EDÔNIO ALVES NASCIMENTO A ESFERA COMO METÁFORA: REPRESENTAÇÕES DO FUTEBOL NO CAMPO DA LITERATURA (LEITURAS DO TEMA NO CONTO DE FICÇÃO) NATAL - RN 2011 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA COMPARADA EDÔNIO ALVES NASCIMENTO A ESFERA COMO METÁFORA: REPRESENTAÇÕES DO FUTEBOL NO CAMPO DA LITERATURA (LEITURAS DO TEMA NO CONTO DE FICÇÃO) Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Literatura Comparada. Orientador: Prof. Dr. Affonso Henrique Fávero NATAL 2011 EDÔNIO ALVES NASCIMENTO A ESFERA COMO METÁFORA: REPRESENTAÇÕES DO FUTEBOL NO CAMPO DA LITERATURA (LEITURAS DO TEMA NO CONTO DE FICÇÃO) Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Literatura Comparada. Aprovada em ___ / ___ / ______. BANCA EXAMINADORA _____________________________________________________________ Professor Doutor Affonso Henrique Fávero (Orientador) Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) _________________________________________________________________ Professor Doutor Victor Andrade de Melo Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) _________________________________________________________________ Professor Doutor Hildeberto Barbosa Filho Universidade Federal da Paraíba (UFPB) _______________________________________________________________ Professor Doutor Antônio Fernandes de Medeiros Júnior Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) _________________________________________________________________ Professor Doutor Carlos Eduardo Braga Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Composto com os restos da tinta da galhofa e a dura pena da melancolia – e também parafraseando o velho Nietzsche –, este trabalho de pesquisa é dedicado àqueles que não estão em condições de reconhecer no futebol muito mais do que um divertimento acessório; um tilintar de guizos que se pode muito bem dispensar ante a seriedade da existência. Com o máximo de prazer e alegria, contudo, dedico-o também a única pessoa nesse mundo que sabe jogar – e amar – o futebol mais do que eu: meu filho, Pedro Henrique. Tudo aqui é seu. Sobra um pouco desta dedicatória, ainda, para o grande mestre da arte literária aplicada ao futebol: Nelson Rodrigues, com quem aprendi o fantástico poder das hipérboles! Este trabalho é também para Maria Clara cuja companhia me ensina - cada vez mais - a enxergar o mundo a partir das arquibancadas. AGRADECIMENTOS Ao meu orientador, Professor Affonso Henrique Fávero, por uma orientação baseada na leveza, liberdade e abertura para entender minhas jogadas de improviso. Aos amigos que não se furtaram a contribuir com este empreendimento de papel, notadamente por terem compreendido o papel deste empreendimento: Damião Lima, Daniela Segabinazi, Luis de Sousa Júnior, Ellen-Elsie Nascimento, Maria Leda da Costa, Alex de Souza, Juliana Hollanda, Cauby Dantas, Beto Quirino, Sandra Moura, Hildeberto Barbosa Filho, Doralice Paiva, Marcos Alvito, Marília Dieb, Gretha e Charles Kotisc, pelo apoio material e afetivo que, em João Pessoa, Rio de Janeiro e em São Paulo, dedicaram a mim, abreviando os sofrimentos e as incertezas comuns no caso desses trabalhos que se sabe como começam, mas não se sabe como terminam; além, é claro, das sugestões sempre bem vindas e a cessão de material bibliográfico valiosíssimo. A meu irmão, Marcos Salustino da Silva, sempre embaixador de minhas demandas pela existência afora. A todos os professores do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRN, sempre companheiros e cúmplices nessa nossa viagem partilhada: Especialmente a Humberto Hermenegildo de Araújo, Lourdes Pratini e Marcos Falchero Falleiros, com quem compartilhei idéias, discordâncias e afetos. Aos amigos do Grupo de Pesquisa do Sport: Laboratório de História do Esporte e do Lazer do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pela convivência agradável e academicamente produtiva, além de lúdica e rematadamente fraterna: Victor Melo, Coriolano Rocha Junior, Maurício Drummond, Cléber Dias, Rafael Fortes, Luiz Carlos Sant’ana, Álvaro do Cabo, Vivian Fonseca, Bruno, Felipe, Nixon Marques e Nei. Um agradecimento especialíssimo vai para o historiador e amigo Raimundo Cordeiro Barroso Jr., pela contribuição inestimável e paciência com que sempre ouviu minhas dúvidas, confusões metodológicas e devaneios epistemológicos, tendo me ajudado a chutar a bola pro mato que o jogo é de campeonato! Aos funcionários da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, que sempre me atenderam com prestimosidade e carinho, e as meninas da assessoria de comunicação do Club Athletico Paulistano, em São Paulo, que me deram acesso a arquivos importantíssimos da memória do futebol brasileiro em seus primórdios. Finalmente, aos amigos de boemia no Bar do Baiano, em João Pessoa, que não poderiam faltar neste rol de agradecimentos, pelo bom papo e pelos devaneios de entre um gole e outro: José Edilson Amorim, Mozart Vergette, Jorge Raymundo, Élio Flores, Maryson, Marcos Nicolau, Gilson Renato, Gilberto de Sousa Mendonça, Ed Porto, Xisto Medeiros, Júnior Targino, Ricardo Farias, Fernando Moura, entre outros. “Para os de sensibilidade, e que têm a coragem de se irmanar com o homem da rua, o futebol não é o gesto gratuito que muitos imaginam, mas um território poético, imenso manancial do poder de criação humana no retorno à pureza da infância. É um cometimento estritamente estético com os supremos ingredientes da arte: ritmo, harmonia inventiva, movimento, incursão no tempo e no espaço, equilíbrio e plasticidade.” Wladimir Carvalho RESUMO O futebol, entendido como um fenômeno esportivo de prática e abrangência quase universais, pode também ser visto como um jogo cujo funcionamento contorna o universo cultural dos povos que o praticam. Muito mais do que um simples esporte, portanto, esse jogo é um fenômeno cultural por excelência, portador de uma dimensão comunicacional e estética cuja ocorrência já foi flagrada por vários campos do saber científico e cultural. Sendo assim, é enquanto jogo e enquanto fenômeno de cultura, que pretendemos enfocar o futebol aqui como objeto de estudo. O nosso intuito é investigar esse esporte no Brasil tomando a Literatura e o Jornalismo como instâncias privilegiadas de sua representação no âmbito da Comunicação Social. Sendo assim, a idéia central desta pesquisa é mostrar quando e como o futebol tornou- se tema recorrente na literatura brasileira, partindo inicialmente da sua abordagem jornalística até chegarmos a uma visão geral da representação estética do jogo tendo a Literatura como foco principal de atenção e tomando o gênero do conto de ficção como fato material de sua representação. Com essa abordagem, pretendemos elaborar uma visão de conjunto, panorâmica, da produção literária sobre futebol no nosso País e, ao mesmo tempo, particularizar essa visão em alguns autores representativos dela, a exemplo dos escritores- jornalistas Mário Filho (o historiador, o ensaísta, o modernizador da crônica específica do tema); José Lins do Rego (o literato apaixonado pelo jogo); Nelson Rodrigues (o esteta que elevou esse esporte à condição de arte através da crônica); Lima Barreto (quem ao lado de Antonio de Alcântara Machado pioneiramente o formalizou no âmbito da ficção) e os contistas do tema propriamente ditos. Ao final, pretendemos inferir os resultados das avaliações e análises críticas das obras e autores elencados, que examinamos num sentido panorâmico, mas, também verticalizado (e que foram enfocados sob um prisma sócio- histórico e crítico-estético) dentro da suposição de que parece haver uma homologia entre a maneira como a prática do futebol entre nós vai historicamente ganhando características próprias, a ponto de formarmos uma escola brasileira de jogar futebol, e a maneira como os nossos escritores-jornalistas vão tratando o tema, o que incidiria também na criação de uma “maneira brasileira” de narrar literariamente o futebol. A comprovação dessa hipótese operacional de trabalho junto com a elaboração e a necessidade historiográfica, decorrente dela, da criação de um “Guia de leitura do tema do futebol no conto ficcional brasileiro” encerram a perspectiva focal do presente estudo. Palavras-chave: Futebol e Literatura. Comunicação estética. Contos ficcionais de futebol. Narrativas e práticas discursivas. ABSTRACT Football, understood as a phenomenon of sports practice and nearly universal coverage, can also be seen as a game whose operation circumvents the cultural universe of people who practice it. Much more than just a sport, so this game is a cultural phenomenon par excellence, bearing a communicational and aesthetic dimension whose occurrence has been spotted in various fields of scientific and cultural. Therefore, it is as game and as a phenomenon of culture, we intend to focus on football here as an object of study. Our aim is to investigate the sport in Brazil taking the Literature and Journalism as privileged instances of their representation in the media. Thus, the central idea of this research is to show when and how football has become a recurrent theme in Brazilian literature, starting with its journalistic approach until we get an overview of the aesthetic representation of the game, Literature as the main focus of attention and taking the genre of fiction story as material fact of their representation. With this approach, we intend to develop an overall view, overview of the literature about football in our country and at the same time, particularize this vision in some representative authors of it, like the writer-journalist Mario Filho (the historian, essayist on the modernization of chronic specific theme), José Lins do Rego (writer passionate about the game), Nelson Rodrigues (the esthetician that elevated the sport to the status of art by chronic), Lima Barreto (who along with Antonio de Alcantara Machado pioneered the formalized within the fiction) and the storytellers of the topic itself. In the end, we intend to infer the results of evaluations and reviews of books and authors listed, we have examined a wide sense, but also vertical (and which were focused on a socio-historical perspective and critical-aesthetic) within the assumption that seems be a homology between the way football practice amongst us will historically winning characteristics as to form a Brazilian school of football, and how our writers, journalists will be addressing the topic, which also would focus on creating a "Brazilian way" of telling literary football. The proof of this hypothesis operational work together with the development of historiography and the necessity arising from it, creating a "Guide to Reading football theme in fictional tale of Brazil" shut the focal perspective of this study. Keywords: Soccer and Literature. Aesthetic communication. Fictional tales of football. Narratives and discursive practices. RESUMEN Fútbol, comprendido como un fenómeno de la práctica de deportes y cobertura casi universal, también puede ser visto como un juego cuyo funcionamiento sigue el contorno del universo cultural de las personas que lo practican. Mucho más que un deporte, por lo que este juego es un fenómeno cultural por excelencia, teniendo una dimensión comunicacional y estética, cuya aparición ha sido visto en diversos campos de la ciencia y la cultura. Por lo tanto, es como un juego y como un fenómeno de la cultura, que tenemos la intención de centrarse en el fútbol aquí como un objeto de estudio. Nuestro objetivo es investigar el deporte en Brasil, tomando la literatura y el periodismo como instancias privilegiadas de su representación en los medios de comunicación. Por lo tanto, la idea central de esta investigación es demostrar cuándo y cómo el fútbol se ha convertido en un tema recurrente en la literatura brasileña, a partir de su enfoque periodístico hasta que tengamos una visión general de la representación estética del juego, la literatura como el principal foco de atención y llevar el género de la historia de la ficción como un hecho material de su representación. Con este enfoque, tenemos la intención de desarrollar una visión global, visión general de la literatura sobre el fútbol en nuestro país y al mismo tiempo, particularizar esta visión en algunos autores representativos de la misma, como el escritor-periodista Mário Filho (el historiador, ensayista de la modernización del tema en la crónica), José Lins do Rego (escritor apasionado por el juego), Nelson Rodrigues (la esteticista que elevó el fútbol a la categoría de arte por la crónica), Lima Barreto (que junto con Antonio de Alcántara Machado fue pionera en su formalización dentro de la ficción) y los narradores del tema en sí. Al final, tenemos la intención de inferir los resultados de las evaluaciones y comentarios de libros y autores en una lista presentada, a qual hemos examinado em un sentido amplio, sino también vertical (algo que si centró en una perspectiva socio-histórica y crítica estética) en el supuesto de haber una homología entre la práctica de fútbol en Brazil, la manera como históricamente se gana características como para formar una scuela brasileña de fútbol, así cómo nuestros escritores y periodistas se acercaron al tema, que también se centrará en la creación de un "estilo brasileño" de contar fútbol literariamiente. La prueba de esta hipótesis de trabajo operativo, así como el desarrollo de la historiografía y la necesidad resultante de ella, la creación de un “Guía de lectura del tema fútbol en la historia de la ficción brasileña" cerra la perspectiva central de este estudio. Palabras clave: Fútbol y Literatura. La comunicación estética. Cuentos de ficción de fútbol. Narrativas y prácticas discursivas. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................. 16 2 ROLANDO A BOLA: UMA JOGADA DE LETRAS .................................... 21 2.1 Embolando o meio campo: jogo, esporte, linguagem e literatura .................. 27 2.2 Esfera, metáfora e metonímia: os sentidos do jogo ......................................... 39 2.3 No tempo da bola: disputando significados ...................................................... 50 2.4 Futebol e literatura: uma questão de gêneros .................................................. 62 3 A LINGUAGEM DO FUTEBOL E O FUTEBOL COMO LINGUAGEM: DO JORNALISMO À LITERATURA ............................................................. 74 3.1 Invadindo o campo: um jogo de posições ......................................................... 95 3.1.1 A polêmica inicial – Coelho Neto versus Lima Barreto .................................. 95 3.1.2 A transição do enfoque – Alcântara Machado e sua abordagem ficcional ....... 104 3.1.3 A modernização do relato: Mário Filho e o futebol como narrativa ................. 108 3.1.4 A hibridização do registro – José Lins do Rego e o futebol-paixão como linguagem ............................................................................................................. 128 3.1.5 A estetização retórica: Nelson Rodrigues e a literalização do futebol ............... 136 4 MANTENDO A ESCRITA: DAS QUATRO LINHAS ÀS PAGINAS DE FICÇÃO ............................................................................................................... 159 4.1 As demandas intrínsecas: obras exemplares .................................................... 165 4.2 As demandas extrínsecas: contos demonstrativos ........................................... 197 4.3 As demandas lingüísticas: narrativas pertinentes ........................................... 227 4.3.1 Passe de letras: no campo das hipóteses ............................................................. 235 4.4 Jogando com a imaginação: as obras e seus autores ...................................... 244 4.4.1 Guia de leitura do tema do futebol no conto ficcional brasileiro ...................... 246 4.4.1.1 Adriana Simon ...................................................................................................... 246 4.4.1.2 Aércio Consolin .................................................................................................... 247 4.4.1.3 Aldyr Garcia Schlee .............................................................................................. 248 4.4.1.4 Ana Maria Martins .............................................................................................. 259 4.4.1.5 Aníbal Machado .................................................................................................... 260 4.4.1.6 Antonio Barreto .................................................................................................... 267 4.4.1.7 Antonio Carlos Olivieri ........................................................................................ 262 4.4.1.8 António de Alcântara Machado ............................................................................ 263 4.4.1.9 Ataide Tartari ....................................................................................................... 265 4.4.1.10 Bráulio Tavares .................................................................................................... 266 4.4.1.11 Breno Accioly ....................................................................................................... 268 4.4.1.12 Bruno Zeni ............................................................................................................ 269 4.4.1.13 Caio Porfírio Carneiro ......................................................................................... 270 4.4.1.14 Carla Cristina Pereira ......................................................................................... 271 4.4.1.15 Carlos Eduardo Novaes ....................................................................................... 273 4.4.1.16 Carlos Orsi Martinho ........................................................................................... 274 4.4.1.17 César R. T. Silva ................................................................................................... 275 4.4.1.18 Chico Buarque de Hollanda ................................................................................. 277 4.4.1.19 Clarice Lispector .................................................................................................. 278 4.4.1.20 Cláudio Lovato Filho ............................................................................................ 279 4.4.1.21 Cyro de Matos ....................................................................................................... 296 4.4.1.22 Daniel Piza ........................................................................................................... 297 4.4.1.23 Deonísio da Silva .................................................................................................. 298 4.4.1.24 Dias da Costa ....................................................................................................... 299 4.4.1.25 Domingos Pellegrini ............................................................................................. 300 4.4.1.26 Duílio Gomes ........................................................................................................ 301 4.4.1.27 Edla Van Steen ..................................................................................................... 302 4.4.1.28 Edilberto Coutinho ............................................................................................... 303 4.4.1.29 Edy Lima .............................................................................................................. 311 4.4.1.30 Edson Gabriel Garcia ........................................................................................... 312 4.4.1.31 Fábio Fernandes ................................................................................................... 313 4.4.1.32 Fernando Bonassi ................................................................................................. 315 4.4.1.33 Fernando Sabino .................................................................................................. 316 4.4.1.34 Flávio Carneiro .................................................................................................... 317 4.4.1.35 Flávio José Cardoso ............................................................................................. 318 4.4.1.36 Flávio Moreira da Costa ...................................................................................... 319 4.4.1.37 Gerson-Lodi Ribeiro e Adriana Simon ................................................................. 321 4.4.1.38 Hélio Pólvora ........................................................................................................ 323 4.4.1.39 Henrique Félix....................................................................................................... 323 4.4.1.40 Hilda Hilst ............................................................................................................ 324 4.4.1.41 Ignácio de Loyola Brandão .................................................................................. 325 4.4.1.42 Ivan Ângelo .......................................................................................................... 326 4.4.1.43 Ivan Carlos Regina ............................................................................................... 327 4.4.1.44 João Anzanello Carrascoza .................................................................................. 328 4.4.1.45 João Antônio ......................................................................................................... 328 4.4.1.46 João Nunes ............................................................................................................ 330 4.4.1.47 João Ubaldo Ribeiro ............................................................................................. 337 4.4.1.48 José Cruz Medeiros .............................................................................................. 338 4.4.1.49 José Roberto Torero ............................................................................................. 339 4.4.1.50 Lima Barreto ......................................................................................................... 340 4.4.1.51 Lourenço Cazarré ................................................................................................. 343 4.4.1.52 Lourenço Diaféria ................................................................................................ 346 4.4.1.53 Luis Fernando Veríssimo ...................................................................................... 347 4.4.1.54 Luis Galdino ......................................................................................................... 348 4.4.1.55 Luiz Henrique ....................................................................................................... 349 4.4.1.56 Luis Ruffato .......................................................................................................... 350 4.4.1.57 Luiz Vilela ............................................................................................................ 351 4.4.1.58 Marcelino Freire .................................................................................................. 352 4.4.1.59 Marcello Simão Branco ........................................................................................ 353 4.4.1.60 Marcos Rey ........................................................................................................... 354 4.4.1.61 Maurício Matos .................................................................................................... 355 4.4.1.62 Miguel Sanches Neto ............................................................................................ 356 4.4.1.63 Moacir Japiassu .................................................................................................... 357 4.4.1.64 Moacyr Scliar ....................................................................................................... 358 4.4.1.65 Monteiro Lobato ................................................................................................... 360 4.4.1.66 Orígenes Lessa ...................................................................................................... 361 4.4.1.67 Octavio Aragão ..................................................................................................... 362 4.4.1.68 Paulo Bentacur ..................................................................................................... 363 4.4.1.69 Paulo Perdigão ..................................................................................................... 364 4.4.1.70 Plínio Marcos ....................................................................................................... 366 4.4.1.71 Rachel de Queiroz ................................................................................................. 367 4.4.1.72 Renard Perez ........................................................................................................ 368 4.4.1.73 Ricardo Ramos ...................................................................................................... 369 4.4.1.74 Ricardo Soares ...................................................................................................... 370 4.4.1.75 Rubem Fonseca ..................................................................................................... 371 4.4.1.76 Salim Miguel ........................................................................................................ 372 4.4.1.77 Sérgio Capparelli .................................................................................................. 372 4.4.1.78 Sérgio Faraco ....................................................................................................... 374 4.4.1.79 Sérgio Sant´Anna .................................................................................................. 375 4.4.1.80 Suzana Montoro .................................................................................................... 376 4.4.1.81 Valesca de Assis ................................................................................................... 377 4.4.1.82 Wladimir Catanzaro ............................................................................................. 378 4.4.1.83 Wladir Nader ........................................................................................................ 379 REFERÊNCIAS .................................................................................................. 380 16 1 INTRODUÇÃO “Um vazio assombroso; a história oficial ignora o futebol. Os textos de história contemporânea não o mencionam, nem de passagem, em países onde o futebol foi e continua um símbolo primordial de identidade coletiva.” Eduardo Galeano “Lotado: aqui dentro está um país inteiro!” Frase escrita no ônibus da Seleção Brasileira de futebol que disputou a Copa do Mundo da África do Sul em 2010 Desde que em 1942 o crítico literário Álvaro Lins fez a ligação da história de um jogador de futebol com a história da entrada do próprio jogo como tema de um romance da literatura brasileira (Água-mãe, de José Lins do Rego)1 uma questão na área dos estudos literários vem se impondo a uma constatação: como e em que medida o futebol se reflete na literatura brasileira, se este esporte, hoje de caráter e extensão nacionais, ainda não foi capaz de interessar os autores brasileiros na medida correspondente ao prestígio e à penetração que alcança nas camadas da população brasileira? Essa inquietação atualíssima – embora um tanto já atenuada pelo volume cada vez mais crescente de novas publicações sobre o tema –, exposta ao público brasileiro em 1967 pelo jornalista Mário Pedrosa a partir de uma incitação crítica do escritor e tradutor Paulo Rónai, é de certa maneira a idéia motriz do presente trabalho, assim como o foi também para a iniciativa de Pedrosa em produzir e publicar a primeira tentativa de inventariar a produção literária brasileira sobre o tema do futebol em nossas letras. Publicado em 1967, o seu livro Gol de letra é uma espécie de antologia que reúne, por critérios editoriais subjetivos e pouco críticos, textos produzidos sobre o futebol nos gêneros conto, romance, teatro, poesia, artigos, crônicas e excertos. Ainda assim – mesmo que 1 Cf. LINS, Álvaro. In. REGO, José Lins do. Água-mãe. 11. ed. (estudos de Álvaro Lins e Antônio Carlos Villaça). Rio de Janeiro: José Olympio, 1993. Prefácio, p. 15. Para a explicitação textual da questão que segue à constatação crítica de Álvaro Lins, Cf. PEDROSA, Milton. Gol de letra. Rio de Janeiro: Gol, 1967, p. 13-14. 17 seu trabalho não tenha obedecido a julgamentos críticos e historiográficos rigidamente acadêmicos – estava dado o pontapé inicial para uma futura avaliação mais sistemática e criteriosa da presença do futebol na literatura brasileira, intento que pretendemos realizar aqui, ainda que abrangendo, apenas, o gênero conto, dada a extensa lacuna do assunto na historiografia literária nacional. Esse nosso trabalho, portanto, tem o objetivo manifesto de estudar o jogo de futebol no Brasil enquanto fato cultural e estético, tomando a Literatura e o Jornalismo, instâncias consagradas de representação desse esporte na comunicação social, como seu campo privilegiado de análise. A idéia central do estudo ora proposto é mostrar quando e como o futebol tornou-se tema recorrente na literatura brasileira, partindo inicialmente da sua abordagem jornalística, documentalista, referencial e ensaística, portanto – porque foi através dos jornais que o tema tornou-se literário – até chegarmos a uma visão, digamos, estética do jogo (o fruir do seu prazer através da linguagem), sendo sua representação literária o foco principal de nossa atenção. Diante, pois, da necessidade de continuar esse trabalho (iniciado por Mário Pedrosa num outro âmbito) de dar visibilidade e legitimidade acadêmica à produção literária que tematiza o futebol, junto com a preocupação de estudá-la à luz das categorias, conceitos e métodos fornecidos pelas modernas correntes das teorias literárias e jornalísticas, é que apresentamos a oportunidade de empreendermos uma análise extensiva da parte representativa do conjunto dessa produção, particularizada nas obras de caráter ficcional que de outra parte também compõem o conjunto geral da literatura brasileira. Nesse percurso, pretendemos também, por questões que explicitaremos oportunamente, empreender uma análise intensiva e vertical na produção de alguns autores que consideramos fundamental para o tratamento ficcional do tema do futebol em nossas letras. Autores que se expressaram em diversos gêneros de escrita (notadamente os que ligam o campo do jornalismo ao da literatura) os quais optamos por abordar no nosso estudo pelos motivos que explicaremos ao fim do primeiro capítulo deste trabalho. Para cumprir tal fim, pensamos estruturar nosso trabalho de maneira que ele pudesse proporcionar uma abordagem que relacionasse metodologicamente produção literária e produção social; a escrita estética dos escritores e a escrita histórica dos atores sociais que, num espaço social determinado – uma sociedade que incorporou o futebol como jogo cultural predominante desde o início do século XX, caso da brasileira – inevitavelmente se imbricam e o fazem a tal ponto que uma dessas esferas necessariamente se reflete na outra, o que se dá por meio de um movimento dialético em que não raro a representação literária se volta para a 18 representação social e vice-versa. Neste contexto, tomamos o futebol aqui não apenas como um jogo em si, mas – e principalmente – como uma grande metáfora da vida social; um grande sistema de comunicação que, por encerrar uma verdadeira metalinguagem da cultura brasileira, forma, a partir de sua estrutura lúdico-competitiva de caráter essencialmente simbólico, um conjunto de sentidos e significados que comunica para além da sua mera visualidade objetiva e imediata; para além da sua realidade material como jogo tomado no seu sentido estritamente esportivo. Sendo assim, resolvemos, por isso mesmo, tomar como a operacionalidade teórica básica do trabalho a mobilização de dois conceitos fundamentais: a idéia de representação literária da vida cotidiana aliada à noção de representação social, ambas categorias devidamente aplicadas à nossa análise do fato literário vinculado ao tema do futebol, o que deverá compor a nossa mirada histórica sobre a literatura brasileira produzida sobre ou em torno dessa questão. Uma hipótese operativa foi por nós aventada no que concerne à abordagem proposta por esse nosso estudo: a idéia de que por ser o futebol um jogo que dadas as características intrínsecas e estruturais que o encerram, sua dimensão comunicativa exigiria, no nível de sua representação simbólica - no caso, literária -, narrativas que articulassem ou considerassem essas mesmas características (a magia, a imprevisibilidade, a surpresa, a beleza etc.) que, definidoras do jogo no seu conjunto, são também pertencentes à esfera do estético – da arte, por extensão. Neste sentido, temos a suposição de que no caso das narrativas sobre o futebol brasileiro produzidas por nossos escritores, no longo percurso que vai do seu tratamento jornalístico à sua abordagem puramente literária, parece haver uma homologia entre a maneira como a prática do futebol entre nós vai ganhando características próprias, a ponto de formarmos uma escola brasileira de jogar futebol, e a maneira como os nossos escritores- jornalistas vão tratando o tema, algo que implicaria também na criação de uma “maneira brasileira” de narrar literariamente o futebol. Feitas essas considerações teórico-metodológicas iniciais, desçamos às concepções estruturais do trabalho. Este estudo será composto desta introdução (em que se pretendeu apresentar sucintamente a motivação, a necessidade, a validade, a justificativa, a concepção e a metodologia escolhida para orientar a pesquisa e a análise do objeto de estudo: a presença do futebol na literatura brasileira nos gêneros de ficção, com enfoque no conto) devidamente complementada por mais três capítulos seguidos de um Guia de leitura do tema 19 do futebol no conto ficcional brasileiro, onde se pretendeu resumir os resultados das avaliações e análises críticas da obras e autores elencados em sentido panorâmico, estudados todos sob o ponto de vista sócio-histórico e crítico-estético. Entre uma ponta e outra, todavia, depois desta introdução, o capítulo segundo fará uma abordagem do tema da pesquisa tratando das questões teórico-conceituais e metodológicas sobre o jogo de futebol compreendendo-o como um fenômeno de comunicação estética em que se explicita a sua relação com a linguagem de uma forma geral e com a literatura de forma particular. Em ambos os casos, amiúde, concebe-se a linguagem também como uma forma de jogo ou meio produtor de sentidos de que se nutre o futebol como sistema metalingüístico de valor social e cultural estruturante. Daí fazerem-se as relações entre jogo, esporte, literatura e linguagem, absolutamente pertinentes para esse estudo. O capítulo terceiro pretende realizar uma história panorâmica da presença do futebol na literatura brasileira por gêneros, destacando-se horizontal e verticalmente os de ficção, e, dentro destes, o conto. Aqui, serão apresentadas também as primeiras manifestações literárias do tema tomadas em sentido amplo e em sentido estrito; dos primeiros escritos sobre o futebol, mesmo que produzidos em registros de cunho informativo ou técnico – mas que se considere de valor historiográfico no sentido da abordagem proposta – até os registros propriamente literários: as peças de cunho estético, principalmente as crônicas e as primeiras histórias curtas de ficção. Concomitante a isso, pretende-se ter como resultado paralelo - o que virá no quarto capítulo - a produção de uma história crítica das principais obras da literatura brasileira que tematizam o futebol formalizadas no gênero conto, que receberá destaque analítico em função de critérios devidamente explicitados. O quarto e último capítulo, portanto, incluirá uma análise mais vertical e aprofundada dos autores cujas obras contribuíram para firmar definitivamente a entrada do futebol como matéria potencial de transfiguração literária por meio da ficção, uma vez que o assunto, conforme demonstraremos, trafegará paulatinamente do âmbito do jornalismo para a seara específica da literatura, campo em que recebeu um tratamento estético mais apurado em razão da sua pertinente ligação com a esfera da arte e do jogo, numa conjunção de princípios e meios comuns a sua própria estruturação enquanto motivo de especulação e efetivações várias do âmbito da cultura. Nesse sentido, a averiguação pragmática desse fato que envolve os autores e as obras que escolhemos como corpus de estudo do nosso trabalho exigiu, por exemplo, que criássemos ferramentas analíticas apropriadas para dar conta de sua complexidade e abrangência, e foi aí que ousamos estabelecer, por conta própria, embora que com a devida 20 justificação teórica apresentada, categorias de leitura com as quais estudaríamos os textos que escolhemos para representar a nossa sondagem mais vertical do tema do futebol na literatura brasileira. Para cumprir tal meta, empreendemos, nesse ponto do trabalho, uma leitura crítica um tanto heterodoxa de tais textos e de tais autores, o que implicou uma aproximação radical do olhar analítico com o objeto mesmo da análise, resultando daí que tal aproximação demandou o abandono, conscientemente feito por nós, das regras de citação do discurso com apropriação científica, feitas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas, a ABNT. Assim, nesse ponto da nossa pesquisa, as citações dos textos analisados são feitas de forma livre no texto de análise (marcando-se devidamente com aspas, evidentemente, o discurso alheio) de modo que reste daí, numa espécie de supra-texto analítico, assinado por nós, as mesmas marcas autorais – informadas pelos componentes lúdicos do jogo e da linguagem – que serviram de critério de inclusão de tais produções no universo da nossa abordagem em questão. Para complementar nossa proposta de estudo, por fim, apresentamos o Guia de leitura do tema do futebol no conto ficcional brasileiro, com o qual quisemos firmar uma abordagem também historiográfica da presença do tema do futebol nas letras nacionais. 21 2 - ROLANDO A BOLA: UMA JOGADA DE LETRAS O esporte é freqüentemente negligenciado por essa disciplina (a estética); costuma-se simplesmente assinalar os traços artísticos do esporte, para logo julgá-los como simplesmente óbvios e uma questão sem interesse. O prazer no esporte é considerado um prazer baixo de massas – um prazer que não é digno de consideração positiva pela estética. Mas, ao negligenciar o caráter artístico do esporte, deixamos de compreender por que ele é tão fascinante para o grande público. Na realidade, o verdadeiro fascínio do esporte deriva de aspectos que, de forma diversa, estamos habituados a experimentar e admirar nas artes. Wolfgang Welsch O jornalismo esportivo nos reserva o privilégio de conviver, nas quadras, nas pistas, nos campos e nos vestiários, com os sentimentos maiores e menores do ser humano. Prepare, amigo, a sua alma para o patético e para o lírico, para o amargo e para o sublime, pois, na batalha do esporte, como no match da vida, não há vitórias nem derrotas definitivas. Armando Nogueira Porque é de bom procedimento, em se tratando de estudo (e de vida), transformar-se o amador na coisa amada. 22 Ivan Cavalcanti Proença Como se sabe, o futebol é conceitualmente um jogo simples.2 Praticado por 22 jogadores divididos em duas equipes de onze elementos cada, que disputam a posse de uma bola dentro de um campo que consiste num retângulo de no máximo 120 e mínimo de 90 metros de comprimento por um máximo de 90 e um mínimo de 45 metros de largura, contendo também um árbitro que observa suas regras e prontamente julga as infrações, dois auxiliares postados nas margens do gramado e uma assistência quase sempre numerosa e vibrante, o futebol é um jogo cuja finalidade é determinar a vitória da equipe que marcar mais gols, isto é, conseguir colocar mais vezes a bola na meta do time adversário durante um período de 90 minutos, dividido em duas etapas de 45, com um intervalo para descanso dos jogadores de mais um quarto de hora. O que talvez não se saiba dimensionar precisamente ainda é a circunstância de que, sendo um fenômeno esportivo de aceitação quase universal, o futebol talvez envolva e emocione seus praticantes e admiradores não apenas pelos efeitos e resultados práticos que produz (a vitória da equipe que conseguir marcar mais gols no adversário), mas sim, e talvez principalmente, pelo conjunto de sentidos e significados que comunica para além de sua visualidade objetiva e imediata. Ou seja: o futebol, paradoxalmente, talvez encante muito mais pelo que não se vê dentro do campo quando se assiste ao seu espetáculo diretamente, mesmo que esta experiência seja por si só gratificante e prazerosa. Quiçá, repita-se, o futebol encante mesmo é pelo que se sente e experimenta-se ao vivenciá-lo como fenômeno pleno de cultura dentro e fora dos gramados.3 2 Esse entendimento conceitual do jogo de futebol é partilhado pela esmagadora maioria dos pesquisadores do tema em todas as áreas do conhecimento. Tal simplicidade, que abrange igualmente suas regras e técnicas de jogar, é parte, inclusive, de um consenso que a aponta como um dos principais fatores da universalização da sua prática. “Os jogadores precisam somente aprender a dominar algumas habilidades básicas de enganar e manobrar a bola com o pé para participar dos jogos. As habilidades defensivas de marcar, desarmar ou defender o gol podem ser estimuladas, inicialmente, entre os menos hábeis tecnicamente. Finalmente, cada vez mais o futebol é peculiar no sentido esportivo, uma vez que tende a aceitar diferentes formas e tamanhos corporais. Jogadores de preparo físico, altura, peso e idade variados podem encontrar posições específicas favoráveis a sua forma física”. Cf. GIULIANOTTI, Richard. Sociologia do futebol: dimensões históricas e socioculturais do jogo das multidões. Trad. Wanda Nogueira Caldeira Brant e Marcelo de Oliveira Nunes. São Paulo: Nova Alexandria, 2002. p. 8. Mais especificamente sobre a influência dessa simplicidade na popularização do jogo ver, por exemplo, para o caso brasileiro: VOGEL, Arno. O momento feliz. In: Da MATTA, Roberto et. al. Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982. p. 79; e para o caso dessa popularidade mundial do jogo, ver: MURRAY, W. J. Uma história do futebol. Trad. Carlos Szlak. São Paulo: Hedra, 2000. p. 17-18.; e, também, para uma análise da relação da popularidade global do futebol com o contexto histórico do Pós-Primeira Guerra Mundial, ver: SEVCENKO, Nicolau. Futebol, metrópoles e desatinos. Revista USP, n. 22, jun./ago. 94, p. 35. 3 Nesta direção, o sociólogo Richard Giulianotti argumenta, citando G. Bateson, que em qualquer sociedade em que é praticado, o futebol fornece uma espécie de mapa cultural, uma representação metafórica que melhora a compreensão daquela sociedade. E acrescenta: “Sua centralidade cultural, na maior parte das sociedades, significa que o futebol tem 23 Sim, porque, curiosamente, o futebol é um jogo que extrapola as suas próprias regras. Entendido em sentido amplo, ele começa antes dos 90 minutos regulamentares de uma partida e vai além deles, é um jogo que não se resume aos poucos personagens que o praticam diretamente nos gramados ou campos de várzea, e – mais significativo ainda – é um jogo que não se encerra no mero espaço delimitado para a sua prática, tornando-se, assim, portanto, ao menos para nós, brasileiros, “bem mais do que uma prática esportiva: é a síntese complexa da cultura brasileira, é a sua metalinguagem” (MURAD, 1996, p. 65-7).4 Como bem teoriza o sociólogo britânico Richard Giulianotti (Ibidem, p. 42-43), o futebol é uma das mais importantes instituições culturais modernas ao lado dos sistemas de educação e os meios de comunicação de massa pelo seu papel de formar e consolidar identidades nacionais no mundo inteiro. Isso pode ser bem compreendido quando se analisa o seu processo de difusão internacional, ocorrido durante o final do século XIX e início do século XX, processo que ocorreu no momento em que a maior parte das nações na Europa e na América Latina estava negociando suas fronteiras e formulando suas identidades culturais. Momento em que também os processos característicos da modernização (industrialização, urbanização e grande migração) começavam a se definir exigindo das nações modernas a descoberta de novos caminhos para a unificação de povos fundamentalmente diferentes. O também sociólogo britânico E. Gelnner (1983, p. 123) completa: Cada nação produziu uma “história oficial”, celebrando figuras heróicas que haviam lutado para defender “o povo” contra forças hostis. De maneira mais influente, a cultura popular fornecia esses recursos com componentes estéticos e ideológicos. Eventos esportivos, principalmente partidas de futebol tornaram-se os colaboradores mais importantes. Fazendo, conseqüentemente, transcender e ampliar no homem as noções de tempo e de espaço, o futebol é um esporte que abarca e abrange o campo muito maior das atividades comunitárias e culturais dos homens postos em relação, contribuindo, assim, em maior ou uma importância política e simbólica profunda, já que o jogo pode contribuir fundamentalmente para as ações sociais, filosofias práticas e identidades culturais de muitos e muitos povos”. (GIULIANOTTI, Op. Cit, p. 8). 4 Neste sentido, e segundo ainda este importante pesquisador brasileiro do tema, a finalidade máxima de uma Sociologia do Futebol, já em franco desenvolvimento no âmbito acadêmico brasileiro, dada a centralidade deste esporte na nossa vida cultural, seria estudar os múltiplos jogos sociais presentes na região significacional do futebol, suas referências com o inconsciente coletivo, sua dimensão simbólica e não apenas a modalidade esportiva que acontece no interior das “quatro linhas”. Reafirmamos, aqui, em consonância com Murad, a característica plurifenomênica do jogo de futebol em si de escapar, de ir além, das suas próprias definições conceituais. Assim, principalmente no Brasil, poderíamos dizer, o futebol é maior que o futebol. Mais que um simples jogo, é uma festa que engloba um jogo e um jogo que encerra uma festa. Um jogo cultural que se inicia antes do seu começo, com as manifestações de rua dos torcedores-jogadores, as brincadeiras e gozações com os adversários, as passeatas e carreatas pela cidade etc, e que se estende pelos estádios durante as partidas propriamente ditas, continuando ainda mesmo após o seu final, com as comemorações, os festejos e as alegrias da vitória a caminhar de braço dado com as tristezas das derrotas. Enfim, uma festa multifatorial da arte popular. 24 menor grau, para a configuração geral da sociedade que o pratica ou que o acolhe como desporto socialmente legitimado. Talvez por isso mesmo foi que o pensador Norberto Elias, tentando explorar as potencialidades epistemológicas do futebol aplicadas ao seu conceito operacional de “processo sociológico”, o qual faz uso para a definição do que chama, num contexto mais amplo, de processo civilizador do homem – chegou a formular uma instigante metáfora do futebol enquanto fenômeno intrinsecamente sociológico. Para ele, a competição entre companheiros de equipe e seus adversários, por exemplo, “ilustra a natureza de toda a vida social no sentido de afirmar ‘a interdependência dos seres’ e ‘a rede de tensão flexível’ gerada pela sua ligação social” (ELIAS apud GIULIANOTTI, 2002, p.166). Por esta sua perspectiva, portanto, o futebol exemplifica como a tensão ontológica entre ação e estrutura social é dramatizada repetidamente. “Os jogadores são limitados em relações estruturais que enfatizam o coletivo sobre o individual” (GIULIANOTTI, 2002, p.166). Ou seja: ao atuarem no jogo sob tais coerções estruturais, vemos que os jogadores, no nosso ponto de vista, simbolizam atores sociais que, no contexto já acima exposto, representam forças de propulsão à superação de situações estáveis que obrigatoriamente se modificam sob a égide de uma lógica da expansão de limites. E isso se dá tanto do ponto de vista do homem social – portanto, coletivo (na configuração das suas coletividades, cidades, nações, estados etc.) – quanto do ponto de vista do homem individual, na sua particular configuração ontológica (pela auto-superação de formas e valores sob os quais se sustenta no mundo). Mesmo porque, conforme nos ensina o sociólogo Georg Simmel, “a sociedade para alcançar uma determinada configuração, precisa de quantidades proporcionais de harmonia e desarmonia, de associação e competição” (1983, p. 124). [...] O tempo e o espaço, essas inefáveis dimensões humanas, tornam-se adversários concretos nas provas atléticas, quando um milímetro ou uma fração de segundo pode decidir um campeonato mundial ou um recorde. Assim, tempo e espaço são colocados, no campo do esporte, contra e como adversários de homens e mulheres que tentam superá-los (Da MATTA, 1982, p. 13).5 O futebol, portanto, não é só a emoção da vitória de um time expressa no esfuziante grito de gol de um torcedor; não é só o espetáculo visual da bola rolando sob o comando dos pés hábeis de um jogador a enfrentar o acaso e seus adversários em um campo; nem é só a experiência vivencial decorrida entre o apito inicial e final do juiz a sentenciar a 5 Para uma compreensão da utilização funcional das dimensões de espaço e tempo, na sua conceituação formulada pela Física moderna, aplicadas ao jogo de futebol, ver o instigante ensaio intitulado “Tempo (e espaço) no futebol”, do crítico teatral Décio de Almeida Prado. Revista USP, n. 22, p. 19-26, jun./ago. 1994. 25 alegria ou a tristeza dos praticantes do jogo e também dos seus apreciadores. Por operar uma síntese geral de vários elementos combinados e mesmo conflitantes entre si – encerra um “misto de alegria e tristeza, apreensão e relaxamento, sofrimento e prazer” na encenação de um drama especial em que se pode vivenciar muito fortemente um estado de “suspense contínuo” (Da MATTA, 1982, p. 8) – o futebol pode ser compreendido também como um avassalador fenômeno de comunicação, entendida esta como o conjunto de práticas e ações que ligam os homens numa comunidade pelo auxílio da linguagem em suas mais diversas formas de manifestação e expressão. Ou, como reforça o sociólogo Maurício Murad (1996, p. 8), o futebol pode ser entendido como um poderoso sistema de comunicação, capaz de unir diferenças e proporcionar um espetáculo ritual de grande significação para aqueles que dele participam. Como rito, o futebol compreende cenários, personagens, enredo, símbolos e significados que, em conjunto, formam uma metalinguagem, isto é, uma realidade social que não fala só de si, que vai mais além. É o caso do futebol brasileiro, que ajuda na compreensão de muitas das características sociais e culturais de nossa formação (MURAD, 2007, p. 20). Neste contexto, portanto, como parte integrante da comunicação social entre os brasileiros, o futebol enquanto jogo adquiriu, no país, uma dimensão cultural – e podemos acrescentar política e econômica – que o eleva à condição de fenômeno antropológico passível de ser compreendido na contribuição que ele pode oferecer ao conhecimento de inúmeros aspectos da nossa realidade social. Essa contribuição, por seu vasto escopo de abrangência, já foi flagrada e diagnosticada por vários campos do saber científico: das chamadas ciências do esporte aos mais diferentes ramos das ditas ciências humanas.6 Talvez porque o futebol seja um jogo de prática e abrangência quase universais, seu estudo sistemático tem principalmente se proliferado no campo dos autodenominados estudos culturais, uma vez que é o direcionamento humano que é dado aos movimentos corpóreos nos jogos que determina a inquestionável culturalidade das práticas desportivas, segundo Murad (2007, p. 125). Talvez porque, como dissemos, o futebol seja assim bem mais do que um esporte. Talvez porque enquanto jogo, enfatizemos, o futebol seja mesmo um fenômeno tipicamente cultural, como defendem alguns dos seus mais respeitados estudiosos. 6 Ao comentar as diferentes “dramatizações” sociais que o futebol encena, o antropólogo Roberto Da Mata enfatiza que uma de suas principais características, neste aspecto, é a de ser um formidável código de integração social. Isto é, o futebol ajuda uma coletividade altamente dividida como a sociedade brasileira a afirmar-se como uma coletividade capaz de atuar de modo coordenado e, eventualmente, vencer. Ao contrário do que ocorre em outros campos da vida social, como o da política, por exemplo, um universo onde as instituições públicas estão há décadas desmoralizadas por práticas personalistas e clientelísticas em franco descompasso com as prerrogativas de uma modernidade em plena vigência no mundo desenvolvido. 26 [...] O futebol é um ritual de forte expressividade antropológica, histórica, psicológica, política, lingüística, estética, ética da cultura brasileira. Neste sentido, é um objeto polissêmico e polifônico, que articula múltiplos saberes e diferentes linguagens e se inscreve como objeto de estudo no universo das ciências da Cultura (MURAD, 1996, p. 21). Seguindo este enfoque, vamos abordar o jogo de futebol no Brasil enquanto fato cultural e estético, tomando a Literatura e o Jornalismo, instâncias consagradas de representação desse esporte na Comunicação Social, como seu campo privilegiado de análise. Nossa idéia central é, portanto, mostrar quando e como o futebol tornou-se tema recorrente na literatura brasileira, partindo inicialmente da sua abordagem jornalística, documentalista, referencial e ensaística – porque foi através dos jornais que o tema tornou-se literário – até chegarmos a uma visão, digamos, estética do jogo (o fruir do seu prazer através da linguagem), sendo sua representação literária o foco principal de nossa atenção. Vamos elaborar uma visão de conjunto, sistemática, panorâmica, da produção literária sobre futebol no Brasil, mas, ao mesmo tempo, particularizar essa visão em alguns autores representativos dela, a exemplo dos escritores-jornalistas, Coelho Neto, Lima Barreto, António de Alcântara Machado, Mário Filho, José Lins do Rêgo, Nelson Rodrigues, entre outros, que serão tomados como corpus de estudo pelas razões mais à frente explicitadas. Por enquanto, tomaremos operacionalmente, dentre as inúmeras formas de utilização da comunicação que englobam o futebol, a comunicação jornalística e a comunicação estética, uma vez que ambas, no vasto escopo da comunicação social, têm a função de fazer trafegar, no amplo espaço da cultura, as representações simbólicas decorrentes da prática concreta dos homens em meio à sua ação cotidiana. Entenda-se por comunicação jornalística, neste sentido, um amplo processo social que se dá através da imprensa, embora se distinga conceitualmente dela.7 Assim, para este nosso caso, a comunicação jornalística define-se por ser um processo social que se articula a partir da relação (periódica/oportuna) entre organizações formais (emissoras/editoras) e coletividades (o público receptor), através de canais de difusão (jornais, revistas, rádio, televisão etc.), que asseguram a transmissão de informações (atuais) em função de interesses e 7 Para diferenciarmos aqui dois conceitos que comumente se confundem, o de imprensa e o de jornalismo, adotaremos, para uso teórico neste trabalho, a definição de imprensa feita pelo teórico brasileiro do jornalismo, Adelmo Genro Filho. “[...] Imprensa é o corpo material do jornalismo, o processo técnico do jornal – que tem sua contrapartida na tecnologia do rádio, da TV etc. – e que resulta num produto final, que podem ser manchas de tinta num papel ou nas ondas de radiodifusão”. Nestes termos, conforme Genro Filho, não há um discurso da imprensa, já que a imprensa é mero suporte, mas há um discurso jornalístico, na medida em que o jornalismo, conforme essa diferenciação básica, é a modalidade de informação que surge sistematicamente destes meios para suprir certas necessidades histórico-sociais que expressam uma ambivalência entre a particularidade dos interesses burgueses, no caso das sociedades capitalistas, e a universalidade social em seu desenvolvimento histórico. Cf. Genro Filho (1987, p. 175). 27 expectativas (universos culturais ou ideológicos) (MARQUES DE MELO, 1985, p. 10). A comunicação estética, por seu lado, liga-se ao futebol a partir de uma conjunção funcional entre ambos, algo que explicitaremos na seqüência do nosso raciocínio. É que todas as coisas do mundo objetivo – incluindo-se aí os objetos, as pessoas e as ações destas na vida social – são dotadas de funções que as relacionam entre si e com o todo do sistema cultural. Essas funções são dos mais variados matizes e compõem um complexo espectro de atributos que inclui desde a função prática dos objetos – que são criados pelos homens para, na sua existência real, servirem como instrumento de facilitação da sua vida –, passando pela função comunicativa (que os relaciona entre si e com as coisas e os objetos) até a função estética, que liga o homem à esfera da beleza, ao universo do belo, já que “o homem tem uma necessidade da beleza, assim como tem uma necessidade da ficção. [...] qualquer que seja a cultura, faz parte da psique humana o devaneio, a imaginação, a fantasia” (LAFETÁ, 1998, p. 17).8 2.1 Embolando o meio campo: jogo, esporte, linguagem e literatura Dizíamos anteriormente acima que vamos estudar o jogo de futebol no Brasil enquanto fato cultural e estético, consideração esta que nos impele imediatamente a expor o conceito de jogo com o qual pretendemos trabalhar, já que o futebol é antes de quaisquer considerações que se lhe possam acrescentar, intrínseca e essencialmente, um jogo, fenômeno que na definição de Johan Huizinga, apresenta necessariamente uma dimensão estética. Assim, nas considerações deste autor, jogo é: 8 Daremos, neste contexto, ao longo deste trabalho, uma orientação funcionalista à relação que faremos entre Comunicação Jornalística e Comunicação Estética. A conhecida teoria da comunicação, de Roman Jakobson (s.d: p. 118-162), apresenta como sendo seis as funções da linguagem: a referencial, a emotiva, a conativa, a fática, a metalingüística e a poética. Cada uma dessas funções se baseia na ênfase dada aos fatores que compõem o processo comunicativo: o referente, o emissor, o receptor, o canal, o código e a mensagem, respectivamente. A função poética da linguagem é o que define a comunicação estética, uma vez que ao fazer retornar sobre a mensagem a sua própria mensagem, a comunicação estética orienta o uso da linguagem para um fim em si mesmo, o que é o caso das obras de arte, incluídas entre elas as da Literatura. É neste sentido que ao estabelecer a diferença entre o uso literário e não-literário da linguagem (o jornalístico, por exemplo), o crítico Northrop Frye baseia-se na orientação interna (para os próprios signos, para outros signos) da linguagem e também na sua orientação externa (para o que os signos não são, os referentes), e, assim, esclarece um pouco mais o que está acima dito. Ou seja, é a orientação interna, voltada para o próprio código, que caracteriza a literatura enquanto que o que caracteriza o jornalismo é a orientação externa da sua linguagem, o voltar-se para o referente, para a realidade exterior que precisa informar. Cf. FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. Trad. de Péricles Eugênio da Silva Ramos, São Paulo: Cultrix, 1973. Também o arguto crítico da arte Yan Mukarovsky explica esse mesmo fenômeno da linguagem em termos semióticos. Para ele, juntamente com a função de signo autônomo, a obra artística tem mais outra função: a função de signo comunicativo, ou seja, de comunicação estética. Cf. MUKAROVSKY, Yan. Escritos sobre estética e semiótica da arte. Lisboa: Estampa, 1981. p. 14-17. 28 [...] uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da “vida quotidiana” (HUIZINGA, 1971, p. 33). Cabe acrescentar que é o fato de ser dotado de um fim em si mesmo que faz do jogo uma atividade estética que o liga necessariamente ao mundo da sua representação, ou seja, ao universo da linguagem, que é a base de sua forma de comunicação. No caso particular do futebol, temos como hipótese de trabalho ser este um jogo que, devido às características intrínsecas e estruturais que o encerram, a sua dimensão comunicativa demanda – se não obrigatoriamente, mas preferencialmente – no nível de sua representação simbólica (lingüística, portanto), narrativas que se articulem e considerem essas mesmas características (a magia, a imprevisibilidade, a beleza etc.) que são, no seu conjunto, pertencentes à esfera do estético; do domínio da metáfora – da arte, por conseguinte – e não da órbita do racional, do instrumental, do linear, por exemplo. Defendemos essa nossa hipótese de trabalho com amparo na concepção rousseauniana da origem da linguagem, ou seja, na idéia fundadora de que os primeiros motivos que fizeram o homem falar foram as paixões (a magia das impressões primeiras do mundo sobre os sentidos) e suas primeiras expressões foram os tropos. Assim, a primeira a nascer foi a linguagem figurada sendo o sentido próprio das palavras encontrado depois. “A princípio só se falou pela poesia, só muito depois é que se tratou de raciocinar”, assegura Rousseau. Como exemplo de sua tese, Jean-Jacque Rousseau nos conta a seguinte história ilustrativa dos seus argumentos: Um homem selvagem, encontrando outros, inicialmente ter-se-ia amedrontado. Seu terror tê-lo-ia levado a ver esses homens maiores e mais fortes do que ele próprio e a dar-lhes o nome de gigantes. Depois de muitas experiências, reconheceria que, não sendo esses pretensos gigantes nem maiores nem mais fortes do que ele, à sua estatura não convinha a idéia que a princípio ligara à palavra gigante. Inventaria, pois, um outro nome comum a eles e a si próprio, como, por exemplo, o nome homem e deixaria o de gigante para o falso objeto que o impressionara durante sua ilusão. Aí está como a palavra figurada nasce, antes da própria, quando a paixão nos fascina os olhos e a primeira idéia que nos oferece não é a da verdade. O que disse a respeito das palavras e dos nomes aplica-se sem dificuldades aos torneios de frases. Apresentando-se, em primeiro lugar, a imagem ilusória oferecida pela paixão, a linguagem que lhe corresponderia foi também a primeira inventada; depois tornou- se metafórica quando o espírito esclarecido, reconhecendo seu próprio erro, só empregou as expressões para as próprias paixões que as produziram (ROUSSEAU, 1977, p. 267-268). Cremos que é este mesmo movimento de retorno às formas primevas da 29 linguagem (quando o signo volta-se para a imagem ilusória oferecida pela paixão), descrito por Rousseau, que os escritores-jornalistas elaboram ao tratarem linguisticamente do jogo de futebol. Ou seja: pelo jogo de torneio de frases, intentam representar os movimentos do jogo quando este está posto em movimento. Na mesma linha de pensamento, seguem as teorizações do filósofo inglês Thomas Hobbes quando resume em quatro os usos especiais da linguagem: Os usos especiais da linguagem são os seguintes: em primeiro lugar, registrar aquilo que por cogitação descobrimos ser a causa de qualquer coisa, presente ou passada, e aquilo que achamos que as coisas presentes ou passadas podem produzir, ou causar, o que em suma é adquirir artes. E segundo lugar, para mostrar aos outros aquele conhecimento que atingimos, ou seja, aconselhar e ensinar uns aos outros. Em terceiro lugar, para darmos a conhecer aos outros nossas vontades e objetivos, a fim de podermos obter sua ajuda. Em quarto lugar, para agradar e para nos deliciarmos, e aos outros, jogando com as palavras, por prazer e ornamento, de maneira inocente (HOBBES, 1988, p. 21). Por isso mesmo (observe-se, com grifo nosso, justamente o quarto uso da linguagem descrito por Hobbes), considerando, como o faz Bernard Jeu, que “há no jogo, primeiramente, um aspecto plástico e coreográfico: a dominação do corpo pela mente”, (apud MARQUES, 2000, p. 26) possibilitando ao espectador contemplar uma combinação agradável de atitudes e movimentos em que se retém a beleza dos gestos e dos movimentos do corpo (como se fora uma dança), temos que o que está em jogo sempre, no caso do futebol, é o prazer externo das sensações, talvez mais, muito mais, do que a mera dimensão numérica expressa no placar que diferencia seus vencedores e vencidos. Achamos, por decorrência – para reforçarmos a nossa hipótese de trabalho já exposta –, que esse prazer externo das sensações, possível de ser vivenciado no jogo de futebol, só pode ser partilhado extensivamente de forma coletiva através da comunicação estética. É como se ao escrever ou narrar o futebol de forma a ajustar corretamente forma e conteúdo, o escritor-jornalista intentasse prolongar (para ele e para o leitor) o aspecto lúdico do jogo, tornando-se ao mesmo tempo um jogador e espectador ele mesmo, como parece querer dizer dessa potencialidade do jogo o antropólogo Everardo Rocha (1996, p. 14): A verdadeira magia do futebol brasileiro – o futebol no imaginário dos brasileiros, bem entendido – está principalmente no fato de que este é o jogo escolhido como preferencial para, através dele e de suas práticas, falarmos sobre nós mesmos. A análise de textos dos autores escolhidos como corpus desse estudo, anteriormente referidos, pretende, pois, dar como resultado a comprovação desta hipótese. É que concordamos com a acepção do já citado pensador Johan Huizinga de que as grandes atividades arquetípicas da sociedade humana são, desde o início, inteiramente 30 marcadas pelo jogo. Veja-se o exemplo, citado por ele, da criação da linguagem, esse primeiro e supremo instrumento que o homem forjou a fim de poder comunicar, ensinar e comandar. É a linguagem que lhe permite distinguir as coisas, defini-las e constatá-las, em resumo, designá-las, e com essa designação, elevá-las ao domínio do espírito, observa ele. Na criação da fala e da linguagem, brincando com essa maravilhosa faculdade de designar, é como se o espírito estivesse constantemente saltando entre a matéria e as coisas pensadas. Por detrás de toda expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda metáfora é jogo de palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homem cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado do da natureza (HUIZINGA, 1971, p. 7). No caso das narrativas sobre o futebol brasileiro, no longo percurso que vai do seu tratamento jornalístico à sua abordagem puramente literária, temos ainda, como já frisamos, a suposição de que parece haver uma homologia entre a maneira como a prática do futebol entre nós vai ganhando características próprias, a ponto de formarmos uma escola brasileira de jogar futebol, e a maneira como os nossos escritores-jornalistas vão tratando o tema: a linguagem meramente jornalística, referencial e documental, dos primeiros relatos, evolui para o seu tratamento literário, estético, dos autores mais contemporâneos. Constatação esta que nos obriga a discorrer sobre as características intrínsecas e particulares tanto do futebol praticado no Brasil como da sua maneira específica de representá-lo via linguagem. Antes de contarmos essa história, contudo, é necessário e oportuno fazermos uma explanação mínima dos desdobramentos desse tema ao menos nos aspectos que ele possa ter de esclarecedor para o uso que pretendemos fazer dele aqui. É que o futebol é simultaneamente um jogo e um esporte, um fenômeno ligado ao corpo, mas, também ao espírito, uma esfera de atividade dotada de uma aura paradoxal, que nas palavras do antropólogo Roberto Da Matta, possui uma “multivocalidade” que o permite ser abordado sobre os mais múltiplos e plurais pontos de vista. [...] Diferentemente de outras instituições, o futebol reúne muita coisa na sua invejável multivocalidade, já que é jogo e esporte, ritual e espetáculo, instrumento de disciplina das massas e evento prazeroso. Algo que requer paixão e treinamento, começando pela obediência às suas regras que não podem mudar e devem valer para todos e sem as quais pode haver disputa e jogo, mas não há esporte (Da MATTA, 1994, p. 8). Ressaltamos isso para lembrar que o ângulo de visão a partir do qual pretendemos enxergar o futebol nos obriga, antes, a uma breve passagem em revista dos aspectos do tema que precisam ser compreendidos conceitualmente. Se não compreendidos totalmente, ao menos esclarecidos na relação que esses aspectos mantêm com o campo do seu aproveitamento no nosso caso, que é a literatura. Portanto, com o âmbito geral da cultura, o 31 que nos chama a atenção para as relações obrigatórias do conceito que fazemos de jogo e de esporte, por exemplo. Ou, numa ampliação mais funda dessas relações, das ligações inevitáveis que socialmente fazemos entre esporte, cultura e arte, numa outra ponta. Quanto ao conceito de jogo com o qual pretendemos trabalhar, nesse sentido, já dissemos que ele necessariamente aponta para uma dimensão estética que inevitavelmente contém. Nisso, adiantemos já, ele faz conjunção com o conceito estrito de literatura, um dos tantos que pretendemos usar para o campo, já que devemos também, em momento oportuno, abordar a literatura em seu sentido mais amplo. Todavia, fiquemos, por enquanto, com a explicitação da conjunção entre jogo e linguagem para posteriormente chegarmos a uma outra conjunção destes dois conceitos derivada desta primeira, qual seja: a de jogo com literatura ou, mais precisamente, das relações que podem ser teoricamente mantidas entre jogo, linguagem e literatura. O primeiro aspecto relevante dessa relação reveste-se na idéia de que tanto a linguagem, no geral, quanto a literatura, em particular, podem ser compreendidas como um tipo de jogo que, ao ser “jogado” pelo homem, é responsável pela criação, no seu espaço social, de um mundo à parte, uma espécie de segunda natureza da sua existência ontológica em que as suas ações e vivências do cotidiano são deslocadas para uma outra dimensão da vida humana: a dimensão simbólica. Neste particular, achamos que é justamente através da linguagem e de suas diferentes formas de expressão, como a literatura e o jornalismo, por exemplo, que o homem realiza, na sua práxis vivencial, a sua nova forma de inserção ética no mundo contemporâneo, marcada pela existência de um novo tempo discursivo cujos elementos formadores baseiam-se num paradigma também novo, assim descrito pela pesquisadora Mayra Rodrigues Gomes em alguns dos seus aspectos, a saber: a atual negação das utopias e ausência de um padrão ético hegemônico; a relação do homem com a natureza, que passou a ser de uma solidariedade de destinos ao invés de uma relação de dominação (GOMES, 2002, p. 8), e, por último, o ser humano deixando de ser considerado um animal racional para ser agora definido como um animal simbólico, por excelência (ANSELL-PEARSON, 1997, p. 29). Aqui, como conseqüência dessa reviravolta epistemológica na redefinição da ontologia do homem contemporâneo com a qual concordamos, nos acostamos à tese do filósofo Friedrich Nietzsche, que se opondo a uma teoria de correspondência da verdade de fundo positivista que acreditava que nossos conceitos e julgamentos do mundo nos dão acesso genuíno à realidade, prefere propor que a representação que fazemos dele, através da linguagem, nada mais é do que meras ficções. Para ele, por exemplo, categorias como ‘causa’ 32 e ‘efeito’, ‘sujeito’ e ‘objeto’, e noções como ‘domínio da lei’, ‘liberdade’ e ‘motivo’ devem ser compreendidas como “ficções” convencionais para fins de designação e comunicação, não para explicação: “Somos nós apenas que criamos a causa, a sucessão, a reciprocidade, a relatividade, a coação, o número, a lei, a liberdade, o motivo, a finalidade; e ao introduzir e entremesclar nas coisas esse mundo de signos, como algo ‘em si’, agimos como sempre fizemos, mitologicamente” (NIETZSCHE, 1992a, p. 27). 9 Por isso, por incrível que pareça, o conceito de jogo de Huizinga visto anteriormente, pode muito bem (mantendo-se as ressalvas necessárias, é claro) ser aplicado também ao fazer literário, por meio de uma simples e produtiva analogia semântica. Nesse ponto, para fazermos as ressalvas necessárias que o paralelo teórico entre os conceitos de jogo e de literatura pressupõem, como indica a observação acima, é importante esclarecermos as sutilezas comuns – mas ao mesmo tempo diferenciadoras – de cada área: a atividade lúdica do jogo e a atividade cognitiva da literatura. Para isto, dentro do intuito de esclarecermos teoricamente o campo literário, uma vez que o universo do jogo foi já devidamente explicitado conceitualmente, tomemos agora os estudos dos conceitos e funções atribuídos à literatura por teóricos mais contemporâneos (os do século XX, por exemplo), uma vez que, embora derivados ou tributários dos estudos mais antigos sobre a representação literária da realidade, são esses conceitos os mais amplamente utilizados na contemporaneidade em comparação com aqueles formulados por teóricos de outras épocas. Partiremos de uma concepção formalista de literatura, passaremos por uma apreensão semiológica do fenômeno e chegaremos a uma abordagem histórico-dialético- funcionalista, que é a que orientará metodologicamente este estudo daqui para frente. Comecemos, então, com uma leitura crítica de uma obra do pensador francês Roland Barthes, intitulada Aula (BARTHES, 1978). Escrita para ser uma aula inaugural, ministrada pela ocasião da recepção pelo autor da Cátedra de Semiologia no Collège de France, tem ela um caráter essencialmente formalista, uma vez que expressa a opinião de um estudioso da linguagem em sentido amplo e não apenas da literatura, na sua forma particular. Barthes demonstra aqui um amplo conhecimento no campo da linguagem e, como não poderia deixar de ser, de uma de suas vertentes: a linguagem literária. Ele tem da linguagem, portanto, uma visão eminentemente social e vê nela a expressão do puro poder social a que todos nós 9 Ver, também, nesse sentido, a explicação do homem simbólico em Nietzsche, no contexto da antiguidade grega, na obra O nascimento da tragédia, ou helenismo e pessimismo. Tradução, notas e posfácio J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992b, p. 35. 33 estamos submetidos: “Esse objeto em que se inscreve o poder, desde toda eternidade humana, é: a linguagem – ou, para ser mais preciso, sua expressão obrigatória: a língua (BARTHES, 1978, p. 12). Barthes vê, pois, na língua, um objeto de coerção estrutural dos meios de expressão do homem. Afirma o autor que, por estarmos todos aprisionados irremediavelmente às estruturas lingüísticas, uma vez que devemos nelas enquadrar nossos pensamentos, somos todos escravos da língua. Dessa forma, de acordo com a teoria barthesiana da linguagem, uma vez que a língua leva à aceitação obrigatória de suas estruturas para a completa comunicação, ela faz parte de uma estrutura de poder a qual todos nós estamos submetidos, obrigados. Como a vocação essencial do homem é a liberdade, condição apropriadamente definida na sentença existencialista de Jean-Paul Sartre com a qual concordamos de que “o homem está condenado a ser livre” (1978, p. 9), somos levados a inferir que esta condição nada mais é do que uma desvinculação total do poder a que se é submetido, sem escapatória e sem determinismos. Ocorre, porém, que, para Roland Barthes, dentro do universo lingüístico não há maneiras de se ser livre. Só resta, pois, ao homem, assim, a fuga da linguagem por meio de uma trapaça lingüística utilizando-se da própria língua: “Essa trapaça, salutar, essa esquiva [...], eu a chamo, quanto a mim: literatura” (BARTHES, 1978, p. 16). Está, pois, patente aqui, como se vê, a primeira sutileza teórica que simultaneamente liga e separa do ponto de vista conceitual, literatura e jogo: a idéia de trapaça, não submissão às “regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias” (HUIZINGA, 1971, p. 33).10 Em termos especificamente literários, o escritor Flávio Carneiro, numa crônica apropriadamente intitulada, Futebol & Literatura, talvez explique melhor a questão quando diz ele que a literatura também é um jogo e como tal também tem suas regras. “Você pode transgredir uma ou outra, mas não vai poder transgredir todas. O escritor inventa dentro de certos limites, a começar pelos próprios limites da língua”, observa. E acrescenta ressaltando, 10 O paralelo teórico entre estes dois conceitos é sustentado categoricamente por Wolfgang Welsh em seu ensaio, Esporte – visto esteticamente e mesmo como arte?, em que ele defende o esporte como sendo uma arte performativa. Embora não trate especificamente de literatura, mas da arte em geral (no caso, a Música), aqui, a nosso ver, o autor elucida uma possível incompatibilidade entre este conceito de jogo estabelecido por Johan Huizinga e o de arte, notadamente no ponto em que o jogo implica seguir regras “absolutamente obrigatórias” para todos os seus praticantes enquanto na arte as regras, ao contrário, não implicariam obrigatoriedade alguma, sendo mesmo a sua ruptura, um dos motivos de sua ontologia. O autor refuta esta idéia nos seguintes termos: “[...] os atores ou intérpretes estão presos à estrutura preestabelecida da peça escrita ou da peça musical. Entretanto, o que torna sua performance notável não é a reprodução regrada do script ou da partitura, mas o elemento adicional da performance, que revela todos os tipos de habilidades pessoais, a interpretação individual e a abertura para o evento que eles criam [...]. Nenhum desses elementos é diretamente determinado por um script ou uma partitura dados”. Cf. ROSEFIELD, Dênis (org.). Ética e estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 153. 34 por exemplo, que Guimarães Rosa, um escritor sabidamente inventivo, burlava algumas regras da gramática oficial, mas o que ele escrevia nem por isso deixava de ser língua portuguesa. “Na verdade, ele criava uma espécie de gramática própria dentro da língua portuguesa, quer dizer, inventava um jogo – com regras que ele mesmo foi criando e o leitor aceitou” (CARNEIRO, 2009, p. 29). A concepção de Roland Barthes de que a literatura é a utilização da linguagem não submetida ao poder, contudo, deve-se ao fato de que a linguagem literária não necessita de regras de estruturação para se fazer compreender. Enquanto a utilização da linguagem cotidiana requer uma estrita obediência de sua estrutura – deve-se enquadrar o pensamento nas estruturas lingüísticas, para que haja uma perfeita comunicação –, a linguagem literária não obedece a qualquer regra estrutural fixa. O autor que se utiliza dessa linguagem não é obrigado a emoldurar seus pensamentos nas estruturas lingüísticas; ele é livre para escolher e criar uma estrutura própria, que proporcione a ele uma clara expressão de seus sentimentos e idéias. Assim, construindo o texto de acordo com seus próprios desejos, o escritor consegue que sua criação tenha um novo valor – passa da simples utilização comunicativa da linguagem a uma utilização artística da mesma – e, claro, segundo Barthes, a um novo poder. Esse poder assumido pela nova linguagem é, por assim dizer, um poder ligado ao novo valor artístico. A linguagem literária assume, pois – e este fato nos interessa diretamente –, aspectos de representação e demonstração. Através desta linguagem, pode-se refletir sobre a própria língua com liberdade. A linguagem literária permite que as palavras assumam vida própria, com novas significações que não aquelas a elas conferidas usualmente. No dizer de Roland Barthes, a linguagem passa a ter “sabor”. Enquanto no discurso científico a linguagem é direta e não permite ambigüidades, na linguagem literária as palavras assumem novos significados e representações. Mas a linguagem literária, como já dissemos e continuaremos discutindo ao longo deste capítulo, tem também uma função essencial que é a representação do real, nos termos em que a define o sociólogo e crítico literário brasileiro, Antonio Candido: A arte, e, portanto a literatura, é uma transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal da linguagem, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos. Nela se combinam um elemento de vinculação à realidade natural ou social, e um elemento de manipulação técnica, indispensável à sua configuração, e implicando em uma atitude de gratuidade (CANDIDO, 1972, p.53). Vê-se aqui, como exemplificação do aludido paralelismo conceitual entre representação literária e jogo, que Candido fala da indispensável presença de um elemento de 35 manipulação técnica (ademais, também presente no jogo), o qual é fator determinante para a classificação de uma obra como literária ou não. Seja como for, em sendo literária a linguagem, e por isso tendo a capacidade de estabelecer uma nova ordem para as coisas representadas, esta continua mantendo uma ligação com a realidade natural. Embora a literatura permita a criação de novos universos, esses são baseados, ou inspirados, na realidade da qual o escritor participa. Daí a afirmação de que a literatura é vinculada à realidade, mas dela foge através da estilização (manipulação técnica) de sua linguagem. Como é já amplo consenso entre os teóricos da literatura, essa linguagem assume características especiais. O escritor italiano, Umberto Eco, fala de idioleto da obra, quando se refere a tal linguagem. Esse idioleto pode ser interpretado como as características assumidas pela linguagem literária dentro de uma determinada obra. Ele é responsável pela estruturação dos significados da linguagem: “Essa regra, esse código da obra, em linha de direito, é um idioleto, definindo-se como idioleto o código privado e individual de um único falante” (ECO, 1971, p.59). Conforme ainda o escritor, esse código característico de cada obra, pode causar no leitor, por este não estar familiarizado com suas regras, aquilo que ele denomina de efeito de estranhamento. Por estar o leitor habituado às formas rígidas de estruturação da linguagem, quando se lhe apresentam uma nova estrutura, este a olha com considerável estranheza, e, para compreendê-la bem, passa a reconsiderá-la, procurando sua significação particular em que entra, necessariamente, um elemento importante do processo de representação via linguagem: a forma particular de significação do objeto feita pelo leitor da mensagem. Estando a literatura ligada à demonstração do real, esta assume algumas funções que atuam diretamente no homem, pois que exprime o homem e, depois, volta-se para sua formação, enquanto fruidor dessa arte. Antonio Candido, em A literatura e a formação do homem (CANDIDO, 1972, p. 48.), identifica três funções exercidas pela literatura, as quais, em seu conjunto, denomina de função humanizadora da literatura. A primeira das funções por ele identificada é chamada de função psicológica, em virtude de sua ligação estrita com a capacidade e necessidade que tem o homem, como já dissemos – no conceito mais amplo do termo – de fantasiar. Essa necessidade é expressa através dos devaneios em que todos se envolvem diariamente, através das novelas, da música e do fantasiar sobre o amor, sobre o futuro, etc. Conforme Candido, dessas modalidades de fantasia, a literatura seja, talvez, a mais rica. No entanto, as fantasias expressas pela literatura, embora tenham sempre sua base na realidade, nunca são puras. Mesmo assim, é através dessa ligação com o real, por exemplo, que a literatura passa a exercer sua segunda função: a função 36 formadora. Aqui a literatura atua como instrumento de educação, de formação do homem, uma vez que exprime realidades que a ideologia dominante tenta esconder: A literatura pode formar; mas não segundo a pedagogia oficial. [...]. Longe de ser um apêndice da instrução moral e cívica, [...], ela age com o impacto indiscriminado da própria vida e educa com ela. [...]. Dado que a literatura ensina na medida em que atua com toda a sua gama, é artificial querer que ela funcione como os manuais de virtude e boa conduta. E a sociedade não pode senão escolher o que em cada momento lhe parece adaptado aos seus fins, pois mesmo as obras consideradas indispensáveis para a formação do moço trazem freqüentemente aquilo que as convenções desejariam banir. [...]. É um dos meios por que o jovem entra em contato com realidades que se tenciona escamotear-lhe (CANDIDO, 1972, p. 805). Como se constata pela citação acima, pode-se claramente perceber o poder da literatura em atuar na formação do indivíduo, que pode, através da fruição da arte literária, ter suas características moldadas segundo valores cuja propagação não interessam à pedagogia oficial. Ainda nas palavras de Candido, a literatura “não corrompe nem edifica, mas humaniza em sentido profundo, porque faz viver” (CANDIDO, 1972, p. 806). A terceira e última função, levantada por Antonio Candido, diz respeito à identificação do leitor e de seu universo vivencial representados na obra literária. Esta função é por ele denominada de função social. Essa função é que possibilita ao indivíduo o reconhecimento da realidade que o cerca, quando transposta para o mundo ficcional. Transposta para o mundo do futebol, por via de paralelismo, lembremos que é quanto a esta função social nele embutida – enquanto matéria de representação –, que o dramaturgo Nelson Rodrigues sabiamente advertiu que “a mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeareana”. Isto quer dizer, nessa mesma direção, seguindo as palavras do crítico literário e pesquisador do assunto, José Miguel Wisnik, que “o futebol torna visível, de uma maneira que lhe é congenial, a entremeada matéria de que somos feitos”. Isso ele ressalta, por outro lado, ao inferir que mesmo operando no plano peculiar das linguagens gestuais, o futebol – mais do que nenhum outro esporte – é, no fundo, “uma movimentada batalha de gêneros narrativos, e um teatro inédito para o desfile polêmico e não verbal das gestualidades, das disposições mentais, das potencialidades criativas do homem” em sociedade (WISNIK, 2008a, p. 103). Voltando ao caso da literatura, e às teorizações de Antonio Cândido, tal reconhecimento (do universo de representação com o universo representado), no entanto, pode causar uma falsa impressão, construindo uma percepção errônea, quando ela expressa uma realidade da qual o leitor não participa diretamente, transformando-se em alienação. É o caso de obras que retratam personagens – algumas obras do regionalismo brasileiro, por 37 exemplo – acentuando suas diferenças em relação ao mundo culto, que se quer propagar. Assim, o leitor não participa da realidade em que a personagem está inserida, atuando apenas como observador, centrando sua atenção na diferença cultural de seus universos (o culto e o rústico, por exemplo), reconhecendo apenas a realidade de seu próprio mundo como verdade absoluta. Por outro lado, essa função social da literatura pode causar a integração do leitor ao universo vivencial das personagens retratadas, quando expressa de maneira fidedigna a realidade vivencial de suas personagens. Isso causa uma maior integração entre leitor e personagem, que culmina na identificação de uma realidade que não é a sua, mas que faz parte de uma cultura própria, diferente daquela da qual participa. Essa integração faz com que o leitor incorpore a realidade da obra às suas próprias experiências pessoais, numa espécie de jogo em que a realidade e a ficção (ambas, no fundo, representações cognitivas, mentais) se misturam na composição última do fazer literário. Fazer este que, frise-se, é sempre acompanhado de uma consciência aguda de que em ambos os casos, no jogo ou na obra literária, há a inevitável criação de “um mundo à parte”, deslocado e diferente da vida real cotidiana. O terreno do jogo é separado com tanta rigidez (estádio, pista, ringue, tabuleiro) para ficar bem claro que se trata de um espaço privilegiado, regido por convenções especiais em que os atos não têm sentido senão neles mesmos. Fora desse espaço, bem como antes e depois da partida, não nos ocupamos mais dessas regras aceitas voluntariamente. O exterior, quer dizer, a vida, é comparativamente uma espécie de selva, de onde podem vir mil perigos (CAILLOIS, 1958, p. 212).11 Neste sentido exposto por Roger Caillois, compare-se, por exemplo, a fruição de uma partida de futebol e a leitura de um poema ou um romance qualquer e veja-se a circunstância de ambas as experiências realizarem-se, tanto na sua fruição quanto na sua realização efetiva, amparadas pela delimitação de um espaço e tempo determinados, com um começo, meio e fim pressupostos (embora não previsíveis) e permeadas por uma pausa, uma suspensão das coisas cotidianas da vida real, uma descontinuidade, um intervalo que damos no fluxo normal da existência. 12 11 Não é por outra razão, senão imbuído dessa mesma concepção da literatura (e da vida) como um grande jogo – na forma e conteúdo – que o crítico Maximiano Campos, assim se expressa, ao analisar o elemento ‘fantástico’ em Ariano Suassuna, no posfácio ao livro A Pedra do Reino, do escritor paraibano: “Pois o mundo de Quaderna, o personagem de A Pedra do Reino, está nessa sua visão fantástica: ‘Sou um grande apreciador do jogo do Baralho. Talvez por isso o mundo me pareça uma mesa e a vida um jogo [...]’. Quaderna sabia que o mundo é um jogo onde todos nós pagamos a entrada com a vida. Nesse jogo, os que fizerem mais pontos e os que souberem perder sem trapaças são aqueles que serão dignos de estar na cartola dos grandes mágicos: Deus e o Diabo, os senhores da desdita e da sorte”. Cf. SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta. Pósfácio. 8. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. p. 750. 12 A escritora espanhola, Rosa Montero, faz também um paralelo elucidativo do ato de escrever com o ato de amar, que em tudo prolonga a nossa analogia do jogo (no nosso caso, o futebol, e no caso dela, o fenômeno amoroso) com a literatura. Diz ela: “[...] a paixão amorosa e o ofício literário têm muitos pontos em comum. 38 É o esporte, pois, assim como a literatura, nesse nosso entendimento, uma esfera de atuação humana demarcada por notável autonomia. Primeiro porque, nos explica Roberto Da Matta, “é uma esfera marcada por normas, gestos, valores, objetos, espaços e temporalidades muitos especiais”. Segundo porque, continua seu raciocínio o antropólogo, “o esporte – como a arte – é uma atividade que possui uma clara auto-referência, não estando a serviço direto ou explícito dos valores que constituem o mundo diário do trabalho, do dinheiro e do controle”. Assim, conclui ele para arrematar com uma questão tão reveladora quanto enigmática para o nosso estudo: “Para que serve a arte ou o esporte?” (Da MATTA, 1982, p. 13.) Antecipando-nos às respostas dadas pelo antropólogo a sua própria pergunta, diríamos que certamente servem para alguma coisa a arte e o esporte na sociedade dos homens. Mas acolhamos de princípio o seu raciocínio no desenvolvimento da questão proposta. Depois de ressaltar que diferentemente do trabalho, que tem uma relação direta com o “dever” com a “obrigação”, com o “castigo”, com o “pecado” e com a “dureza da vida”, ele contrapõe que o esporte é uma atividade paradoxal porque não é produtiva no sentido radical de provocar uma transformação da natureza e da sociedade. Donde se conclui, portanto – a considerar literalmente suas palavras–, que o esporte e a arte são esferas da vida que negam o utilitarismo dominante. Daí a sua dimensão de promover, ao invés da sofreguidão exigida pela lógica do lucro, do trabalho, do êxito a todo custo – componentes essenciais das estruturas da vida na sociedade burguesa moderna –, um efeito de pausa, feriado, descontinuidade, na conexão dessas estruturas, porque a arte proporciona o “consolo metafísico [...] de que a vida, no fundo das coisas, apesar de todas as mudanças de aparências, é indestrutivelmente poderosa e alegre” (NIETZSCHE, 1992b, p. 7). E Roberto Da Mata chama a atenção para um aspecto fundamental dessa questão, que diz respeito diretamente a esse nosso caso em análise: Se o objetivo do trabalho é enriquecer a sociedade, transformando-a em corpo poderoso, o alvo do esporte é muito mais difícil de estabelecer. Tudo indica que o esporte tem um lado instrumental ou prático que permite ‘fazer’ coisas e promover riqueza; mas ele tem também um enorme eixo expressivo e/ou simbólico que apenas De fato, escrever romances é a coisa mais parecida com apaixonar-se que já encontrei (ou melhor, a única coisa parecida). [...] Por exemplo: quando você está mergulhado numa paixão, vive obcecado pela pessoa amada a ponto de ficar o dia inteiro pensando nela; escova os dentes e vê seu rosto flutuando no espelho, está dirigindo e confunde a rua porque foi perturbado por essa lembrança, tenta dormir à noite e, em vez de deslizar até o interior do sono, você cai nos braços imaginários do seu amante. Pois bem, enquanto está escrevendo um romance você vive nesse mesmo estado de delicioso alheamento: seu pensamento é inteiramente ocupado pela obra, e toda vez que dispõe de um minuto, mergulha mentalmente nela. Também se engana de esquina no trânsito, porque, igualzinho ao apaixonado, sua alma está entregue e em outro lugar”. Cf. MONTERO, Rosa. A louca da casa. Trad. Paulinha Wacht e Ari Roitman. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. p. 9-10. 39 diz e, como os rituais, revela quem somos (Da MATTA, 1982, p. 13). Entendemos que por dizer (e dizer muito sobre nós como o faz a literatura) –, e nessa operação simbólica revelar quem somos, interessa-nos, sobretudo, compreendermos a dimensão narrativa do esporte, a sua condição de esfera produtora de sentidos sobre o homem, tópico sobre o que trataremos a seguir. 2.2 Esfera, metáfora e metonímia: os sentidos do jogo O sucesso histórico da prática do futebol no Brasil junto com a sua massificação gerou, por várias razões, a construção, dentro desse contexto, de uma narrativa positiva sobre o nosso país. O futebol passou a ser visto, por parte da intelectualidade brasileira, como um desses espaços de sintetização da cultura nacional, isto é, local de assimilações, de encontro entre classes antagônicas, de cadinho das diferentes raças e tradições culturais que diferenciam o Brasil das outras nações, na visão, por exemplo, de um sociólogo como Gilberto Freyre.13 Segundo ele, o nosso estilo de jogar futebol parece contrastar com o dos europeus por um conjunto de qualidades que o diferencia sobremaneira, a exemplo do domínio da surpresa, da manha, da astúcia, da ligeireza, da espontaneidade individual etc. Os nossos passes, os nosso pitu’s, os nossos despistamentos, os nossos floreios com a bola, o alguma coisa de dança ou capoeiragem que marca o estilo brasileiro de jogar futebol, que arredonda e adoça o jogo inventado pelos ingleses e por eles e por outros europeus jogado tão angulosamente, tudo isso parece exprimir de modo interessantíssimo para psicólogos e sociólogos o mulatismo flamboyant e ao mesmo tempo malandro que está hoje em tudo que é afirmação verdadeira do Brasil (FREYRE, 1938, p. 16). Por outro lado, no campo das representações lingüísticas dos fenômenos sociais, constatamos que a narrativa sobre a cultura ou o tipo de civilização que estamos construindo ao longo do tempo, tende a confundir-se, pelo menos desde o final do século XIX, quando o jogo de futebol aqui aportou vindo da Inglaterra, com o que deve ser o próprio futebol, o Brasil e os brasileiros, no chamado concerto das nações. As singularidades nos modos brasileiros de jogar futebol foram elaboradas em densas narrativas até se tornarem marcas de autenticidade, de diferença, de distinção (externa: em relação ao outro, o estrangeiro; e interna: em relação a nós mesmos), na heterogeneidade de nossa formação social; em resumo, de nossa identidade. O estilo de jogo passou a ser – e 13 Cf. SOARES, Antônio Jorge; LOVISOLO, Hugo Rodolfo. Futebol: a construção histórica do estilo nacional. In: Revista Brasileira de Ciência dos Esportes. Campinas. v. 25, n. 1, p. 129-143, set. 2003. 40 ainda é, como já frisamos – tema da elaboração de literatos, intelectuais e jornalistas de prestígio na sociedade brasileira. Como bem situa o historiador Leonardo Affonso de Miranda Pereira (2000) 14, ao abordar os primórdios da sua prática em território brasileiro em seu importante estudo sobre o tema intitulado, Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro – 1902/1938, o futebol é um jogo que realizou um percurso histórico muito peculiar no Brasil ao permitir que um simples passatempo se transformasse em um verdadeiro fenômeno de cultura com caráter e extensão nacionais. Sem ver necessariamente nele os encantos que atualmente nos parecem muito naturais, os contemporâneos de Cox [Oscar Cox, um dos introdutores do futebol no Brasil]15, poderiam olhá-lo como um jogo brutal e sem sentido – no qual onze homens, correndo de um lado para outro atrás de uma bola, lutavam contra outros onze para fazê-la passar por debaixo de três balizas de madeira. Para os jovens que o praticavam, porém, ele parecia ser muito mais do que isso. Se a vitória da campanha de Cox em favor do futebol foi indiscutível, ela não pode ser explicada pelo simples poder de sedução de disputa da bola. [...] O sucesso alcançado pelo jogo nos seus primeiro anos no país por entre esses círculos da juventude refinada apresenta-se, desta forma, como um fenômeno a ser explicado (PEREIRA, 2000, p. 23-4). Portanto, se já nos seus primeiros passos em terras brasileiras, momento em que era um esporte alienígena e elitista, o futebol ensejava sentidos que vão além da sua fruição concreta no campo de jogo – ao menos para os ilustres membros das classes abastadas que o trouxeram da Inglaterra –, imagine-se, agora, quando decorrido um pouco mais de um século de sua prática alucinante e apaixonada, em que ganhou significação social de dimensão imensurável no nosso País, a ponto de poder ser compreendido (e explicado) como uma “atividade que indubitavelmente promove sentimentos básicos de identidade individual e coletiva entre nós” (MURAD, 1996, p. 123), o quanto nesse jogo se reconhece e se exprime o povo brasileiro nas suas mais diferentes formas de atuação cultural. É, portanto, lembremos mais uma vez, nessa direção que pretendemos abordá-lo aqui. Como um fenômeno complexo de comunicação e partilha de sentidos vários que vão desde o seu significado próprio como jogo e esporte de dimensão artística16 até – e, talvez, por 14 Ver o desenvolvimento do pensamento do autor exposto nessa obra, ainda neste capítulo, à página 52 e seguintes. 15 Ver nota 22, à página 50. 16 Neste sentido, ver o instigante ensaio do professor e pesquisador do esporte, Victor Andrade de Melo, intitulado “Esporte e arte: a natureza do diálogo”. Neste texto, em que analisa o esporte pelo âmbito da Estética, o autor retoma as idéias de dois outros autores importantes desta relação (WELSH, Wolfgang. “Esporte – visto esteticamente e mesmo como arte?”. In: ROSEFIELD, Dênis (Org.). Ética e Estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001; e GRAHAM, Gordon. Filosofia das artes. Lisboa: 70, 1997) que apontam as diferenças e similaridades entre essas duas esferas da cultura moderna – e conclui categoricamente que o esporte é mesmo uma forma de arte: “Creio que ao afirmar que compreendo o esporte como uma forma de arte, a ‘oitava arte`, trabalho em vários sentidos: de chamar a atenção para certos preconceitos que podem ainda persistir; de compreender melhor epistemologicamente o fenômeno esportivo; de perceber de maneira 41 isso mesmo – à sua apropriação pelos refinados produtores da cultura letrada, os escritores, quando o tomam como tema das suas representações ficcionais da realidade social vivida pelo nosso povo na relação com o seu meio. Serviremo-nos, para esta finalidade, de dois conceitos operacionais de fundamental importância: a idéia de representação social, retirada do campo da sociologia, mais precisamente das teorias sociológicas de um pensador clássico da área, o francês Émile Durkheim (que oportunamente cotejaremos com as formulações de um outro estudioso do conceito, o autor romeno Serge Moscovici, pesquisador este oriundo do campo da Psicologia Social), e a noção de representação literária, elaborada por vários pensadores da esfera da teoria e críticas literárias. Faremos, portanto, um cruzamento das abordagens sociológica, psicossocial e semiológica destes dois conceitos diferentes, mas em tudo complementares entre si. Começaremos dizendo, neste sentido, que representar é tão antigo para o homem quanto pensar. Ou dito de outra forma: a faculdade ou o ato de pensar na espécie humana, ao menos a produção e exteriorização do pensamento, é em tudo inseparável da idéia de representar, entendida esta no amplo contexto em que a relação do homem com o mundo e com os outros homens só pode se dar através da mediação da linguagem, o que coloca de imediato a consideração da relevância desta questão (a da linguagem) na constituição da sua consciência individual e coletiva. Amplamente reconhecida pela filosofia e pelas ciências humanas, a questão da representação que o homem faz da realidade (de si mesmo e do meio que o cerca) já tem sobre si o acúmulo de uma considerável história de reflexões elaboradas. Como não poderia deixar de ser, essa história reflete a própria situação dúplice do homem no mundo em que vive, onde ora ele se vê (e é visto) como sujeito (um corpo material dotado de uma configuração simbólica sui gêneris que o torna ator mais ou menos consciente da sua ação mais precisa e multifacetada sua ocorrência social; e fundamentalmente de argumentar que seu diálogo com a arte se deu no nível de linguagens similares que trocaram, se interpenetraram. Se a arte foi importante para o esporte, o esporte também o foi para a arte”. Cf. MELO, Victor Andrade de. Cinema & esporte: diálogos. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2006. p. 51-2. Ver também, nesta mesma direção, o belo texto do também pesquisador do tema, já citado nesse trabalho, José Miguel Wisnik, intitulado, “Prosa e poesia”, em que ao comentar algumas idéias do cineasta italiano Pierre Paolo Pasolini, manifestadas no contexto da Copa do Mundo de 1970, no México – quando este interpreta o futebol através das categorias da literatura–, assim observa: “A comparação com a literatura, no caso, não é simples e unívoca, mas duplamente irônica. Por um lado, conhece-se bem a imensa diferença e a defasagem entre a cultura literária alta e a cultura tida por puramente física de um esporte de massas (ninguém está aqui para negá-lo). Mas, por outro, essa diferença é re1ativizá- ve1, de um certo ângulo, dada a gama de sutileza e inteligência que entram no futebol, expressando-se contra a força física e por meio dela, através de uma profusão de elementos que se aproximam da literatura como matéria e como forma”. Cf. WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 117. 42 modificadora de si mesmo e do seu meio, na relação que mantém com os outros homens) e como objeto – um algo físico que está aí no mundo para além da sua vontade e ação, submetido a leis que nem sempre compreende e domina. Ou seja, a história dos estudos sobre a representação no mundo humano tem compreendido pelo menos quatro sub-questões a ela correlatas: o âmbito da subjetividade (uma reflexão cognitiva, vinculada tão somente à experiência individual da consciência no seu “despertar” para o mundo; o âmbito da correspondência da representação com a realidade representada (o da fidelidade da representação – [signo] – em relação ao seu objeto; o problema da objetividade das coisas, sejam elas materiais – as coisas representadas – ou imateriais (as próprias representações) onde, então, o enfoque subjetivo cede lugar a uma reflexão que prima pela objetividade (agora a representação é interpretada como fenômeno inscrito na história, nas relações materiais, na vida social) e, por último, o reconhecimento da subsunção destes dois âmbitos a uma terceira via, a da intersubjetividade “em que ambas as esferas se fazem presentes, com maior ou menor ênfase no conflito ou na integração”.17 Dito isto, tomemos de início o conceito de representação tomado no seu sentido sociológico. Antes, contudo, definamos, em termos de uma generalidade abstrata, perspegando sua acepção filosófica, o que é a representação, o ato de representar que é peculiar ao ser humano: Representar tem vários sentidos. Em primeiro lugar, designa-se com este termo aquilo por meio do qual se conhece algo; nesse sentido, o conhecimento é representativo, e representar significa ser aquilo com que se conhece alguma coisa. Em segundo lugar, por representar, entende-se conhecer alguma coisa, após cujo conhecimento conhece-se outra coisa; nesse sentido, a imagem representa aquilo de que é imagem, no ato de lembrar. Em terceiro lugar, por representar entende-se causar o conhecimento do mesmo modo como o objeto causa o conhecimento (ABBAGNANO, 2000, p. 853). Ou em termos semióticos, para aclarar mais ainda o conceito, representar é formar na mente (substituir) uma imagem, uma idéia, um conceito, um objeto, a partir da relação automática entre os atos de sentir e perceber as coisas do mundo real (ou imaginário), as suas sensações, as relações entre as coisas de que se formam, e a constituição de um senso, um juízo, uma ação disto resultante, seja em termos socialmente pragmáticos, na forma de uma conduta, ou cognitivamente concretos, na sua expressão via linguagem. Ressaltando que o processo de representação que o homem faz da realidade, 17 Apropriamo-nos aqui das idéias da socióloga Roseane Xavier, expostas no ensaio Representação social e ideologia: conceitos intercambiáveis?, em que a autora faz um produtivo e inteligente cotejo teórico entre os conceitos de representação social e ideologia. Cf. Revista Psicologia & Sociedade, Porto Alegre, v. 14, n. 2, p. 18-47, jul/dez. 2002. 