as feras são dóceis e amigas (em profusão inigualável), a temperatura é sempre amena ("nem muito frio, nem muito quente", repete toda a literatura e Pero Vaz de Caminha), aqui reina a primavera eterna contra o "outono do mundo", o céu está perenemente estrelado, os mares são profundamente verdes, e as gentes vivem em estado de inocência, sem "esconder suas vergonhas" (diz Pero Vaz), sem lei e sem rei, sem crença e pronta para a evangelização (CHAUÍ, 2005 p.12). Dessa forma as “observações empíricas” confirmam “os desejos do coração”. O Brasil nasce “sob o signo do Jardim do Éden”. Num minucioso estudo, A história do Paraíso, (“o jardim das delícias” e “mil anos de felicidade”), o historiador francês Jean Delumeau, mapeou as origens desse mito colonial, que atingiu diferentes contextos europeus católicos ou protestantes (DELUMEAU, 1997). Segundo ele, o mito remonta a tradição mitológica clássica, aos textos bíblicos e de teólogos medievais como Tomás de Aquino (1224-1274) e Joaquim de Fiori (1132-1202), de quem trataremos adiante. Delumeau destaca três elementos constantes nas narrativas da época: “uma paisagem concebida como um jardim, uma natureza em estado selvagem, mas maravilhosamente dotada pelos deuses; o ambiente pastoril do amor” (apud ANDRADE: 2005 p. 36). Chama a atenção para o enorme esforço de eruditos e “cientistas” na busca da localização exata do Paraíso na terra, visto geralmente como uma ilha (a “ilha das delícias”). Dessa forma, “a cultura na qual participavam e os sonhos que ela veiculava levaram-nos, pelo menos nos primeiros tempos, a reencontrar nos países insólitos que se descobria perante os seus olhos às características das terras abençoadas que assediavam desde a Antiguidade a imaginação dos ocidentais” (Apud ANDRADE, 2005 p. 36). Outro aspecto importante ligado ao mito do paraíso perdido é o tema da “Idade de Ouro”, fonte das idéias e movimentos milenalistas que, “[...] invadiram o espírito europeu, diante das possibilidades de construção de um mundo novo em terras antes ignoradas, isento dos vícios do velho mundo, de modo que não foram apenas os sonhos milenalistas, mas as utopias que inspiraram parte considerável da literatura renascentista”. (ANDRADE, 2005 p. 37), fonte das grandes utopias secularizadas do século XX (progresso, liberalismo e socialismo). 97 O fenômeno do messianismo medieval e colonial está ligado, do ponto de vista ideológico, às influências do abade cisterciense Joaquim de Fiore (ou Gioacchino da Fiore) nascido em Celico, província de Cosenza, Calábria, Itália. Após uma peregrinação a Jerusalém entregou-se a um intenso ascetismo, tornando-se filósofo místico e obtendo a fama popular de santo e profeta (Dante, na Divina Comedia, dedica- lhe um lugar no Paraíso). Como lemos, em suas cartas (1501 e 1502) ao papa, Cristóvão Colombo anuncia a descoberta do Paraíso (América) ao mesmo tempo em que se sente vocacionado por Deus para ser o instrumento na realização das profecias de Fiori, a julgar pelos seus cálculos quando ao fim dos tempos (faltava 155 anos), em que viriam “novos céus e novas terras” (apo). Como Sérgio Buarque lembra: Colombo, sem dissuadir-se de que atingira pelo Ocidente as partes do Oriente, julgou-se em outro mundo ao avistar a costa do Pária, onde tudo lhe dizia estar o caminho do verdadeiro Paraíso Terreal. Ganha com isso o seu significado pleno aquela expressão “Novo Mundo Novo” não só porque ignorado, até então, das gentes da Europa (...), mas porque parecia o mundo renovar-se ali e regenerar-se, vestido de verde imutável, banhado numa perene primavera, alheio à variedade e aos rigores das estações, como se estivesse verdadeiramente restituído à glória dos dias da Criação. (BUARQUE, 1992, p. 204). A obra de Fiori é a primeira manifestação de um milenalismo escatológico na Idade Media. O tema central de seus escritos (Liber Concordiae Novi ac Veteris Testamenti, Expositio in Apocalipsim e Psalterium Decem Chordarum) é a interpretação dos Textos do Antigo e Novo Testamento e a questão do futuro e da história da Igreja católica enquanto comunidade mística. A base de sua doutrina é hermenêutica alegógica do texto do Apocalipse. Na sua interpretação do “texto sagrado” existiriam três estádios, ou “Idades da História”, no desenvolvimento do Mundo e da Igreja, correspondentes às três Pessoas da Santíssima Trindade. A Primeira Idade, correspondende ao governo do Antigo Testamento, a manifestação de Deus Pai e do poder absoluto, inspirador do temor sagrado que perpassa ao tempo anterior à revelação de Jesus Cristo. A Segunda Idade, inicia-se pela revelação do Novo Testamento e pela fundação da Igreja Cristã, em que, através de Deus Filho, a sabedoria divina oculta se revela a humanidade. É a época da liberdade. É o “tempo presente”, a “contemporanidade”. A Terceira Idade, que há-de vir, corresponde ao domínio da Terceira Pessoa. Esse tempo consistirá no advento do Império do Divino Espírito Santo, e se 98 caracterizará pela criação de um “mundo novo” em que o amor universal e a igualdade serão universalizados. Nessa parusia a vivência religiosa despensaria a igreja institucional e o “Evangelho eterno” sumprimiria as Escrituras. No Império do Divino Espírito Santo, as leis evangélicas serão finalmente realizadas, não só na sua letra, mas no seu espírito, isto é, o sentido que nelas está escondido será finalmente compreendido e aceito por toda humanidade. Por isso já não haverá necessidade de instituições disciplinadoras, nem mesmo a eclesiástica, pois todos teriam o Espírito dentro de si. Nesse “Novo Orbi” caberia aos religiosos serem o “ sal da terra” entre os mais pobres. É visivel a importância da obra de Fiori para a mentalidade cristã ocidental13. Graças a ele, e aos seus seguidores, é possivel se pensar numa “filosofia/teologia da história”, isto é, na reflexão sistemática sobre o tempo estruturado em diferenciado momento progressivo rumo a uma apoteose. Enquanto a filosofia grega considerava o tempo segundo sua realidade cósmica e cíclica, a filosofia de Fiori é a de um tempo organizado em história por iniciativa divina e que se reflete como tal na nossa consciência “distendida” entre “passado”, “presente” e “futuro”, numa clara continuidade com a tradição agostiniana. Esse tempo “heterogêneo” e “teleológico” assenta-se numa concepção trinitária, progressiva e orgânica da história como desenvolvimento do plano divino para a salvação da humanidade. No centro da teoria joaquimita, encontra-se, pois a idéia de que haverá ainda uma fase final da História, um tempo abençoado ainda por vir. O apogeu da história será sinalizado pelo aumento da espiritualidade no mundo, um tempo do intelecto e da ciência. A partir desta herança, que se fundiria com as Sibilinas Cristãs e onde as alegorias bíblicas serviriam como fonte para compreender e prever o desenrolar da história, ultrapassando os meros fins morais e religiosos, o joaquimismo afirma-se como possuidor de três elementos que possibilitaram sua utilização pelos milenaristas mais radicais: o refortalecimento dos temas apocalípticos, a idéia de que a Igreja clerical seria substituída por um corpo místico contemplativo e essencialmente igualitário e a de que os menos favorecidos reinariam no mundo, dando expressão temporal ao Império do Divino Espírito Santo. Há fortes conicidências entre a teoria de Fiori e os ideais do movimento franciscano “as primeiras comunidades franciscanas se caracterizaram pela 13 Para uma leitura contemporânea de Fiori ver VATTIMO, Jean. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004. 99 vivência pobre e pela ânsia de evangelizar os povos, como se aquele momento fosse o último da história” (ALMEIDA: 2001, p. 149). Como conseqüência, foram os franciscanos os principais responsáveis pela difusão do joaquimismo na Idade Média, sendo que muitos esperavam a ressurreição de São Francisco como o prelúdio da nova era. Jesuítas e franciscanos se consideram as duas ordens monásticas profetizadas por Joaquim di Fiori e por isso escrevem movidos pela certeza do fim da história e do tempo do fim como tempo do Espírito Santo inteiramente revelado ao Reino de Deus. A obra Novo Orbe Seráfico Brasílico14, escrita pela Francisco Brasileiro Antônio de Santa Maria Jaboatão (1695-1779), marcará, um século depois a “afinidade eletiva” entre esses dois movimentos. Esse processo foi ainda mais intenso na Espanha: Na Nova Espanha as idéias joaquinistas foram basicamente o sustentáculo da empreitada dos missionários franciscanos, com um projeto mais definido de evangelização. A própria situação histórica das colônias e a visão joaquinista da História favorecia a junção do binômio “pobreza e conversão” como ponto de partida para a renovação do cosmo, pois todos os sinais apontavam para uma eminente realização do terceiro tempo, isto é, aquele tempo no qual se efetivava a realização plena do Espírito apresentada por Joaquim de Fiori em sua previsão apocalíptica. (ALMEIDA, 2001, p. 156). Nessa perspectiva escatológica, o Brasil não é apenas “novos céus e novas terras” cumprindo a profecia do alargamento da ciência e o anúncio do milênio como Era do Espírito: o Brasil é condição e parte integrante do milênio, isto é, do “Último Império”. As profecias de Daniel e de Isaías, cumpridas com a descoberta e a conquista do Brasil, são fatos e provas da consumação da revelação e do tempo. É a partir deste momento que se podem identificar claramente os traços messiânicos junto aos ideais milenaristas, incorporando parcialmente o messianismo judáico, já que ao contrário do reino nos céus que defende a Igreja Romana, a crença dos judeus aponta para um império terrestre. Essa influência messiânica começou a se fazer mais presente no fim do século XV, quando o português Issac Abarbanel anunciou a vinda do Messias, seguido por outro judeu, David Rubeni, que profetizou a vinda para 1526. Mas o nome que ganhará maior repercussão será o de Gonçalo Anes Bandarra, sapateiro da cidade de Trancoso e personagem central na obra de Vieira (AZZI, 2004). 14 Como lembra Almeida (2001, p. 183) “O título Orbe se inspira na obra do Padre Gubermantis, que escreveu de toda a Ordem, dando-lhe o Titulo de Orde Seraphicus, porque nele se continham as atas da família franciscana e seráfica espalhadas pelos quatro cantos do Mundo; Novo Basílico por se tratar dos frades menores no Brasil”. 100 Em Portugal, onde os franciscanos tiveram influência relevante, as idéias de Joaquim de Fiore estão subjacentes ao lançamento do culto do Espírito Santo, aparentemente com a rainha Santa Isabel, fundindo-se depois no sebastianismo15 e na crença no advento do Quinto Império bem patente na obra do Padre António Vieira: Entre 1647 e 1666, o Padre Vieira escreve "História do Futuro", obra que lhe valerá a condenação de "herética e judaizante" pelo tribunal da Inquisição, pois "promete o reino de Deus nesta vida e muito cedo", à maneira dos judeus que "o esperam nesta vida presente de seus Messias e perpétuo para sempre". A origem da condenação é o livro "Esperanças de Portugal", parte da trilogia que inclui a "Chave dos Profetas" e a "História do Futuro", inspirada em Daniel, no capítulo 18 de Isaías, nas "Trovas do Bandarra" (em que o Encoberto D. Sebastião será o Imperador dos Últimos Dias, vencedor das primeiras batalhas contra o Anticristo) e no milenarismo trinitário de Joaquim di Fiori. A obra prevê a união de portugueses e judeus, o Reino de Mil Anos e o retorno triunfal dos judeus a Israel. A interpretação do capítulo 18 de Isaías, possivelmente recebida pelo jesuíta das obras do franciscano peruano Gonzalo Tenório, demonstra que Isaías profetizou não só a América, mas, pela quantidade de detalhes e particularidades, profetizou o Brasil, e não o Peru, como julgara Tenório. Ambos, porém, interpretam as "gentes convulsas", as "gentes dilaceradas" e as "gentes terríveis", de que fala Isaías, como sendo as Dez Tribos Perdidas de Israel, e o motivo fundamental para essa interpretação é uma outra profecia de Isaías, segundo a qual a redenção do "resto de Israel" só se dará depois que todo Israel se houver dispersado na direção dos quatro ventos e, evidentemente, a última direção somos nós. (CHAUÍ, 2005, p.10). Portugal terá um milenarismo diferente do restante da Europa. Uma das características é o mito do reino do Prestes João. As descrições desse reino imaginárias, situadas conforme algumas versões na Etiópia e originadas da Idade Média geraram muitas viagens exploratórias, patrocinadas oficialmente pelo reino português, na tentativa de se descobrir uma nova rota para a Índia (ANDRADE, 2005). Dessa forma, no Brasil dos séculos XVI e XVII, era impossível separar imaginário de realidade. Em um contexto como esse as relações místicas e religiosas permeavam o cotidiano. Mas não era apenas isso: Deus e o diabo travavam um confronto dantesco pelo controle da nova terra e seus habitantes. Assim, se por um lado havia o elemento edênico na descrição da natureza, existiam os elementos demoníacos na percepção dos nativos. 15 O mito se deve ao desaparecimento de D. Sebastião na “Batalha de Alcáber-Quibir” em 1578 e sua volta como “encoberto”, tema das profecias de Bandarra e dos sermões, cartas e livros de Vieira.O “sebastianismo” exercerá ainda forte influência na cultura popular brasileira. 101 Nesse caso foi essa alteridade radical que predominou nas leituras feitas dos índios e de suas culturas. Satã veio de carona nas caravelas e bagagens, como conseqüência, as referências ao Diabo impregnava ares e mares num embate dual pela construção do Paraíso na Terra de Santa Cruz. Como lembra Laura de Mello e Souza (1986. p. 31): Descoberto, o Brasil ocupará no imaginário europeu posição análoga à ocupada anteriormente por terras longínquas e misteriosas que, uma vez conhecidas e devassadas, se desencantaram. Com o escravismo, este acervo imaginário seria refundido e reestruturado, mantendo, entretanto, profundas raízes européias. Prolongamento modificado do Imaginário europeu, o Brasil passava também a ser prolongamento da metrópole, conforme avançava o processo colonizatório. O paraíso nos trópicos era também a “sucursal do inferno” e o terror e a barbárie povoariam o imaginário europeu em vários sentidos. O processo de “infernalização” da colônia e sua valorização através dos mitos edênicos caminharam juntos. Assim, o costume indígena de andar nu despertou a atenção dos viajantes (Caminha faz referência a esse fato cinco vezes em sua Carta) europeus que vivenciavam a sexualidade como tabu. As explicações para esse fato oscilam entre a pureza dos índios como “genus angelicum” ou como depravados, luxuriosos e pecadores. Com o passar do tempo e as mudanças de relações sociais e econômicas entre os as duas culturas, a instalação do plantection, por exemplo, o imaginário cristão passou a ser cada vez mais dominado pelas representações “infernais” da colônia. Os índios deixaram de ser vistos como simples e inocentes e passaram a encarnar a maldade, como as formas mais grotescas possíveis de humanidade, dada sua predisposição natural à luxúria e ao “canibalismo”. O paraíso tropical mais parecia, agora, um inferno verde. Como conseqüência, índios, judeus e negros iam se identificar com as imagens edênicas ou demoníacas oriundas dos discursos dos viajantes e exploradores, mediados pelas idéias religiosas da época. Na Terra de Santa Cruz, ora edenizada, ora demonizada, as manifestações religiosas foram as mais diversas possíveis. A presença do Diabo16 passou a ser cada vez mais marcante, a começar pela escolha do nome do país: Brasil. Um dos primeiros historiadores do novo país, o frei Vicente de Salvador, irá atribuir a escolha do nome, 16 Fazemos aqui uma distinção quanto aos vocábulos demônio e diabo. Em grego, demônio (δεμονίον ) está ligado indistintamente a qualquer divindade ou mesmo uma “voz interior” (O “demônio de Sócrates”, por exemplo), enquanto que diabo (διαβόλος), “acusador” está mais próximo de “Satanás” (Satã, em hebraico), “adversário”, o “arquiinimigo” de Deus e seu Filho. 102 em oposição à “Terra de Santa Cruz”, não tanto à abundante presença da madeira vermelha, mas à ação demoníaca “[...] melhor soa aos ouvidos de gente cristã o nome de um pau em que se obrou o mistério de nossa redenção que de outro que não serve de mais nada que para tingir panos e coisas semelhantes” (SALVADOR apud ANDRADE, 2002, p. 47). Os estudos de Delumeau (1992) nos ajudam a entender melhor esse período, de “Grande medo” e busca por uma maior santidade e salvação pessoal: Começa a aparecer em toda a Europa, especialmente em Portugal, uma religião mais individualista, um sentimento de culpabilidade pessoal. Segundo Jean Delumeau, “o escrúpulo invade as consciências como nunca antes se virá, este tempo foi marcado por uma súbita inflação da confissão. É evidente que as catástrofes do período provocaram este grande medo (pestes, guerras, fomes, Turcos, o grande cisma). Atribuíram-se às infelicidades ao castigo divino, provocando uma crise de consciência individual que, por outro lado, gerava o sentimento de culpa. O mal estava por toda parte, todas as manifestações culturais e religiosas estavam sob suspeita. (ALMEIDA, 2001, p. 238). Esse grande medo é um dos elementos paradoxais da herança renascentista. Tinha-se medo da natureza (o mar, a noite, estrelas e cometas), dos vivos (os “hereges”, as “bruxas”, os judeus, pestilentos e estrangeiros) e dos mortos (fantasmas e santos), e principalmente, do demônio. É neste momento que a morte modifica-se, tornando-se mais individual e terrível. O aumento das descobertas provocou uma onda de medo do desconhecido e os poderosos procuraram estabelecer estruturas capazes de garantir segurança. A Inquisição é a maior delas. O controle do corpo não podia ser separado da disciplina das idéias e das almas. Assim: Os desvios deveriam ser exemplarmente punidos. As alegrias desse mundo eram falsas; mais valia preparar-se para morrer. Todas as artes são invadidas pelas representações macabras, eram as artes moriendi, que ensinavam como o homem deveria resistir ao demônio nas últimas horas da vida. É nesse período que surge o receio da morte súbita; receava-se, comparecer perante o tribunal divino sem ter recebido a absolvição dos pecados, o que livraria o fiel dos martírios do inferno. Os cristãos deste tempo foram atormentados com a idéia do fim do mundo e do juízo final. Enquanto buscavam as sensações prazerosas, os fieis confrontavam-se com as angústias diárias de preservar sua alma do assalto do maligno, existência profundamente angustiante. (ALMEIDA, 2001, p. 238). 103 Portugal vivia um momento de especial insegurança dividido entres “o milagre de Ourique,”17 as conquistas de Marrocos e Guiné e as derrotas na África, e em especial ao “desaparecimento” de D.Sebastião. Foi justamente nesse momento de angústias e inseguranças que D.João II iniciou a colonização do Brasil. Assim, se Portugal caracterizava-se pela coexistência de idéias “modernas” e “medievais”, na religião a situação não era diferente. “A cultura popular Portuguesa da era dos descobrimentos integrava um cenário mais amplo e complexo, uma espécie de cultura cortesã apocalíptica em que os elementos de vida e morte se conjugam numa dinâmica aberta a múltiplos sentidos” (HERMANN Apud ALMEIDA, 2001, p. 241). É esse catolicismo mais popular e sincrético que é anterior inclusive à Contra- Reforma, que servirá de base à religiosidade brasileira. Segundo Laura de Mello e Souza, “Traços católicos, negros, indígenas e judáicos misturaram-se, pois na colônia, tecendo uma religião sincrética e especificamente colonial”. Foi nesse quadro de dominação e sincretismo que os jesuítas aplicaram seu projeto pedagógico. 3.3.Humanismo, Ratio Studiorum e retórica jesuíta Sabemos que os primeiros jesuítas chegaram ao Brasil em 1549. Vieram em número de seis, comandados pelo Padre Nóbrega, trazidos pelo governador-geral Tomé de Sousa. A Ordem praticamente recém – fundada tinha apenas 10 anos de existência nesse período, mas seu estabelecimento como a primeira província autônoma em Portugal, justificou a decisão de D. João III de enviá-los à colônia. A chegada da ordem no Brasil está ligada ao fracasso das capitanias hereditárias, em 1534 e sua substituição pelo Governo Geral, em 1542. Na lógica do projeto colonial português, os jesuítas desempenhavam a função de “missionários oficiais do Reino”. Assim: “Nos séculos XVI e XVII, nas missões jesuítas do Brasil e do Maranhão e Grão Pará, a iniciativa de fazer da pregação oral o instrumento privilegiado de divulgação da Palavra divina pressupunha que a luz natural da Graça inata ilumina a mente dos gentios objetos da catequese, tornando-os predispostos à conversão”. (HANSEN: 2003, p. 21). É exatamente nessa discussão, em torno do caráter do “novo auditório” (gentios), que os pregadores jesuítas se confrontam com os interesses do sistema colonial. 17 Denominação da vitória de D. Afonso Henrique sobre os mouros, na batalha de Ourique, em 1139, no baixo Alentejo, com um número bastante inferior de soldados. Conforme as crônicas do período Cristo apareceu pessoalmente a ele. Esse acontecimento marca a fundação mítica da monarquia portuguesa. 104 As missões jesuítas na América Latina foram controversas na Europa, especialmente na Espanha e em Portugal, onde eram vistas como interferência com a ação dos reinos governantes. Os jesuítas opuseram-se várias vezes à escravatura. Eles fundaram uma liga de cidades-estado, chamada Missões ou Misiones no sul do Brasil, ou ainda reducciones, no Paraguai, que eram povoações organizadas de acordo com o ideal católico, mais tarde destruída por espanhóis, e principalmente portugueses, à cata de escravos. Seguindo a opinião de muitos autores, deve realçar-se a contribuição dada pelos jesuítas à sistematização e racionalização do ensino dada através da Ratio Studiorum18, pois criaram um sistema educativo e uma regra comum a todos os colégios, dando, deste modo, unidade aos processos educativos, que foram depois seguidos em centenas de colégios da Companhia de Jesus espalhados pela Europa e Américas. A Companhia possuía além de sua forte centralização, uma espantosa rede de informações mundial, que funcionando por meio de uma intensa troca de cartas entre as províncias lhe possibilitou criar o primeiro projeto mundial de educação. Trata-se, portanto de um “projeto de hegemonia cultural”, de uma verdadeira “guerra de posição” (GRAMSCI, 2001) dentro do Estado, da sociedade e da própria Igreja. Em nenhum outro lugar isso fica mais nítido que na relação entre os soldados de Cristo e a Educação. A Ratio nasceu fruto de um esforço coletivo mundial iniciado em 1581 pelo Pe. Cláudio Acquaviva , então Geral da Companhia, que nomeou uma comissão de doze padres para [...] formular a ordem de estudos que deve guardar a companhia”. A Ratio era fruto de um duplo processo: a incorporação dos modus particular de cada colégio e a sistematização da experiência missionária da companhia no mundo “desde 1547, a Companhia armazenava informações sobre o andamento da catequese e do ensino em todas as missões. Por meio da comparação de experiência e da adaptação dos métodos de ensino a novas circunstâncias, considerando as especificidades locais dos colégios já existentes em varias partes do mundo, Accqauviva pretendia estabelecer uma regra universal, válida para todos em todos os lugares. Aplicada ao ensino, asseguraria a unidade de pensamento e ação dos padres, que deveriam “[...] non solamente insegnar li bene disposti a ricevere la verità, ma anche convincere li repugnanti e inimici di quella” (HANSEN, 2001, p. 16). 18 A Ratio Studiorum atque Institutio Societas Jesu (Ordem e maneira dos Estudos da Companhia de Jesus), denominada a partir de agora como Ratio, foi publicada em 1599, após dez anos de estudos sobre as experiências da Ordem em várias partes do mundo. 105 Como conseqüência, desde sua criação até o momento em que foi perseguida, a Companhia de Jesus caracterizou-se por ser uma ordem atuante nos campos da pregação e da política temporal. Sua presença na América colonial deixou como legado um repertório de escritos de naturezas diversas, abrangendo material devocional e catequético, cartas, sermões, descrições da fauna, da flora e dos habitantes da América etc. A formação jesuíta consistia numa intensa educação teológica e humanística. Essa formação apoiava-se em um conjunto hierárquico de conhecimentos úteis ao objetivo missionário da ordem e reapropriava-se do trivium como etapa inicial da formação dos seus alunos. A poética, a dialética, a gramática, a história e a retórica são alguns dos campos principais da formação jesuítica, fundando as bases do seu discurso teológico-político. A primeira investida jesuítica para normatizar a formação dos missionários dá-se com o próprio Inácio de Loyola, que apresenta vários tópicos sobre a questão nas Constituições. O objetivo da educação dos padres, segundo Loyola, é prover aos mesmos os instrumentos necessários para “ajudar o próximo a conhecer o amor de Deus e a alcançar a salvação da alma”. Para isso, não bastaria ao missionário o domínio teológico. Antes de chegar até ele, o pupilo deveria passar por “faculdades inferiores”, abarcando o estudo de Letras e Humanidades (Gramática, Retórica, Poesia e História), de Lógica, Física, Metafísica, Matemáticas, Filosofia Natural, Filosofia Moral e línguas antigas e modernas. Além disso, as Constituições previam peregrinações e os exercícios espirituais como formas de desenvolver a caridade, a oração, a fé, o amor e a obediência; virtudes sem as quais o engenho, a imaginação e a razão não poderiam dar frutos. Depois de passar pelas “faculdades inferiores” e de estar espiritualmente preparado para a vida apostólica, os padres se dedicariam ao estudo da Teologia (Teologia Moral, Escrituras, Direito Canônico e Teologia Positiva) e da Filosofia (Escolástica), completando, assim, sua formação. O currículo, segundo a Ratio, estava dividido em dois níveis: médio e superior. O médio era o curso de humanidades, compreendendo os estudos de retórica, humanidades e gramática (subdividia em inferior, media e superior). Os estudos superiores abrangiam o curso de Filosofia, também chamado de Artes ou Ciências Naturais e o de Teologia. Em Filosofia apropriava-se de conhecimentos, tais como: a Lógica, Introdução às Ciências, Cosmologia, Física, Ética, Metafísica, Matemática e 106 Filosofia moral. O curso de Teologia com duração de quatro anos era reservado para os futuros padres e consistia no estudo da Teologia escolástica, Teologia moral, Sagrada Escritura e Línguas sacras (o grego, o latim e hebraico). O Direito canônico e a História sacra somente foram introduzidos no currículo no século XVI (FRANZEN, 2003). As aulas tinham a duração média de 5 horas diárias: duas e meias pela manhã e duas e meia à tarde. A metodologia utilizada buscava alcançar o máximo de aproveitamento dos alunos nas aulas por meio da diversificação das atividades. Seguia- se a filosofia escolástica que definia a pessoa como uma “concordância simultânea de três faculdades ativas:’’ memória, vontade e intelecto. “Ao fazê-lo, deve ensinar-lhe o autocontrole, visando a harmonia dos apetites individuais e a amizade do restante do corpo político do Estado. Por outras palavras , é “mais homem” quem aprende a agir segundo a recta ratio agibilium e a recta ratio factibilium da Escolástica, a reta razão das coisas agíveis e a reta razão das coisas factíveis, visando o ‘bem como’ da concórdia e da paz de todo o Estado (HANSEN, 2003, p. 25). Como conseqüência, eram exigidos rígidos exercícios de memorização, desafios e debates, além de inúmeras composições em prosa e verso, declamações, música, teatro e as chamadas dominicais “Essas consistiam num ensaio de pregação, geralmente feita aos domingos, no púlpito do refeitório. Na época a eloqüência era muito apreciada, tanto pelos colonos como pelos índios”. (FRANZEN, 2003, p. 53). O modelo geral dos colégios era o de o “Real Colégio de Artes de Coimbra”, que oferecia um ensino gratuito e público, subsidiado pela coroa e gerenciado pelos jesuítas. Se não foi possível à Companhia realizar sempre o que desejou, certamente fez tudo o que esteve ao seu alcance para isso. Enfrentando inúmeras dificuldades, como refere François Charmot: a Companhia “executou apenas uma parte dos seus desígnios”, adaptando-se sempre às circunstâncias e em nome da maior glória de Deus. Assim, os inacianos logo compreenderam que era necessária uma adaptação a esses desafios. O conhecimento dos princípios da pedagogia inaciana passa pela compreensão cuidadosa do discurso e do espírito da Ratio. Alguns aspectos foram sendo renovados e adaptados por diversas Congregações Gerais, e também por intermédio dos Superiores Gerais. A Ratio de 1599 incluía as ciências nos seus programas, mas o realce era dado ao ensino das letras, como não podia deixar de ser face ao início daquelas. No Brasil, lia-se o texto do Cursus Conimbricenses. O latim era a língua dominante, sendo vista 107 como indispensável à civilidade. Mas os jesuítas também ensinavam e divulgavam a “língua geral”: o “nheengatu”. A retórica foi presença constante nessa transição de quase três séculos de história ocidental e está inserida entre duas grandes revoluções que afetaram o Ocidente Europeu, mas que tiveram conseqüências tão grandes para o mundo inteiro. Para qualificar a primeira, a do século XVI, fala-se de “Renascimento”. A partir do início do século XVI ocorreram grandes modificações que afetaram a Europa Ocidental. Essas transformações caracterizaram-se pela mudança de visão do mundo que foi uma das conseqüências dos Descobrimentos Marítimos, acompanhados pelas novas técnicas de representação da realidade, transformações no âmbito técnico e econômico e alterações no campo científico. Estão na origem da chamada revolução copérnico - galileana e levaram à criação da ciência e a cosmovisão moderna. No entanto, é preciso lembrar que os aspectos mais relevantes de uma época, necessariamente, têm antecedentes que os marcaram de forma acentuada. Não há rupturas radicais com o passado, mas processos históricos de longo prazo, em que coexistem conservações, adaptações e abandonos. Toda a técnica de navegação demonstrada pelos portugueses nos séculos XV e XVI não podia ter nascido de um dia para o outro. Assim, a expansão das Letras e das Artes verificada no século XV nas regiões da Europa não seria possível sem a existência dos modelos da Antiguidade Clássica e ida para a Itália de numerosos sábios do Império do Oriente; a invenção da imprensa, que colocou ao alcance de todos os livros e manuscritos de enorme valor intelectual; muitos deles de origem árabe. Dessa forma, se em certos aspectos, os fenômenos e acontecimentos renascentistas assinalam ruptura com a Idade Média; noutros verifica-se apenas a continuação de um processo já iniciado nos últimos tempos de era medieval. Pensamos, assim, ser importante tentar perceber as condições facilitadoras do eclodir do pensamento moderno, para podermos compreender de que modo a Companhia de Jesus reagiu. A idéia de que as raízes da modernidade, nos seus múltiplos aspectos, encontram-se profundamente ligadas ao período Renascentista, encontramo-na generalizada em estudos de historiografia da cultura, da filosofia, teologia e da ciência. Desse modo, ao longo de um período de três séculos, foi germinando a grande revolução filosófica e científica da modernidade. 108 Assim, a “gênese” da filosofia moderna deve ser situada nos movimentos de pensamento renascentista que ocorreram na Europa nos séculos XV e XVI e que estão na origem dos grandes sistemas filosóficos ditos modernos, sendo Descartes considerado primeiro representante. O renascimento foi um movimento intelectual multifacetado e complexo, mas inegavelmente teve como uma das suas bandeiras a recusa aos excessos da escolástica, vista como culturalmente “atrasada”. Paradoxalmente essa recusa se efetivava como uma “volta ao passado”: Ab fontes! Em conseqüência dessa atitude, o latim utilizado nos textos medievais foi considerado como “latim bárbaro”, sendo substituído pelo latim e grego clássico, o mesmo acontecendo com o estilo gótico. Autores latinos esquecidos desde o século XIII foram recuperados e surgiu uma intensa valorização da beleza da vida e da natureza, presente de forma clara nos relatos dos descobridores, em especial no diário de Colombo (TODOROV, 2003). A corrente humanista do Renascimento provocou profundas transformações no mundo e a renovação de toda a cultura européia. A busca por novas experiências de vida levou ao afã de novas conquistas científicas, de novos ideais que acabou produzindo um “Novo mundo” bem mais diverso e rico em contrastes de formas de humanidade. O paradigma da renascença se estruturava sobre duas tradições: a cristã e a pagã, que se interpelam entre si pela busca do sentido humano. E será durante essa consolidação do Humanismo moderno, com todos os desafios colocado à educação, que surge a pedagogia inaciana. Aqui se torna necessário uma advertência. Se for verdade que o renascimento significou a busca pela “liberdade” e dignidade humana, que emerge como indivíduo mais crítico que ousava colocar “tudo” em discussão, isso não implicava, naquele momento, no abandono da religião. Pelo contrário: a exaltação religiosa das consciências não supõe a recusa da religião. O Humanismo, como concebido pelos pedagogos e educadores do período, era um movimento ainda essencialmente cristão na forma de conceber a vida, na tradição da “virtus”, o que implicava precisamente a busca de uma educação pessoal com interesses profundamente morais e religiosos. É neste contexto que situa-se a experiência educativa dos Jesuítas. A Companhia de Jesus compreendeu que a educação libertaria o homem e que este seria também um “agente de libertação”. Assumindo com intensidade a difícil tarefa do ensino, institucionalizou um sistema de formação ou regra comum, a Ratio, encarnando 109 criticamente a tensão entre os modelos renascentistas e o “inusitado” dos diários de campos missionários, que ela adaptou para os seus próprios membros e colocou à disposição da sociedade. Os jesuítas foram pioneiros ao perceberem que o mundo mudava. A concepção medieval de um homem místico, voltado para a sua interioridade e para a realidade espiritual e divina, não podia mais ser sustentada. Cabia aos jesuítas propor um modelo de educação capaz de atender ao ideal de um homem capaz de reivindicar a sua liberdade, consciente de poder estruturar, de modo autônomo as suas ações. Este homem, capaz de construir ou de modificar o mundo, estava, portanto, longe do homem medieval, que vivia à sombra do convento e sempre voltado para as coisas de Deus. O homem renascentista, ao reaprender as antigas virtudes cívicas dos romanos, opta pela cidade, assumindo-a como seu habitat; convive no tumulto das feiras, recusando-se a desertar do mundo e da vida afastando-se do refúgio dos conventos ou castelos. Assim, quando no dia oito de abril de 1546, os padres reunidos na IV sessão do Concílio de Trento (1545-1563) declararam herética a tese da sola scriptura (“só a Escritura”) luterana reafirmavam a importância da tradição oral e do poder do magistério, enfatizando o poder da palavra e do sermão para a “formação das almas” por um verdadeiro “exército de educadores”. Tratava-se de defender e expandir a Igreja Católica, como uma “comunidade de fé, magistério e autoridade”, essa communitas fidelium, comunhão dos féis, existia graças à tradição oral, que em igualdade de valor com a tradição escrita (Bíblia) constituía o depositum fidei. Dessa comunidade sacramental participavam, através do batismo, todos os seres humanos, inclusive as populações nativas das terras recentemente conquistadas. O Concílio faz uma releitura do esforço renascentista e resignifica a tradição clássica “a partir do século XVI, as preceptivas retóricas e poéticas que se apropriam cristãmente dos textos latinos de Retórica afirmam que no ato da invenção dos discursos o juízo dos autores é acompanhado pela luz natural da Graça inata. A Graça orienta-lhes os efeitos com eficácia didática, prazer engenhoso e envolvimento persuasivo” (HANSEN, 2003, p. 22). A pregação, e as ordens religiosas foram elementos fundamentais para que isso acontecesse. Os decretos do Concílio Super lectione et praedicatione (1546) e Decretum de reformatione (1563) procuram garantir a necessária formação intelectual e dogmática dos novos pregadores. Como sabemos, Portugal apoiou integralmente as 110 decisões do Concílio. A última seção desse aconteceu no dia 04 de dezembro de 1563. Em maio do mesmo ano seus decretos e medidas foram confirmados e em 07 de setembro de 1564, publicadas em Portugal pelo rei D.Sebastião (HANSEN, 2003). Mas a Companhia não era apenas mais uma ordem religiosa. Para entendermos sua particularidade, no entanto, basta lembrarmos que eles entendiam a obediência aos superiores como perinde as cadaver, ou seja, “igual a um cadáver”. Isso lhes dava um sentido de ordem, obediência e perspectiva totalmente diferentes das demais. Porém, o mais importante era a criação de um novo tipo de ascetismo, bem mais próximo dos novos tempos que iniciavam-se no Ocidente, estudados por Max Weber. Nesse sentido: Na Companhia de Jesus, ao revés, deve os seus membros considerar- se destinados à vida ativa. São soldados de escol, alistados para continuamente se voltarem ao serviço de Deus e do Papa, seu vigário, na terra. Tudo quanto tende a esclarecer o ignorante, tudo quanto pode servir para reconduzir os inimigos da Santa Sé ao girão da Igreja, ou lhes repelir os ataques, é o seu primacial objeto. Para disporem do tempo necessário a esse serviço ativo, ficam inteiramente isentos dos exercícios de devoção, cuja prática era o fim quase exclusivo das demais ordens religiosas. Não participam das procissões; não se submetem a nenhuma mortificação rigorosa; não consomem a metade dos seus dias a recitar litanias fastidiosas: seu alvo é estarem atentos a tudo quando se passa no mundo e valerem-se da influência que os acontecimentos sociais podem ter sobre a religião, estudando o caráter das primeiras pessoas do Estado e captando-lhes a amizade.