UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS GIRLANE CRISTINA SIQUEIRA DA SILVA ATUAÇÕES E PAPÉIS FEMININOS: O CORPO A CORPO DA ATRIZ NO TEATRO PERNAMBUCANO DURANTE A DITADURA MILITAR NATAL/RN 2015 GIRLANE CRISTINA SIQUEIRA DA SILVA Atuações e papéis femininos: o corpo a corpo da atriz no teatro pernambucano durante a ditadura militar Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para obtenção do título de Mestra em Artes Cênicas. Linha de pesquisa II - Linguagens da Cena: Memória, Cultura e Gênero. Orientador: Prof. Dr. Rubén Figaredo Fernandez NATAL/RN Março, 2015 DEDICATÓRIA Dedico este trabalho à Nicole e a Miguel, meus prumos, meus rumos. E “às” Francys Wright, Rose Muraro e a todas as mulheres que acreditaram num mundo mais feminilizado. AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a Deus/Deusa/Força Maior/Energia Infinita, por permitir esse sonho; Ao meu pai, Hermes, por sempre acreditar em mim, em todos os sentidos; Às “minhas meninas”, Stella, Suzana, Ivonete e Zélia, pela confiança e solidárias disposição e disponibilidade; A uma das melhores coisas que este mestrado me proporcionou: o reencontro com o meu colega Berttony Nino, depois de muitas vidas. Amizade eterna; Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, em especial: Robson Haderchpek (pelo apoio no estágio-docência e nos primeiros dias em Natal); Adriano Charles Cruz (por me conduzir a novos caminhos “pós-modernos”) e Larissa Kelly de Oliveira Marques Tibúrcio. Ao Professor Érico José Souza de Oliveira, da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia, por querer me possibilitar novas ideias; Ao Professor e historiador Mário Ribeiro, por esta e outras histórias... Ao meu orientador Rubén Figaredo Fernandéz por acreditar nesta pesquisa; A Guilherme Coelho, pelos sábios conselhos, para a vida e para o teatro; A Fábio Coelho que, sabiamente, me aconselhou a tirar as dificuldades das costas e pô-las no colo; Às minhas amigas Kátia Melo, Kátia Santa Cruz, Nara Ferreira e Roseane Silva; À CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoa de Nível Superior, pelo apoio financeiro durante os dois anos de pesquisa. RESUMO Esta pesquisa investigou a atuação feminina no teatro pernambucano durante a ditadura militar brasileira na década de 1970, analisando os trabalhos de quatro atrizes dos grupos Teatro Hermilo Borba Filho, Vivencial e Expressão, que atuaram no período. Lança-se um olhar sobre o corpo feminino no teatro a partir de uma transgressão cênica corporal: a consciência de uma insubordinação corpórea em resposta a um determinado contexto. No entanto, antes delineou-se um panorama sobre a posição artística e sociocultural da mulher no teatro, nos períodos que antecedem a ditadura no Brasil e em Pernambuco, abrangendo referências teatrais e históricas, com o objetivo de refletir sobre como estas colocações interferiram na imagem social da atriz no contexto ditatorial. Os grupos são revisitados pelos olhares das intérpretes, onde foi percebido que a visada feminina busca as relações, e neste contexto, as relações com os outros grupos de teatro da época, com os outros artistas dos grupos em que estavam inseridas, com o contexto ditatorial, com a censura, com o teatro engajado e transgressor, com o corpo. Em paralelo, desenvolve-se uma reflexão sobre o corpo cênico que se opunha à ditadura, um corpo que viola as normas estabelecidas, o Corpo Transgressor. A pesquisa discorre ainda sobre uma analogia entre o trabalho das atrizes que se opunham ao regime militar e as mulheres militantes. Partindo de análises feitas com as entrevistas realizadas com as atrizes, a partir das metodologias da História Oral e da Análise do Discurso, o estudo é desenvolvido construindo-se conexões entre as falas das artistas e os pressupostos filosóficos de Henri Bergson, acerca do corpo e da memória. É também elaborada uma reflexão sobre as mudanças do corpo feminino no teatro na História, em consonância com o conceito também filosófico do Devir Mulher de Felix Guattari. Constatou- se, assim, que as atrizes, desde o século XIX, constituíram um dos grupos de atores sociais femininos que modificaram a posição da mulher na História; que a estigmatização da profissão de atriz, considerada como indecente nos séculos anteriores, deixou resquícios em alguns âmbitos na atualidade e que a ideia da libertação do corpo feminino propagada pelo feminismo nos anos de 1970, configurou-se na época como a melhor forma de protesto e vai influenciar, em alguns contextos, na representação feminina em seu fazer teatral. Palavras Chave: Gênero, memória, corpo, atriz, ditadura. ABSTRACT This research investigated the female performance in Pernambuco theater during the Brazilian military dictatorship in the 1970s, analyzing the works of four actresses of theater groups Hermilo Borba Filho, Experiential and Expression, who acted in the period. Launches a look at the female body in the theater from a body scenic transgression: the conscience of a body insubordination in response to a given context. However, before delineated an overview of the artistic and socio-cultural position of women in the theater, in the periods prior to the dictatorship in Brazil and Pernambuco, covering theatrical and historical references, in order to reflect on how these settings interfered in the picture Social actress under the dictatorship. The groups are revisited by the looks of interpreters, which was perceived that female targeted search relationships, and in this context, relations with other theater groups of the time, with other artists of the groups that were inserted with the dictatorial context with censorship, with the offender engaged and theater, with the body. In parallel, it develops a reflection on the scenic body that opposed the dictatorship, a body that violates the established norms, the Transgressor Body. The research also discusses an analogy between the work of the actresses who opposed the military regime and militant women. Starting from analyzes with interviews with the actresses from the methodologies of Oral History and Discourse Analysis, the study is developed by building up connections between the testimonies of the artists and the philosophical assumptions of Henri Bergson, on the body and memory. It is also designed to reflect on the changes of the female body in the theater in history, also in line with the philosophical concept of Becoming Woman Felix Guattari. It was found, therefore, that the actresses from the nineteenth century, were a group of female social actors who changed the position of women in history; the stigmatization of the actress by profession, considered indecent in previous centuries, left traces in some areas today and the idea of the liberation of the female body propagated by feminism in the 1970s, was configured at the time as the best way to protest and will influence, in some contexts, the representation of women in their theatrical make. Keywords: Gender; memory; body; Actress; dictatorship. Lista de Imagens Imagem 1: Jornal “O Carapuceiro” de 16 de agosto de 1839. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano ...................................................................................................... 31 Imagem 2: Ismênia dos Santos. Acervo digital da Fundação Joaquim Nabuco – Pernambuco - Coleção Francisco Rodrigues. Fotografias do final do século XIX e início do século XX. Disponíveis em http://digitalizacao.fundaj.gov.br em 24/12/2014 ................................ 32 Imagem 3: Ismênia dos Santos. Acervo digital da Fundação Joaquim Nabuco – Pernambuco - Coleção Francisco Rodrigues. Fotografias do final do século XIX e início do século XX. Disponíveis em http://digitalizacao.fundaj.gov.br em 24/12/2014 ................................ 33 Imagens 4 e 5: Elvira Martins e Judith Correia, atrizes da Companhia de Teatro Avenida de Lisboa. Jornal do Recife, 19 e 26 de setembro de 1915. Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano ................................................................................ 34 Imagens 6 e 7: Anúncios do Jornal do Recife de dois espetáculos da Companhia Velasco, que esteve no Recife em dezembro de 1925, apresentando-se no Teatro do Parque. Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano. Jornal do Recife, 15 e 22 de dezembro de 1925 ........................................................................................................................ 34 Imagem 8: A atriz e produtora Alda Garrido. Jornal do Recife, 10 de agosto de 1925. Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano .................................. 36 Imagens 9 e 10: Registros de atas de funcionamento de cinemas e teatros da Inspetoria Geral de Polícia do Estado de Pernambuco em 1927. Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano ..................................................................................................... 37 e 38 Imagens 11,12 e 13: Documentos de mulheres enviados à Secretaria de Segurança Pública (Seção de Teatros e Diversões Públicas), para conseguirem licença para trabalharem como atriz, entre 1932-1933. Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano ..................................................................................................................................... 39 e 40 Imagem 14: “Fedra”, de Racine. Espetáculo da “Cínicas de Teatro – Cia. De Mulheres”. Recife, 2012. Foto: Rita Alves .................................................................................... 44 Imagens 15 e 16: Espetáculos do Teatro de Amadores de Pernambuco, na década de 1940: “A Casa de Bernarda Alba” (1948) e “A Dama da Madrugada” (1945). Disponíveis no site oficial do grupo: http://www.tap.org.br/, em 20/12/2014 ....................................................................................................................................... 46 e 47 Imagem 17: Programa do espetáculo “A Volta do Camaleão Alface”, dirigido por Luiz Mendonça, recolhido pela polícia. Encontrado no prontuário do Movimento de Cultura Popular do Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão emerenciano – DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) .................................................................. 51 Imagem 18: Documento secreto da Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco de 1965, informando que Luiz Mendonça estava trabalhando numa emissora de TV carioca e que era integrante do Grupo de Teatro Decisão. Encontrado no prontuário individual de Luiz Mendonça do Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano – DOPS ........................................................................................................................................ 52 Imagem 19: “O Inspetor”, de Gogol, montagem do TPN de 1966. Adaptação e direção de Hermilo Borba Filho. Em cena: Lêda Alves, Lúcia Neuenschwander e Joacir Castro. Arquivo: Projeto Memórias da Cena Pernambucana ................................................................... 53 Imagem 20: Programa do espetáculo “Andorra”, montagem do TPN de 1968. Encontrado no Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano - (DOPS), no prontuário individual de documentos e objetos de um militante do Recife .......................................................................................................................................... 54 Imagem 21: Ficha da atriz Leda Alves do Departamento de Ordem Política e Social de Pernambuco (DOPS-PE). Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano .......................................................................................................................................... 55 Imagem 22: Logomarca do Vivencial: a letra “v”, ironicamente, são duas pernas abertas de mulher, significando “Vinde a mim todos”. Arquivo pessoal de Guilherme Coelho....................... 70 Imagem 23: Ivonete Melo no monólogo “Verão de 92”, quadro do espetáculo “Repúblicas Independentes, Darling”, de 1978. Arquivo pessoal de Ivonete Melo ........................................................................................................................................... 74 Imagem 24: Da esquerda para a direita: Suzana Costa, Américo Barreto, Walternandes Carvalho e Ivonete Melo em “Repúblicas Independentes, Darling”, 1978. Arquivo pessoal de Ivonete Melo ................................................................................................................... 75 Imagem 25: Ivonete Melo em “Viúva, porém honesta”, de 1977. Arquivo pessoal de Ivonete Melo ................................................................................................................................. 75 Imagem 26: Solilóquio de Ivonete em “Repúblicas Independentes, Darling” (1978), momento onde a atriz narrava suas vivências. Arquivo pessoal de Ivonete Melo ........................... 76 Imagem 27: Jornal “A Marreta”, programa do espetáculo “Viúva, porém honesta”, de 1977. Arquivo pessoal de Guilherme Coelho .......................................................................... 80 Imagem 28: Coluna de Doroty Dalton, parte do programa do espetáculo do Vivencial “Viúva, porém honesta”, de 1977. Arquivo pessoal de Guilherme Coelho ................... 81 Imagem 29: Suzana Costa em “Repúblicas Independentes, Darling”, de 1978. Arquivo pessoal de Suzana Costa ................................................................................................ 81 Imagens 30 e 31: Fotos de Suzana Costa para uma das exposições promovidas pelo grupo. O efeito destas fotos é a imagem da atriz que se mescla ao espaço marginal, no caso, a comunidade da “Ilha do Maruim”, localidade pobre de Olinda. Arquivo pessoal de Suzana Costa ............................................................................................................................... 82 Imagem 32: Stella Maris Saldanha e Luiz Maurício Carvalheira, em “Pluft, o Fantasminha”, de 1977. Arquivo pessoal de Stella Maris Saldanha ...................................................... 90 Imagem 33: “Um grito parado no ar”, de Gianfrancesco Guarnieri. Montagem do THBF de 1979. Stella Maris Saldanha contracena com Marcus Siqueira. Arquivo pessoal de Stella Maris Saldanha............................................................................................................................. 90 Imagem 34: “Os Fuzis da Senhora Carrar”, de 1978. Em cena, da esquerda para a direita: Ricardo Xavier, Luiz Maurício Carvalheira e Stella Maris Saldanha. Arquivo pessoal de Stella Maris Saldanha ................................................................................................................ 91 Imagem 35: Programa de “Hipólito”, de 1976. Acervo do Projeto “Teatro tem Programa!”........................................................................................................................ 92 Imagens 36 e 37: Zélia Sales em “O Suplício de Frei Caneca”, de 1977. Arquivo pessoal de Zélia Sales ........................................................................................................................ 95 Imagem 38: Zélia Sales e Harry Gomes no laboratório para a montagem de “João, Amor e Maria”. Arquivo pessoal de Zélia Sales .......................................................................... 96 Imagem 39: Da esquerda para a direita: Leda Alves, Zélia Sales, Maria Áurea Santa Cruz e Paulo de Castro no I Seminário Estadual de Artes Cênicas de Pernambuco, em 1985. Arquivo pessoal de Zélia Sales ...................................................................................................... 97 Imagem 40: “Repúblicas Independentes, Darling”, de 1978. Da esquerda para a direita: Suzana Costa, Walternandes Carvalho abaixo de Américo Barreto, Zélia Sales e Ivonete Melo. Arquivo pessoal de Ivonete Melo ......................................................................... 98 Imagens 41 e 42: Inquérito do DOPS sobre o Teatro do Estudante de Pernambuco de outubro de 1948. Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano – DOPS ........................................................................................................................................ 105 Imagem 43: “Chá das Duas”, cena de Suzana Costa (Dona Subversão) com Auricéia Fraga (Dona Corrupção) em “Repúblicas Independentes, Darling”, 1978. Arquivo pessoal de Suzana Costa .................................................................................................................. 133 Imagem 44: Solilóquio de Suzana no mesmo espetáculo. Arquivo pessoal de Suzana Costa ......................................................................................................................................... 134 Imagens 45 e 46: AI (Apresentação de Investigação) sobre o grupo Vivencial. Arquivo Público Estadual de Pernambuco (DOPS) ..................................................................... 134 e 135 Imagens 47 e 48: Stella como a Sra. Carrar, nas montagens de 1978, em cena com João Denys Araújo Leite e de 2012, com Antônio Marinho. Arquivo pessoal de Stella Maris Saldanha ......................................................................................................................... 149 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 14 CAPÍTULO 1 - NO SEIO DA REPRESSÃO 1.1. Pequena Paisagem da posição da atriz nos últimos tempos... .......................................... 24 1.2. “Você tem muito jeito pra isso, menina...” ..................................................................... 30 1.3. O Teatro em Pernambuco no período da ditadura ........................................................... 45 CAPÍTULO 2 - NO ÚTERO DA TRANSGRESSÃO 2.1. A poética vivencialesca .................................................................................................. 59 2.1.1. O Vivencial por Ivonete ............................................................................................... 71 2.1.2. O Vivencial por Suzana ................................................................................................ 76 2.2. O Teatro Hermilo Borba Filho (THBF) ......................................................................... 83 2.2.1 . O respiradouro de Stella ............................................................................................. 86 2.3 – O Grupo Expressão ........................................................................................................ 91 2.3.1. O Grupo Expressão por Zélia ....................................................................................... 90 2.4. E se existia transgressão, existia censura ........................................................................ 98 CAPÍTULO 3 - TRANSGRESSÃO: UM PARTO DE POSSIBILIDADES 3.1. O Corpo Transgressor ................................................................................................... 112 3.2. O corpo feminino na ditadura: atrizes e militantes........................................................ 123 3.3. Ser mulher e atuar no teatro na ditadura militar ........................................................... 128 3.4. A memória do corpo ..................................................................................................... 142 CONSIDERAÇÕES FINAIS (PARA NÃO CONCLUIR) ........................................... 152 REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 161 REFERÊNCIAS DAS EPÍGRAFES................................................................................ 167 APÊNDICES - ENTREVISTAS........................................................................................ 169 ANEXOS – TERMOS DE CONSENTIMENTO ............................................................ 212 14 INTRODUÇÃO “A arte que resiste: ela resiste à morte, à servidão, à infâmia, à vergonha”. Gilles Deleuze O assunto “gênero” me permeia desde sempre. Me convidou, me envolveu e me seduziu. Embora seja colocado em muitos trabalhos como termo dirigido aos assuntos das mulheres, o que é minimizá-lo consideravelmente, gênero é, de forma abrangente, relação. E aqui diz respeito a algumas relações da atuação feminina no teatro em um contexto. Não para refletir sobre uma possível superioridade da mulher em relação ao homem ou vice-versa, mas como a atuação feminina ou os saberes femininos foram desperdiçados na História, e dessa forma revisitar um contexto teatral, desta vez pelo olhar feminino e sobre a importância deste assunto no âmbito acadêmico, mais precisamente o artístico. Interessar-se pelo assunto “gênero” significa (ainda) também desagradar muitos colegas, estudiosos e até professores. Apesar de as universidades, órgãos e leis de incentivo estimularem cada vez mais a produção de escritos e textos sobre gênero, há ainda certa “desconfiança” de alguns para com os interessados em pesquisá-lo. Há um longo caminho a ser percorrido na carreira acadêmica, mas posso falar do quanto já fui questionada e hostilizada pelo fato de me interessar pelos estudos de gênero, como se não tivesse valor acadêmico ou científico. As denominações feitas pelos que se sentem incomodados com o assunto, embora que mais tímidas e não menos grosseiras, são as mesmas designações depreciativas que receberam algumas mulheres durante a ditadura militar no Brasil ou as que receberam/recebem as feministas ou qualquer mulher que aborde os assuntos femininos em seus trabalhos, como, por exemplo, a clássica “mal amada”. Geralmente, estas mulheres têm alguma história semelhante neste aspecto para contar. Leilah Assunção, por exemplo, que foi uma das dramaturgas brasileiras que mais se preocupou em expressar os dramas femininos, nos conta uma das suas: “Quando comecei, não podia dizer que era feminista, porque as feministas eram consideradas mulheres feias que não arranjavam homens” (ANDRADE, 2008. p. 400). O problema maior não são as denominações, mas quais razões levam estas pessoas a ainda pensarem de forma tão retrógrada, considerando também que muitas vezes estes são pensamentos vindos de... mulheres! As razões podem ser múltiplas: conservadorismo, machismo, misoginia, etc. Mas a grande questão é como estas 15 pessoas enxergam afinal, os estudiosos de gênero. Ou ainda, como enxergam o assunto gênero. É provável que estes pensamentos estejam ligados à ideia de que este assunto refere-se precisamente aos assuntos das mulheres. Gênero é também uma maneira de se construir as relações sociais, um modo de ver ou de proceder. Joan Scott (1991, p.17) nos lembra que “o gênero é, portanto, um meio de decodificar o sentido e de compreender as relações complexas entre diversas formas de interação humana”. Gênero também costuma incluir as mulheres, mas não as nomeiam, está inserido em outras reflexões e por isso, ele não se limita aos temas femininos. Tampouco ao feminismo. Mesmo a pesquisa estando contextualizada na mesma época em que o feminismo floresceu e não obstante o feminismo servir muitas vezes de suporte para algumas reflexões; e mesmo porque o feminismo, ao contrário do que muitos ainda pensam, não ficou estanque, radical, parado nos anos de 1960, queimando sutiãs na praça: ele acompanhou as mudanças e fez suas reconstruções. Estamos, inclusive, na terceira onda feminista, que se desenvolve a partir da ideia da relação do corpo com a maleabilidade: reflete sobre a lógica do ciborgue (corpo construído em favor do corpo fabricado) e do queer (coloca em questão as relações sociais). Quanto à sexualidade feminina, pensa-se hoje no feminismo sobre a sua exploração, que se emaranha “na máquina ideológica do capitalismo e do patriarcado que a transforma em mercadoria e em produto de consumo” (MARZANO, 2012, p. 463). Entretanto, o interesse aqui é pensar no feminino, além do próprio feminismo e dele mesmo. O Gênero como objeto de investigação é aqui tratado como campo fértil de relações de saber e não assuntos que se restringem à maternidade, à virgindade, ao casamento, papéis sexuais, anatomia ou coisas do “gênero”. O feminino que é questionador, político e transformador. Mais diretamente falando, numa feminilização, num devir feminino, buscando a função feminina no teatro. Mas a pergunta que vem à tona é: academicamente, qual a importância das pesquisas sobre os assuntos de gênero? a resposta ecoa em vários âmbitos. Primeiro porque historicamente, sabe-se que muito se perdeu por conta do silêncio imposto à mulher. Ficaram lacunas, pois a versão da mulher não foi contada. Durante séculos as mulheres ficaram presas e a sabedoria feminina, introspectiva, gerada no seio do lar não foi aproveitada, enquanto os homens desbravavam poder, conhecimentos e conquistas. Hoje, esta sabedoria feminina pode ser encontrada em vários espaços e se mostra menos subjetiva do que vemos. É um desafio 16 teórico, pois não se trata simplesmente da análise das relações entre homens e mulheres e das “ditaduras” impostas a estas últimas, mas também da análise destas atuações femininas e de suas importâncias nas práticas teatrais atuais. Significa procurar outros sentidos para as organizações e percepções dos conhecimentos no campo teatral. O papel da mulher na vida social não se refere diretamente às atividades que ela produz, mas no que estas atividades se transformam através das relações sociais. O desafio teórico é buscar uma conciliação das teorias escolhidas, refletindo sobre a noção de fixidez destas. Joan Scott diz que “[...] os (as) historiadores (as) da arte abrem novas perspectivas quando decifram as implicações sociais nas representações dos homens e das mulheres” (SCOTT, 1991, p. 17). A pesquisa apresenta uma linha historiográfica, entendendo a História como um campo de reflexão para mediação de tempos distintos, buscando no passado reflexões acerca das questões do presente e do futuro, apresentando outras interpretações. Aqui, é investigada a atuação de atrizes, vozes silenciadas que, segundo Michele Perrot (2005), significam as lacunas da História. Décadas após o fim da ditadura, percebe-se também que nos estudos que se voltam para os grupos de teatro que atuaram na ditadura militar em Pernambuco, os nomes masculinos se sobressaem e as mulheres aparecem como meras coadjuvantes. Este é um ponto comum em todos os grupos, tanto os que se posicionaram como de direita, politicamente falando, quanto os esquerdistas, os que apoiavam ou não o regime ou ainda os que eram alheios a este: os nomes masculinos ecoam nas páginas como mentores e criadores e ganham certo ar de supremacia. Isso em todos os campos teatrais, na dramaturgia, direção, interpretação, etc. Obviamente, grandes nomes que atuaram no teatro pernambucano no período como Ariano Suassuna, Valdemar de Oliveira, Hermilo Borba Filho e muitos outros foram de extrema importância para o desenvolvimento teatral em Pernambuco, mas e as mulheres? Realmente atuaram como papéis secundários? As próprias atrizes, nos escritos atuais, nas entrevistas e pesquisas, ainda falam com base nos intuitos e pensamentos masculinos. Referem-se sempre aos homens como os grandes idealizadores. Teci fios por entre as fronteiras da memória, do gênero, do corpo e do contexto ditatorial. Ensaiei uma cena por entre estes espaços, sem medo das subjetividades e conflitos. 17 Esta pesquisa visa investigar a atuação feminina no teatro no período da ditadura, também refletindo sobre o corpo da mulher no teatro na época averiguada. Buscou-se ainda, além da memória convencional (a dos fatos, como comumente estamos acostumados), a memória do corpo, à qual não atentamos, a que geralmente passa despercebida, visto que normalmente a ideia reducionista e fragmentada que ainda prevalece sobre o corpo, leva-nos a esquecer que o corpo tem memória, que ele guarda impressões e nele são tatuadas referências socioculturais, que nele perpassam relações de poder e política. Durante a pesquisa, foi percebido que em todo o período da ditadura em Pernambuco, as atrizes que mais ousaram, corporalmente falando, as que usaram seus corpos como possibilidades de transgressão e de ato político, estavam nos anos de 1970. Certamente pelo período caracterizar-se como transformador e ascendente, pois nos anos de 1970 o mundo encontrava-se num estado que se pode chamar de efervescente, em muitos sentidos. Para o universo feminino, foram os anos do florescimento da pílula anticoncepcional e do movimento feminista, surgidos nos anos de 1960. As temáticas do feminismo nesta década se concentram em torno do corpo feminino. Parte do princípio da libertação de um corpo oprimido, de objeto da dominação colonial e do sistema patriarcal (MARZANO, 2012). No Brasil, na arte, acentua-se o engajamento social e político, exatamente em oposição ao regime ditatorial que insistia em permanecer. Acentua-se porque o nacionalismo e a função social da arte já haviam marcado a década anterior, 1960 (COSTA, 2006). Em todo o mundo, surgiu a necessidade no teatro de se pensar diferentemente do que vinha sendo produzido: em geral, trabalhos voltados para os melodramas, naturalismo ou realismo (GARCIA, 2004). Uma nova forma de reflexão que produziu técnicas, teorias e objetivos diferentes que correspondiam às necessidades da época. E neste universo, deste período, o corpo feminino passou a ser conceituado de outras maneiras, diversas dos séculos anteriores. Neste sentido, o primeiro capítulo faz um pequeno panorama sobre o corpo da mulher no teatro no século XIX e a posição da atriz, no Brasil e em Pernambuco, tendo sua profissão ligada à prostituição, por se tratar de um corpo que se “mostra”, estigma que trouxe resquícios para a contemporaneidade. No segundo capítulo, desenvolve-se a historicidade dos grupos nos quais atuaram as atrizes entrevistadas, a partir do olhar destas mulheres, bem como é discorrida a poética destes grupos (poética aqui entendida como algo que leva a traduzir, “em termos normativos e operativos um determinado 18 gosto, que, por sua vez, é toda a espiritualidade de uma pessoa ou de uma época projetada no campo da arte” (PAREYSON, 2001, p. 11): o Teatro Hermilo Borba Filho, dirigido por Marcus Siqueira, que parte para um teatro consciente de sua função social, com inspiração visivelmente brechtiana e, ao mesmo tempo, valorizando o despojamento no trabalho do ator/atriz, que não deveria buscar subterfúgios em outros elementos cênicos como o figurino, o cenário, etc. Este ator ainda precisava ser crítico e politizado; o Vivencial, liderado por Guilherme Coelho, que, com toque visivelmente tropicalista, trazia um corpo pleno de possibilidades para a produção de diversas linguagens e da politização do desejo; e o Expressão, que não tinha uma linha ou conceito rígido para basear as interpretações e trabalhos, mas a ideia de se quebrar paradigmas, numa proposta de ruptura e de incitar questionamentos. Percorrendo pelo teatro pernambucano no período ditatorial, é desenvolvido um quadro histórico sobre a censura no teatro. Buscou-se as falas das atrizes, suas impressões sobre as poéticas dos grupos e suas vivências neles: Ivonete, a menina dos olhos esverdeados que morava numa palafita e se tornou bailarina clássica; Suzana, a “burguesinha” que exalava liberdade, entre elas, a liberdade de não se adequar aos padrões morais que sua classe social exigia; Stella, que com tão pouca idade, já tinha autonomia como atriz e Zélia, filha de um militar que discordava dos desmandos do regime militar. Os grupos foram escolhidos pelas suas propostas transgressoras, pelas quais deram-se os rumos dos trabalhos artísticos dos mesmos. Para o Vivencial, por ser um grupo de poética e identidade tão subjetivas e fragmentadas, foram escolhidas duas atrizes, Ivonete Melo e Suzana Costa, para se ter dois olhares acerca do grupo e da posição feminina no mesmo. A escolha destas duas atrizes deu-se por serem as intérpretes femininas do Vivencial que mais trabalharam com a nudez ou seminudez em cena, como forma de protesto, visto que outras atrizes do grupo não concordavam com esta nudez, além do que, foram as artistas que mais atuaram no grupo, no sentido de terem feito mais espetáculos (e outros tipos de trabalhos como performances e happenings) e de terem permanecido no grupo por períodos mais longos. A escolha para a atriz do Teatro Hermilo Borba Filho, Stella Maris Saldanha, deu-se por ela ter interpretado a mesma personagem no grupo no período da ditadura e cerca de quarenta anos depois, com proposta semelhante à do THBF. Neste sentido, pensou-se sobre a investigação acerca da memória corporal. E entendendo-se que o teatro feito por estudantes na 19 época em todo o Brasil teve grande significação como canal de subversão e transgressão, foi escolhido o Grupo Expressão, pouco procurado para as pesquisas e pouco encontrado nos escritos sobre a História do Teatro em Pernambuco, do qual foi escolhida Zélia Sales, que foi a atriz que atuou durante todo o tempo de vida do grupo. Dois pontos foram ainda levados em consideração para a escolha das atrizes: o fato de se mostrarem em posição contrária ao regime e a ousadia em cena, corporalmente falando, não necessariamente pelos trabalhos com a nudez, mas pelo uso de seus corpos como canais de politização. Utilizando-se as entrevistas como instrumentos de análise, são construídas conexões entre as memórias e falas das artistas e os pressupostos filosóficos do francês Henri Bergson. Há ainda, neste capítulo, algumas considerações sobre a censura e a relação desta com os contextos das atrizes. O terceiro capítulo adentra no universo do corpo. Faz-se uma reflexão sobre um corpo que historicamente, vai de encontro às normas estabelecidas e choca-se com o poder: o Corpo Transgressor; uma relação entre o corpo de determinadas mulheres militantes no contexto ditatorial e os corpos artísticos das atrizes entrevistadas. A política foi objeto de resistência na inclusão de atuações femininas na sociedade e de questões referentes às mulheres. Nos territórios onde se localizam os regimes autoritários, o controle sobre as mulheres ainda tem muito o que ser explorado. É uma questão entre gênero e poder. Para Rosa (2013), o gênero é um dos pontos pelos quais o poder político foi concebido, legitimado e criticado. Há uma relação histórica entre as mulheres (e seus corpos) e o poder do Estado. Então, penso que, se muitas militantes precisaram esconder seus corpos e se dessexuarem, as atrizes faziam o oposto, se expunham para discordar do regime vigente, visto que a exposição é eminente à atividade teatral. Quais mecanismos se concentrariam na esfera teatral que permitiram essa diferenciação ou liberação? Este capítulo traz ainda, a partir dos relatos das experiências das atrizes entrevistadas, como foi ser mulher e atriz nos anos de 1970 no Brasil, atentando também para o fato de que a partir desta década, a atuação feminina no teatro brasileiro teve maior abertura, devido em grande parte, ao aparecimento de uma dramaturgia voltada para o universo da mulher; e um pensamento sobre a memória do corpo, tomando como exemplo a experiência de Stella, que interpretou a mesma personagem em épocas diferentes. A ideia de um corpo em constante mudança liga-se ao conceito do Devir em Felix Guattari. Aliás, memória e devir, conceitos inseridos nesta investigação e desenvolvidos com o apoio de uma releitura bergsoniana de 20 Ecléa Bosi, que estudou memórias de velhos, são, inclusive, noções caras a Bergson, o filósofo da intuição (BOSI, 2001). São também elaboradas reflexões sobre estes corpos cênicos que, no período da ditadura, se põem em cena para protestar e transgredir. Neste sentido, lança-se um olhar sobre determinados corpos na História, um convite para “tomar parte na história e na cultura por meio da experiência do corpo e seus sentidos” (NÓBREGA, 2010, p. 94), pois “o corpo se expressa de acordo com sua historicidade” (SILVA, 2009, 37). Um corpo estésico, que se comunica pela carne, pelo verbo, pelo desejo, pela linguagem e pela história (NÓBREGA, 2010) e que se configura em “uma linguagem sensível, marcada por gestos, silêncios, sentimentos, pensamentos e falas” (NÓBREGA, 2010, p. 92). Uma vez que o objeto de estudo constitui-se de representações artísticas e sociais construídas por meio de discursos e práticas sobre o teatro e o trabalho da atriz, o desenho metodológico dar-se-á pela via da pesquisa qualitativa, uma vez que este tipo de abordagem permite fazer análises dos contextos artísticos e sociais de modo problematizador. A pesquisa qualitativa possui grande relevância, apontando caminhos possíveis de intervenção. O estabelecimento de categorias, conceitos, noções e referenciais teóricos serão desenvolvidos a partir da bibliografia escolhida, das análises das entrevistas, dos periódicos e dos documentos do Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano, que servirão de suporte para o aprofundamento de análises críticas acerca dos fenômenos observados pelo cientista (MINAYO, 2000), buscando também, como dados de análise discursiva: os cenários, os tipos humanos, as circunstâncias históricas e sociais e os esquemas narrativos. Desta maneira, a pesquisa se desenvolve pela perspectiva da História Oral. A História Oral (HO) é “uma metodologia que permite a constituição de fontes históricas e documentais por meio de registro de testemunhos, depoimentos e narrativas” (SOUZA, 1993, p. 70). Estes, apresentam versões subjetivas, mas Justamente por isso, o uso da HO oferece ao pesquisador a possibilidade de ampliar os horizontes de sua pesquisa, ou seja, de interpretar, explicar e compreender de forma mais ampla e aprofundada seu objeto de estudo (SOUZA, 1993, p. 70). Entendendo também que, estas fontes “Requerem que cada entrevista seja confrontada com as outras e com os demais tipos de documentação selecionada, que se forme um corpus 21 documental coerente e eficiente aos objetivos da pesquisa” (SOUZA, 1993, p. 70). Não que este tipo de fonte não seja confiável, pensamento inclusive já bem ultrapassado, pois já não se pensa o oficial, o objetivo, o escrito como únicas fontes de pesquisa, mas nas infinitas possibilidades de trocas, de interdisciplinaridades, de fusões. Desta forma, O oral não deve ser oposto dicotomicamente ao escrito, como duas realidades distintas e distantes, mas como formas plurais que se contaminam permanentemente, pois haverá sempre um traço de oralidade riscando a escritura e as falas sempre carregarão pedaços de textos (ALBUQUERQUE, JÚNIOR, 2007, p. 230). Desta forma, os discursos das atrizes foram utilizados em consonância com alguns documentos como publicações referentes aos grupos estudados, fotos, jornais e programas de espetáculos, para que não se transformem em vozes inacabadas ou em jargões. As entrevistas foram semiabertas, o que gerou novas discussões, a partir da abertura de colocações entre entrevistadas e pesquisadora. As perguntas funcionaram como mediadoras de reflexões, mas sem haver sequência rígida, em que uma fala e outra escuta e refletindo não na mensagem propriamente, mas no discurso. Este, não é mero transmissor de informação, mas produtor de sentidos. “São processos de identificação do sujeito, de argumentação, de subjetivação, de construção da realidade, etc.” (ORLANDI, 1999, p. 21). Assim, acolheu-se, também a Análise do discurso, usada para gerir parte da pesquisa, mais precisamente as falas das atrizes entrevistadas, pois esta permite abrir-se fendas para novas possibilidades: analisar o não dito ou detalhes que o entrevistado desconhece; manter uma relação estreita com a História, através das ideologias pessoais e verificar o funcionamento da memória. A Análise do Discurso trata das “maneiras de significar, com homens falando, considerando a produção de sentidos enquanto parte de suas vidas, seja enquanto sujeitos seja enquanto membros de uma determinada forma de sociedade” (ORLANDI, 1999, p. 16) Neste processo, a pesquisa é concebida com a ideia do feminino além dele mesmo, da maternidade, do casamento, sexualidade, etc. ou do que lhe foi reservado social e culturalmente. Da mulher que correu num percurso inverso do que lhe foi imposto, que se transformou na História, que sentiu a necessidade de estar nômade. De um corpo feminino que está atrelado à ideia de mudança constante, criando novas formas de estar no mundo, que não faz parte das noções que determinam as políticas de gênero e sexualidade. São concepções que circulam no âmbito devir. Pensado por Heráclito de Éfeso no século VI a. C. 22 o devir trata da transformação das coisas, do vir a ser, defendendo que tudo está em constante mudança. Também falado por Platão, Aristóteles, Hegel e Nietzsche, o devir neste estudo se concentra no conceito do Devir Mulher em Felix Guattari. Assim, o objeto sugere uma pesquisa sobre o “corpo a corpo” da atriz no sentido de combate sem armas, pensando no feminino que perfura os espaços que lhe foram limitados, buscando uma dilatação nos conceitos tradicionais para parir impressões que possam auxiliar na criação/formação de novas reflexões. 23 Capítulo 1 No seio da repressão “Meu corpo é às vezes meu, uma vez que ele porta os traços de uma história que me é própria, de uma sensibilidade que é minha, mas ele contém, também, uma dimensão que me escapa radicalmente e que o reenvia aos simbolismos de minha sociedade”. A. Artaud 24 1.1 PEQUENA PAISAGEM DA POSIÇÃO DA ATRIZ NOS ÚLTIMOS TEMPOS... Em seu artigo “Feminizar é preciso por uma cultura filógina”, Margareth Rago reflete sobre o lugar do feminino em nossa cultura e sobre a relação que ele mantém com o diferente, discorrendo sobre pensamentos de diversos autores sobre o assunto e entre eles, George Simmel 1 . Num artigo escrito em 1902, Simmel indagava sobre a injusta posição das mulheres, posição esta inferior à dos homens e de como as mulheres teriam construído sua identidade numa sociedade criada a partir da visada masculina: “a indústria, a arte, o comércio e a ciência, a administração civil e a religião foram criações objetivamente masculinas e exigiam forças especificamente masculinas”. (SIMMEL apud RAGO, 2001, p.62). Assim, o filósofo refletia sobre a necessidade do complemento feminino, diferente do masculino social e culturalmente. Simmel considerou a cultura masculina como restrita, dura, objetiva e racional, ou seja, excludente de outras importantes dimensões vitais da experiência humana. A entrada das mulheres na vida pública e social poderia transformar e enriquecer consideravelmente a maneira de viver, de pensar e de solucionar os problemas individuais e coletivos, inovando em relação aos métodos utilizados e às técnicas produzidas (SIMMEL apud RAGO, 2001, p.62). Dez anos antes, Simmel escreve “Algumas reflexões sobre a prostituição no presente e no futuro” (REIS, 2011), defendendo as prostitutas e criticando a condenação da sociedade para com estas mulheres, que segundo ele, eram vítimas de um sistema injusto e hipócrita, e que as prostitutas seguiam por este caminho não por escolha, tampouco por diversão, mas como consequência de mecanismos construídos socialmente, entre eles a valorização dada ao casamento (penso que mais precisamente a valorização dada à mulher casada, visto que o fato de não se casar estigmatiza a mulher como incompetente ou lhe é atribuída a falta de qualidades necessárias para se conseguir um casamento) e às diferenças sexistas que, ao longo dos séculos, foram atribuídas às posições femininas e masculinas (REIS, 2011). Simmel surpreende, com suas ideias vanguardistas, escritas há mais de cem anos, em defesa da emancipação feminina, numa época em que a mulher ainda era minimizada por 1 Georg Simmel (1858-1918) foi um filósofo alemão, pensador interdisciplinar, cujas ideias apontavam para uma teoria da modernidade e uma filosofia crítica da cultura. Simmel analisou fenômenos estruturantes modernos como o dinheiro, a vida nas grandes cidades e a fetichização do corpo, do estético e da moda (TEDESCO, 2007). 25 construtos sociais. Mas Simmel surpreende ainda mais quando, no mesmo texto em que repele o tratamento agressivo dado às prostitutas, faz uma reflexão sobre a posição da atriz. O filósofo considera injustas as formas diferenciadas de tratamento dadas às prostitutas elegantes e as que trabalham nas ruas, pois, para ele, as primeiras teriam mais facilidades, e aqui, estabelece uma ligação com as atrizes: “Se a mulher for bonita e conhecer um pouco a arte da recusa, se ademais fizer teatro, então pode escolher os candidatos e mesmo as pulseiras de brilhantes” (SIMMEL apud REIS, 2011). Em seguida, organiza um pré-conceito sobre o ofício da atriz, desenvolvendo uma ideia de injustiça que se alçava entre as prostituas de rua e as atrizes: “A atriz, que nada tem de mais moral do que a mulher de rua, e, talvez, até se revele mais calculista e vampiresca, é recebida nos salões de que a prostituta de calçada seria expulsa pelos cães” (SIMMEL apud REIS, 2011). Ao mesmo tempo em que defende um grupo de atores sociais femininos, a mulher em geral, exclui dele a atriz pelo seu ofício. Entende-se que Simmel compreendia a situação da prostituta como uma fatalidade, enquanto que a atriz, cuja atividade era “indecorosa”, seria algo consciente e proposital, visto que a atriz era “calculista” e “vampiresca”. As atrizes carregavam um triplo estigma, o de ser mulher, o de ser prostituta e o mais infame de todos: a atribuição de um caráter vil subjugado à sua profissão. Mas tal pensamento não era uma ideia particular, mas sim fruto de um discurso social. Tracy Davis, em seu livro “Actresses as working women: their social identity in Victorian culture”, nos fala sobre a posição da atriz e sua respeitabilidade na sociedade inglesa vitoriana. Para ela, as atrizes, “vivendo uma vida pública e exercendo uma atividade subjugada a um público pagante, eram inevitavelmente associadas às prostitutas” (DAVIS apud REIS, 2011). Apesar de que a cultura e a sociedade vitorianas não fossem iguais às brasileiras, a reflexão de Davis é bastante eficaz para se pensar sobre a estigmatização da atriz, cujo ofício era associado à prostituição, pois trata-se de um dentre tantos exemplos em toda a história, em que para a mulher era reservado apenas o espaço privado, subsidiada por um homem, mais comumente pai, marido ou irmão que a sustentava. Qualquer mulher que frequentasse o espaço público e conseguisse se manter com seu próprio trabalho, comumente era comparada à prostituta. Se sozinha, menos ainda, pois se não pertence a um homem, pertence a todos eles. 26 No que diz respeito à questão do “se manter sozinha”, antes de Simmel, um brasileiro nos falava sobre a emancipação feminina, defendendo seu direito à educação e estimulando a presença da mulher no mercado de trabalho: Com effeito: só o trabalho produtivo é capaz de garantir a nossa independência; quem não póde por seus próprios esforços conseguir meios honestos de subsistência há de forçosamente depender da pessoa que lho‟s proporciona; como pretender, pois, a emancipação da mulher, si não lhe ensinamos os meios de ganhar a vida? É este o lado practico do problema mais importante do que as discussões theoricas mais bem deduzidas. Si verdadeiramente quer-se a emancipação da mulher, dirija-se de tal modo a sua educação que, habituando-se desde tenra idade ao trabalho, ao mesmo tempo se a habilite para o exercício de uma profissão lucrativa 2 (ASSIS apud SILVA, 2009, p. 163). Machado de Assis propõe a justa liberdade, a justa igualdade, bem como um justo direito às mulheres, argumentado sobre a importância e a utilidade de as mulheres receberem educação, questionando a limitação que lhes eram impostas, a de se casarem e terem filhos, num período em que o corpo feminino continuava a ser alvo de discriminações e crenças produzidas por discursos culturais e sociais, pois sabe-se que o corpo é um produto social. No mesmo período em discussão, no fim do XIX, a medicina voltou-se para a elaboração de um modelo sanitarista para a sociedade, construído a partir da ideia cartesiana e reducionista, que interferia diretamente nos hábitos, na educação e nos corpos das pessoas, que passaram a ser objetos de controle social e científico, principalmente os corpos das mulheres (SILVA, 2009). A ideia do corpo saudável, obtido por meios de exercícios físicos marcou a cultura de uma época, obviamente com restrições ao corpo feminino. Em tese de 1892, intitulada “Da educação physica”, por exemplo, o autor Sá Brito propõe certos exercícios como o andar, correr, pular, etc. para a mulher, justificando que tais atividades: [...] são mais apropriadas pelas condições sociaes e de sua própria organisação [...] que põem em contribuições sómente os membros inferiores, para onde deve affluir grande parte da seiva nutritiva, de modo a facilitar a amplitude dos diâmetros da bacia, fornecem o desenvolvimento dos órgãos internos e offerecem apoio seguro ao laboratório da humanidade (BRITO apud SILVA, 2009, p. 198). Para a mulher, apenas os exercícios “necessários” aos membros inferiores, para se ter um bom funcionamento do aparelho reprodutivo, para que este possa produzir indivíduos 2 Mantenho aqui e nas citações referentes ao século XIX, a ortografia original. 27 saudáveis para o bom funcionamento da engrenagem capitalista. “O discurso da saúde, pela conformação do corpo idealizado têm muito mais a ver com a política capitalista, do que com quaisquer razões morais ou físicas que procurem explicitar” (SILVA, 2009, p.232). Este é, inclusive, um dos exemplos de disciplinarização, à qual fala Foucault, do corpo na sociedade brasileira. O poder controla o corpo, fabrica-o, deixando-o submisso e dócil para usá-lo em seus interesses, e para isso, usam técnicas sutis de intervenção (FOUCAULT, 1987). O higienismo propagado a partir do final do Império e instituído como fonte de progresso e de saúde pessoal, nada mais foi do que o capitalismo imposto no Brasil, cujo objetivo era o de preparar corpos saudáveis, úteis para o trabalho. Outros discursos, ainda desta época higienista, também produziram argumentos quanto às fraquezas do corpo feminino e sua grande propensão às doenças como o fato de as mulheres terem que se resguardar no período menstrual, aconselhando-se “banhos comedidos, de „meio corpo‟, ou então a sua interdição absoluta” (ARAÚJO apud SANT‟ANNA, 2011, p. 289). Ainda de acordo com o autor o hábito dos banhos demorados [...] podiam provocar incômodos uterinos, interrupção da menstruação. A água, cuja natureza fora há séculos assimilada à feminina, podia modificar profundamente seus humores: o sangue menstrual, por exemplo, corria o risco de migrar das partes baixas do corpo para o centro da cabeça, provocando a demência e a morte (SANT‟ANNA, 2011, p. 295). Havia também a mistificação de que os banhos completos com a higienização diária das partes íntimas poderiam abalar a reputação da mulher, despertando sentimentos imperdoáveis, “[...] sem contar o risco de se habituar demasiadamente à água morna e terminar por amolecer a vontade ou fragilizar os órgãos vitais” (SANT‟ANNA, 2011, p. 295). Estes ideários populares são construtos elaborados socialmente, envolvendo o corpo feminino, para conter possíveis atitudes desviantes por parte das mulheres. Fossem por efeito de coerção figurativa, amedrontando as mulheres pelos riscos de morte ou do pecado, ou diretamente sobre seus corpos, através das roupas. A relação entre o corpo feminino e a roupa modela posturas e comportamentos mais diversos. Sabe-se que o espartilho e as “ancas”3, por exemplo, do século XIX, “capazes de comprimir ventres e costas” (PRIORE, Del. 2012, p. 3 As ancas eram enchimentos artificiais postos para valorizar a parte inferior do corpo feminino. Podiam ser usados materiais diversos para se fazer as “anquinhas”, como jornais, metais e até mesmo serem enchidas com ar (PRIORE, 2012). 28 59), foram criadas não só para modelar o corpo da mulher, mas também para contê-lo de movimentos bruscos e posturas que pudessem desencaminhá-las da boa reputação. Enquanto a maioria das mulheres brasileiras do final do século XIX e início do século XX obedeciam às regras de boa conduta reservadas para elas, as atrizes constituíam uma das classes femininas que, através da atividade teatral, representavam mudanças e rupturas em direção às conquistas da liberdade das mulheres, apesar de serem discriminadas pela “boa” sociedade e pela própria classe feminina, pois tinham o poder de atração dos homens. Algumas “[...] chegam a reunir determinado patrimônio, resultante tanto das temporadas de sucessos quanto dos presentes dados por ricos admiradores” (ANDRADE; EDELWEISS, 2008, p. 24). Tinham independência, liberdade e em muitos casos, instrução. Desafiavam as convenções e como realizavam um ofício de exposição, tornavam-se sedutoras. Não só por terem estas posturas, talvez também por terem seus corpos expostos a um público pagante, comumente no período noturno, fossem comparadas às prostitutas. Ao analisar artigos da “Revista Theatro & Sport” do início do século XX, Angela Reis nos traz alguns que ilustram bem esta comparação. O artigo “Os Artistas”, de Marques Pinheiro, expõe crítica ferrenha ao trabalho das atrizes brasileiras: O teatro, entre nós, não é coisa honesta, não é um trabalho onde a virtude possa procurar o pão de cada dia, muito ao contrário: para as artistas, é muito mais fácil ganhar farto dinheiro entregando o corpo ao pecado, do que conseguir sem as delícias do vício. O teatro para a maioria das nossas atrizes não é meio de vida. O dinheiro que elas gastam e esperdiçam não provem da arte que exibem no palco: o dinheiro vem da prostituição (PINHEIRO apud REIS, 2011, s/p). Outro artigo, intitulado “Diálogo intempestivo: as actrizes”, é desenvolvido em forma de uma conversa entre dois receptores anônimos, provavelmente, homens: - Então, o que é uma atriz? - Uma mulher artificial, que, às vezes, se veste muito bem, ainda que ocasiões haja em que a su “toilette” não é mais que uma deliciosa imitação do nu [...]. - Mas uma atriz nunca se converte em mulher? - Em dois casos: quando o empresário não lhe paga ou quando a modista não lhe manda o vestido com a oportunidade desejada [...]. - E as (atrizes) de talento? - O talento não importa... Há atrizes que têm todo talento do mundo na redondez dos braços, no ebúrneo das gargantas, nas curvas, geralmente... ou nas malhas do talento [...]. - Elas, que tanto seduzem, são fáceis de sedução? 29 - Em extremo. Para consegui-lo se faz mister empregar a tempo certas frases conhecidas com o nome de promessas. Por exemplo: “Ofereço-lhe um colar de pérolas”; “Fará na minha peça o papel de protagonista”; “Terá em tal garage um auto à disposição”, etc [...]. - E da fidelidade das atrizes? - São fiéis ao amor, não a um amor. Quase sempre se enamoram do homem que não as quer. Uma atriz, afinal, deve ser caprichosa, não estar a gosto em nenhum teatro, representar os seus papéis o pior possível, não se preocupar senão com as modistas, os chapéus e os calçados da moda e os “flirts” à saída do teatro, porque uma aventura sempre diz bem e é do tom [...]