43 descrito acima, é simultaneamente individual e coletivo, a sociologia de Èmile Durkheim defende que a associação dos homens (indivíduos), sua síntese, produz um todo (realidade social) que se sobrepõe às partes que o formam.18 Essa realidade sui generis é o que ele chama de consciência coletiva, na qual são eliminadas ou minimizadas as diferenças individuais, dando lugar a uma “unidade” cuja vida se manifesta pela constituição e ação de “representações coletivas”. Os modos de agir individuais, o sentir e o pensar socialmente são, pois, "efeitos" psíquicos, provocados pelos "meios próprios da consciência coletiva" em sua ação sobre os indivíduos. As representações sociais são, pois, segundo o pensador francês, a maneira pela qual uma comunidade se percebe a si mesma em suas relações e sua incidência se dá tanto sobre o corpo (do indivíduo, mas também da coletividade) quanto do seu espírito (DURKHEIM, 1980, p. 26). Para Durkheim, portanto, as representações coletivas teriam uma existência concreta, uma “materialidade” que se manifestaria não apenas no comportamento dos membros de uma sociedade, por meio da socialização e internalização de valores, mas na estrutura jurídica e organizacional de uma formação social, nos mecanismos de controle social, nos critérios e formas de sanção e recompensa etc. As representações coletivas dariam sustentação a uma moral específica, um ethos, “necessária ao corpo social”, materializando-a, objetivando-a e naturalizando-a, desempenhando, assim, o papel de amainar ou até mesmo eliminar a contradição entre o individual e o coletivo, mantendo a ordem e o equilíbrio social. O autor traça, dessa forma, uma linha rígida entre o individual e o coletivo, o mental e o social, com clara prevalência do segundo (o coletivo) sobre o primeiro (o individual), na explicação dos fenômenos e da ação social. Ou seja: o todo (o corpo social, a sociedade) é maior do que a soma das partes, pairando uma espécie de essencialidade do coletivo sobre o individual, na medida em que o indivíduo só é entendido, definido, na sua dimensão de ser social. A concepção de representação social em Durkheim é, portanto, essencialista (há uma determinação impositiva do caráter do social sobre o individual, porque “as 18 Exemplo prático do que está acima explicado, em termos teóricos, é dado pelo escritor Afrânio Peixoto quando ele conta aos seus leitores a primeira vez em que se aventurou a ir a um campo de futebol (para voltarmos ao nosso tema), em um jogo entre uma equipe nacional e uma estrangeira. Sobre isso ele anota: “Os latinos que para aqui vieram, seriam, como todos os latinos, desapegados uns dos outros, incapazes de cederem, na independência de cada um, as cotas que somadas dão a vantagem do povo, a vitória nacional. Os outros, não... Germanos – por instinto, anglo-saxônicos por educação, são disciplinados... Um homem não vale senão como fração da sociedade; um jogador não existe, mas apenas parcelas do team. E essa longa colaboração, na raça e no indivíduo, fazem (sic) constantemente o êxito final, de todas suas empresas. No Sport como na vida”. Tais observações do escritor resumem, a nosso ver, o que está acima proposto nos conceitos de “totalidade social”, “consciência coletiva” e “representações coletivas” através do que os homens se enxergam uns aos outros no seu meio sócio-cultural. Cf. PEREIRA, 2000, p. 210. 44 representações coletivas, embora produzidas por ações e reações entre os indivíduos, deles são independentes”; funcionalista (serve para eliminar a contradição entre o caráter individual e coletivo dos seres humanos) e integracionista (na medida em que é através dela que se forma a ‘consciência coletiva’, que sedimenta a unidade do social, acima já explicitada). A noção de representações sociais de Èmile Durkheim é, portanto, muito próxima do conceito de ideologia desenvolvido por pelo menos dois autores também importantes no agendamento da discussão dessa noção fundamental para o campo das ciências sociais: Terry Eagleton e Antônio Gramsci. No seu livro Ideologia: uma introdução, Terry Eagleton (1997, p. 15) começa a responder à pergunta que dá nome ao primeiro capítulo da obra – “o que é ideologia” –, enumerando pelo menos dezesseis sentidos deste conceito, levando em conta seu caráter político ou epistemológico. No que tange a esse segundo aspecto e ao nível cognitivo que o informa, fiquemos, para melhor entendermos a relação que vemos entre representações sociais e ideologia, com apenas dois deles assim descritos: “processo de produção de significados na vida social” ou “processo pelo qual a vida social é convertida em uma realidade natural”. Em decorrência e a nosso ver, Antonio Gramsci complementa essa relação dos dois conceitos quando em seu livro Concepção dialética da história (1978) toma o seu nível performativo e defende que a ideologia “organiza a ação pelo modo segundo o qual se materializa nas relações, instituições e práticas sociais e informa todas as atividades individuais e coletivas” (GRAMSCI, 1978, p. 377). Por outro lado, em Serge Moscovici, um estudioso do campo da Psicologia Social, o conceito de representação social de Durkheim ganha outra dimensão, segundo a socióloga Roseane Xavier. Na sua análise do conceito, ela explica que Moscovici apropriou-se da noção durkheimiana, modificando-a e utilizando-a como idéia fundadora de um novo continente de pesquisas. E isto se deu, segundo ela, porque primeiro ele retirou do conceito de Durkheim o peso da ontologia social, mudando o seu campo de aplicação, agora situado a meio caminho entre o social e o psicológico; segundo, porque inscreveu no conceito uma consistência cognitiva bastante acentuada; terceiro, porque delimitou especificamente o seu campo de ação, ou seja, o cotidiano; e, por último, porque especificou a representação como uma forma de conhecimento particular, relacionado com o senso comum, com a interação social e com a socialização. As principais características das representações sociais são, pois, segundo o conceito de Moscovici, a funcionalidade e o caráter performativo, uma vez que são elas (as representações) que organizam a realidade vivida pelo homem. 45 No nível funcional, as representações são, então, “uma modalidade de conhecimento particular”, que têm por finalidade a elaboração de comportamentos e a comunicação entre os indivíduos. O estudo das representações sociais, nessa perspectiva, consiste na análise dos processos pelos quais os indivíduos, em interação social, constroem teorias sobre os objetos sociais, que tornam viável a comunicação e organização dos comportamentos. Já no nível performativo, no âmbito em que elas fundamentam as práticas sociais, as representações podem ser entendidas como um sistema (ou sistemas) de interpretação da realidade que organiza as relações do indivíduo com o mundo e orienta as suas condutas e comportamentos no meio social, permitindo-lhe interiorizar as experiências, as práticas sociais e os modelos de conduta ao mesmo tempo em que constrói e se apropria de objetos socializados. A relevância sociológica do estudo das representações sociais, desse modo, explica Roseane Xavier, está no fato de que elas fundamentam práticas e atitudes dos atores, uns em relação aos outros, ao contexto social e àquilo que lhes acontece. São, portanto, as representações sociais os principais elementos formadores da cultura e, por conseguinte, naquilo que dizem respeito ao nosso objeto de estudo, o futebol – compreendido aqui como fenômeno inscrito no caso brasileiro, em que perpassa todo o nosso modus vivendi, notadamente do início do século XX em diante –, agentes produtores dos sentidos vários que emprestamos ao mundo, que elaboramos sobre nós mesmos e sob os quais em grande medida nos enxergamos como nação específica. Como estudaremos o futebol enquanto tema literário, importa agora entendermos também o conceito de representação literária. Conforme já antecipamos um pouco, este conceito implica compreender que o ato de representar pode dar-se, como já foi observado, em pelo menos duas instâncias básicas: uma no nível social-pragmático (na forma de conduta dos atores sociais), outra no nível cognitivo, na sua origem e expressão via linguagem; ou seja: na forma de um discurso. Importa esclarecer, então, sobre que tipo de discurso estamos falando, já que este termo implica uma enorme gama de acepções quanto ao seu conteúdo e utilização nos vários campos do saber. Fique claro, pois, que tratamos das representações sociais que são agendadas, produzidas e socializadas (tornadas comunicação social) pelo discurso literário, o que de per si pressupõe autores, leitores, intenções explícitas e implícitas e a consciência formal mínima de estruturá-las dentro do campo conceitual que denominamos de uma maneira geral de literatura. O estudo do que venha a ser literatura, contudo, é muito amplo e remonta à 46 antigüidade. Engloba desde os gregos – Aristóteles em sua Poética (1987, p.209) já procurava estabelecer as diferenças entre o discurso histórico e o literário – até os autores contemporâneos que citamos neste trabalho, a partir de uma abordagem que eles fazem da literatura, compreendendo-a, sobretudo, como um discurso que se situa na esfera da arte. Neste contexto, é preciso, antes de tudo, aclararmos a noção corrente que temos de literatura. Para tanto, cumpre-nos apresentar uma ressalva: o princípio que norteará a nossa discussão do fenômeno literário se apóia na idéia de que “a literatura é uma exploração das potências da linguagem ‘a mais intensa possível’” (TODOROV, 1980, p.7). Aqui a teoria dos gêneros (dos gêneros do discurso, bem entendido; não dos gêneros literários como princípio classificador do caráter literário em relação a épocas históricas), que estudaremos mais à frente, nos servirá de apoio. Depois de termos visto a linguagem literária através de seus conceitos e funções (págs. 31 a 35), partiremos, então, agora, de uma abordagem mais geral da questão dos gêneros do discurso – que chamaremos de empírico-impressionista (para a qual “a literatura, nessa concepção, é toda expressão verbal com ênfase nos meios de expressão. Expressão verbal, antes de tudo, pois a palavra é a diferença específica da literatura entre as outras artes. Mas a palavra com valor de fim e não apenas com valor de meio”) – (LIMA, 1990, p.34), e chegaremos a uma visão mais complexa que engloba contribuições teóricas da estética funcionalista, do estruturalismo e da semiologia: Parece evidente que essa entidade [a literatura] – que inclui tanto a conversa corrente quanto o gracejo, tanto a linguagem ritual da administração e do direito quanto a do jornalista e do político, tanto os escritos científicos quanto as obras filosóficas ou religiosas – não é uma só. Não sabemos exatamente quantos tipos de discursos há, mas estaremos facilmente de acordo para dizer que há mais de um. É preciso introduzir aqui uma noção genérica com relação à da literatura: é a de discurso. É o acompanhante estrutural do conceito funcional de ‘uso’ (da linguagem). [...] O discurso não é um, mas múltiplo, tanto nas suas funções quanto nas suas formas: todos sabem que não se deve enviar uma carta pessoal no lugar de um relatório oficial, e que os dois não se escrevem da mesma maneira. Os gêneros literários, com efeito, nada são além de tal escolha entre os possíveis do discurso, tornado convencional por uma sociedade. Por exemplo, o soneto é um tipo de discurso que se caracteriza por coerções suplementares impostas à sua métrica e às suas rimas. Mas não há razão alguma para se limitar essa noção de gênero apenas à literatura: fora dela, a situação não é diferente (TODOROV, 1980, p.20-21). As idéias acima, que utilizamos como arcabouço teórico da nossa abordagem da relação literatura e jornalismo que faremos ao longo deste estudo, deixam claro que a noção de literatura que adotamos é a de um supra-gênero do discurso que possui caráter substantivo e adjetivo, cuja formulação teórica se aproxima dos moldes em que os gêneros literários propriamente ditos são teorizado por Anatol Rosenfeld (1985, p. 17-9). 47 Mas essa não é a única noção de literatura teoricamente válida. A tentativa de se estabelecer um conceito geral sobre o que é literatura, como já frisamos, é histórica. Devido a sua ligação com a arte – porque desde a antigüidade a literatura é entendida como uma forma de arte – comporta tanto seus aspectos estruturais quanto funcionais. Assim, primeiramente entendida (a arte) como imitação, a literatura passou a ser vista também como uma forma de imitação. Mas não uma imitação qualquer, “uma vez que não se imitam necessariamente as coisas reais mas as coisas fictícias, que não precisam ter existido. A literatura é uma ficção: eis a sua primeira definição estrutural” (TODOROV, 1980, p. 13). É essa propriedade da literatura, o seu caráter ficcional – que faz com que o texto literário não se submeta à prova da verdade, já que ele não é verdadeiro nem falso mas precisamente ficcional – que, conforme teoriza Todorov, levou Aristóteles a comprovar, na sua Poética (1987, p. 209), que a poesia conta antes o geral e a história, o particular. Observando, contudo, que é insuficiente essa concepção de literatura porque ela pode estar substituindo uma conseqüência desta – nem ser verdadeira nem falsa, mas apenas ficcional – por sua própria definição, Todorov faz uma ressalva importante: “Nada impede que uma história que relate um evento real seja vista como sendo literária; nada é preciso mudar em sua composição, mas apenas dizer que não estamos interessados em sua verdade e que a lemos ‘como’ literatura. Pode-se impor uma ‘leitura’ literária a qualquer texto: a questão da verdade não será colocada porque o texto é literário” (1980, p.14).19 Passemos desta definição estrutural de literatura como ficção, fundamentada desde a antigüidade, a uma formulação mais moderna (século XVIII) em que o seu conceito é formulado tendo como base a noção do belo, que se cristalizará lá pelo fim do século XVIII, numa afirmação do caráter intransitório e não-instrumental da obra artística. “Com efeito, é na perspectiva do belo que se situará a segunda grande definição da literatura; ‘agradar’ é aqui mais importante do que ‘instruir’ [...] A literatura, enfim, é linguagem não-instrumental, cujo valor está nela mesma, ou como diz Novalis, ‘uma expressão pela expressão’” (1980, p.15). Está aí, portanto, nessa noção funcional do que seja a literatura, segundo Todorov, a base teórica que vai fundamentar todas as tentativas modernas para se criar uma ciência da literatura: do formalismo russo ao New Criticism americano. É a função poética que entra 19 Citamos como exemplos do que aí está dito os vários filmes de ficção sobre futebol que partem de histórias reais, tais como O milagre de Berna (Dir: Sönke Wortmann – Alemanha, 2003), que conta a história de um garoto que foi separado da família durante a segunda guerra mundial e os problemas enfrentados pelo seu pai – por conseqüência, envolvendo todos os outros familiares – para se reintegrar a essa família depois que retornou da Rússia após treze anos de ausência. Tudo isso enquanto, no mundo real, a Alemanha se tornava campeã na Copa do Mundo de 1954, fato que é parte constituinte da trama da história. Ou ainda vários contos ficcionais de andamento parecido, isto é, que partem de histórias reais, elencados no nosso Guia de leitura do tema do futebol no conto ficcional brasileiro, constante do quarto capítulo desse trabalho. 48 como definidora do literário ao enfatizar a sua própria mensagem. E já que estamos falando outra vez de função, convém ampliarmos o ângulo teórico da abordagem e passarmos da noção de função poética da linguagem que, consoante vimos, define agora o literário, para o conceito mais amplo de função estética, já que é esta que faz a ligação da literatura com a esfera da arte. Ao adentrarmos agora à esfera da arte, por conseguinte, lembremos da sua forma típica de comunicação de que já tratamos antes, a comunicação estética (ver p. 25), e de como ela é estruturada, configurada, a partir da função estética da linguagem, que, como vimos, liga o homem à esfera da beleza. Como a espécie humana tem uma experiência de vivência do tempo distintivamente diferente da de outras espécies vivas, e como manifesta esta diferença na linguagem, basicamente pelo hábito de narrar, criar narrativas sobre si próprio e outros mundos, em suma, pelo costume intrínseco de fabular o real, a forma narrativa de representar é nele a maneira historicamente preponderante, o que levou, inclusive, a um estudioso como Fredrick Jameson a considerá-la mesmo “uma instância central da mente humana e um modo de pensar tão cabalmente legítimo como o do pensamento abstrato” (apud WHITE, 1994, p. 47) . Neste contexto, segundo a teoria tropológica da linguagem, por exemplo, a forma narrativa pode ser – e vem efetivamente sendo –, quanto a este propósito, amplamente reconhecida como um modo discursivo cujo conteúdo é sua própria forma: Dentro desta visão, a narrativa pode ser caracterizada como um tipo de discurso no qual a sinédoque funciona como o tropo dominante para "amarrar" (grego: sinédoque; latim: subintellectio) as partes de uma totalidade, apreendida como estando dispersa por uma série temporal, num todo, segundo o modo da identificação. Esse modo do discurso pode ser diferenciado daqueles nos quais as partes de um todo aparente se relacionam umas com as outras por semelhança (metáfora), contigüidade (metonímia) ou oposição (ironia ou catacrese) (WHITE, 1994, p. 18.). É neste sentido que encaramos aqui, conforme já explicitamos as razões, as narrativas do e sobre o futebol como constitutivas da esfera de dois campos privilegiados (a literatura e o jornalismo) para analisá-las como representações legítimas da expressão cultural – ao mesmo tempo sociológica e artística, portanto – do povo brasileiro na sua vivência social do cotidiano. Seja no efeito metafórico que comporta, “pois o futebol é metáfora privilegiada da vida em sociedade, de imagem cultural, de representação das multidões” (MURAD, 2007, p.147) do qual apresentamos o seguinte exemplo genérico, através de um estudioso do futebol, o escritor José Miguel Wisnik, quando este relembra os triunfos do Brasil em copas 49 do mundo e compara uma figura do futebol a uma outra de nossa literatura: 1962 é uma espécie de extensão de 1958. Garrincha tomou a responsabilidade para si e, em vez de só driblar e passar, fez gol de falta, de cabeça, lançamento de 40 metros. Foi uma revelação. Justamente ele que parecia um irresponsável, um inconseqüente, o Macunaíma. [...] Na copa seguinte, nova derrota, mas em 1970 vem a consolidação. Novamente a história de Macunaíma. O herói em lendas populares, tem que lutar três vezes para obter o triunfo. No caso da Copa, a taça Jules Rimet é a muiraquitã. Macunaíma ganha a Muiraquitã e depois perde, roubam dele. O Brasil consegue ganhar a copa mais desejada, invejada por todo mundo, e não foi capaz de guardá-la em si. Guardou a cópia da taça, expôs a original e aquilo foi roubado e derretido. É o ciclo macunaímico do futebol brasileiro (WISNIK, 2008b, p. 15).20 Seja na dimensão metonímica que elas contêm, cuja efetivação prática na linguagem apresentamos também aqui, nas palavras do mesmo Wisnik quando ele comenta o célebre episódio da convulsão do jogador Ronaldo, o fenômeno, na Copa da França de 1998: A convulsão de Ronaldo é um desses episódios que só a literatura trata, porque não tem explicação. A cabeça do cara que é o número um entra em convulsão. Na final de 2006, vem à tona novamente a cabeça do número um, agora com Zidane. O número um não suporta a pressão e pira. O acontecimento mais significativo de 2006 é a cabeçada no zagueiro italiano. Não é um gol, uma jogada, mas a cabeçada. Isso diz mais daquela copa do que qualquer jogo (WISNIK, 2008b, p. 15). Como vimos, o futebol é um excelente meio – de caráter democrático e popular, através das ricas representações que cria –, de o brasileiro falar e expressar a si mesmo e aos outros, elaborando um rico universo significacional de mão dupla, argutamente definido pelo sociólogo Maurício Murad nesses termos: “A reciprocidade analítica entre o futebol e o país é temática e estilística. [...] O conhecimento do Brasil passa pelo futebol. Por meio do Brasil, se conhece melhor e mais profundamente a complexidade futebolística. Um país que tem o samba, a capoeira, o frevo, o chorinho, tem de jogar futebol diferente” (MURAD, 1996, p.21- 22). E acrescentaríamos ainda: tem também de ser diferente. Em termos do que ele deve representar para nós mesmos (na configuração de uma identidade nacional na qual nos reconheçamos plenamente como brasileiros) e para os outros povos, através dos significados culturais que inventa, entre outros, por meio desse esporte. 20 Vale lembrar que a taça Jules Rimet, criada no Congresso da FIFA de 1928, como prêmio pela conquista da primeira Copa do Mundo de Futebol, foi roubada duas vezes em sua história: na Inlaterra, que sediou a Copa de 1966, ocasião em que o troféu foi colocado em exposição no Center Hall de Westminster, em Londres, junto a uma exposição filatélica, tendo desaparecido no dia 20 de março daquele ano, e no Brasil, quando já ganha de forma definitiva pelo nosso país, por termos conseguido de forma inédita o terceiro título mundial de futebol, foi levada da sede de CBF, no Rio de Janeiro, em 20 de dezembro de 1983. Quanto a esse episódio, registrem-se a incúria e o desvelo para com o troféu, o que fez com que uma réplica sua fosse trancada num cofre por parte da CBF, enquanto a taça original ficasse exposta ao público sem muita segurança. 50 2.3 No tempo da bola: disputando significados A história da chegada, desenvolvimento e consolidação da prática do futebol no Brasil é, como toda narrativa de cunho coletivo, cercada de certa controvérsia, uma vez que é produto de várias versões contadas ao longo do tempo. A ciência da História, por exemplo, a vem contando a par de pelo menos três ângulos metodológico-conceituais diferentes. Isso implica maneiras diversas de abordagem de um mesmo tema e seu acolhimento sob grades teóricas diferenciadas, o que, no limite, se traduz sob a definição conceitual de três campos até o presente muito bem configurados quanto a este objeto de estudo: a historiografia oficial, que é aquela escrita do passado que se limita a pesquisar os acontecimentos a partir das fontes escritas produzidas pelas instituições com base no encadeamento lógico-causal dos seus conteúdos singulares; a história sociológica, que implica em dar ao fato social uma dimensão diacrônica, sem abandonar os princípios teóricos da sociologia que foram sendo incorporados a partir da contribuição comteana à filosofia da ciência; e a história social, que enfatiza a predominância do social em face do individual, optando pelo estudo do coletivo e das relações sociais como elementos representativos da experiência humana no tempo. Pelo ângulo da historiografia oficial, a versão mais conhecida e consagrada da introdução do futebol no Brasil é aquela em que aparece o nome do brasileiro filho de ingleses, Charles Miller, como o pioneiro da inserção do jogo na nossa pátria. Miller ao retornar da Inglaterra onde fora estudar, trouxe na bagagem duas bolas de futebol, um livro de regras e o material necessário para a prática do jogo a que tomou a missão de difundir entre os seus colegas paulistanos lá por volta de 1894. Preferimos, todavia, adotar para este trabalho, mesmo nesse campo historiográfico, a versão que nos parece mais próxima da verdade histórica, tanto no apoio metodológico que ela tem de amplo material documental factualmente verificável quanto na sua validade interpretativa plenamente convincente. Por esta versão que adotamos, os primórdios do futebol no Brasil compreendem inicialmente as datas entre 1879 e 1894 (SANTOS NETO, 2002, p. 15), quando padres jesuítas do Colégio São Luis de Itú, São Paulo, em consonância com as demandas de uma reforma na instrução pública sob responsabilidade do Império21 empreenderam uma reformulação educacional naquele estabelecimento de ensino na qual incluíram a prática do futebol, o que se deu em duas fases: 21 Ver discussão do parecer a este respeito, intitulado “Reforma do Ensino Primário e das Instituições Complementares de Instrução Pública”, do deputado Rui Barbosa, apresentado à Câmara do Império em 1882, em PEREIRA (2000, p. 42) – listado na bibliografia ao fim deste trabalho. 51 Até 1887, padres e alunos jogavam juntos. Mas não praticavam o chamado association football, que pressupõe a formação de dois times e a existência de um conjunto de regras, mas sim um bate bola na parede, chamado de “bate bolão”. Isso fazia parte de uma estratégia gradual de apresentação do esporte aos alunos. [...] Então, em 1894, teve início o mandato do novo reitor, o padre Luís Yabar. [...] A partir daí, o futebol deixou de ser uma brincadeira de chutes na parede e se aproximou do jogo que conhecemos. [...] Os times uniformizados começaram a ser compostos por 11 jogadores, a dispor de um campo adequadamente dividido e de traves de madeira delimitando os goals. [...] Os jogos eram geralmente realizados em Vila Maria, uma chácara pertencente ao colégio, e, entre 1894 e 1895, os jesuítas estabeleceram o título simbólico de campeão de futebol para o aluno que mais se destacasse durantes as partidas (SANTOS NETO, 2002, p. 19-30). Esses pormenores da chegada do futebol no Brasil são contados com detalhes pelo historiador José Moraes dos Santos Neto num trabalho documentado e rigoroso que tem como objetivo evidente discutir os meandros contextuais que levaram a se formar em torno da figura de Charles Miller uma “história oficial interessada pelas elites” do esporte mais querido dos brasileiros. Sobre este aspecto do seu trabalho conclui taxativamente o autor: Não foi Charles Miller o responsável pela introdução do esporte no país e nem por sua popularização; aliás, algo assim jamais ocorre exclusivamente por iniciativas individuais. [...] Portanto, no que se refere à paternidade do futebol brasileiro, não é preciso nenhum exame de DNA para se concluir que o pioneirismo de Miller reside no fato de ter iniciado a prática do futebol dentro de um clube, estimulando os outros a praticá-lo também. Com isso, teve início um segundo momento do processo de introdução do futebol em nosso país. O esporte saiu dos colégios, assumiu um caráter explicitamente competitivo (o que decerto tornou mais difundido o conhecimento de suas regras e mais rigorosa a observância das mesmas) e ganhou a posição de esporte preferido da elite paulistana (SANTOS NETO, 2002, p. 30).22 Quanto a uma possível história sociológica do futebol brasileiro, dentre os vários posicionamentos postos à luz no difícil enfrentamento do tema da significação social deste esporte para o País, assumiremos aqui a defesa de um dos seus ângulos de abordagem a nosso ver mais produtivos no tocante também à sua pertinência analítica e validade dos resultados. Entre a visão culturalista e tradicional de inspiração freireana com base documental na obra do jornalista Mário Filho (O negro no futebol brasileiro) e a postura pretensamente cientificista (antitradicionalizante) de Antônio Jorge Soares (Futebol, raça e nacionalidade no Brasil: releitura da história oficial), optamos por adotar como apoio teórico uma visada que, 22 Na história dos primórdios da introdução do futebol no Brasil, é importante destacar também a figura de outro brasileiro filho de europeu: Oscar Cox, que está para a história da introdução do futebol no Rio de Janeiro assim como Charles Miller está para a de São Paulo, figurando os dois, por conseguinte, como grandes pioneiros da difusão do esporte bretão no Brasil. Sobre a importância de Oscar Cox nesse processo consultar: Pereira (2000, Cap. 1. p. 21/86). E sobre a versão que destaca a figura pioneira de Charles Miller, embora já admitindo a presença também de instituições educacionais católicas de Petrópolis, no Rio de Janeiro, consultar também “O futebol no Brasil”. ROSENFELD, Anatol. Revista Argumento, n. 4, Paz e Terra, 1973, Rio de Janeiro, p. 62/66. Ainda sob este aspecto do pioneirismo dos jesuítas na difusão do futebol no Brasil, consultar ainda DUARTE (2004, p. 219- 220). 52 confrontando as duas anteriores, se define por negar que a cultura seja um campo de construção de harmonias e consensos e sim “um meio de efetivação de disputas e embates entre diferentes práticas e tradições, [que] procura na experiência de sujeitos diversos as múltiplas possibilidades de significados que se engendravam no próprio processo de construção da nacionalidade” no Brasil do início do século XX (PEREIRA, 2000, p.18). Essa postura teórica é brilhantemente sustentada pelo historiador Leonardo Affonso de Miranda Pereira no seu livro já citado, e por partir da leitura atenta dos seus antecessores na pesquisa do tema, cremos que é também, junto com a de Waldenyr Caldas (1990, p. 19-29), que procurou “entender com clareza a trajetória desse esporte em nosso país, bem como analisar as causas e os fatores que o transformaram numa exceção muito distante da realidade dos outros esportes no Brasil”, a mais apropriada para o campo dos estudos históricos do futebol, justamente por relacionar os fatores condicionantes do tempo com os vetores condicionantes do espaço social em que se deram as verdadeiras batalhas históricas iniciais do jogo preferido dos brasileiros. E aqui, mais uma vez, o aspecto metonímico está presente na trama histórica desse esporte de forma exemplar: ao se debruçarem sobre períodos específicos da trajetória do futebol em cidades como o Rio de Janeiro (Leonardo Pereira – período de 1902 a 1938) e São Paulo (Waldenyr Caldas – época entre 1894 e 1933), os dois historiadores acabaram por formar um extenso painel analítico do futebol brasileiro extensivo a todo o País, no que ele tem de simultaneamente abrangente e pontual. De outra parte, como dissemos acima – quando estudamos o processo de chegada, efetivação e consolidação da prática do futebol no Brasil, analisado, por exemplo, por uma disciplina como a História Social –, verificamos que os significados que a nossa sociedade foi atribuindo ao jogo ao longo do tempo (sociedade extremamente heterogênea do ponto de vista étnico e fortemente desigual no âmbito tanto social quanto econômico e político) têm expressado também a dimensão metonímica a que aludimos antes, embora considerada esta agora pelo seu viés temporal. Esse processo, que corresponde mais ou menos ao conjunto das representações sociais que fazemos hoje do futebol brasileiro para nós mesmos, é, no seu cume, assim definido pelo historiador Leonardo Affonso de Miranda Pereira: Ao transformar o esporte em uma prática definidora da cultura local, esse processo faz os brasileiros se auto-representarem como os mestres supremos do futebol – a partir da suposição de um talento para o jogo que, aparecendo como uma característica quase natural, confirmaria e daria um sentido inquestionável ao sentimento de identidade que une os habitantes do país (2000, p. 14). 53 Embora relativamente verdadeira, essa visão totalizadora que temos do futebol brasileiro como um campo cultural em que expressamos uma reconhecida hegemonia internacional23 foi sendo construída de forma não tão pacífica ou eminentemente lúdica quanto parece, tendo sido também a sua formulação metonímica interna a marca que lhe deu o tom preponderante. Isto é: também nesta narrativa sobre o futebol estruturada pela ciência da História, foi sempre a prevalência circunstancial das partes (a elite sobre o povo, os ricos sobre os pobres, os brancos sobre os negros, os ociosos sobre os trabalhadores etc.) que, resultando de décadas de tensões e embates dentro e fora do campo, historicamente construiu essa noção integradora que temos hoje da pátria em chuteiras. O campo do futebol,24 assim – se definindo literal e metaforicamente como um espaço de lutas e batalhas em que o povo brasileiro foi processualmente se envolvendo na construção renhida de uma identidade em que se reconhecesse enquanto nação específica e singular –, erigiu-se, no Brasil, como uma arena privilegiada para, através da experiência de muitos sujeitos que, por décadas, disputaram em torno de uma bola muito mais do que um jogo, realizar uma espetacular “virada de mesa” na sua história cultural. História essa que na visão de Leonardo Pereira compreende quatro momentos distintos que aqui procuraremos sintetizar e analisar sob a ótica do código de comunicação que o jogo de futebol encerra: 1) inicialmente, o da imagem de um jogo de elite, reafirmada pelos seus próprios admiradores que se reuniam nos recém-fundados clubes da Zona Sul do Rio de Janeiro; 25 23 Único país do mundo a participar de todas as edições do Campeonato Mundial de Futebol (a Copa do Mundo), desde a sua criação em 1930, o Brasil se orgulha de ser o recordista de títulos da competição, tendo sido campeão em 58, na Suécia; em 62, no Chile; em 70, no México; em 94, nos Estados Unidos, e 2002 no Japão e na Coréia do Sul. Além dos cinco títulos, o Brasil chegou a outras duas finais. Em 1950, quando a copa foi disputada no Brasil e a Seleção perdeu para o Uruguai por 2 a 1, e em 1998, na França, quando perdeu para os franceses por 3 a 0, no Stade de France, em Saint Denis. O Brasil conta ainda com dois terceiros lugares. Eles ocorreram em 1938, também na França, quando o Brasil foi derrotado na semifinal pela Itália, e em 1978, na Argentina, quando o Brasil foi superado pela dona da casa no saldo de gols e depois venceu a Itália na disputa dos terceiro e quarto lugares. Em 1974, na Alemanha, o Brasil ficou com um quarto lugar, perdendo na semifinal para a Holanda e depois para a Polônia. Assim, em nove das 19 Copas disputadas, o Brasil esteve entre os quatros primeiros colocados, o que significa o melhor retrospecto em mundiais de todos os países que já o disputaram. O Brasil, portanto, entra para a história como o país de melhor retrospecto em copas do mundo no Século XX. 24 A expressão aqui deve ser entendida na acepção em que é utilizada pela conceituação de campo social feita por Pierre Bourdieu. Isto é: “O campo consiste no espaço em que ocorrem as relações entre os indivíduos, grupos e estruturas sociais, com uma dinâmica que obedece a leis próprias, animadas sempre pelas disputas ocorridas em seu interior, e cujo móvel é invariavelmente o interesse em ser bem sucedido nas relações estabelecidas entre os seus componentes seja no nível dos agentes, seja no nível das estruturas”. Cf. BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p. 59-74. 25 Ver análise histórica semelhante aplicada ao caso da cidade de São Paulo em CALDAS, Waldenyr. O pontapé inicial: memória do futebol brasileiro/1894-1933. São Paulo, Ibrasa, 1990. Todo o volume. 54 2) depois, o da imagem de um jogo popular em que se tornava cada vez mais evidente a participação dos negros e operários que se tentava excluir no momento anterior e que se afirmava pelo crescente entusiasmo gerado pelos jogos da Seleção Nacional, formada ainda somente por jogadores do Rio e São Paulo (momento da construção do futebol como elemento representativo da nação: de um nacionalismo futebolístico, por assim dizer); 3) em seguida, o da imagem da consolidação de um tipo de nacionalismo não mais inocente (embora irmanados na torcida pela representação maior da mesma Pátria – a Seleção Brasileira de Futebol – os torcedores e jogadores diversos emprestavam significados sociais diferentes a este gesto) e sim marcado pela apropriação, no seu universo vivencial (no trabalho e no lazer) da imagem positiva criada em torno do jogo, cujos significados agora poderiam ser colocados a serviço de suas próprias causas; 4) e, por último, a fase da transformação do jogo de futebol na força motriz do sentimento nacional que hoje é a ele associado. Ou seja: a imagem da “virada de mesa” na sua história social em que de um jogo de classe (de um grupo apenas, a elite) ele passa a ser um jogo de representação de todos.26 Nesse ponto, todavia, marquemos aqui uma questão de método, o que implica, com efeito, considerando os seus desdobramentos últimos, no mérito da questão. Dissemos antes que vamos considerar o futebol, neste estudo, como sendo ele mesmo uma narrativa que envolve a realização de dois discursos simultâneos e complementares (o discurso não verbal, corporal-gestual do jogo em si e o discurso lingüístico representativo desse mesmo jogo) compondo uma narrativa complexa de caráter eminentemente simbólico que o define também 26 Acreditamos a este propósito, e em consonância com alguns elementos das matrizes formadoras da cultura brasileira, que há aqui uma reviravolta de tipo carnavalesca e antropofágica no processo. Carnavalesca porque verificamos na sua efetiva realização aquilo que o pensador russo Mikhail Bakhtin denominou de carnavalização da cultura, isto é, a aplicação da lógica do carnaval à esfera cultural como um todo: “As leis, proibições e restrições, que determinam o sistema e a ordem da vida comum, isto é, extra-carnavalesca, revogam-se durante o carnaval: revogam-se antes de tudo o sistema hierárquico e todas as formas conexas de medo, reverência, devoção, etiqueta etc., ou seja, tudo o que é determinado pela desigualdade social hierárquica e por qualquer outra espécie de desigualdade (inclusive a etária) entre os homens”. Cf. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro; Forense, 1997, p. 122; e antropofágica porque o fenômeno parece ter espontaneamente obedecido aquilo que Oswald de Andrade postulou para a atitude geral da cultura brasileira moderna frente ao estrangeiro, no seu conhecidíssimo Manifesto Antropófago, de 1928. Se não, vejamos, em alguns dos seus itens enunciativos: “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. [...] Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço, continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil. Uma consciência participante, uma rítmica religiosa. [...] Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo”. Cf. ANDRADE, Oswald. A utopia antropofágica. 2. ed. São Paulo: Globo, 1995, p. 47-9. Os trechos grifados por nós no texto oswaldiano tem o intuito de sublinhar as correspondências entre seus enunciados e o que ocorreu efetivamente com o nosso futebol neste contexto em questão. 55 como um código polissêmico de comunicação. Pois bem. A história social do futebol brasileiro (suas diferentes abordagens por diferentes autores) 27 será vista aqui como esse segundo elemento, ou seja, uma narrativa sobre o jogo que por sua forma de construção e estruturação pretende legitimar-se como um discurso cientificamente válido. Aqui, a disputa dos sentidos que o jogo foi adquirindo para o povo brasileiro ao longo dos anos, na busca de uma identidade para se contrapor ao estrangeiro, é o que esta narrativa tenta apanhar com a ajuda de seus próprios métodos de abordagem, todos eles, ressalve-se, nem sempre auto-justificáveis teoricamente quando confrontados entre si. Daí que longe de ser consensual, esta história também pressupõe enfrentamentos vários do campo científico. Embora o historiador Leonardo Affonso de Miranda Pereira tenha pretendido em seu extenso estudo deslocar, com a sua metodologia de análise histórica, o ponto de vista sobre o tema do futebol – da focalização em Mário Filho sobre a forma inicial (depois revertida) pela qual a presença de negros e pobres foi percebida pelas elites como inconveniente à prática deste esporte no Brasil, passando pela visão de alguns historiadores que viram a popularização do jogo no país apenas como um meio de controle social do mundo do capital sobre o mundo do trabalho (um instrumento de alienação);28 adentrando ainda uma abordagem feita pelos intelectuais do início do século XX (literatos, jornalistas, médicos, educadores etc.) que creditavam ao futebol funções sociais distintas e até inconciliáveis: uma que vislumbrava um possível mecanismo regenerador da raça brasileira, e outra que lhe atribuía a responsabilidade pela perpetuação da desigualdade social e racial, em função da separação entre os brasileiros por causa do caráter de disputa associado ao jogo –, e, por fim, seu estudo centrando o foco nos verdadeiros sujeitos do processo, os torcedores, jogadores, populares, trabalhadores, esportistas, enfim, aqueles anônimos que “se limitavam a torcer, das 27 Nesse caminho de análise do futebol brasileiro, embora não sendo todos oriundos do campo da História, mas acabando por não fugir de todo da sua grade metodológica de abordagem, ver, por exemplo, autores como RODRIGUES FILHO, Mário. O negro no futebol brasileiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2003; LEVER, Janet. A loucura do futebol. Rio de Janeiro: Record, 1980; RUFINO DOS SANTOS, Joel. História política do futebol brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1981. (Col. Primeiros Passos); SANTOS NETO, José Moraes dos. Visão de jogo: primórdios do futebol no Brasil. São Paulo: Cosac & Naify, 2002; e FRANZINE, Fábio. Corações na ponta da chuteira: capítulos iniciais da história do futebol brasileiro (1919-1938). Rio de Janeiro: DP&A, 2003, entre outros. 28 É este o ponto de vista sob o qual o historiador Joel Rufino dos Santos aborda a lógica das origens da popularização do futebol no Brasil. Estudando o fenômeno nas duas principais cidades brasileiras, o Rio de Janeiro e São Paulo, este autor quer fazer crer que nos dois casos a popularização do jogo se deu principalmente como resultado direto da intervenção dos patrões, das autoridades e do poder público. Assim, este esporte assume, na obra citada, o caráter de uma” invenção maquiavélica, um eficaz e inescapável meio de controle sobre as classes populares”. Essa visão, obviamente, já foi contestada por toda a historiografia posterior sobre o futebol brasileiro. Cf. por exemplo, PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro – 1902-1938. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. p. 203-4 e CALDAS, Waldenyr. O pontapé inicial: memória do futebol brasileiro/1894-1933. São Paulo, Ibrasa, 1990. p. 19-29 e150-194, entre outros. 56 arquibancadas ou das gerais, pela vitória de um time no qual viam a representação da própria nação” (PEREIRA, 2000, p. 17), – é aos escritores que pretendemos retornar nesse nosso trabalho, mesmo que por via transversa: agora não mais através das representações que eles criaram do futebol pela discussão pública dos seus projetos de nação, mas, sim, por meio da elaboração ficcional de fundo estético que tem na unidade ontológica básica do processo, o homem (e os múltiplos aspectos formadores de sua identidade e situação no mundo), sua centralidade específica. Sendo assim, retornemos aos principais momentos dessa tensa história. Numa periodização aproximativa de função meramente didática, poderíamos dizer que ao primeiro momento da periodização de Leonardo Pereira antes citada, corresponde à fase da febre da footballmania, 29 no Rio de Janeiro, que vai de 1900 a 1910 e compreende um período em que se verifica a criação e a apropriação de sentidos diferentes para o jogo, elaborados pelas diferentes classes sociais que o praticavam no Brasil, com a prevalência da formulação ideológica desses sentidos atribuídos pelas classes altas, a elite dominante, que consegue atribuir a ele a marca de um “jogo nobre” em que está em questão, através da mediação das teorias higiênicas já em voga na capital da República,30 a idéia da construção, pela prática do esporte, de uma nação civilizada à maneira européia, forte e branca etnicamente, culturalmente sadia, batizada pelo ideal latino enfeixado no princípio do Mens sana in corpore sano. Tal momento na história do jogo, embora vivenciado em relativa euforia por todos, já apresentava, entretanto, os prenúncios de suas contradições constitutivas futuras: a oposição, no espaço social ocupado pela experiência do futebol, das diferentes demandas a ele identificadas pelos diferentes grupos sociais. Assim, opondo inicialmente a elite sobre as classes baixas (o que equivale dizer: os ricos sobre os pobres), numa experiência prática e teórica do jogo em que estava pressuposta a prevalência valorativa das atividades intelectuais sobre as corporais, o futebol ia se constituindo como o elemento de comunicação mediador dos diferentes projetos sociais postos em questão pela sociedade brasileira do início do século XX. Estes projetos sociais tinham como defensores, por um lado, a elite letrada 29 A expressão foi criada pelo educador Fernando de Azevedo no seu livro, Da educação física. São Paulo, Rio de Janeiro: Weiszflog Irmãos, 1920 [1915]. p. 230. 30 Já disseminadas no Rio de Janeiro por volta da segunda metade do século XIX como uma poderosa ideologia, as idéias higiênicas ganham força no Brasil como um movimento para tornar obrigatório nas escolas primárias e secundárias da Corte o ensino da ginástica. Encabeçado por médicos e outras autoridades da saúde, o movimento ganha foro institucional quando em 1879 um projeto regulamentando o assunto é apresentado na Câmara dos Deputados recebendo parecer francamente favorável do então deputado Rui Barbosa. Para entender a introdução da prática do futebol no Brasil, neste contexto, ver instruções à nota 21. 57 representada pelos intelectuais e literatos que expunham publicamente o que achavam ser o sentido último da apropriação, por parte dos brasileiros, de um jogo ou prática cultural oriundo de um país europeu civilizado (a Inglaterra) e, por outro, no dizer de Leonardo Pereira, os homens do povo que, fosse nos campos ou nas arquibancadas, iam fazendo do jogo ao longo desse período muito mais do que pareciam perceber, naquele momento, escritores como Mário Filho. Habitantes de uma cidade que se assemelhava nas primeiras décadas desse século a uma torre de babel, na qual negros recém-egressos da escravidão misturavam-se com imigrantes de nacionalidades diversas, tais amantes do jogo da bola tinham no futebol um dos seus principais pontos de contato. Constituindo-se em um eficaz meio de comunicação entre esses grupos, ele mostrava-se capaz de articular diferenças e identidades, assumindo papel central na vida carioca das primeiras décadas do século (PEREIRA, p. 15-16). O segundo momento, que para efeito de síntese faremos englobar também o terceiro da periodização de Leonardo Pereira, abrange a fase de inserção dos negros, mulatos e pobres no jogo, consolidada entre os anos de 1910 e 1930, sendo antecedida e sucedida pela fase em que se verifica uma tensão radical no modo de estruturação da prática do futebol no país, com destaque para a questão em torno do amadorismo versus profissionalismo, que se desenrola entre os anos de 1923 e 1933, e a etapa da criação do estilo brasileiro de jogar, que se dá por volta dos anos de 1930 a 1940, encarnada no sucesso das brilhantes atuações de dois jogadores negros na Copa do Mundo de 1938, na França, Domingos da Guia e Leônidas da Silva, os primeiros atletas brasileiros a assinarem, no exterior, as marcas de uma escola brasileira de conduzir o jogo britânico. Em termos de leitura dos aspectos sociológicos do futebol neste contexto brasileiro, a primeira conseqüência da inserção de negros, mulatos e pobres no jogo (vale dizer: a sua proletarização) foi, sem dúvida, uma radical modificação na imagem social deste esporte. Em pouco tempo, o futebolista perde a imagem de homem fino, de elite e passa a ser visto como quase um marginal da sociedade. A essa altura, é claro, já estávamos bem próximos da legalização do profissionalismo. Aliás, só faltava mesmo isso porque, em realidade, ele já existia, embora não fosse formalmente reconhecido (CALDAS, 1990, p. 52). Fruto de uma luta acirrada entre os setores progressistas e conservadores do futebol da época, que na prática política e gerencial-administrativa opunha, respectivamente, numa ponta, os dirigentes do América Futebol Clube (primeiro clube carioca a pagar 58 abertamente salários aos seus jogadores);31 do Fluminense F.C. (primeiro clube a ser criado dentre os atuais grandes do Rio de Janeiro); do Bangu Athletic Club (primeira agremiação a incluir um negro e vários operários em seus quadros) e do Clube de Regatas Vasco da Gama (primeiro time a ser campeão carioca da primeira divisão, em 1923, com uma equipe composta de negros, analfabetos, operários e desempregados)32 – aos dirigentes do Clube de Regatas do Flamengo, do Botafogo e do São Cristóvão, na outra ponta, a questão da profissionalização do futebol brasileiro, poderia ser vista, na verdade, como a representação de um outro embate ainda maior: a elite tentando manter o privilégio de ser a única classe social a praticar esse jogo como forma de lazer – daí a defesa do seu caráter amador –, e a classe proletária que, por determinação histórica da própria origem do futebol começa a absorver um valor cultural até então alheio ao seu universo lúdico, tentando, com isso, a efetivação da uma de suas estratégias de sobrevivência econômica.33 Quanto à etapa histórica da criação do estilo brasileiro de jogar futebol (iniciada no final dos anos de 1930 e consolidada na década de 1950), sua gênese será encontrada ainda no momento em que a sua prática é pretensamente monopolizada pelas classes altas, lá no início do século XX. Aí, nesse ponto do processo de elaboração estilística do jogo, por parte dos brasileiros, o sentido da boa técnica e domínio total da forma de jogar – que implica o conhecimento pleno das regras, táticas e técnicas inglesas –, é derivado ainda da origem britânica do jogo, o que reforça nos seus praticantes e admiradores desse período o conteúdo de distinção social nele contido. Embora, conforme enfatiza Leonardo Pereira, a afirmação da necessidade do aprendizado dessas regras, táticas e técnicas inglesas, que desse ao jogo um perfil que o diferenciasse das formas como ele ia sendo praticado em regiões como o cais do porto, por 31 Essa atitude do presidente do América Futebol Clube, Antônio Gomes de Avelar, tinha já um antecedente na Inglaterra. Tratava-se do prefeito da cidade de Preston, Billy Sudel, que era presidente de um clube do mesmo nome. À revelia da Federação Inglesa, que era contra o profissionalismo no futebol, e após várias tentativas de profissionalizar a atividade em seu time, Sudel decide assinar contratos com todo o seu elenco, o que, após brigas, expulsões, intervenções na justiça etc., acaba por forçar o futebol inglês a se profissionalizar dois anos depois. Cf. CALDAS (1990, p. 67-8). 32 Eis alguns desses jogadores: Nelson Conceição (negro e chofer de táxi); Ceci (negro e pintor de paredes) e Nicolino (estivador), além de vários outros mulatos, trabalhadores e ociosos de diversos tipos (CALDAS, 1990, p. 78). 33 Nessa estratégia, aliás, os trabalhadores brasileiros moviam-se por atribuir ao jogo um significado mais coerente com o da sua prática em terras britânicas, no mesmo período, em oposição aos significados que atribuíam a ele, por contradição, nesta mesma época, as elites brasileiras. “Atraindo desde os fins do século XIX grande contingente de trabalhadores, o futebol britânico estava longe do refinamento alardeado pelos esportistas do Rio de Janeiro. As próprias notícias publicadas nos jornais brasileiros do período evidenciavam essa contradição, explicitando a força do futebol na Grã-Bretanha entre os círculos operários. Sem atentarem para a grande difusão do futebol no país que lhes servia de modelo, os sportmen cariocas transformavam, contraditoriamente, um esporte praticado por operários das mais diversas procedências em um símbolo de elegância e sofisticação”. Cf. PEREIRA (Op. cit., p. 40). 59 exemplo, estivesse dentro da lógica da exclusão social, é nesse momento, entretanto, que já aparecem publicizados na imprensa dois elementos que a esse estilo serão futuramente incluídos de forma definitiva pelo ethos nacional e que diz respeito diretamente aos principais aspectos da nossa abordagem do futebol neste nosso trabalho: os seus componentes estéticos de prazer e de beleza. É assim, pois, que se manifesta um cronista ainda em 1903, numa revista esportiva da época, ao discorrer sobre como se desenvolvia o gosto pelo futebol na cidade do Rio de Janeiro: O atleta precisa estabelecer a coordenação dos músculos e da vontade; a um só tempo ele precisa de um golpe de vista conhecer a situação e planejar seu jogo e, com a vontade, ordenar os músculos e o sucesso obtido causar-lhe-á um real prazer (A CANOAGEM, ano 1, n. 1, 4 de julho de 1903, p. 14). Ao que faz coro outro cronista de jornal coerente com a lógica da exclusão, agora tratando das potencialidades artísticas do jogo, a seu ver não acessíveis a todos, mas apenas aos iniciados em seus segredos, os então autodenominados sportmen: Pode parecer, é talvez mesmo certo que aqueles que se dedicam ao jogo do foot-ball pensem que um ponta-pé [sic], o simples ponta-pé [sic], que é em última análise, em que se resume todo esse jogo, seja o mais mecânico, o mais fácil de seus movimentos. Não é, entretanto, assim. O ponta-pé no foot-ball depende de tantas circunstâncias favoráveis ou desfavoráveis ao jogador, que o dá-lo com acerto constitui uma verdadeira arte, arte em que se evidencia toda a habilidade do jogador (A ARTE..., Correio da Manhã, 22 de abril de 1906, p. 18). Essa habilidade do jogador, todavia, só foi sendo reconhecida como um atributo diferenciado e tipicamente brasileiro, emprestado ao jogo pelo ethos nacional, à medida que a incorporação do elemento negro e mulato da nossa formação social, agora completada também no campo de futebol pela sua junção com o branco, foi sendo reconhecida amplamente pelos torcedores, primeiro dentro e depois fora do nosso país. Um dos pontos de inflexão histórica desse processo, que foi a conquista pelo Brasil do primeiro Campeonato Sul-americano de Futebol, ocorrida no dia 29 de maio de 1919, no Rio de Janeiro, quando a Seleção Brasileira finalmente derrotou os bi-campões continentais – os uruguaios –, pelo placar de 1 a 0, coincide, segundo o historiador Fábio Franzine, com o momento-chave do que ele chama de período de formação do esporte inglês como símbolo da identidade nacional brasileira. O inédito título continental transformara as chuteiras em expoentes de um traço nativo – no nosso caso, a individualidade – que distinguiria e colocaria o Brasil em posição de superioridade diante de outras nações, ao menos dentro das quatro linhas. Demarcava-se assim um novo referencial para a identidade nacional, prosaico, porém perfeito tanto para a promoção da auto-identificação de uma coletividade quanto para 60 a afirmação de suas diferenças em relação ao estrangeiro (FRANZINE, 2003, p. 16-7). E mais uma vez recorreremos ao recurso estilístico do tropo metonímico para explicarmos como esse momento se processou, na idéia da representação do todo por meio de suas partes. Foram os intelectuais, amiúde, os que primeiro compreenderam e publicizaram esse processo. Estudando o futebol brasileiro de seu tempo por critérios sócio-raciais, coube ao jornalista Mário Filho o pioneirismo de plasmar na figura de importantes jogadores negros e mulatos a condição de criadores de um estilo tipicamente brasileiro de jogar futebol, algo como uma escola, um jeito inigualável e irreproduzível de tocar a bola e, nesse jeito, imprimir ao jogo as marcas de uma brasilidade que vinha sendo definida pelo sociólogo Gilberto Freyre como algo natural, tão natural que “o futebol, no Brasil, ao engrandecer-se em instituição nacional, engrandecesse também o negro, o mulato, o cafuzo, o mestiço”.34 Foram, portanto, as figuras de dois grandes negros do futebol brasileiro, como já antecipamos – Domingos da Guia e Leônidas da Silva –, que Mário Filho escolheu para simbolizarem, após o reconhecimento internacional da sua maneira de jogar, verificado por ocasião do campeonato mundial de 1938, na França, o que os sociólogos do futebol chamam de a oposição fundadora da maneira brasileira de jogar futebol – com a literatura sendo convocada para expressar a imagem perfeita desta oposição. O primeiro encarnando o estilo clássico, álgido, apolíneo, de transição do modo europeu de jogar para a forma tipicamente brasileira, o que levou Mário Filho a dizer que ele está para o nosso futebol como Machado de Assis para a nossa literatura. E o segundo encarnando o estilo romântico, dionisíaco, mais criativo e emotivo, com sabor de dança, representando o melhor da contribuição dos negros para o futebol brasileiro. Assim – nos explica o antropólogo José Sérgio Leite Lopes, no seu ensaio, A vitória do futebol que incorporou a pelada (LOPES, 1994) –, o futebol de Leônidas seria a primeira expressão de um futebol novo, emancipado de suas origens britânicas e aristocráticas, o “verdadeiro futebol brasileiro”. Ao que responderia, em consonância com a sua sociologia de sínteses e em estilo lapidar, o escritor Gilberto Freyre, ao abordar dentro deste contexto o jogo de Domingos da Guia: 34 Gilberto Freyre. – Prefácio. In: RODRIGUES FILHO, Mário. O negro no futebol brasileiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2003. p. 25. Ver também, nesta mesma direção, a opinião da imprensa paulista e carioca ao abordarem a primeira conquista pelo Brasil do Campeonato Sul-Americano de 1919, ocorrido no Rio de Janeiro. Cf. FRANZINE, Fábio. Corações na ponta da chuteira: capítulos iniciais da história do futebol brasileiro (1919-1938). Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 16-17. 61 O que não quer dizer que deixe de haver alguma coisa de concentradamente brasileiro no jogo de Domingos como existe alguma coisa de concentradamente brasileiro na literatura de Machado. Apenas há num e noutro um domínio sobre si mesmos que só os clássicos – que são, por definição, apolíneos – possuem de modo absoluto ou quase absoluto, em contraste com os românticos mais livremente criadores (FREYRE in RODRIGUES FILHO, 2003, Prefácio, p. 25). E por falar mais uma vez em oposições – desta vez a polaridade estilística entre clássicos e românticos –, assim complementa o raciocínio desenvolvido neste tópico o antropólogo Leite Lopes: Pode-se ver nesta oposição tudo o que não consegue ser domesticado, tudo o que escapa à disciplina industrial, eterna tensão que dá vida ao futebol brasileiro e que reencontraremos mais tarde na oposição entre o jogo de Pelé e de Garrincha. [...] É verdade que o “estilo brasileiro” , do qual são os jogadores negros ou mestiços os principais artesãos, afirma-se na medida mesmo em que ele pode melhor aparecer e caracterizar-se através da criação de jogadas, estas micro-invenções do jogo, que se tornam associadas à individualidade de determinados jogadores. Tal é o caso da invenção acrobática da “bicicleta” por parte de Leônidas da Silva, ou da “domingada” de Domingos da Guia – que consistia, apesar de todo o seu “classicismo, na jogada “barroca” pela qual aquele jogador “traía” seu “brasileirismo”, ao desarmar como bom zagueiro os atacantes do outro time, mas, ao invés do “chutão” para a frente, saía driblando os adversários com todo o risco de fazê-lo desde as zonas de máximo perigo para a sua equipe (LOPES, 1994 p. 75). Consagrado pela conquista do tricampeonato mundial de futebol realizado no México em 1970, através de uma seleção de jogadores que incluía nomes como Carlos Alberto Torres, Tostão, Gérson, Jairzinho e, principalmente, aquele que seria considerado o maior jogador de futebol do mundo em todos os tempos, Pelé, esse estilo se tornou o vetor de aglutinação do sentimento de orgulho nacional em torno de uma simbologia que engloba o conceito e a imagem da própria nação brasileira para nós e para os estrangeiros: o futebol, encarnado na camisa verde-amarela da seleção nacional. A trajetória e os sentidos desse processo de identificação histórica do jogo com o que é o próprio brasileiro, na sua múltipla e facetada formação social, deixemos, por fim, que os explique o historiador Leonardo Affonso de Miranda Pereira, ele também um intelectual contemporâneo que empresta ao jogo, como outrora fizeram seus pares, o testemunho de sua narrativa analítica: Dos debates literários sobre o futebol aos sentidos que lhe eram atribuídos pelos muitos operários, suburbanos e esportistas em geral que se entregavam à sua prática, muito diferente parecia se tornar o perfil do jogo praticado por toda a cidade. Campo de disputas entre diferentes tradições, práticas e projetos sociais, ele mostrava não encaixar-se com tanta facilidade nos esquemas nos quais era enquadrado pelos médicos e escritores que se entregavam a grandes polêmicas em torno de seus significados. *** Mostrando efetivar em seu dia-a-dia, no campo da cultura, uma participação 62 que foi por muito tempo entendida por seus críticos como alienação ou como sujeição ao controle, os entusiastas do bolapé que se espalhavam pela cidade evidenciavam uma lógica própria na sua relação com o jogo – presente tanto nos clubes suburbanos como nas associações operárias. Tratava-se de fazer dele um meio de efetivar um árduo diálogo com os discursos letrados que eram sobre eles lançados, na tentativa de conseguir benefícios para si mesmos. Longe de evidenciar algum tipo de cinismo ou dissimulação por parte deles, esse processo mostrava apenas a existência, no Rio de Janeiro das primeiras décadas do século, de um intenso e conflituoso diálogo entre os diferentes grupos, no qual, o futebol aparecia como um idioma comum que mediava suas tensões. *** Passível de assumir variados significados para cada um de seus praticantes, de acordo com o momento em que sobre ele se debruçavam – identidade de classe, legitimidade de tradições, simbolismo nacional etc. – o futebol se prestava a mú1tiplas apropriações estando aí um dos segredos de seu grande sucesso (PEREIRA, 2000, p.280-1). 2.4 Futebol e literatura: uma questão de gêneros Conforme ficou já explicitado, pois, foram os literatos junto com os jornalistas (numa conjunção de intervenções sobre o tema em que se tornava difícil saber exatamente quem fazia o quê, num meio intelectual em que jornalismo e literatura se misturavam em papéis e funções sem fronteiras nítidas) os que primeiro se debruçaram sobre a tarefa de apresentar e discutir publicamente a inserção do futebol na vida brasileira. A ponto de paralela à história do jogo propriamente dito ir-se criando uma verdadeira história, digamos, literária (e ou jornalística), da apreensão e fruição do jogo por parte dos brasileiros nos seus mais diferentes espaços sociais de ação. Foi, portanto, inicialmente através do jornalismo que os amantes do futebol começaram a ler, debater, discutir, enfim, se inteirar mais extensamente sobre o esporte bretão. Começava aí a crônica esportiva brasileira em sentido lato. Robert M. Levine (1980, p. 236), num texto sobre o futebol brasileiro, afirma a este propósito que, já em 1913, as reportagens sobre uma partida de futebol freqüentemente cobriam uma página inteira de jornal. Foi a partir de então que os jornais importantes do Rio e São Paulo começaram a empregar repórteres de futebol em período integral, tendo os jornais diários de cobertura específica sobre o tema aparecido no fim da década. Os primeiros diários esportivos a fazer sucesso surgiram na década de 1930, por exemplo, num processo concomitante com a chegada do profissionalismo no campo do próprio futebol. Antes disso, porém, não havia manchetes de primeira página sobre eventos esportivos, embora estes sempre fossem 63 registrados nas páginas internas dos jornais. A atuação do jornalista Mário Filho nos bastidores do futebol brasileiro, como veremos, foi de certo modo decisiva para que o profissionalismo vingasse no início dos anos 1930. Assumindo o caráter de ocupação remunerada, esse esporte passava a encarar de outra maneira a relação entre jogadores, clubes e platéia. Da mesma forma, a defrontar com uma nova ocupação profissional, qual seja, a do jornalista esportivo. No entender de Nelson Rodrigues, jornalista cuja contribuição ao campo do jornalismo esportivo exploraremos mais à frente, foi o próprio Mário Filho o “criador” da crônica esportiva brasileira. Pode-se datar o nascimento da crônica esportiva. Foi quando ele publicou uma imensa entrevista com Marcos de Mendonça. O famoso goleiro anunciava a sua volta. O patético, porém, não era o fato em si, mas a sua escandalosa valorização jornalística. A matéria inundava um espaço jamais concedido ao futebol: – meia página! Era uma época em que o esporte vivia empurrado, escorraçado para um canto da página. O melhor jogo do mundo não merecia mais de três linhas. E o pior era a linguagem estarrecedora. Mário Filho usava a palavra viva, úmida, suada. [...] A entrevista de Mário Filho foi um duro impacto, sobretudo pela linguagem. Ela saiu aí por volta de 1926, ou 27. Dir-se-ia um novo idioma atirado na cara do leitor (RODRIGUES in: RODRIGUES FILHO, 1994, Prefácio, p. 8). Se o cronista contribuiu verdadeiramente para a elaboração de uma linguagem própria nos jornais, essa linguagem passa também pela assimilação de um estilo, podemos dizer, “esportivo” no fazer jornalístico. Foi também Mário Filho que, nas palavras do antropólogo José Sérgio Leite Lopes, introduziu mudanças definitivas no modus operandi do jornalismo esportivo a partir de então. E isso não só na forma de apurar, mas, fundamentalmente, na linguagem em que se expressavam as notícias do mundo esportivo. A linguagem da crônica esportiva também mudou com Mário Filho: em vez de apelação por demais respeitosa, corrente na imprensa, do nome dos clubes – por exemplo “Fluminense Football Club”, “O Clube de Regatas do Flamengo”, ou ainda “The Bangu Atlhetic Club” – ele começa a chamá-los simplesmente Fluminense, Flamengo, Bangu, como os torcedores nos estádios e nas ruas (LOPES, 1994, p.68). Estas inflexões na linguagem, aparentemente banais quando vistas de hoje, mas fortemente definidoras – enquanto fenômenos lingüísticos – de processos mais profundos que ocorreriam culturalmente tanto no jogo em si quanto na maneira de representá-lo, tiveram aí seu momento seminal no que concerne a nossa hipótese já aventada da criação simultânea dos estilos brasileiros de jogar e de narrar o futebol. Escritores como José Lins do Rego, por exemplo, perceberam a independência narrativa e o poder de ligação com o leitor que a crônica comportava. Zélins, como carinhosamente era chamado por alguns amigos, tornou-se, nas páginas do Jornal dos Sports, 64 onde chegou a escrever 1.571 crônicas sobre o tema, durante cerca de doze anos, um cronista apaixonado e vibrante. Escreveu muito e, como poucos, soube dar a dimensão, pela crônica, do que representava – e ainda representa – a força do esporte entre nós. Afinal, tudo parecia poder se resumir ao par esporte e vida, expressão essa, aliás, que dava o título de sua coluna no Jornal dos Sports. Tendo conquistado, mais de quarenta anos depois de sua chegada ao Brasil, os espaços do jornal, através de uma linguagem específica que o representava para o leitor- torcedor, o futebol enfrentou também muitas dificuldades para adentrar o espaço nobre da literatura. O crítico literário Álvaro Lins, por exemplo, acusa a presença do futebol na literatura brasileira de ficção através do romance de José Lins do Rego, Água-mãe, cuja primeira edição de 1941, apresenta um jogador de futebol como uma das suas principais figuras. Porém, é só depois de 1940 que o futebol começa a atrair a atenção de maior número de autores brasileiros, os trabalhos predominantes pertencendo à categoria da crônica e sendo raros os no romance, no conto, na poesia, no teatro e no cinema. A primeira tentativa de inventariar a produção literária brasileira sobre o tema do futebol, contudo, só foi levada a efeito em 1967, quando, em resposta a uma observação do escritor e tradutor Paulo Rónai sobre a inexistência de qualquer “antologia do futebol nas letras brasileiras”, o jornalista Milton Pedrosa, após a realização de uma extensa e minuciosa pesquisa, publicou o livro Gol de letra, que reúne textos produzidos nos gêneros conto, romance, teatro, poesia, artigos, crônicas e excertos. Iniciativa semelhante foi novamente posta no mercado editorial brasileiro apenas em 1994 e 1998, anos respectivos das duas edições de Onze em campo e um banco de primeira, obra em que o também jornalista e escritor Flávio Moreira da Costa, a par de uma seleção de contos de vários autores brasileiros por ele mesmo efetuada, todos com livros publicados e com reconhecimento da crítica, intenta dar continuidade ao inventário da representação do futebol no âmbito das letras brasileiras embora, no seu caso, restringindo-se apenas à produção na área das histórias curtas. Atualmente, é bom salientar, esse panorama se encontra consideravelmente modificado com uma publicação já extensiva de obras literárias que tomam o futebol como tema e que estão formalizadas nos mais diferentes gêneros da literatura: da poesia ao romance, do ensaio ao teatro, por exemplo. E por que, então, decidimos estudar o futebol no gênero conto se a presença do tema já pode ser considerada contemporaneamente relativamente extensa e fortemente 65 representativa em todas as modalidades de representação em que se expressa a produção literária brasileira? A resposta a esta pergunta nos leva obrigatoriamente a outra questão que, por sua vez, compreende dois aspectos importantes do nosso trabalho: a escolha de uma ou outra metodologia que o oriente e o sentido prático que esta orientação possa ter a partir das escolhas teóricas que a fundamente. Daí acharmos ser de capital importância explicitarmos, aqui, a relação do nosso tema de estudo com a questão dos gêneros literários, uma vez que, em última análise, é através deles que historicamente as coisas do futebol têm chegado ao público leitor. Dizemos isso porque, como já observamos, vamos considerar o futebol no contexto em questão como uma forma ampla de comunicação; uma narrativa (um jogo) que se elabora em si e em ato, mas que, também, elaboramos nós, os espectadores e amantes desse jogo como torcedores e leitores que somos. E elaboramos para, nessa operação simbólica complexa e multivocal que é o futebol, dada a sua condição de esfera produtora de sentidos sobre o homem, dar a conhecer a nós mesmos e aos outros quem somos como indivíduos e como nação. Como a forma narrativa é apenas uma entre outras possíveis da utilização da linguagem para fins de comunicação, esclareçamos de antemão a orientação teórica que seguiremos nessa questão da abordagem e escolha dos gêneros literários para o estudo do futebol. Embora reconheçamos que a questão dos gêneros, na teoria da literatura, deva ser vista apenas como “um meio auxiliar que, entre outros, nos leva ao conhecimento do fenômeno literário” (SOARES, 1993, p. 22) e que nunca ela deva ser usada para a valorização e julgamento das obras, reafirmamos a importância do seu conhecimento e validade para qualquer trabalho que vise articular a especificidade da representação literária, por um lado, e outras formas de representação social da cultura, por outro, como parece ser este o nosso caso. Isso porque os gêneros literários, quaisquer que sejam as opções teóricas sob as quais os consideremos, dizem respeito inevitavelmente a dois fatores básicos da relação do homem com a literatura que ele mesmo produz: os instrumentos formais (herdados do passado ou criados no presente) de que dispõe para formatar o seu discurso literário, e os diferentes modos possíveis pelos quais esse discurso quando tornado obra capta a realidade social sobre a qual opera. Ou, dizendo noutros termos: os gêneros sempre incluem (plasmam enquanto forma e conteúdo literários) um conjunto de expectativas e seleção de elementos da realidade tanto na esfera da produção (âmbito de atuação dos escritores) quanto na linha da sua recepção (âmbito da ação e expectativas dos leitores). Se não, vejamos tal questão, numa 66 rápida e sintética incursão pela história de sua consideração teórica ao longo do tempo.35 Decorrente de uma visão política sobre a realidade (o intuito de teorizar a constituição da Polis, a cidade-estado perfeita para os gregos), Platão foi o pensador que primeiro elaborou referências, no pensamento ocidental, à questão dos gêneros literários. Tributárias de uma visão funcional, digamos assim, da arte (o seu papel moralizante na constituição da consciência política e social do cidadão grego), essas referências, expostas no livro III da República (394 a. C), reconhecem que o artista (o poeta) opera sobre a realidade por imitação, uma imitação de terceiro grau, pois imitava a obra do artesão que, por sua vez, imitava as formas singulares, imperecíveis e imutáveis que compunham o mundo perfeito das Idéias. Nesse processo, Platão reconhece como gêneros dessa forma de imitação a comédia, a tragédia e a epopéia; e, quanto a esta, diz que por ela, ao concederem autonomia à voz das personagens, os poetas não seriam bem vindos à República porque não contribuiriam em nada para o projeto político de edificação de uma polis ideal. Há aqui, pois, uma condenação explícita de uma certa forma de apreender e expressar a realidade por meio da representação literária considerada quanto aos seus efeitos na ordem política. Encarando a questão por um outro prisma, por uma visão de ordem estritamente estética, Aristóteles, na sua Poética,36 discorda dessa abordagem platônica e apresenta uma nova compreensão do problema da imitação (mímese) artística. Não vendo o processo artístico como mera cópia nem da obra de outros artistas (do artesão, por exemplo) nem das forma singulares do mundo das idéias, Aristóteles enfatiza o modo de recepção da realidade da arte em que se percebe uma diferença entre a realidade empírica (o real) e a sua imitação, a arte, o que o leva a valorizar mais do que Platão o trabalho poético. Para ele, então, esse trabalho se dá conforme o meio com que se realiza a mímese (distinguindo a poesia ditirâmbica, por um lado, e a tragédia e comédia, por outro); conforme o objeto dessa mímese (havendo aqui uma 35 Servi-me, para a concepção desta síntese teórico-historiográfica sobre a questão dos gêneros literários, útil apenas para os fins deste trabalho, uma vez que ela se reveste da necessidade de uma discussão bem mais ampla que aqui não caberia, das idéias expostas em dois grandes ensaios sobre o tema em língua portuguesa: o primeiro, intitulado, Gêneros literários, é todo o capítulo IV do livro Teoria da Literatura, do professor português Vitor Manuel de Aguiar e Silva; e o segundo, adequadamente intitulado, A questão dos gêneros, é o sétimo ensaio do livro, Teoria da Literatura em suas fontes, do professor brasileiro Luiz Costa Lima. Para uma abordagem também teórico-historiográfica da mesma questão, mas aplicada a textos importantes da literatura brasileira, consultar o volume Gêneros Literários, da Editora Ática, série Princípios, de autoria da professora Angélica Soares de quem utilizei aqui os trechos entre aspas às págs. 14 e 22 do original, bem como, na mesma linha, o volume Teoria do conto, de Nádia Batella Goltlib, Editora Ática, série Princípios, 2006. Cf. AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da Literatura, Rio de Janeiro: Livraria e Editora Martins Fontes Ltda., 1. ed. Brasileira, 1976; LIMA, Luiz Costa. Teoria da Literatura em suas fontes, 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983; e SOARES, Angélica. Gêneros literários. 2. ed. São Paulo: Ática, 1993. (Série Princípios). 36 Aristóteles. Ética a Nicômaco; Poética. Trad. Eudoro de Souza. Seleção de textos de José Américo Motta Peçanha. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os Pensadores). p. 64. 67 distinção moral desse objeto: a tragédia, por exemplo, apresentando homens melhores que nós e a comédia ocupando-se de homens “piores” do que nós); e, por último, segundo o modo pelo qual é realizada a mímese, isto é: o processo narrativo distinguindo o poema épico (a epopéia) e o processo dramático caracterizando a tragédia e a comédia. Aqui, como se vê, a preocupação quanto à forma de imitar a realidade atém-se ao conteúdo dessa imitação e não mais aos seus efeitos, como em Platão. Ainda herdeiro dessa tradição, o poeta romano Horácio (65 a. C. – 8 a. C), também impondo uma função moral à literatura, a qual acrescenta a função lúdica (prazer) e didática (educação), acrescenta a essa questão dos gêneros o que poderíamos chamar de princípio da unidade do tom. Na sua arte poética,37 na Epistulae ad Pisones, ele defende que deve haver sempre uma adequação entre o assunto escolhido pelo poeta e o ritmo, o tom, o metro, com os quais deve ser tratado. Assim, seria absurdo para Horácio que se apresentasse um tema cômico através da forma do metro próprio da tragédia, por exemplo. A impossibilidade do hibridismo, portanto, da mistura numa mesma expressão temática de gêneros diferentes, é o que se quer ressaltar aqui com as idéias de Horácio. No período medieval, em seqüência, apesar do rompimento com a tradição clássica, reaparece uma noção que poderíamos chamar ainda de estilístico-funcional, através do poeta florentino Dante Alighieri. Na Epistola a Can Grande Della Scala 38 ele classifica os diferentes estilos de mimese, por exemplo, em nobre (a epopéia e a tragédia), médio (a comédia) e humilde (a elegia). Prolongando a idéia de estilo como definidora da idéia de gênero, teorização básica da Retórica antiga, Dante nada mais faz do que reafirmar com outras palavras e em outro contexto (o da explicação dos seus procedimentos poéticos a Can Grande Della Scala), os postulados anteriores da questão, baseados no princípio de que há várias maneiras de dizer a mesma coisa conforme os fins, maneiras que o estilo distingue.39 Incontinenti, o Renascimento traz de volta os postulados da tradição greco-latina, 37 Cf. HORÁCIO, Ep. Ad Pisones, VV, 79-82. In: Arte poética de Q. Horácio Flacco. Traduzida e ilustrada em Portugal por Candido Lusitano, Lisboa, 1758, p.p. 39-41. 38 Cf. LIMA, Luis Costa. Teoria da literatura em suas fontes. v.1. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. p. 242. 39 Para uma visão mais acurada da pertinência do conceito de estilo na discussão teórica da questão dos gêneros literários, consultar todo o capítulo V do livro, O demônio da teoria: literatura e senso comum, do professor Antoine Compagnon. Aqui, ele faz uma análise minuciosa dessa pertinência do estilo para a definição ou reconhecimento dos gêneros tomando como base a transição que este conceito faz da Retórica antiga para a Estilística moderna. Cf. CAMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Trad. De Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: EdUFMG, 2001. p. 165-192. Apenas para enfatizarmos esta pertinência da questão do estilo na compreensão dos gêneros literários aplicados ao futebol, é oportuno aqui a seguinte observação feita por um antigo jogador e hoje técnico de futebol: “Para ganhar no futebol (como na vida), não se pode renunciar o próprio estilo e, por isso, é necessário o conhecimento de suas raízes, de sua história”. Francisco Maturana, técnico da seleção da Colômbia, na Copa do Mundo de 1994, nos EUA, citado por Maurício MURAD. Dos pés à cabeça: elementos básicos de Sociologia do Futebol. Rio de Janeiro: Irradiação cultural, 1996. p.81. 68 e a mímese aristotélica passa a ser lida como imitação da natureza e não mais como um processo de criação. A idéia geral do período é que foi a antiguidade que teria realizado a arte inigualável, quase perfeita, e por isso seus princípios constitutivos se revestiriam de uma universalidade inconteste por causa de sua essencialidade supra-histórica. Nesse contexto, os gêneros passam a ser considerados imutáveis. Mantém-se como modelos a serem seguidos a poesia dramática (em que não haveria a intervenção do poeta), a poesia narrativa, ou épica, preconizada na Poética, de Aristóteles (em que ora falava o poeta e ora os personagens introduzidos por ele) e acrescentam-se a poesia lírica, já antecipada na Epistulae ad Pisones de Horácio (em que se expressam as reflexões subjetivas do próprio poeta). O pensamento racionalista francês do século XVII, por seu turno, vem atribuir o brilho e o valor da arte ao uso da razão. Nicolas Boileau-Dèspreaux (1636–1711) é o pensador que através também da sua Arte Poética preconiza que o equilíbrio, a adequação e a clareza são condições necessárias ao tipo de mímese elaborado pelo trabalho poético. Assim, a noção de imutabilidade dos gêneros literários é mantida junto com o princípio da unidade de tom e enfatizada a necessidade da hierarquização dos mesmos, uma vez que eles estão sempre relacionados com a diferenciação dos estados do espírito humano, com a classe social dos personagens criados e, portanto, com o ambiente em que estes atuam. Conseqüentemente, por essa hierarquização, a tragédia e a epopéia são gêneros maiores; inferiores, portanto, são a comédia e a farsa. Antecipando-se aos pré-românticos e românticos do século XVIII, uma querela importante se verificou, ainda no século XVII, nessa questão dos gêneros literários. Reações aos postulados clássicos opuseram defensores e atacadores de um dos seus mais caros princípios: o da imutabilidade. Quem defendia a mutabilidade, ou seja, eram a favor das formas literárias novas, passaram a ser chamados de modernos (que posteriormente se expressaram como “barrocos”) enquanto a posição contrária identificava os “antigos”. Mas foi com o movimento pré-romântico alemão (o Sturm und Drang) que uma reviravolta na historicidade e variabilidade dos gêneros ganhou força e se impôs historicamente. Consolidada no romantismo, a idéia do poeta como um gênio “de cuja interioridade irrompe intempestivamente a poesia”, (SOARES, 1993, p. 23) leva à consagração do princípio da autonomia de cada obra baseado no respeito à individualidade criadora do artista, o que aponta para o florescimento de uma mímese não mais presa a normas fixadas pelo tempo ou, quando menos, assentada na criação de formas novas. O que se fixa aí, historicamente, é a mistura dos gêneros, uma vez que os românticos se apóiam na observação empírica de que na própria vida se misturam o belo e o feio, o riso e a dor, o 69 grotesco e o sublime, sendo, por isso, para eles, extremamente falsa e artificial separar-se artisticamente a tragédia da comédia, ou a farsa do drama, por exemplo. Com isso, desembocamos na época literária moderna (em que os gêneros literários, após sofrerem uma inflexão teórica advinda das ciências naturais que lhes impôs, através das teorias de Ferdinand Brunetière (1849-1906), uma visão substancialista pela qual eles, como as substâncias vivas, nasceriam, cresceriam, alcançavam sua perfeição e então declinariam e morreriam); e, depois, na fase contemporânea, quando eles adquirem duas configurações básicas: uma estrutural-imanentista, capitaneada pelas idéias dos formalistas russos (os gêneros se estruturam inevitavelmente segundo traços de linguagem), e outra que diríamos de feição histórico-diacrônica, em que a expressão literária em qualquer cultura não só é nutrida de formas não-puras porque “nenhuma obra é totalmente lírica, épica ou dramática, não só por não apresentar apenas características de um único gênero, mas também porque essas características não se projetam, na constituição da linguagem, sempre da mesma maneira, como também essas formas sempre mudam em sintonia com o sistema literário, os valores e a conjuntura social” (SOARES, 1983, p. 19). Cabe também mencionar ainda, na primeira metade do século XX, a repercussão da idéia da existência de “formas naturais” do poético, já anunciadas durante o romantismo pelo escritor alemão Johann Wolfgang Von Goeth, que retoma e amplia, agora sob a normatização prescritiva dos gêneros (o épos, a lírica e o drama), aquelas idéias de Rousseau sobre a origem da linguagem de que já falamos anteriormente. Encerrando esse breve e sintético passeio teórico pela questão dos gêneros, não poderíamos deixar de mencionar as idéias de um conjunto de teorias mais recentes denominadas estéticas da recepção cujos postulados nos serão bastante proveitosos para a abordagem que faremos aqui do fenômeno literário aplicado ao futebol. Assentadas na idéia de situação discursiva pela qual determinado discurso funciona, ou seja, é reconhecido pela comunidade de leitores como sendo literário, essas teorias sustentam que toda obra está vinculada a uma situação especial de apreensão, e, por isso, pertence a um gênero, na medida em que admite um horizonte de expectativas, alguns conhecimentos prévios que conduziriam a sua leitura. Os gêneros formariam as redundâncias necessárias à recepção e à situação da obra e apresentariam marcas variáveis, não totalmente conscientes, que serviriam de orientação à leitura e à produção. A descrição de um texto literário seria, portanto, sempre histórica e guiada ‘pelo conhecimento das expectativas com que são recebidas e/ou produzidas’ (SOARES, 1993, p.20-21). Portanto, tudo o que está acima exposto sobre os gêneros literários assim foi dito 70 para apoiar a nossa idéia de que o futebol, por ser um complexo código de comunicação cultural que envolve a realização de dois discursos simultâneos – e acreditamos que complementares – na sua prática efetiva (o discurso não verbal mas corporal-gestual do próprio jogo e o discurso lingüístico representativo desse mesmo jogo) compondo uma narrativa complexa e de caráter eminentemente simbólico, tem no gênero narrativo sua melhor forma de expressão e comunicação pela via ficcional, sendo o conto, ao nosso ver, um dos gêneros mais eficazes para apanhá-lo enquanto objeto de tratamento literário. Nesse sentido, justificaríamos tal assertiva apoiando-nos nas idéias do filólogo André Jolles, que ao estabelecer os seus pressupostos conceituais, inclui o conto justamente no que denomina de formas simples (ou formas naturais) da literatura em oposição às suas formas artísticas, que pressupõem a elaboração da forma literária pela presença marcante de uma personalidade criadora. Forma artística ou forma simples, poder-se-á sempre falar de “palavras próprias”; nas Formas artísticas, todavia, trata-se das palavras próprias do poeta, que são a execução única e definitiva da forma, ao passo que na Forma Simples, trata-se das palavras próprias da forma, que de cada vez e da mesma maneira se dá a si mesma uma nova execução (JOLLES, 1973, p. 195, grifos do autor). Essa conceituação das histórias curtas feita por André Jolles nos é útil aqui também por outras questões, conforme ainda veremos. Em primeiro lugar porque ela aproxima o conto de uma manifestação natural da linguagem; da idéia de uma criação espontânea, que, por sua vez, aproxima o gênero do próprio fenômeno do futebol enquanto elemento de comunicação estética. Em segundo lugar, porque essa sua definição do conto inclui também elementos estruturais constitutivos do próprio jogo de futebol que poderíamos denominar aqui, conforme suas próprias teorizações, de ética do acontecimento ou moral ingênua e sentimento do trágico. Expliquemos isso com as palavras mesmas do filólogo: “a idéia de que tudo deva passar-se no universo de acordo com a nossa expectativa é fundamental, em nossa opinião, para a forma do conto; ela é a disposição mental específica do conto” (JOLLES, 1973, p. 199). E Jolles continua a sua teorização histórica sobre o gênero (como o apreendeu, por exemplo, todo o século XVIII) com a observação de que o conto é uma forma de arte em que se reúnem e podem ser satisfeitas em conjunto duas tendências opostas e inatas da natureza humana, que são a tendência para o maravilhoso e o amor ao verdadeiro e ao natural. Diríamos, portanto, por este aspecto, que escolhemos o conto como forma literária privilegiada para estudarmos a representação artística do futebol nas nossas letras justamente 71 por isso; por haver uma espécie de paralelismo estrutural entre forma e conteúdo da forma, entre – por assim dizer – a expressão do objeto e o objeto da expressão. Pois não há no futebol uma “ética do acontecimento” a refletir-se na sua apreensão por uma espécie de “moral ingênua” do seu público expectador que, não raro, como já observou a antropologia social, o experimenta enquanto sentimento do trágico? Não é justamente o elemento do maravilhoso, do extraordinário, do único e irrepetível (vejam-se as jogadas-prodígio de Pelé e Garrincha), enfim, do fantástico, que amamos no futebol? E não é isso a expressão autêntica do amor que temos pelo natural ou pelo verdadeiro? Acreditamos que sim, o que mostraremos mais pormenorizadamente com as análises dos textos que faremos neste trabalho, ficando assim legitimada a nossa justificativa da escolha do conto como forma de expressão do nosso tema. A narrativa do conto como Forma Simples, pré-literária – ao menos sob a ótica de sua constituição por caracteres morfo-estruturais que sua prática cultural por diferentes povos lhe fez incorporar ao longo dos tempos –, ganhou, na conceituação de André Jolles, o sentido de forma de expressão literária específica depois que os irmãos Grimm (Jacob e Wilhelm) reuniram numa coletânea e publicaram, sob o título geral de “Contos para crianças e famílias”, em 1812, um ajuntamento de narrativas de tradição oral oriundas de diferentes povos, que, em termos propedêuticos, convergiam para um mesmo conceito da prática ancestral do homem se reunir para contar estórias. [...] foi a coletânea dos irmãos Grimm que reuniu toda essa diversidade num conceito unificado e passou a ser, como tal, a base de todas as coletâneas ulteriores do século XIX; finalmente, sublinhe-se ser sempre à maneira dos irmãos Grimm que as verdadeiras pesquisas sobre o conto continuam sendo realizadas, apesar da diversidade de concepções científicas (JOLLES, 1973, p. 181-182). Para o que nos interessa aqui, todavia, é oportuno salientar que os irmãos Grimm procederam o trabalho de coligir essas narrativas apoiados numa distinção que faziam no tocante ao fenômeno artístico-literário: a idéia de que há fundamentalmente duas formas de poesia: a poesia natural e a poesia artística. Sob esse aspecto, assim se dirigia Jacob Grimm a um amigo, apresentando-lhe suas idéias: A poesia é aquilo que passa em estado de pureza e sem alterações do coração para as palavras; por conseguinte, é algo que brota incessantemente de um impulso natural e é captado por uma faculdade inata; a poesia popular sai do coração do Todo; o que entendo por poesia artística sai da alma individual”. [...] Ou seja, uma sendo “criação espontânea”, coletiva, e a outra sendo uma “elaboração” que leva a marca de uma individualidade criadora (GRIMM apud JOLLES, 1973, p. 183). Como se vê, é nessa polaridade dos atos individuais e coletivos aplicada à 72 potencialidade humana de produzir arte (aqui, a arte de contar estórias) que pretendemos inserir o fenômeno do futebol ao mesmo tempo como tema, motivo, e também como ele mesmo uma estrutura narrativa típica de comunicação. O conto, neste nosso contexto, portanto, será entendido por nós (concordando com a conceituação que dele fez André Jolles) como uma espécie de acontecimento (lingüístico, literário, ficcional) que absorve a nossa moral ingênua, movida ou não, esta, pelo princípio do trágico, e que progride no sentido da realização da justiça, através de um desfecho de fundo ético. Retomando, pois, a teorização de Jolles sobre a forma literária expressiva do conto que aplicaremos ao futebol – entendido este, repita-se, como também uma forma narrativa de expressão humana que se fundamenta no lúdico –, temos a explicar que o que nos servirá como objeto de análise ao longo desse trabalho será o chamado “conto artístico” em oposição ao conto simples, a forma genética simples do conto, conforme teorizada por este autor. Mais ou menos nos termos em que o fundamenta o escritor argentino (e também contista), Julio Cortázar, nos três ensaios sobre o gênero, incluídos na sua obra intitulada Valise de cronópio.40 No ensaio intitulado Alguns aspectos do conto, em que a despeito de falar sobre a sua prática como contista, o escritor teoriza sobre “certas constantes, certos valores que se aplicam a todos os contos”, está, a nosso ver, explicitada a concepção que adotamos aqui dessa forma de expressão literária denominada conto, que abrange ao mesmo tempo a sua forma simples, primeva, baseada na tradição oral, e a sua forma artística dela decorrente. Depois de sintetizar em três elementos essenciais (significação, intensidade e tensão) os procedimentos formais necessários à estruturação estética da forma-conto, Cortázar assim conclui sua teorização em tudo condizente com a aplicação que dele faremos neste trabalho. Um exemplo argentino esclarecerá melhor isto. Em nossas províncias centrais e do Norte existe uma longa tradição de contos orais, que os gaúchos se transmitem de noite à roda do fogo, que os pais continuam contando aos filhos, e que de repente passam pela pena de um escritor regionalista e, na esmagadora maioria dos casos, se convertem em péssimos contos. O que sucedeu? As narrativas em si são saborosas, traduzem e resumem a experiência, o sentido do humor e o fatalismo do homem do campo; alguns se elevam mesmo à dimensão trágica ou poética. Quando os ouvimos da boca de um velho gaúcho, entre um mate e outro, sentimos como que uma anulação do tempo, e pensamos que também os aedos gregos contavam assim as façanhas de Aquiles para maravilha de pastores e viajantes. [...] Entretanto, refiro- me também à Argentina – tivemos escritores como um Roberto J. Payró, um Ricardo Güiraldes, um Horacio Quiroga e um Benito Lynch que, partindo também de temas muitas vezes tradicionais, ouvidos da boca de velhos gaúchos como um 40 Compulsar a extensão e propriedade da teorização destes dois autores sobre o conto, respectivamente, em: JOLLES, André. Formas simples. São Paulo: Cultrix, 1973 (todo o volume); e CORTÁZAR, Júlio. Valise de cronópio. Trad. Davi Arriguci Jr. e João Alexandre Barbosa. Org. Haroldo de Campos e Davi Arriguci Jr. – São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 147-163. 73 Dom Segundo Sombra, souberam potenciar esse material e torná-lo obra de arte. Mas Quiroga, Güiraldes e Lynch conheciam a fundo o ofício de escritor, isto é, só aceitavam temas significativos, enriquecedores, assim como Homero teve de pôr de lado uma porção de episódios bélicos e mágicos para não deixar senão aqueles que chegaram até nós graças à enorme força mítica, à ressonância de arquétipos mentais, de hormônios psíquicos como Orgea y Gasset chamava os mitos. Quiroga, Güiraldes e Lynch eram escritores de dimensão universal, sem preconceitos localistas ou étnicos ou populistas; por isso, além de escolherem cuidadosamente os temas de suas narrativas, submetiam-nas a uma forma literária, a única capaz de transmitir ao leitor todos os valores, todo o fermento, toda a projeção em profundidade e em altura desses temas. Escreviam tensamente, mostravam intensamente. Não há outro modo para que um conto seja eficaz, faça alvo no leitor e crave em sua memória (CORTÁZAR, 2004, p. 158-159). Ressalvando que o elemento de significação do conto está sempre ligado ao seu tema (adaptando ao nosso caso, o futebol), mas lembrando que não só a ele, “porque a idéia de significação não pode ter sentido se não a relacionarmos com as de intensidade e de tensão, que já não se referem apenas ao tema, mas ao tratamento literário desse tema, à técnica empregada para desenvolvê-lo” (idem, ibidem, p. 153), Cortázar conclui que é precisamente esta relação apropriadamente feita dos três elementos que é o fator responsável pela sua qualidade estética. E, para o ponto em que nos interessa diretamente aqui a explanação de Cortázar, tudo pode ser fechado com a sua definição de conto, que integralmente acolheremos neste estudo, não apenas em termos teóricos, mas também pragmaticamente operacionais: [...] um conto, em última análise, se move nesse plano do homem onde a vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal, se me for permitido o termo; e o resultado dessa batalha é o próprio conto, uma síntese viva ao mesmo tempo que uma vida sintetizada, algo assim como um tremor de água dentro de um cristal, uma fugacidade na permanência (CORTÁZAR, 2004, p.151). Como, aliás, para encerrar – acrescente-se a essa definição de Julio Cortázar –, é também uma boa partida de futebol. Quase sempre composta da mesma substância fractal, digamos assim; simultaneamente fluida, sólida, líquida e tendente ao mistério das coisas só razoavelmente resolvidas, mesmo que peremptas, porém franca e enigmaticamente inconclusas. 74 3 - A LINGUAGEM DO FUTEBOL E O FUTEBOL COMO LINGUAGEM: DO JORNALISMO À LITERATURA “Passam pelo futebol brasileiro linhas incontornáveis das interpretações do Brasil, que se irradiam pela música, pela literatura e pelas formas da sociabilidade.” José Miguel Wisnik “Só os idiotas da objetividade não conseguem entender que uma partida de futebol obedece às regras do espanto!” Nelson Rodrigues Conforme uma sugestiva proposição do historiador Hilário Franco Júnior, o futebol pode ser entendido como uma integral metáfora de várias instâncias do viver humano (FRANCO JÚNIOR, 2007, p. 349). Isso porque, em sua abordagem do jogo, ele o compreende como um fenômeno cultural que em última instância se exerce como linguagem; uma linguagem que a nosso ver é irredutível (tem sua autonomia própria) e é imanente (produz efeitos no interior de si mesma), mas também dotada de um potencial de narratividade que força, por isso mesmo, uma aplicação transcendente do seu universo temático. 41 Explica-se: graças ao fato de nutrir-se de códigos verbais (o vocabulário utilizado por jogadores, torcedores e imprensa para falar do jogo) e também não-verbais (a sua linguagem corporal; como numa dança), o fenômeno do futebol poder ser pensado, segundo 41 Sobre este aspecto, e nessa mesma direção de raciocínio, reitera sagazmente tal propriedade desse esporte o professor e crítico literário, José Miguel Wisnik: “O futebol, admitindo na base essa gama ambígua de contatos e choques, regulados e incontroláveis, da bola com o campo e de jogadores com jogadores, supondo acaso, perícia, imponderabilidade, elegância, arte, astúcia, insídia e violência, põe em cena o teatro humano em todo o seu espectro, da finura à grossura extremas”. O crítico literário apóia essas observações nas características intrínsecas do futebol em comparação com outros esportes em que há um foco mais centrado em cada momento contábil do jogo, o que se traduz em números ou em ganho de território, através do embate frontal de performances e competências, exemplos do vôlei, futebol americano, beisebol, entre outros. “No futebol, temos uma seqüência contínua e inumerável de alternativas em que o avanço numérico é um acontecimento entre outros, que se destaca de um magma de possibilidades não cumpridas, de um vai-e-vem de lances falhados ou belos em si. Como sintetiza Gumbrecht, que formulou em bases sistemáticas a diferença do futebol em relação a outros esportes, há uma alternância muito maior da posse de bola entre as equipes antagonistas, uma margem maior de contingência e irredutibilidade aos programas prévios”. Cf. WISNIK (2008a. p. 19, 20, 101 e 102). 75 ainda Franco Júnior, “como ao mesmo tempo [uma linguagem] natural (correr, fugir, enganar, chutar e pegar fazem parte da história evolutiva da espécie); e artificial – [um conjunto de] regras para organizar a representação moderna desses atos primordiais” (FRANCO JÚNIOR, 2007, p. 349). Neste sentido, ainda na sua compreensão do futebol como sendo uma específica linguagem de fundo gestual, Franco Júnior faz uma sugestiva relação entre este jogo e a linguagem verbal tipicamente humana. Diz ele, nessa direção, que o futebol se constitui numa linguagem porque possui morfologia, semântica e sintaxe próprias, apresentando, no entanto, uma particularidade que lhe é essencial: cada falante é coletivo (o time) e seu discurso construído com material dos vários indivíduos (jogadores) que fazem parte de tal comunidade lingüística e que, submetidos à gramática do jogo, desenvolvem roteiro predefinido (tática), porém adaptável às intervenções do interlocutor (o time adversário). Tudo isso – acrescenta o historiador – sob o olhar de muitíssimos outros indivíduos (torcedores), que vêem naquela troca de mensagens, na interatividade daqueles discursos, um sentido que os sensibiliza (FRANCO JÚNIOR, 2007, p. 350). Numa curiosíssima e pertinente teorização comparativa, Hilário Franco Júnior segue traçando as sugestivas relações entre o futebol e a linguagem verbal humana, instrumentalmente transformada numa língua. E já que a unidade básica de todas as línguas é o fonema, conforme sabemos, esta constatação lingüística aplica-se perfeitamente ao futebol, segundo ele. “Já comentamos as unidades menores de forma isolada (passe, drible, chute). Lembremos agora de passagem, que a combinação daqueles gestos compõe frases futebolísticas. Uma troca de passes, mesmo na zona defensiva, apenas esperando melhor posicionamento dos jogadores de frente, constitui uma frase ou sentença, ainda que não faça de imediato o discurso avançar. Na classificação funcional das frases, seria uma interrogação” (p. 358), diz, para concluir mais à frente, que o chute a gol, com a respectiva marcação do tento, nada mais é, no domínio do futebol, do que uma sentença de exclamação, aquela cuja função é exprimir os sentimentos do falante (e de toda a sua comunidade). “Gol é enunciação emocional”, arremata (FRANCO JÚNIOR, 2007, p. 358). São, pois, na sua avaliação, essas características de pertinência que tornam o futebol uma linguagem de si mesmo e metáforas de outras linguagens. Daí porque decidimos estudar o seu providencial – diríamos até mesmo, inevitável – aproveitamento enquanto linguagem transversal (que perpassa outras linguagens) pela também linguagem da Literatura (porque literatura é também jogo de linguagem) dentro da perspectiva de que há sempre, em 76 todo jogo, elementos que transcendem as necessidades imediatas da vida e que transferem significado à ação. 42 Assim considerado, portanto, o futebol permanece em si mesmo, com efeito, um campo de linguagem própria. Assim como a literatura, uma linguagem autônoma e auto- significante. Aquele algo tão grandioso que talvez seja impossível de aumentar, como certa vez disse dele o escritor e filólogo Deonísio da Silva.43 Mas é também, como vimos, uma linguagem permeável a outras linguagens por causa do seu particular funcionamento simbólico. Acrescente-se a esse fato cultural (o peculiar funcionamento simbólico do jogo) o dado característico de ser o futebol, na sua multiplicidade fenomênica, uma linguagem singular e relacional do homem, posto que é não verbal e, como a própria ontologia dos signos de que se nutre, em termos semiológicos, baseada numa unidade de sentido transitiva e objetivamente móvel, cambiante e reversível, que é a relação do corpo humano com uma bola, “esse objeto distinto de todos os outros – sem quinas, pontas, dorso ou face, igual a si mesmo em todas as direções de superfícies –, que rola e quica como se animado por uma força interna, projetável e abraçável como nenhum”, no arguto dizer do crítico literário José Miguel Wisnik (2008a, p. 57). Decorre daí que o vínculo que pretendemos demonstrar que a literatura tem com a bola (esta entendida aqui como metonímia extensiva do próprio jogo de futebol) é uma conjunção de laços fortes, sólidos, baseado em afinidades constitutivas comuns, pois que a palavra – quando literária – também se sustenta numa relação fluida, sempre em curso, nunca parada, sempre transitiva, do seu corpo físico (o significante lingüístico) para com a coisa que representa (designa), o seu referente a quem empresta sentido: o objeto representado. Seguindo as notações dessa ligação entre o futebol e a literatura, portanto, diríamos, a princípio, que a relação entre esses dois campos de linguagem se dá em dois níveis principais. Um estrutural – a literatura apanharia o futebol enquanto matéria significante –, e outro motivacional: o futebol entraria na literatura como uma extraordinária fonte de preocupações temáticas, com toda a sua gama (ou amálgama) de personagens e tipos humanos, situações e aporias existenciais constitutivas, vicissitudes potenciais que encena e desafios socioculturais que coloca a nossa frente; enfim, o futebol se apresentaria à literatura 42 Na conceituação que Johan Huizinga faz do jogo, ele destaca a sua função significante no propósito de que não se trata apenas de um fenômeno fisiológico ou de reflexo psicológico, mas que em si mesmo ele encerra um certo sentido. O delírio das multidões em torno de uma partida de futebol; o grau de fascinação que o jogo exerce na platéia e nos próprios jogadores, por exemplo, não podem ser explicados, segundo este pensador, apenas por razões biológicas. Daí a sua concepção do jogo como função da cultura, por excelência. Cf. MARQUES, José Carlos. Op. Cit. p. 30. 43 Cf. Artigo do autor disponível em: Acesso em: 03 mar. 2009. 