(ROBERTSON apud NISKIER, 2004, p. 18) Essa intrínseca relação da Ordem com as decisões do Concílio, e com a instituição católica romana será tematizada ainda pelo marxista Antonio Gramsci (1891- 1937), nos seus “Cadernos do Cárcere” (1929-1935), para quem o humanismo desempenhou um papel essencialmente conservador, sendo a educação jesuíta um dos maiores entraves à “modernização” italiana (GEMANO, 1992). Segundo o pensador italiano, o poderio da Igreja e a atuação dos jesuítas impediram a realização de uma “reforma intelectual e moral”, desempenhada pela Reforma Protestante nos outros países da Europa. Assim, a “Contra – Reforma exteriorizou este popular de forças populares: a Companhia de Jesus é a última grande ordem religiosa, de origem reacionária e autoritária, com caráter repressivo e ‘diplomático’ que assinalou (...) o endurecimento do organismo católico” (GRAMSCI, 1966, p.20). Além disso, a defesa da tradição oral teria impedido as camadas populares de terem acesso à alfabetização e à leitura, mantendo o abismo entre o mundo dos pobres e 111 os das elites. Como lembra Germano (19992, p. 135) “Na Itália, ao contrário de outros países , durante mais de 600 anos (600 a 1250 depois de Cristo), ‘pode-se dizer que (...0 o povo não compreendia os livros e não poderia participar do mundo da cultura”. Pois os livros estavam escritos no “Latim médio” dominado apenas pelos religiosos e humanistas, enquanto o povo utilizava o “latim vulgar”, como conseqüência: “escrito em latim médio, de modo que mesmo as discussões religiosas (escapavam ao povo) (...): da religião, o povo real vê os ritos e sente as prédicas exortativas, mas não pode acompanhar as discussões e os desenvolvimentos ideológicos que são monopólio de uma casta” (GRAMSCI, 1968: p. 26). No Brasil, um dos maiores críticos da ação dos jesuítas foi Gilberto Freyre (1900-1987). No clássico Casa Grande & Senzala (1933) ele faz uma comparação entre a educação jesuíta e a franciscana, demonstrando toda sua crítica à primeira. Para Freire, a educação franciscana era superior por dois motivos: facilitava a miscigenação (tese principal do seu livro) e se centralizava no ensino de ofícios práticos: O indígena do Brasil era precisamente o tipo de neófito ou catecúmeno que uma vez fisgado pelos brilhos da catequese não correspondia à ideologia jesuítica. Um entusiasta da Ordem Seráfica poderia sustentar a tese: o missionário ideal para um povo comunista nas tendências e rebelde ao ensino intelectual como o indígena da América teria sido o franciscano. Pelo menos o franciscano e teoria; inimigo do intelectualismo; inimigo do mercantilismo; lírico na sua simplicidade; amigo das artes manuais e das pequenas indústrias; e quase animista e totemista na sua relação com a natureza, com a vida animal e vegetal (FREYRE, 20005, p. 214-215). Voltando-nos para a retórica em si, é importante destacar o papel que essa passou a desempenhar depois do Concílio. Vivia-se o predomínio da voz e das imagens sobre a experiência e o raciocínio. O sermão, depois de Trento, voltava a ter sua importância litúrgica: não apenas por ser feito em “língua nativa”, mas por ser também, o grande espaço de educação, catequese e da análise política dos acontecimentos “sub specie fides”. Como lembra Hansen: O bom pregador deveria construir um ‘discurso engenhoso’: através de analogias retirar tabularmente ‘metáforas da Metáfora”. Eis no que consistia “a civilização da Palavra”: “A civilização pela palavra correspondia, no caso, à divulgação católica da Retórica antiga em duas frentes: de um lado, o ensino específico das técnicas e, ainda, das artes e das letras em geral segundo o modelo generalizado da Retórica aristotélica e das versões latinas, nos colégios jesuíticos; de outro o uso particular 112 de seus preceitos, estilos e erudição pelos pregadores nas variadíssimas circunstâncias do magistério da fé” (HANSEN, 2003: 31). No Renascimento, a forte tendência humanista fez com que toda essa teorização acerca do verbo saísse da clausura do universo escolástico para o embate com o homem público: [...] a característica fundamental do Renascimento é o seu sincretismo, a concepção de uma tradição interrompida, mas reencontrada, na religião, na filosofia e na própria concepção do mundo; a importância de tal premissa reside no fato de ter podido religar todo o passado humano, inclusive a cultura pagã greco- romana, com o fio das verdades postuladas pelo cristianismo. (OLIVEIRA, 2000, p.15) Ocorre, então, uma imensa “reciclagem” dos preceitos retóricos, a sua utilização nas praças, o retorno aos clássicos, tornou obrigatória a comunicação entre tantas tendências. Lia-se Quintiliano à luz de Aristóteles, pensava-se Platão através de Agostinho, e assim por diante: Na primeira da manhã recitava-se de cor um discurso de Cícero e o mestre explicava os preceitos da Retórica.Na segunda, ocupava-se a primeira meia hora em repetições, e na correção de qualquer composição escrita pelos alunos, enquanto outros desenvolviam um tema breve dado pelo mestre, ou corrigiam o que um escrevera previamente no quadro, alternando a prosa com o verso; durante a segunda meia hora explicava-se brevemente um passo poético, resumindo-se no fim tudo quanto fora dito.De tarde, comentava-se, durante a primeira meia hora, um discurso de Cícero, fazendo no fim ligeiras repetições, enquanto a segunda era consagrada ao estudo de autores gregos, como Demóstenes, Xenofonte, Homero, Pindaro, Sófocles e Tucídides. (CASTRO apud HANSEN, 2003. p.40-41). A arte oratória floresce, então, com uma espécie de “missão social”, a partir do desenvolvimento da pregação cristã, envolta nas curvas das vias públicas, e com o crescimento do Parlamento. Nesse processo em que a oratória se torna pública e pretende abarcar as almas, retoma-se um traço ciceroniano em que a figura do orador é enriquecida por grande prestígio, antes só atribuído aos teólogos e aos monges contemplativos. Esse fator, como já analisamos, foi ratificado pelo concílio de Trento, que concedeu ao pregador o status de “porta-voz divino”, o “imitador de Cristo”, “a rhetorica sacra, filha do Verbo divino e herdeira de sua eficácia, pôde se prevalecer, não apenas de uma memória greco-latina, mas de uma majestosa tradição oratória cristã, 113 de que a Igreja católica se prevalece com orgulho em face de uma Reforma que quer se ater apenas à Escritura sagrada” (OLIVEIRA, 2000, p. 16). Como destaca Hansen (2003, p. 25): “a escolha da via oral para transmitir a verdade canônica confirmada pelo Concilio de Trento resultou em uma extraordinária reativação da Retórica antiga” dessa forma “a conjunção, nos decretos tridentinos, de uma reforma do sacerdócio e do episcopado de um lado, e de uma reforma da eloqüência, de outro, teve como conseqüência dotar o ideal de Orador ciceroniano de uma autoridade, de uma substância e de um campo de ação sem medida comum com o prestígio que lhe havia sido conferido pelo humanismo ciceroniano anterior”. A ênfase jesuítica no ensino humanístico fazia ressonar, na formação cristã, o modelo de educação civil herdado das fontes romanas de Retórica, especialmente Cícero (particularmente as Petições oratórias e o De Oratore, incluindo, aqui, o autor de Ad Herenium), Quintiliano (Institutio oratoria), Aristóteles (Rhetorica)e Santo Agostinho (De Doctrina Christiana), além de compêndios como os do jesuíta Cipriano Soares (De Arte Rhetorica libri três ex Aristóteles, Cocerone et Quintiliano praecipue deprompti ab eodem Auctore recogniti, et multis in locis locupletati) de grande difusão no Brasil e no Oriente foi a Rhertorica Ecclesiastica do frei dominicano Luiz de Granada. (HANSEN, 2003). A adaptação desse modelo não chegava a contrariar as bases da educação cristã, mas redirecionava encaminhamentos dados ao problema no interior da Igreja. A base eram os ensinamentos de Santo Agostinho. No seu Livro IV de sua Da Doutrina Cristã, Agostinho apresenta sua visão a respeito da utilidade do ensino de Retórica aos professores cristãos. Nele, a arte da eloqüência é considerada importante para o professor e para o pregador desde que seja empregada com sabedoria. Ao seu entender, o modelo principal para este emprego está nas Escrituras, pois, as falas das autoridades bíblicas são inspiradas por Deus de modo a trazerem a verdade e a serem persuasivas para os homens. O objetivo da Retórica cristã para Santo Agostinho define-se conforme o cânone ciceroniano: “um homem eloqüente deve discursar para ensinar, para deleitar e para persuadir”, acrescentando que ensinar é a necessidade, deleitar é a beleza e persuadir é o triunfo dos discursos, que devem mover o auditório a fazer o que deve ser feito. Como vimos, a retórica jesuíta seguia os cânones das preceptivas retóricas latinas (Cícero e Quintiliano). Três eram os gêneros da oratória civil: o deliberativo, que trata de assuntos que implicam decisão (“persuasão ou dissuasão”) sobre o que fazer; o 114 demonstrativo, que tinha por finalidade agregar a comunidade em torno de valores comuns, e o judicial, que visava determinar o que era justo ou injusto, racional ou irracional, útil ou inútil em um contexto de “acusação e defesa” etc. No século XVI a retórica sacra consolidou sua renovação, iniciada desde início do século XIII a partir do surgimento das “ordens mendicantes”, como a de São Domingos. A retórica desse período é fruto do encontro de diversas correntes da pregação sacra: da Escolástica, a visão da homilia como tese; do renascimento, as referências aos autores gregos e latinos; do confronto, com os reformadores protestantes a recuperação da “homilia como sacramento” e finalmente, da Igreja Tridentina, a relação com a liturgia e com o pensamento alegórico (SEIBOLD, 2001). Havia na época de Vieira, dois estilos básicos de pregação: “O “ilhano”, inspirado em Sêneca, e o “grande” inspirado em Cícero. O Primeiro, apelava mais à inteligência, sendo preferido para públicos seletos. O segundo, muito mais popular, caracterizava-se pela incorporação de efeitos ‘especiais’ – caveira, sangue-, pelos gestos exacerbados, pela teatralidade e alternâncias na voz” (QUADROS In BRANDÃO, 2002, p. 379). Vieira, embora adepto do primeiro, definindo-se sempre como um “conceptista”, sabia usar plasticamente seu discurso e a beleza rítmica que era sempre acompanhada de uma lógica rigorosa, de profundas analogias sociais e de inúmeras citações bíblicas, de trechos hagiográficos e clássicos. Esse modelo de sermão praticado por Vieira e contemporâneos previa, ainda, a relação entre o tema e os ductus. O tema era dado de forma preestabelecida e impositiva pelo calendário litúrgico da Igreja, enquanto que os ductus consistia na relação que o pregador estabeleceria entre o tema especifico da pregação e o concilium, a intenção exterior do discurso. Como lembra Hansen (2003, p. 29) “oradores hábeis, como é o caso de vários jesuítas do tempo da Restauração, entre 1640 e 1688, conduziam os temas para o concilium¸ tratando de assuntos contemporâneos de interesse coletivo relacionados ao “bem comum”. Isso só era possível devido à compreensão sacramental e política da pregação tridentina e do uso hermenêutico da interpretação alegórica das Escrituras, tão combatidos pelos reformadores. Dessa forma: quando relacionavam “tema” e consilium, ocupando-se da guerra contra Espanha, da luta contra holandeses, da escravidão de índios e africanos, da missão profética de Portugal no mundo etc., dispunham do método da interpretação alegórica das Escrituras, que estabelece “concordância” ou relação profeticamente analógica entre dois homens ou dois eventos distanciados no tempo, como 115 Moisés e Cristo ou a fuga do Egito e a Ressurreição, também estabelecendo a concordância do tema das Escrituras especifico da data litúrgica e algum assunto circunstancial. (HANSEN, 2003. p. 28-29). O Concílio havia estabelecido, ainda, duas diretivas para a pregação: a pastoral e a extraordinária: [...] A primeira tinha característica didática e apologética, estando a cargo dos bispos e párocos no exercício de curas de almas. Dividia- se em dois subgêneros, o catequético e o homilético. A pregação extraordinária incluía vários subgêneros do sermão, como o encomiástico (panegírico e oração fúnebre), deprecatório, gratulatório e eucarístico. O estudo da Retórica por meio dos exercícios fazia com que o pregador desenvolvesse a habilidade de adaptar o discurso às várias audiências [...]. (HANSEN, 2003, p. 30) A pregação deveria, ainda, seguir o calendário litúrgico da Igreja. Havia a pregação nos “dias de preceito” (domingos e dias santos) e a pregação extraordinária no tempo do Advento, Natal, Quaresma, Pentecostes, Festas de Cristo e Marianas etc. O sermão era um evento social ao qual todos os fiéis estavam submetidos, “estes eram obrigados a assistir à pregação de âmbito paroquial. Em Coimbra, por exemplo, na última década do século XVI, as constituições do bispado (1591) determinavam que aos domingos, nos dias de Nossa Senhora e nas festas de guarda - quando era proibido ter tendas abertas ou vender coisas com elas fechadas, a não ser para doentes e necessitados - as padeiras, peixeiras, vendedeiras e taberneiros só estavam autorizadas a exercer suas atividades na praça depois de saírem da pregação da Sé” (HANSEN, 2003, p. 23). Tendo tomado posse das técnicas discursivas desenvolvidas ao longo dos séculos, a instituição religiosa também se apossou de uma série de aparatos e de mecanismos eficientes de poder. Sabiamente, passou a utilizar recursos que extrapolavam o campo verbal. Desse modo, nada era gratuito no momento dos sermões: a ornamentação, a platéia, ou mais que isso, a própria arquitetura das Igrejas traduzia o ambiente ideal para a ascese. A distribuição das luzes era feita da mesma forma como nos palcos de teatro, os contrastes entre a penumbra e o fluxo de luz que da cúpula se derramava sobre o altar eram um conjunto perfeito de atração para os visitantes. Inúmeros preparativos para levar a momentos de fé jubilosa, mover e convencer. 116 Assim, o púlpito se constituía em uma peça-chave na oratória cristã para onde convergiam todas as atenções; era o lugar central da enunciação. Os recursos teatrais eram admitidos pela Contra-Reforma; contudo, deveriam ser edificantes “como propaganda política de seus objetivos” (HANSEN, 1978:189). O púlpito tornou-se também uma cátedra, revestida de grande importância e a pregação , reprodução visível das relações de poder: “a oratória sacra foi um dos principais meios de exposição e debate de questões de interesse coletivo relacionadas às verdades canônicas da Igreja e do Império. Por isso, nela, o lugar social do orador era um lugar de poder, extremamente eloqüente e famoso, como aconteceu com Paravicino na corte espanhola do século XVI ou com Vieira e Bossuet, na corte portuguesa e francesa, no século XVII”. (HANSEN, 2003, p. 35). O orador não deveria misturar-se com a platéia, seu lugar era marcado pelo ato de falar e pela observação, enquanto os que assistem apenas notam e são observados. A locução é privativa do pregador: ele ocupa o púlpito devidamente montado para sua enunciação, é o ser dotado da proeminente missão de mensageiro divino; é aquele que escolhe os trechos do Evangelho que o determinado público necessita ouvir, e mais: é o gerenciador das devidas analogias, que permitirão tornar compreensíveis as decisões da Providência para a vida dos homens. Isso não significava que a questão relacional entre ele e a platéia fossem anuladas pelo desequilíbrio arquitetônico do poder, mas servia para demarcar o lugar e a posição de cada um no interior do discurso “todas essas características que envolvem o momento de enunciação do Sermão nos permitem perceber uma relação de dominação, em que aquele que controla o discurso exerce uma função privilegiada em relação aos outros e que esse discurso sempre está a serviço de um poder”. Como mostram os estudos de Michel Foucault (2000), com relação à função do verbo na sociedade ocidental. Ao conceito de “civilização da palavra” busca-se, exatamente, aprender a forma de manifestação de poder e subjetividade, encontrados na sociedade nesse momento. A apropriação contra-reformista da Retórica antiga realizada nos colégios jesuítas e nos púlpitos das cidades reiteravam a validade divina da ordem e o conceito de “pacto de sujeição” e “corpo místico”: O sermão pós - tridentino reiterava a natureza sagrada do pacto de sujeição e, ao fazê-lo, também reiterava como natural a desigualdade das várias posições hierárquicas encenadas na sua audição. A eloqüência era sagrada, assim, não só pelos temas da 117 traditio e das Escrituras com a data litúrgica, mas porque atualizava a memória da alienação coletiva do poder e da subordinação coletiva ao poder no ato mesmo em que a enunciação produzia o destinatário e a audição adequada, dessa maneira, a pregação era “fundante”, como ocasião em que se reencenava publicamente a doutrina do poder político como integração de indivíduos e estamentos em um todo subordinado ao “bem comum” do “corpo místico. (HANSEN, 2003, p. 36) A Igreja, consciente do poder do sermão, soube absorver e transformar as teorias que, antes, criticava. Utilizando os principais procedimentos da oratória pagã, reatualizando-os em um novo paradigma semântico: palavra – teologia - política, e finalmente, pela retórica - que esperava sua plena realização na história. E, como sabemos, a obra de Antonio Vieira compartilhava desses preceitos, e tornou-se seu modelo mais perfeito. Vimos que a figura do orador era amplificada pelo seu ocultamento na fala do divino. O pregador se distingue dos demais, exatamente, por seu caráter profético, acima do mundo e de suas instituições. Era ele quem manifestava a vontade da divindade à vista dos leigos e mortais. Hansen lembra que: [...] o ‘discurso engenhoso’ cifra-se em alegorias: estas consistem na exposição de significações abstratas, conceituais, através de figurações roubadas ao sensível, numa espécie de criptografia oferecida a um duplo percurso do olho: interior e figural, a alegoria materializa visualmente, falada e escrita, uma interioridade de autor; lida e ouvida, exige um esforço de tradução para que se descubra seu sentido secreto, encoberto pela exterioridade sensível (HANSEN, 1978, p. 175). Para que obtivesse efeito, segundo Álcir Pécora, o sermão deveria ser aplicado de forma conveniente, adequando às três regras básicas da retórica: a “invenção”, a “elocução” e a “disposição”. Sem a destreza na utilização desses recursos, a palavra não frutificaria, não converteria as almas. A importância pública da retórica fica comprovada na famosa “Controvérsia de Valladolid”. Como lembra Todorov (2003, p. 219): “O debate entre partidários da igualdade e da desigualdade dos índios e dos espanhóis atingirá seu apogeu, e encontrará ao mesmo tempo uma encarnação concreta, na célebre controvérsia de Valadollid que, em 1550, opõe o erudito e filósofo Giles de Sepúlveda ao padre dominicano e bispo de Chiapas, Bartolomé de Lãs Casas (...) Sepúlveda provoca um encontro diante de um grupo de doutos, juristas e teólogos; Las Casas se propõe a defender o ponto de vista oposto nesta oratória”. Foi um longo 118 debate, em que somente o discurso de Las Casas durou cinco dias, e nele se manifestou todas as possibilidades e limites da “Segunda Escolástica.”19 O defensor da tese da legitimidade da escravidão indígena chamava-se Juan Ginés de Sepúlveda (1490 – 1573) e era um “humanista”, filósofo, jurista e historiador muito conceituado na corte espanhola. Sepúlveda era um profundo conhecedor de Aristóteles, de quem havia traduzido a “política” (1548) e retirava as premissas sobre a inferioridade das raças e a legitimidade da conquista e colonização da América. Seu pensamento foi expresso no texto panegírico De rebus gestae Caroli Quinti, e no De rebus hispanorum gestis ad Novum Orbem, nas sua Historia de la guerra de los indios e, principalmente na sua De justis belli causis apud índios, onde justifica a violência contra os nativos em nome da conquista de uma sociedade culturalmente superior e cristã. Sepúlveda era partidário de um consuetudinarismo aristotélico e da “razão de Estado” de Maquiavel, ou seja, do “direito positivo”, e nesse sentido seu pensamento é bem mais “moderno” que o de Las Casas, que era um defensor da tradição jusnaturalista. Sepúlveda se funda abertamente na tradição aristotélica para justificar a legitimidade da guerra contra os índios e a conseqüente escravidão desses aos reis espanhóis. Ele acreditava que a hierarquia e, não a igualdade era o estado natural das sociedades humanas, não importando se essa era provocada pela raça ou pelo clima (TOOROV, 2003). Seguia Aristóteles que afirmava na política a célebre distinção entre nasceram senhores e os que nasceram escravos (Política, 1254 b). Além disso, Sepúlveda analisava a situação dos índios dentro de um esquema de progresso e civilização, onde a Espanha desempenhava a tarefa de ajudar os nativos a superar o “atraso cultural”, a idolatria e o canibalismo, e a se libertar da barbárie através da conversão ao cristianismo, mesmo que para isso fosse necessário exterminar grande parte deles. Dessa forma, evangelização era sinônimo de civilização e essa equivalia à aceitação do direito do dominador sobre os dominados. 19A expressão “Segunda Escolástica” é melhor entendida quando compreendemos a relação entre as divergências teológicas (conceito de pecado e graça) e a disputas políticas entre católicos e protestantes nos séculos XVI e XVII. Ao refutar as teses luteranas (e, posteriormente, anglicanas) o Concílio de Trento (1545-1563), definiu as bases para se estruturar a ação dos Estados católicos. O contexto político e ideológico desse debate trata do conflito básico, presente durante todo o período de construção do Estado moderno, entre lei civil e soberania política, entre direito das gentes e poder do Estado. A base epistemológica foi a filosofia aristotélica. Os dominicanos foram os primeiros, seguido pelos jesuítas, a defenderem a preponderância das leis civis sobre a vontade do soberano, particularmente através de autores como o padre Francisco Suárez e cardeal Roberto Bellarmino. 119 Contra ele ergueu-se o bispo dominicano Bartolomeu de Las Casas (1472-1566), para quem existia uma igualdade genérica entre todos os seres humanos independente de qualquer sistema político ou cultual. Os argumentos de Las Casas foram expostos nas suas Treinta proposiciones muy jurídicas. Frei Bartolomeu de las Casas, era órfão de mãe e filho de um comerciante modesto, participou da segunda viagem de Cristóvão Colombo. Como a maioria dos religiosos de sua época, foi motivado pela bsuca de aventuras e pelo desejo de conquistar riquezas e “evangelizar” os nativos. Ao chegar ao Haiti (1502), logo adaptou-se ao estilo de vida dos colonizadores. No início, aceitou a explicação convencional quanto à exploração da população indígena, chegando inclusive a ter escravos em suas propriedades. Também participou dos ataques contra as tribos, e os escravizava em suas plantações. Foi somente em 21 de Dezembro de 1511 que sua vida mudaria após ouvir o célebre “Sermão do Advento”, pregado pelo frei dominicano Antônio de Montesinos, no qual este defendia a dignidade dos índigenas e condenava todos os proprietários de escravos, chegando inclusive a negá-lhes a absolvição e a eucaristia. Como lembra Josafhat (1995, p.117), citando as memórias de Las Casas: No último domingo do Advento de 1511, depois de tudo bem preparado numa reunião comunitária, convocam especialmente a população, os notáveis e as autoridades à frente, a vir à sua pobre capela, escutar a palavra de Deus. Eles são bons cristãos. E vêm em grande número.O padre Bartolomeu está no meio deles.É dele que possuímos a mensagem pregada pelo dominicano Antonio de Motessinos, escolhido entre seus irmãos como o melhor pregador da equipe (...) “Eu sou a voz do Cristo que grita no deserto desta ilha: Vocês estão todos em pecado mortal, por causa das crueldades e tiranias que praticam contra essas populações inocentes. Digam-me: com que direito, em nome de que justiça, vocês mantêm os índios numa tão cruel e horrível servidão? Será que eles não são homens como vocês? (...) A reação imediata dos ouvintes, sobretudo das autoridades foi a indignação. Ela foi logo seguida do apelo aos superiores religiosos e civis. Os dominicanos ficam firmes. Não darão mais absolvição sacramental àqueles cujas confissões não forem seguidas de uma mudança em relação aos índios. Essa pregação teve profundo impacto em Las Casas, levando-o a uma progressiva “conversão” à causa indígena americana. A tese estava bem fundamentada em termos jurídicos (“Com que direito?”) e morais (“Eles não são homens como vocês?”). O padre Bartolomeu de las Casas torna-se um frade dominicano, cronista do 120 genocídio indígena (ele utiliza precisamente esse termo), bispo de Chiapas (México) e um teólogo extremanete original: Se a concepção hierárquica de Sepúlveda podia ser colocada sob o patronato de Aristóteles, a concepção igualitarista de Las Casas merece ser apresentada, o que aliás foi feito na época, como proveniente dos ensinamentos do Cristo. O próprio Las Casas dizem seu discurso de Valladolid: “Adeus, Aristóteles!O Cristo, que é a verdade eterna, deixou-nos este mandamento: ‘Amarás ao teu próximo como a ti mesmo’. (..) A hierarquia é irredutível nesse seguimento da tradição grego-romana, assim como a igualdade é um pricípio inabalável da tradição cristã; estas duas componentes da civilização ocidental, aqui extremanente simplificada, confrontam-se diretamente em Vallodolid”. (TODOROV, 2003, p. 234). Todorov percebe ainda que a radicalidade ético-religiosa de Las Casas fará com que ele acabe superando o imaginário do seu tempo, que insistia na bipolaridade: santo- diabo, bárbaro ou bom selvagem, que condicionará inclusive o pensamento iluminista sobre a alteridade. Todorov , em uma longa, mas importante citação, afirma que: É, pois, ao enfrentar o argumento mais incômodo que Las Casas se vê obrigado a modificar sua posição e ilustra assim uma nova variante do amor pelo outro; um amor não mais assimilacionista, mas, de certo modo, destributivo: cada um tem seus próprios valores; a comparação só pode ser feita no nível das substâncias: só há universais formais. Embora afirme a existência de um único deus, Las Casas não privilegia a priori a via cristã para chegar a ele. A igualdade já não é estabelecida à custa da identidade, não se trata de um valor absoluto: cada um tem o direito de se aproximar de deus pelo caminho que lhe convier. Não há mais um verdadeiro Deus ( o nosso), mas uma coexistência de universos possíveis: se alguém o considerar verdadeiro ... Las Casas, sub-repticiamente, deixa a teologia e passa a praticar uma espécie de antroplogia religiosa, o que, nesse contexto, é realmente subversivo, pois parece que quem assume um discurso sobre a religião dá um passo e direão ao abandono do próprio discurso religioso. (TODOROV, 2003, p. 276-277). A antroplogia teológica de Las Casas é a primeira manifestação moderna de uma relativização cristã do imaginário no Ocidente. É paradoxal que seja ele um bispo católico a fazer isso. Mas o discurso religioso, é essencialemnte paradoxal como afirmam os místicos. Assim, ao mesmo tempo que negava existência do “bárbaro em si”- pois “cada um é bárbaro para o outro”, na medida que não o compreenda - ele defendia uma nova universalizalação da ética cristã: 121 Ao afirmar a igualdade em detrimento da hierarquia, Las Casas reata um tema crsitão clássico, como indica a referência a São Paulo, citado também na Apologia, e esta outra , ao Evangelho segundo São Mateus: “Tudo o que quereis que os homens façam por vós, fazei-o pois por eles” (7,12). “É algo”, comentanta Las Casas, “que todo homem conhece, percebe e compreende graças à luz natural que foi repartida entre nossos espíritos”. Já tínhamos encontrado este tema do igualitarismo cristão, e tínhamos igualmente visto o quanto continua ambíguo. Todos, nessa época, arvoram o espírito do cristianismo (...) Mas na doutrina cristã que o último Las Casas descobre essa forma de superior do igualitarismo que é o perspectivismo, e que cada um é relacionado a seus próprios valores, em vez de ser referido a um ideal único (TODOROV, 2003, p. 278). Assim a primeira teologia era política. Tratava-se de uma disputa hegemônica no interior do sistema sobre os sentidos da própria modernidade. Disputa de poder e conhecimento, que colocava em jogo a própria identidade do sistema, construída no antagonismo entre “nós” (humanos, brancos, cristãos e civilizados) e “eles” (semi- humanos, índios e negros, bárbaros e selvagens). Nessa disputa retórica sobre o sentido do “selvagem”, que segundo Boaventura dos Santos (2006) se conceituou no Ocidente como “o lugar da inferioridade. A diferença incapaz de se constituir em alteridade”, Vieira, muito mais que Anchieta, se unirá a Bartolomeu de Las Casas contra a “retórica do império” de Juan Ginés de Sepúlveda. Dessa forma a difusão das escolas da Companhia de Jesus, por toda Europa e também pelas colônias, foi determinante para o desenvolvimento da eloqüência e essa para a configuração do imaginário social desse período. Vieira se formou professor de Retórica nessas escolas e, com certeza, os jesuítas foram aqueles que mais intensamente abraçaram essa comunhão entre teologia e verbo. No Brasil, ele seria esse “mensageiro divino” da Contra Reforma. 