. - E são simpáticas as atrizes? - São adoravelmente perniciosas. - São assim todas? - Não. Há exceções viciosas. Quero dizer que há virtudes. A religião fez da serpente, que é astuta, o símbolo da mulher. A artista é uma serpente... (REIS, 2011, s/p). Continuando a conversa, um dos interlocutores pergunta sobre a formação das atrizes e o outro lhe responde: “Não peça coisas impossíveis. Raríssimos são esses casos em teatro” (REIS, 2011). Há também o fato de que, no século XIX, o casamento era o objetivo maior na vida das mulheres. Impostos, ou não. Como grande parte das atrizes não era casada e circulavam solteiras livremente na esfera pública, eram classificadas (ou desclassificadas) como mulheres de má reputação. Em outro artigo, o autor Salvilius faz uma relação da posição da atriz com o casamento: [...] Toda gente tem a convicção de conhecer bem o que são as mulheres de teatro. Nos meios burgueses, onde elas são apenas conhecidas através da pintura de “batons” que se exibem ao público e das suas “malhas” de “talento”, todas elas não passam de umas sirigaitas que não servem para mais do que seduzirem os homens para os explorar, e alguma que tenha hábitos tão morigerados, e estas são as casadas honestas, que se podem apontar, são ainda olhadas com desconfiança [...] (SALVILIUS apud REIS, 2011, s/p). A marca da atriz como prostituta permaneceu rígida e mais forte nos anos seguintes, até os finais do século XX. Tanto que a partir dos anos 1940, elas eram obrigadas a terem a mesma carteira de serviços das prostitutas. Ser atriz, não tinha glamour nenhum até 1978, quando foi promulgada a Lei 6.533, reconhecendo a atividade do ator/atriz como profissão e regulamentada pelo Decreto nº 82.385, a qual coordena e determina as diretrizes legais para a classe. 30 1.2 “VOCÊ TEM MUITO JEITO PRA ISSO, MENINA...” Os primeiros vestígios da presença da mulher num teatro fechado em Pernambuco (pois antes os espetáculos eram realizados ao ar livre, nas ruas da Olinda Duartina) aconteceram na “Casa das Óperas”, primeiro edifício teatral construído no Recife, em 1722, que ficava na Rua da Cadeia Nova, depois Rua 15 de novembro e hoje conhecida como Rua do Imperador (SAMPAIO JÚNIOR, 2007). Este espaço posteriormente foi denominado Teatro São Francisco. Como artistas ou espectadoras, a classe feminina recebera críticas intransigentes, reações da “boa” sociedade, contra sua inserção no espaço teatral. O São Francisco realizou bons espetáculos teatrais, mas teve sua fase de decadência, apresentando peças e comédias de baixo nível, “peças profanas com dançarinas de pernas de fora” (COSTA apud SAMPAIO JÚNIOR, 2007), sendo, por este motivo e pela falta de asseio do lugar, apelidado pelo povo de “Capoeira” (COSTA apud SAMPAIO JÚNIOR, 2007). Este tipo de espetáculo escandalizava a Igreja pelo conteúdo das peças e também pela presença dos casais que trocavam carícias dentro do teatro. A peça “A Parteira Anatômica”, levada ao palco do Capoeira em 1826, fez com que o Bispo protestasse contra o Teatro, criando uma censura teatral: “possivelmente o 1º órgão oficial criado com o objetivo de coibir cenas ou espetáculos inteiros que não se enquadrassem nos conceitos socioreligiosos da época” (SAMPAIO JÚNIOR, 2007). Após o protesto da Igreja, o Capoeira foi fechado e só reaberto em 1827, apresentando peças de cunho religioso, mas também espetáculos profanos inspirados em histórias populares. Mas, mais uma vez, o Capoeira não foi bem recebido pela “boa” sociedade, pois os casais ainda namoravam no interior do teatro, como diz a matéria do jornal “O Carapuceiro” de 16 de agosto de 1839, sugerindo a proibição da presença da mulher no teatro, ressaltando o fato de ser condenável sua presença, como a única culpada de tais atos desrespeitosos dentro daquele espaço teatral: [...] por que nelles se ajuntão pessoas de diferente sexo, e ahi dão pasto ao fogo das paixões amorosas: mas se tal rasão prevalece, he preciso ou fechar os templos, ou prohibir o ingresso a hum dos dous sexos; por quanto nos templos desgraçadamente há quem namore, e procure requebrar o Madonismo (ANÔNIMO, 1839, p. 1). Embora a matéria não fale diretamente que o sexo cuja presença deva ser proibida seja o feminino, adiante ela nos dá uma pista, que o Teatro ao qual se refere seja o Capoeira e que os rumos do teatro tenha, entre outros anseios, um “bom machinismo”: 31 Tudo está pois, que o Theatro seja bem dirigido, e administrado; que huma Policia Illustrada, e prudente não deixe ir à Scena Dramas indecorosos; que nunca se permittão equívocos de torpeza, dietos deshonestos, e as danças lascivas, que fazem corar o pudor. (...) Permita o Ceo, vejamos em breve erigido esse monumento da nossa civilisação, e que fique para o uso, que seu dono lhe quiser dar essa Capoeira velha, que ahi há, denominada Theatro; que tenhamos escolhida companhia, bom machinismo, decoração conveniente, &c. &c. 4 (ANÔNIMO, 1839, p. 1). Imagem 1: Jornal “O Carapuceiro” de 16 de agosto de 1839. Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano. As edições deste jornal traziam, entre outros escritos e assuntos, denúncias sobre o comportamento da mulher no geral e conselhos ou opiniões de como estas deveriam se portar. Na edição de 19 de abril de 1837, o jornal justifica o porquê de sua interrupção de dois anos e anuncia que está novamente em circulação o periódico “(...) com que tanto se arrepelavão as Senhorias, os gamenhos, &c. &c.” 5 (ANÔNIMO, 1837, p. 1). O Teatro São Francisco funcionou até 1850, ano em que foi demolido. No mesmo ano, ergueu-se o suntuoso Teatro de Santa Isabel. Com ele, o Recife recebeu muitas atrizes estrangeiras e nacionais, e entre elas, Ismênia dos Santos, que tornou-se bastante conhecida na cidade, conquistando o público com seus espetáculos, sua postura crítica e suas atitudes ousadas para a época. Tinha independência financeira (era produtora de seus próprios 4 Mantenho aqui e na citação anterior a grafia da época. 5 Idem. 32 espetáculos) e sexual, pois corriam rumores sobre seu possível romance com Machado de Assis, que na época traduzia textos teatrais estrangeiros, prática exercida com intensidade no período. Sobre seu romance com a atriz, Valdemar de Oliveira comentou: Nos meses que se seguem, parece florir um leve romance entre o seu coração e o de Ismênia dos Santos. Explica-se assim, talvez, que se ponha a traduzir peças que dão, à atriz famosa, oportunidades de protagonista: “O anjo da meia-noite, de Barriére e Plouvier, “O Barbeiro de Sevilha”, de Beaumarchais, “A família Benoiton”, de Sardou. Mas, rompido esse tênue fio sentimental, Machado permanece longe do teatro (OLIVEIRA 6 apud FERREIRA, 2004, p.52) Ismênia dos Santos preocupava-se com a profissionalização dos atores e atrizes e com os artistas que passavam por dificuldades financeiras, chegando a promover espetáculos em prol destes artistas. Mas talvez seu maior engajamento tenha sido com as causas abolicionistas, pois as rendas de seus espetáculos eram muitas vezes revertidas para a libertação de escravos. O poema “Aves Libertas”, de 1886, da feminista, escritora e abolicionista baiana Inês Sabino que incentivava a abolição da escravatura, estreou no Teatro de Santa Isabel em 1887, recitado por Ismênia dos Santos e obteve grande consagração do público. Pelo apoio dado ao poema e à causa, a atriz recebeu uma homenagem que era de grande modismo na época: sua imagem passou a circular numa embalagem de cigarros do Centro de Cigarros de Pernambuco. Imagem 2: Foto de Ismênia dos Santos numa embalagem de cigarros. Acervo digital da Fundação Joaquim Nabuco – Pernambuco - Coleção Francisco Rodrigues. Fotografias do final do século XIX e início do século XX. 6 Valdemar de Oliveira foi um dramaturgo, ator e diretor pernambucano. Começou sua carreira no teatro em 1926, escrevendo, dirigindo e produzindo operetas. Neste ano, estreou com “Berenice” (opereta cujas partituras eram de sua autoria) no Teatro de Santa Isabel, em benefício da Cruz Vermelha pernambucana. Oliveira nos conta em seu “Mundo Submerso” que o sucesso foi tanto que surgiu talco, pó-de-arroz, dentifrícios e brilhantinas “Berenice”, além de ser o nome de muitas meninas nascidas na época. Foi membro do grupo de teatro “Gente Nossa”, para posteriormente fundar o Teatro de Amadores de Pernambuco (OLIVEIRA, 1974). 33 Imagem 3: A atriz baiana Ismênia dos Santos. Acervo digital da Fundação Joaquim Nabuco – Pernambuco - Coleção Francisco Rodrigues. Fotografias do final do século XIX e início do século XX. Em 1910 foi aberto o cine-teatro “Helvética”, na Rua da Imperatriz, centro do Recife. O Helvética envolvia o espectador com “piadas modernas, pilheriando com políticos e fazendeiros. Apresentava - para escândalo das famílias - começo de nu feminino nas comédias” (SAMPAIO JÚNIOR, 2007). Um nu mais comercial do que crítico, mas já anunciando certa liberdade de expressão partindo das mulheres. Em 1915 o Teatro do Parque é inaugurado. Valdemar de Oliveira nos conta que “No Recife, sucediam-se companhias italianas, espanholas, portuguesas, de operetas [...] Entre 25 e 26, o Parque teve duas temporadas inesquecíveis: a da Velasco e a da Ba-ta-clã 7” (OLIVEIRA, 1974, p. 122), companhias espanhola e francesa, respectivamente. E também nos conta como as estreias eram muito aguardadas (principalmente das companhias europeias) e sobre a efervescência teatral que invadiu o Recife nos anos de 1920 e pelo modismo europeu que conquistou o país na época quando “as vitrolas apenas começavam e o rádio timidamente espiava” (OLIVEIRA, 1974, p. 122). 7 Mantenho a escrita original de Oliveira, em relação ao termo “Ba-ta-clã”, com o acento “til” no último “a”, mas a escrita do nome desta companhia finaliza-se com a letra “n”. 34 Imagens 4 e 5: Elvira Martins (à esquerda) e Judith Correia (à direita), atrizes da Companhia de Teatro Avenida de Lisboa, em setembro de 1915, ano em que o Teatro do Parque foi inaugurado e o Recife recebia forte influência dos modismos europeus na moda, arquitetura, teatro, etc. Nesta época, as revistas teatrais europeias estavam no auge e percorriam todo o Brasil. Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano. Segundo Oliveira, o forte do elenco estava, precisamente, na primeira figura feminina e no ator cômico. A Velasco foi esperada ansiosamente pelo público masculino por conta do nu das mulheres em cena, enquanto as famílias tradicionais se recusavam a obter os ingressos, na época adquiridos através de assinaturas que pagavam pelas frisas, cadeiras ou camarotes os quais eram alugados pelas famílias: A Ba-ta-clã já havia sacudido o Rio. Em ânsias, o Recife esperava as meninas de Madame Rasimi com o estupendo cômico Randall. Não podia competir em luxo e beleza cênica com a Velasco, mas, o nu das francesinhas acendia as narinas dos faunos do Recife. Algumas famílias recusaram tomar assinaturas para a temporada, mas, o Parque se encheu noites seguidas com “Ça c‟est Paris!” “Cachez ça”, o delicioso “double-sens parisiense escapando à maioria da platéia (OLIVEIRA, 1974, p. 123). Imagens 6 e 7: Anúncios do Jornal do Recife de dois espetáculos da Companhia Velasco, que esteve no Recife em dezembro de 1925, apresentando-se no Teatro do Parque. Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano. 35 Obviamente, a “elite, que sempre se sentira ordenadora da vida social” (COSTA, 2006, p. 83), via-se escandalizada com estas mulheres, visto que o século XX adentrou, ainda, com a idealização do [...] modelo de mulher – frágil e soberana, abnegada e vigilante -, elaborado desde meados do século XIX, que pregava novas formas de comportamento e de etiqueta tanto para as moças das famílias mais abastadas como as das classes trabalhadoras, exaltando as virtudes burguesas da laboriosidade, da castidade e do esforço individual. Os corpos femininos, naquele momento, exaltavam características femininas – tais como a ternura, o amor, o afago, entre outros com preocupações estéticas, além da representação simbólica do corpo feminino reprodutor e preocupação em melhorá-lo (SILVA, 2009, p. 36). Mas as troupes Ba-ta-clan e Velasco, vão influenciar diretamente na posição da mulher no teatro, principalmente a Ba-ta-clan, a pioneira, que chega ao Brasil em 1922: Com belas e glamourosas girls exibindo as pernas sem as antigas meias grossas [...], influenciaria a tal ponto o teatro ligeiro brasileiro que, imediatamente, o que era chamado nu artístico, aqui se instalou. E, ao despirem-se as meninas, muitos corpos decepcionaram seus fãs. As muitas gordinhas perderam a graciosidade diante das esbeltas francesas. Mudaram-se os conceitos estéticos [...]. O texto e a música passaram, então, a emoldurar o real foco de interesse: a mulher (VENEZIANO, 1991, p. 43). Vale lembrar que o “nu artístico” do qual fala Veneziano, resumia-se em colocar as dançarinas com as pernas de fora. Oliveira (1974) dá destaque às duas companhias, francesa e espanhola, mas várias outras, estrangeiras e brasileiras aportaram no Teatro do Parque, com público garantido, nas três primeiras décadas do século XX. Estas companhias chegavam com um repertório de muitos espetáculos, como teatro ligeiro, operetas, burletas e outros gêneros onde cada um, ficava poucos dias em cartaz, visto que o público comparecia e fazia-se necessário, em pouco tempo, apresentar novo espetáculo. Ainda em 1925, por exemplo, a Companhia Alda Garrido (também produtora de seus espetáculos) esteve em Recife, entre agosto e setembro daquele ano com “Filha dos amores”, “Quem paga é o coronel”, “Ilha dos Amores”, “A Francesinha do Ba-ta-clan”, “O Simphatico Jeremias”, “A Costureirinha da Rua 7”, “A Nova aurora”, “A Garôta dos bonbons”, “O Collegio da Marocas”8, entre outros. Este período, o Jornal do Recife de 1 de setembro de 1925 chamou de “Festival Alda Garrido”. 8 Mantenho aqui a grafia original dos títulos dos espetáculos. 36 Imagem 8: A atriz e produtora Alda Garrido. Jornal do Recife, 10 de agosto de 1925. Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano. Para as atrizes, o teatro, desde o século XIX, funcionava também como meio de realização pessoal e independência, propósitos que não eram fáceis para uma mulher comum conseguir já no século XX. Assim, [...] para uma mulher brasileira nascida entre as décadas de 1920 e 1930, o sentimento era quase o oposto: estando o trabalho feminino relegado às funções domésticas e à educação de crianças, seria complicado pensar que o chamado “sexo frágil” pudesse dedicar-se a ocupações “de homens”. Assim, principalmente durante as primeiras quatro décadas do século XX, diante dos obstáculos encontrados pelas mulheres para ascender socialmente fora do casamento (visto que o acesso às profissões de nível superior era restrito), abraçar o mundo do teatro podia resultar uma opção vantajosa do ponto de vista financeiro e pessoal [...] (ANDRADE; EDELWEISS, 2008, p. 12). Após os primeiros 25 anos do século XX, [...] o controle sobre os meios de comunicação, as artes e a informação se torna cada vez mais violento e o desenvolvimento da propaganda política, que se generaliza, procura monopolizar a produção e a divulgação de notícias, de imagens e de espetáculos. E a repressão, apoiada pelo público como forma de defesa da tradição, dos costumes, da nação, do decoro, da educação, da juventude e do elitismo, se transforma numa das armas mais potentes dos regimes totalitários (COSTA, 2006, p. 89). Em Recife, em 1927, por exemplo, qualquer manifestação de diversão, expressão artística e popular, deveria, obrigatoriamente, passar pelo olhar censório da Inspetoria Geral da Polícia do Estado de Pernambuco, antes de ser exibida ao público: Assim como outras instituições dessa época, a censura que controlava as formas de entretenimento público mostrava-se resistente a novos tempos. E a elite [...], procurava preservar essa prerrogativa, coibindo a expansão da 37 cultura popular e de suas formas de diversão que se tornavam cada vez mais assíduas nas cidades que mal despertavam para o século XX (COSTA, 2006, p. 83). Desse modo, eram necessários que ofícios fossem registrados na polícia para que esperassem o consentimento do inspetor. Os ofícios solicitavam, entre outras questões, permissões para a realização de ensaios de dança; para aberturas de teatros, cinemas, cafés cantantes e dançantes e avisos de funcionamento destes edifícios; para apresentações de peças teatrais e de manifestações populares como clubes e troças carnavalescas, maracatu, bumba- meu-boi, fandango, cavalo marinho e presépios familiares; para o funcionamento de clubes de futebol, barracas de prendas, circos e até para a armação de trivolis (carrosséis). Imagem 9: Ofício sobre o funcionamento de dois cinemas e do Teatro Livramento, em Campo Grande, bairro do Recife, em 22 de fevereiro de 1927. Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano. 38 Imagem 10: Ofício sobre o funcionamento de quatro cinemas e do Teatro Grêmio Familiar Magdalenense, na Rua Manoel Bezerra, em Recife, em 1927 (sem carimbo de dia e mês). Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano. Em 1930, dá-se início à Era Vargas: “Antes de 1937 [...], Vargas fecha o congresso e se impõe como ditador [...]” (COSTA, 2006, p. 102). A 1ª ditadura brasileira corresponde à Ditadura Getulista, de 1937 a 1945, período denominado Estado Novo, quando Getúlio Dornelles Vargas, a partir de um golpe de Estado, impõe uma nova constituição, dilui o congresso e assume poderes ditatoriais: “[...] assistiu-se a um período de ditadura, militarismo e forte centralização do poder com o objetivo de implementar um projeto político de extrema direita, que fez do populismo um dos mecanismos para obter apoio da população” (COSTA, 2006, p. 95). Quanto ao direito ao voto conquistado pelas mulheres, em 1932, ele foi concedido principalmente para acompanhar as nações mais desenvolvidas (ANDRADE; EDELWEISS, 2008), e não precisamente pelo reconhecimento do direito da mulher. Além do que, “o direito de voto foi dado com restrições. Só podiam votar mulheres casadas com autorização dos maridos, viúvas e solteiras com renda própria. O voto feminino sem restrições só passou a ser obrigatório em 1946” (ANDRADE, 2006, p. 16). A censura age sobre os espetáculos de teatro, pois “Sob influência das doutrinas nazi- fascistas, Vargas procurou controlar e dominar a produção simbólica, as artes e as 39 comunicações” (COSTA, 2006, p. 96). Neste sentido, um arquivo da Secretaria de Segurança Pública (Seção de Teatros e Diversões Públicas) do estado de Pernambuco, de 1932 a 1933, nos diz um pouco sobre o processo a que deveria se submeter os aspirantes a artistas no período do governo getulista. São documentos relativos ao fornecimento de carteiras a amadores e profissionais de teatro. Licenças eram solicitadas para poder exercer a função de ator ou atriz. Era necessário apresentar um dossiê com uma solicitação para trabalhar em teatro que, indicava, entre outras coisas, as características físicas do ou da artista; certificado de antecedentes criminais; uma declaração expressando o desejo de ser ator ou atriz e um atestado emitido pelo representante da SBAT, a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, Samuel Campelo 9 . Imagem 11 9 Samuel Campelo foi o fundador do “Grupo Gente Nossa”, grupo de teatro que atuou fortemente em Recife na década de 1930. Valdemar de Oliveira foi um membro muito importante do grupo, era amigo e companheiro de Campelo nas montagens. O gênero predominante para os trabalhos do grupo eram as operetas. Valdemar de Oliveira diz que o período de 1920 a 1930 foi o ciclo das operetas pernambucanas (OLIVEIRA, 1974). 40 Imagem 12 Imagem 13 Imagens 11, 12 e 13: Documentos de mulheres enviados à Secretaria de Segurança Pública (Seção de Teatros e Diversões Públicas), para conseguirem licença para trabalharem como atriz, entre 1932- 1933. E apesar da nudez feminina, influenciada pelas companhias Velasco e Ba-ta-clan e das leves críticas sociais e políticas que apresentava, O teatro de revista não era muito perseguido, visto que a figura de Getúlio Vargas aparecia nas revistas como um homem inteligente e era homenageado por um personagem que o representava e o popularizava. Havia até atores que se especializavam em representar Getúlio (COSTA, 2006, p.141). 41 As revistas despontaram no início do século XVIII, “quando atores italianos, oriundos da Commedia dell’Arte, levaram as primeiras apresentações do gênero aos teatros de feira de Paris” (VENEZIANO, 1991, p. 13). Funcionava tal qual seria apresentada dois séculos depois, como um resumo, uma “revista” cômica dos principais acontecimentos do ano, com figuras caricaturadas em cena como personagens, que eram pessoas ilustres conhecidas do público. Num segundo momento, A “Revista do Ano” foi substituída pelas “Revistas”, dando espaço à música e à dança. No Brasil, a Revista surge no século XIX, sendo um dos gêneros mais expressivos nas primeiras décadas do século XX (VENEZIANO, 1991). As mulheres trabalhavam nas revistas como coristas, girls ou vedetes e atrizes. Algumas conquistavam a promoção, passando de girl a atriz. As revistas começaram a decair entre 1950 e 1960, pois acabou sendo “[...] contaminada pelos excessos, forçada à explicitação total. Sem atrizes, com pobres mocinhas que mal sabiam dizer um texto, mas que tiravam a roupa à deriva [...]” (VENEZIANO, 1991, p. 53). As revistas passaram a explorar ao máximo o nu feminino. A nudez descomedida de girls e vedetes, os palavrões e o sexo quase explícito afugentaram o público mais contido. Não à toa, atriz e meretriz rimavam perfeitamente, para a maioria das pessoas (PRIORE, 2014). Posteriormente, os travestis tomam o espaço da mulher nas Revistas e “Subiram à cena como irreverentes, como o grotesco luxuoso [...], E terminaram se auto-acreditando como um grande apelo sexual” (VENEZIANO, 1991, p. 53). Reminiscente destas experiências dos travestis, surge o interessante trabalho do Dzi Croquetes, que falaremos posteriormente. Ainda na década de 1920, quando o Teatro do Parque recebia atrizes de companhias estrangeiras em seu palco, Diná de Oliveira, que viria a ser “a eleita” de Valdemar de Oliveira (OLIVEIRA, 1974), casando-se com ele em 1929 e posteriormente fundando com o marido o Teatro de Amadores de Pernambuco, já demonstrava aptidão para o palco. Estreou no teatro ainda solteira, desagradando ao pai, o Coronel Rosa Borges. Diná, que viria a ser a primeira dama do teatro pernambucano, nos conta como era vista a carreira de atriz no seu tempo. Ao vê-la na estreia, seu pai lhe dá um ultimato: “Você tem muito jeito pra isso, menina, não lhe quero ver mais nunca no palco”. Pensei que minha carreira tinha acabado antes mesmo de começar [...] Claro, era preconceito mesmo, naquele tempo a educação era muito rígida, os pais temiam que as filhas se desviassem, teatro era só para profissionais e da 42 família dos outros, das nossa não (risos) (SCARPA; VIEIRA; MENEZES, 1993, p. 10). Mas ao casar-se com Valdemar de Oliveira, que já era homem de teatro, bem quisto e reconhecido na alta sociedade recifense na época, Diná pôde seguir a carreira de atriz. O fato de o TAP ter em seus elencos mulheres de bom poder aquisitivo, bem quistas na sociedade, contribuiu com a quebra do preconceito para com a mulher no teatro: “(...) Valdemar quebrou o preconceito não só aqui, mas espalhou a semente pelo Brasil inteiro. Pelo nosso exemplo formaram-se outros grupos, na Bahia, no Rio Grande do Norte e na Paraíba” (SCARPA; VIEIRA; MENEZES, 1993, p. 10). O Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP), surge quando Valdemar de Oliveira, também médico, monta nos anos de 1940, um espetáculo de teatro cuja renda seria revertida para a comemoração dos cem anos da Sociedade de Medicina: “Knock” ou “O triunfo da medicina”, de Jules Romain. No elenco, jovens senhoras e moças da sociedade, a maioria esposas e filhas de médicos. Assim, este espetáculo foi uma brecha para o início da respeitabilidade da atriz no Estado, bem como o trabalho anterior do Grupo Gente Nossa, que já contava com atrizes em seus elencos. A atividade teatral, exercida por mulheres, passou a ser vista com “outros olhos”, olhos menos discriminatórios. Com a fundação do TAP, a figura da atriz toma grande espaço social, oportunizando a participação da mulher não só no teatro, mas no espaço público em geral. O TAP, cuja base era formada pela família Oliveira, tornou-se um grupo decididamente respeitado. Pontes, define bem a importância dos grupos amadores e dos grupos de teatro formados por famílias nesta época, para a desmistificação da posição da atriz no teatro: A atuação nos anos de 1940 dos grupos amadores, entre eles os grupos universitários de teatro, que contavam “entre seus membros com „nomes de família‟ de destaque na sociedade de seu tempo”, contribuiu – e muito – para a mudança de status dos atores. Pois, com eles, nascia não apenas um teatro de arte, mas entrava em cena uma elite que, “protegida por sua própria situação, estava a salvo dos preconceitos que cercavam a profissão” (id. ibid.). Se a grande maioria desses amadores estreou no teatro com o sobrenome recebido, é preciso sublinhar que a lógica dessa manutenção tem significado diverso. Por serem amadores e não profissionais – ainda que alguns deles viessem depois a fazer carreira profissional ligada ao teatro, como críticos, historiadores ou até mesmo como intérpretes – exibiram o sobrenome das famílias a que pertenciam na tentativa de afirmar a importância cultural do teatro e retirá-lo da posição subalterna desfrutada até então por estar associado à cultura e ao divertimento popular (PONTES, 2008, p. 184). 43 Reis, neste sentido, nos diz que as atrizes, “àquelas que já faziam parte daquele mundo por meio de laços familiares [...], por estarem afastadas dos núcleos repressivos originais [...]”, eram vistas com menos desconfiança (CARVALHO apud REIS, 2011). Assim, a mulher de teatro, se descendente de uma família do meio teatral, filha ou esposa de um homem já bem quisto no meio, tinha mais facilidade de não ser marginalizada. O TAP, como nos fala Pontes, foi um dos grupos na época liderado por uma família (a família Oliveira, em Recife) e que se autodenominou amador, como o próprio nome diz, não adotando o sistema profissionalizante de se pagar cachê aos seus elencos. Toda a renda dos espetáculos do grupo era revertida para fins filantrópicos e posteriormente também para a manutenção do próprio teatro, que viria a ser construído na década de 1960. Talvez, este seja um detalhe que possa contribuir com a respeitabilidade das atrizes do TAP, além de o fato de pertencerem a um círculo social privilegiado: afinal, não exibiam seus corpos em cena em troca de um cachê, para seu próprio sustento (algo difícil para a sociedade na época entender como um trabalho honesto), mas trabalhavam para ajudar pessoas necessitadas, ação esta extremamente virtuosa. Porém, não se pode afirmar que o fato de uma atriz ser de uma família de teatro, nas décadas de 1940 e 1950 no Brasil, significasse que poderia ser decididamente bem quista e valorizada no campo social. Bibi Ferreira, por exemplo, era filha de Procópio Ferreira, ator de grande sucesso e muito respeitado em sua época e que recebeu a [...] mais alta homenagem prestada aos grandes homens pela opinião pública brasileira – perdera o sobrenome. Quando se falava em Procópio, ninguém tinha dúvida de que se tratava naturalmente de Procópio Ferreira – nas palavras do historiador e crítico de teatro Décio de Almeida Prado (PRADO apud PONTES, 2008, p. 183). Mesmo assim, Bibi Ferreira foi expulsa do Colégio Sion, escola da elite carioca de maior prestígio na época, “sob a alegação de que era filha de gente de teatro” (GUIMARÃES apud PONTES, 2008, p. 184). Estes discursos, que envolviam o ofício da atriz, em consonância com a sua moral e que ultrapassaram décadas, podem ter deixado resquícios na contemporaneidade, como nos mostra o caso de Elaine Cezar, atriz do Teatro Oficina 10 , grupo de José Celso Martinez 10 O “Teatro Oficina Uzyna Uzona” ou simplesmente “Teatro Oficina” foi fundado em 1958 na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (COSTA, 2006). 44 Corrêa, que perdeu em dezembro de 2010 a guarda do filho então com três anos, sob a acusação de trabalhar num “teatro pornográfico”. Em carta ao Desembargador responsável pelo caso de Elaine, José Celso Martinez Corrêa, comenta que: CACILDA BECKER teve o mesmo problema. Quando separou-se de seu marido Tito Fleury, que quis ser ator mas não tinha talento para isso e foi viver com o grande diretor vindo da Itália, Adolfo Celi, levantando com este novo amor, o TBC, PAI gerador de todo o Teatro Moderno brasileiro, do qual CACILDA é a GRANDE MÃE. Este processou a atriz, argumentando que uma ATRIZ DE TEATRO não tinha direito à guarda de um filho, no caso era do Bebê CUCA, filho de ambos. Acusava a mesma de fazer uma peça imoral, condenada pela Igreja e pelo Partido Comunista, “ENTRE QUATRO PAREDES” de Jean Paul Sartre, onde Cacilda fazia o papel de INÊS: uma LÉSBICA! Oh q HORROR!!!!!! O filho ficou sob a guarda por uns tempos da mãe de CACILDA, Dona Alzira, que ia levar a criança escondida da polícia, nos ensaios desta peça no TBC, para CACILDA dar de mamar a CUCA. Óbvio que a moral burguesa tradicional fundamentalista não tem nada a ver com a ética teatral (CORRÊA, 2014). Em maio de 2013, recebo uma intimação, ao voltar de mais uma semana em Natal, Rio Grande do Norte, onde estava iniciando o Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN, a qual me informava da possível perda da guarda do meu filho também com três anos, por não ter condições de educá-lo, sob outras acusações, a de ser “atriz e desequilibrada”, enquanto que o pai, “pessoa idônea e pós-doutor em Física”. No processo judicial, uma foto minha do espetáculo “Fedra”, de 2012, como suposta prova de imoralidade. Em março de 2014, a guarda do meu filho me é retirada, o levaram sem me informar, chegaram de surpresa, o arrancaram de dentro da escola e o levaram escoltado por uma viatura de polícia. Imagem 14: Meu trabalho em “Fedra”, de Racine. Espetáculo da Cínicas de Teatro-Cia. De Mulheres, 2012. 45 Além de haver discriminação pela profissão, a de eu ser atriz, há também no fato de se sobrepor uma área de conhecimento sobre a outra. Aqui, a área de exatas se sobressai ao campo das Artes, mais precisamente a Física seria mais relevante e respeitável que o Teatro. São mais de 60 anos passados entre os casos de Cacilda e o de Elaine e o meu, que aconteceram recentemente. De um século para outro, são os mesmos discursos discriminatórios e preconceituosos, forjados e cristalizados, que resistiram ao tempo e que chegaram aos nossos dias, estilhas da tradição cultural de caráter patriarcal, de uma violência que só pode ser comparada à ditadura militar. E por falar em ditadura militar... 1.3 O TEATRO EM PERNAMBUCO NO PERÍODO DA DITADURA A década de 1940 chegaria com novos rumos para o teatro. A busca do nacionalismo e a função social da arte marcariam o decênio. Surge o Teatro Universitário, “[...] inicialmente no Rio de Janeiro e depois em outros estados, cuja produção inovadora percorreu toda a década”. (COSTA, 2006, p. 130). Do final dos anos de 1940 e início de 1950, surge no Brasil um teatro “[...] tematicamente engajado e crítico, alinhado com o seu momento histórico e com as vanguardas internacionais” (COSTA, 2006, p. 131). Um importante grupo deste período é o Teatro de Arena de São Paulo, fundado por José Renato Pécora. Em 1953 começa a produzir seu repertório, iniciando-se com a montagem de “Uma Mulher e três palhaços”, de Marcel Archad. “Uma linha politicamente engajada, de base nacionalista e formalmente vanguardista passa a caracterizar o Arena, que busca também, com os Seminários de Interpretação, desenvolver uma maneira brasileira de representar” (COSTA, 2006, p. 168). Até 1972, foi um grande difusor de uma dramaturgia nacional e contou com artistas comprometidos com o teatro político e social. E claro, quanto mais o teatro se politizava, mais era perseguido: “[...] foi à medida que o teatro se firmava e se desenvolvia como arte e manifestação consciente de expressão dos anseios sociais que a fiscalização endureceu” (COSTA, 2006, p. 141). E por meio de decretos, a censura prévia agia sobre o teatro. Segundo Costa, naquele momento, o Brasil apresenta duas correntes que [...] se manifestam nos mais diferentes campos da produção artística: uma contendo uma preocupação mais universalista e cosmopolita que visa ao reconhecimento internacional, e outra mais nacionalista e politicamente 46 engajada, voltada principalmente para a necessidade de discussão de problemas brasileiros (COSTA, 2006, p. 157). Na corrente que visa a linguagem universal, encontra-se o Teatro de Amadores de Pernambuco, um dos maiores representantes do meio teatral no Estado no período, que montou espetáculos que Valdemar de Oliveira chamou de “[...] alto padrão literário ou artístico, dos maiores nomes da biblioteca teatral” (OLIVEIRA, 1974, p. 142), como Shakespeare, Moliére, Pirandello, Garcia Lorca, Oscar Wilde, Tennesse Williams, Artur Miller, Casona, Bernard Shaw, Nelson Rodrigues, Martins Pena, Artur Azevedo, entre outros. O TAP tinha como política, encenar espetáculos não comerciais: Sensível à evolução da arte e aos processos de encenação que a tecnologia moderna constantemente renova e aperfeiçoa, mostra-se alérgico à ação desfiguradora dos traficantes do Teatro. Não os perdoa, nem lhes segue o rastro criminoso. Nega-se, por menosprezar a bilheteria, a imitar os que nela colocam a razão de sua sobrevivência (OLIVEIRA, 1974, p. 143). O TAP excursionou por vários estados brasileiros, recebendo muitos prêmios por seus espetáculos, atores e atrizes, críticas positivas e depoimentos honrosos (OLIVEIRA, 1974). Imagem 15: Da esquerda para a direita: Geninha da Rosa Borges, Carminha Carvalho, Diná de Oliveira (como Bernarda) e Teresa Guye na montagem do TAP de “A Casa de Bernarda Alba”, de Garcia Lorca, de 1948. 47 Imagem 16: Diná de Oliveira (em pé) e Maria da Glória Carvalho em “A Dama da Madrugada”, de Alejandro Casona. Montagem do TAP de 1945. Dentro da vertente engajada, surge em 1958 o Teatro Oficina, criado pelo grupo da Escola de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo. São componentes dessa fase, entre outros, Fauzi Arap, Amir Haddad e José Celso Martinez Corrêa, que dirige o grupo até hoje. O Oficina foi [...] peça chave da consolidação do teatro brasileiro. Propondo uma renovação nas artes cênicas, o Oficina lutava contra a elitização do teatro e contra a mística e o glamour dos artistas. Encarava o teatro como ofício resultante de um esforço coletivo que pretendia voltar-se para a realidade circundante [...] (COSTA, 2006, p. 171). Porém, é importante salientar que “À medida que o teatro se fortalece, ele se afasta da mera „diversão pública‟ e assume seu papel social, ao passo que a censura o cerca de forma cada vez mais rigorosa, dos anos de 1950 aos de 1960” (COSTA, 2006, p. 143). No ano de 1960 o mundo encontrava-se num estado que se poderia chamar de efervescente, em muitos sentidos. Para o universo feminino, foram os anos da pílula anticoncepcional e do florescimento do movimento feminista. No Brasil, foram também anos de muita turbulência e complicações políticas: Inflação, alto custo de vida, moratória, foram alguns dos ingredientes que ocasionaram a combustão de uma situação que se tornava insustentável. Assim, o Exército, que se mantivera nos bastidores, insuflado pela classe média conservadora que começava a se manifestar, desfere um golpe contra o poder presidencial. Em 31 de março de 1964 instaura-se no país a Ditadura 48 Militar, com inquestionável apoio dos Estados Unidos, que se preparavam para intervir no país e assegurar o sucesso do Golpe Militar (COSTA, 2006, p. 178). Não há como esquecer os horrores produzidos pela ditadura, pois durante sua vigência, que se estendeu dos anos de 1964 a 1985, vários mecanismos foram utilizados para reprimir qualquer tipo de manifestação (inclusive e com muita frequência as manifestações artísticas) contrária ao Estado autoritário. Pessoas que se opunham ao regime foram perseguidas, torturadas, exiladas e mortas. Nestes vinte e um anos de atuação, a ditadura arruinou a economia brasileira, aprofundando sua crise (a qual até hoje ainda perdura resquícios desta fase), intensificando os problemas sociais, bem como a corrupção e manipulando os fatores culturais. Instalou-se um governo antidemocrático que instaurou a repressão e a censura. Fez da tortura uma prática política e conseguiu alienar as gerações seguintes, que em sua maioria, não entendem a engrenagem social em que vivem. Os direitos dos políticos considerados perigosos para o regime foram anulados com o Ato Institucional nº 1. Este é, oficialmente, o primeiro golpe repressivo dos militares. Com o AI-2, apenas dois partidos políticos poderiam atuar no país, o MDB (Movimento Democrático Brasileiro) e a Aliança Renovadora Nacional (ARENA). O AI-3 concedeu aos militares um maior controle político: o nosso direito ao voto foi restringido, pois as eleições indiretas para governador foram também impostas. O AI-4 foi criado com o intuito de organizar-se uma nova Constituição, que, claro, seria cúmplice do regime vigente (CHIAVENATO, 2005). No entanto, tanta repressão foi insuficiente para conter a resistência popular, que ficou ainda mais comprometida na luta contra o regime. Surgiram greves, manifestações, lutas clandestinas. E o governo, como resposta, criou o famoso Ato Institucional nº 5. Foi criado porque os atos anteriores, que praticavam a violência repressiva ditatorial, efervesceu a resistência popular. Com ele, o presidente Costa e Silva obteve poderes absolutos, e assim, a repressão, bem como a censura foram intensificadas. Discordar do regime explicitamente tornou-se uma missão difícil. Só restava uma saída: a militância clandestina. Com a morte de Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici subiu ao poder e comandou o período mais repressivo da ditadura contra os militantes (CHIAVENATO, 2005). No campo da arte: 49 É importante lembrar que se vivia o apogeu de uma explosão de arte e cultura e que os anos de 1960 se iniciavam com a Bossa Nova, de João Gilberto, Vinícius de Morais e Tom Jobim; com Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha; com a Revolução na América do Sul, de Augusto Boal; com a Formação Econômica do Brasil, de Celso Furtado. Foi no cerne dessa produção que atuaram a censura e a repressão (COSTA, 2006, p. 182). E neste contexto, Diante desse momento cultural ativo, profícuo, politicamente engajado e declaradamente opositor da ditadura e do capitalismo, o público se dividia: de um lado, estudantes, intelectuais, artistas de todas as áreas e a classe média liberal cerravam fileiras em apoio; de outro, um contingente moralista e conservador reagia indignado e pedia a intervenção do Estado (COSTA, 2006, p. 191). Em Pernambuco, o governador Miguel Arraes, que havia sido eleito pelo povo, foi deposto e detido pelos militares do Quarto Exército: “Tropas do exército tomaram as principais ruas e avenidas do Recife, com tanques, canhões e fuzis. O líder político Gregório Bezerra 11 [...] foi preso, execrado e torturado em praça pública, com transmissão ao vivo pela televisão” (REIS; REIS, 2005, p. 65). A classe teatral logo se torna alvo dos desmandos ditatoriais que tomava o poder. Segundo Luis Mendonça, autor e encenador pernambucano da época, muita delação acontecia “[...] inclusive, de muita revanche pessoal que não tinha nada a ver com política” (BACARELLI, 1994, p. 21). Bastava alguém ligar para um dos órgãos de repressão e denunciar os atores ou qualquer outra pessoa como “comunista” ou “subversiva”. Dessa forma, não havia confiança nas relações e os atores temiam participar das reuniões teatrais. Ainda assim, Benjamim Santos (crítico de teatro do Jornal do Commercio, no período de 1965 a 1969), nos lembra a década de 1960 em Pernambuco como um período promissor, onde novos grupos de teatro negavam-se ao desenvolvimento de uma arte burguesa, dirigida para a classe requintada, a qual vinha sendo desenvolvida desde os anos de 1940 no Estado (SANTOS, 2007). O crítico refere-se ao teatro burguês e tradicional, realizado na época no Teatro de Santa Isabel, “onde os preços das entradas e a obrigatoriedade do uso do paletó o tornavam proibido para o povo e restrito a uma pequena elite financeira” (MENDONÇA apud REIS; REIS, 2005, p. 55). O crítico ressalta a importância do trabalho de anos dos novos 11 O pernambucano Gregório Lourenço Bezerra participou de várias manifestações e movimentos contra a desigualdade social. Na ditadura, foi preso quando se deu o golpe, tentando organizar uma resistência armada dos camponeses para apoiar João Goulart para o governo federal e Miguel Arraes para o estadual. Foi torturado e arrastado com uma corda no pescoço, e teve seus pés submergidos em ácido, os quais ficaram em carne viva. Tudo foi exibido pelas TVs locais (CHIAVENATO, 2005); (REIS; REIS, 2005). 50 grupos, o qual “denunciou por muito tempo o esclerosamento a que se habituava o público de Recife e do Nordeste” (SANTOS, 2007, p. 151). Bacarelli nos conta que este novo movimento, que vinha realizando trabalhos diferenciados e se opunha ao teatro burguês, despertou a ira intolerante da classe dominadora, que não tardou a deferir seus golpes contra essa elite pensante que o formavam. A paranóia instalada voltou-se contra tudo que se ligasse a um trabalho social ou pesquisas do popular (BACARELLI, 1994, p. 19). Neste sentido, destaca-se o trabalho do Teatro de Cultura Popular (TCP), liderado por Luiz Mendonça, núcleo de teatro do Movimento de Cultura Popular (MCP), criado em 1960: No nordeste, em Recife, Miguel Arraes coloca o Estado como promotor de uma experiência pedagógica integrada de base renovadora: o MCP - Movimento de Cultura Popular. Inicialmente voltado para um programa de educação popular, apoiado no método do educador Paulo Freire, logo o MCP expandiu seu âmbito de atuação para a esfera da produção de cultural popular, promovendo festivais de cinema, teatro e música, mantendo Centros e Praças de Cultura, e iniciando a produção de um longa-metragem, Cabra Marcado para Morrer, que não pôde ser concluído (GARCIA, 2004, p. 102). O MCP torna-se um movimento inspirador e [...] vai exercer sua influência não só no Nordeste como também atrair a atenção do Sul. Iniciado com poucos meses de antecedência sobre o Centro Popular de Cultura, o MCP certamente inspira a experiência carioca, divulgado por meio de conferências de Paulo Freire no Iseb – Instituto Superior de Estudos Brasileiros (GARCIA, 2004, p. 103). O trabalho de cunho popular, “[...] popular, no sentido de uma linguagem acessível, e também na medida em que propõe conteúdos que digam respeito à vida desse homem da periferia” (GARCIA, 2004, p. 126) do TCP volta-se para um público carente com projetos de educação através do teatro. Suas apresentações aconteciam em espaços fechados como associações ou em ruas, feiras, nos subúrbios e áreas rurais pernambucanas. Como o grupo trabalhava com campanhas de alfabetização, foi facilmente alvo dos militares (REIS; REIS, 2005). Luiz Mendonça cria, junto aos seus companheiros do MCP, dois locais de apresentação teatral: [...] o Teatro do Povo, uma arena cercada por uma lona, à moda dos panos de roda dos circos mambembes, com capacidade para 500 pessoas, acomodadas em arquibancadas; e a Concha Acústica Arraial do Bom Jesus, onde por volta de três mil pessoas poderiam assistir aos espetáculos (REIS; REIS, 2005, p. 48). 51 Cria estes espaços com o intuito de aproximar do teatro, pessoas que não podiam frequentar o Teatro de Santa Isabel, naquele momento, palco dos trabalhos do Teatro de Amadores de Pernambuco. Imagem 17: Programa do espetáculo “A Volta do Camaleão Alface”, dirigido por Luiz Mendonça, recolhido pela polícia, junto aos objetos e documentos do MCP no DOPS. Não consta no programa o ano desta montagem. No elenco, José Wilker no papel do Camaleão, o bandido. Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano (DOPS). Quando Miguel Arraes foi deposto, o grupo foi intensamente perseguido e posteriormente desarticulado com o golpe de 1964. Todo o material cênico e os arquivos do grupo foram queimados e seus integrantes quando não presos e espancados, foram obrigados a deixar clandestinamente o Estado. Ilva Niño, mulher de Luiz Mendonça e atriz do grupo, foi uma das perseguidas pelos militares e teve a proteção de um comandante, através de Ariano Suassuna, precisando fugir com o marido para o Rio de Janeiro, (pouco antes de Miguel Arraes ser deposto) onde ambos retomaram seus trabalhos no teatro. (BACCARELLI, 1994). 52 Imagem 18: Documento secreto da Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco de 1965, informando que Luiz Mendonça estava trabalhando numa emissora de TV carioca e que era integrante do Grupo de Teatro Decisão. Arquivo Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano (DOPS). O que aconteceu com Ilva Niño foi simpatizar com a proposta social de Marx e Lênin. A atriz também era filiada ao partido, apesar de “não ter realizado publicamente ou em caráter particular, nenhum partidarismo ou pregação política” (REIS; REIS, 2005), mas só pelo fato de ser comunista por ideal, pode-se imaginar as dificuldades encontradas pela atriz na época. Outro grupo pernambucano deste período, O Teatro Popular do Nordeste (TPN), volta-se também para o popular e alinha-se como pesquisador da cultura popular, cujos objetivos eram trabalhar com “[...] a teoria brechtiana de interpretação, que, por sua vez, encontra no nosso teatro popular a realização concreta de muito do que afirma Brecht [...]” (BORBA FILHO apud SANTOS, 2007, p. 79) e buscar uma “forma de espetáculo em que o público seja também um elenco integrante, como o bumba-meu-boi, por exemplo, sem que isto seja um fechamento no regional, mas a descoberta de uma maneira nossa de espetáculo, de interpretação. Um método.” (BORBA FILHO apud SANTOS, 2007, p. 79). Este método estaria pautado na fusão das maneiras de representação do bumba-meu- boi, do mamulengo e de outros elementos dos espetáculos populares com alguns aspectos do Teatro Épico de Bertolt Brecht. O TPN também trabalhou com o uso da máscara ao longo de suas montagens, acumulando experiências sobre o uso da mesma e dando-lhe uma função a partir de suas pesquisas com as manifestações populares: “[...] o TPN possui uma concepção particular a respeito da função e do emprego da máscara em seus espetáculos. É uma 53 concepção que vem respaldada nas grandes fases do teatro e no estudo das mascaradas do bumba-meu-boi” (SANTOS, 2007, p. 125). Imagem 19: “O Inspetor”, de Gogol, montagem do TPN de 1966. Adaptação e direção de Hermilo Borba Filho. Em cena, da esquerda para a direita: Lêda Alves, Lúcia Neuenschwander e Joacir Castro. Arquivo: Projeto Memórias da Cena Pernambucana. Lêda Alves, musa do TPN, nos fala um pouco sobre o interesse do TPN pelo popular e sobre esse modo de representação: [...] o teatro burguês não interessava mais, enquanto o teatro popular continuava resistindo, haja vista a coisa miraculosa que é o bumba-meu-boi resistir a quatro séculos a toda uma aculturação que nós estamos sofrendo através da televisão e dos meios de comunicação de massa. Você hoje toca um bombo em qualquer terreiro de subúrbio e o povo todo se reúne e vai participar do bumba-meu-boi, do mamulengo, do pastoril. Esse é o grande mistério que o teatro popular tem para nos oferecer. Bom, como Hermilo procurava isso? Através de um teatro de arena, de uma cena de três faces, de espetáculos anti-ilusionistas, com músicas comentando a ação, com dança ao sabor da improvisação do ator, com máscaras, atores dobrando os papéis, a máscara possibilitava isso, a economia, porque a gente diminuía o elenco, o distanciamento do personagem, a crítica ao personagem (BACCARELLI, 1994, p. 40). O TPN agia também como instrumento de denúncia e crítica ao golpe militar e à direita que o apoiava. Segundo Lêda, O TPN, antes do espetáculo, abria a cena comunicando as prisões, as mortes, os desaparecimentos, os assassinatos, as perseguições, os teatros que eram fechados no Sul, toda a situação política a gente denunciava, oferecia bilheteria a quem estava preso. No enterro do Padre Henrique 12 , a vigília foi 12 Padre Henrique foi seminarista durante nove anos e ordenado sacerdote em 1965 aos 25 anos de idade pelo então arcebispo de Olinda e Recife, Dom Helder Câmara. Desenvolveu trabalhos com a comunidade como a recuperação de jovens toxicômanos. Não era militante, mas discordava dos métodos de repressão usados pelo regime. Fazia um trabalho de conscientização política com os jovens e foi considerado um subversivo. Foi 54 feita, em grande parte, dentro do TPN. O TPN era realmente uma grande tribuna para toda a intelectualidade e operariado que precisasse da gente pra qualquer coisa. Isso tinha preço e o preço foi cortar qualquer subvenção, e a ajuda foi jogar bomba dentro do TPN. Foi, de repente, o TPN ser invadido pela polícia, ser cercado de metralhadoras em punho e revistar todo mundo (BACCARELLI, 1994, p. 46). Carlos Reis, ator do TPN, nos conta sobre a tensão vivenciada pelos membros do grupo: Lembro-me que, à época em que estávamos com Andorra 13 aqui, em São Paulo, o CCC (Comando de Caça aos Comunistas), entidade parda de extrema-direita, assaltava e agredia fisicamente os atores e atrizes em diversos espetáculos. Começaram a surgir diversas notícias de agressões do CCC aos diretórios estudantis em Recife. Isto foi em 1968. Andaram jurando, a nós do TPN, que iríamos receber a nossa lição também e começamos a perceber a presença de alguns “tipos suspeitos” em nossos espetáculos (SANTOS, 2007, p.46). Imagem 20: Programa do espetáculo “Andorra”, montagem do TPN de 1968. Encontrado no Arquivo Público Estadual de Pernambuco - Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), no prontuário individual de um militante do Recife, cujos objetos foram apreendidos pela polícia. Este militante teve o filho de 23 anos, também militante, carbonizado na “Execução de militantes do PCBR sequestrado, torturado e morto em 1969 (Relatório Pe. Henrique/Comissão Estadual da Memória e Verdade- Dom Helder Câmara - Acervo da Companhia Editora de Pernambuco, disponível em www.cepedocumento.com.br em 31/12/2014). Em entrevista, Stella Maris Saldanha nos conta que Padre Henrique era auxiliar de Dom Helder Câmara, que era perseguido. Os militares achavam que Dom Helder era um comunista. Como não tiveram coragem de matar Dom Helder, mataram Padre Henrique. Eles perseguiam as pessoas que trabalhavam com Dom Helder ( SALDANHA, 2014a). 13 Montagem do TPN do drama de Max Frisch, dirigido por Benjamim Santos. 55 na Praça Sentinela, em Jacarepaguá”, Rio de Janeiro. (Diário de Pernambuco, 10/05/2013. Disponível em http://www.diariodepernambuco.com.br/, em 27/12/2014. Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano (DOPS). Imagem 21: Ficha da atriz Leda Alves do Departamento de Ordem Política e Social de Pernambuco (DOPS-PE). O documento de 1981 informa que a atriz havia participado do Ato de Solidariedade promovido pelo PMDB a um grupo de jornalistas do jornal “Hora do Povo”, que haviam sido condenados pela justiça militar por crime previsto na Lei de Segurança Nacional (LSN). Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano. Quanto á presença feminina no grupo, Benjamim Santos comenta em seu livro “Conversa de Camarim”, a magia que envolve os camarins de teatro e através dos do TPN, revela as personalidades das atrizes: O camarim dos atores era coletivo e amplo. Lá, rolava todo tipo de conversa rápida enquanto aquele bando de homens se trocava (todos os espetáculos do TPN tinham muito mais atores que atrizes). [...] Era um camarim carregado de conversa, mas sempre assuntos ligeiros, que duravam só mesmo o tempo de cada um se trocar [...]. Os camarins das atrizes, não. Personalizados, tudo neles parecia me dizer que naquele lugar, há pouco, haviam encontrado Leda e Lúcia, mas, dali sairiam já transfiguradas em Branca Dias ou Antígona; Elvira ou Dona Feliciana [...]. Nos camarins das atrizes do TPN, a conversa era lenta e podia até ser aprofundada, espelhante do brilho das lâmpadas que cercavam os espelhos. Se o camarim dos homens era impessoal, os das mulheres marcavam-se pelas identidades neles dominantes [...]. Só no TPN, compreendi a força e a vida dos camarins [...] (SANTOS, 2007, p. 53). Muitos outros grupos de teatro atuaram em Pernambuco na década de 1960, como o Teatro Experimental de Caruaru, que funciona até hoje, o Teatro Adolescente, o Teatro Universitário de Pernambuco, o Marijose, o Arribação, o Picadeiro, o Teatro Novo, o Açoite, 56 o Teatroneco (SANTOS, 2007), dentre outros. Os grupos desta década não sobreviviam a duas ou três montagens ou foram desarticulados pela ditadura (BACCARELLI, 1994). Mas [...] as reações ao desmonte da cena teatral não tardaram. No final dos anos 60 o Recife já testemunhava, em seu nascedouro, experiências que projetavam o que viria a acontecer na década seguinte: a reorganização de movimentos e conjuntos dispostos a resistir ao autoritarismo, deslocando-se para fora do eixo no qual prevaleciam idéias e estéticas conservadoras (FIGUEIRÔA; BEZERRA; SALDANHA, 2011, p.81). Os anos de 1970 chegam com “um teatro de resistência, coletivo, de projeto comunitário, social”. (ANDRADE, 2008, p. 31). A posição feminina no teatro se modifica, pois “Desde os anos de 1970, à medida que a sociedade foi se transformando, ainda que lentamente, e permitindo certa abertura de comportamento da mulher, a mulher, cada vez mais, passou a dividir o espaço que ocupava como espetáculo com os homens” (ANDRADE, 2008, p. 19). A década ganha dramaturgas que se voltam para os problemas femininos: [...] a presença de uma dramaturgia feminina, no sentido da constituição de um corpus, só ganha força na passagem dos anos de 1960 para os de 1970, num surto conhecido como a “nova dramaturgia” que coincide com o fechamento do espaço público (VINCENZO apud ANDRADE, 2008, p. 36). Surge uma safra, depois de 1968, da participação feminina na dramaturgia e na encenação (ANDRADE, 2008). O feminismo floresce neste decênio e o movimento de libertação das mulheres busca, entre outros anseios, o direito sobre o próprio corpo. O corpo feminino aparece, se mostra, se desnuda em busca da liberdade, como uma fonte de autonomia e de prazeres. Era preciso “desaliená-lo”, “reapropriando-se” dele (MARZANO, 2012). Esta é a ideia geral da “segunda onda” do feminismo que surge nesta década e que vai influenciar em alguns trabalhos no teatro. Neste sentido, dá-se o recorte da pesquisa nos anos de 1970, com a ideia de um corpo feminino despojado no teatro, como espaço de politização e transgressão. Assim, foram escolhidas neste perfil de ebulição dos anos de 1970 e com esta ideia de politização do corpo em cena, as atrizes Ivonete Melo, Suzana Costa, Stella Maris Saldanha e Zélia Sales, protagonistas deste escrito, que atuaram nos grupos Vivencial, Teatro Hermilo Borba Filho e Grupo Expressão, respectivamente, cujas propostas seguiam para o caminho da transgressão, que excediam os limites impostos da política para o transbordamento da liberdade de expressão e dos desejos. 