77 como uma espécie de espaço de representação em que a sua dimensão ficcional se realiza na prática vivencial também enquanto um jogo. Para tentarmos fechar essa equação de sentidos das linguagens futebolística e literária, reforçaríamos a respeito desse vínculo o seguinte: a literatura é uma supra-linguagem nutrida de todas as outras, mas, ao mesmo tempo, só redutível a si mesma e apta a captar o mundo na sua realidade mutável e cambiante, na sua operação alucinante de ser e de não ser, simultaneamente; no seu aspecto de realidade palpável e de irrealidade alucinatória onde, às vezes, o que parece ser não é; e o que é, não parece ser. O futebol, por outro lado, quando compreendido como um fenômeno que vai além daquele jogo realizado em quatro linhas de um espaço retangular; quando enxergado como um acontecimento sociocultural de amplo alcance (veja-se o fato de ser aceito por quase todas as culturas do mundo), é também uma supra-linguagem só redutível a si mesma, mas apta, todavia, a recolher e espraiar os múltiplos sentidos culturais que se impregnam na sua operação simbólica básica, que é a de – através de um rito primordial, o homem enfrentar o outro (e, por decorrência especular, a si mesmo) através de uma guerra simbólica em que o fundamento não é a morte, o aniquilamento do outro, mas a sobrevivência de todos, numa perspectiva festiva e prazerosa.44 Algo que só a arte pode dar ao realizar, na prática, a utopia existencial fundamental do ser humano: a sobrevivência pacífica – embora que conflituosa, o que o esporte ritualiza – e livre entre os diferentes seres e povos, que são, em última instância, seus semelhantes. Tudo isso mediado pelo tempo e pelo poder de criar. E criar, fundamentalmente, sentido para o mundo.45 44 Para o pensador francês Bernard Jeu, o esporte, antes de tudo, possui um sentido trágico porque nele há sempre uma contradição inevitável dos oponentes, que resulta no aparecimento de uma “violência” de caráter ritual. Portanto, trata-se de uma violência que obedece a regras preestabelecidas ao contrário da violência comum, no literal sentido do termo. Apud MARQUES, José Carlos. Op. Cit. p. 35. 45 É dentro deste escopo de interpretação do futebol que, analisando-o como um fenômeno cultural típico da agenda idológico-programática do movimento modernista brasileiro (entendendo-o como uma querela eminentemente modernista, enfatize-se) o pesquisador Bernardo Buarque de Hollanda refere-se a uma palestra proferida por Oswald de Andrade em 1938, em São Paulo, onde o escritor procurara situar este jogo no quadro das expressões coletivas do homem, que tem como base um fundo estético. Segundo o pesquisador, o poeta modernista vai recorrer aos grandes espetáculos da história para falar do futebol. Neste contexto, diz Bernardo Buarque, em abono às inferências oswaldianas, “ao lado do cinema e das paradas militares, o futebol absorvia as formas dramáticas do teatro, da dança e da missa, evidenciando a íntima ligação estética entre os espetáculos da época moderna e os rituais milenares da humanidade”. Tudo isso, conforme o pesquisador, muito em consonância com a concepção de jogo defendida pelo historiador holandês, Johan Huizinga, já explicitada no primeiro capítulo deste trabalho, e explicada pelo pensador italiano Umberto Eco para quem “Huizinga maneja sua idéia de jogo a partir de uma noção de ‘cultura’ como complexo de fenômenos sociais do qual faz parte, em condições iguais, tanto a arte como o esporte, tanto o direito como os rituais funerais”. Cf. HOLLANDA, B. B. B. O descobrimento do futebol: modernismo, regionalismo e paixão esportiva em José Lins do Rego. Rio de Janeiro: Edições Biblioteca nacional, 2004. p. 100, 101 e 103. Para ler a conferência de Oswald de Andrade na íntegra, Cf. ANDRADE, O. “O burguês infeliz criador de pintura”. In: Estética e política. São Paulo: Globo, 1994, p. 155. E para ler o ensaio de Umberto Eco sobre as concepções de jogo 78 É talvez por isso mesmo que um pesquisador deste fenômeno cultural que é o futebol, o professor e escritor mineiro, Marcelino Rodrigues da Silva, tenha também, neste mesmo diapasão, aproximado conceitualmente (junto com a escrita do jornalismo esportivo), o esporte em geral com esta “atividade discursiva mais nobre a que temos chamado de ‘literatura’”, no seu próprio dizer, e demonstrado as semelhanças e os pontos de contato comuns entre ambos, através do que, segundo ele, podemos exercitar outras maneiras de ver o mundo e, por conseqüência, no mesmo movimento confluente, firmarmos outras formas de conhecimento sobre ele (SILVA, 2006, p. 214). Nesse sentido, apenas a título de exemplificação do que já dissemos, assinalemos aqui algumas afinidades constitutivas que ligam, conceitualmente, a literatura com o futebol, nesse âmbito estrutural de que falamos um pouco acima. E lembremos, ao ensejo, que o liame comum a ambos os campos de linguagem é o fato de serem acima de tudo meios de expressão estética. Ou seja: linguagem e arte puras, em todos os sentidos, ângulo sobre o qual os abordaremos neste estudo nosso. O futebol tem em comum com a literatura, portanto, nessa perspectiva estrutural e ontológica já aludida, ao menos o seguinte, conforme poderemos constatar ao longo desse trabalho devido ao seu escopo analítico-interpretativo que toma textos literários do tema desse jogo como base: • ambos constituem um tipo de jogo (um de bola, outro de palavras) e como tal possuem suas regras; • tanto o escritor quanto o jogador de futebol inventa dentro de certos limites, sendo a subversão radical desses limites a arte dos gênios nos dois casos; • essas regras, nos dois campos, a despeito do seu teor prescritivo e ordenador, existem para permitir a entrada do imponderável, do inesperado, do toque do aleatório (vide um final inesperado de um conto, por exemplo, ou uma jogada genial de um Garrincha, aquela que resolve a partida (Em tempo: Garrincha só driblava para um lado, e quase sempre o mesmo drible, mas zagueiro nenhum o detinha; era o inesperado dentro do esperado, assim como na boa literatura); • ainda quanto às regras, nos dois casos, elas dependem da interpretação (do árbitro e do jogador, no futebol; e do leitor, na literatura) e isso deixa aos dois campos um espaço de criação de sentidos em aberto; esposadas por Johan Huizinga, Cf. ECO, Umberto. Sobre os espelhos e outros ensaios. Tradução de Beatriz Borges. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p. 269-285. 79 • esse espaço de sentidos em aberto cria um mundo à parte, fora da lógica da vida comum e do cotidiano vivencial das pessoas: um mundo com começo, meio e fim presumível, mas, contudo, imprevisível (compare-se um romance e uma partida de futebol, nesse contexto: ambos começam, se desenvolvem, criam climas, suspenses e se concluem para um novo começo, deixando ainda uma área de especulações interpretativas para o que poderia ter sido e que não foi); • aqui, entra outra dimensão importantíssima dos dois campos: a intervenção das artimanhas do acaso, que gera fantasia: veja-se a importância do chamado “montinho artilheiro”, no futebol, aquela saliência que às vezes há no campo de jogo e que, sem ninguém esperar, põe a bola pra dentro do gol, sem intervenção humana alguma. Ou, na literatura, um homem-personagem irromper e de repente virar um inseto, uma barata, como caso de Gregor Sanza, no conto A metamorfose, de Franz Kafka; • os dois campos se constituem de elementos estruturais em comum: há sempre uma narração, e, portanto, um narrador (ou vários narradores-autores); há sempre um tempo a ser decorrido e, portanto, é um domínio em que o tempo precisa ser dominado, embora isso seja impossível técnica e conceitualmente falando. Se há narração, existem personagens e, a partir deles, ações que se desenvolvem no tempo e no espaço; e, por último, tudo isso forma um enredo, que constituem uma partida de futebol em si mesma, ou uma peça literária, seja ela um conto, um romance ou um poema, enfim. Assim considerado, entretanto (voltando aos aspectos históricos da relação desse jogo com as nossas letras), se o fenômeno do futebol como tema passível de transposição literária com viés ficcional ainda não tinha, até o começo da primeira década do século XX, entrado para a literatura brasileira, nossa literatura, por sua vez, como repositório natural, e privilegiado, de questões atinentes ao universo da nação republicana em transformação por este período, entra para o futebol forçando a porta. Literalmente, invadindo o campo. Esse momento tem um marco factual e simbólico (o ano de 1915) através das figuras dos escritores e jornalistas, a exemplo de um Coelho Neto, que liderou a primeira invasão de campo do futebol carioca, inconformado com um juiz que marcara um pênalti a favor do Flamengo num movimentado Fla-Flu, no campo da Rua Paissandu, e que acabou provocando a anulação do 80 jogo,46 e Lima Barreto, que neste mesmo ano publicou, na revista Careta, o que pode ser o primeiro conto de ficção tematizando o futebol no Brasil,47 embora pareça ter sido mesmo João do Rio o jornalista que primeiro tratou do tema na imprensa brasileira, através de uma abordagem cronístico-literária.48 A despeito de situarmos por essa época o encontro das coisas do futebol com as coisas da literatura, num contexto de viva discussão pública de questões atinentes às singularidades da nacionalidade brasileira em formação, tendo a pena de escritores e jornalistas como instrumentos privilegiados de emulação e formalização verbal – tópico a que retornaremos oportunamente –, é necessário voltarmos um pouco essa história para outro 46 O fato é referido em pelos menos duas fontes da literatura histórico-memorialística do futebol brasileiro: segundo endosso historiográfico do pesquisador Leonardo Pereira, em passagem à página 81 do livro do filho do próprio Coelho Neto, o também escritor Paulo Coelho Neto, O Fluminense na intimidade, Volume 2, Rio de Janeiro: s.n., publicado em 1969; e também pelo jornalista Sandro Moreyra, no prefácio que fez ao livro A loucura do futebol (ver bibliografia) da socióloga americana, Janet Lever, à página 9 desta obra, conforme também endosso do pesquisador Bernardo Borges Buarque de Hollanda. Para estas referências, Cf. PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro – 1902-1938. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 207, e HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. O descobrimento do futebol: modernismo, regionalismo e paixão esportiva em José Lins do Rego. Rio de Janeiro: Edições Biblioteca Nacional, 2004, p. 188, respectivamente. É oportuno lembrar aqui a atualização mais recente desses episódios envolvendo escritores entusiastas do futebol. Dois relatos de contemporâneos seus – do escritor Paulo Mendes Campos e do jornalista Luciano Trigo – dão conta de que o romancista e cronista esportivo nas décadas de 1940 e 1950, José Lins do Rego, torcedor fervoroso do Flamengo, também teria se envolvido em fatos de natureza idêntica em jogo do seu clube. Cf. CAMPOS, Paulo Mendes. O gol é necessário. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 92, e TRIGO, Luciano. Engenho e memória: o nordeste do açúcar na ficção de José Lins do Rego. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002, p. 143. 47 Ao menos foi a esta conclusão que chegamos com a nossa pesquisa de contos sobre futebol produzidos no Brasil cuja metodologia, extensão e abordagem explicitamos mais à frente, no capítulo 4. O conto intitula-se, A biblioteca, e foi publicado originalmente na revista Careta, no ano de 1915, e depois incluído na primeira edição da coletânea Histórias e sonhos, editada por Schettino em 1920, a única reunião de contos de Lima Barreto publicada em vida. 48 Refiro-me aqui ao tipo de registro literário de temas da realidade brasileira feito por escritores e jornalistas do século XIX e início do XX, as chamadas crônicas de costumes, que, nas palavras do crítico literário Afrânio Coutinho, funcionaram como uma espécie de “fator de transição” da crônica para o conto e que, também conforme o estudioso Alfredo Pujol, no seu livro sobre Machado de Assis, exemplificando com os folhetins de Francisco Otaviano, Joaquim Manoel de Macedo, José de Alencar e Ferreira de Menezes, entre outros, “eram as vezes obras de ficção e de dourada fantasia, buriladas ao acaso da imaginação e da sensibilidade”. Cf. COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. v.6. – 3. Ed. – Rio de Janeiro: José Olympio Editora; Niterói: UFF- Universidade Federal Fluminense, 1986, p. 48. Diz ele: “De fato, nessas crônicas ou folhetins, a que se devem acrescentar ainda os de França Jjúnior e os do próprio Machado, na sua forma de relatos de acontecimentos atuais, muita vez simples fait-divers, a que o autor dava o toque da sua arte literária, é que ia tomando corpo e forma definitiva o genuíno conto brasileiro”. Idem. Ibidem, p. 49. Embora os textos de João do Rio fossem pautados por critérios jornalísticos, no sentido de visarem primeiramente a comunicação de veracidades factuais, objetivamente comprováveis na realidade de sua observação cotidiana, cremos que no tocante ao seu estilo de escrita podemos dizer que havia, na sua obra jornalística, uma orientação tendente ao registro cronístico-literário dos costumes cariocas do seu tempo. O futebol entra pela primeira vez nas suas preocupações temáticas em um texto sem título, publicado na coluna “Os Sports/O futebol”, página 1, da Gazeta de Notícias, em 26 de julho de 1905, onde se comenta uma visita feita ao estádio do Fluminense Foot-Ball Club e o novo esporte da moda. Cf. João do Rio: catálogo bibliográfico – 1899-1921. João Carlos Rodrigues. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura – Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1994. p. 40. É importante destacar também aqui o caso pioneiro de Monteiro Lobato, que nos dias 10 e 17 de junho de 1905, no jornal O Povo, de Caçapava, São Paulo, publica um artigo intitulado “Futebol” e que segundo os historiadores Cláudio Bertolli Filho e José Carlos Sebe Bom Meihy, foi a única menção conseqüente que o escritor fez do esporte. Cf. MEIHY, José Carlos Sebe Bom e WITTER, José Sebastião. Org. Futebol e Cultura: coletânea de estudos. São Paulo: Imprensa Oficial – Arquivo do Estado, 1982, p. 105-111. 81 momento em que paisagem parecida, no mundo das nossas letras, formatava, bem no início do movimento romântico, as formas várias do nascente registro ficcional dos nossos problemas. Era o momento do nascimento do gênero conto na ainda incipiente literatura nacional sobre o quê vale a pena elaborarmos algumas notas, já que é nesta forma literária que vamos situar, posteriormente, a presença do futebol enquanto temática específica, já ajustada a essa idéia geral da discussão pública do modo de ser do Brasil.49 A esse respeito, nos diz Barbosa Lima Sobrinho, em pioneiro e cuidadoso estudo historiográfico sobre o gênero (LIMA SOBRINHO, 1960, p. 16-19), que a forma conto se divulgou no Brasil, como um gênero literário autônomo, na fase da influência romântica em nossas letras, chamando atenção para a influência do jornalismo nesse processo. Seus primeiros escritores foram os melhores jornalistas da época, Justiniano José da Rocha, Pereira da Silva, Josino do Nascimento Silva, Firmino Rodrigues da Silva, Francisco de Paula Brito, Vicente Pereira de Carvalho Guimarães, Martins Pena, João José de Sousa e Silva Rio. Esses é que foram, efetivamente, os precursores do conto no Brasil (LIMA SOBRINHO, 1960, p. 16 a 19).50 Acrescenta em seguida, e em adendo, explicando um contexto histórico que nos serve aqui, o mesmo Barbosa Lima Sobrinho: A primeira impressão que eles nos dão é a de jornalistas, habituados com os modelos europeus, e interessados a transportar para o Brasil um tipo de ficção, que estava sendo um dos fatores de êxito dos periódicos literários ou políticos do Velho Mundo. Essa razão, porém, é antes jornalística do que literária (Idem, Ibidem, p. 22).51 Observaríamos – e ajuntaríamos a esse propósito –, que essa razão é tanto jornalística quanto literária, se considerarmos a ausência de fronteiras nítidas entre essas duas 49 A idéia geral da discussão pública do modo de ser do Brasil tem seu gérmen inicial na criação dos primeiros jornais brasileiros após a chegada da Impressão Régia, em 13 de maio de 1808, e toma forma primordial e definitiva, no sentido de ser guiada pelos princípios gerais da liberdade de pensamento dos brasileiros sobre o Brasil – ainda que inicialmente cerceada pela censura como instrumento de coerção do poder estatal então vigente – com a publicação daquele que pode ser considerado o primeiro jornal verdadeiramente brasileiro, o Correio Brasiliense ou Armazém literário, publicado em Londres por Hipólito José da Costa entre junho de 1808 e dezembro de 1822. Foi no contexto da existência dessa folha que segundo o historiador da literatura brasileira, Afrânio Coutinho, “logo surgem, na multidão dos escritores, algumas figuras que se havia de ligar não só á indústria da divulgação da notícia, mais ainda ao jornalismo como revelação de um sentimento literário”. Cf. COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. v.6. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora; Niterói: EDUFF, 1986, p. 64. 50 Informa ainda o citado estudo que o primeiro desses contos, composto ainda em estilo intermediário “que não é bem a crônica e se aproxima do conto”, teria sido “A caixa e o tinteiro”, publicado por Justiniano José da Rocha, em seu jornal O chronista, em 11 de novembro de 1836. Porém, só em 1838 é que uma outra narrativa, esta sim, com as características definidoras do gênero conto: brevidade, enredo dramático com começo meio e fim, num desfecho resolutivo bem à moda romântica, intitulada “Um sonho”, publicada no mesmo jornal pelo mesmo autor, que assinou apenas com as iniciais do seu nome, pode e vem a ser considerada pelos historiadores literários o nosso primeiro conto de ficção. Cf. LIMA SOBRINHO, Barbosa. Os precursores do conto no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960, p. 16 a 19. 51 Ver também COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. v.6. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora; Niterói: UFF-Universidade Federal Fluminense, 1986, p. 46. 82 formas de conhecimento da realidade (o jornalismo e a literatura) que grassava à época. E completaríamos, corroborando esse nosso entendimento da questão, com o assentimento do mesmo autor quando ele diz que é a partir de 1840 que o cultivo da ficção, no Brasil, passa a ter significado maior, por ser, com a poesia e o teatro, “a manifestação mais ajustável ao papel que a imaginação deveria desempenhar na fase romântica” (COUTINHO, 1986, p. 46.), dentro do panorama geral da formação da literatura brasileira. Temos, portanto, aqui, um quadro em que se prenuncia, nas nossas letras, mesmo que de longe, a criação das bases sobre as quais a chegada do jogo de futebol no Brasil (que ocorreria na segunda metade do século XIX como mais uma componente cultural da problemática geral da construção da nossa nacionalidade 52 – leitmotif da práxis romântica em nossa literatura) poderia ser inserida no rol futuro das preocupações dos nossos ficcionistas, já que por este período de nossa história literária ele só poderia entrar, ainda que timidamente e de forma residual, nas incipientes coberturas jornalísticas de esportes da nossa imprensa. Ou seja: como mero registro factual de sua ainda pouca influente participação na nossa vida social. Para sermos ainda mais preciso nos termos: o futebol adentrava então – ou só poderia adentrar – a literatura brasileira em sentido amplo, mas não ainda no seu sentido estrito. Explicitamos aqui, a propósito, que a nossa compreensão dos conceitos de literatura em seu sentido amplo e estrito se assenta nos seguintes pressupostos: no sentido mais amplo, literatura é tudo o que é impresso ou mesmo manuscrito, como registros de linguagem referentes a pensamentos, ações e idéias vigentes ou por viger em uma dada cultura, incluindo-se aí o que conhecemos como literatura oral. Radicalizando ainda mais essa extensividade do conceito, afirmamos mesmo que ele engloba todos os registros de linguagem de uma determinada cultura. Apoiando-nos, pois, nas idéias do teórico do campo, Antoine Compagnon (COMPAGNON, 2001, p. 34), observaríamos que, no seu sentido estrito, a acepção de literatura (fronteira entre o literário e não literário) varia consideravelmente segundo as épocas e as culturas sendo o cerne da questão de sua conceituação adequada o caso da possibilidade ou 52 Acostamo-nos aqui às observações da socióloga Fátima Martins Rodrigues Ferreira Antunes que ao pesquisar justamente a obra cronística de três autores destacados neste capítulo, que julgamos fundamentais para o desenvolvimento do tema do futebol, no seu percurso que vai do jornalismo à literatura de ficção, a saber: Mário Filho, José Lins do Rego e Nelson Rodrigues –, salienta que, “mais que qualquer outra forma de produção de conhecimento, a literatura, tradicionalmente, cumpriu um papel destacado na formação de uma consciência nacional no Brasil. Por meio dela, sondou-se a realidade do país, seus problemas e o modo de vida de seu povo”. Segundo ela, teria sido após a nossa independência política, ocorrida em 1822, que as manifestações literárias procuraram destacar as particularidades do novo país e da nascente nação, em seus aspectos culturais, sociais e também lingüísticos, sinteticamente explicitados ao longo deste estudo. Cf. ANTUES, Fátima Rodrigues Ferreira. Com brasileiro não há quem possa! Futebol e identidade em José Lins do Rego, Mário Filho e Nelson Rodrigues. São Paulo: EdUNESP, 2004, p. 28. 83 impossibilidade de defini-la a partir dela própria. Ou seja; o termo literatura tem uma extensão mais ou menos vasta segundo os autores que tratam do tema, englobando algo que vai dos clássicos escolares à história em quadrinhos, passando pela discussão pública de idéias em geral (artísticas, científicas ou filosóficas), às novidades poetizadas em cordel até o jornalismo noticioso ou opinativo, entre outros, sendo difícil justificar, por isso mesmo, a ampliação contemporânea da extensividade do seu campo.53 Importa, entretanto, que frisemos aqui, conclusivamente, nessa formulação teórica sobre a literatura em sentido geral, a necessidade de incluirmos os registros jornalísticos da realidade como sendo também uma espécie de literatura em sentido amplo, concordando, por exemplo, com as observações do pesquisador Ivan Cavalcanti Proença quando este se refere a textos da crônica esportiva, pela sua constatação de que “muitas dessa crônicas, antes de impressões ou comentários sobre um jogo, um jogador etc, na verdade são Literatura, a partir do nosso conceito de crônica em presença de Literariedade” (PROENÇA, 1981, p. 28). Mas voltemos ao ponto em que, cronologicamente, podemos situar o encontro do futebol como tema inevitável à pena daqueles que eram encarregados de fomentar o debate público das questões culturais de nossa vida social: os jornalistas e escritores. Os primeiros registros sobre o futebol no Brasil, conforme enfatizam os historiadores do assunto, se deram pela via jornalística e nisso o problema não se distingue do caso das primeiras narrativas de ficção na forma de histórias curtas, o nosso futuro conto ficcional. Como vimos, disso deriva que as primeiras “manifestações literárias” que apanham o futebol como tema público, no Brasil, são ainda mediadas pelas formas de escrita do campo jornalístico: as primeiras notas e reportagens sobre o jogo. Só depois é que o tema vai transitando do campo meramente jornalístico (âmbito da literatura em sentido amplo) para o espaço da literatura em sentido 53 Na sua teorização do conceito geral de Literatura, os críticos norte-americanos, René Wellek e Austin Warren, explicam o fenômeno literário a partir da idéia de ficcionalização, imaginação ou invenção de dados da realidade como sendo o processo distintivo e característico dessa forma de escrita, por isso mesmo de caráter artístico, mas admitem a incorporação, a essa rubrica geral, de algumas formas fronteiriças de escrita sobre o real. “Concedemos que existirão casos ‘fronteiriços’, obras como a República de Platão, nas quais não se podem ignorar passagens de ‘invenção’ ou de ‘ficcionalidade’, pelo menos nos grandes mitos, não obstante serem simultaneamente, e primordialmente, obras de filosofia. Esta concepção de literatura é descritiva, e não é valorativa. Não se cometerá grande injustiça para com uma obra grande e exemplar pelo mero fato de a relegar para o campo da retórica, ou da filosofia, ou do panfletarismo político, porque todos esses campos se podem pôr problemas de análise estética, de estilística e de composição, semelhantes ou idênticos aos postos em literatura, só com a diferença de que naqueles faltará a qualidade central da ‘ficcionalidade’”. Cf. WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da Literatura. 4. ed. Tradução de José Palla e Carmo. Biblioteca Universitária – Mira-Sinta/Portugal: S.d., p. 28-29. 84 estrito; o seu tratamento ficcional através de crônicas, poesias, contos, teatro, e mais recentemente, o romance.54 Temos aqui, nos dois casos, o critério do estilo de época,55 aplicado às formas de escrita, como o único meio adequado à tarefa de juntar e separar, à mesma plana, a inserção do tema desse jogo na nossa literatura. Vejamos, então, em que isso consiste. Como ficou dito antes nesse nosso estudo, a prática do futebol chega ao Brasil entre os anos de 1879 e 1894, portanto, na segunda metade do século XIX. Nesse período, momento imediatamente posterior à ocasião em que a literatura brasileira empenhou-se em definir seus contornos gerais por meio da escola romântica, isto é, enquanto um conjunto de textos que fundia temas, estilos e uma dada concepção de vida ligada a uma época, tendo a prática da escrita ficcional como modalidade condutora do processo, o assunto futebol sequer existia como realidade própria. A não ser nas poucas cabeças (e pés) daqueles educadores jesuítas que aos poucos difundiam o jogo entre os seus pupilos, já com uma perspectiva um tanto compatível com as preocupações encaradas no geral pelo movimento romântico em nossa cultura. Isso significava, queremos crer – como um projeto em franco desdobramento – a compatibilidade da criação de uma nação brasileira independente fundada em bases civilizatórias com fonte haurível na Europa e, neste particular, o futebol, cuja difusão inicial 54 O crítico literário Álvaro Lins, por exemplo, acusa pela primeira vez a presença do futebol na literatura brasileira, no gênero romance, através do escritor José Lins do Rego e sua obra, Água-mãe, cuja primeira edição é de 1941 e possui um jogador de futebol com relativo destaque na trama. Convém frisar, entretanto, que Monteiro Lobato e Godofredo Rangel, no romance, O queijo de Minas ou história de um nó cego, escrito de parceria e publicado em 1906 e 1907, introduzem um personagem na trama do livro que também é jogador de futebol (jogava de full- back) e outro que era golquípar, e mais ainda um clube de futebol. Ateste-se também que, em 1940, em edição do próprio autor (sem uma distribuição válida), aparece Flô, o melhor goleiro do mundo, de Thomaz Mazzoni, este, talvez, o primeiro romance na literatura brasileira a ter o futebol como tema central. Os interesses da companhia, de Gilberto Amado, editado em 1942, apresenta, com algum realce, outro jogador de futebol e, mais tarde, não só personagens mas o jogo mesmo estão em Informação ao Crucificado, de Carlos Heitor Cony, em O espelho partido, de Marques Rebelo, e Passagem dos inocentes, de Dalcídio Jurandir. Mas invariavelmente de maneira episódica, nunca como base da história. Atualmente, com efeito, a literatura romanesca que tem o futebol como destaque temático, tem crescido muito. Vejam-se à guisa de exemplo, apenas, os seguintes títulos, entre outros: O sol escuro, de Macedo Miranda (1968); O grande Dobson, de Nelson Salasar Marques (1977); Um lance de craque, de Wagner Finholdt (1993); Coadjuvantes, de Gustavo Piqueira (2006); Cartão Vermelho, de Dimmi Amora (2006) e O paraíso é bem bacana, de André Sant`anna (2006). 55 Embora se posicione sobre este assunto, abordando-o pelo ângulo da Lingüística aplicada ao campo da Literatura, o professor Massaud Moisés se utiliza do conceito de estilo, proposto pelo lingüista, Nils Eric Enkvist, para dele retirar a variante conceitual de estilo de época. Para o lingüista sueco, portanto, “o estilo de um texto é o conjunto de probabilidades contextuais dos seus itens lingüísticos”. Entendendo que dentre essas “probabilidades contextuais” está ação do tempo sobre os atos lingüísticos, tomamos, aqui, o conceito de estilo de época no sentido para ele definido por Massaud Moisés como sendo “as soluções lingüísticas empregadas por vários indivíduos em determinado lapso de tempo (por exemplo, o estilo romântico, o estilo realista, o estilo impressionista etc.), cuja investigação pertence à chamada Estilística da expressão”. Cf. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1999, p. 204-5. Uma vez que o dicionarista propugna que é procedente vincular o estilo à questão das visões de mundo, naquilo em que o estilo implica uma dada forma de conceber o homem e a sua realidade respectiva, achamos que tal conceito serve apropriadamente à aplicação que dele fazemos ao discurso jornalístico praticado pela imprensa brasileira no século XIX e início do XX, em análise neste tópico do nosso trabalho. 85 no Brasil se deu pelas mãos e pés da sua elite econômica e cultural, não diferia dos outros elementos inspiradores do projeto romântico que foram importados daquele continente para cá. Entrávamos, então, por conseguinte, nesse momento da chegada do futebol no País, em plena efervescência da discussão dos efeitos da produção ficcional romântica, na nossa literatura. Já se tinham publicado (e muito se tinham lido), por exemplo, obras não só definidoras, mas, principalmente, consolidadoras dos ideais do movimento cultural que encarnava a questão da nacionalidade como sua força vital, espraiada pelas mais diversas manifestações publicizadas de nossa inteligentzia intelectual. Em termos meramente cronológicos, eram os primórdios do realismo-naturalismo, escola literária imediatamente posterior ao romantismo e que a ele reagiu sob a influência da reforma filosófica produzida também na Europa, com as novas doutrinas positivistas, materialistas, deterministas, evolucionistas; enfim, cientificistas, que orientaram e guiaram toda uma geração que se iniciava na vida intelectual brasileira por volta da década de 1870. Por sua vez, pelo lado da atuação da imprensa nesse processo de formulação e reformulação dos pilares constitutivos da nossa nacionalidade possível, registre-se que era por seu intermédio que a prática do publicismo de idéias (capitaneado por jornalistas-escritores polígrafos, a exemplo de uma turma que o iniciara no romantismo e o remodelara em intensidade e conceito já no desaguadouro do período realista-naturalista, com posterior alcance e renovação timorata até o nosso pré-modernismo – e mesmo dentro do modernismo inicial, chegando até o jornalismo contemporâneo) constrói a base contextual sobre a qual o futebol deságua de vez como tema das preocupações intelectuais e programáticas dos literatos brasileiros. Isso se dá, como já assinalamos, inicialmente através de registros mediados pelas formas de escrita do campo jornalístico: as pioneiras notícias e reportagens sobre o jogo publicadas na imprensa brasileira. Só depois, com a rápida propagação do gosto pela prática do jogo, quando a ele adere de vez não só as elites, mas, com a manifesta reprovação destas, todos os demais estratos sociais da nação, é que o tema entra definitivamente como preocupação mais geral dos escritores brasileiros. Precisamente, no dizer do historiador Leonardo Affonso de Miranda Pereira, num momento em que “definitivamente, parecia que algo havia mudado nos campos da cidade, e o jogo dos rapazes elegantes transformara-se, então, em um grande fenômeno de massas” (CHALHOUB; PEREIRA, 1998, p. 196). Tanto era assim que a imprensa já não mais podia ignorá-lo como tema aproveitável em seus projetos de divulgação de novidades e discussão de idéias. Inicialmente, 86 portanto, o assunto entra na pauta meio que tímida e forçadamente pelas mãos insistentes de jornalistas e esportistas que tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo56 participavam diretamente da prática do jogo e, por conseqüência, tinham interesse imediato na divulgação do esporte. Firmava-se aí o tenro nascimento do que posteriormente viria a se chamar – como braço extensivo do jornalismo em sentido amplo – a autodenominada imprensa esportiva brasileira.57 Estávamos então já no começo do século XX, e fixemos precisamente um domingo, dia 22 do mês de setembro de 1901, quando apareceu, através da imprensa carioca, a primeira informação pública sobre um jogo oficial de futebol no Brasil. Era uma pequena 56 Enfocamos, neste contexto, o Rio de Janeiro e São Paulo porque concordamos inteiramente com a visão do historiador do mesmo tema, Waldenir Caldas, quando ele assim a expressa, nas suas próprias palavras: “Na condição de maiores metrópoles do Brasil, as cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, sempre tiveram o privilégio de ditar normas, comportamentos e de lançar as novidades para o resto do país; aliás, durante muito tempo (talvez até o ano de 1970) o Rio mais do que São Paulo. E nesse aspecto o futebol manteve-se na regra geral: é nessas cidades (elas sempre monopolizaram o futebol brasileiro) que ocorrerão os maiores acontecimentos do país”. Cf. CALDAS, Waldenyr. O pontapé inicial: memória do futebol brasileiro/1894- 1933. São Paulo: Ibrasa, 1990, p. 24. Atualizando a questão, vejam-se as recém empreitadas do Rio de Janeiro no sentido de disputar, ganhar e decidir realizar – inteiramente um e parcialmente o outro – os dois maiores eventos esportivos mundiais: a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas de 2016. 57 Segundo o jornalista André Ribeiro, o nascimento genético do jornalismo esportivo brasileiro teria se dado em 1856, com a criação do periódico O Atleta, que publicava receitas para o aprimoramento físico dos habitantes do Rio de Janeiro. Dentro dessa mesma plataforma informativa, surgiam, pouco depois, em 1885, O Sport e O Sportsman. Já em São Paulo, aparecia, em 1891, A Platea Sportiva, um suplemento de A Platea, criado em 1888. Só dez anos depois, em 1898, é que surgia também em São Paulo, a revista O Sport e o jornal Gazeta Sportiva, periódico de distribuição gratuita que circulava somente aos domingos e que não tem nada a ver com o futuro jornal homônimo criado pelo jornalista Casper Líbero. Registre-se, entretanto, que em nenhuma dessas publicações o assunto futebol era prioridade, recebendo destaque maior o turfe, as regatas e o ciclismo. Os grandes jornais da época eram O Estado de S. Paulo, Correio Paulistano e A Platea, em São Paulo; no Rio de janeiro, Jornal do Commercio, O Paiz, Gazeta de Notícias, Jornal do Brasil e Correio da Manhã. Começavam a surgir também, as grandes revistas semanais como Revista da Semana, O Malho e Kosmos. Cobrindo o esporte, a Semana Sportiva, no Rio de Janeiro, e Vida Sportiva, em São Paulo. Enfatize-se mais uma vez que, “futebol nesse espaço nobre, muito, pouco, quase nada”, como frisa Adré Ribeiro. A título de contribuição ainda a esta questão histórica do nascimento da crônica esportiva no país, é oportuno aqui darmos a palavra a um dos seus primeiros historiadores, o jornalista Paulo Várzea. Não sem antes, contudo, inserirmos uma introdução oportuna a respeito do tema, feita pelo também jornalista, Milton Pedrosa, no prefácio do seu livro O olho da bola, publicado em 1969, sob o pertinente título, “A crônica esportiva e o cronista de futebol”. Depois de assegurar que a crônica esportiva de futebol nasceu junto com o século XX, diz ele: “Antes disso – e durante muito tempo com ela – o que dominou foi outro tipo de crônica: a crônica de outros esportes então prestigiados como o turfe, a pelota basca, o ciclismo, a patinação. Os autores que têm tratado do tema têm frisado sempre que as referências ao futebol nos anos anteriores a1900 foram quase nenhuma”. Em seguida dá, através de uma nota, a palavra ao jornalista-historiador Paulo Várzea: “A crônica esportiva paulistana nasceu em 1900, à margem dos torneios atléticos promovidos pelo S. C. Internacional, de colaboração com as sociedades alemãs de ginástica, S. C. Germânia, Turnschaff, Associação de Ginástica 1988 e C. A. Paulistano. No Rio, por exemplo, a crônica nasceu nas colunas do Correio da Manhã, na verdade o primeiro diário a pioneirar o jornalismo futeboleiro carioca”. Respectivamente, Cf. RIBEIRO, André. Os donos do espetáculo: histórias da imprensa esportiva no Brasil. 1. ed. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2007, p. 25 a 27, e PEDROSA, Milton. O olho na bola. Rio de Janeiro: Livraria Editora Gol, 1968, p. 5 e 6. Para consultar a versão direta e integral de Paulo Várzea, Cf. VÁRZEA, Paulo. A sociedade que criou e desenvolveu o futebol em São Paulo. In: FEDERAÇÃO Paulista de Futebol. 60 anos de futebol no Brasil. São Paulo: Federação Paulista de Futebol, 1954, p. 259. É importante registrar também, no mesmo sentido supramencionado, a publicação, em 1854, da crônica intitulada, “Primeira corrida no Jóquei”, do escritor José de Alencar, tida por muitos como o texto iniciador da cronística sobre esportes no País. Cf. BANDEIRA, Manuel; ANDRADE, Carlos Drummond de. Org. O Rio de Janeiro em prosa e verso. v. 5. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1965, p. 209-210. 87 nota em que se noticiava, através das páginas do jornal carioca Correio da Manhã, em sua seção denominada Sport, que: No vasto campo do The Rio Cricket, em Icarahy, realiza-se hoje, pela primeira vez, no Rio de Janeiro, uma partida de foot-ball. O jogo principiará as 8 horas da manhã, sendo dois os partidos, com as denominações de Brasil e Inglaterra. O enthusiasmo é grande; palpitamos pela victoria do primeiro dos bandos (CORREIO da Manhã, 22 set. 1901, p. 3, grifo nosso). 58 Quanto a esta informação, uma pequena nota de nove linhas que ocupava a oitava coluna da página três daquele jornal, é importante explicitarmos as circunstâncias de sua produção enquanto notícia jornalística. Ela antecedeu em pouco menos de um mês uma estratégia deliberada de jornalistas e esportistas para pautar o assunto futebol na imprensa brasileira. Já consideravelmente implantado enquanto um esporte novo na cidade de São Paulo desde 1895, ano em que Charles Miller realizou a primeira partida organizada do jogo, envolvendo os quadros – como se chamava na época – do São Paulo Railway Team versus Gas Work Team (RIBEIRO, André. 2007, p. 20.), sem que, contudo, a imprensa sequer tivesse dado bola para uma prática que então já envolvia parte considerável da jovem elite paulistana, o futebol, segundo a opinião majoritária dos seus principais praticantes na paulicéia – uma turma de jovens abastados que costumava se reunir para discutir o assunto –, precisava agora se tornar um assunto público. Essa turma, que se encontrava costumeiramente na Rotisserie Sportmen, centro de São Paulo, para falar de futebol, era formada por Charles Miller, a quem já nos referimos no capítulo 1 e dispensa comentário; Mário Cardim, que com 18 anos de idade era estudante de Direito e repórter do Estado de S. Paulo; Antônio Casemiro da Costa, o Costinha, que estudava na Suíça onde já praticava o futebol e que de volta a São Paulo, tornou-se sócio do Spor Club Internacional e, posteriormente, primeiro presidente da primeira Liga oficial do 58 O jogo envolvia os times dos jovens brasileiros cariocas do Payssandú Athletc Club, fundado em 1892, no Rio de Janeiro, para a prática do Cricket, e o dos ingleses do Rio Crícket and Athletc Association, fundado em 1896 pela colônia inglesa, em Niterói, com o mesmo objetivo. Essa primeira partida terminou empatada em 1 a 1, sendo marcado um novo jogo, que também terminou empatado, desta vez com o placar de 2 a 2, como informa uma segunda nota, publicada no dia 03 de outubro de 1901, no mesmo jornal Correio da Manhã. Em seguida, é anunciado um terceiro jogo para o qual o cronista do jornal é convidado e a que agradece ao anunciar o fato, no dia 09 de outubro, na mesma página do periódico. Novo confronto de desempate é publicado na imprensa através de uma quarta nota informativa, publicada no dia 15 do mesmo mês de outubro, onde se informa que o jogo anterior terminara mais uma vez “indeciso”, com o placar de 1 a 1, embora não se saiba se esse tal jogo de desempate tenha realmente acontecido, uma vez que o cronista abandona de vez a publicação do evento, a ele não se referindo mais na mesma seção Sport do Correio da Manhã. A realização de tais confrontos esportivos, segundo análise do historiador Leonardo Pereira, atendia a uma lógica segundo a qual os ingleses transformavam-se, assim, por essa época, em grandes difusores de um novo jogo britânico fora de sua pátria: o futebol. Cf. PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro – 1902-1938. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, págs. 24, 25 e 27. 88 futebol, na cidade (embrião da atual Federação Paulista de Futebol); René Vanorden, que também estudara na Suíça, junto com Costinha, e era um dos diretores do Colégio Mackenzie, de onde foi criado um dos primeiros e importantes clubes de futebol da cidade, o Sport Club Mackenzie; Hans Nobiling, imigrante alemão que chegara ao Brasil e fundara o Sport Club Internacional, que posteriormente se desdobrou no Sport Club Germânia; Antônio Prado Jr., filho do então prefeito de São Paulo, Antônio da Silva Prado, e dono da metade dos terrenos do município sob cuja anuência se construiu o primeiro estádio de futebol da Paulicéia; e Artur Ravache, ex-aluno do Colégio Jesuíta São Luis de Itu, e um dos fundadores do Germânia. Foi em torno dessa turma, portanto, que o futebol se estruturou institucionalmente em São Paulo, o que serviu de exemplo para o resto do País. Figura de destaque nesse grupo, por causa da sua posição estratégica na imprensa paulista, na primeira década do século XX, era Mário Sérgio Cardim, o único jornalista que se poderia considerar “especializado” em futebol naquele período. Ele reinava, então, absoluto neste quesito, através da sua atuação profissional na redação do Estado de S. Paulo. Foi ele, por exemplo, o autor do primeiro livro sobre futebol escrito no Brasil, o “Guia de Foot-Ball”, publicado em 1904, e com duas edições sucessivas em 1905 e 1906.59 A obra trazia, por exemplo, informações biográficas sobre os principais jogadores da época; descrição dos times da elite paulistana e carioca; a tabela do campeonato em curso pela Liga Paulista; um capítulo informativo sobre as dimensões e marcações do campo de jogo; outro para iniciantes sobre a prática do jogo e, mais importante ainda, a primeira tradução para o português das regras do futebol, além de instruções para a arbitragem. Este livro foi, segundo o historiador José Moraes dos Santos Neto, a fonte lingüística que estabeleceu um primeiro modelo de crônica futebolística na imprensa diária da época; modelo este que se resumia, nas sua palavras, nos seguintes termos de estilo: Perante numerosa assistência, realizou-se no campo X, mais um jogo do campeonato entre os valorosos elevens dos clubes A e B. O tempo estava ótimo, vendo-se nas arquibancadas muitas senhoras, senhoritas e inúmeros spotsmen. A saída coube ao clube A. O jogo foi bem disputado com o team B praticando belíssimos driblings até a linha das 12 jardas. Ahi o sr. X shootou com força para o goal provocando aplausos das senhoras e senhoritas da nossa melhor sociedade e hurrahs dos senhores (SANTOS NETO, 2002, p. 91). 59 Cite-se também, nesse sentido, outro livro que serviu de referência constante para a crônica esportiva do início do século XX, no Brasil. Trata-se de Sports Atléticos, de E. Weber. Publicado inicialmente na França, em 1905, o livro teve uma versão em português publicada em 1907 pela editora Garnier e tratava dos princípios e técnicas dos diferentes esportes de origem inglesa, tais como o hockey, o lawn-tennis e, claro, o foot-ball. A exemplo do livro de Mário Sérgio Cardim, essa obra detalhava algumas táticas e técnicas do jogo de futebol assim como ensinava os fundamentos do jogo e as qualidades necessárias aos seu praticantes, o que lhe conferia também o status de obra de referência para o trabalho da crônica esportiva de então. Cf. PEREIRA. Op. Cit. p. 35. 89 Alheios ainda a essas questões de estilo, contudo, a idéia desta rapaziada era mesmo que ainda timidamente tornar o futebol um negócio; de início, registre-se, um empreendimento movido apenas pelos ideais do amadorismo desportivo e, aos olhos de hoje, resolutamente romântico. A estratégia consistia em fazer com que o próprio futebol pudesse se sustentar e propagar-se cada vez mais com a organização de campeonatos e a manutenção e disputa dos clubes que já o praticavam. Foi, portanto, movidos por essas idéias que, sabendo do menor desenvolvimento da prática do jogo na capital da República, o Rio de Janeiro, parte dessa turma decide entrar em contato com seus pares cariocas e organizar um jogo entre os dois estados. Vejamos como assinala o fato um dos historiadores da imprensa esportiva brasileira, o jornalista André Ribeiro: Um mês depois, em outubro de 1901, a equipe de Cox embarcou para São Paulo para o primeiro encontro interestadual entre os times das duas metrópoles do país. Tudo pronto para o grande encontro, Costinha convocou Miller e o jornalista Mário Cardim para providenciarem a divulgação nos jornais – afinal, o impacto desta notícia na única grande mídia existente na época poderia dar novo impulso ao futebol e aos candidatos a cartola. [...] E assim foi feito. Nas páginas do Estado de S. Paulo, Cardim escreveu sobre os dois empates ocorridos nos campos do SPAC, na região central da cidade, time em que Charles Miller jogava. Falou da presença de ‘distintas famílias’ e enalteceu a qualidade técnica dos jogadores cariocas, uma grande surpresa para os paulistas, que se imaginavam superiores. [...] Cardim mostrou-se surpreso, também, ao constatar que a maioria dos jogadores do Rio era formada por brasileiros e não por ingleses. Tudo isso foi passado aos jornalistas amigos de Cardim, no Rio de Janeiro. Em poucos dias, os maiores jornais da capital da República, como o Jornal do Brasil e o Correio da Manhã, noticiavam com orgulho a exibição de seus craques em terras paulistanas. Era o que faltava para o futebol ganhar novo impulso também no Rio de Janeiro (RIBEIRO, 2007, p. 25).60 Marco desse novo impulso da institucionalização do futebol no Brasil foi a criação da Liga Paulista de Foot-ball, fundada em 14 de dezembro de 1901, e a decorrente organização do primeiro campeonato oficial de futebol do país, o campeonato paulista de clubes, fundado em 1902 com a participação dos cinco clubes já então existentes na capital do Estado: São Paulo Athletic Club; Sport Club Internacional; Associação Athlética do Mackenzie College; Sport Club Germânia e Clube Atlético Paulistano. No Rio de Janeiro, por outro lado, a realidade do futebol também começaria a mudar depois desses primeiros confrontos com os futebolistas de São Paulo. Após uma segunda experiência entre paulistas e cariocas (os cariocas foram, em 14 de julho de 1902, 60 Sobre estes primeiros encontros e disputas entre o futebol do Rio de Janeiro e o de São Paulo, ver descrição pormenorizada em RIBEIRO, André. Op. Cit. p. 25; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Op. Cit. p. 90, nota 32 e, principalmente, PROENÇA, Ivan Cavalcanti. Op. Cit. p. 22-23. 90 novamente a São Paulo enfrentar o Club Atlético Paulistano, ocasião em que perderam), eles decidem fundar seus primeiros clubes para a prática do novo esporte.61 A derrota que sofriam na partida, vencida pelos paulistas, não foi o único contratempo enfrentado pelos jogadores cariocas: tendo Oscar Cox deixado de fora o capitão do time formado pelos ingleses do Rio Cricket, Mr. Makintosch, este resolveu formar seu próprio clube futebolístico. Fundado em 18 de julho de 1902, ele teve o nome de Rio Foot-ball Club, evidenciando de forma direta sua ligação com os ingleses do Rio Cricket and Atletic Association. Ao lado de estrangeiros como H. Palm e Jacques Roesck já estavam, porém, brasileiros como Raul Brandão, Heitor Luz, Afonso de Castro e Emílio da Rocha Lima, que atribuíam ao novo clube um caráter misto muito diferente daquela antiga associação. Tratava-se, assim, do primeiro clube de futebol formado na cidade, misturando ingleses com outros sócios sem ascendência britânica (PEREIRA, 2000, p. 28). Como decorrência desse início processual de abrasileiramento institucional do futebol, digamos assim, ressalte-se, em adendo a estas observações do historiador Leonardo Affonso de Miranda Pereira, que, decorrente deste mesmo impulso inicial para a criação de clubes de futebol no Rio de Janeiro, vieram em seguida, as fundações do Fluminense Foot- ball Club, em 21 de julho de 1902; do Foot-Ball and Atletic Club, em 27 de setembro de 1903; do The Bangu Athletic Club, em 17 de abril de 1904; do Botafogo Foot-ball Club, em 12 de agosto de 1904 e do América Foot-ball Club, em 18 de setembro de 1904, solidificando, neste ano, um movimento que acabaria por mostrar como “o futebol se consolidava, nesse processo, como um modismo elegante”, na visão do próprio historiador cuja análise apóia e exemplifica com uma observação da imprensa da época, publicada no Jornal do Commercio, em agosto de 1905, e que noticiava o entusiasmo dos “rapazes que se dedicam a este gênero de Sport pela animação que tem tido este ano o foot-ball” (PEREIRA, 2000, p. 28-33). Era o ano de 1905 e o tema do futebol, com efeito, por decorrência direta destes fatos, já passara a fazer parte do rol de preocupações dos principais jornais, pelo menos – e mais diretamente, em São Paulo –, e não foi sem estranhamentos e titubeios de estilo que o assunto aos poucos foi se firmando como item da pauta. É óbvio que a explicação para a “falta de habilidade” dos jornalistas com esse novo tipo de cobertura jornalística pode ser dada pela novidade que era o futebol em comparação com outros esportes que já recebiam considerável menção na imprensa esportiva de então; casos do ciclismo, do remo e, principalmente, do turfe, as corridas de cavalos que tanto empolgavam os membros da elite paulista e carioca do final do século XIX e início do XX. As redações da época, portanto, ainda não estavam preparadas para o novo tema. 61 Sobre essa nova viagem dos futebolistas cariocas a São Paulo para enfrentar os paulistas do Club Atlético Paulistano e os fatos dela decorrentes, consultar, mais uma vez, PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Op. Cit. p. 28 e seguintes. 91 Quem escrevia nas redações era chamado de “noticiarista”, que recebia informações externas e as transformava em notícias. No assunto futebol, dirigentes e sócios dos clubes eram as principais fontes que alimentavam os noticiários. A informação, quando divulgada, tinha de ser feita de maneira objetiva, sem detalhes; bastava dizer qual o jogo, local e resultado, até porque os jornais desse período eram muito “pequenos”, com quatro ou cinco páginas, no máximo. O jogo em si não era importante (RIBEIRO, 2007, p. 25). Pois bem. Cremos que por dois motivos, a observação acima, feita pelo jornalista André Ribeiro, é relevante e esclarecedora, em termos de linguagem, quanto ao tratamento dado pela imprensa de então ao tema futebol: em primeiro lugar pelo que revela; em segundo, pelo que esconde, nas suas entrelinhas. Ela dimensiona, por exemplo, o teor daquela primeira nota jornalística em que o futebol é anunciado para o público, que agora poderia assistir “pela primeira vez, no Rio de Janeiro, uma partida de foot-ball”. Colocando-se objetivamente já como instância intermediadora deste fato social, o discurso jornalístico apresenta-se e apresenta, em seguida, uma de suas facetas características, a parcialidade (ligada à emotividade com que tratará sempre o tema) que o estruturará como linguagem: “O jogo principiará as 8 horas da manhã, sendo dois os partidos, com as denominações de Brasil e Inglaterra. O enthusiasmo é grande; palpitamos pela victoria do primeiro dos bandos” –, o grifo nosso da última frase que o diga. O estilo de época, como dissemos (ver nota 55), que na imprensa de um modo geral dava o tom ideológico do discurso jornalístico, e se fundava na discussão doutrinária de idéias, fossem de que ordem fossem: econômica, religiosa, esportiva, moral ou política – principalmente política –, não se esconde na objetividade informativa pretendida e se mostra meridiano no fecho final da nota: “palpitamos pela victoria do primeiro dos bandos”. Portanto, passando do simples registro de notas informativas para as primeiras reportagens ainda também informativas e, em seguida, descritivas, o futebol, agora já transformado em discurso, começa a mostrar o grau de inserção social em que estava mergulhando. Exemplo disso é outro registro factual, um tanto pitoresco, mas revelador da sua gradual entrada, como fenômeno de linguagem, nos campos de disputa do espaço social – neste caso, claramente competindo com outros esportes na agenda midiática de então. O tema aos poucos, contudo, ia se tornando discurso. Em princípio híbrido e, logo depois, se definindo em busca de uma linguagem específica que o expressasse enquanto fenômeno. Eis o fato: o jornalista André Ribeiro conta que como fosse escassa, nas redações, a existência de jornalistas como Mário Cardim, versados na cobertura do assunto futebol, o secretário de redação de um pequeno semanário de São Paulo, O Combate, decidiu escalar um repórter especialista na cobertura do turfe para cobrir um dos jogos do Campeonato Paulista de 1902 92 (RIBEIRO, 2007, p. 26). Vê-se anunciada, já na frase desabusada do jornalista José Carvalho, a propensão do discurso da imprensa esportiva para firmar-se em cima de um andamento metafórico e alusivo: No prado do Velódromo competiram ontem, dois puro-sangues: Paulistano e Mackenzie. Ambos galoparam bem, demonstrando estar nas pontas dos cascos. Chegaram juntos, porque cada um deles fez o focinho, a bola, entrar uma vez ao disco com rede. Não foi fornecido o resultado do rateio. Serviram-se, ao final, bebidas e salgadinhos (TOLEDO, 2002, p. 177). Parcialidade com pretensões de objetividade factual, portanto, junto com a carga metafórica aplicada à captação e descrição da realidade e efetividade do jogo, são os ingredientes que encaminharão a transição do mero registro factual, referencial, informativo, documental do futebol, pautado pela necessidade de comunicação objetiva e direta com o público (caso das notas informativas), para uma abordagem mais extensiva, captaneada pelo gênero mais apropriado da reportagem jornalística. O jornalista Mário Cardim, que teve em João do Rio seu antecessor mais aproximado, foi o primeiro artífice dessa fase da abordagem do assunto pela imprensa brasileira. E uma reportagem sua, publicada no número 8.734 – segunda-feira, 27 de outubro de 1902 –, na página 7, do Jornal O Estado de S. Paulo, pode ser considerada a primeira reportagem amplamente descritiva contando todos os detalhes de um jogo de futebol, publicada na imprensa brasileira.62 Pela importância histórica e documental do texto, o transcreveremos aqui na íntegra e com grafia da época, para sua adequação contextual aos objetivos desse trabalho: “CAMPEONATO DE 1902 Vencedor: S. Paulo Athletic Club. Hontem, as 4 horas da tarde, realizou-se no ex-Velodromo Paulista, hoje campo do Club Athletico Paulistano, o ultimo match de foot-ball, instituído pela Liga Paulista de Foot-Ball, para a disputa do campeonato deste anno, do qual saiu vencedor o São Paulo Athletic Club, com dois goals a um. A concorrência, como prevíamos, foi extraordinária, podendo-se calcular em quatro mil pessoas que enthusiasticamente não se cançaram de applaudir os temíveis jogadores. As gentis senhoritas, que dava à festa o maximo encanto, mostravam-se visivelmente commovidas quando a bola se aproximava de qualquer goal, commoção que se trudizia em estrondosos applausos ao ser a bola bem rebatida. As elegantes archibancadas tremiam sob o barulho que faziam os innumeros espectadores. O jogo foi desde o começo muito vigoroso e pesado de ambos os lados. 62 Essa é, ao menos, uma afirmativa do jornalista e historiador do assunto, André Ribeiro. Tal asserção, evidentemente, por ser calcada em ilação pessoal e, portanto, escorada em certo subjetivismo, merece ser amplamente relativizada em suas implicações. Tendemos, no entanto, a concordar com ela, uma vez que nas nossas pesquisas sobre o assunto não encontramos nenhuma fonte ou documento de imprensa da época que a contradissesse. Cf. RIBEIRO, André. Op. Cit., p. 28. 93 Infelizmente este match não terminou como desejavam, pois, logo no começo do jogo, o sr. João da Costa Marques, forward do Paulistano, levou um tombo e um dos adversários pizou-lhe involuntaariamente no braço, resultando destronca-lo, pelo que foi impedido de continuar o jogo. Se não fosse este triste incidente tudo teria corrido na melhor harmonia possível. Terminado jogo, foi entregue ao sr. Charlles Miller; digno captain do team vencedor, pelo sr. Antonio C. da Costa, presidente da Liga Paulista de Foot-Ball, a taça destinada ao campeão de foot-ball. O sr. Charles Miller, encheu-a de champagnne, que offereceu-a ao sr. Antonio C. da Costa, que, bebendo a saude do club vencedor, a entregou novamente ao sr. Miller que, por sua vez, a entregou ao sr. Olavo de Barros, digno captain do Paulistano. Este, após ter bebido a saúde do seu adversário, a entregou ao sr. Charles Miller que, depois de saudar o team adversário, banhou com o resto do champagne a bola que serviu durante o jogo. Após essa ceremonia, foram entregues aos jogadores de ambos os teams mimosos ramalhetes de flores naturaes. Um grupo de admiradores offereceu ao sr. Olavo de Barros, captain do Paulistano, uma coroa de louros. Escrever o jogo é impossível, pois foi um dos mais movimentados e emocionantes a que temos assistido. Os temíveis teams, que hontem se bateram, eram assim constituídos: CLUB ATHLETICO PAULISTANO Jorge de Miranda Filho Thiers – Rubião E. Barros, Olavo, Renato B. Cerqueira, J. Marques, A. Rocha, Ibanez, O. Marques Blcklock, Montandon, Muller, Brough, Boyes Heyock, Wucherer, Biddel A. Kenworthy – G. Kenworthy W. Chffery. S. PAULO ATHLETIC CLUB O Sr. Rocio Egydio de Souza Aranha, depois de ter alinhado os teams, deu o sinal de começar e entregou a bola ao Paulistano, que teve por sorte dar o primeiro kick na bola. Fei-o porém com alguma infelicidade, pois deu-se logo um corner-kick. Logo foi a bola conquistada pelos forwards do Athletic Club, que a levaram até a linha de 11 yards e dahi foi brilhantemente shootada pelo Sr. G. Rubião, full-back do Paulistano. Numa destas tentativas foi a bola levada pelo sr. Boyes, forward do Athletic Club, até a linha de 11 yards, donde conseguiu fazer um magistral passe ao seu companheiro Charles Muller, o qual com um magnífico shoot conseguiu marcar o primeiro goal para o seu Club. Após este goal os rapazes do São Paulo Athletic Club desenvolveram um ataque vigoroso, porém a defesa do paulistano nada deixou a desejar. Era indescrptivel a lucta que, então, se travava durante o pouco tempo que a bala (sic) permanecia no centro do campo. Ora era o Paulistano que a conquistava, ora o Athletic Club. Sendo a bola atirada fóra do campo por um dos do Paulistano, pela linha de lado do campo, coube, portanto, ao team do Athletic atira-la para dentro. Foi o sr. Biddel quem a atirou, o que fez com bastante perícia, pois a entregou ao seu companheiro sr. Blckloch, que com ella avançou alguns metros, e em occasião propicia a passou para o sr. Montandon, que por sua vez, a passou ao Sr. Charles Miller, o qual marcou, com um belíssimo shoot rasteiro, o segundo goal para o S. Paulo Athletic Club. Minutos após este goal foi ouvido o sinal de half time. O numeroso publico que enchia as elegantes archibancadas rompeu numa estrondosa salva de palmas e vivas a ambos os teams. O intervallo durou somente dez minutos, findos os quaes entraram novamente no Campo estes dois gloriosos e temíveis teams. Neste tempo, apezar de já estarem mais machucados os srs. A. Rocha e B. Cerqueira, forwards do Paulistano, que já entraram doentes para o campo de combate, o seu team desenvolveu um ataque magistral, conseguindo por várias vezes levara a bola até a linha de full-backs adversária, donde davam brilhantes shoots que, porém, foram infrutíferos visto o goal-keeper do São Paulo Athletic, Sr. W. Jeffery, recebê-los com galhardia, atirando a bola para seus forwards. Estes, uma vez de posse da bola, avançavam com bastante energia, levando-a até perto do goal 94 adversário, donde davam shoots que por innumeras vezes foram brilhantemente rebatidos pelo goal-keeper sr. Jorge de Miranda. Após uma renhida lucta foi a bola adquirida pelos forwards do Paulistano, que a levaram com bello jogo de passes até a linha de 11 yards e dahi passada para o sr. Álvaro Rocha, forward do Paulistano, que, num magistral e imponente shoot, conseguiu vazar o goal do S. Paulo Athletic Club, marcando assim o primeiro goal para o Paulistano. O enthusiasmo dos espectadores, após este goal, tocou a raia do delírio, as elegantes archibancadas tremiam, parecendo vir tudo abaixo. As distinctas famílias acenavam com as mãos, e davam vivas aos jogadores do Paulistano. Restabellecida a ordem, tornaram todos os espectadores a prestar a atenção para o campo de combate, pois a lucta que nelle se desenvolvia era verdadeiramente emocionante. Estavam, portanto, a dois goals contra um, quando pelo referee foi dado o signal de findo o tempo de jogo. O enthusiasmo das palmas redobraram. Do team do S. Paulo Athletic Club, que, em geral, jogou magistralmente bem, salientamos os srs. Jeffrey, que soube ser um verdadeiro goal-keeper, salvando shoots com calma e firmeza de um verdadeiro foot-bal; Charles Miller, o glorioso captain, que mais uma vez demonstrou a sua perícia neste jogo; A. Kenworthy, bom full-back, Heycock e Wuckerer optimos half-backs; e Boyes incançavel forward. Os rapazes do Paulistano em geral jogaram optimamente bem, porém, nós salientamos o sr. Olavo de Barros, digno captain do seu team, que foi realmente infatigável e tenaz; A. Rocha e Ibanez admiráveis forwards. Renato deu um half- back esplendido, Rubião e Thiers os dois resistentes e firmes full-backs e Jorge Miranda Filho, que, apezar de ter deixado vazar dois goals, jogou admiravelmente bem, defendendo varias vezes difíceis e fortes shoots contra o seu goal. Após ter sido entregue a taça ao sr. Charles Miller, foram convidados por este senhor o team do Paulistano e alguns rapazes de outras associações para irem ao campo do S. Paulo Athletic Club, onde foi offerecido, na taça do campeonato champagne aos seus convidados. Foram feitos diversos discursos e levantados innumeros vivas. Ao team do S. Paulo Athletic Club, na pessoa do seu digno captain, damos os nossos parabéns pela victoria hontem alcançada, e ao Paulistano pela extraordinária galhardia com que sustentaram a lucta, apezar das condições desfavoráveis” (CARDIM, 1902, p. 7). Cabe aqui a observação de que nos jornais da época o texto não vinha assinado pelo autor – caso em questão –, embora se saiba com segurança que este em específico era de autoria do jornalista Mário Cardim.63 Eram também raríssimas as reportagens assinadas e quando isso acontecia quase sempre um pseudônimo assumia a autoria do texto, conforme já 63 Seguindo procedimento idêntico de atribuição de autoria a textos desse tipo, consignado pelo pesquisador Bernardo Buarque de Hollanda, à nota 16 do capítulo 3 do seu livro O descobrimento do futebol: modernismo, regionalismo e paixão esportiva em José Lins do Rego, façamos nossas, mutatis mutandis, as sua palavras em caso correlato: “Muito embora essa matéria não venha assinada, atribuímos sua autoria a [Mário Cardim] pois ela contém todas as informações gráficas, temáticas e estilísticas que costumavam distinguir as reportagens desse jornalista”. Cf. HOLLANDA. B. B. B. de. Op cit. p. 269. Já o historiador, Santos Neto, afirma que este padrão estilístico criado por Mário Cardim prevaleceu por mais de dez anos, sendo lentamente reformulado pela geração seguinte de jornalistas esportivos, em que pontificaram, entre outros, Paulo Várzea, Max Valentim, Antônio Figueiredo, Marcos Mendonça, Leopoldo Santana, Henrique Blatter, Briani Júnior e Thomaz Mazzoni. Cf. SANTOS NETO, José Moraes dos. Visão de jogo: primórdios do futebol no Brasil. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 89-91. Quanto ao pioneirismo também de Mário Cardim em ter escrito aquele que seria o primeiro livro brasileiro sobre o futebol, o Guia de Foot Ball, publicado no final do primeiro semestre de 1904, é de se observar, ainda, a informação do jornalista Milton Pedrosa, que aponta o livro “Regras de Football Association”, editado pelo Sport Club Internacional, de São Paulo, no ano de 1900, como a obra pioneira no gênero. PEDROSA, Milton. Gol de letra. Rio de Janeiro: Gol, 1967, p. 26. 95 exemplificamos com o caso das matérias de João do Rio. Na visão do jornalista e dublê de historiador da imprensa esportiva brasileira, André Ribeiro, a explicação era simples. “As redações dos jornais eram muito pequenas e em algumas delas sequer existia luz elétrica. O trabalho jornalístico em geral era feito, no mais das vezes, por no máximo dez pessoas sendo comum um mesmo pseudônimo, que escrevia sobre futebol, assinar, também, outras colunas do jornal” (RIBEIRO, 2007, p. 25). O que importa aqui, entretanto, a despeito do assunto na imprensa ainda não ser tratado de forma especializada, é verificarmos, através da leitura dos seus registros no jornalismo de então, como o tema do futebol vai se modificando à medida que este esporte vai se entranhando cada vez mais nas malhas capilares da sociedade brasileira do início do século XX. A ponto de já no início da década de 1920 vir a se tornar um assunto polêmico por excelência. Essa inflexão na abordagem do tema, que do ponto de vista da linguagem que o representa através da imprensa faz seu registro sair do mero acento factual, referencial e informativo (notação das notícias e reportagens) para seu tratamento ensaístico e opinativo (âmbito dos artigos de fundo), leva-o agora a ser discutido nos jornais e revistas do ponto de vista do benefício ou malefício que a prática do jogo poderia ou não causar à população. Claro que os escritores-jornalistas não ficariam imunes a esse apelo da questão, que tem o seu corolário explicativo na cada vez mais crescente popularidade do jogo entre os brasileiros, o que divide os entusiastas do tema em fileiras favoráveis ou contrárias ao novo esporte. É por este caminho – o da controvérsia e da polêmica desabusadas, que tem como símbolo e significante interior, como já dissemos, o gesto e a figura de um escritor – que a literatura brasileira “invade” definitivamente o campo do futebol. 3.1 Invadindo o campo: um jogo de posições 3.1.1 A polêmica inicial – Coelho Neto versus Lima Barreto O primeiro escritor brasileiro a encarar o jogo como assunto sério, digno de nota e discussão pública, foi o romancista, poeta e cronista, Coelho Neto, que se notabilizou como o maior dos seus adeptos, o mais vibrante entusiasta do novo esporte, vindo mesmo a se tornar um verdadeiro ideólogo do futebol. A atração que este jogo exerceu sobre ele manifestou-se já em seu romance Esfinge, publicado em 1908, em que o personagem James Marian, um inglês hóspede da pensão de uma tal miss Barkley, tinha o hábito de “aos domingos, sair cedo com seu material de tênis e com roupa para o foot-ball”. O tema do futebol, portanto, passaria a 96 ser, a partir daí, assunto onipresente não só nas crônicas e discursos, mas, também – e com muito destaque – na vida pessoal de Coelho Neto (PEREIRA, 2000, p. 205). Com relação a este tratamento já ficcional do tema do futebol no gênero romance, que se dá em 1908 (ver nota 54) – em que pese entrar o assunto aí apenas de forma pontual; residual mesmo, diríamos –, o historiador social do futebol carioca, Leonardo Affonso de Miranda Pereira, aponta três explicações para os sentidos que a ficção emprestaria ao jogo naquele momento: Em primeiro lugar, nota-se ainda o estranhamento, entre os jovens brasileiros, do fato de que James Marian praticasse esporte regularmente – o que pode nos lembrar a desconfiança que a educação física gerava nos primeiros anos do século entre as altas rodas cariocas, acostumadas a valorizar apenas as atividades do intelecto. Por outro lado, o fato de que a discussão se dê entre os círculos elegantes da pensão de miss Barkley mostra o caráter restrito que o jogo ainda tinha naquele período, que fazia dele um assunto de jovens endinheirados. Por fim, a força e a beleza ‘apolínea’ com a qual o autor caracteriza seu personagem – descrito como “um formoso mancebo, alto e forte, arrumado como uma coluna” – nos permite intuir o valor que ele começava a enxergar no esporte (PEREIRA, 2000, p. 205-206). As duas coisas, com efeito: o valor intrínseco do novo esporte e a sua conseqüente e febril popularização na capital da República foram justamente os motivos principais que impeliram outro escritor, o autor do consagrado Triste fim de Policarpo Quaresma, Lima Barreto, a cerrar fileira contrária não só a importação do jogo inglês para as plagas brasileiras, mas, também, à defesa apaixonada que dele fazia parte considerável da intelectualidade brasileira de então; notadamente escritores e jornalistas muito respeitados em seu tempo.64 Com espaço e reconhecimento já assegurados nos círculos literários, com três romances publicados – Recordações do escrivão Isaías caminha (1909); Triste fim de Policarpo Quaresma (1915) e Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919) – e um monte de crônicas já também vindas a público, Lima inaugurou seus ataques em 15 de agosto de 1918, no artigo “Sobre o Foot-ball”, no jornal Brás Cubas: Diabo! A cousa é assim tão séria ? Pois um divertimento é capaz de inspirar um período tão gravemente apaixonado a um escritor? [...] Reatei a leitura, dizendo cá com os meus botões: isto é exceção, pois não acredito que um jogo de bola e sobretudo jogado com os pés, seja capaz de inspirar paixões e ódios. Mas, não 64 O historiador Leonardo Affonso de Miranda Pereira elenca pelo menos sete renomados intelectuais brasileiros (entre escritores e jornalistas), influentes nessa época, que polarizavam o debate público acerca da popularização do jogo de futebol no Brasil e suas conseqüências sociais, para o bem ou para o mal. Do lado dos que defendiam a prática do futebol, vendo-o com bons olhos, estavam, pelo menos, Paulo Barreto (o João do Rio), Coelho Neto e Afrânio Peixoto, enquanto que Gilberto Amado, Bastos Tigre, Carlos Sussekind de Mendonça, e, como já frisamos, Lima Barreto, formavam a turma dos que combatiam veementemente a introdução do futebol em nossa terra. Cf. PEREIRA, L. A. de Miranda. “O jogo dos sentidos: os literatos e a popularização do futebol no Rio de Janeiro”. In: CHALHOUB, Sidney; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. (orgs.) A história contada – Capítulos de História Social da Literatura no Brasil. p. 195-224. 97 senhor! A cousa era a sério e o narrador da partida, mais adiante, já falava em armas... Não conheço os antecedentes da questão; não quero mesmo conhecê-los; mas não vá acontecer que simples disputas de um inocente divertimento causem tamanhas desinteligências entre as partes que venham a envolver os neutros ou mesmo os indiferentes, como eu, que sou carioca, mas não entendo nada de foot-ball (BARRETO, 1956, p. 147). Como Coelho Neto, embora em outra direção, Lima Barreto estava atento, desde o princípio, para a força social do jogo: longe de ser um mero passatempo sem sentido, o escritor intuíra que o novo esporte era capaz de inspirar “paixões e ódios”. O futebol adquiria para ele, por decorrência, um caráter sério, que o obrigaria como “crítico de costumes” a dedicar-se profundamente ao novo fenômeno. Transformando-se no arauto do combate ao jogo da bola aos pés, Lima elegeria justamente Coelho Neto como o principal adversário. Iniciou-se então um acirrado embate pelas páginas da imprensa carioca, logo depois de mais um empolgante discurso de Coelho Neto, por ocasião da inauguração da piscina do Fluminense em 1919 – discurso que para Lima soava como um verdadeiro pecado, manifestado na crônica “Histrião ou literato”, na Revista Contemporânea, de 15 de fevereiro de 1919: O senhor Neto esqueceu-se da dignidade do seu nome, da grandeza da sua missão de homem de letras, para ir discursar em semelhante futilidade... Os literatos, os grandes, sempre souberam morrer de fome, mas não rebaixaram a sua arte para simples prazer dos ricos. Os que sabiam alguma coisa de letras e tal faziam, eram os histriões; e estes nunca se sentaram nas sociedades sábias (BARRETO in Revista Contemporânea, 15 fev. 1919). Para além dessa polêmica inicial, que se sustentava nos sentidos do jogo; ou em apropriações desses sentidos por diferentes extratos da sociedade carioca – os escritores e intelectuais incluídos entre eles –, e que ganhava força na forma de uma disputa ideológica entre visões distintas sobre um mesmo fenômeno (a implantação, e suas conseqüências sociais, de uma prática esportiva estrangeira), atente-se para as inflexões que o assunto futebol vai experimentando enquanto matéria representativa de preocupações e expressões pessoais ou coletivas. Intensificando cada vez mais seu embate com Coelho Neto – e com o assunto futebol, claro –, Lima Barreto empresta ao jogo, nessa discussão, a imagem de um esporte brutal e sem sentido, totalmente diferente do elemento de regeneração social preconizado por Coelho Neto,65 para desespero da imprensa carioca, quase toda ela empenhada já então em 65 Coelho Neto em sua defesa do futebol, segundo o historiador Leonardo Pereira, incorpora-se à fileira daqueles que, no Brasil, a exemplo de Afrânio Peixoto, Gilberto Amado e Fernando Azevedo, entre outros, se empenharam em defender as qualidades inerentes aos esportes que, como o futebol, eram praticados a céu aberto e que, pouco comuns no século XIX, começavam a ser preconizados pelos entusiastas da educação 98 prestigiar o futebol. Na contramão dessa tendência, pois, eram raríssimas exceções as intervenções contrárias como, por exemplo, a do jornalista e escritor Carlos Sussekind de Mendonça, que incorporou-se à luta de Lima Barreto contra o futebol, que ele, Lima, considerava entre outros aspectos “micróbio de corrupção e imbecilidade”, “estrangeirismo estéril e inútil”.66 Fosse como fosse, além do reforço do escritor Carlos Sussekind, de cujo livro “O Sport está deseducando a mocidade brasileira” (MENDONÇA, 1919) sai a orientação dos ataques ao futebol, a campanha de Lima Barreto contra o jogo se intensifica e ganha novos adeptos, além de uma nova estratégia. Passando a contar com a solidariedade de outros adversários do jogo, entre eles o médico Mário de Lima Valverde — de quem, cerca de dois meses antes, Lima ouvira uma preleção sobre os malefícios à saúde provocados pela prática do futebol —, o jornalista Antonio Noronha Santos e o “homem de letras” Coelho Cavalcanti, o escritor lidera o processo de criação, em março de 1919, da “Liga Contra o Futebol”, cuja constituição é discretamente anunciada em pequena nota na edição do Rio-Jornal de 12 de março daquele ano (RIO-JORNAL, 12 mar. 1919). Esse ato político objetivo de Lima Barreto tem, nessa questão, um significado claro. Ele demonstra que por trás da contestação estava muito mais do que uma querela literária ou mera oposição ao papel de redenção social que Coelho Neto atribuía ao futebol. O escritor via nele um fator potencial de degeneração cultural da pátria, pois patrocinava uma injusta e gritante diferenciação social e regional, como declarou em entrevista ao Rio-Jornal em 13 de março de 1919: – Está aí, uma grande desvantagem social do nosso foot-ball. Nos dias em que, para maior felicidade dos homens, todos os pensadores procuram apagar essas diferenças acidentais entre eles, no intuito de obter um mútuo e profundo entendimento entre as várias partes da humanidade, o jogo do ponta-pé propaga sua separação e o governo o subvenciona (Rio-Jornal, 12 mar. 1919). Lima criticava os favores que os clubes de futebol recebiam do governo para “criar distinções idiotas e anti-sociais entre os brasileiros, e longe de tal jogo contribuir para o congraçamento, para uma mais forte coesão moral entre as divisões políticas da União, física por serem mais saudáveis ao corpo e à mente. Eles seriam, para o romancista, verdadeiras fontes de energia, que poderiam ser colocadas a serviço do ideal nobre da regeneração da “raça” brasileira – em um raciocínio pautado pelos ideais eugênicos que, nos primeiros anos do século, começava a se fazer presentes nas discussões médicas, pedagógicas e políticas. Cf. PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro – 1902-1938. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 208. 66 Muitas dessas idéias contrárias ao futebol estão expressas, por exemplo, nos seus artigos virulentos, “Vantagens do foot-ball” e “ Uma partida de foot-ball”, escritos para a revista Careta, respectivamente, de 19 de junho de 1919 e 4 de outubro de 1919. 99 separa-as” (Rio-Jornal, 12 mar. 1919). Segundo ele, os clubes de futebol seriam “portadores de uma pretensão absurda, de classe, de raça, etc” (Rio-Jornal, 12 março 1919). Isso porque os defensores do futebol, ainda Coelho Neto à frente, sustentavam ser o jogo “um sport que só pode ser praticado por pessoas da mesma educação e cultivo” e reclamavam “que alguns jogadores não tinham o nível social de há uns anos atrás” (Jornal do Brasil, 3 maio 1920). Todavia, não eram apenas econômicas e sociais as distinções combatidas por Lima Barreto, mas principalmente raciais, pelo fato de o novo esporte estar vedando aos negros a participação, como jogadores, nos grandes clubes de futebol cariocas (BARRETO in Jornal ABC, 1 outubro 1921).67 Vendo nos sócios dos grandes clubes os herdeiros – de prática e de ação – dos antigos senhores de escravos, Lima enxerga no futebol “uma das formas de continuação da dominação exercida durante décadas pelo regime escravista, onde se troca a violência pela humilhação de quem paga impostos para sustentar, com subvenções oficiais, um jogo ao qual não tem acesso” (Idem, ibidem). O futebol aparece nos textos de Lima Barreto, portanto, (veremos isso adiante, nos seus contos de ficção – pág. 324 a 327) como, por exemplo: [...] um poderoso instrumento de domínio utilizado por uma raça que se julga eleita por Deus graças às suas habilidades nos pés; como a escravidão, sua única finalidade é criar uma separação idiota entre os brasileiros, perpetuando as desigualdades e continuando um passado de diferenciação e segregação (BARRETO, Jornal A.B.C., 26 ago. 1922). Esse, resumido nas palavras do próprio escritor, era o teor do combate ao jogo de futebol sustentado na controvérsia pública mantida com Coelho Neto. A professora e pesquisadora do campo da literatura Heloísa Buarque de Hollanda,68 que estudou detidamente – e confrontou ideologicamente – as principais teses desses dois escritores sobre o futebol, após elencar os argumentos e pressupostos teóricos que as fundamentaram por ocasião da citada polêmica, nos apresenta conclusões relevantes sobre 67 Em 1921, por exemplo, numa ocasião em que o então presidente Epitácio Pessoa teria proibido jogadores negros de fazerem parte do selecionado brasileiro que ia à Argentina disputar o 2º Campeonato Sul- Americano de futebol, Lima Barreto foi duro nas críticas, publicando no mesmo dia 1 de outubro de 1921 dois artigos – “O meu conselho” e “Bendito foot-ball” – no jornal A.B.C., onde afirma que “quando não havia foot-ball, a gente de cor podia ir representar o Brasil em qualquer parte” e aponta o caráter nocivo do futebol para o país. “É o fardo do homem branco: surrar os negros, a fim de trabalharem para ele. O foot-ball não é assim: não surra, mas humilha, não explora, mas injuria e come as dízimas que os negros pagam”. Cf. Jornal A.B.C. Rio de Janeiro, 1 de outubro de 1921. 68 Apoiamo-nos aqui, integralmente, nas idéias expostas no seu artigo, “O futebol no imaginário da intelectualidade brasileira de inícios do século XX: o embate teórico entre Lima Barreto e Coelho Neto”, em que esta professora e pesquisadora do campo da cultura faz uma série de ilações com as quais concordamos sobre o cerne da polêmica citada, envolvendo esses dois escritores, acerca das questões que envolviam, na virada do século XIX para o XX, a chegada do futebol no Brasil. Cf. Enfoques – Revista dos alunos do Programa de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ, n. 7. p. 77-90. Disponível em: . Acesso em: 18 nov. 2008. 100 o assunto, atualizando seus desdobramentos e os estendendo à prática social do futebol na contemporaneidade. Primeiro ela aponta as fundamentações teóricas – de ordem científica ou filosófica – do debate, expostas parte a parte. Quanto a Coelho Neto: Diz ela que as idéias do escritor, ao enfrentar a cultura de valorização do intelecto em detrimento das atividades físicas em voga no século XIX, se inspiravam no ideal grego da mens sano in corpore sano. Isto é, as duas dimensões, a do corpo e a da mente, não poderiam mais ser compreendidas isoladamente, mas a partir de uma perspectiva de complementaridade. Em sua concepção, observa, todavia, o cultivo do corpo não é pensado como um fim em si mesmo. Mas, muito pelo contrário, o conceito de força aparece imbuído tanto num ideal estético – que o associa à noção de beleza – como num ideal moral – que limita seu potencial, uma vez que o vincula à necessidade de respeito à pátria e aos mais fracos. Sendo assim, o homem forte, portanto, não está desvinculado do mundo do belo e da ética, mas constitui-se em seu próprio mecanismo propulsor. Deriva daí, segundo a pesquisadora, que a identidade que se constrói nesse ambiente delineado por Coelho Neto é essencialmente referencial. Nesse contexto, os laços de fidelidade para com um time de futebol não devem, sob qualquer circunstância – na visão do escritor –, suplantar aqueles devidos à nação. Muito pelo contrário, operam justamente no sentido de reforçá-los e, desta maneira, o ideal de competitividade é esvaziado de qualquer sentido degenerador. A glória particular do time é diluída na glória maior da nação, sendo por isso louvável. O amor e a dedicação a um clube configuram, neste sentido, uma espécie de ensaio cívico para o exercício do amor e da dedicação à pátria. O esporte, por causa de suas potencialidades associativas, figura nesse universo como elemento que reforça o sentido de coletividade e possibilita o aperfeiçoamento do povo, ou melhor, até mesmo a transformação desse povo – entendido aqui num sentido essencialmente negativo, vinculado à idéia de massa desordenada, impura e desprovida de força – em nação. Estando, então, inserido nesse propósito de vitalização de princípios físicos e morais, o futebol cumpriria, segundo Coelho Neto, um papel de promoção da consciência cívica. Quanto a Lima Barreto: Sua linha de raciocínio afasta de início, segundo a pesquisadora, qualquer corroboração com o ideal eugênico por considerar que assertivas sobre raça não poderiam constar no repertório de possibilidades da ciência. Segundo Barreto, cada autor, portanto, ao tecer elaborações em torno do termo raça, utiliza-se de critérios descritivos próprios, 101 desvinculados dos demais, o que denota uma heterogeneidade de definições e, assim, uma total ausência de rigor científico. Quaisquer concepções subjetivas oriundas do potencial de abstração do homem (dentre elas o próprio conceito de raça), apenas com muito cuidado deveriam, segundo o escritor, recair sobre o mundo dos objetos. Partindo de tal observação, o autor afirma não serem legítimas quaisquer incursões científicas que impliquem a definição de uma escala de valores entre os homens. O ódio inexplicado dos americanos pelos negros, por exemplo; dos turcos pelos armênios e de certos russos pelos judeus não poderia apoiar-se, senão indevidamente, na ciência.69 Ao conceber o homem indistintamente, a partir de sua unicidade, Barreto distancia-se inteiramente das expectativas de purificação racial concentradas em torno da prática esportiva. Longe de identificar no esporte a possibilidade de progresso social, o autor atribui a ele um potencial degenerativo e propagador do preconceito. A tal perspectiva, segundo ele – que legitima um discurso de valorização do “estrangeiro” em detrimento do “nacional” – traria, portanto, “no seu bojo ofensa a uma fração muito importante, quase a metade, da população do Brasil”,70 o que o levaria a elaborar o elemento central de sua crítica ao futebol. Segundo o autor, o papel de tal esporte seria unicamente o de gerar dissensões no seio da vida nacional. Para corroborar sua tese, Barreto ressalta o acirramento do espírito de rivalidade entre os diversos competidores, sejam eles bairros, cidades ou países. Ao cultivar o amor à luta e à competição, o esporte dividiria os homens e os povos, tecendo animosidades entre eles. Além de destacar as distorções morais que lhe seriam inerentes, o autor enfatiza a mediocridade intelectual que caracterizaria os jogadores de futebol. Ao afastar-se do princípio do mens sana in corpore sano, Barreto estabelece mais um ponto crucial de distanciamento de Coelho Neto e dos demais adeptos de suas teorias. Ao invés de representar benefícios intelectuais, o futebol seria, por fim, um entrave ao aprimoramento mental de seus praticantes. À parte essas questões de fundo, tão bem sintetizadas na análise da professora Heloísa Buarque de Hollanda, essa polêmica inicial sobre o futebol envolvendo Coelho Neto, um escritor até certo ponto conservador em matéria de estética e de costumes, e Lima Barreto, um literato ativista e engajado em causas de fundo político-social, já traz em si elementos que antecipam uma discussão bem mais ampla que vai se desenrolar posteriormente, em termos intelectuais, no movimento modernista brasileiro, iniciado com a Semana de Arte Moderna de 69 Tal comentário encontra-se na crônica “Considerações Oportunas”, publicada no volume Feiras e Mafuás. Cf. BARRETO, Lima. Feiras e Mafuás. São Paulo: Editora Brasiliense, 1956, p. 192. 70 Já este outro comentário encontra-se na crônica “Bendito Foot-ball”, publicada também no mesmo volume. Cf. BARRETO, Lima. Feiras e Mafuás. São Paulo: Editora Brasiliense, 1956, p. 95. 102 1922, em São Paulo, e não apenas por causa da proximidade cronológica desses fatos de suma importância para a reelaboração posterior da cultura brasileira. Essa, como se sabe, se renova e se reestrutura em bases paradigmáticas completamente diferentes da sua fase anterior com o advento do modernismo, e isso se dá porque ali, naquele momento anterior, o elemento popular, arcaico e primitivo da sua formação se não era rechaçado em sua importância e potencial formador e estruturante, era, no mínimo, negligenciado ante as posturas idealizadas da fase do Romantismo; forçadamente mimetizadas pelo período do Naturalismo e ideologicamente matizadas sob o fundo do nosso Realismo literário. Este é o caso, por exemplo, da nossa música popular, que mesmo tendo sido motivo de preocupação intelectual por parte dos escritores do Romantismo, dentro da pretensão inicial do movimento romântico em valorizar os aspectos ligados à terra brasileira, (corolário do ideal de resgate dos bens culturais que representariam os primeiros traços fundadores da nação), só vai ter a sua eleição como símbolo nacional propriamente dito num processo que apenas se consolida ao longo e ao cabo das cinco primeiras década do século XX. Este é o caso também do futebol, que guarda com a nossa música popular certo paralelo nesse sentido, tendo o processo de sua constituição também como símbolo nacional acontecido em momentos distintos da história cultural brasileira. Inicialmente vistos (a Música e o Futebol) por escritores representativos de nossa literatura como manifestações culturais até certo ponto antagônicas, suas afinidades simbólicas quanto à representação da identidade nacional só foram sugeridas de maneira convergente a partir da adesão, por parte dos modernistas de São Paulo e regionalistas do Nordeste, a aspectos do fenômeno futebolístico que tornariam o jogo passível de ser um elemento cultural apto a ser incorporado à idéia de brasilidade, e isso só se dá na segunda fase do nosso modernismo literário. Antes disso, porém, o futebol só foi motivo de preocupação literária por parte dos modernistas de forma circunstancial e episódica, embora a intensa presença dos esportes na vida social brasileira, por essa época, já chegasse a tal ponto que Mário de Andrade, em Macunaíma (1928), um dos textos fundantes do modernismo em termos ficcionais, ainda o representasse como uma das três pragas que assolavam o Brasil. Ao lado do bicho-do-café e da lagarta-rosada, o futebol, inventado meio que de birra por Macunaíma, seria representado literariamente, no seu livro, como uma peste que infestava as cidades e que se alastrava pelos campos do Brasil (HOLLANDA, 2004, p. 52). Para se ter uma idéia mais precisa dessa questão, atente-se para pelo menos esse de tantos outros dos seus detalhes. Segundo a pesquisadora da obra de Mário de Andrade e coordenadora da edição crítica de Macunaíma, Telê Porto Ancona Lopes, o aposto “três 103 pragas”, escrito no romance logo após o trecho: “E foi assim que Maanape inventou o bicho- do-café, Jiguê a lagarta-rosada e Macunaíma o futebol”, está aí aposto mesmo justamente para o autor fazer “a crítica do entusiasmo popular pelo futebol” (ANDRADE, Mário, 1988, p. 48). Entrementes, o repúdio inicial dos escritores modernistas em relação ao futebol ocorria, segundo a opinião do pesquisador dessa relação, Bernardo Buarque de Hollanda, a respeito da cata modernista aos elementos populares de nossa cultura, na proporção das mudanças que, oriundas das transformações tecnológicas e científicas por que passava o capitalismo europeu desde 1870, fundo contextual do movimento, atingiam o Brasil no início do século XX, com seus efeitos expressos em termos de uma rápida e crescente industrialização e urbanização, o que acarretavam profundas mudanças na vida citadina.71 Oriundo de matriz européia, o futebol era mais um arremedo de civilização, próprio da anglofilia e da francofilia de uma elite ávida por exotismos. À luz do nativismo, do primitivismo e do nacionalismo modernista, o futebol constituía mais um fenômeno típico da dependência cultural e situava-se no mesmo processo urbano- industrial que solapava as diferenças (HOLLANDA, 2004, p. 53). Sendo assim, continua o pesquisador, se na década anterior de 1920, o futebol é apenas esporadicamente apreciado em razão de seu apelo como fenômeno do cotidiano urbano e como meio de expressão estilística – casos de seu registro literário aqui e ali por escritores como Mário de Andrade, que em 1922 o refere num poema do seu Paulicéia desvairada, mas na perspectiva ainda de uma moda fútil entre tantas que aportavam aqui vindas da Europa; ou de Oswald de Andrade, que no seu Memórias sentimentais de João Miramar, de 1924, também o toma como tema no poema Bungalow das rosas e dos pontapés, em notação e abordagem parecida –, nos anos de 1930 a questão da representatividade nacional passa a ser o eixo de preocupação dos modernistas. Isso se dá num contexto em que o desenvolvimento e a prática do futebol pelo mundo – e particularmente pela América do Sul – já permite a organização, por este período, de torneios intercontinentais envolvendo os países e, já durante este mesmo decênio, a organização das três primeiras copas do mundo: em 1930, no Uruguai; em 1934, na Itália; e em 1938, na França.72 71 Sobre a participação dos esportes – e dentre eles o futebol e seus ídolos – nessas transformações de mentalidade cultural que experimentava a maior capital do país, São Paulo, Cf. SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das letras, 1992. 72 Antes disso, porém, é possível sermos levados a crer, no caso do Modernismo brasileiro – por causas das circunvoluções naturais de um conjunto de idéias heterogêneas que se esboçava em diferentes partes do País por intelectuais de visões também diferentes entre si, embora confluindo para o ponto comum da constituição de uma brasilidade cultural autóctone e moderna, como plataforma geral –, que a oscilação entre a adesão e o repúdio ao fenômeno futebolístico, por parte dos intelectuais e escritores modernistas, era orientada pelas dicotomias próprias do movimento: o popular e o erudito; o nacional e o estrangeiro; o urbano e o rural; o tradicional e o moderno; o autêntico e o postiço; o artesanal e o industrial, entre outras tantas de suas formulações antitéticas. Tal observação, que nós referendamos, é feita por Bernardo Borges Buarque de Hollanda na sua obra já citada. 104 3.1.2 A transição do enfoque – Alcântara Machado e sua abordagem ficcional É um pouco antes da primeira Copa do Mundo, no Uruguai (precisamente três anos), no entanto – que o futebol é apropriadamente tematizado em termos estético-literários por um outro escritor modernista de destaque. Trata-se de António de Alcântara Machado, que em 1927 publica o conto Corinthians (2) VS Palestra (1) em que o jogo se impõe literariamente não apenas pela sua inserção no dia-a-dia da cidade de São Paulo, mas, fundamentalmente – e eis a virada de mudança de enfoque do tema na prosa de ficção –, como motivo dramático, narrativo e performático próprios. À feitura de um verdadeiro conto de situação, entram em cena, nesta narrativa, as reações coletivas das duas grandes torcidas de São Paulo em embate futebolístico, mas, também, as ações, intervenções e observações individuais do elemento humano, que, no jogo, interage para dar a ele o caráter de espaço ritual onde o lúdico e o rigorosamente sério da condição humana se misturam. Com um conto em forma de crônica, observa o pesquisador Bernardo Buarque, o escritor Alcântara Machado efetua nele as experiências lingüísticas que tanto fascinavam os modernistas, pois lá estão presentes a oralidade dos torcedores e as circunvoluções dos atletas em torno da bola, assim como provavelmente pela primeira vez na narrativa de ficção sobre o tema – ao menos na forma conto – “o jogo ocupa o centro de uma história e a sua linguagem se instila no fluxo do próprio texto” (HOLLANDA, 2004, p. 57-58).73 A originalidade étnica da nação brasileira, percebida nessa época no futebol graças à presença bem sucedida em campo de atletas mestiços (negros e mulatos), primeiro no torneio sul-americano da Copa Rio Branco de 1932, e, exitosamente, na terceira Copa do Mundo, a de 1938 na França, em que o Brasil obteve o terceiro lugar e fez o artilheiro da competição na figura do negro Leônidas da Silva, também se afirma e abre espaço para a associação entre a identidade esportiva e o diferencial étnico de constituição do povo brasileiro e, assim, estreita o sentimento esportivo de comunhão com a pátria, o que se 73 Já dissemos que o primeiro conto tematizando o futebol no Brasil, intitulado, A Biblioteca, foi escrito por Lima Barreto em 1915. Queremos ressaltar quanto a este fato, em adendo às observações de Bernardo Buarque de Holanda, que indica o conto de Antonio de Alcântara Machado, Corinthians (2) VS Palestra (1), só publicado em 1927, como sendo uma narrativa em que o jogo pela primeira vez ocupa o centro da história, que há entre as duas obras diferenças de procedimentos estéticos fundamentais a orientar o processo de suas composições. Enquanto Lima Barreto toma o tema do futebol como motivo político para defender suas idéias sobre o jogo, Alcântara Machado o enfoca como elemento cultural já incorporado às formas de ser e de agir de uma parcela considerável do meio urbano de São Paulo e a ele dá força e forma literária correspondente, bem à maneira do que propugnava para a tarefa da arte, dali por diante, os modernistas de 1922. Ver Guia de leitura do tema do futebol no conto ficcional brasileiro, páginas 269 e 270. 105 tornaria um dos principais motes temáticos da representação do futebol na literatura brasileira de ficção no seu formato de histórias curtas. Isso acontece, a nosso ver, porque os escritores modernistas – e a partir da incorporação futura e definitiva da plataforma estético-doutrinária do movimento às nossas letras, todos os demais escritores – passam também a ver o futebol, assim como fizeram com a música, como fenômeno integrante da nossa cultura popular, a despeito de sua condição de esporte urbano até certo ponto incorporado ao fenômeno mais abrangente da comunicação de massa. Tal integração, é bom que se ressalve, vem de encontro ao projeto modernista de construção de símbolos nacionais, que a música popular e o folclore já haviam tornado possíveis e que, naquele momento, através da consolidação intelectual de uma brasilidade esportiva, o futebol também já permitia realizar.74 Pela via do futebol, portanto, o Brasil teria o sortilégio de inverter, então, ao menos na prática simbólica e representativa de um jogo, a tradicional relação de dependência ante as potências da Europa, o que, nos seus termos culturais, era programaticamente combatido pelo nosso Modernismo. Por decorrência direta, os modernistas vislumbravam agora um meio em que a congênita idéia da inferioridade brasileira (tão bem tematizada posteriormente por um cronista de futebol como Nelson Rodrigues) finalmente podia ser superada. Depois de Oswald de Andrade, que em 1924, se curvou ao futebol como tema para registrar num poema seu, E a Europa curvou-se ante o Brasil (ANDRADE, Oswald, 1990, p. 65.), os êxitos futebolísticos do país no estrangeiro, Mário de Andrade, por sua vez, volta ao tema deste jogo em uma crônica publicada em 1939, intitulada Brasil vs Argentina, na qual registra essa transformação verificada em torno do futebol dentro da perspectiva antropofágica preconizada ideológica e esteticamente pelo próprio movimento: “Dezenas de tribos diferentes se organizando, se entrosando, recebendo mil e uma influências estranhas, mas aceitando dos outros apenas o que era realmente assimilável e imediatamente 74 A nosso ver, essa nova percepção do fenômeno futebolístico incorporada pelos modernistas tem a ver com a fusão conceitual, operada teoricamente por Gilberto Freyre, entre esporte e jogo (ver a pormenorizada discussão dessa questão conceitual feita pelos os sociólogos Norberto Elias e Eric Dunnig na obra Em busca da excitação, de autoria dos dois sociólogos. Cf. ELIAS, N; DUNNING. Lisboa: Difel, 1992). Apesar de uma certa incongruência teórica, segundo Bernardo Buarque de Hollanda, os modernistas vão perseguir a fusão entre esses dois conceitos e Gilberto Freyre levará isso às últimas conseqüências. Para o sociólogo, portanto, o futebol tornou-se uma instituição nacional própria da fase urbana de desenvolvimento da sociedade e teve o mérito de canalizar os elementos irracionais da formação histórica do país e os elementos primitivos de sua cultura que estariam sediados junto aos contingentes negros e ameríndios da área rural. Na sua discussão da assimilação do futebol pelo Brasil, por conseguinte, Gilberto Freyre tem em mente o encontro de um denominador comum para elementos em princípio tão díspares como os esportes, urbanos e modernos, e o jogos, rurais e tradicionais. Veja-se, a respeito, o prefácio ao Negro no futebol brasileiro, de Mário Filho. Cf. FREYRE, Gilberto. Prefácio. In: RODRIGUES FILHO, Mário. O negro no futebol brasileiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2003, p. 24-6. 106 conformando o elemento importado em fibra nacional” (ANDRADE, Mário in PEDROSA, 1967, p. 182). Outro ponto de inflexão importante na abordagem do assunto futebol pela literatura brasileira é incorporado também pelos modernistas e flagrado nessa mesma crônica de Mário de Andrade. Trata-se da passagem do discurso da ética – que consistia até aqui apenas na valorização dos seus aspectos disciplinares, propedêuticos e pedagógicos, que naquela “polêmica inicial”, já vista, orientara a posição dos defensores da implantação desse esporte no Brasil – para o discurso da estética – caracterizado pela constatação da incorporação, no jogo, de potencialidades típicas da arte, o que nas teorizações de Gilberto Freyre significava o seu conteúdo, no caso brasileiro, ao mesmo tempo apolíneo e dionisíaco caracterizador da nossa maneira de jogar, conforme também já vimos. A relação entre o futebol e a arte é um tema caro aos modernistas na medida em que ela permite a associação das percepções de harmonia, ritmo e o conjunto dos movimentos espaciais dos jogadores em campo. Um exemplo desse processo se verificaria na própria linguagem. O universo lingüístico esportivo, eivado de expressões táticas, bélicas como defesa, ataque e contra-ataque, passa a coexistir com expressões de origem artística, como lances, firulas, fintas e floreios (HOLLANDA, 2004, p. 95-103). Estas observações constatadoras do historiador Bernardo Buarque em adendo ao que estamos querendo dizer quanto à nova percepção do fenômeno do futebol, por parte dos modernistas, portanto, se juntam à própria visão estética do jogo, expressa entusiasticamente por Mário de Andrade quando registrou suas impressões sobre a partida entre o Brasil e a Argentina, realizada em 15 de janeiro de 1939, no estádio de São Januário, no Rio de Janeiro, e que motivou a sua crônica aludida acima: “Eu é que já estava de longe, me refugiando na arte. Que coisa lindíssima, que bailado mirífico um jogo de futebol” (ANDRADE apud PEDROSA, 1967, p. 184). Como se vê, o que se depreende dessas elocubrações marioandradinas em torno do jogo era já a capacidade de o futebol encarar as representações coletivas em torno da nação, depurando-a do elemento importado, assim como também, no mesmo movimento de releitura crítica, valorizar agora o elemento artístico autóctone a ele incorporado pelos brasileiros: “Foi, portanto, dentro desse contexto (no direito permanente à pesquisa estética) que os modernistas, depois de verificarem que o futebol havia sido quase sempre reservado à esfera esportiva e educativa, passaram a tratar o assunto pelo reconhecimento de suas 107 propriedades também no âmbito cultural e artístico”, completa Bernardo Buarque de Hollanda.75 Outra vez, numa autêntica e mesma virada de percepção, as interpretações modernistas – de que é exemplo claro, no campo da ficção, a abordagem do tema feita no aludido conto de António de Alcântara Machado – ganham contornos próprios e passam a enxergar também no futebol, conforme já dissemos, uma forma de adequar o jogo às concepções de brasilidade do próprio movimento. O contexto dessa virada de percepção, cabe aqui frisar, é reforçado entusiasticamente pelas observações de Gilberto Freyre sobre a Copa de 1938 em que, segundo o sociólogo, foi possível identificar a existência, já em franca prática e desenvolvimento, de um estilo autêntico de se jogar futebol no Brasil, algo que também já exploramos no primeiro capítulo deste trabalho. Ao contrapor, no seu livro Sociologia, publicado em 1943, em que trata dessas questões, o futebol-arte brasileiro ao futebol- científico europeu, e ao o privilegiar, por exemplo, a noção de exibição em detrimento do foco na simples competição esportiva, o sociólogo queria expor os aspectos positivos que lhe interessava ressaltar no futebol brasileiro, enquanto igualmente enfatizava um diferencial que lhe permitia singularizar tal esporte ante o praticado por outras nações. Todas essas questões – veremos ainda – se tornariam também, posteriormente, tema literário da nossa prosa de ficção do gênero conto. Como que preparando o terreno futuro (retornando ao âmbito da imprensa) em que o tema do futebol deixaria de ser tratado apenas como discussão pública para se tornar grande narrativa –, mudanças fundamentais ocorrem no espaço do jornalismo esportivo, campo em cujo domínio esse jogo ancorou historicamente seu desenvolvimento como esporte no Brasil. Não foi por acaso, portanto, que o nome do artífice que comandaria esse processo de redimensionamento do futebol no espaço público brasileiro seria o mesmo que nomearia, futuramente, o seu maior palco de expressão local com repercussão mundial: o estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, arena em que este esporte se consagraria como um emocionante, envolvente e lucrativo espetáculo de massas do Brasil dos tempos modernos. 75 Cf. HOLLANDA, B. B. B. Op. Cit. p. 103-4. Na seqüência desta sua argumentação, o pesquisador Bernardo Buarque sugere que a mudança do entendimento dos modernistas sobre o futebol como sendo também um fenômeno estético, se insere no contexto geral do movimento, explicitado por Mário de Andrade na sua famosa conferência de 1942, intitulada, O movimento modernista, em que ele elenca como sendo três os princípios que nortearam o movimento: o direito permanente à pesquisa estética; a atualização da consciência artística brasileira e a estabilização de uma consciência criadora nacional. Ver a íntegra da citada conferência em: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas, Petrópolis-RJ: Vozes, 1997, p. 308-10. 