3.4. A semonística de Vieira: primeiras aproximações A obra de Vieira, com destaque para os seus Sermões, sobreviveu à sua morte e tornou-se um caso raro de perenidade e influência que lhe garante o status de um 122 “clássico”. Os seus textos oratórios (mais de 200 sermões) chegaram até nós, não na forma em que foram pronunciados, mas, quase todos, no formato em que o seu autor quis dar ao prepará-los para a impressão. Tarefa a que dedicou os últimos vinte anos da sua longa vida. O que fez desse pregador português, que não teve em vida o sucesso dos seus projetos, a fama e o prestígio não só em Portugal, mas também em diversos outros países da Europa? Em primeiro lugar destaque-se a profunda ligação entre o texto da maior parte dos sermões e as circunstâncias concretas, históricas, em que foram pregados. O sermão era para Vieira, não apenas uma forma de edificação moral e espiritual, mas também um instrumento de intervenção na vida política e social, uma arma que manejava com destreza em defesa das grandes causas a que se dedicou. Através dos seus sermões podemos acompanhar o desenrolar dos principais acontecimentos e problemas da sociedade portuguesa (e brasileira) do século XVII: a guerra com a Holanda em terras do Brasil, em textos como o “Sermão de Santo Antônio, havendo os holandeses levantado o sítio posto à Baía” (1638) ou o “Sermão pelo bom sucesso das nossas armas contra as da Holanda” (1640); a Restauração e a subseqüente guerra com a Espanha, no “Sermão dos Bons Anos” ou no “Sermão de Santo Antônio tendo-se reunido às cortes”, pregados em 1642; a preocupação com a situação econômica do país em guerra com a Espanha e as propostas para sanar essa situação no “Sermão de São Roque” de 1644. Além disso, destaca-se a dura e prolongada luta em defesa dos índios do Maranhão contra os colonos que pretendiam escravizá-los no chamado “Sermão das Tentações” (1653) ou no “Sermão da Epifania” (1662). Em um dos seus sermões - o “Sermão da Sexagésima”, o mais conhecido, aquele que o autor escolheu para abrir o primeiro volume dos que publicou - Vieira chega a elaborar uma espécie de “tratado de Retórica”, um sermão que pretende ensinar como se deve pregá-lo, simultaneamente persuasivo e eficaz, capaz de “convencer e converter” os ouvintes. Imaginemos uma de suas pregações: Brasil, cidade de São Salvador, palco das pregações de Vieira, local onde passou a maior parte de sua vida. Imaginemos um desses sermões: “A missa começa. No centro da nave, as mulheres assentadas com suas mucamas, nas laterais os homens bons de pé. Os negros ficavam de fora devido ao seu cheiro ‘desagradável’ (HOORNAERT, 1992: 293). O cheiro do incenso queimando 123 junta - se ao odor das velas que iluminam o templo. Ao fundo o coro entoa um salmo gregoriano, que ao se unir às miríades de anjos e santos emoldurados por toda parte, elevam os sentidos a um “êxtase” quase místico. Segue-se a liturgia da palavra e aproxima-se a hora mais importante: a leitura do Evangelho. Cristo vai falar por meio das palavras dos homens. A história revelará o seu sentido: “Quem tem ouvidos para ouvir ouça!” (Ap. 2,7a). Vieira se aproxima do púlpito. A ansiedade aumenta. O pregador veste uma simples batina preta, que o caracteriza como jesuíta. Ele sabe que deve permanecer em silêncio, de cabeça baixa enquanto a Santa Escritura estiver sendo lida. Então, repentinamente o silêncio é quebrado e uma voz branda do alto do púlpito: “Protegerei esta cidade e a salvarei por amor de Davi, meu servo” (2Rs 19:3). Por um momento parece que a Bahia é Jerusalém e Vieira, Natã, o profeta. Como ele também desempenharia o papel de “intérprete dos sentidos da história”, numa relação de aproximação e distanciamento da lógica do Estado. Como sabemos, a missa barroca, diferente do intelectualismo dos cultos protestantes, exaltava o emocional dos fiéis. Era o predomínio da voz e das imagens sobre o raciocínio. Vimos que o sermão, depois de Trento, voltava a ter sua importância litúrgica: não apenas por ser feito em “língua nativa”, mas por ser também, o grande espaço de educação, catequese e da análise política dos acontecimentos “sub specie fides”. Como lembra Hansen (199:19): O bom pregador deveria construir um ‘discurso engenhoso’: através de analogias retirar tabularmente ‘metáforas da Metáfora”. Eis no que consistia “a civilização da Palavra”: “A civilização pela palavra correspondia, no caso, à divulgação católica da Retórica antiga em duas frentes: de um lado, o ensino específico das técnicas e, ainda, das artes e das letras em geral segundo o modelo generalizado da Retórica aristotélica e das versões latinas, nos colégios jesuíticos; de outro o uso particular de seus preceitos, estilos e erudição pelos pregadores nas variadíssimas circunstâncias do magistério da fé” (HANSEN, 2003: 31). É certo que no domínio das técnicas retóricas Vieira não é propriamente um inovador: sabemos que utiliza fundamentalmente os processos que a escola ensinava, seguindo os tratados clássicos de Aristóteles, Cícero e Quintiliano. Tratados que haviam sido adaptados aos objetivos específicos da oratória cristã do século XVII. 124 Mas se as técnicas são comuns a quase todos os oradores da época, a forma de pô-las em prática, revela o gênio inconfundível de Vieira, o seu inigualável talento de arquitetar argumentos, explorar conceitos, trabalhar as palavras. Os sermões de Vieira encantam não apenas pela estrutura lógica como pela organização melódica e por sua densidade simbólica. Para fazer da sua palavra um meio eficaz de intervenção e atuação, Vieira recorre naturalmente às técnicas que a Retórica (a disciplina fundamental no curriculum escolar e na formação intelectual dos homens da época) sistematizara e codificara de acordo com as teses do catolicismo tridentino. Na lógica do projeto colonial português, os jesuítas desempenavam a função de “missionários oficiais do Reino”. Assim: “Nos séculos XVI e XVII, nas missões jesuítas do Brasil e do Maranhão e Grão Pará, a iniciativa de fazer da pregação oral o instrumento privilegiado de divulgação da Palavra divina pressupunha que a luz natural da Graça inata ilumina a mente dos gentios objeto da catequese, tornando-os predispostos à conversão”. (HANSEN, 2003, p. 21). É será exatamente, nessa discussão, em torno do caráter do “novo auditório” (gentios) que os pregadores jesuítas se confrontaram com os interesses do sistema colonial. Basta citarmos o “Sermão das Tentações” (1ª Dominga da Quaresma de 1653) onde Vieira verbera contra os colonos do Maranhão por escravizarem os índios. Depois de ter citado um versículo de Isaías que traduz assim: “Brada, pregador, e não cesses; levanta a tua voz como trombeta, desengana o meu povo, anuncia-lhe os seus pecados e dize-lhe o estado em que estão”, afirma: “Cristãos, Deus me manda desenganar-vos, e eu vos desengano da parte de Deus. Todos estais em pecado mortal; todos viveis e morreis em estado de condenação, e todos vos ides diretos ao inferno. Já lá estão muitos, e vós também estareis cedo com eles, se não mudardes de vida.” Finalmente, sobre a vergonhosa exploração de que os índios eram vítimas exprime-a nesta exclamação, de impressionante plasticidade: “Ah fazendas do Maranhão, que se esses mantos e essas capas se torceram, haviam de lançar sangue!” O sermão era, para Vieira, a categoria de mediação entre a ação humana no mundo e os desígnios divinos na história. Essa estreita correspondência entre exegese bíblica e narrativa histórica estruturará sua obra e seu projeto educativo. Neste contexto caberia ao intelectual - pregador realizar a atualização do texto sagrado à urgência dos acontecimentos humanos. 125 Para ele sagrado e profano, tempo e história, Deus e o Homem, encontram-se claramente interligados. Não há exclusividade da ação divina ou plena autonomia humana. Nesta perspectiva, o tempo é o melhor intérprete das Escrituras. A hermenêutica de Vieira busca extrair da “retórica das coisas” os “sinais do Ser no mundo”. Os acontecimentos são mais que símbolos da presença de Deus: são os lugares específicos de sua manifestação na história. E, os homens, como “seres em ação” indicam, com seus atos, a realidade divina. Assim, a “ação” torna-se “medida de mediação” entre Deus e o homem. A oratória de Vieira busca conscientizar a fidalguia e o clero português do “kairós”, do seu papel na história. Com seus sermões Vieira buscava “convencer”, “ensinar” e “mover” o seu auditório (D. João IV, os nobres, os teólogos, os letrados de Coimbra e o Santo Ofício) da realidade inexorável dos novos tempos. No entanto, se a “máquina mercante” era irreversível, importava compreendê-la e dominá-la, criando uma estrutura lusa semelhante, em muito, à existente na Holanda e na Inglaterra. Porém, Vieira jamais confundiu o Reino que estava por vir com a simples vitória portuguesa. Dessa forma texto, acontecimento e sermão são elementos construtivos de um projeto de cristandade capaz de unificar, mesmo que de forma tensa e incompleta, a “ética de princípio” (a virtus cristã) e a “ética da responsabilidade” (a razão de Estado), “o amor de Cristo” e a “vontade de César”. Se o discurso de Sepúlveda se fundava em Aristóteles (“escravidão natural”) para legitimar moralmente, por meio dos “benefícios” da conversão ao cristianismo, a escravidão, a violência e a destruição indígena. A proposta de Las Casas apontava para uma direção essencialmente contrária. Para o frade e teólogo dominicano, a única relação legítima entre os povos, a única religião verdadeira, é aquela fundamentada no diálogo construtivo e no reconhecimento do “outro” como plenamente humano. Além disso, a escravidão, ainda que aceita por diversas culturas, era incompatível com o “Direito natural” e a “vontade divina”. Tanto Las Casas quanto Vieira acabaram percebendo que a Europa não estava disposta a ceder à força dos argumentos, pelo contrário: a tese da inferioridade dos índios e negros era na verdade um artifício para encobrir a brutal exploração que lhes era infringida. No Sermão da Epifania, pregado na Capela Real em 1662, Vieira chega a traçar uma fina ironia entre a violência dos colonos e o que lhes era tido como a maior das barbáries indígenas: a antropofagia: “Dizem que se não podem sustentar, nem o Estado se pode conservar doutro modo sem a escravidão dos índios. Vede que razão 126 para se ouvir com ouvidos católicos e para se articular e apresentar diante de um tribunal ou rei cristão! Não podemos sustentar doutra sorte, senão com a carne e sangue dos miseráveis índios! Então eles são os que comem gente? Nós, nós somos os que imos comer a deles!”. Nesse mesmo sermão Vieira defende a igualdade inicial de todos os povos: “que os homens de qualquer cor, todos são iguais por natureza, e mais iguais ainda por fé”. E se não haveria justificativa bíblica ou natural para as desigualdades étnicas, muito menos para as sociais e econômicas: “E entre cristão e cristão não há diferença de nobreza, nem diferença de cor. Não há diferença de nobreza porque todos são filhos de Deus; nem há diferença de cor porque todos são brancos por meio do batismo”. Embora, quanto aos negros Vieira não tenha mantido a mesma coerência que teve na defesa dos índios e judeus, e de se notar a força e a beleza da analogia feita por ele entre as abelhas e os negros no “Sermão do Rosário dos Pretos” pregado em um engenho em 1633: Eles mandam e vós servis; eles dormem e vós velais; eles descansam e vós trabalhais; eles gozam o fruto de vossos trabalhos, e o que vós colheis deles é um trabalho sobre o outro. Não há trabalhos mais doces que o das vossas oficinas; mas toda essa doçura para quem é? Sois como abelhas, de quem disse o poeta. Sic von non vobis mellificatis apes. O mesmo passa nas vossas colméias. As abelhas fabricam o mel, sim; mas não para si. No entanto, como nos lembra Santos (2006: p. 187 e p. 188): “(...) Pese embora o brilho de Las Casas, foi o paradigma de Sepúlveda que prevaleceu, porque só esse será compatível com as necessidades do novo sistema mundial capitalista e colonial centrado na Europa” e ainda: “Com matrizes várias, é o paradigma de Sepúlveda que ainda hoje prevalece na posição ocidental sobre os povos ameríndios e os povos africanos (...)”. Repensar a história do Ocidente e a descobrir “o rosto do Outro” que como afirma Lévinas: “nos desafia sempre”. Nesse sentido Las Casas e Vieira, cada um a seu modo, nos provam que “outro caminho era possível”. Parece ser essa descoberta imprescindível nesses tempos em que se busca construir uma razão “pós-colonial”. Pois, se por um lado a “retórica do império” tem sido o paradigma hegemônico, nada obriga a acreditar que precisa ser assim eternamente. A sermonística utópica de Vieira nos convida a ver que não existe uma única possibilidade de nos relacionarmos com mundo e tempo. 127 E ele, como herdeiro da tradição profética judáica e do messianismo cristão (presente na Espera ativa pelo V Império) acreditava que a história estava grávida de utopias, cabendo aos intelectuais a “leitura desses sinais” e a ação para que eles se realizassem. Pois que “A verdadeira fidalguia é a ação”. Antonio Vieira era um altruísta, como um “bodhisatva cristão,” preferia escolher viver nesse mundo intensamente, servindo ao próximo, mesmo que com a incerteza de que se salvaria, que fugir para um céu tranqüilo ou aceitar a doce resignação. Como ele mesmo afirmava aos seus noviços: Imos àquela portaria, vêmo-nos cercados de muitos que andam pedindo e se lhes perguntamos por que pedem à Companhia, respondem: Padre, porque me quero salvar e ir ao céu. Se para isso pedis: Nescitis quid petatis. Se só quereis salvar a vossa alma e ir ao céu, ide a outras religiões muito santas, mas não à Companhia. O espírito da Companhia não é só salvar a alma própria, senão as alheias; não é só ser bem aventurado, mas fazer-se bem- aventurados; não é só ir ao céu, mas levar e meter no céu todos os que, por falta de fé ou graça. Andam juntos dele. Este é o altíssimo fim que há de pôr diante dos olhos todo o noviço da Companhia. (VIEIRA apud NISKIER, 2003, 19). Portanto, à parte suas contradições e limites, eis o maior legado de Vieira: o tempo válido para Vieira era é oportuno e o tempo válido é o “agora”. 128 DIGRESSÃO: terceira parte O CÉU STRELLA o azul e tem grandeza. Este, que teve fama e à glória tem, Imperador da língua portuguesa, Foi-nos um céu também. (Fernando Pessoa, Antonio Vieira) 129 3. DIGRESSÃO: o púlpito como cátedra 3.1. Vieira e o “xadrez de palavras” Este trabalho é dedicado à interpretação de textos. Hoje em dia, dispomos de várias técnicas para esse fim: análise de conteúdo, análise estrutural, análise retórica; cada um com suas virtudes e com suas fraquezas. É possível classificá-los em três tipos: perspectiva orientada para o autor; perspectiva orientada para o leitor e perspectiva orientada para o texto. A perspectiva orientada para o texto liga-se ao New Criticism, ao estruturalismo e à nova hermenêutica de Paul Ricouer. Há, nesse caso, um redirecionamento do autor para o texto. A ênfase deixa de ser a autoria para a compreensão do próprio texto ou do contexto em que ele foi produzido. Busca-se descobrir as “estruturas profundas” responsáveis pela criação de sentido em todos os textos (Lèvi-Straus) ou na relação deste com a cultura e a história (Ricouer). Nesse caso defende-se uma “autonomia relativa” da obra do autor e do contexto. Não se reduz toda a significação dos textos ao seu sentido social, mas por outro lado, reconhece-se o condicionamento histórico e cultural de toda obra artística, filosófica ou científica. O significado de um texto é inteligível devido a sua distância histórica e cultural; por meio da escrita, o texto revela ao intérprete um mundo possível (o mundo do texto); o intérprete pode entrar nesse mundo e apropriar-se das possibilidades que ele lhe oferece; quando isso ocorre, o significado do texto é atualizado no entendimento do intérprete. Aquilo que é entendido ou apropriado não é o significado pretendido pelo autor ou o seu contexto histórico ou dos leitores originais, mas o texto em si. A tarefa do intérprete consiste em descobrir os “resultados do autor” no texto e não sua “intenção”. É possível alcançar uma interpretação válida do texto, embora não definitiva ou idêntica à original. Nossa leitura busca estabelecer um diálogo com as idéias, com o mundo de Vieira, através dos seus sermões. Como todo diálogo pressupõe o mínimo de confiança e algumas perguntas básicas que facilitem a compreensão. São elas: Quem fala?Para quem? Quando falou? Com que objetivo?Por que e Como? A primeira das perguntas quem, é uma das mais complexas. Busca - se um equilíbrio entre as análises estruturais que simplesmente determinam a “morte do sujeito” e as análises idealistas e românticas que atribuem a ele toda importância e 130 responsabilidade. Ao considerar como úteis informações sobre a vida do autor, sua doutrina e posição que tinha na sociedade não se nega à autonomia semântica do próprio texto. A ênfase está no “quando”, na reconstrução do contexto presente no discurso, à distância do tempo e da cultura e a busca pelos pontos de contato entre “nosso mundo” e o “mundo do texto”, entre o Eu que interpreta e o Outro que se manifesta no texto. Para isso é preciso identificar com quem o texto está dialogando, suas polifonias ocultas. No caso específico dos sermões de Vieira trata-se de descobrir contra quem ele estava lutando e quem ele desejava persuadir. A quem ele está falando?Qual o seu auditório? Isso nos introduz na última das perguntas: a de como o orador-autor organizou o seu texto para atingir seus fins, adequando-se ao auditório, pois a regra de ouro da retórica consiste em levar em consideração os diferentes auditórios, que se diferenciam de diversas maneiras (reis, nobres, judeus, povo, escravos). Ao tratar do discurso de Vieira, lembramos as contribuições de Benveniste, para quem o discurso é o produto de um ato de enunciação. Ou seja, é a manifestação da língua na comunicação efetiva entre os membros de uma comunidade. É esse ato de enunciação que permite a apropriação individual da língua pelo sujeito falante e a sua conversão em discurso. Esse emana, então, de um locutor (emissor), dirige-se a um alocutário (receptor), faz referência ao mundo e comporta marcas mais ou menos explícitas da situação em que emerge. Assim, o texto mantém-se aberto ao contexto em que é proferido e lido. Isso permiti-nos re- situar o sujeito narrativo do discurso na cultura e na história. Ou seja, os locutores não são tomados como simples pólos do circuito comunicativo, mas agentes situados num tempo histórico e num espaço sociocultural bem definido que condicionam o seu comportamento lingüístico (Sitz in Leben). Dessa forma, o “falante” ou “locutor”, ocupa certo “lugar” numa conjuntura específica de onde emergem determinados “filtros” que, simultaneamente possibilitam e condicionam sua atividade discursiva, sua leitura da realidade. Portanto não há um sentido para as palavras “em si mesmo”, nem uma única possibilidade de se representar a realidade, embora haja limites para tal representação. Nesse caso, o discurso não apenas descreve como produz a realidade. Para além da discussão sobre verdade dos discursos há o sentido político e prático dos enunciados, que criam efeitos de verdade ou de falsidade, que parecem verdadeiros ou falsos dependendo de como tais são interpretados. 131 É preciso ter em mente que a sociedade ibérica “barroca” era uma sociedade oral, ligada à teatralidade, ao espetáculo. Diferente dos livros, que tinham circulação limitada e restrita, os sermões atingiam o povo nas mais variadas citações e lugares. Trata-se, assim, de analisar como essa “retórica persuasiva” (Bakhtin) de Vieira interagiu com o tempo e a cultura e que significado poderá ter para nós hoje. Sua vida confunde-se com o século XVII. Como todo grande personagem, misturam-se fatos e mitos. Conta-se que quando foram remover seu cadáver, percebeu-se que seu crânio estava intacto e que sua fronte “cintilava como ouro”. Era o reconhecimento póstumo ao brilhantismo de sua mente. Para melhor compreendermos os seus escritos faz-se necessário uma especial atenção ao contexto em que sua obra é produzida, pois se negligenciarmos tal aspecto teremos um entendimento fragmentário dela. É necessário, ainda, conhecermos um pouco sobre seu perfil biográfico. Isso poderá servir como “fio de Ariadne” em nosso passeio pela sua obra. Assim como acontece com todos os grandes personagens, tais como Sócrates e Jesus, a figura histórica de Vieira foi bastante controvertida: de um lado foi considerado por alguns um jesuíta modelo, enquanto para outros, foi um ambicioso e vaidoso; para alguns um defensor dos excluídos; para outros, símbolo maior da dominação colonial; alguns priorizam sua personalidade política, outros sua mística (HOARNET, 1982). Visto que não é possível saber quem foi “objetivamente” Vieira, decidimos escolher três visões atuais sobre ele: a de Alfredo Bosi, Alcir Pécora e Luiz Pacin. O trabalho de Bosi, A dialética da colonização (1993) é um marco na interpretação do jesuíta e dos estudos coloniais. A tese principal do autor é o caráter “barroco” da obra vieirense. Para Bosi, Vieira viveria em um momento de transição histórica, onde suas concepções escolásticas estariam em conflito com o mundo moderno, o que causaria as contradições de seu discurso, em especial com relação aos direitos dos nativos. Neste trabalho, o autor apresenta como principal dificuldade da atuação de Vieira á tentativa de ajustar características feudais presentes na sociedade portuguesa com os valores mercantis emergentes. A obra de Vieira seria “barroca” por tentar, não a eliminação das categorias medievais como “honra”, “nobreza” e “fidalguia”, mas sim por reinterpretá-las e reordená-las dentro de uma realidade que estava ainda em construção: o processo de constituição dos Estados nacionais centralizados e da expansão econômica européia sob a égide do mercantilismo dos séculos XVI e XVII. 132 Alfredo Bosi apresenta, assim, o Padre Antonio Vieira como um homem de seu tempo, identificando em sua obra as dificuldades de se entender um período de profundas transformações como o foi o século XVII. Vieira busca unificar esse diagnóstico do emergente capital comercial com o desejo de garantir o sucesso do catolicismo em Portugal. Não há, nele, nenhuma intenção em propor uma mudança que levasse a passagem de poder da nobreza para a burguesia, antes seu intento é de educar a nobreza lusitana para os novos tempos. Ao analisar o Sermão de Santo Antônio, pregado na Igreja das Chagas de Lisboa em 1642, onde Vieira critica a injustiça do sistema de impostos português que onerava o “povo” e protegia as “elites”, Bosi lembra que Vieira teria ido “até os limites da consciência possível” do tempo e que ao final: “O universalismo, necessário ao ônus da prova, deixa aqui raízes em duas realidades historicamente díspares: o sistema nacional – mercantil, de um lado; e as propostas de fraternidade contidas no Evangelho, de outro” (BOSI, 1992, p. 128). O fundamento político da obra de Vieira seria segundo Alfredo Bosi, as contradições existentes entre o discurso universalista, onde se objetivava a consolidação de Portugal como reino cristão, e o particularismo das ações necessárias para se alcançar tal objetivo. Os interesses coloniais seriam parte de um projeto maior em que muitas vezes havia a necessidade de se fazer concessões para garantir seu sucesso. Como conseqüência “a condição colonial ergueria, mais uma vez, uma barreira contra a universalização do humano” (BOSSI, 1992, p. 148). Uma perspectiva diferente é elaborada por Alcir Pécora no Teatro do Sacramento, (1994). Segundo ele, Vieira, em seus escritos variados, desde sua imensa produção epistolar até seus escritos “eminentemente proféticos”, passando pelos seus mais de duzentos sermões publicados, traçou um projeto político-teológico para o Portugal da Restauração e para o mundo católico. Isso, como observado por Pécora, perpassa seu texto criando uma “unidade teológico-político-retórica” na obra do loiolano. O objetivo do projeto vieirense estaria expresso na realização do Quinto Império. A idéia do Quinto Império liga-se ao messianismo judáico, fenômeno de longa duração, surgido depois do Exílio e que se caracteriza pela espera, geralmente num contexto de movimentos políticos religiosos, de uma mudança radical e definitiva da história. O messianismo surge em momentos de crise e incerteza e faz da leitura de determinados textos bíblicos simbólicos, a literatura apocalíptica, a base de suas 133 interpretações. Messianismo deriva do termo hebraico Mâshîah (חישמ) onde se originou Messias, ungido (Cristo) em grego, como designação para um personagem, geralmente um rei histórico o papel de dirigente do processo. (LACOSTE, 2004). O messianismo é um fenômeno comum a judeus e cristãos, embora a interpretação se dê de modo diferenciado nas duas religiões. A crença num reino de “mil anos” ou num paraíso terrestre é encontrada no início da Igreja Cristã (livro do Apocalipse; textos dos Pais gregos e latinos). Foi Agostinho o responsável pela negação teológica do messianismo, o que não impediu que essas idéias permanecessem vivas em figuras como Joaquim de Fiori, John Wyclife, John Huss e Thomas Munzer (MARTIN, 2003). A “esperança messiânica” nunca desapareceu no Ocidente, sua manifestação, no entanto, se deu de diferentes modos, de acordo com os interesses e expectativas vigentes, estando geralmente à margem da igreja oficial, que condenava tais crenças. Em Portugal esta tradição associou-se à crença na volta de D.Sebastião, o “encoberto”. O grande mérito de Vieira foi ter reinterpretado esse mito. Nos séculos XVI e XVII as esperanças escatológicas intensificam-se, tendo na descoberta do novo mundo o sinal da última etapa do homem na terra. A fundação da Companhia de Jesus e a descoberta da América foram interpretadas como sinais da iminência do fim do mundo. Em Portugal, por forte influência dos cristãos novos e franciscanos joaquinistas consolidou-se a idéia do advento de um Quinto Império Universal. Nesse caso unia-se particularismo e universalismo, política e religião, pois o rei messiânico português haveria de fazer da terra “um só rebanho e um só pastor”, unificando judeus e católicos, colonizados e colonos (DELUMEAU, 2004). Vieira verá na interpretação bíblica das profecias de Daniel e nos textos do sapateiro Bandarra a confirmação desses sinais, que indicavam a aproximação dessas profecias. A figura do sapateiro Gonçalo Eanes Bandarra, nascido na pequena cidade de Trancoso é referência fundamental para Vieira. Não se sabe muito sobre ele, além do fato de ter sido condenado pela Inquisição de Lisboa em 1541 e de ter desempenhado as funções de “rabi” entre os recém - conversos ao catolicismo (HERMAN, 2005). Figura humilde de pouca leitura, mais muita “memória” e inteligência ganhou fama através da publicação de suas Trovas, que viriam a se tornar as “profecias canônicas” do messianismo lusitano. Bandarra elaborara um discurso onde se afirmava que todos os povos caminhariam em direção a uma única fé, liderado por um rei português. Os grandes difusores dessas profecias foram exatamente os jesuítas que, utilizaram-se 134 destas trovas para exaltar o ânimo popular contra a Espanha (Castela), de modo que as mesmas já se encontravam em circulação na Bahia desde 1591 (HERMAN, 2005). Vieira compreendia toda sua obra, os sermões, a História do Futuro e a Clavis profhetarum como atualizações das trovas de Bandarra. Como é possível ler na Carta Esperança de Portugal, Quinto Império do Mundo, dirigida ao Santo Ofício. Algumas proposições eram censuradas pelos avaliadores romanos, dentre as quais se destacavam a que afirma a futura existência do Quinto Império; a de que este se segueria ao Império Romano; a que atribui espírito profético ao Badarra; a que interpreta as Trovas como profecia; a que afirma a ressurreição de dom João IV; a que toma como critério para a crença nas profecias a verificação dos sucessos vaticinados na doutrina; a que confere ao imperador do Quinto Império a graça da conversão universal dos judeus, gentios e hereses; e finalmente, a que promete a incorporação na Igreja das doze tribos desaparecidas. Em busca desse projeto, Vieira faz uma exegese do tempo buscando extrair dos acontecimentos conjunturais o sentido final da história presente nas Escrituras, daí a sua famosa máxima “o tempo é o melhor comentador das profecias”. Vieira supunha ainda um caráter universal do messianismo que possibilitaria a realização do Quinto Império. Segundo OLIVEIRA, os hebreus acreditavam no messias antes da vinda de Cristo, de modo que Ele era “desejado” e “esperado” por todos os povos que compartilhavam a mesma crença e o esperavam para ser o rei universal de todas as nações do mundo. A viagem dos Reis Magos, segundo Vieira, mostra o grau da expansão da crença na vinda do messias, espalhada por todas as regiões, inclusive as mais longínquas. Esse universalismo, no entanto funciona somente dentro dos quadros teológicos da segunda escolástica, ou seja, tratava-se de dissolver todas as diferenças no cristianismo, por meio da assimilação de todos os povos e culturas: “judeus e gentios hão de, universalmente, unir-se na fé de Cristo, numa conversão que implicará a extinção do judaísmo, do maometanismo, das religiões gentílicas e das diversas heresias” (HERMANN, 2005, p. 1115). A utopia de Vieira não se afasta das possibilidades políticas do momento. Dessa forma a afirmação profética do Quinto Império é parte essencial da argumentação de Vieira destinada a convencer os judeus de que deveriam retornar a Portugal e aqui empregar o seu capital, pois apenas a este Estado estava destinado um papel compatível com o futuro previsto por sua crença. Vieira procura conciliar a vinda do Messias e a conseqüente reunião dos judeus dispersos com o aparecimento do Príncipe Encoberto 135 português, fundador deste novo Império, espiritual e também temporal, que possibilitaria a recondução da “gente de nação” às suas terras. Ao destacar o imaginário dominante no período, que no campo das idéias católicas consolidava-se na “Segunda escolástica”, Pécora busca entender o sentido das ações de Vieira, partindo dele próprio. Ao destacar a atuação do Padre Antonio Vieira como missionário, entende os interesses espirituais da evangelização associados aos temporais, ou seja, à expansão do reino português. A construção da Segunda Escolástica deve ser entendida no contexto político e cultural dos séculos XVI e XVII, qual seja o de expansão européia e o de luta contra as teses reformistas. Assim, o núcleo do movimento é a preocupação com o Estado e a chamada “lei natural”, ou jus natural, tomista, negado tanto por Maquiavel quanto pelos protestantes. Teólogos como Molina (1536-1617) e Suarez (1548-1617) irão defender simultaneamente a existência de direitos para todos os seres humanos, como o da liberdade e da auto-organização política, derivados não de uma lei escrita, mas da revelação divina presente na natureza e na ciência humana. Princípios como o de fazer o bem, evitar o mal, e não fazer aos outros o que não se quer que a si se faça, seriam universais. Desses princípios seriam derivados outros, de segunda ordem, do tipo não matar, não roubar, e ainda os de terceira ordem, como os que especificam em que circunstâncias a guerra, por exemplo, é justa. Ao desenvolverem este tipo de raciocínio, esses novos escolásticos estão também respondendo à Reforma, insistindo que, no homem, preserva-se uma “graça interior” que o habilita a alcançar a justiça, exercendo sua liberdade ao mesmo tempo em que obedece à lei divina. Ao fazê-lo, acabam por reelaborar a concepção tomista de justiça, atribuindo um significado bem mais decisivo à razão, em sua concepção de lei natural. No entanto, é necessário lembrar que não havia, nesse momento, a compressão de “indivíduo” e nem de “igualdade de todos perante a lei”. A idéia de direito estava sempre associada ao coletivo e a hierarquia. Por isso a metáfora do “Corpo Místico”, do qual o soberano é a cabeça e os membros o povo é tão citada nesse período. É nesse contexto de um “universalismo limitado” que deve ser lido o projeto do Quinto Império em Vieira. É isso que explica o fato de ele ser, simultaneamente contrário à servidão indígena e defender a “guerra justa”. Como jesuíta ele considerava igualmente legítimo, visto que fundado na lei natural, tanto a defesa do direito à livre organização política dos índios, a manutenção da posse dos seus bens, como o direito 136 missionário, que implicava em última estância, na sua conversão ao “Corpo místico” católico, na condição de membro e súdito do Rei. Isso não impede que ele, baseado na segunda escolástica, critique aqueles que buscam legitimar a escravidão indígena por meio da condenação de seus costumes vistos como bárbaros ou selvagens, como o canibalismo e a poligamia. Para ele, esses defeitos eram muito mais causados pela falta de cultura que por algum tipo de defeito natural, ontológico do indígena. Vieira cita, ainda, Manoel da Nóbrega, no seu Diálogo sobre a conversão do gentio para afirmar que também em Portugal, e em especial entre os mais cultos, há sinais de barbárie: “(...) entre o vil costume dos índios e a vã soberba dos filósofos, maior é o pecado destes, já que ‘não guardam a lei natural posto que a entendem’. Mau costume e ‘ignorância invencível’ são, pois, atenuantes importantes que impedem a caracterização monstruosa ou desumana”. (PÉCORA, 2005. p. 89). Alcir Pécora entende assim que, para Vieira, havia a necessidade de inserção do índio brasileiro no corpo místico da igreja, afirmando que a finalidade dos descobrimentos seria a conversão e a conseqüentemente expansão e solidificação da coroa portuguesa. O índio seria súdito do rei de Portugal, o que impossibilitaria sua escravidão. A liberdade indígena estaria, assim, vinculada à sua inserção na igreja e no reino. O fato de Vieira ser um dos idealizadores do Quinto Império justificaria o seu “pragmatismo”. Por meio do conceito de “sacramento” céus e terra, humano e divino trabalhariam juntos (e não em oposição como imaginava o pensamento protestante e seu sucessor iluminista): do esforço missionário jesuíta, do trabalho de catequese e educação na colônia, surgiria a instituição do Império Universal Cristão, em que não haveria “índios” ou “colonos”, “brancos” ou “negros”, “judeus” ou “católicos”. Pécora rompe com a tendência a ver Vieira como um “esquizofrênico”, “contraditório, impossível de amar-se!”. Ele chega a afirmar que Vieira, a seu ver, participava integralmente da “inventio” seiscentista que não concebia meio de falar a Deus, ou de Deus, sem experimentar ou aprender o litoral variado do mundo, tão desfigurado pelos pecados da “ocasião” quando impregnado de graça permanente de seu Criador. Para Pécora, nesse sentido não havia escrito do jesuíta que não fosse radicalmente “político” e não sê-lo, para ele, equivaleria a renunciar à prática da “caridade” cristã, isto é, deixar de intervir nas formas da vida social do homem a fim de prepará-lo para tornar-se, pela boa escolha de seu “livre-arbítrio”, co-autor da Providência. 