57 E neste contexto, a mulher no teatro, mais uma vez, como nos séculos anteriores, mostra-se em constante mudança, metamorfoseia-se nos campos artísticos e sociais, numa perspectiva de vir a ser, nela própria e no mundo que as transforma e que por elas é transformado. Circula no âmbito do Devir. Devir Mulher. A mulher /atriz age com um impulso em busca da liberdade. Devir é uma força de libertação (GUATTARI, 1981). Na filosofia de Heráclito, este vir a ser, bem como a necessidade de estar nômade, é bem exemplificado com o pisar de alguém nas águas de um rio, onde reflete sobre a impossibilidade de haver um mesmo pisar, ainda que seja o mesmo alguém e o mesmo rio, pois tanto as águas e este mesmo alguém estão em constante mudança. De forma semelhante, conceitua-se o Devir Mulher em Guattari. As mulheres buscadas para a pesquisa sugerem, através do teatro, um feminino além dele próprio e uma mulher além do que socialmente foi delineado, do que e como deve ser uma mulher, com suas fragilidades, delicadezas e pernas bem cruzadas ao sentar. Um feminino que sabe da importância da desconstrução dos binarismos que levam os gêneros às categorias fixas, imutáveis. Binarismos estes que bem servem ao propósito de produzir e fundamentar contextos de exploração, dominação e opressão. Mas não só o binarismo homem/mulher, mas também mulher/feminino e tantos outros que reproduzem discursos sexistas, de classes, raciais, de gênero. Um feminino que é questionador, político e transformador. Ele, em seu âmago, possui uma cultura e saberes próprios que, ao longo da história, foram desperdiçados; de um “saber fazer” específico, próprio da mulher. Não é o feminino que cuidaram de engessar. Este tem uma perspectiva de metamorfosear-se, reflexão da feminilização, que sugere a união de saberes, masculinos e femininos, sugere outras ideias que não excluiriam, mas complementariam as vigentes. Um feminino em constante mudança, não a mulher perpetuada nas figuras alinhavadas pelos costumes socioculturais. Constitui mudanças que reparam, reconstroem. “Quanto mais me despedaço, mais fico inteira e serena. Aprendi com as primaveras a me deixar cortar para poder voltar sempre inteira”, como bem dizia Cecília Meireles (SANTOS, 2012). As reconstruções e desconstruções transformam, levam a novos saberes e experiências. E como nunca são as mesmas, geram infinitas possibilidades de metamorfoses. Um feminino que é um útero fértil, lugar de reflexões, onde percorrem a sensibilidade, a subjetividade, o intuitivo, a fluidez e a mutabilidade. 58 Capítulo 2 No útero da transgressão “Meu corpo é, portanto, no conjunto do mundo material, uma imagem que atua como as outras imagens, recebendo e devolvendo movimento, com a única diferença, talvez, de que meu corpo parece escolher, em uma certa medida, a maneira de devolver o que recebe”. Henri Bergson 59 2.1 A POÉTICA VIVENCIALESCA Em 1979, o espetáculo do Vivencial “Repúblicas Independentes, Darling”, apresentado no Teatro Cacilda Becker, no Rio de Janeiro, rendeu críticas de Tânia Pacheco para o jornal O Globo e um ensaio de Fátima Saadi para a Escola de Teatro da Fefierj, os quais nos falam um pouco, de forma bastante sensível, da forma de ser vivencialesca. Para Pacheco, uma montagem “pobre em termos empresariais; rica no que tange a nos fazer refletir sobre os descaminhos do teatro ao qual estamos acostumados [...]” (PACHECO, 1979, p. 40); para Saadi, “a forma escrachada, herança da revista, do mambembe, serve ao propósito de questionar o teatrão e incita o raciocínio por meio do riso” (SAADI, 1979, p. 25). Nos olhares da crítica e da dramaturga, percorrem reflexões que se voltam para a identidade peculiar do Vivencial, que teve um vestígio inicial de didatismo catequético, abandonando-o para formar uma identidade de caráter híbrido e fragmentário na sua poética, marcada pelo escracho, pela subversão, transgressão e marginalidade. Em determinados pontos dos dois escritos, é chamada a atenção para momentos introspectivos dos intérpretes dentro do espetáculo, momentos (cenas) que serviam de “costura” para as esquetes, delineadas a partir da superposição e da colagem de trechos dos textos de Carlos Eduardo Novaes, Luís Fernando Veríssimo e Carlos Drummond de Andrade, desconstruindo as formas consagradas de uso. Nestas cenas de “costura”, cada intérprete é posto em cena para falar sobre si mesmo e estes momentos refletem impressões muito individuais. Momentos que, às vezes, mostram-se prejudicados pelo “narcisismo, que, segundo Guilherme Coelho (diretor do grupo), é inerente a todo ator” (SAADI, 1979, p.27). Estes “depoimentos terapêuticos”, como chamou Saadi, revelaram para Pacheco “uma entrega difícil e valiosa” (PACHECO, 1979, p. 40). Essas cenas monológicas espelham um certo grau de individualidade. Na ótica da direção, fluiu-se a necessidade de ser levada a individualidade para o espetáculo servindo de ligadura para as cenas coletivas. De certa forma, a individualidade se sobressai por significar a junção, o vínculo, o meio pelo qual a criação coletiva, característica marcante da identidade do grupo, se une; e por ser enfatizada pelos intérpretes de forma narcísica, transparece-se numa solidão tão explícita que por vezes os intérpretes chegavam, nesta apresentação, a titubear suas falas, segundo Pacheco. A superposição, a colagem de textos e a identidade híbrida e fragmentária são algumas particularidades da poética do grupo, 60 visto na época por muitos como marginal, sendo excluído, por vezes, pela própria classe teatral e pelo meio social em geral. Mas para Woodward, a identidade é marcada pelas diferenças que são sustentadas pela exclusão. É algo relacional: A identidade está vinculada também a condições sociais e materiais. Se um grupo é simbolicamente marcado como o inimigo ou como tabu, isso terá efeitos reais porque o grupo será socialmente excluído e terá desvantagens materiais (WOODWARD, 2000, p. 14). O ponto de origem do Vivencial está em 1964 com o ARMA, Associação de Rapazes e Moças do Amparo, grupo de jovens que faziam teatro na Igreja do Amparo, em Olinda. O grupo usava o teatro visando incitar reflexões na comunidade, recusando a linguagem teatral convencional e respondendo negativamente aos condicionamentos culturais vividos na época. Em 1974, para comemorar os dez anos de existência, o ARMA, monta o espetáculo “Vivencial I”, uma colagem de textos de Bertolt Brecht, Jean Genet, Platão, jornais e revistas, numa encenação que partia da improvisação dos intérpretes. A proposta diferenciada e de teor subversivo, que falava de homossexualidade, violência, drogas, política, tecnologia e massificação, incomodou os padres da igreja do Amparo e o mosteiro de São Bento de Olinda não quis mais o grupo se apresentado em seu auditório. Alguns se afastaram do ARMA, de onde vieram Guilherme Coelho, Américo Barreto, Fábio Coelho, Miguel Ângelo e Alfredo Neto, iniciando-se assim, a segunda fase do grupo como Vivencial, cujo nome foi inspirado no primeiro espetáculo. A sua terceira fase inicia-se como Vivencial Diversiones, com a abertura do seu espaço de trabalho, a casa de espetáculos, em 1979, quando o grupo atua até 1982. Desligado do ARMA e sem os olhares intimidadores da igreja, os intérpretes buscaram, acima de tudo, a liberdade. Liberdade de expressão, de opinião, de reflexão, de posicionamento que direcionou os novos caminhos de trabalho. Acolhendo os artistas marginais, o Vivencial desenvolveu uma estética subversiva e transgressora, de irreverência e de escracho, discordando dos abusos da ditadura. As experiências de seus intérpretes se constituíram em parte da identidade e da proposta do grupo, pois estes artistas e suas histórias de vida, suas vivências (inclusive discriminações vividas por seus componentes no dia a dia, fora do grupo, como discriminações de caráter pessoal, cultural, profissional, econômica ou 61 política) tornavam-se inspirações constantes para a produção dos trabalhos, por isso o nome Vivencial. A proposta das vivências dos membros do grupo transformadas em material de trabalho, as diferenças inseridas entre os intérpretes, as ideias de vanguarda, a busca por rupturas, a ideia de insubmissão, o efeito caricatural dos seus trabalhos (traduzidos no escracho) e a mescla das identidades pessoais, resultaram numa identidade maior, a poética do grupo. Une-se a estes pontos, a marginalização assumida e a idéia de descentralização e, por isso, os artistas do Vivencial eram vistos como excêntricos. Linda Hutcheon nos fala que O centro já não é totalmente válido. E a partir da perspectiva descentralizada, o “marginal” e aquilo que vou chamar de “ex-cêntrico” (seja em termos de classe, raça, gênero, orientação sexual ou etnia) assumem uma nova importância à luz do reconhecimento implícito de que na verdade nossa cultura não é o monólito homogêneo (isto é, masculina, classe média, heterossexual, branca e ocidental) que podemos ter presumido (HUTCHEON, 1990, p. 29). Tanta liberdade, proposta pelo grupo, claro, não incomodou só o regime, mas muitos dos grupos teatrais da época, que viam o Vivencial como um grupo de comédia fácil e de streap tease. Marcado pelas diferenças, formou uma identidade que, além de fragmentada, era estigmatizada por símbolos de exclusão não só pela homossexualidade, mas pelas próprias diferenças, pois o grupo acolhia todos os artistas que eram minorias: o analfabeto, o negro, o periférico e todos aqueles recusados nos grupos sociais e artísticos. O nu, a “bichice” ou a “viadagem” são características vistas como elementos marginais e não como os elementos-chave que produziram esta postura: o momento político, que pedia total liberdade, inclusive de sexo e de sexualidade; e a identidade de muitos dos intérpretes, excluídos do meio social. Existe uma associação direta entre a identidade do grupo e a marginalização e a exclusão. São estes símbolos que enfatizam as divisões e as desigualdades e é o meio pelo qual alguns grupos são estigmatizados, como o Vivencial. Mas se para uns esta diferença do Vivencial foi construída negativamente, para outros ela foi celebrada como fonte de diversidade, heterogeneidade e hibridismo. Na proposta vivencialesca, havia também um contato íntimo com o espectador. Este, torna-se co-atuante. O espaço criado nessa experiência gerava a troca, a vivência entre ambos. Antônio Cadengue, um dos frequentadores e posteriormente colaborador do grupo, nos fala de sua experiência como espectador do Vivencial: 62 Mas essas imagens cênicas extremamente densas e fortes me comoveram e me tocaram. Falaram da homossexualidade pra mim num momento em que eu ainda buscava uma definição, ou uma descompressão da minha sexualidade. Isso era uma coisa que me balançou. Essas verdades dos atores, de fazer com que eles aceitassem a homossexualidade [...]. Levar essa verdade individual eu acho que é muito cristão (CADENGUE apud BACCARELLI, 1994, p. 94). Feix nos fala que neste tipo de experiência, “Integrando a perspectiva crítica da estética da recepção, os espetáculos estabelecem um diálogo, tentando estabelecer novas formas de comunicação com o espectador” (FEIX, 2007, p.189). O trabalho do Vivencial também contava com performances e happenings e com a mescla do teatro com outras linguagens artísticas (artes plásticas, música e literatura), a descontinuidade e as intervenções no espaço urbano. O espaço cênico do Vivencial perfurava o espaço urbano, tornando-o heterogêneo. Não só o espectador, mas este espaço também torna-se co-participante, sem que lhe seja atribuída uma significação definitiva. Espaços alternativos, como o piso superior da Biblioteca Pública de Pernambuco, as ruas ou em cima de um carro de bombeiros, qualquer espaço poderia servir de cenário para o grupo, que abrangia toda a escala de possibilidades e contextos: nas identidades dos intérpretes, nas linguagens artísticas, nas criações dos elementos cênicos e nos espaços. Nos espaços com intervenções urbanas surgem projetos teatrais nos quais a paisagem urbana se transmuta em cena, criam-se diálogos entre encenação e cotidiano. Ao abrir sua casa de espetáculos, inicia-se a segunda fase do grupo e é neste momento que chegam os travestis. Todo dinheiro ganho era usado para investir na própria casa. Não tinha fins lucrativos, profissionalizava as pessoas, pagavam-lhe cachês, mas estes artistas eram autônomos. Antes de ser construída a sede, em sua primeira fase, o grupo sofreu perseguições, foi cassado, teve apresentações suspensas, mas conseguiu driblar a censura por não cobrar ingressos, apresentando-se em locais públicos, como nos diz Guilherme Coelho: “Como era uma coisa aberta e na época se podia fazer o que quisesse, desde que não se cobrasse ingresso, na época o critério era esse, eram portas abertas [...]” (BACCARELLI, 1994, p. 91). Na segunda fase, com a abertura do espaço e a conquista de caráter jurídico, os textos passaram a ir para a censura. Mas, de certa forma, o grupo tinha alguma liberação: “O trabalho de vocês é lá. Nos teatros oficiais da cidade, não! Lá, vocês mostram o que vocês quiserem”, nos lembra Guilherme Coelho, a fala da censura dirigida ao Vivencial (COELHO apud BACCARELLI, 1994, p.103). 63 Nas noites de apresentações da casa de espetáculos Vivencial Divesiones as apresentações também eram heterogêneas. No primeiro horário, eram levados ao seu palco espetáculos de teatro cujas montagens eram feitas pelo grupo. Com o passar das horas, as apresentações iam se mesclando: shows de música, de artistas de dentro ou fora do grupo; shows especiais, esporádicos, que eram apresentados uma única vez e o show de variedades, que apresentavam todos os tipos de propostas. Como se tornaram um grupo forte a nível nacional, devido, em boa parte, às matérias circuladas em grandes jornais e revistas nacionais como a Veja, a Folha de São Paulo e o Jornal do Brasil, dentre outros, o sistema não teve como calar o grupo. No território livre vivencialesco, qualquer proposta poderia ser apresentada, como um jornalzinho e livros que eram publicados e circulados dentro da sede, cujas publicações eram assinadas como Vivencial Impressiones. No seio da repressão, o Vivencial teve a grandeza de construir um território livre, onde se podia apresentar propostas de caráter subversivo, um gueto cultural onde se percorria a liberdade de expressão. A proposta de abertura do grupo não se limitava à absorção de várias influências e tendências artísticas ou à aceitação de novos artistas, mas também para colaboradores. Como não havia centralização, existia a possibilidade de alguém do grupo ou um colaborador desenvolver propostas e elas acontecerem. A identidade vivencialesca é o produto de várias histórias e culturas interconectadas: nas misturas das personalidades dos seus intérpretes, das linguagens artísticas em seus espetáculos e das identidades dos colaboradores, cujas participações não eram fixas nem fugazes. É a mesma reflexão de Stuart Hall para a idéia de identidade provisória e variável. “Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente”. (HALL, 2003, p. 12). A identidade do grupo atraiu estes colaboradores e frequentadores famosos que escreviam quadros ou textos para o grupo, como Aguinaldo Silva e Fauzi Arap. Emílio di Biase, Flávio Império (que chegou a fazer cenários para o grupo), Gilberto Gil e Caetano Veloso (que chegou a fazer músicas para os espetáculos) frequentavam a casa e apoiavam o trabalho do Vivencial. A heterogeneidade estava presente também, na poética vivencialescca, na mistura do marginal com o intelectual. O grupo tinha nos seus trabalhos marcas de gente tanto analfabeta quanto intelectiva, fato que não acontecia nos teatros convencionais. Outro traço estilístico vivencialesco era a utilização de projeções usadas nos espetáculos, como em 64 “Nos abismos da pernambucália”, de 1975, dirigido por Jomard Muniz de Brito, onde era explorada uma linguagem multimídia. O espetáculo tinha música, dança, texto e projeção de slides. A tecnologia das mídias teatraliza-se: “Aos poucos, conforme as teorias de François Pluchard, a pintura sai da tela, a literatura sai do livro, a música sai do disco e o teatro, arte total, acaba propiciando a junção das artes” (FEIX, 2007, p. 187), além de essas fusões se expressarem igualmente através da própria construção e concepção dramatúrgica. Música, pintura, literatura, servem de (pre) texto. Outro elemento que construiu a poética do grupo foi utilização da sucata, do “lixo”: doações de roupas e restos de maquiagens, objetos usados e materiais que eram descartados. A utilização da reciclagem, da recriação, da costumização, que primeiramente era feita por conta das dificuldades financeiras, passou a se constituir posteriormente como parte da poética vivencialesca. Assim, as colagens transpareciam também diretamente nas montagens dos elementos cênicos, pois muitos dos cenários, figurinos, material de iluminação (denominada no grupo de spot-lata) e adereços do Vivencial também eram montados, construídos a partir de pedaços de sucata e lixo, numa estética de fragmentação, da composição a partir de materiais diversos. Engajado politicamente, seu teatro lutava por uma sociedade mais justa e igualitária. Dentro da comunidade vivencialesca, o regimento de âmbito geral era preocupar-se com o coletivo, tanto em relação aos membros do grupo quanto em relação à sociedade, pautado no respeito às diferenças. A proposta era de difundir a arte alternativa, capacitar os artistas e torná-los sujeitos politizados, apresentando uma ligação direta com o tropicalismo 14. “Nos Abismos da Pernambucália”, de 1975, por exemplo, trazia, segundo Guilherme Coelho, um misto de vanguarda com teatro do absurdo, com teatro realista-naturalista, revisto por uma ética tropical (AGUIAR apud FIGUEIRÔA; BEZERRA; SALDANHA, 2011). Mas o fato é que a mescla de sua poética se desconstruía e se reciclava a cada espetáculo. Por vezes foi vanguardista, político (e no sentido tão amplo da palavra), por vezes tradicional... dramático, cômico, culto, anti-acadêmico. E o Vivencial estava longe de ser o criador de sua poética transgressora! Afinal eram os anos de 1970 e esse tipo de teatro já se disseminara pelo mundo, 14 O Tropicalismo teve como proposta misturar elementos tradicionais com as vanguardas artísticas estrangeiras. Para o poeta, escritor, cineasta e filósofo Jomard Muniz de Brito o grupo Vivencial foi “a maior explosão do tropicalismo no Nordeste” (FIGUEIRÔA; BEZERRA; SALDANHA, 2011, p. 37). 65 bem como o desejo da libertação da sexualidade, tanto do homossexual, como a da mulher, esta última pronunciada pelo movimento feminista. Há uma similaridade entre o Vivencial e o Living Theatre, grupo americano do casal Julian Beck e Judith Malina, que provocou o espanto na sociedade americana na década de 1960, no sentido de: “romper fronteiras, conquistar novos espaços, utilizar o teatro como instrumento para questionar a ordem estabelecida” (DOURADO apud FIGUEIRÔA, 2011, p. 180). No Brasil, o Tropicalismo explodia, influenciando o Cinema novo de Gláuber Rocha; a pintura de Hélio Oiticica; a música de Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Tom Zé, entre outros e o teatro Oficina, de José Celso Martinez Corrêa (FIGUEIRÔA; BEZERRA; SALDANHA, 2011). Nos anos de 1970 “[...] havia um forte componente erótico em que a entrega do corpo ao prazer simbolizava, sobretudo naquele momento, a melhor forma de protesto” (FIGUEIRÔA; BEZERRA; SALDANHA, 2011, p. 143). O Vivencial tem também um trabalho semelhante ao do Dzi Croquetes. Inspirando-se na última fase das revistas brasileiras, estreladas por travestis (VENEZIANO, 1991), o Dzi Croquetes era formado por treze homens que entravam em cena com figurinos e adereços femininos e glamourosos. O Dzi Croquetes formou-se em 1972 e surgiu num bar onde os integrantes comiam croquetes e falavam sobre o grupo americano The Croquettes. Integra-se ao grupo, em seguida, o bailarino americano Lennie Dale. Inicialmente, faz grande sucesso em São Paulo e no Rio de Janeiro com o espetáculo “Gente Computada Igual a Você”, de 1972, com números cantados, dublados e dançados (e como no Vivencial, com no “Repúblicas Independentes, Darling”), “costurados” por monólogos que narram as experiências de vida dos integrantes. Estes textos que fazem esta interligação, destacam-se pela ironia, duplo sentido e tom farsesco. 15 Como o Vivencial, O Dzi Croquetes explorava o pastelão, a caricatura, o deboche, a paródia, a ironia e o duplo sentido. Era essencialmente coletivo, trabalhando no formato de teatro de grupo. O Dzi Croquetes não era ligado a nenhuma instituição política, mas em 1973 é censurado pela ditadura e o grupo viaja para a Europa, onde faz muito sucesso. Marcante no grupo é que eles chacoalhavam com a sexualidade. Se perguntados se eram homens ou mulheres, respondiam que não eram nem um, nem outro, que eram gente. 15 As informações sobre o Dzi Croquetes foram extraídas da Enciclopédia Itaú Cultural, disponível em http://enciclopedia.itaucultural.org.br/grupo399377/dzi-croquettes, acesso em 31/12/2014. 66 O Vivencial era formado por homossexuais, heterossexuais, bissexuais e após a abertura do Vivencial Diversiones, em 1979, também por travestis. Propunha uma quebra nos conceitos tradicionais de gênero. Por isso os meninos e meninas do Vivencial se assumem como “vivecas”, termo que generalizava os intérpretes do grupo, e que talvez tenha surgido a partir do olhar feminilizado 16 do Vivencial. As feições visivelmente femininas tornaram-se uma marca do grupo. Como diz Suzana Costa, “O feminino era cultuado e cultivado por todos [...]. Vivencial era o toque feminino” (COSTA, 2014a). Olhando-se para o Vivencial superficialmente, será lugar comum achar que ele tem pulsão masculina, por ter sido sempre formado por mais homens do que mulheres (MELO, 2014a); (COSTA, 2014a). Mas transfixando sua identidade, percebe-se que sua postura liga- se ao respeito às diferenças propostas pelos intérpretes (advindas da marginalização, sexualidade ou posição social trazida por cada um deles), algo inspirado pela feminilização. Este foi um dos fenômenos decisivos para a construção da poética do grupo, na marca do corpo feminino, na atuação dos travestis e homossexuais e principalmente na ideia de refletir sobre a união de saberes (masculinos e femininos) para se trabalhar por um bem comum. Esta feminilização propunha um caráter libertário, num contexto que envolvia política e subjetividades das transformações pessoais. Desfaziam-se as divisões sexistas. Roberto de França, um intérprete do grupo, faz um relato sobre o Vivencial: “Fomos subversivos, anárquicos, mas fomos sérios. Fomos pedreiros, cozinheiros 17 , atrizes, atores, fomos mulheres” (FERRAZ; DOURADO; SILVA JÚNIOR, 2005, p. 99). O termo “mulheres” abrange toda esfera da identidade pessoal dos membros do grupo, como atores sociais e artistas, e da identidade móvel do próprio grupo. Esta posição estaria no espaço do Devir, por estar contraposta às identidades fixas ou impostas como a do homem, branco e heterossexual ou a do homem, nordestino e macho. A identidade seria flutuante, em construção. No Devir, não há homogeneização e se propõe o eterno retorno ao diferente. O Devir é um processo marcado por experimentação potente de 16 A Feminilização é um fenômeno onde traços femininos interferem e influenciam algum contexto. A Feminização acontece quando há aumento da presença feminina em algum contexto (BATISTA NETO; FREIRE, 2013). 17 Todos os artistas trabalhavam na manutenção do espaço físico do grupo, na casa de espetáculos, que era local de reuniões, ensaios e apresentações. 67 múltiplas intensidades. Não há devir majoritário, nem fixo e nem como sujeito físico. Devir é entrar em aliança, em ressonância com a diferença ontológica, ou seja, a sintonia de um ser com outro ser, deixar as intensidades passarem entre os corpos, numa dissolução de subjetividades identitárias. Um exemplo, seria o fluxo que se dá entre os corpos num ato sexual. São duas subjetividades que se unem neste momento. As identidades são dissolvidas no ato porque se interpenetram e ao mesmo tempo não deixam de ser identidades diferenciadas (GUATTARI, 1981). Era nesta perspectiva que se desenvolviam as relações no Vivencial. Não se trata de igualdade, em absoluto. Para Guattari, o discurso de igualdade é perigoso. No âmbito deste discurso, matam-se as diferenças (tão caras às identidades) e o estranhamento dos corpos, cuja sensibilidade, percebe o fugidio, que é a grande angústia humana. O devir é um conceito que produz subjetividades, é certo, mas vale lembrar também que a objetividade e o pragmatismo são essencialmente falocráticos. Não se trata aqui de peculiaridades relativas ao feminino ou atributos socialmente conhecidos como femininos, como a sensibilidade, zelo, cuidado, entre outros, mas de pensamentos e posturas feminilizadas. Havia uma natureza também feminina no Vivencial, não uma relação com delicadeza ou fragilidade, mas com a força subjetiva da mulher, com sua sabedoria. Para Ivonete, esta feminilização acontecia a partir de uma abertura para todas as propostas: “Mas apesar de ter poucas mulheres, com o Vivencial, o teatro pernambucano ficou mais feminino (MELO, 2014a). Ivonete e Suzana nos falam de traços femininos; “traços” aqui em seu sentido amplo, não só físicos, mas também intuitivos. Podemos deduzir, assim, que a feminilização não necessariamente deva partir de uma mulher, mas de qualquer pessoa ou contexto que apresentem sabedorias próprias femininas, “(...) o feminino inconformado com essa realidade que o alija, a procura de um outro mundo que só a mulher poderia compreender” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 50). Segundo Guilherme Coelho, mentor do grupo, os travestis do Vivencial Diversiones eram pessoas que tinham rompido com tudo, “seres cujas mentalidades já não abrigavam um resquício sequer de segmentos repressivos e que defendiam a liberação sexual em todos os aspectos, dentre tantas coisas” (COELHO apud BACCARELLI, 1994, p. 98). Os travestis vieram com as suas poesias marginais e o grupo, como tinha a proposta de abertura, os recebia e os capacitava. Abertura que é proposta da feminilização, onde todos se misturem 68 num universo de naturezas diferentes e que estas diferenças rendam ideias e novas propostas, que não se limitem às convenções masculinizadas e petrificadas durante os séculos. Guilherme Coelho denomina esta proposta como “arreganhamento” (COELHO apud BACCARELLI, 1994, p. 98). “Arreganhamento” para todas as linguagens e identidades, para o escracho e para a irreverência. Talvez não haja palavra mais vivencialesca do que “abertura”. A cultura pode e deve absorver aberturas para a construção de diversidades que brotam das subjetividades pessoais, grupais e sexuais. O feminino possui uma cultura e saberes próprios, que ao longo da história, foram desperdiçados. Só a partir da década de 1960 é que o mundo ocidental se tornou mais feminino: a sociedade passou a discutir as questões femininas, como a questão da inserção da mulher no espaço público, que era reservado para o homem, enquanto que à mulher cabia o espaço privado, que na verdade era uma forma de prisão. Assim como a questão do espaço, o direito da fala, o direito sobre o próprio corpo e outros pontos que patenteavam a misoginia e as relações de poder. No artigo “Feminizar é preciso por uma cultura filógina”, a historiadora Margareth Rago lembra-nos de Mayreder, que em 1905 escreve um ensaio intitulado “Crítica da feminilidade”, em que expõe a emergência do espaço feminino. Para ela, ele se fazia necessário porque os homens já teriam perdido sua identidade na modernidade, haviam perdido seus espaços de “guerreiros”, que eram seus modelos tradicionais. Os homens, por conta disso, “estariam se aproximando da forma de vida das mulheres e estas, estariam ocupando os cargos sociais e públicos que os homens haviam desertado” (MAYREDER apud RAGO, 2002, p.62). Luce Fabri acreditava que as mulheres poderiam contribuir de forma diferente justamente porque não tiveram as experiências das guerras e dos governos e por terem desenvolvido uma “cultura salutar, ligada aos cuidados com a vida, com a organização doméstica e com a sobrevivência das crianças e velhos”. (FABRI apud RAGO, 2002, p.63). A epistemologista Sandra Harding observou a focalização extrema na masculinidade, lembrando que os homens não são os únicos habitantes do planeta, embora o masculino tenha sido instituído culturalmente. Para Harding, centrar a atenção exclusivamente nas necessidades masculinas, nos seus interesses, desejos, concepções, garante apenas “uma compreensão distorcida e parcial das práticas sociais” (HARDING apud RAGO, 2002, p.64). 69 O que Rago sugere, reunindo reflexões de diferentes pensadores, é despertar para a necessidade da feminização no mundo, visto que esta ficou fora dele por longos séculos. A feminização sugere outras ideias que complementariam as vigentes. Talvez Mayreder, Fabri e Harding falassem da “natureza feminina”, termo usado por Rago. Rosa nos inspira sobre “a urgência da feminização no mundo, possível através da valorização dos aportes culturais experienciados pelas mulheres ao longo do tempo” (ROSA, 2013, p. 79). Albuquerque Júnior (2007), nos faz uma belíssima reflexão envolvendo o binômio feminização/feminilização. O autor, que faz uma relação entre história e literatura, defende esta última como um campo fértil, lugar de reflexões para se fazer história. Ele pensa esta relação como uma questão de gênero. A história seria o masculino, discurso racional e de poder, do domínio e da conquista, enquanto que a literatura, o feminino, estaria mais identificada com as paixões, com a sensibilidade, com a subjetividade da existência, com a prevalência do intuitivo. A história, como o homem, iria para a rua e a literatura, como a mulher, ficaria em casa, no seu mundo interior, “femininamente preocupando-se com a alma” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 49). A história, como os homens, teria uma visão limitada de mundo, apesar de percorrê-lo e a literatura busca incessantemente outros olhares, que “buscam um mundo que ainda estaria por construir, pois só vêem ruínas onde os homens enxergam construção” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 49). E o Vivencial buscou incessantemente outros olhares, como enxergá-lo pelo ângulo da feminilização, pois ele sempre será instigador de reflexões (FIGUEIRÔA; BEZERRA; SALDANHA, 2011). Feminilizando-se, os intérpretes do Vivencial criaram sua linguagem cênica onde propunham ruptura, iconoclastia, numa proposta fugidia dos padrões, transitória e fugaz. Seria o que Albuquerque Jr. encontra no olhar feminino, a capacidade de enxergar além, o que está limitado na masculinidade, engessada em seu poder. O Vivencial teve a grandeza de promover uma cultura filógina, abrindo uma brecha para a feminilização no teatro. Não só em seus atores, mas também em seus espectadores, que se reconheciam na feminilização do grupo ou a compreendia sem intolerâncias, numa comunicação direta e sincera entre ator-público. Conseguiram, assim, denunciar as práticas descomedidas do regime ditatorial. A arte tem seus métodos, seus mecanismos de driblar o sistema. A proposta anárquica, a sublimação das posturas corporais, a despreocupação com os gêneros nas verdades dos atores, foram marcas do Vivencial em seus anos de atuação. O 70 Vivencial viveu metade da ditadura, os dez últimos anos da repressão. Quando ela acabou, dissolveu-se também o grupo porque seu trabalho era feito de contracultura, de subversão e transgressão, imersas dentro de uma legitimidade ideológica e cultural, de irreverência e de transfiguração de lixo em beleza. O Vivencial quebrou regras impostas, acionou escapes de libertação para a sexualidade e criou uma comunidade, um gueto cultural onde todos... ou todas? Chamemos de “vivecas”, termo criado pelo grupo e como gostavam de ser chamad(o)s (notem que no termo “viveca” a feminização se sobressai na finalização da palavra com o artigo “a”). Mas é importante salientar que era a feminilização e não o gênero feminino que prevalecia, num espaço onde o que importava eram os ideais que os moviam e não os seus sexos biológicos ou opções sexuais. A logomarca do Vivencial, ironicamente, eram duas pernas abertas, de mulher, formando o “V” de Vivencial, significando “Vinde a mim todos”, pois todos podiam participar desta abertura. Sim, não existe palavra mais vivencialesca que “abertura”. Um arreganhamento, uma feminilização que abria-se sem pudor, como frutos maduros que se deixam abrir para que sejam vistas suas sementes. Imagem 22: Logomarca do Vivencial: a letra “v”, ironicamente, são duas pernas abertas de mulher, significando “Vinde a mim todos”. Arquivo pessoal de Guilherme Coelho. 71 2.1.1 O VIVENCIAL POR IVONETE “Os corpos no Vivencial tinham a mesma força. Tudo o que se fazia no grupo tinha uma força só”. Ivonete Melo Ivonete Melo nasceu num engenho, teve uma infância pobre. Quando o pai morreu, a família paterna tomou de sua mãe tudo o que tinham e ela, sua mãe e os dois irmãos foram para o Recife recomeçar a vida. Morou na comunidade do Bode, bairro do Pina, subúrbio do Recife, numa palafita. Mas teve o privilégio de estudar num colégio onde a arte era tratada com prioridade. Foi o seu primeiro contato com o teatro e a dança. A menina Ivonete também participava do Grêmio do colégio, onde eram discutidas reivindicações políticas em prol do próprio ambiente escolar. Ivonete participava de todo esse processo cultural e politizado. Aos 15 anos começou a trabalhar e ao largar do emprego, todos os dias, tomava um táxi, ia trocando de roupa dentro do táxi mesmo para chegar a tempo no curso de ballet, que fazia no Teatro de Santa Isabel. E a mãe que tinha planos para ela ser freira... Na juventude, participava de passeatas promovidas contra o regime: [...] eu estudava no Instituto de Educação, eu conhecia o trabalho do Teatro Popular do Nordeste, as perseguições que eles sofriam. As minhas amigas do colégio e do trabalho que participavam das passeatas, que se envolviam com militância fugiram para o Rio de Janeiro para morar numa quitinete com vinte, trinta pessoas, fugindo, se escondendo, entendeu? Então tinha uma noção, mas não tinha sentido na pele nada disso. Mas eu passei a participar das passeatas por afinidade com as causas, via nas passeatas, quando a polícia ia atrás dando cacetada em todo mundo. Eu ficava assustada e corria, mas nunca fui pega (MELO, Ivonete. 2014a). Fez mais de vinte anos de ballet e teve contato também com a dança moderna, o jazz e o popular. Quando passou a ensinar dança, um aluno lhe falou sobre os encontros de um grupo que estavam acontecendo aos sábados na Ribeira, em Olinda, perguntando se ela poderia ministrar um trabalho de corpo. O grupo era o Vivencial. Ivonete conta que depois do primeiro contato, se encantou e não saiu mais. Diz com um semblante de riso no rosto que passou por vários laboratórios para o que ela chama de “virar no avesso”, ou seja, ser atriz de um grupo tão transgressor. O termo “virar no avesso” traduz bem a proposta vivencialesca: fugir dos padrões convencionais. O contrário. O escracho. 72 O Vivencial, ao seu modo, produzia um trabalho de politização com seus membros, advindo do trabalho social que Guilherme Coelho trouxera de quando era monge beneditino (BACCARELLI, 1994). Havia um processo de politização, que para os integrantes menos informados, acontecia a partir da criação artística. Para alguns membros, não era simples explicar [...] o que o momento político estava produzindo. Mas isso era um grande processo de aprendizado. E depois, no processo de criação, eles começavam a criar tão bem que no próprio processo de criação eles começavam a entender, a se conscientizar politicamente. Mas não chegava de imediato. Era um processo longo. Acho que alguns nem acreditavam que a ditadura estava produzindo certas coisas (MELO, Ivonete. 2014a). Mesmo já com certa postura politizada, adquirida por afinidade e exercida primeiramente no colégio e posteriormente participando de passeatas que na época reivindicavam o direito da democracia, a atriz fortaleceu esta politização ao entrar no Vivencial: Aí (sic) foi quando eu entrei no Vivencial e formando o quebra-cabeça e passando a ter outra consciência. É porque eu fazia ballet e o ballet é alienador, em todos os sentidos, aliena o corpo... Havia um estereótipo para a bailarina clássica, não podia sentar num bar para beber, não podia usar o cabelo encaracolado, meus programas eram exposições de pintura, sinfônica, ópera, entendeu? Aí quando eu entrei no Vivencial mudou tudo. Passei a ter outra visão. Transgredi (risos) Aí (sic) passei a juntar o que me atraía naquelas passeatas, que eu não sabia de fato, como a coisa era, no fundo, no fundo, como era tudo aquilo, só superficial. No Vivencial foi que eu vim saber exatamente como funcionava tudo, a censura, os militares. Eu passei a ter outro conhecimento social, político e cultural (MELO, Ivonete. 2014b). Ivonete lembra de que eram proibidos de se apresentarem nos teatros convencionais e apresentavam-se na frente de igrejas, nas ruas, ao ar livre. Mas o Vivencial era desafiador. E tão “pelo avesso” que houve na época um concurso de teatro amador, onde só poderiam participar espetáculos cujos roteiros tivessem início, meio e fim. E o Vivencial trabalhava com colagens, nem sempre com roteiros lineares, além de teatralizarem diversos tipos de textos, como trechos de jornais, revistas e anúncios de cartomantes (FERRAZ; DOURADO; SILVA JÚNIOR, 2005). Seu primeiro espetáculo no Vivencial foi “O Pássaro encantado da gruta do Ubajara”, de 1975, no qual não só dançava, mas já interpretava algumas falas. Jomard Muniz de Brito logo a convidou para fazer um texto seu, “Nos abismos da pernambucália”, no qual era a 73 única mulher do elenco, trabalhando ao lado de cinco atores. Ivonete relata também que o grupo tinha uma língua própria e nas conversas, as outras pessoas não os entendiam. Estas gírias vivenvialescas também marcaram a identidade do Vivencial. O Vivencial não tinha número fixo de integrantes, nunca se sabia quantos componentes tinha no grupo, havia uma abertura muito forte neste sentido, pois todos eram aceitos (BACCARELLI, 1994): O grupo... não posso dizer que tinha vinte, tinha trinta, tinha cinqüenta... tinha cem. Quem chegasse era bem vindo. Podia chegar quem quisesse, podiam ser todas as minorias sexuais, raciais, todas... analfabetos, intelectuais, podia chegar quem quisesse que seria bem vindo. Todas essas pessoas já falavam das suas vivências e a gente aproveitava todas essas vivências (sic) para os nossos espetáculos (MELO, Ivonete. 2014a). As pessoas chegavam por motivos diversos e algumas ficavam, outras não. O motivo maior de tanta atração dos jovens pelo Vivencial era o espírito de liberdade (tão caro à época) vivenciado pelo grupo: [...] Éramos um grupo que fazia coisas que agradavam às pessoas daquela época, que eram socialmente reprimidas, os jovens daquela época. Então a cada dia chegava mais gente. Mas tinha muita gente que não entendia o momento político e aprendiam com o tempo, com os ensaios, com os laboratórios. Chegavam porque achavam bonito, porque era legal, era engraçado fazer aquelas coisas loucas, atuar na rua... então eles chegavam por isso (MELO, Ivonete. 2014b). O mesmo fenômeno acontecia com o espectador, que no território vivencialesco encontrava tamanha liberdade: [...] O público se identificava muito porque a gente dizia o que eles queriam dizer e não podiam. As pessoas iam pra lá se divertir e se encontrar. Fazer lá o que não podiam fazer fora. Também ia muita gente da alta... eles bebiam, cantavam, dançavam, se agarravam com as bichas (MELO, Ivonete. 2014a). O espaço vivencialesco também funcionava como escape, para um espectador sufocado pelo sistema ditatorial vigente. Ivonete diz que as “vivecas” gostavam mesmo era de protestar. Lembra que não eram aceitos em alguns teatros tradicionais. Certa vez, o Teatro de Amadores de Pernambuco, grupo muito tradicional e o maior representante do teatro acrítico, canônico e higienizado da época (FIGUEIRÔA; BEZERRA; SALDANHA, 2011), estava em cartaz. Então as vivecas se travestiram, os meninos entraram com vestidos longos, chiques; puseram chapelões com 74 plumas, pagaram ingressos e sentaram na primeira fila. E as pessoas tentando ver o espetáculo e não podiam, pois os imensos chapéus impediam toda a visão do público. Era uma dentre tantas formas de protesto criadas pelo Vivencial para enfrentar a intolerância para com o diferente, o marginal e a resistência contra o regime, vinda da corrente de direita. 18 Ivonete atuou no Vivencial como atriz de 1975 a 1980, nos seguintes espetáculos de teatro: “O Pássaro Encantado da Gruta do Ubajara” (1975); “Nos Abismos da Pernambucália” (1975); “Vivencial II” (1976); “Sobrados e Mocambos” (1977); “Viúva, porém honesta” (1977); “Repúblicas Independentes, Darling” (1978); “All Star Tapuias” (1980). Imagem 23: Ivonete Melo no monólogo “Verão de 92”, quadro do espetáculo “Repúblicas Independentes, Darling”, de 1978. Arquivo pessoal de Ivonete Melo. 18 Segundo Reinaldo de Oliveira, filho de Valdemar de Oliveira e membro do TAP, [...] O Teatro de Amadores de Pernambuco sempre procurou ficar distante dos problemas políticos. Jamais fez do seu teatro um teatro engajado em qualquer movimento e isso nos pareceu muito bom [...]. Isso foi sempre uma filosofia adotada por nós e que não se alterou de modo nenhum com o movimento político de 1964 (OLIVEIRA apud BACCARELLI, 1994, p.25). 75 Imagem 24: Da esquerda para a direita: Suzana Costa, Américo Barreto, Walternandes Carvalho e Ivonete Melo em “Repúblicas Independentes, Darling”, 1978. Arquivo pessoal de Ivonete Melo. Imagem 25: Ivonete Melo em “Viúva, porém honesta”, de 1977. Arquivo pessoal de Ivonete Melo. 76 Imagem 26: Solilóquio de Ivonete em “Repúblicas Independentes, Darling” (1978), momento no qual a atriz narrava suas vivências. Arquivo pessoal de Ivonete Melo. 2.1.2 O VIVENCIAL POR SUZANA “O Vivencial foi o abrir das cortinas e a festa começou”. Suzana Costa Suzana foi um dia convidada por um primo para assistir a um espetáculo do Vivencial, que era o “Vivencial I”, de 1974: Eu assisti aquilo e disse [...] eu quero fazer isso. Era uma coisa completamente diferente de tudo o que eu tinha vivido até então. Eu era certinha... Boa viagem (bairro nobre do Recife)... ballet... coisas assim bem mais comportadas, né? (sic) (COSTA, Suzana. 2014a). 77 Suzana recorda da diferença entre o Vivencial e o Vivencial Diversiones. Segundo ela, na fase do Vivencial, o grupo se preparava para um espetáculo, através de um processo e no Vivencial Diversiones, com a abertura da casa de espetáculos, era outro pique, mais rápido, mais intenso, eram vários horários, tinha bar, shows diversos, não era só a ludicidade do teatro, tinha muita coisa para ser administrada. Chegaram a morar juntos, o que era comum nos anos de 1970, as comunidades, numa época em que os jovens ansiavam por liberdade. Este casarão onde moravam atraía muitos jovens e esta rotatividade de pessoas acabava por mesclar o modo de vida dos integrantes com suas apresentações: [...] A casa onde o grupo morava em Santa Tereza, Olinda, era ponto de encontro, de debates e contava com uma população flutuante que não atuava no palco, mas comia e dormia com os integrantes. Eles saíam juntos e fantasiados pelo Carnaval, se apresentavam em bailes, vernissages, galerias [...] (FIGUEIRÔA; BEZERRA; SALDANHA, 2011, p. 154). Os trabalhos no Vivencial Diversiones eram divididos e a administração do bar ficava sob responsabilidade de Suzana. Haviam poucas mulheres no grupo, segundo ela, o que é confirmado por Ivonete: “[...] se for elencar três atrizes fixas do Vivencial, eu digo: eu, Madalena (Alves) e Suzana” (MELO, Ivonete. 2014b). Há que se citar também Auricéia Fraga, que embora tenha feito dois trabalhos apenas com o grupo, teve participação importante. Para Suzana, “[...] eram poucas mulheres, eram tantos homens que talvez por isso nos chamem de fálicas” (COSTA, Suzana. 2014a). As mulheres atuavam diretamente na concepção das cenas, visto que todos de certa forma improvisavam, pois as impressões dos intérpretes eram deixadas nos espetáculos. Muitas vezes, cada um copiava as suas falas e ia para a cena, por não haver texto impresso. Suzana também nos diz que havia muita cumplicidade, todos concordavam por um bem comum. Tanto que o primeiro prêmio que receberam, do SNT (Serviço Nacional do Teatro), que era para montar “Sobrados e Mocambos” (1977), eles acordaram em guardar o dinheiro, que foi parte do valor que compraram o terreno para construir o Vivencial Diversiones. E montaram este espetáculo na forma vivencialesca de ser: “[...] fizemos o espetáculo como a gente sempre fez: indo atrás, pedindo, família ajudando, amigos. Só a madeira do cenário foi comprada, mas o resto foi tudo confeccionado por nós mesmos (COSTA, Suzana. 2014a). 78 Também era Suzana quem negociava com a censura. “Eu que ia levar os textos. Aí (sic) ia lá buscar, aí (sic) vinham os cortes e eu negociava aquilo” (COSTA, Suzana. 2014a). Suzana conta que sabia discutir, pedir, negociar. Esta é uma mostra de que as mulheres do Vivencial não eram fálicas, como pensam alguns, mas fortes. Administrar o bar, negociar com a censura. Teoricamente serviços masculinos, mas feitos com competência por Suzana. E com muita feminilidade. A partir das falas da atriz, fica claro que não havia nenhuma fragilidade das mulheres vivencialescas em relação aos homens. Elas não eram fálicas, como propagam os mesmos discursos em relação às militantes na ditadura ou até atualmente, ao se referirem às mulheres que ousam mostrar qualquer tipo de força, que recebem denominações depreciativas como machonas. Segundo a atriz, nunca ficou claro o motivo de ser a responsável pela negociação com a censura. Há a possibilidade de ser por Suzana apresentar uma personalidade serena, um comportamento mais tranquilo que os demais integrantes e por sua posição social: “É... eles eram mais revoltados (risos) [...] Mas eu sabia conversar e eles (da censura) sabiam que eu era uma menina bem nascida, estudada, não seria um problema, mais um problema pra eles” (COSTA, Suzana. 2014b). Essa personalidade iria interferir no seu modo de interlocução com a censura e com a sua forma de apresentação: [...] eu acho que porque eu era engraçadinha, sabia falar, podia negociar, discutir, pedir. Porque era todo mundo muito “pintoso” (sic), entendeu? Tinham uns cabelos deste tamanho! usavam umas calças abertas na lateral. Havia um modo de viver que não era só na cena. Todos do grupo viviam “montados” [...]. Normalmente eu falava diretamente com o chefe [...]. Eu acho [...] que havia uma permissão [...] porque não era a política partidária, que era isso que eles queriam bloquear. E o Vivencial era pra tudo, era liberdade geral, pra vida. Acho que por isso que não sofríamos tanta perseguição, porque não era partidário, porque a gente falava de liberdade de expressão, de corpo (COSTA, Suzana. 2014a). Sobre esse modo de viver dos componentes do grupo, era uma forma de ser dentro do Vivencial que se encontrava na esfera do não-convencional, num modo de vida que se confundia com os seus trabalhos (FIGUEIRÔA; BEZERRA; SALDANHA, 2011). As vivecas não eram exatamente “as vivecas” só na cena, mas no cotidiano, nos modos de vestir, de comportamento, no próprio linguajar, já comentado por Ivonete. O cênico misturava-se com o 79 cotidiano. A respeito disso, Suzana nos conta que o grupo fazia happenings 19 para divulgar as apresentações ou simplesmente para fazer uma espécie de laboratório, experimentando figurinos, maquiagem, possibilidades de recursos corporais a partir de onomatopéias e movimentos. Algumas pessoas se juntavam a eles, outras observavam. Feitos muitas vezes nas ladeiras de Olinda, os experimentos também não eram bem vistos pelas pessoas, que os taxavam de marginais, acontecendo, algumas vezes, problemas com a polícia e espanto entre os passantes (FIGUEIRÔA; BEZERRA; SALDANHA, 2011). Suzana também nos fala de como o Vivencial “escrachava” com os grupos mais conservadores da época, como o TAP, como visto na fala de Ivonete. Tinham um jeito sem cerimônia de contestar, de pôr em discussão grupos ou pessoas que se conservavam na extrema direita, por exemplo, ou que se mostravam inertes ao regime. Ela nos lembra que, na montagem de “Viúva, porém honesta”, de 1977, o programa do espetáculo era um jornal de um dos personagens da peça. O grupo aproveitou este programa/jornal, intitulado “A marreta”, para trazer críticas aos grupos que para eles tinham linguagens arcaicas, aos que se mantinham às custas do sistema burguês e à burguesia em geral. Numa dessas críticas, escrita sob o pseudônimo de Doroty Dalton, “[...] personagem da peça vivido por Guilherme Coelho, na verdade escrito por Cadengue (Antônio Cadengue, colaborador do grupo), com contribuições de outros participantes da montagem” (FIGUEIRÔA; BEZERRA; SALDANHA, 2011, p. 171), intitulada “Teatro em Re-vista”, o Vivencial critica o Teatro Hermilo Borba Filho, grupo de Marcus Siqueira 20 (conceituado diretor da época em Recife e frequentador da alta sociedade, e que, segundo Suzana, por vezes tinha seu grupo mantido por mecenato), que incomodado com o escracho feito pelo Vivencial com a sua patronesse, colocou em seu teatro (espaço de trabalho), fotos dos integrantes do Vivencial com umas cruzinhas em cima, onde se lia: “Esse grupo fede”! Para a atriz, com o início do Vivencial Diversiones, com a abertura da casa de espetáculos e com a nova proposta dos shows da madrugada, o Vivencial perdeu sua essência. Era, para ela, algo tão mais transgressor, estes shows na época, que o público os frequentavam 19 Os happenings, que surgiram nos anos de 1960, caracterizavam-se pela improvisação e pela imprevisibilidade, com a participação direta ou indireta do espectador. Sobre o assunto ver “Estilos, Escolas e Movimentos”, de Amy Dempsey, 2010. 20 Marcus Siqueira foi o criador do Teatro Hermilo Borba Filho, que atuou de 1976 a 1981, quando ele faleceu. Prezava pelo despojo, centrando-se na figura do ator, com inspiração brechtiana, como veremos a seguir. 80 com maior assiduidade do que no horário das 21h, da sessão de teatro. Este foi o fato que levou Suzana a deixar o grupo, incomodada com a dispersão do espectador, que preferia os shows de streap tease e dublagens, ao teatro. Como a atriz não fazia estes shows, decidiu deixar o Vivencial e trilhar outros caminhos: “[...] mas foi lindo o meu início, que foi o Vivencial” (COSTA, Suzana. 2014a). A atriz fez com o Vivencial “Genesíaco” (1974); “O Pássaro Encantado da Gruta do Ubajara” (1975); “Vivencial II” (1976); “Sobrados e Mocambos” (1977), no qual ganhou o Prêmio Espontâneo Hermilo Borba Filho de Melhor Atriz Coadjuvante; “Repúblicas Independentes, Darling” (1978) e “A loja da Democracia” (1979). Imagem 27: Jornal “A Marreta”, programa do espetáculo “Viúva, porém honesta”, de 1977. Arquivo pessoal de Guilherme Coelho. 81 Imagem 28: Coluna de Doroty Dalton, “Teatro em Re-Vista”, parte do programa do espetáculo “Viúva, porém honesta”, de 1977. Arquivo pessoal de Guilherme Coelho. Imagem 29: Suzana Costa em “Repúblicas Independentes, Darling”, de 1978. Arquivo pessoal de Suzana Costa. 82 Imagens 30 e 31: Fotos de Suzana para uma das exposições promovidas pelo grupo. O efeito destas fotos é a imagem da atriz que se mescla ao espaço marginal, no caso, a comunidade da “Ilha do Maruim”, localidade pobre de Olinda. Arquivo pessoal da atriz. 83 2.2 O TEATRO HERMILO BORBA FILHO (THBF) “O THBF era um respiradouro. A opressão do lado político era tanta durante a ditadura e lá no Hermilo a gente respirava possibilidades, contestação, transgressão”. Stella Maris Saldanha O THBF, antes Teatro Novo do Recife, foi fundado em 1968 por Marcus Siqueira, com estudantes e jovens artistas. Estreia no mesmo ano com “O Doente Imaginário”, de Moliére, dando “início a uma sequência de montagens capazes de atrair a atenção do CCC, o temido Comando de Caça aos Comunistas” (FIGUEIRÔA; BEZERRA; SALDANHA, 2011, p. 89). Em 1976 Marcus Siqueira inaugura nova sede do Teatro Novo do Recife, acomodando-se num sobrado no Varadouro em Olinda e o grupo passa a se chamar Teatro Hermilo Borba Filho, em homenagem ao encenador, dramaturgo e romancista Hermilo Borba Filho (LEITE, 2012), um dos criadores do Teatro Popular do Nordeste (TPN) 21 , o qual Marcus Siqueira tinha muita admiração. No hall, nos lembra João Denys Araújo Leite, a célebre frase de Cacilda Becker: “Não me peça de graça a única coisa que tenho para vender”. Como comum nos anos de 1970, o espaço também servira de moradia para alguns integrantes do grupo (LEITE, 2012). O THBF posicionava-se ideologicamente dentro do contexto em que vivia, questionando-o, com um teatro participante, como arma de conscientização e politização, mas destinado sobretudo ao divertimento, como propunha Bertolt Brecht (BRECHT, 1978). Centrava-se na figura do ator. Este, entenderia que, neste contexto, era interessante não aceitar calar para não consentir. Marcus Siqueira pretendia formar atores críticos, conscientes de seu papel social, que prezassem por justiça e liberdade: “Liberdade, liberdade22 que tanto inspirou e respirou os desejos e as estéticas de todos os trabalhadores do teatro, em tempos de 21 O Teatro Popular do Nordeste foi fundado por Hermilo Borba Filho, Ariano Suassuna, Capiba e Leda Alves entre outros, em 1960. Num primeiro momento, concentra-se no fortalecimento da dramaturgia brasileira, principalmente a nordestina. Depois, se opunha fortemente ao regime e se fundamenta na estética de Bertolt Brecht e em espetáculos populares de Pernambuco, entre eles o bumba-meu-boi. Sobre o grupo, ver a tese de doutorado “Fora de cena, no palco da modernidade: Um estudo do pensamento teatral de Hermilo Borba Filho” de Luís Augusto da Veiga Pessoa Reis, Universidade Federal de Pernambuco, 2008. 22 Referência à peça Liberdade, Liberdade de Flávio Rangel e Millôr Fernandes. 84 ditadura” (LEITE, 2012, p.150). Desenvolver um teatro dentro e pelas relações sociais, como meio de denunciar as injustiças. Com caráter eminentemente grupal, seus integrantes aprenderam a exercer diversas funções, como no Vivencial, da faxina ao trabalho direto no palco. Era comum nos anos de 1970 as sedes dos grupos teatrais virarem comunidades, territórios livres para todos os tipos de atividades, como acontecia no Vivencial Diversiones. A sede do THBF, num sobrado em Olinda, abria-se para seminários, encontros literários, concursos de dramaturgia e os cursos e oficinas, que eram seu carro-chefe. Em todos os horários do THBF, haviam grupos de pessoas de idades e classes sociais diferentes, pesquisando e aprendendo teatro. Muito criticado por ter encenações “mal-cuidadas”, Siqueira na verdade, optou pelo despojo para “palmilhar as entranhas de uma arte que atendia a uma espécie de „encomenda social‟ do momento” (LEITE, 2012, p.136); e também um despojo que livrasse o ator dos truques, onde este não alcançasse muletas para esconder possíveis fragilidades, ou seja, opção pela crueza, sem artifícios dos elementos cênicos, para que a interpretação fosse o ponto alto do espetáculo. Tal despojo levava o grupo a ser questionado se ele se encontrava na esfera amadora ou profissional. O THBF “[...] tinha a qualidade e responsabilidade dos profissionais e a leveza e a irresponsabilidade criativa dos amadores”, (LEITE, 2012, p. 161). Marcus, um homem “Inquieto, briguento, agressivo, terno, amorável, explosivo, dispersivo, sovina, esbanjador, esquerdista e freqüentador da fina sociedade” (BACCARELLI, 1994, p.70), acusado assim até mesmo por ex-membros do seu grupo. Marcus Siqueira prezava por uma formação intelectual rigorosa dos seus atores. Não era permitido participar de outros grupos e até mesmo as amizades fora do grupo foram proibidas. Em 1976 oito integrantes deixam o THBF, “com a alegação de que as suas aspirações libertárias não se coadunam com o „despotismo‟ e „autoritarismo‟ do diretor” (In: ENCICLOPÉDIA Itaú cultural de Arte e Cultura Brasileiras, 2014). O mesmo diretor Marcus Siqueira, que a classe artística pernambucana assistira atônita à sua prisão em 1965, “acusado de vínculo com militantes trotskistas, permanecendo confinado em quartéis do exército durante um mês” (FIGUEIRÔA; BEZERRA; SALDANHA, 2011, p. 79). 