108 3.1.3 A modernização do relato: Mário Filho e o futebol como narrativa Como o próprio nome prenuncia, Mário Rodrigues Filho era o primogênito de uma família de jornalistas chefiada por um publicista pernambucano que, após ter trabalhado no Jornal do Recife e fundado o seu próprio periódico, o Jornal da República, ainda na capital de Pernambuco, resolve mudar-se para o Rio de Janeiro e lá continuar a aventura jornalística da família criando mais dois jornais: A Manhã, no ano de 1925, e posteriormente, Crítica, por volta de 1928. Foi nos jornais do seu pai, Mário Rodrigues, portanto, que Mário Filho iniciou sua trajetória na imprensa esportiva brasileira. Isso se deu quando com apenas 17 anos assumiu o cargo de diretor-tesoureiro de A Manhã e, em seguida, um ano mais tarde, a página literária do mesmo jornal, que ostentava o sugestivo título de “Espírito Moderno”. Arvorando-se precocemente um escritor, foi neste espaço que Mário Filho iniciou uma experiência de ficcionista ao publicar, em forma de fragmentos, seus dois primeiros romances, Bonecas (1927) e Senhorita 1950 (1928), posteriormente renegados pelo próprio jornalista, junto com a veleidade de se tornar um autor de literatura de ficção. Sua obra posterior, bem mais sólida, escrita num registro de fronteira entre o jornalístico, o historiográfico, o sociológico e o literário, reúne os seguintes títulos: os livros jornalístico-historiográficos, Copa Rio Branco, 32 (1943) e Histórias do Flamengo (1945); os ensaios memoriográficos de cunho sociológico, O negro no futebol brasileiro (1947) e Romance do futebol (1949); os volumes de analise jornalística e biográfica, Copa do Mundo, 62 (1962) e Viagem em torno de Pelé (1963); os romances, O rosto (1965), A espanhola e O Crime – estes dois últimos inacabados –, e a biografia, Infância de Portinari (1966) (SILVA, 2006, p. 163-201). Provavelmente por ter percebido que a literatura de imaginação não fosse o seu forte, em 1927 Mário Filho abandona a página literária de A Manhã e vai dirigir a sessão de esportes do jornal, onde, entretanto, não poderia ainda desenvolver o estilo editorial que suplantaria as formas antigas da cobertura dos assuntos esportivos no Brasil. Só no ano seguinte, 1928, é que já à frente também da sessão de esportes do novo jornal do seu pai, Crítica, o jornalista concebe este espaço como um laboratório para desenvolver suas primeiras experiências com a linguagem que se estabeleceria como uma verdadeira modernização da imprensa desse ramo no nosso País. A trajetória desse processo, contudo, em que algumas precondições técnicas, econômicas e políticas lhe foram sucessivamente dadas e negadas quase que simultaneamente, não foi percorrida de forma fácil. A começar pela existência breve do seu “laboratório de pesquisa da linguagem esportiva”, o periódico Crítica, que com 109 as turbulências da Revolução de 1930 teve a sua redação invadida, depredada e posteriormente fechada. Mergulhados em grave crise financeira a partir de então, os filhos de Mário Rodrigues – todos jornalistas; notadamente, o próprio Mário Filho, a quem coube a responsabilidade do sustento da família com a morte do pai, em 1930 – tiveram, na seqüência do episódio, sérias dificuldades para retomar o trabalho. Após certo tempo fora do jornalismo, portanto, só em 1931 é que Mario Filho é contratado para trabalhar no jornal O Globo, periódico comandado pelo jovem jornalista Roberto Marinho, seu amigo de papo e de rotineira mesa de sinuca. Começava aí, durante os meses que se seguiriam, através agora das páginas desse outro periódico, uma verdadeira batalha entre o velho e o novo no que concerne às formas de abordagem jornalística do tema do futebol. O pano de fundo desse processo será aqui rapidamente sintetizado, apenas para que se possa compreender adequadamente o alcance geral dos seus desdobramentos futuros. Dizíamos um pouco atrás, quando nos referíamos às polêmicas envolvendo os escritores Coelho Neto e Lima Barreto em torno do futebol, que vários aspectos daquela controvérsia pública antecipavam uma discussão mais ampla que iria desembocar de vez nos imbróglios doutrinários e temáticos do movimento modernista brasileiro, desencadeado com a realização da Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, cujo resultado posterior foi a remodelação paradigmática de toda a plataforma conceitual de que se alimentaria a cultura brasileira no seu sentido mais geral. Pois a atuação do jornalista Mário Filho, no campo da imprensa esportiva brasileira, no período que analisaremos agora, se insere no âmbito desse processo de redefinição de rumos da vida nacional, que se daria mais fortemente sob o empuxe dos acontecimentos da revolução de 1930. É neste contexto, por assim dizer, no calor dos acontecimentos que culminaram com o empastelamento do jornal do seu pai, Crítica, ocorrido justamente neste ano, que a carreira do jornalista Mário Filho; os processos de popularização do futebol; o desenvolvimento da imprensa esportiva nacional e a história política e cultural da sociedade brasileira se cruzariam de um modo paradoxal, na observação do pesquisador de sua obra jornalística, Marcelino Rodrigues da Silva a quem já nos referimos e a quem voltaremos mais à frente.76 Por enquanto assinalemos, no contexto, que o panorama geral da política brasileira 76 O professor e pesquisador da área de Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, Marcelino Rodrigues da Silva, tem produzido estudos importantes sobre a temática do futebol no Brasil, analisando-o como um fenômeno típico da moderna cultura brasileira, em conformidade com o escopo de abordagem com que tratamos o tema nesse nosso trabalho. Nesse contexto das pesquisas brasileiras sobre o tema, destaco do autor – justamente por suas afinidades diretas com esse nosso estudo – os trabalhos: 110 apresentava, naquele período, os momentos finais da República-café-com-leite, com o aparato político-institucional que a sustentava começando a ruir, processo impulsionado pelos seus próprios costumes e desmandos, tais como sucessivos anos de eleições fraudulentas, abusos administrativos autofágicos, períodos de instabilidade econômica causados, sobretudo, pela manipulação do preço do café, e gerenciamento temeroso da política monetária nacional, entre outros. Some-se a esse quadro aquele surto de industrialização e urbanização a que nos reportamos antes e que, transplantado para o Brasil, crescentemente tomava conta dos grandes centros de poder do país: as grandes capitais. Esse processo trazia aos núcleos de decisão administrativa, novos atores sociais relevantes: as classes médias e populares, transformadas agora em imensas e heterogêneas massas urbanas, aptas a adquirirem força na nova vida brasileira, e, portanto, prontas para “criarem problemas” aos governantes na forma do exercício não ordenado da cidadania inconclusa, no âmbito da vida econômica e social da nação. Despreparadas para lidar com esse novo quadro da paisagem sócio-econômica e cultural do país, por causa de suas concepções e atitudes políticas defasadas quanto à realidade, as oligarquias regionais que sustentavam a hegemonia do poder político brasileiro, através das mãos da aristocracia cafeeira de São Paulo, entram em conflitos internos e abrem uma crise que força, por parte do alto poder dirigente, a tomada de medidas desestabilizadoras da ordem social. A repressão política, as sucessivas decretações de estado de sítio, a emergência da Lei de Imprensa de 1922, o surgimento do movimento tenentista, os levantes militares de 1922 e 1924, a fundação do Partido Comunista e a coluna Prestes, entre outros, acenderam, então, os sinais de alerta para um estado de ebulição social que a Revolução de 1930 viria consolidar, abrindo novos horizontes para a vida nacional. Justamente por causa da emergência dessas grandes massas urbanas nas principais cidades do país, assistia-se, paralelamente, no âmbito cultural, a um vertiginoso crescimento da indústria do lazer e do espetáculo, processo facilitado pela importação de aparatos O mundo do futebol nas crônicas de Nelson Rodrigues, produto de sua dissertação de mestrado cujo objetivo era discutir os processos de produção de sentido através dos quais, tendo como base a análise das crônicas do autor citado no título, o imaginário futebolístico brasileiro foi construído, e Mil e uma noites de futebol; o Brasil moderno de Mário Filho, em que se debruçou sobre o discurso do jornalismo esportivo brasileiro na primeira metade do século XX – particularmente a imprensa carioca e, dentro dela, o trabalho do jornalista Mário Filho no jornal O Globo. Nessa sua obra, o pesquisador analisa o discurso do jornalismo esportivo tentando vê-lo como campo de disputa pela atribuição de sentidos ao jogo de futebol e busca captar sua complexidade como narrativa de construção e modernização da nação brasileira, enfoque que aproveitamos para basear nossa fundamentação desta parte do percurso do tema do futebol na sua transição do âmbito jornalístico para o campo tipicamente literário. A bibliografia pertinente deste autor está listada nas referências bibliográficas ao fim deste trabalho. 111 tecnológicos atualizados e novos hábitos incorporados pela modernização do paradigma da vida social brasileira. A inserção do rádio, nesse contexto, como novo e poderoso veículo de comunicação de massa; a paralela disseminação do cinema somada ao desenvolvimento da indústria fonográfica, junto com a conseqüente valorização de estilos musicais bem ao gosto do povo, como a modinha, o maxixe, o choro e o samba, foram elementos que contribuíram para o desenvolvimento cada vez maior de um correlato mercado cultural que já dava sinais de vida pulsante desde a década anterior aos acontecimentos do ano de 1930. Já demonstramos também por essa época, no universo da dita “alta cultura”, a virada de modelo na ação cultural, ocorrida a partir do advento da Semana de Arte Moderna de 1922 e do conseqüente movimento Modernista, que marcaram o rompimento da nossa classe intelectual com as tradições elitistas e europeizadas da fase anterior. O mote agora passava a ser a construção de um panorama cultural, no Brasil, que possibilitasse a construção de uma identidade nacional a partir das raízes genuínas da nossa formação social. Isso implicaria o abandono dos formalismos e academicismos transplantados da vida européia e a focalização mais direta nas raízes locais de uma expressão nacional que tinha como fonte inspiradora o nosso folclore, as práticas culturais dos nossos indígenas e as ancestrais contribuições das interações afro-brasileiras, num cadinho de efetivação que reconhecia tanto o litoral como o interior do Brasil. Estava em pleno curso, portanto, por esse período da vida nacional, um processo de reorganização de valores que implicava justamente a diluição das fronteiras entre a “alta” e a “baixa” cultura, baseado nas intensificações dos contatos e trocas entre essas duas esferas. No âmbito esportivo dessa paisagem cultural, por conseqüência, o decênio de 1920 apresentou o mesmo ambiente efervescente e re-estruturador. Como decorrência do processo de popularização do futebol que estava em plena marcha no Brasil e que já atraía interesses econômicos os mais diversos, o Vasco da Gama, do Rio de Janeiro, inaugurou, em 1927, aquela que seria então a maior praça de esportes do país, o estádio de São Januário, que contava com uma capacidade para 40.000 pessoas. A capacidade de acolhimento para assistência tão numerosa era por si só o signo de um momento em que o futebol já reunia multidões no Brasil e em que as pressões para a vitória dos clubes sobre seus rivais já tinham de há muito substituído o espírito amador da fase anterior deste esporte. Tais pressões pelo bom desempenho dos times chegavam agora a tal ponto que os clubes mais elitizados começaram a desejar o concurso, nos seus quadros, dos vários craques que surgiam das peladas dos campos de várzea espalhados pelas cidades ou até mesmo a cobiçar os melhores atletas dos clubes suburbanos para que eles mudassem de lado. 112 Esse processo teve o seu momento crítico, segundo a maioria dos historiadores do futebol – entre eles o próprio jornalista Mário Filho –, lá pelos fins do ano de 1923, quando o Vasco da Gama ganhou o campeonato carioca com aquele time composto por atletas oriundos das classes populares, a que já aludimos no início deste trabalho, desencadeando um movimento de reação, por parte dos clubes de elite, que culminou com a fundação da Associação Metropolitana de Esportes Amadores, a AMEA, entidade que endureceu as regras amadorísticas do esporte e criou sérias restrições à entrada, nas suas competições, de clubes que incluíssem em seus quadros atletas que por quaisquer meios, recebessem vantagens para jogar. A idéia reativa da entidade era barrar a existência, já naquele momento do desenvolvimento do futebol no país, do chamado “profissionalismo mascarado”, expediente através do qual os melhores jogadores (reconhecidamente, os de origem negra, mulata ou oriundos das classes populares) já “vendiam” veladamente a sua força de trabalho, prática que culminaria mais à frente com o inevitável profissionalismo formal que conhecemos hoje e para o qual Mário Filho contribuiria de forma decisiva com a sua atuação de jornalista esportivo moderno, conforme veremos agora. Neste contexto – o da substituição, no futebol, do regime amador antigo (elitista) pelo regime profissional moderno (popular) –, o pesquisador Marcelino Rodrigues da Silva (agora voltando a ele), é também da opinião de que esse é um momento extremamente interessante da trajetória da imprensa brasileira, principalmente pelas conseqüências que implicarão a própria história da interpretação desse jogo no Brasil. Além de registrar a convivência e a disputa entre [ ] duas maneiras de noticiar e interpretar os acontecimentos esportivos, ele marca o início da longa passagem de Mário Filho por esse jornal [O Globo], quando suas iniciativas inovadoras deslancham e ganham maior consistência. É a virada de jogo, o episódio decisivo em que a hegemonia da interpretação elitista do futebol, é posta em xeque por um novo discurso sobre o esporte (SILVA, 2006, p. 98). Vejamos, pois, como operava simbolicamente – antes de Mário Filho –, e como passou a operar agora, depois de suas intervenções remodeladoras, o discurso social sobre o futebol no jornalismo brasileiro. No que tange à imprensa esportiva, o que se tinha até então era a prática já cansativa de um modelo de discurso apegado ainda às formas de escrita canonizadas pelo nosso parnasianismo literário, baseado no beletrismo ostentatório e bacharelesco das elites culturais que insistiam em edulcorar a realidade com as letras e os fonemas de um olhar monolítico e auto-centrado, bem à imagem e semelhança das suas próprias formas de convivência no ambiente social. Em termos textuais, no que diz respeito à cobertura pela 113 imprensa dos jogos de futebol, esse modelo – já demonstrado lá atrás através das matérias do jornalista Mário Sérgio Cardim, para citar apenas um exemplo dentre outros –, não havia sofrido modificações significativas, apesar do maior espaço franqueado agora ao tema do futebol nas páginas dos periódicos cariocas e paulistas. No geral, o modelo ainda se estruturava da seguinte maneira: O texto geralmente começa com alguns comentários, em que o cronista apresenta sua visão geral do evento e suas opiniões pessoais sobre ele. Após esses comentários iniciais, passa-se à escalação dos teams e à narração da partida e, por fim, adicionam-se pequenas notas que retomam e concluem os temas tratados anteriormente ou acrescentam informações sobre outros assuntos relacionados ao jogo (SILVA, 2006, p. 44). Ou seja: no que se refere objetivamente à descrição do jogo em si, o que ainda imperava era a visão particular do cronista, exposta sob a forma de comentário em que o argumento de autoridade – de quem presumivelmente conhece a fundo a matéria – apontava não para um diálogo social sobre o tema, mas, sobretudo, delineava – sob a capa oculta da representatividade lingüística do texto autoral, costumeiramente não assinado –, uma visão ético-moral do evento, o que ainda (pelo menos até por volta do final da década de 1920) reafirmava o caráter elitista do jogo de futebol, um passatempo através do qual seus praticantes – e seus assistentes – ostentavam simbolicamente seus costumes culturais e seus valores de classe. Tanto era assim que para preencher essa estrutura textual, os cronistas lançavam mão, sempre que podiam, de uma distinção –, muitas vezes expressas em marcas textuais muito claras – entre o que eles mesmos definiam como os “aspectos técnicos” do jogo e os “aspectos sociais” do acontecimento esportivo. Correlatamente, no que se refere à visão que se tinha do jogo de futebol em si, vejam-se, definidas em três palavras, na síntese escolhida por Marcelino Rodrigues, como um cronista define, no ano de 1917, as qualidades que, conforme a opinião geral, traduziam um bom time de futebol à época: “Ordem, animação e trabalho contínuo”. A isso o pesquisador acrescentará os atributos da racionalidade e da coletividade que, ainda sob a opinião da época, deveriam estar sempre acima da intuição e do valor individual na prática do futebol. Isso nada mais é, em termos práticos, do que uma clara afirmação dos valores éticos sobre os valores estéticos do esporte, valores esses que, já mostramos, só mais tarde seriam muito mais ressaltados, no contexto da “virada de jogo” do nosso modernismo literário, fato que transplantada para o campo do jornalismo esportivo, só viria acontecer sob o influxo da abordagem também modernista implantada nesse campo por Mário Filho sob cuja formulação o jogo de futebol passaria a ser reinterpretado no Brasil. 114 Eram habituais os elogios ao jogo coletivo e às trocas de passes, assim como as críticas ao individualismo e ao excesso de dribblings, as equipes vitoriosas eram qualificadas como ‘homogêneas’ e de ‘adestrado conjunto’, dizia-se que faltou treino aos perdedores, valorizava-se a defesa em detrimento do ataque e até mesmo os escores elevados eram tidos como prova de que a partida não teve boa qualidade técnica (SILVA, 2006, p. 46-47). Observa Marcelino Rodrigues, preanunciando, nas entrelinhas do seu texto, as profundas modificações que estariam por vir no âmago deste esporte. Mário Filho irá, pois, reordenar esse panorama, como se verá. E não só quanto aos novos sentidos que o futebol incorporará na sua nova formatação como fenômeno social de caráter esportivo e espetáculo de massa ao mesmo tempo; mas, sobretudo, quanto ao novo discurso social em que ele implicará após as inovações por que passará sob o cometimento profissional desse jornalista. Uma vez que as interveniências modernizantes no discurso do futebol empreendidas pelo jornalista Mário Filho se darão preponderantemente no campo do jornalismo, notadamente na sua especialidade do âmbito esportivo, é importante tecermos aqui algumas considerações sobre a especificidade da linguagem jornalística, já que foi – e é por meio dela – que o fenômeno do futebol opera simbolicamente como discurso pragmático através do qual os atores sociais e suas intervenções no amplo espectro do mundo da cultura ganham o espaço público. Portanto, assim como procedemos com a linguagem literária, tentando delimitar seus contornos quanto a um possível entendimento do seu campo nos seus sentidos amplo e restrito, igualmente procuraremos delimitar o jornalismo na sua abrangência conceitual compreendendo esses dois âmbitos. Assim, reconhecida a especificidade da literatura em sentido amplo como um supra-discurso de caráter globalizante e integrador de outras linguagens, embora que auto- referenciado, apliquemos a mesma metodologia operacional em relação ao jornalismo, na tentativa de caracterizar-lhe a constituição estrutural de sua poética própria porque já é relativamente consensual a existência de uma linguagem especificamente jornalística cuja fisionomia discursiva está satisfatoriamente definida em termos teóricos. Tal como a literatura, portanto, o discurso jornalístico tem passado por vários tipos de abordagens conceituais ao longo do tempo. Porém, esta revisão histórica do fenômeno não nos interessa aqui diretamente por causa dos objetivos do nosso trabalho. Interessa sim, por oportuno, irmos ao ponto da questão em que é necessário que se estabeleça uma distinção operacional entre o jornalismo em sentido estrito (aquele que tem na notícia a sua unidade básica de informação: o jornalismo informativo, na categorização do teórico José 115 Marques de Melo)77 e o jornalismo em sentido amplo, aquele que compreende já o aprofundamento da notícia, desdobrando-se em vários outros gêneros tais como a grande- reportagem, o romance-reportagem e o livro-reportagem, por exemplo, em que o ato de narrar, nas suas mais diferentes modalidades – superando em complexidade e eficácia a mera ação de relatar 78 – está incorporado substancialmente à sua linguagem. Nessa direção, cumpre já assinalar que a linguagem jornalística tem uma finalidade (uma função) específica: a comunicação informativa, marcada por uma enunciação que lhe é característica, associada a um meio técnico que lhe serve de suporte, a imprensa. Portanto, a atividade jornalística está assentada sobre três pilares básicos: as tecnologias, as ciências (que o teórico do campo Adelmo Genro Filho ampliou para “os diferentes modos de conhecimento da realidade”) 79 e as linguagens. Como parte do amplo campo das diferentes linguagens, a enunciação informativa, fundamento da linguagem jornalística (também como as demais, baseada no esquema emissor – discurso do emissor – receptor), produz um discurso peculiar: o discurso informativo, que caracteriza-se por veicular mensagens marcadas por uma intencionalidade preponderante: atingir um receptor, enquanto membro de uma comunidade politicamente constituída. O discurso jornalístico, portanto (que tem um claro projeto de comunicação imediata), é marcado por alguns traços que lhe são definidores: na sua formulação como linguagem, se estrutura, pois, a partir da inter-relação (ou conjunção) semiológica de três sistemas de significação: os sistemas analógicos, o sistema lingüístico e o projeto gráfico (LAJE, 1985, p. 5-7). 77 Segundo o professor José Marques de Melo, as categorias do jornalismo brasileiro são basicamente duas: jornalismo informativo, cujos gêneros são a Nota, a Notícia, a Reportagem e a Entrevista; e o jornalismo opinativo, que se subdivide nos gêneros Editorial, Comentário, Artigo, Resenha, Coluna, Crônica, Caricatura e Carta do leitor. Cf. MELO Marques de. A opinião no jornalismo Brasileiro. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985. 78 Conforme a teoria jornalística, o relato está para a notícia assim como a narração está para a reportagem. Segundo o teórico da notícia, Nilson Laje, o relato, que é a forma de contar baseada na exposição dos eventos, indica já uma noção intuitiva da notícia. No relato, os eventos estarão ordenados não pela seqüência temporal mas pelo interesse ou importância decrescentes, na perspectiva de quem conta, e, também, na suposta perspectiva de que ouve. Já a modalidade da narração se baseia na organização dos eventos em seqüência. O primeiro antecede o segundo; o segundo antecede o terceiro, e assim sucessivamente. Os acontecimentos são registrados na mesma ordem em que teriam ocorrido no tempo, embora seja também possível ao narrador contar uma história de uma forma em que esta seqüência temporal real seja alterada voluntariamente: contar do fim para o começo; do meio para o fim; do meio para o começo e desta pulando-se para o fim, etc. Cf. LAJE, Nilson. Estrutura da notícia. São Paulo: Editora Ática, 1987, p. 19-44. 79 Baseado em categorias de larga tradição filosófica (especialmente em Hegel, de quem Georg Lukács as apropriou para aplicá-las ao seu estudo do fenômeno da arte: as categorias do singular, do particular e do universal, que representam as formas objetivas de existência de todas as coisas no mundo), Adelmo Genro Filho construiu uma teoria do jornalismo que releva especialmente o seu componente ético. Ou seja, ele redefine, com rigor filosófico, as potencialidades do jornalismo em enxergar a realidade sob uma ótica valorativa: o ângulo da singularidade dos fenômenos. Sendo assim, para este autor, muito mais do que uma modalidade de comunicação criada pelo homem historicamente, o jornalismo é uma forma específica de conhecimento da realidade. Tal como a ciência, tal como a arte, etc. Cf. MEDITSCH, Eduardo. O conhecimento do jornalismo. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1992, p. 27. 116 Os sistemas analógicos compreendem as ilustrações, as fotografias, os cartoons, as infografias, os mapas etc, que servem para fixar e comentar, no suporte de comunicação, os momentos captados da realidade. O sistema lingüístico, que também compõe a linguagem jornalística (e o que interessa mais diretamente neste estudo) é a expressão verbal da comunicação, a utilização da língua – a organização particular do seu código – com o objetivo de informar. É composto, por exemplo, pelas manchetes, títulos, sub-títulos, textos, legendas, etc, e representam o componente digital da comunicação jornalística, uma vez que o sistema lingüístico é o mais adequado para a comunicação de conceitos. É através dele, por exemplo, que o jornalismo cumpre, por meio da narrativa textual, uma de suas tarefas mais complexas e, por isso mesmo, ainda não devidamente aprofundada nas suas implicações filosóficas, culturais, políticas e sociais: a substituição (e de certa forma a recuperação) da realidade vivida pelo homem pela respectiva realidade narrada. Essa questão é importante para o nosso caso em análise, porque trata fundamentalmente dos problemas que envolvem as formas de representação, e é analisada, pela pesquisadora Cremilda Medina, nos seguintes termos: [...] Relatar acontecimentos, fazer uma narrativa, é uma vivência universal, inerente a todos os tempos históricos em que o homem manteve relações de aproximação com outros homens. E sempre narrar uma história não é mais viver essa história. O fragmento de tempo posterior que a narrativa representa é a passagem fundamental para uma realidade substitutiva, um esforço de prolongamento do instante anterior, de certa forma sempre intencional e articulado. O que significa que essa vivência substitui a vivência anterior e, por isso, a narrativa é um universo simbólico com características e funções que merecem um estudo à parte. E tanto faz que se trate de uma narrativa inteiramente ficcional como uma narrativa jornalística, que pretende ser referencial (MEDINA, 1988, p. 99). Com essas observações pertinentes da professora Cremilda Medina, chegamos, por fim, ao terceiro sistema de significação que compõe a linguagem jornalística, o projeto gráfico. Ele forma todo o universo simbólico composto de traços, manchas, ilustrações e letras que dão fisionomia ao veículo de comunicação. Uma de suas funções básicas é criar e preservar a individualidade do veículo para fazê-lo reconhecido pelos leitores mesmo que estes não leiam o seu título e ainda que a disposição dos seus elementos varie a cada dia. É através do projeto gráfico, por exemplo, que se reconhece o jornal ou a revista que se lê fielmente. Importante frisar, dentro deste contexto teórico, que tais considerações sobre a linguagem jornalística (principalmente as intervenções operadas no código lingüístico) dizem respeito mais diretamente ao jornalismo informativo, que tem a notícia e a sua formulação 117 lingüística baseada no conceito de lead 80 como unidade básica de informação. A sua aplicação ao jornalismo em sentido amplo – aquele que abarca gêneros como a grande- reportagem, o livro-reportagem e o romance-reportagem, por exemplo – é muito mais flexível porque a sua operação simbólica é mais aberta à incorporação da função estética da linguagem em concorrência direta com a função meramente referencial, o que deixa o jornalista mais livre para trabalhar os potenciais artísticos do jornalismo na sua acepção mais aberta. Dizemos isso porque nesse ponto, outra vez, o jornalismo se encontra com a literatura através da utilização comum da linguagem verbal. É, por exemplo, na reportagem, na grande-reportagem (classificação adotada para as reportagens que visam um maior aprofundamento do relato, oferecendo ao leitor a possibilidade de compreensão mais ampla da realidade) que o jornalista pode exercer uma maior liberdade formal e de estilo. Este tipo de texto, que extrapola a superficialidade da notícia, propicia ao repórter contextualizar mais amplamente o núcleo factual da sua narrativa por meio de recursos como, por exemplo, a ampliação de vozes do discurso – e, por conseqüência, a variedade de ângulos possíveis de entendimento do fato, que é mostrado nos seus mais diferentes aspectos tais como suas conseqüências, repercussões e implicações presentes e futuras –, além da aplicação das técnicas de humanização do relato, herdadas, por exemplo, da experiência profícua do new journalism americano.81 É na reportagem, portanto – principalmente nas suas modalidades ampliadas, como a chamada grande-reportagem – que o jornalista pode experimentar caminhos, possibilidades e soluções estéticas novas para a construção da narrativa jornalística que, pela flexibilidade do gênero, não necessita ficar presa às frias normas técnicas dos manuais de redação ou estilos de época, ou ainda atada, por isso mesmo, a estruturas rígidas de utilização 80 O lead é representação lingüística dos fatos jornalísticos baseada na disposição dos eventos da realidade (ou aspectos deles) por ordem decrescente de importância, o que genericamente implica no resumo da notícia através dos seus seis elementos básicos respondendo a seis perguntas clássicas: O Que? Quem? Quando? Onde? Por que? e Como?, deduzidas da fórmula 3Q+O+P+C. Cf. NASCIMENTO, Edonio Alves. As ligações perigosas: relações entre literatura e jornalismo na década de 70 no Brasil. Natal, 1999. (Dissertação de Mestrado – Curso de Letras – Universidade Federal do Rio Grande do Norte), p. 77. 81 O New Journalism é como denominamos uma corrente estética que surgiu no jornalismo americano, na década de 1960, e que se caracterizou por adotar, técnica e sistematicamente, recursos literários aplicados à narrativa jornalística. Tal prática jornalística, foi difundida no Brasil graças à influência de toda uma geração de jornalistas americanos que tomou a si a tarefa de impor melhorias estéticas no jornalismo do seu país: os então chamados “novos jornalistas”. Esta corrente estética do jornalismo, cujos adeptos e teóricos mais conhecidos no Brasil são, entre outros, Tom Wolf, Truman Capote, Norman Mailler, Gay Talese e Jim Breslim, se opunham radicalmente à prática do chamado jornalismo objetivo, modelo hegemônico de estruturação da informação em escala industrial, baseado na idéia de que é possível reportar os fatos sociais tal como eles aparecem, sem interferências subjetivas marcantes na forma de narrá-los. Os novos jornalistas surgiram e se insurgiram contra essa idéia, portanto. Idem. Ibidem. Op. Cit. p. 77. 118 de frases, de vocábulos ou de construção linear da sintaxe. Aqui, nesse tipo de texto jornalístico, o repórter pode até ousar na utilização de recursos ficcionais típicos da literatura para dar maior expressividade a sua escrita, renovando e elevando o jornalismo, como técnica discursiva, ao limite da arte, através da incorporação da função estética (ou poética) da linguagem. Fizemos todo esse apanhado conceitual sobre a linguagem do jornalismo em sua noção mais geral, precisamente para demonstrar que foi sobre esta plataforma discursiva da imprensa – explicada aqui em seus fundamentos teóricos básicos – que o jornalista Mário Filho desenvolveu suas ações de renovação da linguagem de esportes no Brasil, a partir do momento que entrou na seção específica do jornal O Globo, trabalho que mostraremos agora nos seus momentos e fases mais significativas. Retomemos, então, o ponto em que tanto o futebol quanto o jornalismo esportivo – como corolário lingüístico de sua formulação discursiva – ainda se assentavam sobre os valores vigentes da sua fase pré-moderna. E retomemos com esse texto que segue sobre o qual teceremos os comentários pertinentes: Urge, sim, que os vinte e dois jogadores em campo mostrem aos príncipes o estado de sua educação, sabido que na Inglaterra se rendem atenções maiores à disciplina do que à própria técnica. Já fartamente, neste "Reparo" temos dito que, quando o inglês chama o outro de sportman, quer significar que este outro é homem de educação perfeita, é cavalheiro de apuradas maneiras. É, pois, preciso, na grandiosa exibição que vai se realizar, que Eduardo e Jorge empreguem a palavra enobrecedora, o que equivale na afirmativa cabal e terminante da nossa educação sportiva. Que sejamos absolutamente sportmen, diante dos príncipes! (SILVA, 2006, p. 101). O trecho acima se refere a um comentário editorial, costumeiramente enquadrado sob a rubrica “Reparo do dia”, com o qual o editor da seção esportiva do jornal O Globo, denominada “O Globo nos sports”, o jornalista Netto Machado, rotineiramente comentava aspectos destacados do noticiário esportivo do periódico carioca. Nesse caso, a intenção é comentar as circunstâncias que envolvem uma partida de futebol entre as seleções do Rio de Janeiro e de São Paulo, realizada em homenagem aos príncipes da Inglaterra que estavam no Brasil. Publicado na edição do dia 4 de abril de 1931, ano em que o jornalista Mário Filho assumiu a respectiva seção de O Globo, o texto traz à tona os valores sobre os quais ainda se assentavam a prática do futebol no Brasil, no geral ainda marcada pelo signo do cavalheirismo e da civilidade, sobre o que se defendiam as fronteiras físicas e simbólicas que demarcavam a vida esportiva das elites em distinção às práticas esportivas e de lazer das classes populares. Serve também o referido texto, todavia, para demonstrar como a imprensa do início da década de 1930 tratava ainda o tema do futebol no seu âmbito editorial, a despeito 119 do maior espaço que o assunto já havia conquistado nos jornais cariocas com a popularização do jogo já bastante consolidada, processo que inevitavelmente redundaria no aparecimento já de novas demandas simbólicas para a área, dada a inclusão de novos contingentes populares a buscar espaço de expressão por meio desse esporte na capital da República. É de se notar, neste contexto, como o estilo bacharelesco e laudatório do jornalismo, recheado de maneirismos retóricos e adornos estilísticos, permaneciam prevalecentes e intocados por essa época, nos termos de sua própria formulação lingüística. Sobre esse aspecto, observa o estudioso do tema, Marcelino Rodrigues: Apesar desse relativo destaque, as páginas de esporte desse jornal ainda eram produzidas segundo uma concepção jornalística bastante tradicional, muito semelhante à que predominou ao longo das três décadas anteriores em toda a imprensa esportiva brasileira. [...] Mesmo no noticiário sobre o futebol, ainda eram comuns, embora menos do que na década de 1910, as notas sobre os eventos sociais que animavam a vida dos grandes clubes, as críticas preconceituosas e seletivas ao mau comportamento dos atletas e torcedores e as fotos de cartolas e jogadores em terno e gravata (SILVA, 2006, p. 99-100). Mesmo assim, esse era, podemos dizer, um jornalismo francamente esportivo, claro. Porém vestido de terno e gravata, em que seus traços mais marcantes eram reforçados para servir à imagem da classe de leitores que dele participava enquanto tema referente de suas matérias e que, por isso mesmo, o consumia mais diretamente. Tal era o quadro, portanto, que se tinha àquela época no âmbito da imprensa esportiva brasileira. Semelhante estado de coisas, entretanto, começaria a mudar sob o influxo ideológico e doutrinário da concepção particular do jornalista Mário Filho sobre dois itens fundamentais da pauta de cobertura do trabalho da imprensa: a linha editorial que orienta as publicações e as formas de apuração da notícia, que fundamentam toda a plataforma discursiva dos veículos de comunicação informativa. Herdada do tempo em que havia atuado nos dois jornais do seu pai, A Manhã e Crítica – periódicos de orientação sensacionalista que tinham seu noticiário baseado em intrigas políticas e dramas policiais –, essa orientação doutrinária se fundava numa formulação a ele transmitida pelo seu próprio pai, Mário Rodrigues, e que, publicada no Jornal do Brasil em forma de declaração pública logo após a morte do jornalista, em setembro de 1966, assim preconizava: “[...] quero que meu jornal não se limite a publicar a notícia, mas [se proponha] também a criar a notícia, a ser ele mesmo a [própria] notícia” (SILVA, 2006, p. 107). Foi como produtos dessa concepção ideológico-conceitual do trabalho jornalístico, portanto, que a partir das últimas edições do mês de maio de 1931 do jornal O Globo, começaram a surgir matérias, nas suas páginas esportivas, que representavam aquilo 120 que já seria os indícios de uma verdadeira batalha pela definição e controle da linha editorial do assunto esporte daquele periódico onde se digladiavam, na surdina barulhenta da redação, duas maneiras radicalmente díspares de se tratar o tema. Uma forma monolítica, emperrada, tradicional, de enquadramento único, representada pelo jornalista Netto Machado, cujo exemplo já mostramos acima, e um jeito multifacetário, dialético, mais aberto, plurifocal, de cobrir o fato esportivo de repercussão social, concebido por Mário Filho. A descrição e interpretação dessas mudanças de rumo no jornalismo esportivo brasileiro – modificações essas que marcariam inequivocamente o tratamento posterior dessa prática ou modalidade de informação social –, deixemos a cargo do trabalho do pesquisador Marcelino Rodrigues da Silva, que sobre elas se debruçou na tentativa bem sucedida de aquilatar suas dimensões realmente inovadoras a tal ponto de remodelarem definitivamente a plataforma de atuação da imprensa esportiva nacional. Metodológica e preferencialmente analisadas sob a forma de comunicação impressa, as diatribes dessa batalha pela renovação do universo simbólico do âmbito discursivo do esporte no Brasil podem ser acompanhadas lance a lance, através das efetivações das idéias de Mário Filho na famosa página 8 do jornal O Globo, executadas nesse período, e que se iniciam no fim de maio de 1931. A descrição é longa, mas necessária, para contextualizar a aferição dos seus impactos futuros: O espaço dedicado aos assuntos esportivos durante a semana recebeu um novo incremento, passando a ocupar, eventualmente, toda a página 8 e parte da página 7. Além disso, o número de fotos e desenhos que ilustravam o noticiário aumentou significativamente. No início de junho, começaram a aparecer, com freqüência cada vez maior, matérias autônomas, geralmente entrevistas, que fugiam do tradicional padrão de enquadramento único. Embora ainda estivessem visualmente submetidas ao título geral da seção, essas matérias traziam títulos e subtítulos em tipos bem maiores do que os do texto, abordavam temas incomuns e usavam uma linguagem mais coloquial, deixando entrever um novo estilo de cobertura jornalística dos esportes. Como as entrevistas com os jogadores João Coelho Netto, ‘o popular Preguinho’, e Gilberto, publicadas na primeira edição do dia 3 de junho, cujos títulos exclamam: ‘O team do Botafogo está ótimo’ e a ‘Defesa vascaína é uma fortaleza’”. Durante as primeiras semanas de junho, esse novo estilo editorial foi ganhando espaço e se fazendo cada vez mais perceptível. As matérias começaram a ser separadas por molduras gráficas em arabesco (os chamados passe-partaouts) e os textos foram se tornando cada vez mais distantes do tom empolado e austero que imperava anteriormente. Até que na primeira edição do dia 17 de junho, esse processo teve seu lance decisivo. Na página 8, o clichê com o título da seção foi substituído por uma grande manchete sobre a chegada de um time húngaro, o Ferencvaros, ao Brasil, e toda a página foi ocupada por matérias autônomas, com enfoques que variavam do dramático ao humoristico. Aquele novo estilo de jornalismo esportivo tinha, enfim, assumido o primeiro plano nas páginas d'O Globo. Deslocada de seu espaço original, a seção "O Globo nos sports" foi publicada na página 7, com apenas três colunas e um "Reparo do dia" em que a excursão do Vasco à Europa foi o mote para mais um elogio às virtudes diplomáticas do esporte. A partir daí, a página 8 passou a ser sempre encabeçada por uma manchete e preenchida por matérias autônomas, enquanto na página 7 continuavam a ser publicados textos nos moldes da antiga seção de esportes do jornal, sob o título ‘O 121 Globo nos sports’”. Nas edições matutinas de segunda-feira, a capa e a página 2 também continuaram a ser produzidas segundo o modelo tradicional, provavelmente em função do peso que o nome de seu idealizador, Eurycles de Mattos, ainda tinha no jornal. Embora essa divisão espacial tenha permanecido durante algum tempo, a página 8 foi se tornando progressivamente mais vibrante e criativa, publicando textos inusitados, alimentando polêmicas, inventando colunas fixas dedicadas a assuntos antes inexplorados e valorizando cada vez mais a diagramação e as imagens, num claro contraste com a monotonia e o tradicionalismo da página7. [...] A disputa entre esses dois estilos editoriais permaneceu nesse mesmo pé, com poucas oscilações, ao longo de todo o segundo semestre de 1931. No final do ano, após o término da temporada oficial de futebol, a seção "O Globo nos sports", na página 7, começou a ser publicada apenas eventualmente. Em fevereiro de 1932, o "Reparo do dia" passou a ser impresso no meio da página 8. No final de março do mesmo ano, com o início da temporada futebolística, os assuntos esportivos voltaram a dominar totalmente as páginas 7 e 8, mas ambas passaram a ser produzidas no novo estilo de abordagem jornalística dos esportes e encabeçadas por manchetes. O "Reparo do dia", encravado no meio da página 8, e as duas primeiras páginas da edição matutina de segunda-feira eram tudo o que restava da antiga seção de esportes d' O Globo. Assim terminava o que, ao que tudo indica, foi uma batalha entre os jornalistas Neto Machado e Mário Filho pelo controle editorial das páginas de esporte daquele jornal (SILVA, 2006, p. 102-104). Esse controle conceitual e prático exercido a partir daí pelo jornalista Mário Filho e sua equipe – da qual participavam seus irmãos, Nelson Rodrigues e Jofre –, na nova seção de esportes do jornal O Globo, formará, no seu amplo conjunto de intervenções heterodoxas bem sucedidas, o processo de modernização da cobertura de imprensa dos assuntos esportivos no Brasil para o qual contribuirá decisivamente os seguintes passos, que englobam todo o espectro técnico-conceitual dá linguagem jornalística na confluência já demonstrada dos seus três sistemas de significação, o analógico, o lingüístico e o projeto gráfico: No âmbito do sistema lingüístico, houve de imediato uma radical modificação nos procedimentos de investigação, captação e obtenção dos fatos jornalísticos para tratamento editorial. Conforme as conclusões de Marcelino Rodrigues, ao contrário da imprensa esportiva tradicional, que geralmente se limitava a receber informações oficiais dos clubes e ligas esportivas, ou quando muito, a comparecer aos jogos para relatar os eventos das partidas, O Globo enviava seus repórteres aos treinos dos times, aos vestiários dos jogos, à casa dos atletas e aos bares e cafés que eles freqüentavam. Eles aproveitavam essas oportunidades em que incursionavam pelos bastidores do mundo esportivo para entrevistar jogadores e cartolas, tentar conseguir furos de reportagem, produzir novas fotografias ou surpreender algum episódio curioso ou conversa reveladora. “Pela primeira vez – diz o pesquisador – esse método agressivo de investigação jornalística, utilizado anteriormente nas páginas policiais de periódicos sensacionalistas como Crítica, era aplicado de modo sistemático aos esportes” (SILVA, 2006, p. 108). 122 Ele enfatiza ainda que em certas oportunidades o jornal, de fato, ia ao extremo de produzir, ele mesmo, os eventos a serem transformados nos acontecimentos que alimentariam a sua própria cobertura editorial. “E isso era feito não apenas com a nobre finalidade de incentivar a educação esportiva, como acontecia com os jornais como o Correio da Manhã desde a década de 1910, mas com o claro e indisfarçável intuito de preencher o noticiário e garantir as vendagens” (p. 109). Assim, complementa Rodrigues, livre da função corriqueira de informar e comentar os acontecimentos mais importantes, esse espaço editorial se dedicava, sobretudo, ao que antes era considerado secundário, pouco importante, ou mesmo inadequado às páginas dos jornais. Em lugar dos tradicionais elogios ao comportamento disciplinado e cavalheiresco dos atletas, das críticas aos eventuais ‘sururus’ ocorridos nas partidas e dos comentários sobre a elegância da platéia e o glamour dos bailes e chás dançantes em que a juventude esportiva se confraternizava, surgiu uma nova temática. Ampliando a noção do que era considerado fato jornalístico, a nova seção de esportes d’O Globo abria seu espaço a assuntos como as opiniões, emoções e expectativas dos atletas e torcedores, os detalhes cômicos ou dramáticos dos treinos e dos jogos, as polêmicas que agitavam os bastidores dos clubes e a vida privada dos craques da bola. O resultado disso tudo se refletia, lógico, nas formas de apresentação da notícia, ou seja, na maneira como os fatos e depoimentos obtidos pelo repórter eram expostos ao público em termos de sua formulação textual. Além da substituição do título geral da seção esportiva por manchetes e pelo uso corriqueiro de títulos e subtítulos que acompanhavam as matérias, procedimento já mencionado por Marcelino Rodrigues, houve ainda, conforme demonstrado ao longo do seu estudo, uma mudança na linguagem, que, segundo ele, abandonou o tom oratório da crônica esportiva tradicional e se tornou mais simples e coloquial, acompanhando coerentemente a nova temática. Por conta disso, a estrutura dos textos também se submeteu a uma transformação importante, derivada diretamente da fragmentação dos conteúdos que passaram a ter uma diagramação remodelada em função da necessidade de destacar o grau de autonomia das matérias nas páginas. Outra mudança importante diz respeito à forma como era compreendida por Mário Filho a natureza mesma do fenômeno esportivo. O pesquisador explica que nas antigas análises das atuações de times e atletas, os cronistas esportivos buscavam atenuar o clima de conflito, sobrepondo aos interesses e paixões clubísticas a um critério de avaliação imparcial, que deslocava a atenção para valores que deveriam ser compartilhados pelos adversários. Nas páginas dirigidas agora pelo jornalista, todo o esforço se destinava justamente a estimular a disputa, explorando o caráter conflituoso do esporte e a subjetividade dos personagens 123 esportivos: “[...] Exibindo e incentivando os aspectos subjetivos da disputa, sem submetê-los ao crivo dos ‘nobres valores esportivos’, a página 8 preparava o caminho para que a imprensa pudesse, enfim, galvanizar o potencial de mobilização de identidades e antagonismos sociais do esporte”, observa (p. 114-115). Ou seja: o pesquisador destaca aqui, coerentemente com o novo espírito do tempo, os novos valores que ao fenômeno esportivo seriam agregados a partir da sua concepção moderna, que prima justamente por enfatizar o seu caráter agonístico como fator de representação metafórica dos embates da própria vida na sua acepção mais geral. Não se tratava mais de analisar com imparcialidade os fatores que contribuíam para a vitória e a derrota dos times. Extrapolando os aspectos propriamente técnicos do esporte, o jornal se voltava para a subjetividade dos jogadores e torcedores, explorando suas opiniões, impressões, sentimentos e visões parciais e interessadas dos acontecimentos (SILVA, 2006, p. 110-111). Novamente em termos de linguagem – e isso é o que nos interessa mais diretamente pelos motivos já explicitados – os textos passam a ser redigidos na forma narrativa, com ampla utilização do discurso direto, por exemplo, para reproduzir, isto é, mimetizar mais fielmente, os diálogos flagrados pelo repórter. Neste ponto, Marcelino Rodrigues observa que a linguagem, tanto nos diálogos quanto na narração, passa a ser absolutamente coloquial, com o uso aberto de expressões dos bastidores do futebol, que tentava reproduzir, por frases curtas e entrecortadas, o ritmo da conversa. “Em diversos aspectos, esses textos eram a antecipação da crônica esportiva, gênero específico das páginas de esporte que só iria se fixar na década de 1940, com a coluna ‘Da primeira fila’, que o próprio Mário Filho assinaria n’O Globo de 1942 a 1949”, complementa para em seguida aduzir: “A narrativa, o diálogo e o depoimento, portanto, passaram a ser mais utilizados, disputando com o comentário o controle sobre os sentidos e valores dos fatos e produzindo textos estruturalmente mais abertos à incorporação de diferentes opiniões e perspectivas interpretativas” (SILVA, 2006, p. 109). É neste contexto de “choque heterodoxo” aplicado no discurso da imprensa esportiva por obra de Mário Filho que os primeiros recursos de andamento intencionalmente ficcionais aparecem como elemento enriquecedor do arsenal expressivo do jornalismo brasileiro em seu sentido amplo. Tais recursos dos quais veremos unicamente o caso a seguir, a título apenas de exemplificação, serão mais radicalmente ampliados e utilizados por outro cronista esportivo de cepa, o dramaturgo Nelson Rodrigues de quem falaremos mais à frente. Por enquanto, fiquemos com este caso explicitado mais uma vez pelo trabalho do pesquisador Marcelino Rodrigues: 124 “Outro exemplo muito interessante de depoimento autobiográfico é uma entrevista com Jaguarão, publicada na primeira edição do dia 17 de junho. Nesse texto, o enfoque dramático da biografia dá lugar a uma abordagem mais leve, quase humorística, mas que continua concentrando sua atenção nas atribulações que cercavam a vida esportiva e pessoal dos cracks suburbanos. O título e o subtítulo da matéria são uma apresentação do personagem, como sempre, com frases de efeito retiradas do depoimento que vem a seguir: ‘Eu sou Jaguarão, o preto que tem shoot de branco’”; “'E minha vida é um romance' – diz o Perigo Negro". Fugindo um pouco ao hábito da página 8, a matéria não tem um trecho introdutório, indo direto às palavras do jogador, que logo de saída reforçam esse tom quase ficcional: Se um romancista conhecesse a minha vida, escreveria um romance de aventuras. E para pano de amostra – uma amostrazinha só – eu vou contar como dei com os ossos na cidade de São Sebastião e como acabei sendo o perigo negro de Bangu. A partir daí, Jaguarão conta suas aventuras em busca do reconhecimento, num tom tragicômico, típico dos folhetins e narrativas rocambolescas: a vida modesta como taxista no Rio Grande; o sonho de jogar futebol na capital do país; o caso de como foi enganado por ‘Canivete’, que prometeu apresentá-lo aos cartolas cariocas em troca de umas corridas gratuitas no seu táxi; as peripécias como clandestino de um navio que ia para o Rio de Janeiro; e, finalmente, a conquista de um lugar no time do Bangu. Como chave de ouro, o depoimento traz a seguinte conclusão: E foi assim que eu, Cyrillo Campelo, o Jaguarão, negro com shoot de branco, tocador de gaita, me tornei o perigo escuro do Bangu. Contei um pedaço de minha vida. Avaliem o que eu não contei” (SILVA, 2006, p.125-126). Narrativa pura, pois. Ampla narrativa humana se tornava agora o discurso sobre o futebol no País. As implicações dessa virada de posição (de enfoque), que pudemos ver apenas em alguns pouquíssimos dos seus inúmeros e abrangentes lances de vasto alcance, e que levou a reboque deste novo caminho todo o resto da imprensa brasileira a partir de então, são de várias espécies. O estudioso desse processo, o pesquisador e crítico Marcelino Rodrigues, por exemplo, avalia que esse novo estilo editorial “provocou um verdadeiro abalo no balanço das forças que disputavam o controle simbólico do esporte mais popular do mundo, produzindo efeitos que extrapolaram o âmbito jornalístico para atingir, em cheio, todo o modo como o futebol era vivido e interpretado pela sociedade brasileira”, tanto dentro quanto fora do campo (SILVA, 2006, p. 140-141). É nesse bojo das reinterpretações do fenômeno do futebol no País, por exemplo, que outra contribuição de Mário Filho, no processo, é digna de nota. Trata-se da sua visão deste esporte como também um apreciável, prazeroso e rentável espetáculo a ser dirigido à fruição das massas. Tudo muito bem de acordo, aliás, com aquela sua concepção do jornalismo não apenas como espaço de divulgação dos fatos e eventos, mas, sobretudo – é bom que se frise –, também como veículo gerador e propulsor dos acontecimentos sociais de que, por fim, acabaria por se beneficiar sinergeticamente. Nesse sentido, esquecemos de mencionar, nos poucos traços biográficos do jornalista que esboçamos anteriormente, que um ano após ele ter assumido a página 8 de O 125 Globo, um veículo inteiramente dedicado aos esportes foi por ele adquirido (o jornal chamava-se Mundo Esportivo) e logo transformado num dos órgãos de imprensa através dos quais essa sua visão do esporte como espetáculo começava a ser posta em prática. E tudo começou por um erro de cálculo seu. Como logo após ter fundado o periódico a temporada esportiva do ano de 1931 se encerrara, Mário Filho aceitou a sugestão de um repórter seu, Carlos Pimentel, para promover, pelo jornal, o desfile dos grupos carnavalescos populares (os embriões das escolas de samba Estácio de Sá, Portela e Mangueira) que desde o ano de 1930 se realizava na praça Onze, no domingo de carnaval. Estava inventado, no início do ano de 1932, por Mário Filho, o concurso das escolas de samba do Rio de Janeiro, que paulatinamente se transformou no espetáculo carnavalesco monumental que conhecemos hoje. Como o negócio deu certo, consolidando-se tanto do ponto de vista jornalístico quanto cultural – já mencionamos aqui a relação de simbiose entre a música e o futebol como matéria-prima da nossa cultura popular –, na esteira dessa “invenção” de tradição de Mário Filho seguiram-se outros eventos que, capitalizados por ele, chegaram ao jornalismo esportivo para integrar de vez a sua plataforma de operação simbólica. Mesmo sem a posse do seu próprio jornal – o Mundo Esportivo durou apenas oito meses –, a sua parceria profissional com Roberto Marinho continuava dando frutos nesse sentido. Foi ainda conjuntamente pelo O Globo e Mundo Esportivo, por exemplo, que eles promoveram, no mesmo ano de 1932, o famoso raid Rio-Santos, uma competição de remo entre as duas cidades. Noutra investida nesse mesmo caminho, as provas de automobilismo realizadas no circuito da Gávea, em 1934, passaram a receber também o apoio de O Globo e se tornaram um grande fenômeno de popularidade, aumentando a venda do jornal que ao evento se antecipara, numa campanha de divulgação orquestrada pelo jornalista, o que atropelou a concorrência direta entre os veículos de imprensa do Rio de Janeiro. Tudo isso na seqüência da participação do jornalista (agora no âmbito direto do futebol) no processo que culminou com a criação das ligas profissionais deste esporte, no ano seguinte de 1933. Com o objetivo de aumentar a publicidade (nos dois sentidos: comercial e informativo mesmo) dos primeiros campeonatos criados pela Liga Carioca de Football (LFC), Mário Filho também “inventou”, nos anos seguintes, a mística do Fla-Flu como o maior clássico do futebol carioca e nacional. Fazendo parte da mesma estratégia de incrementação da atividade esportiva do Rio de Janeiro, O Globo passou a abrir deliberadamente mais espaço para incentivar a rivalidade entre os dois times, criando, em seguida, o Campeonato das Torcidas, uma competição que a exemplo do concurso das escolas de samba, premiava os 126 torcedores mais criativos, animados e festivos dos estádios; isto é, os mais carnavalescos. Entretanto, já como mentor e fomentador do fato esportivo, o jornalista não se restringia em incentivar apenas este esporte. Criou e promoveu, através das páginas de O Globo, torneios de remo, boxe, natação e automobilismo, conforme já citamos e, nessa sua cruzada de incentivador do esporte nacional, concebeu e realizou ainda os Jogos Infantis e os Jogos da Primavera, voltados à participação dos estudantes da capital da República, além de ter sido a principal figura que liderou a campanha para a construção do estádio do Maracanã, para a realização da Copa do Mundo de 1950, no Brasil. Futebol, música e carnaval, como se constata, passavam a ser – a partir desse momento de sua valorização como item corriqueiro dos espetáculos de massa patrocinados pela mídia sob os auspícios do jornalista Mário Filho –, os maiores ícones de representação da pátria brasileira. Mas faltava ainda um item nessa pauta para que se ampliasse a noção de pátria e se chegasse ao conceito de nação como um lugar, real ou imaginário,82 em que um determinado povo passa a enxergar-se a si mesmo, e melhor se expressar – no caso brasileiro, através do jogo de futebol – por meio de um esporte cujo bom domínio tomou para si favorecido (pelo menos é assim que o fenômeno é explicado majoritariamente por nosso pensamento sociológico) pelos atributos particulares de sua própria formação social. Trata-se do processo de identificação peculiar – amiúde estudado e explicado também por Mário Filho em grande parte de sua obra de jornalista e mentor dos esportes – que o brasileiro faz entre o ato de torcer no futebol (com toda a gama de experiências díspares que isso pode proporcionar, o que vai do puro êxtase e satisfação nas vitórias à pesada angústia e desolação nas derrotas) e a contingência de pertencer à nação que o pratica. Tal processo, a nosso ver, se explica pela própria operação simbólica que o esporte realiza de maneira paradoxal ao permitir a quem dele participa poder experimentar, a um só tempo e em escala emocional ampliada, os fenômenos da catarse e da mimese; da identificação e da diferenciação, através dos quais constrói sua formulação identitária como cidadão de um determinado país. Para isso, a explicação concreta de Mário Filho no caso brasileiro, segundo a socióloga Fátima Martin Rodrigues Ferreira Antunes, era a de que o torcedor se identifica com os símbolos do clube, com as cores da camisa e da bandeira ou com as cores nacionais referidas no uniforme da seleção nacional de futebol. Assim, o peculiar entusiasmo que o 82 Sobre a acepção de nação como um conceito que implica um locus não apenas físico (geográfico e humano), mas também com realidade na mentalidade cultural, ver: ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Editora Ática, 1989. 127 povo brasileiro costuma demonstrar em tais circunstâncias, “viria de toda a emoção que cerca uma partida de futebol, da festa nas arquibancadas e dos símbolos regionais e nacionais (bandeiras, camisas, cores), que estão ali o tempo todo a lembrar-lhe que a sua equipe do coração está em confronto com outra” (ANTUNES, 2004, p. 134). Para o cronista, portanto, o torcedor ou o homem tipicamente brasileiro teria acesso a um sentimento de nação mais fortemente através do futebol, sentimento esse que, enfatiza a socióloga, nem mesmo os festejos cívicos conseguiam contemplar. Foi justamente a construção histórica desse sentimento de brasilidade – que o nosso povo encontra e expressa no futebol (a ponto de valer-se dele, apesar das diferenças internas da sua constituição social, para reconhecer-se como tal) –, que transformou-se no tema preferido do jornalista Mário Filho, seja na sua função de cronista, seja na sua condição de um autêntico historiador do futebol brasileiro, uma vez que acreditava ser através desse esporte – e não por meio de suas instituições formais – que a nação brasileira melhor se representava em suas singularidades constitutivas.83 Imbuído dessas idéias, portanto, foi que em 1942 o jornalista criou uma coluna diária em O Globo intitulada, “Na primeira fila”, através da qual inicialmente trouxe a público o resultado das investigações sobre a história do futebol carioca, demonstrando uma peculiar habilidade típica de historiador com a qual foi saudado posteriormente pelo sociólogo Gilberto Freyre – por ocasião do prefácio que escreveu a pedido de José Lins do Rego à reunião da melhor parte desse material em livro, o clássico O negro no futebol brasileiro, inicialmente publicado em 1947 e atualizado, numa outra edição, em 1964 –, como o autor da primeira obra no país a estudar o futebol “sob critério sociológico ou para-sociológico” trazendo “contribuição valiosa para a história da sociedade e da cultura brasileira na sua transição da fase predominantemente urbana” (FREYRE, Prefácio, In: RODRIGUES FILHO, 2003, p. 24-26). Sobre o alcance sócio-histórico desse trabalho de pesquisa de Mário Filho (em que metodologicamente combinou informações extraídas de documentações oficiais com entrevistas com os mais diferentes personagens desse esporte, na observância de uma autêntica história oral pertinente, levado a público tanto nas crônicas que escreveu em O Globo, Manchete Esportiva e Jornal dos Sports em períodos complementares das décadas de 1940 e fins da de 1950, quanto em alguns dos melhores livros de sua obra já citada), a socióloga Fátima Antunes é da opinião de que fica evidente a preocupação do autor em 83 Uma discussão mais aprofundada dessa questão é feita com muita propriedade pelo antropólogo, Roberto Da Matta, no seu instigante livro, Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6ª ed. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1997. 128 demonstrar como o futebol serviu de peculiar instrumento de inclusão e ascensão social dos elementos até então excluídos do processo social brasileiro – o negro e o mulato, “contribuindo também para sua integração à sociedade e à formação de uma mentalidade que valorizava a participação do elemento negro na formação da cultura brasileira” (ANTUNES, 2004, p.130). Segundo ela, portanto: Essas divagações sobre o passado do futebol, aparentemente despretensiosas e apenas saudosistas, no entanto, compõem um conjunto coeso de concepções sobre a construção social que este esporte adquiriu no país. Partindo de fatos corriqueiros do universo futebolístico, Mário Filho empreendeu um trabalho cujo método consistia em levantar o véu e revelar o estilo emocional do brasileiro, fosse ele jogador ou torcedor. Por várias vezes, enfocou o conflito entre racionalidade e irracionalidade das ações e comportamento dos brasileiros, na tentativa de buscar as origens de uma série de atitudes que caracterizariam o seu jeito de ser, sobretudo em seus defeitos ou imperfeições, com o objetivo e a esperança de indicar o caminho de sua superação (ANTUNES, 2004, p. 132). Ou seja, à maneira de um sociólogo ou historiador de formação acadêmica (ou mesmo para-acadêmica), bem na esteira das pesquisas e trabalhos produzidos e antes tornados públicos por um pensador como Gilberto Freyre, por exemplo – por quem, aliás, o jornalista nutria uma incondicional admiração e filiação intelectual –, Mário Filho deixou, no Brasil, com sua obra, um legado exploratório das questões da construção da nossa formação e identidade sócio-histórica em que é possível perceber perfeitamente – pelo menos a partir de um certo momento da vida nacional – a fusão da grande narrativa histórica do futebol com o próprio sentido de ser do brasileiro, demonstrando que o nosso povo só se reconhece como tal quando – através de um elemento verdadeiramente aglutinador de sua cultura, o jogo de futebol, metaforizando o próprio jogo da cultura no geral –, se enxerga ao mesmo tempo na diferença de seus elementos formadores (o branco, o negro e o mulato, incorporado aí já o elemento indígena) e na percepção, ao menos temporária que o esporte propicia, da identidade de todos com uma só nação. Tal legado, é bom enfatizar, se apresenta basicamente na forma de uma grande narrativa de fundo histórico, mas, fundamentalmente, de feitio jornalístico, a que os escritores de literatura vão se filiar produtivamente ampliando seu universo cultural de alcance. 3.1.4 A hibridização do registro – José Lins do Rego e o futebol-paixão como linguagem 129 Discípulo também do sociólogo Gilberto Freyre (em termos ideológicos e estéticos), José Lins do Rego, na condição de um escritor tipicamente modernista (e moderno) vem dar continuidade à obra do escritor pernambucano no tratamento exploratório do futebol brasileiro.84 Segundo o pesquisador da sua obra cronística, o historiador social Bernardo Buarque de Hollanda – que se debruçou sobre as crônicas esportivas publicadas por Zé Lins no Jornal dos Sports entre 1945 e 1957 (um total de 1.571 textos) na sua coluna Esporte e Vida –, a incorporação do futebol ao projeto de construção de um Brasil moderno a partir da década de 1930, plataforma comum a todos os intelectuais modernistas, também “pode ser identificada de maneira exponencial nos romances, ensaios e, principalmente, nas crônicas esportivas desse escritor em cuja obra – diferentemente do caso dos outros autores do modernismo – o tema do futebol se apresenta de maneira sistemática e cristalina”, na observação literal de suas próprias palavras. Considerado por boa parte da crítica literária brasileira como um “estilista” original, José Lins do Rego tomou contato com o movimento modernista de 1922, através de conversas com Graciliano Ramos, Jorge de Lima e Raquel de Queirós, quando morou em Maceió. A princípio reticente quanto ao Modernismo, por influência do amigo Gilberto Freyre, que pregava um “regionalismo tradicionalista”, o escritor acaba por fim se incorporando ao grupo que consolidaria o chamado Romance do Nordeste, dando uma feição mais social e política à abordagem regional da sua literatura. Romancista de uma obra panorâmica e orgânica quanto à interligação temática e propositiva de sua cosmovisão de trabalho, distribuída e conscientemente organizada em cada obra individual, perfazendo no todo um conjunto representativo das questões que elegeu como núcleo de suas preocupações com os problemas brasileiros – o ethos social regionalista em destaque –, o próprio autor destacou como desejaria que a sua obra ficcional fosse dividida. O ciclo da cana-de-açúcar, com Menino de engenho (1932); Doidinho (1933); Bangüê (1934); Fogo morto (1943) e Usina (1936). O ciclo do cangaço, misticismo e seca, com Pedra Bonita (1938) e 84 Segundo Bernardo Buarque de Hollanda, José Lins do Rego assumia sem vaidades e com rara honestidade intelectual uma franca filiação às teorias mais gerais de Gilberto Freyre e Mário Filho, fato, aliás, carinhosamente acalentado pelo sociólogo pernambucano, que considerava o romancista uma espécie de discípulo e de filho pródigo, quase que partejado por ele, o que tornava Zé Lins uma espécie de materialização literária do seu pensamento antropológico e sociológico. Quanto a esse aspecto, segundo Bernardo Buarque, “se, por um lado, mostrava-se fiel à problemática originária do modernismo, por outro, ao aceitar ainda a condição de acólito intelectual de Mário Filho, José Lins do Rego tornava possível também a observação da experiência de proximidade entre o cronista e o leitor no processo de constituição de uma crônica esportiva moderna”. José Lins do Rego fala dessa influência poderosa do pensamento do sociólogo pernambucano sobre ele – e da relação muito próxima entre ambos – num depoimento incluso num dos livros de Gilberto Freyre. Cf. REGO, José Lins do. – Notas sobre Gilberto Freyre. In: FREYRE, Gilberto. Região e tradição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1941, p. 9 e 10. 130 Cangaceiros (1953). As obras independentes: a) com ligações nos dois ciclos, O moleque Ricardo (1935), Pureza (1937) e Riacho doce (1939), e, b) desligadas dos ciclos: Água-mãe (1941) e Eurídice (1947).85 A este conjunto de natureza romanesca, junte-se esse outro, que segundo o poeta alagoano, Ledo Ivo, “comprovam que o grande romancista brasileiro não possuía apenas uma admirável natureza criadora”, mas também dispunha de “uma natureza ensaística” com a qual é possível aquilatar, pela vasta abrangência de suas intervenções como homem de letras, o interesse do autor pelos problemas da expressão literária, bem como suas preocupações com os destinos do homem e da sociedade: Gordos e magros (1942); Poesia e vida (1945); Homem, seres e coisas (1952); A casa e o homem (1954) e as publicações póstumas, O vulcão e a fonte (1958), e Dias idos e vividos (1981), organizado pelo poeta e crítico Ivan Junqueira. Conjunto este que entremostra menos o homem de reclusão criadora com a qual consagrou definitivamente o seu nome na história da grande ficção brasileira e mais o homem de jornal, na acepção publicista do termo, função através da qual partilhava diretamente com o público leitor as suas idéias e conjecturas sobre as coisas do mundo, através do ensaio e da crônica. Diariamente ele escrevia artigos de jornal, que freqüentavam os assuntos mais vários: livros, conversas com amigos, fatos da realidade urbana ou rural, a vibração e a densidade da atualidade política nacional ou internacional, todo esse complexo de acontecimentos que formam o pecúlio humano e ideológico de cada dia. Assim, os leitores de sua obra de ensaísta e cronista são conduzidos a um mundo vivaz, dinâmico, que prima pela sedutora diversidade de seus temas e que se inicia num gabinete de trabalho para terminar num estádio ululante. José Lins do Rego foi uma criatura de diálogo – fora da ficção, ele conversa interminavelmente com o leitor, contando-lhe casos, abrindo seu coração com uma espantosa sinceridade (IVO Apud COUTINHO; CASTRO, 1991, p. 139). Inserida no contexto desse novo momento por que passava a imprensa, a atuação do cronista esportivo José Lins do Rego, já em pleno curso e vigência do processo de renovação da crônica esportiva brasileira – comandado pelo jornalista Mário Filho na página 8 do jornal O Globo, processo que descrevemos anteriormente, caracterizado no geral pela implantação de uma nova linguagem e de uma nova narrativa, assim como pelo estabelecimento de uma nova relação do jornalista com o leitor – se dá, nesse sentido, num 85 Cf. Enciclopédia de literatura brasileira. Direção Afrânio Coutinho. J. Galante de Sousa. 2 ed. rev. ampl. atual e il. Sob a coordenação de Graça e Rita Moutinho. São Paulo: Global Editora : Rio de Janeiro, RJ: Fundação Biblioteca Nacional/DNL : Academia Brasileira de Letras, 2001, p. 1353-54. Para uma análise mais acurada do conjunto dessa obra, assim compreendida, ver: AZEVEDO, Neroaldo Pontes de. José Lins do Rego: trajetória de uma obra. In: José Lins do Rego. Seleção de textos Eduardo F. Coutinho (UFRJ) e Ângela Bezerra de Castro (UFPB). Col. Fortuna Crítica n. 7. Dir. Afrânio Coutinho. Coedição – Funesc: Fundação Espaço Cultural da Paraíba. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1991, p. 208-224. 131 período em que a crônica objetiva, fria e impessoal das primeiras décadas do século,86 limitada à informação, passava a ser gradativamente substituída, ao longo das décadas de 1930, 1940 e 1950, por uma crônica esportiva de cunho pessoal, fincada nos processos de narração e que abre espaço para a manifestação da subjetividade do cronista, assim como para a formação de um estilo marcadamente autoral de cada um deles, emprestando ao gênero uma feição mais estética e menos referencial ou noticiosa. Pois foi justamente através deste tipo de crônica – na sua forma híbrida, ao mesmo tempo jornalística e literária –, que o escritor José Lins do Rego pôde realizar na prática um dos mais caros ideais do movimento modernista brasileiro: a simplicidade de estilo na escrita, e, com isso, a comunicação direta com os extratos mais amplos da população, com o que exercitou a tão propugnada liberdade de expressão para o artista, que os modernistas tanto reivindicavam. Como cronista esportivo, uma variante especializada do cronista de variedades, ofício que exerceu por 12 anos, ocupando as páginas de importantes veículos de imprensa do Rio de Janeiro, Zé Lins pôde intervir no debate público sobre um Brasil genuíno para os brasileiros em que o futebol fosse visto como um elemento de sua cultura e onde o povo em geral melhor se via representado. E a esse debate acrescentou, nessa direção, sob a influência anterior das idéias do sociólogo Gilberto Freyre e do jornalista Mário Filho, três questões que a representação ficcional sobre o tema viria mais tarde incorporar como um dos seus aspectos mais ricos e constantes: a importância do legado étnico negro para a matização nacional do jogo de futebol, a incorporação da música na forma brasileira de jogá-lo e uma original re-elaboração – só possível graças à maneira como o futebol foi institucionalizado no país – da idéia de nação brasileira, criando uma proposição peculiaríssima de nossa formulação identitária. Os rapazes que venceram em Montevidéu eram um retrato de uma democracia social, onde Paulinho, filho de família importante, se uniu ao negro Leônidas, ao mulato Oscarino, ao branco Martins. Tudo feito à boa moda brasileira, na mais simpática improvisação. Lendo este livro sobre futebol, eu acredito no Brasil, nas qualidades eugênicas dos nossos mestiços, na energia e na inteligência dos homens que a terra brasileira forjou com sangues diversos, dando-lhes uma originalidade que será um dia o espanto do mundo (REGO, 2002, p. 63). 86 É possível perceber nesse período a vigência de uma crônica sobre os esportes e não uma crônica dos esportes conforme concebemos hoje. A aversão modernista à fala empolada e ornamental, bem como aos recursos retóricos dos parnasianos, afinava-se com as mudanças promovidas na crônica esportiva, cuja narrativa encontrava-se igualmente presa até a década de 1920 aos cânones greco-romanos e especialmente ao estilo elevado da retórica sublime clássica. Mário Filho vai neste sentido, como vimos, mobilizar seus esforços para a reformulação dos paradigmas do jornalismo esportivo brasileiro. Um cotejo histórico-bibliográfico sobre os primórdios da crônica esportiva no Brasil está na nota 57. 132 Aqui, por exemplo, numa reafirmação explícita das teorias raciais e culturais do seu amigo Gilberto Freyre, por ocasião do prefácio que escrevera ao livro “Copa Rio Branco de 32”, do seu outro amigo, Mário Filho, o cronista Zé Lins se abastece de argumentos para explicitar, em seguida – mediada pela lógica da miscigenação e do propugnado convívio democrático entre as três raças da nossa formação social – a sua idéia da necessária simbiose, no plano da nossa construção identitária, entre a identidade nacional e a identidade clubística: “Porque não há clube que [mais] seja de todo o Brasil, verdadeiramente da nação, do que o Flamengo. Em todos os sentidos, é o Flamengo o clube do povo brasileiro”, escreve, na crônica de título sugestivo, “Servir ao Flamengo é servir ao Brasil”, em que comenta um decreto do presidente Eurico Gaspar Dutra criando facilidades para os clubes de futebol construírem seus estádios para treinamento e jogos oficiais. (REGO, 2002, p. 64). E arremata o assunto, no dia seguinte, em outra crônica publicada no mesmo jornal, intitulada, “O Flamengo merece muito mais”: O Flamengo, como todos os clubes desta cidade, é um elemento de preparação do espírito nacional. E mais do que qualquer um vive, por todos os recantos do Brasil, nos entusiasmos de seus adeptos que são uma verdadeira legião. Se há um clube nacional, este será o Flamengo, criação do mais legítimo espírito de brasilidade. Flamengo são brasileiros de toda as cores, de todas as classes, de todas as posições. Flamengo é o Sr. Eurico Gaspar Dutra, é o Sr. Nereu Ramos, é o Sr. Juraci Magalhães, é o meu rapaz do jornal, é o meu apanhador de bolas no tênis, é o Grande Otelo, é o pintor Portinari, é o Brasil de todos os partidos. E se o Flamengo tiver o seu estádio gigante é porque merece muito mais (REGO, 2002, p. 65). Essa operação narrativa de José Lins do Rego tinha um sentido muito claro, na avaliação do estudioso da sua obra cronístico-esportiva, Bernardo Buarque de Hollanda, que era o de fundir na idéia de pátria, nação, o Clube de Regatas do Flamengo, que, para o escritor paraibano, era o clube que detinha todas as potencialidades de irmanar indivíduos os mais diversos, heterogêneos e dispersos, num verdadeiro congraçamento nacional, conferindo-lhes, pelo sentimento comum de pertencimento a ambos (à pátria e à nação), não obstante o afastamento geográfico ao longo de diferentes regiões territoriais do país, um senso de suprema e verdadeira brasilidade. Tal profissão de fé de Zé Lins, digamos assim, se espraiava ao longo de toda a sua escrita de cronista esportivo por intermédio de recursos retóricos sofisticadíssimos – a nosso ver –, que vão desde a refinada ironia com o que aproveitava para tirar uma “onda” subliminar com os clubes rivais do Flamengo – caso do Vasco da Gama, que é tema de uma crônica sua, “Lá o Vasco é como se fosse o Flamengo”, por ocasião de uma excursão que o time fizera à Europa em 1947, oportunidade entrevista pelo escritor para contrapor, na sua lógica 133 interpretativa sobre a nossa brasilidade futebolística acima referida, as representações da pátria brasileira com o elemento estrangeiro, dentro de uma peculiar escala de valor que apontava o nacional (naquela ocasião, representado pelo Vasco); o mais nacional (o seu Flamengo – ver a crônica, “O Brasil era o Flamengo”) e, ambos, acima do europeu em qualidade e supremacia. Vejam-se os dois textos-exemplos: Lá o Vasco é como se fosse o Flamengo Continua o Vasco a honrar com brilho o futebol brasileiro. Em duas partidas ganhas, pela bravura e pela classe de sua equipe, mostrou o tricampeão do Municipal que é, de fato, uma verdadeira seleção de valores. E assim Flávio Costa acrescenta às suas glórias de técnico mais as vitórias que vem obtendo em campos de Portugal. A jornada do Vasco há de terminar como começou. Todos nós, aqui do Brasil, estamos ao lado de nossos aparelhos de rádio para torcer pelos rapazes do Almirante. Lá o Vasco é como se fosse, para mim, o Flamengo (REGO, 2002, p. 82). *** O Brasil era o Flamengo Chego da Suécia convencido de que o futebol é hoje produto tão valioso quanto o café, para as nossas exportações. Vi o nome do Brasil aclamado em cidades longínquas do norte, vi em Paris aplausos a brasileiros com o mais vivo entusiasmo. Disse-me o meu querido Ouro Preto: "Só Santos Dumont foi tão falado pela imprensa desta terra, sempre distante a tudo que não é europeu, como os rapazes do Flamengo”. Este fato, os milhares de franceses que permaneceram no estádio, mesmo com o término da partida, aplaudindo os nossos rapazes, queriam demonstrar uma quente admiração por essa turma de atletas que tinha feito uma exibição primorosa. E a nossa bandeira tremulava no mastro do estádio, naquela noite esplêndida de primavera. O futebol Brasileiro deu aos mil brasileiros que ali estavam a sensação de que éramos os primeiros do mundo. Para mim, mais ainda, porque ali estava o meu Flamengo de todos os tempos (REGO, 2002, p. 129). Como se vê, nas suas crônicas, o escritor passou a fazer do futebol “uma forma de pensar o próprio sentido de afirmação de uma nação”, conforme a observação do historiador Leonardo Pereira para uma conclusão interessante da pesquisa sobre a atuação do cronista esportivo José Lins do Rego, feita pelo historiador e sociólogo Bernardo Buarque de Hollanda. Só que ao contrário dos seus pares, que viam a nação como a expressão unívoca do perfil de um país, observa Pereira, o romancista buscaria, na experiência de torcedores comuns, segundo a conclusão da tal pesquisa, a afirmação de outra lógica. A nação aparece, em suas crônicas, como fruto dos sentimentos que, ao mesmo tempo, sustentam a identidade daqueles que o compartilham e a construção da diferença com os demais. Resulta daí a afirmação dos próprios clubes como nações, como a “nação rubro-negra” ou a “nação vascaína”, – em imagens que se tornariam cada vez mais comuns nas décadas seguintes. Tratava-se assim de uma nação extra- oficial, que era a representação e o resultado do povo, não do Estado. Inverte-se, nesta formulação, o sentido da afirmação nacional: o futebol, na pena de José Lins do Rego, dava forma não a uma identidade nacional unívoca capaz de englobar todo o país, mas a uma identidade continuamente reconstruída que juntava diferentes 134 parcelas geográficas e sociais da nação (Leonardo Pereira. Prefácio, in HOLLANDA, 2004, p. 17).87 Mas vamos ver diretamente como essas inovações no tratamento do tema do futebol se dava na prática textual do cronista esportivo José Lins do Rego, que, então “se sentia à vontade, em sua atividade de colunista e cronista esportivo, para traçar pontos de fuga, rememorar fatos e para propor curiosas analogias entre a poesia e as notícias ordinárias do mundo do futebol” (HOLLANDA, 2004, p. 193), constituindo, assim, na forma e no conteúdo dos seus textos, uma espécie de transição estética do tratamento meramente informativo do tema para a sua abordagem propriamente ficcional levada a efeito posteriormente pelos contistas futebolísticos, por assim dizer, da literatura brasileira. Mesmo encarnando o tipo específico de “cronista-torcedor”, caracterização que em si mesmo demonstra a confluência, na mesma personalidade literária, do escritor e do jornalista, mediada pela paixão e “desabrido apego ao Clube de Regatas do Flamengo”, por quem torcia fervorosamente – numa “confusão conceitual” que parecia fazer quanto à utilização dos fundamentos jornalísticos da crítica e do comentário, da isenção e do engajamento e, por conseqüência, da timbragem, nos seus textos, da questão da parcialidade ou imparcialidade,88 alimentando uma polêmica, comum na sua época, em relação às funções do cronista esportivo –, José Lins do Rego, no entanto, vem, por isso mesmo, emprestar a esse gênero de escrita jornalística contribuições que vão além, em termos da relação conteúdo/linguagem, da mera formatação de um diálogo entre torcedores sobre o futebol. Ele, na esteira das possibilidades estilísticas facultadas ao gênero da crônica esportiva por força das inovações postas em curso através da “revolução modernista” de Mário Filho, impregna este tipo de texto jornalístico das mais autênticas elaborações típicas do campo da literatura. 87 Como já sugerimos, essa idéia é tributária da plataforma de modernização – em forma e em conteúdo – do jornalismo esportivo brasileiro levada a efeito pelo jornalista Mário Filho, que, por isso mesmo, implicava a conseqüente modernização do próprio futebol do País. Nesse sentido, a meta do jornalista incluía também o favorecimento da popularização e nacionalização dos clubes brasileiros mais tradicionais com sede no Rio de Janeiro. “Decorrência da larga expansão que vinha sendo operada no futebol desde o início do século, o abrasileiramento clubístico constituía mais uma etapa a ser cumprida na evolução dos esportes e, notadamente, do futebol do país, devendo ser iniciada, como era de supor, por um clube do então Distrito Federal. Ao estado-nação, que reconfigurava suas bases na década de 1930, com o processo de industrialização e urbanização do país, haveria de corresponder também um Clube-nação, representante fidedigno e unificador dos torcedores dispersos por todo o país”. Cf. HOLLANDA. Op. Cit., p. 199. Não é necessário dizer, para concluir, que o clube que encarnava tal perfil, na opinião de José Lins do Rego, era o Clube de Regatas do Flamengo. 88 Embora acreditasse na possibilidade objetiva da exposição e apreciação dos fatos esportivos, em que o cronista não poderia se deixar levar pelas afeições clubísticas na abordagem de um jogo, José Lins do Rego ficou marcado em sua época por um desbragado apego ao Clube de Regatas do Flamengo, o que denunciava ainda mais o potencial polêmico que alimentava (e sempre alimentou) o gênero jornalístico da crônica esportiva. Ver seus princípios éticos de cronista esportivo expressos na crônica, Em honra do cronista, e cotejar isso com os fundamentos defendidos por Antonio Candido para a crítica literária, na nota 95. 135 Assim, sentindo-se francamente livre para efetuar uma ampla abertura quanto ao conteúdo dos seus textos e intelectualmente à vontade para promover uma larga despadronização quanto às normas uniformizadoras e convenções costumeiramente impostas às prescrições dos gêneros textuais, José Lins do Rego variava sua atuação como cronista esportivo conforme suas próprias deliberações e podia tanto escrever sobre fortuitos estados d’alma, num andamento a um só tempo lírico e de denúncia social, tendo o futebol como pretexto – ver a crônica O cronista, as borboletas e os urubus, abaixo – quanto prolongar ao seu bel prazer esses exercícios de procedimentos típicos da escrita literária (tais como as intertextualidades e metapoetizações da visão estética do mundo por seus pares escritores), algo que sustentará, como veremos, a própria escrita de ficção sobre o futebol no segmento da literatura de estórias curtas no Brasil – ver a crônica, A batalha de Itararé e o Vasco, completando os dois últimos exemplos: Texto 1: Fui hoje pela manhã, em caminhada a pé, até o estádio do Flamengo, com o intuito de assistir ao treino do rubro-negro. A manhã era toda de uma festa de luz sobre as águas, os morros. Alguns barcos ainda se encontravam na lagoa, e os pássaros do arvoredo da ilha do Piraquê cantavam com alegria de primavera. Tudo estava muito bonito, e o cronista descuidado e lírico começou a caminhada para gozar um pedaço desta maravilhosa cidade do Rio de Janeiro. E com esse propósito, de camisa aberta ao peito, procurou descobrir as borboletas azuis do seu caro Casimiro de Abreu. Mas, em vez das lindíssimas borboletas, o cronista foi encontrando soturnos urubus, a passearem, a passo banzeiro, por cima do lixo, das imundices, dos animais mortos, de toda a podridão que a prefeitura vai deixando ali, por detrás dos muros do Jóquei Clube. Fedia tanto o caminho que o pobre cronista, homem de noventa quilos, teve de correr para fugir o mais depressa possível daquele cenário nauseabundo. A manhã era linda, e o sol, apesar de tudo, brilhava sobre o lixo, indiferente a todo aquele relaxamento dos homens (REGO, 2001, p. 34) Texto 2: Há um poema do poeta Murilo Mendes que muito se parece com aquele outro do poeta Carlos Drummond de Andrade, o da 'pedra do caminho'. Chama-se Itararé. E diz assim: Itararé: A maior batalha da América do Sul. Não houve (HOLLANDA, 2004, p. 151). Por tudo isso, por fazer do futebol tema permanente de suas preocupações intelectuais e literárias, impregnando o gênero da crônica de um sabor moderno em que a relação escritor/leitor se dava sob uma criativa experiência de liberdade estilística, a fundar uma partilhada comunicação estética do fenômeno futebolístico, antevista tanto no campo de jogo como no correlato campo da sua representação lingüística, José Lins do Rego pode legitimamente ser considerado um hibridizador de gêneros de escrita fronteiriços tais como a literatura e o jornalismo. E isso fez ao infestar a crônica esportiva de recursos próprios da 136 ficção quando não de elementos próprios da composição poética como nesse trecho da crônica Fla-Flu sobre o maior clássico do futebol carioca: Restaram os dois grandes de sempre. O aristocrático das Laranjeiras, com o luxo de suas rendas de fidalgo, e o rude, o desmedido, o sem medo, o impávido, quase que louco, o generoso e bom Flamengo, o clube de todo o Brasil (REGO, 2002, p. 62). em que a assonância da frase “o impávido, quase que louco”, muito bem notada por Bernardo Buarque de Hollanda, reproduz com quase simetria o “...és belo, és forte, impávido colosso...” do hino nacional, como se no jogo da linguagem – literária, jornalística da crônica – o escritor (jogador) encenasse uma bela e reconhecida jogada em termos de efeito estético. Transpondo isso para termos futebolísticos, é como se o jogador intentasse aquela famosa e conhecida jogada (o belo drible) em que ele faz que vai e não vai (para um lado), mas acaba indo. Em direção ao ponto, ao objetivo, ao gol. 3.1.5 A estetização retórica: Nelson Rodrigues e a literalização do futebol Nelson Rodrigues Falcão, o dramaturgo, o jornalista, o ficcionista, o irmão de Mário Filho, o “profissional do jornal”, mais do que qualquer outra classificação que se possa lhe acrescentar, na observação do pesquisador de sua obra de cronista esportivo, José Carlos Marques (MARQUES, 2000, p. 23), é outro escritor cuja obra, no que tange às suas intervenções no âmbito do vasto assunto do futebol, leva ao paroxismo – senão a sua potencialidade máxima – as contribuições literárias emprestadas ao tema pelo seu amigo José Lins do Rego. Nascido no dia 23 de agosto do ano de 1912, no Recife, mas tendo a infância toda vivida no subúrbio do Rio de Janeiro – precisamente na rua Alegre, Aldeia Campista, na zona norte carioca –, foi já aos quinze anos de idade que o menino Nelson teve que abandonar o mundo apaixonante das peladas de futebol que o cercava na periferia da então capital da República, para trabalhar no jornal A Manhã, de propriedade do seu pai, Mário Rodrigues, juntando-se aos irmãos mais velhos, Milton Rodrigues e Mário Filho, numa empreitada familiar que marcaria para sempre a sua vida de escritor, dramaturgo e jornalista de sucesso.89 89 As informações biográficas sobre Nelson Rodrigues, utilizadas neste trabalho, têm como fonte principal duas obras importantes escritas sobre ao autor, que tomei como referência para citação direta ou indireta. São elas: CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia da Letras, 1992 e ANTUNES, Fátima Martins Rodrigues Ferreira. Com brasileiro não há que possa: futebol e identidade nacional em José Lins do Rego, Mário Filho e Nelson Rodrigues. São Paulo: Ed. UNESP, 2004. 137 Inicialmente trabalhando na reportagem policial de A Manhã, passando, em seguida, às páginas editoriais do mesmo periódico, onde assinava um artigo por semana, Nelson Rodrigues finalmente chega ao espaço do jornalismo de esportes, agora nas páginas do semanário Crítica, recém lançado também pelo seu pai e em cuja redação ficou até 1937 quando resolveu assumir o cargo de redator de O Globo Juvenil, um tablóide de histórias em quadrinho do jornal O Globo, de propriedade do jornalista Roberto Marinho. Em 1941, escreve a sua primeira peça de teatro, A mulher sem pecado, e a partir daí sua carreira de jornalista, cronista e dramaturgo, passa a ser uma só. Entretanto, a volta ao tema do futebol como matéria de sua atuação como jornalista só se dá em definitivo no ano de 1955, quando se torna o redator chefe da revista Manchete Esportiva, um empreendimento editorial arrojado do empresário Adolfo Bloch de que também participa ao lado dos irmãos Augustinho, Paulo Rodrigues e Mário Filho. Esse seu trabalho de jornalista esportivo, no entanto, que se estenderia a vários outros órgãos da imprensa carioca se desenrola paralelo ao de colunista do jornal A Última hora, também do Rio de Janeiro, onde assinava a coluna “A vida como ela é...” em que publicava diariamente histórias curtas, criadas e escritas bem ao gosto popular, assim como bem ao gosto popular eram também as crônicas de futebol do amigo José Lins do Rego, publicadas pelo periódico esportivo dirigido pelo seu irmão Mário Filho – O Jornal dos Sports –, a que lia com freqüência e por cujo autor nutria uma “exasperada e alvar” admiração. Isso, pelo menos, é o que podemos depreender desse texto escrito por ocasião da morte do escritor paraibano, e que resolvemos dar a conhecer em parte, para assinalar a relação de simbiose – e de continuidade em termos orgânicos – da colaboração de ambos quanto à elevação do fenômeno do futebol à condição de arte de representação digna de nota e de registro estético, conforme veremos adiante. O meu personagem de hoje90 não é um jogador, nem um time, nem uma torcida. É um morto. E será inútil acrescentar-lhe o nome, porque todos já o identificaram.Trata-se, com efeito, de José Lins do Rego ou, como era universalmente conhecido – Zé Lins. Homem da literatura, do esporte e, sobretudo, homem, em toda a plenitude desta condição. Morto e, no entanto, parece mais vivo do que muitos que andam por aí, que circulam, que batem nas nossas costas e contam piadas. [...] Geralmente, o bom escritor brasileiro não acredita em futebol, é um desconfiado do futebol. E conta-se o caso daquele poeta que, levado à força para um jogo, apontava o campo, aos berros: –, "Que é aquilo? Que é aquilo?". Foi socorrido e descobriu-se que "aquilo" era a bola. 90 Invariavelmente, era assim que Nelson Rodrigues iniciava a sua famosa coluna intitulada, “Meu personagem da semana”, que escrevia na revista Manchete Esportiva. Sua coluna estreou na revista em novembro de 1955 e se encerrou em setembro de 1959, numa colaboração produtiva que durou cerca de quatro anos. 138 [...] Zé Lins não pertencia a esse tipo de intelectual, de laranja, e fez-se íntimo do esporte que é a paixão do povo. E não ia para o campo com a displicência superior de quem se coloca muito acima da plebe ululante, da plebe alvar. Absolutamente. Ele torcia tanto ou mais que qualquer torcedor ignaro. E ninguém mais passional, ninguém com maior capacidade de se entregar à torcida, como se um gol do Flamengo fosse a coisa mais transcendente do mundo (RODRIGUES, 1996, p. 34- 35). À parte o tom de homenagem póstuma do texto – onde mesmo assim não se escondem traços de estilo – observe-se a princípio que ele serve para evidenciar certas qualidades (do homem e do escritor) que ele via no amigo e que, conforme já anunciamos, também integrará a própria personalidade controversa e criativamente renovadora do dramaturgo e homem de imprensa Nelson Rodrigues; do cronista que revolucionou de modo radical a linguagem do futebol quando incorporada à arte da literatura. Ou seja: quando neste campo de expressão, exercitou, com rara genialidade, aquela potencialidade da linguagem deste esporte que reputamos plena de narratividade e que, por isso mesmo, “chama” uma aplicação transcendente do seu universo temático,91 a que fizemos menção no início deste capítulo. À maneira também de José Lins do Rego, a obra de Nelson Rodrigues entra para a história da literatura brasileira por outras motivações estéticas que não a de contumaz escrevinhador de crônicas sobre futebol. Sua entrada se dá, segundo os historiadores de nossas letras, pela sua condição de autor de uma vasta e relevante obra de teatro. Condição esta, contudo, que não afasta de modo algum a contaminação da sua obra literária pela sua vivência como homem de jornal. Contaminação essa, por conseguinte, que já podia ser antevista na sua peça de estréia, A mulher sem pecado (1941), onde “já se podia perceber a estreita vinculação entre teatro e crônica jornalística, drama e folhetim, enredo e fait-divers”, na avaliação do crítico de teatro e estudioso de sua obra cênica, Sábato Magaldi (COUTINHO, 2001, p. 1393). Para este mesmo crítico teatral, que posteriormente (a partir de 1981) coordenou, pela Editora Nova Fronteira, a publicação da dramaturgia do autor (MAGALDI, 1981-1989), essa peça seria, nesse sentido, uma das numerosas histórias com que o dramaturgo nutriria, 91 Nelson Rodrigues explorou à exaustão, em sua obra de cronista esportivo, essa dimensão do jogo de futebol, ou seja, a potencialidade que esse jogo tem de ir além de si mesmo; de servir de metáfora total e abrangente de representação da vida mesmo, em sua lógica pragmática e fugidia a um só tempo. Nesse sentido, por considerar no jogo de futebol não a bola, mas o homem que corre atrás da bola, o dramaturgo, segundo a pesquisadora Fátima Antunes, quase que desliga o futebol da vida real e o coloca numa dimensão de eternidade, transformando pessoas em personagens fascinantes, quase herói míticos. Tal impulso estético aplicado ao tema do jogo em sua obra ocorre, na opinião do crítico de teatro, Sábato Magaldi, porque Nelson “se apega particularmente aos mistérios insondáveis da aventura humana, ao sentido metafísico da finitude e suas implicações éticas, à razão de ser da passagem terrena”. Cf. ANTUNES, Fátima Martins Rodrigues Ferreira. Op. Cit. p 212, e MAGALDI, Sábato. Nelson Rodrigues: dramaturgia e encenações. 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 191. 139 mais tarde, a sua coluna diária de imprensa, rubricada sob o título, “A vida como ela é”, publicada durante dez anos no jornal Última Hora, do Rio de janeiro, como já frizamos: Algumas simples crônicas apressadas; outras, embrião de obras de fôlego; ainda umas terceiras, contos elaborados com extremo poder de síntese e força literária. Em toda a dramaturgia, aliás, Nelson parece comprazer-se com entrechos ralos, de cuja aparente fragilidade extrai sugestões poderosas (COUTINHO, 2001, p. 1393). Pois são justamente essas “sugestões poderosas” que constituem, em nosso julgamento, o núcleo das inovações estéticas com as quais Nelson Rodrigues vai revitalizar a linguagem do futebol, submetendo-a às motivações da arte da literatura, a partir de sua rica experiência com as técnicas do jornalismo. Se expressando por meio da crônica – um gênero híbrido, como já assinalamos –, que além da referencialidade do jornalismo nutre-se de características de expressão típicas da literatura, como a ambigüidade em relação aos fatos, a abertura ao impressionismo e ao subjetivismo do escritor e o tratamento estético da linguagem, entre outras, Nelson Rodrigues praticou à exaustão, no espaço da imprensa diária, aquilo que propôs para o ofício do cronista de futebol como corolário da compreensão particular que tinha do fenômeno futebolístico. Nesse sentido, o dramaturgo advoga, numa crônica sua publicada em 1956, que o cronista desse campo deveria “retocar o fato”, “dramatizá-lo”, “transfigurá-lo”, emprestando-lhes “uma dimensão nova e emocionante”, e se possível, “pentear ou desgrenhar o acontecimento, e, de qualquer forma negar sua imagem autêntica e alvar” (RODRIGUES, 1996, p. 11). Na prática da crônica esportiva, portanto, uma série de questões novas surgem dessa démarche rodriguiana com as atividades do jornalismo e da literatura, simultaneamente. A ficcionalização do fato futebolístico; a parcialidade da sua abordagem não apenas francamente assumida, mas tornada motivo discursivo; a emocionalidade como fonte de procedimentos retóricos; o expediente do diálogo levado ao seu rendimento extremo e a utilização do suspense como arma dialogal para com o leitor, apenas esboçadas ou sugeridas na crônica esportiva de José Lins do Rego, por exemplo, ganha, na pena do dramaturgo pernambucano, uma realização acabada e definitiva, por isso mesmo incorporada – ao sabor de estilos e apropriações pessoais – pela melhor contística do tema do futebol posterior a ele, na literatura brasileira. Tal como José Lins do Rego, mais uma vez – e bem ao seu estilo e humor –, Nelson Rodrigues também sugeriu uma classificação pessoal para as suas obras. Dizia o dramaturgo que suas peças se dividiam entre as desagradáveis e as interessantes e vitais. “Com Vestido de noiva, conheci o sucesso; com as peças seguintes, perdi-o, e para sempre. 140 Álbum de família inicia o meu ciclo do ‘teatro desagradável’. Quando escrevi a última linha, percebi uma outra verdade. As peças se dividem em ‘interessantes’ e ‘vitais’. [...] A partir de Álbum de família, tornei-me um abominável autor. Por toda a parte só encontrava ex- admiradores. Para a crítica, autor e obra estavam justapostos e eram ambos ‘casos de polícia’”, conclui, irônico, sua interpretação pessoal para a inusitada repercussão que, à época, o seu teatro causou no público (COUTINHO, 2001, p. 1393). Para o crítico Sábato Magaldi, todavia, a obra de Nelson Rodrigues revela, no seu conjunto, um raro dramaturgo de “imaginário tão coeso e original, e com um espectro tão amplo de preocupações psicológicas, existenciais, sociais e estilísticas” de maneira que seu trabalho de escritor poderia receber, contudo, uma classificação diferente e mais didática. Assim entendido o conjunto de sua obra, em termos de conteúdo e de proposta estética, viriam, precedentemente, as peças que exploram um filão mítico: A mulher sem pecado (1941); Vestido de noiva (1943) e Álbum de família (1945), primeiro; Anjo negro (1946); Senhora dos afogados (1947) e Dorotéia (1949), depois; e com estas relacionadas, as peças psicológicas: Valsa nº 6 (1950); Viúva, porém honesta (1957) e Anti-Nelson Rodrigues (1973) e, por fim, as chamadas tragédias cariocas: A falecida (1954); Perdoa-me por me traíres (1957); Os sete gatinhos (1958); Boca de ouro (1959); O beijo no asfalto (1960); Bonitinha, mas ordinária (1962) e Toda nudez será castigada (1965), depois das quais Nelson interrompeu por quase dez anos a sua obra teatral, concluindo-a com A Serpente (1978), sua última peça escrita (COUTINHO, 2001, p. 1393). Dito isto, vamos agora a algumas considerações sobre a sua obra de cronista esportivo, que nos interessa mais diretamente. Antes, contudo, é oportuno explicarmos sob que bases conceituais se assenta esta parte da produção intelectual e artística de Nelson Rodrigues, uma vez que já antecipamos a relação da sua obra com o universo do jornal e deste com o mundo temático do esporte, explicitando o lugar privilegiado do futebol nas preocupações estéticas e literárias do cronista. Pois bem! Num dos itens do segundo capítulo deste estudo, demonstramos a conceituação de jogo com a qual iríamos trabalhar e a ela relacionamos as particularidades intrínsecas da linguagem como características comuns que poderiam ligar – ao menos do ponto de vista teórico – os conceitos de esporte, jogo, linguagem e literatura. Ampliando os desdobramentos desta abordagem, que inicialmente baseamos nas contribuições do historiador Johan Huizinga, acrescentaremos a ela as 141 contribuições de outros dois intelectuais importantes ao estudo dos fenômenos esportivos: os sociólogos Norberto Elias e Eric Dunnig. 92 Para estes pensadores, os esportes no geral estão intrinsecamente ligados ao desenvolvimento do processo civilizador da humanidade – particularmente, no caso da Inglaterra –, no sentido de que eles vêm substituir e se sobreporem às formas e práticas arcaicas de jogo, tomadas como passatempos do lazer desinteressado dos povos. É neste contexto, por exemplo, que estão inseridas as alterações na prática do futebol, esporte que, na sua fase moderna, se originou do rugby, uma prática com bola de feitio mais arcaico e que, por isso mesmo, foi também remodelado em sua face mais dura e violenta. Nessa mesma direção, outras alterações se seguiram no críquete, na luta livre, no boxe, no tênis, no atletismo e até mesmo na caça às raposas – práticas todas de origem inglesa – cujo objetivo tácito era desvincularem-nas dos exercícios físicos oriundos do mundo do trabalho, dos rituais e das festas camponesas. Ora, na caracterização conceitual do jogo, feita por Johan Huizinga, está justamente a idéia do conceito de trabalho ser diametralmente oposto ao significado do jogo, dentre as chamadas dicotomias crônicas (esporte e jogo; lúdico e competitivo, amador e profissional, por exemplo) com o que tem se valido as explicações sociológicas dos fenômenos esportivos no âmbito das ciências sociais (HOLLANDA in ENFOQUES, 2008, p. 81). Compreendendo-se, pois, o trabalho como um assunto sério – no sentido de que o homem não pode dele prescindir sob a ameaça de não poder subsistir – e o jogo como uma brincadeira não-séria no qual o impulso lúdico vem se manifestar como característica a ele inata e pulsante, é assim mesmo, nessa direção, que Huizinga define o fenômeno do jogo como uma entidade autônoma. “O conceito de jogo enquanto tal é de ordem mais elevada do que o de seriedade. Porque a seriedade procura excluir o jogo, ao passo que o jogo pode muito bem incluir a seriedade”, observa (HUIZINGA, 1971, p. 51). O fenômeno do jogo, portanto, como elemento da cultura (e até mesmo anterior a ela) não deixa de estar presente na prática dos esportes, estes sim, embora não afastados de todo da condição lúdica, pertencentes ao mundo do trabalho por causa da fração de rendimento e resultado sob o que se constituem no mundo moderno. Ressalvando que, no Brasil, os intelectuais modernistas vão perseguir uma fusão entre esses dois conceitos (de esporte e de jogo) e que Gilberto Freyre levará isso às últimas conseqüências em termos do seu pensamento social – “para ele, o futebol tornou-se uma 92 Ver, especialmente, nesse sentido, a obra Em busca da excitação, de autoria dos dois sociólogos. Cf. ELIAS, N; DUNNING, E. Em busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992. 