137 Não haveria também, como acontece no início do século XXI com a “igreja progressista”, nenhum antagonismo entre seu messianismo, a Igreja e o Estado português. Se há conflitos, em Vieira, não é diretamente em relação aos índios, mas ao projeto global que se insere: o do avanço decisivo do corpo do exército dos novos conversos, sob o comando da cabeça cristianíssima do Rei de Portugal, formado no espírito da “igreja militante”. Para Vieira, a história não é feita apenas pelas decisões humanas: há que se reservar espaço para a “providência divina”, que segundo ele havia escolhido o reino de Portugal como seu instrumento privilegiado. Caberia a ele, com seus sermões e cartas, convencer, educar e mobilizar a nobreza e o povo para isso. Alcir Pécora entende assim que, para Vieira, havia a necessidade de inserção do índio brasileiro no corpo místico da igreja, afirmando que a finalidade dos descobrimentos seria a conversão e a conseqüentemente expansão e solidificação da coroa portuguesa. O índio seria súdito do rei de Portugal, o que impossibilitaria sua escravidão. A liberdade indígena estaria assim vinculada à sua inserção na igreja e no reino. O objetivo final de Vieira seria a criação de uma Igreja radicalmente universal (visto que absolveria índios, negros e judeus) sob a direção, temporária, da coroa portuguesa. É desse objetivo que surge o seu “pragmatismo” de sua ética. Percebendo as implicações “ideológicas” desse discurso, Eduardo Hoornaert analisa a obra de Vieira a partir de uma perspectiva teológica, onde o messianismo português ocuparia lugar central. Realmente, o caráter divino da monarquia lusa é exaltado em termos categóricos por Vieira: “Todos os reis são de Deus, mas os outros reis são de Deus feito pelos homens; o rei de Portugal é de Deus e feito por Deus é por isso mais propriamente seu”. Ao comentar essa frase Hoornaert lembra que “Esta teoria do vicariato do rei português, extrema interpretação do padroado, foi defendida por Antônio Vieira até o fim de sua vida, e revestida de contornos dogmáticos, bíblicos e patrísticos [...] para Vieira, o rei não era somente o vigário de Cristo na América, mas também superior imediato dos bispos, e dirigia, em última instância, toda atividade missionária” (HOORNAET,1981, p.65-66). Ao entender a história de Portugal como sagrada, Vieira idealiza um fluxo histórico que culminaria na formação de um Império Universal Cristão, sendo que, desta forma, “a separação entre igreja e estado não teria sentido, pois poderia enfraquecer a obra missionária (1981, p.65)”. O jesuíta teria uma perspectiva sagrada da história de Portugal, fruto da “escolha divina”, do reino e da instituição do padroado, onde a coroa portuguesa assumiria o 138 papel de estado evangelizador universal entendendo a atuação dos jesuítas junto aos naturais brasileiros a partir da necessidade da expansão de Portugal e, conseqüentemente, do cristianismo. Isso teria contribuído para o surgimento de uma mentalidade de conformismo e acomodação entre pastores e fiéis (MATOS, 2001). É exatamente nesse ponto que reside toda a crítica de Hoornaert, e do CEHILA à atuação do jesuíta. Uma visão alternativa é oferecida por Luis Palacin (Vieira e a visão trágica do barroco, 1986), ao tratar da obra de Vieira. Palacin parte da idéia de “consciência possível”, ou seja, de que o contexto imporia limites ao pensamento e ação. A partir daí, analisa Vieira como representante do barroco português e do pensamento social jesuíta, que partiria de um estado de espírito nacional, ultrapassando seus pares na defesa de um mundo mais amplo. Segundo ele, “as contradições e impossibilidades do Portugal da Restauração são indispensáveis para a compreensão de Vieira, e em contrapartida a obra de Viera torna- se, por sua vez, um dos testemunhos mais ricos para a interpretação desta época histórica (PALACIN, 1986, p.10). A ênfase agora não seria mais em Vieira, ou em sua obra, mas no contexto em que ela foi produzida. Ao destacar o imaginário da época, Palacin mostra as influências e limites que o período histórico imporia a Vieira, identificando entre elas a sua crença milenarista. Para ele, nem mesmo alguém com uma extraordinária inteligência como Vieira está livre de sofrer contaminações como essas. Como conseqüência, apesar de perceber as injustiças praticadas pela coroa, no Brasil e Portugal, Vieira não foi capaz de romper com ela. Seu discurso não contém, segundo Palacin, críticas reais à política colonial portuguesa. As situações de dependência das colônias, como o Brasil, permanecem intocáveis. Ocorre que Vieira não teria elementos para lhe negar, pois tal conceito lhe seria estranho naquele momento, visto que ele entendia as possessões portuguesas como parte do reino, e não como colônias. As origens desses limites estariam na perspectiva escolástica jesuítica, onde as essências são tidas como unas e imutáveis, e, portanto, incapaz de acompanhar as mudanças que surgiam. A leitura de Palacin estabelece uma espécie de síntese das anteriores. Se por um lado concorda com Alcir Pécora ao demonstrar a dupla motivação do discurso vieirense (patriótica e religiosa) se distancia desse ao considerar o messianismo como o elo frágil do seu pensamento, visto que tal crença acaba por dificultar sua correta avaliação da atuação de Portugal tanto na Europa como na América. No entanto, diferente de 139 Eduardo Hoornaert, Palacin não nega os avanços de Vieira e nem condena o jesuíta por suas “ambigüidades”, entendendo-as como conseqüência da visão de mundo do seu tempo. Lembramos que nenhum texto é peça isolada, nem a pura manifestação da individualidade de quem o produziu. De uma forma ou de outra, constrói-se um texto para, através dele, marcar uma posição, ou participar de um debate de escala mais ampla que está sendo travado na sociedade. Neste trabalho, procuramos realizar uma leitura capaz de incorporar essas diversas contribuições sobre a obra vieirense. Acreditamos que a política é um dos aspectos centrais do seu pensamento, mas que essa não pode ser compreendida sem estar relacionada com a religião. Dessa forma, a busca de uma legitimação para a nova dinastia, de um novo Estado e de uma nova nação, com a necessária educação de suas elites, está condicionada à visão de mundo que tinha o jesuíta naquele momento. Seu discurso legitimatório de um lado e sua preocupação com a mudança dos costumes e a ação deve ser entendido a partir de suas expectativas messiânicas, que partindo das profecias e do presente apontam para um futuro, a utopia do Quinto Império.O discurso do Padre Antonio Vieira seria parte de um esforço para garantir a soberania lusitana, estando inserido em um ambiente de disputas políticas no interior da corte e na colônia. 4.2. O homem Vieira foi um homem “multidimensional”: sacerdote, diplomata, articulador político, missionário, teólogo. Nada pareceu estar fora da área do seu interesse. A exemplo dos grandes escultores medievais esforçou-se para fazer da sua vida uma imensa catedral, “para o maior louvor de Deus”, suspensa com as pedras da palavra, a gramática da fé e a sintaxe da prática. Enquanto outros utilizavam tijolos e argamassa, rochas esculpidas e vitrais, Vieira fez uso de substantivos, verbos e silogismos. O resultado é um colosso erguido sobre 15 tomos de sermões, conformando-se com mais de três milhões de palavras-pedras. Vieira, o “homem-catedral”, tem várias portas. Resta escolher como penetrar em um prédio tão magnífico que é sua a obra escrita há mais de três séculos. Eis o “imperador da língua portuguesa” como disse Pessoa. Vieira viaja com a família para a Bahia e será na colônia onde passará a maior parte de seus dias no Brasil (52 dos 89 dos que viveu) e onde adquirirá seus primeiros conhecimentos formais, no então Colégio dos Jesuítas em Salvador. No Brasil, 140 manifestará sua vocação religiosa e em maio de 1623, então com 15 anos, professa o noviciaado na Companhia de Jesus e em 1634 obtem o mestrado em Artes. No ano de 1634 Vieira recebe as ordens Sacerdotais e já em 1635 é encarregado da cadeira de Teologia do Colégio Jesuíta. Em 1640 ocorre o fim da União das Coroas Ibéricas, e D. João IV é aclamado rei de Portugal. Sem ter chegado a tempo essa notícia ao Brasil, Vieira proclama o Sermão pelo Bom Sucesso das Armas, evocando e elogiando o Rei Felipe IV da Espanha. Quando chega a caravela anunciando a revolução libertadora e o novo rei, Vieira, certamente como todos os moradores e o vice-rei, fica confuso, mas adere sem titubeio à nova situação. Em 1641, D. Fernando Mascarenhas, o Padre Antonio Vieira e o Padre Simão de Vasconcelos, são enviados a Lisboa a fim de jurar obediência ao novo rei português, pelo Marquês de Montalvão. Nesse mesmo ano quando da Invasão Holandesa de Salvador, Vieira refugiou-se no interior do Estado, onde iniciou a sua vocação missionária. Um ano depois tomou os votos de castidade, pobreza e obediência, abandonando o noviciado. Não partindo imediatamente para as missões, aprofundou seus estudos de Teologia, Lógica, Física, Metafísica, Matemática e Economia. Após a Restauração da Independência (1640. Em 1641, iniciou a carreira diplomática pois integrou a missão que veio a Portugal prestar obediência ao novo monarca impondo-se pela força de sua retórica e personalidade. Foi então nomeado pregador real. Seu primeiro sermão (“Sermão dos Bons Anos”), pregado em Lisboa, no dia 1º de Janeiro de 1642, foi um sucesso absoluto. A partir daí, a disputa de lugares na igreja se tornou corrente a expressão “mandar lançar madrugada em São Roque”, devido ao indeditismo dos temas, o arrojo da abordagem e a clareza de seus conceitos, Em 1646 foi enviado à Holanda, no ano seguinte à França, com encargos diplomáticos com o objetivo de negociar junto aos Países Baixos a devolução do Nordeste. Esse episódio deixará duas marcas em sua história: o epiteto de “Judas do Brasil”, por ter sugerido que Portugal entregasse a colônia em troca de capitanias na África e o contato com os primeiros judeus, cristãos-novos, de quem se tornará um defensor e por quem será condenado pela Inqusição posteriormente. Suas idéias pró-judeus não agradaram muito às elites e ao povo português. Após alguns conflitos acabou voltando ao Brasil e entre 1652 e 1661, atuou como missionário no Maranhão e no Grão-Pará, passando então à defesa enérgica da liberdade dos índios. Com a morte de D. João IV, seu amigo e protetor, voltou tornando-se confessor da 141 Regente, D. Luísa de Gusmão. Com a morte de D. Afonso VI, Vieira não encontrou mais apoio nas cortes lusitanas. Seu último período de atuação pública foi marcado pelas idéias útopicas (as profecias sebásticas e o Quinto Império) que fez com que entrasse em um perigoso conflito com a Inquisição. Com base em uma de suas cartas dirigidas ao bispo do Japão,em 1659, na qual expunha sua teoria do Quinto Império, segundo a qual Portugal estaria predestinado a ser a cabeça de um grande império do futuro, foi acusado de heresia e obrigado a comparecer ao Tribunal da Santa Inquisição. É então expulso de Lisboa, desterrado e encarcerado no Porto e depois encarcerado em Coimbra, enquanto os jesuítas perdiam seus privilégios. Como conseqüência de sua defesa da causa indígena foi quase linchado e expulso pelos colonos do Brasil em 1661. Em 1667 foi condenado a internamento e proibido de pregar, mas seis meses depois, a pena foi anulada. Após voltar de Roma em 1671 passou a combater a influência da Inquisição e a união com os cristãos-novos que estavam sofrendo perseguição, mas não conseguiu persuadir a corte dessa vez. Desiludido com a política palaciana decidiu voltar outra vez para o Brasil, em 1681. Sua partida de Portugal foi acompanhada de grande júbilo, tendo sido realizado inclusive um “auto de fé” em sua homensagem em que um boneco vestido com os trajes jesuítas foi queimado com gritos de: “Vieira, vendido aos judeus e quiçá judeu também ele!” (NISKIER: 2005, p. 138). Em 1688 foi nomeado, então com 80 anos, visitador da Companhia no Brasil, cargo que cumprirá com dificuldades e determinação até 1691. Já velho e doente sofrendo as conseqüências de um intensa militância e de vários anos no cárcere afasta- se da vida pública, dedicou-se à tarefa de continuar a escrever suas obras, visando a edição completa em 15 volumes dos seus Sermões, iniciada em 1679, e a conclusão da Clavis Prophetarum, obra que considerava a mais importante de sua carreira.Em 1694, após cair de uma escada, perde a capacidade de escrever de seu próprio punho e em 10 de junho começou sentir a chegada da morte. Em 18 de julho de 1697, perdeu a voz, silenciaram-se seus discursos. Morria Vieira aos 89 anos de idade. Eis a história do homem Antonio Vieira, padre jesuita do século XVII. 4.3. O contexto 4.3.1. O barroco 142 A obra de Vieira está associada ao sistema colonial e ao barroco. Essas duas categorias são importantes para a compreensão dos seus sermões, seus pressupostos educativos e a proposta da construção do seu “Quinto Império”. Etimologicamente, a palavra “barroco” designava, no século XVII, duas coisas: uma pérola de pequeno valor e “forma irregular” ou uma espécie de silogismo escolástico (MOISÉS, 1993, p. 66). Como termo técnico, “barroco” era toda forma de arte que fugisse aos padrões estabelecidos pela escola classicista da Renascença (SUZY MELLO, 1983). A palavra foi rapidamente introduzida nas línguas francesa e italiana. Como período histórico, o Barroco vai de 1580 a 1756 e compreende a pintura, a arquitetura, a escultura e a literatura. Durante muito tempo o barroco foi visto como “mau gosto”, “bárbaro” ou “extravagante” em oposição à sobriedade e à civilidade da Renascença. A redescoberta do barroco está associada às obras do crítico de arte Heinrich Wölfflin20. Foi ele o primeiro a defender a idéia do barroco como uma categoria estética capaz de avaliar a história da pintura no Ocidente. Para Wölfflin todos os estilos artísticos, no que pese suas divergências secundárias, constituíam-se na verdade numa polaridade e alternância entre duas grandes estruturas: a clássica e o barroco. Wölfflin desenvolve um sistema de análise pictórica de oposições estruturais entre o estilo barroco e a renascença, em que para cada uma das características do segundo haveria uma qualidade do primeiro (linear e pictórico; plano e recessão, forma fechada e aberta; clareza e escuridão, multiplicidade e unicidade). Segundo Wölfflin, haveria uma oposição clara entre esses dois estilos. Se no classicismo predomina a razão, a busca por uma “beleza serena”, que provoca no espectador uma sensação de “bem-estar geral”, no barroco, ao contrário há o predomínio da “emoção” e das imagens num redemoinho “súbito e avassalador”. Essa intensidade dramática do Barroco é bem exemplificada nos quadros do pintor flamengo Rubens (1577-1640)21 e do holandes Rembrandt (1606-1669), que tematizou o mundo burguês e as cenas da vida comum, como “A Ronda Noturna”, ou na exploração do jogo de luz e sombra, na obra do pintor italiano Caravaggio (1573- 1610) ou do espanhol Velázquez (1599-1660), com “As meninas” ou do escultor mineiro Antônio Francisco Lisboa, mais conhecido como Aleijadinho (1730-1814). 20 Renascença e barroco (Renasissance und Barrock, 1888 e Conceitos fundamentais da história da arte (Kunstgesechichtkiche grundbegriffe, 1921). 21 Entre suas obras, podemos citar “O Rapto das Filhas de Leucipo” e “Sansão e Dalila”. 143 Uma outra perspectiva do estudo do barroco foi iniciada pelo também alemão Werner Weisbach. No seu livro O barroco como Arte da Contra – Reforma (Der Barock als Gegenrformation, de 1921) ele expõe a tese de uma relação intrínseca entre o estilo artístico e o movimento da Contra - Reforma. O barroco seria herdeiro da Inquisição e das idéias de Trento. Isso daria ao movimento um caráter eminentimente conservador e anti-moderno. A arte barroca teria sido o melhor instumento do Vaticano para combater a dissidência luterana e garantir a austeridade dos costumes e a hegemonia política. É visível a “afinidade eletiva” entre o barroco e o catolicismo tridentino. Arquitetura, escultura, pintura, todas as belas artes, serviram de expressão ao Barroco nos territórios católicos: na Espanha, Itália, Portugal e na América Latina. A arte barroca procurava comover intensamente o espectador. Nesse sentido, a Igreja converteu-se numa espécie de espaço cênico, num teatro sacrum onde eram encenados os dramas divinos e cotidianos. Contrariamente à arte do Renascimento, que buscava o predomínio da razão sobre os sentimentos, no Barroco há uma exaltação dos sentimentos, a religiosidade é expressa de forma dramática, intensa, procurando envolver emocionalmente as pessoas. A literatura é exemplo disso como comprovam a sermonística e a encenação dos “autos sacramentais”, peças teatrais de argumento teológico, surgidas na Espanha, bastante apreciados pelo grande público. Do ponto de vista formal, o barroco apresenta-se como uma reação contra a fixidez e a rigidez clássicas, determinando, nas artes plásticas, o advento de formas sensuais, generosas, dinâmicas, nas quais o movimento da linha “serpenteante” tem uma importância decisiva, bem como os efeitos de luz na criação de poderosos contrastes, distorções espaciais ou ilusões ópticas (trompe l'oeil). Essa exuberância visual era produzida pelo requinte das formas e figuras, pela dessimetria, na busca constante de exaltar os sentidos. Assim, tanto a pintura, quanto a arquitetura, privilegia os aspectos cenográficos e decorativos – os altares, as fachadas das igrejas - em detrimento de preocupações estruturais ou formais. É preciso lembrar o papel e o valor das pregações públicas em uma sociedade ainda fortemente oral, e dominada pelo catolicismo da Contra Reforma. Em comparação aos livros, que tinham pouca circulação e os sermões atingiam diretamente o povo nos mais variados lugares. Na verdade, trata-se de exaltar a fé, através do concurso das formas, convertendo os templos em locais atraentes para os fiéis. Na literatura, o 144 barroco apresenta também uma valorização do culto da forma, elevando a expressão artística à exploração das potencialidades lúdicas da linguagem e à sua capacidade de surpreender e cativar o leitor através de efeitos inesperados, contrastes, raciocínios lógicos paradoxais, das quais o Pe. Antonio Vieira será modelo. A sermonística de Vieria é marcada pela cadência das frases e pela veemência dos silogismos. Predomina a variedade das figuras de linguagem, como comparações, antíteses, hipérboles e metáforas e os recursos clássicos da dialética.As primeiras tinham a intenção de envolver o ouvinte, “seduzí-lo” para eletrizando-o com as palavras, concientizá-lo. Por outro lado, o uso das repetições, com finalidades enfáticas, como “perguntas-respostas”, era utilizada, com reconhecida eficácia, para provocar a reação do auditório. Essa presença constante da dualidade e mesmo da mistura de elementos aparentemente opostos vão se destacar no barroco. Assim, junto com a temática religiosa, predominavam os temas mitológicos na pintura; a dualidade entre presente e futuro, céu e inferno, num eterno jogo de poderes entre divino e humano, no qual não há mais certezas. A dúvida é que rege a arte deste período. E nas emoções o artista vê uma ponte entre os dois mundos e tenta desvendá-las em suas representações. O Barroco Brasileiro teve início em 1601, tendo como o poema épico Prosopopéia, de Bento Teixeira (1560-1618), terminando com As obras de Cláudio Manuel da Costa (1729- 1789) em 1768. A cosmovisão barroca assenta-se numa epistemologia das coisas e das palavras, que encontra no conceito de analogia a sua chave explicativa. O conceito de alegoria (do grego allhgoria- alla-egorein – “dizer outra coisa”) remonta a antiga Escola de Alexandria. Na verdade, a primeira aplicação importante do método alegórico foi o comentário ao Gênesis feito por Fílon de Alexandria (25 a.C. - c. 50), em que esse procurava encontrar, por trás das palavras do texto, das coisas, dos fatos ou das pessoas, verdades permanentes e profundas. A predominância do alegórico sobre o literal, do símbolo sobre as coisas, foi desenvolvida pela teoria hermenêutica de Orígenes (corpo, alma e espírito), Agostinho e Aquino (“O quáduplo sentido da Escritura”) e como forma de interpretar a arte e o mundo por Dante (ABBAGNANNO, 2000). Assim a alegoria tornou-se o paradigma gnosiológico dos séculos XVI e XVII. A alegoria é, em síntese, aquilo que representa algo para dar a idéia de uma outra coisa. Reino da metáfora e do simbolismo, sua utilização leva a um refinamento extremo do como transmitir uma determinada mensagem. Por isso seu habitat é muito 145 mais a arte que a ciência. A arte religiosa cristã, por isso mesmo, se tornou um dos campos em que a alegoria mais foi usada, especialmente em duas épocas bem distintas: nos anos de perseguição romana ao cristianismo primitivo, em que peixes, touros, leões e pombos pintados nas paredes das escuras catacumbas fizeram surgir o sentimento de identidade dos primeiros fiéis; e nos séculos XVI e XVII, nos quais a Igreja Católica investiu forças no sentido de fazer da arte sacra uma ferramenta para a catequese e a persuasão dos fiéis através da sensibilidade. O “Sermão de Santo Antonio aos peixes”, pregado na cidade de São Luiz do Maranhão, em 1654 é um exemplo disso. A missa católica está em frontal oposição às idéias reformadoras, em especial às calvinistas, que defendiam uma maior simplicidade e racionalização do culto. Assim o Concílio de Trento, optou por utilizar a alegoria na arte religiosa, recomendando que essas obras atingissem os fiéis através da sensibilidade, e não pela razão, a fim de estimular a piedade pela persuasão dos sentidos. Tratava-se de conquistar a consciência do observador, mas não de forma racional como queriam os protestantes. Antes deveriam “mostrar escondendo” garantindo uma reverência ao sagrado, uma “vertigem” frente ao mistério e à santidade. Ainda abalada pela Reforma, a Santa Sé necessitava de um tipo de representação que fosse além do ideal renascentista de perfeição. Para que os fiéis não debandassem para a “pureza” protestante, que tentava resgatar valores que haviam sido sufocados pela hierarquia eclesiástica. Tornava-se urgente o resgate do subjetivismo e expressionismo nas obras de cunho religioso e em especial na importância da educação. No entanto, essa ligação intrínseca entre o discurso católico e a estética barroca é apenas um dos aspectos, dentre inúmeros outros que caracterizam o estilo Barroco. Basta lembrar a existência inclusive de um “barroco” protestante, com fortes expressões na música e na oratória sacra. Além disso, o conceito de barroco tem mesmo sido recuperado por estudiosos na interpretação de sociedades e culturas pós-coloniais. 4.3.2. Barroco e pós-colonialismo O adjetivo “pós-colonial” ou o substantivo “pós-colonialismo” vem sendo usado pelos estudiosos com três ênfases diferentes: como sinônimo de um novo campo de estudo, uma nova teoria social e a nova situação global após a experiência da colonização. A teoria pós-colonialista procura analisar os efeitos políticos, sociais, culturais e filosóficos do colonialismo, principalmente nos países colonizados. Há uma 146 ênfase nos temas de identidade e da representação e sobre as manifestações artísticas e culturais desses países. O objetivo é analisar as complexas relações de poder surgidas entre as diferentes nações – coloniais ou metropolitanas- que participaram da “aventura colonial européia”. Do ponto de vista político e cultural, o termo pós-colonialismo tanto se refere ao estudo dos efeitos do colonialismo europeu como às respostas de resistência dos povos colonizados. Há a preocupação, por parte dos estudiosos dos países do chamado terceiro mundo, em analisar o legado político, econômico, social, cultural e filosófico do colonialismo pela importância da herança deixada após séculos de colonização. Historicamente é possível situar a origem do movimento no fim do império colonial, compreendido como ocupação de territórios, no período entre o final da Segunda Grande Guerra os anos 60 do século XX. Ocorre que para os autores pós- colonialistas, o fim da colonização oficial não terminou com os seus efeitos sociais, que seriam responsáveis por parte da atual situação de inferioridade e dominação existente no mundo. Os estudos pós-coloniais buscam entender como foram elaboradas as narrativas que possibilitaram o conhecimento e o controle do Outro (negro, índio, nativo etc.). A obra Orientalismo, de Edward Said, é paradigmática disso. Nesse livro, o autor, seguindo um enfoque foucaultiano, defende que o Oriente é, na verdade uma invenção do Ocidente, ou seja, que as descrições feitas pelos colonizadores e exploradores, desde Marco pólo, não devem ser tomadas como descrições “objetivas” da realidade, mas como um processo discursivo que, simultaneamente, constrói a realidade ao narrá-la. Como ele mesmo afirma: Comecei com a suposição de que o Oriente não é um fato inerte da natureza. Não está meramente lá, assim com o próprio Ocidente não está apenas lá (...) os lugares, regiões e setores geográficos tais como o “Oriente” e o “Ocidente” são feitos pelo homem. Portanto, assim como o próprio Ocidente, o Oriente é uma idéia que tem uma história e uma tradição de pensamento, imagística e vocabulário que lhe deram realidade e presença no e para o Ocidente. As duas entidades geográficas, desse modo apóiam-se e, em certa medida, refletem uma à outra. (SAID, 1990, p. 16-17). Uma das características desse novo campo de pesquisa é a interdisciplinaridade de seus estudos, que abrangem Filosofia, História, Estudos Literários, Psicanálise, Sociologia, Antropologia e pelas Ciências Políticas. A teoria pós-colonial procura ainda 147 repensar a própria ciência, em especial as humanas, que teriam sido estruturadas a partir de padrões ocidentais, universalizados de forma hegemônica pelos países colonizadores. Busca-se assim, construir uma resposta política e epistemológica da periferia ao centro do sistema, capaz de incorporar a questão da alteridade, vista como chave hermenêutica da história do Ocidente. Por exemplo, ao questionar a humanidade dos ameríndios, o homem europeu seiscentista questionava sua própria essência. O mesmo fazendo com relação à projeção do imaginário (paradisíaco ou demoníaco) na nova terra. A categoria de representação torna-se fundamental. Assim, os discursos artísticos, filosóficos ou científicos, são tomados como formas de inscrição através das quais o Outro é representando: “mais do que um interesse simplesmente científico ou epistemológico, o que move essa narrativa é a curiosidade e a fascinação pelo Outro, visto como estranho e exótico, e o impulso para fixá-lo e dominá-lo como objeto de saber e de poder. O Outro é, pois, menos um dado objetivo e mais uma criação imaginaria do poder”. (SILVA, 2002, p. 127). A identidade do Outro é construída pela projeção de uma série de categorias redutoras (bárbaro, selvagem, primitivo, atrasado) e esteriotipadas (canibal, maometano, pagão), que supõe a superioridade histórica e cultural do Eu europeu sobre o Outro colonizado, chegando-se mesmo a afirmar que, graças à adoção dessas categorias esquemáticas (e eficientes) de classificação, que nenhum nativo poderia se conhecer a si mesmo tão bem quanto um europeu o conhece (SAID, 1990). Na verdade, a adoção do Paradigma de Sepúlveda não morreu com o século XVI e permaneceu no interior das grandes teorias explicativas produzidas na Europa. Said chega a afirmar que “qualquer visão abrangente é fundamentalmente conservadora, e temos observado, na história das idéias sobre o Oriente Próximo no Ocidente, como essas idéias têm-se mantido a despeito de qualquer evidência que as conteste [na verdade, podemos argumentar que essas idéias produzem evidências que provam sua validade]”. (SAID: 1990, 320). Um exemplo disso é a questão das relações entre o Islã e o Ocidente. O termo maometano atribuído aos seus adeptos mostra como esse processo foi distorcido. Mas o orientalismo não é um fenômeno superado. Basta compararmos as representações do Oriente presentes nos discursos de Ernest Renan e Richard Rorty. Said cita longamente Renan: Vemos que em todas as coisas a raça semítica parece-nos ser uma raça incompleta, por virtude da sua simplicidade. Essa raça- atrevo- 148 me a usar a analogia - está para a família indo-européia como um esboço a lápis está para uma pintura; ela carece de variedade, da amplitude e da abundância da vida que é a condição da perfectibilidade como aqueles indivíduos que têm tão pouca fecundidade que, após uma infância grandiosa, atingem apenas a mais medíocre virilidade, as nações semíticas passam pelo seu mais pleno florescimento na sua primeira idade, e nunca foram capazes de alcançar a verdadeira maturidade. (RENAN apud SAID, 1990, p. 157). Aos que pensam que o abandono da “tradição metafísica” é o fim das desigualdades, eliminando a presença de uma inferioridade intrínseca ao oriente, basta ler a resposta de Rorty quando interrogado sobre como resolver os conflitos com o Islã. Sua resposta é tão prática quando perigosa: educando-os para que se tornem “iguais a nós”, A Europa não é só dominação, não apenas hegemonia, não apenas capitalismo internacional. Há também uma mission civilizatrice européia. Este termo tem sido desacreditado pelo comportamento dos poderes coloniais, mas poderia ter a capacidade de reabilitação. Afinal, a Europa foi a inventora da democracia e da responsabilidade cívica. Podemos ainda dizer ao resto do mundo: mandem seu pessoal para nossas universidades, aprendam sobre nossas tradições e por fim verão a vantagem de um modo democrático de vida. Pode ser apenas um acidente o fato do reino cristão ser o local onde a democracia foi reinventada para o uso de uma sociedade de massa, ou pode ser que isso não tivesse de ter acontecido em uma sociedade cristã. Mas é fútil especular sobre isso. De qualquer forma que isso poderia ser, parece-me que a idéia de um diálogo com o Islã é sem sentido (...). (RORTY, 2006, p.98). Um outro elemento importante na teoria pós - colonial é a busca de superação de uma compreensão unilateral ou dogmática da dominação ou das relações de poder. Por sua origem nos Estudos Culturais22, os teóricos dessa escola irão se concentrar na análise da cultura, que seguindo a tradição de Raymond Williams (Culture and society, 1958) e E.P. Thompson (The makink of the English working, 1963) é vista de forma global de vida, experiência comum vivenciada por um determinado grupo social. Assim a cultura é vista como um campo “relativamente autônomo” da vida social, com sua dinâmica e desenvolvimentos próprios. Como afirma Silva (2002, p. 129): A teoria pós-colonial evita formas de análise que concebam o processo de dominação cultural como uma via de mão única. A crítica pós- 22 Os Estudos Culturais surgem a partir da criação do Centro de Estudos Culturais Contemporâneos em 1964, na Universidade de Birmingham, Inglaterra. Entre seus principais representantes estão Raymond Williams (Culture and society, 1958) e Richard Hoggart (The uses of literacy, 1957). 149 colonial enfatiza, ao invés disso, conceitos como hibridismo, tradução, mestiçagem, que permitem conceber as culturas dos espaços coloniais ou pós-coloniais como o resultado de uma complexa relação de poder em que tanto a cultura dominante quanto a dominada se vêem profundamente modificadas (...) Obviamente, o resultado final é favorável ao poder, mas nunca tão completamente, nunca tão definitivamente quanto o desejado. O hibridismo carrega as marcas do poder, mas também as marcas da resistência. Um exemplo disso é a discussão sobre o caráter “barroco” das sociedades pós- coloniais. O barroco é na verdade um conceito em disputa. Para muitos, todo debate sobre a modernidade e a pós-modernidade na América Latina que não discuta o barroco é parcial e incompleto (CHIAMPI, 1998). Para além do campo da literatura e da arte, o barroco é visto como um conceito capaz de explicar a dinâmica histórica da cultura e do imaginário da América no seu contraditório ingresso na modernidade. Entre os autores que defenderam a “americanização” do barroco destacam-se José Lezama Lima e Alejo Carpentier. Segundo esses autores, o barroco é a mais autêntica expressão cultural americana. Esse barroco, porém, é algo distinto do seu homônimo europeu, relacionado à dominação branca ou ao dogmatismo jesuíta tridentino. O barroco seria, na verdade, “a arte da contraconquista”, capaz de promover a ruptura e a resignificação dos elementos exóticos. Como lembra Chiampi (1998: p, 8): “é clara aqui a intenção de atribuir um sentido político, de rebelião implícita, tanto as combinatórias tensas de motivos religiosos, dos artistas populares como o índio Kondori ou o mulato Aleijadinho, como para o afã de conhecimento universal de intelectuais como Sóror Inês de la Cruz ou Don Carlos de Sinqüenza y Cóngora”. O barroco converte-se na categoria americana para pensar a formação dos países pós-colonialiais no Continente, de processo de modernização, “às margens” do modelo de desenvolvimento do logos hegeliano (Chiampi). Mais ainda: o conceito permitiria pensar não apenas a história cultural americana, mas fenômenos presentes em diversos países, pois como afirma Carpentier: “toda simbiose, toda mestiçagem engendra um barroquismo”. O barroco assim é purificado das interpretações negativas que o associavam a uma estética do excesso, do mau gosto, do artifício e da complicação verbal inútil (estética) ou um movimento pré-iluminista e medieval, simples instrumento da dominação colonialista (ideologia). Boaventura dos Santos (1950) é um dos autores que buscam realizar essa nova interpretação do barroco. Na verdade ele prefere usar o termo “códigos barrocos”, para explicar a situação de colapso entre as “raízes” (tradições) e as “opções” 150 (transformações), característica das sociedades atuais, pós-coloniais. Segundo Santos, “estes códigos barrocos pós-dualistas são formações discursivas e performáticas que funcionam através da intensificação e da mestiçagem” (2005; 2006). Essa mestiçagem, como ele mesmo afirma “[...] é, em si mesma, politicamente ambivalente. Muitas vezes ao serviço de regulação e até opressão, pode, no entanto, ser igualmente mobilizada para projetos emancipatórios” (SANTOS, 2005, p. 69). A análise do sociólogo português privilegia esse segundo uso da mestiçagem. Na obra de Boaventura estética e política unem-se na construção de uma nova epistemologia e de uma nova ética. Dois autores se destacam nessa leitura: o cubano José Martí (1853-1895) e o brasileiro Oswald de Andrade (1890-1650). Ambos têm em comum a mestiçagem como possibilidade e transformação da herança colonial: “é a América mestiça fundada no cruzamento, tantas vezes violento, de muito sangue europeu, índio e africano. É a América capaz de sondar profundamente as suas próprias raízes e de, nessa base, edificar um conhecimento de uma nova forma de governo que não seja, importados, mas antes adequados à sua realidade” (20005, p. 2000). As bases desse novo pensamento já estariam dadas, esteticamente, no manifesto antropofágico de Oswald de Andrade: Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem (...) mas não foram cruzados que vieram, foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o jabuti [...] Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos política que é a ciência da distribuição. E um sistema social- planetário [...] Antes dos portugueses descobrirem o Brasil,o Brasil tinha descoberto a felicidade. (ANDRADE, 1990). É esse “instinto caraíba” de resignificação constante das imagens, da carnavalização dos sentidos e de mestiçagem das culturas, a contribuição da América para o nosso tempo. Santos explica que isso aconteceu devido às peculiaridades históricas do nascimento do barroco no continente: Como estilo literário ou como época histórica, o barroco é forma excêntrica de modernidade ocidental, com forte presença nos paises ibéricos e nas suas colônias da América latina. A sua excentricidade deriva, em grande medida, do facto de ter ocorrido em paises e em movimentos históricos onde o centro de poder era fraco, procurando esconder a sua fraqueza através da dramatização da sociabilidade 151 conformista. A relativa falta de poder central confere ao barroco um caráter aberto e inacabado que permiti a autonomia e a criatividade das margens nas periferias. (SANTOS, 2005, p. 205). Assim, o barroco simultaneamente acabou servindo como raiz e possibilidade para as sociedades latino americanas pós – coloniais: (...) Do século XVII em diante, as colônias ficaram mais ou menos entregues a si próprias, marginalização que possibilitou uma criatividade especificamente cultural e social, às vezes altamente codificada, outras vezes caótica, umas vezes erudita, outras popular, umas vezes oficial, outra legal. Tal mestiçagem está tão profundamente enraizada nas práticas sociais destes países que acabou por ser considerada como fundamento desde o século XVII até os nossos dias. Esta forma de barroco, enquanto manifestação de um exemplo extremo de fraqueza do centro, constitui um campo privilegiado para o desenvolvimento de uma imaginação centrífuga, subversiva e blasfema. (SANTOS, 2005, p. 205). Santos demonstra como essa relação entre estética e política já se manifestava em alguns extremos do barroco clássico como a técnica de pintura terribiltà utilizada por Miguelangelo ou na escultura de Bernini (1598-1680) “O Êxtase de Santa Tereza” em que a expressão mística da santa é tão dramatizada que acaba se assemelhando ao de uma mulher gozando (SANTOS, 2005, p. 207). Assim sagrado e profano se unificam de forma intensa e inesperada. Tanto a terribilitá, quanto outra técnica de pintura, o sfumato, são exemplos da capacidade barroca de mistura elementos diferentes em novas identidades: o sfumato permite à subjetividade barroca criar o próximo e o familiar entre inteligibilidades diferentes, tornando assim os diálogos interculturais possíveis e desejáveis. Por exemplo, só por recurso ao stufato é possível dar forma a configurações que combinam os direitos humanos ocidentais com outras concepções de dignidade humana existentes noutras culturas. (SANTOS, 2005, p. 208). Isso porque além da mestiçagem da “carne e do espírito” no dizer de Darcy Ribeiro,o barroco oferece as possibilidades para o diálogo e a tolerância intercultural, como uma melhor compreensão sobre a temporalidade. Os “códigos barrocos” ajudam as entender a diversidade de percepção do tempo no mundo, Santos utiliza-se da metáfora dos andamentos musicais: “(...) os andamentos musicais largo, lento, adágio, andante e moderato tendem a ser predominantes nos códigos barrocos de subexposição e nos respectivos processos de dispersão canonização. Nos códigos barrocos de subexposição e nos respectivos processos de dispersão criativa e de difusão em rede predominam os andamentos allegro, presto e prestíssimo.” (SANTOS, 2005, p.81). 