85 Com a saída de oito integrantes, o THBF se remonta e monta em 1977 “O Santo Inquérito”, de Dias Gomes. Sobre esta montagem, Marcus Siqueira diz que O intimismo físico do palco e plateia até ajuda a concepção épica da peça O Santo Inquérito. O público, durante todo o tempo do espetáculo, permanece consciente de que está assistindo a uma representação teatral. Ainda sobre a montagem, ela é mais antiaristotélica do que se possa imaginar. Com esse trabalho continuamos o aprofundamento no sentido de cada vez mais nos aproximarmos de um teatro despojado, sem truques, onde a intenção é levar o público a pensar e não levá-lo a um estado de transe emocional. Isso não significa que desprezamos o valor da emoção, mas apenas queremos da parte dos atores e da plateia, uma emoção crítica – o espírito brechtiano do teatro (SIQUEIRA apud COUTINHO, 1977, p. 1). Nesta época dá-se início ao curso regular de teatro do THBF. Stella Maris Saldanha se matricula no curso. No ano seguinte o grupo encena “Os fuzis da Senhora Carrar”. Mais uma vez o trabalho do ator é mais valorizado do que os outros aspectos cênicos visuais, obrigando- o “a atuar como sobre um poema cru” (LEITE apud FERRAZ; DOURADO; SILVA JÚNIOR, 2005, p. 26). Esta montagem é considerada um dos melhores espetáculos de 1978 pelo Serviço Nacional de Teatro. Nela, a menina Stella, faz a Sra. Carrar, seu primeiro espetáculo adulto, com apenas dezoito anos. “Só Marcus mesmo para me dar este personagem aos dezoito anos...”, me confidencia Stella em entrevista (SALDANHA, 2014a). Nesta montagem, o elenco ficava disposto na última fileira dos bancos do teatro, os atores entravam em cena e quando retornavam, ocupavam o último banco. Assim, o elenco via o que se passava em cena e na plateia. Em alguns momentos a fala de algum personagem era repetida por todo o elenco, com a cena congelada, para ser enfatizada. Outro recurso brechtiano era o uso de máscaras que provocavam o distanciamento entre ator e personagem e ator e público e o uso de luzes acesas durante todo o espetáculo. “Os fuzis da Senhora Carrar” foi motivação para deixar escapar um grito sufocado, pelos anos difíceis que ainda não haviam acabado (LEITE, 2012). Aos dezenove anos, Stella representa a personagem Amanda em “Um grito parado no ar” de Gianfrancesco Guarnieri, de 1979, que é um metateatro. Ficção e realidade se perfuram, ante as dificuldades dos personagens da peça e dos atores do THBF, como as financeiras, a falta de público, as dificuldades de querer dizer algo através do teatro e serem impedidos pelo momento histórico. Um grito que se cristalizara e teimava em não explodir. A personagem de Stella, ao improvisar uma prostituta, fica com os seios à mostra, para provocar 86 os demais atores da ficção. O pai de Stella, o Sr. Saldanha, que estava na plateia, levanta-se neste momento da cadeira indignado, quando a mãe de Stella puxa-o e o recoloca no lugar. Ao término do espetáculo, o pai da atriz procura o mentor do grupo para tomar as devidas satisfações, e por pouco, por ser impedido por pessoas presentes, não usa de violência física por ver sua filha tão jovem ser exposta daquela forma. O Sr. Saldanha procura a polícia federal para pedir a proibição do espetáculo, mas não consegue porque a filha já é maior de idade. O pai da atriz pretende acabar com o espetáculo com um revólver. Stella desafia o pai, pretende dar o espetáculo de qualquer jeito: “eu darei o espetáculo e ele terá que atirar em mim” (SALDANHA apud LEITE, 2012, p. 179). Amigos intervêm no caso e o pai de Stella escolhe por acatar o desejo da filha. Esta história é aqui trazida para traduzir um pouco a personalidade forte de Stella que, aos dezoito anos, interpreta com sucesso a Sra. Carrar e aos dezenove desafia o pai, num período tão conturbado, no qual a mulher ainda buscava o poder sobre seu próprio corpo, optando pelo teatro, pela importância cênica daquela nudez no espetáculo. 2.2.1 O RESPIRADOURO DE STELLA Stella Maris Saldanha chegou aos 16 anos ao THBF. O curso iria trabalhar pedagogicamente a poética de Stanislavski. Um curso pontual, curso de férias, com duração de um mês. Ela diz que foi procurar o curso porque sua alma já havia escolhido o teatro. Segundo Stella, as montagens pedagógicas do THBF eram feitas com os alunos dos cursos, montando textos proibidos e discutindo-os, sem precisar passá-los pela censura (não iam para a censura justamente por serem didactológicos, no sentido de as montagens serem desenvolvidas por alunos), era uma estratégia para driblar os censores. Esta era uma posição de afronta, visto que no THBF passaram cerca de duzentos jovens que frequentavam o espaço para estudar, fazer teatro e discutir política. Marcus Siqueira aproveitava os alunos que se destacavam no curso, os convidando para os trabalhos do grupo. O que aconteceu com Stella, que foi convidada para fazer “Pluft, o fantasminha”, de Maria Clara Machado. Marcus Siqueira pretendia formar um núcleo de estudos para o teatro infantil dentro do THBF. Ao término da temporada deste espetáculo, a atriz contava então com 17 anos, quando Marcus Siqueira anunciou que montaria “Os fuzis da Senhora Carrar”, de Bertolt Brecht e lhe disse que faria a personagem principal, a Sra. Carrar, 87 mesmo com tão pouca idade. Mas Stella diz que tinha uma tal confiança nele, que acreditava tanto no trabalho dele, que não hesitou diante do desafio. Stella nos lembra que os pressupostos de Brecht eram a base do grupo. Para ela, “Os fuzis da Senhora Carrar”, sua primeira experiência com a poética de Brecht, é a peça do dramaturgo que mais rompe com seus próprios pressupostos, por apresentar unidade de tempo e de espaço. Seria a peça mais “aristotélica” de Brecht. Segundo a atriz, Marcus Siqueira radicalizou Brecht nesta montagem, enfatizando os elementos brechtianos, como o uso de máscaras e do coro; na eliminação de luz cênica, usando luz branca e ressaltando a distância entre ator/personagem e a proximidade entre ator/ público, inserindo o elenco na plateia. A atriz entende a forte ligação do THBF com Brecht como um processo intimamente ligado a “uma profunda identificação política [...]” (SALDANHA, 2014a), apostando na arte como “instrumento de transformação social, política e poética” (SALDANHA, 2014a). Segundo ela, no grupo não era permitido um ator desinformado, intelectualmente ou politicamente. Era preciso ser um sujeito político na vida e no teatro. Também por isso, as leituras dos textos eram exaustivas. Só após a compreensão dos pontos de vista dramatúrgico, poético, social e político, é que se iniciava a marcação do espetáculo, sem haver uma transmutação, no sentido de a atriz personificar a personagem, mas estar a serviço desta personagem. Exercício de doação, de intelecto, mas não catártico. A pobreza, por condição, foi metamorfoseada em recurso cênico. Eis aqui mais uma proposta do THBF se assemelhando à vivencialesca: a falta de recursos financeiros sendo superada por soluções como a reciclagem, por exemplo, passando a fazer parte da poética do grupo. Os figurinos de “Os fuzis da Senhora Carrar”, foram um dos elementos cênicos reciclados no grupo, por exemplo. Mas o THBF rejeitava propositalmente a opulência e excesso, buscando a essência do ato cênico. A pobreza de recursos no THBF, que era um fato, é diferente da proposta no grupo quanto ao despojo do ator. Este tipo de “pobreza” trabalhava o intérprete para lidar com a falta de elementos cênicos que pudessem disfarçar possíveis falhas na interpretação. Estes elementos na verdade deveriam realçar a interpretação e não maquiá-las. O que, na personalidade de Marcus Siqueira, significou para outros despotismo, para Stella traduziu-se em um ser imperativo, um homem extremamente determinado, de natureza 88 e personalidade fortes; temperamental e radical em alguns aspectos, como o fato de não admitir comportamentos relapsos por parte de algum membro do grupo. Poderia se supor, pela sua fama de déspota e intolerante, que o diretor do THBF teria tido postura machista para com suas atrizes. Mas Stella nos diz que sua relação com Siqueira era de afeto, cuidado, respeito e generosidade e que não havia machismo por parte de Siqueira para com nenhuma mulher do grupo. O respeito, na verdade, era para com o trabalho do ator ou atriz. Inseridos no contexto ditatorial, haviam os canais de superação e os respiradouros naquele período, e o THBF, para Stella, era o seu respiradouro, na esperança de tempos melhores. O medo era uma constante. O medo de não ter a peça liberada era cruel para a atriz, pois ensaiava-se uma peça por meses e apresentá-la para a censura era um momento de muito temor porque não se sabia se ela seria encenada. Outra marca para Stella era o constrangimento ante os censores: saber que eram aquelas pessoas que representavam um governo autoritário, que respondiam positivamente à ditadura, dizendo o que podia e o que não se podia fazer. Como pesquisadora do Vivencial em “Transgressão em 3 Atos – Nos abismos do Vivencial”, Stella nos conta que há uma história em torno do Vivencial e do Teatro Hermilo Borba Filho que envolve desentendimentos. Para ela, Vivencial e THBF, cada um com seus contextos peculiares, se assemelhavam em alguns aspectos como o “projeto coletivo de teatro” (FERNANDES apud FIGUEIRÔA; BEZERRA; SALDANHA, 2011, p. 50), comum nos grupos dos anos de 1970. Também se aproximam no sentido de: incitar o espectador à reflexão, cada qual à sua maneira, o THBF no caminho do teatro antiilusionista, a partir da visada de Bertolt Brecht e o Vivencial a partir do escracho, numa linha tropicalista, de sacudir o espectador de forma voraz e o fato de estarem inseridos no âmbito político. Política na forma mais abrangente do uso do termo e não limitada à partidária, obviamente. O Vivencial mais para o tropicalismo, o THBF mais para o olhar brechtiano, sem isso ser regra única para os dois (por vezes o Vivencial seguiu a poética de Brecht, por exemplo, visto que comumente suas encenações transitavam no jogo de entrar e sair do personagem, interagindo dialeticamente com o espectador, mas com uma proposta fragmentada a cada trabalho, como vimos anteriormente), mas um e outro voltados para contextos dialéticos que envolviam sexualidade, estrutura social, cultural e política. Seria reducionista também pô-los 89 apenas na esfera política, mas não há como arrancá-los abruptamente de lá, pois a politização era um dos combustíveis que os moviam. Stella nos lembra que o engajamento político e o desbunde (neste contexto, o sentido de causar impacto, espanto, admiração) foram duas tendências que marcaram o teatro brasileiro após 1964, e estas marcas estão representadas no teatro pernambucano, entre outros grupos (visto que a década de 1970 produziu outros grupos pernambucanos que buscavam padrões fora do convencional, dispostos a resistir ao autoritarismo da época) (FIGUEIRÔA; BEZERRA; SALDANHA, 2011), pelo Vivencial e pelo THBF. Para ela, há também um arranjo geográfico na cena pernambucana nos anos de 1970. Os grupos que buscavam novas experimentações, migraram para Olinda: “Olinda virou a capital da resistência cultural, das atividades artísticas, da irreverência e do desbunde” (FIGUEIRÔA; BEZERRA; SALDANHA, 2011, p.117). A atriz diz que há uma linha de compreensão muito equivocada ao afirmarem que o Vivencial e o THBF eram inimigos e divergentes. Stella atribui isso a uma leitura superficial que fazem dos dois grupos e de sua relação: Acho que eram dois trabalhos extremamente sólidos, transgressores e convergentes. Dois trabalhos políticos, cada um à sua maneira [...] dialogando com o tropicalismo. O Vivencial visivelmente. O THBF de uma maneira menos visível. O diálogo do THBF com o tropicalismo é com a origem, com o ponto de partida e o diálogo do Vivencial é com o ponto de chegada do tropicalismo (SALDANHA, Stella. 2014a) O que teria resultado em dois extremos que, olhados superficialmente, entende-se como divergência. O ponto de partida, no THBF, para ela, dialogava com Glauber Rocha que dialogava com Brecht. E o ponto de chegada e o Vivencial estariam na politização do desejo, na politização do corpo como instrumento do desejo: o ser desejante politizado. Em níveis comportamentais, políticos e estéticos, os dois grupos se mostravam extremamente transgressores em relação à estética convencional do teatro, desenvolvida até então no Estado: “Eles rasgaram a cartilha do teatro convencional e reescreveram uma outra linguagem cênica, ambos. Então eles não são divergentes” (SALDANHA, Stella. 2014a). 90 Imagem 32: Stella Maris Saldanha e Luiz Maurício Carvalheira, em “Pluft, o Fantasminha”, de 1977. Arquivo pessoal da atriz. Imagem 33: “Um grito parado no ar”, de Gianfrancesco Guarnieri. Montagem do THBF de 1979. Stella Maris Saldanha contracena com Marcus Siqueira. Arquivo pessoal de Stella Maris Saldanha. 91 Imagem 34: “Os Fuzis da Senhora Carrar”, de 1978. Em cena, da esquerda para a direita: Ricardo Xavier, Luiz Maurício Carvalheira e Stella Maris Saldanha. Arquivo pessoal da atriz. 2.3 O Grupo Expressão Na década de 1940 surge o Teatro Universitário, “[...] inicialmente no Rio de Janeiro e depois em outros Estados, cuja produção inovadora percorreu toda a década”. (COSTA, 2006, p. 130). Engajado e politicamente crítico, inicia-se com o trabalho do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, no Rio de Janeiro e inspira os trabalhos do Arena e de muitos grupos de teatro estudantis por todo o país: [...] Indo mais além, em 1958, foi inaugurado o Teatro Oficina pelo grupo de amadores da Escola de direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, peça chave da consolidação do teatro brasileiro. Propondo uma renovação nas artes cênicas, o Oficina lutava contra a elitização do teatro e contra a mística e o glamour dos artistas. Encarava o teatro como ofício resultante de um esforço coletivo que pretendia voltar-se para a realidade circundante [...] (COSTA, 2006, p. 171). O Teatro Universitário também irá influenciar na função social da arte que marcou a década de 1960 e permanecer em alguns grupos na década de 1970. Em Recife, criam-se vários grupos estudantis, destacando-se o Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP) que surge ainda no final dos anos de 1950, o Teatro Universitário de Pernambuco (TUP), da Universidade Federal de Pernambuco na década de 1960 e o Teatro da Universidade Católica de Pernambuco (TUCAP) nos anos de 1970. (BACCARELLI, 1994). Em 1975, iniciam-se os 92 trabalhos do Grupo Expressão na Faculdade de Filosofia do Recife (FAFIRE), que sentiu a necessidade de ter o seu grupo de teatro, convidando José Francisco Filho para dirigi-lo. O grupo era mantido pelas Irmãs Dorotéias, que coordenavam a faculdade. O contexto do grupo era de dupla repressão, tanto pelo momento político quanto pela coibição sexual vinda das freiras: [...] Elas reprimiam muito mais sexualmente a coisa do que politicamente [...]. Elas queriam saber quem era, quem não era virgem. O que é que se fazia dentro das salas. Elas entravam para olhar, e não era só isso, não. Eu acho que na época, na década de 70, início de 70, a repressão sexual era muito grande também pelos pais dos alunos, pelos pais dos atores que formavam esse grupo [...] (FRANCISCO FILHO apud BACCARELLI, 1994, p. 66). Sabendo destas dificuldades, da atuação ainda forte da censura e da existência de “olheiros” dentro da faculdade, José Francisco Filho escolhe, para a primeira montagem do grupo, uma comédia que ele chamou de “[...] espetáculo aparentemente inocente, puríssimo” (FRANCISCO FILHO apud BACCARELLI, 1994, p. 65): “Como realizar o marido Oscar”, de Oraci Guemba. Em 1976 monta com o grupo “Hipólito” de Eurípedes, pois não tinha como as freiras censurarem um texto grego. A encenação “[...] faz uma leitura política em vez de priorizar a questão do amor. Propõe uma metáfora de libertação de um jugo opressor por intermédio de uma rede de pescar tubarão que serve de prisão aos atores, instaurando um clima claustrofóbico” (In: ENCICLOPÉDIA Itaú cultural de Arte e Cultura Brasileiras, 2014). Imagem 35: Programa de “Hipólito”, de 1976. Acervo do Projeto “Teatro tem Programa!” 93 Em 1977 encena “Putz, a Menina que Buscava o Sol”, de Maria Helena Kühner, e “O Suplício de Frei Caneca”, de Cláudio Aguiar. Sobre esse personagem da história pernambucana na montagem do Expressão, o crítico Valdi Coutinho diz que ele sai [...] do puramente histórico, vai do dramático ao burlesco, do trágico ao cômico, do narrativo ao participante, numa trajetória que impõe uma personalidade cênica, sem perder a sua identidade com um todo criativo. As coisas funcionam em gêneros diferentes mas com uma harmonia de sequências felizes, numa demonstração clara e evidente de uma direção cênica segura e amadurecida, sobretudo consciente em todos os instantes (In: ENCICLOPÉDIA Itaú cultural de Arte e Cultura Brasileiras, 2014). Em 1978 o grupo monta “João, Amor e Maria”, de Hermínio Bello de Carvalho. É neste espetáculo que, uma cena de parto protagonizada por Zélia Sales, choca as freiras e vai significar o desfecho melancólico do grupo: [...] é um texto lindíssimo que tem muita música, muita coreografia, mas é um texto que fala de repressão, das pressões que o homem sofre, que o pescador do mar sente, do homem que compra o peixe dele, da barcaça que é alugada. Então, esse já incomodou. Como eu fiz uma cena de parto, uma cena lindíssima [...], quando elas (as freiras) viram [...] pediram que eu tirasse a marca e eu disse que não tiraria. Então elas me botaram para fora e acabaram o grupo (FRANCISCO FILHO apud BACCARELLI, 1994, p. 65). 2.3.1 O GRUPO EXPRESSÃO POR ZÉLIA “Naquela época fazer teatro era respirar”. “Porque quem não viveu não sabe o que pairava, o que de fato aconteceu. Esse momento da História do Brasil é como se fosse uma coisa assustadora, ninguém mexe muito, de vez em quando vêm coisas, vem espetáculo, vêm filmes, mas o botar pra fora mesmo ainda não aconteceu. A ditadura ainda é um assunto muito delicado”. Zélia Sales Zélia Sales inicia sua carreira de atriz no grupo Expressão da Faculdade de Filosofia do Recife (FAFIRE) e nele permanece em seus três anos de atividade. Filha de militar que divergia do poder ditatorial e oriunda de uma família de classe média, Zélia permanece no grupo por ideologia, por ser contrária ao que a ditadura produzia: [...] Quando aconteceu o golpe meu pai não sabia de nada e nós fomos surpreendidos. Eu tinha quatorze anos e nós fomos para a escola, tudo, no dia 31 de março. Meu pai era uma pessoa maravilhosa, que foi militar por acaso porque não tinha opção na época. Então o teatro era refrescante pra mim. É 94 contraditório, era refrescante mas ao mesmo tempo se discutia coisas no grupo que eu jamais sabia que estavam acontecendo. E como eu também discordava do regime, achava muito bom estar ali, participando do movimento (SALES, Zélia. 2015). Sobre a poética do Expressão a atriz diz nos diz que [...] Não havia uma linha definida para o trabalho do grupo. A proposta era escolher textos socialmente engajados e que sugerissem quebra de paradigmas, tanto artísticos quanto sociopolíticos. A busca era por rupturas e por novos questionamentos. Eu acho que o que se trabalhava muito era a linguagem simbólica, porque você não podia fazer as coisas muito claramente, então trabalhávamos o tempo todo com símbolos. No fundo eles tinham colocações políticas (SALES, Zélia. 2015). Apesar de ter produzido poucos espetáculos e tido vida breve, Zélia afirma que o grupo teve uma atuação importante na cidade naquele momento porque nos espetáculos havia política implícita. Tanto que “O suplício de Frei Caneca” (1977) acabou trazendo problemas com a censura mesmo antes de estrear: [...] Fizemos o “Frei Caneca” e distribuímos panfletos para fazer a divulgação do espetáculo e os panfletos diziam: “Frei Caneca vai ser fuzilado novamente”, dia tal, hora tal, no teatro, né (sic)? Porque era uma encenação (risos). E a gente foi distribuir panfletos na frente das escolas. E eu me lembro que na Escola Marista tinha um cara lá sondando... quando foi pouco tempo depois chegou uma intimação lá na FAFIRE do DOPS para ir depor lá, para explicar este panfleto. Aí (sic) eu fui, não lembro porque eu, mas fui.Com medo, mas fui (SALES, Zélia. 2015). Aqui, há uma situação semelhante à de Suzana, quando a atriz negociava com a censura. Claro que, como Suzana passou por esta experiência diversas vezes, pois ela era a pessoa que era responsável por isso no Vivencial e já conhecia as pessoas com quem iria lidar no órgão da censura, não achava esta negociação ou contato algo amedrontador. Também porque ia negociar trechos censurados dos espetáculos. A situação de Zélia era diferente no sentido de ter que se explicar por estar distribuindo nas ruas, em espaços públicos, panfletos de “teor subversivo”, para a censura. Sobre este episódio, Zélia acrescenta que foi aconselhada, no órgão da censura a não distribuir “[...] mais aqueles panfletos, que tivesse cuidado com o que divulgava [...]” (SALES, Zélia. 2015) e foi liberada. Em “O Suplício de Frei Caneca” a atriz interpreta a apresentadora da narrativa. Apresentando-se dentro das igrejas, o espetáculo traz para Zélia o olhar vigilante que pairava na época, advindo da própria sociedade: 95 Eu usava uma meia arrastão, um maiô preto com um fraque por cima, máscara branca. Aparecia só perna, mas me excomungaram em várias igrejas (risos) porque eu tava (sic) com aquela roupa dentro da igreja (SALES, Zélia. 2015). Imagens 36 e 37: Zélia Sales em “O Suplício de Frei Caneca”, de 1977. Arquivo pessoal da atriz. 96 Em “João, Amor e Maria”, de 1978, a atriz interpretou a protagonista e a cena de parto que motivaria o fim do grupo. Segundo Zélia, o Grupo Expressão era um teatro muito ideológico, movido pela política. Para ela, havia um corpo cênico no grupo que “Era sonho de transformação da sociedade. Era uma utopia e a gente buscava essa utopia. A gente achava que com um espetáculo iria modificar as coisas e de fato modificava” [...] (SALES, Zélia. 2015). Imagem 38: Zélia Sales e Harry Gomes no laboratório para a montagem de “João, Amor e Maria”. Arquivo pessoal da atriz. E como tantos outros, o Expressão não resistiu à opressão que marcou o período. Diferentemente do Vivencial e do THBF, o Expressão contava com mais mulheres do que homens, apesar dos olhares inquisidores das freiras sobre as virgindades das meninas. Apesar de que também, o olhar da atriz não percebia esta repressão ferrenha por parte das religiosas, pois segundo ela, “[...] tínhamos muito cuidado, não se escrachava completamente [...]” (SALES, Zélia. 2015). Zélia elenca as irmãs Marta Ribas e Celeste Ribas, Regina Coeli, Clenira Melo, Vânia Simonetti e ela própria como atrizes fixas do grupo, juntamente com Buarque de Aquino, Flávio Freire, Urias Novaes e Harry Gomes que compunham o elenco masculino. 97 Talvez a militância maior da atriz tenha se dado após o fim do Expressão quando, mesmo atuando em outros grupos, passa a lutar pelas questões de interesse teatral, como às referentes aos direitos trabalhistas dos artistas em Pernambuco: Eu fui presidente da FETEAPE (Federação de Teatro Amador de Pernambuco), que era naquela época a única entidade teatral que tínhamos, isso entre 1979, 1980. [...] Quando se deu a abertura, os presos políticos começaram a voltar, aí (sic) a gente começou a lutar para ter na Fundação de Cultura Cidade do Recife (FCCR) uma pessoa que tivesse a ver com o teatro. Eu, Teresa Amaral, Jomard Muniz de Brito. A luta era para o artista entrar no serviço público (SALES, Zélia. 2015). Imagem 39: Da esquerda para a direita: Leda Alves, Maria Áurea Santa Cruz, Zélia Sales e Paulo de Castro no I Seminário Estadual de Artes Cênicas de Pernambuco, em 1985. Arquivo pessoal de Zélia Sales. Em 1979 Zélia foi convidada para substituir Auricéia Fraga em “Repúblicas Independentes, Darling”, do Vivencial, para viajar com o espetáculo no projeto Mambembão: Eu fazia a personagem da Dona Corrupção com Suzana (Costa), que era a Dona Subversão. E fazia também um texto de Luís Fernando Veríssimo, uma cena com Américo Barreto. Me lembro muito de uma frase: “O povo é aquele por quem muito se fala e pouco se faz”. Eu era uma mulher do povo e o personagem de Américo vinha me avisar que a democracia estava chegando. A abertura do espetáculo era como Teatro de Revista e eu também fazia a abertura, barriga de fora. Mas eram três mundos pra mim: a minha casa de classe média, o grupo de teatro da FAFIRE, mais artístico, mais subversivo e o Vivencial. O Vivencial era o novo pra mim, sabe? Era novidade, era 98 aprendizado, era se despojar dos preconceitos, de corpo, de sentimentos, esse era o universo vivencialesco (SALES, Zélia. 2015). Para Zélia, o corpo feminino no Vivencial, ela como espectadora e como atriz do grupo, mesmo que por um breve período foi [...] Exposição sem medo e sem censura no sentido mais bonito da palavra. Eu lembro de muitas cenas com os corpos nesse sentido, exposição sem medo. As pessoas passaram a fazer isso depois da ditadura, né (sic), depois que tava tudo lindo, tudo tranquilo (SALES, Zélia. 2015). Imagem 40: “Repúblicas Independentes, Darling” em 1979. Da esquerda para a direita: Suzana Costa, Walternandes Carvalho abaixo de Américo Barreto, Zélia Sales e Ivonete Melo. Arquivo pessoal de Ivonete Melo. 2.4 E SE EXISTIA TRANSGRESSÃO, EXISTIA CENSURA. A ideia de qualquer manifestação artística ou produção simbólica que “ofendesse” a moral ou os bons costumes e que sobretudo perturbasse a posição socioeconômica das classes mais favorecidas, é presente em toda a história das artes no Brasil. “Porque a censura sempre existiu, mas não da mesma maneira [...] Ela começou a ficar furiosa depois do golpe de 1964, 99 quando o teatro deixou de ser „apenas‟ diversão pública, como era visto pelos censores até então, e passou a ser um campo político” (GUARNIERI apud COSTA, 2006, p. 17). Herança da tradição colonial, que influenciou a cultura brasileira durante séculos, o controle no Brasil começa a agir inicialmente pelas ordens da Igreja Católica, através das Visitações do Santo Ofício, que julgava e condenava ideias e comportamentos. O Santo Ofício parecia ter obsessão por moralizar a colônia e manter sob vigilância a disciplina sexual, a moralização dos costumes e a defesa do casamento e da família, pois enxergava a colônia como “um purgatório – espaço habitado por infiéis, selvagens e pecadores -, onde haveria a obrigação de se intervir, corrigir e punir” (COSTA, 2006, p. 28) e A maioria dos processos se desencadeia por denúncias de vizinhos e conhecidos que, na ânsia pela delação, ora buscam se aproximar do poder, ora anseiam demonstrar com essa atitude sua própria inocência, e ora expressam a plena introjeção dos preconceitos e arbitrariedades difundidos pelas instituições do poder (COSTA, 2006, p. 29). Neste sentido, estas delações funcionavam da mesma maneira durante a ditadura militar, quando as denúncias partiam de conhecidos que delatavam possíveis comunistas ou pessoas de atitudes estranhas, muitas vezes por meio de telefonemas que não tinham nenhuma segurança de serem depoimentos verdadeiros. Muitas vezes, para se aproximar do poder, como nos fala Costa e até como meio de vingança por intrigas pessoais que nem tinham ligação com a política (BACCARELLI, 1994). A censura esteve presente em todo o nosso período colonial através da Igreja e do Estado, combatendo principalmente as linguagens, as manifestações e os discursos que incitassem o pensamento crítico: [...] Combateu dissidentes políticos, pessoas de origem desconhecida ou duvidosa, pobres e mestiços, mulheres sós, gente sem instrução ou família, cristãos novos e ateus, convertendo-se numa prática cotidiana e ritualizada que aderiu à concepção de exercício do poder (COSTA, 2006, p. 34). Neste contexto, as mais perseguidas eram as mulheres, por acusações que envolviam infidelidade conjugal, lesbianismo, independência financeira e o envolvimento com práticas que eram apontadas como bruxarias (PRIORE, 2012): Estigmatizadas, as mulheres eram as principais vítimas desses processos, muitas delas bastardas e mestiças acusadas de feitiçaria pelas práticas de 100 benzedura e de adivinhação. Sopro e sucção, utilizados para a cura de ferimentos e doenças, eram comportamentos reprovados entre homens e mulheres, assim como o uso da água benta em rituais mágicos. Esses processos já mostram tendências que se manterão presentes nos processos censórios de épocas posteriores [...]. (COSTA, 2006, p. 29). Com a instalação da Imprensa Régia e da Biblioteca Nacional no Império, as formas de expressão e as reflexões sobre o controle dos indivíduos passam a se propagar e, claro, instalam-se poderes controladores contra as “[...] ideias que se arvorassem contra os interesses da elite política e econômica do país” (COSTA, 2006, p. 42). E com a recomendação de que o teatro seja um lugar onde todos aprendam “[...] as máximas sãs da política, da moral, do amor da pátria, do valor, do zelo e da fidelidade com que devem servir aos soberanos [...]” (COSTA, 2006, p. 43), foram construídas diversas “Casas da Ópera” e “Casas da Comédia” no Brasil. A de Pernambuco foi erguida em 1722, em Recife (SAMPAIO JÚNIOR, 2007). Mas a censura sempre esteve no rastro do teatro. E no Império, ela ficou a cargo da polícia (por não haver instituições específicas para esse fim), a qual deveria controlar as peças que fossem encenadas naquele período, cuja ação repressora voltava-se para qualquer trabalho teatral que ofendesse a moral, a religião, a decência pública, as corporações e autoridades. Em 1848 foi criado o Conservatório Dramático Brasileiro para inspecionar os espetáculos de teatro, seguindo as mesmas indicações, mas também com o poder de limitar os trabalhos do ponto de vista artístico e fiscalizar previamente os textos a serem encenados, bem como proibir qualquer peça já montada que não estivesse dentro das recomendações, obrigando artistas e produtores a obedecerem as recomendações de cortes e mudanças. Vários Conservatórios foram criados no Brasil, sendo o de Pernambuco fundado em 1854 (COSTA, 2006). Porém, o trabalho do Conservatório, que já enfrentava a rebeldia das companhias teatrais, não anulava o trabalho da polícia, o que tornava o trabalho no teatro mais difícil de ser desenvolvido: Questões como castidade da língua, decoro e defesa do catolicismo, colocadas sob a rubrica de defesa do bem comum, afastavam das manifestações artísticas heranças subalternas, africanas e indígenas, assim como ideologias republicanas e abolicionistas (COSTA, 2006, p. 54). Interessante é que tanto neste período como no momento da ditadura militar, o cargo de censor era cobiçado, por se receber por esses serviços, quantias nada desprezíveis. No 101 Império, era ainda uma entrada para ser bem quisto na sociedade, como indivíduo respeitoso e culto. Assim, os intelectuais da época não hesitaram em aceitar o cargo, tendo o Conservatório Dramático contado com censores ilustres como João Caetano, Quintino Bocaiúva e Machado de Assis, que exerceu a função de censor entre 1862 e 1864: “[...] tenham presente a ideia que o teatro é uma escola de costumes e que há na sala ouvidos castos e modestos que os ouvem” (ASSIS apud COSTA, 2006, p. 58). Um dos pareceres de Machado de Assis, sobre o drama “Mistérios Sociais”, de César Lacerda, diz em um trecho, o seguinte: O drama original português do Sr. César de Lacerda – Mistérios Sociais – pode subir à cena, acho eu, feitas certas alterações. Uma dessas afeta a parte principal do drama; é a alteração da condição social do protagonista. O protagonista é um escravo que, tendo sido vendido [no] México conjuntamente com sua mãe, pelo possuidor de ambos, que era ao mesmo tempo pai do primeiro, dirige-se depois de homem e liberto a Portugal em busca do autor dos seus dias. No desenlace da peça Lucena (o protagonista) casa com uma baronesa. A teoria filosófica não reconhece diferença entre dois indivíduos que como aqueles tinham as virtudes no mesmo nível; mas nas condições de uma sociedade como a nossa, este modo de terminar a peça deve ser alterado [...]. Feitas estas correções julgo que a peça pode subir à cena. Rio de Janeiro, 30 de julho de 1862. Machado de Assis. 23 É no mínimo estarrecedor, visto que Machado de Assis era mulato, neto de escravos e viria a se casar em 1869 com uma mulher branca. Já neste período, há demonstrações claras do poder da censura sobre os indivíduos e de suas incoerências: “Como um órgão ligado ao poder, ao longo da história, a censura sempre teve um papel coercitivo” (BACCARELLI, 1994, p. 105). Com a chegada do século XX, a censura chega com a ideia do coletivo influenciando, representando e exigindo o bem comum, em nome da ordem, da moral e dos bons costumes. Era exercida em nome do Estado, mas na verdade era fiscalizada pela elite, que sempre se achara mantenedora da ordem social, e pelos conservadores que, em nome da “sociedade”, exigia 23 Os “Pareceres de Machado de Assis a diversas peças teatrais”, publicados originalmente de 16/03/1862 a 12/03/1864, são espetáculos que ele julgou no período em que foi censor. Disponíveis em: machado.mec.gov.br. Acesso em 31/12/2014. 102 [...] uma postura pública e legalizada capaz de representar o consenso da sociedade civil republicana. É nesse sentido que a legislação de 1900 procura não apenas cercear os cidadãos, mas estabelecer critérios que regulem a oposição entre a liberdade de expressão e os interesses do poder instituído, poder esse que não é mais prerrogativa de um monarca, mas direito de uma coletividade legalmente representada (COSTA, 2006, p. 80). É importante salientar, que desde o Império a ação fiscalizadora é repressiva e coercitiva, de modo a castigar os infratores, servir como exemplo para indivíduos transgressores e de mostra do poder do Estado e da elite. Com o início do período ditatorial e militarista de Getúlio Vargas, a defesa da tradição, do decoro e da religião é vista como base de educação para crianças e jovens e a censura se torna ainda mais repressora sobre os meios de comunicação e as artes, passando a usar destes meios para divulgar o governo e a figura de Vargas como beneficiadores da população, além de controlá-los e censurá-los. A música de teor político, por exemplo, só era divulgada pelo rádio quando elogiava o Estado (COSTA, 2006). Em 1932, já tínhamos uma comissão de censura vinculada ao Ministério da Educação que atuava com a “[...] DESPS, Delegacia Especial de Segurança Política e Social, criada em 1933 e que mais tarde passaria a ser, no período ditatorial pós-1964, o DOPS, o Departamento de Ordem Política e Social” (COSTA, 2006, p. 101). Nos anos posteriores, outros órgãos foram criados, como o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) e o Departamento Nacional de Informação (DNI), juntos a um mecanismo de extrema direita, cujo objetivo era coibir qualquer pensamento contrário e em nome da ordem social. Assim, a República assiste a atuação da censura entre as ditaduras. E quanto mais ela age com mais força, mais o teatro brasileiro se mostra como consciente do seu papel social e como espaço de transgressão. Em cartaz, o Teatro Universitário, que surge na década de 1940 no Rio de Janeiro e posteriormente em outros estados, e que vai, por toda esta década e as seguintes, influenciar o teatro engajado. E com o forte nacionalismo e consciência política que despontaram nos anos de 1960, o teatro passou a ser ainda mais perseguido: Esse já era um período difícil, os anos de 1960. Depois piorou: a censura já não era mais só censura, era perseguição política. Estabeleceu-se um confronto: gente de direita contra gente de esquerda. E havia pau mesmo, uns gritando contra os outros. Público agredindo atores, público aplaudindo (GUARNIERI apud COSTA, 2006, p. 18). 103 E é neste dado momento, que as elites políticas, econômicas e culturais se voltam ainda mais contra a arte engajada: “Elas se sentiram ameaçadas no que tinham de mais importante, de mais fundamental: toda a sua base de dominação cultural estava sendo posta em questão” (COSTA, 2006, p. 182). Em todo o Brasil, as produções teatrais, principalmente os grupos que manifestassem discordâncias em relação ao regime, passaram obrigatoriamente a fazer os espetáculos para a censura antes das estreias e eram obrigados a aceitar os cortes e substituições impostas pelos censores. Em Pernambuco, não era diferente: No Brasil, refletindo-se em Pernambuco, a censura nunca definiu claramente as regras do jogo para deixar ao gosto pessoal do censor a mutilação ou a proibição de um texto teatral, quando não atua no próprio espetáculo cortando cenas e gestos, alterando marcações e substituindo palavras que alteram a idéia central [...]. Na verdade, apesar de ligada ao gosto pessoal do censor, ficou claro que muitas dessas atitudes apenas visavam impedir, dificultar o exercício cênico, com o claro propósito de fazer desaparecer sua influência. (BACCARELLI, 1994, p. 105). A história da atuação censória se mescla com o teatro, mas sua atuação volta-se principalmente e obviamente, para os teatros envolvidos com a transgressão e as militâncias políticas e ideológicas. A matriz deste teatro está no agitprop (agitação e propaganda, movimento marxista que propagava princípios comunistas visando incitar a força das classes subalternas como trabalhadores e camponenses, bem como estudantes e intelectuais), contextualizada na Rússia pós-revolução: Os primeiros anos da Revolução são momentos de intensa mobilização. Na esteira do avanço da Guerra Civil, as necessidades revolucionárias vão determinando os procedimentos: intelectuais, artistas e trabalhadores organizados assumem a tarefa de disseminar a Revolução, impedir os avanços das forças contra-revolucionárias e informar a população das novas idéias e dos novos acontecimentos (GARCIA, 2004, p. 5). A ideia da militância no teatro no Brasil veio de fora, junto com os imigrantes que chegaram para substituir a mão de obra escrava, nas primeiras décadas do século XIX. Organizou-se em terras brasileiras, entre os trabalhadores europeus imigrados, muitos deles agitadores anarquistas expulsos dos seus países de origem, principalmente da Itália e da Península Ibérica, que difundiram a ideia do compromisso da arte com a sociedade, desenvolvendo-se um teatro operário de influência anarquista. A agitação e propaganda no Brasil ganha força na década de 1960 com o trabalho do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, o CPC da UNE, no Rio de Janeiro. Segundo Garcia, neste momento, “[...] se observam os primeiros esforços de consolidação de um teatro nacional, deparamo-nos 104 com um momento de grande ebulição pré-revolucionária, que foram os anos imediatamente anteriores ao golpe militar de 1964” (GARCIA, 2004, p. 90). Com toda movimentação da classe trabalhadora, em 1958 “[...] o operário subia ao palco em „Eles não usam Black-tie‟, confirmando o Teatro de Arena paulista como posto avançado de defesa da dramaturgia nacional engajada” (GARCIA, 2004, p. 102). As influências deste movimento se iniciariam no Nordeste em Pernambuco, com o Movimento de Cultura Popular, criado pelo então governador Miguel Arraes, que tem o seu núcleo de teatro representado pelo Teatro de Cultura Popular. Posteriormente, outros grupos de teatro em Pernambuco seguiriam as mesmas ideias, inclusive grupos criados nas universidades. Nos anos de 1960 e 1970, a participação do teatro estudantil foi de suma importância no desenvolvimento do teatro engajado brasileiro. Surgem em Pernambuco o TUP, o Teatro Universitário de Pernambuco, da Universidade Federal de Pernambuco em 1968, influenciado pelo movimento de teatro estudantil que já existia em São Paulo e o TUCA, Teatro da Universidade Católica de Pernambuco que passaria a se chamar TUCAP na década seguinte. É também desta década, 1970, o Grupo Expressão da Faculdade de Filosofia do Recife (FAFIRE) (BACCARELLI, 1994). A ideia da mescla do movimento estudantil com teatro em Pernambuco tem como primeiro grupo registrado o Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP), composto, dentre outros participantes, por Ariano Suassuna, Hermilo Borba Filho, Aloísio Magalhães e Clênio Wanderley que [...] inauguram [...] um movimento de popularização do teatro – O Teatro do Estudante de Pernambuco – que mantém uma barraca, à semelhança de Garcia Lorca e se põe a correr as feiras e bairros do Recife. A crítica recifense – isto é, Valdemar de Oliveira – que sempre apoia o teatro tradicional, abre campanha contra (MENDONÇA apud REIS; REIS, 2005, p. 55). 105 Imagens 41 e 42: Inquérito do DOPS sobre o Teatro do Estudante de Pernambuco de outubro de 1948. Neste documento, o grupo está nomeado como “Teatro Popular dos Estudantes Amadores”. Sobre Ariano Suassuna e Aloísio Magalhães o documento informa: “[...] não consta que estes elementos sejam comunistas militantes”, que “[...] Ariano Suassuna é um elemento de grande cultura e que é um dos elementos de principal importância no teatro” e que “[...] Com referência ao Teatro do Estudante também apurei que é dirigido pelo elemento Hermilo Borba e não há nenhuma finalidade de nenhuma propaganda vermelha. Até agora pelo menos não foi observado nada nesse sentido”. Arquivo Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano – DOPS. Como sendo grupos ideologicamente militantes, a favor de aspirações políticas e sociais, o Vivencial, o THBF e o Expressão tiveram a maioria do seu repertório cênico mutilado pelos censores. Ivonete, falando enquanto grupo Vivencial, relata a relação do grupo com a censura e a estratégia usada para driblá-la: A censura nos perseguia, cortava nossos textos, porém a gente botava sempre ele completo. Quando os fiscais, os censores vinham assistir o espetáculo, que mesmo durante a temporada eles assistiam, a gente fazia como eles cortavam. Quando eles não iam assistir, a gente fazia total, completo (MELO, Ivonete. 2014a). No contexto do THBF, não era diferente: Lá no Hermilo tínhamos provas de seis em seis meses no curso de formação de ator. Os alunos escolhiam trechos de espetáculos de teatro e encenavam. Esses espetáculos eram abertos ao público. Quantas e quantas vezes precisamos fazer com as portas fechadas porque eram textos proibidos, com a polícia do lado de fora, o camburão da polícia parado na frente do teatro, né (sic)? E com medo (SALDANHA, Stella. 2014a). 106 Da mesma maneira que o Vivencial, o THBF usava de seus estratagemas para que pudesse sobreviver à censura. Para a atriz, a ligação do grupo com a censura era uma relação de afronta: [...] montar textos proibidos era uma relação de afronta. O fato de não serem cobrados ingressos nas montagens pedagógicas se configurava numa estratégia [...]. A outra estratégia era pegar, por exemplo, uma história que se passa na guerra civil espanhola, que era “Os fuzis da Senhora Carrar” para discutir uma situação contemporânea, você falar por metáforas (SALDANHA, Stella. 2014a). No Grupo Expressão, as ambiguidades e metáforas também eram muito exploradas, “Nada muito declarado, mas havia política implícita” (SALES, Zélia. 2015). Os subterfúgios passaram a ser uma constante na arte brasileira no período ditatorial. As peças e as músicas usavam de metáforas ou de ambiguidades (como a clássica música “Cálice” de Chico Buarque de 1973, que explorava o duplo sentido das palavras “cálice” e “cale-se”, numa analogia ao verbo “calar”, principal estratégia dos militares para manter a ordem sob seus olhos), produzindo diferentes sentidos e confundindo a censura, como no exemplo dado por Stella, em relação ao espetáculo de “Os Fuzis da Senhora Carrar”, que promovia uma indefinição do contexto, pois tratava da guerra civil espanhola, mas tinha uma relação direta com a ditadura naquele momento, a qual a censura não percebeu: No caso de “Os fuzis”, eles não cortaram nada porque eles não entenderam nada [...]. Porque a peça se passava na Espanha, final da década de 1930, Guerra Civil Espanhola. Falava-se no General Franco o tempo todo, os atores com máscaras, então eles não entenderam nada (risos). E a peça passou na íntegra. (SALDANHA, Stella. 2014a). Aliás, esta estratégia de trazer fatos históricos e ligá-los com outras contextualizações, é uma técnica que está incorporada no teatro brechtiano no sentido de que essas relações históricas não proporcione [...] somente as sensações, as ideias e os impulsos que são permitidos pelo respectivo contexto histórico das relações humanas (o contexto em que as ações se realizam), mas, sim, que empregue e suscite pensamentos e sentimentos que desempenhem um papel na modificação desse contexto (BRECHT, 1978, p. 113). Brecht sugere esta técnica como forma de incitar reflexões no espectador acerca de sua realidade social ou política: E se representarmos as peças da nossa época tal como se fossem peças históricas, é possível que ao espectador pareçam, então, igualmente, singulares 107 as circunstâncias em que ele próprio age; nasce nele, assim, uma atitude crítica (BRECHT, 1978, p. 114). Os danos imediatos que eram provocados no artista pela ação censória, eram o constrangimento e a violência de ter a obra modificada: Mesmo em tempos mais amenos, não era nada agradável fazer um espetáculo para a censura – para pessoas que não entendiam nada de teatro. Geralmente a peça era liberada, mas com cortes, alguns completamente imbecis... Isso nos obrigava a lançar mão de certos truques, como colocar palavrões para que fossem cortados pelos censores. Outras vezes, era preciso negociar (GUARNIERI apud COSTA, 2006, p. 17). Ivonete nos fala como uma situação de amedrontamento: No dia que eles iam, a gente passava com uma tábua enorme com uma tesoura pintada no meio, nas partes do texto que haviam sido cortadas, atravessando de uma coxia para outra. Mas a presença dos censores era constrangedora porque a qualquer momento eles podiam mandar parar tudo e fechar. O medo era constante. Eram pessoas que não entendiam nada de teatro, que tinham sido postas ali para fazer esse trabalho e que obviamente, abusavam do poder que tinham. (MELO, Ivonete. 2014b). Esta fala de Ivonete nos remete, inclusive, à ação da censura iniciada nos anos de 1960, no sentido de esta ser realizada por pessoas despreparadas para cumprir as determinações a qual eram encaminhadas: “censores e policiais acabaram por tornar os anos 1960 férteis em anedotas sobre a ignorância demonstrada em ações cada vez mais agressivas [...]” (COSTA, 2006, p. 196), como apreensões, fechamentos de teatros, sequestros e até atentados de bomba. Como não tinham a menor intimidade com o fazer teatral, nesta fase formou-se um vasto anedotário na História do Teatro Brasileiro. Em Pernambuco, por exemplo, tiveram algumas célebres como a proibição do Balé Bolshoi, na primeira tentativa de se apresentar no Recife, por ser de nacionalidade russa e a imposição dada ao balé de Senegal, que deveriam cobrir os seios de suas bailarinas (BACCARELLI, 1994). A censura, “se não pudermos afirmar categoricamente que ela era burra, em muitos momentos ela deu grandes demonstrações de burrice, de inaptidão, de despreparo para lidar com a arte” (SALDANHA, Stella. 2014b). Zélia nos conta que, quando esteve no órgão da censura para explicar os panfletos de divulgação de “O Suplício de Frei Caneca”, pôde constatar que o censor não entendia nada de teatro (SALES, Zélia. 2015). 108 Dentre tantas incoerências e inaptidões, talvez a mais memorável no teatro pernambucano, seja a experiência do Teatro Popular do Nordeste, quando esteve na Bahia no final da década de 1960: Houve inúmeros episódios, muitos deles dignos de programas humorísticos, que ilustraram o gigantesco desconhecimento teatral dos tais censores. Por exemplo, na polícia da Bahia, em 1968, antes de o TPN estrear sua breve temporada da tragédia Antígona, de Sófocles, no Teatro Castro Alves, em Salvador, o agente da polícia, elevado à condição de censor, indagou à produção do espetáculo quem era o autor da peça e onde ele morava. Foi-lhe, então, informado tratar-se de um tragediógrafo da antiga Grécia, de antes de Cristo. O censor, do alto de sua competência fez então uma grande descoberta, e declarou: Bem se vê que a peça é antiga muito antiga mesmo, porque até o nome dela, Antigona, está confirmando isso, não é? E, muito feliz com a sua descoberta, acrescentou mais essas pérolas: Eu vou autorizar a estreia de vocês porque naquele tempo não tinha comunismo mesmo, não é? (REIS; REIS, 2005, p. 81). Sobre a presença dos censores nos ensaios do Vivencial, Suzana nos diz que: “Era de muita ansiedade [...] os censores vinham com umas tabelinhas, umas pranchetas. E claro, é constrangedor você fazer espetáculo para duas pessoas e a coisa de „será que vai cortar muito‟?” (COSTA, 2014b). A atriz reconhece a grandeza da violência empreendida pela censura, pois “você interferir numa obra literária, teatral, é, de qualquer jeito, uma invasão” (COSTA, 2014b). E no seu jeito desprendido de ser, canaliza esta violência como mais uma forma de transgressão, de subverter o poder censório: “Também depois, isso já tinha virado uma curtição, pensar como a gente ia substituir, driblar a censura” (COSTA, 2014b). Ivonete nos fala que no Vivencial, os cortes eram mais frequentes com as questões relacionadas com a sexualidade, embora os temas políticos sofressem também mutilações, como por exemplo em “Repúblicas Independentes, Darling”, de 1978, na qual havia [...] uma cena com as palavras “República, rés públicas, coisas públicas”, cada ator dizia uma palavra referente à República e eles disseram: “Não, isso não! Oxente (sic)! Esculhambando com a República? Por que? Corta. Vocês podem dizer simplesmente “República” (risos). Outro texto que tínhamos, que falava sobre democracia foi todo cortado. Entrava um ator negro (Américo Barreto) pela plateia, com um macacão e chapéu de trabalhador, cumprimentando o público e dizendo se chamar “Povo”. E uma mulher no palco, lavando roupa. E “Povo” alertava a mulher para que se arrumasse, que ela estava atrasada, que ela se preparasse porque “Ela” estava vindo. “Ela” era a democracia. Era uma gozação em cima da democracia que não se tinha (MELO, Ivonete. 2014b). 109 No contexto do THBF, Stella lembra a influência da censura como uma atrocidade, também no sentido de ter que submeter-se ao mesmo sistema o qual ela discordava: Era cruel. Primeiro porque você ensaiava meses, aí ia fazer espetáculo para a censura sem saber se de fato iria estrear, muitas vezes tinha cortes, os espetáculos. E era um constrangimento, saber que aquelas pessoas que representavam um governo autoritário, que respondiam à ditadura militar, estavam ali, dizendo o que você podia e o que você não podia (SALDANHA, Stella. 2014a). Era uma atmosfera prisional, que resultava em o artista vigiar-se a si mesmo e modificar sua obra pelo medo: “[...] Era uma coisa muito pesada. Qualquer coisa era... não vamos dizer isso na peça porque já aconteceu isso com fulano... não podemos fazer tal coisa. [...] O tempo todo, todos nós nos autocensurando” (SALES, Zélia. 2015). A censura é perniciosa, pois como toda forma de coerção, não encontra limites, e passou, como nos mostra a História, do controle do texto à fiscalização e perseguição dos artistas. A censura ainda revela uma tendência a prejudicar os artistas [...] menores, os amadores, os alternativos: o poder torna sempre mais frágil o artista iniciante, aquele justamente que pode, por estar longe das grandes fontes de auxílio e incentivo, ousar e inventar o novo (COSTA, 2006, p. 263). Mas talvez o maior malefício que a censura tenha produzido tenha sido o fato de gerar no artista o mecanismo da autocensura, [...] que se manifestava de diferentes maneiras, ora fazendo que o artista disfarçasse conteúdos através de metáforas, ora induzindo-o a colocar mais palavrões no texto do que o necessário, apenas com a intenção de dar ao censor o que cortar, ou, ainda, evitando abordar nas peças assuntos espinhosos e conflitivos (COSTA, 2006, p. 145). A censura acaba por acovardar o artista, pois os mecanismos censórios acabam por criar limites advindos inclusive do próprio artista, modificando sua individualidade e sua obra, buscando “subterfúgios para sobreviver – a aproximar-se do poder, a fazer concessões, a amesquinhar-se” (COSTA, 2006, p. 265). Diante de tantos pontos investigados acerca da censura, há de se concluir, a partir da experiência vista no teatro, que ela trouxe mais malefícios do que proveitos para o teatro brasileiro (agindo, mesmo em tempos distintos, em nome da sociedade, da moral, dos bons costumes, da tradição, da educação de jovens e crianças). Interferindo na arte de uma 110 sociedade, está se interferindo em sua cultura e limitando sua expressão, suas reflexões, seu modo de ser e estar no mundo. Há de se pensar também, se a censura não age de outras formas, na cena atual. Sobre isso, Ivonete nos dá sua opinião: [...] eu sou da Comissão Deliberativa do Funcultura (Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura) e é muito complicado porque são quinze pessoas julgando. Ela é paritária, tem a sociedade civil, onde entram as entidades e a outra parte que é do governo. Às vezes as pessoas indicadas pelo governo não entendem de teatro, nunca sequer foram a um espetáculo de teatro... como aqueles censores, sabe? Dos quais falávamos. Em outros casos tem as pessoas que entendem de teatro, gente da Fundação Joaquim Nabuco, da Universidade Federal de Pernambuco, de vários lugares. Então os que não entendem, vai pela cabeça destes que entendem de teatro, às vezes. No geral, tem os apadrinhamentos. Tudo isso é censura porque restringe, controla, impede, limita. E porque censura mesmo, por exemplo, Augusta (Ferraz) já concorreu duas vezes com o texto “A arte de trepar”, no Funcultura e não passa. Já vi gente dizer: “Um texto desses”? (risos). C – Por acharem pornográfico? I – Sim. É um absurdo, mas ainda existe isso (MELO, Ivonete. 2014b). 24 24 É importante dizer que em 2015, o formato para o julgamento dos projetos no Funcultura se modificou, tornando-se mais aberto e democrático. 