142 instituição nacional própria da fase urbana de desenvolvimento da sociedade e teve o mérito de canalizar os elementos irracionais da formação histórica do país e os elementos primitivos de sua cultura que estariam sediados junto aos contingentes negros e ameríndios da área rural” (HOLLANDA in ENFOQUES, 2008, p. 81) –, a assimilação do futebol pelo Brasil se dá sob um prisma que o torna, graças à peculiar integração sócio-racial que promoveu, o fórum de um verdadeiro “teatro social” onde o sério e o não-sério da nossa cultura se misturam, pois aqui – não há como negar – o futebol é, simultaneamente, drama e representação; tragédia e comédia; festa e religião. Quanto a este último aspecto (do fenômeno do futebol se aparentar com o fenômeno religioso), diríamos, para chegarmos de vez à apropriação temática do futebol pelo cronista Nelson Rodrigues , que Huizinga aproxima o conceito de jogo do conceito de culto, que também é um espetáculo e uma representação dramática, e que se dá num local e num tempo próprios, consubstanciando-se, em suma, como uma figuração imaginária de outra realidade; uma legítima representação, enfim (HUIZINGA, 1971, p. 33). Outra circunstância peculiar presente no jogo e digna de nota aqui é o fato de o êxito alcançado por determinado jogador passar diretamente do indivíduo (ou da equipe) para o grupo que aí se vê representado. Essa substituição estende-se exatamente para a dimensão ritualística dos jogos, uma vez que os competidores “representam” os espectadores, isto é, os jogadores “jogam” em nome daqueles que lhes prestam assistência, saindo desta particularidade a sua dimensão épica, tal como a entendemos em termos da teoria da literatura.93 Em síntese: o futebol é, no seu limite fenomênico, uma espécie de representação teatral, embora se constitua num teatro operativamente diferente. O desenvolvimento do drama na arena ou no estádio não nos leva sempre ao mesmo final, ao contrário do ator, que se depara, fatal e irremediavelmente, sempre com o mesmo enredo, em cena, no palco. Portanto, mesmo que as regras de cada jogo possam ser mutáveis, mesmo que os competidores voltem a se encontrar no mesmo espaço, para uma mesma disputa, o resultado nunca pode ser conhecido de antemão: a representação do jogo, cada vez, será sempre carregada de ineditismo. Observa José Carlos Marques (2000, p. 35), apontando um possível sentido também trágico no esporte, decorrente do fato de que nele há sempre uma contradição inevitável no desejo dos oponentes em disputa, o que resulta no aparecimento do que já 93 Em termos de teoria da literatura, podemos dizer que um dos elementos estruturais da epopéia, enquanto gênero literário, é a existência de um herói que é capaz de feitos grandiosos em nome de sua comunidade. Ou seja: o herói épico, assim como os atletas no jogo, age sempre, nas narrativas épicas, como representante de outrem; da sua comunidade de origem; do seu país; da sua nação. Daí a aludida dimensão épica do esporte de que falamos há pouco. Cf. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Editora Cultrix, 1999, p. 181. 143 chamamos, no início do capítulo, de “uma violência ritual”, uma vez que, particularmente no caso do futebol, por exemplo, a morte do outro – representada pela vitória do time adversário – é apenas simbólica, ou seja: objetivamente ele permanecerá vivo e apto para competições futuras. É assim, pois, sob essa capa conceitual rica e multidimensional, que Nelson Rodrigues vai compreender e abordar o futebol em suas crônicas esportivas. Não apenas como um esporte moderno em que prepondera mais o sentido do rendimento técnico, auferido em resultados numéricos, estatísticas ou recordes. Mas, pelo contrário. Para ele o futebol é muito mais do que isso: é um jogo de caráter social e cultural (com possível representação lingüístico-literária) que se insere dentro das práticas lúdicas e agonísticas do homem e cuja dimensão extrapola os seus resultados em termos de competição. Vejam-se, a propósito, dois trechos de suas crônicas em que isso fica bem claro. Uma em que sobressai a sua valorização humanística do jogo e outra em que a ênfase na sua concepção deste esporte recai na sua dimensão teatral e, por isso, rigorosamente dramática: Texto 1: Certo e brilhante confrade dizia-me ontem que ‘futebol é a bola’. Não há juízo mais inexato, mais utópico, mais irrealístico. O colega esvazia o futebol como um pneu, e repito: – retira do futebol tudo o que ele tem de misterioso e patético. A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakesperiana. Às vezes, num córner mal ou bem batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural. Eu diria ao ilustre confrade ainda o seguinte: – em futebol, o pior cego é o que só vê a bola ... Se o jogo fosse só a bola, está certo. Mas há o ser humano por trás da bola, e digo mais: – a bola é um reles, um ínfimo, um ridículo detalhe. O que procuramos no futebol é o drama, é a tragédia, é o horror, é a compaixão (RODRIGUES, 1993, p. 103-104). Texto 2: Adolfo Bloch sugere que eu escolha ‘o meu personagem’ de cada semana. É uma boa idéia e que tem a considerável vantagem de unir futebol e teatro. Para os bobos, não existe a menor relação entre uma coisa e outra. Ilusão. Existe, sim. O futebol vive dos seus instantes dramáticos e um jogo só adquire grandeza quando oferece uma teatralidade autêntica. Pode ser uma pelada. Mas se há dramatismo, ela cresce desmedidamente (RODRIGUES, Manchete esportiva, Rio de Janeiro, 24 ago. 1957). Como verdadeiro teatro humano e, portanto, passível de ser abordado como matéria viva no espaço público e multifacetário do jornal, lugar em que, para Nelson Rodrigues, o papel do jornalista deveria ser semelhante ao do poeta da antiguidade grega – de alguém que se coloca como observador presente e onisciente dos fatos para poder transmitir à comunidade sua experiência em forma de narrativa94 a que deveria acrescentar cor e emoção–, 94 Experiência essa que pode muito bem ser entendida como aquela de que fala Walter Benjamim – ressalvadas as suas objeções sobre o caráter específico da comunicação jornalística nas sociedades modernas – no seu 144 o universo do futebol se mostrava, para o dramaturgo, como uma espécie de palco onde o homem brasileiro melhor representava os seus dilemas, dramas e frustrações. Cabia ao cronista, portanto, o privilégio da função de observar-lhes os movimentos, captar-lhes os seus desdobramentos e eternizá-los – com a sua técnica, arte e talento – sob a forma clara de literatura, a que não poderia deixar de acrescentar uma quota de intrínseca e necessária poesia: Houve um tempo, no passado do homem, em que o fato tinha, sempre, um Camões, um Homero, um Dante à mão. Por outras palavras: – o poeta era o repórter que dava ao fato o seu canto especifico. Hoje, nós temos tudo: – jornal, rádio e televisão. O que nos falta é, justamente, a capacidade de admirar, de cobrir o acontecimento com o nosso espanto (RODRIGUES, Manchete esportiva, 12 maio 1956). O futebol como forma de representação, portanto – de poiésis; (de espanto) – é a pedra de toque da abordagem do tema deste jogo feita pelo cronista Nelson Rodrigues. Representação no seu sentido mais abrangente, o que implica as concepções éticas, estéticas, culturais e políticas da questão, muito bem sintetizadas numa de suas crônicas de caráter conceitual, nesse sentido: Há uma relação nítida e taxativa entre a torcida e a seleção. Um péssimo torcedor corresponde a um péssimo jogador. De resto, convém notar o seguinte: – o escrete brasileiro implica todos nós e cada um de nós. Afinal, ele traduz uma projeção de nossos defeitos e de nossas qualidades. Em 50, houve mais que um revés de onze sujeitos, houve o fracasso do homem brasileiro. Ora, o torcedor que nega o escrete... está xingando a si mesmo (RODRIGUES, Manchete esportiva, 17 maio 1958). Mas vamos nos deter agora na variante estética da representação do futebol feita por Nelson Rodrigues em suas crônicas, ângulo da questão de foco mais direto desse estudo, dada a orientação teórico-metodológica do nosso trabalho. Tal qual José Lins do Rego, Nelson Rodrigues era também o que se pode chamar de um cronista-torcedor; um jornalista esportivo em que a paixão pelo objeto de sua escrita – e pelo clube que para ele o representava, o Fluminense – não só o orientava como fazia parte mesmo da profissão de fé do seu ofício. “... na verdade, eu me sinto como se já fosse tricolor antes do Fluminense, antes de mim mesmo e até, se me permitem o exagero: – eu era tricolor antes de Cristo”, adverte, numa crônica do Jornal dos Sports, publicada em 09 de setembro de 1961. Portanto, a parcialidade com que francamente escrevia era não só assumida como tornada marca ideológica do seu estilo. Nisso, ele frontalmente se diferencia de José Lins do Rego, uma vez que este, apesar de se declarar abertamente flamenguista em suas crônicas, cuidava para que isso não influenciasse no julgamento justo, isento e imparcial das ensaio clássico intitulado, O narrador. Cf. BENJAMIN, Walter. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Obras escolhidas II (Magia e técnica, arte e política). São Paulo: Brasiliense, 1989. 145 costumeiras polêmicas e controvérsias que sustentava com seus pares ou com torcedores diversos, nas variadas querelas do jornalismo esportivo carioca. A ponto de elencar para o público, numa crônica sua, intitulada, Em honra do cronista (Jornal dos Esports, 26 set. 1952, p. 5), – à maneira de Antonio Candido quanto ao exercício da crítica literária95 –, os itens que considerava imprescindíveis à cobertura ideal de uma partida de futebol, quais sejam: 1º) equilíbrio no desenrolar dos fatos; 2º) honestidade da crítica e 3º) modéstia do cronista. Voltando a Nelson Rodrigues, a questão da isenção e da parcialidade – conceitos que ele programática e conteudisticamente opõe, sistematicamente, à noção da objetividade jornalística –, apresenta-se de forma clara e aberta, num jogo limpo (não muito apropriadamente um fair-play) (ANTUNES, 2004, p. 212.) em que, nestas mesmas situações de controvérsia e polêmica com os seus contendores, seu estilo hiperbólico e de excessos, se compraz em atenuar – sob o manejo poderoso de suas hipérboles e paroxismos – a ira dos adversários. Assim é que numa determinada crônica da série, “Meu personagem da semana”, na revista Manchete Esportiva, de que já falamos, Nelson poderia contemplar, por exemplo, o seu personagem de pauta, o jogador peruano Seminário, autor de 2 gols no empate com o Brasil pelo Campeonato Sul-americano de 1959: “Mas eu não escolho nenhum Seminário porque, graças a Deus, não sou imparcial. Acho o imparcial um monstro de circo de cavalinhos e pior do que isso: – um vigarista” (RODRIGUES, 1993, p. 56.). Decorrente desta questão da parcialidade ou imparcialidade do trabalho jornalístico, ou a ela correlata, tem-se, particularmente no universo do futebol, o problema da emocionalidade, emotividade, ou emoção mesmo, com que os jornalistas se debatem na busca incessante da forma ideal para o adequado tratamento do tema no âmbito da imprensa. Para Nelson Rodrigues, entretanto, este não era nem de longe um problema, uma vez que, conforme já assinalamos, a sua visão teatral do jogo implicava futebol e emoção a compor um mesmo fenômeno. Esposando uma visão humanista do jogo de futebol, ângulo pelo qual consegue enxergar benevolentemente até os vícios do homem nele implicados, Nelson debita à emoção o caráter precipuamente humano deste jogo; algo que dele não pode ser extirpado jamais, sob pena de comprometer-lhe a dramaticidade e a poesia tanto para ao bem quanto para o mal. Vejam-se estes dois segmentos textuais em que essa sua visão é explicitada: 95 Referimo-nos, aqui, às considerações deste autor sobre a crítica literária – e também sobre a tarefa e o papel do crítico – expostas no tópico, O terreno e as atitudes críticas, do seu panorâmico estudo histórico da literatura brasileira, onde está consignado: “O crítico é feito pelo esforço de compreender, para interpretar e explicar; mas aquelas etapas [as da impressão e do juízo] se integram no seu roteiro, que pressupõe, quando completo, um elemento perceptivo inicial, um elemento intelectual médio, um elemento voluntário final. Perceber, compreender, julgar”. Cf. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Vol. I. Belo Horizonte-MG – Rio de Janeiro-RJ: Editora Itatiaia, 1997, p. 31. 146 Outrora havia o ‘juiz ladrão’. E hoje? Hoje os juízes são de uma chata, monótona e alvar honestidade. [...] Ponha-se um árbitro insubornável diante de um vigarista. E verificaremos isto: – falta ao virtuoso a feérica, a irisada, a multicolorida variedade do vigarista. O profissionalismo torna inexeqüível o juiz ladrão. E é pena. Porque seu desaparecimento é um desfalque lírico, um desfalque dramático para os jogos modernos (RODRIGUES, 1994, p. 15-16). *** Para nós o futebol não se traduz em termos técnicos e táticos, mas puramente emocionais. Basta lembrar o que foi o jogo Brasil x Hungria, que perdemos no Mundial da Suíça, Eu disse "perdemos" e por quê? Pela superioridade técnica dos adversários? Absolutamente. Creio mesmo que, em técnica, brilho, agilidade mental, somos imbatíveis, Eis a verdade: – antes do jogo com os húngaros, estávamos derrotados emocionalmente. Repito: – fomos derrotados por uma dessas tremedeiras obtusas, irracionais e gratuitas, [...] Por que esse medo de bicho, esse pânico selvagem, por quê? Ninguém saberia dizê-lo. [...] E não era uma pane individual: – era um afogamento coletivo. Naufragaram, ali, os jogadores, os torcedores, o chefe da delegação, o técnico, o massagista... Foi nossa alma que ruiu face à Hungria, foi a nossa alma que ruiu face ao Uruguai (Revista Manchete esportiva, 7 abr. 1956). Isto posto, desçamos de vez às contribuições de estilo (de caráter estético, portanto) que Nelson Rodrigues incorporou de maneira inigualável ao tratamento do tema do futebol na literatura brasileira, lembrando, a propósito – todavia –, que no conjunto, a sua obra cronística compõe como que um painel histórico-mítico das vicissitudes do homem brasileiro a par de um peculiar meio de expressão em que encontrou, através de um esporte moderno: o futebol (ou seria ainda um jogo?), o repositório e desaguadouro ideais, pelo que pôde erigir sua singularidade, originalidade e intervenção cultural no concerto dos povos. Diga-se isto porque não se pode fugir à percepção de que foi por meio deste aparato simbólico-esportivo que – esta é a conclusão da sua obra –, o homem brasileiro (a sociedade brasileira), pôde mostrar-se a si mesmo e aos outros (notadamente, o estrangeiro) em todo o seu senso de nacionalidade, identidade, cidadania e espírito próprios. Sendo assim, pois, notamos que no todo do seu trabalho de cronista esportivo – o futebol servindo-lhe como pretexto, paratexto e fino fio da meada –, não deixaram de ficar cravados e publicamente explicitados de modo inequívoco, todos os caracteres distintivos – e os períodos de altos e baixos a eles correspondentes, representados pelas vitórias e derrotas no futebol 96 – com que o pensamento social brasileiro clássico interpretou o caminhar da nossa formação social e cultural até a contemporaneidade. O povo triste, de Paulo Prado (PRADO, 96 Neste sentido, a pesquisadora Fátima Martin Rodrigues Ferreira Antunes é da opinião de que, para o cronista, “na medida em que o brasileiro se conhecesse melhor, que soubesse identificar suas qualidades e seus defeitos e superasse estes últimos, alcançaria a vitória não apenas no futebol, mas em todos os campos de atividade, e, ainda, o Brasil obteria o reconhecimento internacional como nação portadora de uma identidade própria”. Segundo ela, Nelson Rodrigues acreditava que a vitória e a derrota traduziam a alma de um povo, por isso, quando se quisesse conhecê-lo a fundo, a simples observação das reações dos torcedores num jogo de futebol poderia trazer revelações valiosas. Cf. ANTUNES, Fátima Martins Rodrigues Ferreira. Op. Cit. p. 217. 147 1997): – “Nelson dizia que o brasileiro sofria de um ufanismo invertido, pois desconfiava dos seus próprios méritos [e]... um dos sintomas desse mal seria o amor à derrota e uma tendência incontrolável a autonegação” – (ANTUNES, 2004, p. 220); o povo cordial, de Sérgio Buarque de Hollanda: – [...] “Por mais doce e cordial que seja a nossa esportividade, já começamos a rosnar contra a humilhação de tantos resultados negativos” (RODRIGUES, Manchete Esportiva, 5 maio 1956) – e o povo alegre de Gilberto Freyre (festivo e esteticamente dionisíaco como produto das três raças) claramente se definia e se mostrava, na visão particular do cronista, conforme a seleção brasileira (para ele, a mais legítima instituição a representar o Brasil) se comportava diante das nações estrangeiras em embates futebolísticos que, no limite, significavam o verdadeiro confronto de um país consigo mesmo e em oposição aos outros do quais deveria diferenciar-se em grandeza e singularidade. Daí, portanto, a fase do chamado complexo de vira-latas, em que a particularidade da nossa miscigenação racial teria pesado contra, com a culpa da derrota para o Uruguai, na final da Copa de 1950, por exemplo, tendo sido imputada, pela imprensa, às figuras mestiças dos nossos jogadores de defesa, Bigode, Juvenal e Barbosa: “Quando se fala em 50, ninguém pensa num colapso geral, numa pane coletiva. Não. O sujeito pensa em Barbosa, o sujeito descarrega em Barbosa a responsabilidade maciça, compacta da derrota” (RODRIGUES in: Manchete Esportiva, 30 maio 1958). Daí, o vislumbre redentor da superação desse complexo na constatação das virtudes oriundas dessa mesma miscigenação: “A pura, a santa verdade é a seguinte: qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma: – temos dons em excesso” (RODRIGUES, Manchete Esportiva, 31 maio 1958). Daí, por fim, na feliz interpretação da socióloga Fátima Antunes, o triunfo final de um povo – que “agonizava ao pé do rádio”, ouvindo os jogos da seleção –, simbolizado num urro descomunal que teria sido ouvido no exato instante do gol de Pelé contra o País de Gales, na Copa de 1958, finalmente vencida pelo Brasil, e que ecoa, conforme demonstra a grande narrativa épico-histórica do país do futebol, delineada pelas crônicas do dramaturgo pernambucano, como uma espécie de mito-fundador da nação brasileira: Graças aos 22 jogadores que formaram a maior equipe de futebol da Terra em todos os tempos, graças a esses jogadores, dizia eu, o Brasil descobriu-se a si mesmo ... Os 5 x 2 lá fora, contra tudo e contra e todos, são um maravilhoso triunfo vital de todos nós e de cada um de nós. Do presidente da República ao apanhador de papel, do ministro do Supremo ao pé-rapado, todos aqui percebemos o seguinte: – é chato ser brasileiro! Já ninguém tem mais vergonha de sua condição nacional ... O povo já não se julga mais um vira-latas. Sim, amigos: – o brasileiro tem de si mesmo uma nova imagem. Ele já se vê na generosa totalidade de suas imensas virtudes pessoais e humanas. 148 Vejam como tudo mudou. A vitória passará a influir em todas as nossas relações com o mundo. Eu pergunto: – que éramos nós? Uns humildes. E vou mais além: – diziam de nós que éramos a flor de três raças tristes. A partir do título mundial, começamos a achar que a nossa tristeza é uma piada fracassada. Afirmava-se também que éramos feios. Mentira! Ou, pelo menos, o triunfo embelezou-nos. Na pior das hipóteses, somos uns ex-buchos (RODRIGUES, Manchete Esportiva, 12 jul. 1958). Entendendo assim o futebol como um fenômeno típico de representação, Nelson Rodrigues pôs-se a escrever sobre ele e sobre ele soube acrescentar as marcas de um estilo pessoal que o tomava simultaneamente como tema e como forma típica de linguagem. Uma linguagem a que soube como ninguém aproximar radicalmente da linguagem da literatura. Vejamos então como isso acontece na sua escrita, tomando o seu texto como exercício de prova e de demonstração. Dizíamos antes que a grande narrativa composta pelas crônicas esportivas de Nelson Rodrigues forma uma espécie de visão mito-histórica (ou mito-poética, no seu sentido etiológico) da representação do Brasil por meio do futebol. E é assim mesmo como uma grande narrativa – e não apenas como um singular e “desviante” aspecto da ampla informação jornalística sobre o tema – que devemos situar a peculiar poiésis rodriguiana no tratamento desse jogo em termos de sua compreensão estética, uma vez que foi ele o cronista que definitivamente emprestou ao futebol uma particularidade tipicamente literária: a dimensão ficcional. Tal dimensão pode facilmente ser demonstrada em seus vários e personalíssimos procedimentos formais com o que tratou o tema desse jogo ao longo de sua vasta carreira de cronista esportivo. Inicialmente diríamos, nesse sentido, que ao aproximar o futebol da encenação teatral, na acepção mais autêntica da expressão – a sua concepção como uma forma também de espetáculo – Nelson Rodrigues o faz com largo amparo nas teorias clássicas da narrativa, notadamente na teoria aristotélica do drama, explicitada na Poética (ARISTÓTELES, 1992), em que são discutidos os conceitos de verdade e de verossimilhança, tendo o primeiro termo sendo ali associado à disciplina da História, por sua relação com a verdade factual, e o segundo, à prática da ficção (em suas modalidades de tragédia, comédia, lírica e épica) graças a sua preocupação não com a verdade factual em si, mas com a aparência de verdade, que lá também é vista como um critério orgânico interno das obras do espírito e da imaginação. Concordando com essa assertiva acima, o pesquisador Marcelino Rodrigues da Silva, num curto, mas sugestivo, ensaio sobre a relação das crônicas de Nelson Rodrigues com as preconizações de Aristóteles – na sua Poética –, nos diz que é possível utilizar algumas categorias da narrativa para “sistematizar certos procedimentos através dos quais 149 Nelson recria os acontecimentos esportivos” (SILVA, 1998, p. 105-113). Ele menciona especialmente os conceitos de “mito” e de “carácter” por meio dos quais o escritor maneja as dimensões do drama presentes no jogo de futebol. Diz ele com amparo em Aristóteles que, no caso, o “mito” é o enredo, o entrecho narrativo, a seqüência das ações, correspondendo no futebol ao desenvolvimento dos jogos, dos campeonatos, à marcha do placar, enfim. Assinala também, nesse mesmo contexto, que o “carácter” diz respeito às qualidades dos agentes, que no futebol são, entre outros elementos do espetáculo, principalmente os jogadores. E ainda lembra que há entre esses dois elementos uma relação dialética que implica em as ações revelarem as qualidades do agente, e essas, por sua vez, determinarem também as suas ações. Podemos dizer, por exemplo, que ele opera uma ênfase no “carácter”, uma pintura enfática das personagens esportivas. Como nas crônicas publicadas na coluna "O personagem da semana", em que ele escolhe, entre as personagens de um jogo, "a figura que possa traduzir o símbolo pessoal e humano da batalha”. Em relação ao "mito", o procedimento típico do cronista é colocar em relevo certos momentos de um jogo que tem maior apelo dramático. Esse procedimento pode ser comparado ao que Aristóteles chama de "elementos qualitativos do mito complexo” – certo artifícios usados nos enredos das tragédias com a finalidade de atingir o efeito catártico (SILVA, 1998, p. 108). Vamos nos deter, então, nos tais artifícios usados por Nelson Rodrigues na sua retórica ficcional dos fatos esportivos a que acrescentava os mais díspares procedimentos formais como meio de pessoalizar o estilo de sua crônica. Um deles – talvez o que mais confira ao seu texto as astúcias típicas da ficção – é justamente a forma folhetinesca com que propunha se acumpliciar ao leitor num diálogo matreiro e cheio de artimanhas. O objetivo é claro: trata-se de uma conversa (o tema da crônica) pensada para ser estendida no tempo, a exemplo dos típicos folhetins jornalísticos do século XIX,97 estruturalmente ligados ao espaço do jornal e que procurava atiçar a curiosidade do leitor para ações que teriam seus desdobramentos num tempo futuro, na próxima edição do diário, como demonstra o primeiro texto-exemplo, abaixo. Para tanto, em alguns casos, servia-se de uma conatividade íntima e de fundo metalingüístico com a qual buscava prender o leitor à leitura; ou, noutros casos, apelava 97 Para uma compreensão mais acurada sobre este tipo de espaço de discurso jornalístico, ver o excelente ensaio da professora Marlyse Meyer, intitulado, “Voláteis e versáteis, de variedades e folhetins se fez a chronica”. Quanto à sua origem e morfologia iniciais, advindas do jornalismo francês, Marlyse Meyer as resume assim, no seu artigo: “Feuilleton: espaço vazio no rodapé de jornais ou nas revistas, destinado ao entretenimento, e, no mesmo espaço geográfico, o raman-feuilleton. [...] De início – começos do século XIX – Le feuilleton designa um lugar preciso do jornal: o rez-de-chaussée – rés-do-chão, rodapé, geralmente de primeira página. Tem uma finalidade precisa: é um espaço vazio destinado ao entretenimento. E já se pode dizer que tudo o que haverá de constituir a matéria e o modo da crônica à brasileira já é, desde a origem, a vocação primeira desse espaço geográfico do jornal”. Cf. MEYER, Marlyse. “Voláteis e versáteis, de variedades e folhetins se fez a chronica”. In: CANDIDO, Antonio. [et al.]. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas, SP: Editora da UNICAMPI; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992, p. 93-133. 150 para o conhecimento (ou melhor: o desconhecimento) do leitor sobre a matéria da conversa da crônica como forma de retê-lo à sua prosa, na mais explícita “re-estilização” machadiana: Domingo que vem teremos Vasco x Fluminense. É uma peleja que pode decidir o campeonato. Mas ela merece um capitulo à parte, que escreverei amanhã (RODRIGUES, Jornal dos Sports, 11 nov. 1958). *** Mas o crime passional já teve a sua voga. (Aí está: – voga. Boa palavra. Tem som. Pretendo usá-la mais vezes.) Quando eu era garoto, na altura aí de 1920. (Já chego ao futebol. Vocês não perdem por esperar). (RODRIGUES, 1993, p. 176). *** Amigos, diante do Fla-Flu eu me lembro do filme, ainda em cartaz, "Os Irmãos Karamazov"· Cito o filme e não o romance, porque não faço fé que todos os meus leitores tenham lido este último (RODRIGUES, Jornal dos Sports, 2 nov. 1958). *** Bem sei que as hienas da crônica ainda uivam contra a defesa. "Há falhas, há falhas", rosnam as hienas (nas minhas crônicas as hienas rosnam) (RODRIGUES, 1993, p. 175). Mas voltemos ao cerne da abordagem ficcional do jornalismo esportivo de Nelson Rodrigues. E voltemos para realçar as suas aplicações retóricas em torno do “mito” – do entrecho –, de que falávamos acima, como forma de junto com a ênfase no “carácter” – no personagem – trazermos à tona uma característica de sua escrita a que chamaríamos de “retórica do exagero significativo” para classificar a grandiloqüência do efeito pretendido; o paroxismo da expressão servindo de forma de convencimento sobre o inusitado, o nonsense do sentido: No ex-Maracanã, fez-se um silêncio ensurdecedor, que toda a cidade ouviu. No instante do chute, a coxa de Pelé tornou-se plástica, elástica, vital, como a anca de cavalo. [...] E quando Pelé estourou as redes, o Estádio Mário Filho voou pelos ares. Desde Pero Vaz de Caminha, nenhum brasileiro recebera apoteose tamanha (RODRIGUES, 1993, p. 159). *** Apuparam o negro. E se Pelé pode ser crucificado em vaias, cessam todos os valores morais. Podemos invadir berçários para esganar criancinhas. [...] O Maracanã tem a vocação e a nostalgia da vaia. Repito: – lá vaia-se tudo, desde o minuto de silêncio. E antes da entrada dos times, vaia-se o gramado (RODRIGUES, 1994, p. 107). *** Antes de chegar ao Maracanã, pasmei para a loucura dos automóveis e das buzinas. Nem o enterro de Inês de Castro teve tantos carros. Eles subiam nas calçadas, ou trepavam nas árvores como macacos e quase pulavam os muros (RODRIGUES, 1994, p. 93). Em relação às inumeráveis polêmicas futebolísticas em que se envolvia com os confrades da crônica esportiva carioca, principalmente por causa da sua abordagem do fato futebolístico fincada mais na imaginação, na literalização do tema, na fabulação subjetiva com que envolvia os acontecimentos – em oposição à visão meramente objetivista dos colegas jornalistas –, o pesquisador de sua estilística de cronista esportivo, José Carlos Marques, nos conta que para atingir fatalmente os contendores que discordavam de suas idéias, Nelson 151 poderia dizer, por exemplo, que "Só um cego não enxerga o óbvio". No entanto, diz Marques, a frase com a qual ele nos presenteia é lapidar: "Só um cego nato, hereditário e póstumo, não enxerga o óbvio estarrecedor" (Jornal dos Sports, 27 jul. 1966). O óbvio já não é apenas óbvio, é um óbvio estarrecedor (poderia ser igualmente um óbvio ululante...), e o cego não é apenas cego, mas cego do nascimento até a morte; a cegueira é hereditária, congênita e vitalícia, intensificando ainda mais, por força do exagero, a falta de visão daqueles que não enxergam a verdade (MARQUES, 2000, p. 128). Ressalve-se que ancorados nesses recursos incrustados no enredo, nas evoluções das ações narradas, na narrativa, enfim, há outros procedimentos a estes complementares embutidos no nível da frase, no encalço da palavra, na timbragem característica da sua elocução sintagmática, construindo uma sintaxe particular que cria ritmo, musicalidade e entonação. Um dos exemplos desses casos também nos é narrado por José Carlos Marques no seu interessante estudo da narrativa rodriguiana sobre futebol: Ao prognosticar mais um título do Fluminense, Nelson tece um período em que o compasso das frases segue uma estrutura muito bem marcada, como se ele compusesse 3 versos de 8 sílabas e terminasse a estrofe com uma redondilha maior – processo de adensamento do grama sintagmático. Diz ele que o profeta ‘lá na caverna que habita, coçando a sarna que o deleita, vai repetir até domingo: – Fluminense campeão’. [...] Se quiséssemos esse período totalmente despido de adornos – o grau zero do significado – teríamos a frase: ‘o profeta vai repetir até domingo: – Fluminense campeão’. Mas as duas frases (versos!) agregados e que funcionam como aposto (‘lá na caverna que habita, coçando a sarna que o deleita’), acabam por participar desse puro deleite erótico da adjetivação e do desperdício (MARQUES, 2000, p. 127-298). Ou ainda, nesta mesma direção, para demonstrar a consciência de uma “poética” que se erige e se move a custa de imagens espetaculares – numa homologia com o próprio jogo de bola de que trata (a esfera como metáfora) –, essas construções em que o recurso sonoro do verso, a par de uma utilização peculiar do código lingüístico com ênfase na musicalidade da palavra, se entremostram e se insinuam, sedutoramente: “Servílio se move, e se vira, e age, e reage com a flexibilidade de um piano. Se não gostarem dessa imagem, arranjarei outra: – Servílio se move, e vira, com a agilidade de uma catedral” (RODRIGUES, Jornal dos Sports, 22 jun. 1966). Mais ainda, esse outro trecho para demonstrar que as imagens criadas no texto como que transbordam no exagero da composição fanopéica: 98 98 Utilizo essa expressão aqui no sentido conceitual empregado por Ezra Pound no seu tratado didático-pragmatíco sobre a poesia, intitulado, o “Abc da literatura”. Na obra, o crítico e poeta norte-americano, ao descrever os três meios com os quais é possível “carregar a linguagem de significado até o máximo grau possível”, aponta a fanopéia como sendo o meio de projetar o objeto nomeado (fixo ou em movimento) na imaginação visual do 152 Um craque do Real [de Madri], ou do Juventus [de Turim], ou do Internacional [de Milão], vive lambendo pires de leite como uma gata de luxo. Ou, então, se me permitem outra imagem, Vive boiando num lago de abobrinhas como uma vitória régia. Vejam o Di Stefano. O dinheiro escorre por entre seus dedos como água. Contam que toma táxi até para ir de uma sala a outra (RODRIGUES, Jornal dos Sports, 22 jun. 1963). Na citada pesquisa da estilística rodriguiana da crônica de futebol, levada a cabo por José Carlos Marques, há, no contexto da homologia supra-referido, uma referência digna de menção nesse nosso estudo, uma vez que ela trata de aspectos que dizem respeito a nossa hipótese de trabalho explicitada ainda na introdução dessa análise do tema do futebol na literatura brasileira. É quando ele advoga a tese de que a estilística rodriguiana tem correspondência direta com o que ele chama, em termos culturais, de “estética barroca atual da América Latina”, ou seja, o chamado neobarroco. Baseado em formulações teóricas sobre esse tema, expostas principalmente pelo escritor cubano, Severo Sarduy, em seu texto “O barroco e o neobarroco” – (1979), e pelo crítico italiano, Omar Calabrese, em sua obra A idade neobarroca (1988), Marques diz que sua proposta analítica surge do entendimento que se tem sobre o neobarroco como conceito utilizado para definir as carcacterísticas de uma cultura miscigenada na América Latina que, segundo ele, está sempre apta a digerir e opor-se às hegemonias dominantes no continente desde o período colonial, configurando-se, assim, como um princípio de organização e de resistência para afirmar valores relacionados à mestiçagem e a originalidade de novas sínteses culturais advindas com o choque de culturas do Novo Mundo. Neste contexto, diz ele, Nelson Rodrigues transcende as fronteiras puramente jornalísticas de seu texto e estabelece relações típicas desta “estética neobarroca”, uma estética que provoca, entre muitos outros mecanismos, uma sintaxe visual de relações inéditas. Temos em Nelson o barroco como alegoria do gozo no espetáculo performático, como transbordamento de imagens e exercício lúdico. [...] Mesmo num espaço da denotatividade como o jornal ou a revista, em que as crônicas de Nelson eram publicadas, podem-se vislumbrar certos recursos de adensamento da expressão que, nos dizeres de Afonso Ávila [...] “infletem não raro para a livre associação conotativa, inscrevendo-se com isso a linguagem numa faixa de extrema abertura para o jogo” (MARQUES, 2000, p. 96-97). Para a demonstração da sua tese, José Carlos Marques segue elencando alguns mecanismos de artificialização do barroco retirados das teorizações de Severo Sarduy tais leitor. Algo que a nosso ver Nelson Rodrigues explora nos seus textos sobre futebol com rara consciência composicional. Cf. POUND, Ezra. O ABC da literatura. São Paulo: Editora Cultrix, 1990, p. 63 153 como as formas de composição literária baseadas em princípios como a substituição, a proliferação e a condensação etc – aspecto que não cabe aqui maior desenvolvimento pelas escolhas de focalização do nosso estudo –, através das quais a estilística rodriguiana se coadunaria, no geral, com as formas de expressão mais legítimas dos povos sul-americanos.99 Interessa-nos mais diretamente, contudo, quanto à tese central de Marques, elencarmos aqui os elementos que a partir dela iluminariam a hipótese operativa do nosso trabalho. Ou seja: a sustentação da idéia, repitamos, de que por ser o futebol um jogo em que, dadas as características intrínsecas e estruturais que o informam, sua dimensão comunicativa exigiria, no nível de sua representação simbólica – no caso, literária –, narrativas que articulassem ou considerassem essas mesmas características (a magia, a imprevisibilidade, a surpresa, a beleza, imponderabilidade etc.) que são, no seu conjunto, pertencentes à esfera do estético – da arte, por extensão. Daí, termos arriscado a possibilidade de haver uma homologia entre a maneira como a prática do futebol entre nós vai ganhando características próprias, a ponto de formarmos uma escola brasileira de jogar futebol, e a maneira como os nossos escritores-jornalistas vão tratando o tema, o que incidiria, também, na criação de uma “maneira brasileira” de narrar literariamente o futebol. Sigamos, para encerrar este tópico, nossas demonstrações, nesse sentido, com o texto prolífico de Nelson Rodrigues. Uma partida de futebol, todos sabemos, implica o domínio tático dos espaços do campo para que cada time evolua em direção ao objetivo do jogo: o gol. Tal domínio do espaço deve ser conseguido principalmente pela equipe que está de posse da bola, cabendo ao time adversário justamente encurtar esse espaço para dificultar a evolução do oponente. Precisamente por isso, há uma reversibilidade permanente das táticas de ocupação desse espaço com os jogadores fazendo com que a bola gire de um lado ao outro do campo, conforme a resistência e a oposição, nesse sentido, do time adversário. A essas alternativas de ocupação do campo, ora para um lado ora para o outro, chamamos em jargão específico “virar o jogo”, e é este um dos recursos táticos mais utilizados em campo pelos técnicos e pelos jogadores, na tentativa de surpreender os oponentes. Em termos composicionais (táticos, portanto), veja-se como a escrita rodriguiana reproduz, na crônica, tal procedimento dos jogadores: 99 Nesse sentido, José Carlos Marques cita como exemplo o que ele chama de “A arte da contraconquista”, expressão e conceito teorizado pelo escritor cubano, Lezama Lima, que se define como uma tendência latino- americana para a síntese de elementos culturais contrários (bem ao gosto teórico de Gilberto Freyre): a mestiçagem cultural. Daí, segundo Marques, é que se pode compreender a dimensão da expressão americana do barroco, como uma síntese hispano-indígena e hispano-negróide, ou seja, a admissão da mestiçagem como nosso signo cultural. Conforme Lezama Lima, “uma rede de imagens que recortam a astúcia e a magia, a curiosidade e o prazer, a apetência e a devoração, a rebeldia e a liberdade, a malícia e o engenho”. Cf. MARQUES, 2000, p. 166-167. 154 Amigos, volto a escrever sobre Zito. Sou um cronista de poucos assuntos e de muitas fixações. Por exemplo: – escrevi uns duzentos artigos sobre Pelé, sobre Garrincha. Essa insistência acabou enfurecendo alguns leitores. Um deles deu-me um telefonema irado: "Vê se muda de chapa!" Mal imaginava o leitor que a variedade de temas e de figuras leva ao tédio mais hediondo. É, pois, com o maior descaro que volto a Zito (RODRIGUES, Jornal dos Sports, 12 abr. 1963). Não é necessário dizer que as circunvoluções da referencialidade temática do texto – se trataria de Garrincha, Pelé ou de Zito; finalmente voltando a Zito – reproduzem, em nível lingüístico, a reversibilidade das táticas de viradas de jogo no campo do futebol. É como se o técnico (aqui, o escritor) insistisse em jogar só por aquele lado, ao invés de mudar de tática de ocupação dos espaços. Só que aqui – como sói acontecer na boa literatura – há uma inversão de expectativas: o que no jogo real do futebol seria “o tédio mais hediondo” – o insistir em jogar sempre pelo mesmo lado –, no texto de Nelson Rodrigues é justamente a repetição, essa manutenção do mesmo em oposição à variedade, às alternativas diferentes das possibilidades de conduzir o jogo (o texto), que cria a novidade expressiva; a sua força estética. Essa mesma força na expressão pode ser antevista no trecho a seguir, em que a frase faz rigorosa homologia com a mudança no ritmo do jogo, feita agora individualmente pelos jogadores, que passam a correr mais, sob a exigência do técnico da equipe que pretende surpreender o adversário com um contra-ataque veloz: “Na base do talento, da mobilidade, da velocidade, do drible fulminante, da fantasia, Tostão e Alcindo foram abalando e desintegrando a resistência adversária". (Jornal dos Sports. 8 jun. 1966). Repare-se aqui como a leitura sucessiva dos encaixes dos blocos sintáticos da frase: “do talento, da mobilidade, da velocidade, do drible fulminante, da fantasia etc”, cria uma sonoridade rítmica que dá uma idéia de velocidade aumentando também sucessivamente. A magia do jogo de futebol, por exemplo, pode ser reforçada em forma de memória por Nelson Rodrigues, nesse trecho em que lembranças reais e fantasia se misturam tal como nos álbuns de figurinhas com que os garotos brasileiros revivem, num plano simbólico e lúdico, as situações de estesia geradas pela fruição real do jogo de bola em si. “Eu me lembro, uma vez andava na rua, era um garoto de calças curtas, tinha cinco anos, quando passou um jogador de futebol. Eu não sei, devia ser Lais ou Manga, que morreria em 22, ou Welfare. Eu sei que aquilo foi um espanto, eu corri para dentro de casa como se estivesse ungido de glória, de glórias fantásticas” (RODRIGUES in MARON FILHO; FERREIRA, 1987, p 187). A dimensão do fantástico no jogo de futebol é, sob nossa perspectiva, o elemento basilar que faz com que Nelson perceba como intrínseco a ele o elemento ficcional, conforme 155 já assinalamos. Tal é sua convicção quanto a esse aspecto do fenômeno futebolístico que o cronista chegou mesmo a criar verdadeiros personagens ficcionais no universo desse esporte. Dentre outros – O Gravatinha, A grã-fina das narinas de cadáver etc –, O sobrenatural de Almeida é, sem sombra de dúvida, o mais famoso deles. Criado para personificar e simbolizar o imponderável, as forças do acaso, ou para justificar a imprevisibilidade e a imprecisão que reinam no universo do jogo de futebol, tal figura recebe uma caracterização cuidadosa e especialíssima por parte de Nelson Rodrigues, senão vejamos: Entro na redação e sou avisado: ‘Tem um cara te esperando’. Digo, tirando o paletó: ‘Manda entrar’. Era o abominabilíssimo Sobrenatural de Almeida. É duro começar o trabalho com tão tenebrosa visita. Todavia, a natureza deu ao homem, para essas ocasiões, um cinismo impressionante. Quando o Sobrenatural de Almeida aparece, eu o recebo com falsíssima efusão: ‘Quem é vivo sempre aparece!’ Com uma perna mais curta do que a outra, o visitante aproxima-se, mancando. Pergunto-lhe: ‘Como vai essa figura?’ O outro abre um sorriso de maus dentes: ‘Estou caprichando!’ Sentou-se e eu berro para o contínuo: ‘Dois cafezinhos, rápido!’ E, instalado na redação, o Sobrenatural de Almeida começa a falar: ‘Tens visto a minha atuação?’ Ao mesmo tempo que fala, abana-se com a Revista do Rádio. Sinto que ele está vaidoso de não sei de que ignóbeis feitos. Tive a vontade quase irresistível de perguntar: ‘Assaltaste algum chauffer?’ Por delicadeza, esperei que o miserável fizesse a sua autopromoção. E, então, depois de limpar um pigarro, de estufar o peito magro, diz ele patético: ‘Eu venci o Fla-Flu! Eu!’ [...] ‘Ou não percebeste a minha influência no placar?’ Juntou gente em torno da minha mesa. Ao mesmo tempo, chegava o contínuo com dois cafezinhos na bandeja. E, então, mexendo o açúcar, o abjeto cidadão contou, para nosso espanto, a sua ação contra o Fluminense (RODRIGUES in: MARON FILHO; FERREIRA, 1987, p 159.) Para concluir esse nosso arrazoado rodriguiano sobre o futebol como ficção, como literatura, lembramos mais uma vez que na qualidade de um fenômeno que expressa a tentativa de domínio do espaço por parte do homem, o futebol – assim como o texto, assim com as narrativas –, é também um jogo em que se revela o experimento humano do domínio do tempo, mesmo que nos escassos e incontroláveis noventa minutos de uma partida. E tal como o espaço, os personagens, as ações, os enredos, o tempo é temática e estruturalmente uma das mais ricas matérias de ficção, portanto, de literatura. Vejamos como Nelson ancora, literalmente na crônica (leia-se o domínio de cronus, do Deus Supremo, a quem nada nem ninguém vence), o tempo como categoria também intrínseca ao futebol, usando uma situação em que o seu Fluminense precisava apenas de três minutos para se sagrar campeão carioca de 1971: Em três minutos tudo pode acontecer. A minha sensação e de todos os pós-de-arroz presentes no Mário Filho era a de que os três minutos restantes arrastavam-se como que puxados por uma parelha de lesmas. Desatinado, tirei o meu relógio. As horas passavam, mas os três minutos, não. Oito horas, nove, dez, meia-noite. Uma da madrugada, duas, três, e os três minutos parados. Os galos já cantavam e não soava o apito final. A madrugada raiava sangüínea e fresca e faltavam dois minutos. O penúltimo minuto durou três horas. Finalmente, ficou faltando um único e escasso 156 minuto. Sessenta segundos passam rápido. Não aqueles. Só ao meio-dia terminou a batalha. Posso dizer, como tricolor nato e hereditário: – foram os três minutos mais longos de toda a história (RODRIGUES, 1994, p. 164-5). Enfim, cremos que pelo que foi dito acima - tendo a escrita artística de alguns escritores como testemunha -, ficou claro que o fenômeno do jogo (neste caso, o jogo de futebol) possui inequivocamente, por causa das faculdades lúdicas que possui, uma semelhança estrutural com a maneira como se organiza formalmente a linguagem verbal. Daí ser possível se fazer homologias entre esses dois campos de expressão humana, seja no nível da criação, pela abordagem estética, pela apropriação artística; seja no âmbito propriamente heurístico, das descobertas e relações. O elemento comum é o fator lúdico constituinte dos dois fenômenos e é através dele, como ficou demonstrado, que é possível uma cultura inteira se realizar e se mostrar, na sua forma mais hegemonicamente visível (como é o caso da cultura brasileira), na sua relação simultânea com alguns dos seus mais ricos elementos, tais como o seu futebol, o seu jornalismo e a sua literatura. A propósito, foi a uma conclusão parecida que chegou José Carlos Marques na sua pesquisa sobre esses temas na obra de Nelson Rodrigues: [...] o lúdico dessas crônicas, como eu dizia, acompanha a própria característica sobre a qual o futebol se assentou no Brasil, fazendo prevalecer os elementos ligados à ginga, à malandragem, à quebra das linearidades. É como se a realidade brasileira estivesse refletida na própria obra desse escritor. E tudo isso podia ser vislumbrado a todo instante nos inúmeros textos que ele publicou, independentemente da época ou do jornal para o qual ele escrevia (MARQUES, 2000, p. 190). Talvez tenha sido justamente esse seu elemento de desperdício lúdico; essa sua vocação de abertura para a gratuidade, o ser fundamentalmente uma linguagem aberta a outras linguagens; que também se realiza noutras linguagens – e não apenas o esporte de forte conteúdo agonístico, expresso em disputas codificadas em regras de disciplina e controle que mobiliza identidades e rivalidades sob a lógica capitalista do lucro, fatores que decididamente o transformou no grande item da alta indústria do lazer moderno – que fez o futebol ter recebido, por esse ângulo “pouco produtivo” do seu entendimento estético, negligenciada atenção nas suas abordagens críticas como fenômeno cultural. Paradoxalmente, contudo, é precisamente essa sobra de produtividade improdutiva, alerta o crítico José Miguel Wisnik, “que transformou esse jogo na mais reconhecível, intercambiável e universal das atividades supérfluas da humanidade. Inegavelmente, uma prática cultural que, por mais interesses econômicos que nela estejam envolvidos, expande-se historicamente pelo mundo sob um fundo de motivações gratuitas a que se tem dado pouquíssima atenção enquanto tal” (WISNIK, 2008a, p. 44). 157 A razão de disso tudo – continua o crítico – é uma congênita dificuldade de entender que o futebol é um campo de jogo em que se confronta o próprio vazio da vida; a necessidade premente de procurar-lhe sentido. Daí, portanto, desse fundo ontológico e filosófico do jogo é que, na opinião do ensaísta, devemos procurar entender o futebol, sobretudo vinculando-o às lições perquiridoras das formas artísticas. Como na dança e na música, o jogo é um perseguidor e um procurador do sentido que falta – um representante do que não está, sem que, com isso, se pretenda dá-lo como presente. ‘Essa produção de presença’, evidentemente não intencionada e não formulada nesses termos, se dá numa temporalidade própria, em ato, com meios elementares e concretos, e se repõe porque não se esgota, na sua instantaneidade, na sua imediatez e na indeterminação aberta dos seus conteúdos. [...] seria preciso entender que, nele, como nas artes e na música, o conteúdo está ali como se não estivesse; na ausência de significado, mas fazendo sentido e pondo em cena conteúdos conflitivos e catárticos que o transformam nesse vespeiro universal de congraçamento e violência. É pelo fato de lidar de maneira não verbal com o núcleo de violência que constitui as sociedades, a um tempo elaborando-o e expondo-se ao risco de trazê-lo á tona, que o futebol pôde se tornar o vínculo intrigante que atravessa todo tipo de fronteiras (WISNIK, 2008a, p. 44-6). Cremos que está aí a chave através da qual pretendemos abordar aqui o chamado esporte das multidões. Pegando carona nas fecundas sugestões expostas na abordagem do jogo feita certa vez pelo cineasta Pierre Paolo Pazolini (PAZOLINI in II Giorno, 3 jan. 1971), e, na esteira de sua mirada estética sobre o futebol, versar o tema por dentro e por fora, munidos dos instrumentais cognitivos que a sua representação pelo campo da literatura poderá nos oferecer, e, neste movimento, aplicarmos à inserção do futebol no caso brasileiro aquilo que o crítico literário marxista Terry Eagleton disse do significado político do jogo no contexto contemporâneo da Inglaterra, berço desse esporte: Basta pensar em como seria transformada a paisagem social e política britânica se não mais existisse o futebol para fornecer às pessoas a tradição, o ritual, o espetáculo dramático, o senso de existência corporativa, a hierarquia, a lealdade, a agressividade selvagem, o combate gladiatório, o espírito de rivalidade, o panteão de heróis e a apreciação de habilidades estéticas que fazem falta grande ao cotidiano capitalista (EAGLETON, apud WISNIK, 2008a, p. 17-18). Sabemos que a literatura brasileira ao tomar o futebol como tema – ao menos no conto de ficção – já pode oferecer respostas a muitas destas questões que o jogo suscita se o encararmos na sua confluência com os demais assuntos sociais que a abordagem jornalística do conteúdo do jogo apenas prenunciava naquelas primeiras décadas do século XX, período que já analisamos. Como arte e como instrumento de conhecimento da realidade que se realiza de forma a portar beleza e análise crítica, a literatura, a nosso ver, pode muito bem enxergar o jogo de futebol como “o grande teatro e o rito da presença, expondo ao vivo, em corpo e espírito, um largo espectro da escala humana. Sendo assim, uma zona de contatos 158 lúdicos, primária e refinada, física e metafísica, que desafia e desencadeia o desnudamento da existência autêntica” (WISNIK, 2008a, p. 15), segundo a chave conceitual oferecida por José Miguel Wisnik, também seguida por nós como sugestão de trabalho. Com tal disposição e orientação teórico-metodológica, portanto, é que vamos agora estudar literariamente o futebol enquanto motivo e enquanto matéria significante; enquanto tema e enquanto forma narrativa simbólico-modelizadora, retirada e retornada à forma social que lhe serve de fonte, através de uma abordagem livre, algo impressionista e estético-semiológica, de cunho exegético e interpretativo, tendo como base o conceito operacional das representações sociais aplicado ao campo da literatura. 159 4 - MANTENDO A ESCRITA: DAS QUATRO LINHAS ÀS PAGINAS DE FICÇÃO Descrever minuciosamente o jogo é tarefa árdua, senão impossível, pois tantos e múltiplos seriam os fatos a narrar. Thomas Mazzoni À criança européia o adulto ensina com Chapeuzinho Vermelho a não desobedecer e com Pinóquio a não mentir. À brasileira, ensinamos com Emília, personagem de Monteiro Lobato, a fazer de conta. Betty Milan O futebol é a arte da mentira, mas uma mentira inventada e contada pelo corpo em uma fração de segundos. Francisco Bosco A amostra da pesquisa de textos que fizemos, e que foi realizada na direção da análise que apresentamos agora, cuja forma e metodologia apontamos no capítulo anterior, consiste na reunião da produção literária dos escritores brasileiros firmada na forma conto e que tem o futebol como tema, compreendendo o período que vai desde o aparecimento da primeira história curta de ficção sobre o assunto, que localizamos por volta do ano de 1915 do século XX, até onde foi possível avançar o apanhado desses textos em direção ao tempo presente, marco temporal que se estende até o momento atual em que apresentaremos à defesa pública o nosso trabalho. Sendo assim, se faz necessário tecermos aqui algumas considerações a respeito da maneira como se deu a escolha dos textos para análise, bem como sobre a forma como se procederá a própria análise dessas peças literárias, uma vez que pretendemos a um só tempo dar uma mostra panorâmica de toda a produção brasileira do tema do futebol no gênero conto – algo até onde se saiba nunca feito no Brasil com tal abrangência – e também particularizar essa amostragem através de categorias de leitura com as quais possamos cumprir os objetivos 160 específicos do nosso trabalho. Queremos com isso cumprir duas finalidades básica antes anunciadas para a efetivação de nosso estudo: firmarmos uma abordagem historiográfica da presença do tema do futebol em nossa literatura e, por via de conseqüência, elaborarmos um ponto de vista particular através do qual este jogo possa ser reconhecido como sendo ele mesmo um elemento já intrínseco às formas pelas quais a nossa literatura incursiona pelo âmbito geral da cultura brasileira. Isso quer dizer que a própria leitura dos textos coligidos nos levou à necessidade de criarmos categorias explicativas com as quais pudéssemos comprovar, ao menos analiticamente, uma alvissareira constatação: a clara impressão de que, talvez motivada pela centralidade do tema do futebol na cultura brasileira, a nossa literatura já elaborou um conjunto de operações modelizantes, através da contribuição conjunta, sucessiva e pessoal dos seus mais distintos escritores, com as quais construiu um tipo específico de peça literária: o conto brasileiro de futebol. Não se diga o conto de futebol no geral, mas, precisamente, o conto brasileiro de futebol, significando isto uma peculiar formalização estética de um tema cuja efetivação literária só é possível graças a dimensão estruturante desse jogo no âmbito específico da nossa mentalidade e formação cultural. Junto a isto elencaremos, também, através das mesmas categorias operacionais de leitura, as diferentes maneiras com as quais a representação literária do futebol, nas nossas letras, contempla a vasta gama de aspectos sob os quais se apresentam as questões sempre históricas da nossa formação, cultura e existência social. Nesse sentido, a reunião dos textos foi feita tendo em vista uma representatividade nacional da produção literária do gênero de histórias curtas sobre o assunto verificada em todo o País. Com esse intento é que ao fim e ao cabo das pesquisas, elaboramos e apresentamos, no item seguinte deste trabalho, o que denominamos de “Guia de leitura do tema do futebol no conto ficcional brasileiro”, composto de dados informativos e analíticos sobre cada peça literária coligida, considerada na sua individualidade estética e artistica, mas, também, como não poderia deixar de ser, na sua relação com a obra de cada um dos seus autores, assim como devidamente inserida – para demonstrar a sua função de elemento cultural de representação –, no contexto geral da sua formalização enquanto artefato artistico. A dificuldade de se chegar a uma amostragem verdadeiramente nacional da produção literária do conto sobre o tema do futebol no Brasil será aqui explicitada para que se possa compreender os percalços da sua busca sem que, no entanto, se invalide a sua efetivação. A primeira questão posta por nós, nesse caso, diz respeito aos critérios que deveriam nortear o mapeamento de tal produção: se consideraríamos apenas os textos 161 publicados em livro ou se, por exemplo, acolheríamos as produções veiculadas em outros meios; e em tais casos, se aceitas todas estas produções, que critério seguro garantiria a abrangência territorial da origem do material, principalmente levando-se em conta a precariedade de meios imposta pela diversidade regional do Brasil, um país sabidamente extenso e composto por 26 estados e um distrito federal. Analisando todas essas e mais outras dificuldades do empreendimento em questão, chegamos, por fim, ao estabelecimento daquele que nos parecia ser, ao menos, o critério mais seguro para podermos dar legitimidade acadêmica à amostragem de uma produção artistica que precisávamos – ou queríamos – chamar de nacional. Daí é que resolvemos, para isso, solicitar os serviços das instituições que tratam da produção, distribuição e armazenamento de tudo o que é publicado em livro, no Brasil, para conhecimento público. Inicialmente fomos à Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e solicitamos o catálogo completo de todo o acervo literário do assunto futebol, constante daquela instituição. Em seguida, nos dirigimos à Câmara Brasileira do Livro, em São Paulo, órgão responsável pela catalogação de toda publicação em livro no país, e solicitamos o índice desses catálogos com entrada também no assunto futebol. Para cruzarmos dados e reforçarmos a abrangência da nossa amostra, contamos ainda com os préstimos da Liga Brasileira de Editores-LIBRE, instituição que reúne as editoras de pequeno porte espalhadas por todo o território brasileiro e que nos forneceu seu catálogo de publicações sobre o tema requerido. Por último, fechamos a pesquisa com a ajuda do SNEL, Sindicato Nacional dos Editores de Livro, com sede no Rio de Janeiro, que também nos forneceu dados importantes sobre as publicações feitas no país sobre o tema do futebol. Definido esse critério básico de escolha, contudo, não fechamos os olhos para as sugestões e indicações de textos feitas por colegas de trabalho, pesquisadores afins ou amigos com inserção e larga experiência no meio literario brasileiro, formando, assim, uma espécie de rede social de pesquisa que nos possibilitou se não fecharmos com precisão o cerco em busca da abrangência amostral requerida, pelo menos chegarmos muito próximos daquilo que poderemos considerar hoje, seguramente, uma válida amostragem panorâmica de toda a produção literária brasileira sobre o futebol em materia de histórias curtas. Foi sobre toda essa produção literária, portanto, que de forma extensiva (considerando-a na sua horizontalidade representativa tanto estética quanto historicamente dada), procedemos a nossa leitura crítica – com carater pessoal – a princípio mapeadora do estabelecimento do tema do futebol no conto ficcional brasileiro, tarefa que redundou, em termos práticos, no já citado, “Guia de leitura do tema do futebol no conto ficcional brasileiro”, parte constitutiva essencial desse trabalho. 162 Entretanto, como a nossa proposta geral de pesquisa não se assentava em princípios apenas historiográficos – embora julgásssemos também imprescindível tal especto do nosso estudo, dada a grave lacuna do mapeamento exploratório desse tema em nossas letras –, empreendemos também uma leitura verticalizante do assunto, uma análise intensiva e particularizante de aspectos dessa produção que a nosso ver pretende debater, pela via ficcional, questões prementes e irrevogavelmente presentes na relação do tema do futebol (considerando a sua história e a sua prática social) com os diversos veios formadores da cultura brasileira em geral, considerando dentre eles a própria ação modelizante, em termos da formação de visões de mundo, da própria literatura como arte de caráter verdadeiramente social. Nesse sentido é que escolhemos alguns textos – dentre todo o conjunto de peças coligidas – para analisá-los sob o prisma desse segundo enfoque, que resume a nossa preocupação de flagar os meios pelos quais a nossa literatura, no seu modo operativo geral, enfrenta o debate das questões ingentes do brasileiro através de suas distintas e peculiares formas de representação artistica por meio da palavra. Para isso foi necessário erigirmos, por conta própria – e conscientemente enfrentando o risco de errarmos em meio a iniciativas de caráter teoricamente propositivas –, algumas categorias operativas de leitura que nos possibilitassem enfrentar produtivamente o nosso objeto (ou objetivo) de estudo sem que caíssemos, literalmente, na simples constatação das meras qualidades evidentes de sua existência empírica , uma vez que não há, na ampla abordagem crítica da literatura brasileira, nenhuma – ou quase nenhuma – preocupação precedente que diga respeito ao estabelecimento das bases sobre as quais o tema do futebol se inseriu (ou vem se inserindo) gradativamente, em nossas letras, como um fato social, estético e culturalmente representativo. Assim é que chegamos, por fim, ao estudo crítico – no sentido evidentemente propedêutico do termo – que exporemos a seguir. Com o fito de formularmos o conceito e a validade das nossas categorias analíticas de leitura, deve ficar claro que procuramos compreender a literatura aqui na sua estreita pertinência e correlação com a história social sobre a qual ela se assenta, isto é, entendida essa arte (a literatura) como um espaço simbólico de criação de sentidos na cultura que tem o mérito peculiar de registrar as feições dos tempos e de preservar a respectiva representação dos seus costumes a par de uma determinada estrutura social dada, a qual, não por acaso, é tomada como fonte produtora dos seus temas e modos próprios de efetivação estética. Dito isto, explicitaremos, agora, como definimos as nossas categorias operativas de leitura. 163 O futebol é sabidamente um jogo entranhado na vida brasileira. Isso já demonstramos; isso já dissemos e isso foi precisamente o que constatamos mais efetivamente após a leitura extensiva e intensiva que fizemos de toda a produção literária brasileira que buscou glosar esse esporte como tema na sua modalidade específica do conto de ficção. Tal fato cultural apresentou-se aos nosso olhos de maneira cristalina e insofismável. Queremos dizer com isso que o jogo de bola aos pés, cuja trajetória em nossa história cultural procuramos explicitar um pouco atrás, a partir de sua efetivação por meio do concurso mútuo do campo do jornalismo com o da literatura, já se firmou como mote especulativo de abrangência e legitimidade tais que os autores brasileiros de ficção têm facilmente como justificar, com a eficácia própria dos seus trabalhos literários, o investimento direcional que essa produção tem feito no assunto. Tal motivo literário é hoje – podemos dizer junto com o que dizem os próprios textos lidos – um meio riquíssimo (dentre outros já canônicos e estabelecidos) atraves do qual a nossa arte literária vem eficazmente discutindo a condição humana específica do homem brasileiro, considerado na sua vinculação a uma cultura e ambiente próprios. Assim é que, isolado o homem por trás da bola, como queria conceber Nelson Rodrigues, ou percebido na sua relação visceral com esta, como tentam apanhá-lo na condição de jogador outros tantos autores, a motivação especulativa do futebol tem gradativamente se firmado em nossa literatura como uma demanda geral a que não escapa nenhum olhar atento de escritor verdadeiramente imbuído de propósitos vocacionais. Assim é que também, considerando o narrador como instância estrutural organizadora por execelência das narrativas e, portanto, responsável por articular modos de captar o ambiente e propor a ação dos fatos narrados de forma a configurar a sua significação estética, [e, neste mesmo movimento, pressupondo a existência de uma homologia entre o fenômeno do jogo (tomado como tema) e a sua forma de representação (a modalidade do conto de futebol), que se realiza quase sempre através de uma tensão entre a função lúdica (do próprio jogo) e a função instrumental – de organização e funcionamento da sociedade] –, propomos uma hipótese explicativa da constituição, operação, funcionamento e estruturação narrativa do conto de futebol, no Brasil, na sua relação com o assunto objeto do seu próprio tema assim como com a totalidade social que lhe serve de fonte. A idéia é compreendermos este esporte como fenômeno constitutivo dessa mesma totalidade social e, ao mesmo tempo, também, como objeto e meio eficazes de representação estética a ela concernente, considerada a gama facetada dos seus mais diferentes aspectos. Aspectos estes que constituirão, por seu turno – devido ao amplo horizonte e diversidade de indicência cultural tanto no âmbito individual quanto coletivo do espectro social –, os 164 parâmetros de análise dos textos sobre os quais aplicaremos as nossas categorias de leitura já referidas. Observado o que já foi dito, nos parece teoricamente válida, portanto, a distribuição dos contos literários coligidos na pesquisa por entre as seguintes categorias tipológicas de configuração, que a seguir explicaremos. Contos de demanda intrínseca. Pertencem a esta categoria aqueles textos que encerram um tipo de investimento ficcional em que se tenta debater, analisar, demonstrar ou meramente flagrar a condição humana, no seu todo ou em algum aspecto dela, por meio de suas narrativas, a partir da função que o homem exerce dentro do próprio campo temático do texto, neste caso, o campo100 do futebol. Contos de demanda extrínseca. Essa categoria tipológica reúne contos em que se resumem os investimentos ficcionais por onde se tenta flagrar, debater, analisar, demonstrar ou meramente constatar a condição humana, no seu todo ou por algum aspecto dela ou a ela relacionado, a partir da função que o homem exerce fora do campo temático do texto e que, por alguma razão – quase sempre configurando o próprio argumento do seu entrecho – a ele se refere para servir como elemento da exposição narrativa. Aqui, o futebol entra como pretexto e não como tema direto do texto ficcional. Contos de demanda lingüística híbrida. Compõem essa categoria as narrativas que se estruturam a partir do concurso de linguagens ligadas às formas de representação da história e constituição do próprio jogo de futebol: o rádio, o jornalismo, a televisão, a literatura, a publicidade etc. Nestes casos, essas linguagens – que se articulam sob o domínio retórico da linguagem literária, formando com ela uma espécie de hibridização lingüística – entram como elemento da narrativa por uma necessidade intrínseca (estrutural) ao próprio tema e são essenciais ao entendimento do conteúdo profundo do texto. Para fundamentar nossa hipótese interpretativa dos textos analisados – acima exposta na forma dessas três categorias de leitura – nos apoiamos na formulação que o critico e estudioso da literatura, Lucien Goldamann, propôs para a gênese da obra narrativa, no seu livro Sociologia do romance (GOLDMANN, 1976), em que, baseado em proposições dos teóricos da literatura, Georg Lukács (Teoria do romance) e René Girard (Mensonge romantique et vérité Romanesque), propõe, numa abordagem genético-estrutural do romance moderno, segundo a classificação do crítico Alfredo Bosi (BOSI, 1990), a existência de certas homologias entre a estrutura da obra literária e a estrutura social, e até mesmo grupal, em que 100 Novamente, a expressão aqui deve ser entendida na acepção em que é utilizada pela conceituação de campo social, feita por Pierre Bourdieu, já explicada à nota 24 do primeiro capítulo deste trabalho. Cf. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p. 59-74. 165 se inserem os seus autores. O fundamento dessa proposta é a existência inevitável de uma tensão estrutural entre o escritor e a sociedade da qual faz parte. Em termos literários, com efeito, tal oposição entre essas duas instâncias se efetiva graças ao recurso da criação da figura do “herói problemático” por meio do qual o romancista mimetiza algo que é, segundo Goldman, o fundo comum de toda a literatura ocidental nos últimos dois séculos: a existência radical de uma tensão entre o indivíduo e as estruturas “degradadas” vigentes na sociedade em que atua, isto é, estruturas incapazes de fazer atuar os valores que a própria sociedade prega: liberdade, justiça, amor, fraternidade, igualdade geral de direitos etc. Portanto, a escolha do fator tensão para orientar essa nossa proposição de leitura dos contos de futebol na literatura brasileira se autojustifica por ser esse elemento um dado existencial primário e que, segundo Alfredo Bosi – crítico que também o utilizou, por exemplo, como critério fundamentador da sua leitura sobre a produção ficcional romanesca dos anos de 1930 e 1940 no Brasil –, tem a vantagem de se apresentar também como dado fundamental do “relacionamento” do autor com o mundo objetivo, “de que depende, e com o mundo estético, que lhe é dado construir” segundo suas próprias palavras (BOSI, 1990, p. 441), as quais entendemos como uma inferência de sua parte quanto à repercussão desse fato também na instância do narrador, como inevitavelmente uma figura derivada da configuração autoral. Sendo assim, como o gênero do conto, no geral, não se diferencia do romance em relação a este aspecto da sua estruturação enquanto forma de representação das questões do homem em sociedade, julgamos pertinente aplicar também tal proposição de leitura à análise dos textos que escolhemos para estudo, apenas com a ressalva de lembrarmos que tal proposta foi por nós redimensionada para centrarmos foco na instância do narrador ao invés da do personagem (seja ele herói ou anti-herói), acrescentando-lhe apenas o dado novo do tema do jogo como elemento também a ela intrínseco e estruturante. 4.1 As demandas intrínsecas: obras exemplares O jogo de futebol se estrutura como fato social e cultural no Brasil através, evidentemente, da atuação prática de todos os seus elementos intrínsecos constituintes, ou seja, os jogadores (e as funções que cumprem dentro e fora do campo); os clubes (com os times que os representam para os seus sócios e torcedores); os próprios torcedores (na expressão comovente de suas paixões pelos clubes e participação decisiva na própria festa de 166 competição que o jogo produz); a arbitragem (e o papel primordial que exercem os árbitros na administração da justiça e cumprimento da regras do jogo); os dirigentes (e suas interferências diretas no próprio ordenamento concreto do universo específico desse esporte); as instituições do Estado (na ação regulamentadora, fiscalizadora e preventiva das funções e disfunções da prática esportiva como lazer ou profissão) e a imprensa (no seu papel dinamizador, articulador e difusor da informação social que configura o campo esportivo). Quanto a isso – com referência a toda essa gama de elementos e aspectos que o informam enquanto matéria cultural –, demonstramos já como historicamente o tema do futebol foi se firmando em nossa cultura letrada como um assunto relevante a ponto de ir paulatinamente se constituindo num dos motivos centrais da nossa “conversa social”. Inicialmente, através do jornalismo, campo de conhecimento em que se ancorou para ganhar o espaço público e adentrar, já num patamar em que se transformou em objeto de preocupação estética, a nobre esfera da arte. Posteriormente, então, através da literatura mesmo, já nesse momento sobre o qual explicitamos um pouco atrás toda uma plataforma teórico-descritiva sob a qual o tema se reconfigurou e ganhou autonomia e centralidade na vida cultural do nosso País. É em cima desse segundo momento, portanto, que procederemos, agora, a leitura do assunto do futebol como temática literária. Iniciaremos com a sua efetividade prática transitando do registro jornalístico – através da crônica – para a sua abordagem propriamente literária, já devidamente apropriada pela forma do conto de ficção. Tomamos como exemplificação desse fato de escrita, o trabalho do jornalista e escritor paulista, Daniel Piza (ver pág. 294), do qual escolhemos um texto, intitulado Golpe de vista (PIZA, 2006, p. 27- 37), que nos servirá de exemplo demonstrativo do tratamento literário do futebol em suas demandas intrínsecas, o que melhor ficará explicado à medida que for progredindo a nossa leitura do tema em outras peças literárias. O conto em questão, que retrata ficcionalmente uma batalha particular que está prestes a acontecer entre um atacante e um zagueiro adversário durante uma partida de futebol que pode decidir um campeonato para uma das partes, intenta demonstrar, pelas vias labirínticas da ficção – embora o tecido textual não contenha o intrincamento necessário a estes casos – o quanto se repelem, mas também se complementam, as forças de criação e de destruição, ambas representadas aqui pelas figuras do jogador que defende e do que tem a incumbência de atacar, no emaranhado tabuleiro do jogo de futebol. O atacante chama-se Roberto e é um daqueles jogadores que decide o jogo, de quem se espera tudo e que, por isso mesmo, merece toda a atenção do time adversário além de, dependendo da importância da partida, receber sempre a marcação especial de um 167 zagueiro a acompanhar todos os seus passos em campo. Enfim: a encarnação das forças proativas e definidoras na lógica do jogo da bola aos pés. O zagueiro Vanildo, por seu lado, apresentado na narrativa como um ex-camisa 10 que passou a jogar na zaga com bons resultados (no futebol o camisa 10 é o signo máximo das forças de criação das jogadas), é o próprio símbolo da superação na vida pessoal: “Seu Amarildo não acreditava que o filho pudesse ser titular de um time grande já aos 19 anos. A vergonha passou a ser o orgulho da família” (PIZA, 2006, p. 29-30). O zagueiro, enfim, pela boa fase por que passa na carreira e como portador da simbologia da mudança de foco na vida pessoal e profissional (de criador tornou-se um defensor de sucesso), é a figuração valorativa da dialética criar/destruir, uma constante estrutural presente tanto no futebol quanto na própria vida das pessoas. Temos aqui, portanto, como base estrutural do conto, a configuração feita pelo narrador de como estes dois campos opostos, a defesa e o ataque (também uma das bases estruturantes do jogo que lhe serve de tema) pode servir de mote para a encenação literária da reversibilidade de situações típicas do jogo – e também da vida em geral – que simultaneamente se opõem e se complementam. O problema, a lamentar nesse caso – e é por isso que usamos esse texto como exemplo em nossa leitura – é que um tema tão instigante quanto esse não tenha encontrado no jornalista Daniel Piza – neste caso, no plano da fabulação ficcional criada por ele – um autor à altura da sua oportuna e, mais do que isso, necessária, representação literária. Em vez disso, o conto é vazado num texto artisticamente infértil que revela a figura de um narrador mais afeito ao âmbito jornalístico do que literário. Esse traço contraproducente da sua narrativa é tanto uma constante que pode ser demonstrado com qualquer de seus fragmentos. Vejamos essa caracterização do atacante Roberto, feita a certa altura pelo narrador onisciente, aquele que penetra até nos pensamentos dos seus personagens: “[...] O que mais o espantava era a combinação de velocidade com habilidade. Ele vem com a bola escondida, não dá nem para dar um toquinho de bico. Ele pode sair para qualquer lugar. Domina, dribla e chuta com os dois pés. E o bicho é tão rápido e ágil que é difícil segurar. Com espaço, então, humilha a gente” (PIZA, 2006, p. 33). Com uma pequena variação, esse conteúdo da descrição acima parece ser uma síntese de trechos retirados de crônicas jornalísticas escritas pelo mesmo autor 101 – sobre a 101 As crônicas citadas possuem, respectivamente, os seguintes títulos: “A ginga do meteoro”; “A convulsão e salvação da mídia”; “De glórias e infortúnios” e “Ronaldo 100%”. In: ALMEIDA, Miguel de (Org). A vez da 168 figura real do jogador Ronaldo, o fenômeno, que transpostas sem um tratamento literário adequado para o âmbito da ficção, soa ineficaz e anódino, para não dizer inócuo. Comparemos os textos, agora citando-os no registro jornalístico em três diferentes momentos das suas crônicas: [...] Este é o segredo do seu futebol: ele faz ginga em alta velocidade; o jogo de cintura que os dribladores demonstram com a bola parada, ele demonstra com ela correndo. Varia o arranque de acordo com a situação presente e com a futura, antevendo a jogada (PIZA, “A ginga do meteoro”, in ALMEIDA, 2004a, p. 18). [...] O fato é que Ronaldo representou uma novidade para o futebol mundial. Seu estilo combina a artimanha sul-americana com a articulação européia, o futebol-arte e o futebol-força, a imprevisibilidade do drible com a velocidade da tática (PIZA, “Ronaldo 100%”, in ALMEIDA, 2004a, p. 34) [...] E o mais relevante: ele pode sair para qualquer um dos lados, porque não só domina e chuta com a perna esquerda, mas também conduz e dribla com ela. Raros jogadores fazem isso. Pelé fazia (idem, ibidem, p. 34). Dá para constatar pelos exemplos – e são tantos ao longo do conto –, que esta narrativa sobre futebol (que se pretende ficcional, diga-se de passagem) levada a cabo por Daniel Piza peca muito por ser excessivamente tributária da sua experiência como jornalista. Daí porque a utilizamos como exemplo aqui de uma situação de transição. Daí porque, também, a sua previsibilidade de entrecho; o seu tom morno ao invés de quente, mais apropriado ao conto; o seu rosário de situações comuns do jogo retratadas de forma também comum para o registro artístico; o seu clima de relato literário forçado, que pode ser demonstrado, por exemplo, com esse fragmento, a título de arremate de tudo o que está acima estipulado: “Desta vez, não. Vanildo via sempre seu nome na escalação dos ‘craques da semana’ na página 2 do Lance!. Na TV já tinha gente pedindo seu nome para a reserva de Juan e Lúcio na seleção. Tinha até feito três gols de cabeça, em escanteios. E nenhuma expulsão no campeonato inteiro! [...] Ele se sentia como o ‘novo Gamarrra’, justamente como um comentarista da Globo o tinha chamado na transmissão do jogo anterior. ‘Só que você é mais alto e mais forte que o Gamarra’, disse o pai, Amarildo, na noite depois do jogo. Vanildo riu para dentro” (PIZA, 2006, p. 30-31). Ao invés da linguagem de sugestão – tanto em nível de léxico quanto de semântica –, sempre bem vinda ao campo literário em oposição ao âmbito marcadamente referencial do jornalismo, para citar apenas um dos traços negativos que repontam no trecho citado, temos aí a escolha inoportuna de um registro em que a objetividade se sobrepõe à subjetividade quando a idéia é justamente revelar o estado interior do zagueiro, no momento da confrontação decisiva com o seu opositor atacante. Até a escolha de um narrador bola: crônicas e contos do imaginário esportivo brasileiro. Ilustrações Eduardo Burato, Werner Shulz. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2004, p. 15-37. 169 onisciente para o caso não funciona bem, uma vez que para retratar os estados subjetivos em momentos cruciais existem focalizações literárias mais adequadas. Mas fechemos a história em seu embate final. Antes, contudo, para não ficarmos apenas em seus aspectos ineficientes enquanto literatura de ficção, louvemos um detalhe do seu conteúdo, aquele em que a representação literária se irmana com uma das boas representações de caráter simbólico do futebol. Um momento raro em que alguma novidade literária surge no texto, através do pensamento do personagem zagueiro, revelado pelo narrador: “[...] Para ele, futebol é batalha. Está cheio de expressões como vencer, lutar, derrubar, bater, atirar, dar uma bomba. Uma vez tinha lido o artigo de um cronista que dizia que futebol é como fazer sexo, por expressões como enfiar, penetrar etc. em que a menina é a bola e marcar um gol é como gozar dentro” (PIZA, 2006, p. 35). No demais, o conto é previsível em tudo. Até no seu desfecho final, quando “o estádio prendeu a respiração. Roberto se preparou para acertar a bola com a chapa do pé e mandá-la no canto. Nesse momento, Vanildo veio voando como um míssil e dividiu a bola com Roberto. Crack! O barulho ecoou no silêncio do estádio” (idem, ibidem, p. 37) e... Impossível o leitor não pressentir que aí, neste momento final, quebrou-se o encanto do texto junto com a perna do jogador. Para demonstrar o contrário, a manutenção (ao tempo de leitura de toda a narrativa) do encanto do texto – encanto que perdura tanto mais a literariedade do seu conteúdo se afirma na forma de sua transposição para o patamar estético –, tomemos, agora, este conto de Plínio Marcos – ver pág 344 –, intitulado O Suborno (MARCOS in COSTA, 2002, p. 22-26), uma típica narrativa de situação conforme caracterização do crítico literário Alfredo Bosi para aquelas histórias em que o trabalho ficcional “tende a cumprir-se na visada intensa de uma situação, real ou imaginária, para a qual convergem signos de pessoas e de ações e um discurso que os amarra” (BOSI, 1997, p. 8). A sua leitura aqui tem o propósito de explicitar o peculiar modus operandi da representação literária quando intrinsecamente ligada à própria forma estruturante do jogo de futebol, assim como exemplificar sob que base se dá a tematização da figura do jogador considerado tanto na sua condição de indivíduo (de pessoa) como na circunstância de ator social (ser coletivo), simultaneamente. Este é, pois, o caso dessa narrativa em que avulta o seu personagem central: um jogador de futebol experiente e já veterano, que está disputando a segunda divisão do futebol brasileiro e que por se ver imerso em um episódio de suborno, é obrigado a não marcar nenhum gol na partida final do campeonato da série que disputa, quando é levado a cobrar um pênalti marcado aos 40 minutos do segundo tempo por um juiz também suspeito de dirigir o 170 resultado da partida. Drama de consciência, reavaliação da escala pessoal de valores que orientou toda a sua carreira até então e o enfrentamento de dilemas éticos são os elementos que compõem as ocorrências sobre as quais se erige esta estória curta em que os recursos estilísticos da repetição, reiteração e redundância retórica – a figurar linguisticamente a intensidade gradativa do drama interior do personagem protagonista –, dão o tom da performance enunciativa de um narrador onisciente e elucidativo que, também, a partir de uma situação angular, dimensiona toda a história. É precisamente por operar uma focalização de forte apelo retórico-formal que o efeito de sentido desse conto, como diria Julio Cortàzar, se situa justamente na instância precisa da sua narratividade. Portanto, deve-se destacar, a propósito, o modo como o narrador constrói seu relato apoiado em situações-chaves que, uma vez superpostas, compõem uma espécie de painel humano em que a interioridade do indivíduo é contraposta à exterioridade do seu campo de intervenção social, no caso, o universo nem sempre lúdico do futebol. Neste sentido, é extremamente elucidativo da condição particular vivenciada na história pelo seu personagem principal, a narrativa ir captando aos poucos – saindo da focalização situacional geral para a singularização dos eventos repercutindo na pessoa – os momentos decisivos do jogo (a partida de futebol) redefinindo os instantes também decisivos da vida do jogador. Talento e atitude, atitude e torpeza, torpeza mais sordidez, altivez e fraqueza, fraqueza mais pusilanimidade, ascensão e decadência... Tudo isso aparece eficazmente dimensionado na história através de um discurso literário competente que os amarra, como diz Alfredo Bosi. Pois esta amarração é feita por meio de um poderoso nó ficcional (e por razões de verossimilhança, por que não dizer: fortemente experiencial) que o narrador vai apertando, apertando, na história, para o seu personagem protagonista ao mesmo tempo em que o vai desatando para nós, os leitores, em situações auto-explicativas que passamos a mostrar, comentando-as apenas quando necessário: “Zero a zero, zero a zero, a zero a zero, aos trinta, aos trinta e cinco, aos quarenta, aos quarenta da fase final, zero a zero aos quarenta minutos da fase final de um jogo de decisão de título, decisão de título da segunda divisão, da maldita segunda divisão, zero a zero, zero a zero, a zero a zero aos quarenta minutos, cinco para acabar, e a bola rolando, rolando, rolando e atrás dela músculos, nervos, sangue de vinte e dois homens, de vinte e dois homens desesperados, jogando o jogo da vida ou da morte, vinte e dois homens rolando suas vidas atrás da bola, da bola miúda da segunda divisão, da segunda divisão do futebol do absurdo, vinte e dois absurdos profissionais dançam uma estranha dança que milhares de olhos seguem atentamente a cada lance, a cada lance, a cada lance” (MARCOS in COSTA, 2002, p. 22). 171 Aqui a história – já devidamente situada em seus elementos de tempo e de espaço – segue o seu curso decorrente e inclui, agora, um elemento de estrutura fundamental do jogo de futebol: a sua dimensão aparente (aquilo que se vê dentro das quatro linhas do campo) e o que se situa fora delas, isto é, fora do foco preferencial da essencialidade presumível desse esporte; o que está para além das quatro linhas, o homem por trás da bola, como diria Nelson Rodrigues. Note-se que tal elemento (as dimensões do que se vê e do que não se vê) é utilizado pelo narrador para imputar ao jogo (como, aliás, à existência como um todo) o seu caráter dúplice e paradoxal, assentado na equação essência versus aparência que fundamenta, fenomenologicamente, todo tipo de realidade. Aqui, por exemplo, e por intermédio do narrador, é feita uma ligação fundamental entre as realidades do futebol e da literatura, uma vez que ambas comportam a dimensão comum do fingir;102 do fazer de conta; do simular – como instância presente, constante e estrutural: “Mas, só vêem o que aparece, o lance. Os socos, os pontapés, as cotoveladas, as escarradas, as escarradas, as escarradas, que se dão uns na cara dos outros, e os socos e os pontapés e as cotoveladas, que se dão uns nos outros, ninguém vê, ou finge não ver” (idem, ibidem, p. 22). Justamente essa dimensão do fingir, no seu sentido literário, é que ancora a razão de ser dessa história de ficção, como veremos. Antes, porém, vamos aos seus fatos situacionais, já que dissemos antes que ela trata de um caso de suborno e de suas decorrências, por conseguinte. “Zero a zero, zero a zero, a zero a zero. Trinta, trinta e cinco, quarenta minutos. Quarenta minutos da fase final, faltando apenas cinco minutos para o jogo acabar. Apenas cinco. E o juiz apita, apita, apita. Um jogador fica caído na área do adversário. O juiz apita, apita, apita pênalti. “[...] E, ele, ele, o veterano em fim de carreira, ele que teve tantas glórias, ele é que tem que cobrar o pênalti. Um pênalti, um maldito pênalti, apitado por um juiz que ele sabe, ele que é veterano, ele que teve tantas glórias, ele que tem muita experiência sabe, sabe bem, sabe muito bem que o juiz apitou aquele maldito pênalti, apitou aos quarenta minutos finais de uma decisão de título, apitou pênalti, pênalti, faltando cinco minutos para o fim do jogo, porque estava pago, pago para influir no resultado” (MARCOS in COSTA, 2002, p. 23). 102 Note-se, nesse sentido, que etimologicamente é o verbo oriundo do latim, fingo/fingere=fingir, que vai originar o conceito de ficção (fictionem) em literatura. Daí, por exemplo, é que surge o conceito de ficcionalidade da obra literária, algo que pode ser explicado teoricamente a partir de pelo menos dois fatores: a intencionalidade do autor ou a existência tácita de um “contrato” entre autor e leitor em aceitar determinado texto como sendo de ficção; de “fingimento” de algo real. É nesta perspectiva contratualista, portanto, assim entendiada a questão, que “vigora um acordo consensualmente baseado na chamada ‘suspensão voluntária da descrença’ e orientado no sentido de encarar como culturalmente pertinente e socialmente aceitável o jogo da ficção”, como parecer ser o caso apontado no texto em análise. Cf. REIS, Carlos.; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1988. (Fundamentos; n. 29), p. 43-44. 172 O caso de suborno que é, digamos, o leitmotif dessa narrativa, assume, na história, uma dimensão que o coloca como um componente quase inevitável na configuração do futebol como um segmento da indústria do lazer e espetáculos públicos. É assim, pelo menos, que ele entra na consciência e na vida do seu personagem central: “O maldito pênalti. Ele, ele, ninguém além dele poderia naquele time bater aquele pênalti, ele o veterano, ele o craque que teve tantas glórias, ele o mais experiente. Ele que por ser já um veterano, ele, justamente ele, que por ser o mais experiente, recebeu dinheiro, muito dinheiro, dinheiro para não marcar nem aquele gol, nem nenhum outro gol naquele jogo, naquele maldito jogo da decisão de título da maldita segunda divisão do maldito futebol do absurdo” (MARCOS in COSTA, 2002, p. 24). É, então, a partir daí que este fato – o suborno que se impregna como uma mancha maldita na consciência do personagem –, toma a centralidade da narrativa, determinando-lhe seu movimento interno, seu ritmo e conteúdo, apresentando como termômetro pendular o universo interior móvel e auto-reflexivo da sua personagem-modelo de que mostraremos dois trechos como exemplo, através da onisciência funcional do narrador em sua terceridade enunciativa: ora como detentor propriamente dito da palavra narrativa (primeiro caso), ora como ordenador textual das palavras do subornador, no segundo caso. 1º caso: “Sentiu vontade de esganar aquele maldito subornador, sentiu vontade de lhe arrancar a língua, sentiu vontade de fazer o repelente abutre imaginador de repelências engolir cada uma das malditas notas do dinheiro do maldito suborno. Mas, vacilou, pensou, pensou, pensou, se devia escutar o repelente abutre a expor a repelência, pegar o dinheiro e entregar para o seu clube. E enquanto ele pensava, pensava, pensava, continha o ódio, continha, e o repelente abutre falava, falava, falava, mansamente, como quem não quer ganhar, como quem não quer perder” (MARCOS in COSTA, 2002, p. 24). 2º caso: “ – Seu nome, seu grande nome, seu retrato no jornal, sua bola, a sua grande bola, acabou, você acabou, você acabou, acabou, acabou nessa triste bola miúda de segunda divisão. [...] Seu nome, seu grande nome, seu retrato no jornal, sua bola grande, tudo, tudo, tudo, reduzido a essa bola miúda da segunda divisão. E as pernas, suas pernas, as suas pernas? Como estão suas pernas? Comidas pela bola, com os ossos, os nervos, os músculos estilhaçados, assim estão suas pernas. E só resta para essas suas pernas esgotadas essa bola miúda da segunda divisão. E até quando resta? Até quando? E o que você tem de seu? Está rico? Pode parar de correr atrás da bola miúda? Eu te dou dinheiro. Dinheiro. Dinheiro. Dinheiro” (idem, ibidem, p. 24-25). Explicitada a situação do suborno impingida ao personagem central da narrativa (um dos motivos estruturantes – mas não o único – do seu recorte temático), o tecido ficcional se empenha desta feita a explorar, agora, o que vem a ser, no contexto de elaboração formal 173 do seu propósito estético, a dimensão, digamos, conceitual da sua matéria de fatura. Isto é, a auto-reflexão do fingir como um ato intrinsecamente ligado ao jogo, seja este considerado na sua dimensão esportiva (no caso aqui do futebol onde muitas vezes jogar é também fingir que se joga), seja ele considerado na sua dimensão de linguagem (caso típico do seu registro literário em que a instância da ficcionalidade se sustenta justamente no ato de fingir, fazer de conta, recriar a realidade). A esse propósito, inferimos que este conto de Plínio Marcos sobre futebol, a exemplo do seu próprio objeto temático, encena também as duas dimensões estruturais da realidade das coisas: a aparente (aquilo que vimos nos fenômenos à primeira vista; neste caso, o tratar-se ficcionalmente das coisas do futebol) e a essencial: o debruçar-se – enquanto matéria ficcional e lingüística – sobre a própria ontologia da literatura, sendo o ato de fingir o seu sustentáculo constituinte. Vejamos como essa dimensão do fingir ergue e sustenta o conto nos momentos principais e elucidativos do seu entrecho final: “Até ali, tinha sido fácil, fácil de enganar técnico, diretores, companheiros, torcida. Até os quarenta minutos finais daquele jogo, ele, ele enganou, não precisou de muito para enganar, na verdade ele enganava também o repelente abutre imaginador de repelências. Enganava a todos, a todos, a todos. Correr, há muito tempo não corria, lançar certo há muito não lançava, enervar os meninos há muito tempo ele já fazia, reclamando de todos para esconder seus erros, nas divididas há muito já não ia. E era isso que o repelente abutre imaginador de repelências queria que ele fizesse, pagava para ele fazer e era o que ele há muito vinha fazendo” (MARCOS in COSTA, 2002, p. 25). Observe-se que o ato de fingir aí, nesse trecho citado acima, está diretamente relacionado ao jogo de futebol em si como uma estratégia do jogador. Um recurso para mantê-lo jogando, a despeito de sua já decadente condição para isso. No trecho abaixo, entretanto, o personagem abandona o fingimento e toma uma atitude contrária à lógica desse recurso: “Ele ganhou dinheiro para não marcar aquele gol. Ele, ele, ele... ele pensa... Vê e revê toda a sua vida... Toda a sua vida... vida rolando atrás da bola... rolando atrás de títulos... Ele... ele... ele... atrás dele os adversários xingando, rogando praga... [...] E ele decide. Vai marcar, vai marcar, vai marcar, acabar a carreira com um título, um título de segunda divisão, mas um título. “[...] O juiz apita, ele vai para a bola, bate nela com toda força, fecha os olhos, ouve o berreiro, o berreiro, o berreiro da torcida, vaias, vaias, vaias, ele abre os olhos. Os adversários se abraçam, ele errou. Seus companheiros choram, ele errou. Chora o técnico, choram os diretores, ele errou. Mas não queria errar. Não queria. Ele chora. Chora. Chora. Chora.103 103 Em mais um caso de antecipação, ou “premonição” operada pelo registro ficcional em literatura, vale observar, por oportuno, que esse segmento do texto lembra muito um fato real, ocorrido no futebol brasileiro no ano de 2008. Trata-se dos acontecimentos envolvendo a partida final da Taça Guanabara, o 1º turno do campeonato carioca, ocorrida no dia 24/02/2008. Naquele jogo, o Botafogo desabou literalmente em campo quando Marcelo de Lima Henrique, árbitro da partida, marcou um pênalti no jogador flamenguista, Fábio 174 “Zero a zero, zero a zero, a zero a zero, acabou o jogo da decisão do título da maldita segunda divisão do maldito futebol do absurdo. No frio, escuro, bolorento vestiário, ele, ele, o veterano, o craque que já teve tantas glórias, o mais experiente do time, chora, e ninguém consola, ninguém. Mas, o repelente abutre imaginador de repelências se aproxima e fala, fala, fala, mansamente como quem não tem nada a ganhar, pacientemente como quem não tem nada a perder” (MARCOS in COSTA, 2002, p. 25). Por fim, a questão do fingimento retorna ao texto por obra do narrador que a redireciona para o campo propriamente literário, encerrando o conto: “ – Você chora, chora, chora como um artista. Te vendo chorar assim até eu, até eu, chego a pensar que você errou sem querer” (idem, ibidem, p. 25). Fingimento sobre fingimento, eis o ensinamento do conto. Uma bela lição sobre o quanto jogar é simular, trapacear, enganar, dissimular, decidir, acertar, errar... enfim. Assim como na literatura, assim como na vida.104 Um outro conto – não de situação, mas de atmosfera; de clima 105 – pode ser relacionado a este de Plínio Marcos no sentido de que também serve de exemplificação de como o futebol pode entrar na elaboração de uma peça de ficção como um elemento também estrutural e fundamental à própria concepção do texto. Trata-se de Encanto de futebol Luciano, num lance em que Ferreiro, do Botafogo, quase deixou o zagueiro rubro-negro sem camisa, algo que desestabilizou completamente os jogadores botafoguenses. No fim do jogo em que o Flamengo venceu por 2 a 1, uma cena inusitada, que, embora em outra direção de sentido, lembra em muito a cena vista acima na ficção: todos os jogadores do Botafogo foram para a entrevista coletiva chorando, liderados pelo técnico, Cuca, e pelo presidente do clube, Bebeto de Freitas, também se derramando em prantos. Depois do ocorrido, a torcida do Flamengo, para tripudiar com a rival do Botafogo, criou uma satírica paródia da música com que os botafoguenses incentivam seu time nas arquibancadas e que ficou assim: a letra original dos botafoguenses diz: “E ninguém cala/Esse nosso amor/E é por isso/Que eu canto assim/É por ti, Fogo”. Já a versão dos torcedores do Flamengo diz: “E ninguém calaaaaa/Esse chororôoô/Chora o presidente/Chora o time todo/Chora o torcedoooooor!”. 104 É importante observar que o futebol é um jogo que não está submetido de todo à lógica do fingimento. Exemplo trágico e enfático disso foi o caso dos jogadores do FC Start, um combinado de jogadores ucranianos pertencentes aos times do Dínamo e do Lokomotiv de Kiev, que na segunda Guerra Mundial, em 1942, foram presos pelas forças de Hitler e obrigados a jogarem (com a sugestão de perderem o jogo) contra oficiais da força aérea alemã. Por se terem negado a isso, quatro jogadores foram executados e transformaram-se, por isso, em símbolo de união nacional da República Soviética naquela conjuntura. Cf. WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 52- 53. 105 Reportamo-nos aqui às noções de “clima” e “atmosfera”, as quais alguns teóricos do gênero conto apontam serem as características predominantes de algumas narrativas, na tentativa didática de empreenderem uma tipologia geral e classificatória para o gênero. Ressalvando que mesmo dentro de qualquer classificação nenhum conto apresenta-se de forma pura, ou seja, todo conto apresenta múltiplas características, porém com predominância de uma que lhe dá sua localização em determinada categoria, utilizaremos a tipologia do crítico literário Antônio Carlos Honfeldt, para apoiarmos a definição de conto de clima com a qual denominamos a narrativa em análise. O conto de atmosfera ou de clima, segundo este autor, estrutura-se geralmente em torno de um ou mais personagens e, através de sua psicologia, apresenta, em torno deles, um clima ou atmosfera marcantes, como parece ser o caso em questão. Nesse sentido, ver também a denominação criada pelo teórico ingles, Carl Henry Grabo, para este tipo de narrativa a qual ele chama de histórias de efeitos emocionais. Cf. HONFELDT, Antônio Carlos. Conto Contemporâneo Brasileiro, Porto Alegre: Mercado Aberto,1988, e GRABO, Carl Henry. The Art of the Short-story. New York, Chicago, Boston: C. Scribner’s sons, 1913. 175 (SCHLEE, 1997, p. 179-192), uma narrativa de autoria do escritor, jornalista, tradutor, desenhista e professor universitário, Aldyr Garcia Schlee, – ver pág 265 –, em que a envolvente atmosfera que cria é o que vale como resultado estético final. Um típico conto de atmosfera, então. Não daquelas atmosferas criadas pela força da ficção para envolver o leitor (ou a sua consciência) em estados psicológicos por assim dizer heterodoxos, cambiáveis, mesmo chocantes, irreversíveis, diluidores, enfim; configuradores de situações em que o eu psíquico se debate ante o sem-sentido dos seus próprios sentidos. Ao contrário, a atmosfera aqui é daquele tipo criado pela memória para justamente recuperar um sentido essencial ao equilíbrio ontológico do homem face às vicissitudes que enfrenta na vida com a passagem cruel e avassaladora do tempo. O conto, assim, encerra a narrativa de um adulto sobre a maior paixão da sua vida, descoberta ainda na infância, e na infância vivida com a sua maior força e intensidade. Não uma paixão qualquer, como adverte o narrador, “mas uma paixão excepcional, obsessiva e doentia, abrangente, permanente” (SCHLEE, 1997, p. 181) com os ingredientes todos de uma verdadeira paixão amorosa: suores, sabores, choros, dores e desilusões com seus começos, meio e fim, inevitáveis. A saber: a paixão pelo futebol, metonimicamente representado aqui pela descoberta do primeiro amor a um clube, o Esporte Clube Mauá de Jaguarão, Rio Grande do Sul, Brasil. Através da criação de um clima embaçado em que se misturam componentes da realidade com elementos da imaginação do narrador quando ainda criança, o texto desfila imagens do mundo do futebol captadas e distribuídas ao leitor como epifanias que fundaram e ainda hoje fundam a relação da criança brasileira com o mundo, captaneada que é essa relação, no nosso universo cultural particular, por uma de suas maiores metáforas: a bola. E aqui também não era uma bola qualquer, mas um troféu magnífico. “E foi sempre o único troféu que o Esporte Clube de Mauá jamais teve”. Todo o entrecho narrativo se desenrola, destarte, nas reminiscências de fatos grandiosos para a imaginação de uma criança, expostos quarenta anos depois da criação: “O Mauá nasceu quando mandaram buscar o terno de camisetas na casa London Paris, em Montevidéu. [...] Ter ido pela mão do tio buscar as camisetas, ter visto abrirem o pacote, ter permissão para tocar em cada uma, e – por fim – esperar pacientemente que a avó prendesse o distintivo, teria sido tudo o que eu poderia desejar, se não houvesse acompanhado todos esses acontecimentos vendo Friedenreich, El Tigre, com a nova camisa, matando um irmão a balaços e sendo, finalmente, morto num acidente, na revolução de 32” (SCHLEE, 1997, p. 183-184). Do desenvolvimento: 176 “A cancha era a duas quadras dali. Toda a gente vinha para as portas e janelas das casas nos ver passar. Isso dava um misto de orgulho e vergonha que aumentava a tensão daquele momento. [...] No campo, Domingos não fez sua pose clássica enquanto Walter saltava para soquear a pelota na cabeça de Piola, como na primeira capa colorida do “Esporte Ilustrado” (idem, ibidem, p. 185). E do fim do clube adorado que emprestava sentido pleno a uma infância vivida em desenvolvimento lúdico e poético, como se pode antever no trecho abaixo: “Nunca pude entender como terminou aquele que foi para mim o mais importante de todos os times. Aquele que me fez perder o sono em intermináveis noites de sábado, que me fez sentir pela primeira vez angústia no almoço e dor no jantar. Aquele em que a mágica da camisa tricolor transformaria todos os jogadores em craques, todas as jogadas em lances excepcionais e todos os maus resultados em renovadas esperanças de melhor sorte” (SCHLEE, 1997, p. 188). Pois bem. Não estão aí todos os componentes de uma verdadeira e intensíssima paixão amorosa? Pois não falta a esse conto bem concebido de Aldyr Garcia Schlee – escritor que ao lado de Edilberto Coutinho – ver pág 298-303 – tem o futebol talvez como o principal motivo de sua literatura –, a outra de suas características fundamentais: o expressar sempre situações do homem em trânsito, fronteiriço, sempre indeciso na sua ontologia formatada por duas culturas diferentes mas radicalmente próximas, circunstâncias talvez advindas da sua condição de brasileiro criado numa cidade encravada entre o Brasil e o Uruguai. E mais ainda: nascido de uma família formada por patrícios das duas nações. Talvez seja por isso mesmo que a forma memorialística desta narrativa venha ser o repositório natural de registros de fatos e emoções que visam, em última instância, o equilíbrio de um ser (aqui transfigurado em um personagem-narrador adulto contando a sua condição de criança frente ao mundo mágico e encantado do futebol – Encanto de futebol!) que ora pende para um lado, ora para o outro, no palmilhar de um topos cultural formado e formador de um ethos individual articulado por um trânsito de informações díspares e de mão dupla. “Era uma época em que se estava mais pra lá do que pra cá, quer dizer, em cima do Uruguai, com o rádio recém-começando na sua impotência, com os jornais brasileiros chegando devagar, e uma baita influência do que acontecia em Montevidéu. [...] Antes, muito antes do Flamengo de Adilson, Zizinho, Pirilo, Perácio e Vevé, houve o Nacional ou o Peñarol, o San Lorenzo ou o Boca” (SCHLEE, 1997, p. 182-183), salienta o narrador ao chamar à atenção o fato de a sua condição geográfica importar na formação do seu imaginário primordial. 