152 Assim são aceitos diferentes tipos de ritmos de mudança histórica, sem que isso implique em uma hierarquização dessas sociedades. O barroco é mestiço, incompleto e inconformado. E o que, antes foi visto como fraqueza consiste na sua maior vantagem: “o inconformismo é a utopia da vontade”. Como diz Benjamim, “só possui o dom de fazer faiscar no passado a chispa da esperança aquele historiador que está convencido de que mesmo os mortos não estão a salvo do inimigo, se este vencer” (SANTOS, 2005, p. 83). Como se sabe, o processo de colonização teve dois grandes momentos: os séculos XVI e XVII e o século XIX. A fase que nos interessa é a primeira desses “desembarques de Colombo”, ou seja, aquela que faz parte do Antigo Regime da época moderna e é conhecido como antigo sistema colonial. As interpretações sobre o sistema colonial podem ser classificadas em duas grandes escolas: as que privilegiam seus fundamentos econômicos e as que enfatizam os aspectos políticos. Entre os primeiros encontram-se os autores marxistas que procuram discutir a relação entre a formação do sistema colonial brasileiro e a constituição do moderno sistema mundo; para outros o sistema colonial estaria ligado ao desenvolvimento do comércio europeu no século XV (mercantilismo e capitalismo comercial). Outros preferem analisar tanto o mercantilismo quanto o sistema colonial como resultado dos desígnios e necessidades das potências absolutistas desse período (WEHLING, 1999). Segundo a lógica desse sistema, a colônia deveria ser um local de consumo para os produtos metropolitanos, de fornecimento de artigos para a metrópole e de ocupação para os trabalhadores da metrópole. Em outras palavras, dentro da lógica do “Sistema Colonial Mercantilista” tradicional, a colônia existia para desenvolver a metrópole, principalmente através do acúmulo de riquezas, seja através do extrativismo ou de práticas agrícolas mais ou menos sofisticadas. Nisso consistia o “pacto colonial”. Tradicionalmente, classificam-se as colônias em dois tipos: de “fixação”, como as norte-americanas e de “exploração”. Uma Colônia de Exploração, como foi o caso do Brasil para Portugal, tem basicamente três características, conhecidas pelo termo técnico de plantation. O plantation tinha como características o latifúndio, a monocultura e a exploração do trabalho escravo. A simultaneidade desse processo de expansão - consolidação do sistema mundial provocou uma imbricação entre as dimensões do saber e do poder. Como lembra Boaventura dos Santos “o ato de descoberta é necessariamente recíproco: quem 153 descobre é também descoberto” (2005). No entanto isso não implica em nenhuma transparência ou objetividade desse conhecimento, desde sempre marcado pela dominação e preconceito “porque sendo a descoberta uma relação de poder e de saber que transforma a reciprocidade da descoberta e na apropriação do descoberto” (SANTOS, 2006 p. 181). O Outro foi percebido a partir de três categorias: o Oriente, o selvagem e a natureza. Cada uma delas, a seu modo, ajudou a configurar o específico das descobertas coloniais: a idéia da inferioridade do “descoberto” perante seu “descobridor”. Isto implicou na produção das desigualdades presentes ainda hoje na relação entre as pessoas e os países. As culturas nativas foram eliminadas pelas nações européias. Ao genocídio de suas populações serviu de base um epistemocídio de seus saberes (GERMANO, 2007). De modo que a descoberta se serviu dessas desigualdades para legitimar sua dominação sobre o “novo mundo”. Como afirma Santos: “o que foi descoberto estava longe, abaixo e nas margens do sistema, e essa ‘localização’ é a chave para justificar as relações entre o descobridor e o descoberto após a descoberta; ou seja, o descoberto não tem saberes, ou se os tem, estes apenas tem valor enquanto recurso” (SANTOS, 2006, p. 182). A construção de uma alteridade desigual para os não-europeus só é plenamente compreendida quando situada no contexto de criação do próprio capitalismo. A fim de garantir a funcionalidade da nova divisão internacional do trabalho, era preciso recuperar “antigas abominações” como o expediente da escravidão, tão combatido pelo cristianismo primitivo. Mais que isso havia a necessidade de transformar homens em coisas, questionando a humanidade dos colonizados, fossem esses índios, africanos ou indianos. As múltiplas estratégias de dominação das culturas não européias se sustentavam numa visão linear e progressista da história, que seria plenamente desenvolvida pela ciência moderna séculos depois, que se recusava a aceitar a legitimidade dos saberes ou das práticas oriundas das colônias. Isso significou a destruição de sistemas inteiros de tradições seculares de conhecimento como os Astecas e Incas. A interdependência entre economia e ciência, entre saber e dominar, base para construção do “sistema mundo” moderno é resumido por Imannuel Wallerstein, O princípio fundamental da economia – mundo capitalista é a acumulação incessante de capital. Essa é a razão de ser e todas as suas instituições se guiam pela necessidade de realizar esse objetivo, recompensar quem consegue e punir quem não consegue. É claro que 154 o sistema se compõe de instituições que promovem esse fim, mais especificamente uma divisão axial de trabalho entre processos de produção centrais e periféricos, regulamentada por uma rede de Estados soberanos que funciona dentro de um sistema interestados. Mas ele também precisa de uma estrutura cultural – intelectual para funcionar direito. Essa estrutura tem três elementos principais: uma combinação paradoxal de normas universais e práticas racistas- sexistas; uma geocultura dominada pelo liberalismo centrista; e as estruturas de saber, raramente notadas mas fundamentais, baseadas em uma divisão epistemologia entre as chamadas duas culturas. (WALLERSTEIN, 2007, p. 88-89). Da mesma forma que o sistema de plantation, baseado na agricultura extensiva e na monocultura da cana-de-açúcar, serviu para destruir a diversidade dos eco-sistemas das colônias; a imposição cultural européia, fundamentada na crença do cristianismo como única religião verdadeira e na conseqüente inferioridade do nativo, igualmente destruiu as diversas “ecologias de saberes” presente nesses lugares (SANTOS: 2005).E será nessa área que a educação interfere, visto ser através dela que acontece a formação ou “de”- formação” dos sujeitos humanos. O período em que Vieira viveu e escreveu é o momento em que esse paradigma, herdeiro das idéias de Sepúlveda (1490-1573) se consolidou. Vieira não escapou à ação desse “imaginário social instituinte” nos termos de Castoriadis (1982), presentes na ação missionária jesuíta desse período; da mesma forma que Karl Marx também foi influenciado pela noção de progresso, com seus “estágios civilizatórios” inevitáveis. 4.4. A obra A sermonística de Vieira sintetiza elementos da retórica clássica, da retórica cristã e da filosofia e teologia tomistas. O mundo de Vieira, portanto era profundamente religioso e místico. Seus sermões seguiam as determinações do Concílio de Trento e buscavam abarcar todo o calendário eclesiástico ou ano litúrgico. Convém saber mais sobre isso. Comecemos pela idéia de tempo. A noção do tempo a que estamos acostumados é linear e homogênea. O tempo flui do passado para o futuro passando pelo presente. Esse é o tempo que experimentamos no nosso cotidiano. Mas nem sempre foi assim. Como lembra Eliade (2002) o tempo não é vivenciado da mesma forma em sociedades arcaicas e modernas. O tempo para uma sociedade religiosa é cíclico e heterogêneo. 155 Como não existe a idéia de “secularização” ou “dessacralização” de um mundo “fechado” é um tempo hierofãnico, ou seja, um tempo em que a qualquer momento pode se revelar o sagrado. Essa abertura é realizada através do rito, que tem como função demarcar o tempo comum, profano, dos momentos especiais, sagrados. Os ritos atualizam os mitos, revivem na consciência das sociedades, graças ao intermédio de um ritual, da repetição de gestos e palavras, o sentido do próprio tempo e da realidade: “na religião como na magia a peridiocidade significa, sobretudo a utilização indefinida de um tempo místico tornado presente. Todos os ritos têm a propriedade de se passarem agora, neste momento. O tempo que viu o acontecimento comemorado ou repetido pelo ritual em questão é tornado presente, “re-presentado”, se assim se pode dizer, tão recuado no tempo quando se possa imaginar” (ELIADE, 2003, p. 317). No calendário cristão “a Paixão de Cristo”, a sua morte e a sua ressurreição, não são simplesmente comemoradas no decurso dos ofícios da Semana Santa: elas sucedem verdadeiramente então sob os olhos dos fiéis. E um verdadeiro cristão deve sentir-se contemporâneo desses acontecimentos trans-históricos, visto que, ao repetir-se, o tempo teofânico se tornou presente” (ELIADE, 20003, p. 317). Tudo isso implica em que, na liturgia, não se pode pensar no tempo apenas em sucessão linear de datas. O ano eclesiástico, diz respeito à série de tempos e dias santos, definidos pela Igreja, que começa com o Primeiro Domingo do Advento e fecha na última semana depois de Pentecostes, precisamente no sábado posterior ao último domingo do tempo comum, ou Solenidade do Cristo Rei do Universo. A celebração periódica dessas solenidades refere-se à memória, guarda e ensino dos mistérios e dogmas da Igreja, entendidos ortodoxamente como legados de Cristo. Para uma leitura apropriada dos sermões de Vieira, primeiro é necessário compreendê-lo dentro do pensamento e dos pressupostos filosóficos e teológicos do período. Segundo a teologia católica, o ano litúrgico deve ser compreendido dentro da história e economia da salvação: “Ele é a celebração-atuação do mistério de Cristo no tempo. Portanto o ano litúrgico não pode ser reduzido a um simples calendário de dias e meses aos quais estão vinculadas determinadas celebrações religiosas; ele é, ao invés, a presença na forma sacramental - ritual do mistério de Cristo no espaço de um ano” (AUGÉ, 2004, p. 281). Essa relação entre tempo sacramental e ritual é particularmente importante para os sermões de Vieira: “O componente ‘tempo’ é particularmente importante na celebração do mistério de Cristo no ano litúrgico. De fato para o cristão o 156 tempo é a categoria dentro da qual se realiza a salvação” (AUGÉ: 2004 p. 281), os sermões de Vieira, são acima de tudo, tentativas de “ler” o sentido desses mistérios no seu tempo. A temporalidade dos sermões não é, portanto, mítica ou cíclica. Nem há adesão ao panteísmo de Espinosa (1632-1677). Vieira também não é um idealista que lia o mundo histórico como ilusão ou aparência. Ele estabeleceu uma noção de tempo baseado na separação entre o Perfeito e o imperfeito e de um tempo regulador, ao mesmo tempo inerente, do seu programa profético. É no conceito de sacramento que ele encontra sua chave hermenêutica dos atos do presente: “como o passado prefigura a realização do sentido providencial da história, é retomado por Vieira no ato da pregação como exemplo a ser imitado pela audiência para aperfeiçoamento do ‘corpo místico’ do Estado”. (HANSEN, 2002). O sermão é a forma de atualizar e interpretar a providência divina no presente além de instrumento de mobilização política: “É preciso lembrar, no entanto, que hoje lemos os sermões autonomizando-os da sua prática. Em seu tempo, eram ouvidos. Na relação estabelecida entre voz e audição, propunham que a Luz divina acesa na consciência do Padre e exteriorizada em seu corpo na ação retórica era a mesma que legitimava as instituições políticas como naturalidade da hierarquia” (HANSEN, 2002). Vieira era um homem da igreja, um jesuíta. Portanto seus sermões eram “ortodoxamente polêmicos”, ou seja, papistas, monarquista e anti-heréticos. Vieira acreditava que sua voz era, segundo o Concílio de Trento, a forma por excelência de mediação das verdades da fé. Como jesuíta concordava com a condenação da leitura individual da Bíblia defendida pelos protestantes. Negava ainda a idéia da incompatibilidade entre poder político e moral cristã de Maquiavel, ao mesmo tempo em que se opunha à Inquisição, defendendo a inclusão de judeus e índios no futuro império português. Sua visão da história é providencialista. Segundo Pécora (2003), a retórica de Vieira deve ser entendida como uma técnica de produção discursiva do que se supõe ser uma ocasião favorável à manifestação da presença divina, cuja latência nas palavras do pregador considera-se decisiva para mover o auditório. A idéia de mover tradicional na retórica, tem para Vieira o sentido de educação, re-orientação moral e política da nação às finalidades cristãs inscritas na natureza divinamente criada por Deus e na história humanamente produzida pelos homens. Implica em afirmar que o sermão não era uma mera peça de literatura ou piedade, mas um ato de intervenção política coletiva que 157 precisava ser apto a propor hipóteses úteis e legítimas à administração dos Estados católicos da época. Para o jesuíta, no âmbito da história, aspectos temporais e espirituais, em última instância, reportam-se a Deus, não gozando de completa autonomia de um em relação ao outro. Da mesma maneira, nenhum desses aspectos pode ser absoluto na determinação do gênero do sermão, que contempla justamente a descoberta da articulação entre ambos. Isso é precisamente o significado sacramental de seu texto. O termo Sacramentum (Sacramento) é de origem latina e apareceu na Igreja no século III, com Tertuliano (152-222). No Novo Testamento a palavra foi usada para traduzir mysterion (mistério, p. ex. Ef 5,32). Segundo a famosa definição de Santo Agostinho, “Sacramento é um sinal externo e visível de uma graça interna e invisível”. Portanto, sacramento é todo ato da Igreja capaz de transmitir graça. Como sabemos, a discussão sobre os sacramentos e a graça foi uma das grandes polêmicas entre católicos e protestantes. Pécora chama a atenção como essa categoria ganhou destaque no campo da filosofia e da política da época. O sacramento ou mistério é a categoria de mediação entre o humano e o divino, o particular e o universal, o natural e o sobrenatural, o passado e o futuro, a política e a fé: O vocabulário católico em torno da tópica do Mistério sacramental pretende dar conta dessa conjunção, na qual a sucessão dos dias realiza uma crônica da Providência que se atualiza a cada momento. Aqui, os acontecimentos históricos e suas redes de causas exigem ser interpretados como articulações de um relato tão inspirado quanto o das Escrituras. Dai a importância, para os oradores sacros, de associar a tradição cristã a exegese bíblica, enquanto ciência da interpretação alegórica dos sentidos das Escrituras, àquela da retórica antiga, mais restrita à análise dos enuciados persuassivos. (PÉCORA, 2003, p. 12). Para Vieira a verdadeira hermenêutica é a da realidade em sua totalidade e não apenas as Escrituras. Havendo uma dupla interpretação dos fatos pelos textos, e destes pelas coisas: No signo –coisa da Bíblia ou na coisa – signo da história, os objetos que se apresentam ao intérprete têm o mesmo estatuto de figuras que precisam ser lidas como fatos históricos, mas também como mensagem providencial. No modelo católico da oratória sacra dos séculos XVI e XVII, pois as Escrituras estão refiguradas nos eventos, de tal modo que a história contemporânea aos pregadores é, especularmente, a versão mais atualidade do Texto, tanto no sentido de ser mais recente no tempo, quanto no sentido de efetuar um 158 avanço na destinação providencial do universo criado. (PÉCORA, 2003, p. 12). O orador sacro, e Vieira sabia disso, precisava conhecer bem tanto as palavras quanto as coisas, de modo a obrigar ambas a se mostrarem e a se declararem no que havia de providencial e constante. Como sintetiza Pécora (2003, p. 13): A “retórica das coisas”,que é o sermão, descobre e opera esses índices de imitação. Dito de outra maneira: o sermão constitui-se analogicamente à retórica divina impressa, desde sempre, nas coisas criadas, que a hermenêutica, todavia, apenas descobre gradualmente, no discurso do tempo. A partir daí, também é possível considerar, para tocar um outro ponto iniludível deste tipo de sermão, que se constitui como uma ação verbal de descoberta e atualização dos sinais divinos ocultos na ação do mundo, com vistas à produção de um movimento de correção moral do auditório. O locus espacial e temporal onde esse sermão era o calendário eclesiástico. Portanto, convém compreender como se organizava a estrutura litúrgica do catolicismo seiscentista. A sermonística de Vieira ocupava-se, principalmente, de dois períodos litúrgicos: a das principais quadras (quaresma, epifania, sexagésima etc) e o das festas dos santos ou santoral, em especial a Virgem Maria e Santo Antonio, nas quais é lido o evangelho do dia, definidas pelo calendário litúrgico. Como sabemos, Vieira era hábil na arte de conciliar o tema do sermão (previamente estabelecido pela Igreja) e o ductus (situação do momento e características especifica do auditório). As origens do calendário da Igreja remontam ao Judaísmo. No início, a Igreja cristã esteve ligada com a sinagoga, e da sinagoga tomou o calendário básico de semana, e deu um outro enfoque: domingo, o primeiro dia da semana, dia da ressurreição, e não mais o sábado, tornou-se o centro da semana. É interessante observarmos que a maneira de chamar os nomes dos dias em português é bem cristã: Dia do Senhor (Domingo) e 2ª, 3ª e 4ª... e não segundo o nome dos planetas, como acontece nos países anglo-saxão (sunday, saturday, thursday). O domingo é o primeiro dia da semana. Entretanto, na prática, o domingo faz parte do fim da semana. O ano litúrgico foi, em grande parte, influenciado pelas mudanças que ocorreram com o estabelecimento do cristianismo e com o influxo daqueles que parcialmente se converteram do paganismo. A Festa de Natal e Epifania se desenvolveram como meios de se opor ao paganismo ou cristianizar as festas relacionadas com o solstício do inverno. O nascimento do Sol Invencível (Saturno), dies natalis Solis Invicti era 159 celebrado em Roma por volta do dia 21 de dezembro com duração de uma semana. Provavelmente por volta de 336 os cristãos fizeram do dia 25 de dezembro o nascimento de Jesus para celebrar a Encarnação. No Egito, no dia 06 de janeiro era celebrado o solstício do inverno, quando o deus sol aparecia (epifania) e era honrado com luz, água e vinho. Os cristãos escolheram este dia como festa da Encarnação e apresentação de Cristo às nações e associaram-na com três narrativas evangélicas: a visita dos reis, o batismo de Jesus e as bodas da Caná da Galiléia, sendo o evento principal o batismo de Jesus. Eventualmente, o Natal e a Epifania vieram a ser celebradas em todas as Igrejas. Com o estabelecimento do cristianismo em Roma multiplicaram-se as festas dos mártires ou santos, talvez, em parte, para combater muitos dias dedicados aos deuses, protetores ou heróis. Posteriormente, na Idade Média a Quaresma tornou-se período de penitência para todos e o Advento um período semi-penitencial em preparação para a segunda vinda de Cristo como Juiz. A Quaresma é a quadra dependente da Páscoa. A partir da Páscoa foi construído o período de jejum como se fosse um prolongamento retrospectivo da Sexta-Feira e período regulamentado de preparação para o Batismo. Houve variação no que se refere à duração desse período. Dependia de como contar os quarenta dias. Às vezes, os domingos e os sábados do período eram contados ou excluídos. Hoje os domingos estão excluídos dos quarenta dias. O número 40 inspirou-se nos quarenta dias de Jesus em jejum no deserto. Assim os sermões de Vieira escritos entre o período da Epifania, a sexagésima, tratam de temas a promessa da vinda do Messias, o mistério da Encarnação; o nascimento de Jesus, sua juventude e ministério, a sua segunda vinda ou Advento, como juiz no fim dos tempos. O sentido do período do Advento é o de preparação (para o Natal e para os últimos dias). Os domingos posteriores eram chamados também de Dominga daí o Sermão do 1º Domingo de Advento ou Dominga, que constituía justamente a abertura do calendário litúrgico, em novembro. Já os sermões escritos entre a Septuagésima à Ascensão discutem a questão da salvação e da misericórdia divina. O termo Septuagésima, deriva do latim (setenta) e denomina os 70 dias que antecedem a festa da Páscoa. Da mesma forma, a Sexagésima, que celebra os 60 dias antes dela, título do mais famoso sermão vieirense e a Qüinquagésima que estão a 50 dias da Páscoa, em fevereiro. 160 A Quaresma abarca o período de 46 dias que vai da 4ª feira de Cinza, como diziam no seu tempo até o 1º Domingo da Páscoa quando se comemorava a Ressurreição de Cristo. A quarta - feira de cinza dava início à Semana Santa, que compreende o Domingo de Ramos e o tríduo pascoal. O Domingo de Ramos celebra a entrada de Cristo em Jerusalém. O tríduo pascoal começa na Quinta-feira Santa, quando celebrava-se o sentido da sua morte na cruz e da instituição do sacramento eucarístico; a Sexta-feira Santa, centro da reflexão sobre a sua morte e o Sábado de Aleluia, com a sua Ressurreição. O tempo de Pentecostes, comemorado 50 dias depois da Páscoa, celebra a descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos e o nascimento da Igreja antecedido pela festa da Ascensão de Cristo, 40 dias antes. Foi dentro dessa estrutura que se elaboraram os lecionários (partes do antigo e novo testamento) e evangeliários da época (trechos dos Evangelhos). Todos esses elementos compõem o cenário onde surgem os sermões de Vieira. Ele, como qualquer pregador eficiente do período, domina perfeitamente esses lugares; para dizê-lo corretamente, eles já estão dados no repertório possível a ser selecionado em seu sermão. São os topos retóricos da época. Ou seja, são lugares argumentativos que estão desenvolvidos mesmo antes que Vieira começasse a escrever o sermão. Escolhemos cinco desses sermões para a nossa análise, tendo como referência a edição dos “Sermões de Antonio Vieira”, organizada por Alcir Pécora. Os sermões escolhidos foram os Sermões da Sexagésima (1655), Maria Rosa Mística (1633), Santo Antonio aos Peixes (1654), Santa Catarina, virgem e mártir (1653) e São Francisco Xavier, acorrentado (1691-1694). A escolha não seguiu um critério cronológico, mas temático. São sermões que se destacam pela sua diversidade temática. Abrangem diferentes auditórios, de rainhas a escravos, e objetivos (educação das elites, mudanças morais ou políticas, filosofia). 4.4.1. O sermão da sexagésima Comecemos pelo mais conhecido sermão de Vieira; aquele que foi escolhido como prólogo a sua sermonística quaresmal. Esse sermão foi pregado no ano de 165523, após uma visita ao Maranhão, onde encontrou enormes dificuldades missionárias entre 23 Quanto a Cronologia dos sermões seguimos a do próprio Vieira, mesmo reconhecendo as dúvidas existentes sobre as datas precisas e locais em que tais sermões foram pregados (cf. BAÊTA NEVES: 1997, p379). 161 os jesuítas. Ele marca ainda a volta do padre ao Brasil após sua tumultuada carreira de embaixador da coroa. A defesa da sua “arte de pregar”, que ele fará no púlpito, é parte da sua estratégia missionária junto à corte, que neste caso seria vitoriosa, que ele como “Payassú” (Padre Grande, em tupi) precisava defender para o Maranhão e Grão - Pará do Brasil (CHIAMPI,1998)24. O sermão deve ser visto, portanto, não apenas como um instrumento pedagógico, um “manual de retórica conceptista”, mas principalmente como uma peça de intervenção política da Companhia de Jesus na colônia: “assim, ao propor-se a tratar no SS de ‘uma matéria de grande peso e importância’, Vieira subordina a ‘arte de pregar’ nele exposta à sua experiência eclesial- evangélica - e, extensivamente à dos soldados da ecclesia militans de Inácio de Loyola, cujo projeto requeria prova a sua eficácia entre outros métodos de pregação”. Isso explica ainda a auto-identificação de Vieira com o pregador e a sutil crítica aos seus adversários, só explicitada, taticamente, nos últimos momentos da homilia: Entre os semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há outros que semeiam sem sair. Os que saem a semear são os que vão à Índia, à China, ao Japão: os que semeiam se sem sair, são os que se contentam com pregar na Pátria. Todos terão sua razão, mas tudo tem sua conta. Aos que têm a seara em casa, pagar-lhe-ão a semeadura: aos que vão buscar a seara tão longe, hão –lhes de medir a semeadura, e hão –lhes de contar os passos.ah dia do Juízo! Ah pregadores!Os de cá, achar-vos-eis com mais Paço; os de lá, com mais passos: Exijit seminare (p. 29). O local da pregação é a capela real, e o público; as elites portuguesas (realeza e nobreza), tendo o rei na primeira fila. Vieira tomou como base o evangelho do dia: Lucas 8, 1 (e nesse caso ignorou completamente a quadra litúrgica, a sexagésima): Semen est verbum Dei (Esta é, pois a parábola: a semente é a palavra de Deus.) e também os versos de Mateus 13,3: Ecce exijit. Quid seminat, seminare (E falou-lhes de muitas coisas por parábolas, dizendo: Eis que o semeador saiu a semear). É um sermão diferente, didático, metalingüístico. Nele Vieira procura responder uma questão desconcertante: por que os sermões já não são eficientes? Ao elencar todas as possíveis causas desse fenômeno, ele acaba por demonstrar como deve ser feito um 24O obejtivo imediato de Vieira era conseguir a suspensão dos “resgates” ou cativeiro dos índios, a proibição da guerra contra os mesmos sem a autorização direta do rei, controle das aldeias pelos párocos, criação da “junta de missões” na metrópole e controle dessa por um jesuita, no caso o Bispo do Japão, amigo de Vieira. Tudo isso ele conseguiu com a promulgação do Diploma régio de 9 de abril de 1655. (CHAMPI:1998). 162 sermão que seja, ao mesmo tempo, capaz de “converter e persuadir”. Portanto o sermão se propõe a ensinar aos pregadores a pregar. Para isso ele propõe uma auto-avaliação do uso da retórica sacra. Vieira apresenta-se, simultaneamente, pesquisador, professor e aluno: “quero começar pregando-me a mim. A mim será e também a vós: a mim para aprender a pregar: a vós para que aprendais a ouvir” (p.35). O sermão é composto de 10 pequenos capítulos e segue o modelo clássico dos sermões da época. A primeira parte é o exórdio, com a exposição do assunto e o estabelecimento da empatia com o auditório; a narração-confirmação que realiza a exposição e discussão dos elementos centrais do sermão e a peroração, precedida ou não de uma recapitulação dos elementos principais do debate e as conseqüências práticas do sermão. No Sermão da Sexagésima, Vieira expôs a estrutura dos seus próprios sermões: 1) definir a matéria a ser tratada; 2) reparti-la em capítulos; 3) comprová-la com o uso da Escritura; 4) confirmá-la com o uso da razão e da Tradição; 5) amplificá-la, dando exemplos do passado e do presente, respondendo às possíveis; 6) elaborar uma conclusão que leve o auditório à ação. No primeiro capítulo, Vieira realiza sua hermenêutica do texto de Mateus 13,3, expondo as dificuldades do semear e os tipos de criaturas (pedras, aves e homens). Esse prólogo serve de preparação à questão central do texto: qual a causa da crise do sermão católico? Como explicar que “sendo a palavra de Deus tão eficaz e tão poderosa”, haja “tão pouco fruto da palavra de Deus?” pergunta ele? Preocupação que não era meramente acadêmica ou teórica, mas existencial e prática: Mas ainda a do semeador do nosso Evangelho não foi a maior. A maior é a que se tem experimentado na seara aonde eu fui, e para onde venho. Tudo o que aqui padeceu o trigo, padeceram lá os semeadores. Se bem advertirdes, houve aqui trigo mirrado, trigo afogado, trigo comido e trigo pisado (...) Tudo isso padeceram os semeadores Evangélicos da Missão do Maranhão de doze anos a esta parte. Houve Missionários afogados, porque uns se afogaram na boca do grande Rio das Amazonas: houve Missionários mirrados, porque tais torturam os da jornada dos Tocantins, mirrados da fome e da doença, onde tal houve, que andando vinte e dois dias perdido nas brenhas, matou somente a sede com o orvalho que lambia das folhas. Vede se lhe enquadra se lhe quadra bem o Notum aruit, quia non habebant humorem? E que sobre mirrados, sobre afogados, sobre comidos, ainda se vejam pisados e perseguidos pelos homens: Conculcatum est? Não me queixo, nem digo, Senhor, pelos semeadores; só pela seara o digo, só pela seara o sinto. (p. 31). 163 Na seqüência (cap. II), analisa a estrutura do discurso sermonístico cristão, destacando três elementos principais: a graça divina, a mensagem do orador e a compreensão do ouvinte, que leva a tese principal: a crise do sermão deve-se à falhas no pregador (cap.III). O núcleo argumentativo do texto concentra-se nos capítulos IV e V, onde Vieira, após, analisar detalhadamente a pessoa do pregador (qui seminat), seu estilo (seminare), a matéria (semem), a voz (clamobat), chega ao diagnóstico das razões da crise da prédica sacra25. Utilizando-se, paradoxalmente, da retórica, Vieira procurou negar-lhes seus excessos. Fez um sermão visando ensinar aos pregadores, diferenciando enfaticamente ensino e retórica (“uma coisa é expor e outra é pregar, uma ensinar e outra persuadir”). De forma que se, à primeira vista, o assunto central do sermão seja a discussão de como é utilizada a palavra de Cristo pelos pregadores, isso muda com uma análise mais profunda. Vieira vai muito além disso. Discute o sentido da linguagem e os destinos da evangelização cristã. E principalmente intervém na “disputa hegemônica” sobre a direção das missões no novo mundo, ao defender a pregação jesuíta em oposição à prédica dominicana. De forma genial ele deixa para expor isso após ter “desconstruído” o modelo cultista. A tática retórica de Vieira consiste em retardar ao máximo sua tese sobre a crise da retórica católica, qual sejam os erros de alguns pregadores dominicanos, identificados como “pregar culto” e “moderno”. No melhor estilo retórico, “portanto somente no cap.V, justo no meio de um sermão que tem 10 capítulos , pode o auditor reconhecer que esse sermão, para erigir o modelo do bom sermão, monta um quadro sutil e progressivo do mau sermão. Ou, inversamente, para atacar o mau sermão , monta um quadro das regras do bom sermão” (CHIAMPI, 1998, p. 12). Mas quais são os maiores erros desses pregadores segundo Vieira? São elas de três ordens: moral, epistemológica e política. No primeiro caso os pregadores modernos não vivem o que pregam. E esquecem um dos elementos fundamentais da retórica ciceroniana: a força do exemplo. Vieira argumenta que não basta pregar, ou ensinar, para ser pregador ou educador: “Reparai. Não diz Cristo: Saiu 25Sobre o caráter dessa crise é importante notar que o que para Vieira era fruto dos erros dos autores conceptistas – a dissociação radical entre as “palavras” e as “coisas”. Foucault identificará uma profunda mudança epistemológica: “No início do século XVII, nesse período que, justificada ou injustificadamente, se denominou barroco, o pensamento deixa de se mover no elemento semelhança.A similitude já não é a forma do saber, mas antes a ocasião do erro, o período a que nos expomos quando não examinamos o local mal iluminado onde se estabelecem as confusões”. (FOUCAULT, Michael. As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. Lisboa, Portugália,1967, p. 77). 164 a semear o semeador, senão que saiu a semear o que semeia: Ecce exijit, quid seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita diferença (...) O semeador e o Pregador é nome; o que semeia e o que prega é ação; e as ações são as que dão o ser ao Pregador”, visto que “ter o nome de Pregador, ou ser Pregador de nome não importa nada; as ações, a vida, o exemplo, as obras, são o que convertem o mundo” (p.36). Há, aqui, uma visível semelhança com a ética encontrada por Max Weber (1864- 1920) entre os puritanos ingleses. Estamos diante de um novo tipo de ascetismo. Como afirma Weber: “Por outro lado, a diferença entre o ascetismo calvinista e o medieval é evidente consistiu no desaparecimento do consilia evangelica e na subseqüente transformação do ascetismo em vida terrena (...)” (WEBER, 1992, p.84). Vieira, por meio da oposição entre “boca” e “mão”, opõe o caráter ativo dos jesuítas ao especulativo dos dominicanos: “o pregar, que é falar, faz-se com a boca; o pregar, que é semear, faz-se com a mão. Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras”. É esse homus faber que Vieira deseja persuadir “Diz o Evangelho, que da palavra de Deus frutificou cento por cento. Que quer dizer isso? Quer dizer que de uma palavra nasceram cem palavras? Não. Quer dizer, que de poucas palavras nasceram muitas obras” (p.36-37). Mas a origem do erro não se encontra apenas no excessivo uso das palavras. Para Vieira o problema maior está na relação dessas com a própria realidade. Para ele, a semente é a palavra de Deus (Semen est Verbum Dei), ao dissociarem radicalmente a linguagem da realidade e as palavras do sermão da Palavra de Deus, os cultistas pregam a mentira e não a verdade, o que agrada ao povo e não a Deus, e iludidos pelos sentidos, tomam a realidade pelo que lhes convém- “um xadrez de estrelas” - servindo, enfim, ao Diabo e não a Deus: “(...) De sorte que Cristo defendeu-se do Diabo com a Escritura, e o diabo tentou a Cristo com a Escritura. Todas as Escrituras são palavras de Deus; pois se Cristo toma a Escritura para se defender do Diabo, como o Diabo toma a Escritura para tentar a Cristo? A razão é porque Cristo tomara as palavras da Escritura em seu verdadeiro sentido: e as mesmas palavras, que tomadas em verdadeiro sentido são palavras de Deus, tomadas em sentido alheio, são armas do Diabo”. (p. 47). E se não é possível ter um correto conhecimento sobre as palavras, como seria possível conhecer as demais coisas e possibilitar a conversão religiosa, que em Vieira é sinônimo de autoconsciência, pois “que coisa é a conversão de uma alma senão entrar um homem em si, e ver-se a si mesmo?”