111 Capítulo 3 Transgressão: um parto de possibilidades “Por fim, o corpo pode ser concebido como uma arma, não ao modo desses camicases que explodem em nome de diversas causas, mas sim quando ele se interpõe entre o poder como instituição e os efeitos do poder como prática social” Michela Marzano 112 3.1 O CORPO TRANSGRESSOR O corpo é um produto social (SILVA, 2009). E sendo um produto social, nele tatuam- se referências culturais, econômicas e políticas, fatores que se integram à História. Mas geralmente, “[...] colocamos o corpo „entre parênteses‟, isolando-o do processo histórico que o produziu” (MARINHO apud SILVA, 2009, p. 6). Sendo assim, o corpo é uma concepção histórica, no qual sem dúvida, os elementos históricos influenciam no seu modo de ser e estar no mundo: “[...] o corpo é pleno de subjetividade e encontra-se recortado pela historicidade, sendo essa condição corpórea que se desdobra em decisões teóricas e práticas da vida e do conhecimento” (NÓBREGA, 2010, p.10). Mas o corpo não se insere no processo histórico como mero elemento passivo. Esta não é uma relação estanque, na qual só a História parece influenciar sobre o objeto corpo. Há uma dialética, pois o corpo está inscrito num contexto sociocultural como agente atuante e transformador: A História provou que o homem é um agente cujas propriedades intrínsecas reagem vigorosamente contra a poderosa pressão dos padrões sociais e culturais desfavoráveis. O corpo humano não é como uma folha de papel em branco, tal qual afirmava Locke, em que a cultura pode escrever seu texto. O corpo (homem) é uma entidade com sua carga própria de energia estruturada de determinadas formas, que, ao ajustar-se, reage de maneira específica e verificável às condições exteriores (SILVA, 2009, p. 70). O corpo não permanece isolado, apesar de ser uma ideia histórica (NÓBREGA, 2010), como se a História fosse se delineando, se configurando, acontecendo e ele simplesmente a acompanhando, como algo inerte. O corpo é parte do mundo e produto dele, “[...] como referência ao ser humano real, do ser no mundo e das condições econômicas e sociais em que ele tem de viver” (SILVA, 2009, p. 47) e com qualidades subjetivas, configurando-se também como resultado de ação sobre este mesmo mundo: O corpo como sensível exemplar, posto que é feito da mesma matéria do mundo, permite-nos essa imersão, além da delicada e surpreendente tarefa de imprimir sentidos aos acontecimentos, ao mesmo tempo em que nos coloca a difícil e necessária tarefa de escolher e de tomar decisões (NÓBREGA, 2010, p. 10). Se há História, há relações econômicas e políticas, e consequentemente, relações de poder. Há corpos subordinados à disciplina e ao controle, submetidos à constante vigilância e repressão. O poder age de forma coerciva, com o intuito de fabricar corpos dóceis, utilizando técnicas, às vezes minuciosas, de intervenção sobre os mesmos. A docilização dos corpos os 113 deixariam aptos para não mais do que prestar obediência aos que detém o poder, quer seja ele econômico, social ou político. Aliás, a politização, de forma mais ampla, faz parte da subjetividade do corpo e a própria relação do corpo com o sujeito, com os outros e com o mundo, é uma relação de poder (FOUCAULT, 1987). Em toda a História, encontramos relações hierárquicas envolvendo o corpo e o poder, como a exemplo da escravidão, primeira forma de organização de exploração (MARINHO apud SILVA, 2009, p. 7) ou do discurso higienista propagado no Brasil no século XIX, quando a medicina passou a operar como discurso de poder e atua “[...] em todas as áreas [...] de controle do indivíduo e da população para torná-los produtivos, saudáveis, viris, robustos e inofensivos” (SILVA, 2009, p. 153), preparados unicamente com a visão de produção e lucro, própria do capitalismo: As teorias da organização das várias formas de disciplinamento (ou docilização) do corporal se constroem sobre um conjunto de práticas – de coerção física ou normalizantes – de intervenção política, constituindo-se delas as malhas do poder da ordem capitalista. Com esse entendimento, o corpo era considerado como um prolongamento da máquina. A divisão social do trabalho implicaria uma inelutável mecanização do trabalhador, uma alienação corporal (SILVA, 2009, p. 201). Michel Foucault denuncia as relações de poder nas instituições, escolas, prisões, fábricas, manicômios e nos ideários políticos: A construção cultural do corpo está profundamente enraizada na natureza política da sociedade e de suas relações de poder. Diferentes tecnologias políticas de controle do corpo, entre elas os dispositivos sexuais, a higiene e os exercícios escolares contribuíram, ao mesmo tempo, para uma objetivação do corpo e para a criação de espaços de transgressão (NÓBREGA, 2010, p. 12). Neste sentido, sendo o corpo um agente transformador, há a possibilidade de este aceitar as docilizações que atuam sobre si ou não; existem as possibilidades de tentativas de libertação buscadas pelo corpo. A vida também escapa dos mecanismos que tentam controlá- la (FOUCAULT, 2004): Mas foi o investimento realizado nesse percurso histórico que possibilitou o conhecimento do próprio corpo, a conscientização sobre essa rede de poder que age sobre ele, tornando-o capaz de uma atuação de submissão ou de viabilizar mecanismos sociais que lhe permitam resistir à opressão, afrontá-la ou negociar com ela (SILVA, 2009, p. 31). Para Michel de Certeau, A razão técnica acredita que sabe como organizar do melhor modo possível pessoas e coisas, a cada um atribuindo um lugar, um papel [...]. Mas o homem ordinário escapa silenciosamente a essa conformação. Ele inventa o cotidiano, 114 graças às artes de fazer, astúcias sutis, táticas de resistência pelas quais ele altera os objetos e os códigos, se reapropria do espaço e do uso ao seu jeito [...] a multidão sem qualidade não é obediente e passiva, mas abre o próprio caminho numa ampla liberdade em que cada um procura viver do melhor modo possível a ordem social e a violência das coisas (CERTEAU, 2003). O sistema de poder procura forjar corpos para a obediência e submissão, numa educação, sistemas e discursos disciplinares que visam o adestramento corporal, “[...] porém, o corpo é também espaço de transgressão, de rebeldia ao estabelecido [...], é também um espaço revolucionário” (SILVA, 2009, p. 44). É nesta ideia, de violar o estipulado, que os corpos dos escravos, por exemplo, para escapar dos castigos, dançavam para suas entidades camuflando-as em santos da Igreja Católica, as imagens cultuadas pelos seus senhores, associando-se os orixás aos santos a partir das cores e das semelhanças de personalidades, como as associações feitas entre o orixá Iansã (deusa dos raios) e Santa Bárbara (protetora contra raios, tempestades e trovões) e o orixá Ogum (orixá da guerra) e São Jorge (santo guerreiro, cuja imagem aparece matando um dragão) (PRANDI, 2000). Ao mesmo tempo, não deixavam de atuar no seu universo cultural e burlavam a ordem dos que detinham o poder sobre eles; que os escravos desenvolviam movimentos corporais de plano baixo na capoeira, movimentos de muito contato com o solo, para que nos momentos de fugas, caso viessem a se deparar com os capitães do mato, passar a ideia de submissão e de que iam se entregar, mas na verdade, eram movimentos de ataque (BELTRÃO, 2007); que os passistas de frevo criavam movimentos de defesa e ataque e os mascaravam com os passos da dança (SANTOS, 2010); que militantes no período ditatorial trocavam de nomes e identidades, se tornavam nômades e treinavam para transformarem seus corpos em máquina de guerra, para agirem contra a ditadura militar (ROSA, 2013); que no mesmo período, alguns artistas usavam de metáforas, ambiguidades e alusões para escaparem das perseguições e da censura e usavam seus corpos como armas contra o regime. É neste sentido, na ideia de um corpo inscrito na História e que atua nos espaços de transgressão, que chamo aqui de Corpo Transgressor. O Corpo Transgressor age com estas operações astuciosas e clandestinas, às vezes atuando no campo do subjetivo (como no caso do uso de metáforas na arte durante a ditadura), estratégias de combate que Certeau chamou de astúcias do homem ordinário, aquele que não detém o poder, que inventa mil maneiras de não silenciar à conformação (CERTEAU, 2003). O que Certeau chama de “artes de fazer” ou “táticas de resistência” são elaboradas quando se estabelece uma “reapropriação” dos espaços e do uso destes ao seu jeito. 115 E é exatamente com a ideia de reapropriação, principalmente do próprio corpo, que muitas mulheres usaram a nudez como forma de protesto e transgressão nos anos de 1970, período de ascensão do feminismo, no qual o corpo feminino buscou a emancipação da dominação colonial e do patriarcalismo, e seus fundamentos se voltaram para a conceitualização de libertação, que foi mais fortemente evidenciada pelo corpo: Se considerarmos as temáticas levantadas pelo feminismo nos anos de 1970, elas giram em grande parte em torno do corpo. Corpo explorado no trabalho doméstico e no imperativo reprodutor. Corpo mutilado por práticas como a excisão ou as diversas mutilações genitais femininas, no registro hard, e de modo mais soft pelo costume, pela indústria da moda, pelo imperativo da beleza e da juventude eterna. Corpo violado, objeto de todos os tipos de cobiças. Corpo assediado, submetido aos olhares e à avaliação dos homens, manipulado. Corpo modelado pela indústria da beleza e pela cirurgia estética. Em suma, um corpo submisso que existe principalmente para outrem, uma superfície sacrifical (MARZANO, 2012, p. 461). O século XX ainda exaltava a “[...] representação simbólica do corpo feminino reprodutor e preocupação em melhorá-lo” (SILVA, 2009, p. 36). Desta forma, as mulheres buscaram o direito de posse sobre o próprio corpo, por isso um elemento essencial do feminismo nesta época se concentra na liberdade do aborto e da concepção, não sendo, porém, a reivindicação mais importante. Elas também lutaram pela segurança contra a violência sexuada, direito garantido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos que até os nossos dias, não é respeitado ou assegurado. Essa concepção de libertação do corpo está intimamente ligada à questão do poder, o qual ainda prevalecia sobre as mulheres, através da domesticação dos seus corpos, “atravessados por relações simbólicas e físicas do poder que os marcam com suas impressões” (MARZANO, 2012, p. 461). Por isso, a ligação dos pensamentos de várias feministas com a ideia foucaultiana do corpo servil, posto à docilização, repressão, controle, vigilância e disciplina. A libertação do corpo era buscada pela mulher em diversos espaços, e entre eles, o teatral, tal qual aconteceu nos séculos anteriores, quando adentrar no universo do teatro poderia significar para a atriz independência financeira e sexual: A maior preocupação de ser mulher era ser livre. E a escolha da mulher pelo teatro, pela arte de um modo geral, ia para a direção de exercer a liberdade e sair daquela imagem de mulher bem comportada, que era herança, que vinha da mãe, da avó, de você ser recatada, de você casar, de você ser prendada, de você ter filhos, de você resguardar o corpo. O conceito dominante nos anos de 1970 era esse, o senso comum era esse e o contraponto era o exercício de transgressão. Você rompia com tudo isso com o exercício de transgressão e era essa minoria que transgredia. Se eu pegar, por exemplo, o número de mulheres, eu e minhas amigas, que estudávamos numa escola extremamente 116 conservadora, se eu for pegar daquele lote todo de amigas, nós éramos só três que, de fato, romperam com aquilo [...] éramos eu, Cláudia Chabloz e Colette Dantas 25 . E aí, ao optar pela arte muda tudo: comportamento, vida social, vestuário. Você procura outros universos, outros diálogos, outras interlocuções. Mas não era tão bacana você optar pelo desbunde. Desbundar era ter uma repressão muito grande, muito grande (SALDANHA, Stella. 2014b). A libertação e o controle do corpo feminino perpassam de maneira acentuada pelos espaços da sexualidade, pois este corpo passou a explorar as suas possibilidades de prazer (MARZANO, 2012). A libertação como lema do movimento feminista chega com um corpo feminino desnudo e as feministas expõem seus corpos (como o fazem ainda hoje, como o grupo ativista ucraniano Fêmen, criado em 2008), como forma de protesto. Aliás, o lema da liberdade da sexualidade neste período não diz respeito só às mulheres. Ele também foi requisitado pelos homossexuais. Os corpos salientam-se como instrumentos de transgressão, não só pela nudez, mas pelas vestimentas e cabelos que colidiam com o senso comum, na nova moda que seguia em direção oposta ao convencional, que contestava com o preestabelecido: [...] Essa experiência do corpo como instrumento de transgressão, da droga como instrumento de transgressão, das roupas e da nudez como transgressão, porque a indumentária desnudava também. Então os biquínis eram sumaríssimos, as roupas eram transparentes, muito transparentes, barrigas de fora, peitos de fora, então era uma indumentária que desnudava também [...] (SALDANHA, Stella. 2014b). Zélia enfatiza esta fala de Stella, nos dizendo que “[...] até as roupas, o modo de ser transgredia” e que “[...] a época pedia isso, uma certa libertação do corpo” (SALES, Zélia. 2015). E toda essa ideia de liberdade corporal, foco da transgressão dos anos de 1970, vai influenciar, em alguns contextos, no fazer teatral, a exemplo do grupo Oficina Uzyna Uzona de José Celso Martinez Corrêa, de São Paulo, e de forma mais evidente, quanto à explicitação da nudez e da homossexualidade, o Dzi Croquetes do Rio de Janeiro. O teatro nesse momento vai dialogar com outros conteúdos e consequentemente com outras possibilidades cênicas e uma delas, configura-se no afloramento do corpo. Nesta direção, no cenário pernambucano, destaca-se o grupo Vivencial: 25 Que atuaram como atrizes no Teatro Hermilo Borba Filho no mesmo período em que Stella fez parte do grupo, entre 1977 e 1979. 117 Talvez por isso ele esteja sendo revisitado hoje, porque talvez a pauta do Vivencial naquele momento, seja a pauta contemporânea, hoje. Então nesse sentido sim, o Vivencial transgrediu primeiro, viu primeiro, sacou (sic) primeiro. E essa coisa mesmo da politização do desejo, da politização do corpo, era um elemento de muito estranhamento, naquele momento. Não se aceitava isso com facilidade. Muita gente não considerava que aquilo fosse teatro, que aquilo era trabalho de quinta categoria, que aquilo era putaria (sic), que aquilo era vagabundagem [...] (SALDANHA, Stella. 2014a). Em Pernambuco, os grupos que pensavam o corpo como canal de denúncia atuavam em Recife e Olinda, segundo três das atrizes entrevistadas: Recife e Olinda. Fazíamos happenings, mas quando a polícia chegava já tínhamos saído do lugar. Mas fazíamos mais em Olinda. Olinda era mais liberta, de tudo! Sexo, drogas, rock and roll. Era a cidade onde estavam os poetas, os artistas, os grandes pintores. Lá estavam todos os politizados e transgressores da época. Olinda era mais fácil de transitar e tudo era bem vindo. Os nossos laboratórios eram na Ribeira. Em Olinda, a gente se sentia forte [...] Haviam nas outras cidades grupos esquerdistas, subversivos, mas a coisa da politização do corpo, só o Vivencial (MELO, Ivonete. 2014b). Recife e Olinda. Havia o Teatro Experimental de Arte (TEA), de Caruaru, que já tinha um movimento forte que tinha uma inserção muito maior em outras cidades brasileiras do que em Recife. Mas o foco da transgressão era Recife e Olinda e num dado momento, Olinda, porque todos os malucos, todos os rebeldes migraram para Olinda e os bares, os teatros e as galerias de arte (SALDANHA, Stella. 2014b). [...] Vivencial, fortemente. Aí (sic) o TUCAP e o Expressão. Acho que... ao meu ver, acho que era Recife e Olinda. O grupo “Ponta de Rua”, de teatro de rua, de Olinda, era muito forte nesse sentido também, o THBF... (SALES, Zélia. 2015). A politização do corpo perpassa, obviamente, o campo político. Ela vai além e incorpora-se no âmbito do desejo, tão reprimido e tão caro aos anseios daquele momento, apesar de ser parte integrante do corpo: “O sujeito corpóreo, sensorial, assim descrito, também é desejo. O corpo, a estesiologia emerge da vida e do desejo” (NÓBREGA, 2010, p. 101). No Vivencial, este desejo veio através dos corpos nus, visto que a nudez parecia ser a melhor forma de protesto naquele momento (FIGUEIRÔA; BEZERRA; SALDANHA, 2011): [...] Se exibiam muito os corpos no Vivencial. Se bem que o streap tease chegou depois, no Diversiones, mas antes sempre foi uma coisa arrebatadora. De uma tira se fazia um maiô. Tudo era muito sexual, eu acho. Tinha um apelo sexual, emanava. E eram todos jovens, todos descobrindo, exercitando e facilitando. Facilitando para prazeres (COSTA, Suzana. 2014a). Há, na proposta vivencialesca, a mescla do corpo com a política e o desejo, 118 [...] o grupo vivencial deseja colocar em cena, no nível de uma discussão permanente, a dialética entre o erótico e o político, sem pedir permissão nem a Platão nem a Marx-Engels para revolucionar a palavra no corpo. [...] A palavra vivencial é assumida ao pé da letra e consumida nas letras do corpo, desnorteando as ó-posições incômodas, travestindo a política de pornografia e vice-versa (BRITO, 1982, p. 63). É importante salientar que a nudez vivencialesca era explorada igualmente nos corpos masculinos, tanto quanto a feminina, e ambas com os mesmos objetivos, de transgressão. Neste sentido, o corpo vivencialesco é sexuado, ligado à liberdade do desejo (GUATTARI, 1981), salienta-se também como forma de desconstrução dos binarismos como homem/mulher, que são desenvolvidos na esfera social e inculcados normalmente, no corpo social: Ao nível do corpo social, a libido encontra-se efetivamente tomada pelos dois sistemas de oposição de classe e de sexo: ela tem que ser machona, falocrática; ela tem que binarizar todos os valores – oposições forte/fraco, rico/pobre, útil/inútil, limpo/sujo, etc. Ao nível do corpo sexuado, a libido está empenhada, pelo contrário, num devir mulher (GUATTARI, 1981, p. 35). Outra peculiaridade do corpo vivencialesco se concentra na ideia de que suas experiências de vida, insculpidas no corpo, são postas em cena. E sendo um espaço revolucionário, (SILVA, 2009), o corpo no Vivencial se apresenta subversivo, enfrenta o regime ditatorial e incita reflexão. É posto em cena para também colidir: “[...] desconstruir a representação socialmente estabelecida, as marcas míticas e místicas tatuadas nos corpos” (SILVA, 2009, p. 48). Talvez esta seja, dentre tantas particularidades do grupo, a mais inspiradora, o fato deste corpo ter trabalhado com uma linguagem onde vida e cena se perfuravam entre si, exercendo a função de extensão do real, com trabalhos cênicos desenvolvidos a partir de suas vivências pessoais. Encená-las, não era em absoluto momentos apenas alegres. Levar para a cena impressões pessoais, muito íntimas, experiências de vida por vezes decepcionantes, tristes, era também um elemento provocador, o que faz do corpo vivencialesco desafiador dele mesmo, ao lembrar de tais impressões. Não era apenas um corpo protesto contra a ditadura social vigente, mas também um embate com as ditaduras pessoais, em relação à sexualidade, à posição social, às dificuldades. 119 O corpo no Vivencial apresentava-se como um campo vasto para as múltiplas linguagens cênicas. Segundo Alexandre Figueirôa: “O uso do corpo como elemento expressivo e pleno de possibilidades de linguagem [...] era um dos elementos melhor trabalhados pelo Vivencial em suas montagens” (FIGUEIRÔA; BEZERRA; SALDANHA, 2011, p. 225). Um exemplo desta possibilidade de linguagem levada para a cena é a participação do grupo no I Salão de Arte moderna no Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco com a performance “Corpo sobre tela”, experiência pictórica, embalada com a música Rhithmetron de Marlos Nobre, quando tirou o primeiro lugar no “Salão dos Novos- Novas propostas”. A performance levava para a cena os corpos de Ivonete, de Suzana e de mais três atores, encharcados de tinta para pintarem uma tela em branco. Os demais concorrentes mostraram telas convencionais. Metaforicamente, o grupo propunha neste trabalho, a junção das habilidades de corpos unidos que, com um determinado fim, atuam decididamente na construção de espaços, funcionando como uma engrenagem onde todos são coautores. Alguns dos espetáculos do Vivencial foram produzidos também em linguagem cinematográfica, unindo a marginalidade do grupo à intelectualidade acadêmica do filósofo Jomard Muniz de Brito, cineasta dos curtas. Porém, não se tratavam de “teatro filmado”, mas de verdadeiros “happenings, com um bom resultado em super-8” (FIGUEIRÔA apud FERRAZ; DOURADO; SILVA JÚNIOR, 2005, p. 98). Nos filmes 26 “Toques” (1975) e “Jogos Frugais Frutais” (1979), o nu é visto como algo natural e não imoral. Os corpos sugerem as liberdades políticas de expressão, de desejos, de sexo e sexualidade. Transparecem as atitudes de seus intérpretes e a proposta do corpo vivencialesco. Este sugere autonomia. É um corpo que, dentro da esfera política, se mostra autosuficiente, subverte as normas impostas na época e gera o protesto: “Hoje temos grupos de mulheres que fazem protestos nuas, era também essa a nossa intenção, de protestar, de ir ao encontro ao que era preestabelecido [...] O nu era regozijante, uma sensação de eu posso, eu faço!” (MELO, Ivonete. 2014a). Ivonete frisa que era também para chocar, para que as pessoas se sentissem incomodadas ou que atentassem para o fato de que eram livres, que seus corpos também eram livres: “de sacudir as pessoas para fazerem o que quiserem, para ousarem [...], ultrapassar 26 Disponíveis em www.youtube.com/watch?v=vGUd_m1gYz4 e www.youtube.com/watch?v=JGaooahdba8 em 30/05/2014. 120 limites sem ter que justificar” (MELO, Ivonete. 2014a). Havia sim, uma amostragem, mas no sentido mais amplo. Ele trazia algum teor sexual, mas carregado de intenções subversivas. Ivonete diz que o desejo e a sexualidade não eram a força maior que movia o corpo feminino vivencialesco. Ele estaria mais voltado para o escracho, para o protesto e a para a transgressão do que para a sexualidade. Tendo o corpo como elemento mais relevante, o filme “Jogos Frutais Frugais” mostra, a princípio, uma simulação, uma transformação de um homem em mulher, com close nas feições dos dois atores. A mulher, Ivonete, aparece nua em harmonia com telas, pinturas e frutas tropicais. Moscas invadem o corpo da atriz e as frutas, enquanto são dados closes nos quadros, até Ivonete simular um ato sexual. Suzana aparece em “Toques” num nu que exala liberdade. Num ambiente natural, com muito verde, elabora-se um jogo corporal que convida o espectador para dentro da tela, para um jogo cênico. Porém, esta forma arrebatadora do uso da nudez no grupo foi bastante incompreendida na época, o que os tornavam ainda mais marginalizados. Não foi entendida como forma de resistência, como um “[...] porta-voz dos acontecimentos da época. Era prescrito o „certo‟, pra se fazer o „certo‟ e nós íamos de encontro com esse corpo. Apesar de que as pessoas queriam fazer a mesma coisa e não tinham coragem [...]” (MELO, Ivonete. 2014a). Foi estigmatizada como puro exibicionismo: [...] muita gente pensava e acreditava que o corpo no Vivencial era só pra isso, pra exibição, mas não era bem assim. Ele era protesto e parecia dizer: “Seja você, faça o que você gosta. Seja livre. Não dê satisfações. Não mostre que você é preso a alguém ou a alguma coisa. Você é uma pessoa que quer liberdade, que é livre. Você não precisa estar em proibição e julgamento” [...] (MELO, Ivonete. 2014a). Ao mesmo tempo em que propunham novas possibilidades cênicas através do corpo, provocavam também desafetos com outros grupos tradicionais locais, com o público e com a crítica que não os viam com seriedade, sendo até considerado uma forma amadora de se fazer teatro, como as críticas do jornalista Valdi Coutinho, que na época, cobrava uma postura mais séria do grupo, dizendo abertamente que o que eles faziam não era teatro, mas “shows rebolativos, lembrando muito determinados programas de televisão” (COUTINHO apud FIGUEIRÔA; BEZERRA; SALDANHA, 2011, p.155). 121 No Teatro Hermilo Borba Filho, essa ideia de saliência do corpo, de usá-lo como forma de politização, aparece de forma mais discreta que no Vivencial, como a cena de seminudez de Stella em “Um grito parado no ar”, de 1979 e em outras experiências do grupo com proposta de eminência corporal: [...] os atores usavam malhas muito coladas no corpo, o próprio “Pluft, o fantasminha”, que era um espetáculo infantil, eram malhas brancas, um pouco transparentes. Até me lembro que uma vez, quando terminou o espetáculo, uma mãe, que tinha ido com o filhinho, deixou um bilhete na minha mão, comentando sobre o espetáculo, elogiando muito, mas fazendo ressalva à ousadia das roupas, à transparência das malhas. Em “Morte e Vida Severina”, os atores trocavam de roupa no palco, antes de começar o espetáculo. Então o corpo era um instrumento de colocação do desejo como uma atitude política (SALDANHA, Stella. 2014b). A politização do corpo no grupo ainda se dava, segundo Stella, também pela via do despojo, em que o corpo do intérprete era preparado para criação a partir de suas possibilidades, não restando brecha para a interferência de outros elementos cênicos auxiliarem na interpretação do ator/atriz. [...] E também se estava se escrevendo outras possibilidades de escritura cênica. E essa procura por outras escrituras cênicas passavam pelo corpo que também passava pelo despojamento, no caso do THBF. Marcus (Siqueira) tinha verdadeira aversão à opulência em cena. Era um teatro muito despojado, onde prevalecia a figura do ator. Então nessa escolha da figura do ator, em detrimento do resto, havia também uma presença cênica corporal muito forte (SALDANHA, Stella. 2014b). No contexto pernambucano, certamente o Vivencial potencializou a ideia do corpo como postura política com a nudez (SALDANHA, Stella. 2014; SALES, Zélia. 2015; MELO, Ivonete. 2014), mas o Corpo Transgressor não age apenas por intermédio dela, como visto no THBF e podendo perceber-se fortemente no Grupo Expressão. Posições, movimentos e sons produzidos pelo corpo podem também significar meios cênicos de transgressão, como em “Hipólito”, montagem do Expressão de 1976. Numa montagem sem cenário, “Hipólito” contava com uma rede de pescar que cobria o elenco. O coro grego ficava debaixo desta rede, numa metáfora de prisão, de repressão e de ânsia por libertação, muito sugestiva naquele contexto. Os intérpretes, sob a rede, eram o povo oprimido e quando um dos atores ou uma das atrizes saía de debaixo do adereço, assumia um/uma personagem do poder, Hipólito, Teseu, Fedra, Afrodite ou Ártemis, para quando retornasse à rede novamente, assumir mais uma vez a condição de povo oprimido, visto que o poder é passageiro. Havia intensa 122 movimentação dos intérpretes, com braços, mãos, pés e pernas que saíam por entre as aberturas da rede. Os movimentos e sons produzidos pelos atores embaixo da rede de pescar auxiliavam nas analogias, destacando-se as ideias de aprisionamento, sufoco, mas sem silenciar ao poder. Sempre há como protestar, mesmo que aprisionado, há meios (no espetáculo, os orifícios da rede), aberturas para fazê-lo. “João, Amor e Maria” de 1978, traz uma cena de parto protagonizada por Zélia e que, mesmo representando uma ação natural do corpo feminino, a de parir, escandaliza as freiras e aciona a censura: “[...] o parto, as freiras acharam uma cena muito forte e mandaram cortar. Inclusive, a censura mandou cortar a palavra „parir‟” (SALES, Zélia. 2015). Para Zélia, seu corpo cênico “[...] Foi despojo. Eu não fiquei nua em cena, mas tanto nela quanto no cotidiano, meu corpo falava, as pessoas sabiam que eu era esquerdista, subversiva, o corpo dizia isso intensamente” (SALES, Zélia. 2015). Porque no corpo, em geral, já perpassam as relações do poder e da política. Há momentos na História, em que o elemento político surge como elemento determinante da coerência social (NÓBREGA, 2010), atribuindo-se a ele, o abuso do poder. O corpo entrecruza-se fortemente com a natureza política da sociedade (NÓBREGA, 2010), havendo em alguns contextos, intervenção política sobre ele (SILVA, 2009). Se transgride as normas impostas, no momento em que o Corpo Transgressor viola os sistemas e códigos cunhados pelo poder, ele também passa a ser lugar de poder, porque o mesmo, não é unilateral (FOUCAULT, 1987). Analisando-se os corpos dos grupos de teatro estudados, postos em cena de forma subversiva, percebe-se autonomia nestes corpos, que resistem à força dominante: O corpo político é constituído por atrações e artifícios, lugar de poder. Certamente a razão humana é que torna possível a passagem do estado natural ao estado político, mas o processo de coalizão política não é um processo orgânico, mas um processo mecânico de subordinação da força individual ao poder soberano (MARZANO, 2012, p. 286). No momento em que este Corpo Transgressor é posto em cena, discordando do conservadorismo enfurecido da época, ele passa a ser a própria encarnação do poder. O poder é aqui entendido em seu sentido amplo, também como capacidade ou possibilidade de fazer algo ou como o direito de agir e de decidir. O poder é o responsável pela inclinação do corpo 123 para assumir um molde real (físico) e outro simbólico. O corpo é físico e também é uma função (MARZANO, 2012). Obviamente, moldado a partir do contexto em que está inserido, desenvolve formas de se justificar no mundo, e o poder, é uma das razões pelas quais o corpo busca tais justificativas: “O corpo tem uma linguagem. Uma linguagem de poder. Poder que circula, que funciona em rede [...]” (SILVA, 2009, p. 46); poder este que se manifesta tanto para a inquietude, quanto para a neutralidade, advindas de padrões preestabelecidos. Como os grupos de teatro que agiam em oposição ao regime, os corpos cênicos neles inseridos voltavam-se para esta autonomia para gerir suas decisões, no sentido de tomar partido: trata- se da consciência de uma insubordinação corpórea em resposta a um determinado contexto. É um corpo que, dentro da esfera política, se mostra autosuficiente para causar impacto, para gerar o protesto. De forma intensiva, o corpo se “absolutiza” (MARZANO, 2012), tem consciência do seu papel social, o de alertar, protestar, politizar-se e politizar. O Corpo Transgressor age no Vivencial, no THBF e no Expressão tomando para si conceitos diferentes que se entrelaçam com contextos diferentes, de identidades dos intérpretes de cada grupo e das propostas e relações interiores dos mesmos. O corpo se configura na dinâmica dos processos orgânicos, da cultura, dos afetos e da história, criando uma linguagem sensível, em que não há a busca por uma correspondência pontual com as coisas, uma adequação, e sim uma expressão apenas aproximada, permitindo diferentes olhares (NÓBREGA, 2010, p. 86). Neste sentido, “[...] se a metáfora muda, muda o entendimento ontológico do corpo e a sua possibilidade de experimentação” (GREINER, 2008, p. 122). 3.2 O CORPO FEMININO NA DITADURA: ATRIZES E MILITANTES Mas por que ainda falar do período ditatorial no Brasil? A ditadura é um passado que é recente, que nos chama a todo instante, que nos leva a procurar por respostas. Não se trata apenas de discorrer sobre os “entretempos”, buscar no passado reflexões acerca do presente ou do futuro (como o fato da desestabilização da economia, a intensificação da corrupção e incoerências políticas atuais serem efeitos em grande parte produzidos pela ditadura), pois a história não é feita apenas de situações visíveis e registradas, como antes se concordava, mas também do desbravamento de outros territórios. Dentre eles, a posição da mulher. Segundo 124 Ana Maria Colling, “a história da repressão durante o regime militar é uma história de homens” (COLLING, 1997, p. 65). A ditadura produziu corpos marcados pelo governo repressivo, corpos que se dedicaram à militância clandestina em oposição ao regime. Neste período obscuro, sabe-se que muitas mulheres militantes precisaram viver na clandestinidade e fazerem de seus corpos instrumentos “invisíveis” para combaterem a repressão. Corpos “invisíveis”, pois era necessário tornarem-se nulas ante a sociedade, chegar e sair sem serem percebidas nos encontros e reuniões clandestinas e mudar constantemente de nomes, lugares, identidades. Susel Oliveira da Rosa nos fala que “transformar seu corpo em máquina de guerra passou pela experiência da clandestinidade” (ROSA, 2013, p. 46), referindo-se às experiências vividas por suas entrevistadas que foram militantes na ditadura. Nesse contexto, no qual a ordem era dissolver qualquer voz discordante, as mulheres militantes cometiam um duplo crime, o de se opor ao regime e o crime enquanto gênero, visto que a figura de “mãe e esposa” voltava-se para a figura da “prostituta”, estigma que perdura até hoje, associado à identidade da mulher que se arrisca a ser ousada em qualquer campo social: “A natureza é sempre invocada na condenação das mulheres que exercitam sua liberdade, que abrem voos muito além dos limites domésticos” (SWAIN apud ROSA, 2013, p. 37). Elizabeth Ferreira salienta este pensamento lembrando que as mulheres não eram só condenadas por serem terroristas, mas acusadas duplamente, por serem terroristas e mulheres (FERREIRA apud ROSA, 2013, p.59). Ao corpo social da mulher, é instilado o que a autora chama de “maternidade social”, lugar onde a procriação biológica é acentuada. Os filhos e a amamentação seriam os argumentos para excluírem a mulher do campo social. As militantes viviam num universo masculinizado, pois a figura universal do militante era masculina. Eram induzidas a tomarem a forma masculina e assim muitas mulheres precisaram se dessexuar para atuarem na luta armada, gerando muitas denominações depreciativas, verdadeiros estigmas contra a mulher, como “feias”, “mal amadas”, “prostitutas” ou “machonas”. Passavam por um processo de aniquilamento de identidade, advindo muitas vezes também dos próprios companheiros dos grupos dos quais faziam parte. O ato de se “enfeiar” ou de se masculinizar é muito presente nos relatos de muitas militantes que atuaram na ditadura no Brasil, no uso de roupas largas e cabelos curtos, no não uso de maquiagem ou de qualquer acessório que as tornassem femininas, ao passo que “os homens 125 militantes não precisaram passar por nenhuma transformação visual”, segundo Nilce, uma das militantes entrevistadas por Rosa (ROSA, 2013, p. 32). Os discursos dos movimentos esquerdistas propagavam a igualdade, mas a verdade é que as “mulheres puderam sentir muitas discriminações por parte de seus próprios companheiros, tanto pela superproteção, quanto pela subestimação de sua capacidade física e intelectual” (TELES apud ROSA, 2013, p.34). Assim, a partir do que era conveniente para os militantes masculinos, a “invisibilidade” da mulher era imposta, forçadas a uma discrição exacerbada, anulando parte da presença puramente feminina na luta contra a repressão (afinal, teoricamente, eram todos militantes) ou eram impostas a fazerem “serviços de mulher”, como servir café ou fazer a faxina para os homens. Atuavam como ajudantes dos militantes masculinos, eram meras coadjuvantes nos trabalhos de militância. Além de terem seus corpos dessexuados e serem vítimas de discriminações de gênero por parte dos próprios companheiros, o corpo da mulher militante na ditadura era alvo não só das atrocidades físicas e psicológicas advindas das torturas: era alvo também do castigo masculino, que visava punir as mulheres também por serem mulheres. Atitude puramente misógina, a diminuição do gênero feminino também fazia parte dos processos de torturas. É certo que tanto as torturas físicas (inclusive nos órgãos sexuais) e psicológicas eram aplicadas em ambos os sexos, mas para a mulher foi reservada a submissão do poder masculino sobre o feminino, pois o estupro era realizado neste período especificamente contra os corpos das mulheres. Eram agentes masculinos que utilizavam a diferença de gênero como mais uma forma de atingir as mulheres “porque são mulheres, pois se não são propriedade de um homem, pertencem, no sistema patriarcal, a todos eles”, (SWAIN apud ROSA, 2013, p.59). O relato de Inês Etienne Romeu 27 , diz o seguinte: A qualquer hora do dia ou da noite sofria agressões físicas e morais. “Márcio” invadia minha cela para “examinar” meu ânus e verificar se “Camarão” havia praticado sodomia comigo. Este mesmo “Márcio” obrigou-me a segurar seu pênis, enquanto se contorcia obscenamente. Durante este período fui estuprada duas vezes por Camarão e era obrigada a limpar a cozinha completamente nua, ouvindo gracejos e obscenidades, os mais grosseiros (CHIAVENATO, 2005, p. 187). 27“Brasil: nunca mais – Um relato para a história”, traz depoimentos de mulheres vítimas não só de estupros, mas também de abortos, durante a ditadura (CHIAVENATO, 2004). 126 O estupro é, inclusive, segundo Marzano, quando das vezes em que a vítima permanece viva, “[...] um homicídio sem cadáver. A vítima continua viva, mas algo dentro dela ficou irrevogavelmente destruído, pois o estupro é um atentado não apenas à feminilidade, mas também à maternidade” (MARZANO, 2012, p. 429), além de transpor o corpo a uma outra realidade, onde não acontece sua reconstituição, é um “abuso de todos os sentidos no qual nenhuma parte do corpo continua realmente no lugar” (MARZANO, 2012, p. 429). Com a nudez e a humilhação diante de homens imorais e truculentos, qualquer confissão inventada era mantida. Sabe-se, pelo simples bom senso que, dentro das leis democráticas, qualquer confissão à base de tortura é nula porque o torturado fala o que o seu torturador quer ouvir. A tortura mostra-se como poder absoluto sobre o corpo da vítima impotente, que está à mercê deste poder. Ela anula a vítima pela desarticulação da identidade, através de violências físicas e morais e o próprio corpo da vítima passa a ser seu “[...] inimigo disfarçado que está exposto aos excessos dos carrascos [...]” (MARZANO, 2012, p. 973). Nesta perspectiva, as mulheres militantes resistiam não só às torturas e à ação misógina por parte dos homens, mas algumas, em alguns casos, às agressões produzidas pelos estupros e em geral, aos limites dos próprios corpos. Corpos resistentes à antidemocracia e à injustiça social. Corpos femininos, marcados pelo regime da ditadura, que exalavam o desejo libertário da igualdade social e das diferenças humanas. Diferentemente das mulheres militantes, que precisavam se esconder para atuarem contra o regime, as atrizes faziam o oposto: se expunham para discordar da situação sociopolítica vigente, visto que, obviamente, o teatro é uma atividade de exibição. Como as militantes, em alguns casos foram necessárias as fugas ou os exílios de atrizes ou ainda algumas tiveram que passar pela experiência da clandestinidade, devido ao teor subversivo e politizado que permeavam as montagens teatrais dos grupos em que atuavam, como a pernambucana Ilva Niño, atriz do Teatro de Cultura Popular, como visto anteriormente. Algumas atrizes que se opuseram ao regime usaram seus corpos, em alguns casos nus, como Ivonete, atriz do Vivencial, com os mesmos propósitos que os das mulheres militantes, que eram os de discordar da ditadura. Se o nu para as militantes, era usado para a propagação das torturas, no teatro ele transgride e passa a ser arma contra a repressão. Ao assumir a militância política, algumas militantes negam sua sexualidade, como precondição para chegar 127 a uma relação de suposta igualdade com os homens. E em alguns casos particulares de atrizes, como no Vivencial, acontece o oposto: elas enfatizam a feminilidade e usam o nu em seus trabalhos artísticos para mostrarem sua posição contrária aos desmandos ditatoriais. Quais mecanismos se concentrariam na esfera teatral que permitiram essa diferenciação ou liberação? Para Ivonete Melo, [...] o teatro tem meios que você pode dizer uma coisa de vários modos, entendeu? Você pode usar várias inflexões, assim como o corpo, a gente pode introduzir ele (sic) por essa inflexão que vai passar despercebido para as pessoas que procuravam censurar. O teatro tem o poder de dar o duplo sentido [...] (MELO, Ivonete. 2014a). Ivonete pensa sobre os artifícios que o teatro pode desenvolver através dos seus elementos. Na iluminação cênica que, ao mesmo tempo que esconde, incita reflexões; nos figurinos e maquiagens que denunciavam, através dos personagens que simbolizavam o poder, com suas características que representavam os desmandos da ditadura; nos textos dramatúrgicos e cênicos, que apontavam os horrores causados pelo regime. Para Suzana, “[...] o teatro tem uma força diferente do que falar normalmente” (COSTA, Suzana. 2014a).“Normalmente”, seria o cotidiano, a vida real. Ela também reflete sobre o fato de, no caso do Vivencial, o grupo ter mecanismos particulares, pois não era desenvolvido no grupo um teatro puramente político, não era partidário, voltava-se mais para a liberdade de expressão e do corpo. Havia, para ela, uma permissão implícita para com o Vivencial, porque era um grupo de jovens que não representava perigo. Neste sentido, talvez a nudez do Vivencial tenha driblado a ditadura, ela explicitava-se, atraindo maior atenção do que o próprio teor político, protestando implicitamente através do cômico e do escracho. Para Stella, as estratégias das metáforas nos contextos dos textos dramatúrgicos, nas sonoplastias e nas encenações em geral, no intuito de despistar o olhar dos censores, eram a força que permitia o confronto com a ditadura, a forma pela qual o teatro de teor subversivo afrontava o regime e não era percebido. A montagem de “Os fuzis da Senhora Carrar”, de Bertolt Brecht, experiência vivida por ela neste sentido, trazia para a cena contextos semelhantes aos que estavam acontecendo com o Brasil naquele momento, falando do regime ditatorial espanhol e o franquismo num período antecessor. A mesma reflexão é desenvolvida por Zélia, que observa as metáforas e ambiguidades como os mecanismos principais utilizados pelo teatro na época para driblar o poder político. 128 3.3 SER MULHER E ATUAR NO TEATRO NA DITADURA MILITAR Os anos de 1970 chegaram ainda com a ideia de modelo de mulher soberana, como exemplo de qualidades morais, disposta a sacrificar seus ideais para representar este modelo. A castidade ainda era exaltada e os corpos femininos deveriam exalar qualidades próprias do “feminino”, como a delicadeza, além de serem o símbolo da reprodução (SILVA, 2009). Em resposta, o feminismo propaga a libertação deste corpo (MARZANO, 2012). Culturalmente, o corpo feminino ainda se encontrava numa relação de poder, como esteve em toda a História e nos anos de 1970 influencia-se pelo pensamento da descolonização do corpo como uma ideia metafórica da necessidade de uma solução política, além da cultural, exigindo a libertação do seu território: o corpo ocupou de modo analógico o papel de território (MARZANO, 2012), onde as mulheres seriam seus donos. A exposição do corpo feminino se constitui nesta década como símbolo de liberdade. Esta é, em linhas gerais, a posição da mulher no cenário brasileiro nos anos de 1970. Mas esta proposição, a de ser mulher e atriz neste período ou em qualquer outro, perpassa questões subjetivas e individuais. Desse modo, a pesquisa deter-se-á aqui nesta década, visto que, mesmo a ditadura ter se iniciado na década de 1960 e se estendido até o decênio de 1980, a posição da mulher se dava de formas diferentes nas três décadas em questão, além do que, as individualidades e contextos pessoais interferem diretamente no processo a ser analisado. Assim, tomou-se como base a análise das falas das atrizes aqui entrevistadas. O princípio geral nos grupos aqui estudados é o fato de contarem com poucas mulheres para muitos homens, exceto no Expressão. No Vivencial, Ivonete elenca, no período em que atuou no grupo, desde “O Pássaro Encantado da Gruta do Ubajara”, de 1975 até “All Star Tapuias”, de 1980, três atrizes fixas: ela própria, Suzana Costa e Madalena Alves, além de Auricéia Fraga. Suzana estreia no Vivencial com “Genesíaco”, de 1974 e permanece até “A Loja da Democracia” de 1979. Nas fases de atuação de ambas, o grupo contou com a participação de cerca de quarenta homens como atores, entre participações esporádicas e fixas, contando-se ainda participação genuinamente masculina na idealização das direções, iluminações, cenários, figurinos, adereços, concepções de maquiagem e sonoplastia. Apenas em “Notícias Tropicais” de 1980, “Bonecas Falando para o Mundo”, de 1979 e “Repúblicas Independentes, Darling” de 1978, tais elementos eram assinados pelo grupo como um todo. É um número reduzido de espetáculos, no qual as mulheres participam na concepção dos outros 129 elementos cênicos, à vista das vinte produções que o Vivencial gerou de 1974 a 1980 28 , fora as performances, happenings, etc, além de ser também mínima a presença feminina como um todo, no grupo. Quanto a essa questão, a marginalidade do grupo pode ter afastado as mulheres, pois as poucas que haviam no grupo, eram estigmatizadas como prostitutas. O discurso da comparação da atividade de atriz como prostituta, vista em períodos anteriores, inclui-se no contexto pessoal de Ivonete: Sim, porque de um modo geral nós éramos um grupo marginalizado. Éramos olhados como marginais. As mulheres do grupo eram “putas ou sapatões” (sic). Homem era frango (sic). Tinha esse estigma, das pessoas, dos artistas dos outros grupos, das outras atrizes da época, muitas censuravam a gente. Alguns anos depois vi muitas atrizes, bailarinas com os corpos nus, algumas até que criticavam a gente. Nem acreditei. No Vivencial, muitos homens (espectadores) me procuravam para sair com eles [...] (MELO, Ivonete. 2014a). Segundo a atriz, até mesmo atrizes do próprio Vivencial criticavam o seu trabalho com a nudez em cena. Ivonete nos fala sobre mais este tipo de censura pelo qual ela viveu, vinda de mulheres e ademais do próprio grupo, com as quais trabalhava. O processo de cada intérprete dentro do grupo, neste sentido, era muito individual, pois nem todos trabalhavam com as cenas de nudez. Ser atriz de um grupo marginalizado já era o suficiente para ser discriminada, como nos diz a própria atriz: [...] Porque eu era discriminada, era enjeitada pelos diretores de teatro da época, porque era tudo dentro das características... “eram certinhos” e eles tinham medo de trabalhar comigo porque podia ser que eu extrapolasse no texto, fugisse do texto [...] depravasse o texto [...]. Então eles não me chamavam pra trabalhar com eles, não queriam porque eu era de um grupo marginal [...] e aí (sic) como eu, no Vivencial, extrapolava todos os limites, não só com o texto, mas também com o corpo, então eles me julgavam uma pessoa depravada, excluída, no contexto do momento. Eu era uma atriz que as próprias atrizes do momento [...] me rejeitavam, não concordavam com aquele tipo de teatro do Vivencial, o teatro que eu fazia [...]. Criou-se um mito, parece que se fôssemos para outro contexto, levaríamos a linguagem do Vivencial juntos (MELO, Ivonete. 2014b). 28 Arquivos Antonio Cadengue. In: Transgressão em 3 atos. FIGUEIRÔA, Alexandre; BEZERRA, Cláudio; SALDANHA, Stella Maris. Recife: FCCR, 2011. 130 Entretanto, a atriz também fala sobre a importância deste despojamento em cena trabalhado no Vivencial, processo do qual ela fez parte. Ela observa que esta proposta incentivou a cena local, após cair o AI-5, a transpor os limites do corpo. Ela vê, por exemplo, a importância da concepção vivencialesca para a inspiração dos grupos atuais e na revisitação dos estudos contemporâneos à poética do Vivencial: [...] Ainda hoje os coletivos fazem muito da linguagem do Vivencial. O trabalho do vivencial hoje é motivo para pesquisas nas universidades, nas escolas de teatro, inspira vídeos e filme, o “Tatuagem” [...]. E engraçado é que quando o Vivencial terminou, eu era a atriz que mais trabalhava em Recife. Todos me chamavam para trabalhar, a cotação foi lá pra cima. De puta eu passei a ser rainha (MELO, Ivonete. 2014b). Suzana Costa fez trabalhos de seminudez no Vivencial e de nudez apenas no filme “Toques”, de 1975 e num ensaio fotográfico do grupo. Mesmo tendo sido atriz do mesmo grupo, que talvez tenha sido o mais marginalizado na época em Pernambuco, a atriz conta que sua experiência, neste sentido, foi diferente da de Ivonete: [...] O fato é que eu nunca frequentei lugares que pudesse ser discriminada. Eu vivia com os malucos. Claro que a família... quando eu comecei a fazer teatro eu mudei o comportamento, as roupas, as ideias, tinham as pessoas que estranhavam um pouco, mas eu nunca me senti discriminada. Não sei se é a autoestima que é elevada [...]. Pra mim, ser atriz na ditadura foi tranquilo. E mesmo com as negociações, na Censura, nunca tive problemas maiores. Quando eles cortavam, cortavam mesmo, mas nem sempre a gente obedecia. Era bem tratada, lá [...] Porque aqui em Pernambuco não teve essa coisa assim. Eu via coisas do tipo “a polícia não deixar acontecer um show em Fazenda nova”. Eu acho que a perseguição era mais com a parte da música do que com a de teatro. Porque já eram os anos de 1970, já havia abrandado um pouco a violência. [...] Mas nada físico nem com pressão psicológica, não comigo (COSTA, Suzana. 2014b). A respeito da ditadura em Pernambuco, ela entende como uma questão de costume, como se já estivesse inserida naquele contexto, e desse modo, já habituada a ele: Teve ditadura em Recife, mas sabe um passarinho que já nasce na gaiola? Então é claro que ele tenta sair, mas ele já está mais ou menos acostumado na gaiola. Quando eu comecei a fazer teatro já existia censura, não foi uma coisa que eu desfrutei de total liberdade e depois veio uma coisa pra (sic) cercear, entendeu? Então já existia aquilo, tinha censura, então era uma coisa quase que natural a gente ter que se submeter [...] (COSTA, Suzana. 2014b). O THBF, no período em que Stella atuou, visto que “[...] o Hermilo, ele tem vários momentos, então são componentes de vários momentos diferentes [...]” (SALDANHA, Stella. 2014b), a atriz enumera ela própria, Colette Dantas, Cláudia Chabloz, Sandra Branco, Bárbara 131 Lopes, Socorro Albino, Anita Cavalcanti, Simone Thé, Cristina Banda e Júlia Lemos, como atrizes que trabalharam no grupo entre 1977 e 1979. A atriz acrescenta que o grupo também contava com mais homens do que mulheres. No contexto de Stella, a opção pela carreira no teatro também não foi motivo para a atriz ser discriminada no seu meio social, apesar de reconhecer que tanto era difícil ser atriz, ser adolescente ou ser mulher na ditadura. A juventude para ela era exercer a rebeldia e neste sentido, ser jovem era um afronta e ser uma jovem rebelde era ainda mais difícil, pois esperava-se da mulher um comportamento padrão, que estivesse dentro dos modelos das mães e avós recatadas (SALDANHA, Stella. 2014b). E sendo atriz de um grupo esquerdista, acompanhou as dificuldades pelas quais o grupo passou com a polícia, para poder apresentar os trabalhos profissionais e as montagens didáticas do curso de formação de ator que o THBF oferecia: Lá no Hermilo tínhamos provas de seis em seis meses no curso de formação de ator. Os alunos escolhiam trechos, de espetáculos de teatro e encenavam. Esses espetáculos eram abertos ao público. Quantas e quantas vezes precisamos fazer com as portas fechadas porque eram textos proibidos, com a polícia do lado de fora, o camburão da polícia parado na frente do teatro, né (sic)? E com medo [...]. Teve uma situação em que eu e meus amigos montamos uma peça [...], não era do THBF, era outra situação. Dom Helder foi um dos nossos convidados. Ariano Suassuna assistiu a segunda apresentação. Quer dizer, éramos jovens, e a gente fazia, mobilizava. Aí nesse dia mamãe disse: “Eu vou ficar na escada porque se a polícia chegar, eu protejo vocês. Pelo menos eu grito e vocês dispersam”. Então, era muito difícil [...] (SALDANHA, Stella. 2014a). Para Zélia, mesmo sem ter vivido qualquer situação agressiva, Não era fácil ser mulher e entrar nesse meio teatral, numa família que espera que você vá ser médica, advogada, psicóloga... Eu era olhada de forma diferente [...] era mais com os tratamentos nas relações sociais, me olhavam de forma diferente. Era sutil, mas eu sentia a diferença. Olhada como se fosse “a errada”, “a inadequada” (SALES, Zélia. 2015). Vale salientar que as quatro possuíam na época posições sociais distintas. Stella e Zélia pertenciam já a uma classe econômica mais favorável, Suzana teve na época ascensão social e Ivonete pertencia a uma classe economicamente inferior. Ivonete, de classe menos favorável, foi a única que falou de tais discriminações de maneira mais acentuada. Provavelmente por serem, as camadas menos favorecidas, mais propícias à marginalização e à discriminação. Como em outros momentos da História, a boa posição social dá auxílio à mulher no teatro, nos casos de Stella, Suzana e Zélia. Elas são amparadas por essa condição, pelo status. Ivonete é a que nos fala desta experiência de maneira mais violenta, sendo 132 inclusive por diversas vezes convidada para fazer programas, após os espetáculos. Stella disse que entendia o porquê da antidemocracia ser imposta pelos militares, apesar de que era muito jovem na época. Ivonete disse que refletia sobre os mecanismos que empobreceram ainda mais na época as camadas mais pobres da população. Zélia, mesmo sendo de classe média, não concordava, a exemplo do pai, que era militar, dos desmandos do regime. Suzana em particular apresenta uma personalidade serena, desprendida dos acontecimentos políticos e situações em geral. Tanto quanto Stella, seu primeiro exercício de transgressão se deu na praia, como refúgio, lugar de libertação (talvez na época local frequentado pelos adolescentes de posição social privilegiada) para depois migrar para o teatro como também instrumento transgressor. Embora nas entrevistas atuais, produzidas para a pesquisa, Suzana diga que não sentia tanta perseguição da polícia para com o Vivencial, o grupo tinha um protocolo confidencial no DOPS, relativo a uma AI (Apresentação de Investigação). A atriz também diz que nunca se sentiu discriminada com o fato de ter sido atriz na ditadura, mesmo trabalhando num grupo marginal, embora que, em 1989, após o término da ditadura, Suzana, que também foi produtora, diz em entrevista para o Jornal do Commercio que: “De início você acha com dois preconceitos da nossa sociedade: a mulher e o teatro [...]” (ALVAREZ, 1989, p. 6). Sobre o tema nudez, o qual a atriz deixa claro que não estava presentemente forte nos seus trabalhos no Vivencial, ela diz na mesma entrevista de 1989 que “A nudez gratuita constrange o público e inibe o ator. Mas há cenas de nudez belíssimas que não se concebem com o corpo coberto [...]” (ALVAREZ, 1989, p. 6). Sobre o teatro, sobre o que ele pode deixar no coração de uma mulher, Suzana fala sobre “A luta, a persistência e o prazer. A disposição para o ecletismo e o espírito de improvisação. O desprendimento com o dinheiro e a dimensão da importância do trabalho em conjunto” (ALVAREZ, 1989, p. 6). Aliás, sobre o desprendimento com o dinheiro, sendo a atriz advinda de uma boa posição econômica, esta posição poderia ser motivo para Suzana não sofrer discriminações. Mas na coluna “Teatro”, de janeiro de 1979, Armindo Blanco escreve uma crítica diminutiva sobre o trabalho do Vivencial em “Repúblicas Independentes, Darling”, para o jornal “A Notícia” do Rio de Janeiro. Dentre outras repreensões, desfavorece o trabalho do grupo, acusando-o de criticar o mesmo sistema do qual haviam recebido dinheiro, no caso, o Serviço Nacional de Teatro (SNT) e o fato de os intérpretes divulgarem e se politizarem com 133 a ideia de luta pelos menos favorecidos. No caso de Suzana, em particular, o crítico fala de maneira irônica e ácida sobre o seu momento individual do espetáculo, momento em que Suzana narrava suas vivências, sobre seu papel de mulher, atriz e mãe. [...] uma das atrizes, ao cometer o seu solilóquio, se diz capaz de se adaptar perfeitamente às realidades do momento [...]. (BLANCO, 1979, p. 6). [...] e uma atriz, a que faz Dona Subversão, confessando, ao remover as varizes postiças da personagem e reaparecer na esbeltez da sua juventude, que viveu um ano e meio em São Paulo, teve um filho e voltou para Olinda. O filho, deixou-o em Olinda, aos cuidados da vovó, a fim de poder viajar a expensas do SNT e se realizar como mulher, lutando no palco pelas minorias em transe e pelos proletários explorados (BLANCO, 1979, p. 6). Na primeira observação do crítico, percebe-se que, a personalidade desprendida de Suzana a levou a adaptar-se ao contexto ditatorial. Não que estivesse alheia ao momento político, mas serena para com o desenvolvimento pessoal de uma estratégia para lidar com a violência do regime. Da sua forma, Suzana contribuiu e transgrediu como atriz e como mulher. Apenas o fato de inserir-se num grupo de teatro marginalizado até mesmo pela classe artística da época, já é razão para pensá-la como uma artista transgressora. Na segunda observação, o crítico nos dá mostra do seu preconceito acerca da boa situação econômica da atriz e repudia o ato de ela falar em nome das minorias, comentando pontos de sua vida que comprovam que a atriz não fazia parte destas minorias. Mesmo Suzana dizendo que não tenha sofrido discriminações, este é um exemplo de uma delas. Imagem 43: “Chá das Duas”, cena de Suzana Costa (Dona Subversão) com Auricéia Fraga (Dona Corrupção) em “Repúblicas Independentes, Darling”. Arquivo pessoal de Suzana Costa. 