177 Imaginário esse que, diga-se de passagem, pesa muito na urdidura do entrecho narrativo criado por Garcia Schlee para comunicar um mundo quase onírico em que álbuns de figurinhas de jogadores de futebol (quem não teve o seu?) são o seu suporte; sua base estrutural e, como efeito de sentido criado pela articulação poética de suas partes literalmente cambiáveis, a sua verdadeira justificação estética. Isto é: a estória sendo formada por quadros- figuras preenchidos pela memória. Do narrador e, por empatia presumível, do leitor-torcedor também. Nesse quadro, ou verdadeiro álbum de figuras humanas reais ou imaginárias, é digna de nota ainda a existência – na própria composição literária da narrativa em questão – da forma simples do conto popular; ou das lendas puras que formam o mito. É o mito, como sabemos, por suas características arquetípicas e transtemporais, que formam as diferentes culturas que se comunicam através do transporte mútuo de seus elementos comuns. Lembre- se a este propósito, o caso-exemplo de “Friedenreich, El Tigre, matando um irmão a balaços e sendo, finalmente, morto num acidente, na revolução de 32”, trazido no início deste texto. Esse mesmo mitema é apresentado, por exemplo, numa crônica de futebol do escritor Ivan Angelo, intitulada O homem do Maracanã (ANGELO, 2004, p. 39-45), onde num andamento dissertativo mais longo, a microestória é retomada pelo jornalista justamente no terceiro item da sua classificação, digamos, sociológica, dos estádios de futebol: “No estádio catedral, aos domingos, futebol é culto, mitos, lenda. Clube de futebol é como religião: mesmo quem ‘não pratica’ tem uma. Uma religião pré-litúrgica. Como sacerdotes dessa religião primitiva, oral, velhos que nem sequer foram aos antigos estádios-capelas da era pré-Maracanã contam casos ao pé do fogo, histórias que se arredondaram rolando por aí como pedras de rio e chegaram até nós redondinhas, acabadas, como aquela do centroavante (eles dizem “centerfor”) de chute superpotente e nome supercomplicado pronunciado Frederrache, que tinha um irmão goleiro superfera que jogava em outro time, e contam como esse Frederrache tinha gozado o irmão antes do jogo, dizendo que ia marcar tantos gols, e contam como o irmão goleiro disse que ali não passava nenhum, como o tal Frederrache foi ficando irado no jogo porque o irmão fera pegava todas, até que marcaram um pênalti e ele gritou ‘é meu, esse é meu’, e contam como ajeitou a bola deliciado olhando o fera e dizendo ‘agora é que eu quero ver’, contam como o irmão goleiro bateu no peito e gritou sério ‘daqui não passa’, e contam como o tal Frederrache tomou distância e soltou o maior tiro de sua vida bem no meio do gol, como o irmão goleiro encaixou a bola bala e todo o estádio ouviu aquele tuummm no peito dele, contam como ele se ajoelhou e ficou ali um tempão, aplaudido pelas duas torcidas, antes que percebessem que ele estava morto, e diz a lenda que o irmão nunca mais jogou. Futebol? É lenda” (ÂNGELO in ALMEIDA, 2004, p. 40-41). É. Como se sabe, quem conta um conto aumenta um ponto, e foi isso que fez Ivan Ângelo ao enriquecer ainda mais esta história curta de Aldyr Garcia Schlee no que ela tem de situação exemplar do que denominamos no primeiro capítulo deste estudo de ética do 178 acontecimento ou moral ingênua e sentimento do trágico (ver p. 70), que, a partir das teorizações sobre as formas simples do conto feitas por André Joles, dizíamos que o liga diretamente ao fenômeno do futebol, quer por sua idéia de criação espontânea do povo, quer mesmo por seus elementos constitutivos comuns. Com o propósito de comprovação do que está dito, faça-se uma leitura comparada dos dois textos em apreço 106 e se verá o grau de similaridade na apreensão, por parte dos dois autores, do mesmo fenômeno retido pela memória. O que difere aí é a maneira singular com que cada um expõe ao leitor, em forma lingüística, a mesma matéria de fatura, mostrando ambos, na prática do texto, que a relação do futebol com a literatura é mesmo uma questão de gêneros. No primeiro caso, tem-se um conto literário de forma artística e, no segundo, o que se poderia chamar de uma crônica quase-conto, no seu andamento marcadamente dissertativo. A outra nota fica por conta do tom às vezes ternamente poético que é dado a alguns momentos revividos pela memória adulta do narrador, momentos esses que parecem renascerem íntegros, inteiros, autênticos, puros, pela maneira como a fôrma poética capta a sua vivência num tempo pretérito. Tempo este, por sua vez, recomposto na memória – e entregue ao leitor no tempo presente do texto – através do movimento íntimo e interior com que a imaginação infantil de então recobria a realidade transfigurada por um animismo de efeito lírico. Vejam-se, neste sentido, estes trechos em que o mundo real do futebol se movimenta ao sabor da imaginação do narrador-criança, com efeito sublinhado por grifo nosso: “Leônidas chegava ao vestiário e tirava os coturnos, desabotoava a farda militar para vestir a camisa amarela. Stabile e Ballesteros balaqueavam em castelhano. Os outros ficavam alinhados ouvindo as instruções. Agora sim! E Gradim, o velhor Gradim, o grande Gradim botava a camisa do nosso quadro” (SCHLEE, 1997, p. 192). *** “As pessoas falavam baixo e pela metade, contando segredo. O vento zunia e o gato brasino estava pesteado e minha irmã tinha piolho na cabeça” (idem, ibidem, p. 192). No primeiro segmento, temos a observar a maneira como a criança vai colorindo com elementos do mundo real a sua fantasia particular; o seu universo fictício em que o mundo do futebol dos álbuns de figurinhas não tem a menor diferença do mundo real deste, em que, por questões óbvias, jogador algum poderia lhe ouvir as instruções. Aqui não; no mundo autêntico, puro, afetivamente íntegro, criado pela criança movida por uma 106 Referimo-nos, claro, ao conto, “Encanto de futebol”. Cf. SCHLEE, Aldyr Garcia. Contos de futebol. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997, p. 179-192, e à crônica de Ivan Ângelo, “O homem do Maracanã”. Cf. ALMEIDA, Miguel de. Organizador. A vez da bola: crônicas e contos do imaginário esportivo brasileiro. Ilustrações Eduardo Burato, Werner Shulz. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2004, p. 39-45. 179 contemplação produtivamente poética, os seus ídolos reais podem perfeitamente receber suas instruções de jogo, num jogo em que realidade e ficção fazem parte da mesma partida. Jogo esse, como já se observou, que é retomado aqui através de uma narração a que não lhe falta elementos da verdadeira linguagem poética. E o intuito é claro: não fazer dissipar-se sem poesia o que poesia era. As úteis assonâncias e aliterações da frase quase-verso: “Agora sim! E Gradim, o velhor Gradim, o grande Gradim botava a camisa do nosso quadro”, são um rico exemplo disso. E para fechar essa história, veja-se este outro segmento do texto que tem a função de figurar a radical intimidade (quase isolamento do mundo mesmo) vivida pela criança nestes momentos quase oníricos em que a sua imaginação comanda o jogo de enfrentamento do real com o imaginado. As observações do mundo lá fora, feitas pelo narrador, são úteis para figurar aquele distanciamento existencial, aquele alheamento circunstancial com que a criança vivencia seu universo imaginado, seu “mundo à parte” que dá sentido pleno a sua existência neste mundo. Tanto que o narrador retoma o trecho, agora ligeiramente modificado pelas naturais “falhas da memória”, para encerrar a narrativa de modo exemplar: “Mas o último jogo não houve. Naquele domingo o vestiário permaneceu fechado. No Asylo, a corda estava vazia e não se abriu a sede. Todos comeram calados, no almoço. Alguns, depois, foram sestear. Vovó não acendeu a vela ante o oratório. E meu tio saiu para a rua sem palavras. “Nunca perguntei o que havia acontecido. “O vento zunia e o gato brasino estava pesteado e minha irmã tinha piolho. As pessoas falavam baixo, contando segredos” (idem, ibidem, p. 192). Bom, mas para continuarmos tratando das demandas intrínsecas do universo do jogo de futebol quando apanhado como tema pelo jogo estético da linguagem literária, veremos, nesta seqüência operativa de leitura, o caso-exemplo de um dos seus componentes mais interessantes e enigmáticos, no tratamento ficcional dado ao elemento jogador através da figura do goleiro, aquele elemento que no jogo é o único que pode pegar a bola com as mãos a despeito de toda a gama de dificuldades e embaraços que potencialmente pesa sobre a sua condição de partícipe diferenciado desse esporte. A própria sugestão do título da narrativa em questão, Homem vestido de negro (CAZZARÉ in OLIVIERE et. al, 2006, p. 77-86), de autoria do escritor Lourenço Cazzaré – ver pág 327 – antecipa algumas das novidades com que o autor procurou dimensionar o seu viés temático. Como nem sempre costuma acontecer nestes casos – situações em que a função do goleiro é mais estigmatizada do que valorizada 107–, essa história de futebol, que tem como 107 “Na histórica mitologia do futebol, a figura do goleiro é sempre vista como um misto de herói e anti-herói, talvez por causa da sua posição e função diferenciadas dentro do próprio jogo. Personagem marcado já de 180 objeto de sua narrativa o futebol de salão e como foco o talento e a figura de um goleiro virtuose na sua função debaixo das traves –, verdadeiramente inova no encaminhamento diretivo do seu conteúdo. Desta feita, a pessoa do goleiro é heroicizada utilizando para isso, o narrador, um recurso técnico-narrativo adequado: o solilóquio, tipo de diálogo sempre útil por meio do qual uma personagem pode expressar para outra, com a verossimilhança da sinceridade testemunhada, as suas impressões sobre as coisas e os seres do mundo. Isso pode ser visto já no início do conto quando a história principia com a resposta a uma pergunta virtualmente feita pelo interlocutor do narrador que, a partir daí, toma a palavra numa conversa em primeira pessoa: “A melhor partida? Sei lá! Foram tantas” (CAZZARÉ in OLIVIERE et. al, 2006, p. 79). E a prosa continua, em ritmo de papo informal com o relato que segue, em seus momentos principais: “Ah, tem uma! Aquela foi inesquecível: jogamos contra uns caras que trabalhavam num matadouro. Uma noite infernal. “Foi assim” (idem, ibidem, p. 79). Com esse gancho dêitico, o narrador continua o relato esmerando-se em apresentar as circunstâncias de tempo e de espaço em que a tal partida se desenrolara, numa tarde-noite de muito calor em certo dia, no ginásio de uma tal cidade. Os pormenores da atmosfera pesada do clima físico e sua influência sobre a fisiologia humana são realçados ao máximo como pretexto funcional para que se apresente ao leitor as características daquela variante do jogo de futebol, o futebol de salão, ou futsal, como a modalidade é hoje mais conhecida: nascimento (filho bastardo do Rúgbi, uma vez que sua prerrogativa – única entre os onze jogadores de um time – de poder pegar a bola com as mãos advém da época da separação histórica entre o futebol e o Rúgbi, por volta de 1871 quando é fundada a Rugby Football Union iglesa, consolidando a separação entre os dois esportes, e criada a sua função até então inexistente no futebol), o goleiro carrega sobre si uma simbologia complexa e ambígua quanto a sua importância dentro do jogo. Por ser o primeiro atacante de um time e o último homem de sua defesa, aquele que não pode falhar em hipótese alguma, sob pena de cair sobre os seus ombros o peso das eventuais derrotas, o goleiro é cercado também na sua representação literária desse misto de heroísmo e anti-heroísmo. Talvez por causa disso, dessa sua função e presença singulares dentro do campo, a sua figura tenha capturado a atenção e simpatia de muitos artistas para essa sua condição funcional no jogo de futebol. Exemplo disso são os escritores Alberto Camus e Conan Doyle, que não só escreveram sobre esse personagem mas também foram goleiros em épocas de suas vidas; o líder revolucionário Ernesto Che Guevara, idem; o cantor popular espanhol, Julio Iglesias, idem, e até o Papa João Paulo II também foi goleiro na sua fase de estudante. A propósito, leia-se esse trecho de uma de suas várias caracterizações, feitas pelo jornalista Paulo Guilherme, que escreveu um interessante livro sobre esse enigmático personagem do mundo do futebol: “Ser goleiro é estar pronto para viajar do céu ao inferno em ida-e-volta, várias e várias vezes, todas sem escalas. Passar o jogo todo fazendo defesas espetaculares e colocar tudo a perder ao sofrer um gol no minuto final que signifique a derrota de sua equipe. Ou então sair de campo como herói, carregado nos ombros ao defender um pênalti”. Cf. GUILHERME, Paulo. Goleiros: heróis e anti-heróis da camisa 1. São Paulo: Alameda, 2006, p. 13. 181 “Ah, sim, claro, estou falando aqui é de futebol de salão e não desse negócio sem graça que é o futebol de campo. Estou falando de um jogo que é disputado numa quadra de cimento liso por caras que correm feito loucos, que trombam e caem a todo instante porque o campo é pequeno e a velocidade deles é tremenda. Caem e levantam no mesmo instante. Não tem aquela moleza do futebol de campo, com o sujeito se rebolando na grama só para engabelar os juizes” (CAZZARÉ in OLIVIERE et. al, 2006, p. 80). E a comparação entre os dois tipos de jogo do futebol não pára por aí. Prossegue com o intuito claro de supervalorizar o futsal em oposição ao congênere dos gramados – como, aliás, costumam fazer muitos dos amantes do jogo de futebol em geral – que, com efeito, quaisquer que sejam suas condições de prática; se na rua ou nos estádios, nas praias ou nas quadras fechadas, é o mesmo, no geral, para os goleiros. É aqui, pois, que o narrador introduz habilmente, sugestivamente, sorrateiramente, na conversa, o tema da sua história: “De repente, o Magro me bateu no ombro e disse: “– Eu é que não queria estar na tua pele: vestir camiseta de goleiro com este baita calor!” (idem, ibidem, p. 80). Pronto, está dada a deixa para que a figura do goleiro entre na narrativa como foco principal. E mais: com toda a sua carga de personagem um tanto marginal; mescla de herói e anti-herói, um tanto síntese ambígua e polissêmica (por isso, um tanto polêmica) de salvador e de vilão em meio à plataforma estrutural-comunicativa do jogo de futebol. Para demonstrar a sua capacidade criativa, no que tange à construção de estórias curtas de cunho ficcional tematizando o jogo da bola, o escritor Lourenço Cazarré aproveita- se da estrutura do conto – sempre curto, otimizado ao máximo em seus recursos expressivos – e com apenas dois diálogos sintetiza o universo funcional sempre controverso do goleiro; tanto no contexto do jogo como no da trama, simultaneamente: “– Jogar no gol é moleza – continuou o magro. – Goleiro fica o tempo todo parado. “– Parado não quer dizer descansado – retruquei”. E arremata (ele, o narrador) com essa: “Não se podia dar muita conversa ao magro. Ele vivia sempre tentando arranjar uma discussão”. Segue agora, depois de um papo de vestiário entre os colegas de time, o momento em que o Magro, companheiro de clube, coloca em cena o personagem central do conto: “– O pior para nós é o goleiro deles...” (CAZZARÉ in OLIVIERE et. al, 2006, p. 81) 108 Após o esclarecimento de quem se tratava, o narrador é taxativo: 108 As duas citações imediatamente anteriores a essa são da mesma página 81. 182 “– Claro – eu disse. – Não vai dá pra nós. Ninguém mete gol nele” (idem, ibidem, p. 82). A narrativa, então, muda de tom, vazada agora num viés mais intimista, quase confessional. É o momento em que o relato torna-se memorialístico, com as reminiscências infantis do personagem-narrador moldando com uma espécie de ternura apaixonada um retrato pouco comum da figura dos goleiros em narrativas de futebol: “Quando eu era pequeno, nas noites de sábado, meu pai me levava para assistir às partidas do campeonato de futebol de salão da cidade. No início eu não prestava muita atenção nos jogos porque, a todo instante, meus olhos se voltavam para os homens debaixo das traves. Eu era fascinado pelos goleiros. Torcia por eles, vibrava quando um deles, qualquer um, fazia uma defesa. Achava meio estúpido aquilo de correr atrás da bola. O legal era ficar debaixo do gol, esperando o ataque”, registra com saudade. (idem, ibidem, p. 82). Uma digressão que não retarda o texto,109 mas, muito ao contrário, serve para adiantar o ponto nodal da trama, a configuração prosoprográfica do seu personagem nuclear é utilizada para além disso, para encenar uma representação social muito comumente colada às emblemáticas e fascinantes figuras dos goleiros de futebol: “Dentre os goleiros, o meu preferido era o Catofe. Não só porque ele era o melhor, e ele era de longe o melhor, mas principalmente porque era o mais elegante. Sempre impecável. Alto, magro, só se vestia de negro: tênis, meias, luvas, calção e camiseta. Até as joelheiras eram negras! Estava sempre bem penteado: o cabelo loiro besuntado de brilhantina, repartido no lado por uma risca perfeita” (CAZZARÉ in OLIVIERE et. al, 2006, p. 82). A digressão então se encerra com uma chave retórica típica (daquelas que vimos na crônica estilizada de Nelson Rodrigues – ver pág. 140-163: “Está bem, volto ao jogo que lhe contava” (CAZZARÉ in OLIVIERE et. al, 2006, p. 82). E a história caminha para o seu final com o narrador explicando, antes, como fora a partida: o entrosamento antigo do seu time que de nada servira, embora tenham jogado uma barbaridade; as qualidades do seu principal jogador, o Boca, que chutava muito bem etc., e uma conjectura que lhe viera à cabeça sobre a filosofia pragmática desse esporte. “No futebol de salão, ganha quem erra menos. O sujeito não pode chegar um milésimo de segundo atrasado. Todo erro é fatal. É jogo de paciência, de espera. Pra ganhar é preciso acertar quando o adversário erra. É como na vida, o sujeito só sobe quando o outro falseia a passada” (idem, ibidem, p. 83). 109 Em termos de teoria da narrativa, ou narratologia, fala-se em digressão “sempre que a dinâmica da narrativa é interrompida para que o narrador formule asserções, comentários ou reflexões normalmente de teor genérico e transcendendo o concreto dos eventos relatados; por isso a digressão corresponde, em princípio, a uma suspensão momentânea da velocidade narrativa adotada”. Cf. REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1988. (Fundamentos; n. 29), p. 237. Note-se, entretanto, que neste caso do texto em questão, a digressão, embora usada no mesmo sentido exposto acima, intencionalmente não retarda o ritmo da narrativa, algo que funciona ali como importante recurso estilístico. 183 Em momento algum, portanto, o tal grande goleiro falseou a passada porque o time do narrador desta história não venceu aquele jogo. “E por que isso?", se pergunta, a certa altura. “Ora, por causa daquele goleiro, o goleiro do time do matadouro de porcos, o alemão velho, o que chamavam Catofe”, responde a si mesmo, para logo em seguida confessar ao seu interlocutor oculto: “Quando terminou a partida, saí correndo do meu gol, comovido. Atravessei a quadra, abracei o Catofe pelos joelhos e levantei ele. Ele ficou meio espantado com aquilo porque há muito tempo não tinha mais fãs. Mas, depois, passou a mão pelos meus cabelos e disse: “– Valeu Guri!” (idem, ibidem, p. 84). Isso porque o narrador registra que ele pegou todas. Que guarnecia o gol inteiro, porque sempre, com uma perna ou um braço, ele mudava a trajetória da bola, viesse ela de onde viesse. Enfim, que o goleiro fechou o gol. Essa, todavia – esse “Valeu guri”-, é a expressão-chave da história, o seu fecho de ouro, porque logo mais à frente, o narrador conclui, emocionado: “Como lhe disse, daquela época para cá, joguei centenas de partidas. Esqueço todas, nem contos os gols. Mas aquele zero a zero com os caras do matadouro não consigo esquecer. Até hoje eu ainda me lembro da leveza do corpo magro dele. Vejo o espanto nos olhos dele. Sinto o peso da mão dele, enluvada, na minha cabeça. Escuto a sua voz rouca me dizendo: “– Valeu, guri” (idem, ibidem, p. 83). Encerra-se aí essa história de goleiros, contada com uma visada memorialística e vazada numa estratégia de homenagem com a qual o registro literário vez por outra descortina a existência nem sempre adequadamente percebida ou valorizada dos seres e das coisas deste mundo. Este, com efeito, é o caso também de mais essa outra história de goleiros em que a condição humana (pessoal, social ou cultural) do seu personagem principal é repassada ficcionalmente através de uma atitude autoral ética e intelectualmente elogiável e comovente. Refiro-me à história curta intitulada, O goleiro do time (GARCIA in MATTOS, 2005, p. 93- 96), de autoria do escritor Edson Gabriel Garcia – ver pág. 304. Estória curta, curtíssima, de tonalidade lírica que se assenta na ambigüidade da situação feminina ante o mundo masculino do futebol e suas amplas adjacências. Ou seja, o mundo mesmo, o vasto mundo em que as mulheres são obrigadas a disputar com os homens em condições desiguais seus espaços de existência e realização. História que também localizamos entre aquela categoria analítica que 184 denominamos de demanda intrínseca e que tem a figura e a função do goleiro como personagens principais. Escrita na linguagem típica que patenteia as narrativas da chamada literatura infanto-juvenil, essa história se sustenta nos recursos da ambivalência e do ocultamento para literalmente revelar algumas situações vividas por Zeca e pelo time do seu novo bairro e da sua nova cidade, já que é justamente a mudança do lócus existencial do personagem que faz com que a sua condição de goleiro implique a sua condição de pessoa. Sendo assim, a história inicia com um narrador neutro em terceira pessoa observando que “quando Maria José mudou de casa, de bairro e de cidade, achou que seria a coisa mais triste do mundo” (idem, ibidem, p. 93) e que posteriormente essa sua expectativa não se confirmou. O texto segue enumerando justamente os ganhos na vida de Zeca experimentados com essa sua nova situação. Já se vê aí que a mistura dos nomes Maria José (a pessoa) e Zeca (o goleiro do time) é um investimento formal do narrador para com ele demarcar a condição agora dúplice do seu personagem em questão: a menina que se torna goleiro de um time de moleques de bairro e de cidades comuns. “Pouco tempo depois, Maria José ganhou duas coisas na nova cidade. Duas coisas deliciosas, na opinião dela: um apelido e uma posição no time de futebol dos meninos do bairro. O apelido era Zeca, que ela adorou, pois não suportava seu nome. A posição no time era de goleiro, que ela também adorou, porque assim não precisava ficar correndo atrás da bola nem dos meninos. A bola, pelo contrário, toda hora viria em sua direção” (GARCIA in MATTOS, 2005, p. 93). Conforme se percebe, com extrema habilidade e cuidadosa maestria o narrador fixa já aqui, no segundo parágrafo da sua história, aquilo que vai ser o seu tom corrente para por em cena o velho e ainda remanescente tabu da presença feminina no espaço do futebol. Vale dizer: a representação social da mulher que advém dos estereótipos de masculinização do feminino como estratégia de sua inserção num reduto ainda marcadamente masculino. E o signo da ambigüidade entra aqui como força simbólica inquestionável para dar eficácia literária ao tratamento dessa questão levado a efeito pelo contista Edson Gabriel Garcia. Afinal, por que razão Maria José teria gostado de ser Zeca? Por realmente não gostar do seu nome ou por razão de ocultamento de uma condição existencial que só o narrador conhece e que, por isso mesmo, prefere deixar nas entrelinhas de um meio sócio-cultural conservador nos costumes e nas classificações dos tipos sociais? E por que também Maria José teria gostado da posição de goleiro no time, uma vez que é essa função no jogo que faz com que para ela, que não precisava ficar correndo 185 atrás da bola nem dos meninos – ao contrário das outras meninas –, “a bola é que toda hora viria em sua direção”? Esta parece ser uma metaforização feita pelo narrador, ao nível da expressão textual, de um outro estereótipo do universo feminino que consiste na idéia de que a mulher, a verdadeira mulher, é que tem que ser conquistada para o mundo e não ao contrário. É toda essa problemática, pois, que parece fazer evoluir essa história de futebol contada por nosso Gabriel Garcia. Utilizando-se também do tempo do futebol como uma temporalidade útil às estruturas narrativas, um recurso eficientíssimo para fazer andar as ações da matéria narrada, o autor enumera mais dois ou três episódios elucidativos da discussão que propõe com sua história. E arremata o feito de uma forma exemplar para estes casos quase-fábulas que têm por trás uma moral construtiva a ensinar. Ressalvando para o leitor que ali “o tempo foi passando mais depressa que a corrida da bola de pé em pé”, numa citação às avessas do título de um livro justamente de antropologia do futebol, de autoria de Roberto Da Matta (“A bola corre mais que os homens”) (Da MATTA, 2006), o narrador cria uma daquelas situações limites em que a força dos fatos faz com que tudo se ilumine e as ambigüidades se desfaçam ante as ingentes necessidades das mudanças que se impõem numa nova realidade que se instaura. “Um dia, muitas vitórias depois, num jogo difícil, o juiz marcou pênalti contra o time de Zeca”, retoma a sua história o narrador. “Ela no gol, cara a cara com a bola e o jogador adversário. Só os dois e a bola. Um tinha a missão de marcar o gol; perder pênalti era imperdoável. O outro, quer dizer, a outra tinha a difícil tarefa de defender o pênalti” (GARCIA in MATTOS, 2005, p. 94-95). Na seqüência do episódio (a cobrança do pênalti) – e sem titubear, como faz funcionalmente o narrador com a frase – “O outro, quer dizer, a outra tinha a difícil tarefa de defender o pênalti”-, os companheiros de time de Zeca, depois que a bola bateu com tanta força no peito do goleiro que o jogou ao chão, correram todos para socorrê-la. E eis que se deparam com uma revelação: “– Ela é uma moça! – exclamaram todos” (idem, ibidem, p. 95). A partir daqui o narrador explica que depois desse jogo, ninguém apareceu mais para treinar nem para jogar. Parece que uma deliberação se impunha naquela turma de moleques, depois desse acontecido. “Poderia uma moça ser goleiro de um time de moleques?”, essa era a grande dúvida dos meninos e a questão que se impunha ao narrador. 186 Consta, entretanto, que duas semanas depois, um grupo de meninos do time foi até a casa da Zeca, levando um pacote para ela com os seguintes dizeres num bilhete que estava dentro: “Para o goleiro mais importante do mundo. Será nosso goleiro até o dia que quiser” (idem, ibidem, p. 95). Sim, a goleira Maria José, ou o goleiro Zeca, como queiram, defendeu o pênalti e de posse do blusão, a camisa nova de goleiro que ganhou da turma, foi para a frente do espelho do guarda-roupa e “achando-se o goleiro mais importante do mundo, decidiu que seria goleiro do time dos meninos até o fim do mundo” (idem, ibidem, p. 96). O gênero das entrelinhas do desfecho de tudo decida o leitor de que tipo é. Ou não decida nada, e estamos conversados, parece propor o narrador de mais esse conto da bola aos pés. Como já frisamos em momento anterior deste trabalho, o entrelaçamento das coisas do futebol com as coisas da vida, caso dessa história do goleiro Zeca (ou da goleira Maria José), é uma circunstância muito constante da representação do futebol como tema literário graças à condição desse jogo poder servir como uma ampla metáfora da própria existência humana em todas as suas vicissitudes. Neste sentido, portanto, em mais um caso ficcional envolvendo goleiros, um gol contra figurando um perturbador ato falho é que faz a correlação temática entre o jogo de futebol e o jogo da vida, nesse outro interessante conto composto pelo escritor paulista Aércio Consolin – ver pág. 257 –, adequadamente intitulado Jogo encoberto (CONSOLIN in MATTOS, 2005, p. 13-22). Narrado em primeira pessoa, marca textual dos encaminhamentos ficcionais de viés memorialístico, o texto apresenta, através de Zé Pedro, quarto-zagueiro de um time de amigos de uma cidadezinha do interior de São Paulo, um quadro psicológico que revive o remorso sentido por um personagem que admirava outro no plano do mundo do futebol, mas que teve que traí-lo no âmbito da vida prática, ao apaixonar-se pela namorada do amigo, e parece que correspondido. Com uma prosa segura e sem floreio algum, necessária a esta situação narrativa em que de logo o narrador conclui que “o jogo da bola é um e o da vida é outro”, e que “nessa época aprendi que é sempre possível ser leal nas disputas do futebol e que o mesmo não ocorre nas disputas da vida” (idem, ibidem, p. 15) repetindo, a sua maneira, a observação do escritor Albert Camus de que (“a maior parte de tudo que sei da vida aprendi jogando 187 futebol”),110 Aércio Consolin vai expondo paralelismos conceituais entre o futebol e a vida, para narrar o desconforto psicológico do zagueiro que por ironia do destino é obrigado a disputar dois jogos simultâneos num mesmo dia: o de futebol em que tem a função de auxiliar seu amigo goleiro, Severo, ajudando-o a evitar o objetivo do adversário que é o gol, e o outro da vida, em que transformado ele mesmo em adversário do goleiro amigo, está prestes a chegar ao objetivo principal de sua vida até então, isto é, conquistar definitivamente a namorada do companheiro por quem se apaixonara. Pronto, estão aí o achamento e a situação que no dizer de Alfredo Bosi estruturam uma estória curta quando comparada à narrativa mais longa, extensiva e horizontal do romance. Diz ele: “Se o romance é um trançado de eventos, o conto tende a cumprir-se na visada intensa de uma situação, real ou imaginária, para a qual convergem signos de pessoas e de ações e um discurso que os amarra”, conforme chave interpretativa que já antecipamos (BOSI, 1997, p. 8). Pois esse conto é justamente fincado no achamento de uma situação que torna seu entrecho francamente inventivo. Zé Pedro é um zagueiro que se define como limitado: “Eu não era mais que um jogador correto, postando-me à frente da zaga. O bom quarto zagueiro sabe sair jogando e eu não sabia, embora tivesse a sabedoria de logo soltar a bola, procurando quem cuidasse dela com maior competência” (CONSOLIN in MATTOS, 2005, p. 15-16). Já Severo, o goleiro, por seu lado, é definido pelo companheiro como um dos “cobras” da turma ao lado do meia Ciça: “O nome calhava à luva naquele rapaz bonito, o mais bonito de todos, vantagem que lhe garantia um sucesso com as garotas do qual não se aproveitava como achávamos que se podia aproveitar” (idem, ibidem, p. 14). E quanto as suas qualidades propriamente de goleiro, seu amigo Zé Pedro o tem como “ágil, destemido, guardião do espaço para onde se concretizavam vitórias e derrotas na posição maldita de goleiro, quase infalível, pisando o chão onde a relva não medrava” (idem, ibidem, p. 14). Alegórico, sugestivo, o discurso ficcional de Aércio Consolin vai amarrando uma trama em que o aleatório, como é típico num jogo de futebol, vai opondo o elemento reconhecido como superior (aqui, no plano individual, o goleiro Severo com seus excelentes atributos de homem e de jogador; e no plano coletivo, o time adversário, reconhecido por Zé Pedro como “um time melhor que o nosso”) ao elemento inferior, isto é, Zé Pedro em 110 Cf. FRANCO JUNIOR, Hilário. A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 166, e, MAURÍCIO, Ivan. Org. 90 minutos de sabedoria: a filosofia do futebol em frases inesquecíveis. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2002, p. 53. 188 comparação a Severo, e o time dos dois, que naquela partida decisiva de domingo tinha que se dobrar ao fato de que “a qualidade superior do adversário, impunha-se”. Mas o jogo da vida é um e o jogo de futebol é outro, como assevera o narrador quarto-zagueiro. E o que pode ser vantagem num campo pode ser desvantagem no outro. Observando, ao expor suas limitações de zagueiro, que era daqueles que não sabia sair jogando, mas que, mesmo assim, tinha a sabedoria de logo soltar a bola, procurando quem cuidasse dela com maior competência, o narrador sugere que no plano da vida, o zagueiro poderia ser melhor que o goleiro. O desfecho dessa sugestão narrativa é o que vai compor a situação estrutural do conto: um jogador que disputa dois jogos simultâneos diferentes, em tempos e espaços diferentes, contra adversários diferentes e com resultados finais diferentes. Repleto de representações típicas do mundo do futebol e que têm repercussões diretas no mundo da sociedade real, como a observação do narrador de que o futebol, para aquele grupo, abolia preconceitos sociais, ou a da passagem em que se unem, num só bloco narrativo, as qualidades do personagem Severo e a maldição da sua posição de goleiro, como a se firmar a idéia, recorrente no meio, de que os goleiros são uma espécie de anti-heróis (o primeiro jogador do ataque de um time e o último da sua defesa, daí não poder falhar jamais), este conto de Aércio Consolin está aqui porque firma-se entre as boas narrativas de estórias curtas sobre o futebol na literatura brasileira. Como exemplo do que está acima sugerido, deixemos ao leitor duas passagens do próprio texto. Um tanto longas, é verdade, mas operacionalmente úteis no que elas têm de conteúdo alegórico, sugestivo e representativo das situações que quase sempre ligam, num paralelismo impressionante, as coisas do futebol com as coisas da vida. *** “O futebol abolia preconceitos sociais. Ciça, o meia-esquerda, um escurinho, que durante a semana trabalhava duro como servente de pedreiro, era um portento, num quadradinho de grama fazia misérias, ninguém lhe tomava a bola. Chutava com a direita e esquerda e cabeceava bem, mesmo baixinho como era. Adivinhava os espaços por onde progrediam as jogadas. Comandava com gestos. Ele e Severo eram os cobras” (CONSOLIN in MATTOS, 2005, p. 14). *** “Severo no vôo onde o corpo se arqueava, seguindo a curva da bola, o admirável cálculo mental acompanhando a parábola que se arrematava em suas mãos, o couro trazido de encontro ao peito enquanto o corpo procedia à aterrissagem como se pousasse num tapete macio. Terminado o solo virtuoso, Severo erguia-se e olhava o campo à frente, o sol animando a silhueta no uniforme negro, àquele tempo a maldição dos goleiros se estampava também na roupa preta que vestiam. Severo raramente largava um rebote. Colocava-se sob as traves com perfeita intuição. Fechava os ângulos com um ou dois passos à frente, crescendo diante do atacante. Quando saía do gol para enfrentar o adversário, avançando livre com a bola nos pés, parecia adivinhar o ato alheio e a direção que o outro se derivaria, não permitindo 189 ser driblado e atirando-se com os braços compridos para apanhar a bola. Severo pairando acima do emaranhado de jogadores, saltando para segurar a bola vinda do escanteio e que ele arrebatava sobranceiro. “O jogo da bola é um e o da vida é outro” (CONSOLIN in MATTOS, 2005, p. 14- 15), conclui-se. Para encerrar a nossa leitura dos elementos intrínsecos do jogo de futebol e sua repercussão funcional como matéria ajustável às formas narrativas que, na literatura, configuram os temas e os motivos de fatura artística, que no nosso caso em análise caracterizamos genericamente por meio da categoria denominada “contos de demanda intrínseca”, ou seja, lembre-se: textos que encerram um tipo de investimento ficcional por meio do qual se tenta debater, analisar, demonstrar ou meramente flagrar a condição humana, no seu todo ou por algum aspecto dela, a partir da função que o homem (no caso, o personagem) exerce dentro do próprio campo temático do texto – o futebol –, vejamos agora o caso especial da efetivação de uma literatura vigorosa; uma composição ficcional em que o homem surge como motivo de força estética sob a mediação expressiva do assunto futebol no que ele tem de potencialmente mais representativo enquanto metáfora existencial traduzível em termos de linguagem verbal. Cito como peça de exemplo o conto, Jogar com os mortos (SANCHES NETO, 2006, p. 87-100), do escritor Miguel Sanches Neto – ver pág. 337 –, em que um narrador adulto, transfigurado num jogador de futebol de um time de adolescentes, conta a saga da criação e extinção do Combate Futebol Clube, uma equipe de meninos de bairro cuja trajetória inclui – à falta de uma bola para jogar – sessões de treinos com crânios humanos. Algumas representações básicas da história social da prática do futebol no Brasil são encenadas simbolicamente nesta narrativa que mescla nostalgia com memorialismo; lirismo intimista com realismo confessional; poesia de inspiração com prosa de registro. Enfim: boa literatura para boa crítica social através dos instrumentos da ficção. O início de tudo são as circunstâncias da criação e formação do time de futebol da turma de meninos que se conheciam na escola. A equipe surgira de um racha entre os garotos por causa da humilhação de que um deles foi vítima. Até chegar neste ponto, entretanto, o narrador em primeira pessoa faz um preâmbulo situacional e preparatório para expor as condições objetivas que explicarão, posteriormente, o caso do convívio dos atletas com os mortos: “Meu pai foi enterrado em um túmulo provisório, a gente não tinha condições de comprar um quando ele morreu, deixando a mãe endividada” (SANCHES NETO, 2006, p. 89), começa assim, em tom de desabafo, a história. 190 E o seu movimento segue indo do particular (o espaço privado: universo pessoal e familiar do personagem-narrador) para o geral, isto é, a inserção desta instância de ação mais singularizante de uma pessoa na trama, no âmbito de uma espacialidade pública maior em que os demais personagens se movem com propósitos e implicações sociais gerando efeitos multiplicadores. Assim, nos é informado que com o dinheiro da costura, a mãe do narrador, que era costureira profissional, pôde pagar por mês, na prefeitura, o terreno do pai, “e depois um conhecido fez de graça o túmulo, todo revestido com lajotinha vermelha, que a mãe encerava só na véspera de Finados, mas lavava todo domingo” (idem, ibidem). O andamento do texto corre em homologia com essas duas instâncias acima citadas (o particular e o geral da história) e fixa o primeiro desses momentos com uma conjectura do narrador, feita a partir de um diálogo com sua mãe, o que, diegeticamente, tem função dupla: fazer a transição espacial de uma instância a outra e, suplementarmente, antecipar uma das possíveis inferências gerais do seu entrecho, a saber: que o mundo social (tanto dos vivos quanto dos mortos), na sua versão de estruturação feita pela força do capital – como de resto, em todas as sociedades históricas –, é divido em classes sociais antagônicas e que varia conforme cada uma dessas classes o lugar, o papel e a importância de cada pessoa, dentro do seu contexto experiencial. “Quando o pai ainda não tinha túmulo próprio, eu não sabia pra onde os restos dele iriam se a mãe não comprasse o terreno. Perguntei a ela: “– Vou comprar o terreno – falou. “– Mas e quem não compra? O que fazem com o morto? “– Todo mundo compra. “Depois vi que a mãe estava mentindo” (SANCHES NETO, 2006, p. 90). Começa, então, agora, a história propriamente dita do Combate Futebol Clube. O próprio nome do clube, é bom ressaltar, é já índice lingüístico do comprometimento retórico do texto com certa atitude crítica do narrador em função do olhar ficcional com o qual observa a realidade objetiva das coisas e o futebol, neste contexto, enquanto um jogo e prática de interação social até bem pouco tempo visto como alienante, integra esta narrativa não somente como tema de apelo. Ele deve ser visto aqui também (com todas as potencialidades críticas que esse jogo contém) como elemento de negociação inter- classes por onde os poderes circulam e são mobilizados diversamente pelos diferentes sujeitos que os usam segundo seus interesses, numa apropriação móvel e reversível, de forma a ter alterada a sua posição na dinâmica social dos grupos. “Nosso time não tinha campo pra jogar e então Capitão arranjou emprestado o pasto de uma chácara no fundo do cemitério, porque, pelo regulamento, as equipes deviam ter 191 sede, com campo nas medidas oficiais, e também fornecer a bola” (SANCHES NETO, 2006, p. 90), esclarece o narrador, e já aí está dada a senha para as negociações que vão culminar com a criação do time e a sua participação vitoriosa no campeonato do bairro. Tudo isso, como já foi dito, impulsionado por causa de uma cena de humilhação, corolário eticamente condenável, e, portanto, inaceitável mesmo sendo parte do conflito cultural entre as classes sociais. Já se disse que o time surgira de uma briga. Deixemos então o narrador contar essa história: “Capitão jogava no Clube 14, o melhor da cidade, só de meninos ricos. Ele era pobre como a agente, o pai trabalhava como carroceiro e a mãe lavava roupa.111 Por ser um dos melhores jogadores, era aceito no campo, mas não participava das festinhas da turma, por falta de roupa. Foi esta a causa da confusão” (SANCHES NETO, 2006, p. 90). É dito em seguida que para jogar na equipe dos garotos ricos, cada jogador ganhava, além das chuteiras e dos meiões, duas peças da roupa que compunha o uniforme do clube. Esta vestimenta deveria estar sempre limpa e bem passada nos dias dos treinos e jogos. Registrando já, com sutileza retórica, o ascetismo e distinção de classe impostos como condição para se tomar parte no jogo dos ricos (jogo aqui no sentido de esporte: o futebol –, mas também no sentido de jogo social), acompanhemos o narrador com as suas observações nada ingênuas, do seu olhar ainda infantil sobre este mundo interessado dos adultos. “[...] Era bonito de ver Capitão, geralmente mal vestido, com o uniforme do 14. Parecia jogador de verdade. A gente nem imaginava naquela época que estaria com um time disputando o campeonato. Tudo porque resolveram humilhar nosso amigo. É que ele, por não ter outras, estava usando as camisas do uniforme pra sair. E elas ficaram desbotadas. As camisas dos outros jogadores continuavam novinhas, mas as dele se esgarçaram. Então o técnico brincou que com pobre é mesmo difícil de lidar, quer tirar vantagem em tudo. E falou que daria uma das camisas dos reservas, mas que ele não podia mais usar fora do campo. Todo mundo riu e ele jogou mal aquele treino” (idem, ibidem, p. 91). Não é necessário dizer que o narrador registra prontamente a reação a esse fato. A sua, por meio da palavra literária, e a da mãe do seu amigo Capitão: “[...] No outro dia, a mãe 111 É importante relembrar, nesse contexto da peça ficcional, a circunstância histórica de o futebol no Brasil, conforme já foi explicado, ter sido introduzido como esporte elitista e, por isso mesmo, ter servido por muito tempo como elemento comunicador da distinção de classes sociais ao opor pobres e ricos na prática do jogo. Nesse sentido, é oportuno lembrar aqui a figura histórica do jogador Artur Friedenreich, o primeiro grande craque do futebol brasileiro. Mulato de olhos verdes, era filho justamente de uma lavadeira, a descendente de escravos, Matilde [...] com o comerciante alemão, Oscar Friedenreich. O filho do casal, Artur Friedenreich, nasceu em São Paulo, em 18 de julho de 1892 e morreu na mesma cidade em 6 de setembro de 1969, aos 77 anos. Foi o primeiro grande ícone do futebol brasileiro de origem negra, graças à imposição do seu talento a um ambiente francamente hostil a pobres e negros. Na sua carreira, jogou nos principais clubes de sua época e foi um dos maiores artilheiros do futebol brasileiro, ostentando uma média de gols maior do que a de Pelé, em termos proporcionais, se firmando como um dos mais importantes jogadores da seleção brasileira em todos os tempos. Cf. COSTA, Alexandre da. O tigre do futebol: uma viagem nos tempos de Arthur Friedenreich. São Paulo: DBA Artes Gráficas, 1999. 192 dele foi ao clube devolver o uniforme, passado e cheirando a alecrim. Levou também a chuteira e as meias. O técnico não quis aceitar, ela apenas disse que não criara filho pra ser humilhado” (idem, ibidem, p. 91). Pronto, está dado o troco. Porém, em se tratando de futebol, a coisa não fica por aí porque como já foi devidamente explicado em capítulo anterior deste trabalho, este jogo não se resume ao que acontece apenas dentro das quatro linhas que demarcam o seu campo de estruturação regulamentar, indo muito mais além destes limites o seu sentido e significado últimos. Pois o narrador nos diz agora que, por causa do ocorrido, todos pensaram que o seu amigo Capitão ia ficar triste. “[...] Na outra semana, quando a agente estava andando pelos quintais em busca de fruta, ele falou: – Tá na hora de ter um time só nosso”. E acrescentou, taxativo, usando as palavras do narrador: “ – Um time que seja de combate” (idem, ibidem, p. 91). A palavra combate aí tem acepção especial para se captar a idéia geral desse conto magistral de Miguel Sanches Neto. Acepção que implica a literatura, na sua função humanizadora, de que nos fala o crítico literário Antônio Candido, mas também que implica o futebol, na sua condição, no caso do Brasil, de idioma comum que media tensões sociais, uma vez que é um jogo que se presta a muitas apropriações, conforme nos explica o historiador Leonardo Afonso de Miranda Pereira (ver pág. 61). Como jogadores que eram, todavia, os meninos do Combate Futebol Clube queriam mesmo era combater os seus adversários dentro do seu próprio campo: as quatro linhas dentro das quais se jogam o futebol. Para isso, tiveram que dar um jeito na criação de uma realidade que lhes fosse favorável em meio ao vazio existente das condições objetivas necessárias para se fundar um clube e participar de um campeonato de futebol, dado o cenário em que viviam. No contexto da trama, tiveram, pois, que negociar como puderam. “[...] O mais fácil foi arrumar a sede, na Chácara do italiano. Ele não cedeu de graça, e desconfio que Capitão nem queria. A gente teve que roçar o pasto tomado de mato graúdo. Todo dia, depois do almoço, a equipe descia pra chácara e trabalhava animada com a foice”, registra o narrador, reforçando que com esse trabalho conseguiram, além de limpar o sítio do italiano, construir o campo de jogo, um dos requisitos para o time participar do campeonato. “[...] e surgiu até uma placa de aço, onde estava escrito: VESTIÁRIO. Acho que foi afanada da escola. Mas ninguém comentou nada. Capitão pregou a placa na porta no dia em que acabamos de roçar o pasto”, arremata (SANCHES NETO, 2006, p. 91-92). O passo seguinte foi conseguir a bola. Aqui, nos depararemos com uma passagem que lembra a famosa assertiva do filósofo e pensador social, Karl Marx, segundo a qual os 193 mortos governam os vivos.112 Marx, no contexto em que formulou esta sentença, queria dizer que são os homens que constroem a sua própria história, mas não a fazem conforme seu livre- arbítrio. Fazem-na, contudo, pautados por circunstâncias e determinações herdadas do passado como, por exemplo, quando são obrigados a agir dentro dos parâmetros de determinado sistema econômico-social de produção e troca material em que estão inseridos. Assim, ao perceber que não tinham a bola para jogar o futebol, os garotos do Combate apelaram para a única solução que o meio lhes oferecia. “Chegamos perto dos coveiros, na parte mais pobre do cemitério, com túmulos que a gente sabia que era túmulo apenas pela cruz de madeira meio podre, sem nenhum nome. Alguns lugares estavam com a terra virada, sinal de que eles tinham tirado o esqueleto. Pensei que Capitão conhecesse um dos coveiros e fosse pedir uma bola emprestada. [...] Fiquei com vontade de ir embora, não queria ver os ossos, muito menos tocar neles. Mas logo os coveiros começaram a colocar as partes do corpo de alguém do lado de fora da cova. Quando o corpo estava completo, os coveiros saíram e começaram a fechar os buracos. [...] Então era ali que iam parar os restos dos pobres” (SANCHES NETO, 2006, p. 93). Com essa introdução assaz pedagógica, o narrador faz ver agora como os mortos podem realmente interferir no mundo dos vivos. E não apenas através da imaginação, como é o caso deste conto de ficção, mas na própria realidade prática. “De volta pro campo, encontramos capitão animado, agora vamos começar o treino, e jogou o crânio no chão, esta vai ser a bola hoje. Alguns riram, ninguém teve coragem de chutar. Foi ele quem começou a brincar com a bola, dizendo que seria um treino só de drible” (SANCHES NETO, 2006, p. 93-94). O final da passagem é paradigmático quanto à questão de como o mundo material informa o mundo espiritual dos seres humanos: “[...] A gente voltou tentando se divertir pra esquecer que tinha treinado com a cabeça de alguém. Mas num instante ninguém falava palavra nem fazia gestos desnecessários. Naquela noite, sonhei com meu pai” (idem, ibidem, p. 93-94). O fato é que, depois, o crânio foi substituído por uma bola de capotão que um outro garoto do time, o Nenê Chorão, trouxe de casa por circunstâncias não tão bem explicadas. Conforme se depreende de alguns diálogos do texto, o pai do Nenê Chorão era sapateiro e quando alguma coisa ficava largada nas prateleiras da sua sapataria por pelo menos um ano, o costume dizia que a casa herdava tudo: 112 A assertiva de Karl Marx está expressa no início da sua obra intitulada, O 18 Brumário de Luis Bonaparte, e, conforme suas próprias palavras, assim sentencia: “A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”. Cf. MARX, Karl. O 18 Brumário e cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 21. 194 – O homem mandou arrumar e depois não procurou mais. – Faz tempo que ele deixou lá? – perguntei. – Menos de um mês. – O prazo não é de um ano? – Quem não procura em seguida, não volta mais (idem, ibidem, p. 93-94). E o narrador aproveita a conversa para introduzir, na narrativa, outro detalhe importante da questão das relações inter-classes por parte dos indivíduos, a discriminação social entre os seus membros: “E logo a gente já estava falando das meninas da sala, que apareciam na sapataria pra mandar consertar uma sandália, pôr meia-sola num sapato ou arrumar a alça de uma bolsa. Nenê aproveitava pra conversar com elas, que na escola só davam atenção pros outros meninos”, salienta, de forma sutil. (SANCHES NETO, 2006, p. 95). É com esta mesma sutileza, e também no detalhe, com efeito, que o narrador põe em cena outra questão importante da relação perversa que as classes altas da pirâmide social tentam manter com as mais baixas. A narrativa por si só explica o que se está querendo dizer: Minha mãe costurava para as mulheres da zona e não deixava eu ficar perto das clientes. Um dia apareceu em casa, pra encomendar um vestido, a irmã do Marcão, muito pintada – um mal sinal. Então seria mesmo biscate? Todo mundo falava e eu não queria acreditar, talvez por causa do Marcão. Fiquei perto dela e recebi uns afagos no rosto. – Foge já daí, menino – gritou minha mãe. Eu fugi, mas guardei pra sempre aquela imagem de Vanilde. (SANCHES NETO, 2006, p. 96). O personagem-narrador não esqueceu mesmo aquela imagem. E por duas razões, que o seguimento da história irá explicar. Primeiro porque é essa Vanilde que irá resolver um problema prático do Combate Futebol Clube e, segundo, porque...! Bem...! Deixemos essa segunda razão para o final, já que é ela mesmo que encerra a história. Fiquemos por enquanto com a explicação da primeira. – O Combate já está inscrito – Capitão falou uma noite, quando a gente se reuniu na frente da casa do Zoreia. – E devemos tudo ao Marcão – completou. – Pedi pra minha irmã e ela arrumou o dinheiro – disse Marcão. Então Vanilde era a madrinha do Combate Futebol Clube. Diziam que Capitão saía com ela, e que ela nem cobrava. (SANCHES NETO, 2006, p. 97) Resolvido o problema da inscrição do time no campeonato, restava ainda conseguir o uniforme e as chuteiras para os jogadores. Foi aí que mais uma vez o espírito de liderança do garoto Capitão prevaleceu e se destacou na sua condição de mentor do clube. A negociação foi rápida: 195 – Selim vai ser nosso goleiro – Capitão falou”. Na seqüência é dito que a equipe estava mesmo sem goleiro e que o grupo tinha improvisado Marcão no gol embora ele gostasse de só jogar na defesa. “Só que ninguém queria o Selim ali, bem vestido no meio de espantalhos”, observa o narrador-personagem para em seguida fazer um esclarecimento importante dentro da teleologia da narrativa: “Selim, que na verdade se chamava Salim, se vestia com roupas novas e usava os quedes mais caros. O pai era dono de uma loja e mimava o filho. Não fazia parte do nosso grupo e estranhamos a visita dele. A primeira coisa que fiz foi esconder os crânios, para que não ficasse inventando histórias” (SANCHES NETO, 2006, p. 97-98). Ressalvando que embora fosse assim, ninguém no grupo teve coragem de contrariar a ordem do seu líder e o resumo do imbróglio deu-se da seguinte maneira: [...] Capitão soube que o Selim seria reserva do Clube 14 e foi falar com ele e com o pai, para saber se queria ser titular do Combate. O nosso time não era levado a sério, mas todo mundo admirava Capitão. Ele disse que com um goleiro como o Selim a gente não perderia o torneio. – Só tem um problema. Estamos sem uniforme. – Vai ser um patrocínio da loja A Jerusalém – falou o pai do Salim. (SANCHES NETO, 2006, p. 98) Removido, por fim, este último obstáculo, chega a hora de participar do campeonato. Desnecessário destacar aqui que o maior adversário do Combate no torneio era o Clube 14. Por isso, o personagem-narrador faz questão de expor na sua história – aliás, um dos melhores momentos da narrativa: pela radical sinceridade e singeleza com que retrata o universo existencial da adolescência e sua relação com a bola – esse momento iniciático de entrada dos garotos nas raias da competitividade em sentido lato. O trecho, apesar de um tanto longo, será citado aqui na sua íntegra para que não se perca o sentido integral do seu significado para o conto: – Vocês vão agora se comportar como jogador profissional. Nada de canseira. Comam bem, peçam pra mãe de vocês preparar uma comida especial. E bebam três ovos crus por dia. Todo mundo fez careta. – Não pode ser gemada? – Pé-virado quis saber. – Ovo cru. E não façam sexo até o dia do jogo. Aí sim nós rimos. A gente não fazia sexo nunca. A maioria nem tinha beijado uma menina. – O que eu quero – completou Capitão – é que vocês parem de bater punheta até o jogo. Guardar as energias para vencer esses riquinhos de merda. Entenderam? (idem, ibidem, p. 99). Parece que a garotada entendeu mesmo as ordens do seu líder máximo. Tanto que foram campeões ao baterem o rival por 2 a 0, fato que o personagem-narrador registra com certa surpresa. Surpresa essa que não é produto de ingenuidade alguma de sua parte. Senão de sua esperteza, o que pode ser constatado quando se analisa a função desse detalhe apenas aparente dentro do contexto geral da narrativa. É que ao passar por uma transfiguração de ordem simbólica, o menino que relembra é agora, todavia, o adulto que conta, e isso faz a 196 diferença no ordenamento estético da história. Se não vejamos, nesses dois registros textuais, a sagacidade do narrador ao preparar a culminância analítica de sua trama contada. Primeiro trecho: “Eu não entendi nada. O grande atacante era o Cleber, do Clube 14. Rápido, ele tinha feito o maior número de gols do campeonato, abaixo dele apenas Capitão, que acabou sendo o artilheiro com os dois gols da última partida. Cleber não jogou nada, estava lerdo e no meio do primeiro tempo pediu para ser substituído” (SANCHES NETO, 2006, p. 99). Segundo trecho, que complementa o anterior em termos de reforço da carga de sentido da observação: “Muito tempo depois ele me contou que, na noite antes do jogo, viu Cleber e Vanilde. O casal estava entrando no hotel do Manelão, só usado pra programas. Era ali que Capitão levava a irmã do Marcão, quando ela não estava na zona” (SANCHES NETO, 2006, p. 100). Assim, infere-se que Vanilde prestou mais um grande serviço aos meninos combatentes do bom Combate.113 Anote-se, para encerrar, que o “ele” do trecho acima é o Nenê Chorão, que ainda diz pro narrador-personagem uma frase literalmente lapidar quando este fecha suas reminiscências lembrando que o amigo Capitão foi embora da cidade meses depois dessa conquista do Combate Futebol Clube, para jogar profissionalmente num time de verdade. “– Só os mortos não vão embora” (SANCHES NETO, 2006, p. 99), disse Chorão enquanto lembravam dos amigos que partiram. O final dessa história ocorre numa típica situação fabular em que o narrador sabiamente se utiliza de um lugar-comum das estruturas fixas das estórias curtas para redimensioná-lo em novas possibilidades de eficácia: Quando ganhei meu primeiro salário, tinha conseguido emprego de entregador e estudava à noite, decidi conhecer mulher. O túmulo do meu pai estava sujo e meio abandonado, a mãe tinha se casado de novo. E guardava no quarto, como lembrança, um dos crânios e quase não visitava o cemitério. Onde antes funcionou o Combate Futebol Clube, desfeito depois daquela aparição, vacas de leite pastavam. Num sábado, resolvi ir pra zona e procurar Vanilde. A velha que atendia o bar disse que ela estava no quarto, com um cliente, e me ofereceu outra. Agradeci e voltei pra casa. Chutando as pedras da rua com meu sapato novo. (SANCHES NETO, 2006, p. 100) 113 Quisemos fazer aqui uma referência parafrástica ao romance Combati o bom combate, do escritor Ari Quintela, publicado no início dos anos de 1970, cujo enredo expressava uma atitude proativa em defesa da literatura, no geral, e da forma romance, em particular, numa conjuntura política dada – a ditadura militar no Brasil – em que a censura do Estado, por um lado, e a autocensura (dos próprios escritores), por outro, motivou o surgimento de uma literatura de combate a esse estado de coisas que teve um grande desenvolvimento ao longo de toda a década de 1970, no Brasil. Cf. QUINTELA, Ari. Combati o bom combate. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1971. 197 Como pudemos comprovar, esse conto, que é pautado no universo intrínseco do futebol, toma um elemento extrínseco a ele – um crânio humano, simbolizando a presença sempre atuante dos mortos na nossa vida – para figurar, materialmente, a potencial transcendência do assunto futebol como tema de exploração literária. Ao fazê-lo, porém, demonstra que nada, absolutamente nada, pode ser considerado fora do jogo (um impedimento) quando se joga com arte. Com a arte da bola; com a arte da literatura; com a arte da vida em geral. 4.2 As demandas extrínsecas: contos demonstrativos Nesse item do nosso trabalho, vamos tratar não de histórias que falem de futebol, apenas, mas de narrativas que tomam esse jogo como assunto, porém que ao fazê-lo, se utilizem deste objeto temático para discorrer sobre questões humanas – ou abordagens destas questões – relacionando-as a aspectos do jogo que de alguma maneira faça a ligação do homem com o seu meio, fazendo repercutir nele – ou vice-versa – suas intervenções enquanto indivíduo de caráter social. Mais do que como tema, neste caso, esse esporte entra como motivo a partir do qual se desenrola toda a argumentação narrativa que, assim, se desenvolve em função do papel que o homem (os personagens das histórias) exerce fora do campo temático do texto: o próprio jogo de futebol. Neste tipo de histórias curtas, as ações, reflexões ou peripécias do enredo ou trama partem do espaço exterior ao campo de futebol para depois se relacionarem com o espaço ou ambientação interior a ele, podendo vir do macrocosmo da universalidade da existência humana para dentro do microcosmo mesmo do próprio mundo do futebol. Quanto a este aspecto, já lembramos neste trabalho a centralidade do futebol na cultura brasileira. A presença desse jogo no modo de vida nacional é de tal monta (presença essa que se espraia por todas as esferas da vida pública – e até da vida privada dos cidadãos – tais como as formas de sociabilidade, de lazer, do trabalho, do esporte, do próprio cotidiano das pessoas, das artes etc) que a literatura, conforme já ressaltamos, não deixa de refleti-la; de abordá-la; de tematizá-la à sua maneira. Este é o caso que exemplificaremos agora com o intuito de iniciarmos nossa leitura do assunto do futebol compreendendo o fenômeno pelo ângulo das suas demandas extrínsecas. Esse pequeno exemplo inicial serve apenas para lembrar o quanto o jogo de futebol está entranhado na vida dos brasileiros. Tão entranhado a ponto de motivar o processo de criação – e não poderia deixar de ser assim – de um jornalista- 198 escritor como João Antônio – ver pág 316-317 – cuja literatura se assenta justamente numa espécie de atitude etnográfica frente ao mundo de que participa; notadamente o mundo urbano diante do qual, a exemplo de autores como João do Rio, Antonio de Alcântara Machado, Orestes Barbosa, Benjamim Constalat, entre outros, sustenta uma intervenção de cunho estético junto com uma espécie de vocação para narrar suas vicissitudes através de uma alteridade ao mesmo tempo prescrutadora e participante. O conto em apreço chama-se Almas da galera (ANTÔNIO, 2006, p. 55-60), e inicia assim em tom epigramático: “Poucas coisas tão velhas quanto dizer que não há nada mais perdido sobre a terra do que o coração do homem. E talvez ainda não se tenha dito que pouca coisa haverá, tão fiel, quanto o coração de um torcedor” (ANTÔNIO, 2006, p. 57). Pronto, acrescente-se aí a enunciação dêitica do narrador: “Flagrei outra cena, das que me ficaram fundo, bem isolada de outras que mexem com torcedores...” (idem, ibidem, p. 58), e se terá o espírito geral que governa técnica e conteudisticamente essa história curta de que daremos mostra a seguir. Bem ao feitio de João Antônio, como já dissemos, o conto se desenvolve através da observação interessada do seu narrador: No comecinho da Ladeira dos Tabajaras, para quem vem do morro e pega a Rua Siqueira Campos, um crioulo na madrugada carregando ao ombro uma bandeira enrolada do Flamengo ia que ia quieto, cabeça pendida, canseira nas pernas, mariolando” (idem, ibidem, p. 58), avança a cena, o narrador, para depois circunstanciá-la no que ele tem de literariamente reveladora, no sentido epifânico da expressão. “O seu Mengo havia batido o Fluminense. À tarde e à noite, esses lados da cidade estiveram em festa, movimento e tropel. À uma da manhã, o crioulo de cabeça arriada e bandeira ao ombro ia bem cansado. Mas feito um guerreiro (idem, ibidem, p. 58), conclui. E aqui, a ecoar no leitor como um grito marcante de um personagem qualquer de uma estória qualquer, numa madrugada qualquer, a primeira epifania trazida à revelação pela atitude etnográfica da narrativa: “– Mengo!” Susto e surpresa para o que o narrador preparara, assim, o leitor, antecipando-lhe o espanto, encantado: “A iluminação fraca da rua o pegava mal e mal, tudo deserto e ele ia muito sozinho lá com seu sonho. O queixo no peito. De repente, deve ter suspirado fundo antes e rasgou. Ele largou pra ninguém um grito arrastado, e que demorou, meio tristeza e desespero. Rindo, forrando, doendo, para ninguém:” (ANTÔNIO, 2006, p. 58-59). “– Meeeeennnngggooooo!”, grita agora, em tom mais alto. 199 Registre-se que o narrador aproveita essa situação tecnicamente – através de uma digressão curta sobre a virtual espacialidade da cena: “Poderia ter acontecido em Osasco, Camanducaia, Dores do Indaiá ou Copacabana. Deu-se em Copa”, avisa, e em seguida vai ao ponto principal que interessa ao nosso intuito. “Há um botequim xexelento em Copacabana, apertado e sujo, na Rua Domingos Ferreira – entre quantos... – onde jamais consegui meter os pés que não ouvisse uma discussão brava, desregrada, enfezada, gritada e, de ordinário, furiosa sobre futebol. Pedir um maço de cigarros ou um café é um custo. A discussão sobre futebol abafa todas as vozes”, registra agora, como se fosse em um caderno de campo. Tal discussão não abafa mesmo, entretanto, a voz lírica, apaixonada, rapisódica; as vezes dura, as vezes macia, tantas outras compassiva, deste tipo de narrador literário lembrado acima, que conta – e encanta – as cidades e seus habitantes. “[...] Durante anos, engordei como um desafio uma curiosidade. Entrar no tal botequim e não flagrar uma gritaria de futebol. Difícil, senão impossível, isso nunca se deu” (ANTÔNIO, 2006, p. 59),114 observa, participante, para sapecar outra vez, como num arremate de primeira em direção o gol, ao seu objetivo, a sua outra revelação literária decorrente desta sua visada sobre a cidade. Era meio de semana e se estava longe dos jogos importantes, provavelmente os ânimos estavam desmaiados ou num compasso de espera qualquer, um tempo de defasagem, um intervalo entre grandes acontecimentos. Já era um botequim sem gritarias de futebol. E por um tira-gosto, me mandei pra outra ponta do balcão que já não é de mármore, mas de aço inoxidável. Antes que chegasse ao torresmo ou à azeitona desejada, cortou uma voz lá do fundo, quebrando o silêncio: – Você pra falar de Zico, tem que lavar a boca com álcool antes. (ANTÔNIO, 2006, p. 60) Assim, através de uma alteridade humanística e estética a um só tempo – conscientemente empregada a serviço da constituição e manutenção da memória espiritual da comunidade dos homens –, a cidade nos fala pela voz dos seus moradores; pela voz dos seus narradores... O escritor João Antônio que nos diga, nesse caso em que o futebol se impõe como fator de sociabilidade humana. Trechos dessa sua narrativa estão aqui, como já dissemos, para, a partir deles, verificarmos a lógica cultural da centralidade do futebol na vida dos brasileiros, fato social que tem repercussão tanto no âmbito coletivo (caso demonstrado na narrativa anterior) quanto individual dos cidadãos, o caso que segue. Veja-se, agora, portanto, um exemplo mais cabal 114 As três citações anteriores à inserção desta nota são da mesma pág. 59 da obra referida. 200 de como o jogo de futebol faz mediações relevantes na maneira como as pessoas enxergam e encaram o mundo a sua volta. O texto intitula-se Mindinho, e é de autoria do escritor José Cruz Medeiros (in MATTOS, 2005, p. 105-112) – ver pág. 323 . Escrito numa prosa elegante e deliciosamente corrente; fluida até, no seu intuito narrativo, este conto de José Cruz Medeiros, para início de conversa, inscreve-se entre aqueles dos melhores do gênero, a exemplo de “O jogo encoberto”, de Aécio Consolin – já analisado aqui dentro da rubrica das narrativas de demanda intrínseca e que também trata de uma traição entre companheiros de time e de jogo de bola. Desta vez, com efeito – mas, com efeito mesmo –, o artifício literário para tratar do tema é bem mais sofisticado, uma vez que o narrador-protagonista só age na trama a partir da sua condição de morto, coisa que solertemente vai logo avisando ao leitor: “A turma prefere o domingo, que é o dia da vitória. Eu não; comigo é na quarta-feira. É quando me levanto contente, satisfeito da vida. Tudo muito claro, os passarinhos vêm comer as migalhas de pão que eu atiro no quintal... Ou será ilusão? Porque foi, justamente, numa tarde de quarta- feira, belíssima, que eu morri” (MEDEIROS, 2005, p. 105). Como se costuma afirmar nos meios acadêmicos de literatura – e algumas teorias da narrativa parecem confirmar tal fato –, a condição de morto sempre confere a um narrador- protagonista, que opere a partir de uma primeira pessoa atuante ou testemunhal, uma espécie de salvo-conduto ou imunidade para que possa intervir como queira na vida dos entes com os quais conviveu e que, por este recurso técnico de verossimilhança, ainda conviverá para todos os efeitos do bem e do mal. Este, pois, é o caso em questão do narrador Mindinho, aquele que não só conta, mas até autonomeia a própria história. Talvez daí, dessa circunstância de olhar para o mundo dos vivos por cima do nariz (afinal, ele já está morto mesmo!), é que esse tipo de personagem-narrador ou narrador- personagem, como queiram, se comporte perante a existência dos que ficaram quando de sua partida desta para a melhor (e parece que sempre estão numa melhor mesmo) com uma arrogância que diríamos judicante, nas suas histórias exemplares. Uma outra de suas característica marcantes, também a comentar-se, é o passarem a considerar as coisas humanas a partir dali, da saída do mundo dos vivos, através de um prisma em que se acentuam drasticamente o seu lado risível, melancólico, profundamente cômico no seu paradoxo fundante. Como se a pobre condição humana dos vivos não fosse nada além de um ajuntamento de fatos aleatórios, circunstâncias imperativas e disposições 201 alógicas, sem finalidade última ou sentido algum. Aquilo que na sentença lapidar do poeta se resumiria assim: “Uma agitação feroz e sem finalidade”, isto é, a própria vida.115 Então, já porque fixada a sua condição de morto na narrativa, lá vai agora o nosso Mindinho contar episódios do seu enterro, oportunidade que aproveita para ir perfilando para o leitor um amontoado de pareceres seus sobre eventos comezinhos que agora e antes esclarecem um pouco da sua trajetória de vivente e, mais agora mesmo, de defunto. “Mas eu estava ‘pesado’ mesmo, nessa minha dolorosa trajetória: uma das cordas escorregou e o caixão, embicando perigosamente para baixo, foi jogado violentamente contra o raso da cova, e assim fiquei à espera dos vermes. Algumas pessoas assustaram-se, outras acharam graça, e eu, em tudo isso, percebi que meu enterro, que sempre esperei ser cristão e ameno, virou palhaçada pura” (MEDEIROS, 2005, p. 108). Note-se aí o tom sarcástico e irônico com que o narrador vai encaminhando as coisas da vida, aparentemente sempre balizadas por algum sistema moral ou ético, para um patamar de relatividade tal que, lá na frente, no momento crucial da sua narrativa, vai justificar teoricamente a sua atitude de vingança frente ao amigo. Essa travessia é feita por um trecho exemplar em termos de procedimentos formais de textualidade. Um momento em que, depois de ter sido largado definitivamente no cemitério, deixa patente o personagem-narrador, ao nível de um sintagma textual de sugestão, essa sua possibilidade de vingança: “Sentia falta de um companheiro, de uma palavra amiga. Os que ali permaneciam eram estranhos. Os coveiros de enxada às costas, deixavam o serviço, e eu me via só e triste, imerso numa profunda desolação. Queria ver os meus, falar-lhes, mas o certo é que uma força poderosa tolhia-me os movimentos. Luzes estranhas davam conta de que me encontrava no limiar de uma nova existência, sem nada compreender desse mundo fantástico e irreal, feito do impossível e do imponderável” (MEDEIROS, 2005, p. 108). Pois esse mundo fantástico e irreal, feito do impossível e do imponderável, tanto pode ser, no caso, o além-mundo do personagem; o nosso mundo real mesmo, que todos nós sabemos dotado também de todo tipo de imponderabilidade e fantasia, ou o mundo textual da literatura onde tudo é possível e justificável, desde que as instâncias sejam inscritas sob a plausibilidade da sua coerência narrativa interna. Assim é que o narrador vai esclarecendo melhor as coisas: “Esse isolamento deveria ser motivado por mim mesmo. Certamente. Eu não seria coisa muito boa, visto que uma chusma de diabinhos andava sempre a me cercar” (MEDEIROS, 2005, p. 108). 115 Tal visão da vida é expressa de forma magistral no poema intitulado “Momento num café”, do poeta pernambucano Manuel Bandeira, de cujo texto extraimos a frase entre aspas. Cf. BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. Organizada pelo autor. Vol. Único. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1996, p. 233. 202 Em seguida, a confirmar certa epigonia de paráfrase machadiana, porém uma louvável epigonia marcadamente imitativa, o narrador faz surgir na história um personagem esclarecedor da sua nova condição existencial; um personagem funcionalmente irônico: “Quem tentou me esclarecer um pouco foi um velho de nome Camargo, falecido em 1868. Dizia-se filósofo. Outro dia me encontrou aqui e foi perguntando: – Rapaz, que tristeza é essa? – [...] Como se chama? – [...] Mindinho! – exclamei com ênfase. – [...] E o que fazia, antes de vir pra cá? – [...] Futebol – respondi com certo desalento. O senhor sabe, sou o Mindinho – insisti. (MEDEIROS, 2005, p. 108-109) A ironia em questão, a se depreender das considerações que seguem, por parte do filósofo de cova e de caixão, o senhor Camargo, decorre do fato do escritor José Cruz Medeiros servir-se justamente dele, um sábio, para firmar, na sua história, a repercussão, no âmbito literário, da representação social do futebol como uma ocupação menor, um ofício que por privilegiar os pés e não a cabeça na sua execução, opõe também o trabalho intelectual ao manual, com todas as significações socais depreciativas daí decorrentes. “Não sou contra o futebol”, diz ele. “Nem contra qualquer exercício físico, à exceção do boxe, que é digno do tempo das cavernas. Ou dos circos romanos. Mas o amigo deve convir que o futebol deixa o cérebro assim (com o indicador e o polegar configurou uma bola, pequeníssima...) e o pé deste tamanho! (e abriu os braços para mostrar um pé de metro e meio) (MEDEIROS, 2005, p. 109). Cite-se também, aqui, a resposta do personagem-narrador, por ser absolutamente necessária ao caso em questão. – O senhor fala assim porque naturalmente nunca ouviu falar da célebre dupla Mindinho-Piúca, os ‘backs’ mais famosos do continente, declarei, imprimindo, agora, um tom irônico às minhas palavras. Piúca é o meu companheiro de vitória, o meu grande amigo. Criamos um sistema de defesa que é um assombro. Verdadeiramente. O senhor não se lembra do notável embate com os argentinos, em 1950? Que dia! (MEDEIROS, 2005, p. 110) Aplanado o terreno situacional, em que o leitor já sabe quem conta a história, a partir de que circunstância, sobre que tipo de atividade humana, e desta, sobre que aspecto vai tratar a narrativa, o narrador, ajudado por seu colega filósofo, descobre que pode pensar e agir de novo como qualquer homem vivo, apesar de morto. A partir daqui, inicia-se o final da sua história. Descobre que dia é hoje na sua vida de defunto, e esse dia é dia de Vasco e Flamengo, o seu time de coração e de ofício profissional. E descobre também que pode voltar a encontrar os seus: 203 Vi então que podia me locomover à vontade. Comecei a flutuar como um tapete mágico, ao sabor do meu desejo. Como uma criança que principia a andar. Dentro de breves instantes, eis-me a rever as paisagens de minha predileção: Laranjeiras, Cosme Velho, a Barra da Tijuca, de onde guardo as recordações de uma excelente pequena. (MEDEIROS, 2005, p. 110) E eis também que de repente Mindinho se vê diante dos seus entes mais queridos, momento-chave de sua história: “E fui entrando, de mansinho. Atravessei a porta como um raio-X, e vi-me na sala. Nada se modificara. Tudo era silêncio. Minha filha de oito anos tinha ido até à casa da vizinha e o menino, de dois, brincava pelo chão com uma bola. E minha mulher? Foi quando lhe ouvi o riso, gostoso e cristalino. A sua voz era a mesma: doce como o melado de Campos. Não, não posso dizer o que presenciei então...” (idem, ibidem, p. 111). Em seguida a esta visão perturbadora para os seus olhos de jogador-defunto, ou melhor, de defunto jogador, para melhor entendermos o que se sucede, o nosso Mindinho presenteia seus ouvintes-leitores com uma das mais criativas e inusitadas jogadas já perpetradas no campo de jogo das narrativas de estória curta. Uma vingança espetacular pra cima do seu colega de time e de zaga, a qual só o tema do futebol poderia possibilitar. Para entender tudo, contudo, é preciso ler na íntegra esse excelente texto de José Cruz Medeiros que, através das palavras de Mindinho – e também para efeito de nossa análise –, termina deliciosamente assim: Você lembra dessa lavagem do Flamengo? 116 A gente não esquece. Todo mundo botou a culpa no Piúca, uma desmoralização completa. Que continue a viver com minha mulher. E dizia-se meu amigo, o miserável! Mas está frito: Lea não dá pelota para quem não for cartaz... E, se der, agora já não tem importância. (MEDEIROS, 2005, p. 112) Tal como ficou demonstrado pelo texto, o tema da traição amorosa, conjugal, que aqui é tratado a partir de circunstâncias externas ao futebol – embora o jogo seja utilizado como pretexto para a fabulação de sua trama – serve de ensejo ao propósito focal da narrativa. Continuando a nossa abordagem do tema do futebol na literatura brasileira a partir das suas demandas extrínsecas, veja-se essa narrativa leve – e por isso muito saborosa – de caráter reminiscente que mistura futebol e política internacional para compor um curioso quadro da repercussão dos efeitos desta no micro-mundo daquele. Para desenvolver o tema ficcionalmente, o contista Duílio Gomes – ver pág 296 –, através do seu conto O massagista (GOMES in MATTOS, 2005, p. 73-79), lança mão de um dos personagens mais interessantes 116 O termo “lavagem” na linguagem popular do futebol significa a vitória ou derrota por um escore alto; por uma grande diferença de gols. Cf. PENNA, Leonam. Dicionário popular do futebol: o ABC das arquibancadas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 137. 204 do universo do futebol: aquele profissional encarregado de prestar os primeiros socorros aos atletas em caso de contusão ou avarias médicas no campo de jogo. Simultaneamente um elemento intrínseco ao futebol (porque participa dele) e extrínseco a ele (porque toma parte, mas de fora das quatro linhas e apenas quando é chamado a intervir), o massagista, seja nos clubes profissionais em que atuem ou nos times amadores do futebol de várzea, em que no mais das vezes adquirem uma aura de figura folclórica indispensável à festa da bola, é uma espécie de herói picaresco 117 de quem se espera o toque humano das pequenas ações que vão iluminar, silenciosamente, as grandes glórias conquistadas nos campos pelos clubes. À maneira que segue, portanto, o narrador apresenta ao leitor o personagem que vai protagonizar o momento chave e mais surpreendente da sua história; a própria razão de ser da trama textual em que o recurso ficcional é um bom pretexto para se refletir sobre a história com H maiúsculo. Ou, pelo menos, para se pensar no quanto a grande História é composta de histórias pequenas, estórias curtas, ou, talvez mais adequadamente, estórias contra a História, no dizer de Guimarães Rosa.118 É aí que entra a história de Nico, o massagista. Ele estava no Guarany desde a sua fundação e tinha uns cinqüenta e cinco anos de idade. Era negro, alto, magro, sempre elegante com seu terno de linho branco e seu chapéu de feltro cinza. Todos gostavam de Nico. Ele era sério, mas educado, silencioso, mas solícito e competente. Sentado em seu banquinho de madeira, acompanhava o jogo com atenção. Não mordia as unha e não praguejava como os massagistas dos times adversários. Seu rosto permanecia neutro, sem tiques, durante todo o jogo, o Guarany vencesse ou não. Sua única reação era quando algum jogador do Guarany se contundia e o juiz apitava. Aí ele se levantava, pegava sua sacola de pano e entrava em campo. (GOMES, 2005, p. 74) Aqui a descrição do personagem, Nico, vai ficar suspensa na história para que o narrador explique em tom memorial as circunstâncias que envolvem as peripécias do seu tão 117 Queremos caracterizar com esta expressão, a figura do anti-herói definida pelas teorias da narrativa. De um modo geral, a figura do anti-herói tem função idêntica a do herói na maioria das narrativas: cumprem também as funções de protagonistas, polarizando em torno das suas ações as restantes personagens, os espaços em que se movem e o tempo em que vivem nas histórias. A peculiaridade do anti-herói, todavia, decorre de sua configuração psicológica, moral, social e econômica, normalmente traduzidas em termos de desqualificação como parece ser o caso dos homens que têm a função de massagistas no jogo de futebol, assim como nas suas respectivas narrativas. Cf. REIS, Carlos.; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1988. (Fundamentos; n. 29), p. 192. 118 Ver, nesse sentido, o prefácio do próprio autor a sua obra de ficção (contos), intitulada, Tutaméia. No texto- prefácio, que abre o volume, intitulado, “Aletria e Hermenêutica”, João Guimarães Rosa assim se pronuncia em relação ao seu prórpio credo poético e trabalho com a literatura: “A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História...”. Cf. ROSA, João Guimarães. Ficção completa. Vol. II. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994, p. 519. 205 atilado massagista. E tudo isso é feito por um viés benjaminiano119 que desdobra a experiência vivida em experiência narrada; a ação minúscula, individualizada, transformando-se, por força da escrita literária, em ação historicamente compartilhada, enfim, em atitude histórica da mais lídima força ética ou – no caso –, mais precisamente, estética. Meu tio vivia contando essa história para a família e os amigos. Do tempo que ele era centroavante do time de futebol na cidadezinha do interior mineiro onde ele morava, Marilândia. Tio Carlinhos tinha 19 anos de idade. Era o tempo da Segunda Guerra Mundial, 1943, e a Europa estava pegando fogo com aqueles gringos malucos se matando, japoneses, alemães nazistas e italianos fascistas de um lado, americanos, russos, ingleses, franceses e até brasileiros do outro. (GOMES, 2005, p. 73) Situado o quadro mais geral em que se desenvolve a história (a lembrar grupos do torneio da Copa do Mundo com países alinhados para a disputa) e narradas as motivações que sustentarão a verossimilhança da intervenção de Nico na urdidura do seu entrecho – (“um dia começaram a surgir pichações nos muros do campo do Gauarany e nas paredes externas do vestiário – várias suásticas nazistas e frases curtas do tipo Nico, negro sujo e Davi é porco judeu”)-, os holofotes do foco narrativo em primeira pessoa – as vezes misturado com uma terceira pessoa que acompanha quadro a quadro as figuras, as circunstâncias e as ações narradas numa focalização onisciente –, recaem novamente – e eis aqui o pouco do investimento formal deste conto – na figura do insuspeito massagista. Nico nunca recebeu dinheiro no Guarany, ao contrário do treinador e dos jogadores, que sempre embolsavam o ‘bicho’ depois dos jogos, vencendo ou não. O presidente do Gauarany, Dr. Celso, um advogado e deputado gordo e bonachão, cansou de insistir com Nico para que ele recebesse a sua parte. Nico nunca aceitou. [...] O que Nico gostava mesmo era de fazer seu ofício, ficar vermelho de emoção (e mudo) quando o Guarany vencia, e de chupar suas laranjas. Para isso sempre carregava uma punhal afiadíssimo com cabo de madrepérola que guardava dentro de uma capinha de couro presa no cós da calça. (GOMES, 2005, p. 74-5) Frise-se que os acontecimentos das pichações, repetidos e ameaçadores, principalmente para as figuras que não entendiam suas motivações (“Nico e Davi não entendiam o motivo daquelas agressões espalhadas pelos muros do clube. Não tinham inimigos, pelo contrário eram estimados por todos. Quem faria uma barbaridade daquelas?”), foram mandados investigar pelo Dr. Celso à polícia cujo delegado contou-lhe que “pichações daquela natureza estavam surgindo também em toda a cidade, não respeitavam nem a igreja ou cemitério, e que ele tinha aberto inquérito e colocado alguns policiais em pontos estratégicos para prenderem o pichador, ou pichadores” (GOMES, 2005, p. 75). 119 Sobre esta questão da transmissão de experiências a outrem através das formas narrativas consultar, especialmente, o ensaio “O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov”, e, “Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo (BENJAMIM, Walter. 1985, v. I e III)”. 206 E frise-se também que depois de... e de... – o narrador, agora transfigurado na pessoa do tio Carlinhos, por efeito de uma mímese oportuna e adequadamente complacente com seu motivo e linguagem, começa a preparar para o leitor as justificações do desfecho de sua história: Meu tio explicou aos dois que aquilo era coisa de nazista. Essa gente perversa, resumiu para um Nico e um Davi de olhos esbugalhados, acha que somente alemão ou louro nazista é raça pura, superior, o resto é genética de segunda, misturada. Davi chorou e contou que parentes dele estavam sendo perseguidos e presos na Alemanha hitlerista. Nico soltou um palavrão, coisa rara nele; (idem, ibidem, p. 76). Num crescendo que vai aglutinando na mente do leitor os efeitos práticos e locais (dramaticamente próximos da sua realidade) da deletéria e criminosa insanidade nazista, a narrativa vai chegando ao seu ponto máximo ainda que se utilizando de uma temporalidade frouxa que arrefece os ânimos – em termos do tônus narrativo – do que poderia ser um clímax mais impactante, dada a igualmente impactante força daqueles acontecimentos de que se nutre a história, no seu sentido mais geral. Mais uma vez, o tempo empregado é o tempo do futebol. Talvez porque, como já tivemos oportunidade de assinalar, um jogo de futebol configura-se ele próprio como uma narrativa particular, uma pequena história em que o passar do tempo tanto para os jogadores quanto para os torcedores (dependendo das expectativas em confronto de cada lado dos times contendores) tem um desdobramento psicológico dramaticamente diferente quando comparado às outras temporalidades vivenciadas pelo homem. Assim, o que em termos de temporalidade cronológica comum pode ser vivenciado e medido como minutos, segundos, pode também (dependendo das diferentes situações de derrota ou vitória iminente de cada lado da disputa) ser experimentado existencialmente como séculos, milênios, anos-luz etc. Foi justamente dessa particularidade temporal do jogo de futebol que se serviu o narrador criado por Duílio Gomes para dar carga dramática ao desfecho tanto da sua história quanto da do massagista Nico. Advertindo em trecho anterior, num eficaz recurso narrativo de fundo aforístico, que, dependendo do caso, o massagista Nico “carregava o jogador nas costas, dispensando a maca, e o levava para a ‘enfermaria’, na verdade uma cadeira-espreguiçadeira no vestiário”, e que ali suas mãos compridas e profissionais “davam um trato caprichado em hematomas mais selvagens”, o narrador adentra literalmente o campo de jogo e prepara o clima de suspense que se espraia da situação homóloga do jogo em disputa para evidenciar, através do também sempre possível e surpreendente jogo da linguagem literária, a figura e as ações do seu personagem Nico, o massagista que também literalmente joga o jogo da história. 207 O jogo caminhava para a metade do segundo tempo [...], nervoso, mas equilibrado, caminhava para um empate. O juiz apitou. Um jogador do União de Ouro Preto havia marcado falta brava em um dos nossos. Tio Carlinhos levantou-se do banco de reservas pra ver o que estava acontecendo e Nico entrou em campo com sua bolsa, desaparecendo no bolo de jogadores discutindo. Saiu de lá com um jogador nas costas. Era o Alemão. O juiz apitou e o jogo continuou na tarde azul pontilhada de cigarras. (GOMES, 2005, p. 77) A partir de agora deixemos a narrativa falar por si mesma, em cinco pequenos segmentos ilustrativos, e dialogar com as observações que fizemos acima acerca de sua estrutura, validade estética e grau de inventividade no seu enfrentamento do tema do futebol: Todos voltaram a prestar atenção ao jogo, mas tio Carlinhos continuou acompanhando Nico e Alemão com os olhos estranhando por este estar xingando Nico e puxando sua camisa. Nico parecia muito nervoso com o que ouvia, sua testa estava vincada e ele mordia os lábios. Mas caminhava com passos rápidos, como fazia sempre. Entrou no vestiário como um caçador carregando sua presa e bateu a porta. *** De repente tio Carlinhos ouviu um baque vindo do vestiário, como se alguma coisa houvesse sido projetada contra a parede. Vou lá, pensou, e levantou-se. Quando abriu a porta, ele viu a mais patética cena jamais vista em toda a sua vida. [...] Nas paredes, como testemunhas, os quadros com as fotos dos jogadores do Guarany, um cartaz colorido de Carmen Miranda e um quadro a óleo de Getúlio Vargas. (GOMES, 2005, p. 77)120 Pule-se aqui os detalhes digamos mais “sórdidos” desta cena – para que o leitor possa saboreá-los na leitura integral do conto de Duílio Gomes – e encerremos com o próprio narrador: “Nico! Gritou tio Carlinhos, não acreditando no que estava vendo. Os dois voltaram o rosto para ele, Alemão com o olhar vidrado e a boca cheia e Nico com a expressão dura de quem havia tomado uma decisão muito séria em sua vida”. *** “Claro que Marilândia inteira ficou sabendo da história [...] e a família do Alemão mudou-se para a Argentina, onde tinha parentes. A guerra acabou, os nazistas perderam e muitos anos se passaram sobre Marilândia. Guerra é igual a jogo, gostava de dizer Nico, já velhinho, mas ainda massagista do Guarany, uns perdem e outros ganham...” (GOMES, 2005, p. 78). 121 Para concluirmos essa nossa rápida avaliação do texto acima, diga-se que, no caso das peripécias e ações humanas anônimas transfiguradas pelo caráter simbólico típico da linguagem literária, de que é exemplo o fato textual em questão, ganha principalmente o leitor que pode perceber, concomitante ao prazeroso ato da leitura de um bom conto, a clara verdade dessa observação do crítico Alfredo Bosi de que “em face da História, rio sem fim que vai 120 A citação imediaatamente anterior também integra esta página 77. 121 A citação anterior também integra esta mesma página 78. 208 arrastando tudo e todos no seu curso, o contista é um pescador de momentos singulares cheios de significação” (BOSI, 1997, p. 9). Este é o caso também desta outra narrativa bem escrita, densa até, na sua plasticidade expressiva, que traz como tema central a custosa e difícil inserção (para esta etnia) do elemento negro da nossa formação social no início da profissionalização do futebol no Brasil. E, paralelamente, mostra a bravura e o talento de um dos seus representantes mais singulares no ambiente de geografia humana em que se passa a história: o Rio Grande do Sul de ethos viril e personagens fundadores. Referimo-nos ao conto, Meia encarnada, dura de sangue, do já citado escritor gaúcho, Lourenço Cazzaré (CAZZARÉ, 2001, p. 42-51). O entrecho da narrativa é simples, mas bem construído para dar conta do seu objetivo. Trata-se do velho recurso da estória dentro da estória122 em que um narrador serve- se de outro mais experiente – no texto, o seu avô; portanto a experiência aqui está de novo no sentido benjaminiano – de quem se acostumou a ouvir “mitos, lendas, lérias e leréias” (ÂNGELO, 2004, p. 42) e, através dele, repassá-las adiante de modo que reste como efeito geral o argumento da História com H maiúsculo nas entrelinhas da estória com “e” minúsculo, mas de significado imenso. Pois este meu avô – disse o poeta – dava um dedo por um pouco de prosa. Parece que estou a vê-lo, pequeno, não media mais de um metro e meio, sentado em frente à sua casa – ali no Corredor das Tropas, rua que descia da igrejinha velha de Nossa Senhora da Luz –, cuia de chimarrão na mão esquerda, chaleira tisnada na direita, catando entre os passantes apressados do fim de tarde alguém que quisesse jogar fora um pouco de conversa. (CAZZARÉ, 2001, p. 42) Assim, destarte, é apresentado ao leitor o narrador da história que ele (ainda o narrador) vai “ouvir” do poeta, que, por sua vez, ouve deste outro (o seu avô) e conta a mais este outro, enfim, o narrador mesmo em terceira pessoa, que finalmente nos conta tudo. Tudo que diz respeito a tudo nessa estória porque esse velho narrador (o avô, no enredo) costumava narrar sobre tudo: “Tinha uma história para cada assunto, muitas pra vários assuntos: creio que o amor e a morte eram seus temas preferidos, e também as catástrofes inexplicáveis desencadeadas por forças desconhecidas, e honra, dignidade, hombridade, lealdade e amizade, os valores que, dizia ele, estavam desaparecendo de nossa cidade, e de resto, do mundo” (CAZZARÉ, 2001, p. 43). 122 Como se vê no texto em questão, este recurso narrativo define-se pela circunstância de um narrador contar uma estória a outro ouvinte narrador e em que o ato de narrar se presentifica pela troca de palavras entre estes narradores que, por conseguinte, as comunica ao leitor em forma de uma nova narrativa de duplo enfoque, conforme explica, por exemplo, a pesquisadora Edna Taraboni, em estudo feito à obra de João Guimarães Rosa. Cf. CALOBREZI, Edna Taraboni. Morte e alteridade em “Estas histórias”. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001, p. 90. 209 Mas, então..., numa dessas tardes, por volta da década de trinta – diz ainda o narrador – falavam de futebol. E é aí que entra a figura de um certo personagem, um tal crioulo, “uma espécie de primeiro profissional da cidade”, que é apresentado ao público leitor com todos seus atributos pessoais e circunstâncias contra e a favor, principalmente contra; mais contra do que a favor, ressalte-se, a bem julgar. Pois o crioulo jogava pelo Grêmio Esportivo Brasil, o time dos negros e mulatos. [...] Aos dezenove-vinte anos, era o maior driblador e fazedor de golos da época. Nem alto nem baixo, era magro como a peste e leve como a brisa e dançarino como as borboletas. E frio. Jogava de olhos abertos, cabeça erguida. Calculista, ele não só queria fazer o golo, gostava de ver o goleiro esmurrar a grama. Jogava rindo. [...] Ele ria daquele jeito só pra enfurecer os adversários, pra fazê-los perder a cabeça e começarem a querer matá-lo. (CAZZARÉ, 2001, p. 44) Entretanto, para tecer os elementos contrastivos dessa história e realçar a bravura e valor desse personagem no contexto em questão, o narrador literalmente adverte que só era assim dentro do campo, o mulato; implacável. “[...] Fora era outra coisa. Um rapaz gentil, tímido, de fala mansa, silencioso, cerimonioso. Saía do campo de cabeça baixa, como que pedindo desculpas por jogar tanta bola” (idem, ibidem, p. 44). Em seguida é arrematado o seu perfil socioeconômico e cultural com a descrição da sua condição de vida, a profissão que exercia e o que vai ligá-lo aquele contexto pré- profissional do mundo do futebol. Se o homem é ele e a sua circunstância, como nos afiança o filósofo espanhol Ortega Y Gasset,123 a passagem, no texto, tem a função de revelar, do ponto de vista da sua eficácia narrativa, o detalhe específico sobre o qual vai recair toda a carga dramática do conto. É-nos é informado, por exemplo, que ele, o tal crioulo trabalhava num matadouro. “Era tão hábil com a faca quanto com a bola, dizia o meu avô. O negócio dele era a desossa. Desmanchava um boi em questão de minutos. E não deixava um só fiapo de carne nos ossos. Com a mesma precisão com que escapava dos coices do adversário, recuando o corpo apenas os milímetros necessários, ele destrinchava os animais”, afirma o narrador para, contudo, observar peremptório: “Aos domingos, brilhava nos campos” (CAZZARÉ, 2001, p. 44-45). A partir de agora, dado o encaminhamento acima antevisto, as atenções da narrativa concentram-se, no seu essencial, nas ações e reações da inserção do personagem 123 Referimo-nos à famosa formulação do pensamento ontológico-perspectivista do filósofo espanhol, José Ortega y Gasset, expressa na senteça: “Eu sou eu e minha circunstância”, explicitada em duas de suas obras capitais, a saber: Meditaciones del quijote (1914) e El tema de nuestro tiempo (1923). Cf. ORTEGA Y GASSET, José. Meditaciones del quijote e El tema de nuestro tiempo. Obras Completas. v. 2 e 3. 2. Reimpresión, Madrid: Alianza, 1994. 210 principal no universo da magia hipnótica da bola tocada de pé em pé (ÂNGELO, 2004, p. 39). Por isso é que é explicada, como dupla justificativa para fazer um contraponto do trânsito de tal figura negra para o espaço social dos brancos, a razão puramente intrínseca ao futebol da questão do talento do negro para este esporte. “Depois de perder quatro dos cinco jogos, de enfiada, os dirigentes do Esporte Clube Pelotas começaram a se perguntar se não estariam fazendo uma grande asneira em não aceitar jogadores negros ou mulatos” (CAZZARÉ, 2001, p. 45). Em nível de representação literária, todavia, um estratagema narrativo é aqui utilizado para dar a conhecer ao leitor o julgamento do tempo sobre essa questão. Assim, o narrador avô, contemporâneo dos fatos narrados, é requisitado ao texto para proferir seu paracer: “E meu avô dizia: está certo que esses negros são uns mandriões, e conheci não mais de sete que gostavam de trabalhar, mas o certo é que nas safadezas, coisas como serenatas e jogos de bola, eles são bons” (idem, ibidem, p. 45). Está aí com todas as letras da estória, o dilema colocado para os negros que há época desejavam tomar parte num esporte controlado pelos brancos, para o qual tinham talento e desenvoltura, mas cuja inserção, numa sociedade profundamente marcada pela divisão racial no trabalho (resquício do escravismo recente), poderia significar uma realização de efeitos duplos e contrários entre si: a possibilidade relativa da ascensão pessoal do indivíduo no plano econômico, mas à custa da adesão a valores não seus, no mundo social de então. O que, em termos muito claros, para criar um trocadilho de efeito, significava a traição aos seus companheiros de raça e de classe social. Pois é isso que vai sustentar o melhor deste conto de Lourenço Cazarré. Isto é: a dramatização literária da dubiedade dessa situação onde o que deveria ser valorizado no negro (sua aptidão artística para a música e para a atividade lúdica: os jogos de bola, por exemplo) só o é na medida em que isso continua a servir ao branco como fator de distinção e hegemonia de classe (a superioridade também no futebol), e não como vetor de integração da heterogeneidade social em formação. Daí as qualidades dos negros serem tratadas, em termos de sua representação ideológica no âmbito da narrativa, de “safadezas, coisa como serenatas e jogos de bola”. Todo o efeito de sentido da narrativa, portanto, se concentrará agora nessa situação do personagem. A cooptação e assédio que passa a sofrer para jogar no time dos brancos: “Um dos diretores do Pelotas, da família Almeida Guimarães, um cara que tinha tantos contos de réis quanto milhos numa espiga disse mais: que cederia ao tal crioulo uma 211 casa velha que tinha lá pros lados da Cerquinha. Se aceitasse, podia morar lá de graça, enquanto servisse ao time” (idem, ibidem, p. 45). Não é necessário dizer – embora o narrador diga de forma elegante e comovente – o quanto perturbou o tal crioulo essa proposta. Para encurtar aqui a agonia do personagem, revele-se que, por fim, ele a aceitou, embora seja lembrado ao leitor que ele tenha relutado muito pra aceitar. “[...] Por uma mulher, decidiu-se. “[...] Disse que sim ao terceiro emissário. “[...] Faltava apenas uma semana pro jogo” (CAZZARÉ, 2001, p. 45-46). Com essas intervenções cirúrgicas, pontuais, o narrador resume a motivação, o tempo de maturação e a circunstância da decisão que vai ensejar o ápice dramático da história do seu personagem que não teve mais paz. E que, talvez justamente por causa disso, entra numa outra e maior agonia. “O jogo seria no domingo”, lembra outra vez, cirurgicamente, o narrador. E lembra também que o acidente deu-se no final da manhã de sábado, após o expediente. Uma lágrima teria causado o tal problema...! Uma lágrima que lhe sujou o olho. “Ele estava desossando uma carcaça no chão, como gostava de fazer, sobre a laje ensangüentada. Usava não só as mãos, mas também os pés descalços, pra firmar a ossamenta. Então a faca escapou e ele não sentiu nada além de uma pequena ardência, quase uma cócega, na p arte de dentro do pé esquerdo” (idem, ibidem, p. 47). O que se segue são trechos da mais comovente bravura já incorporados ao rol de cenas similares em toda a literatura brasileira e não apenas na que tem como tema especificamente o futebol, o jogo dos pés. “A faca escapara e correra ao longo de todo o seu pé, do dedão ao calcanhar, abrindo um talho fundo, de vinte centímetros de comprimento. “No primeiro instante ele até achou que tinha sido pouca coisa. Então o sangue começou a manar, denso, grosso, vermelho” (idem, ibidem, p. 47). Deixe-se o resto dessas páginas para leitura posterior de tanto que elas trazem de lição de valentia e registre-se que o nosso crioulo foi assim mesmo para o jogo, defender o time dos brancos. Situação que não o poupou de duros constrangimentos, perda da sua paz interior, como já se disse, mas que enfrentou com talento e brio de macho, porque “meu tio dizia que no seu tempo, sim, aquilo era um esporte pra homens, porque os juízes só marcavam falta se o agredido sangrasse, e só expulsavam o agressor quando o outro ficava estirado sobre o barro, desmaiado” (idem, ibidem, p. 43). 212 Contudo, aqui, agora, a violência moral era a que mais o atingia “por causa dos risinhos e das piadas e das ofensas pesadas dos colegas de matadouro, mulatos e negros como ele” (CAZZARÉ, 2001, p. 46). Esse era o desprezo que lhe interessava, que lhe dizia respeito, adverte o narrador para logo lembrar que o jogo seria no domingo. Pois lá vai o nosso personagem negro defender o Esporte Clube Pelotas, “o time dos almofadinas da Avenida”, enfiando “a camiseta azul e amarela que se acostumara, desde menino, a repudiar”. Entrou em campo escondendo aquele profundo talho que varava seu pé de ponta a ponta, a que dera um jeito costurando-o com uma tripa seca de boi e escondendo tudo sobre o meião de jogo. “Sabe-se como é, né? Queria ter uma casa e uma vida como qualquer outro”. Assinala o narrador também que ele até “sonhou, com misto de orgulho e desvanecimento de proprietário, que passava as trancas nas portas e se deitava ao lado da mulher, e que adormecia, como um homem comum” (CAZZARÉ, 2001, p. 46). Retomemos a narrativa dentro da narrativa para mostrar a habilidade do escritor Lourenço Cazarré, no campo do texto, acompanhando com similitude a habilidade do seu personagem, no campo do jogo, e concluamos tudo ao louvar, com esse último trecho citado (que, frise-se, não encerra ainda a história) mais esse belo tento da literatura brasileira que faz do futebol um bom motivo para por em discussão os problemas e desafios que, na longa busca por identidade e caracterização próprias, tem enfrentado o homem brasileiro ao decurso do seu tempo. “Que mais posso lhe dizer, meu amigo? Perguntava o meu avô nesse ponto da narrativa. Pouca coisa, respondia. Só que o mulato fez uma festa. Marcou três. E olha que os caras bateram nele! Saiu com os olhos escondidos debaixo de inchações e com um talho no supercílio. Apanhou muito dos seus antigos companheiros, mas em momento algum pediu pra sair, como fazem esses frescos hoje em dia. Foi até o apito final esbanjando categoria. Parecia um toureiro se esquivando daqueles animais furiosos. E dava chapéu neles, bola pelo meio das pernas então era mato. E os caras chutavam não a bola, ele, e ele só dava de banda, e a chuteira passava. Três gols, sabe o que é isso? “Foi o último a deixar os vestiários porque não queria que vissem a meia empapada de sangue. Naqueles tempos eles próprios tinham que arranjar quem lavasse o fardamento. Saiu, sem que ninguém, além do engraxate, tivesse descoberto o seu segredo” (idem, ibidem, p. 50-51). *** Justamente o segredo, referido agora na sua dimensão de fato coletivo – e não mais na sua repercussão apenas sobre o indivíduo –, e também compreendido como um elemento que pautou o comportamento social durante um período da vida brasileira em que 213 falar muito e livremente sobre tudo era impossível (a fase de vigência da ditadura militar que governou o Brasil de 1964 a 1985), é o mote sobre o qual o jornalista e escritor Ricardo Soares – ver pág 347 – estrutura essa sua narrativa intitulada, Família, futebol e regatas (SOARES, 2006, p. 101-109) por meio da qual faz o mundo exterior da política adentrar o mundo interior do futebol, num entrelaçamento temático em que o universo extrínseco ao campo do jogo nutre-se operativamente do elemento intrínseco a ele e vice-versa. O futebol entra na história em meio a árduas discussões familiares à mesa de almoço dos domingos, opondo um genro e um sogro, e é o motivo para que o filho de um e neto do outro conte as suas lembranças acerca da Copa do Mundo de 1970, e também de um Brasil governado por uma ditadura militar que se instalara no País apenas seis anos antes da conquista do seu terceiro título mundial de futebol. Transformado pelo signo lingüístico numa figura só, o narrador autodiegético dessa história, aproveita-se da condição privilegiada de membro de uma família de origem portuguesa típica de São Paulo, e, do alto de sua lente de observação de adolescente entre adultos, tece considerações pessoais sobre a relação entre política, futebol e cotidiano, o que acaba por desvendar certos aspectos ainda hoje não tão bem resolvidos da formação social brasileira. A história é simplória e nada há que destacar em termos de literatura senão a sua oportuna e não disfarçada denúncia de um período da vida brasileira em que a convivência social tornara-se tensa e monocórdica porque movida pelo medo. O seu pano de fundo, pois, é uma conjuntura político-social em que o diálogo entre as pessoas pautava-se mais pelo modo imperativo dos verbos do que pelo tom pluralizante e qualificador dos substantivos quando bem acompanhado dos adjetivos. Talvez por isso é que o futebol (jogo assentado no diálogo coletivo que produz) entre na narrativa como um tema que se situa ambiguamente entre o interdito e o desejado. Como um veículo apropriado para opor e para juntar simultaneamente os lados díspares de uma realidade forçadamente monodimensional, aspecto que sobressai já no início da história, através da observação atenta do narrador: “Da ponta da mesa levantando a taça de vinho tinto e contemplando o vasto cozido português meu avô sentenciava: “– Futebol e política não se discute. Muito menos à mesa”, diz, para em seguida completar em arremate de síntese: 214 “Naquele momento por um prazer quase sádico tudo o que meu velho avô português queria era justamente criar uma acachapante discussão à mesa provocando o genro com quem tinha menos afinidades e maiores diferenças” [...] Não as afinidades, mas, sobretudo as diferenças (sociais, econômicas, étnicas, de visão de mundo, valores etc) entre as pessoas é que serão postas à mesa, na agenda de reflexões que esta narrativa de ficção pode oferecer retroativamente ao leitor de hoje, já bem mais acostumado a lidar com elas como requisito fundamental para a convivência social no regime democrático, em contrapartida ao leitor de ontem, do tempo em que calar a boca era a atitude mais “recomendável” para sustentar o diálogo social, paradoxalmente baseado no silêncio. “Eu digo isso e repito, eu digo!!! Não se discute à mesa e muito menos à minha mesa onde se preserva a educação e os bons modos, atributos que o senhor infelizmente não tem” (SOARES, 2006, p. 103-104). Como foi já sugerido, o futebol parece ser o único elo que, nesta conjuntura pesada e amordaçante, tem o poder de ligar os vínculos pessoais (familiares ou não) mesmo que da forma explosiva que o ambiente sugere. Este detalhe não escapa ao narrador dessa história que, situado desconfortavelmente entre as figuras discrepantes do avô e do pai, funciona como um pêndulo para o qual converge a situação particular, historicamente colocada, da relação inescapável que o jogo das massas mantinha então com a política no Brasil. É desta posição, portanto, que o narrador acorre para completar: “[...] Fato é que para o meu avô naquela altura do campeonato ter modos queria dizer torcer para o Santos Futebol Clube. [...] Ter modos naquele momento para o meu avô queria dizer gostar de algumas coisas que os militares vinham fazendo mas também que não se devia esquecer o legado e a herança da vassourinha de Jânio Quadros, apesar da renúncia em 1961” (SOARES, 2006, p. 104). Dito isto, a partir daqui as oposições que informavam a realidade daqueles tempos de chumbo ficam inexoravelmente claras, na encenação figurativa dos dois personagens antagônicos: “Meu avô era Jânio e meu pai era Lott. Meu avô era Médici e meu pai era JK. Meu avô era Santos e meu pai era Corinthians. Meu avô era branco e meu pai era negro” (SOARES, 2006, p. 104). O Brasil de então (e de resto, o próprio contexto mundial) parecia ser reduzidamente composto de apenas duas partes, dois lados, duas faces que sempre se opunham, porque aqueles eram tempos que não permitiam meio termo: ou se sonhava ou se encarava o pesadelo. 