? Há ,para alguns estudiosos, semelhanças entre a compreensão de conversão presente no Sermão da Sexagésima e a idéia do Cogito de 165 Descartes encontrado nas Meditações (1655). “Tendo em vista a conversão, há que considerar primeiramente em Vieira a sua dialética, isto é, a sua habilidade em revelar a outrem, através da linguagem, o desconhecido – a própria alma em oculto – a partir do conhecido. Nesse sentido, a intenção doutrinária nos sermões de Vieira não se realiza sem uma compreensão acerca da natureza da linguagem (...)”. (CERQUEIRA, 2002, p. 80). No sermão da Sexagésima, as inúmeras alegorias buscam construir imageticamente a diferença epistemológica entre jesuítas e dominicanos. Assim contrapõe a sensualidade, a racionalidade, ao populismo estético a firmeza doutrinária; ao gozo do presente a aventura utópica da evangelização. Tudo isso a serviço da realização de seu projeto de “cristandade das Índias”, como define Enrique Dussel (CHAMPI, 1998). Mas se Vieira concorda com Descartes na prioridade da inteligência sobre o corpo, e na compreensão de consciência de si como entendimento ou inteligência (no seu sentido etimológico intelligentia- inte-llego: “ver dentro”) eles discordam quanto o papel dos sentidos e, portanto do uso da palavra na conquista do conhecimento.Em primeiro lugar porque se é verdade que “não pode entrar o homem dentro em si mesmo e ver- se a si mesmo” se lhe faltam os olhos “que é o conhecimento”; é igualmente afirmado por Vieira que tal processo não pode, como afirmava o cartesianismo, acontecer exclusivamente por meio da razão, descartando-se todo sentido e experiência , pois “somos compostos de carne e sangue, abre de tal maneira o racional,que tenha sempre respeito ao sensitivo”. A crença unilateral no poder da razão está na base da argumentação do cartesianismo e será um fato para o lento declínio da retórica, tão bem representada por Vieira. A ciência moderna, defendida por René Descartes (1596-1650) e Francis Bacon (1561-1626) busca reduzir toda racionalidade a uma Mathesis Universalis, numa linguagem depurada de qualquer ambigüidade, o que significa ferir de morte a disciplina usada para dirimir conflitos. Assim no seu Discurso do Método (1637), Descarte declara-se decepcionado com o ensino que lhe foi ministrado no colégio jesuíta de La Fréche, onde estudou de 1606 a 1614. Toda a sua filosofia é uma recusa às “inúteis humanidades”, e entre elas destaca-se a retórica que não conduz o homem a nenhuma verdade indiscutível (“não encontramos aí nenhuma coisa sobre a qual não se dispute”). Para ele somente as matemáticas são verdadeiras, visto que só elas demonstram o que afirmam (“as 166 matemáticas agradavam-me, sobretudo por causa da certeza e da evidência de seus raciocínios”). Esse é o núcleo constitutivo, o preceito metodológico básico apontado no interior do discurso, ou seja, que só devemos considerar como verdadeiro o que for intuitível com clareza e precisão. Como ele mesmo relata ‘aqui está por que, apenas a idade me possibilitou sair da submissão aos meus preceptores, abandonei totalmente o estudo das letras e, decidindo-me a não mais procurar outra ciência além daquela que poderia encontrar em mim mesmo, ou seja, no grande livro do mundo (...)” (DESCARTES: 1999, p.40). A conclusão de Descartes é a de que não há lugar na educação para o conflito, nem necessidade de discussão, uma vez que a verdade é apenas uma e apresenta-se ao espírito através da razão que é individual e está presente em todos os homens, podendo ser encontrada diretamente, em si mesmo ou no “grande livro da natureza”. Tudo isso é estranho ao pensamento de Vieira. Para ele não há como ensinar a verdade senão por meio do uso da palavra, e, portanto, da retórica. Como sabemos qualquer discurso (educacional, científico ou religioso) tem sempre um contexto e um auditório. A adaptação do primeiro ao segundo é condição sine qua non para a compreensão da mensagem. É nisso que consiste o fenômeno da “persuasão”. Era isso que Vieira criticava nos seus adversários. Para Vieira somente o bom pregador pode possibilitar a conversão dos homens. Os seus adversários não faziam isso porque compreendem mal a realidade e usam mal as palavras. O pregador precisa pregar como “as estrelas do céu” e não fazer do “céu uma xadrez de estrelas”26: O pregar há de ser como quem semeia, e não como quem ladrinha, ou azuleja (..) Não fez Deus o Céu em xadrez de estrelas, como os Pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte está Branco, da outra há de estar Negro; e de uma parte está Dia, da outra há d estar Noite; se de uma parte dizem Luz, da outra hão de dizer Sombra; se de uma parte dizem Desceu, da outra hão de dizer Subiu. Basta que não hajamos de ver um sermão duas palavras em paz? Todas hão de estar sempre fronteira com o contrário? Aprendamos do Céu o estilo da disposição, e também o das palavras. Como hão de ser as palavras?Como as estrelas. As estrelas são muito distintas, e muito claras e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem, e tão alto que tenham muito que entender nele os que sabem. (VIEIRA, 2003, p. 40). 26Aliás note-se que essa expressão é retirada da metáfora do livro El Criticón de 1651, de Baltasar Gracián o maior teórico da retórica cultista. 167 Para Vieira o “escândalo essencial” dos maus pregadores consiste num duplo equívoco: semântico e teológico. No primeiro caso, no já citado distanciamento entre a forma de expressão dos sermões gongoristas (os “signos obscuros”) e a substância real dessa expressão (a Palavra de Deus). A conseqüência disso, segundo Vieira, era o surgimento da heresia, pois “se Deus é clareza, ordem, harmonia, o sermão moderno é obscuridade, desordem, confusão; há, portanto um ‘ruído’ nestas palavras que não exprimem o ‘verdadeiro sentido’: elas são o sentido ‘alheio e torcido’, são ‘armas do Diabo’ e ‘tentação’. A linguagem moderna do sermão barroquista é a negação da sentença bíblica: Semem est Verbum Dei, que Vieira enfatiza nesse semem – tão próximo de semeion (signo) – para restituir a semelhança do discurso com o objeto significado”. (CHAMPI: 1998, p. 145). É nesse ponto que a crítica de Vieira torna-se pouco sutil, classificando seus adversários de loucos, palhaços ou efeminados: “vestir como religioso e falar, como...não quero dizer por reverência do lugar”. Na sua estrutura argumentativa Vieira relaciona as qualidades do pregador autêntico à virilidade masculina (“os varões apostólicos” do passado), deixando aos maus pregadores ou hereges os atributos femininos. Isso não passou despercebido pela poetisa e dramaturga Sóror Juana Inês de la Cruz (1648-1695), que lhe escreveu uma notável resposta feminina, coisa que acabou custando-lhe a paz e a biblioteca27. Finalmente, o último dos erros, e alvo da sua crítica velada aos pregadores “cultos e modernos”, representado na figura do inquisidor dominicano Frei Domingos de São Tomás – o pregador que desfrutava “o paço” da corte (CHAMPI, 1998) – a incapacidade de transformar em obras as palavras do sermão. Eis o núcleo da sua peroração (capítulo X): pregar não é agradar ao auditório, mas levá-lo a transformação, “semeadores do evangelho, eis aqui o que devemos pretender nos nossos sermões, não que os homens saiam contentes de nós, senão que saiam muito descontentes de si; não lhes pareçam bem os nossos conceitos, mas lhes pareçam mal os seus costumes, as suas vidas, os seus passatempos, as suas ambições, e enfim, todos os pecados” (p.52). Eis a diferença entre ensinar e pregar, segundo Vieira: o recurso da lógica para a ação. Por isso utilizar-se não apenas da lógica dos silogismos, mas da beleza das metáforas e aliterações, não apenas da frieza da razão, mas do calor dos sentimentos e emoções. Mas será que haveria tanta diferença assim? 27Trata-se Carta Atenagógica (1690) escrita por essa religiosa católica mexicana, conhecida por sua erudição e pelas posturas revolucionárias para a época, razão por que é chamada de “fenix” e “primeira feminista das Américas. 168 Enfim, procuramos mostrar que o Sermão da Sexagésima, apesar de escrito há cerca de quatro séculos, ainda tem algo a nos dizer. Não nos impressiona apenas pela riqueza de estilo, presente nas inúmeras citações bíblicas, em português ou latim, pela sua cultura clássica presente nas citações de filósofos e teólogos, sem perder a objetividade e o centro de sua mensagem. Mais que simplesmente convencer o sermão quer também seduzir, por meio das metáforas visuais como a da luz: “Para um homem se ver a si mesmo são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos”, que ele oportunamente liga com o tema central do seu discurso: “Que coisa é a conversão de uma alma senão entrar um homem dentro de si mesmo, e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessária luz, e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. Ora, suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador, e do ouvinte; por qual deles havemos de entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus?”. O sermão aborda o tema com uma força tal que consegue se comunicar com o leitor, atraindo sua atenção para as questões abordadas por ele, mesmo apesar da barreira da cultura e do tempo. Por isso ele é um clássico: porque embora diferente, continua atual e oportuno. No sermão da sexagésima, Vieira faz mais que ensinar nos desafia a pensar: seminare semen! 4.4.2. Sermão de Santo Antonio aos Peixes O Sermão de Santo Antônio aos Peixes foi pregado por Vieira em 1654 na Igreja de São Luiz do Maranhão. O seu título deve-se ao fato de ter sido pronunciado no dia da festa de Santo Antônio de Pádua (1195-1231), padre e doutor da igreja e ao seu caráter claramente alegórico. Como afirma o próprio Vieira afirma “esse sermão (que é todo alegórico) pregou o Autor três dias antes de embarcar ocultamente para o reino” (VIEIRA: 2003, p. 317). Esse é um dos mais criativos e fortes sermões de Vieira que foi pregado no auge da luta dos jesuítas contra a escravização dos índios. Seu público era composto 169 exatamente pelos seus inimigos: os colonizadores portugueses. Por tudo isso Vieira irá associar sua situação à vida do santo franciscano português. Fernando de Bulhões y Taveira de Azevedo, nasceu em 1195, na cidade de Lisboa, de família guerreira, descendente dos cruzados, tornou-se frade franciscano, recebendo o nome de Antonio. Destacou-se como eximiu pregador, teólogo e combatente das “heresias” em toda a Europa, especialmente na cidade de Pádua, na Itália (LODI: 2001). Aproveitando-se de todas essas semelhanças, em especial a de ser Antonio um “santo português”, Vieira ira tomar uma de suas lendas hagiográficas como mote para elaborar uma fina crítica aos costumes da colônia: Pregava Santo António em Itália na cidade de Arimino, contra os hereges, que nela eram muitos; e como erros de entendimento são dificultosos de arrancar, não só não fazia fruto o santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida (...) Pois que fez? Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes. Tomando por base o texto do Evangelho do Dia (Mateus, 5, 13): Vos estis sal terrae (“Vos sois o sal da terra”) Vieira divide o sermão em seis capítulos em que são feitos os louvores e as qualidades dos peixes da colônia. O capítulo primeiro trata do exórdio; os capítulos II ao V a confirmação e o capitulo VI a peroração. Na abertura do sermão, Vieira, ao interpretar o Evangelho, introduz a sua célebre pergunta: quais as causas da ineficácia dos sermões? Relaciona a resposta ao texto bíblico e explica qual sua relação com a festa do dia. Como um bom conceptista, sua argumentação apóia-se no paralelismo sintático, na repetição anafórica das alternativas que constroem o núcleo central do seu raciocínio: “Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra não se deixa salgar” (p. 317). Introduz a tese que “nas festas dos Santos é melhor pregar como eles, que pregar deles” (p. 318). Vieira procura, usando dessa alegoria, reduzir o máximo possível a repetência inicial de seu auditório: Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes? Nunca pior auditório. Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam. Uma só cousa pudera desconsolar ao pregador, que é serem gente os peixes que se não há-de converter. Mas esta dor é tão ordinária que já pelo costume quase se não sente. Por esta causa não falarei hoje em Céu e Inferno: e assim será menos triste este sermão, do que os meus parecem aos homens, pelos encaminhar sempre à lembrança destes dois fins (...) Isto suposto, quero hoje, à 170 imitação de Santo António, voltar-me da terra ao mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto que bem me ouvirão. Os demais podem deixar o sermão, pois não é para eles. Segundo ainda o simbolismo do sal, que possui segundo o Evangelho duas propriedades (conservar e preservar da corrupção), Vieira dividiu o sermão igualmente em duas partes: os louvores dos peixes e os defeitos dos peixes: Vos estis sal terrae. Haveis de saber, irmãos peixes, que o sal, filho do mar como vós, tem duas propriedades, as quais em vós mesmos se experimentam: conservar o são e preservá-lo para que se não corrompa. Estas mesmas propriedades tinham as pregações do vosso pregador Santo António, como também as devem ter as de todos os pregadores. Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o bem para o conservar e repreender o mal para preservar dele. Nem cuideis que isto pertence só aos homens, porque também nos peixes tem seu lugar (...) Suposto isto, para que procedamos com clareza, dividirei, peixes, o vosso sermão em dois pontos: no primeiro louvar- vos-ei as vossas virtudes, no segundo repreender-vos-ei os vossos vícios. E desta maneira satisfaremos às obrigações do sal, que melhor vos está ouvi-las vivos, que experimentá-las depois de mortos. A maior das qualidades dos peixes é a obediência, ou seja, o ato de ouvir atentamente o pregador e a mensagem do sermão, Vindo pois, irmãos, às vossas virtudes, que são as que só podem dar o verdadeiro louvor, a primeira que se me oferece aos olhos hoje, é aquela obediência com que, chamados, acudistes todos pelas honra de vosso Criador e Senhor, e aquela ordem, quietação e atenção com que ouviste a palavra de Deus da boca de seu servo António. Oh grande louvor verdadeiramente para os peixes e grande afronta e confusão para os homens! Entre as qualidades particulares dos peixes ele destaca as observadas na rêmula (determinação para atingir seus objetivos), o torpedo (piedade), quatro-olhos (prudência). Mas é na análise dos defeitos dos peixes que o sermão se aprofunda. Entre os principais defeitos dois são destacados pelo jesuíta: os peixes comem-se uns aos outros e são ignorantes e cegos. Na seqüência, o pregador seleciona ainda quatro peixes e põe em destaque os seus defeitos. De forma que os roncadores personificam a arrogância; os pegadores, a servidão ou o parasitismo; os voadores, a ambição e o polvo a traição. Vejamos como isso se sucede no texto: 171 A primeira coisa que chama a atenção ao lermos atentamente esse sermão é a oposição entre duas formas de existência: a dos peixes (natural e boa) e a dos homens (social e perversa). Assim, por exemplo, os peixes ouvem, mas não falam; os homens falam muito e ouvem pouco. Os homens recusaram ouvir a palavra de Deus e os peixes acorreram todos. Todos os animais se podem domesticar, os peixes vivem em liberdade. O pregador nos leva a uma conclusão, repetida de múltiplas formas e vezes: quanto mais longe dos homens, melhor. As qualidades dos peixes derivam deles serem eles mesmos e os seus defeitos de imitarem os mal feitos humano. Portanto o “estado de natureza” dos peixes é melhor que a “civilização dos homens”, (...) Falando dos peixes, Aristóteles diz que só eles, entre todos os animais, se não domam nem domesticam. Dos animais terrestres o cão é tão doméstico, o cavalo tão sujeito, o boi tão serviçal, o bugio tão amigo ou tão lisonjeiro, e até os leões e os tigres com arte e benefícios se amansam. Dos animais do ar, afora aquelas aves que se criam e vivem conosco, o papagaio nos fala, o rouxinol nos canta, o açor nos ajuda e nos recreia; e até as grandes aves de rapina, encolhendo as unhas, reconhecem a mão de quem recebem o sustento. Os peixes, pelo contrário, lá se vivem nos seus mares e rios, lá se mergulham nos seus pegos, lá se escondem nas suas grutas, e não há nenhum tão grande que se fie do homem, nem tão pequeno que não fuja dele. Os autores comumente condenam esta condição dos peixes, e a deitam à pouca docilidade ou demasiada bruteza; mas eu sou de mui diferente opinião. Não condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro, e me parece que, se não fora natureza, era grande prudência. Peixes! Quanto mais longe dos homens, tanto melhor; trato e familiaridade com eles, Deus vos livre! Percebe-se que a primeira das características encontradas no mundo dos peixes é a autonomia “lá se mergulham nos seus pegos, lá se escondem nas suas grutas, e não há nenhum tão grande que se fie do homem, nem tão pequeno que não fuja dele”, seguida pela liberdade: Se os animais da terra e do ar querem ser seus familiares, façam-no muito embora, que com suas pensões o fazem. Cante-lhes aos homens o rouxinol, mas na sua gaiola; diga-lhes ditos o papagaio, mas na sua cadeia; vá com eles à caça o açor, mas nas suas piozes; faça-lhes bufonarias o bugio, mas no seu cepo; contente-se o cão de lhes roer um osso, mas levado onde não quer pela trela; preze-se o boi de lhe chamarem formoso ou fidalgo, mas com o jugo sobre a cerviz, puxando pelo arado e pelo carro; glorie-se o cavalo de mastigar freios dourados, mas debaixo da vara e da espora; e se os tigres e os leões lhe comem a ração da carne que não caçaram no bosque, sejam presos e encerrados com grades de ferro. 172 Impossível não associar essas metáforas aos conceitos de Natureza e Bom selvagem encontrados no “pai da pedagogia moderna”: Jean Jacques Rousseau (1712- 1778). Diga-se de passagem, que havia um elemento inegavelmente comum aos dois educadores. Para ambos, educação e política estavam intimamente ligadas. Em Rousseau “uma é o pressuposto e o complemento da outra, e juntas tornam possível a reforma integral do homem e da sociedade, reconduzindo-a por vias novas – para a recuperação da condição natural, ou seja, por vias totalmente artificiais e não ingênuas, ativadas através de um radical esforço racional” (CAMBI, 1999, 343). Além disso, ambos compartilham de belas e fortes “metanarrativas”: um deseja a redenção da humanidade, por meio da criação de um mundo sem escravidão ou violência, representado pelo Quinto Império; outro salvar o homem do mal, levando-o a se reencontrar com a liberdade e a natureza. Ao seu modo procuravam responder as exigências que a descoberta havia causado no próprio Ocidente. É nesse contexto de descoberta do Outro que surge o mito do bom selvagem, aliás, compartilhado por outros autores, por exemplo: A percepção que Las Casas tem dos índios não é mais nuançada do que a de Colombo, no tempo em que este acreditava no “bom selvagem”, e Las Casas quase admite que projeta sobre eles seus ideal ; “os lucayos (...) viviam realmente como a gente da Idade do Ouro, uma vida que poetas e historiadores tanto louvavam”, escreve, ou ainda, a propósito de um Índio: “Tinha impressão de ver nele nosso pai Adão, no tempo em que viva no estado da Inocência” (TODOROV: 20003, p. 236). Escrito entre 1753 e 1754, o Emilio, ou da educação, irá propor uma pedagogia do “retorno à natureza” na busca por recriar a bondade inerente ao ser humano que havia sido perdida pelo contato com a civilização. Assim Vieira cita o exemplo de Santo Antonio que abandonou a capital de Portugal, Lisboa, para se refugiar na floresta, em busca da verdade: Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens. Perguntando um grande filósofo qual era a melhor terra do Mundo, respondeu que a mais deserta, porque tinha os homens mais longe. Se isto vos pregou também Santo António – e foi este um dos benefícios de que vos exortou a dar graças ao Criador – bem vos pudera alegar consigo, que quanto mais buscava a Deus, tanto mais fugia dos homens. Rousseau proporá o mesmo para o seu Emilio, que será educado no campo, longe das influências corruptas do ambiente social, sujeito apenas às exigências da natureza, pois como anuncia na primeira página do seu livro “Tudo é certo em saindo 173 das mãos do Autor das coisas, tudo degenera nas mãos dos homens” (ROUSSEAU, sd, p.9). Sobre o conceito de Natureza Cambi faz a seguinte observação: Cabe lembrar, porém que “natureza” no texto de Rousseau assume pelo menos três significados diferentes: 1. como oposição àquilo que é social; 2. como valorização das necessidades espontâneas das crianças e dos processos livres de crescimentos; 3. como exigência de um continuo contato com um ambiente físico não –urbano e por isso considerado genuíno. Trata-se, desse modo, de operar uma “naturalização” do homem, capaz de renovar a sociedade européia moderna que chegou a um estado de evolução (e de corrupção) que torna impossível a sua reforma política, segundo o modelo republicano - democrático do “pequeno estado”.(CAMBI: 1999, p. 546). Embora Vieira não seja tão pessimista (e nem idealista) quanto Rousseau, ele também defendia a necessidade de se reformar a humanidade, para que era necessário justificar a existência de alguma coisa comum a brancos e índios, homens e aos peixes: a natureza humana. Como sabemos essa era uma questão importantíssima para os jesuítas, pois dela dependia a possibilidade da evangelização. Aliando-se com Las Casas Vieira se opõe a Sepúlveda que nega a humanidade aos “peixes”: As “provas” recolhidas por Sepúlveda apontam para a mesma insuficiência: o canibalismo, o sacrifício, humano, o enterro da esposa, todos implicam que não se reconhece plenamente ao outro o estatuto de humano, simultaneamente semelhante e diferente. ora, a pedra de toque da alteridade não é o Tu presente e próximo, mas o ele ausente e afastado”. (TODOROV, 2003,p. 228). Vieira sabia disso quando jogava com a dialética entre peixes e homens, mares e praças, campos e cidades: “E, entretanto vós, peixes, longe dos homens e fora dessas cortesanias, vivereis sós convosco, sim, mas como peixe na água. De casa e das portas adentro tendes o exemplo de toda esta verdade, o qual vos quer lembrar, porque há filósofos que dizem que não tendes memória”. Sabemos o que está em jogo nessa frase. Ter ou não memória não era uma questão de biologia ou psicologia, mas de ontologia e política. Ao defender a existência da memória nos peixes, Vieira está lhes dando o atributo fundamental para os homens, segundo o pensamento da segunda escolástica. Mas se os peixes são como os homens como explicar tanta diferença entre os seus mundos?Aqui, a argumentação é bem mais complexa: “antes, porém, que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões. Servir-vos-ão de confusão, já que não seja de 174 emenda. A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros”. Porém, o que pode ser motivo de justificativa para a arrogância dos homens torna-se uma forma de explicar os peixes “Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os Brancos”. Eis o nó gótico da alteridade, a justificativa para toda guerra justa ou omissão. Vieira procura desmanchar esse nó, no que foi seguido Las Casas e Montaigne. Diante do sacrifício humano dos astecas ou da antropofagia dos tupis, como continua sendo cristão e defendendo a humanidade de seres tão diferentes? Todorov mostra como Las Casas foi avançando lentamente nesse sentido. Os argumentos encontrados na sua Apologia e Apologética Histórica seguem diversos caminhos. Em primeiro lugar, ele mostra que o fato do canibalismo ser um mal, isso não implica que sua eliminação pela violência traga necessariamente o bem, é possível que provoque ainda mais mal (que é a história da colonização); depois lembra que há costumes diferentes e que bons cidadãos são aqueles que cumprem as leis dos seus países, portanto teoricamente um índio poderia estar simplesmente cumprindo seu dever etc; lembra, ainda, que o sacrifício humano é mais comum que se imagina, sendo encontrado inclusive em diversas passagens da Escritura.Porém como lembra Todorov: A segunda afirmação (que aparece em primeiro lugar na argumentação de Las Casas) é ainda mais ambiciosa: trata-se de provar que o sacrifício é aceitável não somente depor razões de fato como também de direito. Ao fazê-lo, Las Casas é levado a pressupor uma nova definição do sentimento religioso, e é aí que seu raciocínio é particularmente interessante. Os argumentos são tirados da “razão natural”, de considerações a priori acerca da natureza humana. (TODOROV, 2003, 273) As conseqüências são semelhantes às apresentadas por Vieira, nessa longa passagem: Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer e como se hão-de comer. Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o 175 miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem- no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os credores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-a a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra. Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós. Igual conclusão chega Las Casas por outro caminho: É, pois, ao enfrentar o argumento mais incomodo que Las Casas se vê obrigado a modificar sua posição e ilustra assim uma nova variante do amor pelo outro; um amor não mais assimilacionista, mas, de certo modo, distributivo: cada um tem seus próprios valores; a comparação só pode ser feita no nível das relações entre o ser e o seu deus – e não no nível das substâncias: só há universais formais. Embora afirme a existência de um único deus, Las Casas não privilegia a priori a via cristã de se chegar a ele. A igualdade já não é estabelecida à custa da identidade, não se trata de um valor absoluto: cada um tem o direito de se aproximar de deus pelo caminho que lhe convier. Não há mais um verdadeiro Deus (o nosso), mas uma coexistência de universos possíveis: se alguém o considerar verdadeiro(...).(TODOROV, 2003, p. 276) Isso faz com que Todorov (com um pouco de exagero) afirme que “Las Casas, sub-repticiamente, deixa a teologia e passa a praticar uma espécie de antropologia religiosa, o que, nesse contexto, é realmente subversivo, pois parece que quem assume um discurso sobre a religião dá um passo em direção ao abandono do próprio discurso religioso” (idem, p. 276-277). Las Casas, ao se abrir à presença desafiadora do Outro, transformou-se (ou converteu-se), sem perder sua própria identidade, e nesse encontro, ampliou sua visão de mundo. Segundo Todorov “ao afirmar a igualdade em detrimento da hierarquia, Las Casas reata com um tema cristão clássico, como indica a referência a São Paulo, citada também na Apologia e em outra, a do Evangelho segundo São Mateus: “Tudo o que quereis que os homens façam por vós fazei-o por eles” (7,12). ‘É algo’, comenta Las Casas, ‘que todo homem conhece, percebe e compreende graças à luz natural que foi repartida entre nossos espíritos” (TODOROV: 2203, p. 278). Assim os conceitos de “participação” e “revelação natural”, oriundos do tomismo são utilizados (e resignificados) na interpretação dos problemas do novo mundo. 176 Ora, o reconhecimento, embora diferente, de Vieira da alteridade dos peixes é o que lhe permite entender melhor a ipsidade dos homens. Assim deixando de lado as considerações moralistas, pode concentrar-se na crítica ética: Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai como estranha isto Santo Agostinho: Homines pravis, praeversisque cupiditatibus facti sunt, sicut pisces invicem se devorantes: “Os homens com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros” Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer! Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens. E ainda: Diz Deus que comem os homens não só o seu povo, senão declaradamente a sua plebe: Plebem meam, porque a plebe e os plebeus, que são os mais pequenos, os que menos podem e os que menos avultam na república, estes são os comidos. E não só diz que os comem de qualquer modo, senão que os engolem e os devoram: Qui devorant. Porque os grandes que têm o mando das cidades e das províncias, não se contenta a sua fome de comer os pequenos um por um, ou poucos a poucos senão que devoram e engolem os povos inteiros: Qui devorant plebem meam. E de que modo os devoram e comem? Ut cibum panis: não como os outros comeres, senão como pão. De forma que se o canibalismo dos índios era esporádico a exploração dos brancos era constante: A diferença que há entre o pão e os outros comeres, é que para a carne, há dias de carne, e para o peixe, dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses no ano; porém o pão é comer de todos os dias, que sempre e continuadamente se come: e isto é o que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo nem fazendo ofício em que os não carreguem, em que os não multem, em que os não defraudem, em que os não comam, traguem e devorem: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis. 177 Vieira se aproxima aqui de Michel de Montaigne (1533-1592), que foi um dos primeiros a chamar a atenção para a influência que a cultura exerce sobre o conhecimento e a educação. No seu livro Ensaios (1580; 1595) realiza a primeira crítica contundente à idéia de “bárbaro” presente na filosofia desde Aristóteles.Todo o capítulo XXXI é dedicado a analisar esse fato, tendo por base os escritos de Villegaignon (1510- 1571) na “França Antártica”, ou seja, no Brasil, pois como ele mesmo afirma “essa descoberta de um imenso país parece de grande alcance e prestar-se a sérias reflexões” (MONTAIGNE: 1996, p.193). Após realizar uma comparação entre os costumes dos homens no decorrer da história até chegar aos índios brasileiros, conclui seu argumento afirmando “acho [..] que nesse povo não há nada de bárbaro e de selvagem, pelo que me contaram senão que cada um chama bárbaro aquilo que não é de seu uso”, visto que a barbárie, se existir, é uma constante a todos os homens e não apenas aos índios “penso que há mais barbárie em comer vivo que comê-lo morto [...] podemos bem chamá-los de bárbaros, segundo as regras da razão, mas não em relação a nós mesmos, que os superamos em todo tipo de barbárie” (MONTAIGNE, 1996, p. 195 e 199). Montaigne admite certo relativismo cultural ao lembrar que “[...] e é natural, porque só podemos julgar da verdade e da razão de ser das coisas pelo exemplo e pela idéia dos usos e costumes do país em que vivemos. Neste, a religião é sempre a melhor, a administração excelente e tudo o mais perfeito [...]” (p.195); para depois reintroduzir a questão da ética, só que agora incorporando a sua argumentação o olhar do outro, ao relatar a percepção deste sobre a sociedade européia: [...] observaram que há entre nós gente alimentada, gozando as comodidades da vida, enquanto metades de homens emagrecidos, esfaimados, miseráveis mendigam às portas dos outros [ em sua linguagem metafórica as tais infelizes chamam “metades”] ; e acham extraordinário que essas metades de homens suportem tanta injustiça sem se revoltarem e incendiarem as casas dos demais (MONTAIGNE, 1990, p. 203). Mas os sermões de Vieira não eram aulas de etnografia. Seu objetivo final não era tornar o auditório mais culto, porém santo. A mudança de atitude e não a simples contemplação: Parece-vos bem isto, peixes? Representa--me que com o movimento das cabeças estais todos dizendo que não, e com olhardes uns para os outros, vós estais admirando e pasmando de que entre os homens haja tal injustiça e maldade! Pois isto mesmo é o que vós fazeis. Os 178 maiores comeis os pequenos; e os muito grandes não só os comem um por um, senão os cardumes inteiros, e isto continuamente sem diferença de tempos, não só de dia, senão também de noite, às claras e às escuras, como também fazem os homens. A conclusão de Vieira é que a violência é uma constante das sociedades, pois onde há poder há dominação e resistência: Entre os peixes e os homens a preferência de Vieira é pelos primeiros, “ah peixes, quantas invejas vos tenho a essa natural irregularidade!”. Isso longe de igualar os povos, pode nos ajudar a pensar e a melhorar nossos costumes e instituições. 