134 Imagem 44: Solilóquio de Suzana em “Repúblicas Independentes, Darling”, quando a atriz narrava suas vivências. Arquivo pessoal de Suzana Costa. 135 Imagens 45 e 46: AI (Apresentação de Investigação) confidencial sobre o grupo Vivencial. O documento se refere ao espetáculo “Vivencial I” e diz que “(...) a peça fasia (sic) elegia ao homossexualismo e lesbianismo e que em um determinado trecho apresentava cartases (sic) com as palavras FOME – POLUIÇÃO – COMBUSTÍVEIS e um ator afirmava que o Governo iria providenciar quando havia o som de metralhadoras e todos caiam como mortos no palco”. Arquivo Público Estadual (DOPS). No sentido de as singularidades influenciarem diretamente nos contextos, há também as relações pessoais. Nos casos de Stella, Suzana e Zélia, há uma relação direta entre o momento político com o contexto familiar. Stella diz que o assunto ditadura era discutido em casa, o que já demonstra ser um indício de tanto envolvimento da atriz com o assunto. No caso de Suzana, ela diz que seu pai não falava sobre isto, apenas se limitava a estocar comida em casa. Zélia era filha de um militar que discordava da ditadura. Ivonete, traz em seu histórico as diferenças sociais que afetaram sua família. Neste sentido, sobre a memória e as relações, Bosi nos diz que: Há um modo de viver os fatos da história, um modo de sofrê-los na carne que os torna indeléveis e os mistura com o cotidiano, a tal ponto que já não seria fácil distinguir a memória histórica da memória familiar e pessoal (BOSI, 2001, 464). A década de 1970, como visto, ainda idealizava a figura da mulher casta e a estigmatização, a comparação à prostituição, circulava em todos os contextos em que a mulher tentasse ultrapassar os limites domésticos (ROSA, 2013), como nos diz a própria Stella, sobre ter escolhido também a profissão de jornalista: “[...] eu escolhi o teatro e o jornalismo, que não eram profissões fáceis para a mulher naquele momento” (SALDANHA, Stella. 2014b). Mas os discursos insultuosos dirigidos à mulher estão presentes em toda a 136 História. No caso da atriz, e não diferente em outros âmbitos, é uma marca que apresenta um grau de violência para com este ofício, pois, sendo reflexo de uma tradição pautada sobre um discurso depreciativo, repressivo e disciplinador que impôs estigmas de marginalidade, inferioridade e nocividade ao trabalho da atriz, é signo de uma concepção pré-forjada, não pelo indivíduo em si, mas pelo poder de um discurso disciplinador que atua sobre si (FOUCAULT, 2004). Na História, foi forma de excluir e rejeitar a mulher/atriz e Foucault, explica tal questão a partir da oposição entre razão e loucura. A exclusão é bem explicada a partir do discurso do louco, que a sociedade não compreende, e é considerado nulo porque não atende às exigências sociais. É nesse contexto que Foucault promove uma discussão sobre o fato de que os discursos sofrem influências de regras sociais, institucionais e detentoras de saber que, por sua vez, garantem aos discursos, o poder de ser aceito como verdadeiro. Muito da desconstrução destes discursos, no âmbito teatral, deve-se à atuação das dramaturgas. Na História da Dramaturgia, as ações são “praticadas na esfera pública, em sua enorme maioria executadas por personagens masculinos, via de regra investidos de alguma autoridade constituída e engajados na luta pelo poder” [...] (SANDER, 2002, p. 11). São ainda discriminatórias para com a idealização das personagens femininas: Iluminadas pela luz do dia, de velas, de refletores, personagens femininas têm sido alvo da atenção, da admiração e do escárnio do público através dos tempos. De Antígona, Medéa, Fedra a Lady Macbeth, Desdemona a Hedda Gabler, Mãe Coragem e tantas mais – o drama dito clássico deu à luz (da ribalta) a personagens femininas para todo e qualquer gosto – e desgosto. De fato, as últimas foram criadas por escritores homens, o que leva à crítica Sue- Ellen Case a argumentar que elas são nada mais do que uma ficção masculina que resulta de uma concepção das mulheres que nada tem a ver com as mulheres (SANDER, 2002, p. 12). No contexto brasileiro, no século XVIII, as dramaturgas precisaram usar pseudônimos masculinos para poderem publicar suas obras ou mantê-las no anonimato. Mas é a partir destas iniciativas que uma dramaturgia voltada para os temas femininos começa a surgir. No século XVIII, em 1797, uma autora anônima paulista escreveu “Tristes Effeitos do Amor, Drama em que Fallam Paulicea, a Prudência e a Dezesperação/Na figura de uma Fúria”. No século XIX, Maria Angélica Ribeiro escreve dezenove textos teatrais, entre dramas e comédias, como “Gabriela e Cancros Sociais”. A portuguesa Gertrudes Angélica da Cunha (1794-1850), que chegou ao Brasil em 1829, publicou “Norma” em 1848. Sua obra possui 137 também comédias como “A Mudança de Sexo ou Quanto Podem as Boas Maneiras”. Em 1910, é encenado o texto “Quem não perdoa”, de Júlia Lopes de Almeida (1863-1934). Neste drama em três atos, o casamento como salvação e felicidade da mulher é questionado de modo explícito e a peça já expunha a base do sistema patriarcal com outro ponto de vista (ANDRADE, 2006). Maria Jacinta, (1862-1934), cujo trabalho vem expressar a posição da mulher no acesso à educação, desenvolve na sua carreira de escritora, justamente entre as duas últimas décadas do século XIX e os primeiros trinta anos do século XX, temas femininos fora do núcleo familiar. Suas peças “discutem temas como o encerramento da mulher dentro de convenções sociais injustas e preconceituosas, do racismo e do fascismo, e da conformidade de massa da vida moderna [...]” (ANDRADE; EDELWEISS, 2008, p. 35). Com sua primeira peça “O gosto da Vida”, de 1937, recebe um prêmio da Academia Brasileira de Letras, mas foi censurada pelo Estado Novo. A companhia Jaime Costa, que estava em cartaz com a peça, retirou-a por ter sido considerada um atentado à moral e aos bons costumes. “Conflito”, foi levada ao palco pela Companhia Dulcina de Morais em 1939. A peça narra os conflitos da ousada jovem Gilda, que educada nos Estados Unidos, depara-se, na volta ao Brasil, com uma sociedade conservadora. Representou, na época, uma postura avançada para os comportamentos da mulher brasileira (ANDRADE, 2006). Em 1959, o Teatro de Arena, sob a direção de Augusto Boal, monta “A Farsa da Esposa Perfeita”, da gaúcha Edy Lima. Ainda na década de 1950, “No fundo do Poço”, de Helena da Silveira, foi encenada pela Companhia Maria Della Costa. A peça falava sobre a “difícil convivência entre um jovem e sua família de mulheres. A ação da peça se desenvolve em torno do assassinato das últimas pelo primeiro” (ANDRADE, 2006, p. 4). Na década de 1950, tivemos algumas companhias dirigidas por mulheres, como as de Dulcina de Morais e Maria Della Costa, mas “não havia nelas uma percepção da necessidade de abrir caminho para a consciência feminina no sentido de dar voz a um ponto de vista marginal dentro da cultura androcênctrica” (ANDRADE, 2006, p. 4). E há também o fato de que, apesar de estas mulheres decidirem sobre as tendências estéticas de suas companhias, buscavam apoio intelectual em figuras masculinas para escolher os textos com que iriam trabalhar [...]. Existe, portanto, uma divisão de papéis que mantém, de certa forma, o modelo patriarcal. Desse modo, esses grupos, embora tivessem levado aos palcos 138 textos escritos por mulheres, não o fizeram como resultado de uma preocupação estético-política (ANDRADE, 2006, p. 5). É na década de 1960 que a mulher brasileira consegue alcançar um papel mais relevante nos diversos campos da vida cultural. Com a difusão dos movimentos feministas (inicialmente considerados pela intelectualidade nacional como produtos de uma ideologia burguesa anglo-saxã, que pretendia desviar o foco de interesse dos problemas econômico-sociais) e a absorção do pensamento das correntes contestatórias dos anos 60, a presença e continuidade da produção feminina no campo das artes acentuaram-se de forma notável (ANDRADE, 2006, p. 5). E nos anos de 1970, com a sociedade se transformando e permitindo certa abertura para a mulher, esta pôde, finalmente, começar a dividir o espaço público com os homens e entre eles, o teatro. Desse modo, [...] o número de papéis femininos complexos cresceu bastante e, com ele, a exigência de participação maior das atrizes. No caso do Brasil, o drama começou a se impor como gênero a partir do século XIX, momento em que a contribuição das intérpretes se tornou mais festejada e valorizada. O teatro do século XX sedimentou e aprofundou esse processo, o que permitiu que ainda mais mulheres pudessem destacar-se no ofício da interpretação. (ANDRADE; EDELWEISS, 2008, p.19). A sexualidade feminina foi falada, mesmo que de forma depreciativa, primeiramente em “A mulher sem Pecado”, de Nelson Rodrigues, escrita em 1941 e encenada em 1942. A trama desenvolve a ideia de que a personagem Lídia só consiga ter vida sexual dentro dos limites do conceito de “pecado”, de traição ao marido. Contudo, um dos grandes méritos desse texto é o de promover, mediante o reconhecimento da sexualidade da mulher, a derrocada de um gênero, o melodrama, o qual a peça mesma parecia reproduzir. Assim, Nelson Rodrigues anunciava a urgência de trazer à cena novas formas que pudessem refletir melhor as transformações que começavam a ameaçar a imutabilidade de determinados comportamentos sociais (ANDRADE; EDELWEISS, 2008, p. 21). No final de 1968 os grupos passam a valorizar e a montar autores nacionais, tendo como pioneiro o Arena, que também desenvolvia novos formatos cênicos, como o próprio desenvolvimento do teatro em formato de arena (MAGALDI apud REIS, 2005). Os anos de 1960 e 1970 foram décadas que formaram grupos de teatro ideológicos. É neste momento que surge uma safra de dramaturgas e encenadoras e [...] a presença de uma dramaturgia feminina, no sentido da constituição de um corpus, só ganha força na passagem dos anos de 1960 para os de 1970, num surto conhecido como a „nova dramaturgia‟ que coincide com o fechamento 139 do espaço público (VINCENZO apud ANDRADE; EDELWEISS, 2008, p. 36). A participação feminina neste novo grupo de dramaturgos que surgia, desenvolveu uma nova forma de dramaturgia: política, mas diferente do que se levava ao palco nas montagens do Oficina e do Arena. O novo “político” envolveria o indivíduo em suas necessidades e carências porque [...] o comentário referente ao regime político não podia manifestar-se em um discurso claro e explícito, optou-se por um tratamento mais existencial do indivíduo, destacando-se sempre, apesar de tudo, o papel preponderante da sociedade na trajetória dos destinos das personagens (ANDRADE, 2006, p. 6). As dramaturgas lançaram um olhar para a decadência do patriarcalismo e reivindicaram uma sexualidade própria e liberada. Porém, entre os anos de 1960 e 1970, esta forma de escrever não era muito quista pela intelectualidade teatral de esquerda (ANDRADE; EDELWEISS, 2008). Ainda assim, este novo tipo de dramaturgia ganha força a partir de então. Destaca-se neste período, Leilah Assunção, que passa a procurar, revendo as tragédias cariocas de Nelson Rodrigues, outras saídas para os conflitos entre prazer e pecado: Leilah Assunção é, entre todas as dramaturgas brasileiras, e fazemos essa afirmação sem medo de errar, a que mais se preocupou em expressar o drama da mulher brasileira em busca da própria liberdade, não só da que deveria pertencer a todos os habitantes do país, mas, especificamente, do tipo que permite pensar a sexualidade e o prazer para além das estruturas do núcleo familiar burguês (ANDRADE; EDELWEISS, 2008, p. 394) Em 1964 escreve “Vejo um Vulto na Janela, Me Acudam Que sou Donzela”, o vulto era o golpe de 1964; Em “Fala Baixo Senão Eu Grito”, a personagem Mariazinha mostra o reconhecimento da sexualidade feminina como força em busca de uma autonomia, com conotação positiva e libertadora. No mundo da fantasia, Mariazinha liberta-se da repressão sexual e se torna mais bonita e feliz (ANDRADE; EDELWEISS, 2008): [...] o repúdio à submissão da mulher, como se apresentava em Fala Baixo Senão eu Grito, soava como um eco de repúdio à falta de liberdade política imposta pelo regime. A questão feminina, pela primeira vez, deixava de ser unicamente feminina para tornar-se mais universal: o desmascaramento do poder autoritário. Desse modo, o texto pôde ser compreendido para além dos limites de sua relação com o feminismo, o que foi muito importante para permitir o sucesso alcançado (ANDRADE, 2006, p. 133). A peça foi censurada e Leilah foi à Brasília, tentar liberá-la: Disseram-me que o Plínio Marcos até podia escrever palavrões, pois vinha dos cais do porto, mas eu, jamais, porque era muito jovem e muito fina para isso. Eles queriam que a personagem Mariazinha dissesse, em vez de “Eu nunca gozei”, “Eu nunca cheguei ao clímax” [...]. Para que ela dissesse um palavrão 140 (no caso, “porra”), ela não o dissesse. Eu insisti com eles, afirmando que aquilo era um desabafo, se ela não dissesse, explodiria, e a peça terminaria ali. Incrivelmente, eles concordaram, e a minha amada Mariazinha pôde desembestar no seu “porra” (ANDRADE; EDELWEISS, 2008, p. 397). Com “Roda Cor de Roda”, escrita em (1975) e liberada pela censura, Leilah se surpreende com Gianfrancesco Guarnieri. Sobre o acontecido, ela descreve que o ator, dramaturgo e diretor, declara à revista “Realidade” que ela e José Vicente (autor de “O assalto”), eram autores intimistas e psicológicos, que eles, do Partido Comunista Brasileiro, não podiam permitir que nos manifestássemos mais. Eu fiquei chocada, pois me considerava simpatizante de esquerda [...]. Meu companheiro Guarnieri me castrava, mas meu inimigo me liberava. Minha cabeça deu um nó. Depois, o Guarnieri assistiu peça minha (que ele não tinha visto ainda) e me pediu desculpas. Ficamos, então, amigos. Pretendo escrever uma peça sobre isso (ANDRADE; EDELWEISS, 2008, p. 397). Leilah Assunção escreveu ainda “Kuka de Kamaiorá ou o Segredo da Alma de Ouro”, de 1983, uma metáfora aos anos de chumbo que chegou a ser estudada nos países de regimes fechados; “Boca Molhada de Paixão Calada” (1984), que fala da história política e sexual no Brasil; “Lua Nua” (1986/1987); “Adorável Desgraçada” (1994); “O Momento de Mariana Martins” (1998), que narra o encontro de uma mulher consigo mesma e as peças mais recentes: “Intimidade Indecente” (2001) e “A Incrível Noite de Jorge Araújo”, de 2006. Sobre os palavrões, Leilah diz que: “Eu jamais escrevi palavrões. Escrevo palavras fortes que, quando ditas por um homem, ninguém repara” (ANDRADE; EDELWEISS, 2008, p. 398). Outra dramaturga brasileira de destaque, que surgiu na boa safra dos anos de 1960 e 1970 é Maria Adelaide Amaral: Seu trabalho como dramaturga começa a desenvolver-se na segunda metade da década de 1970, durante a abertura política promovida pelo General Ernesto Geisel. “A Resistência”, de 1975, e “Bodas de Papel”, escrita em 1976, mas produzida em 1978, são suas primeiras peças e já demonstram claramente características que continuariam marcando textos posteriores da autora, como a preferência pelo diálogo cru, objetivo, e a opção pelo trabalho com uma linguagem mais realista na caracterização de personagens e situações (ANDRADE; EDELWEISS, 2008, p. 402). “Bodas de Papel”, apesar de ter rendido muitos prêmios à autora, recebe de Yan Michalski, um dos principais críticos em atividade à época, uma crítica negativa, considerando que o texto apresentava o machismo de forma exagerada: 141 Me pergunto se, mais que uma peça sobre executivos, “Bodas de Papel” não é uma peça sobre mulheres [...] Creio que o generoso feminismo de Maria Adelaide Amaral a fez perder um pouco o senso da medida [...] a brutalidade e o primarismo com que a autora pinta esse machismo, especialmente levando- se em conta o ambiente social em que se manifesta (MICHALSKI apud ANDRADE; EDELWEISS, 2008, p. 402). A peça, na verdade, apresenta personagens femininas que, apesar de frustradas, não desafiam as estruturas. Nela, o poder é exercido pelo homem (ANDRADE; EDELWEISS, 2008). “Chiquinha Gonzaga” de 1983, pela primeira vez em sua obra, volta-se para a mulher enfrentando o sistema patriarcal. Explorando o teatro épico brechtiano, a autora ganhou o prêmio Molíére de 1983 de melhor autora. “De Braços Abertos”, de 1984, escrita a pedido da atriz e diretora carioca Irene Ravache, fala das dificuldades das relações amorosas. Os personagens, Sérgio e Luísa, se encontram depois de anos de separação e contam os fatos que marcaram suas vidas juntos: Com uma perspectiva claramente feminina, porque reflete a visão da personagem Luísa sobre o caso, o texto, escrito, segundo a autora, para pôr em questão o problema encontrado pela mulher profissionalmente bem-sucedida em suas relações com o sexo oposto, acaba superando esse objetivo inicial, transformando-se em um relato sobre um determinado tipo de narcisismo contemporâneo, ligado a um sentimento de ceticismo que impede a identidade com um projeto positivo de futuro (ANDRADE; EDELWEISS, 2008, p.410). Em “Intensa Magia” (1995), “Para Sempre” (1997), “Inseparáveis” (1997) e “Chanel” (1991), “os papéis impostos pelo patriarcado continuam determinando a maneira pela qual os personagens se inter-relacionam” (ANDRADE; EDELWEISS, 2008, p. 410). A atuação destas escritoras foi papel decisivo na emancipação feminina no teatro, que, além de abrirem caminhos para uma nova dramaturgia nacional, efetuam uma dramaturgia feminina, feita por mulheres e para mulheres, pois como essas mesmas autoras haviam experimentado em suas trajetórias de artistas e mulheres o cerceamento imposto pelas estruturas patriarcais, esta acabou sendo um dos atrativos dessa dramaturgia que começava a surgir. Aspectos como a reivindicação de uma sexualidade feminina reconhecida e liberada, o repúdio à estrutura familiar tradicional e seus valores, que apareciam como restrições à realização do indivíduo, são tratados, nesse momento, com uma ênfase particular, que já indica um discurso consciente sobre a problemática de gênero (ANDRADE, 2006, p. 7). 142 A partir de 1960 e 1970, para a atriz, já não importava ser comparada com prostituta, isto não mais se configurava como uma vergonha ou motivo de desonra, como até a década de 1950. Ser atriz era também ser ouvida e atuante num mundo que se encontrava em ebulição. 3.4 A MEMÓRIA DO CORPO Há momentos em que determinados ambientes nos levam a remotas lembranças. Ao voltarmos a uma casa, por exemplo, em que já estivemos há muito tempo, à qual vivemos momentos marcantes, nosso corpo reage e rememora os acontecimentos. Janelas que davam para alguma paisagem ou recantos particulares, nos quais foram marcadas certas vivências em momentos muito pessoais, produz no corpo reações como calafrios, leveza, suar de mãos, medo, saudades, coração que passa a bater mais forte, etc. Há uma relação entre o corpo e histórias e contextos, estes se entrelaçam, dá-se lugar a um vazio, “autoriza a produção de um espaço de jogo num tabuleiro analítico e classificador de identidades. Torna o espaço habitável” (CERTEAU, 2003, p.186). Assim, um lugar passa a ser espaço quando nele passam a circular práticas, representações, histórias, significados, os quais, estariam também num lugar, mas voltados para a ideia de identidade daquele lugar. Como exemplo, temos um quarto particular e um quarto de hotel. O quarto particular é um lugar, pois nele existe a identidade de um ou mais donos. O quarto de hotel é um espaço, pois nele se dá a circulação de muitas pessoas. (CERTEAU, 2003). Neste sentido, um palco de teatro é um espaço, pois nele circulam muitos espetáculos, muitas pessoas e muitas histórias, cruzamento de diversos móveis, desde a montagem dos técnicos até o elenco entrar em cena e quando estiverem presentes todos os espectadores de cada espetáculo. Todos estes móveis vão deixando suas impressões, numa rede subjetiva de ações e relações que circulam-se em contextos culturais, geográficos, sociais e históricos. Yi-fu Tuan nos lembra que “Espaço é um termo abstrato para um conjunto complexo de idéias” (TUAN, 1983, p. 39). No teatro, o espaço também inclina suas definições para os contextos materiais e subjetivos e tanto um quanto o outro, relaciona-se diretamente com o conceito do encenador, com o corpo dos atores, com a relação ator- espectador, com a ambientação cênica da cenografia ou da falta dela, da iluminação cênica que cria uma atmosfera espacial, na proposta que convida o espectador a interferir no espetáculo, enfim, no trabalho geral da encenação. 143 Podemos deduzir então que um lugar “[...] implica uma indicação de estabilidade” (CERTEAU, 2003, p. 201), ao passo que o espaço é “um cruzamento de móveis. É de certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobra. [...] o espaço é um lugar praticado.” (CERTEAU, 2003, p. 201). Os espaços cênicos são ressignificados pelas práticas que neles se inserem, de modo que, o mesmo lugar/palco ou lugar alternativo pode ter espaços cênicos diferentes por ser preenchido por espetáculos diferentes com propostas diferentes. Até mesmo por um mesmo espetáculo, que pode apresentar um improviso, inflexões diferentes dos atores, interferência da plateia, fatos que podem gerar espaços cênicos diferentes de uma mesma encenação. Mas o espaço não é o agente multiplicador de lembranças, apesar de que ele toma de empréstimo as características e identidades dos corpos que nele se incorporam: “O espaço que encerrou os membros de uma família durante anos comuns há de contar-nos algo do que foram essas pessoas. Porque as coisas que modelamos durante anos resistiram a nós com sua alteridade e tomaram algo do que fomos” (BOSI, 2001, p. 443). Mas um rio é apenas um rio e é o nosso corpo que produz as importâncias dadas a este rio: “[...] corpo e espaço, lembrando, no entanto, que aquele não apenas ocupa este, porém o dirige e o ordena segundo sua vontade. O corpo é „corpo vivo‟ e o espaço é um constructu do ser humano” (TUAN, 1983, p. 40). Ele pode ser a escola que se frequentou, o rio que se tomava banho quando criança... para outro, ele pode não passar de um simples rio ou ainda não ter nenhuma familiaridade com ele, mas este pode ainda produzir uma sensação particular de nostalgia no corpo de algo que não foi vivido, ele pode representar um passado, um contexto, uma lembrança ou como chama Certeau (2003), a impressão de uma presença de ausência. Não só os espaços, mas os cheiros, uma música, um filme podem imediatamente levar o corpo a determinados momentos passados. O corpo repete sensações antes vividas. O corpo guarda impressões e histórias construídas social e culturalmente e as transformam em memórias, nem sempre agradáveis, claro. Existem pessoas que foram torturadas na ditadura, por exemplo, ao som de músicas. Elas eram usadas para abafar os gritos. Estes torturados, em seus relatos atuais, dizem sentir as mesmas sensações vividas quando torturados, ao ouvirem as mesmas músicas. Não se trata, porém, das “mesmas sensações”, pois estas jamais podem ser reproduzidas igualmente, assim como o passado não pode ser reconstituído: 144 A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto das representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor. O simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista (BOSI, 2001, p. 55). Então, o passado pode ser rememorado e relido e o corpo produz impressões que remetem a determinados momentos. Existe uma abstração corporal que transfigura espaços, músicas e cheiros em espaços de lembranças, na música daquele momento, no cheiro da infância. Mas há o limite fatal da não reconstituição, sendo possível apenas a releitura ou a reconstrução da fisionomia do momento passado, pois os contextos presentes influenciam, reavaliam e até alteram o conteúdo das memórias. E o corpo é o agente direcionador e catalisador dos multiplicadores de lembranças (cheiros, significação de um objeto, etc.). Neste sentido, em que o corpo age por influência da percepção, O que eu percebo em mim quando vejo as imagens do presente ou evoco as do passado? Percebo, em todos os casos, que cada imagem formada em mim está mediada pela imagem, sempre presente do meu corpo. O sentimento difuso da própria corporeidade é constante e convive, no interior da vida psicológica, com a percepção do meio físico ou social que circunda o sujeito. Bergson observa, também, que esse presente contínuo se manifesta, na maioria das vezes, por movimentos que definem ações e reações do corpo sobre o seu ambiente. Está estabelecido, desse modo, o nexo entre imagem do corpo e ação (BOSI, 2001, p.44) Assim, as percepções do vivido não trarão uma reconstituição idêntica do que passou porque “[...] a memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo „atual‟ das representações” (BOSI, 2001, p. 45). O passado não pode ser reprisado. Ele pode ser revisitado, reconstruído a partir do nosso corpo presente que toma para si “percepções” do lembrado: A verdade é que a memória não consiste, em absoluto, numa regressão do presente ao passado, mas, pelo contrário, num progresso do passado ao presente. É no passado que nos colocamos de saída. Partimos de um "estado virtual", que conduzimos pouco a pouco, através de uma série de planos de consciência diferentes, até o termo em que ele se materializa numa percepção atual, isto é, até o ponto em que ele se torna um estado presente e atuante, ou seja, enfim, até esse plano extremo de nossa consciência em que se desenha nosso corpo. Nesse estado virtual consiste a lembrança pura (BERGSON, 1999, p. 280). 145 Bergson dirá que as lembranças estão na cola das percepções atuais, como a sombra junto ao corpo. A memória seria o “lado subjetivo de nosso conhecimento das coisas” (BOSI, 2001, p. 47). Assim, a memória e a percepção, seriam fronteiras muito próximas. Juntam-se assim pormenores da experiência passada e são retidas algumas indicações, signos que evocam antigas imagens (BOSI, 2001). A memória do corpo não é algo familiar, pois a memória a que estamos acostumados a desenvolver é a memória dos fatos e quase sempre esquecemos da relação íntima que o corpo tem com a memória. Porque a memória do corpo age com transgressão, no sentido de ultrapassar os limites, de atravessar a ideia reducionista da memória estar atrelada apenas aos acontecimentos socioculturais e históricos externos. Estes não são protagonistas da memória, mas atuam diretamente com as percepções dos corpos. Bosi nos lembra também que em pessoas mais velhas, a memória está ainda melhor definida, pois: sua memória atual pode ser desenhada sobre um pano de fundo mais definido do que a memória de uma pessoa jovem, ou mesmo adulta, que, de algum modo, ainda está absorvida nas lutas e contradições de um presente que a solicita muito mais intensamente do que a uma pessoa de idade (BOSI, 2001, p. 65). Das experiências no Vivencial e no THBF e do trabalho corporal que as atrizes entrevistadas desenvolveram nos mesmos, há impressões diferentes nos corpos de cada uma delas: Ivonete diz que ficou tatuada em seu corpo, depois da experiência no Vivencial, a capacidade de falar em cena ou fora dela, todo e qualquer texto verbal que possa parecer intimidador para outros, que contenha termos que possam chocar. Seu corpo foi trabalhado para isso, para não se reprimir diante de certas expressões. A relação intimista com o público, de proximidade, é outra marca deixada no corpo de Ivonete: seu corpo se predispõe para este contato tão próximo com o espectador, sem bloqueios. Stella fala da facilidade de entrar e sair da personagem. O que está inscrito na poética brechtiana, desenvolvida no THBF, grupo de atuação da atriz, inscreveu-se também em seu corpo, o qual a atriz traz para a contemporaneidade: a facilidade de concentrar-se para interpretar uma personagem e imediatamente sair deste, sem prejudicar uma possível continuação desta mesma interpretação logo a seguir e nem haver desconcentração ou perda da linha de raciocínio da interpretação. Outra lembrança corpórea de Stella é o fato de trazer 146 consigo a independência para a criação, para a composição do personagem. Seu corpo foi preparado para buscar gestos e inflexões sozinho. No THBF, não se determinava gestos, entonações ou inflexões para os atores. A atriz era senhora da sua personagem, o trabalho no grupo dava-se como uma “possibilidade de transmutação permanente, de descobertas permanentes. Um corpo que internaliza o externo. Criava-se a atmosfera para que você descobrisse a personagem e eu vou levar isso pro resto da minha vida” (SALDANHA, Stella Maria. 2014a). Havia orientação, estímulo e por fim era lapidado o que a atriz criara. O respeito para com as criações dos/das intérpretes era regra no THBF. Era uma espécie de “acolhimento” do trabalho do ator/atriz. Já Suzana não associa memória com corpo. Para ela, a memória perpassa o campo do cérebro, numa visão fragmentada, como algo isolado e separado dos membros e órgãos, o que é ainda muito comum no nosso meio, para muitas pessoas, a ideia do dualismo cartesiano, que vem permanecendo durante séculos, o que dificulta se “configurar uma compreensão mais ampliada do corpo e da motricidade, para além das dicotomias e dos reducionismos que guiaram a sua tradição histórica” (TIBÚRCIO, 2005, p. 23). Curiosamente, durante as entrevistas, as atrizes entrevistadas falaram de “impressões”, em alguns momentos, provavelmente vindas de imagens particulares. Essas impressões estão no universo bergsoniano como percepções, as quais não são meras repetições do vivido, mas agem como representações deste no presente: nosso presente é antes de tudo o estado de nosso corpo. Nosso passado, ao contrário, é o que não age mais, mas poderia agir, o que agirá ao inserir-se numa sensação presente da qual tomará emprestada a vitalidade. É verdade que, no momento em que a lembrança se atualiza passando assim a agir, ela deixa de ser lembrança, torna-se novamente percepção (BERGSON, 1999, p. 281). Percepção caprichosa, pois esta é escolhida dentre tantos materiais que estão à disposição do corpo para se manifestar. A lembrança é um conjunto de símbolos/representações que se inserem na nossa consciência e por isso, ela, por mais nítida que seja, não é a mesma experiência de outrem, pois o corpo é hoje envolvido com outros contextos, valores, pontos de vista que influenciam e alteram a posição do lembrar. Em suma, o corpo capta ou aguça o passado e a este processo combina a percepção presente: “[...] a 147 memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo „atual‟ das representações” (BOSI, 2001, p. 45). Há um fato singular entre a passagem de Stella pelo Teatro Hermilo Borba Filho e a memória, que podemos tomar como exemplo para refletir sobre a ideia bergsoniana acerca da percepção. A atriz fez “Os fuzis da Senhora Carrar”, interpretando a Thereza Carrar, protagonista da peça em 1978 e posteriormente em 2012. Em linhas gerais, a peça de Brecht narra a luta de um povo pela democracia e contra o fascismo. Em 1978, este texto teve imensa ligação com o período antidemocrático pelo qual ainda atravessava o Brasil. A Senhora Carrar vive em constante vigilância para com seus filhos, o mais novo, o qual mantém dentro de casa e o mais velho, o qual o observa através de uma janela enquanto ele pesca. Assim, tenta impedir que os filhos saiam para o campo de batalha. Thereza Carrar vive em conflito, pois se sente culpada pela perda do marido, que morreu em luta nas brigadas de autodefesa contra o exército de Francisco Franco na Guerra Civil Espanhola. O filho mais novo, pela atitude que a mãe tem com o mais velho, passa a contestá-la, desejando estar em luta com a resistência, formada por pessoas esquerdistas que são contra a ditadura. Esta postura do filho mais novo é aguçada com a chegada do tio, irmão de Thereza, que faz parte de um destes grupos de militância. Este tio, o operário Pedro, chega em busca de fuzis que Thereza Carrar esconde no assoalho, para aumentar o poder de fogo do grupo o qual faz parte. Estes fuzis pertenciam a Carlos, o marido da Senhora Carrar, morto em combate. Stella diz que a experiência corpórea, mais precisamente as imagens ou símbolos inscritos no corpo foram consideravelmente diferentes nos dois momentos, mesmo as duas montagens apresentarem aspectos semelhantes, pois a de 2012 se inspirou na anterior. Permaneceram percepções, como pensa Bergson, em relação à memória do corpo, no qual este, para ele, apenas guarda sensações de momentos passados (BERGSON, 1999). Obviamente, há as concepções artísticas e pessoais que foram inseridas nos dois contextos: com dezoito anos em 1978, a atriz não podia deixar transparecer sua juventude na idade real do personagem de 40 anos. A máscara branca, elemento de distanciamento brechtiano usada pelo elenco nas duas montagens, ajudou Stella na composição da Sra. Carrar. A máscara ocultava a pouca idade da atriz. 148 Pelo receio de não deixar que o corpo mostrasse a juventude e também pela responsabilidade do tamanho da personagem, Stella buscou movimentos contidos, marcados por certa imobilidade corporal, com a mão retida, fechando o xale contra o peito ou com os braços retos, em direção ao figurino. Mas estes receios foram capitalizados e revertidos em processo para a composição da personagem. Deste processo, veio a austeridade na voz e nos movimentos do corpo, que se harmonizavam com o perfil da então Sra. Carrar. Não haviam gestos largos. Em 2012, os braços se expandiram. As mãos acompanharam a revolta e o sofrimento da personagem. Estes sentimentos eram buscados no exterior e trazidos para o interior, corporalmente falando, enquanto que na montagem anterior, eles faziam o percurso contrário, transluzindo o interior para o exterior. Teoricamente falando, seria uma linha stanislaviskiana no primeiro momento e grotowskiana no segundo. Com menos inflexões, a primeira Sra. Carrar não fraquejava. Trinta e dois anos depois, a atriz trouxe uma Sra. Carrar que perdia o vigor e a aspereza em alguns momentos, sem deixar de ser imperativa. Ela exteriorizou o subtexto da dor, como na cena da partida do filho, em que ela implorava para o filho ficar, enquanto que, com dezoito anos, seu ímpeto corporal era de não implorar, mas de ordenar que o filho ficasse. Outro fato que influenciou na composição da personagem nos dois momentos foi a maternidade. A vivência da maternidade, segundo a atriz, pode ter influenciado no diferencial entre as duas elaborações da Sra. Carrar. Ser mãe, já em 2012, pode ter aguçado o corpo a externar a dor da personagem pela perda dos filhos, quando em 1978, esta dor veio de forma ríspida. Em 1978 havia um apelo imediato. Seu corpo entrava em cena com o intuito de depor contra os generais do regime ditatorial. O corpo estava em estado de alerta para a denúncia, para o protesto, como que posto para o combate. Em 2012, aqueles generais já não estavam mais no poder, mas o que Brecht sugere, vai além do momento histórico, nas palavras de Stella: Então muita gente perguntava: mas por que montar essa peça agora, por que montar Brecht agora? “Os fuzis da Senhora Carrar” agora? O que ele (Brecht) coloca ainda hoje [...] fala do gesto político de tomar partido, de fazer escolhas. A gente vive um momento político completamente distinto daquele, mas nós temos que fazer escolhas, escolhas seríssimas para esse país. Escolhas políticas, ideológicas, poéticas, afetivas, ambientais [...] ser ou não ser neutro? Tomar ou não tomar partido? E quais as consequências da neutralidade e as consequências de você tomar uma posição? Tá (sic) tudo lá, ainda hoje. Não 149 tem o link imediato com a ditadura militar, mas tem com o gesto político de defender posições [...]. Você se colocar já é uma atitude política ou você se retrair, se esconder, se anular (SALDANHA, Stella. 2014b). João Denys Araújo Leite, encenador da montagem de 2012 e ator da montagem de 1978, interpretando o filho da Sra. Carrar, faz uma reflexão sobre as duas montagens: “Fazer passar pelo nosso corpo essa montagem-síntese [...] não significa uma remontagem cênica [...]” (LEITE, 2012, p. 152), mas duas experiências imersas em espaços diferentes. Imagens 47 e 48 – Stella como a Sra. Carrar, nas montagens de 1978, em cena com João Denys Araújo Leite e em 2012, com Antônio Marinho. Arquivo pessoal de Stella Maris Saldanha. Assim, não se trata realmente de uma remontagem cênica inclusive nos contextos sociohistóricos individuais, mas no caso de Stella, de uma rememoração cênica de duas montagens semelhantes inseridas em contextos cênicos, políticos, sociais e históricos diferentes, mas que ainda assim, produziram percepções corpóreas que seu corpo registrou. Stella é a única que esteve nos dois momentos como atriz e com a mesma personagem. A composição física da personagem nos dois momentos é diferente, mas as impressões corpóreas de 1978, Stella relata que trouxe consigo para a montagem recente, no sentido de rememorar o momento histórico e político, décadas depois. As impressões de outrora, relacionadas aos contextos reais políticos, bem como às dos momentos fortes ou cenas decisivas da peça e da personagem, foram lembrados nos mesmos momentos das cenas ou falas, quando interpretadas na montagem recente, de forma perceptiva. Uma revisitação do 150 corpo ao passado: não a reconstituição exata de décadas atrás, mas o aproveitamento destas percepções para o desenvolvimento de algumas cenas na montagem recente. Quanto ao exercício de rememorar, as quatro atrizes perceberam ou lembraram de “outras presenças”, pessoas que fizeram parte dos processos, o que Bosi chama de memória social. Nela, quando um grupo trabalha intensamente em conjunto, há uma tendência de criar esquemas coerentes de narração e de interpretação dos fatos, verdadeiros „universos de discurso‟, „universos de significado‟, que dão ao material de base uma forma histórica própria, uma versão consagrada dos acontecimentos” (BOSI, 2001, p.65). Estes acontecimentos se configuram através das relações: “A temporalidade não se restringe a uma sucessão de „agoras‟, mas define-se como presença, conformando a memória, não como receptáculo de engramas, mas como registro de relações” (NÓBREGA, 2010, p. 93). A memória social, claro, aqui, desenvolve-se mais precisamente com Ivonete e Suzana, visto que foram atrizes do mesmo grupo. Em alguns momentos, Ivonete fala de situações vividas com Suzana e esta os confirma. Ambas, em suas entrevistas, falaram uma da outra ou lembraram dos mesmos fatos vividos, alicerçando o lembrado. Mas também as outras atrizes, bem como as do Vivencial, se conduziam a nomes ou a outros corpos que estiveram em cena, junto a elas, como se precisassem deles para compor a rememoração, como se outras presenças auxiliassem na reconstrução da memória. Tibúrcio nos lembra que esse corpo que busca reencontrar-se não é um corpo hermético, que se isola nessa experimentação de si. É, sim, um corpo que reconhece que a sua história se configura juntamente com a história de outros corpos e com o mundo da cultura, com o tecido do universo que lhe é constitutivo (TIBÚRCIO, 2005, p.94) Assim, o social se torna mais abrangente que o individual, acaba cristalizando a memória e dá a versão oficial dos fatos (BOSI, 2001). Mais comumente, costuma-se acreditar ou apreciar fatos que são lembrados por mais de uma pessoa. Eles se tornam oficiais, pois o social funciona como testemunho. Obviamente, por conta das singularidades dos atores sociais, estas lembranças tendem a ser corporificadas diferentemente e posteriormente, rememoradas de formas diversas com detalhes escolhidos e reagrupados pelas imagens individuais mediadas pelo social. 151 Além das entrevistadas possuírem idade amadurecida, o que, como já visto, segundo Bosi, facilita o desenho das lembranças, por possuírem melhor definição de sua memória social, há também nelas, outra peculiaridade que as levariam para uma melhor composição de rememoração, o fato de serem artistas: “Só os artistas podem remontar a trajetória e recompor o contorno borrado das imagens, devolvendo-nos sua nitidez” (BOSI, 1993, p. 281). Nóbrega, inclusive, nos dirá que “A reflexão sobre a estética, em geral, privilegia a arte, talvez porque nela melhor se exercite o gosto e se provoque a percepção” (NÓBREGA, 2010, p. 89), tão cara a Bergson. Outra função ou atividade não artística, pode requerer uma preparação, mas o foco da lembrança permaneceria na atividade propriamente dita e não na preparação. Como um advogado, por exemplo, que estudaria o processo e as leis para uma audiência, mas em sua memória ficará o êxito ou o fracasso da sua atuação na causa. Já na arte, existem dois momentos, o da criação e o do desenvolvimento da criação. Em ambos, há a sensibilidade de guardar o passo a passo do trabalho, os experimentos, erros e acertos, importantes para a composição do resultado final. Assim, na memória do artista estariam detalhes mais esmiuçados, pela sutileza da lapidação do seu trabalho. O material resultante das memórias destas mulheres e que foi respeitado, é o conjunto das percepções mais marcantes ou de maior significação para cada uma delas, em contextos individuais e/ou nas relações que desenvolveram nos grupos em que atuaram, no contexto ditatorial e nos seus corpos femininos e artísticos. Mas a percepção maior dentre todas, talvez tenha sido o fato de que, todas as atrizes em comum, afirmarem que seus grupos teatrais de origem têm, até hoje, influências marcantes em suas vidas como atrizes e como pessoas, no sentido de terem aprendido a ter posturas politizadas dentro dos grupos que trabalharam, entendendo o mecanismo social brasileiro na época; e de terem adquirido também a partir destes grupos, a formação intelectual, cultural e artística, de grande influência na formação de suas personalidades. Todas, em suas falas, disseram ser as mulheres que são hoje, por terem passado pelo Vivencial, THBF ou Expressão. 152 Considerações Finais (para não concluir) “O corpo – a vagina da alma” Carlo Dossi Rememorar não é uma tarefa fácil. Trazer de volta recordações, no caso destas aqui, situações e momentos artísticos e sociais vividos em décadas passadas, significa trazer referências e experiências que a ela se atrelaram até o momento atual (inclusive situações tristes, que às vezes fazem com que a pessoa que lembre, busque subterfúgios para narrar as memórias). É como revirá-las, no meio a tantas lembranças. Por isso que Bergson, nos fala de percepções, pois o passado não retorna tal qual aconteceu, como um filme gravado, mas como um flash deste mesmo filme, como um fulgor momentâneo. E neste processo, o corpo atua como protagonista, tanto no contexto em que é lembrado, quanto no que lembra, produzindo as sensações dos momentos vividos e até repetindo-os, quando conduzido ao mesmo momento passado, através de uma música ou de um cheiro, por exemplo. Porque é o corpo quem guarda impressões e histórias construídas social e culturalmente e as transformam, posteriormente, em memórias. O corpo tem uma relação dialética com o mundo, ele conduz, transmite e recebe movimentos. É neste sentido que o corpo termina por optar, influenciado pelas referências sociohistóricas, se as aceita ou não. Na segunda opção, torna-se um corpo rebelde, que viola as normas impostas pelo poder. Um corpo que busca um rumo contrário, criando suas formas e suas astúcias de subverter o sistema imposto, um Corpo Transgressor. Este corpo encontra- se, entre tantos espaços, no teatral. Assim como o corpo é um produto social e histórico (SILVA, 2009), fenômeno semelhante acontece com a atividade teatral. Esta também é reflexo da sociedade, da História e da cultura de um povo. E o corpo no teatro também escolhe suas deslocações, dentro da sua posição sociohistórica. A ditadura produziu vários corpos transgressores e que atuaram contra o regime. A militância deu-se em todas as áreas com militantes clandestinos, religiosos, políticos e no campo artístico. No teatro, a principal estratégia era falar por metáforas e ambiguidades. Encenar um contexto histórico semelhante àquele período ou fazer alusões, por exemplo, eram estratégias muito comuns usadas no contexto de então. Foi dessa forma que as entrevistadas discordaram do poder ditatorial, usando seus corpos em cena no teatro. Para reconstruir este ponto da história no âmbito teatral, optei por realizar entrevistas semiabertas, 153 não quis me arriscar na soltura das memórias, pois “Lembrança puxa lembrança e seria preciso um escutador infinito” (BOSI, 2001, p.39). E mesmo porque, com a entrevista semiaberta, poderia dar-se o encaminhamento da pesquisa e ao mesmo tempo nos deixar livres, entrevistadora e entrevistadas, para mudarmos o rumo do roteiro, quando surgissem lembranças importantes para o objeto. E assim aconteceu. Para avivar a memória das atrizes, usei de alguns métodos, próprios dos que trabalham com História Oral: pedi para as entrevistadas verem as fotos de cena do período, comentei com elas outros depoimentos, de pessoas do mesmo grupo, da mesma época, por exemplo; Nos casos de Ivonete e Suzana, comentamos os filmes, vídeos da época e documentários sobre o Vivencial. Pude ver o avivamento destas memórias nos olhos que marejavam, nos sorrisos largos quando lembravam de algo, nas peles dos braços arrepiadas, nos esforços prazerosos em relembrar dos textos ditos antes em cena. A memória é como um novelo, que se puxada uma pontinha, desenrola-se numa imensidão. Ela, a memória, escolhe até os momentos para se avivar. Concordo com Bosi, quando diz que as melhores confissões e relatos dão-se depois de desligada a filmadora, na hora do cafezinho ou na despedida (BOSI, 2001). Muitas lembranças tornaram-se segredos. Algumas falas, inclusive, resolveriam algumas questões da pesquisa, mas elas foram mantidas em sigilo, em respeito às integridades das atrizes e à confiança em mim depositada. Há de se considerar que as pessoas possuem formas particulares de lembrar, as quais são muito subjetivas: “A lembrança é a história da pessoa e seu mundo, enquanto vivenciada” (STERN apud BOSI, 2001, p. 68). Há também que se dar atenção ao fato de que, enquanto para alguns, as lembranças se desenham com mais facilidade, como aconteceu com Stella e Ivonete, para outros elas chegam com menos intensidade, com tendência a misturar-se com um grau maior às experiências vividas até o presente, como ocorreu nas entrevistas com Suzana e Zélia: “A memória poderá ser conservação ou elaboração do passado, mesmo porque o seu lugar na vida do homem acha-se a meio caminho entre o instinto, que se repete sempre, e a inteligência, que é capaz de inovar” (BOSI, 2001, p. 68). No caso das duas últimas, houve maior instigação da memória a partir dos comentários acerca dos escritos sobre o Vivencial e o Expressão, as passagens das outras entrevistas e nas fotos que discutíamos durante os encontros. Assim, houve uma linha de desenvolvimento diferente para as quatro entrevistadas, no sentido de desenvolvimento dos textos. 154 Pela sua própria complexidade (e por isso escolheu-se duas atrizes, para que se tivesse dois olhares sobre o grupo) e por ter muitas fontes para pesquisas (dentre livros, jornais, artigos, ensaios, vídeos), decorreu-se maiores possibilidades de escrita sobre o Vivencial. No caso do THBF, o número de estudos e documentos sobre o grupo é relativamente menor que os do Vivencial, mas a pesquisa contou com a facilidade de Stella para a rememoração dos fatos que coincidiram com os estudos já existentes sobre o grupo e o bom número de documentos do acervo da atriz, além do fato inusitado de Stella ter representado uma mesma personagem nos anos de 1970 no grupo e recentemente. Esta foi uma ferramenta preciosa para se refletir sobre a memória. O momento mais delicado foi para com a pesquisa do Expressão. Primeiro porque não há nenhum estudo profundo sobre o grupo. O livro de Milton Bacarelli, de 1994, traz apenas uma página de informações. Zélia ainda teve dificuldades para rememorar e não possui fotos, nem programas ou matérias dos espetáculos realizados pelo grupo. Ela informa que na época, o grupo não reconhecia a importância dos registros e que criar um acervo de fotos naquele período era difícil, porque era caro este investimento. Mas este contato com a história do grupo foi significativo porque não há publicações expressivas sobre ele até o momento, talvez não haja muito interesse em revisitá-lo. Mas a História não é só feita das coisas que se destacam ou se sobressaem. Ela é também formada por tudo que aparentemente pareça desinteressante ou desimportante (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007). O Expressão, embora tenha tido pouco tempo de vida, teve realmente grande expressão no Recife como grupo esquerdista na década de 1970 e chegou a viajar para outros estados com seus espetáculos. Na História do Teatro em Pernambuco, nos escritos sobre o assunto publicados até então, as falas masculinas se sobressaem e as mulheres aparecem como meras coadjuvantes. Revisitar a História do Teatro em Pernambuco, desta vez com o olhar feminino, ideia proposta já no projeto inicial, significou desenvolver uma história atenta às coisas que não pretendem (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007), visto que na História, a visão feminina não foi desenvolvida (PERROT, 2005), pois durante séculos esteve encerrada em claustro, enquanto o poder masculino desbravava conquistas: “[...] fazer falar novamente vozes vencidas, submetidas ao silêncio da dominação de classe e da censura do Estado e da ciência burguesa” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 231) ou como nos diz Certeau, significou buscar a visão do herói comum, do homem ordinário (CERTEAU, 2003). 155 Neste processo, sabendo-se que a memória reproduz impressões, “a veracidade do narrador não nos preocupou: com certeza seus erros e lapsos são menos graves em suas consequências que as omissões da história oficial” (BOSI, 2001, p.37). E sabendo que as memórias não são discursos acabados, elas se ampararam também pela documentação, e entre elas, algumas do Arquivo Público Estadual de Pernambuco, inseridas nos mais de 15 km de documentos existentes no acervo do Arquivo, no qual a maioria, ainda não é disponibilizada para pesquisa. Este, aliás, foi outro dos objetivos alcançados, propostos no anteprojeto, bem como desenvolver um panorama da posição da atriz na história, de um modo geral no Brasil e em particular em Pernambuco durante a ditadura militar brasileira, refletindo sobre a importância de se localizar um passado para se pensar o presente, numa relação de entretempos. Aqui, para que não esqueçamos dos resquícios deixados pela ditadura como complicações econômicas, traumas sociais e artísticos. Para não esquecermos que a ditadura acovarda o artista, mutila a produção artística e lhe impõe a autocensura, modificando o intuito da obra de arte e consequentemente o reflexo cultural da sociedade. E [...] quem diz que no tempo dos militares era melhor, não sabe o que está dizendo! A democracia é um bem, uma conquista que a gente jamais pode perder. É fundamental que quem esteja começando a fazer teatro agora saiba disso. Faça um destaque nisso. Porque a ditadura, ela produziu desconfiança, medo. Não havia confiança nas relações (SALES, Zélia. 2015). Numa visão geral, identificou-se, como proposto inicialmente, as atuações e papéis femininos artísticos e sociais na história do teatro brasileiro em geral, com ênfase nos anos de 1970, recorte do objeto, analisando-se as propostas poéticas e políticas para a sociedade vigente, elaboradas pelas mulheres através do teatro. O feminismo, surgido nos anos de 1960, e que floresce na década seguinte, invade com mais força os espaços públicos e traz um corpo feminino com ânsia de libertação. Este desejo vem, nos anos de 1970, ser em grande parte traduzido com a exposição do corpo da mulher em sinal de protesto e de resistência. Esta ideia de libertação da sexualidade e do corpo vai se refletir no teatro em alguns contextos, como no Vivencial, com a sua proposta de extensão do vivido trazida para cena, no Hermilo Borba filho com propostas brechtianas e no Expressão com a sugestão de ruptura, quebra de paradigmas e a função política implícita no corpo. E em todos, a conscientização política da função social do teatro e a idealização de um corpo cênico que discordava do poder vigente e perfurava a ordem estabelecida, subvertendo-a: um Corpo Transgressor. 156 Neste sentido, identificou-se a mudança do corpo da mulher, purificado se vivesse escondido no espaço doméstico e repudiado se mostrado no espaço público, até a década de 1960. Esta condição vai refletir na posição da atriz que, primeiramente, no século XIX vai trazer um corpo com tímidas possibilidades de interferência no social, para no século XX, na década de 1970, vir nu ou seminu como forma de protesto. Aliás, o corpo feminino continua em permanente mudança. Do corpo rechonchudo, preferência do século XIX para a magreza, ideia de beleza atual. Por vezes, ele hoje, (numa ideia própria da dualidade contemporânea), esconde-se por diversos fatores, por conta das interferências religiosas ou culturais (LIPOVETSKY, 2005) ou é exibido em excesso, como acontece também com o corpo masculino: O corpo feminino foi promovido, ficando exposto diariamente, agora inclusive nu, em bancas de jornal, na televisão, ou em pôsteres (outdoors) por toda a cidade. O corpo masculino também está em voga, nu e bonito [...]. Não qualquer corpo: somente o perfeito - um produto! (SILVA, 2009, p.37). Este fenômeno se prolifera desde os anos de 1990, “em virtude, provavelmente, do crescimento da cultura de consumo e da utilização mais massiva do corpo masculino em propagandas”. (ANDRADE, 2006, p. 19). Mas diferentemente da proposta de nudez dos anos de 1970, atualmente o corpo tem um valor narcísico, do qual depende para sua aceitação e inclusão social, imerso numa ditadura da sociedade de consumo, ao lado da “ditadura da organização desigual do mundo” (SILVA, 2009, p. 41). Este projeto atual, de se alcançar o corpo perfeito, nos faz “[...] de certa forma, uma volta à cultura grega, ao corpo como uma máquina e a busca do descobrimento do funcionamento perfeito desta máquina – o corpo unívoco e já racionalizado do mundo ocidental” (SILVA, 2009, p. 231). Desse modo, surgem as cobranças do corpo ideal. Mas qual é o corpo ideal, o proposto pela mídia ou o corpo que eu quero e tenho direito de ser? E estas cobranças recaem principalmente sobre os corpos das mulheres, sempre estruturados historicamente pela preferência da visada masculina (ANDRADE, 2006). Há também o fatídico, mas ainda necessário discurso da igualdade. Esse discurso se torna perigoso quando se fala de igualdade de gênero, pois as diferenças são muito caras às identidades (GUATTARI, 1981). Eu não quero ser igual a nenhum homem nem a ninguém. A igualdade aqui pensada é a de direitos (com limites para os binômios socialmente construídos como homem/mulher ou macho/fêmea, que não levam a nada senão a contextos de opressão), 157 para todos e todas. Começando, por exemplo, pelo reconhecimento na prática, da dupla jornada de trabalho feminina. Após a década de 1970, com a conquista do espaço público, intensificou-se a participação da mulher em todos os âmbitos, como no teatro, ainda que a passos lentos. Surgiram também mais produtoras (cuja pioneira foi Ismênia dos Santos, ainda no século XIX) e dramaturgas, embora que, atualmente, Quanto às temáticas propriamente ditas, as que tratam de problemas exclusivamente femininos, a partir de um ponto de vista que possa ser relacionado a posturas femininas, não conseguiram ser incorporadas pelo cânone da crítica jornalística, que continua considerando-as um tipo de expressão pouco universal (ANDRADE, 2006, p. 140). Há que se torcer pelo florescimento de mais dramaturgas e encenadoras, os olhares femininos enxergam além, enxergam devastações onde se vê construção (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007). Sobre a existência de um olhar feminino, Maria Adelaide Amaral nos diz que: O domínio do mistério é feminino. Desde a Grécia. Existem autores que abordam com uma profundidade extraordinária, com uma acuidade extraordinária o universo feminino, mas nem todos conseguem transitar com desenvoltura pelos mistérios da mulher (AMARAL apud ANDRADE; EDELWEISS, 2008, p. 413). Mas ainda são poucas dramaturgas, produtoras e encenadoras para o número de homens que exercem estas funções. Também assim é nos preenchimentos dos cargos políticos, por exemplo. Ainda há muito o que ser desbravado. Nesse ponto, lembro-me de Freud e sua célebre frase: “Afinal, o que querem as mulheres”? (BARBOSA, 2011). Sr. Freud, eu, particularmente, quero muitas coisas. Quero por exemplo, ver a cultura do estupro banida do nosso convívio, ele que atenta a feminilidade, a maternidade, a identidade (MARZANO, 2012). A liberdade sexual, que foi proposta ainda nos anos de 1970 pelo feminismo, como canal de libertação, é necessário que, como desculpa, seja usada atualmente com o intuito de [...] permitir o desenvolvimento de uma indústria pornográfica que com excessiva frequência associa sexualidade e dominação, prazer e violência? [...] Como combater as mutilações sexuais ou a imposição do véu das outras mulheres sem cair na armadilha do colonialismo e do paternalismo? (MARZANO, 2012, p. 463). 