215 “Quando saíam essas brigas todos em volta da mesa ficavam calados, constrangidos, mortificados. As discussões destroçavam qualquer possibilidade de harmonia dominical e invariavelmente estragavam a sobremesa porque para arrematar meu avô sempre implicava com o jeito que meu pai sugava o café e se aborrecia com o cigarro barato que ele acendia logo em seguida” (idem, ibidem, p. 105). Esse, pois, era o clima com o qual o contista Ricardo Soares pretende, nesse texto ficcional, figurar um momento difícil da nação em que as pedras rolavam enquanto a bola corria. “Estava para começar a Copa do Mundo de 1970 no México. Para ser sincero eu não me lembro se naquela época tinha slow-motion, câmera lenta, replay ou qualquer dessas coisas. Do que lembro bem eram das discussões acaloradas entre meu pai e meu avô” (idem, ibidem, p. 105). Claro que essas discussões inicialmente tinham como mote o âmbito futebolístico, mas o que se quer lembrar aqui, neste conto, através do jogo de futebol – para além do ambiente de euforia criado no país com a perspectiva real da conquista do nosso terceiro título mundial –, é que a realidade de uma ditadura, pelas fissuras e rompimentos que provoca (até a fadiga completa da ambiência de convívio entre as pessoas), tem sempre como corolário duramente palpável o esgarçamento do tecido social. E, nesse caso, nem o jogo mais querido dos brasileiros resolveria a parada, senão que até alimentava o contexto: – Essa Copa de 1970, esse time vai nos dar muitas alegrias – dizia o avô. – Eu não tenho tanta certeza assim. E de mais a mais se a gente levar os militares vão se aproveitar disso, vão usar a taça Jules Rimet para esconder todas as safadezas que vêm fazendo – respondia o pai. (Idem, Ibidem, 106) À parte a versão lugar-comum desse tipo de crítica ao aproveitamento político por parte do stablishment de plantão em relação às coisas do esporte, o diálogo acima, cujo teor nessa direção perpassa toda a narrativa assegurando a ela o seu vigor denunciativo, é bem paradigmático da maneira como, àquela época, o conteúdo dialético da natureza do futebol preenchia, no espaço privado das famílias, as lacunas deixadas pela a ausência da discussão política no espaço público. Espaço público esse que sequer existia ou então era reduzido a sua minimalidade funcional. – Seu Gomes, não sabe o que está dizendo... tem muita gente aí sofrendo, apanhando, sendo morta porque não concorda com o governo. – Que sendo morta o quê!!! Isso é intriga de comunista. Este país é uma maravilha e está crescendo... veja aí você mesmo. Este país é uma benção. E ainda vamos ganhar esta Copa do Mundo. (SOARES, 2006, p. 105-106) Bom, depois do clima de relativa tensão criado pelo narrador para informar o matiz plúmbeo do conteúdo político daqueles tempos, que, como já foi lembrado, perpassava inteiramente a conjuntura futebolística da realização de uma Copa do Mundo, seu 216 acontecimento máximo, que os dois personagens aproveitavam para passar em revista certas divergências (a questão do general Médici querer escalar o time brasileiro, a substituição de João Saldanha – um comunista declarado – por Zagallo, “um bunda-mole”, na opinião do pai do narrador, etc), chega-se, enfim, a um momento de relativo relaxamento na trama. Afinal, o Brasil foi mesmo Tricampeão do Mundo em 1970. A despeito da oposição de uns e para o delírio de outros. Do ponto de vista meramente formal, como de resto toda a narrativa, o seu final é cediço, previsível no seu encaminhamento de desfecho, e, portanto, dedutivamente lógico, o que não lhe tira certo tom irônico de arremate. Sim, senhoras e senhores. Ganhamos lindamente a Copa de 70 no México. Carlos Alberto fez o quarto gol contra a Itália, todos nós beijamos simbolicamente a taça Jules Rimet e éramos 90 milhões em ação. Um domingo depois da conquista da Copa toda a família foi fazer piquenique e passar o dia às margens da represa Billings, em São Bernardo do Campo. Meu avô – com a ajuda do meu pai e de um tio – tirou um velho barquinho de cima da perua Rural Willys. Entramos no barco e fomos fazer regatas como dizia o meu avô. Na volta trouxemos algumas tilápias. Saborosas mas repletas de espinhas. Como aqueles tempos. Comemos as tilápias fritas melando as mãos e lambendo os beiços. Não pensamos mais em futebol naquele domingo. (SOARES, 2006, p. 108-109) *** Também tematizando um tópico extrínseco ao campo do futebol (no sentido de que não participa diretamente das ações desenvolvidas dentro das quatro linhas do jogo), o amplo topoi do Brasil dos anos 70, mergulhado numa brutal ditadura política, porém confiante na conquista do terceiro campeonato mundial de futebol com realização no México, é que faz mover essa curiosa história criada pelo também jornalista e escritor José Roberto Torero – ver pág. 324 –, intitulada, Se as coisas não tivessem sido como foram, o que é não seria (TORERO, 2006, p. 61-66). E diga-se curiosa essa narrativa porque toda a sua carga ficcional recai precisamente nessa inversão da ordem das coisas já devidamente anunciada no seu título de fundo aforismático e charadístico. Assim, com o objetivo explícito de sacudir o leitor e tirá-lo de um olhar naturalizado sobre a conjuntura político-futebolística do período, o narrador serve-se da técnica jornalística (notadamente daquele tipo de relato enfeixado em rubricas do tipo “aconteceu”, “entenda o caso”etc, muito utilizado na imprensa moderna com o fito de expor aos leitores o pano de fundo de certas ocorrências) para dar um choque de ficção numa realidade por si só passível de desmerecer crédito: “1970. O Brasil vivia o auge do desenvolvimento com o ‘milagre econômico’ e, ao mesmo tempo, o auge da repressão”, inicia assim, o narrador, a história. 217 “A tortura e a censura à imprensa corriam soltas”, acrescenta. “Já o País corria em busca do tricampeonato mundial de futebol e da posse definitiva da Jules Rimet”, observa. “A música de maior sucesso nas ruas começava com os versos ‘Noventa milhões em ação/pra frente Brasil/salve a seleção...”, relembra. Daí por diante, a narrativa se sustenta na falsificação intencional dos fatos que expõe como se tivessem sido como na realidade não o foram. A intenção é criar uma nova realidade ficcional de apalpabilidade irônica, uma vez que certa corrente de pensamento no Brasil acalentou, quis, sonhou mesmo – e até agiu com essa intenção – para que as coisas tivessem, então, sido diferentes, no país do futebol. Isso sem falar no futebol de alta categoria e em alguns lances enciclopédicos como o gol que Pelé marcou no goleiro tcheco Viktor: o camisa dez brasileiro percebeu o arqueiro em posição adiantada e mandou, ainda no seu campo defensivo, um tiro por cobertura que estufou as redes no estádio Jalisco. (TORERO, 2006, p. 63) Ora, se sabe que Pelé nunca fez esse gol, embora tenha tentado inesperadamente concretizá-lo neste jogo mesmo, tornando esta uma das jogadas mais sensacionais do futebol mundial, justamente por sua inconclusão ou desfecho contrário à intenção pretendida. Assim, o lance serve muito bem de metáfora de tudo aquilo que poderia ter acontecido e que não aconteceu, tanto no plano do futebol quanto no da vida nacional, como bem informa à História a literatura, nesse caso.124 A partir daqui, o efeito irônico buscado pelo narrador com essas inversões factuais se sustenta até o final da história como quando, para criar um contraponto entre o futebol e a política (que vale dizer: entre realidade e mentira), afirma que “a Itália vence e é tricampeã. Fica em definitivo com a taça Jules Rimet” enquanto sustenta que, então, “Milhares de brasileiros são assassinados”, dando a sua narrativa um tom de denúncia; e, por fim, o fecho definitivo da intenção fabular: “Foi então que a esquerda aproveitou-se da decepção nacional e tentou mobilizar as massas”, anuncia. “Até criaram uma nova letra para o hino da Copa, que começava com os versos: ‘Noventa milhões em ação/chega Brasil/viva a revolução’, informa. 124 Quanto a este aspecto da relação da Literatura com a História, ver os comentários de Julia O’Donnell sobre o significado da obra do cronista carioca João do Rio em abono a essa idéia, também defendida pelo historiador Nicolau Sevcenko, de que diferentemente da História, a literatura – no caso a obra do cronista carioca sobre a vida da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX – fala ao historiador sobre a história que não ocorreu, sobre as possibilidades que não vingaram, sobre os planos que não se concretizaram etc. Cf. O’DONNELL, Julia. De olho na rua: a cidade de João do Rio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 35. 218 “O general Médici decide acabar até com as eleições indiretas, tornado-se o ditador brasileiro por 15 anos, seguindo o exemplo de Pinochet”, adverte. “Só em 1985 é que ele vai permitir uma eleição direta”, consola. “Com óbvias fraudes eleitorais, o vencedor da votação é um homem do governo: o ex-governador Paulo Maluf. “Fazendo enormes túneis que ligam as principais cidades brasileiras, Maluf consegue manter um bom nível de aceitação entre as pessoas da classe baixa, que sonham em ter carros para passar em seus túneis. “Mas então, um belo dia, os túneis cavados por todo o país começam a ruir. “O País é tragado para dentro da terra”, informa. “E deixa de existir um lugar chamado Brasil”, conclui (TORERO, 2006, p. 65- 66). Assim, nessa narrativa, dando um exemplo bastante criativo de como o tema do futebol pode literariamente ligar os elementos extrínsecos ao jogo numa orgânica e produtiva relação fabular com seus meandros intrínsecos, o escritor José Roberto Torero mostra, com este seu caso textual, que ficção e realidade são instâncias que se chocam e se complementam quando a idéia é a intenção de criar um fato novo e presente (a materialidade cognitiva do conto), que, então, ao se debruçar sobre um horizonte temporal do passado histórico, serve para melhor explicitar ao leitor o significado e relevância também intrínsecos dos fatos antigos. Numa outra direção estilística, mas mantendo no motivo de fatura textual a mesma lógica vigente do autoritarismo, dessa vez matizado pelo ethos social do regionalismo brasileiro, temos também como exemplo demonstrativo das demandas extrínsecas do tema do futebol nas nossas letras esta estória curtíssima, milimétrica, direta, envolvendo o futebol, o cangaço e o coronelismo nordestinos em que três situações típicas resolvem tudo em favor da conhecida lógica do mandonismo brasileiro: um personagem com fama de macho por ter desafiado um cangaceiro atemorizante; uma partida de futebol envolvendo o time da cidade do coronel-prefeito (o Democrático e o Sport Clube Recife), apitada por um juiz temeroso de deixar o time local perder, e a cobrança de um pênalti que tinha a função de deixar as coisas conforme as expectativas do povo da cidade de Rio Branco, no dia do seu aniversário. A história chama-se, A bola e a rede (JAPIASSU, 2006, p. 53-57), e é de autoria do jornalista e escritor paraibano, Moacir Japiassu – ver pág. 337. Ciente de que o recurso aos diálogos, numa narrativa, faz avançar rapidamente o andamento do seu entrecho, o narrador dessa história não perde tempo com digressões ou 219 descrições inúteis e vai direto ao ponto. A rapidez com que nos é contada a história figura a igual agilidade com que, nos sertões do Nordeste, as figuras dos coronéis “dão um jeito”, a seu bel-prazer e pelo poder do mandonismo, nas situações mais estapafúrdias. Se não, vejamos a aplicação do recurso nas três situações-chaves, já mencionadas. Primeira situação: “Seu coroné, o capitão Zé do Pipiu tá na porta do cinema e manda chamá o sinhô”, comunicou o pipoqueiro Catôta. “Diga pro capitão Zé do Pipiu que a distância daqui pro cinema é a mesma pra cá; se ele quer me ver, que venha aqui”. Concluindo, nos é informado pelo narrador que, em resposta, “Zé do Pipiu, que tinha a intenção de saquear a cidade, fez hora na porta do cinema, espancou uns dois ou três meninos e depois abandonou o projeto; enfiou-se de novo na caatinga, acompanhado de seu bando imundo. O povo de Rio Branco elegeu o coronel Lenildo Pessoa o homem mais macho do sertão e lhe devotou veneração pelos anos afora” (JAPIASSU, 2006, 53-54). Segunda situação: “Tá bom, a gente traz o time”, concordou o coronel, “mas o Democrático não pode perder. Festa com derrota é coisa que não combina...”. E agora o narrador adverte que o coronel foi pessoalmente receber o árbitro na estação; um moço de Caruaru. “O considerado tem família? O juiz da partida respondeu: “Tenho mulher e dois filhos pequenos, coronel. Alceu tá com três anos e Ma...” (JAPIASSU, 2006, p. 54-55). “Pois olhe: se o Democrático perder esse jogo é bem possível que o senhor não veja mais esses meninos... Não é por mim, é que o povo de Rio Branco vai invadir o campo e nem eu vou poder evitar o linchamento”. “Coronel, o empate serve?”, perguntou o infeliz. Lenildo foi cruel: “É Democrático um a zero ou nada...” (idem, ibidem, p. 56). Terceira situação: “O senhor se buliu muito” – gritou sua Senhoria, e mandou cobrar de novo [...]. O narrador conclui, então, ao fim do jogo, que depois de seis gols anulados e quatro jogadores expulsos da parte do time do Sport, Bininho dessa vez tomou descomunal distância, arrancou lá do meio do campo e meteu o pé na bola com fúria, O que aconteceu aí não é de bom alvitre se revelar. Sabe-se, entretanto, por esse narrador ágil criado por Moacir Japiassu, que “Aí o coronel levantou-se e ordenou” – 220 enfatize-se: ordenou – que a torcida aplaudisse. “Democrático um a zero” (idem, ibidem, p. 56-57). Conforme se pode constatar, através dessa leitura rápida – como rápida é a própria história –, o futebol aqui adentra a literatura como mais um elemento simbólico no debate sempre presente da questão do respeito ou desrespeito das regras que são estabelecidas ou convencionadas para a nossa convivência em sociedade. E isso porque, dada as suas características estruturais, consoante já observamos antes, ele é um jogo que encerra uma perfeita e completa metáfora da vida social. Portanto a literatura, como instância estética de representação do mundo social, não deve ficar imune a tal temática, como bem exemplifica mais esse pitoresco conto de futebol. Por fim, para encerrar este tópico das demandas extrínsecas do tema do futebol na nossa literatura de ficção no gênero conto, escolhemos esta história cujo tema é aparentemente externo ao campo do jogo. Apenas aparentemente, contudo. O motivo da narrativa é um jogo de futebol de botão, uma variante do esporte bretão que é jogado em uma mesa que faz as vezes de um campo oficial e onde os jogadores, todos em forma de botões de baquelite ou acrílico, atuam no retângulo de madeira pintado de verde como se fossem jogadores de verdade. Um narrador que é ainda garoto, mas exímio jogador de futebol de botão, utiliza- se dessa variante do jogo como motivo para colocar na pauta das elaborações simbólicas pelo viés da palavra o tema da sempre difícil e árdua iniciação amorosa da fase da adolescência. Em meio aos prazeres e desconfortos típicos deste estado d`alma, esse personagem-narrador da história conta como o jogo da conquista amorosa se reflete nas suas atividades típicas de menino em formação, o que lhe faz perceber que esse dos mais poderosos e importantes afetos humanos (o amor) implica todos os outros aspectos da vida: do âmbito pragmático e performativo da existência a sua configuração psicológica e emocional. Não é à toa que o elemento lúdico é aqui o liame conceitual que une, na estruturação da narrativa, as instâncias reflexas do jogo do amor com o jogo da bola. Tudo se passa, portanto, na convicção de que o amor e o jogo sempre estão indissoluvelmente ligados, fato de natureza cultural, aliás, amplamente reconhecido e demonstrado nas mais variadas expressões da arte brasileira: do cinema à literatura, do teatro à dança; do carnaval até a nossa música popular. Basta lembrar, a título de exemplo, esse trecho de uma canção popular bastante conhecida do compositor Ismael Silva, que se adéqua perfeitamente a um dos possíveis ganchos interpretativos que se pode empreender à leitura desta narrativa em questão de Wladimir Catanzaro – ver pág 353 –, intitulada, A irmã do Biba 221 (CATANZARO, 2006, p. 111-120), cito Ismael Silva: “A mulher é um jogo difícil de jogar/E o homem como um bobo/Não se cansa de tentar...”. 125 Pois bem. É secretamente movido pela convicção contida nestes versos que o narrador-personagem deste conto remexe em suas lembranças um dia em que concluiu tacitamente que se a vida, no sentido mais geral e abrangente do termo, é também um jogo, o fato de ser exímio jogador em algum campo das suas micro-batalhas não garante sucesso algum em quaisquer dos seus outros âmbitos. Mais ainda: o resultado final do encadeamento dos fatos que lhe absorveu inteiramente naquele dia da sua existência parece ter demonstrado que bem mais do que vitórias a contar, o que resta mesmo ao ser humano ao longo da vida (e ao fim e ao cabo) é um extenso rosário de derrotas para lembrar – nada mais –, da sucessão de embates decisivos a que é impelido sustentar para dar conta da existência. Acompanhemos então esse dia revelador da vida do nosso garoto-personagem- narrador, contado com as suas próprias palavras, através da pena do escritor Wladimir Catanzaro, aqui e ali preenchido e pontuado também pelas nossas observações: “Pouco antes de soltar o trinco do portão e correr para a rua, ouvi a voz do meu pai ecoando dos fundos da casa. Não vi, mas tenho certeza do vermelho de seu rosto e da veia inchada no pescoço. “– Um pé lá, outro cá!” A ordem era para que o garoto voltasse logo, pois a tarefa a cumprir naquele dia era urgente e assaz importante. “Eu deveria ir direto para a casa da minha avó doente, vê-la, tomar a bênção, perguntar se precisava de alguma coisa, entender bem o recado, trazer o nome do remédio recortado da tampa da caixinha, passar na farmácia, ver o preço, pedir para anotar que depois meu pai pagava e correr de volta... um pé-lá-outro-cá!” (CATANZARO, 2006, p. 113). Essas recomendações são completadas com instruções muito precisas dadas pelo pai. Em seguida, o menino teria que dizer ao tio Nelinho, caso o encontrasse na casa da avó, que seu pai (e irmão do Nelinho) voltaria mais tarde, pois havia passado a noite na cabeceira da avó. É que os dois precisavam conversar um assunto muito sério embora diga que não lhe seja comunicada (ao garoto) a causa dessa seriedade do assunto. 125 Trata-se da canção intitulada, “Se você jurar”, feita por Ismael Silva em parceria com os compositores, Nilton Bastos e Francisco Alves. Na letra, a mulher é vista como uma figura cujo amor é sempre fingido, ou, pelo menos, expresso na forma de um jogo de permanentes ambigüidades. Cf. A música brasileira deste século por seus autores e intérpretes. CD. Coleção SESC-São Paulo, faixa 12. 222 Entretanto, um evento, digamos assim, não muito sério, muda fortuitamente a direção das coisas: “Logo na esquina encontrei o Biba. Ele é meu melhor amigo, não saio da casa dele”, diz, e conclui a informação: “Era ele me convidando para a final do campeonato”. E continua, o narrador: “Vou explicar melhor. “O Biba e eu montamos um campeonato de futebol de botão na casa dele, era uma copa da FIFA com todas as seleções. Nossa amizade quase terminou quando, no sorteio, eu fiquei com a Seleção Brasileira. Ele queria porque queria sortear de novo, não concordei e ficamos três dias sem conversar, depois passou” (CATANZARO, 2006, p. 114). Dito isso, e diante da insistência do amigo para concluírem o campeonato (“teve partidas muito emocionantes, agora seria a final”) o personagem-narrador tenta explicar que não podia ir naquele momento – só depois –, uma vez que tinha que ir à casa da avó. Na volta, porém, pegaria os seus botões (os jogadores) e pronto, a partida decisiva do campeonato seria então realizada. Só que a irrupção de outro evento fortuito reforça mais uma vez o novo rumo das coisas. “Nem sei direito, mas perguntei: ‘... e a Bete?’” Para quem não sabe, o nosso contador da história explica que a Bete é a irmã do seu amigo, o Biba, acrescentando com um cuidado muito funcional para a narrativa: “[...] Isso não teria importância se eu visse a Bete com os mesmos olhos com que via outras meninas, mas não era assim” (CATANZARO, 2006, p. 114). Claro que logo saberemos que não era, mesmo, assim. Antes, sigamos, contudo, o fio do seu relato. “Um dia estava dançando quando eu fui chamar o Biba. “A casa dele não tem cachorro. Entrei e ela não me viu, continuou dançando, sozinha, sem música nem nada, só ela girando perto do vaso de flor, dançando. Quando me viu, parou e agradeceu como as bailarinas da televisão, depois deu um sorriso olhando bem nos meus olhos, eu nunca tinha visto coisa assim tão linda. Logo depois ela viajou” (idem, ibidem, p. 115). Suspendendo de repente um pouco a narração da história, retenhamos essa circunstância do encontro metonímico do narrador com o fenômeno amoroso, figurado aqui na pessoinha da irmã do Biba, porque isso se dá sob a mediação de uma situação em que repontam dois aspectos importantes da funcionalidade desta narrativa: o elemento estético, representado pela dança, que cria o clima de enlevo que arrebata o amigo do Biba (nosso 223 narrador), e a ausência momentânea do objeto amoroso, fato que ele realça ao contar sua história, nos seguintes termos: “Eu me sentia diferente depois daquele sorriso. “Ficava só pensando nisso, sentindo falta dela”. Quanto ao primeiro elemento, a dança, que tem conteúdo e interesse lúdico correspondente, no caso das meninas, ao jogo de futebol, para os meninos, há uma observação importante a fazer em se tratando do comportamento do narrador nas inferências pessoais que este impõe ao contexto da história. Trata-se da representação das diferenças entre homem e mulher na importância dada os seus respectivos universos de brincadeira do período de formação. Ao afirmar que depois de ter visto a irmã do Biba, as outras meninas não tinham graça nenhuma, que elas só sabiam brincar de mocinha, pintar a boca escondido, carregar aquelas bonecas empinadinhas de olhos parados, “bonecas de cara feia e nariz fino”, o amigo- narrador enceta uma conjectura importante: Para mim não passava de brinquedos chatos, tão chatos quanto as conversas daquela amiga da Bete. Sempre que eu estava lá, tinha uma amiga conversando mole, nem dava para a Bete admirar minhas jogadas, como fez naquele dia, quando eu acertei o primeiro tiro do meio de campo... bem no ninho da coruja! Bati embaixo da bolinha. Ela subiu deslizou e pimba! ‘Na gaveeeeeeeta’! (CATANZARO, 2006, p. 115-116) É depois disso que o narrador esclarece que não tinha dito ainda, mas que, sim, ele era campeão de futebol de botão. Ninguém ali jogava melhor do que ele. E que esclarece também, para os leitores da história, a sua relação com o Biba. “Na verdade meu melhor companheiro de jogo era o Biba, não que ele fosse muito bom, era adversário fácil, daqueles que não dão sabor de vitória, mas era o irmão da Bete”, enfatiza. Também aproveita esse trecho da sua narrativa para salientar mais ainda as sensações intrigantes que passou a sentir a partir daquele dia: “[...] Como disse, depois daquela tarde da bailarina, quando eu via a Bete, me dava um negócio no peito e apertava, apertava, como quando a gente está com vontade de chorar, mas não era de choro a vontade. Era uma coisa que eu nunca tinha sentido”. E chegamos agora ao segundo aspecto importante do encaminhamento funcional desta história contada pelo amigo do Biba. A saudade atormentadora que ele passou a sentir por causa da ausência momentânea do seu objeto amoroso: a irmã do Biba. Eu estava morto de saudade dela, há quase um mês não via aquela menina que, só de olhar, me encantava, então por conta dessa tristeza, eu não queria fazer nada, nem jogar bola, soltar pipa, futebol de botão e muito menos fazer as composições que teria que entregar assim que as aulas voltassem em agosto. (idem, ibidem, p. 116) 224 Ficam agora explicadas, então, as peripécias dessa história: a virada brusca do rumo inicial dos acontecimentos que envolviam naquele dia o nosso personagem-narrador. Pois “quando o Biba me falou que a Bete tinha voltado e convidou para continuar o campeonato de Botão, esqueci de tudo e topei na hora”, diz. “Eu estava sem o meu time e não gosto de jogar com botão dos outros, mas como a Bete tinha voltado... na hora nem pensei nas conseqüências da desobediência a meu pai, tanta era a vontade de vê-la” (idem, ibidem, p. 117-118), completa. Concentremo-nos mais fundo no teor dessa virada dos acontecimentos para compreender melhor o que a partir dela o nosso personagem passou a compreender da vida depois daquele dia. Assim que chegamos, eu a vi. [...] O primeiro impulso foi correr e perguntar um monte de coisas das férias só pra ficar conversando, olhando os olhos dela, o cabelo, o jeito que ela tinha de segurar as mãos branquinhas, um perfume que nunca mais senti, mas a vergonha foi tão grande que só consegui dizer ‘oi Bete’, cumprimento que ela respondeu sem nenhum entusiasmo, como se eu nem estivesse ali. (CATANZARO, 2006, p. 118) Considerando o seu ordenamento indicial até aqui e o efeito do tempo no decorrer das coisas, o leitor já devidamente iniciado nas questões amorosas terá condições de antever perfeitamente o que sucederá com o amigo do Biba, nessa história dele com a irmã do Biba. Segue que para tirar as suas conclusões de todo o acontecido, o nosso personagem e contador da história resolveu prestar atenção no que os seus ouvidos lhe diziam: “[...] Ouvi quando ela falou de um cara que conheceu nas férias, disse que ele era loiro e que tinha olhos azuis, que ele era isso, era aquilo, que estava na oitava série, que tirou uma flor do vaso da mãe dele e entregou com um cartãozinho quando ela estava no portão, que ele mesmo veio entregar.... que gracinha... e eu tomando gol!” Depois disso o que se fica sabendo (quem ouviu; ou melhor: leu, a sua história) é que a ventura inicial do amigo do Biba – o nosso personagem narrador –, dramaticamente e com mais força, vai se transformando cada vez mais em desventura. Situação ainda mais comovente porque contada com as suas próprias palavras. “O que dizia o cartão eu não entendi. Bem na hora que ela falou o Biba gritou: ‘vai buscar no funnnnn...’ e rindo da minha cara perguntou se eu estava dormindo. “Eu falei bem alto que estava triste porque minha avó ficou muito doente, que podia morrer a qualquer momento! Disse isso na esperança de atrair a atenção dela para a minha dor, mas ela não se importou, não moveu um músculo, nem ouviu”. 225 Então, gradativamente, as coisas para o amigo do Biba vão se complicando num crescente de cúmulo. “Tanto a Bete falou do tal menino lindo que me fez perder todas as partidas para o Biba, logo ele, que até aquele dia jamais havia vencido uma sequer, mesmo com a lambuja de dois gols que eu dava. “Imagine você a Seleção Brasileira tomando de goleada da China!” (idem, ibidem, p. 119). A chave irônica aqui é perfeita. Ela serve para demonstrar, através do modus operandi da escrita ficcional de Wladimir Catanzaro, levada a efeito pela eficácia narrativa do seu garoto-narrador da história, que se o assunto é jogo (entendido aqui o conceito em qualquer uma de suas acepções) o jogador tem que se conscientizar que, integrando mas ao mesmo tempo pairando sobre a sua estrutura, há sempre um instância de autonomia relativa da sua ontologia prática sobre a qual, as vezes – muitas vezes –, o jogador não tem a menor ingerência tornando-se inútil agir em tal ou qual direção. Nesses casos, que parece ser o simbolicamente figurado nesta história, o jogo fica, assim, um jogo maior, jogando os jogadores, ao invés de serem jogados por eles.126 Um trecho seguinte da narrativa exemplifica melhor o que está acima postulado. “Não vendo muita graça em ganhar assim fácil, o Biba achou que eu estava fazendo corpo mole e quis parar o jogo, mas se nós suspendêssemos eu teria que ir embora e isso eu não queria. Depois de esperar tanto tempo por ela, estando assim tão perto, não conseguia me mover dali, eu estava preso”.127 Registre-se que, a sua maneira e considerando as condições objetivas para a ação, o personagem-narrador reage a tal situação, mas o resultado é inócuo: “Desafiei novamente o Biba para mais uma partida e dei três de lambuja, ele aceitou o desafio e eu perdi por 9 a 4”. O placar diz tudo e tem a função de representar sintetizando, ao nível da narrativa, a concepção geral desta composição ficcional: a idéia fecunda de que o jogo no seu sentido lúdico (de esporte: neste caso, o futebol de botão); o jogo no seu sentido social (de malha de convenções que compete ao indivíduo destrinçar no convívio coletivo) e o jogo no seu sentido existencial (de plataforma aberta a possibilidades várias diante de escolhas contingentes e 126 Esta idéia é demonstrada com precisão formal e rara densidade de conteúdo pelo escritor e poeta argentino, Jorge Luis Borges, no soneto intitulado, “Xadrez”, que a certa altura diz: “Também o jogador é prisioneiro/(a sentença é de Omar) de outro tabuleiro/de negras noites e de brancos dias”. Cf. BORGES, Jorge Luis. Nova antologia pessoal. Trad. Maria Julieta Graña e Marli de Oliveira Moreira. Rio de Janeiro: Editora Sabiá, s/d, p. 16. 127 Tal situação referente ao estado amoroso parece ser a mesma descrita no célebre Soneto 5 sobre o Amor, de autoria do poeta português, Luis de Camões, que a certa altura propugna: “É querer estar preso por vontade/É servir a quem vence, o vencedor/É ter com quem nos mata lealdade”... Cf. Luis de Camões. Obras completas. Vol. Único. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1988, p. 270. 226 necessárias para a viabilização e efetivação do ser) é uma noção prático-vivencial movida pela mesma lógica em todos esses casos de sua aplicabilidade. Daí a historia de modo correto e eficaz como que misturar simbolicamente esses três âmbitos do jogo numa estrutura só: a narrativa de ficção, ela mesma também, e em última instância, um jogo de palavras. Vejamos agora o fechamento da história e como essa idéia geral prevalece como força de arremate. Ressalte-se, antes, que essa última partida jogada, em que perdeu por 9 a 4, serve tão somente de pretexto para que o nosso personagem-narrador fique escutando a conversa da irmã do Biba com uma de suas amigas sobre o seu envolvimento, durante as férias, com o outro garoto. “Quis saber se o pai dele tinha carro, ai Deus! O pai dele tinha. [...] Quis saber se ela andou no carro dele, a Bete disse que foram ao zoológico, os dois no banco de trás. Nesse momento o Biba acertou um chute do meio do campo bem no ângulo. Gol assim só eu fazia” (CATANZARO, 2006, p. 120). Veja-se – e assim concluiremos nosso raciocínio – que cada informação que ouve da amiga da irmã do Biba (e são muitas ao fim da narrativa) soa-lhe como um gol sofrido na partida paralela que disputa com o próprio Biba no futebol de botão, uma vez que são lances capitais a impingir-lhe a derrota final no campo amoroso e existencial, fato que acompanharemos agora em sua seqüência de encerramento da história: Quando me levantei do chão a Bete falou que eles estavam namorando, até marcaram encontro nas próximas férias. Falou baixinho aquele segredo, mas eu ouvi. Nem disse que ia embora, virei e fui, passei correndo por todas as casas que me separavam da minha avó doente. A primeira pessoa que encontrei foi meu pai. Ele estava quieto, os olhos muito vermelhos. Não disse palavra, não era preciso. De certo modo eu sabia agora que qualquer remédio seria inútil, me aproximei do meu pai e abraçado a ele meu corpo tremia de tanto que eu soluçava. (CATANZARO, 2006, p. 120) Fim. Conforme se pode comprovar, o jogo de futebol – e como de resto, a própria vida – são mesmo estruturas dotadas de potencialidades metafóricas ricas e cheias de possibilidades simbólicas para que se possa expressar, na sua conjunção com a arte e pelas mãos de um bom artífice da palavra – neste exemplo, através da eficácia mágica da literatura – as suas mais caras verdades constitutivas. Tais verdades, como vimos, podem estar tanto ancoradas na exemplaridade metafórica intrínseca ao jogo de futebol em si como ser hauridas em algum universo fora dele; no ambiente humano extrínseco ao seu âmbito, por exemplo. 227 4.3 As demandas lingüísticas: narrativas pertinentes Vimos até aqui que o futebol é mais que um esporte e muito mais que um jogo, apenas. É um fenômeno cultural que encerra um código de comunicação; uma linguagem essencialmente híbrida (gestual e verbal, concomitantemente) na sua dimensão de prática esportiva e de espetáculo midiático de massa. E vimos também que é uma linguagem auto- suficiente e potencialmente universal, uma vez que seu código aberto permite a perfeita interação e absorção pelo amplo espectro formador das mais diferentes culturas. Uma linguagem em si, mas também uma verdadeira plataforma de sentidos e significados que se constroem e se nutrem no concurso cooperativo e aglutinador de várias outras linguagens. Talvez por isso mesmo é que o jornalismo, o rádio, o cinema, a publicidade, a televisão, enfim, os meios de comunicação em geral, tenham-se desenvolvido, enquanto linguagens que também o são, na esteira colaborativa e paralela da linguagem dos esportes, o futebol protagonizando o processo dada a sua centralidade cultural no mundo moderno. Enquanto espaço de narratividade que é em último e refinado grau, o futebol – ao transcender a sua própria temporalidade e espacialidade constitutivas –, tem ancorado sua eficácia simbólica e imbricação cultural na realidade funcional dessas linguagens todas. A leitura das narrativas de histórias curtas sobre o tema nos trouxe essa constatação e conclusão evidentes. Daí é que, mais do que a percepção desse fato, tivemos a consciência do seu desdobramento como um processo mesmo de criação de que os escritores muitas vezes se utilizam para pautarem as suas formalizações literárias sobre o assunto. Assim, não foi difícil, a partir dessa ilação, chegarmos a uma categorização tipológica de produção e de leitura desses textos que os englobassem na rubrica que resolvemos denominar de narrativas de “demanda lingüística híbrida”. Portanto, foi sob os auspícios dessa categoria analítica, digamos assim, que incluímos as narrativas que se estruturam a partir do entrelaçamento das linguagens que historicamente estão ligadas às formas de representação e constituição do próprio jogo de futebol: o rádio, o jornalismo, a televisão, a própria literatura (como vimos através da crônica), a publicidade etc. Nestes casos, essas linguagens, que na fatura textual se articulam sob o intuito retórico que preside a comunicação estética – e nessa situação particular, sob o predomínio significativo da linguagem literária – entram como elemento da narrativa por uma necessidade intrínseca (estrutural) ao próprio tema e desenvolvimento da ação fabular e são essenciais ao entendimento do conteúdo profundo dos textos. 228 Tomemos como exemplo inicial dessa questão, essa narrativa do escritor Hélio Pólvora – ver pág. 312 – sobre um fato datado e especialmente trágico para o inconsciente emocional brasileiro: o 16 de julho de 1950, dia da derrota para o Uruguai no Maracanã, na Copa de 1950, momento em que, contra todas as evidências de sua superioridade técnica, a Seleção Brasileira deixou escapar a oportunidade objetiva de ganhar o seu primeiro título mundial de futebol. O conto chama-se, Gol de Ghiggia (PÓLVORA, 2005, p. 97-103). Talvez justamente por isso, por glosar ficcionalmente um fato de repercussão traumática para alma individual do personagem-narrador, mas também coletiva do brasileiro em geral, amante ou simplesmente admirador do futebol, o chamado “Maracanazo”, 128 esse texto – que vai ter a linguagem do rádio como um dos seus principais elementos estruturador – venha carregado de um certo travo de fundo psicológico que convoca o leitor a experimentar aquele clima de ressaca típico das situações concretas de perda material ou simbólica das coisas. Antes de analisarmos a pertinência da linguagem radiofônica dentro do seu entrecho, diga-se, contudo, que tal intento de efeito dramático (o travo psicológico) é buscado logo no início da estória quando o narrador explora uma atmosfera onírica em que seu personagem acorda de um sonho colorido e alvissareiro em plena manhã da final da Copa, depois de observar que há tempos não tinha um sonho assim. “Afinal, um sonho feliz. Leve ele se sente, e diáfano, naquele 16 de julho” (PÓLVORA, 2005, p. 97), diz o narrador. A estratégia narrativa segue com a descrição adequadamente poética daquele ainda promissor dia do mês de julho: “Dia bonito, aquele, com sol bem brasileiro: forte, claro, luminoso. Um facho, um farol, um fanal” (Idem, Ibidem, p. 98). Afinal, para continuar a melodia marcadamente rítmica desse trecho do texto, nas palavras do próprio narrador, “o feio e o bonito, a salvação e as trevas dos infernos, o brilho e o opaco dependem muito do grau de delírio de cada um. Assim é, se nos parece, e como parece” (p. 98). Como no Brasil o futebol também encerra uma espécie de “delírio coletivo”, o trecho acima, o leitor já terá percebido, é claro e direto na sua meta de ir criando um clima de transição entre o otimismo das expectativas mais profundas do subjetivismo onírico do personagem que “se não o prendem ao chão, seguramente sobe aos espaços, adentra gramados interestelares para, quem sabe?, trocar passes com o príncipe Danilo”, etc..etc..etc; e os dados da realidade concreta do jogo, que o narrador faz ir surgindo aos poucos, em meio a múltiplas 128 Assim, genericamente, com esse nome criado pela imprensa, ficaram conhecidos os fatos que culminaram com a derrota do Brasil para o Uruguai, por 2 a 1, na partida final da Copa do Mundo de 1950, ocorrida em 16 de julho daquele ano em pleno estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro. 229 digressões de caráter intimista sobre o seu personagem; bem como da realidade exterior que o cerca naquele certo dia. Entretecendo tudo isso – e que nos interessa diretamente –, um fato textual bastante eficaz para dar suporte ao objetivo do escritor Hélio Pólvora de articular as instâncias do imaginário e do real na captação das emoções hauridas do universo do futebol, principalmente num momento tão capital como esse de uma final de Copa do Mundo, realizada no Brasil. Como já antecipamos, temos aqui a presença fundamental do rádio, que serve como veículo-ponte entre a realidade (reduto da razão) e a imaginação (reduto da emoção) do personagem. Sem a sintonia do rádio, a sintonia do espírito poderá esvair-se como sangue de veias abertas. [...] Fixa-se no rádio sobre a cristaleira. Concentrados estariam, com os pensamentos voltados para o triunfo acachapante, por goleada, os príncipes negros, mulatos e brancos, que arrastariam no gramado do Maracanã o manto de veludo e arminho de sua magia com a bola nos pés. Brasil, campeão do mundo. (PÓLVORA, 2005, p. 98) Observe-se que a representação do rádio nesta narrativa vai além do exigido pela sua representatividade reconhecida dentro da própria história do futebol da qual este veículo faz parte como um elemento estruturador e estruturante. Ele tem aqui uma fundamental importância funcional na própria caracterização do modo de ser do personagem principal, na sua transição existencial de menino para adulto. Veja-se esse exemplo: Palavras e músicas transmitidas pelo velho rádio, em sussurros e cicios, davam um sentido, ainda que tênue e vago, ao desespero de dias e noites vazias, de infância que se esvai, mas reluta em entrar na vida adulta porque pressente que se vai enlamear. (idem, ibidem, p. 99) Ou este outro, que liga o mundo subjetivo do personagem, o seu mundo interior de cuja formulação já participou, ao mundo real e presente daquele dia 16 de julho: Difícil acreditar que mecanismos minúsculos nele embutidos filtrem música, teatro ligeiro, canto e, naquele domingo, a narração de Oduvaldo Cozzi ou, se preferir, a gaita de Ari Barroso. Difícil crer que tão simples e banal aparelho, atacado certos dias por uma cascata de pigarros, tosse convulsiva e estalidos, seja o seu portal para o estádio do Maracanã superlotado. (idem, ibidem, p. 97) O rádio era mesmo esse relatado portal na década de cinqüenta do século XX. Por ele é que se enxergava mesmo o mundo real, através da sua dimensão imaginária. Por isso é que o personagem-narrador tem nele o instrumento condutor de suas angústias daquele dia. Armado dele é que vai enfrentar a ansiedade dolorosa que aqueles acontecimentos tornam inevitáveis: “[...] Come pouco, a mãe estranha. Ora, quem vai entrar em campo para enfrentar 230 o Uruguai de Obdulio Varela, El gran captán, o Uruguai de Máspoli e Mathias Gonzáles, de Schiaffino, Julio Perez e Ghiggia, pede refeição leve. Está em jogo a Copa Jules Rimet, o cetro máximo do futebol mundial. A felicidade enganadora das ruas” (idem, ibidem, p. 100),129 diz o narrador, misturando seu personagem ficcional aos personagens reais daquela narrativa futebolística de caráter ainda épico e depois, dramático, que se desenrolaria daí a pouco. Aqui, o personagem-narrador literalmente entra em campo para “enfrentar o Uruguai” e o resto da narrativa segue por conta do rádio, através do “bordado literário de Oduvaldo Cozzi” que “esgarça-se na chiadeira de panela de pressão”. Numa atitude narrativa de invenção e perspicácia, o narrador do texto cede a palavra ao narrador do rádio para que seu personagem continue sua estória tecida pelos fios da lembrança. Lembrança dramática e dolorida porque àquela altura do campeonato a partida estava empatada e só o que ouve são os ecos insistentes daquela frase famosa: “– No passarán!, proferidos pelos uruguaios, na voz profética de La Pasionaria” (PÓLVORA, 2005, p. 102). O jogo de futebol e o da narrativa descem ao seu final em ritmo de uma agonia que a memória sofregamente recupera para o leitor: A tarde suspensa estagnada aguarda o berro do desempate. Bigode, Bigode, eu te reconheço. Quem te mandou esquecer os carrinhos de half-back da várzea? Foi o técnico Flávio Costa? Ficas a ciscar na lateral esquerda, em torno de Ghiggia, olha que o tempo passa, Ghiggia é rápido, vai levando, avança pelo flanco direito, abre-se ali um corredor, de repente Ghiggia finge que vai cruzar para Schiaffino ou Miguez, ou então passar a redonda a Julio Perez, mas resolve chutar, o chute sai rasteiro, aflorando o gramado, entra no canto esquerdo de Barbosa, Uruguai 2 a 1. (idem, ibidem, p. 102) Pronto: a hybris dos gregos se instalou aí nesse fato comum de um jogo de futebol, o gol.130 Entretanto, devido às circunstâncias em volta, a situação de cúmulo da 129 A frase que encerra o trecho entre aspas parece ter sido composta como uma paródia estilizada em referência ao livro do cronista de costumes carioca, João do Rio, ele mesmo um dos entusiastas do jogo de futebol ao seu tempo, o início do século XX, no Rio de Janeiro. Cf. RIO, João do. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura – Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, 1987. 130 Tomamos a liberdade de fazer aqui uma utilização específica, que julgamos, porém, pertinente no contexto citado, do complexo conceito grego de hybris. No Grécia antiga, a hybris é relacionada ao conceito de moira, que em grego significa 'destino', 'parte', 'lote' e 'porção' simultaneamente; isto é: a parte de felicidade ou desgraça, de fortuna ou azar, de vida ou morte, que corresponde a cada um em função da sua posição social e da sua relação com os deuses e os homens. Nas tragédias gregas, o termo era utilizado para designar a causa da situação de cúmulo originada pela desmedida ou exagero de conduta que, desafortunadamente, opunha os seus heróis ao destino que lhes regia. Empregamos o termo aqui, livremente, para referir a “desmedida” da conduta do jogador Gighia em contrariar, com o seu gol, um “destino” que parecia ter sido previamente traçado pelos deuses do futebol em consignar a vitória daquela partida aos brasileiros, algo que, na verdade trágica dos fatos, nao aconteceu. Cf. COSTA, Lígia Militz da; REMÉDIOS, Maria Luiza Ritzel. A tragédia: estrutura & história. São Paulo: Editora Ática, 1998, p. 10. 231 expectativa dos brasileiros em ganhar a partida – algo tão óbvio que o destino, relapso, esqueceu de consignar –, a coisa se inverte e o que se deu... o que se deu... o que se deu... só a memória mítica do futebol brasileiro sabe. Pela força da magia da comunicação estética, aqui representada pela boa linguagem literária em perfeita colaboração com a linguagem radiofônica, esta narrativa de Hélio Pólvora é uma oportuna maneira de se experimentar tudo, outra vez! Ou de se exorcizar tudo outra vez. Talvez! Assim como a linguagem do rádio, o discurso televisivo adentrou o universo do futebol a partir dos anos de 1950 como uma dessas linguagens colaborativas que redimensionou toda a articulação simbólica do significado (ou significados) do jogo. A televisão imiscuiu-se no mundo do futebol de tal maneira que a sua própria configuração enquanto espetáculo de fruição por parte dos torcedores, agora espectadores, passou por modificações definitivas a ponto de alterar-lhe até o seu caráter ritualístico e sagrado, com a incorporação de novas demandas ao jogo impostas por essa nova realidade. Cite-se como exemplo a submissão dos horários dos jogos, nas várias competições nacionais ou internacionais, aos interesses do veículo, os quais passaram a intervir sobremaneira na estrutura ritualística do futebol, que pressupõe horários próprios de começo meio e fim em adequação e comunhão com a assistência dele participante. Ou a própria interferência direta da tecnologia discursiva televisiva que modifica e dirige o olhar para o jogo; a maneira de compreendê-lo e decodificá-lo como uma instância de expressão cultural não mais autêntica e direta, mas radicalmente modificada sob a ação mediadora dos artefatos tecnológicos da comunicação de massa. Estão nesse caso, como útil exemplo, entre tantos outros, as interferências do vídeo-tape, que possibilitam retroagir o olhar para o jogo, reconfigurando a nossa própria noção de realidade em presença ou em ausência; as nossas concepções de objetividade ou subjetividade aplicadas às coisas do mundo. A todas essas questões, a literatura de ficção não poderia ficar imune ao tomar o jogo de futebol como elemento de formalização de suas obras através do olhar atento e aguçado dos seus escritores. Este é o caso, por exemplo, do romancista e contista Sérgio Sant´anna – ver pág. 350-351 –, um dos mais inquietos e inventidos escritores da geração pós anos 70 do século XX, momento em que a literatura brasileira caracterizou-se por ousar experimentar – ao menos em faixa considerável da sua produção ficcional – novos caminhos e novos fazeres, visando um revigoramento atualizado para o ordenamento conseqüente de sua linguagem de expressão. Neste sentido, leiamos um dos seus contos de futebol, intitulado, No último minuto (SANT´ANNA, 2005, p. 141-148), em que o autor icorpora como elemento 232 estruturador da própria narrativa essa dimensão reconfiguradora da linguagem televisiva quando em pleno e direto concurso com a narratividade típica do jogo do futebol. O conto é muito inventivo e revela o domínio das formas de narrar em ficção, debruçando-se sobre aspectos relevantes do futebol quando entendido como metáfora lingüística da vida em alguns dos seus aspectos essenciais. O elemento do imponderável, presente tanto na vida quanto no jogo; a força das circunstâncias na definição de situações que parecem revelar certa autonomia dos objetos sobre os seres; a impotência destes diante de fatos consumados que informam a existência; a sensação de um tempo decisivo na configuração de estados sem volta na permanente transformação dos entes e das coisas são, enfim, alguns desses aspectos colocados em pauta por esta história de Sérgio Sant´anna. Mais uma vez entre inúmeras outras, no caso das produções ficcionais sobre futebol, a linguagem televisiva é requisitada como elemento formal e o que sobressai nessa narrativa, por conseguinte, é a capacidade que a televisão tem de potencializar os efeitos dos fatos decorridos sobre a consciência e o psiquismo dos que deles participam. Seja diretamente, ampliando a repercussão desses efeitos no íntimo dos seus protagonistas; seja indiretamente, reapresentando para nós espectadores (e, agora, leitores) dimensões múltiplas desses fatos em função da sua recorrente e sistemática repetição através das imagens que os configuram – passam e repassam – nesses tempos de modernidade. O caso aqui é o de um goleiro (outra vez, o goleiro) que conta a história de um lance imprevisto que o envolveu numa partida de final de campeonato e que, justamente por ser previsível o seu desenrolar, torna imprevisíveis e duros os impactos do seu desfecho no âmbito humano desse jogador de futebol. A história nada mais é do que o reviver, por parte do goleiro personagem e narrador, ao mesmo tempo, o drama em que tomou parte e que, dadas as circunstâncias do seu momento decisivo, tenta, por este recurso narrativo, compreendê-lo no que ele tem de mais incompreensível e de imponderável. “Canal 5”. Começa assim a narrativa. É uma rebatida de defesa deles. A bola vem alta e cai pro Breno, nosso médio- apoiador. Ele a mata no peito, põe no chão e aí perde o domínio da pelota. Mas ninguém vai se lembrar disso: que a primeira falha foi do Breno. A bola fica, então, para o meia-armador deles: o Luiz Henrique. É o momento do desespero, o último minuto. (SANT´ANNA, 2005, p. 141) Esse trecho, explique-se – como, ademais, todos os que vão ser transcritos aqui – é a descrição, pelo narrador, do lance capital que protagonizou e a que ele assiste depois pelas câmeras de TV de um dos canais que o transmitiram. Note-se o recurso da descrição 233 imagética da TV como a conferir objetividade plena a algo que, no interior do personagem- narrador, é vivido de forma intensamente subjetiva. [...] É um chute rasteiro, um centro chocho... E eu grito: ‘deixa’. Eu fechei o ângulo direitinho e caio na bola. Eu sinto a bola nos meus braços e no peito. E sei que a torcida vai gritar e aplaudir, desabafando o nervosismo, naquele último ataque do jogo. Eu tenho a bola segura com firmeza no meu peito e, de repente, sinto aquele vazio no corpo. Eu estou agarrando o ar. A bola escapando e penetrando bem de mansinho no gol. A bola não chega nem alcançar a rede; ela fica paradinha ali..., depois da linha fatal. (SANT´ANNA, 2005, p. 142) Como a não acreditar no que acontecera, tudo é literalmente repassado pelo narrador outra vez, agora através de um utilíssimo recurso da televisão. EM CÂMARA LENTA. [...] O ponta esquerda deles, o Canhotinho, está tão longe da bola que parece impossível que consiga alcançá-la. [...] O passe foi tão longo [refere-se ao passe que o adversário Luiz Henrique fizera a esmo: ‘É um desses lançamentos de araques na afobação de fim de jogo, só pra ver o que acontece’] que mesmo em vídeo-tape, já sabendo do jogo, a gente custa a se convencer que ele chegará a tempo de tocar na bola. Então me vem agora, essa sensação absurda de que ainda pode acontecer tudo diferente, e corrigir minha falha. (idem, ibidem, p. 142-143) Para conseguir um efeito cumulativo do seu drama – efeito que vai se ampliando à medida que a história avança –, o narrador conclui assim, a descrição do que via pelo canal 5: “Eu agarrei a bola, ela está segura nos meus braços e no meu peito. Nós vamos ser campeões. Eles param o tape só para mostrar isso: como eu estou tranqüilo com a bola. Neste instante, nós ainda somos campeões do Brasil”. Os trechos seguintes da narrativa fazem a ligação entre a sua dimensão puramente intrínseca ao futebol e a repercussão humana, já, do ocorrido. Daí ser funcionalmente interessante, o narrador mudar a sua perspectiva de visão através da mudança do canal de TV. CANAL 3. São vinte e dois minutos do primeiro tempo. Minha mulher senta ao meu lado e diz pra eu desligar a televisão e me esquecer daquilo tudo. ‘Amanhã é outro dia’, Ela diz. Amanhã é outro dia, eu penso. Eu vou sair na rua e ver o meu retrato em todos os jornais dependurados nas bancas: eu me preparando para defender aquele chute; eu com a bola nas mãos; eu com a bola perdida e já entrando no gol. Eu, o culpado da derrota. Eu, frangueiro, se não falarem pior: que eu estava vendido. (idem, ibidem, p. 143) “Quando vai começar o segundo tempo, minha mulher aperta a minha mão e fica me olhando assim meio de lado. Eu digo para ela ir dormir, não quero a piedade de ninguém” (SANT´ANNA, 2005, p. 144). O tempo passando, minuto por minuto. Eu ouço aquele barulho todo da torcida e é incrível como a alegria pode se transformar em tristeza tão de repente. Eu penso, também, como a vida se decide às vezes num centímetro de espaço ou numa fração 234 de segundos. E me volta aquela loucura, a sensação de poder modificar um destino já cumprido, fazer tudo diferente. Ir naquela bola de outro jeito, espalmá-la para corner, mesmo sem necessidade. (idem, ibidem, p. 145) Novamente o recurso da câmara lenta e do vídeo-tape para intensificar ainda mais a sensação do drama vivido e, diante do incompreensível, tentar compreendê-lo ao divisá-lo sob os mais diferentes ângulos: Tape parado: Eu estou com a bola segura e escondida nos braços e sob o corpo. Tape rodando lentamente: a gente percebe, a princípio, apenas que a bola se deformou: ela parece um ovo, com a ponta aparecendo entre os meus braços. É como se a bola inchasse e por isso se despregando do meu corpo e escorrendo mansamente pela grama. Até parar, caprichosamente, um pouco depois da linha fatal. POR DETRÁS DO GOL: No meio daquele inferno todo, eu me viro para trás e estou de cabeça baixa diante dos fotógrafos e cinegrafistas. Eu tenho vontade que o mundo desapareça ao meu redor. O mundo não desaparece. Eu cubro o rosto com as mãos e é assim que aquela câmera me focaliza. Eu cubro o rosto com as mãos aqui sentado diante do televisor, que me mostra cobrindo o rosto com as mãos lá dentro do gramado. (idem, ibidem, p. 146) Aqui fica concluída a mixagem dos três planos que envolvem a ocorrência vivida pelo personagem-narrador: o do jogo em si, quando o goleiro constata desolado o gol improvável que tomou; o do homem em jogo, quando ele sente o impacto do fato sobre os seus ombros e reage impotente, literalmente indefeso, e do jogo espetáculo, quando sua dor subjetiva é mostrada objetivamente pelas impiedosas objetivas das câmeras de TV. Daí que o narrador, para ressaltar todos esses elementos envolvidos num jogo de futebol moderno, e para compor uma mimese adequada a sua transfiguração pela palavra literária, tenha inteligentemente escolhido o suporte da linguagem da televisão e com ela fixado a maneira pela qual, através da lógica do espetáculo, um momento que é de experiência individual, torna-se de vivência coletiva. E para expandir ainda mais o âmbito de repercussão da sua falha de goleiro, e com isso expor mais precisamente a dimensão da sua dor interior, o narrador encerra a sua história a partir de mais um ângulo de observação em que a imagem cede lugar ao som, como a evidenciar, para o caso narrado, a eficácia da natureza tátil do veículo televisão, conforme preconizava deste meio de comunicação, o pensador Marshal McLuhan.131 O recurso de tirar partido do efeito cumulativo é o mesmo com as repetições da cena capital levadas ao paroxismo. 131 A natureza tátil do veículo de comunicação que é a televisão, implica a idéia de que, por suas características intrínsecas, sua mensagem envolve totalmente a atenção do espectador, uma vez que mobiliza quase todos os seus sentidos nessa operação. Foi analisando tal situação de comunicação, entre outras, que o pensador, Marshall McLuhan, formulou a sua célebre sentença em termos de teoria da comunicação segundo a qual “o meio é a mensagem”. Cf. McLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensão do homem. São Paulo: Editora Cultrix, 2006, p. 27. 235 CANAL 8 – Eles abriram os microfones e a gente escuta nitidamente os gritos da nossa torcida: ‘É campeão, é campeão’. Um grito que ecoará durante a noite inteira na cidade. Só que a torcida adversária que irá comemorar. ‘É campeão, é campeão’, o grito apenas mudando de um lado para o outro das arquibancadas. (SANT´ANNA, 2005, p. 146) [...] EM CÂMERA LENTA – [...] Eles voltam à câmara uma porção de vezes. Aquela bola que sai de dentro do gol e volta aos meus braços e daí ao Canhotinho e dele de volta ao Luiz Henrique. Aquela bola que sai de novo dos pés de Luiz Henrique e rola para a ponta esquerda e até a linha de fundo, onde o Canhotinho bate nela todo torto e de esquerda e daí aos meus braços e depois para dentro do gol. (idem, ibidem, p. 147) Eles repassam uma porção de vezes a jogada. [...] Como se fosse repetir-se para sempre, igual a um pesadelo. (idem, ibidem, p. 148) De temática simples, um evento relativamente comum em jogos de futebol (o lance em que o goleiro é traído pela bola, deixando passar um gol que todos – inclusive ele – asseguravam defendido: o chamado “gol frango”),132 o grande lance desse conto de Sérgio Sant´anna é a forma de narrá-lo. Um caso típico em que a forma ilumina o conteúdo. Conteúdo esse, o leitor pôde notar, tecido aqui por uma fabulação que é ela mesma rica em significados extras, e que por conseqüência disso salta da categoria de um mero evento de jogo para a dimensão de um daqueles pequenos dramas humanos que, mais do que as câmaras de TV, só as lentes da boa literatura sabem captar. 4.3.1 Lance de letras: no campo das hipóteses E já que estamos falando de linguagem, é o momento aqui de retornarmos, para tentar corroborá-la em evidência e plausibilidade com os exemplos textuais, a validade contextual de algumas de nossas premissas nesse campo. Estamos nos referindo àquela hipótese operativa aventada lá no início deste trabalho pela qual supúnhamos a idéia de que por ser o futebol um jogo que dadas as características intrínsecas e estruturais que o encerram, a sua dimensão comunicativa inevitavelmente opera também – no nível de sua representação simbólica – por meio de narrativas que articulam ou consideram essas mesmas características definidoras do jogo, ou seja: a magia, a imprevisibilidade, a surpresa, a beleza etc, que, no seu conjunto, são pertencentes à esfera do estético – da arte, por excelência. 132 A expressão designa, no vocabulário popular do futebol, um gol sofrido em decorrência da inabilidade ou erro do goleiro. Segundo o pesquisador e linguista, Luiz César Saraiva Feijó, “tal denominação parece que se prende à imagem de alguém que tenta agarrar com as mãos um galináceo esquivo, o que não é muito fácil, deixando a pessoa desconcertada, humilhada mesmo”. Cf. FEIJÓ, Luiz César Saraiva. A linguagem dos esportes de massa e a gíria do futebol. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro: UERJ: 1984, p. 101. 236 Neste sentido, temos a suposição de que no caso das narrativas ficcionais sobre o futebol brasileiro produzidas por nossos autores (escritores e jornalistas), parece haver uma sugestiva homologia entre a maneira como a prática do futebol é efetivada por nós (com uma gama de características próprias que constituem uma reconhecida escola brasileira de jogar bola) e a maneira como os nossos escritores-jornalistas vão tratando o tema, o que incidiria também na criação de uma “maneira brasileira” de narrar literariamente o futebol. Tal idéia, a nosso ver, fundamenta aquilo que lá atrás apontamos como a possibilidade real da existência, na nossa literatura de ficção, de um conjunto de procedimentos técnico-literários e estéticos que, historicamente espraiados sobre o campo temático do futebol – e nele interagindo ou incidindo com a força formalizadora das questões sociais e históricas específicas da nossa cultura – ensejaria já a configuração de um tipo específico de narrativa de histórias curtas em nossas letras: o conto brasileiro de futebol. É claro que a idéia em si não traz novidade alguma, já que se pode objetar que por meio dessa rubrica tipológica toda literatura nacional teria como construir suas narrativas futebolísticas, bastando para isso a presença do jogo como elemento também inserido e intrinsecamente ligado às formas de agir, sentir e pensar de determinado locus social e humano. Ocorre que o que queremos realçar aqui com essa idéia – para além de traçarmos singularidades duvidosas num campo em que a universalidade é que deve ser a norma configuradora, como é o caso da arte – é a noção de que pela história e inserção singulares do jogo de futebol na cultura brasileira, sua transformação em matéria e tema de fatura literária se deu mediante procedimentos específicos e até certo ponto também singulares, a exemplo do processo homólogo também ocorrido com as formas de apropriação pelos brasileiros da prática do próprio jogo inglês. Tudo isso nada mais é do que um “jeito malandro”, cheio de firulas, desabusado, avesso a formalismos demasiadamente cerebrais (ou demasiadamente racionais) com que os nossos escritores vão glosando o tema e demarcando a sua presença no escopo geral das realizações ficcionais de nossa literatura. Como exemplo – entre tantos outros testemunhos textuais –, veja-se o caso dessa narrativa de viés memorialístico composta pelo escritor Deonísio da Silva – ver pág. 294 –, sucintamente intitulada, 1958 (SILVA, 2005, p. 57-64), que traz o eporte bretão como tema – “E tudo isso escrevo para dizer que eu nasci em 1958. Dez anos depois de ter vindo ao mundo” – e na qual o autor, ao encetar uma jogada em que forma e conteúdo se irmanam num paralelismo de fundo tático, seu narrador começa dando um drible no leitor quanto as suas intenções com o manejo da palavra ficcional para expor as suas próprias motivações interiores como centralidade de uma história em que o jogo de bola entra como dissimulado leitmotif. 237 Se não, vejamos, a partir das palavras do narrador: A psicóloga disse que nasceu aí minha paixão por mulheres mais velhas do que eu. Não posso vê-las, sinto um aperto no coração, vontade de celebrar alguma coisa. Na última vez que fiz isso na rua com uma desconhecida, eu disse: ‘posso abraçar a senhora?’ ‘É sem maldade!’ ‘Mas aqui?’, ela disse, ‘aqui no meio da rua?’ ‘Aonde a senhora quiser’, eu disse. Ela falou de soslaio: ‘você disse que era sem maldade!’ ‘Mas é sem maldade’, eu disse, ‘pode ser naquele cantinho, perto do Banco do Brasil, em frente ao correio’. (SILVA, 2005, p. 51) Quem, ao ler esse trecho do texto de Deonísio da Silva, assegura estar se tratando de um conto sobre futebol? E quem, ao passar a vista na continuação da página, adquire a sensação, típica nesses casos, de que se vai ouvir falar de gols, dribles, jogadas miraculosas, partidas memoráveis, jogos inesquecíveis, enfim; aquela sensação de prolongamento, pela palavra, do fruir o mundo do futebol através da magia e o encanto místicos da literatura? “Entardecia. Agarrei aquela mulher de blusa branca e saia preta, de cabelos molhados, ela também me abraçou e disse: ‘eu não entendo mais os homens’. Eu disse: ‘eu também não entendo mais o mundo, como ele é diferente do que eu imaginava em minha infância!’ ‘Sua infância’, a mulher perguntou. ‘Sim’, eu disse, ‘sim, sim, sim’, eu repeti bem agarradinho, ‘sim, dona Estela, eu jamais esqueci da senhora!’ (SILVA, 2005, p. 61). E não tinha como esquecer mesmo, o narrador, pois essa dona Estela vem a ser a árbitra daquele jogo (agora sim, é que adentra as quatro linhas que delimitam a página do livro o universo também mágico e encantado do futebol) em que se enfrentariam, em tempos pretéritos, para tirar uma forra, dois meninos rivais do Grupo Escolar onde estudavam e onde um deles se depararia com a maior epifania de sua vida. Para contar o ocorrido, o personagem-narrador, ele mesmo um desses meninos (recurso ficcional bastante corriqueiro nas tramas textuais em que a infância é o elemento diegético por excelência das histórias que tem como meta o recorte proustiano da realidade reminiscente dos tempos da bola), apresenta, assim, dois dos principais participantes daquela história, depois de advertir que “Carlinhos jogava no time que dali a alguns dias enfrentaria o nosso e não perderia por esperar”. Um é ele próprio: “[...] Eu era meia-direita, meu modelo era Didi. Sabia que o príncipe etíope era uma elegância só. E procurava imitá-lo em campo. Mas eu só sabia dele pelo rádio. Jamais eu vira uma única jogada de Didi” (SILVA, 2005, p. 57). O outro, é o goleiro do seu time, de nome um tanto esquisito: “O nosso goleiro era Semenrique, enorme e gordo e, coisa surpreendente, com uma agilidade extraordinária. Seu 238 modelo era Gilmar. ‘Agarra, Gilmaaaaaaaaar!’, ele gritava quando pegava qualquer bola, por mais fraca que fosse” (SILVA, 2005, p. 57). Agora, sim, delimitado o tempo, o espaço e alguns personagens de intervenção na história, o narrador ocupa-se, a partir deste ponto, a desfiar, em meio a um tempo da narrativa que dura uma partida de futebol, as impressões que os acontecimentos daquele dia deixariam para sempre como marcas fundadoras de uma índole agora adulta e muito afeita à arte da escrita e da reflexão. E, por incrível que pareça, o futebol comparece neste contexto como uma espécie de mito fundador, um típico ritual de passagem, um universo litúrgico em meio do qual um menino vai se tornando homem através da interiorização dos ensinamentos da experiência lúdica e quase erótica que ali se desenrola em forma de epifanias e descobertas. Pode-se dizer que neste singelo conto de Deonísio da Silva, a magia da escrita e do jogo de bola se imbricam de tal forma que seu narrador pode perfeitamente ser visto como um exímio jogador que detém sobre si o controle tanto dos segredos da bola quanto da linguagem de teor literário. E mais ainda: que cada uma de suas boas jogadas num campo implica igualmente boas jogadas no outro, como se pode comprovar pelos trechos a seguir: Recebia a bola de Moacir. Não pude dominar direito, então toquei ao lado de um zagueiro deles, corri pelo outro lado, tomei a bola adiante, esse drible era chamado de meia lua, o zagueiro escorregou, todos riram muito e gritaram, segui em disparada em direção ao gol deles, eu queria fazer o meu de qualquer jeito, o Moacir apareceu de repente ao meu lado, pedindo a bola livre, dentro da grande área já, mas eu não passei a bola para ele e – vejam só! – quem aparece na minha frente como o último menino antes do goleiro? Justamente o Carlinhos! Não sei quanto duraram aqueles pequenos momentos que eu não sabia ainda medir na vida; frações de segundos... [...] Só sei que eu fazia que fosse e ouvia o Carlinhos ameaçar ‘tu faz que vai, mas não vai e eu e pego pelo outro lado’. Mas eu fui pelo mesmo lado porque num daqueles minúsculos e exatos momentos me lembrei de Garrincha, que ia para onde ameaçava ir, pela direita, por onde sempre saía, fiz o mesmo e chutei de pé esquerdo, mesmo não sendo canhoto, porque não dava tempo de trocar. A bola saiu mascada, mas passou pelo Carlinhos, que ainda teve tempo de se virar, passou pelo goleiro deles e entrou enviezada e torta lá no cantinho. 4 x 1 para eles, mas o meu eu fiz. Corri para dona Estela e nunca mais me esqueci daquele abraço. (SILVA, 2005, p. 60-61) O trecho é longo, mas, junto com este outro que segue, serve para dar a dimensão do sofisticado entrecho narrativo que Deonísio da Silva criou como que para comprovar a tal idéia hipotética aventada por nós de que parece haver uma homologia entre a maneira singular com que nossos melhores jogadores jogam o futebol (vejam-se justamente artífices como Pelé e Garrincha, por exemplo) e a forma igualmente ardilosa com que os nossos melhores escritores narram o jogo – ou alguns dos seus aspectos – através da arte da ficção. Corremos para dona Estela, o nosso Armando Marques de Saia. Linda aquela mestra! Eu tinha paixão por minhas professoras, mas a minha preferida era outra, que tinha um cheirinho bom e me alfabetizara. Seria fiel a ela a vida inteira porque o 239 prazer que a escrita me deu, sem exagero posso dizer que poucas mulheres me deram ao longo da vida. Ou melhor: se não fosse eu saber ler, não teria aprendido a amar as minhas amadas. (idem, ibidem, p. 58). Claro que a narrativa segue brindando o leitor com episódios diversos e variados no tom e no teor. Com lances de lirismo e de comicidade; de latente ternura e manifesta poesia; tudo isso fruto maduro de uma memória afetiva que se lembra a si mesma como o mais lídimo recurso de que o homem dispõe para, na lida imemorial da palavra com a vida, ou mais precisamente: da vida com a palavra, ele recorrer ao passado para dar sentido ao presente. E, como atesta o narrador, num fecho-síntese do que expusemos acima acerca da relação palavra/bola, tudo graças ao futebol: “Jamais tive a oportunidade de dizer a Garrincha, a Didi e a Vavá que eles me ajudaram a ser escritor, a ser professor, a estudar, a lutar, a virar partidas, ou ao menos a fazer o nosso” (SILVA, 2005, p. 52). Como se pode testemunhar pelo exemplo textual, bola e palavra, palavra e bola (para criar uma expressão metonímica do continente da literatura com o conteúdo do futebol, e vice-versa) se articulam de tal maneira nessa narrativa que é impossível não se captar a autoria do texto como sendo uma instância de expressão em que há um exímio jogador a desfilar argutas jogadas por sobre a relva espraiada e macia dos verdes campos da linguagem. Bem a exemplo do que sempre costumaram (e ainda costumam) fazer os grandes craques da pelota no verdadeiro campo de jogo. Outra jogada de firula, finta, drible, a começar pelo peculiar domínio da bola (o tema da história) antes de concluir o lance, o objetivo, o gol, a corroborar nossa idéia desenvolvida há pouco – a feitura de mais essa narrativa interessante de futebol na ficção brasileira –, é esse conto do escritor Antonio Carlos Olivieri – ver pág 268 –, sabiamente intitulado com uma expressão popular do mundo da bola, Ripa na xulipa (OLIVIERI, 2006, p. 9-25). Um sujeito que odeia futebol, a expressão veemente dessa aversão e as estratégias pessoais desenvolvidas para sustentar, num país como o Brasil, essa pouco comum ojeriza ao jogo são o tema desta narrativa bem escrita que, por um agradável afeito paradoxal, encerra uma verdadeira declaração de amor ao esporte das multidões. Dessa vez não é a forma que se impõe como elemento de fatura textual para realçar o tema, mas, ao contrário; o inventivo recorte de um aspecto inusual do seu assunto é que se destaca neste conto como o verdadeiro tour de force da matéria fabular. 240 É o caso aqui da prática literária alimentar a crítica teórica, sobretudo no seu papel didático de explicitar, para o leitor, os elementos técnicos manejados pelo escritor quando da feitura de matéria ficcional em estórias curtas. Num texto crítico cuja função era apresentar um panorama da arte do conto praticada no Brasil até pelo menos meados da década de 1970, o professor Alfredo Bosi assim se expressa ao tratar dos diferentes aspectos levados em conta na sua possível e potencial forma de fabulação: “Da dupla operação de transcender e reapresentar os objetos, que é própria do signo, nasce o tema. O tema já é, assim, uma determinação do assunto e, como tal, poda-o e recorta-o, fazendo com que rebrote em forma nova” (BOSI, 1997, p. 8). Pois, enfatize-se, esse é justamente o caso deste conto de Antonio Carlos Olivieri: mais do que a forma ou a sua linguagem, o seu tema singularizante, incomum, retirado do assunto futebol, é que demarca a eficácia estética na sua leitura e apreensão. Não que as estratégias lingüísticas utilizadas pelo autor não contribuam para isso, mas, sem querer teorizar, a operação textual que se impõe soberana aqui é a correta inserção do conteúdo na forma e não a da forma no conteúdo, como se verá. A narrativa é levada a efeito numa primeira pessoa por um narrador-protagonista que acorda atordoado e cheio de hematomas num hospital, sem saber o que lhe havia ocorrido e nem por que estava ali. Esse primeiro segmento do texto serve de estratégia para que ele introduza o assunto futebol na sua história depois que um aparelho de televisão é ligado no ambiente em que estava por uma enfermeira que prontamente se ausenta: “Ironicamente, as respostas vieram de um comercial da Fiat na TV, estrelado por Sebastião Lazaroni.133 Quando terminou, me lembrei de tudo...” (OLIVIERI, 2006, p. 12), diz. A seguir, o personagem-narrador dá uma inflexão inesperada no tema (como se fosse um drible curto no leitor) e apresenta a sua relação com o futebol: “Detesto futebol. Tenho pavor, aversão, raiva, desprezo e a mais veemente ojeriza. Distribuo a culpa desse ódio visceral entre a época e o país onde nasci, entre mim mesmo e meu pai, nessa ordem (para descrédito dos freudianos)” (idem, ibidem, p. 12), argumenta ao observar que só quem não nascera ou crescera no Brasil, nas décadas de 1960 e 1970, é que talvez consiga entender o que ele está falando. Salienta que naquele tempo, muito mais do que uma paixão popular, o futebol era mesmo uma espécie de religião nacional a qual deviam imperiosamente devoção todos os brasileiros do sexo masculino. “Escusado dizer que quem não agisse do modo 133 No texto do aludido comercial de TV, o técnico da Seleção Brasileira de futebol, Sebastião Lazaroni, que foi à Copa da Itália, em 1990, explica a um guarda nas ruas de Turim, que a despeito do seu sobrenome, Lazaroni, é brasileiro e está guiando um Fiat Uno feito no Brasil e exportado para a Itália. Ver link: http://il.youtube.com/watch?v=pv8jFkeYD00 Acessado em 20/10/2010. 241 desejado pelos sacerdotes do fundamentalismo futebolístico era logo diagnosticado de retardamento mental ou pederasta” (idem, ibidem, p. 13), assinala. A explicitação da sua situação de relação com o jogo da bola é arrematada com uma argumentação de caráter digamos técnico porque, segundo ele, a sua incompatibilidade com o futebol não se sustentava numa pretensão qualquer de questionar a legitimidade do culto à bola e ao gramado. “Longe de mim tal heresia! Tratava-se tão-somente de minha incapacidade de transferir aos pés as habilidades das mãos, de modo a conduzir a pelota em qualquer direção, de fazê-la ganhar vida, loquacidade e esperteza, ou simplesmente de passá- la adiante a um companheiro mais hábil” (idem, ibidem, p. 13). A intenção de inflexionar ainda mais o tema (e criar uma tensão sobre ele) é intensificada com a revelação de que, ao contrário, ao invés do pendor pelo futebol, o que o fazia extrair verdadeiros deleites estéticos era o seu gosto por filmes de terror. “É claro que esses pendores góticos se manifestavam para o mais profundo desgosto do meu pai, atleta na juventude, freqüentador habitual de estádios e corintiano roxo. Não foram poucas vezes que eu o flagrei atrás das portas, comentando com a minha mãe em surdina: “– Tem alguma coisa errada com esse menino, Lenora...” (OLIVIERI, 2006, p. 14). Como o pai achasse que havia mesmo algo errado por ali, agora o personagem- narrador passa a contar uns detalhes da sua história que caberiam perfeitamente na estrutura de um romance de formação. “Meu velho era um homem de boa vontade e acreditava que existia solução para qualquer problema. Sem hesitar, resolveu assumir o papel de pai- educador. Começou tentando me ensinar a fazer embaixadas” (idem, ibidem, p. 14). Todavia, a estratégia paterna não logrou efeito, o que forçou uma mudança imediata de método: “Se eu era incapaz de jogá-lo, isso não significava que não poderia assisti-lo e me tornar, pelo menos, um bom torcedor”. Aqui o personagem protagonista da história desfila para o leitor as duras provações a que foi submetido nesta fase de aprendizagem e de ritual de entrada forçada no mundo do futebol. Fala que dos 9 aos 16 anos foi obrigado a acompanhar o pai a tudo que é estádio: Morumbi, Pacaembu, Canindé, Parque Antarctica, etc. E mais: como o pai encarasse a coisa como uma missão pedagógica, ele era obrigado a ver de tudo quanto era partida pelo seu Estado à fora. Portuguesa Santista x Quinze Piracicaba, Ponte Preta x Guarani, Paulista de Jundiaí x Brangantino. “Credo” (OLIVIERI, 2006, p. 16), exclama sonoramente o narrador. Contudo, eis que ele inventa uma contra-estratégia para enfrentar a situação pelo seu ponto de vista. “Levava no bolso do casaco gibis ou até mesmo livros e – enquanto o meu pai se deixava hipnotizar pelos chutes – eu me dedicava às paixões: Drácula, a Múmia, o 242 Lobisomem... [...] Desse modo, li uma edição de bolso de Edgar Allan Poe, entre um São Paulo x Palmeiras, um Santos x Fluminense, um Corintians x Flamengo. Até que meu pai descobriu o expediente e – desesperado – resolveu me decretar um caso perdido. Se não fosse pela insistência de mamãe, acho que ele teria me deserdado” (idem, ibidem, p. 16). Agora, os dois momentos seguintes da narrativa – aqueles que servem para consolidar na mente do leitor a relação conflitante do personagem com o mundo do futebol, e, com isso, preparar o seu desfecho por meio de um flash back extremamente comum mas ainda muito funcional –, revelam um narrador bastante atento com o rendimento técnico da simetria fundo e forma; ou conteúdo e forma do conteúdo, para dizer melhor o recurso de se adequar, num texto de ficção, a relação do seu motivo com a maneira coerente de narrá-lo. O recurso é conseguido aqui através do bom manejo do tempo narrativo em que os períodos de realização de copas do mundo servem de pretexto para a explicitação da historicidade das peripécias ativadas pelo personagem que detestava futebol. “A concretização dos meus mais temidos pesadelos acontecia de quatro em quatro anos, com a realização da Copa do Mundo – o que tornava o futebol onipresente. [...] Ainda por cima, a programação da tevê era completamente alterada, girando em exclusiva razão do calendário esportivo” (OLIVIERI, 2006, p. 17). O trecho abaixo, um tanto longo, é verdade, será citado aqui por causa da sua importância para o entendimento, por parte do leitor, das razões que levam o personagem- narrador a enfrentar as suas agonias com a perdição de por em prática uma idéia cujas conseqüências o levam finalmente ao hospital onde se encontrava no início da sua história e que, tecnicamente, é também o seu fim. Essa sua trajetória, já se disse, é pontuada pela passagem das copas do mundo, uma por uma, até a do ano de 1990 que liga os fatos narrados ao ocorrido com o nosso narrador. O clima de histeria coletiva arrastava todo o resto da vida. O Brasil inteiro enlouquecia. [...] Resumidamente, as possibilidades de reação das massas eram as que seguem: 1) Em caso de derrota do Brasil numa semifinal (antes disso era impensável e praticamente impossível), a Copa era rapidamente esquecida, após uma semana de acusações ao técnico, ao treinador, aos cartolas, aos jogadores e ao massagista; 2) Se a derrota viesse na final, havia duas alternativas: a) luto de três dias, seguido de amnésia aguda, e b) breve comemoração por termos sido não vice- campeões, mas campeões morais, seja lá o que isso signifique; 3) Vitória e subseqüente apoteose, como pude lamentavelmente constatar no fatídico ano de 1970. (idem, ibidem, p. 17) 243 A história agora caminha para o seu final, não sem antes, porém, contudo, todavia (o exagero retórico é nosso), o personagem-narrador narrar um por um, copa a copa, os fatos que encaminharam a sua perdição: Copa de 1974. Ano que começou bem, pois em janeiro arranjou sua primeira namorada, o que deixou um marmanjo de sua classe morrendo de inveja. “Como um cara como eu – que nem jogava futebol – podia marcar esse gol de placa no campo afetivo?” (OLIVIERI, 2006, p. 18). Foi em 1974 também que arranjou uma justificativa filosófica para a sua aversão ao futebol. Aquele esporte, segundo suas considerações, agora apoiadas nas idéias de Karl Marx, não passava de um meio de alienação das massas, o ópio do povo, como se dizia então, em plena ditadura militar. “Passei a olhar os meus semelhantes com a superioridade moral dos intelectuais de esquerda e me lixei para a copa do mundo” (OLIVIERI, 2006, p. 18-19), afirma, com desdém. Copa de 1978. Foi durante esta copa, realizada ainda em meio à ditadura militar, que o nosso personagem fez uma descoberta sensacional. “Mas como não havia meios de me refugiar deles, percebi que podia usufruir de um extasiante prazer íntimo em torcer contra a Seleção Brasileira” (OLIVIERI, 2006, p. 19). Copa de 1982. Assim as coisas iam quando neste ano o Brasil montou um dos melhores times de sua história e a situação voltou a ficar ruim para o nosso anti-torcedor. A Seleção não decepcionou fazendo uma campanha triunfante. Venceu a Rússia, a Escócia, a Argentina e bastaria empatar com a fraquíssima esquadra italiana para o Brasil chegar às semifinais. Aí, as coisas deram uma reviravolta. “[...] Como diz o povo, o futebol é uma caixinha de surpresas. O artilheiro Paolo Rossi atendeu às minhas preces. Não pude deixar de comemorar seu vitorioso golaço, o terceiro da partida, gritando: “– Forza, Azurra!!! “Apoplético, meu pai quebrou a bengala na minha cabeça e me botou para fora de casa” (OLIVIERI, 2006, p. 20). Copa de 1986. Esse mundial, apesar de não ter tido importância nenhuma para o nosso personagem central, foi, contudo, a Copa em que aconteceu um fato decisivo para essa sua história. Foi o mundial em que surgiu para o mundo a figura de um dos maiores jogadores de futebol de todos os tempos e isso não lhe passou incólume: “[...] pela primeira vez na vida um 244 jogador de futebol conquistou a minha afeição e simpatia”, registra para em seguida lembrar feliz, que Diego Maradona, o chamado Pibe de Oro, era também um craque na trapaça e no cinismo. “Depois de um gol com a mão sobre a Inglaterra (de que só o juiz não enxergou a invalidade), Dieguito ainda brindou o público com essa pérola do descaramento: “– El gol fue de cabeza, La mano que se vio... era de Dios!” (OLIVIERI, 2006, p. 20-21). Finalmente, chega a Copa de 1990. E, com ela, a execução de seu plano mirabolante para torcer contra o Brasil, que é, no sentido trágico da expressão, o ápice dessa sua história. “Pela primeira vez na vida, esperei ansiosamente a realização de um novo campeonato mundial de futebol. Quem me conhecia e me via prestar atenção nos jogos do Brasil nas eliminatórias, não conseguia entender o que estava acontecendo. Minhas verdadeiras intenções, para lá de maquiavélicas, não podia revelar sequer para Maria Emília – a mulher com quem eu ia me casar em breve” (OLIVIERI, 2006, p. 21). E como esse segredo fosse tamanho, retome-se aqui a sua importância funcional em literatura, já que é nesse componente estrutural das narrativas que se assenta a própria noção de suspense, elemento sempre providencial na arte de narrar. E diga-se, a propósito, que o que reponta nesse texto (que também utilizamos como peça demonstrativa da nossa hipótese de trabalho) como poderoso trunfo retórico, é a habilidade de um escritor em tornar instigante, novo, um assunto que parece velho. Tudo isso por obra de uma pequena inflexão no tema, apenas, que redimemsiona todo o seu assunto de fatura. 4.4 Jogando com a imaginação: as obras e seus autores Encerrado o que chamamos de leituras verticalizantes do assunto futebol no âmbito do conto ficcional brasileiro, isto é, analisado o tema a partir de alguns escritores brasileiros que o formalizaram como criação literária pertinente em função do ângulo de abordagem que escolhemos para estudá-lo no nosso trabalho, o que implica refleti-lo à luz das categorias, conceitos e métodos fornecidos pelas modernas correntes das teorias literárias e jornalísticas, tendo obras e autores sido submetidos a grades explicativas e classificatórias de leitura que ousamos criar para este fim, apresentamos, a seguir, o que denominamos de uma amostra panorâmica de toda a produção literária brasileira do tema do futebol no gênero de histórias curtas. Tal amostra, conforme já explicado, pretendemos que fosse o mais abrangente e representativa possível da prática em todo território nacional da literatura ficcional em torno 245 do futebol. Nesse ponto, importa mais agora – até porque isso nunca foi no Brasil com tal abrangência – o registro historiográfico de autores e obras que particularizaram suas intervenções artísticas tendo esse jogo como motivo literário a que emprestaram suas mais diversas orientações de sentido e de preocupação. Sendo assim, a nosso ver, não restava outra maneira adequada de proceder tal intento que não fosse a criação de uma espécie de guia literário do tema do futebol nas letras brasileiras, ressalvada a sua formalização específica no gênero conto, recorte que já explicamos ter sido o item de focalização teórica do nosso estudo. Daí, como corolário e complemento inevitáveis desse nosso trabalho, a pertinência da criação, por nossa parte, desse que denominamos Guia de leitura do tema do futebol no conto ficcional brasileiro, que segue. A sua concepção é simples tanto na forma quanto no conteúdo, mas foi orientado para atender a idéia geral de firmarmos com ele uma abordagem historiográfica da presença do futebol em nossa literatura e, ao mesmo tempo, marcarmos um ponto de vista particular através do qual esse jogo possa ser reconhecido como sendo ele mesmo um elemento já intrínseco às formas pelas quais a nossa literatura incursiona pelo âmbito geral da cultura brasileira, nos seus mais diferentes aspectos de realização. Nele, por via de conseqüência, a amostragem pretendida se dá pela entrada, em ordem alfabética, de autores e obras que, pelo menos uma única vez em suas efetivações, incorporaram o tema do futebol e o tornaram motivo – principal, correlato ou acessório – de suas formalizações literárias na forma do conto. Isto posto, acrescentamos que era oportuno, para podermos atender ao cerne da preocupação geral do nosso estudo (uma abordagem do tema desse jogo que relacionasse metodologicamente produção literária e produção social; a escrita estética dos escritores e a movimentação histórica dos atores sociais que, num espaço determinado – a sociedade brasileira, que incorporou o futebol como jogo cultural predominante desde o início do século XX – inevitavelmente se imbricam a tal ponto que uma dessas esferas necessariamente se reflete na outra) fazer uma lista de resumos críticos das obras relacionando-as aos seus respectivos criadores. Assim, no presente Guia, cada entrada de um autor vem acompanhada de uma pequena notícia biobibliográfica para situá-lo, e a sua obra, no contexto da incorporação daquela (ou aquelas) peças específicas sobre o tema do futebol que o seu conjunto artístico apresenta. Nesse sentido, os resumos críticos que buscam analisar, contextualizar, avaliar, situar e dimensionar para o leitor o grau de pertinência das obras em relação ao nosso escopo de abordagem acima referido (que vêm sempre antecipados do título de cada obra respectiva), foram concebidos para complementar, com uma leitura mais panorâmica do tema do futebol 246 em nossa literatura, aquilo que já consideramos uma visada mais verticalizante do assunto, algo que feito através de categorias analíticas de leitura na parte imediatamente anterior a deste mesmo capítulo. Eis, portanto aqui, devidamente apresentada, tanto a sua justificativa metodológica quanto a pertinência historiográfica do nosso Guia de leitura do tema do futebol no conto ficcional brasileiro, a seguir. 4.4.1 Guia de leitura do tema do futebol no conto ficcional brasileiro 4.4.1.1 Adriana Simon Adriana Simon nasceu em São Paulo, capital, em 30 de novembro de 1971, mas morou no Rio de Janeiro e em Miami, Flórida, Estados Unidos. É engenheira, formada em Mecânica Industrial, torcedora do São Paulo Futebol Clube e sempre gostou de escrever literatura de ficção científica. Entre seus trabalhos, usualmente concebidos na forma de histórias curtas, destacam-se os contos, Mar de Janeiro, Missa, Tentativa de Invasão e As Irmãs, publicados em 1997, na revista Quark, especializada neste tipo de literatura. Em parceria com Gerson Lodi-Ribeiro, escreveu o conto abaixo, O rude esporte humano, e integrou a coletânea de histórias de ficção científica, Outras Copas, Outros Mundos, organizada por Marcello Simão Branco e publicada pela editora Ano-Luz; Grupo PECAS, São Caetano do Sul-SP; 1998, em que consta tal narrativa. O rude esporte humano Narrativa de ficção científica que mostra o futebol como um fato cultural total a ponto de dever ser transplantado para outros planetas como fator de revigoramento sócio- cultural de modos de vida alienígenas e longínquos, fortalecendo vínculos intergalácticos e intercâmbios cósmicos. A história gira em torno de um habitante de outro planeta (o distante Callis) que é nomeado Conselheiro de Entretenimento com uma missão a realizar junto ao seu povo, segundo o narrador do conto. “Tudo depende disso. A decadência cultural e moral devia ser afastada a qualquer custo, ou seu povo se tornaria dentro de alguns breves milênios mais uma daquelas culturas interestelares extintas do passado galáctico”. Com esse intuito, portanto, é que Cirar – o Conselheiro de Entretenimento de Callis – decide fazer mais uma de suas viagens virtuais interplanetárias e fortuitamente se depara com a prática do futebol na região do cosmos denominada Terra. A partir daí, o futebol é tratado na narrativa como um jogo fascinante e apto a resolver os problemas daquela cultura em decadência. A narrativa, 247 que se encaminha de forma clicherizada, com todos os tiques de linguagem das histórias do gênero de ficção científica – até mesmo a antevisão de um fato histórico futuro já comprovável no presente, a realização de uma Copa do Mundo no Brasil em 2014 (no texto, em 2018) –, esboça ficcionalmente uma questão interessante: o jogo é transplantado para Callis com toda a sua ontologia díspar e multifacetada onde o quinhão de violência a ele inerente reponta – tanto na terra como nos céus – tal qual uma parte a ser extirpada do todo deste esporte, mutilando, assim, com a própria força da operação, a paradoxal essência de sua beleza e magia, que a história glosa muito bem e de forma empática e bem intencionada. 4.4.1.2 Aércio Consolin Aércio Flávio Consolin é paulista de Morungaba e nasceu em 10 de janeiro de 1941. É escritor e professor. Publicou seu primeiro livro de contos, O Cabide, em l974, e não parou mais. Recebeu o Prêmio Guimarães Rosa, em 1976, com o livro A Dança das Auras, que está entre suas principais obras, a exemplo de Fadário, Mancha de Sol, Vôos do Coração e Entreato Amoroso. Em 1976, participou da coletânea O Galinho Garnizé e Outros Contos, uma antologia das obras vencedoras do Prêmio Walter Auada, em Ribeirão Preto (SP). Foi premiado, então, em primeiro lugar entre 1.150 obras inscritas. Fez, também, uma adaptação para o cinema, de O Arremate, episódio do filme Contos Eróticos, de 1977, com roteiro e direção de Eduardo Escorel, interpretado por Lima Duarte, Lisa Vieira e Castro Gonzaga. O conto sobre futebol, Jogo encoberto, foi publicado na coletânea, Contos Brasileiros de Futebol, organizada por Cyro de Mattos, e publicada pela Editora LGE de Brasília, em 2005. Jogo encoberto Um gol contra figurando um perturbador ato falho faz a correlação temática entre o jogo de futebol e o jogo da vida, neste belo conto de Aércio Consolin. Narrado em primeira pessoa, marca textual dos encaminhamentos ficcionais de viés memorialístico, o texto apresenta, através de Zé Pedro, quarto-zagueiro de um time de amigos de uma cidadezinha do interior paulista, um quadro psicológico que remói o remorso vivido por um personagem que admirava outro no plano do mundo do futebol, mas que teve que traí-lo no plano da vida prática, ao apaixonar-se pela namorada do amigo, e parece que correspondido. 248 4.4.1.3 Aldyr Garcia Schlee Aldyr Garcia Schlee nasceu em Jaguarão, Rio Grande do Sul, em 22 de novembro de 1934. É escritor, jornalista, tradutor, desenhista e professor universitário. Como escritor, a sua especialidades é a criação literária, com ênfase na literatura uruguaia e gaúcha, enfocando sempre as questões da identidade cultural e das relações fronteiriças. Por isso, alguns livros seus foram primeiramente publicados no Uruguai pela editora Banda Oriental. Garcia Schlee criou o jornal Gazeta Pelotense; ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, foi fundador da Faculdade de Jornalismo da Universidade Católica de Pelotas–UCPel e professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas-UFPel, por mais de trinta anos. Em 1953, aos 19 anos, desenhando e fazendo caricaturas para jornais de Pelotas, ele venceu 201 candidatos no concurso promovido pelo jornal carioca, Correio da Manhã, para a escolha do novo uniforme da Seleção Brasileira de futebol. Após o concurso, portanto, a então Confederação Brasileira de Deportos-CBD oficializou o uniforme verde e amarelo criado por ele e que é usado até hoje. Como prêmio, Aldyr ganhou o equivalente a vinte mil reais e um estágio no Correio da Manhã, no Rio de Janeiro, onde pôde conhecer e conviver com figuras expoentes do jornalismo da época como Nélson Rodrigues, Antonio Calado, Millor Fernandes e Samuel Wayner, entre outros. Recebeu duas vezes o prêmio da Bienal Nestlé de Literatura Brasileira e foi três vezes premiado com o Prêmio Açorianos, também de Literatura. Já publicou, entre outros, os seguintes livros de contos: Contos de sempre (1983); Uma terra só (1984); El dia en que el papa fue a Melo (1991); Linha divisória (1998) e Contos de Verdades (2000). Os textos de sua autoria que integram este Guia fazem parte do livro de histórias curtas sobre futebol intitulado, Contos de futebol, publicado no Brasil pela Editora Mercado Aberto, de Porto Alegre-RS, em 1997. Aquela tarde impossível História de fundo épico em que é narrada, a partir de dois planos espaciais distintos – um cinema numa cidadezinha do Uruguai (o cine Rio Branco) e um estádio de futebol no Brasil (o Estádio Municipal Mendes de Morais, atual Maracanã, no Rio de Janeiro), as circunstâncias sob as quais acontece a histórica derrota do Brasil para o Uruguai no Maracanã, em plena Copa do Mundo de 1950, momento em que contra todas as evidências de sua superioridade técnica insofismável, a Seleção Brasileira deixa escapar a oportunidade objetiva de ganhar o seu primeiro título mundial de futebol. Um tanto autobiográfica, a narrativa 249 mobiliza as emoções vividas por um garoto de treze anos que, por um recurso ficcional literalmente cinematográfico, se desloca até o Brasil para ir ao Maracanã assistir ao grande jogo final da Copa, e, simultaneamente, fica no Uruguai, onde assiste a um filme de Olinda Bozán que “passa com claridades das portas se abrindo e fechando, das cortinas a todo o momento levantadas e, apesar do barulho que há na sala, e da altura das vozes das figuras enormes na tela, é possível distinguir ao mesmo tempo o metralhar distante de uma transmissão de futebol”. É essa mistura de ambiente, portanto, expressa na evocação simultânea das imagens geradas pelo cinema, pelo rádio e pelo próprio estádio onde o jogo se desenrola em presença, que confere ao testemunho reminiscente, mas eloqüentemente vivo de Aldyr Garcia Schlee sobre essa sua experiência de menino amante do futebol, uma aura de epopéia moderna condensada numa estória curta. Sobre Garcia Schlee é necessário dizer, para se compreender melhor o significado humano dessa sua história, que sua obra de escritor é sempre inspirada no confronto entre identidade pessoal e nacional, exemplificado por sua própria lealdade entre Uruguai e Brasil, pois que nasceu numa cidade fronteiriça entre os dois países, a Jaguarão da sua infância gaúcha. “Minha escrita é sobre o outro lado. É uma tentativa de superar a linha divisória”, costuma dizer. Já sobre esse episódio, que entrou para a história do futebol brasileiro como uma espécie de fratura mítica; uma ferida, um trauma, e que marcou fundo a alma brasileira, justamente porque ele nos atualiza sempre a incapacidade que temos de compreender o incompreensível, é necessário frisar que pelas palavras mágicas da escrita do autor, ele nos chega também com essa intenção tácita de reparação. Mas uma reparação imantada de irresistível fascínio, pois que diante da certeza que tínhamos de ganhar a Copa, o jogo nos mostra (tanto o do futebol quanto o da literatura) que tudo pode não ser bem assim. “Talvez uma certeza de que não será bem assim; e essa certeza, essa dúvida que persiste, é na verdade a esperança que faz de cada jogo um novo jogo e do futebol o último receptáculo da magia verdadeira, da magia que encanta porque não tem mistério – é pura magia só, feita sim de surpresa, mas da surpresa do que nunca pôde deixar de ser esperado: a surpresa gostosa que se faz um pouco de dúvida, um pouco de certeza, nas quais se desfaz e se concretiza toda a esperança”. E como se não bastasse isso tudo, lembre-se ainda que além de legar-nos belas páginas literárias sobre futebol, Aldyr Garcia Schlee já havia conquistado o direito de ter seu nome gravado na memória da alma brasileira. Foi ele quem desenhou aquele que é de fato o símbolo talvez mais reconhecido no mundo (mais até que a bandeira brasileira) quanto ao reconhecimento internacional da nossa nacionalidade: o uniforme verde- amarelo da Seleção Brasileira de futebol. 