4.4.3. Sermão XIV da Série Maria Rosa Mística Vieira pregou entre os índios, entre os colonos; entre os nobres e ao povo simples; nas cortes, palácios, colégios, engenhos e igrejas; entre os escravos e entre seus senhores. Dentre seus sermões destaca-se este, pregado em 1633. Foi o primeiro sermão que o autor pregou em público antes de ser sacerdote (“mas, que fará cercado das mesmas obrigações, tantas e tão grandes, quem não só falto de semelhante espírito, mas novo ou noviço no exercício e na arte, é esta a primeira vez que, subido indignamente a tão sagrado lugar, há de falar dele em público?”) e, justamente, aos negros da irmandade do rosário do engenho baiano. A escravidão negra foi tema de quatro de seus sermões XIV, XVI, XX e XXVII do Rosário. O XIV é o mais polêmicos do jesuíta. Os críticos se dividem entre vê-lo como uma primeira tentativa de afirmação dos direitos dos negros ou uma brilhante peça do racismo. Podendo ser aplicado a todo o sermão o que Vieira reserva apenas a terceira parte: “Este parece o ponto mais dificultodo desta proposta” (p. 63). O sermão tem por principal objetivo despertar a devoção mariana entre os negros por meio da devoção do rosário. O rosário é um dos grandes instrumentos didáticos da fé católica. Na verdade a utilização de instrumentos como esse nas orações é comum a diversas religiões do Oriente, especialmente entre os monges. Assim judeus, islâmicos e budistas o utilizam. Diferente, porém do rosário bizantino o latino surge da necessidade de se resolver um dilema pedagógico: o que fazer para que os monges recitassem os 150 salmos do saltério quando grande parte deles era analfabeta?A solução foi a criação de um rosarium, com base na fórmula de medida e repetição. O nome é uma alusão à forma como era conhecida a Mãe de Cristo na Idade Média: Rosa Mística e consiste na recitação diária de 165 contas, correspondentes a 15 dezenas de ave - marias e 15 pai- 179 nosso. Cada terça parte do rosário é dedicada à meditação de um dos mistérios, momentos da vida de Cristo e sua mãe. Assim têm-se os mistérios gozosos, ligados ao nascimento; os dolosos à cruz e os gloriosos à ressurreição e vida eterna. Isso, será, como veremos depois essencial à argumentação de Vieira. A devoção a Maria ocupa um lugar especial na evangelização das colônias, tendo sido usada como uma importante estratégia de conversão dos povos. Exemplo disso são as chamadas aparições da Virgem num sonho a Paraguassu, mulher índia de Diogo Álvares. Essas aparições fizeram com que a devoção mariana se tornasse um fenômeno tipicamente colonial. De forma que surgem a Virgem de Guadalupe no México, Lujan na Argentina; Copacabana na Bolívia; Mercedes no Peru. Guápulo no Equador; Caacupé no Paraguai e Aparecida no Brasil (ANDRADE, 2002). Andrade, comentando um texto de Octávio Paz, onde esse afirma que “a criação mais complexa e singular da Nova Espanha não foi individual, mas coletiva, e não pertence à ordem artística, mas religiosa: o culto à virgem de Guadalupe”; lembra essa devoção. É um exemplo de resignificação e mestiçagem das culturas. Assim, Guadalupe que é um nome de origem Árabe como também Fátima, possui a pele morena como Aparecida, daí ser conhecida como “La morenita”: Mas o culto guadalupano é entendido como uma criação mexicana porque, embora tenha sua origem na Espanha, ele foi objeto de alterações realizadas por religiosos franciscanos que buscavam assimilar características de uma divindade indígena feminina denominada Tomantzin, o que resultou numa devoção sincrética que teve como objetivo facilitar a conversão dos índios. É importante salientar a pele morena das imagens milagrosas que representam as Nossas Senhoras que conquistará a devoção dos índios, identificada por eles como a deusa terra ou a mãe dos povos. Apesar disso, esta devoção passou a ser compartilhada pelos diferentes segmentos que compunham a sociedade colonial (...) (ANDRADE, 2002, p. 65). No caso dos negros brasileiros a situação foi um pouco diferente. Havia diferentes Marias para diferentes classes e etnias: os brancos preferiam nossa senhora de Lourdes; os negros a do Rosário, havendo até mesmo uma Nossa Senhora de Nazaré, para os cristãos novos. A esse respeito Lipiner (apud AZZI, 2005,p. 12) escreve, (...) enquanto alguns guardavam simultaneamente os sábados e os domingos, como era comum entre os judaizantes, outros passavam a proclamar, ingenuamente talvez, e manifestando sua tendência ao sincretismo, que inclusive suas praticas judaizantes eram levadas a efeito em honra de Nossa Senhora (...) Tal sincretismo constitui 180 também um dos aspectos mais curiosos e mais sutis da resistência oferecida pelo cripto-judeus brasileiros ao credo obrigatório da colônia. Isso só era permitido devido ao fato do sábado ter sido consagrado a Maria, como o domingo havia sido feito a Jesus. Esse “repouso sabático” ou “Direito do sábado” existente no Brasil, consistia “de reservar ao Senhor um dia da semana, e geral os sábados (certamente influência dos judaizantes) , para cuidar o escravo da própria economia, plantando , caçando, pescando, a fim de correr por sua conta e risco a alimentação”. É evidente que tal coisa desagradava a ortodoxia católica e despertava a ira da Inquisição. Numa sociedade “eclesiocêntrica”, entende-se porque os centros de devoção e as confrarias eram os espaços de maior liberdade religiosa do Brasil colonial. A irmandade do rosário dos pretos, a qual Vieira pregou era uma delas. Sabe-se que a devoção negra a Nossa Senhora do Rosário está associada à batalha de Lepanto e à atuação dos pregadores dominicanos, que, no seu esforço de integrá-los à sociedade católica e branca, criaram as irmandades (AZZI, 2005). Transferidas da metrópole para colônia, as confrarias do Rosário constituíram uma fòrmula significativa de possibilitar aos negros o acesso à sociedade católica: As associações do Rosário permitiam que o escravo e outros homens de cor se reunissem dando razão às tendências gregárias ou lúdicas. Como as celebrações eram ordinariamente religiosas e assim abertas à população, qualquer festa católica poderia proporcionar tais oportunidades, mas era na comemoração de seus santos protetores que o preto se torna o organizador, o “dono” da festa, patrocinando-a a seu gosto. Desse modo, a confraria era praticamente a única instituição aberta ao homem de cor, dentro da legalidade, onde, esquecida a sua situação de escravo, poderia viver como um ser humano. (SCARANO apud ASSIZ, 2002, p. 104). Vieira prega seu sermão em uma dessas confrarias, aos próprios negros, no dia da festa de São João Evangelista. Já havia nessa época presença de movimentos quilombolas próximos aos engenhos da Bahia. Associe-se a isso a presença de escravos e senhores no auditório que se perceberá a tensão argumentativa do texto. O sermão divide-se em nove partes. O topus da pregação é a questão do duplo nascimento e da analogia com o rosário: “Temos hoje - por outro modo do que já o disse - três dias em uma festa: o dia e a festa de S. João, o dia e festa da Senhora do Rosário, e o dia e a festa dos pretos, seus devotos” (.p.633). 181 O texto do Evangelho do dia é o de Mateus 1, 16 : Maria de qua natus est Jesu, qui vocatur Christus (E Jacó gerou a José, marido de Maria , da qual nasceu Jesus, que se chama Cristo). A tese de Vieira é que cada um desses nascimentos corresponde a uma função, como contas de um rosário. É na quinta parte que ele dedicará maior atenção. Vieira inicia sua argumentação com uma história bastante conhecida do seu auditório: Porque, como se refere nas histórias dominicanas, indo o patriarca S. Domingos para pregar de S. João em tal dia como hoje, ao tempo que recolhido a uma capela da mesma igreja se estava encomendando a Deus, lhe apareceu a Virgem Maria, e lhe mandou que deixasse o sermão que tinha meditado de S. João, e pregasse o seu Rosário. Fê-lo assim o grande Patriarca dos Pregadores, e o fruto do sermão que, pelo zelo e eficácia do pregador sempre costumava ser grande, pela graça e virtude de quem o mandou pregar foi naquela ocasião muito maior e mais patente com igual proveito e admiração dos ouvintes. Vieira utiliza-se de uma técnica retórica para atingir seu auditório, composto majoritariamente pelos escravos, mas também por seus senhores e torturadores. Faz então uma série de perguntas, respondendo-as ele mesmo com citações bíblicas. Vieira faz uma rápida leitura da histórica do povo negro, desde as profecias do Antigo Testamento (os “da Etiópia”) até a sua atual situação de escravidão. Busca com isso explicar e, assim justificar, a situação de opressão e desumanidade do negro dentro do corpus cristão. A primeira coisa a fazer é convencer o auditório que a escravidão não é um mal tão ruim assim. Pelo contrário: graças a ela os negros puderam ser livres. A partir daí desenvolve com inúmeras referências bíblicas a tese que do mesmo modo que Maria concebeu a Jesus de duas formas, também a sociedade cristã deveria fazer com os negros. Na primeira vez ela o gerou como filho, com as alegrias da manjedoura e depois com dores no suplício do Calvário. Vieira desenvolverá sua tese no capitulo V: “o terceiro nascimento, de que também se verificam as mesmas palavras, é o dos pretos, devotos da mesma Senhora, os quais também são seus filhos, e também nascidos entre as dores da cruz.” (p.642). Para justificar o lugar de tormento reservado aos negros nessa terra, Vieira faz uma “dificultosa” interpretação da história do povo negro e da sua terra natal, o continente africano. Utiliza-se dos salmos de Davi e dos textos de S.Agostinho de Hipona. No primeiro caso, associa Populus Aethiopium (povo etíope) aos africanos: 182 Assim o diz o mesmo texto, tão claramente que nomeia os mesmos pretos por sua própria nação e por seu próprio nome: Memor ero Rahab et Babylonis, scientium me; ecce alienigenae, et Tyrus, et populus Aethiopum, hi fuerunt illic (...) E que gentios são estes? Rahab: os cananeus, que eram brancos; Tyrus: os tírios, que eram mais brancos ainda, e sobre todos, e em maior número que todos: populus Aethyopum: o povo dos etíopes, que são os pretos. De maneira que vós, os pretos, que tão humilde figura fazeis no mundo e na estimação dos homens, por vosso próprio nome e por vossa própria nação estais escritos e matriculados nos livros de Deus e nas Sagradas Escrituras, e não com menos titulo nem com menos foro que de filhos da Mãe do mesmo Deus: Et populus Aethiopum, hi fuerunt illic. Vieira, afirma ainda que “o profeta pôs no último lugar os Etíopes e os Pretos, porque este é o lugar que lhes dá o mundo, e a baixa estimação com que são tratados dos outros homens, filhos de Adão, como eles” (p. 643). Note que Vieira não afirma explicitamente que a escravidão é fruto da vontade divina e nem que a situação da África fosse natural. Se fizesse isso ele comprometeria sua argumentação junto aos índios e, mesmo seu trabalho com os escravos. Além disso, como intelectual que era ele sabia a origem dos grandes padres da Igreja, como Agostinho (a quem recorrerá freqüentemente) e Atanásio, todos eles “meio etíopes”. A justificativa para essa defesa da escravidão do negro deve ser buscada, novamente, na indissolubilidade entre teologia e política no seu pensamento. Se por um lado Vieira pensava a história como providência, por outro via o homem como um ser dividido entre corpo e alma. A questão da liberdade deve ser pensada nesse contexto. Para os cristãos havia, portanto, dois tipos de escravidão, duas liberdades. A primeira era a do corpo e a segunda da alma. O filósofo alemão Herbert Marcuse demonstra como essa dicotomia permaneceu após a Reforma e em grande parte do imaginário ocidental. Lutero, em concordância com a tradição paulina, defenderá a “liberdade interior” como essencial para a felicidade. É o segundo tipo de servidão: a do homem sem Deus, dominado pelo pecado que precisa ser imediatamente eliminada. Tal dicotomia só tinha todo o sentido numa sociedade que desprezava o mundo, o corpo e que exaltava o intelecto e a eternidade. Portanto se o corpo era vendido como uma coisa e sofria tormentos e agonias; a alma era inegociável, e graças à Igreja liberta para a vida eterna. Por outro lado, Vieira não enxergava uma alternativa econômica viável para sustentar o sistema de produção colonial sem o trabalho escravo (OLIVEIRA, 2005). Além disso, Oliveira nos lembra que em outros escritos, endereçados às elites brancas, Vieira é bem mais explícito na sua condenação ao “doce inferno”, chegando a 183 afirmar que o cativeiro português era conseqüência disso: “e porque os nossos cativeiros começaram onde começa a África, ali permitiu Deus a perda de El-Rei Dom Sebastião”. (OLIVEIRA: 2005, p. 14). No entanto, como pregador seu sermão é coerente com o objetivo: convencer os escravos de que deveriam aceitar seu papel no rosário da colonização: Não é isto o que nos ensinou a Senhora do Rosário na ordem e disposição do mesmo Rosário. Depois dos mistérios gozosos pôs os dolorosos, e depois dos dolorosos os gloriosos. Por quê? Porque os gostos desta vida têm por conseqüência as penas, e as penas, pelo contrário, as glórias. E se esta é a ordem que Deus guardou com seu Filho e com sua Mãe, vejam os demais o que fará com eles. Mais inveja devem ter vossos senhores às vossas penas do que vós aos seus gostos, a que servis com tanto trabalho. Imitai, pois, ao Filho e à Mãe de Deus, e acompanhai-os com São João nos seus mistérios dolorosos, como próprios da vossa condição e da vossa fortuna, baixa e penosa nesta vida, mas alta e gloriosa na outra. No céu cantareis os mistérios gozosos e gloriosos com os anjos, e lá vos gloriareis de ter suprido com grande merecimento o que eles não podem, no contínuo exercício dos dolorosos. Mas se para serem salvos eles precisavam padecer de dores e sacrifícios, que haveriam de ser convertidos em glórias e alegrias, o mesmo não pode ser dito de sua argumentação. Há momentos, como que ela é nitidamente contraditória, como quando ele, mostrando conhecer bem a real situação do trabalho num engenho, defende que isso não deve ser usado como desculpa para não se rezar o rosário várias vezes por dia, como sinal de agradecimento por tão sublime humilhação: (..) e do Rosário particularmente dos pretos, e dos pretos em particular que trabalham neste e nos outros engenhos. E porque agora falo mais particularmente com os pretos, agora lhes peço mais particular atenção. (...) Começando, pois, pelas obrigações que nascem do vosso novo e tão alto nascimento, a primeira e maior de todas é que deveis dar infinitas graças a Deus por vos ter dado conhecimento de si, e por vos ter tirado de vossas terras, onde vossos pais e vós vivíeis como gentios, e vos ter trazidos a esta, onde, instruídos na fé, vivais como cristãos, e vos salveis. (p. 649). Dessa forma, longe de lamentar a escravidão dos negros, como sempre fez com os índios, Vieira encontra nessa relação de trabalho o “milagre” e o “amor de Deus” para com o povo africano. A escravidão era necessária dentro de sua metanarrativa histórica: para Portugal, riqueza e para os negros, salvação. É por isso que se em determinados momentos critica a violência e o sofrimento a que eram submetidos os escravos, jamais fará o mesmo com a escravidão. 184 Para ele esse era o preço a ser pago por toda grande utopia: a justificativa da morte e do sofrimento de quem a ela se opõe ou dela se distancia. Assim: “(...) o cativeiro que padeceis, por mais duro e áspero que seja, ou vos pareça, não é cativeiro total, ou de tudo o que sois, senão meio cativeiro. Sois cativos naquela metade exterior e mais vil de vós mesmos, que é o corpo; porém na outra, a, metade interior e nobilíssima, que é a alma, principalmente no que a ela pertence, não sois cativos, mas livres”. Mas que justiça divina é essa que distribui dores para uns e alegria para outros, apenas pela diferença da cor da pele dos irmãos? Como afirma Bosi (2003, p. 148): “a moral da cruz - para –os- outros é uma arma reacionária que, através dos séculos, tem legitimado a espoliação do trabalho humano em beneficio de uma ordem cruenta”. Dessa forma “cedendo à retórica da imolação compensatória, Vieira não consegue extrair do seu discurso universalista aquelas conseqüências que, no nível da práxis, se contraporiam, de fato, aos interesses dos senhores de engenho”. Levando-se em consideração um tempo e uma sociedade em que o escravo negro era visto como, e chamado de, “peça,” a argumentação de Vieira obviamente pode ser considerada arrojada, audaciosa, porque ele sustentou a igualdade dos negros como escolhidos por Deus e filhos de Maria. Porém quando comparado a Bartolomeu de Las Casas, que chegou a pregar a abolição do tráfico negreiro, percebe-se que ele foi omisso ao não afirmar claramente como esse o “pecado” da escravidão. Fez isso não como argumentam alguns por ser cristão, mas por estar comprometido com o projeto de colonização. 4.4.4. Dois sermões educativos A temática da educação aparece de forma mais evidente em dois sermões: Santa Catarina, virgem e mártir e São Francisco Xavier acordado. Escritos em locais e datas diferentes expõem o lugar da educação na obra e no projeto teológico e político do jesuíta. O primeiro dele, foi pregado em Lisboa, durante a comemoração de uma vitória bélica, no ano de 1663. Vieira toma a figura da santa do dia como modelo de form-ação para os universitários de Coimbra. Esse sermão chama a atenção ainda pela questão de gênero, já tematizado no sermão da sexagésima por Sóror Juan. Santa Catarina nasceu no Egito, na famosa cidade de Alexandria no ano 294, com o nome de Dorotéia. Segundo a tradição católica ela pertencia a uma família nobre e sabia ler e escrever, o que ajuda a entender um fenômeno tão raro naquela época. Por 185 essas características e pela sua hagiografia foi considerada a padroeira dos estudantes, sábios e profesores. Isso explica sua escolha por Vieira. Tomando um fragmento do Evangelho de Mateus Mateus 25,9 (Ne forte, “para que não suceda talvez”), ele exortará os universitários a aprenderem com Catarina a superação dos desafios e desvantagens da “roda da fortuna”. Segundo a hagiografia, Catarina foi martilizada por ordem do imperador romano por se recusar a prestar culto aos ídolos. Sua presença em Roma foi marcada por grandes desafios. O imperador mandou prendê-la no cárcere, até que viessem os 50 maiores filosófos convocados para que humilhassem a sua argumentção aparentemente simples. Porém, se esses, num primeiro momento, ridicularizam tal disputa (pois Catariana tinha apenas 25 anos), foram convencidos pela argumentação da jovem intelectual.Sua eloqüência fez com que fosse sentenciada a morrer de fome na prisão do palácio. Seduzida pela fama de Catarina, a rainha lhe faz uma visita que resulta também em sua conversão,tendo o mesmo destino dos guardas da prisão. A rainha foi decapitada e os guardas lançados aos leões no coliseu. Numa última tentativa o imperador propõe a Catarina que abandone sua fé e case-se com ele, mas novamente fracassa. Catarina foi, então, torturada e morta por ordem do imperador Maximus tempo depois. Todos esses elementos serão utilizados por Vieira na sua argumentação à jovem intelectualidade de Portugual. As 11 partes do sermão se estruturam na oposição entre as expressões “Ne forte” e “Si forte”, ou seja, na diferença entre as virgens prudentes e as prudentíssimas, encontrada na parábola do evangelista Mateus. O núcleo do sermão é a comparação entre a vida de Santa Catarina e os estudantes portugueses. Nesse ponto há uma clara diferença entre a pessoa de Catarina (virgem e mártir) e as demais mulheres de seu tempo. Vieira explicita isso ao comentar a iconografia da santa : Ne forte. Variamente pintaram os Antigos a que eles chamaram a Fortuna. Uns lhes puseram na mão o Mundo, outros uma Cornucópia, outros um Leme: uns a formaram de ouro, outros de vidro, e todos a fizeram cega, todos em figura de mulher, todos com asas nos pés, e os pés sobre uma roda (....)Acertaram, porém, os mesmos Gentios na figura que lhe deram de mulher, pela inconstância; nas asas dos pés, pela velocidade com que se muda; e sobretudo e, lhos porém sobre uma roda; porque nem o próspero, nem no adverso, e muito menos no próspero, teve jamais firmeza. (p, 289). 186 Nenhum desses defeitos possui Catarina, antes ao contrário: ela é proposta pelo jesuíta como modelo para toda a sociedade portuguesa. A sabedoria da jovem foi capaz, inclusive, de suportar desafios (a fortuna) aparentemente instransponíves, como a força do rei e a arrogância dos intelectuais; eis nisso todo o seu mérito (virtude). Vieira mostra, na primeira parte do seu sermão, a necessidade de se formar uma elite capaz de superar as aparentes conquistas da política em vista de um projeto maior para o Estado Português, perigo particulamente presente entre os intelectuais: Não é minha intenção com este discurso querer que a muito e nobre Cidade de Lisboa entristeça a sua alegria, nem ponha silêncio aos seus aplausos; porque seria ser ingrata aos Céu, e negar aos públicos pregões da fama os que com seu esforço e sangue honradamente lhos mereceram. O que só desejo é que toda esta Monarquia de Portugal se não deixe inchar no vento da fortuna, que se fie dela, e a creia. Ouvi debaixo de um paradoxo o mais sisudo juízo da prudência militar. Como na guerra não há coisa mais a estimar que o vencer; assim não há outra mais para temer que a mesma vitória. (p.293). Para isso faz abundante uso de exemplos da história grego –romana (o cavalo de Tróia por exemplo) e da Bíblia (o confronto entre Davi e Golias): “as vitórias próprias, vistas sem os olhos na roda, ensoberbecem; com os olhos nela, humilham. Com os olhos na roda, aos vencidos causam esperança, e aos vencedores temor. Por isso Abraão temia sua vitória, e todos os grandes Capitães temem as suas” (p.295). Vieira sabe que as elites precisam de uma nova “formação moral e intelectual”, fundada na ação e na virtude de cada dirigente político, e não mais na simples pertença à classe ou à posição. Toda sua argumentação nesse sentido é demonstrar a necessidade do dirigente e saber agir com precisão no momento oportuno, conjugando a ponderação (Ne forte) com a ousadi (Si forte), a virtude com a fortuna: Si forte, disse com novidade enaudita em lugar de Ne forte, e é bem que reparemos muito na diferença desses dois advérbios; porque em tão pequena mudança de letras têm significação totalmente contrária. O Ne forte, significa, Para que não, como já vimos; o Si forte, Si forte, quer dizer, se Porventura: O Ne forte, é advérbio seguro e frio; O Si forte, animoso e ardente: o Ne forte, é freio e cautela; o Si forte, é espora para ousadia: o Ne forte, diz: Não te arrisques; o Si forte, diz: Aventurar-te: finalmente, o Ne forte, tem por efeito evitar o mal, que supesita ser; e o Si forte, tem por objetivo empreender e conseguir o bem, a que aspira.Mas este bem não há de ser qualquer bem ordinário e vulgar, senão grande, senão árduo, senão heróico, e que tenham mais graus de dificultoso, que de possível. (p. 289-300). 187 É impossivel, ao ler essa passagem, não associar a visão de educação de Vieira com a de outro educador politico: Maquialvel. Nicolau Maquiavel (1469-1527) foi um historiador, poeta, diplomata e músico italiano do Renascimento. É tido como o fundador do pensamento e da ciência política moderna, pela forma “realista” de escrever sobre o Estado e o governo como realmente “são” e não “como deveriam ser”. Para além do advérbio “maquiavélico” associado ao seu nome como sinônimo de falta de ética, astúcia ou esperteza, deixou uma nova forma de se pensar o poder e a política,que, paradoxalmente, em muito lembra os escritos de Vieira. As semelhanças se dão em especial no sentimento nacionalista dos dois autores (Maquiavel com a Italia e Vieira com Portugal); numa defesa da autonomia da ação política sobre a moral religiosa (Vieira com a casuística e Maquiavel com as “razões do Estado”) e, principalmente pela preocupação na formação de um “princípe” capaz de saber agir entre virtude e fortuna. Além disso tanto Frorença quanto Lisboa eram palco dos conflitos entre duas perspectivas éticas. No caso de Vieira, a disputa era entre a moral deontológica das ordens mais antigas, representada pelos franciscanos e dominicanos; já para Maquiavel, a da exaltação pagã do indivíduo, da vida e da glória histórica, representada por Lourenço de Médici e seu irmão Juliano de Médici; e a da contemplação cristã do mundo, voltada para o além, que se formava como resposta ao ressurgimento da primeira nos mais variados aspectos da vida como a arte e até na Igreja, representada por religiosos como Girolamo Savonarola. Finalmente, ambos esperavam a chegada de um líder carismático, um “novo Messias”, simultaneamente ousado e prudente, capaz de levar seus países à glória mundial. Para Maquiavel esse nome seria o de Juliano de Médice e para Vieira o de D. João IV. Ambos constroem sua argumentação a apartir dos exemplos históricos e de uma visão de humanidade, mais ou menos estática. Ambos sabiam ser necessária a formação de uma “nova elite” política. A grande diferença, evidentemente, é religiosa: Maquiavel propõe uma volta ao paganismo, numa visão pessimita da humanidade e, por isso mesmo, antiutópica e realista. Vieira defende uma atualização da fé cristã, e por isso aberta ao futuro, ao inesperado e à redenção. No sermão de Santa Catarina, Vieira utilizava, como já vimos, abundantemente os conceitos de virtù e fortuna, que também são empregados várias vezes por Maquiavel em suas obras. Segundo Maquiavel, a virtù seria a capacidade de adaptação aos acontecimentos políticos que levaria à permanência no poder. A virtù seria como 188 uma muralha capaz de deter os desígnios do destino. Ocorre que, por desconhecerem a história ou se adaptarem rapidamente a situações de vitória, os seres humanos acabam mantendo o mesmo padrão de respostas a situações diferentes, perdendo assim o tempo oportuno da política. A idéia de fortuna tanto em Maquiavel como em Vieira derivam da tradição latina, que via a deusa romana Fortuna como símbolo do imponderável, imprevisível da vida humana. A metáfora da “roda da fortuna” explicita isso ao lembrar que, como no caso de Catarina, Vieira ou Portugal, coisas inesperadas, boas ou más, acontecem, sendo preciso, porém, saber como responder a elas. E isso só pode ser feito através de uma boa educação. Vieira lembra, ainda, que a importância dessa educação acontece por dois motivos: primeiro porque “não há cabeças mais duras de penetrar e converter, que as coroadas; e se o Rei, ou tirano, por dentro é mau e vicioso, e por fora hipócrita e devoto, estas aparências de religião, com que se justificam, os endurecem e obstina mais” (p.302), daí, a necessidade de se conquistar a jovem intelectualidade; segundo porque “as batalhas mais invencívéis são as do entendimento; porque onde as feridas não tiram sangue, nem a fraqueza se vê pela dor, nenhum sábio se confessa vencido. Diz S.Paulo que a ciência incha: Scientia inflat” (p. 303).Daí a prioridade que a Companhia dava à educação das crianças. Sermão de São Francisco Xavier (acordado). Será precisamente nesse sermão, cuja datação é imprecisa (entre 1691 e 1694), pregado na capela real em Lisboa, que Vieira trata precisamente da educação do prícipe cristão. Ele é parte de uma coleção de sermões dedicados à memória de São Francisco Xavier publicados em 1694, em único volume, o oitavo da editio princeps. A coletânea contém 13 sermões, divididos em dois blocos: Xavier dormindo (três sermões) e Xavier acordado (10 sermões), do qual esse é dedicado a “sua proteção”. De fato não poderia haver um santo mais adequado às intenções de Vieira que São Francisco Xavier (1506-1552). Possuía, ele, todas as qualidades para se constituir em tema e modelo de educação jesuíta: origem nobre e guerreira, sólida formação intelectual e moral e incansável espírito missionário. Francisco de Jesu y Xavier nasceu em 1506, de uma nobre família basca de Navarra, na Espanha. Seu pai era conselheiro do rei, e foi morto em combate durante a invasão castelhana à cidade. Estudou em Paris, tornando-se “Mestre em Artes” (magister ortium) e professor de filosofia. Mas 189 abandonou tudo para, junto com Inácio e seus companheiros, fundarem a Companhia de Jesus em 1534. Ordenado sacerdote em 1534, colocou-se à disposição do papa como missionário em 1538. Atendendo ao chamado do rei de Portugal, partiu em missão para as Índias. Chegou a Goa, então capital das Índias, em 1542 e dali chegou ao Japão, China, Cingapura e Cantão. Morreu no dia 3 dezembro de 1552, aos 46 anos, em Goa, após ter convertido aproximadamente 30 mil pessoas e percorrido cerca de 80 mil quilômetros, numa média de sessenta por dia, em onze anos e oito meses (LODI: 2001). O reconhecimento de sua obra veio imediatamente. Foi canonizado em 1662 e declarado “patrono da Índia e de todo o extremo Oriente” e de todas as missões católicas. Sua relação com Portugal foi sempre intensa e influente. Assim desde o rei D. João III e a rainha D. Catarina, até aos governantes e vice-reis da Índia, capitães de portos, de navios e de fortalezas ou feitores de el-rei, todos o viam como parte essencial do projeto de colonização portuguesa. Quando vivo, Xavier voltou várias vezes a Portugal, afirmando ser “navarro por nascimento e português de coração”. Exemplo dessa sua relação com Portugal são suas obras escritas, das quais 92, das 138 conhecidas, estão em português e mais da metade de outras duas na língua de Vieira. Finalmente, o dia escolhido foi 1º de Dezembro, próximo à data de sua festa, vigília do dia 2 para 3, mostra a importância desse santo para Portugal. Todos esses elementos serão explorados por Vieira em seu sermão. Vieira introduz o tema do seu sermão: a defesa da educação cristã do jovem príncipe, apelando para dois topos: o evangelho do dia e uma conhecida cartilha política cristã. No primeiro caso por meio de uma ousada comparação da obra de Xavier com a de S.Paulo, Vieira desenvolve uma hermenêutica do texto do dia, no caso Atos 9,15: Vos electionis est nihi iste, ut porte nomem meus coram Genitibus, et Regibus. (Mas o Senhor disse-lhe: Vai, porque este é um instrumento escolhido por mim para levar o meu nome diante das gentes, e dos reis, e dos filhos de Israel), para provar, numa tensão entre “complementar” e “suplantar”, que o santo jesuíta teria conseguido cumprir, no presente, a profecia dita a Paulo no passado: “Em suma, que o Apostolado de S.Paulo, posto que sobrepujaram ao Vaso de eleição às Gentes, Faltaram os Rei; mas a glória de suprir esta falta, e encher este vazio, é certo pela experiência de todos os séculos da Igreja que Deus a tinha guardado, não para outro algum Apóstolo, se não para o futuro de todo o Oriente, o grande Xavier”. (p. 267). 190 Tal conclusão lógica, a de que o futuro pode ultrapassar o passado é tão forte, que o próprio Vieira tenta amenizá-la em várias passagens: “E não foi nem é meu intento nesta demonstração preferir ou igualar, nem ainda comparar a S. Francisco Xavier com S.Paulo (...)” (p. 268). O que na verdade é o centro do seu sermão sobre o modelo de educação ideal para aquele momento. Antes, porém de adentrar a esse tema é necessário entender melhor a visão de tempo, profecia e política, que quase lhe levou à morte. Vieira tinha uma visão particular da relação entre o tempo e a profecia. Foi essa visão que quase lhe possibilita escrever uma paradoxal “história do futuro” e que lhe fez cair nas garras da inquisição portuguesa. Nesse sentido, o tempo não era para Vieira uma categoria “a priori” universal e imutável como pensava Kant (1724-1804), mas um elemento essencial para a política e para a construção do seu projeto educacional como jesuíta. O tempo está presente em toda a sua obra. De diversas maneiras e em escritos variados, nos sermões, nas cartas e nos seus escritos essencialmente proféticos, como a História do Futuro e o Clavis Prophetarum. Em todas essas obras Vieira elaborou um projeto político-teológico para Portugal da Restauração e para o mundo católico. O tempo emerge como o palco onde se passaria a ação – passada – presente - futura. Ação essa realizada pela síntese católica do divino e humano (visão sacramental), necessária enquanto causa segunda da Causa Primeira (o tomismo da segunda escolástica). Somente isso explica como ele pode escrever um livro intitulado “História do futuro”. Vieira pensava como um jesuíta fundamentado na ortodoxia católica, formado nos preceitos neo-escolásticos e tridentinos, leitor crítico de Santo Agostinho, que no seu De Civita Dei (A Cidade de Deus) inaugurou a compreensão ocidental de história, linear e progressiva. O cristianismo rompe com o “mito do eterno retorno” pagão (Eliade), que ainda se encontrava em Orígenes. Assim é que ele afirma “mas o passado não tem remédio, só pode servir de espelho para o futuro” (p. 283). Como afirma Andrade (2003, p. 53): “com isso, é fácil constatar no conjunto da obra dele as duas tendências, ora de denunciar as mazelas do seu tempo ora, de vislumbrar no futuro a salvação através da concretização do sonho do reino temporal de Cristo”. O projeto de Vieira era não apenas político, mas teológico, não apenas utópico, mas político. Ao falarmos em Utopia, a primeira coisa que nos vem em mente é algo irrealizável, inatingível. De fato, esse é o sentido encontrado nos dicionários, e, após a obra “Do socialismo utópico ao socialismo científico” de Engels sinônimo de projeto irrealizável; quimera. Mas não é esse o sentido neste trabalho. 191 A palavra Utopia tem origem numa no romance filosófico de Thomas Moore (De optimo reipublicae statu deque nova insula Utopia, 1516), onde esse relata, a partir de informações obtidas de um marinheiro português, as condições de vida em uma ilha desconhecida, que denominou Utopia. Nela teriam sido abolidas a propriedade privada e a intolerância religiosa. Nesse sentido, a Utopia seria o fundamento da renovação social. Há semelhanças entre utopia e mito. A utopia antecipa o amanhã no presente, representando no passado ou no futuro o que nunca existiu no presente. Pressupõe um ato de confiança absoluta, um lançar-se nos braços do futuro, em outras palavras: fé. Se o mito é cíclico a utopia é histórica, e serve de alimento para os projetos de mudança. É esse “principio esperança” que estrutura a obra de Viera e não o pragmatismo maquiavélico. É o messianismo sua causa final, representada por sua vertente de sebastianismo: O Quinto Império. Seu líder temporal e espiritual seria D. João IV, que governaria sob as ordens diretas de Cristo. Utopia de um império católico, universal de “um só rebanho e um só pastor”. Isso está presente na análise que Vieira faz do “X” de Xavier que interpreta simbolicamente como um sinal “Desde Jacó até Xavier passaram mais de três mil e duzentos anos, e se em todo este tempo nas histórias Sagradas e Eclesiásticas se achar outro X a que esta alegoria convenha com maior propriedade, eu me retrato” (. p. 275). Esse telos divino é revelado ao pregador por meio da hermenêutica dos textos e dos acontecimentos. Para Bosi, Vieira advogava o novo - o passar do tempo - como eterna melhora (no sentido de uma compreensão do Divino), pois mais perto do acontecer profetizado, como numa metáfora da História do Futuro: mesmo tendo os antigos melhor lume, hoje se ilumina melhor pois estamos mais perto do que vai acontecer. Por isso afirma que a visão de tempo do jesuíta é não somente “progressiva”, mas, “progressista” (Bosi, 1997, p.166). É por isso que Vieira afirma que Xavier é superior a Paulo, visto que pode agora pregar as gentes e aos príncipes (Coram Gentibus, et Regibus). É interessante como Vieira se recusa a explicitar o desenvolvimento de sua hermenêutica, ou seja, que ele completaria a obra dos dois missionários ao evangelizar também aos judeus (“e dos filhos de Israel”). Para defender a necessidade e importância da educação, Vieira faz referência à existência de uma cartilha, que analogicamente significa o mundo e a história: “(...) Muito caso chegou às minhas mãos um livro intitulado Cartilha Política e Cristã, 192 oferecida à infância de um dos maiores Monarcas da Cristandade, para que juntamente com os dias fosse crescendo nas virtudes e ditames reais”. (p. 268). Se para cada letra dessa cartilha corresponde um atributo da realeza (A, as almas, B a bondade etc), Vieira introduz que a letra X, até aquele momento ainda “Interpretada” corresponde a contribuição de Francisco Xavier,e por analogia de toda ordem a educação do príncipe: “Que direi logo do X assim desamparado? Digo que no X se devia e deve pôr Xavier, porque deste formosíssimo nome, e sua proteção estão recopiladas, e com maior eficácia, todas as virtudes, que no resto de todo o Abecedário se apontam para formar um perfeito Rei Cristão,e começar a ser desde sua infância (....)”