158 Mas há, felizmente, a certeza de que “[...] o corpo se configura numa linguagem sensível, marcada por gestos, silêncios, sentimentos, pensamentos e falas [...]” (NÓBREGA, 2010, p. 92). Sendo assim, ele sempre estará em devir, pois se a história, o corpo e a arte fossem estanques, a mulher não teria desbravado o espaço público. O teatro não teria seu olhar feminino: “Tudo flui e nada permanece, tudo dá forma e nada permanece fixo. Você não pode pisar duas vezes no mesmo rio, pois outras águas e ainda outras, vão fluir”, já nos dizia Heráclito, em 500 a.C. No pensamento do filósofo, esta necessidade de estar nômade, é bem exemplificada neste pisar de alguém nas águas de um rio, onde reflete sobre a impossibilidade de haver um mesmo pisar, ainda que seja o mesmo alguém e o mesmo rio, pois tanto as águas e este mesmo alguém estão em constante mudança. Como ocorre inclusive com a rememoração: a memória se modifica, se embaralha a outras experiências vividas, porque nem ela é fixa, tal como a noção de conclusão de ideias. Elas não existem, porque as concepções estão em constante mudança, são inacabadas e tendem a ligar-se a conceitos e reflexões múltiplas, por isso preferi pensar nestas considerações finais como também algo aberto a mudanças, para não concluir. De forma semelhante, conceitua-se o Devir Mulher proposto por Felix Guattari. O devir rejeita o lugar de pertencimento da mulher dentro de um discurso cristalizado. Ele fará oposição à “doxa” (a “doxa” é o que a sociedade tem como certo, como verdadeiro, é uma reunião de pontos de vista num contexto histórico, como uma convenção), por ser justamente um estado de variação, não havendo espaço para o estático, não apresentando um estágio final: o devir está à disposição do inacabado. O filósofo nos diz que as formas de sexualidade estão aquém do binário homo/hetero, que como outros, fazem parte da “doxa”. Elas estão mais próximas “[...] daquilo que se poderia chamar de um devir feminino [...]” (GUATTARI, 1981, p. 35). Assim, não é em absoluto, uma discussão de gênero porque o Devir não diz respeito só à mulher. Eles, os devires (mulher, homem, animal, o que seja) são possibilidades de não fazer parte dos jogos essencialistas das identidades formadas, de não aceitar nenhuma espécie de condicionamento, como o fato dos binarismos já citados, ou das imposições construídas socialmente, como os espaços públicos reservados para os homens e os espaços privados reservados à mulher. Sabe-se, que este pensamento ainda prevalece em muitas culturas. Outro 159 exemplo comum é a forma de uso das roupas que expõem o corpo. Se o homem as usa, está com calor. Se uma mulher as usa, quer ser estuprada. Guattari nos diz que o que impediria a afluência do Devir Mulher, seria a forma de capitalismo consumista, determinadas morais cristãs e o posicionamento globalizador de massa, que é mais fácil para o controle dos indivíduos. Estes seriam os ameaçadores do devir. Portanto, o Devir não trata de homem ou mulher e o Devir Mulher não flui somente na mulher, mas trata de seres que, ao se desembaraçarem de tais condicionamentos, entrariam na esfera do devir. Ele volta-se para a potência da afeição, da vida que existe em todos os seres, homem ou mulher, que optaria pelo lado inverso do macho, do falocêntrico. O homem estaria no Devir Mulher quando se desligasse da disputa fálica, inerente a toda forma de poder. A moral liga o gozo da mulher, por exemplo, ao falo, à submissão do poder fálico. Se ela o nega, é discriminada. O devir feminino não deve também ser minimizado à categoria mulher tal qual a conhecemos, como mãe, esposa, rainha do lar, etc., mas à mulher que perfura os âmbitos a ela proibidos, tal qual as atrizes que, desde o século XIX, enfrentaram os construtos sociais, as imposições e conquistaram o espaço da mulher no teatro. O Devir Mulher propõe a desconstrução do objetivismo nosso de cada dia, partindo do princípio que o objetivismo e o pragmatismo são falocráticos. No contexto capitalista, tende- se a perder a paciência da mãe e ficamos com a eficácia do pai, o pai capital. Penso que poderíamos falar, no contexto do devir, em um Devir Corpo e suas transformações, como por exemplo, os corpos que são modificados por bisturis ou os corpos de artistas, que estão em constante mudança, transformando-se em personagens diferentes no teatro ou buscando novas possibilidades na dança, com disposição à invenção de novas movimentações e formatos, ao inacabado. No corpo cênico tende a ser desenvolvida uma energia intensa na qual se movimentam os afetos, proposta do devir (GUATTARI, 1981). O devir se mescla ao corpo cênico porque este propõe tentativas poéticas de imagens móveis para uma compreensão do ser através da poesia. A linguagem poética nos ajudaria a sermos mais livres e não impostos, como comumente, à maneira objetiva e racional. Fundamentalmente, Devir é um jogo incessante de criação e do desejo. Ele é o movimento de criação do real, o fluxo da vida. O desejo é quem nos lança ao movimento do Devir, um movimento indomável, selvagem e constantemente operante. Esta é uma energia bruta que está dentro do corpo cênico, que pulsa com o material de todo o universo, recebendo e 160 devolvendo movimento (GUATTARI, 1981). Mas esta é uma outra gestação, um outro parto... 161 Referências Livros e Capítulos ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval M. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de Teoria da História. Bauru, SP: Edusc, 2007. ANDRADE, Ana Lúcia Vieira de. EDELWEISS, Ana Maria de B. Carvalho. (Org.). A mulher e o teatro brasileiro do século XX. São Paulo: Aderaldo &Rothschild, 2008. ANDRADE, Ana Lúcia Vieira de. Margem e centro: A dramaturgia de Leilah Assunção, Maria Adelaide Amaral e Ísis Baião. 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Recife, residência da atriz, 22/04/2014a. COSTA, Suzana: Entrevista concedida à autora. Recife, residência da atriz, 01/12/2014b. MELO, Ivonete: Entrevista concedia à autora. Recife, Sindicato dos Artistas e Técnicos em Diversão do Estado de Pernambuco (SATED), Casa da cultura, 05/04/2014a. MELO, Ivonete: Entrevista concedia à autora. Recife, Sindicato dos Artistas e Técnicos em Diversão do Estado de Pernambuco (SATED), Casa da cultura, 01/12/2014b. SALDANHA, Stella Maris: Entrevista concedida à autora. Recife, residência da atriz, 18/06/2014a. SALDANHA, Stella Maris: Entrevista concedida à autora. Recife, TV Universitária - Universidade Federal de Pernambuco, 10/12/2014b. SALES, Zélia. Entrevista concedida à autora. Recife, Prefeitura da Cidade do Recife, Auditório Capiba, 23/01/2015. 167 Referências das epígrafes Introdução – p. 14 “A arte que resiste: ela resiste à morte, à servidão, à infâmia, à vergonha” (DELEUZE, 2010, p. 219). DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo, Ed. 34, 2010. Capítulo 1- p. 23 “Meu corpo é às vezes meu, uma vez que ele porta os traços de uma história que me é própria, de uma sensibilidade que é minha, mas ele contém, também, uma dimensão que me escapa radicalmente e que o reenvia aos simbolismos de minha sociedade” (ARTAUD apud NOVAES, 2011, p. 478). NOVAES, Joana de Vilhena. Beleza e feiura: corpo feminino e regulação social. In: História do corpo no Brasil. Rio de Janeiro: Unesp, 2011, p. 477 a 506. Capítulo 2 – p. 60 “Meu corpo é, portanto, no conjunto do mundo material, uma imagem que atua como as outras imagens, recebendo e devolvendo movimento, com a única diferença, talvez, de que meu corpo parece escolher, em uma certa medida, a maneira de devolver o que recebe” (BERGSON, 1999, p. 14). BERGSON, Henri. Matéria e Memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 2.1.1– p. 73 “Os corpos no Vivencial tinham a mesma força. Tudo o que se fazia no grupo tinha uma força só” (MELO, Ivonete. 2014a). 2.1.2 – p. 78 “O Vivencial foi o abrir das cortinas e a festa começou” (COSTA, Suzana. 2014a). 168 2.2 - p. 86 “O THBF era um respiradouro. A opressão do lado político era tanta durante a ditadura e lá no Hermilo a gente espirava possibilidades, contestação, transgressão” (SALDANHA, Stella Maris. 2014a). 2.3.1 – p. 98 “Naquela época fazer teatro era respirar” “Porque quem não viveu não sabe o que pairava, o que de fato aconteceu. Esse momento da História do Brasil é como se fosse uma coisa assustadora, ninguém mexe muito, de vez em quando vêm coisas, vem espetáculo, vêm filmes, mas o botar pra fora mesmo ainda não aconteceu. A ditadura ainda é um assunto muito delicado” (SALES, Zélia. 2014). Capítulo 3 - p. 116 “Por fim, o corpo pode ser concebido como uma arma, não ao modo desses camicases que explodem em nome de diversas causas, mas sim quando ele se interpõe entre o poder como instituição e os efeitos do poder como prática social” (MARZANO, 2012, p. 462). MARZANO, Michela. Dicionário do corpo. São Paulo: Loyola, 2012. Considerações Finais – p. 158 “O corpo – a vagina da alma” (Carlo Dossi) Disponível em http://www.citador.pt/frases/citacoes/autores em 10/09/2014. 169 Apêndices - Entrevistas Ivonete Melo Primeira Entrevista - 05/04/2014, no SATED (Sindicatos dos Artistas e Técnicos de Pernambuco) - Casa da Cultura Cristina - Ivonete, me fale um pouco de sua formação artística e como chegou no Vivencial. Ivonete – Eu vim de uma classe muito pobre porque eu nasci num engenho, porque meu pai era trabalhador de engenho, nasci em vitória, no engenho dos Belos, porém minha mãe casou com 13 anos, ficou viúva com 19, era só casada na igreja, não era casada no civil. Ela teve três filhos, um morreu e ficaram só dois e esses dois é... não éramos registrados. Então meu pai adoeceu, veio se tratar aqui (Recife) e eu fiquei com dois anos e a minha mãe... a família dele (do pai) tomou tudo que a gente tinha, engenho, tudo e a gente veio pra cá pra Recife morar dentro de uma palafita, ali no Bode (subúrbio do Recife). Então minha mãe teve que trabalhar, ela nunca tinha trabalhado, correu pra meu tio que morava aqui, meu tio registrou a gente... enquanto ela trabalhava numa fábrica de tecidos que existia ali na Rua Imperial e daí ela mandou buscar minha vó (sic) no interior para tomar conta da gente, dos dois, então eu fui criada com vó (sic), via minha mãe só de oito em oito dias. E aí foi uma vida muito sacrificada. Porém, estudei num colégio que era uma escola “modelo”, o Grupo Escolar Amaury de Medeiros e que tratava a arte como prioridade. Então a gente tinha lá música, dança, teatro, tinha o grêmio onde a gente se apresentava, né (sic)? Onde toda situação política acontecia, todos os casos que viessem, é... a merecer alguma reivindicação para o próprio colégio, a gente discutia dentro do grêmio. E aí eu fazia parte de toda essa... desse conjunto de cultura, eu tocava na bandinha, eu era do orpheon (canto orfeônico), cantava, fazia dança... mas eis que lá eu fiz até à quarta série e tive que me mudar pra Afogados. E aí eu fiquei sem fazer mais dança e foi um calo na minha vida. Porém, com quinze pra dezesseis anos eu comecei a trabalhar justamente pra estudar a dança e aí como a minha mãe não queria nada disso... eu fui, um dia eu cheguei assim, no Teatro Santa Isabel e vi... falando com a professora, ela disse: “Não, aqui tem bolsa porque o ballet municipal... vocês têm uma bolsa, só que agora você não pode mais pegar uma bolsa porque já passou o teste que é em fevereiro. E aí eu fiquei pagando. Eu Trabalhava até cinco horas e tomava um táxi, ia trocando de roupa dentro do táxi pra correr pra chegar na hora da aula e no próximo ano eu já passei a ser 170 bolsista. Estudei com muito afinco, dezoito anos no Santa Isabel, cheguei a ser assistente da professora, depois fui pra Flávia Barros (professora de ballet conhecida no Recife), então eu fiz... acho que vinte e tantos anos de ballet clássico e claro com outros rumos: dança moderna, jazz, popular, coisas que iam aparecendo. E também ensinei muito. Eu ensinava um aluno, tinha homens como alunos e um deles, o pai de Bruno (Garcia) que hoje é ator da Globo, e ele disse: “Ivonete, tá (sic) surgindo um grupo em Olinda”... que ele morava lá. “Então, quero te levar pra fazer um trabalho de corpo, eles se encontram na Ribeira, passam o sábado inteiro lá e aí eu vou te levar pra fazer um trabalho de corpo”. Aí eu fui, fiquei e não saí mais e assim me encantei... e foi muito cruel pra mim porque eu passei por vários laboratórios pra poder “virar pelo avesso” como a minha mãe diz, que depois do teatro eu virei pelo avesso, não sou mais a mesma pessoa. Então aí eu fui fazer o trabalho de corpo, mas aí veio o primeiro espetáculo no Festival de Teatro Amador. Como a gente (do Vivencial) era proibido de participar, de fazer peças nos palcos dos teatros locais, a gente fazia nas portas das igrejas, ao ar livre, lá na Ribeira... mas aí, Guilherme (Coelho, diretor do grupo), como era muito desafiador... esse concurso de teatro amador, só podia participar quem fizesse uma peça com princípio, meio e fim e nós não éramos acostumados a faze esse tipo de trabalho e sim “colagens”, o nosso lema eram as colagens que falavam não só das nossas vivências mas também das vivências da atualidade, o que estávamos vivendo sobre a ditadura, sobre a censura. Então nossos trabalhos eram sempre baseados nesses dois pilares e aí a gente também tinha essa história que os textos eram sempre em cima dos autores que também estavam se exilando, que eram os “malditos”, como Carlos Eduardo Novaes, Chico Buarque, Luís Fernando Veríssimo e por aí vai... Trevisan... Guilherme fez uma peça no Cotel (Secretaria Executiva de Ressocialização-PE) que tinha começo, meio e fim que era “O Pássaro Encantado na Gruta do Ubajara” (1975) e aí a gente se inscreveu e participou. E aí eu já entrei na leva porque uma das meninas não pôde fazer e eu fui substituir, não só dançando, mas dizendo algumas falas. Daí as pessoas assistiram, no caso Jomard (Muniz de Brito) mesmo ficou encantado: “Ah, não! Eu quero que ela faça um texto meu”. E aí o próximo texto foi “Nos abismos da pernambucália” (1975), de Jomard Muniz de Brito e onde eu estava sozinha, a única mulher junto com cinco atores. Foi muito interessante esse texto porque os meninos brigavam comigo porque eles queriam disputar... era uma disputa entre eu e eles, em cena. E era bem interessante porque na época já... a gente não ouvia falar em economia criativa e reciclagem e a gente já utilizava não só nos cenários mas também nas roupas. E 171 tudo isso reciclado do lixo para fazer os nossos cenários e os nossos figurinos. Bom, e daí por diante eu não parei mais e a gente continuou a se encontrar todos os sábados e os laboratórios eram muito cruéis porque eu ficava na berlinda mesmo, pra tirar tudo e desnudar mesmo a minha alma, o meu eu, tudo pra que eu aprendesse a fazer aquelas coisas que os textos pediam, né (sic)? E também porque a gente desafiava muito na época e aí era preciso que tivessem pessoas que caminhassem junto com o grupo para que tudo fosse feito de acordo com o que a gente tava (sic) dizendo, pra não passar mentiras e sim verdades. Teve um Super- 8, o “Vivencial I” (1974), que por sinal ele passou um trechinho no filme Tatuagem, que foi uma das primeiras coisas que a gente fez na rua. O Vivencial tem três fases, ele tem a primeira fase, quando Guilherme era monge beneditino lá no mosteiro de São Bento e fazia um trabalho de base. Ele sai do mosteiro, porque ele apresentou um trabalho lá que não foi muito bem aceito, os frades nãos gostaram muito da proposta. Ele saiu do mosteiro e se juntou com a Associação de Rapazes e Moças do Amparo (ARMA), que existia lá no Bairro Novo, lá na Ribeira e aí começou a se falar realmente num grupo de teatro. Mas aí Guilherme foi verificando que o seguimento da associação trilhava por um caminho e ele iria trilhar por outros caminhos e aí se separou e começou o grupo a acontecer. O grupo... não posso dizer que tinha vinte, tinha trinta, tinha cinqüenta... tinha cem. Quem chegasse era bem vindo. Podia chegar quem quisesse, podiam ser todas as minorias sexuais, raciais, todas... analfabetos, intelectuais, podia chegar quem quisesse que seria bem vindo. Todas essas pessoas já falavam das suas vivências e a gente aproveitava todas essas vivências para os nossos espetáculos. C – Me fale sobre as disputas com os homossexuais. I – Havia. Eles queriam aparecer mais do que a gente. Principalmente no espetáculo que a gente tinha de 01:30h da manhã, o “Bonecas falando para o mundo” (1979). Nesse espetáculo só trabalhava eu de mulher. Então eu era quem fazia o streap tease, eu era quem entrava dançando. Então quando eu entrava eles começavam com os braços, pra me tirar de cena e aí eu tomava à frente e arrasava mais do que eles porque eu pegava a perna e subia e eles não podiam subir a perna no can can (risos). Mas era algo só em cena, na convivência, não. C – Essa disputa acontecia só na cena ou também nos bastidores? 172 I – Não, nos bastidores éramos muito unidos, éramos muito irmãos. A gente se encontrava, dávamos “selinho”, entendeu? Tínhamos um dicionário próprio, falávamos... geralmente quando a gente tava (sic) conversando, muita gente não entendia as nossas conversas porque a gente tinha um linguajar próprio, como hoje tem... as bichas tem gírias que muita gente não entende, né (sic)? a gente também falava muitas coisas que as pessoas não entendiam como ocó (homem), aqué (dinheiro) (risos). Bom, como os teatros não queriam nos receber, então geralmente a gente tava (sic) sempre em atrito, no sentido de desafiar, por exemplo: Valdemar de Oliveira estava com um espetáculo do TAP (Teatro de Amadores de Pernambuco). Eles não deixavam, não queriam que a gente entrasse. Aí os meninos se vestiam de mulher, vestidos longos, chiques todos, chapelões com plumas, pagavam na bilheteria e entravam. E ficavam lá na frente. Com aqueles chapelões, aquelas plumas, como é que as pessoas iriam ver? (risos). Mas era isso, era ir de encontro com o teatro canônico. Fazíamos happenings na Av. Guararapes, em cima de um carro de bombeiros. Tudo que pudesse significar transgressão a gente fazia. Não ganhávamos cachês. Participamos de outro concurso que também só podiam participar peças que tinham começo, meio e fim e aí montamos “Sobrados e Mocambos” (1977), de Hermilo Borba Filho, que é diferente do de Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala. E aí a gente montou esse texto na Biblioteca Pública, lá em cima, no teto, com cenário, sem a menor proteção. Ganhamos quarenta mil cruzeiros e fizemos quarenta espetáculos. A gente não tinha cachê porque a gente juntava esse dinheiro para comprar um terreno e construir o nosso teatro. Então com esse dinheiro e mais o dinheiro que a gente ganhou do Mambembão... porque em 1978 quando caiu o AI-5 (Ato Institucional nº 5), o SNT, Serviço Nacional do Teatro que hoje é FUNARTE (Fundação Nacional de Artes), já passou por vários nomes, então ele tinha um projeto chamado Mambembão que levava espetáculos para se apresentar no Rio, em São Paulo e em Brasília. A FUNARTE começou a procurar espetáculos que tivessem um toque subversivo pra levar pra se apresentar, pra mostrar pro Brasil que realmente tinha se dado a abertura. E aí nós ganhamos, acho que foi trinta ou quinze mil cruzeiros. Também juntamos esse dinheiro. E aí a gente se apresentou no Rio, se apresentou em São Paulo, mas não deixaram a gente ir pra Brasília porque acharam muito forte o espetáculo, que era o “Repúblicas Independentes Darling” (1978) e que falavam de várias coisas que realmente incomodavam. A censura nos perseguia, cortava nossos textos, porém a gente botava sempre ele completo. Quando os fiscais, os censores vinham assistir o espetáculo, que mesmo durante a temporada eles assistiam, a gente fazia como eles cortavam. 173 Quando eles não iam assistir, a gente fazia total, completo. O Vivencial não só fazia espetáculos de teatro. Ele sempre aproveitava o que as pessoas traziam de experiência. Por exemplo, tinha uma menina, Madalena (Alves), que cantava, gostava muito de cantar as músicas de Maria Betânia, se promoveu um show pra ela, lá em Olinda, na Sé... tinha Pernalonga, tinha o show de Pernalonga, “Pernalonga 7 fôlegos” (1976) com textos de Jomard Muniz, onde ele cantava e dizia os textos. Tinha um projeto no MAC (Museu de Arte contemporânea) de Olinda, tinha um projeto que era o Salão dos Novos. Daí a gente se inscreveu e aí a gente pintou uma tela com os nossos corpos. Corpos nus, cada um com uma cor... eu, Suzana... quem mais? Acho que mais uns quatro ou cinco atores. Todo mundo nu com um pequenino tapa sexo só na frente e cada um com uma cor diferente: montamos um telão, com um lençol, com coreografia de Fábio Coelho, irmão de Guilherme e com a iluminação criada pelo Vivencial que era o spot-lata, de Miguel Ângelo. E aí com a música de Marlo Nobre, Rhythmetron que é muito cheia de efeitos e à medida que a gente ia dançando a gente encostava na tela, bunda... peito... a coreografia era toda transada e finalmente pintamos uma tela. Ganhamos em primeiro lugar. A comissão julgadora perguntou se a gente era capaz de fazer no dia da abertura do Salão porque tinha público. Nós topamos e fizemos a mesma coisa. Tinha o Balmasqué que a gente desfilava, a gente formava um grupo com os personagens de uma das peças que a gente já tinha feito, levava e apresentava no baile. Por exemplo, em Sobrados e Mocambos (1977), a gente tinha uma cena que era “A buceteira do Sobrado” e as sinhazinhas e as mucamas desse grupo, a gente levou pro Balmasqué e ganhamos também. Então a gente movimentava como um todo e todo dinheiro ganho a gente juntava. Compramos um terreno em Salgadinho, a preferência foi comprar lá porque era entre sobrados e mocambos dentro de uma comunidade muito pobre, mas era nossa preferência ser lá e foi lá que a gente comprou esse terreno e construiu um café concerto, onde tínhamos quatro espetáculos por noite: às nove, os shows de variedades, às onze e meia e de meia-noite e meia se apresentavam as bandas que estavam surgindo e não tinham espaço e a gente dava espaço pra eles e de uma e meia da manhã tinha o “Bonecas falando para o mundo” (1979), que era um show no estilo cabaré, com streap tease. A minha vida no Vivencial foi essa. Onde eu participava de todos os trabalhos, dos super-8, tem o “Jogos Frugais Frutais” e tem “Tieta do Agreste”, monólogo que eu fazia falando sobre a poluição das praias na época. O monólogo é de Carlos Eduardo Novaes e se chama “Verão de 92”. Se em 78 (1978) as praias já estavam poluídas, imagine em 92 (1992)? Antes, foi uma cena do espetáculo “Repúblicas 174 Independentes, Darling” (1978), que eu fazia como uma menina e depois virou vídeo com o nome “Tieta do Agreste”. Porque as praias tinham as bandeiras, bandeiras brancas, pretas, pretas com caveiras... cada bandeira dessa nas praias representava um tipo de poluição, onde a gente só podia tomar banho nas áreas de bandeiras brancas, mas mesmo assim, como todos os esgotos corriam para a praia, principalmente ali no Pina, até o cano de bosta despejava lá... então a gente falava sobre esse tipo de poluição que existia ali e existia em todo o Brasil. C – As mulheres militantes anulavam sua sexualidade, feminilidade, identidade, enfim, se tornavam corpos clandestinos, “invisíveis” para atuarem contra o regime. No teatro, os corpos das atrizes afloram, visto que mostrar-se é eminente à arte teatral. Quais mecanismos se concentrariam na esfera teatral que permitiram essa diferenciação ou liberação? I – É porque o teatro tem meios que você pode dizer uma coisa de vários modos, entendeu? Você pode usar várias inflexões, assim como o corpo, a gente pode introduzir ele (sic) por essa inflexão que vai passar despercebido para as pessoas que procuravam censurar. O teatro tem o poder de dar o duplo sentido. Não só através do corpo mas também na luz, nos figurinos, nos textos, entendesse? C – O que foi o corpo feminino no vivencial? I – Foi protesto contra tudo e contra todos, no sentido de... tudo por conta da época, que tudo era censurado, tudo era proibido e todos porque as pessoas nos marginalizavam e aí era uma espécie de choque cultural. As atrizes da época não admitiam esse corpo tão exposto, atrizes de outros grupos, outros diretores e até mesmo atrizes do próprio Vivencial. Tenho a impressão de que o nosso corpo dentro do Vivencial era o nosso porta-voz dos acontecimentos da época. Era prescrito o “certo”, pra se fazer o “certo” e nós íamos de encontro com esse corpo. Apesar de que as pessoas queriam fazer a mesma coisa e não tinham coragem. Os corpos no Vivencial tinham a mesma força. Tudo que se fazia no grupo tinha uma força só. O corpo do homem também era muito mostrado. Enfeitavam-se os pênis, estes eram evidenciados com objetos. C – O que representou o corpo da mulher/atriz Ivonete na época? I – Puro protesto. Tinha beleza, sensualidade, mas era protesto. Não me utilizava do corpo em cena como desejo ou sexualidade, a menos que a cena exigisse desejo ou sexualidade. 175 Inclusive em 1979, eu fui chamada para fazer a Paixão de Cristo de Fazenda Nova, Pimentel era o diretor. Eu acho que ele foi contra, mas eu fui chamada por Diva Pacheco, que era a dona... e eu era a mulher de Herodes e bailarina do bacanal também. Aí Pimentel fazia o Jesus, dirigia e fazia o Jesus. E de quando em vez, na cena de Herodes, ele olhava pra trás para ver se eu estava me excedendo. Como se pensasse “Esse povo do Vivencial, se exibe demais, não sei o quê...”, achava que eu ia me exceder nos movimentos. Pra você ver que muita gente pensava e acreditava que o corpo no Vivencial era só pra isso, pra exibição, mas não era bem assim. Ele era protesto e parecia dizer: “Seja você, faça o que você gosta. Seja livre. Não dê satisfações. Não mostre que você é preso a alguém ou a alguma coisa. Você é uma pessoa que quer liberdade, que é livre. Você não precisa estar em proibição e julgamento”. É isso. C – Como você define o Vivencial? I - Era político-engajado. Tudo que se fazia no Vivencial tinha esse toque social e político, principalmente político. Tanto que lá todos eram aceitos, todas as classes, de todos os níveis sociais. E também intelectuais, analfabetos... e aí, mesmo aquelas pessoas que não tinham estudo, elas faziam a linha “papagaio” até tomarem consciência do que estavam fazendo, porque quando eles chegavam não tinham essa consciência, aí eles iam aprendendo com o tempo, fazendo no palco, dizendo no palco coisas que às vezes elas nem entendiam, mas que com o tempo elas chegavam a se conscientizar do que estavam dizendo e fazendo. E daí se começava o fator “criação”. Era político de forma mais abrangente. Porque ás vezes, por mais que se explicasse o teor político dos textos, estas pessoas não entendiam. Tenho a impressão de que alguns eram alienados, mesmo, era difícil falar pra eles o que o momento político estava produzindo. Mas isso era um grande processo de aprendizado. E depois, no processo de criação, eles começavam a criar tão bem que no próprio processo de criação eles começavam a entender, a se conscientizar politicamente. Mas não chegava de imediato. Era um processo longo. Acho que alguns nem acreditavam que a ditadura estava produzindo certas coisas. Mas aos poucos eles iam entendendo a proposta, o que realmente acontecia, entender o que não tinha conhecimento... aquilo já... já começavam ver tudo de maneira diferente, a vida... porque muitas vezes, veja bem, a pessoa mora numa periferia, numa favela, mas nem sabe... acha que é porque não tem dinheiro, não pode pagar uma casa lá fora, entendeu? Mas não sabe o porquê de estar ali. E ali cresce, se conforma, que é aquilo mesmo que coube a ele, mas não 176 sabe a história do porquê de estar ali, entendesse? Era mais ou menos assim. O processo era de esclarecer. Porque Guilherme quando era monge, ele fazia um trabalho de base com a comunidade, ou seja, de conscientização. Ele já fazia esse trabalho crítico, fazia trabalhos de interpretação com jovens e esse trabalho social e político ele trouxe para o Vivencial e anexou ao cultural e aí juntou o útil ao agradável (risos). C – Quando se deu a abertura, como você reagiu? I – Quando se deu a abertura, que caiu o AI-5, de 1977 pra 1978 a gente tava (sic) com o “Repúblicas Independentes, Darling”, ela foi muito censurada, só ficaram alguns quadros. A gente fez este espetáculo tanto completo como cortado, o que a censura cortou. Os censores, a gente até já conhecia eles (sic) de tanto que levávamos os textos pra censura, de tanto fazermos espetáculos antes das estreias pra eles, a gente já conhecia eles (sic). E aí como eu ficava na entrada do espetáculo de vedete, como uma coelhinha, bem elegante, de espartilho francês, de sapato bem alto, de pluma na cabeça, com um tabuleiro de babados e tules com cigarros, rosas, chicletes na entrada, eu ficava até à hora de começar o espetáculo, porque no Diversiones (a casa de espetáculos), cada um tinha uma função, além de ser artista, e eu ficava lá na frente vendendo essas coisas. E aí eu sabia quando tinha censor e avisava. Quando eles não iam, a gente fazia o espetáculo todo, completo. Quando eles iam, nas partes que tinham sido cortadas, a gente passava com uma placa com uma tesoura desenhada. E aí quando caiu o AI-5 viajamos com o Mambembão. Eles queriam uma peça subversiva, pra mostrar pro Brasil que tinha se dado a abertura, pra dizer: “Olha, a abertura aconteceu, viu”? mas de mentira, né (sic)? Porque a abertura não se deu totalmente porque o homem ainda continuou no poder, né (sic)? O Geisel! Tanto que íamos fazer Rio, São Paulo e Brasília, mas eles não deixaram a gente fazer Brasília. Pra você ver que a abertura que havia se dado era uma “meia abertura”. C – O estigma do ofício de atriz ser comparado à prostituição perdurou por séculos e deixou resquícios dos anos de 1970 para cá. Você teve o seu trabalho como atriz comparado à prostituição? I – Sim, porque de um modo geral nós éramos um grupo marginalizado. Éramos olhados como marginais. As mulheres do grupo eram “putas ou sapatões”. Homem era frango. Tinha esse estigma, das pessoas, dos artistas dos outros grupos, das outras atrizes da época, muitas censuravam a gente. Alguns anos depois vi muitas atrizes, bailarinas com os corpos nus, 177 algumas até que criticavam a gente. Nem acreditei. No Vivencial, muitos homens (espectadores) me procuravam para sair com eles. Eles tentavam primeiro falar com Guilherme. Eu terminava e ficava lá dentro, não aparecia. E aí eles tentavam com Guilherme, se ele podia arranjar (sic), pra que eu saísse com eles... e muitos ficavam me esperando, porque a gente ia pro Alto da Sé tomar uma cerveja, conversar, aí eles iam e ficavam querendo se encaixar na conversa, entre nós, participar... Eu nunca saí com ninguém. Mas na fase do Diversiones, os dois travestis, eles saíam, eles se prostituíam. Os carros encostavam e levavam eles para as suítes presidenciais. Eles eram muito bonitos. Eles se prostituíam, mas as meninas não. Segunda Entrevista - 01/12/2014, no SATED (Sindicatos dos Artistas e Técnicos de Pernambuco) - Casa da Cultura Cristina – Como foi, no seu contexto, ser atriz na ditadura militar? Ivonete – Foi muito cruel, né (sic)? Porque eu era discriminada, era enjeitada pelos diretores de teatro da época, porque era tudo dentro das características... “eram certinhos” e eles tinham medo de trabalhar comigo porque podia ser que eu extrapolasse no texto, fugisse do texto, é... depravasse o texto, é... uma série de coisas. Então eles não me chamavam pra trabalhar com eles, não queriam porque eu era de um grupo marginal. C – “Certinhos” eram os diretores que faziam teatro convencional? I – Isso, o “teatrão”. E mesmo aqueles que não faziam o “teatrão”, dirigiam textos que não eram censurados. E como nós só fazíamos textos censurados, rejeitados pela censura e aí como eu, no Vivencial, extrapolava todos os limites, não só com o texto, mas também com o corpo, então eles me julgavam uma pessoa depravada, excluída, no contexto do momento. Eu era uma atriz que as próprias atrizes do momento, elas... elas não... me rejeitavam, não concordavam com aquele tipo de teatro do Vivencial, o teatro que eu fazia. Uma vez, em 1978, já tinha caído o AI-5, aquela coisa toda e devido ao meu conhecimento com Diva Pacheco, e ela sabia que eu fazia ballet, aí ela me chamou para fazer a Paixão de Cristo de Fazenda Nova e Pimentel (José Pimentel) na época era o diretor. Ele tanto era o diretor, como fazia o “Cristo”. E na cena de Herodes, onde eu fui trabalhar, eu era a mulher de Herodes e fazia o bacanal. Mesmo sendo uma cena de bacanal, ele em cena virava para ver o meu comportamento, para ver se eu estava extrapolando no comportamento daquela cena. Tenho a 178 impressão de que não tinha confiança em mim. E daí ele ficava tomando conta o tempo todo, mesmo em cena, representando o Cristo, mas ele sempre arranjava um jeito de virar e ver o meu comportamento, se eu estava ali, aproveitando a cena que (risos) era apropriada para eu deitar e rolar. Eu acho que os diretores achavam isso e não me chamavam para trabalhar em outro grupo. Acho que os diretores pensavam que eu era uma atriz que não sabia me comportar em cena, de dizer o texto na íntegra ou se eu ia modificá-lo. Porque a gente (o Vivencial) montava muitas colagens e muitas vezes em cena, dependendo do público, a gente extrapolava, a gente ia mais adiante, mais à frente e dependendo do público, de onde a gente estava, dependendo do que ele dissesse, do que ele jogasse, a gente criava na hora, entendeu? Por exemplo: tinha na época um sabão em pó que o nome era “Fada”, a marca era “Fada” e a gente se utilizava desta propaganda e numa cena das janelas dizia-se “Ah, essa Fada... Essa fada!”. Dependendo das entonações a gente fazia muita coisa com uma propaganda de TV ou jornal. Até hoje José Francisco (um diretor de teatro de Recife), me dirige, mas ele diz “Olhe, não faça nada que faça as pessoas rirem”. É porque a gente trabalhou olho no olho com o público, então o improviso já estava na gente. Criou-se um mito, parece que se fôssemos para outro contexto, levaríamos a linguagem do Vivencial juntos. C – Quem se mostrava mais intolerante para com a sua profissão de atriz? I – No geral, a sociedade e a própria classe artística. No início da carreira eu tinha cautela, queria dar satisfação, mas depois isso acabou. Na família não porque a minha mãe não sabia que eu fazia teatro. Eu fazia escondido, então ela não sabia que eu fazia este tipo de teatro, ela sabia que eu tinha modificado a minha vida, que eu era outra pessoa, mas não que eu fazia este tipo de teatro. Mas minha família era alienada. C – Por falar em alienação, havia pessoas no grupo alienadas para com o momento político? I – Havia. O grupo era muito grande (sic), entrava e saía gente a todo momento, eram muitas pessoas. Éramos um grupo que fazia coisas que agradavam às pessoas daquela época, que eram socialmente reprimidas, os jovens daquela época. Então a cada dia chegava mais gente. Mas tinha muita gente que não entendia o momento político e aprendiam com o tempo, com os ensaios, com os laboratórios. Chegavam porque achavam bonito, porque era legal, era engraçado fazer aquelas coisas loucas, atuar na rua... então eles chegavam por isso. Por exemplo, Suzana! Um dia Suzana conheceu o grupo e disse “Ah, eu quero fazer isso 179 também”. Porque era uma “dondoquinha” (sic), “uma filhinha de papai” (sic) de Boa Viagem, o pai trabalhava no Banco do Brasil e ela saiu de casa com quinze anos pra se integrar ao grupo, para se juntar lá ao pessoal e depois teve um filho. Os que permaneciam, era com o tempo que vinham ter esse tipo de consciência, com os ensaios, com os laboratórios, com a vivência mesmo. C – Você sabia que haviam pessoas sendo perseguidas, mortas, torturadas como jornalistas, religiosos, artistas? I – No início eu tinha noção porque eu via as passeatas no Parque 13 de maio, eu estudava no Instituto de Educação, eu conhecia o trabalho do Teatro Popular do Nordeste, as perseguições que eles sofriam. As minhas amigas do colégio e do trabalho que participavam das passeatas, que se envolviam com militância fugiram para o Rio de Janeiro para morarem numa quitinete com vinte, trinta pessoas, fugindo, se escondendo, entendeu? Então tinha uma noção, mas não tinha sentido na pele nada disso. Mas eu passei a participar das passeatas por afinidade com as causas, via nas passeatas, quando a polícia ia atrás dando cacetada em todo mundo. Eu ficava assustada e corria, mas nunca fui pega. C – Quem organizava estas passeatas? I – Os estudantes. Nessa época os estudantes eram muito fortes. Por exemplo: só aumentava as passagens se eles quisessem, eles quebravam ônibus, destruíam, despejavam cofres de dinheiro, queimavam, tacavam fogo, atiravam nos donos das empresas. Então eram os estudantes mais politizados e organizados que conseguiam armar isso. E as passeatas eram pelo aumento das passagens, pela censura, por tudo. Aí (sic) foi quando eu entrei no Vivencial e formando o quebra-cabeça e passando a ter outra consciência. É porque eu fazia ballet e o ballet é alienador, em todos os sentidos, aliena o corpo... Havia um estereótipo para a bailarina clássica, não podia sentar num bar para beber, não podia usar o cabelo encaracolado, meus programas eram exposições de pintura, sinfônica, ópera, entendeu? Aí quando eu entrei no Vivencial mudou tudo. Passei a ter outra visão. Transgredi (risos). Aí (sic) passei a juntar o que me atraía naquelas passeatas, que eu não sabia de fato, como a coisa era, no fundo, no fundo, como era tudo aquilo, só superficial. No Vivencial foi que eu vim saber exatamente como funcionava tudo, a censura, os militares. Eu passei a ter outro conhecimento social, político e cultural. Tanto que passei mais de trinta anos ensinando nas maiores periferias, nas 180 maiores comunidades carentes de Recife: Dois Unidos, Linha do Tiro, Totó e é uma coisa que eu gosto, me integro, eu passo a fazer parte da vida comunitária, né (sic)? Mas no Instituto de Educação eu ficava sabendo das passeatas, muitas vezes já topava com as passeatas nas ruas, achava justos os motivos reivindicados e acompanhava. C – Não tinha medo de ser pega? I – E eu lá pensava nisso! Se eu fosse pega e morta... C – O que você acha que o seu trabalho representou para o teatro? I – Engraçado que hoje eu fui na FUNDARPE (Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco), encontrei um menino que faz Drag Queen e é ator também, ele disse: “Menina, eu vi umas fotografias suas, a senhora, naquela época, ninguém ganhava pra senhora, viu (sic)? a senhora já era politizada, essas outras de hoje fazem pra aparecer e ganhar dinheiro, mas a senhora não, era uma danada! A senhora era uma libertária”! (risos). Aí veja bem, até os jovens de hoje reconhecem isso, entendeu? Mas foi preciso coragem, de enfrentar, de encarar. Exibir meu corpo, naquela época, naquele contexto, ao vivo e a cores diante de um público muito próximo, porque era um café concerto. Fazer também um super-8, nua, filmando dentro da vagina, plantando bananeira, expondo seu próprio corpo! No filme “Jogos Frugais Frutais”, que eu tô (sic) com aquelas frutas, o mel das frutas juntou muitas moscas, mas nem as moscas me atrapalharam (risos). C – Me fale sobre a rotatividade de componentes no grupo. I – Entrava e saía gente do grupo toda semana. O Vivencial era um grupo que... ele tinha um elenco fixo ou quase fixo e outras pessoas que “circulavam” pelo grupo. Mas dependia muito do que a gente fizesse. Tinha coisas que a gente fazia que exigiam muita gente... C – Quais eram as atrizes fixas do grupo? I – Quando em entrei o grupo tinha... Eu, Suzana (Costa), Madalena (Alves), Goretti (não lembra o sobrenome). Mas essas meninas saíram logo. Goretti era mais assim, porque namorava um menino do grupo. Eu, Suzana Costa, Auricéia Fraga, que fez dois trabalhos, já no final do Vivencial. Homens tinham muito, mas mulheres sempre foram poucas. Mas se for 181 elencar três atrizes fixas do Vivencial, eu digo eu, Madalena e Suzana. Mas apesar de ter poucas mulheres, com o Vivencial, o teatro pernambucano ficou mais feminino. C – Por que você acha que Suzana era escolhida para negociar com a censura? I – (Risos). Suzana conseguia “conseguir” as coisas. Ela era despojada, falante. Ela tinha um amigo que tinha um armazém de construção e conseguiu material para fazermos o café (a casa de espetáculos). Conseguiu fotos para o grupo, que naquela época eram caras, principalmente as revelações grandes, as fotos grandes. E lá na censura ela era bem recebida. C – Como era fazer espetáculos para a censura? I – Primeiro ia o texto e eles cortavam, às vezes uma besteira sem tamanho que não significava nada e eles inventavam que era grave. Aí (sic) o texto vinha cortado, a gente ensaiava ele todo e ensaiava com os cortes. Apresentava o espetáculo com os cortes, o ensaio geral para a censura primeiro e eles com o texto na mão, para ver se a gente estava fazendo com os cortes. Às vezes cortavam mais alguma coisa e ficavam indo, para ver as apresentações. Aí (sic) no dia em que eles não iam, que a gente já conhecia eles, que eram poucos censores, aí (sic) fazíamos o espetáculo sem os cortes. No dia que eles iam, a gente passava com uma tábua enorme com uma tesoura pintada no meio, nas partes do texto que haviam sido cortadas, atravessando de uma coxia para outra. Mas a presença dos censores era constrangedor porque a qualquer momento eles podiam mandar parar tudo e fechar. O medo era constante. Eram pessoas que não entendiam nada de teatro, que tinham sido postas ali para fazer esse trabalho e que obviamente, abusavam do poder que tinham. C – Quais as palavras mais censuradas? I – Deixa eu ver... República. Em “Repúblicas Independentes, Darling”, tínhamos, por exemplo, uma cena com as palavras “República, rés públicas, coisas públicas”, cada ator dizia uma palavra referente à República e eles disseram: “Não, isso não! Ôxente (sic)! Esculhambando com a República? Por que? Corta. Vocês podem dizer simplesmente “República” (risos). Outro texto que tínhamos, que falava sobre democracia foi todo cortado. Entrava um ator negro (Américo Barreto) pela platéia, com um macacão e chapéu de trabalhador, cumprimentando o público e dizendo se chamar “Povo”. E uma mulher no palco, 182 lavando roupa. E “Povo” alertava a mulher para que se arrumasse, que ela estava atrasada, que ela se preparasse porque “Ela” estava vindo. “Ela” era a democracia. Era uma gozação em cima da democracia que não se tinha. Mas no geral, a censura implicava com todos os nossos textos. Primeiro porque eram textos de autores perseguidos como Carlos Eduardo Novaes, Luís Fernando Veríssimo, Drummond, Veríssimo. Implicavam com tudo porque falávamos de drogas, de sexualidade, do momento político. C – Você acha que existe alguma espécie de censura atualmente? I – Sim. Por exemplo, eu sou da Comissão Deliberativa do FUNCULTURA (Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura) e é muito complicado porque são quinze pessoas julgando. Ela é paritária, tem a sociedade civil, onde entram as entidades e a outra parte que é do governo. Às vezes, as pessoas indicadas pelo governo não entendem de teatro, nunca sequer foram a um espetáculo de teatro... como aqueles censores, sabe? Dos quais falávamos. Em outros casos tem as pessoas que entendem de teatro, gente da Fundação Joaquim Nabuco, da Universidade Federal de Pernambuco, de vários lugares. Então os que não entendem, vão pela cabeça destes que entendem de teatro, às vezes. No geral, tem os apadrinhamentos. Tudo isso é censura porque restringe, controla, impede, limita. E porque censura mesmo, por exemplo, Augusta (Ferraz) já concorreu duas vezes com o texto “A Arte de trepar”, no FUNCULTURA e não passa. Já vi gente dizer: “Um texto desses”? (risos) C – Por acharem pornográfico? I – Sim. É um absurdo, mas ainda existe isso. C – Me fale sobre a reação do público no Vivencial. I – O público se identificava muito porque a gente dizia o que eles queriam dizer e não podiam. As pessoas iam pra lá se divertir e se encontrar. Fazer lá o que não podiam fazer fora. Também ia muita gente da alta... eles bebiam, cantavam, dançavam, se agarravam com as bichas. C – Como eram as relações no grupo? I – Todos éramos iguais. Defendíamos as mesmas coisas e estávamos dispostos para o que der e vier. 183 C – Quais as áreas de atuação do Vivencial nas apresentações de rua? Vocês não eram abordados pela polícia? I – Recife e Olinda. Fazíamos happenings, mas quando a polícia chegava já tínhamos saído do lugar. Mas fazíamos mais em Olinda. Olinda era mais liberta, de tudo! Sexo, drogas, rock and roll. Era a cidade onde estavam os poetas, os artistas, os grandes pintores. Lá estavam todos os politizados e transgressores da época. Olinda era mais fácil de transitar e tudo era bem vindo. Os nossos laboratórios eram na Ribeira. Em Olinda, a gente se sentia forte. C – Na época, quais os grupos que mais pensavam no corpo como ato político e onde se concentravam? I – Acho que só o Vivencial, em Recife e Olinda. Haviam nas outras cidades grupos esquerdistas, subversivos, mas a coisa da politização do corpo, só o Vivencial. C – Como foi a compra do terreno para a construção da casa de espetáculos? I – Juntamos o prêmio do SNT (Serviço Nacional de Teatro), que hoje é FUNARTE (Fundação Nacional de Artes) para montar “Sobrados e mocambos”, que foi Cr$ 40.000,00, com o dinheiro do Mambembão, que foi Cr$ 15.000, 00. Tinham também festas que promovíamos, eventos, exposições, para arrecadar dinheiro, juntamos tudo e compramos. Quando Guilherme (Coelho) foi comprar o terreno, a dona pediu um preço. Aí ele me vestiu de “pobre” e eu fui com uma sandaliazinha, um vestidinho, um lencinho na cabeça e a mulher me vendeu pela metade do preço. Infelizmente, mas neste caso foi felizmente, as pessoas nos julgam pela aparência. Cada lugar você tem que fazer um personagem, infelizmente. C – Qual a importância do seu trabalho de corpo para as gerações seguintes? I – Foi ver as mesmas pessoas que me criticavam, anos depois fazendo a mesma coisa, sem limitações para com o corpo. Foi importante porque outras artistas, vendo a minha ousadia, também ousaram mais tarde, depois do AI-5. Ainda hoje os coletivos fazem muito da linguagem do Vivencial. O trabalho do vivencial hoje é motivo para pesquisas nas universidades, nas escolas de teatro, inspira vídeos e filme, o Tatuagem, que está há um ano e pouco em cartaz. E engraçado é que quando o Vivencial terminou, eu era a atriz que mais trabalhava em Recife. Todos me chamavam para trabalhar, a cotação foi lá pra cima. De puta eu passei a ser rainha. Tinha época que eu fazia três, quatro peças por semana. Em 78 (1978), 184 chamaram Suzana... porque Suzana era diferente, né (sic)? Pra fazer a “Revolta dos Brinquedos”. Suzana estava ensaiando, aí ela saiu e me indicou. E mesmo contra a vontade do diretor e do produtor, resolveram fazer o teste comigo e fiquei no espetáculo. E aí as pessoas já começaram a me olhar de maneira diferente. C – Quanto tempo você ficou no Vivencial? I – De 1975 a 1982. Suzana Costa Primeira Entrevista – 22/04/2014, na casa da atriz. Cristina – Como você chegou no Grupo Vivencial? Suzana – Eu tinha uma tia, uns primos que moravam em Olinda. Eu morava em Boa Viagem e tinha chegado uma prima minha de São Paulo e comecei a sair com esta prima. Aí (sic) esse primo de Olinda disse: “Vamos ali ver uma peça de uns frangos”. Era num abrigo, era o primeiro espetáculo do Vivencial, o “Vivencial I”, (1974). Eu assisti aquilo e disse: “Meu Deus, eu quero fazer isso. Era uma coisa completamente diferente de tudo que eu havia vivido até então. Era certinha, morava em Boa Viagem, fazia ballet, era comportada. Só querendo descobrir, tinha dezesseis anos. Aí (sic) assisti e adorei. Eu frequentava a Livro 7, era uma livraria que tinha, bem legal, tinha uma área de discos, um teatrinho que Marcos Siqueira (diretor do Teatro Hermilo Borba Filho) havia feito lá atrás. Um dia estava nesta livraria e um rapaz perguntou se eu não queria fazer teatro e eu disse que sim. O rapaz falou ainda que estava começando o ensaio de uma peça e de lá mesmo fomos para o ensaio, que era em Olinda. Chegando lá, era o Vivencial! Fiz o “Genesíaco”, (1974), um espetáculo só de expressão corporal, só corpo. Era sobre Gênesis, a bíblia, a cobra, as tentações... e daí fiquei pra sempre. C – Você considera que o Vivencial teve três fases, partindo do princípio de que os fundadores do grupo vieram do ARMA (Associação de rapazes e moças do Amparo), de que lá surgiram as primeiras ideias que iriam guiar os caminhos do grupo? S – Pra mim foram só foram duas fases. Porque o ARMA era um movimento religioso, o qual eu não participei, é uma coisa anterior a mim, que de lá vieram Guilherme Coelho, Alfredo 185 Correia Neto e José Américo. As propostas que eles faziam lá, a igreja proibiu e eles montaram o Vivencial. Então eu já peguei o Vivencial e eu só conto duas fases: a primeira, que é o Grupo de Teatro Vivencial e a segunda, que é quando se montou o Vivencial Diversiones, que é uma outra história, um outro pique. C – O que seria um outro “pique”. O que caracteriza o Vivencial e o Vivencial Diversiones? S – No Vivencial, era só o grupo de teatro, a gente se preparava para um espetáculo, para happenings. E no Diversiones, que foi quando abrimos a sede, eram vários horários: teatro às 21:00h, música às 11:00h e a partir de meia-noite, 01:00h, o show de variedades. E tinha o bar... quer dizer, não era só a coisa lúdica do teatro, sabe? Tinha muita coisa para ser administrada. Eu fazia o horário das 21:00h, fiz acho que duas temporadas do “Repúblicas Independentes, Darling”. Éramos poucas mulheres e Ivonete fez o show de variedades talvez por ser bailarina. E nesse horário, eu gerenciava o bar que tinha uns uísques péssimos, péssimos, de última, muito engraçado... (risos). C – E vocês viviam em comunidade, moravam juntos... S – Sim. Ivonete não morou nessa casa. Eu tinha dezessete anos e entre dezessete e dezoito anos fui para São Paulo e quando eu voltei, já com dezoito anos, fui direto para a casa do grupo, nem fui pra casa. Além do espaço físico do Diversiones, havia a casa que morávamos e havia uma organização, todos os serviços divididos. C – Havia algum tratamento diferenciado com você, por vir de uma classe social diferente dos demais? S – Me chamavam “burguesinha”, mas não era insulto, não. Que bom, né (sic)? Ser “patricinha” e escolher uma outra forma de viver e não ter que fazer isso por necessidade.Tinham os despeitos normais de frango com mulher, mas coisas fora de cena. Éramos as “bonequinhas”. Guilherme costurava roupas para mim para eu sair desfilando, o povo gritando: “Lá vai a noiva”! Eram uns echarpes que arrastavam pelo chão e todo mundo lá paparicava a gente. Agora é claro que eles queriam ser a gente, né (sic)? Mas todos eram tratados com igualdade. O Vivencial tinha uma logomarca que eram duas pernas de mulheres abertas, pra cima, com a frase: “Vinde a mim todos”. C – Você não fez trabalhos de nudez no Vivencial? 186 S – Eu não fiz o Diversiones no horário da meia-noite, que tinha nudez explícita. No Grupo de Teatro Vivencial, que eram espetáculos revolucionários, divertidos, de greia, não tinha a nudez explícita, mas seminudez. Nua, fiz um filme de Jomard (Muniz de Brito), Toques e algumas fotos. C – Por serem fortes, alguns dizem que as mulheres do Vivencial eram fálicas. O que você acha deste pensamento? S – O feminino era cultuado e cultivado por todos. Vivencial era o toque feminino. E eram poucas mulheres, eram tantos homens que talvez por isso nos chamem de fálicas. C – As mulheres participavam diretamente das montagens, junto à direção? S – Sim, na concepção das cenas, dando sugestões. Mas era tudo... primeiro porque não tínhamos nem texto impresso. Cada um copiava a sua parte. Tinham uns que não sabiam nem ler e pra esses a gente dizia o texto para eles decorarem. Os figurinos... várias coisas eram que eu trazia das amigas da minha mãe e dali a gente transformava. Não existia o “desenho do figurino”. As coisas iam chegando e a gente ia montando para cada personagem. Um trabalho ou outro que foi pensado um figurino, “Sobrados e mocambos” (1977) e uma peça bem bonita, que ninguém fala, “O pássaro encantado na gruta do Ubajara” (1975) e que era todo feito com rótulos da Skol. Eu tinha uma peruca que era toda feita de rolinhos prateados, era um trabalho muito minucioso. C – E essa reciclagem posteriormente virou marca do grupo... S – É, era uma necessidade, na verdade. E continuamos com essas reciclagens porque o Vivencial nunca teve dinheiro. O primeiro prêmio que a gente recebeu, que era para montar “Sobrados e Mocambos”, nós compramos o terreno. E fizemos o espetáculo como a gente sempre fez: indo atrás, pedindo, família ajudando, amigos. Só a madeira do cenário foi comprada, mas o resto foi tudo confeccionado por nós mesmos. Agora a criação era tudo de Guilherme (Coelho). Guilherme era diretor, autor, tudo. E minha mãe dizia que a gente falava igual a Guilherme (risos). C – Por que você acha que era escolhida para negociar com a censura? 