. (p. 268-269). Destacam-se aqui dois elementos importantes na argumentação de Vieira: o caráter de “síntese” da figura de Xavier em posição as demais ordens, portanto de superação do passado pelo futuro e o da importância da educação das crianças. Nesse sermão é possível perceber o caráter literário da educação jesuíta. Além disso, a idéia agostiniana que a “virtude cresce por dentro” em íntima relação com o cultivo das letras é apresentada, ainda, no exemplo dos antigos pastores romanos que escreviam seus amores nos troncos das árvores, para que “crescendo as árvores, fossem crescendo ao mesmo passo as letras, e com elas se fizessem e lessem sempre maiores os seus amores” (p. 270). No entanto, chama a atenção Vieira, tratava-se de um novo tipo de educação religiosa que ao invés dos mosteiros prefere as praças; ao invés das longas ladainhas a ação política. Sua conversão não significa um abandono do mundo, mas a sua mudança por outros meios. A crítica das armas e as armas da crítica deviam permanecer unidas: nesse sentido, Xavier é citado como síntese de todos os santos, postos que foi pregador, educador e guerreiro. Vieira faz uma defesa enfática da educação dos curumins, como condição sine qua nom, para o sucesso da colonização, e de qualquer projeto político de longo prazo, apelando para exemplos retirados das Escrituras e da vida de São Francisco Xavier. Numa ousada comparação relaciona natureza e graça, e a analogia com o segundo Adão: “por onde começa a natureza há de começar também a graça, a qual não é segura na idade varonil se não trouxe as disposições desde a infância. Naquela idade terna e branda se imprime fácil e solidamente o que se robusta e dura mais fortemente se resiste, do que se recebe”(p.269). Vieira argumenta que essa foi a causa do pecado de Adão, que mesmo estando próximo a Deus e com sua graça, não resistiu à tentação. A causa era que Deus havia 193 tentado educá-lo já grande, “posto que, foi assim, que fora criado”. Por isso era necessário começar novamente com um outro Adão, Jesus Cristo, dessa vez educado desde os primeiros passos “por isso o segundo Adão, não por necessidade, nem por perigo , mas para nosso exemplo, não quis aparecer ao mundo Homem, senão menino” (p. 269). Para Vieira “a criança era o pai do Homem”. Essa verdade valia não apenas para os príncipes, mas para todas as gentes, especialmente os índios. Educação e colonização se fundem na história de S. Francisco Xavier e entre a ordem e a coroa lusitana: “Admirável e singular foi o zelo de S.Francisco Xavier em cultivar a idade da infância nos meninos, e introduzir nela a primeira forma de homens”. Vieira advogava uma nova educação para uma nova sociedade. E diferenciava fatores biológicos (natureza) de cultura (intelecto, virtude). A violência da educação jesuíta era o caminho para a socialização do jovem indígena no corpo cristão, uma que cresce de fora para dentro (corpo) e outra de dentro para fora (virtude). Eis o núcleo da vida de Xavier e de Vieira “A este fim, como outras vezes dizemos, chamando-os pelas ruas com uma companhia, os tirava das casas dos pais, e muitos dos braços das mesmas amas: à repetição de tão humilde exercício duas vezes por dia: a este fim instituía escolas e mestres em toda a parte, onde, tirados dos peitos das mães, fossem criados com o leite da verdadeira doutrina. Este foi o primeiro cuidado tanto que pôs os pés na Índia”. (p. 269). Vieira, antecipando em séculos as teses sobre hegemonia e guerra de posição, lembra que Xavier tinha plena consciência da importância de se começar a mudança através das elites e das crianças. Educação e política eram dimensões inseparáveis da práxis jesuítica: Agora se entenderá com quanta prudência e espírito do Céu destinado Xavier era a conversão das Gentes Idólatras do Oriente, e muito particularmente os Reis delas, o seu primeiro cuidado e indústria não foi mover logo as armas contra os grandes, mas ganhar e fazer do seu partido os pequenos. Tendo por certo, que pela verdade da doutrina facilmente bebida com o leite na infância dos filhos, podia penetrar e abrandar a dureza dos pais, e derrubar a idolatria. (p.271). Vieira expõe com exemplos práticos a veracidade de sua tese, com relatos extraídos da vida do santo: “os meninos sem medo e desencovavam donde os pais os tinham escondido, e em sua presença os quebravam,pisavam, cuspiam, e afrontavam de nomes injuriosos, o que vendo os mesmos pais, junto com os que tinham ouvido o 194 verdadeiro Deus, se convertiam e faziam Cristãos”. (p. 271). Concluindo, Vieira afirma “podendo-se dizer com toda a verdade, que os pais desse gênero de nova e mais alta geração eram filhos de seus próprios filhos. E onde os filhos geraram os pais, como dizia S.Paulo: Per Evangelium ego vos genui, bem ordenada e naturalmente precedia Xavier em começar pelos pequenos para converter os grandes” (p. 271). O uso e significado das crianças na educação jesuíta não passou despercebido pelos críticos à ação jesuíta. Gilberto Freyre viu nesse modelo de educação a origem de uma cultura excessivamente abstrata, em oposição à tendência mais pragmática dos franciscanos: “enquanto os primeiros jesuítas no Brasil quase que se envergonham, através das suas crônicas, do fato de lhes ter sido necessário exercer ofícios mecânicos. Seu gosto teria sido se dedicarem por completo a formar letrados e bachareizinhos dos índios” (FREYRE: 2002, p.215). Eis a porque Freyre acusa de artificial o caráter da educação jesuíta. Para ele foram os jesuítas, embora sendo os “campeões da causa indígena”, os principais culpados pela destruição das culturas indígenas. A causa disso está na adoção dos aldeamentos e na separação das crianças, curumins e cunhantains do resto da tribo. Freyre afirma que o menino nativo: “foi o eixo da atividade missionária. Dele o Jesuíta fez o homem artificial que quis.” Graças a isso o menino indígena tornou-se cúmplice do processo de cristianização dentro de sua cultura, agindo como repressor e questionador de seus costumes. Foram as crianças que se encarregaram de ridicularizar os costumes e a fé dos mais velhos, em especial dos pajés das tribos. A ação dos meninos fez sua cultura parecer uma norma inferior a ser superada. A educação jesuíta simultaneamente salvou os jovens índios da escravidão física, moldando suas mentes à cultura do colonizador, impedindo assim que as culturas nativas pudessem se perpetuar no tempo, graças à transmissão de geração a geração. Ao tornar as crianças educadoras dos mais velhos, os jesuítas decretaram o fim da educação tradicional: “O processo civilizador dos jesuítas consistiu principalmente nessa inversão: no filho educar o pai; no menino servir de exemplo ao homem; na criança trazer o caminho do Senhor e dos europeus a gente grande” (FREYRE, 2003, P. 218). Apesar dessas críticas Freyre reconhece a criatividade e eficácia comunicativa dos soldados de Cristo “mesmo realizada artificialmente, a civilização dos indígenas no Brasil foi obra quase exclusiva dos padres da Companhia” (FREYRE, 2003, p. 219). Na verdade, Vieira sabia que é na linguagem que reside o segredo da transmissão da cultura humana. Os jesuítas tornaram-se “meio e mensagem na 195 comunicação de uma civilização cristã, que marcaria indelevelmente a cultura brasileira”. Para isso fizeram uso de diversos recursos (estudos lingüísticos, música e teatro). Verdadeiramente, a aquisição do conhecimento lingüístico foi a grade vitória dos homens da Companhia, o ponto de partida para o exercício catequético-pedagógico a que se destinavam. Para termos uma idéia do que isso significou, basta lembrarmos que para os indígenas, a palavra que traduz o sentido de “inimigo” significa “primitivamente aquele que não fala a nossa língua”. Daí o fato de Anchieta afirmar que os índios o chamaram exatamente de “senhor da fala”. Freyre comenta o resultado paradoxal do uso do tupi-guarani: No Brasil o padre serviu-se principalmente do curumim, para recolher de sua boca o material com que formou a língua tupi- guarani o instrumento mais poderoso de intercomunicação entre as duas culturas: a do invasor e a da raça conquistada. Não somente de intercomunicação moral como comercial e material. Língua que seria , com toda a sua artificialidade, uma das bases mais sólidas da unidade do Brasil. Desde logo, e pela pressão do formidável imperialismo religioso do missionário jesuíta, pela sua tendência para uniformizar e estandalizar valores morais e materiais, o tupi aproximou povos entre si tribos e povos indígenas diversos e distantes em cultura, e até inimigos de guerra, para, em seguida, aproximá-los do colonizador europeu. (FREYRE, 2003, p. 219). A hegemonia da língua tupi atingiu também outros segmentos. Freyre chega a citar um depoimento de Vieira que afirma ser o Tupi a língua falada pelas famílias dos colonos no Brasil. Lembra também que “falavam em geral tupi; pelo tupi designavam as novas descobertas, os rios , as montanhas, os próprios povoados que fundavam e que eram outras tantas colinas, espalhadas nos sertões, falando também tupi e encarregando- se naturalmente de difundi-lo”. E conclui que “tupis ficaram no Brasil os nomes de quase todos os animais e pássaros; de quase todos os rios; de muitas das montanhas; de vários dos utensílios domésticos”. (FREYRE, 2003,p. 220). Os jesuítas criaram colégios mistos, onde educavam brancos e índios onde era favorecido o intercâmbio cultural entre os dois povos; a língua, os brinquedos, a educação, uma relação de quase harmonia que, segundo Freyre foi posteriormente quebrada pela segregação dos índios nos aldeamentos. A educação jesuíta baseou-se no método da “acomodação”, que procurava respeitar e conservar o que lhes parecia bem nos costumes nativos, adaptando-os à cultura cristã. Tomaram por exemplo o costume da poranduba, a conversação dos índios ao pé da fogueira, acompanhada de 196 gesticulação contínua e teatral, sobre o cotidiano que acabou sendo usado pelos jesuítas como forma de aproximação e informação: Souberam aproveitar esses elementos lúdicos e plásticos dos índios para atraí-los ao ensino da catequese. Segundo Elza Camêu (1977), com os jesuítas a música religiosa entrou deliberadamente no ensino, pois “aí tudo obedecia à finalidade de preparar executantes para as cerimônias da Igreja. Com isso, os jesuítas implantaram uma política musical visando à unificação de uma sociedade, nos moldes europeus”. E Freyre afirma que “a poesia e a música brasileira surgiram desse conluio de curumins e padres” (FREYRE, 2002, p. 223). Os jesuítas observaram ainda que nos rituais indígenas, a música e a dança eram extremamente expressivas, ricas em mímicas, um espetáculo da arte de representar. Concluíram, então, que seria uma estratégia pedagógica muito promissora à introdução do teatro como meio de comunicar aos índios a doutrina católica e os valores morais e culturais. “Os jesuítas, escreve Couto de Magalhães, ‘não coligiram literatura dos aborígines, mas serviram-se de sua música e de suas danças religiosas para atraí-los ao cristianismo [....] As toadas profundamente melancólicas dessas músicas e a dança foram adaptadas pelos jesuítas para as festas do divino Espírito Santo, São Gonçalo , Santa Cruz, São João e Senhora da Conceição” (FREYRE, 2003, p.223). Por outro lado, essa evangelização como tradução foi bem mais além que o simples uso da língua indígena. Freyre lembra que: De música inundou-se a vida dos catecúmenos. Os curumins acordavam de manhã cedo cantado: Bendizendo os nomes de Jesus e da Virgem Maria [...] Mas esses louvores a Jesus e à Virgem não se limitavam a expressões portuguesas ou latina: transbordavam no tupi. Ao toque da ave maria quase toda a gente dizia em voz alta, fazendo pelo –sinal: Santa Caruçá rangana recê; para então repetir cada um na sua língua a oração da tarde. E era em tupi que as pessoas se saudavam: Enecoêma; que quer dizer bom – dia. (FREYRE, 2003, p. 222). Bosi lembra o surgimento de uma verdadeira “mitologia paralela” a partir das peças de Anchieta, que nem era mais pura teologia cristã ou a originaria mitologia tupi, mas uma nova esfera simbólica em que bispo virava Pai-guaçu; o pajé maior; Nossa Senhora Tupansy, a mãe de Tupã; alma anga, no seu duplo sentido de sombra e espírito ancestral e Upãoka, igreja ou casa de Tupã, etc. (BOSI: 2002). Essa abundância de neologismos é testemunho do encontro de sentidos que acontecia na colônia. Como afirma Pompa: 197 Ao transferir significados entre colonizadores e colonizados, a tradução articulou as linhas fundamentais do discurso de poder que a conversão implica. Mas, de outro lado, a ela levou uma separação definitiva entre o sentido original da mensagem cristã e sua formação na língua vernácula, pois a necessidade de utilizar as línguas nativas limitava o discurso universalisante (e uniformisante) cristão. Na belíssima descrição de um padre falando em espanhol e em latim para uma platéia tagalog, Vicente Rafael utiliza a metáfora da pesca: os nativos, na enorme quantidade de palavras sem sentido que caia em cima deles, procuravam encontrar algo que pudesse ser inserido num sistema significativo, procuravam “pescar” o sentido. (POMPA, 2003, p. 90). Percebe-se porque a ordem jesuíta é a primeira organização internacional da historia moderna. E Vieira estava longe de ignorar as tensões surgidas entre a religião e o Estado. Mas como jesuíta, em oposição à doutrina dos “dois reinos” de Lutero, defendia a unidade dinâmica dessas duas esferas contra as teses maquiavélicas de uma ética totalmente laica à importância da moralidade cristã. Sua argumentação se baseia nas teses da casuística da Segunda Escolástica que para os mais desavisados pode parecer uma capitulação às teses de Maquiavel: “as virtudes religiosas são mui diversas das reais, e o que é em um Religioso a maior virtude, seria em um Rei o maior vicio”. Toma dois exemplos a questão da bondade e da obediência: “vê-se claro na obediência, que sendo no religioso o fundamento e essência da sua profissão, no Rei, como diz o Rei Profeta, seria o maior de todos os delitos deixar -se dominar e obedecer a alguém, quando deve mandar a todos (....) Do Religioso pode-se esperar que o faça um homem bom; mas fazendo um homem bom, pode fazer um Rei mal; porque a bondade que faz bom um, e particular, e a do rei há de ser universal” (p. 276-277). Assim Vieira não abandona uma ética cristã para a política, que no pensamento tomista – aristotélico é defendida como a busca pelo “bem comum”- mas condiciona a sua realização à ação política real. Nisso consiste a casuística jesuíta na arte de julgar casos particulares à luz das regras morais: “O princípio da casuística é que se deve decidir sobre os casos difíceis racionalinando à luz dos princípios morais, e não por exemplo, obedecendo a um mandamento concreto de Deus, imediatamente percebido. Isso significa que há um lugar importante para a deliberação no domínio moral”. (LACOSTE, 2004, p. 356). Aceitando-se isso, surge a questão sobre qual das ordens cristãs estaria mais capacitada para oferecer tal conhecimento. Vieira é incisivo: somente a Companhia podia ministrar tal educação com propriedade. Vieira argumenta que há três tipos de 198 religiosos: os que são apenas religiosos e nada mais, como S.Paulo; os que são religiosos e outras coisas como os papas; e os que são religiosos e todas as coisas, como Francisco Xavier: Por nascimento, era de sangue real de Navarra, por profissão religiosa da companhia, gênio universal, em todos os talentos e artes. Com o soldado tratava da guerra, com o marinheiro da navegação, com o mercador das estrelas, com o político das razões de Estado, como cortesã da Corte, e até do taful das cartas e dos dados: mas sempre em tudo Santo, como o maná que cai do Céu,e contém em si todos os sabores. (p.277). Vieira afirma que as outras ordens já não eram capazes, se é que o foram algum dia, de educar politicamente o governante. Visto que “os Mestres são os espelhos daqueles a quem ensinam: como serão espelhos nestes espelhos os reflexos reais, mostrando à Púlpura o saial, à opa a cogula, e o capelo à Coroa?” Assim o maior erro desses professores é não respeitar a autonomia da política e a quererem tornar os reis santos ou intelectuais: “e como seria Afonso Henriques tão grande Rei, se não fosse Egas Moniz [...]? Que espíritos siberanos e Reais o pode influir um professor de tão diferente estado, ainda eu seja de grande de grande espírito?” (p.276). Assim se Vieira abandona a idéia platônica de uma “república de filósofos”, igualmente nega a de um “Estado de santos e anjos”: “ensinará o Rei a orar, e quando saía grande rezador, para encaminhar o seu Reino será cego. Davi que fez o Saltério, dizia que nas suas matinas meditava em Deus: In matutinis mediatabor in te. Mas os pontos de meditação nas mesmas matinas, eram arrancar da terra todos os maus: In matutino interficiebam omnes peacctores terra. Incliná-lo à como virtuosos a que prefira os virtuosos, e com isso, sem querer, o metamos enganos santos da hipocrisia (...)”(p.276) Conclui a sua defesa dos benefícios da educação política jesuíta mostrando os prejuízos das demais ordens religiosas. Vieira antecipa, ainda, o caráter, muitas vezes maléfico das boas ações, numa clara antecipação da “ética da responsabilidade” de Max Weber (1864-1920): “Pelo desejo da paz desatenção das armas e da guerra, pelo escrúpulo da vangloria o esquecimentos da fama, pelo amor e nome de piedade o perdão e a tolerância dos delitos, enfim pelo pensamento único do Céu perder a terra, e ser corpo o matemático de Sêneca, que não vendo onde punha os pés porque levava os olhos nas Estrelas, caiu na cova.” (p. 255). Finalmente deixa a pergunta aos educadores utópicos sobre a utilidade de uma formação moralmente abstrata: “tais estátuas são,dizem o políticos (e estátuas somente) 199 as que se podem fabricar e sair das oficinas claustais: e no cabo de muita lima após a fundição, quando a Republica há mister um grande Rei, achar-se-á quanto muito um beato” (p. 276). O sermão deixa uma herança reflexiva sobre as tarefas da educação contemporânea. Por um lado os perigos da dominação cultural de um saber arrogante e catequético que leva a educação a negar a dignidade do Outro, presente no modelo jesuíta. Por outro, os perigos de certas teorias, incapazes de fazer a mediação com o mundo real. Vieira aponta para o necessário pragmatismo da formação, que deverá sempre ser para o mundo presente, mesmo quando se orientar-se para um projeto futuro: o Quinto Império. O desafio maior é saber como manter a relação entre esses dois extremos. 200 PERORAÇÃO: considerações finais Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar Para que fosse nosso, ó mar! Valeu a pena?Tudo vale a pena Se a alma não é pequena. (Fernando Pessoa, Mar Português). 201 5. PERORAÇÃO Acabaram-se os sermões, e com eles a nossa pesquisa. Embora tenhamos analisados vários deles, presentes em todo o texto, privilegiamos a leitura de cinco deles: Sermão da Sexagésima 1655, Maria Rosa Mística 1633, Santo Antonio aos Peixes 1654, Santa Catarina, virgem e mártir 1653 e São Francisco Xavier, acorrentado 1691-1694, retirados da coletânea organizada por Alcir Pécora (2003). A escolha dos mesmos justifica-se pela diferença de auditórios e circunstâncias de sua elocução bem como sua importância para compreensão da relação entre a retórica e a educação. O ato da leitura, do latim, lectio, lição, de um texto implica, em algo bem maior que a simples decodificação dos seus signos. Ler implica o estabelecimento de uma relação de diálogo com uma alteridade. Esse “diálogo”, literalmente “através das palavras”, é um encontro que cada um faz consigo mesmo e com o outro. A leitura permite a descoberta de novos mundos e, inclusive, a avaliação de crenças e posturas. Ler é assim, uma atividade essencialmente educativa. A leitura pressupõe o ensinar e o aprender, o equilíbrio entre a palavra e o silêncio, a dúvida e a certeza. Numa boa leitura o importante não são as respostas que encontramos, mas as perguntas que formulamos ao texto e a nós mesmos. Ler, nesse sentido, é postular a existência de diferentes imaginários, de exercitar o estranhamento e a ousadia de nos perguntarmos se o nosso mundo não poderia ser diferente. Ler um texto antigo é um ato de amor e coragem. Na mitologia grega, Dionísio era filho de Zeus e da princesa tebana Sêmele. Ainda no ventre de sua mãe ele foi vítima da ira de Hera, esposa de Zeus, que traída e dominada pelos ciúmes matou sua mãe no desejo de tirar-lhe a vida. Zeus o resgatou do ventre morto de sua mãe e o gestou em sua perna. O ato de ler um texto antigo é semelhante à ação de Zeus tentando resgatar seu filho da morte eminente. Se a única possibilidade de salvar Dionísio da morte, criando-o em um ambiente totalmente diferente do seu; a única possibilidade de um clássico permanecer vivo é interagindo com o presente. É preciso fazê-lo crescer em outro tempo, arrancando-o do ventre inerte do passado e ressuscitá-lo com novas interpretações. Foi isso que procuramos fazer com os sermões de Vieira. Como afirma William Faulkner “o passado nunca está morto, não é nem sequer passado” e o presente em que vivemos, para o bem ou para o mal, é conseqüência do que nos aconteceu ontem. Se não é possível escapar do passado sem negar a própria 202 identidade, resta saber como lidar com ele. Assim a aproximação do passado, da retórica de Vieira, não surge de um amor ao passado por si mesmo. A contribuição que ele possa dar à educação na atualidade pressupõe a aceitação que seu ventre primitivo está irremediavelmente morto, mas as questões suscitadas por ele continuam vivas. A primeira delas diz respeito à importância da retórica para educação. O primeiro capítulo mostra como a retórica é filha legítima da pólis grega, cresceu e confundiu-se com a própria idéia de paidéia. A retórica brota em situações de incertezas e conflitos e faz da crença no poder da palavra, da capacidade argumentativa a mais digna forma de política. Portanto ela nunca foi tão necessária. A crise de paradigma que passa o Ocidente nesse início de milênio possibilita a reabilitação da tradição retórica. Tal reabilitação possui três dimensões epistemológicas: a crítica à metafísica fundacionista e à objetividade científica iniciada por Nietzsche, e seguida de formas diferentes por Heidgger, Gadamer, Foucault, Vattimo, Feryaband, Morin e Rorty; a tradição pragmática norte-americana iniciada por James e desenvolvida por Dewey e Rorty, e incorporada nas reflexões do segundo Witgenstein e Habermans; e a volta pelo interesse com a retórica iniciada, em 1958, com a publicação do livro Nova Retórica de Perelman. Essa “virada lingüística” implica na superação da naturalização das verdades objetivas e eternas, da descrição precisa das regularidades dos sistemas com precisão matemática. O novo conhecimento científico, em especial o emancipatório, descobriu sua proximidade com arte e o mito. A verdade se constrói por meio da construção dos consensos epistemológicos de comunidades interpretativas. Tais interpretações, ou verdades, são sempre provisórias, fruto de intermináveis batalhas argumentativas. E a retórica, enquanto arte de persuasão pela argumentação é uma das tradições mais enraizadas do pensamento ocidental (BOAVENTURA, 2005). Aristóteles considerava que a principal finalidade da retórica não era persuadir, mas ensinar o possível. A retórica desvela o que é próprio para persuadir (em cada caso o que é, tecnicamente, capaz de persuasão) e, pela descoberta, aponta para a transformação da mentalidade do auditório. Em segundo lugar a retórica mostra a interdependência dos aspectos técnicos, éticos e políticos. Isócrates (436-338 a.C), o primeiro teórico da disciplina afirmava ser ela muito mais que uma técnica de convencimento. A retórica era sinônimo de civismo, cultura e educação. Graças a Aristóteles (384-322 a.C.), a retórica ganhou sua fundamentação filosófica e permaneceu na Roma Clássica e no cristianismo. Os 203 romanos como Quintiliano (35-96 d.C) e Cícero (106-43 a.C), consolidaram as dimensões política e ética da arte retórica. Assim não basta saber é preciso convencer e mover realização à passagem do teórico ao prático – vivencial. A retórica pressupõe uma dimensão moral, embora não absoluta que implica na necessidade do orador ser ele um modelo ético a fim de que, por meio do seu discurso (a demonstração oral de suas convicções e seus valores), possa orientar o auditório à prática de ações, igualmente éticas, que resultem no bem comum ou coletivo. Mas além da solidez da argumentação, da formação ampla do orador e de seu compromisso ético, a retórica possui outra coisa importante para os educadores de hoje: a preocupação em adequar conteúdo e auditório. Assim segundo Perelman (1997) para que haja argumentação é preciso “que haja encontro de espíritos”. Para que tenha sucesso, o orador precisa conhecer bem seu auditório para realizar a adaptação do seu projeto a um determinado auditório seja ele individual, específico ou universal, ou seja, potencialmente toda espécie humana (PERELMAN, 1997). Um exemplo disso é a relação entre retórica e fé cristã. Com o advento do cristianismo, a retórica tornou-se a categoria de mediação entre o kerigma cristão e o logos grego. A cidade de Alexandria, fundada por Alexandre, no Egito foi o palco dessa função das culturas semítica e clássica. De lá surgiram nomes como os de Clemente de Alexandria (153-220 d.C) que, numa releitura da tradição platônica (Leis X.897b) afirmava ser “Deus o pedagogo do mundo inteiro” (ho theos paidagogei ton kosmon) e o “educador de toda a humanidade” (pedagogos tou theou). Essa foi a base para a nova hegemonia cristã e formação da Paidéia Christiana. Assim a retórica tornou-se o elemento estruturante das disciplinas fundamentais do curriculum medieval: música, astronomia e filosofia (artes sermocinales, artes reales, trivium e quadrivium). Toda a educação, na verdade era uma escola de formação geral (a enkyklios paidéia) centrada no uso da palavra. O ato da leitura, entendida na sua dupla função de expressão oral e interpretação escrita, se consolidou com Orígenes (185-250 d.c) e Agostinho de Hipona (354-430 d.C). Agostinho desenvolveu uma teoria da interpertação e oratória que tornou-se paradigma no Ocidente. Graças a sua teologia a palavra ganha absoluto destaque em um contexto onde a realidade empírica é interpretada como a realização da própria retórica divina. Como afirma Paul Ricouer (2004): Líber et speculum As Escrituras são o espelho, no qual busca-se o sentido da história e de si mesmo por meio da Palavra. 204 No Renascimento, a forte tendência humanista fez com que a retórica abandonasse a clausura do universo escolástico para o embate com o homem comum. Ocorre, então, uma imensa adaptação dos preceitos retóricos, a sua utilização nas praças, o retorno aos clássicos tornou obrigatória a comunicação entre tantas tendências. Lia-se Quintiliano à luz de Aristóteles, pensava-se Platão através de Agostinho, e assim por diante. Papel fundamental na preservação do valor da prédica cristã foi o surgimento das ordens missionárias e mendicantes, como os dominicanos e franciscanos no século XIII. Na verdade, a retórica serviu de base para os debates ocorridos com a chegada dos europeus na América. O “primeiro desembarque de Colombo” significou não apenas a conquista de uma nova terra, mas a descoberta que o eu fez do outro. Reler os sermões de Vieira e encontrar-se, ainda hoje, com o “o rosto do Outro” que como afirma Lévinas nos desafia sempre. Porém a percepção do outro estava viciada pela projeção de estereótipos como “selvagem” e “bárbaro”. Essa foi, e é ainda, a tônica da percepção das culturas não européias pelo sistema. Mas não existe retórica sem auditório, e esse há de ser sempre humano. A liberdade e a inteligência sempre foram defendidas pelos retóricos como partes da dignidade intrínseca de todos os homens. Pois só há retórica quando se faz argumentação e essa, busca o convencimento do outro, o que pressupõe que, teoricamente, haja semelhanças ontológicas entre orador e seu auditório. Caso contrário o diálogo não seria possível. O Concílio de Trento (1545-1563), na sua XXIV seção, em 17 de junho de 1546, aprovou o decreto super lectione et praedicatione, que concedeu ao pregador o status de “porta-voz divino”, o “imitador de Cristo”. Nesse sentido, a difusão das escolas da Companhia de Jesus por toda Europa e também pelas colônias, como a brasileira, foi determinante para o desenvolvimento da eloqüência. Vieira foi professor de Retórica nessas escolas e, com certeza, os jesuítas foram aqueles que mais intensamente abraçaram essa comunhão entre teologia e verbo. Vieira dispôs sempre do veio persuasivo com a finalidade de manter seu auditório nas fileiras católicas. Munido das três observações aristotélicas quanto à moral do pregador, influindo sobre a disposição do ouvinte por meio da demonstração (discurso), o jesuíta, amiúde, imprime em seus sermões uma característica retórica predominantemente persuasiva, avançando sempre além do simples ensinamento moral. 205 Assim o púlpito era a cátedra onde Vieira usará dos seus sermões como forma de mobilização social, que buscava não apenas ensinar um determinado conhecimento da realidade, mas alterar situações cruéis como a da escravidão dos índios e pobres em sua época. A educação em Vieira consiste numa tensão entre as esperanças utópicas e as urgências da prática. Assim Vieira, no que pese suas hesitações em torno da escravidão negra, fruto de sua preocupação em adequar tema e auditório, como no caso do XIV Sermão da série Maria Rosa Mística em 1633, permaneceu crítica. A retórica do poder, representada por Sepúlveda é paradigmático na situação das colônias. Vieira, com maestria, questiona a aparente superioridade dos colonos sobre os índios no Sermão de Antônio aos Peixes de 1654. Por outro lado, a justificativa da importância da educação infantil, expressa na idéia que com a educação moderna a criança se tornaria o pai do homem, presente no de São Francisco Xavier, acorrentado (1691-1694), está associada a uma profunda negação da cultura e identidade da própria criança que se torna inimiga de seus pais e principal agente da colonização portuguesa. Essa é uma questão que parece ser uma descoberta imprescindível nesses tempos em que se busca construir uma razão “pós-colonial”. Pois, se por um lado a “retórica do império” tem sido o paradigma hegemônico, nada obriga a acreditar que precisa ser assim eternamente. É precisamente essa a mensagem do Apóstolo Paulo, na sua Primeira Carta aos Coríntios, ao afirmar que: “Agora nos restam a fé, a esperança e o amor estas três coisas. Mas o mais importante é o amor”. Não se trata evidentemente de se tomar literalmente este texto ou advogar qualquer tipo de ensino catequético, seja ela política ou religiosa, na escola. Mas de ampliar e interpretar no presente o sentido do texto. Vieira era um homem apaixonado por uma causa: a construção do Quinto Império. A crença em um mundo sem conflitos religiosos ou sociais, capaz de incorporar judeus, brancos e índios, para Vieira essa não era nenhuma “história de trancoso”, mas seu horizonte utópico e místico. Para nós, pessoas secularizadas do século XXI, significa recuperar o princípio esperança e a paixão nos educadores. Vieira, no seu Sermão sobre Santa Catarina, virgem e mártir (1653), chama a atenção para o essencial na atividade educativa. É preciso em primeiro lugar abandonar os reducionismos e condicionamentos sociais. Ensinar é mais que desenvolver regulamente suas tarefas na escola de forma “profissional” e “objetiva”; tão pouco se confunde com o dito domínio de um conhecimento ou área especifica o especialista. A educação pressupõe a fé e a paixão no ser humano e no futuro do planeta. 206 Como lembra Morin, a história é feita com a participação de alguns educadores que “animados pela fé na necessidade de reformar o pensamento e em regenerar o ensino. São educadores que possuem um forte senso de missão” (2007, p. 98). Vieira nos ensina que é preciso humanizar e politizar a educação. Para se persuadir uma turma, uma escola, uma cidade é necessário mais que conhecimento e técnica. É preciso arte e paixão. Aquilo, que está ausente nos manuais metodológicos e didáticos modernos e que era defendido por Platão como condição sine qua non para todo ensino: o Entusiasmo, literalmente “estar cheio de deus”. No caso pleno de Eros, que é simultaneamente desejo, prazer e amor “desejo e prazer de transmitir, amor pelo conhecimento e amor pelos alunos” (MORIN: 2007, p. 98). Como dizia Paulo, só o amor pode libertar o homem do perigo do poder, da arrogância do saber, canalizando tudo isso para o bem de outrem. Ensinar será sempre um ato de fé no futuro. Plantar, regar sementes, que se tornaram árvores, mas que nós jamais iremos gozar de seus frutos e sombra. Diz Morin: “O Eros permite dominar o gozo ligado ao poder, em benefício do gozo ligado ao dom” (MORIN: 2007, p. 98). Uma pedagogia erotizada que lhe desafie, para tornar suas aulas mais estéticas e menos metódicas, mais místicas que científica. Uma pedagogia que faça da sedução a sua maior prova, e da vontade a sua certeza. Só uma educação assim pode suportar as dificuldades do cotidiano sem sucumbir à mediocridade da vida. Pois “onde não há amor, não há mais do que problemas de carreira, de dinheiro para docente, e de aborrecimento para aluno”. Não que seja fácil concretizar isso “a missão supõe, evidentemente, fé na cultura e fé nas possibilidades do espírito humano. A missão é, portanto, elevada e difícil, porque supõe, simultaneamente, arte, fé e amor” (MORIN: 2007, p. 98-99). Na verdade toda a sermonística utópica de Vieira nos convida a ver que não existe uma única possibilidade de nos relacionarmos com o mundo e o tempo. E ele, herdeiro da profecia judaica e do messianismo cristão, presentes na espera ativa pelo Quinto Império, acreditava que a história estava grávida de utopias, cabendo aos professores–intelectuais-oradores a leitura desses sinais, ensinando, persuadindo à ação. Vivemos em um tempo propício às interrogações. O Ocidente está em crise no seu duplo sentido de angústia e possibilidade. Se é verdade que a descoberta da América foi, na verdade, a descoberta da Europa, convém decidir o que fazer com esse novo conhecimento. A globalização nos desafia como a Esfinge: “Decifra-me ou te 207 devorarei!” Redescobrir nossas raízes é parte dessa busca por respostas. O conceito de barroco pode ser útil nesse processo de redefinição das sociedades pós-coloniais. Para além de seus limites e determinações culturais, a obra de Vieira nos deixa um legado desafiador: o da articulação entre as dimensões do conhecimento, da política e da ética. Isso implica que, cabe a cada um de nós criarmos as condições reais para que a liberdade e a autonomia sejam de fato realidades universais.. Nosso maior desafio é criarmos uma educação capaz de, ao mesmo tempo em que incorpore, “de forma antropofágica”, os elementos válidos do centro, supere a tendência a pensar o diferente como exótico (Oriente) , inferior (selvagem) ou exterioridade radical (natureza). Cabe a nós criarmos estratégias de inclusão capaz de superar os estereótipos, sobretudo sexuais e raciais, presente em um discurso de conhecimento e controle, medo e desejo, fascínio e fobia. Nosso desafio é utilizarmos toda astúcia, toda beleza, toda paixão, para convencer nosso auditório que um outro mundo é possível. 208 BIBLIOGRAFIA ABBAGNAMO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ACHILLE, M. Triacca; SARTORE, Domenico. Dicionário de liturgia. São Paulo: Paulinas, 1992 AGOSTINHO, Santo. Confissões. De magistro. Traduções de J. Oliveira Santos; Ambrosio de Pina e Ângelo Ricc. São Paulo: Abril, 1980 (coleção os pensadores). AGOSTINHO, Santo. 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