187 S – Ah, tenho a impressão de que porque eu... eu acho que porque eu era engraçadinha, sabia falar, podia negociar, discutir, pedir. Porque era todo mundo muito pintoso (sic), entendeu? tinham uns cabelos deste tamanho! usavam umas calças abertas na lateral. Havia um modo de viver que não era só na cena. Todos do grupo viviam “montados”. Sei que era eu quem cuidava disso, eu quem ia levar o texto, depois ia buscar o texto com os cortes e negociava aquilo, dizia: “Tá (sic) vendo que isso aqui não é nada demais”? Normalmente eu falava diretamente com o chefe, que era uma pessoa que tava cumprindo aquele... não era esse terror... tinha (sic) coisas que ele dizia: “Não, não pode, isso não vai poder”. Então tinha umas cenas que a gente passava tudo mudo (sic), outras uma tesoura atravessava, cortando a cena. Quando não tinha censura a gente fazia a cena. Eu acho, sabe? Que havia uma permissão, que permitiam a gente fazer também porque era uns meninos que não... não era a política partidária, que era isso que eles queriam bloquear. E o Vivencial era pra tudo, era liberdade geral, pra vida. Acho que por isso que não sofríamos tanta perseguição, porque não era partidário, porque a gente falava de liberdade de expressão, de corpo. Mas o teatro tem uma força diferente do que falar na rua e fazer aquela agitação e a gente tava (sic) num lugar fechado. E já tinham tocado fogo nos sutiãs e eu já podia me vestir como eu queria... na música... tudo já tinha se aberto. E foi o melhor início de teatro que alguém podia ter, foi entrar nesse grupo, bem polêmico, bem louco, apaixonante. Mas que também foi por um tempo. Depois, quando não estava mais sendo feliz ali, fui fazer outras coisas. Mas eu nunca senti repressão nenhuma, nada... nem por ser atriz e nem por ser de um grupo maldito. Sempre fui bem recebida... C – As mulheres militantes anulavam sua sexualidade, feminilidade, identidade, enfim, se tornavam corpos clandestinos, “invisíveis” para atuarem contra o regime. No teatro, os corpos das atrizes afloram, visto que mostrar-se é eminente à arte teatral. Quais mecanismos se concentrariam na esfera teatral que permitiram essa diferenciação ou liberação? S – Porque o teatro tem uma força diferente do que falar normalmente. E no caso do Vivencial, como eu disse, tinha uma certa liberação, não era totalmente a política partidária, era mais o desejo, a liberdade do corpo. C – Como era a preparação do corpo para a cena no Vivencial? 188 S – Tinham os alongamentos, aquilo tudo, mas a preparação maior era não ter vergonha do próprio corpo e se conscientizar do corpo como politizado. Se exibiam muito os corpos no Vivencial. Se bem que o streap tease chegou depois, no Diversiones, mas antes sempre foi uma coisa arrebatadora. De um tira se fazia um maiô. Tudo era muito sexual, eu acho. Tinha um apelo sexual, emanava. E eram todos jovens, todos descobrindo, exercitando e facilitando. Facilitando para prazeres. C – O que foi o corpo feminino no Vivencial? S – O corpo no Vivencial falava. Não só nos espetáculos. A gente fazia happenings pra tudo e pra nada. A gente morava na Rua Santa Teresa, em Olinda e aí a gente se arrumava, se maquiava, punha roupas, perucas, panos, pernas de fora. Botava (sic) uma música bem alto e saía todo mundo pela porta fazendo sons onomatopéicos e isso numa rua bem pequenininha e depois a gente voltava, fechava a porta e ficava em silêncio. Aí na rua a gente não sabia o que acontecia porque juntava gente e depois ia ter que dispersar. Eram exercícios que a gente fazia para o corpo, não tinha texto, nada. Era puro exercício ou pura loucura. E que bom que teve tudo isso, pra gente e para aquelas pessoas. C – Qual foi a experiência de ter sido atriz do Vivencial? S – O Vivencial foi o despertar. Eu sou essa Suzana pelo Vivencial. A política, que meu pai falava tão pouco... entupia a casa da gente de comida mas também não falava o porquê. E o Vivencial despertou, foi o abrir de portas pra tudo, abriu a cortina e a festa começou. Eu sempre fui muito livre e quando eu vi aquele espetáculo do Vivencial pela primeira vez, foi o caminho a ser seguido, o que eu ia fazer na minha vida. Mas todos também trabalhavam fora do Vivencial, não vivíamos de Vivencial. Nem depois do Diversiones. Há também muitas lendas com o Vivencial. O povo diz até que tinham festas com carreiras de cocaína! Uma amiga diz que foi para uma dessas festas! Minha gente, o Vivencial era pobre! Não, de jeito nenhum, não existia isso. Uns baseados, rolava até na igreja, que moramos um tempo na Igreja da Boa Hora... E eu nunca pensei que aquilo tudo fosse virar história. Eu era uma legítima “viveca”. Nós usávamos textos da Revista Nova, de Drummond, eram colagens. Existiam pedaços de textos, não existia um texto inteiro. O Vivencial tinha um grande público, inclusive a classe artística. Na época, as pessoas não endeusavam o Vivencial, não. Pelo contrário. Porque o Vivencial greava (sic) com Valdemar de Oliveira, com Gilberto 189 Freyre, com a patronesse de Marcus Siqueira. Ele (Marcus Siqueira) pegou as nossas fotos, dos integrantes do Vivencial e colocou no saguão do teatro dele, com umas cruzinhas em cima, assim, de cada um e colocou: “Esse grupo fede”. E foi por causa de uma greia (sic) que o Vivencial fez, eu acho que foi com Helena Pessoa de Queiroz, que patrocinava Marcus Siqueira. Mas foi um momento, eu fiz cursos com ele, éramos amigos, enfim. Mas toda a classe ia assistir o Vivencial, fora o público convencional. E o Diversiones era uma coisa tão mais transgressora, no horário de 24:00h, 01:00h, que o povo passou a querer assistir aquilo! E o horário das 21:00h, que era o horário do trabalho de teatro não ia mais ninguém. E eu trabalhei com vários grupos enquanto estava no Vivencial, trabalhei com várias pessoas. O Vivencial foi muito importante, mas não foi a coisa mais importante da minha vida teatral. Quando eu saí, já fiz outras coisas, trabalhei com outras pessoas que foram tão importantes, mas foi lindo o meu início, que foi o Vivencial. Segunda entrevista Concedida em 02/12/2014, na casa da atriz. C – Suzana, me fale um pouco sobre a ditadura em Recife. S – Teve ditadura em Recife, mas sabe um passarinho que já nasce na gaiola? Então é claro que ele tenta sair, mas ele já está mais ou menos acostumado na gaiola. Quando eu comecei a fazer teatro já existia censura, não foi uma coisa que eu desfrutei de total liberdade e depois veio uma coisa pra (sic) cercear, entendeu? Então já existia aquilo, tinha censura, então era uma coisa quase que natural a gente ter que se submeter. O texto primeiro... depois o espetáculo montado... cortavam muita coisa do Vivencial, às vezes a gente obedecia e às vezes, não. C – Mas você sabia que existiam as perseguições, as torturas, você acreditava que tudo aquilo estava acontecendo? S – Sabia, claro que sabia. Eu tinha dezessete anos quando eu comecei no Vivencial, mas eu nunca me senti perseguida. Nunca sofri também nenhuma intolerância por ser atriz. C – Você acha que o fato de não ter sofrido intolerância por ser atriz num período tão conturbado, tem a ver com a sua posição social, que era privilegiada? 190 S – Talvez. O fato é que eu nunca frequentei lugares que pudesse ser discriminada. Eu vivia com os malucos. Claro que a família... quando eu comecei a fazer teatro eu mudei o comportamento, as roupas, as ideias, tinham as pessoas que estranhavam um pouco, mas eu nunca me senti discriminada. Não sei se é a autoestima que é elevada. C – Nem na família, nem na escola... S – Não, não. Pelo contrário. As pessoas achavam interessante. Na escola era só sucesso. Pra mim, ser atriz na ditadura foi tranquilo. E mesmo com as negociações, na Censura, nunca tive problemas maiores. Quando eles cortavam, cortavam mesmo, mas nem sempre a gente obedecia. Era bem tratada, lá. Era uma coisa decente. Porque as pessoas falam tanta... mas eu, comigo, particularmente, não. Nem nunca vi nenhuma invasão, nada assim. Porque aqui em Pernambuco não teve essa coisa assim. Eu via coisas do tipo “a polícia não deixar acontecer um show em Fazenda nova”. Eu acho que a perseguição era mais com a parte da música do que com a de teatro. Porque já eram os anos de 1970, já havia abrandado um pouco a violência. Se bem que você interferir numa obra literária, teatral, é, de qualquer jeito, uma invasão. Mas nada físico nem com pressão psicológica, não comigo. C – Talvez por você ser mais comedida que os outros (as)... S – É... eles eram mais revoltados (risos). Não sei, mas nunca ficou claro o porquê de ser eu ir para a Censura. Assim como não sei o porquê de ser eu quem cuidava do caixa no Diversiones. Mas eu sabia conversar e eles (da censura) sabiam que eu era uma menina bem nascida, estudada, não seria um problema, mais um problema pra eles. Mas Dermeval, muito obrigada! (risos). Ele era o diretor da censura, aqui, na Polícia Federal. Uma pessoa muito decente. C – Como era fazer espetáculo para a censura? S – Era de muita ansiedade, porque você... pô (sic) estava ali, mostrando o teu trabalho e aquela pessoa... primeiro porque era um saco fazer espetáculo para uma pessoa... uma, duas, às vezes... os censores vinham com umas tabelinhas, umas pranchetas. E claro, é constrangedor você fazer espetáculo para duas pessoas e a coisa de “será que vai cortar muito?”. Nunca tivemos nenhum espetáculo totalmente censurado, de você perder todo o seu 191 trabalho. Também depois, isso já tinha virado uma curtição, pensar como a gente ia substituir, driblar a censura. C – O que eles cortavam mais do Vivencial? S – Eu acho que eram as coisas mais voltadas para a sexualidade. O Vivencial, claro, tinha alguns textos políticos, de subversão, sobre corrupção. Mas eu acho, particularmente, que não era o forte do Vivencial. Stella Maris Saldanha Primeira Entrevista - 18/06/2014, na casa da atriz Cristina – Como você chegou no Teatro Hermilo Borba Filho? Stella – Quando eu cheguei já era Teatro Hermilo Borba Filho, já era o THBF. Eu tinha então dezesseis anos porque eu fazia teatro na escola e aí, uma amiga minha da escola, que também fazia parte do grupo de teatro, sabia de um curso, que o THBF ia oferecer, era um curso com o método de Stanislavski. E aí ela me chamou pra fazer esse curso e fomos. Minha alma já tinha escolhido o teatro. Tanto é que conseguimos formar um grupinho de teatro na escola. Não foi a escola que ofereceu teatro para a gente fazer, foi a gente que foi reivindicar à escola que houvesse um grupo de teatro, que a gente queria fazer teatro. Então, eu fui fazer o curso no THBF, tinha a duração de um mês e quando o curso acabou, Marcus Siqueira, que era professor do curso e diretor do THBF, me convidou para fazer uma peça infantil. Ele queria formar um núcleo infantil lá no Hermilo e ele queria montar “Pluft, o Fantasminha”, de Maria Clara Machado. E eu, claro, felicíssima, aceitei o convite e fiz o espetáculo. Quando eu encenei Pluft eu já tinha dezessete anos. Algum tempo depois ele disse que ia montar “Os fuzis da Senhora Carrar”, (de 1978), de Bertolt Brecht e me disse que eu iria fazer a Sra. Carrar (risos). Louco, né? Mas eu tinha uma tal confiança nele, confiança, admiração, eu acreditava tanto no trabalho dele, no trabalho que ele desenvolvia ali no Hermilo que eu disse “Bom, se ele tá (sic) dizendo que eu vou fazer, ele como meu professor, como diretor de teatro, como diretor do grupo, deve saber o que está fazendo”. E aí eu fiz. E quando Os fuzis estreou eu estava com dezoito anos. Era o meu segundo espetáculo e o meu primeiro espetáculo adulto, aí fui fazer aos dezoito anos, a Sra. Carrar. Quando terminou o curso, ele abriu o Curso Regular de Teatro, com duração de dois anos. A gente tinha aulas teóricas, a 192 gente estudava teoria do teatro, interpretação e a gente tinha aula de corpo. Então Luiz Maurício Carvalheira dava as aulas de teoria, Marcus Siqueira dava aulas de interpretação e Helena Pedra dava aulas de corpo. Então essa vivência com o corpo no palco, com o corpo no teatro, ela foi intensificada e amadurecida no Curso Regular para a Formação do Ator. C – O que era mais explorado da poética brechtiana no THBF? S – Quando Siqueira monta “Os fuzis da Senhora Carrar”, se você for pegar a dramaturgia de Brecht, ela talvez seja, de todo o repertório brechtiano, a peça que mais rompe com a própria teoria brechtiana. Então “Os fuzis da Senhora Carrar” é uma peça que tem unidade de tempo e unidade de espaço. Simplificando, seria a peça mais aristotélica de Bertolt Brecht. Siqueira era um grande admirador de Brecht e ele radicalizou Brecht nesta montagem. Esse namoro dele com Brecht eu acho que vem por uma profunda identificação política. Marcus Siqueira era um homem que apostava na arte como um instrumento de transformação, não só estética, mas social, política e poética. C – Mas o experimento de vocês eram com base em Brecht? S – Não só, mas também. A base brechtiana era a base da politização. Siqueira achava que o ator não podia ser anêmico, intelectualmente falando, nem politicamente falando. Então essa era a base. O ator se colocando como um sujeito político, na vida e no teatro. Ele tinha também uma metodologia de trabalho muito próxima de Hermilo (Borba Filho). Por exemplo, a gente não ia para o ensaio de “marca” sem estar com o texto memorizado. As leituras de mesa eram exaustivas. Porque nessas leituras de mesa, você discutia o texto do ponto de vista da dramaturgia e do ponto de vista do contexto poético, social, político. Então, o ator quando saía da mesa pro palco, para os ensaios de marcação, ele já estava ciente do personagem, do texto e do contexto daquele espetáculo. E também aquela coisa brechtiana de você saber se distanciar do personagem, de não ser uma transmutação, mas seria um ator que se coloca a serviço do personagem. Não era um exercício catártico. Era um exercício de doação, poético, porque o teatro em sua essência é poético, ele é poético em sua transcendência, mas um exercício intelectual. C – Foi abrupto para você, tão jovem vir de Pluft, uma montagem convencional e ir para linguagem brechtiana? 193 S – É, mas eu não sei se foi uma montagem tão convencional. A direção de Pluft foi de João Batista Dantas que era outro homem de teatro talentosíssimo e que fez uma montagem linda, incorporando elementos do Nordeste, elementos cênicos, de estrelas do mar, de búzios, palhas de coqueiro. E foi uma montagem muito elogiada por Maria Clara Machado, quando ela veio para o Recife, veio assistir o espetáculo e elogiou muitíssimo. Marcus era um defensor de um teatro pobre. Ele rejeitava tudo que era opulento no teatro, tudo que era excesso. Ele defendia a essencialização do ato cênico. Ele dizia: “Olha, a única coisa que não pode faltar no teatro é o ator. O resto pode”. C – Você acha que por isso que, alguns estudiosos, por conta dessa pobreza que ele propunha, dizem que as montagens eram, no dizer de Milton Baccarelli (1994),“malamanhadas”? S – Era um teatro pobre, por condição, e que Marcus, metamorfoseava essa pobreza em linguagem cênica, em recurso cênico. Então, a montagem de Os Fuzis, por exemplo, todo o figurino foi reaproveitado de outros espetáculos. As roupas foram tingidas e adaptadas ao que seriam os figurinos daqueles personagens. Cenário não tinha, era uma mesinha, um banquinho e uma espécie de baú onde os fuzis ficavam guardados. E um poema pichado na parede. Eram paredes nuas com um poema pintado na parede de fundo, uma mesinha pequenininha, um banquinho, uma janelinha muito fajutinha, colocada na parede porque o espetáculo fazia referência a uma janela, de onde se avistava o mar e nada mais. E esse espetáculo ganhou o prêmio do Serviço Nacional de Teatro como um dos melhores espetáculos do ano em Pernambuco. Dividimos o prêmio com “Galileu Galilei”, também de Brecht, da Práxis Dramática. Só que “Galileu Galilei” era uma montagem opulenta, era com direção de Milton Baccarelli. Então era uma montagem nada ou muito pouco brechtiana. E a montagem de Marcus Siqueira era Brecht levado às últimas consequências. Era Brecht na veia. C – Alguns escritos informam que Marcus Siqueira era déspota, ranzinza. Ele era machista, fazia diferenciação com as mulheres? S – O que falam de ele ser déspota, pra mim ele era imperativo. Ele era um homem extremamente determinado e um homem muito forte, de natureza forte, de personalidade fortíssima. Ele tinha um respeito pelo teatro e ele era bem radical em algumas coisas. Ele não admitia, por exemplo, que o ator bebesse antes de entrar em cena, ele não admitia que o ator fumasse maconha antes de entrar em cena, ele não admitia nenhum tipo de interferência, 194 podia fazer fora. Porque o teatro já é uma viagem e ele não admitia essas interferências. Aí ele era muito radical em alguns princípios. Mas a minha relação com ele era muito generosa, afetuosa, cuidadosa. A minha experiência com ele é de respeito profundo de um pelo outro. Marcus Siqueira me respeitava e não só a mim. Ele tinha um respeito pelo ator como poucas vezes eu vi. A nossa troca era de mão dupla, respeito e afeto. Agora era um diretor imperativo, não tenha dúvida. Imperativo, mas sem nunca dizer para o ator “Levante a mão, baixe a mão, faça esse gesto”. Ele deixava o ator criar. O ator era senhor do seu personagem. Ele orientava, estimulava e aproveitava tudo o que você dava. Ele nem tava querendo muito aquilo, mas era aquilo que você dava e ele aproveitava. Então a minha admiração por ele vem desse respeito que ele tinha pelo ator, pelo teatro e pelo ator. Agora, não tenha dúvida, ele era temperamental. C – Você sofreu alguma discriminação por ser atriz? S – Eu estudava numa escola extremamente burguesa e conservadora, que era o Colégio Santa Maria, eu não sei se as mães de amigas minhas torciam o nariz pra isso, mas também não me importava com isso, a escolha já estava feita. E eu ia me importa por quê? C – E a sua família? S – Meu pai só teve um faniquito no dia que ele foi assistir “Um grito parado no ar”, (1979), de Gianfrancesco Guarnieri, também pelo THBF e que eu tirava a roupa. Mas antes disso não, meu pai me olhava com alguma reserva, mas também me olhava com admiração. Na verdade eu e papai fomos muito parecidos na determinação, na personalidade, nas escolhas. Ele me olhava com admiração pelo fato de as minhas convicções terem aparecido tão cedo. Muito fortemente e muito cedo. Aos quatorze anos de idade eu sabia que ia ser jornalista e sabia que ia ser atriz. Ele não tinha nenhuma aproximação com a arte, mas era sensível para com o amor. Era muito amante, cuidadoso e protetor dos quatro filhos. Nossas escolhas, a dos filhos, ele respeitava não propriamente por afinidade, mas por amor. C – Então para você não foi difícil ser atriz na ditadura? S – Foi! Foi difícil ser atriz e ser adolescente na ditadura. Eu não peguei os anos mais pesados porque quando veio o golpe eu era uma criança, eu tinha quatro anos de idade, quando veio o AI-5 eu tinha oito anos de idade, então minha adolescência já não foi nos piores anos da 195 ditadura, mas era barra pesada você ser adolescente na ditadura porque era tudo muito conservador. Lá no Hermilo tínhamos provas de seis em seis meses no curso de formação de ator. Os alunos escolhiam trechos, de espetáculos de teatro e encenavam. Esses espetáculos eram abertos ao público. Quantas e quantas vezes precisamos fazer com as portas fechadas porque eram textos proibidos, com a polícia do lado de fora, o camburão da polícia parado na frente do teatro, né (sic)? E com medo. Eu dei ensaio para a censura. Teve uma situação em que eu e meus amigos montamos uma peça por ocasião do aniversário de uma pessoa que a gente amava muito e a gente resolveu presentear essa pessoa com um espetáculo de teatro, não era do THBF, era outra situação. E Lenine estava neste grupo, que fez toda a direção musical do espetáculo e apresentamos numa cobertura em Boa Viagem, para convidados. Dom Helder foi um dos nossos convidados. Ariano Suassuna assistiu a segunda apresentação. Quer dizer, éramos jovens, e a gente fazia, mobilizava. Aí nesse dia mamãe disse: “Eu vou ficar na escada porque se a polícia chegar, eu protejo vocês. Pelo menos eu grito e vocês dispersam”. Então, era muito difícil. Na praia, fazíamos serenata, Lenine tocava violão, nós sentados e a polícia cercava a gente porque ser jovem era um afronta, ser jovem era ser comunista, maconheiro ou as duas coisas ou prostituta... Mas aí a gente tinha canais de superação e respiradouros. Então o THBF era um respiradouro. A opressão do lado político era tanta na ditadura e lá no Hermilo a gente respirava possibilidades, liberdade, contestação, transgressão. Eu não tenho a menor dúvida de que todos os caminhos que eu segui para a minha vida e caminhos que eu desenvolvo como mulher madura, todos esses caminhos passam pela minha vivência no THBF. A mulher que eu sou hoje ela vem muito daquela adolescente. C – Como era fazer espetáculo para a censura? S – Era cruel. Primeiro porque você ensaiava meses, aí ia fazer espetáculo para a censura sem saber se de fato iria estrear, muitas vezes tinha cortes, os espetáculos. E era um constrangimento, saber que aquelas pessoas que representavam um governo autoritário, que respondiam à ditadura militar, estavam ali, dizendo o que você podia e o que você não podia. C – Que estratégias eram usadas pelo THBF para driblar a censura? S – Era uma relação de afronta, montar textos proibidos era uma relação de afronta. O fato de não serem cobrados ingressos nas montagens pedagógicas se configurava numa estratégia. 196 Estes espetáculos não precisavam passar pela censura, por exemplo, porque era um espetáculo que fazia parte da conclusão do curso regular. Então essa era uma estratégia, a gente montava textos proibidos, discutia textos proibidos sem ter que passar pela censura. A outra estratégia era pegar, por exemplo, uma história que se passa na guerra civil espanhola, que era “Os fuzis da Senhora Carrar” para discutir uma situação contemporânea, você falar por metáforas. E tinha também as posições de afronta. Naquele momento você ter um curso de teatro, por esse curso passaram cerca de duzentos jovens, num momento difícil como aquele, você ter um espaço, um teatrinho, com dezenas, centenas de jovens ali dentro estudando, pesquisando, acontecendo, tumultuando, transgredindo, era um afronta. E as entrevistas de Marcus também eram muito contundentes, quando ele dava entrevistas, ele sempre se colocava como um sujeito político. Ele foi preso acusado de envolvimento com trotskistas, com seguidores de Trotski. Ele ficou preso um mês, mas eu tenho a impressão de que não foi torturado, ao contrário de outras pessoas. Antes, quando o THBF era Teatro Novo, funcionava no Palácio dos Manguinhos, era um trabalho atrelado a Dom Helder Câmara, que era perseguido. Os militares achavam que Dom Helder era um “bicho-papão”, um comunista. Só não tiveram coragem de matar Dom Helder, por isso sequestraram, torturaram e mataram Padre Henrique, que era auxiliar dele, porque não tiveram coragem de fazer isso com Dom Helder. Eles perseguiam as pessoas que trabalhavam com Dom Helder e Marcus Siqueira trabalhava com Dom Helder. E Marcus ficou preso num quartel em Olinda e depois num quartel em Recife. C – Como era a relação do THBF com o Vivencial? S – Tem um folclore ou linha de compreensão muito equivocada, muita gente insiste nisso, de que o Vivencial e o THBF eram inimigos e eram divergentes. Eu atribuo isso a uma leitura superficial das coisas. Eu sempre defendi que eles eram convergentes. Alguns diziam “Marcus Siqueira era a caretice do discurso político e o Vivencial era o desbunde, era a porralouquice (sic)”. Eu acho que eram dois trabalhos extremamente sólidos, extremamente transgressores e extremamente convergentes. Dois trabalhos políticos, cada um à sua maneira e dois trabalhos dialogando com o Tropicalismo. O Vivencial visivelmente, o THBF de maneira menos visível. O diálogo do THBF com o Tropicalismo é com a origem, com o ponto de partida e o diálogo do Vivencial com o Tropicalismo é o ponto de chegada. Então, por exemplo, o THBF dialogava com Glauber Rocha que dialogava com Brecht, enquanto que o Vivencial, no ponto de chegada, vai dialogar com a politização do desejo, a politização do 197 corpo como instrumento do desejo, o ser desejante politizado, é o ponto de chegada, pra mim, do Tropicalismo. Então eles não são divergentes, eles são convergentes, eles dialogam com um momento da vida brasileira. Eram dois grupos transgressores em todos os níveis: comportamentais, políticos, estéticos. Marcus Siqueira foi um transgressor da estética convencional do teatro e o Vivencial também. Eles rasgaram a cartilha do teatro convencional e escreveram uma outra linguagem cênica, ambos. Então eles eram convergentes. E eu nunca vi Marcus Siqueira falar mal do Vivencial, pelo contrário, nós saíamos do THBF e íamos para o Vivencial. Teve um recital lá no Vivencial com Rubem Rocha Filho, com João Batista Dantas, que foi quem dirigiu Pluft e fomos todos, íamos todos. Eu era amicíssima de Pernalonga. Então eu nunca vi nada referente a pôr fotos dos componentes do Vivencial com cruzinhas, nada disso, eu nunca presenciei. Agora, Marcus, ele era temperamental. Se ele brigasse com você ele dizia que ia riscar você da vida dele. Nem que depois ele fosse morrer de amores por você de novo. C – Você acha que a partir do Vivencial, o teatro ficou mais feminilizado? S – Eu não saberia lhe dizer se exatamente a partir do Vivencial, mas tenho a impressão de que hoje se pense muito mais e se entenda muito mais o que foi proposto pelo Vivencial do que naquele momento. Talvez por isso ele esteja sendo revisitado hoje, porque talvez a pauta do Vivencial naquele momento, seja a pauta contemporânea, hoje. Então nesse sentido sim, o Vivencial transgrediu primeiro, viu primeiro, sacou (sic) primeiro. E essa coisa mesmo da politização do desejo, da politização do corpo, era um elemento de muito estranhamento, naquele momento. Não se aceitava isso com facilidade. Muita gente não considerava que aquilo fosse teatro, que aquilo era trabalho de quinta categoria, que aquilo era putaria (sic), que aquilo era vagabundagem, como não consideravam também que o que Marcus Siqueira fazia era um trabalho de qualidade. Então eram elementos de muito estranhamento naquele momento. E hoje, as bandeiras, as questões que foram levantadas pelo Vivencial naquela época estão mais perto da contemporaneidade C – Me fale sobre as suas impressões corporais, as suas imagens corpóreas nos dois momentos que você interpretou a Senhora Carrar. Quais as diferenças? Ficou algo daquele corpo cênico de 1978 para 2012? 198 S – A experiência corporal é bem diferente. Como eu tinha dezoito anos, eu não podia deixar que a minha juventude aparecesse. Tinha o recurso daquela máscara branca, que cobria todo o rosto e que todo o elenco usava, que é um elemento de distanciamento brechtiano, mas que foi fundamental para que eu pudesse fazer a Senhora Carrar, se você pegar a foto, era um rostinho de menina mesmo. Então a máscara tirava a meninice do meu rosto. E um pouco para que não mostrasse a minha juventude, a minha idade e um pouco também de medo, do tamanho do personagem, eu fiz uma Senhora Carrar sem muitos movimentos de corpo. Uma das características dela era a rigidez corporal. Ou ela estava com a mão aqui, no xale ou ela estava com a mão segurando o vestido. Ela não tinha gestos largos, ela era isso aqui (junta as mãos sobre o peito). Nesta montagem de 2012 tinha gestos mais abertos, mais largos, ela já jogava o fogo pra fora e a de dezoito anos era aqui, aqui (gesticula entre a garganta e o peito) porque eu tinha medo de sair. E isso me ajudou muito a envelhecer o personagem e eu criei uma zona de conforto para mim porque se eu estou aqui (repete o gesto), eu não tenho dezoito anos. Foi uma descoberta que se deu pelo medo do personagem e eu capitalizei esse medo. Muito austera, ela tinha menos flexões do que em 2012, ela flexibilizava pouco, ela não fraquejava em momento nenhum. E essa Senhora Carrar de 2012, ela fraquejava. A cena que o filho diz que vai embora, ela só falta se ajoelhar aos pés do filho e pedir que não vá. Quando ela diz “Você pode fumar, quando quiser, se quiser pescar sozinho pode ir, pode ir até no barco do seu pai que eu não vou dizer nada”, ela tá (sic) implorando, ela pegava na roupinha dele, na gola e segurava e dizia: “Pelo amor de Deus, não vá embora, que eu não vou suportar, eu vou morrer de dor, se você for embora”. E a Senhora Carrar de dezoito anos não tinha esse subtexto, ela dizia “Você não vai, não vai”. E também porque naquele momento da minha vida eu não tinha filhos. A minha vivência emocional naquele momento era uma vivência diferente de agora. Então a minha Senhora Carrar de 2012 era imperativa, mas era menos austera do que a de 1978. C – Mas o momento político interferiu na montagem anterior, por conta disso o seu corpo se mostrava diferente em cena? S – Eu diria que ele estava mais preso. Mas tinha um apelo imediato porque quando a gente entrava em cena, a gente sabia que iria falar para os generais, para depor contra os generais brasileiros, do regime militar brasileiro, embora a gente, historicamente, na peça, estivesse lá na Guerra Civil Espanhola. Em 2012, estes generais já não estavam no poder e então muita 199 gente perguntava: “Mas por que montar essa peça agora, por que montar Brecht agora? “Os fuzis da Senhora Carrar”, agora? Por que o que Brecht coloca vai além do factual, do momento histórico, o que ele fala ainda hoje é do gesto político de tomar partido, de fazer escolhas. E a gente vive num momento político completamente diferente daquele, mas temos que fazer escolhas, escolhas seríssimas para esse país. Escolhas políticas, ideológicas, poéticas, afetivas, ambientais, tá (sic) lá na peça. O que ele discute ali é ser ou não ser neutro, tomar ou não tomar partido. E quais as consequências da neutralidade e quais as consequências de você tomar uma posição? Tá (sic) tudo lá, ainda hoje. Então, claro que não tem o link imediato com a ditadura militar, mas tem com o gesto político de defender posições, de se colocar na vida. Você “se colocar” já é uma atitude política. Ou você se retrair, se esconder, se anular, também é uma posição. C – Na segunda montagem você trouxe alguma coisa da primeira ou começou do zero? S – Não, eu trouxe algo. O que difere é a composição física da personagem. C – O que exatamente? Partindo do princípio de que o corpo tem memória. S – Sim, sim. Eu usei inclusive “memória emotiva”. Na montagem de 2012, em que a Senhora Carrar se emocionava, eu me lembrava do momento do espetáculo de 1978 para me emocionar, eu buscava. C – Um “Stanislavski” dentro de um “Brecht”? S – Ah, claro, claro. Nós temos que nos inventar, nós, os atores, nós temos que descobrir os nossos caminhos. Agora, é brechtiano na medida em que não é catártico. Então, eu mostrava aquela emoção para o espectador do mesmo jeito, buscando lá no THBF em 1978. C – Foi nostálgico? S – Foi amoroso, não nostálgico. Foi uma revisitação amorosa. C – Qual você gostou mais de fazer? S – Os dois (risos). Eu diria que tive duas oportunidades raras: a primeira, fazer a Senhora Carrar aos dezoito anos e a segunda, fazer a Senhora Carrar trinta e dois anos depois. E o que o meu corpo guarda do THBF é a possibilidade de transmutação permanente, de descobertas 200 permanentes. Um corpo que internaliza o externo. Criava-se a atmosfera para que você descobrisse a personagem e eu vou levar isso pro resto da minha vida. É brutal pra mim um diretor me dar um gesto ou uma inflexão, para que eu repita. É uma experiência violentadora e dolorosa, por conta da minha herança no THBF, tinha-se respeito pelo ato criativo. Segunda Entrevista - 10/12/2014, na TV Universitária, Universidade Federal de Pernambuco, onde a atriz trabalha como jornalista. C – Como foi ser atriz na ditadura militar? S – Eu acho que tem muito a ver com o exercício da juventude. A minha rebeldia de adolescente, ela começa na beira da praia. Eu fazia parte da turma do Acaiaca (trecho da praia de Boa Viagem, Em Recife) e era na praia que a gente exercia a nossa rebeldia e a nossa transgressão porque a gente transgredia em relação à família, à opressão familiar e em relação à opressão do Estado. Só que chega um momento que essa transgressão vai ganhando corpo, vai amadurecendo e aí ela não podia se dar mais só na beira da praia, ali entre os surfistas, o cabelo grande, as roupas, tinha todo um comportamento de transgressão. Então a gente começa a migrar para outros respiradouros, outros espaços, onde exercer a juventude, com todo o seu vigor, era possível. E então Lenine migra para a música, alguns migram para a literatura e eu migro para o teatro. Então para aquele grupo que queria exercer a liberdade, chega um momento que a praia não cabe mais. Então o teatro, além de ser vocação, foi instrumento para que eu pudesse exercer a minha juventude, a minha rebeldia e para transgredir as normas, as regras e as imposições muito repressivas naquele momento. E eu escolhi o teatro e o jornalismo, que não eram profissões fáceis para a mulher naquele momento e a minha família não interferia nem nas nossas profissões e nem nas nossas relações amorosas. O único problema que eu tive com meu pai, foi quando eu tirei a roupa em “Um grito parado no ar”, de Gianfrancesco Guarnieri. Aí foi muito além do que ele podia naquele momento, embora o amor tenha prevalecido porque eu continuei fazendo o espetáculo e eu continuei tirando a roupa. E ele sabia que eu estava fazendo o espetáculo e ele só não suportava mais assistir e ele não suportava mais tocar nesse assunto, mas eu continuei fazendo. C – Onde eram os focos da transgressão no Teatro em Pernambuco nos anos de 1970? 201 S – Recife e Olinda. Havia o Teatro Experimental de Arte (TEA), de Caruaru, que já tinha um movimento forte, mas que tinha uma inserção muito maior em outras cidades brasileiras do que em Recife. Mas o foco da transgressão era Recife e Olinda e num dado momento, Olinda, porque todos os malucos, todos os rebeldes migraram para Olinda e os bares, os teatros e as galerias de arte. Essa experiência do corpo como instrumento de transgressão, da droga como instrumento de transgressão, das roupas e da nudez como transgressão, porque a indumentária desnudava também. Então os biquínis eram sumaríssimos, as roupas eram transparentes, muito transparentes, barrigas de fora, peitos de fora, então era uma indumentária que desnudava também. E teve um dado momento que essa coisa toda foi despejada em Olinda. C – Essa ideia foi para o teatro. Você acha que aqui, em Pernambuco, apenas o Vivencial acatou? S – Eu acho assim que o Vivencial tenha sido o principal expoente, tenha potencializado essa coisa do corpo como postura política, o desejo como uma tomada de posição política. C – Porque o THBF também, ao meu ver, usou a politização do corpo... S – Claro! Minha nudez em “Um grito parado no ar”, pus os seios nus em cena, tiveram espetáculos no THBF que os atores usavam malhas muito coladas no corpo, o próprio “Pluft, o fantasminha”, que era um espetáculo infantil, eram malhas brancas, um pouco transparentes. Até me lembro que uma vez, quando terminou o espetáculo, uma mãe, que tinha ido com o filhinho, deixou um bilhete na minha mão, comentando sobre o espetáculo, elogiando muito, mas fazendo ressalva à ousadia das roupas, à transparência das malhas. Em “Morte e Vida Severina”, os atores trocavam de roupa no palco, antes de começar o espetáculo. Então o corpo era um instrumento de colocação do desejo como uma atitude política. E também se estava se escrevendo outras possibilidades de escritura cênica. E essa procura por outras escrituras cênicas passavam pelo corpo que também passava pelo despojamento, no caso do THBF. Marcus tinha verdadeira aversão à opulência em cena. Era um teatro muito despojado, onde prevalecia a figura do ator. Então nessa escolha da figura do ator, em detrimento do resto, havia também uma presença cênica corporal muito forte. C – Mas nos outros grupos transgressores, também aparecia esse corpo despojado... 202 S – Sim, porque se levava também pro palco às questões referentes à sexualidade e do desejo, por conta de o desejo ser uma escolha política, seria a “politização do desejo, a politização do corpo”. Essa talvez seja a expressão mais adequada. Então como tinha a politização do desejo, tinha essa coisa da “politização do corpo”. C – Como era fazer espetáculo para a censura? S – Horrível! Nossa! Eu ficava pequena, apertada. Já tinha a primeira parte da censura, que era o texto. Primeiro o texto tinha que ser liberado e muitas vezes ele era liberado com cortes. E depois você tinha que entrar em cena, se apresentar para duas pessoas que estavam sentadas ali na platéia, duas, três, no máximo que iam dizer “sim” ou “não”, que iam deixar ou não, que iam autorizar ou não: a sua interpretação, a montagem, enfim. Era muito opressivo. C – Eram pessoas que entendiam de teatro? S – Provavelmente, não. C – Você acha que a censura era burra? S – Olhe, se não pudermos afirmar categoricamente que ela era burra, em muitos momentos ela deu grandes demonstrações de burrice, de inaptidão, de despreparo para lidar com a arte. A lembrança que eu tenho forte, de uma interferência da censura, no THBF, foi na montagem de “Um grito parado no ar” e ali era 1979, já era distensão, já era governo Geisel, já era o início da abertura política, da anistia e aquela coisa toda. Ainda assim, tinha uma cena lá de tortura, que o ator em cena leva choques elétricos. Aí a censura mandou cortar. E aí ele continuava a ser interrogado, mas a simulação do choque elétrico, que era uma prática muito comum nos porões da ditadura, foi cortada. C – O que era mais cortado no THBF? Palavras, ideologias... S – No caso de Os fuzis, eles não cortaram nada porque eles não entenderam nada. C – Não conseguiram fazer a associação. S – Isso. Porque a peça se passava na Espanha, final da década de 1930, Guerra Civil Espanhola. Falava-se no General Franco o tempo todo, os atores com máscaras, então eles não entenderam nada (risos). E a peça passou na íntegra. Mas quando o grupo era no Teatro dos 203 Manguinhos, eu ainda não trabalhava no grupo, o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) entrava e quebrava tudo e pichava o muro com “Xô, comunistas”, então era bem ostensivo. Eu peguei a coisa já mais branda. C – Me fale sobre a formação intelectiva do ator/ atriz dentro do THBF. S – Marcus não acreditava num ator intuitivo, ele investia muito na formação intelectual do ator. E não tinha como você se exercitar intelectualmente como ator sem tocar naquela ferida brasileira daquele momento. C – Você acha que a censura acabou por promover a autocensura, visto que o artista se privava de desenvolver o que realmente propunha? S – Já vi muitos depoimentos, não sei se precisamente na área de teatro, mas no jornalismo, na literatura, sobre essa coisa da autocensura, que a censura foi tão ostensiva, foi tão opressiva que você já se autocensurava, com medo. C – Quais eram as mulheres do grupo? S – É porque o Hermilo, ele tem vários momentos, então são componentes de vários momentos diferentes. Quando eu comecei a atuar em 1977, éramos eu, Colette Dantas, Cláudia Chabloz, Sandra Branco, Bárbara Lopes, Socorro Albino, Anita Cavalcanti, Simone Thé, Cristina Banda e Júlia Lemos. Aí eu tô (sic) citando as mulheres de 1977, 1978, 1979. São os nomes que me ocorrem de imediato. C – Quais eram as maiores preocupações em ser atriz e ser mulher naquele momento? S – A maior preocupação de ser mulher era ser livre. E a escolha da mulher pelo teatro, pela arte de um modo geral ia para a direção de exercer a liberdade e sair daquela imagem de mulher bem comportada, que era herança, que vinha da mãe, da avó, de você ser recatada, de você casar, de você ser prendada, de você ter filhos, de você resguardar o corpo. O conceito dominante nos anos de 1970 era esse, o senso comum era esse e o contraponto era o exercício de transgressão. Você rompia com tudo isso com o exercício de transgressão e era essa minoria que transgredia. Se eu pegar, por exemplo, o número de mulheres, eu e minhas amigas, que estudávamos numa escola extremamente conservadora, se eu for pegar daquele lote todo de amigas, nós éramos só três que, de fato, romperam com aquilo. Que éramos eu, 204 Cláudia Chabloz e Colette Dantas. E aí, ao optar pela arte muda tudo: comportamento, vida social, vestuário. Você procura outros universos, outros diálogos, outras interlocuções. Mas não era tão bacana você optar pelo desbunde. Desbundar era ter uma repressão muito grande, muito grande. Tem um documentário de umas ex-alunas minhas sobre o Acaiaca. E elas me entrevistaram, pois eu era do grupo e tem uma pessoa, acho que uma contemporânea minha, que diz que não ia para o Acaiaca porque a mãe não deixava, porque lá era lugar de maconheiros, de “prostitutas” (risos). Todos os rebeldes da zona sul do Recife iam pra lá. C – Como você acredita que o seu trabalho se situa na cena pernambucana e qual a importância para as gerações posteriores de atrizes? S – Eu não posso falar do meu trabalho isoladamente, eu tenho que falar do meu trabalho dentro de um contexto adverso e dentro do contexto do THBF. Eram forças contra a caretice, contra a opressão. Eu acho que a minha contribuição se dá como uma força dentro deste contexto. Eu escolhi estar nesse lugar que brigava contra esse escuro, contra essa noite pesada sobre o Brasil e sobre a juventude. Não era fácil ser jovem, ser adolescente naquele momento, não era. Zélia Sales – 23/01/2015 - Recife, Prefeitura da Cidade do Recife, Auditório Capiba. Cristina – Como você iniciou a sua carreira de atriz e como chegou ao grupo de teatro Expressão da Faculdade de Filosofia do Recife (FAFIRE)? Zélia – Muita coisa eu não me lembro, eu vou tentar lembrar. No grupo eu cheguei em 1972. Eu estudava psicologia na FAFIRE, e vi um anúncio, estava escrito que ia ter uma seleção para o grupo de teatro que seria criado com a direção de José Francisco Filho. Então eu me interessei por aquilo e passei a fazer parte do grupo. Eu nunca tinha feito nada, antes eu tinha feito uma performance, digamos assim, com Fernando Augusto Gonçalves Santos, do Mamulengo Só-Riso. Eu fazia uma cadeira do curso de Comunicação da FAFIRE e nessa cadeira teve uma performance, mas foi uma coisa bem escolar mesmo e depois eu entrei no grupo da FAFIRE. Tinha, não sei, umas quinze pessoas... C – Tinham mais homens do que mulheres? Z – Não, tinham mais mulheres. Eu terminei por ser presidente desse grupo e fizemos uma série de espetáculos. Naquela época fazer teatro era respirar. Pra mim era respirar. Eu vim da 205 classe média, meu pai um militar, um militar que, dois anos antes do golpe foi para o que se chama no exército de reserva, que é a aposentadoria. Quando aconteceu o golpe meu pai não sabia de nada e nós fomos surpreendidos. Eu tinha quatorze anos e nós fomos para a escola, tudo, no dia 31 de março. Então eu... muito por fora de tudo, entendeu? Meu pai era uma pessoa maravilhosa, que foi militar por acaso porque não tinha opção na época. Então o teatro era refrescante pra mim. É contraditório, era refrescante, mas ao mesmo tempo, se discutia coisas no grupo que eu jamais sabia que estavam acontecendo. E como eu também discordava do regime, achava muito bom estar ali, participando do movimento. C – Mas você sabia das perseguições, mortes, torturas... Z – Sabia, mas eu não tinha contato com isso. C – Me fale sobre a atuação do Expressão. Z - O grupo teve uma atuação muito importante na cidade, fez alguns espetáculos. Fizemos o “Frei Caneca” e distribuímos panfletos para fazer a divulgação do espetáculo e os panfletos diziam: “Frei Caneca vai ser fuzilado novamente”, dia tal, hora tal, no teatro, né (sic)? Porque era uma encenação (risos). E a gente foi distribuir panfletos na frente das escolas. E eu me lembro que na Escola Marista tinha um cara lá sondando... quando foi pouco tempo depois, chegou uma intimação lá na FAFIRE do DOPS para ir depor lá, para explicar este panfleto. Aí eu fui, não lembro porque eu, mas fui.Com medo, mas fui. C – Seu pai como militar... Z – ... meu pai era uma pessoa maravilhosa, um homem raro. Ele achava bom que eu estivesse nesses movimentos, minha mãe era quem não gostava, mas ele gostava. C – E como foi falar do espetáculo no DOPS? Z – Fomos eu e a freira, que a FAFIRE é de freiras. Eu acho que devo ter ficha no DOPS, mas nunca procurei. Ele perguntou que panfleto era aquele e eu falei a verdade. Falava tanta bobagem! Via-se que não entendia nada de teatro. Disse que eu não distribuísse mais aqueles panfletos, que tivesse cuidado com o que divulgava e fui liberada (risos). A gente ri agora, mas na época era muito sério e emocionalmente ficávamos muito tocados. Todo espetáculo tinha uma sessão para a censura, antes de estrear. Eu lembro demais dessas sessões. Tinha um 206 rapaz chamado Demerval, que era uma figura tratável, que era sempre o que ia para estas sessões feitas para a censura. No “Expressão” nunca tivemos muitos problemas. C – Como era fazer espetáculo para a censura? Z – Olhe... era tudo muito diferente de hoje. Quem não viveu aquele período não sabe, você que não viveu aquele período não sabe. Era uma coisa muito pesada. Qualquer coisa era... não vamos dizer isso na peça porque já aconteceu isso com fulano... não podemos fazer tal coisa. Zé Francisco era muito ponderado neste sentido. C – Você está falando de autocensura? Z – Exatamente. O tempo todo, todos nós nos autocensurando. C – Como você definiria a poética do grupo do Expressão? Com que vocês trabalhavam? Existia alguma linha de interpretação, de linguagem? Z – Não havia uma linha definida para o trabalho do grupo. A proposta era escolher textos socialmente engajados e que sugerissem quebra de paradigmas, tanto artísticos quanto sociopolíticos. A busca era por rupturas e por novos questionamentos. Eu acho que o que se trabalhava muito era a linguagem simbólica, porque você não podia fazer as coisas muito claramente, então trabalhávamos o tempo todo com símbolos. No fundo, eles tinham colocações políticas. C – Você se refere às ambiguidades, metáforas? Z – Sim, sim. Nada muito declarado, mas havia política implícita. C – O público entendia? Z – Sim. C – A ordem religiosa, as freiras, no caso, que dirigiam a faculdade, elas interferiam muito nas atividades no grupo? Z – Pra ser sincera, pelo que eu lembre, não tinha muita interferência das freiras, não. Porque tínhamos muito cuidado, não se escrachava completamente, sabe? Éramos um grupo de teatro por quem as freiras eram responsáveis e tínhamos que ter um limite. 207 C – Como foi, no seu contexto, ser atriz durante a ditadura militar? Z – O contexto geral era muito pesado. Mesmo a gente, como eu, que não estava envolvida com grupos políticos clandestinos, vivia num contexto sombrio. Minha militância estava nas questões teatrais, nas questões trabalhistas dos artistas, nas oportunidades para o teatro. Eu fui presidente da FETEAPE (Federação de Teatro de Pernambuco), que era naquela época a única entidade teatral que tínhamos, isso entre 1979, 1980. Mas o nosso teatro era militante também. Quando se deu a abertura, os presos políticos começaram a voltar, aí (sic) a gente começou a lutar para se ter na Fundação de Cultura Cidade do Recife (FCCR) uma pessoa que tivesse a ver com o teatro. Eu, Teresa Amaral, Jomard Muniz de Brito. A luta era para o artista entrar no serviço público. C – Você sofreu alguma discriminação por será atriz no período ditatorial? Z – Acho que a discriminação era com tudo. Era tudo muito hippie. Eu tinha um cabelo imenso, todo cacheado, usava aqueles tamancos que vendiam no Mercado São José, chocalhos no pescoço, não tinha depilação nenhuma, então até as roupas, o modo de ser transgredia e tanto isso como o fato de ser atriz geravam olhares condenatórios, vamos dizer assim. Mas nunca fui agredida. Somente uma vez quando fizemos o “Pastoril Balança Coreto”, em Olinda, acho que em 1980, 1981... que jogaram pedras em nós. Esse pastoril aconteceu na Praça do Carmo durante um verão em Olinda. Esse pastoril era composto por Fernando Augusto, Manoel Constantino, Magdale Alves, Conceição Accioly, Jeane Bezerra, Cláudio Ferrário... Fizemos este pastoril para criticar o pacote eleitoral na época. Era coisa de juntar duas mil pessoas na Praça do Carmo e aí quando acabou o pastoril, algumas pessoas jogaram pedras porque achavam que éramos travestis, sapatões, maconheiros. E quando o pacote (o adereço cênico) eleitoral era sacudido eles diziam: “Isso é maconha que tem aí dentro”! Mas era tudo muito pesado. Quando eu vi agora há pouco, pessoas com faixas que diziam pra voltar os militares, eu... só pode ser gente que não sabe o que é isso. Porque quem não viveu não sabe o que pairava, o que de fato aconteceu. Esse momento da História do Brasil é como se fosse uma coisa assustadora, ninguém mexe muito, de vez em quando vêm coisas, vem espetáculo, vêm filmes, mas o botar pra fora mesmo ainda não aconteceu. Essa Comissão da Verdade é válida, mas as pessoas sempre se assustam com a ditadura. A ditadura ainda é um assunto muito delicado. O nosso grupo da FAFIRE era um teatro muito ideológico, vamos fazer isso, vamos dizer coisas, vamos ajudar as pessoas a se expressarem. 208 Era muito sonho. Hoje se tem uma coisa profissionalizada, que era algo que queríamos, mas não era possível, não se conseguia, ninguém vivia de teatro aqui. Hoje, não. As pessoas podem viver na precariedade, mas vivem de teatro. Eu cheguei a fazer espetáculo com cachê, como “A Revolta dos Brinquedos”, com Paulo de Castro, mas naquela época era mais difícil. Nos anos 70 a política nos movia, e acho que até hoje também, mas hoje é mais prático, mais objetivo. Você monta um espetáculo, já se sabe o número do público, se vai dar certo naquele teatro e naquela época a gente simplesmente fazia. C – Seria porque hoje existe mais uma preocupação artística do que social? Z – Talvez, em alguns grupos sim. Mas tinha uma preocupação artística, tinha. Mas menos, talvez, do que hoje. São só impressões. Como hoje não estou ligada ao teatro... posso falar com segurança daquela época. C – Mas você falava de como era ser atriz na ditadura... Z - Não era fácil ser mulher e entrar nesse meio teatral, numa família que espera que você vá ser médica, advogada, psicóloga... Eu era olhada de forma diferente, mas nada... era mais com os tratamentos nas relações sociais, me olhavam de forma diferente. Era sutil, mas eu sentia a diferença. Olhada como se fosse “a errada”, “a inadequada”. C – Como você definiria o corpo cênico no “Expressão” naquele momento? Z – Era sonho de transformação da sociedade. Era uma utopia e a gente buscava essa utopia. A gente achava que com um espetáculo iria modificar as coisas e de fato modificava. Uma vez fiz um espetáculo numa escola pública que se chamava “Vamos jogar o jogo do jogo”, e uma menina me viu, ela era criança e depois me encontrou e disse “Meu sonho era ser você”! Éramos eu, Manoel Constantino, Carlos Bartolomeu e Buarque de Aquino. Éramos quatro crianças brincando de jogo e ela nunca esqueceu isso. Então eu fico pensando quantas pessoas de fato a gente atingiu, a gente modificou, a gente emocionou, né (sic)? À medida que a gente emociona uma pessoa, a gente está modificando ela, a visão dela. Então eu acho que era a busca da utopia. C – Quem eram os atores e atrizes fixas do grupo? Você falava inclusive que tinham mais mulheres... 209 Z – Sim, não havia um elenco fixo porque como era um grupo de uma faculdade, todo ano entrava e saía gente, mas acho que os que mais atuaram foram Marta Ribas, Celeste Ribas, a irmã dela, Vânia Simonetti, Regina Coeli, Buarque de Aquino, Flávio... (lembrando) Freire, Clenira Melo, Urias Novaes, Harry Gomes e eu. C – Me fale dos outros espetáculos do “Expressão”. Z – Em “João, Amor e Maria” eu cantava, eu era Maria, mulher de um pescador, meu par era Harry Gomes, que já morreu. Neste espetáculo, eu fazia uma cena de parto, as freiras acharam uma cena muito forte e mandaram cortar. Inclusive, a censura mandou cortar a palavra “parir”. Era um musical, então a gente cantava. Meu Deus! Eu cantava tão bem! Em “Frei Caneca” eu era o apresentador. Nós nos apresentávamos dentro das igrejas. Eu usava uma meia arrastão, um maiô preto com um fraque por cima, máscara branca. Aparecia só perna, mas me excomungaram em várias igrejas (risos) porque eu tava (sic) com aquela roupa dentro da igreja. C – No grupo não havia nudez, mas uma certa exposição do corpo... Z – Sim claro, claro, até porque a época pedia isso, uma certa libertação do corpo. C – Me fale mais sobre os mecanismos que vocês utilizavam para driblar a censura. Z – Sempre foram as metáforas, as ambiguidades. Elas aconteciam com improvisos também. Uma vez eu falei um texto em cena, em “Frei Caneca”, improvisei e disse algo como “Olha, eu soube que tem um movimento contra o governo...”, aí todo mundo “Ohhhh...” e eu completei “... Imperial”, aí todos “Ahhhh...”. Eu tive necessidade de dizer isso e todos acharam ótimo. Esse é um momento bem típico do que era aquela época. Porque a gente sabia de algumas coisas, mas não sabíamos de todos os horrores que estavam acontecendo, porque não era divulgado, obviamente. Mas o pouco que eu sabia, me sentia horrorizada. C – Na época, quais eram os grupos que mais usavam o corpo como ato político em Pernambuco? E em que cidades você acha que se concentrava essa proposta? Z – Vivencial, fortemente. Aí (sic) o TUCAP e o Expressão. Acho que... ao meu ver, acho que era Recife e Olinda. O grupo “Ponta de Rua”, de teatro de rua, de Olinda, era muito forte nesse sentido também, o THBF... 210 C – Me fale sobre sua experiência no Vivencial. Z - Guilherme me convidou para substituir Auricéia Fraga em “Repúblicas Independentes, Darling” em 1979, porque ela tinha tido bebê. Eu fui viajar pelo Mambembão, janeiro de 1979. Foi uma experiência inesquecível e todo mundo ficou muito espantado por eu ter ido pro Vivencial. C – Por que? Z – Porque me achavam muito comportada para fazer algo no Vivencial. Eu fazia a personagem da Dona Corrupção com Suzana (Costa), que era a Dona Subversão. E fazia também um texto de Luís Fernando Veríssimo, uma cena com Américo Barreto. Me lembro muito de uma frase: “O povo é aquele por quem muito se fala e pouco se faz”. Eu era uma mulher do povo e o personagem de Américo vinha me avisar que a democracia estava chegando. A abertura do espetáculo era como Teatro de Revista e eu também fazia a abertura, barriga de fora. Mas eram três mundos pra mim: a minha casa de classe média, o grupo de teatro da FAFIRE, mais artístico, mais subversivo e o Vivencial. O Vivencial era o novo pra mim, sabe? Era novidade, era aprendizado, era se despojar dos preconceitos, de corpo, de sentimentos, esse era o universo vivencialesco. C – E como você definiria o corpo feminino no Vivencial, já que você foi uma atriz que também fez Vivencial, mesmo que por um breve período? Z – Exposição sem medo e sem censura no sentido mais bonito da palavra. Eu lembro de muitas cenas com os corpos nesse sentido, exposição sem medo. As pessoas passaram a fazer isso depois da ditadura, né (sic), depois que tava tudo lindo, tudo tranquilo. C – E o que foi o seu corpo cênico e feminino na ditadura? Z – Foi despojo. Eu não fiquei nua em cena, mas tanto nela quanto no cotidiano, meu corpo falava, as pessoas sabiam que eu era esquerdista, subversiva, o corpo dizia isso intensamente. Então eu era uma coisa antes e fui outra coisa depois. A minha experiência no Expressão contribuiu para a mulher que eu sou hoje. Passei a me fechar, a endurecer quando comecei a trabalhar com políticas públicas, o poder central faz você endurecer, você endurece para tentar vencer as barreiras. Mas uma coisa que eu gostaria de dizer é que... no meio teatral não deve ter isso mas, porque o Brasil tá (sic) meio sem rumo, mas quem diz que no tempo dos 211 militares era melhor, não sabe o que está dizendo! A democracia é um bem, uma conquista que a gente jamais pode perder. É fundamental que quem esteja começando a fazer teatro agora saiba disso. Faça um destaque nisso. Porque a ditadura, ela produziu desconfiança, medo. Não havia confiança nas relações. E também essa busca pelo sucesso, pelo dinheiro, pela fama, isso não tinha muito nos anos de 1970. Era mais a função social do teatro. 212 Anexos – Termos de Consentimento 213 214 215 216