250 Maria Adélia Conto vazado em tonalidade de saga, lenda – quase mito – cuja história o narrador fundamenta através do processo narrativo de caracterização de uma personagem central. Tal personagem é composta de uma substância misteriosa, recoberta de densidade lírica e cariz autocentrado, traços que a habilitam a monopolizar o enredo, num claro intuito de comunicar, através dela, uma singular experiência e trajetória existencial sui generis. Trata-se de uma mulher cuja existência, numa localidade erma e esquecida no Sul do Brasil, o povoado de Airosa Galvão, é entretecida literalmente entre seu ofício prodigioso de fazer bordados e seu inusitado gosto pelo futebol, notadamente sua paixão pelo América Futebol Clube, do Rio de Janeiro, para cuja sede costumava escrever cartas e mais cartas sem que ninguém soubesse o motivo, conteúdo ou teor. A prosa é conduzida como se fosse um bordado; tecida pelos fios da memória coletiva do povoado, cuidadosamente alinhavada e costurada ponto a ponto, sendo estes os pontos de vista sobre a tal enigmática figura, que cada morador se propõe a revelar, numa atmosfera enevoada e penumbrosa em que verdade e invenção se confundem e se completam na composição do retrato humano que daí sobressai. A Maria Adélia deste conto de futebol se ergue, então, nesta narrativa, como um poderoso contraponto entre a solidão ontológica do ser humano – viva ele em Nova York, Rio de Janeiro ou Airosa Galvão – e a potencial experiência de congraçamento; partilha de sentido sobre o mundo; senso de pertencimento comum da espécie, que o jogo da bola proporciona aqui ou alhures, fato que o narrador corrobora com a seguinte advertência ao fim de sua história: “O leitor curioso terá dificuldade para chegar a Airosa Galvão – e já não encontrará lá quem o ajude. Se escrever para a rua Campos Salles, 18 – Rio de Janeiro, talvez tenha mais sorte. Se conhecer, entretanto, o hino do América Futebol Clube, não precisará escrever”. Maestros Del Fútbol O encanto pelo jogo de futebol é aqui revelado ao paroxismo, nessa narrativa em que um homem já de idade relembra, entre saudoso e gratificado, os momentos que conviveu com dois dos maiores atacantes da história do futebol mundial: Alcides, el Nato, e Oscar, el Cotorra, como eram chamados no início de suas carreiras, começadas nos campinhos de várzea do bairro do Cerro da Vitória, num certo país da América do Sul. Não sabem de quem se trata? Pois a história em questão se encarrega de ir desvendando para o leitor, através de um comovente registro de alteridade autêntica – o personagem-narrador usa a primeira pessoa 251 testemunhal para afirmar a todo o tempo o que sente por e através dos dois amigos –, o nascimento de uma admiração ímpar por aqueles que, ao contrário do seu caso, seriam considerados dois dos mais bem sucedidos goleadores do mundo da bola aos pés. “O magro Alcides, Alcides – el Nato, como se fosse eu, autorizado enfim a se fardar! Eu me senti outra vez no meio, no posto de Jacinto, de novo ao lado de Oscar, de Oscar – el Cotorra, outra vez junto com os amigos, como nos campinhos do Cerro da Vitória, alto e sem jeito, mas emocionado e feliz por eles, cujo contentamento e alegria escondiam a dureza e seriedade daquele trabalho transformado em paixão por todos nós”, registra assim, o narrador, o momento em que seus dois companheiros ascendem ao time principal do Peñarol, na primeira divisão, para formarem, no seu dizer, a “esquadrilha da morte”, a linha de frente que havia de liquidar com todos os adversários na memorável campanha invicta do time, na temporada de 1949. E a narrativa segue tratando em detalhe a relação de amizade e admiração pelo jogo da bola e, em particular, por aqueles dois jogadores que seriam considerados “mestres do futebol”, na estima crítica da imprensa e torcidas de todo o mundo. Até que um dia essa história dos três amigos, que se passa no Uruguai, aporta no Brasil. É quando o narrador- personagem, depois de vinte anos sem ver os dois amigos (ele tinha deixado o Uruguai sem que eles soubessem), retorna ao Estádio Centenário par ver um jogo do Peñarol e matar as saudades. O trecho que segue explica tudo: “Sentei-me a uma distância prudente, de modo a vê-los sem ser visto. O Peñarol entrava em campo saudado pela torcida. – Sabe quem são aqueles dois, lá? – me cutucou um tipo, a meu lado. -? - São Ghiggia e Míguez, em carne e osso. - Sim, Alcides Edgardo Ghiggia e Oscar Omar Míguez, respondi-lhe, encerrando o assunto”. Ghiggia e Míguez, é bom que se enfatize, formavam o ataque da equipe uruguaia que arrebatou do Brasil aquele que seria o primeiro e mais merecido título mundial da nossa seleção nacional de futebol, na partida final da Copa de 1950, em pleno Maracanã, bem em frente do nariz de mais de duzentos mil brasileiros, impingindo uma dor que até hoje cria espasmos no espírito esportivo nacional. Ghiggia fez o gol da vitória celeste por 2 a 1, numa partida em que o Brasil precisava apenas de um empate para sagra-se Campeão do Mundo pela primeira vez na sua história. Empate 252 Narrativa que encerra uma espécie de oxímoro temático firmado na idéia da aleatorieadade do destino, cuja transposição literária é cercada de alto grau de investimento formal a que o narrador já muito bem define com as seguintes palavras, a título de epígrafe: “História de azar, com coluna um, coluna dois e coluna do meio, como num teste de prognósticos esportivos, como numa Loteca, com seus treze jogos do certo e do errado”. O conto se propõe a expor, em pormenores, um dia decisivo na vida de dois jovens cujos destinos se cruzam de forma a marcar definitivamente a existência de cada um deles. E sem que os dois venham saber em que o destino de um implicou o destino do outro a partir daquele acontecimento terminante. Ele é Richar, aspirante a jogador de futebol que chega à cidade para tentar a sorte no Grêmio Esportivo Brasil de Pelotas-RS. Ela é Maria de Lourdes, pretendente a se tornar policial feminina na Brigada Militar do mesmo município. A história é contada em treze lances sucessivos e paralelos, um ao lado do outro, circunstância narrativa que se reforça visualmente com duas colunas ladeadas na página em branco, cada uma portando a história por um ângulo específico, focado na perspectiva de vida de cada um dos personagens. Esse paralelismo visa reforçar a idéia geométrica que enfatiza o conceito de aleatoriedade nos acontecimentos da vida, representada por aquele desenho formado por duas retas que, situadas no mesmo plano, não têm ponto em comum. Só que nesse caso, o narrador habilmente criou três pontos de intersecção para simbolizar momentos, situações ou episódios em que verdadeiramente a história de um cruza (e marca) indelevelmente a história do outro; uma terceira coluna que atravessa a página inteira e vai ligar – como se tudo fosse um insidioso novelo – as pontas dos fios da meada. Isto é: a história de um à história do outro. Ao final dessa coerente e bem articulada operação narrativa, temos como resultado estético o sentido geral de que na vida, ao final das contas, aconteça o que acontecer; somados os créditos e deduzidos os débitos, ninguém perde, ninguém ganha, havendo quando muito um desgastante, angustiante, mas sempre retumbante empate. Como em algumas grandes partidas de jogos de futebol! Jim Este é um conto de personagem. De personagem na medida em que é essa categoria da narrativa que sobressai como recurso técnico adequado para a estruturação da história, que é contada a partir de uma funcional e eficaz metonímia utilizada como metáfora. É que seu narrador promete ao leitor contar uma história (a de sua tia) e acaba por contar-lhe outra: “As 253 dúvidas que tenho hoje, não são quanto ao que sei, mas quanto ao que conto. Não porque conte o que não deva saber; mas porque saiba o que não deva contar”, adverte ele sobre o que vai narrar quanto a um certo tipo inglês chamado Jim – que aportara numa certa cidade sul- americana chamada Jaguarão, para em seguida se desculpar: “Assim, perdoe-me o leitor, mas não vou contar a história da minha tia, mas sim a história do homem pelo qual ela se apaixonou aos quatorze anos, numa quermesse, e cuja volta espera ainda hoje, sem uma palavra de mágoa e sem uma lágrima de desesperança”. A idéia de fundo, desdobrada em eficiente recurso de estruturação narrativa, transmuda-se na fórmula pela qual uma coisa é narrada para contar outra; uma parte específica de algo é invocada para aludir uma totalidade; uma estória singular é contada para representar, por hábil artifício ficcional, uma história particular. Assim, continua o narrador, este Jim “nem era Jim, mas sim Sean, como descobri anares depois, revendo um surrado Livro de Presenças com sua assinatura de sobrenome ilegível. Jim era simplesmente um tipo que tinha bebido chá em pequenino: havia-se sempre com bons modos, levava a mão ao chapéu diante dos cavalheiros, descobria-se diante das damas, e destas beijava a mão com leve dobrar de joelho. Era afável, tratável e obsequioso; um homem gentil, fino e civilizado.” No caso, o objetivo simbólico do conto é desvendar os meandros através dos quais as questões de classe social, representadas pela operativa caracterização tipológica de um dos mais lídimos representantes da elite inglesa, implicaram a construção da história social da introdução e consolidação do jogo de futebol na América do Sul. Ou seja: um caso típico de como o legado de uma cultura, expresso aqui na ligação afetiva de membros de ambas (inexoravelmente radical quanto aos efeitos para um dos lados) implica todos os aspectos de mentalidade na cultura que o herda. Algo como um jogo simbolizando outro: o jogo de futebol simbolizando o jogo cultural. Ou vice-versa. Um brilho nos olhos Conhecem aquela sensação que de vez em quando – inadvertidamente – se apodera das pessoas; aquele senso de que algo está para acontecer, vai acontecer, pode acontecer, mas nada acontece? Pois esse conto de futebol, nessa linha de compreensão e explicação das coisas, versa justamente sobre um episódio assim; um encontro definitivo que ocorreu – ou melhor: não se concretizou –, mas que precisamente por isso, transformou-se num definitivo desencontro. O fato deu-se em circunstâncias fortuitas e juntou os olhares de dois jovens que cruzaram-se por uma estrada de terra batida que levava um time de futebol a uma festa de confraternização de gaúchos, numa fazenda de arroz Uruguai a dentro. A centelha simbólica 254 daquilo que no poema de Manuel Bandeira encerra a irresolução da potencialidade das coisas – aquilo que poderia ter sido e que não foi! –, é acesa logo no título da história, e aponta para a idéia-matriz, nuclear, da narrativa: a constatação, por um dos personagens, de que um certo brilho no olhar, fugazmente percebido no semblante do outro, poderia muito bem significar um grande amor nascente; o gérmen vivo da infinita possibilidade de tudo. “Por que ela não poderia gostar dele como Rosa? Por que não olharia para ele com o brilho nos olhos? Por que não poderia ao menos ser sua namorada? Por que não poderiam se cuidar para que ela não ficasse grávida antes do casamento? Por que não poderiam casar, depois? Por que não poderiam ter filhos e viver como toda a gente? Por que teria que dar explicações?”, pergunta- se, através do narrador do caso, um certo Pichón, personagem que é jogador de futebol de várzea e que vivia às custas de uma tal Rosa, em quem via o mesmo brilho nos olhos que acabara de presenciar ali, no meio da estrada, em inesperado alumbramento, para continuar no diapasão do poeta pernambucano que enxergava o que era no que não era. Um brilho nos olhos, portanto, como o apanha simbolicamente essa história de aventura e de festa, em que o futebol comparece como espaço de narratividade apto a acolher qualquer fato como motivo, pode ser tudo e pode ser nada; pode condensar ficcionalmente a idéia de tudo, mas pode muito bem representar, na sua idealidade pressentida, a dura realidade do nada. A falta de Tabaré Trata-se aqui, rigorosamente, outra vez, de uma lenda; magistralmente construída pela palavra e pela imaginação autoral. E que começa inventivamente ancorada na providencial epígrafe:“Se a lenda for maior que o homem, imprima-se a lenda”. Em termos rigorosamente literários, uma lenda é, na sua significação original (do latim, Legenda): coisa que deve ser lida. E designa toda narrativa em que um fato histórico se amplifica e se transforma pela imaginação popular. Pois, neste caso, é justamente a não amplificação do fato (a existência histórica de um jogador de futebol único nos seus atributos e que se suicidou: o Tabaré) pela imaginação popular que é corrigida pela fantasia criadora de Aldyr Garcia Schlee, através de um narrador que, na história, cumpre perfeitamente a acepção de Coleridge (Biographia literária, 1817) sobre a faculdade da fantasia, sempre criadora: “uma forma de memória, emancipada do tempo e do espaço”. A mera citação desse trecho desta narrativa sobre Tabaré exemplificará o todo da sua concepção literária, em que a forma do conto (com suas repetições e rememorações insistentes) amplia a dimensão do seu conteúdo humano, a palavra literária bem manejada servindo de oxigênio para a respiração eterna de um fato que 255 se impõe por sua realidade na imaginação: “A falta que faz Tabaré! Ele foi realmente único. E nunca se profissionalizou nem jogou em time grande. Nunca fez golo contra, mesmo sendo beque de área: nunca errou pênalti, apesar de ser apenas beque de área. Não consta que tenha errado pênalti ou feito golo contra. Não consta que tenha sido fotografado ou que algum jornal tenha publicado a escalação do seu time. De modo que tudo que se sabe sobre ele são as tais lembranças que vão ficando cada vez mais raras, essas coisas que cada vez menos gente é capaz de recordar, cada vez com menos precisão, com menos certezas – que se transformam em dúvidas que os mais novos estimulam e tomam como exageros, como invencionices de quem vive no passado, dominado por uma nostalgia gostosa que se constrói de saudades alimentadas pela imaginação”. O pardo Maciel Peça de investigação da realidade das coisas, que intenta, através da sua formalização literária, discutir uma inquietante elocubração de fundo filosófico: a idéia de que ao lado da realidade material, palpável, concreta, sensível, objetiva de tudo, existe sim – como que recobrindo e complementando-a – uma mancha vaga de irrealidade inefável, uma zona escura de indeterminação, imprecisão contingencial, uma ficção, enfim; um aspecto das coisas do mundo que alguns grandes escritores como o argentino Jorge Luis Borges (o melhor de todos a tratar o tema) percebeu e fez disso o princípio mesmo de sua arte literária, a qual se assenta na constatação de que a vida dos seres humanos se desenrola – a vida física, material, tornada assim metafísica, portanto – num tempo impalpável e decrescente em progressão infinita. Algo assim como uma atmosfera onírica que envolve os homens, as suas ações, intervenções e atitudes no cosmos. Pois o personagem central deste conto de futebol, O pardo Maciel, é a demonstração literária desse princípio, na sua ontologia de ser de linguagem e de ser de representação, mas também de ser de pura e verossímil carnalidade humana. “Numa manhã de domingo, o pardo Maciel, el Loco, acordou sem saber se estava acordado ou se ainda sonhava (talvez fosse melhor dizer que sonhou que estava acordado). De qualquer maneira, despertou vestido com a camisa tricolor do Artigas, aquela de metades azuis e encarnadas, separadas por uma barra branca no meio do peito e nas costas. Estava de suspensório atlético e calção, com as meias cinzentas, as tornozeleiras por cima das meias, até as botinas postas como para entrar em campo”, diz-nos de tal figura, a certa altura, o narrador da história. E o faz para demonstrar – numa prosa volátil e formalmente dirigida para realçar a opacidade do signo lingüístico como propriedade eficaz para portar o significado nuclear da narrativa – que o que 256 somos e o que fazemos nessa vida – a nossa parca existência humana, enfim –, pode muito bem ser mesmo uma grande ilusão. E que se assim o for, é necessário tomar parte nela mesmo assim. Em última instância e ao fim de tudo, para se ter ao menos o que contar. Verdadeiramente o que contar. A verdade e a mentira sobre Hugo Del Carril e o grande Heleno de Freitas A idolatria é um fenômeno típico do mundo das celebridades. E o universo do futebol entra com muita força nesse processo através do qual alguns seres humanos passam a admirar, com fervor quase religioso, outros seres humanos. Neste caso, dois artistas de esferas diferentes (a música e o futebol) tomam conta do coração e da mente de um motorista de táxi de uma cidadezinha do interior do Rio Grande do Sul, que, abrupta e repentinamente, se vê diante de dois dos maiores ídolos do mundo das celebridades do seu tempo: o ator, diretor de cinema e cantor argentino, Hugo Del Carril, e o genial jogador do Vasco da Gama e da Seleção Brasileira de futebol da década de 1940, Heleno de Freitas. A mente de João fica tão excitada diante desse fato, que, efeito comum nesses casos, ele mentiu para todos, “mentiu gostosamente em casa, e na rua para os amigos, que ouvira Hugo del Carril no teatro; e que, depois, conversara com ele no Hotel, e que ganhara dele mesmo o retrato autografado que dera de presente a sua irmã”. Tudo isso afirma e garante o narrador do episódio envolvendo o pacato chofer de táxi da cidadezinha de Jaguarão que fora levar uns grã-finos ao Grande Hotel pra ver um show do cantor em Pelotas. A verdade do caso, entretanto, é que quando retorna ao hotel para pegar os passageiros de volta, ele deu realmente de cara com Hugo del Carril bem a sua frente. Condizente com o processo narrativo que forja a criação e sedimentação da imagem das grandes figuras lendárias que residirão para sempre no coração do povo de determinada cultura – procedimento através do qual um fato histórico, pessoa ou situação, se amplifica e se transforma pela imaginação popular – essa história bem contada pela palavra escrita logra imitar, e de forma bem sucedida, a transmissão oral – boca a boca – pelo que uma verdade tona-se mentira e uma mentira torna-se verdade, não importando aqui a ordem dos fatores, mas, sim, e principalmente, a permanência do causo na decorrência imemorial dos tempos afora. E não fica aqui esse caso – ou causo mesmo, digamos assim – de construção de mitos. Deixemos então que a palavra (mitos são feitos de palavras) por si só conclua seu serviço: “Um dia, quando João estava sentado em seu V-8, coçando a cabeça à espera de passageiros, veio o alfaiate do meio da quadra saber se ele queria levá-los a Pelotas, no dia seguinte para ver o Vasco da Gama jogar. Eram quatro passageiros: o próprio alfaiate, sua 257 mulher, o irmão dela e um afilhado deles, gurizote ainda. [...] Ao avisar para os colegas e depois dizer em casa que no dia seguinte ia a Pelotas ver o Vasco jogar, João sentiu um aperto por dentro. Era como se estivesse mentindo, como se fosse repetir a mentira de Hugo del Carril, como se toda a sua vida estivesse coçando a cabeça ao guidon, toda a vida olhando o movimento em frente ao Guarany, entregando o retrato autografado para a irmã, saindo do carro para abrir e fechar a porta para as senhoras ricas. [...] Nisso aparece Heleno de Freitas, Heleno de Freitas de cabelo liso bem penteado repartido do lado. Heleno, o grande Heleno de Freitas, o inigualável Heleno de Freitas, como se pudesse ser tocado. Heleno ali bem pertinho como num quadro colorido, como numa fotografia de revista. Aquele gramado maravilhoso, verde, aquela multidão, aquela gritaria, e ele a um passo de Heleno. Heleno de cabelo liso bem penteado repartido do lado. - Heleno! – gritou – Heleno! [...] Quando Heleno viu que João havia gritado, Heleno se voltou para João; Heleno estava entrando em campo e se voltou para João. Mas quando João notou que Heleno se voltava para encará-lo, João desviou o olhar; João baixou os olhos. - Heleno! – gritara João. Mas João baixara os olhos para não encarar Heleno. João baixara os olhos.” O primeiro e o último Conto de feição fenomenológica em que um ser – o personagem de que trata a narrativa – vai se compondo, ou recompondo, à medida que se enxerga (ou enxerga o mundo a sua volta) numa perspectiva onírica que mistura a realidade das coisas com a realidade da sua própria visão sobre as coisas; isso num plano gradativo que vai do macro para o micro- mundo; do amplo para o restrito espaço contingencial que abrange a sua percepção; da extensão ilimitada e exterior à circunscrição limitada e interior sob o que erige sua experiência ontológica e existencial. Essa condição ao mesmo tempo simbólica e real do personagem em questão informa o esteio mesmo dessa narrativa enigmática, onírica (essa é, literalmente, a história de um sonho), composta de blocos sucessivos de registros das ações, atitudes, percepções, conjecturas, assimilações e projeções de um ser que certo dia acorda e passa a se definir em função de um sonho, a par de uma existência real e paralela, carnal e comezinha. O futebol entra nesse contexto justamente como ponto de intersecção dessas duas dimensões da sua realidade vivencial. “Um dia, jogando futebol, sentiu que fazia o que não 258 tinha feito, percebeu que os outros acertavam ou erravam bem como ele sabia que iam ou temia que fossem errar ou acertar, e não acreditou naquilo (foi coisa de segundos, de um nada em que tudo acontecia como num filme já visto; mas não transcorria como num filme, porque era ali mesmo, com ele, e não lá na tela: aquele instante terrível com a repetição de coisas boas nunca antes havida). Mas foi só o que aconteceu naquele jogo – e já foi o bastante – que terminou sem que se notasse nada de extraordinário em campo ou fora dele”. Como se vê, e se verá ao ler o texto, a narrativa erige-se como o testemunho literário – escrito por um narrador providencialmente onisciente e perquiridor da alma humana – de uma radical esquizofrenia que se opera, no personagem central, entre o mundo exterior, real e objetivamente percebido, e o mundo interior e subjetivo; construído de uma realidade fantasmagórica concentradamente volitiva. “Ali, no que não via porque não queria ver, via o que queria, cada vez mais. As paredes do quarto, o teto, a janela, a instante, os livros, os retratos, fizeram-no voltar-se para o canto, de modo a enxergar cada vez menos, até que experimentou apertar um olho contra o travesseiro, fechar um olho”. Narrativa de perquirição interior e sondagem dos medos, receios e temores da opressão infligida pelo mundo exterior à integridade subjetiva dos seres humanos, a história termina com um providencial recolhimento – como numa doença – do personagem em direção a si mesmo; um afastamento do âmbito social, exterior, para o âmbito individual, interior, em que o último alento é tentar ver o mundo pelo menor ângulo possível, na tentativa desesperada de estreitar uma realidade opressiva sob a qual em última instância, todos nós, um dia, sem que percebamos, poderemos sucumbir. “Mas não volteou o pescoço, não levantou a cabeça, não chegou a perceber os tênues feixes de luz que lhe riscavam a cama e iam gradear de listras a parede a suas costas. E nem ao menos teve vontade – e tempo – para, só com um olho, enxergar dois palmos de fronha branca ante o nariz, na penumbra. Não tinha mais vontade; nem teve mais tempo”. Fim. Encanto de futebol O resumo crítico desta narrativa começará assim – e depois se explicitará o motivo – com esta afirmação do narrador do conto em questão: “Muitas partidas terá jogado o Mauá. Se, entretanto, não existissem algumas fotografias que pude ver, com o time todo alinhado para o retrato tradicional ou com os jogadores desfilando ordenadamente numa parada qualquer, diante do prédio do Foro da cidade, pensaria que tudo não passou de invenção minha em torno de uma bola guardada na despensa da casa de minha avó e por causa da camisa de goleiro de meu tio. É que, por ser muito pequeno, talvez; ou, talvez, por só pensar 259 em outras equipes e em tantos craques, honestamente não me lembro de nenhum jogo inteiro, de nenhum resultado, de torneios ou de campeonatos do Esporte Clube Mauá”. Explica-se: o que aqui se vai narrar, nessa peça literária monumental (no sentido de documento definitivo sobre um tema da cultura), é a história de um clube de futebol que, sabe-se, existiu de fato, mas que a imaginação de um garoto recriou em meio a álbuns de figurinhas de jogadores, cheiros de linimento, nomes e nomes de craques do passado, uma bola de capotão pesada e cor de café-com-leite, um tio que era goleiro e que o levava sempre aos jogos dos domingos, e uma incurável propensão para imaginar, imaginar, imaginar... Dito isto, diga-se ainda, por acréscimo, que este é um típico conto de atmosfera. Não daquelas atmosferas criadas pela força da ficção para envolver o leitor (ou a sua consciência) em estados psicológicos por assim dizer heterodoxos, cambiáveis, mesmo chocantes, irreversíveis; diluidores, enfim. Configuradores de situações em que o eu psíquico se debate ante o sem-sentido dos seus próprios sentidos. Ao contrário, a atmosfera aqui é daquele tipo criado pela memória para justamente recuperar um sentido essencial ao equilíbrio ontológico do homem face às vicissitudes que enfrenta na vida com a passagem cruel e avassaladora do tempo. Esse conto de futebol encerra, assim, a narrativa de um adulto sobre a maior paixão da sua vida, descoberta ainda na infância, e na infância vivida com sua maior força e intensidade. Não uma paixão qualquer, como adverte o narrador, “mas uma paixão excepcional, obsessiva e doentia, abrangente, permanente” com os ingredientes todos de um verdadeiro arrebatamento amoroso: suores, choros, sabores, dores e desilusões com seus começos, meio e fim, inevitáveis. A saber, a paixão pelo futebol, metonimicamente representado aqui pela descoberta do primeiro amor a um clube, o Esporte Clube Mauá de Jaguarão, Rio Grande do Sul, Brasil. 4.4.1.4 Ana Maria Martins Ana Maria Martins nasceu na cidade de São Paulo, em 28 de novembro de 1924 e é viúva do escritor e acadêmico Luís Martins. É também membro da Academia Paulista de Letras e vice-presidente da União Brasileira de Escritores (UBE). Como escritora, Anna Maria Martins recebeu várias premiações por sua obra. Entre outros, ganhou o Prêmio Jabuti revelação de autor; o Prêmio Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras, pelo livro A Trilogia do Emparedado e Outros Contos (1973) e o Prêmio INL (Instituto Nacional do Livro) pelo livro de contos Katmandu (1984). Iniciou-se nas letras como tradutora e publicou seus primeiros contos no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo. A sua narrativa que toma o futebol como tema e motivação literária, intitulada Escanteio, consta da coletânea, 22 260 Contistas em Campo, organizada por Flávio Moreira da Costa e publicada pela Ediouro, do Rio de Janeiro, em 2006. Escanteio Narrativa de demanda extrínseca em que a sutileza de composição, tanto da forma quanto do conteúdo, é um dos recursos de formalização literária melhor empregado na difícil busca da adequada tonalidade de enfoque temático. O tema em questão é a tortura de presos políticos durante a ditadura militar no Brasil e aproveita-se a atmosfera de euforia dos jogos da Copa de 1970, no País, para abordá-lo através de um narrador cujo ponto de vista desliza (com os tipos de focos narrativos empregados) conforme as conveniências a ele favoráveis no ambiente em que se desenvolve a história. Este é um ambiente de exclusão do diálogo (e, por extensão, da convivência sadia) em que uma avó se sente à parte dos acontecimentos que se desenrola na casa dos netos (daí, o escanteio do título) tendo o futebol como link de uma conjuntura político-social que ao mesmo tempo o encara como fator de alienação e de oportunidade para efetivação do debate político. Neste sentido, veja-se o ensejo que a reunião para ver os jogos da Copa do Mundo oferecia à abordagem – sempre difícil em outras circunstâncias – do problema da tortura então em voga no Brasil, sob os auspícios da ditadura militar. 4.4.1.5 Aníbal Machado Aníbal Monteiro Machado nasceu em Sabará (MG), em 9 de dezembro de 1894, e faleceu no Rio de Janeiro, em 19 de janeiro de 1964. Poucos escritores se embrenharam por tantas e diversas áreas da criação quanto esse mineiro pertencente ao grupo modernista de seu estado, do qual faziam parte Carlos Drummond de Andrade, Emílio Moura, Abgar Renault, Ciro dos Anjos e Pedro Nava. Considerado um dos maiores contistas brasileiros e um dos introdutores do surrealismo na literatura brasileira, Aníbal Machado é autor de belas narrativas como A Morte da Porta Estandarte, O Iniciado do Vento, Tati – a garota, O Piano, entre outras. Com uma ampla visão do fenômeno estético, se interessou também pelo cinema, artes plásticas, música e teatro, tendo sido um dos fundadores do grupo teatral, O Tablado, junto com a filha Maria Clara Machado. Reunia em sua casa no Rio de Janeiro a nata da intelectualidade brasileira nas famosas domingadas de Aníbal, entre as décadas de 40 e 60, marcando um momento de afirmação da cultura nacional. Escreveu, entre outros, os seguintes 261 títulos, sempre timbrados em boa literatura: Vida Feliz (1944); ABC das Catástrofes (1951); Poemas em Prosa (1955); Cadernos de João (1957); Histórias Reunidas (1959); João Ternura (1965) e A Morte da Porta-Estandarte e Outras Histórias (1965). Aliás, é nesta bela reunião de contos seus, A Morte da Porta-Estandarte e Outras Histórias, publicada pela Editora José Olympio, Rio de Janeiro, em 1972, que está publicada a narrativa, “O defunto inaugural”, que apanha o jogo de futebol como motivo de transposição literária. O defunto inaugural Conto fantástico! Em sentido literal e em todos os demais sentidos. A começar pela pegada machadiana do seu narrador, um defunto que conta a estória da utilização do seu cadáver para a inauguração de um cemitério há tempos construído numa localidade denominada Arraial Novo, onde, justamente pela ausência de jazigos, tinha sido transformado em campo de futebol pela rapaziada do povoado; campo esse agora desativado pela inauguração do cemitério com o enterro do primeiro defunto. A narrativa, num tom mais de galhofa do que de melancolia, põe em cena o tema da naturalização da morte em certo confronto com a culturalização do jogo de futebol, sendo esse arranjo temático intermeado com a idéia central de que mesmo após a morte, o jogo social permanece ainda a mobillizar os nossos fantasmas humanos. “As velhas dizem que se alguma dúvida houver, é só passar a noite pelas imediações. Ouvem-se barulhos estranhos, estrupidos de correria. E se não fosse o rumor dos moinhos, todo o arraial poderia escutar. Ao saber disso, tomou-se a população de certo orgulho: já havia fantasmas no cemitério do Arraial Novo! [...] Essas almas eram quase sempre vinte e duas, fora as que permaneciam a certa distância, olhando apenas. Escalavam o muro e, uma vez lá dentro, vestiam depressa os calções”, observa o narrador. Maneira sutil e bem humorada de situar mais uma vez o futebol como um fato social total, através de sua competente e eficaz transposição literária, essa estória curta de Aníbal Machado prova – tal qual a sua literatura – como o jogo da bola aos pés, no Brasil, é fortemente alimentado por mitos, símbolos e ritos. E isso tanto no mundo urbano como no universo marcadamente rural. 4.4.1.6 Antonio Barreto Antonio de Pádua Barreto Carvalho nasceu em Passos (MG) em 13 de junho de 1954. Reside em Belo Horizonte desde 1973. Morou também em algumas cidades do Oriente Médio, onde trabalhou como projetista de Engenharia Civil, na construção de estradas, pontes 262 e ferrovias. Tem vários prêmios nacionais e internacionais de literatura, para obras inéditas e publicadas, nos gêneros: poesia, conto, romance e literatura infanto-juvenil. Participa também de várias antologias nacionais e estrangeiras de poesia e contos. Foi redator do Suplemento Literário do Minas Gerais, articulista e cronista do jornal Estado de Minas e da revista “Morada”, de Belo Horizonte. Colabora com textos críticos, poemas e artigos de opinião para “El Clarín” (Buenos Aires), “Ror” (Barcelona); “Zidcht” (Frankfurt), “Somam” (Bruxelas), entre outros periódicos. Publicou, entre outros, os seguintes livros: O sono provisório (1978) e Vastafala (1988), de poesia; O s ambulacros das holotúrias (1990) e Reflexões de um caramujo (1993), de contos, além de A barca dos amantes (1990) e A guerra dos parafusos (1993), romance. O conto, Estádio, presente neste catálogo, foi publicado na coletânea, Contos Brasileiros de Futebol, organizada por Cyro de Mattos, e publicada pela Editora LGE de Brasília, em 2005. Estádio Através de uma mímese direta, sustentada basicamente por diálogos (o que naturaliza e presentifica a situação evocada), vozes e sons ambientes de várias espécies, este conto narra o ambiente e o clima de um dia de jogo importante entre o Clube Atlético Mineiro, de Belo Horizonte, e o Clube de Regatas do Flamengo, do Rio de Janeiro, no Mineirão, mas que também poderia ser de qualquer partida de futebol em um estádio qualquer, num domingo qualquer do Brasil. A narrativa é ancorada na figura de dois personagens: o pai e o filho, que em meio à multidão das arquibancadas e a expectativa de ver o jogo, recebem um aviso pelos autos-falantes do estádio dando conta de que o carro da família tinha sido roubado do estacionamento. Nem a notícia do roubo, nem o roubo em si, nem nada, impedem os dois personagens em questão de participarem da festa do futebol como sói acontecer pelo Brasil afora, impreterivelmente aos domingos. E sempre com clima, atmosfera, pompa e circunstância tal qual sustenta este interessante conto sobre o esporte bretão. 4.4.1.7 Antonio Carlos Olivieri Antonio Carlos Olivieri nasceu no Rio de Janeiro, em 1957, e radicou-se em São Paulo ainda criança. Formado em Letras, foi professor e em seguida dedicou-se ao jornalismo. Atualmente presta serviços editoriais e faz assessoria de imprensa. Lançou seu primeiro livro juvenil em 1987 e, desde então, já publicou, entre outras, as seguintes obras: O renascimento 263 (1987); Uiramirim contras os piratas (1989); Perdidos no tempo (1997); A carta de achamento do Brasil (1999) e Cronistas do descobrimento (1999). Essa sua história curta de futebol, Ripa na xulipa, foi publicada em 11 Histórias de futebol, coletânea de contos integrante da Coleção Prosa Presente, da Editora Nova Alexandria, São Paulo: 2006. Ripa na xulipa Um sujeito que odeia futebol, a expressão veemente dessa aversão e as estratégias pessoais desenvolvidas para sustentar, num país como o Brasil, essa pouco comum ojeriza ao jogo são o tema desta narrativa bem escrita que, por um agradável efeito paradoxal, encerra uma verdadeira declaração de amor ao esporte das multidões. Dessa vez não é a forma que se impõe como elemento de fatura textual para realçar o tema, mas, ao contrário: o inventivo recorte de um aspecto inusual do seu assunto é que se destaca neste conto como o verdadeiro tour de force da matéria fabular. 4.4.1.8 Antônio de Alcântara Machado Antônio Castilho de Alcântara Machado d’Oliveira nasceu em São Paulo, capital, em 25 de maio de 1901, e morreu no Rio de Janeiro em 14 de abril de 1935. Formou- se em direito no ano de 1924, mas não exerceu a profissão, tendo se dedicado ao jornalismo, chegando a ocupar o cargo de redator-chefe do Jornal do Comércio da capital paulista. No ano de 1925 realiza sua segunda viagem à Europa, onde já estivera quando criança. De lá traz crônicas e reportagens que originaram seu livro de estréia, Pathé-Baby (1926), prefaciado por Oswald de Andrade. Em 1922 não participa da Semana de Arte Moderna, mas, no ano de 1926, junto com A.C. Couto de Barros, funda a revista Terra roxa e outras terras. Em 1928 publica a obra Brás, Bexiga e Barra Funda em cuja primeira edição o prefácio é substituído por um texto intitulado "Artigo de fundo", disposto em colunas, como as de uma página de jornal, onde afirmava: "Este livro não nasceu livro: nasceu jornal. Estes contos não nasceram contos: nasceram notícias. E este prefácio, portanto, também não nasceu prefácio: nasceu artigo de fundo". Essa introdução revela uma característica fundamental de sua obra: a narrativa curta, muito semelhante à linguagem jornalística. No seu trabalho como escritor, Alcântara Machado revela uma preocupação em descrever os habitantes e os costumes das pessoas que habitam os bairros humildes da capital paulistana, tendo a temática do futebol também servido a esse seu intento literário. Os contos, Corinthians (2) vs. Palestra (1) e 264 Gaetaninho, estão em Novelas Paulistanas, reunião de sua obra contística, publicada em 1988 (1ª edição – conjunta, revista e aumentada), pelas editoras Itatiaia, Belo Horizonte, e Edusp, da Universidade de São Paulo. Já o texto intitulado, Notas sobre a visita do Bologna F.C., encontra-se na coletânea: Histórias de futebol. Organização de Maria Viana e Adilson Miguel. Ilustrações Rubem Filho. Col. O prazer da prosa. – São Paulo, Scipione, 2006. Corinthians 2 x Palestra 1 Se existe o conto de situação, na conceituação do crítico Alfredo Bosi (vide O suborno, de Plínio Marcos (pág 344), na medida em que é para esta que devem convergir, na fatura das estórias curtas, os signos de pessoas e suas ações, sob a égide de um discurso que os amarre, costurado pela mestria de um autor rigorosamente cioso do seu ofício, esta narrativa de Antônio de Alcântara Machado encerra o que deveríamos chamar de conto de clima. Pois é em torno do clima, entendido este na sua acepção objetiva e subjetiva – e da sua variabilidade no tempo e no espaço exterior e interior – que gravita o cerne desta história de futebol, alinhavada para flagrar o pitoresco que cerca uma disputa entre o Corinthians e o Palmeiras, nos primórdios do futebol paulista e, por assim dizer, do futebol brasileiro em extensão. Entra em cena, aqui, as reações coletivas das duas torcidas em embate futebolístico, mas, também, as ações, intervenções e observações individuais do elemento humano, que, no jogo, interage para dar a ele o caráter de espaço ritual onde o lúdico e o rigorosamente sério da condição humana se misturam. Assim, o clima exterior que cerca a partida entre o Palestra Itália (atual Palmeiras) e o Sport Club Corinthians Paulista se confunde com o clima interior de uma personagem feminina que vai ao jogo motivada pelo sentimento amoroso, ancorado este na afeição clubística, pois o seu amor de agora defende os quadros do Palestra, enquanto o de outrora defendia os do Corinthians. O poderoso senso de observação transfigurado por uma mimese direta e bem articulada em seus elementos formais, já tributários do primeiro modernismo em nossas letras; o apurado tino para captar as objetividades das subjetividades e um pioneiro sentido histórico aplicado, por meio da ficção, ao valor do futebol como elemento indissociável da nossa cultura urbana (tema geral e característico da sua literatura), são os elementos fortes que compõem esta história em que Alcântara Machado dá os primeiros chutes da literatura brasileira em termos da incorporação do tema do futebol à forma do conto. Gaetaninho 265 Os primeiros desacertos entre os signos da modernidade, que invadia a cidade de São Paulo dos anos 20 do século passado, e seus moradores – entre eles o bonde como veículo de transporte e a chegada do próprio jogo de futebol – são o tema deste conto que, em clima de anotação, registro e descrição quase que etnográfica, nos apresenta um flash do cotidiano paulistano onde se misturam o lúdico e o fúnebre em conflito histórico e sincrônico. A narrativa é simples mas lapidar no que o enfoque literário pode contribuir, junto com o da História, para esclarecer certos fatos em que a realidade material conflui para a realidade cultural de determinada sociedade em construção. Isso, evidentemente, confluindo também tanto para o bem quanto para o mal. Notas sobre a visita do Bologna F.C. Narrativa também de clima, vazada em registro meio-jornalístico, meio-literário – melhor seria dizer: cronístico – que narra a vinda ao Brasil do time do Bologna da Itália, para uma série de três jogos amistosos com selecionados nacionais. As três partidas de futebol que o time italiano fez em terras brasileiras servem de pretexto para que, bem ao feitio programático de sua literatura, Alcântara Machado ponha em cena pública (esse texto é um dos que integravam uma sessão sua, no Jornal do Comércio, de São Paulo, depois reunido no volume póstumo Cavaquinho e Saxofone – 1940) o seu olhar algo etnográfico sobre o complexo social da capital paulista, que já, então, incluía a inserção dos imigrantes como elemento novo na formação de uma cultura urbana sui gêneris e em processo de definição. Surge aqui um novo personagem na literatura brasileira: a figura do ítalo-brasileiro, “gente do proletariado e do pequeno comércio, pode-se dizer, em resumo, a massa da torcida do Palestra Itália Futebol Clube”, na observação do crítico e estudioso da obra do escritor, Francisco de Assis Barbosa. Um jogo no Rio contra os cariocas, relatado aos paulistas pelo Rádio; um segundo contra um combinado paulista, no Parque Antártica, e um terceiro contra o time do Corinthians, em que os brasileiros levam a melhor nos três casos, compõem o painel humano que Alcântara Machado descreve e analisa em sua performance ao mesmo tempo lúdica, social e política, já que, no texto, o futebol serve de signo de aglutinação das diferenças que até hoje formam o meio social paulistano, dialeticamente composto do elemento local e do elemento estrangeiro em permanente interação cultural. 4.4.1.9 Ataide Tartari 266 Ataíde Tartari nasceu em 17 de setembro de 1963 em São Paulo, capital. É empresário e escritor, tendo já participado de várias coletâneas de contos de ficção científica, entre as quais Estranhos Contatos (1998), Phantastica Brasiliana (2000) Como era Gostosa Minha Alienígena (2002), Vinte Voltas ao Redor do Sol (2005), Paradigmas 2 ( 2009), Contos Imediatos (2009) e Futuro Presente (2009). Participou também de coletâneas mainstream a exemplo de Contos Cruéis (2006). Publicou os romances Amazon (2001) e Tropical Shade (2003), ambos em inglês. Colaborou ainda com o projeto literário internacional Babylonia, do qual participa com o e-book bilíngüe Tropical Shade/O Doutor Suástica. Entre 1999 e 2001, atuou como cronista na coluna Arte pela Arte do Jornal da Tarde, de São Paulo. A narrativa, Craque na família, está publicada na coletânea de Ficção Científica, Outras Copas, Outros Mundos, organizada por Marcello Simão Branco e publicada pela editora Ano-Luz; Grupo PECAS, São Caetano do Sul-SP. Craque na família Conto fantástico que narra o imbróglio em que se envolve o pai de um garoto aspirante a jogador de futebol por acreditar que a carreira do filho dependeria unicamente de um amuleto construído por seres alienígenas e desconhecidos. Tal certeza, o personagem tem – o pai do menino – ao observar que o filho de um amigo seu, também concorrente a astro da bola, sempre faz tudo certinho nos treinamentos enquanto o seu garoto só erra, erra e erra, nos momentos em que deveria ser observado, e escolhido, pelo treinador para ser encaminhado a um olheiro que pretensamente o levaria para um clube grande. Como o colega do seu filho sempre beijava um amuleto pendurado no pescoço antes de fazer as jogadas que enchiam os olhos do treinador, Pacote, o personagem em questão, percebe que é graças a isso que as coisas dão certo para o Reinaldo e errado para o Sérgio, seu filho. Em torno desse entrecho narrativo é que se erige uma história mirabolante, construída por uma prosa rápida, objetiva e mesmo assim cheia de suspense e que prende o leitor até o seu final surpreendente, mas, acima de tudo, rigorosamente verossímil. Boa literatura fantástica e de mistério que tem no futebol um mote apropriado para o seu bom funcionamento estético. 4.4.1.10 Bráulio Tavares Bráulio Tavares é paraibano de Campina Grande e nasceu em 02 de setembro de 1950. Jornalista, escritor, poeta, teatrólogo, cordelista e tradutor, é ainda torcedor do Treze 267 Futebol Clube, o Galo da Borborema. Iniciou estudos de Cinema na Universidade Católica de Minas Gerais e Ciências Sociais na Universidade Federal da Paraíba, mas não concluiu os cursos. Em 1989 venceu o concurso Caminho de Portugal com a coletânea, Espinha dorsal da memória; publicou pela Editora Brasiliense, em 1986, o estudo O que é ficção científica e mais dois livros pela Editora Rocco, do Rio de Janeiro: o romance A máquina voadora (1994) e a coletânea A Espinha dorsal da memória/Mundo fantasmo em 1997. Como poeta já publicou outros títulos, entre eles, Balada do Andarilho Ramon e outros textos (1980), Sai do meio que lá vem o filósofo (1982) e O homem artificial (1999). No gênero ficção científica, Bráulio Tavares desenvolve uma prosa em que não faltam os elementos mágicos realistas nem também o apuro estilístico e o experimento literário. No conto de futebol, Carta à redação, que está incluso na coletânea de ficção científica, Outras Copas, Outros Mundos, organizada por Marcello Simão Branco e publicada pela editora Ano-Luz; Grupo PECAS, São Caetano do Sul-SP, o autor brinca com a paixão brasileira, sem esquecer o texto esmerado e o bom humor que o destaca no cenário brasileiro das narrativas fantásticas. Carta à redação Conto epistolar em que um determinado professor (senhor Romero Rivarola, titular da disciplina Psico-história, na Universidade Federal Fluminense) interpela outro colega seu (senhor Jessier Martins) sobre determinadas idéias veiculadas por este nas páginas de um jornal diário (o hebdomadário Extra) precisamente no caderno Tese & Antítese, publicado aos domingos. O cerne da querela teorética, digamos assim, é a sustentação, por parte do professor Jessier Martins, exposta no artigo intitulado “Entre o fractal e o factual: equívocos do dogma historicista”, da tese de que as seqüências cronológicas não são necessariamente seqüências causais. “Em sua esmagadora maioria, os fatos históricos brotam em clusters de eventos que resultam de uma complexa teia de causas entrançadas”, expõe o professor Martins, através das palavras do narrador do conto, o missivista, Romero Rivarola. Este contrapõe as idéias do seu colega com um exemplo que, segundo ele mesmo, todo brasileiro conhece: um retrospecto da trajetória histórica da Seleção Brasileira de futebol na disputa das Copas do Mundo. A demonstração dos seus contra-argumentos deixemos ao leitor correr atrás, mas fixemos o ponto em que o senhor Rivarola – depois de explicar os dois casos em que o Paraguai tomou a vaga do Brasil nas eliminatórias para a disputa de duas copas do mundo (as de 2002, na Coréia/Japão, e a de 2006, no Canadá – isso mesmo: no Canadá) – dirige ao seu adversário de idéias a seguinte indagação: “Meu caro prof. Jessier Martins: por 268 que motivo, por que razão, por que cargas d’ água, por que diabos, nenhum destes fatos é nem de longe mencionado em seu tratado de 800 páginas sobre A segunda Guerra do Paraguai: 2012-2014?” Simplório na sua composição, inventivo na sua tomada de conteúdo, essa história curta sobre futebol demonstra muito bem como o tema se presta aos mais inusitados exercícios da imaginação. 4.4.1.11 Breno Accioly Breno Acioli nasceu em Santana do Ipanema, no estado de Alagoas, em 22 de março de 1921 e morreu no Rio de Janeiro em 13 de março de 1966. Foi médico, contista e romancista de destaque na literatura brasileira. Seu primeiro livro de contos, João Urso (1944), foi premiado pela Academia Brasileira de Letras e pela Fundação Graça Aranha. Escreveu e publicou o romance Dunas (1955) e além de João Urso, que em 1955 teve a sua 2ª edição publicada com um prefácio de José Lins do Rego, produziu mais três livros de histórias curtas: Cogumelos (1950), Maria Pudim (1955) e Cataventos (1962). O conto de futebol intitulado, Jaguaré, encontra-se em: ACCIOLY, Breno. Os melhores contos. Seleção de Ricardo Ramos – 2ª Ed. – São Paulo: Global, 2000. Jaguaré Elaboração literária de caráter ficcional em que o tema do suicídio é tratado através do seu concurso com o tema do futebol. A estratégia narrativa posta em movimento advém da força diegética criada por uma atmosfera de psicologia mórbida e angustiante com que um homem passa em revista, numa noite decisiva de sua vida – mediante sua autoconsciência atormentada – os pesados momentos de uma existência usufruída sem muita razão de ser. O personagem em questão é pai de um excêntrico personagem do futebol brasileiro: o goleiro Jaguaré, que pontificou no Brasil – no Vasco da Gama – e no mundo – como atleta do Olympique de Marselha (França) e do Barcelona (Espanha) – na década de 30, como um jogador exímio na sua posição, mas debochado na maneira de atuar em campo. Ele foi, por exemplo, o primeiro goleiro a usar luvas na história do futebol e o pioneiro em marcar gols de pênalti, assim como gostava de pegar a bola com uma mão só, com o fito de gozar com o adversário que a chutara na direção da sua meta. Talvez daí, dessa radical ironia entre o real cômico e o trágico transfigurado (a partir do que o personagem central dessa história relembra momentos duros da sua ligação com o seu filho, redimensionando ficcionalmente momentos 269 também difíceis da história do nosso futebol – um deles é a reinvenção de cenas da perda pelo Brasil da Copa do Mundo de 1950, em pleno Maracanã, para os uruguaios) é que o narrador consiga transmitir literariamente toda a carga de tragicomédia que preside a nossa vida. Seja quando se vislumbra pura e claramente a inexorabilidade da necessária resignação que dos seus fatos decorrem; seja, por isso mesmo, quando se percebe que confluem duramente para o mesmo fim – no jogo como na vida –, a certeza do inevitável definitivo, como nesses dois trechos da história: “Se não tivesse presenciado aquele jogo e visto aquele segundo gol dos estrangeiros, se não tivesse adoecido juntamente com todo o estádio depois de um inesperado gol dos uruguaios, gol fácil para o destro Jaguaré, ele, Amadeu, não estaria sentindo vontade de morrer e morto ficar boiando na águas escuras rio abaixo. Inchado. Irreconhecível”. E complementando: “Agora, Amadeu não precisa mais de relógio. Sabe muito bem nunca mais precisará saber das horas e pouco se lhe importa seja comprida a noite”. Conto de futebol com elevado grau de densidade estética e honestidade artística, esse, de Breno Accioly. 4.4.1.12 Bruno Zeni Bruno Zeni nasceu em Curitiba (PR), em 1975 e vive em São Paulo desde 1989. É jornalista formado pela Escola de Comunicação e Artes da USP e mestre em Letras pela mesma universidade. Trabalhou no jornal Folha de S. Paulo e nas revistas Cult e Mente & Cérebro. É autor do volume de poesia em prosa O fluxo silencioso das máquinas (2002) e publicou textos literários e ensaísticos em revistas como Inimigo, Rumor, Ficções, Rodapé, Número, Entrelivros, Sexta-feira, entre outras. Tem poemas publicados na coletânea, Boa Companhia – Poesia (2003), e contos em A visita (2004). Desde 2002, o autor dá oficinas de criação literária em instituições como o Museu de Arte Moderna de São Paulo, Centro Cultural São Paulo e Oficinas Culturais Oswald de Andrade. Atualmente é professor de jornalismo na Facamp, Faculdades de Campinas-SP, e trabalha como editor e jornalista free- lancer. Corpo a corpo com o concreto (2009), seu terceiro livro, é sua estréia no gênero romance. Este seu texto, O maestro e o bailarino, foi publicado na coletânea, Histórias de futebol, organizada por Maria Viana e Adilson Miguel, com ilustrações de Rubem Filho, editada pela Editora Scipione, de São Paulo, em 2006. O maestro e o bailarino 270 O caso encenado por esta narrativa é a ocorrência de um duelo entre dois amigos de infância em que o futebol se mistura com o amor para formarem o elemento de emulação em torno do qual se dá o enfrentamento decisivo. E o embate parece tão fulgurante que é necessário o concurso de outra mistura emblemática, adequadamente mobilizada para narrar o fato: “Era história para mais que jornal de bairro, para além do Pirituba News, para longe da pequenez do jornalismo, qualquer imprensa. É história de vida, pra lenda em livro”, diz, a certa altura o narrador. Ou seja, no texto, o jornalismo convoca a literatura para que se conte a história de uma partida de futebol em que um velho jornalista assiste, preocupado (pois conhecia a amizade dos oponentes há 17 anos) ao desfecho do combate que se travaria em torno da vitória, no jogo, mas também em torno do amor. É que ambos disputavam veladamente o coração de uma moça que em ambos admirava-lhes o futebol. E isso a ponto de caracterizar-lhes os estilos de jogo: maestro em campo um; sutil e deslizante bailarino o outro. Tal detalhe adquire valor estético na formalização literária em questão: o maestro, profissão mais técnica, simboliza o jornalismo e opõe-se ao bailarino, ofício mais artístico, em homologia com a literatura. Eis o pano de fundo estrutural dessa narrativa que se propõe, ainda que simples e contidamente, narrar o inenarrável: a vida em suas múltiplas cintilações. E não se negue que aqui se busca a palavra adequada para tal. 4.4.1.13 Caio Porfírio Carneiro Caio Porfírio de Castro Carneiro nasceu em 1 de julho de 1928, em Fortaleza, Ceará. Dedicou-se muito moço ao jornalismo e bacharelou-se em Geografia e História pela Faculdade de Filosofia de Fortaleza. Transferiu-se para São Paulo em 1955 e desde 1963 é secretário administrativo da União Brasileira de Escritores. No início da carreira de literato, trabalhou na imobiliária de um irmão e foi redator de programas na Rádio Piratininga de São Paulo. Atualmente colabora nos principais suplementos literários do País com ficção e crítica literária. Publicou 22 livros nos gêneros conto, novela, romance, poesia, memória e literatura infanto-juvenil, tendo algumas destas obras alcançado várias edições. O romance O Sal da Terra (1965), por exemplo, foi traduzido para o italiano e árabe, e adaptado em roteiro técnico para o cinema. O livro de contos, Os Meninos e o Agreste (1970), ganhou o Prêmio Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras, e O Casarão (1975), também de contos, ganhou o Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro. Contos seus estão incluídos em duas dezenas de antologias do gênero e traduzidos para o espanhol, italiano, francês, alemão e inglês. O conto, A sombra, a seguir, integra a coletânea, Histórias de futebol, organizada por Maria Viana e 271 Adilson Miguel, com ilustrações de Rubem Filho, editada pela Editora Scipione, de São Paulo, em 2006. A sombra Narrativa de demanda intrínseca, isto é, aquele tipo de investimento ficcional em que se tenta captar a condição do homem a partir da função que ele exerce dentro do próprio campo temático do texto (neste caso, o campo do futebol), esse conto de Caio Porfírio Carneiro põe em cena aquele conflito clássico (bíblico até!) em que a força do mais forte procura se impor à fragilidade e humildade do mais fraco. E diga-se que o faz com destreza e eficácia narrativa. 4.4.1.14 Carla Cristina Pereira Carla Cristina Pereira é um pseudônimo criado e utilizado pelo escritor de ficção científica Gerson Lodi-Ribeiro, entre os anos de 1995 e 2009. Gerson Lodi-Ribeiro, o verdadeiro, nasceu no Rio de Janeiro em 8 de Julho de 1960. Graduado em Engenharia Eletrônica e mestre em Astronomia, estreou como autor de ficção científica ao publicar Alienígenas mitológicos (1991), na Isaac Asimov Magazine, e com A ética da traição (1993), tornou-se o único brasileiro com mais de um texto ficcional nessa revista especializada. Lançou duas coletâneas de ficção curta pela Editorial Caminho, reunindo seus melhores trabalhos de ficção científica: Outras Histórias... (1997) e O Vampiro de Nova Holanda (1998). Presente na maioria das antologias desse tipo de literatura lançadas em português na última década, publicou os contos Alta temporal e Caminhos sem volta, na revista Quark, e A filha do predador, na Sci-Fi News. Como ensaísta, publicou mais de 70 textos sobre ficção científica, história alternativa e divulgação científica. Como editor, é um dos fundadores e sócios da Editora Ano-Luz, a primeira editora nacional a concentrar seus esforços na promoção da literatura fantástica nacional, que contempla os gêneros de ficção científica, fantasia e horror, que tradicionalmente possuem pouco espaço no mercado editorial brasileiro. Este seu conto, Se Cortez houvesse vencido a peleja de Cozumel, abaixo, integra a coletânea, Outras Copas, Outros Mundos, organizada por Marcello Simão Branco, e publicada pela editora Ano-Luz; Grupo PECAS, São Caetano do Sul-SP. Se Cortez houvesse vencido a peleja de Cozumel 272 Este é um típico exemplar do chamado conto de hipótese, que no Brasil teve um dos cultivadores pioneiros na pessoa do escritor e político maranhense Gentil Homem de Almeida Braga, que escrevia sob o pseudônimo de Flávio Reimar, e de quem Machado de Assis resenhou o livro, Entre o céu e a terra, num artigo na Semana Ilustrada, em janeiro de 1870. Nesse seu texto crítico, Machado de Assis recomenda ao leitor justamente o conto, Se não tivessem perdido a batalha dos Guararapes, como se vê, um parente distante dessa história curta hipotética sobre futebol. Aqui, a narradora do conto, Cari Cuandu Pires, enviada especial do jornal Diário de Pindorama para cobrir a partida final da Copa Mundial de Balípodo, que teria ocorrido no 17 de julho de 1998, no estádio Quetzalcoatl, na capital mexica, faz especulações acerca de um tal Hernan Cortez, que dá nome a taça em disputa pelas equipes nacionais do Império Mexicatl e da Confederação Pindorama. O que está em jogo – na narrativa e não no estádio Quetzalcoatl – é a própria origem histórica do jogo de futebol, uma vez que no seu passado remoto este esporte teria assumido variadas formas e estrutura conforme a cultura ou civilização que o praticou em tempos imemoriais, variando do Tsu-chu, na China dinástica; do Kemari no Japão imperial, passando pelo Epyskiros da Grécia pré-cristã, pelo Harpastum da Roma pós-cristã, pelo Soule da França medieval, chegando ao Calcio Florentino da Itália renascentista até voltarmos ao Tlachtli dos Astecas e Maias da planície de Iucatã, no México, por volta dos anos de 900 e 200 a.C., o foco de dessa história. O mote do enredo, escrito em andamento marcadamente parafrástico – para dar verossimilhança estética a um tema de caráter científico –, é o que teria ocorrido com as configurações do balípodo moderno – epíteto dado pela narradora ao atual jogo de futebol – se o conquistador espanhol Hernán Cortez não tivesse sido decapitado junto com seus jogadores após a derrota numa partida histórica ocorrida na ilha de Cozumel, no dia 20 de março de 1519, entre os representantes locais e os homens de sua armada, tomados pelos sacerdotes maias como emissários dos deuses, precisamente por filhos do rei dos gigantes, Vukub-Cakix. Antes da partida, segundo o relato da jornalista Cari Cuandu Pires, “os sacerdotes não esclareceram que o Tlachtli desempenhava um papel de extrema importância na vida religiosa dos maias. A bola era sagrada para os nativos, simbolizando o sol. Tampouco falaram sobre a estranha prática local dos jogadores da equipe derrotada para homenagear seus deuses”. Segue a história com as especulações da jornalista que, ao tecer considerações de dois especialistas sobre o assunto – o professor Chalca Tolzoma Macehualtin, do Departamento de História da Calmeca, universidade de Itzcoatl, e a historiadora da Federação Internacional de Balípodo Moderno, Jaci Javaé Vasquez –, indica 273 que se os castelhanos tivessem vencidos os maias naquela que foi a primeira tentativa de fundir o Tlachtli americano com o antigo balípodo do velho mundo, parece bem provável que o balípodo moderno, de longe o esporte mais popular do mundo, não existisse, ao menos nos moldes que hoje conhecemos. Enfim, hipóteses, apenas, para uma narrativa que cede ao referencial científico em detrimento do imaginativo e fantasista, já em si mesmo mais artísticos. 4.4.1.15 Carlos Eduardo Novaes Carlos Eduardo de Agostini Novaes nasceu no bairro da Tijuca, cidade do Rio de Janeiro, em 13 de agosto de 1940. É advogado, cronista, romancista, contista e dramaturgo. Formou-se em Direito em Salvador – Universidade Federal da Bahia – e iniciou-se na imprensa no jornal carioca Última Hora. Permaneceu por 17 anos no Jornal do Brasil, onde entrou como repórter de Esportes e saiu como cronista. Ainda como cronista, esteve por três anos no jornal O Dia, de onde saiu, em 1991, para ocupar o cargo de Secretário de Cultura da cidade do Rio de Janeiro. Com um estilo provocativo e um humor mordaz, Carlos Eduardo Novaes se firmou como um de nossos mais aclamados jornalistas e escritores. No JB, deslanchou uma carreira de sucesso como cronista de humor, sendo considerado por muitos o sucessor de Stanislaw Ponte Preta. Suas crônicas fizeram a história divertida da cidade, do país e do mundo, trazendo sempre o colorido marcante de seu humor inteligente e crítico, muitas vezes de uma sutileza molestante. É autor de uma obra extensa em que se destaca, entre outros, os livros de crônicas: O Caos Nosso de Cada Dia (1974); O Quiabo Comunista (1977); A Cadeira do Dragão (1980); O Day After do Carioca (1985); Homem, Mulher e Cia. Ltda. (1987); O País dos Imexíveis (1990); A Cadeira do Dentista e Outras Crônicas (1994) e La lá La La la lá (1997); de contos: O Estripador de Laranjeiras (1983), e os romances: A História de Cândido Urbano Urubu (1975); Mengo, uma Odisséia no Oriente (1982) e A Próxima Novela (1988). Este seu conto de futebol, O rei da superstição, compõe a coletânea, Onze em campo e um banco de primeira. COSTA, Flávio Moreira da; MARTINS, Ana Maria... [et al.]. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1998. O rei da superstição História bem humorada sobre as estripulias de um dirigente de um clube carioca refém do seu credo exagerado na força das superstições. A narrativa enumera as mais estapafúrdias 274 atitudes do cartola que não hesitava em atribuir os infortúnios do seu time a forças desconhecidas, mas que, se devidamente compreendidas; ou melhor: correta e diligentemente aplacadas por gestos adequados aos seus desígnios ocultos, poderiam se voltar a seu favor. O conto é baseado na existência de um personagem real e análogo ao da história no mundo do futebol: trata-se de Carlito Rocha, presidente do Botafogo do Rio de Janeiro, nas décadas de 1940 e 1950. Com o nome sugestivo de Calvito, o personagem da história chega a contar até com a ajuda de um cachorro vira-lata que entra em campo para confundir o goleiro adversário e fazer o Botafogo ganhar um jogo que empatava em 0 a 0 com um time considerado pequeno, no campeonato carioca. A História real do futebol do Rio registra que no campeonato de 1948, um cachorro chamado Biriba, que pertencia a Macaé, um dos reservas do time, entra em campo e atrapalha o goleiro adversário: “Num dos ataques alvinegros, a bola veio pelo alto na direção do goleiro do Bonsucesso. O cachorro fez o mesmo. Na confusão o goleiro se confundiu e a bola entrou. O juiz validou o gol”, narra Alex Bellos, à página 177 do seu livro, Futebol: o Brasil em campo, publicado em 2003 pela Jorge Zahar Editores. Como se não bastasse – e para afastar dúvidas quanto à fonte real dessa ficção recheada de bom humor –, o narrador inicia a sua história com a conhecida e parafrástica epígrafe: “Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas não é mera coincidência...”. 4.4.1.16 Carlos Orsi Martinho Carlos Orsi Martinho nasceu em 05 de janeiro de 1971, em Jundiaí, São Paulo. É escritor de ficção científica especializado em divulgação da Ciência. Figura ativa da atual geração de autores da ficção científica brasileira, teve sua estréia profissional como autor no número 24 da revista Isaac Asimov Magazine, título publicado no Brasil pela Editora Record entre 1990 e 1993, com a novela "Aprendizado". Foi sócio da Editora Ano-Luz, que publicou livros de ficção científica no Brasil entre 1997 e 2004, e é parte do núcleo original de autores do universo Intempol, criado por Octávio Aragão. Seu trabalho como ficcionista, composto, majoritariamente, por contos e novelas, foi publicado em antologias coletivas da Ano-Luz e em praticamente todos os periódicos brasileiros que abriram espaço para o gênero fantástico – de fanzines a revistas como Dragão Brasil, Quark, SciFi News Contos, Pesquisa FAPESP, Play e, mais recentemente, na revista Ficções, em uma edição especial sobre ficção científica brasileira, lançada em 2006. Seu até agora único romance, Melissa, a Meretriz do Mal, está disponível online no website a Intempol. Carlos Orsi é ainda autor de três livros solo de contos: Medo, Mistério e Morte (1996), O Mal de Um Homem (2000) e Tempos de Fúria 275 (2005), além da novela de fantasia As Dez Torres de Sangue, lançada em edição limitada pelos fanzines Megalon e Hiperepaço. O conto que segue está em: Outras Copas, Outros Mundos, coletânea de contos de ficção científica, organizada por Marcello Simão Branco e publicada pela editora Ano-Luz; Grupo PECAS, São Caetano do Sul-SP; 1998. Sob o signo de Xoth Conto de horror e fantasia escrito nitidamente sob a influência da obra e estilo do escritor norte-americano Howard Phillips Lovecraft (1890-1937), em que um pesado sortilégio é anunciado para desabar sob a cidade paulista de Açaraí, na forma de uma desgraça a acometer os seus habitantes reunidos, certo dia, no estádio de Futebol da municipalidade. Aqui, pois, é que entra o jogo de bola como mote para subsidiar a trama de uma história que envolve corrupção política, militância contracultural anacrônica, jornalismo antiético e ficção científica temperada com a mais vigorosa suspense e inventiva resolução narrativa. O caso é que o Estádio do Município, que vai ser arrendado (por força de uma lei aprovada pelos vereadores de Açaraí) para que um pool de empresas particulares administrem o único time de futebol profissional da cidade – o Industrial Futebol Clube –, tinha sido num passado remoto ponto de pouso para Óvnis. Tal circunstância é que alimenta a trama, baseada na idéia de que está para acontecer ali um desembarque de alienígenas guiados pela poderosa e misteriosa luz da estrela Xoth. Reza uma lenda que toda vez que a constelação de Touro – em torno da qual Xoth gravita – está alta no céu, a luz da estrela se focaliza na Terra, trazendo com isso catástrofes e maldições. O anúncio de um novo e catastrófico evento (já tinha havido um maremoto na costa da Austrália, em 1926, última vez que as luzes de Xoth focalizaram a Terra) foi dado por uma das integrantes do Instituto de Estudos Holísticos e Geobiótica de Açaraí, a astróloga Mariana, ao narrador da história, um jornalista cético e metido a certinho, da Tribuna de Açaraí. Este personagem-narrador é que assiste a todo o resto da historia cujo registro passa ao leitor na forma de uma prosa segura, cheia de suspense e surpresas do começo ao fim. Quase todos os ingredientes do universo narrativo-ficcional de H.P Lovecraft comparecem aqui na forma de uma tirada epigonal, mas nem por isso indigna de originalidade autoral e valor literário a ser inscrito de forma honesta na tradição das histórias curta de horror e suspense. Nesta, o futebol comparecendo e dando a sua contribuição enquanto matéria de fatura e tematização. 4.4.1.17 César R. T. Silva 276 César R. T. da Silva nasceu em São Paulo. É artista plástico, publicitário, escritor, ilustrador e torcedor do Santos Futebol Clube. Editor do fanzine Hiperespaço, é um dos mais ativos e influentes fãs da ficção científica no Brasil, tendo organizado várias convenções no país sobre o tema. Seu texto quase sempre remete á situações nostálgicas e recorrentes a nossa realidade cotidiana, algo muito próximo ao estilo da crônica. Esse conto de futebol, O que vale é bola na rede, por exemplo, confirma esta sua característica de ficcionista ao criar uma história de perda e esquecimento embora que em algum momento do século que vem. O texto está publicado em Outras Copas, Outros Mundos, coletânea de contos de ficção científica, organizada por Marcello Simão Branco e publicada pela editora Ano-Luz; Grupo PECAS, São Caetano do Sul-SP; 1998. O que vale é bola na rede História anódina de pretensa ficção científica, escrita numa prosa sem cheiro e sem cor, que relata um caso envolvendo um ex-técnico da Seleção Brasileira de futebol na Copa da Islândia, ocorrida no futuro ano de 2014, que assiste a uma partida desta mesma Seleção pelas semifinais do Campeonato Mundial de futebol, desta vez ocorrido no nosso País, entre os times da Argentina e do Brasil. Em meio ao jogo, o ex-técnico Adalberto Madeira encontra um torcedor anônimo que assistia à partida ao seu lado numa TV de uma loja de eletrodomésticos, no centro de São Paulo, e resolve contar ao colega os fatos envolvendo o que teria sido uma tragédia nacional, no relato do narrador de tais episódios: o Brasil perdera a Copa numa humilhante derrota de 4 a 1 para os EUA; perdera o médico da delegação que morrera num acidente de automóvel antes da partida final do torneio e teve o seu principal jogador inutilizado para o jogo por entrar em coma antes da vergonhosa derrota da Seleção Brasileira. Tais eventos poderiam render muito nas mãos hábeis de um narrador de ficção científica, que a eles poderia acrescentar mirabolantes causas, efeitos e conseqüências imediatas ou futuras; correlações e ligações funcionais com o mundo operativo das tecnologias da informação – ou que tais – a informar seu texto. Não é o que ocorre, contudo, neste caso. O conto é simplório neste particular, e a única referência desta história curta de futebol ao universo tecnológico que normalmente instruem tal tipo de narrativa é a existência de “compostos nutritivos de nanomáquinas mnenômicas, algo como um upgrade de memória de computador, só que para ampliar o cérebro com programas pré-fabricados”. Estes compostos nutritivos seriam a arma do time do Brasil e, produzidos pelo médico acidentado, 277 seriam ministrados aos jogadores antes da partida final da Copa, algo que, com a morte do Dr. Jurandir Cunha, evidentemente não aconteceu. O que continham estas “poções mágicas” do Dr. Jurandir, deixemos ao leitor descobrir com a leitura da história, assim como deixemos com ele também – com o leitor atento e mais isento – as suas considerações finais sobre o valor geral de mais essa narrativa de futebol concebida pelo viés da literatura de ficção científica. 4.4.1.18 Chico Buarque de Hollanda Francisco Buarque de Hollanda nasceu no Rio de Janeiro em 19 de junho de 1944, é músico, compositor, dramaturgo e escritor. Filho do historiador Sérgio Buarque de Holanda, iniciou sua carreira na década de 1960, destacando-se em 1966, quando venceu, com a canção A Banda, o Festival de Música Popular Brasileira. Socialista declarado, se auto- exilou na Itália em 1969, devido à crescente repressão da ditadura militar no Brasil, tornando- se, ao retornar, um dos artistas mais ativos na crítica política e na luta pela democratização do Brasil. Em 1963, chegou a ingressar no curso de Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU), em que cursou dois anos e parou em 1965, quando começou a se dedicar à carreira artística. Neste ano, lançou Sonho de Carnaval, inscrita no I Festival Nacional de Música Popular Brasileira, transmitida pela TV Excelsior, além de Pedro Pedreiro, música fundamental para experimentação do modo como viria a trabalhar os versos, com rigoroso trabalho estilístico morfológico e de politização, mais significativamente na década de 1970. Quanto à Literatura, atividade artística que sempre desempenhou paralela a sua carreira de músico e compositor, várias foram as suas incursões no universo da ficção, englobando trabalhos para o teatro e para publicação mesmo como obra literária. Entre esses trabalhos, destacam-se Fazenda Modelo (1974); Chapeuzinho Amarelo (1979); A bordo do Rui Barbosa (1981); Estorvo (1991), seu primeiro romance; Benjamim (1995); Budapeste (2003) e Leite Derramado (2009), obra que foi escolhida como o melhor livro de ficção do ano de 2009 na 52ª edição do Prêmio Jabuti de Literatura, oferecido anualmente pela Câmara Brasileira do Livro, e considerado a maior láurea de literatura do País. A história curta, Os melhores momentos, compõe a coletânea sobre o tema do futebol, Os donos da bola, organizada por Eduardo Coelho e publicada em 2006 pela Editora Língua Geral, do Rio de Janeiro. Os melhores momentos 278 História curta, providencialmente curta – para representar a pequena duração das ações narradas –, em que nos é contada as estripulias de um torcedor brasileiro que vai à França para assistir aos jogos da seleção brasileira de futebol durante a Copa do Mundo de 1998, naquele país. Sinteticamente editada em seus instantes mais representativos – à maneira dos melhores momentos de uma partida, como são selecionados pelas transmissões dos jogos de futebol pela TV –, a viagem do torcedor é subitamente interrompida pelas lembranças e saudades que sente da amada que ficara no Brasil, a ponto de não resistir e retornar para casa, abruptamente. Tudo se passa como se o pequeno relato quisesse simbolizar a reversibilidade do conhecido estranhamento antropológico, típico das situações de viagem, segundo o qual quanto mais nos afastamos dos objetos com que nos relacionamos, tanto mais, paradoxalmente, nos aproximamos dele. Ou, pelo contrário, quanto mais nos aproximamos dele, tanto mais distanciados nos encontramos, sendo a saudade o sentimento balizador nesses casos. 4.4.1.19 Clarice Lispector Clarice Lispector nasceu em Tchetchelnik, na Ucrânia, no dia 10 de dezembro de 1920 e morreu no Rio de Janeiro, no dia 9 de dezembro de 1977. De origem judaica, é a terceira filha do casal Pinkouss e Mania Lispector. Romancista, contista, cronista, jornalista, colocou no centro da sua criação literária o problema da busca de uma linguagem nova, especial e analítica, com a qual procurou traduzir a vida interior dos seres humanos, através de sua transposição para a perquerição literária. Dentre a sua vasta obra, composta em vários gêneros literários, podemos citar, entre outros títulos, os romances: Perto do Coração Selvagem (1943); O Lustre (1946); A Cidade Sitiada (1949); A Maçã no Escuro (1961); A Paixão segundo G.H. (1964); Uma Aprendizagem ou Livro dos Prazeres (1969); Água Viva (1973) e Um Sopro de Vida – Pulsações (1978); os livros de contos: Alguns contos (1952); Laços de família (1960); A legião estrangeira (1964); Felicidade clandestina (1971); A imitação da rosa (1973); A via crucis do corpo (1974); Onde estivestes de noite? (1974) e A bela e a fera (1979); a novela: A hora da estrela (1977); e os volumes de crônicas: Visão do esplendor – Impressões leves (1975); Para não esquecer (1978) e A descoberta do mundo (1984). O conto, “A procura de uma dignidade”, também integra a coletânea sobre o tema do futebol, Os donos da bola, organizada por Eduardo Coelho e publicada em 2006 pela Editora Língua Geral, do Rio de Janeiro. 279 A procura de uma dignidade Narrativa de sondagem psicológica, típica da autora – aquela em que a palavra, no seu uso literário, serve de meio e símbolo de inquirição da interioridade humana – em que certa senhora, beirando os setenta anos de idade, encontra-se momentaneamente perdida no labirinto de si mesma, ao perceber, de súbito, que por um desastrado engano, entrara nos subterrâneos do estádio do Maracanã vazio e de onde tem dificuldade de encontrar a saída. Este seu périplo inesperado pelo maior estádio do mundo (ia encontrar um grupo de amigos nos seus arredores e inadvertidamente se desviara) lhe serve de experiência-chave para uma constatação dolorosa com a qual é levada a se debater: a de que o homem é um ser contingencial e, por isso mesmo, presa irrevogável do seu próprio destino por determinações do tempo e do espaço. Assim é que ante a descoberta de um desejo irrefreável de fazer amor com um ídolo de TV (o cantor Roberto Carlos), em circunstâncias “fora de época”, responde com uma crise existencial em que a “fome dolorosa de suas entranhas, a fome de ser possuída pelo inalcançável ídolo de televisão”, nos termos do texto, leva-a a perceber, de forma dramática, que somos seres inabilitados para convivermos com nosso espaço vivencial (simbolizado pelo labirinto do Maracanã) e, principalmente, com o nosso próprio tempo, figurado, na história, pelo descompasso entre a dignidade metafísica do espírito e a voracidade instintiva do corpo: “Corpo cujo fundo não se via e que era a escuridão das trevas malignas de seus instintos vivos como lagartos e ratos”. E tudo isso aos setenta anos vividos, e aos quais, claro, por fim, sucumbe. 4.4.1.20 Cláudio Lovato Filho Cláudio Lovato Filho nasceu em Santa Maria, Rio Grande do Sul, no dia 8 de abril de 1965. Ainda na infância, mudou-se com a família para Porto Alegre, onde, em 1988, formou-se em Jornalismo. Iniciou a carreira em jornais de Santa Catarina, nos quais foi repórter e editor. Radicado no Rio de Janeiro há 15 anos, atua hoje na área de comunicação empresarial. Atualmente, é editor-executivo (e repórter) da Revista da Odebrecht e coordenador editorial de livros institucionais. Tem dois livros de ficção já publicados, ambos de contos sobre futebol: Na marca do pênalti, publicado em 2002 pela Editora 34, e O batedor de faltas, que saiu em 2008 pela editora José Olympio. Os contos que seguem, iniciados com a história curta O velho e fechando com O ex-jogador, compõem a sua primeira obra, já citada. A série de narrativas seguintes, que inicia com Arquibancada e fecha-se com o 280 conto Sonhos, forma o seu segundo livro de narrativas de futebol, intitulado, O batedor de faltas, referenciado acima. O velho História de reminiscências do mundo do futebol e seus personagens, fixada, esta, numa das figuras mais típicas deste universo em que a bola, os jogadores e os indefectíveis torcedores dos clubes nem sempre são os protagonistas. O destaque do aspecto humano deste conto fica por conta do realce, por parte do narrador, dado a certo ropeiro de um clube de futebol, o profissional que tem a incumbência de cuidar de tudo que diz respeito ao figurino dos jogadores, tarefa que se estende do zelo pelo bom estado e aparência dos uniformes ao cuidado minucioso com os equipamentos de uso dos futebolistas, incluindo a escolha precisa da chuteira adequada a determinadas características de cada craque à montagem dos padrões de camisas para cada jogo, mas não só isso. Não só isso porque quase sempre essas figuras dos bastidores do mundo do futebol têm uma inserção reconhecida para além dos seus ofícios fixados na carteira de trabalho. Este é o caso do velho, personagem que o narrador desta história – ele mesmo filho de um ex-jogador do clube – reverencia como um profundo conhecedor dos mistérios da bola; imagem que lhe passara seu pai sobre a importância que tem esse antigo ropeiro na orientação que um mestre passa a seus discípulos sobre os segredos do seu ofício. Num texto timbrado em tom de reconhecimento e gratidão, levemente colorido com uma tinta em que o calor humano dá a temperatura adequada da cor certa para um retrato que de alguma forma fixe o seu modelo no tempo, essa narrativa literariamente despretensiosa de Cláudio Lovato, tem o mérito de trazer para o primeiro plano da cena futebolística o ator que, oculto, humilde, mas, amiúde determinantemente, opera por meio das vestes (ou será das máscaras?) dos atores principais do espetáculo do jogo. Chuteiras mágicas Neste conto de futebol, entra literalmente em campo não um personagem tradicional, mas, isto sim – transfigurado pela transposição literária por meio da ficção verossímil – um artefato do jogo da bola aos pés que faz as vezes de um autêntico e funcionalíssimo personagem literário: um par de chuteiras que comanda – a par dessa sua condição dentro do enredo – toda a peripécia do entrecho narrativo da história. O caso é o seguinte: um jovem jogador em excursão do seu clube pela Europa Oriental ganha furtivamente, de um 281 proprietário de um antiquário de Budapeste, um par de chuteiras que pertencera ao lendário jogador da Hungria, Ferenc Puskas. Sem ter conhecido ou sequer ouvido falar de Puskas em toda a sua vida, o jogador deposita num armário velho de sua casa o presente a que o donatário recomendara a rogativas de: “Vai precisar. Leva, leva... Chuteiras de Puskas. Mágicas. Leva. Leva. Lembrança da Hungria”. Pois o fato literário digno de nota nesta narrativa em tudo o mais cediça e convencional sobre o futebol é o seguinte: ser justamente um registro bem intencionado do conteúdo sagrado que reveste certos elementos desse jogo, entre eles o poder aurático que se impregna em tudo o que compõe a figura mágica dos seu ídolos. Aqui, como o leitor verá, esse poder se exerce através de um curioso sortilégio que é capaz de mudar todo o curso das coisas envolvendo o personagem que inventa de calçar as chuteiras mágicas, por isso mesmo deixando-o de ser o protagonista para tornar-se o coadjuvante da história. Goleiro Um pai – um ex-centroavante com passagens vitoriosas por alguns dos clubes mais importantes do país – não se conforma (dir-se-ia que até no leito de morte!) com a escolha do filho em se tornar goleiro de futebol. Este é o motivo diegético deste conto composto de trama e linguagem simplórias; em ritmo rápido e mesmo assim cansativo, num andamento anódino e entrecho curto de alcance, que toma a figura do goleiro, no futebol, através de um dos seus registros literários mais clicherizados. A narrativa consegue despir esta condição e função do homem, no jogo de futebol, do que ela tem de mais fascinante e misterioso; do que ela tem de singular e particularizante em contraste com as outras funções dos jogadores em campo. Psicologia de balcão misturada à literatura de ocasião: eis o ângulo sob o qual se focou aqui um aspecto rico – porém mal aproveitado – do tema do futebol na sua possível e quase sempre bem vinda transposição literária por meio das histórias curtas. Momento especial de um menino O fascínio pelo futebol e, através dele, o poder da imaginação infantil em transformar em realidade o que é sonho, forma o conteúdo da chave de enfoque deste conto em que a perda de um pai funciona como elemento de decifração. Assim é que, às escondidas, um garoto consegue driblar a vigilância e adentrar um estádio de futebol em construção para lá jogar uma partida de futebol imaginária diante de uma arquibancada lotada onde se destaca 282 para ele a figura do seu pai. Embora vazada em timbre pouco emotivo – quando deveria ser o contrário, dada a carga de concentrada singeleza e dramaticidade do tema –, a história consegue pegar o leitor ao transportá-lo de corpo e alma ao universo mágico da infância onde o simples pisar a relva verde de um estádio de futebol profissional torna-se uma experiência de raro fascínio, se não de êxtase poético. Ainda mais quando a esta experiência está ligada a acalentadora cumplicidade do pai, muitíssimo cara a uma criança para quem toda a realidade do mundo é a própria imaginação. O dia da peneira Esta – sobre futebol – pode ser considerada a narrativa do momento decisivo. Aquele instante em que o apertar de um botão, num clique, o fotógrafo francês Henri-Cartier Bresson definiu, em termos de fotografia, como sendo o momento único e definitivo, irrepetível e inexorável, com o que, num gesto só – um punctum! – se plasma todo o desenrolar de uma vida humana, na cumulação com que nela se capta a confluência do tempo ao encontro do espaço, instâncias que em tudo se define, larga e concentradamente, aquilo que é permanente naquilo que é fugaz. Não com esta intensidade da arte fotográfica, já que à narrativa literária em questão falta vigor autoral desdobrado em flagrante tibieza de engenho (o que redunda em certa frouxidão relaxada do seu tônus dramático). Mas com relativa homologia, vá lá, a situação artística se repete aqui. O enredo da história consta de um dia decisivo na vida de um garoto de 12 anos que sonhava em se tornar jogador de futebol. Ao ter que concorrer com centenas de outros garotos a uma vaga numa “peneira”, que é como se define no jargão próprio os disputados concursos ao estrelato da bola, o menino intui ser aquele o momento definidor de toda a sua vida e que, para ter sucesso na disputa, precisa que aconteça um lance, num relance, um chute, um gol (pois é centroavante e sabe que cabe a esses jogadores definir as partidas nos momentos decisivos) que o diferencie, na sua ação com a bola, dos outros meninos, naquela floresta de vegetação indiferenciada e de árvores rasteiras. Eis que de súbito o lance acontece, e ele, aproveitando-o, “meteu o pé direito na bola, com toda a raiva e toda a paixão que sentia pela vida, e a bola virou uma flecha, uma bala, um foguete, e acabou entrando no ângulo esquerdo, um golaço”. Pois bem! A literatura, contrariando de certa forma o postulado acima da arte fotográfica, se exerce aqui, num dos bons momentos da narrativa, na inversão irônica que o narrador da historia faz desse momento decisivo: “Apesar de que, para ele, o chute tinha sido, de tudo aquilo, a parte mais fácil; o chute tinha sido o de menos”. 283 Por aí se pode ver o quanto a literatura é uma arte, uma supralinguagem que se basta a si mesma. Reflexões de um árbitro em crise Uma situação um tanto inverossímil: um árbitro de futebol que enquanto apita uma partida, literalmente cisma de cismar (no sentido filosófico do termo) e fazer elocubrações sobre a vida – a sua e a dos outros – na sua confluência ontológica com o jogo de futebol. E diga-se inverossímil porque é quase impossível alguém se entregar à tarefa da reflexão especulativa ao mesmo tempo em que é obrigado, por força de ofício, a ligar sua máxima atenção aos detalhes e lances que compõem um jogo de futebol e a ele dar bom andamento através da pronta aplicação da justiça, nos momentos em que deve flagrar o descumprimento das suas leis constitutivas. Pois bem. Esta história curta se propõe por em questão a condição humana do árbitro de futebol e o faz, a bem da verdade, por via literária um tanto abstrusa: elege um narrador onisciente para tentar resolver o problema acima da sua inverossimilhança interna, um dos seus problemas de eficácia estética, mas não o único. Outro é a expressão clicherizada das situações sobre as quais recaem as reflexões em curso do homem do apito. Outro é a inexistência de um enredo seguro e apropriado para o mote da reflexão da relação vida e jogo que uma partida de futebol pode suscitar (ver, neste sentido, Juiz, de João Antônio, p. 317). Outro ainda é o corte pálido de expressão da frase, inapta que fica, por sua tonalidade de narração escolar, para condensar literariamente o conteúdo humano que propõe expandir mas que, ao contrário, encurta, na vazão inadequada que dá aos seus influxos. E outros há que não cabem aqui, restando ao leitor desmenti-los ou confirmá-los com a sua leitura. O reserva Esta narrativa, mais uma vez sobre um personagem interno ao jogo de futebol, apóia- se numa sugestão que, na verdade, não é sugestão, mas indício. E esse talvez seja o seu único defeito grave. E diga-se grave porque outros mais leves existem sem, contudo, comprometer, no geral, a sua condição de razoável literatura sobre o tema do futebol em seu registro no gênero conto. Novamente é a figura do goleiro que entra em cena nesta história. Desta vez, porém, a entrada do goleiro em cena – ao contrário da sua situação no conto Goleiro, do mesmo autor, ver pág. 281-282 – se faz debaixo de um bem justificado e bom aproveitamento 284 literário: o recurso de utilizar-se de um aspecto de sua condição no âmbito do campo de jogo – o de ser sempre reserva de outro goleiro, nunca atingindo a patamar de titular do time – para, a partir daí, traçar-se um bom quadro expositivo de uma das necessidades mais básicas do ser humano: o reconhecimento que se quer do trabalho que se faz e com o qual se identifica (e, por extensão, o reconhecimento identitário da própria pessoa) por parte dos nossos semelhantes. A narrativa toma este mote de conteúdo e o expõe através de uma trama simples, mas eficaz, no seu propósito de tomar o recurso ficcional como instrumento de demonstração argumentativa do ponto até onde pode chegar o ser humano, quando sistematicamente lhe falta algo de essencial a sua ontologia. A resolução final desta trama é que deixa a desejar, uma vez que, conforme já foi apontado, o recurso funcional da sugestão literária, que deixa ao leitor a tarefa de preencher com a imaginação as brechas do entrecho apenas entremostrado, foi mal aproveitado, tornando a história menos densa e, portanto, mais frágil, no seu sentido global. O matador Essa história mostra, sobretudo, como a violência humana, que é antes de tudo um mal social, pode sorrateiramente, repentinamente, sutilmente, adentrar o campo do futebol. Trata de um jogador de um clube de uma cidade grande e de sua morte causada por um torcedor que, durante um treino do time, passa o tempo todo esbravejando contra e agredindo verbalmente os jogadores até o ponto em que tudo se concentra na figura do médio-volante da equipe, conhecido como Ernesto Rubem, que às agressões reage também violentamente. O resultado do episódio é que o torcedor sai do campo direto para o hospital com o nariz quebrado enquanto o futebolista sai do treino para casa com um juramento de morte. Daí é que o título do conto cujo sentido comum lhe é atribuído pelo campo semântico em que está inserido, significando, no linguajar guerreiro do futebol, aquele jogador que faz impiedosamente gols no adversário, muda bruscamente de significação. A significação do vocábulo agora torna-se direta, denotativa, e lhe é atribuída por meio de uma narrativa segura, sem titubeios, através de uma prosa que desde o seu início tem o firme propósito de mostrar que a mórbida promessa se cumpriria, a despeito de todos – principalmente a vítima – acharem o contrário. Valiosas digressões sobre o universo técnico e tático do futebol, observações pontuais por parte do narrador sobre o comportamento do homem quando imerso numa coletividade (um time ou uma comunidade qualquer) e sutis alusões ao despreparo humano para lidar com a sua própria índole violenta são alguns dos elementos de conteúdo 285 pedagógico dos quais se podem tirar algumas lições, nesta ficção de caráter denunciador e instrutivo sobre o comportamento humano quando impulsionado simultaneamente pela paixão e pelo ódio. Perseguição A faculdade do julgamento – que fazemos dos outros ou de nós mesmos – é o tema desta estória curta sobre futebol que incorpora mais um dos seus elementos constitutivos: a imprensa. Assim, podemos dizer que o campo intrínseco do futebol, no sentido conceitual dado a essa palavra pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, é constituído de pelos menos os seguintes elementos: os jogadores, os dirigentes, os árbitros, os torcedores, os jornalistas, os funcionários dos clubes e os profissionais de segurança do Estado, a quem compete zelar pelo bom andamento dos lazeres públicos, neles incluindo os desportos. Todos eles de alguma forma já incorporados como tema de ficção pelos escritores aqui elencados como parte constitutiva da imensa narrativa do futebol, quando entendido este, também, como um amplo fenômeno de comunicação social. Pois bem! Agora é o trabalho de análise crítica que a imprensa realiza sobre o jogo da bola que entra em questão nessa história baseada na análise de consciência de quem critica e de quem é criticado. A narrativa – ironicamente sóbria como um julgamento sereno – demonstra linha por linha, na história do meia Flavinho e do colunista Sérgio Chaves, que o ato de julgar é sempre precário e que, a despeito de ser necessário (para orientar ou reorientar ações, atitudes e reflexões dentro do campo em questão), nunca pode ser tomado no seu valor absoluto embora tenha sempre seus efeitos práticos. E isso tanto para quem julga quanto para quem é julgado; para o bem ou para o mal. O segredo do zagueiro Narrativa pouco atraente que dá conta de um caso de uma improvável conquista amorosa por parte de um jogador de futebol rico, bonito, bem-apessoado e, por isso mesmo, muito assediado pelas mulheres. Era um zagueiro muito alto, forte, com cara de galã americano e conta bancária que não parava de engordar, na definição do narrador da história. A composição do personagem principal da história fica aí, nessa superficialidade cortante e chã, como simplório e modesto, do ponto de vista literário, é o arremate da trama em que toma parte definitiva (no âmbito da vida do galã), ao invés de uma igualmente bela e bem- apessoada mulher, como seria de se esperar, uma tal de Cleusa Marli (quem??? – a certa 286 altura pergunta o narrador), dotada de baixa estatura, gordinha, pernas arqueadas, nariz batatudo, testa muito grande e cabelo espigado, assim mesmo cortado errado, na descrição que lhe apresenta o enredo. Este, portanto, porta a idéia geral de que nem sempre beleza chama beleza, no âmbito ds relações humanas. A espera A brevidade da carreira de um jogador de futebol – e, portanto, a incidência do tempo sobre as coisas humanas – é o tema deste conto em que a angústia, o tédio e a falta de perspectiva tomam conta das preocupações de um atleta que espera a qualquer momento a notícia de um novo contrato de trabalho que não chega nunca. A narrativa é rápida, fluente e curta, como a simbolizar o próprio tema de que trata, e nela podemos sentir, ainda que em intensidade relaxada – por causa da dureza de estilo da prosa – o quanto aqui na terra tudo é passageiro, cambiável e substituível. Que o diga o personagem central de mais essa história curta de futebol. O veterano Na linha da história anterior (A espera), esta narrativa aborda o caso de um jogador experiente que é contratado por um time médio para servir de referência, ponto de equilíbrio, esteio psicológico e técnico em que a garotada mais nova pode se mirar nas horas mais difíceis daquela temporada de futebol em curso. Feliz com a nova função no clube, e animado pela perspectiva de comandar um bom time naquele campeonato estadual, tudo ia bem até que o experimentado jogador lembra-se de uma recorrente dor no joelho da qual faz questão de não se lembrar. Se o calcanhar é o ponto frágil do famoso herói grego Aquiles, o joelho também o é para o jogador de futebol. Pois é aí que, segundo o narrador da história, o tempo imprime a sua presença inexorável e força entrópica implacável. Aí, também, neste pequeno ponto do corpo do atleta, neste lugar físico, determinado como verdadeiro ponto de inflexão da carreira de qualquer futebolista, é que a narrativa concentra toda a chave diegética da trama, que embora frágil, como a situação do personagem de que trata, comove pela reflexão que produz. Palavras 287 O gesto, a ação, a atitude valem mais do que mil palavras! Essa bem que poderia ser a paráfrase adequada para sintetizar, numa frase, o entrecho narrativo deste conto em que a palavra (de um personagem; não a do narrador) entra apenas como instrumento útil para realçar a ação, a competência, enfim; a operatividade do jogador de futebol que, uma vez bem demonstrada em campo, fala por si só. Um velho treinador de futebol, definido como sendo um profissional que detinha o dom da palavra, o domínio perfeito da linguagem do meio, o conhecimento refinado da língua dos seus comandados (até porque também era a única que conhecia e que também era a sua), certo dia se depara com todos as suas ordens, orientações e conselhos – dadas numa partida a um dos seus jogadores – desobedecidos por este atleta. O resultado, na história (que dá conta de uma derrota do seu time) é que o narrador demonstra que no jogo de futebol, a verdadeira comunicação não se dá por meio da palavra, e sim por meio da linguagem não verbal do corpo em interação com a bola, na sua semântica fluida e sintaxe rebuscada. Nas vitórias e nas derrotas. Sim! E também nos empates. O ex-jogador Esta narrativa é sobre o peso do passado sobre o presente. Ou sobre o presente pesando em relação ao passado. Trata de um ex-jogador de futebol que vive atormentado pelas lembranças de quando estava em franca atividade nos estádios. O hábito de gostar de assistir aos “garotos” do seu time jogar aos domingos, ao invés de atenuar suas angústias só as adensam quando não as ampliam. A ponto de fazer um esforço desmedido para não mais relembrar as suas atuações em campo... Inutilmente. A ponto de só desejar agora sonhar ao invés de recordar. A ponto de – sobre esse seu drama e angústia –, o narrador do seu caso lembrar que para ele, na delicadeza da situação de ex- jogador – “relembrar era como estar cercado por três marcadores, sem ter um companheiro para passar a bola e, ao perdê-la, acabar armando o contra-ataque do adversário. Sonhar era como bater uma falta frontal, sem barreira, da risca da grande área, contra um goleiro frangueiro”. Sábias palavras essas que definem bem a costumeira inadaptabilidade à vida comum que sempre acometem os homens que se acostumaram a reinar nos gramados nas tardes de domingo ou num meio de semana qualquer. Arquibancada 288 História breve. Curtíssima. Cabe numa página de livro-padrão. Fala sobre uma conversa entre um pai e um filho, ocorrida numa arquibancada de um estádio onde ambos assistiam a um jogo de futebol. O tema da conversa de tão delicado, parecia que deveria ser evitado ali, naquele lugar; mas, justamente ali é que deveria ser conversado porque o futebol tomaria mais a atenção dos dois. Assunto delicado; muito delicado, daí a prosa lacônica, rápida, incisiva para abordá-lo ainda que ficcionalmente. Um conto de sugestão, se não de ambigüidades lancinantes. Zezo Um filho à procura de um pai, ex-jogador de futebol, com quem teve uma relação difícil dentro de uma família cujo chefe parecia querer sumir; eximir-se de suas responsabilidades e de suas obrigações, é a base do entrecho narrativo deste conto que traz de volta a inadaptabilidade à vida comum, fora dos estádios, que sempre acompanha os jogadores de futebol que encerram suas carreiras. Texto lacônico, direto ao ponto, cujo objetivo (metáfora do gol: o reencontro com o pai) parece ser, num acerto de contas pessoal – bem realizado pelo narrado da história, diga-se de passagem – empatar o jogo da vida com o da bola. Sentença História que prolonga em conteúdo e em enfoque uma das primeiras narrativas de ficção sobre o futebol escritas na América Latina: o conto Juan Polti, Half-back, de autoria do escritor uruguaio, Horacio Quiroga, escrita em 1918. O mesmo tema, um caso de suicídio envolvendo um jovem jogador; a mesma perspectiva no flagrar, na psicologia vacilante e frágil da juventude, a ausência de têmpera suficiente para enfrentar os reveses da vida – lá, o registro da imaturidade para lidar com a glória e o seu ocaso (“Quando um garoto chega por a ou por b, e sem preparo prévio, a provar dessa bebida de varões que é a glória, perde inevitavelmente a cabeça); aqui, a falta de vigor emocional para encarar de frente as fatalidades da existência (“O atacante Virgílio tinha um cabeceio perfeito e um coração pronto pra falhar”), mas um encaminhamento narrativo diferente: ao contrário do viés reflexivo-expositivo de Quiroga, este conto de Cláudio Lovato experimenta a narração pura do caso; a sua incisiva informação ao leitor, à maneira da Crônica de uma morte anunciada, do genial narrador colombiano Gabriel García Marquez. Não é à toa que a história de Lovato 289 inicia assim: “O suicídio do atacante Virgílio fez desabar sobre o clube uma tempestade que só teria fim dali a trezentos e cinqüenta anos”. E segue, a partir daí, contando o drama pessoal do seu personagem Virgílio para o que lança mão de uma prosa empática, serena e rigorosamente sóbria, requisitos extremamente adequados para a ocorrência trágica habilmente transformada em fato literário. Novatos Narrativa que retoma o tema da ação do tempo sobre todas as coisas humanas; as físicas e as metafísicas; as materiais e as imateriais; todos os corpos e todos os espíritos, enfim. Só que o viés de abordagem, desta vez, foca o conflito dilemático entre a paciência de esperar versus a urgência de realizar, e é aqui que flagramos, através da segura exposição de um narrador em terceira pessoa, as reflexões do velho treinador de futebol, Ary Santamaria, às voltas com uma questão atinente ao universo do futebol, mas, também, a todo o universo como um todo, no qual habitamos e no qual só temos uma atitude geral a tomar enquanto nele vivemos: ou realizamos as coisas no tempo certo ou esperamos o tempo certo para realizá-las, coisa de que nunca sabemos ao certo. A questão que se coloca para o personagem em questão é a seguinte, nas palavras do próprio narrador da história: “O velho treinador tinha jogadores demais que entravam muito bem durante a partida, mas que, quando colocados em campo desde o início, sumiam em pouco tempo, murchavam, tornavam-se menos do que medíocres. Eram prata-da-casa, promessas de craque, o clube apostava neles, a torcida também, mas ainda não estavam prontos. O legendário Ary Santamaría, treinador de muitas batalhas, sabia que só o tempo faria com que amadurecessem. Mas estava preocupado com as expectativas criadas em torno deles. O clube queria resultados imediatos”. A partir desse problema prático, toda uma ampla reflexão sobre a vida no geral, refletida no jogo de futebol em particular, é acionada neste conto que, a exemplo de Na boca do túnel, de Sérgio Sant’ Anna – pág..., realça o poder da experiência, transfigurada literariamente na pessoa de um treinador de futebol, para demonstrar uma refinada intersecção do futebol com a vida; da palavra literária com o futebol, e deste com a frágil condição humana. Noite em claro Este conto é um libelo de gratidão àquelas pessoas que ensinam as outras a abrir os olhos diante da vida. Em uma de suas longas noites de insônia, o Zagueiro Wagner Luiz, 290 prestes a disputar sua primeira decisão como profissional, a partida final do campeonato estadual que estava disputando, relembra a figura do seu avô materno, Célio, que lhe ensinara a ver o jogo de futebol de maneira diferente. Entre os ensinamentos do avô, já devidamente introjetado e bem assimilado, está a idéia – explicada a ele a partir da análise que o velho fizera da partida final em que inesperadamente o Brasil perdeu na Copa de 1950: “Fizemos o que podia ser feito, dissera-lhe o avô várias vezes...” – de que no jogo, como na vida, ninguém ganha nada por antecipação. Se é que se ganha alguma coisa em qualquer tempo, por causa da reversibilidade substantiva através da qual a vitória pode se transformar em derrota ou vice-versa, conforme o privilégio do ângulo com o que se enxergue as coisas, neste pêndulo de altos e baixos em que se equilibra a existência. Assim é que se pode tirar desta narrativa – além do testemunho literário do valor ético da gratidão, exposta com sinceridade e desprendimento – a seguinte lição, que é um misto de estoicismo e fé cética na derrisão geral com o que se deve encarar a inexorabilidade de tudo o que existe neste mundo: “Já quase dormindo, Wagner Luiz pensou que no dia seguinte (na verdade, naquele mesmo dia, dali a algumas horas) faria isso, faria o que podia ser feito, e deixaria o que não podia ser feito continuar assim: sem ser feito”, diz o narrador, a certa altura. Sábias palavras que a literatura ecoa a partir do futebol. Instrumento de trabalho Se o conto anterior é sobre o sentimento de gratidão que se deve expressar prontamente e com sinceridade, esta narrativa aqui é sobre a sinceridade a que se deve corresponder com gratidão. A história toma como matéria narrativa o testemunho de um zagueiro – o conto é narrado em primeira pessoa pelo próprio personagem central – sobre a sua principal jogada, uma espécie de assinatura estilística da sua arte de jogar futebol; sua principal marca como jogador: o carrinho como recurso para tomar a bola do adversário. Proibido pelas regras do futebol, por sua propensão a causar lesões graves graças ao desequilíbrio de forças com que é aplicado, sempre desfavorável ao jogador que é vítima da jogada, o carrinho é aqui motivo de surpreendente apologia acompanhada de sincera, se não apaixonada e veemente defesa. Tudo conforme o autêntico movimento da arte, que deve antes primar pelo interdito, o contradito, o contraditório; aquilo que vai na contramão das evidências correntes. Assim, como o personagem-narrador desta história, que a despeito de ter quebrado a perna de um companheiro de profissão justamente ao aplicar-lhe essa jogada, a certa altura diz, sem remorsos, mas com contemplação. “Eu dou carrinho, todo mundo sabe. 291 Faço porque sei fazer e porque gosto. Desde garoto eu acho que um carrinho bem dado é uma das jogadas mais bonitas do futebol. É uma beleza o carrinho na bola, vindo de lado, lavrando o gramado para atravessar o corpo na frente do atacante e desarmar o cara sem encostar nele. [...] seja que tipo de carrinho for, o segredo é saber o momento certo de dar o bote. Aí é que está a arte”. Neste caso, a arte da literatura que também o diga. Maqueiro História com andamento narrativo idêntico ao do conto anterior, isto é, fincada no testemunho de um personagem-narrador que conta a sua condição profissional, ameaçada pelas novidades da tecnologia. Trata das confissões de um maqueiro, aquele profissional que no jogo de futebol tem a incumbência de retirar de campo os jogadores que eventualmente sofrem lesões e, por isso mesmo, não podem sair do gramado por conta própria e ficam retardando o reinício das partidas. Em frases curtas e de sentido direto, é aqui narrada a resistência do maqueiro em ver seu ofício trocado, num futuro próximo, por aqueles carrinhos elétricos que substitui a força braçal na condução dos atletas para fora do campo de jogo. Tudo exposto numa prosa instantânea, rápida e veloz, homóloga à corrida do personagem de que trata quando este entra e sai de campo (aliás, o enfoque eletivo do tratamento do tema) num piscar de olhos; numa corrida estonteante e alucinada, como parece ser o ritmo de tudo quanto ocorre no mundo moderno. Dividida Luciana que casou com Soares, mas se apaixonou por Moisés... Esse trio, bem à maneira do caso narrado no poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade, é o motivo nuclear do entrecho narrativo deste conto de futebol. O seu título, Dividida, anuncia não só a situação amorosa de que trata a história – o amor de uma mulher dividido para dois homens jogadores de futebol – como também, e principalmente, enuncia, através de um recurso formal adequado para o caso, a chave de sua resolução narrativa: a ocorrência de uma dividida num treino em que um dos jogadores quebra a perna do outro. O caso não parece ter sido por vingança, já que, conforme o narrador, “num daqueles acontecimentos que surpreendem a todos, os dois jogadores trataram a questão racionalmente e, para a estupefação geral, continuaram a se relacionar de forma cordial”. É a partir daqui que a narrativa ganha em interesse e eficácia estética. E isso porque consegue expor de maneira competente, mesmo 292 que de forma despretensiosa, uma situação exemplar da tese sociológica do homem cordial aplicada ao universo do futebol. Aquele homem – no caso, o homem brasileiro – que reage sobretudo com o coração às vicissitudes do meio, a despeito da incidência benéfica ou maléfica dos seus resultados práticos, conforme bem o demonstrou o sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda. E aqui, resoluta e peremptoriamente, segundo relata-se nessa história, com o coração na ponta das chuteiras, diga-se de passagem. Volta por cima Como já o título prenuncia, esta é uma história de superação. Um jogador medíocre, perna-de-pau, pereba, contratado apenas para compor o grupo, “um cabeça-de-bagre irrecuperável”, na expressão do narrador do conto, chega a um time de relativo destaque nacional e é escanteado pelo treinador da equipe por causa da sua deficiência técnica. Eis que um dia, durante uma partida em que se decidia uma competição nacional e para cuja vitória era necessário o seu time ganhar com pelos menos uma diferença de três gols, Ramiro (esse era o nome do cara) desencanta e marca os três tentos que dá o título ao seu clube. Esse é, sem tirar nem pôr, o argumento narrativo desta história curta de futebol cuja formalização literária, previsível e tautológica, se ressente de tudo quanto é necessário à construção de uma boa história de ficção e lembra apenas, ainda que pela reiteração mal resolvida do seu tema, que no futebol, como na vida, tudo é possível. Como já se disse, o título prenuncia – este agora, o conquistado pelo clube, através do feito do misto de herói e anti-herói, Ramiro – que esta é apenas uma história de superação. O batedor de faltas História com razoável grau de investimento estilístico e formal que expõe as sensações e os sentimentos interiores de quem encontrou, num fato qualquer da sua vida, a razão da felicidade extrema. Nesse caso, essa pessoa é um jogador de futebol – um quarto-zagueiro com quase dez anos de profissão – que se descobre realizado ao dominar técnica e existencialmente um dos fundamentos do jogo da bola aos pés: a cobrança de faltas à média e longa distância. A narrativa, apesar de não inovar em nada o diapasão com que a tradição literária apresenta as incursões nestes casos em que um narrador onisciente penetra a interioridade do personagem para, num realismo intimista, expor os seus estados d’ alma – e, com isso, validar o seu aproveitamento estético –, cumpre aqui um papel importante na 293 demonstração que promove de que o futebol tem um apelo humano inestimável quanto ao seu aproveitamento literário: o de ser um jogo cujo fundamento lúdico permite que o homem volte a ser criança sem deixar de ser adulto. Acuados Tensão e expectativa. Essas duas palavras resumem bem o motivo do entrecho narrativo deste conto de futebol, centrado menos na figura dos personagens – apesar de tratar nominalmente de vários deles envolvidos no episódio que narra – e mais no ambiente em que se desenvolve toda a ação. A ponto de o ambiente tornar-se personagem e os personagens se tornarem reféns do ambiente. Um típico conto de clima, portanto. Aborda um caso envolvendo um grande clube da capital que vai disputar a final do campeonato estadual contra um modesto clube do interior, mas que detém uma torcida fiel e fanática. O time da capital jogava por um empate com placar acima de dois gols para cada lado e, mediante sérias ameaças sofridas ainda no vestiário antes do jogo – a partida era na cidade-sede do adversário –, a tática combinada era a de que o time da capital se contentaria com o empate por 2 a 2, que lhe daria o título e abrandaria a torcida do time do interior. Acontece que, mesmo advertido e contrariando os planos combinados, o centroavante da capital desempatou o jogo no finalzinho do segundo tempo. Tudo o mais, a partir daí, acontece, e é sobre o desenrolar destes acontecimentos que versa esta história curta de futebol. A célebre oposição capital versus interior, que o jogo atualiza e emula; o complexo de inferioridade que açoda o concurso da violência como forma de resolução momentânea e as estratégias de sobrevivência adotadas para fugir de uma situação fora do controle são alguns aspectos do complexo fenômeno do futebol dentro do âmbito da cultura que esta história trás à tona. Dentro de uma prosa honesta, firmada numa estrutura narrativa clássica, e até brincalhona, a despeito da seriedade do conteúdo que a informa. Guerra no vestiário Santo de casa não faz milagre. Este célebre axioma, transformado pelo jargão futebolístico em “prata-da-casa só se fode”, pode muito bem, por sua vez, ser o resumo da idéia-força desta história curta sobre futebol. O caso é de um racha ocorrido num elenco de um dos mais tradicionais clubes do País em que se opõem ferrenhamente o grupo dos atletas formados na casa contra o grupo dos jogadores experientes, vindos de fora, contratados por 294 salários maiores e tratados com mais atenção e desvelo por parte da diretoria em exercício administrativo. Situação relativamente corriqueira no mundo contemporâneo do futebol, a ocorrência do fato é tratada nesta narrativa ficcional pelo ângulo da sua potencialidade desagregadora extrema; pelo lado do malefício que pode causar a um esporte fundado na subordinação dos interesses individuais em função do coletivo; pela análise isenta do quanto a desigualdade no tratamento das coisas humanas pode opor, ao limite do paroxismo, o velho contra o novo; o que quer se estabelecer com o já estabelecido. Neste particular, talvez a violência generalizada que se estabelece dentro do vestiário num dia de treino do time em questão, e as conseqüências que dela se seguem, contadas ao final da história, seja o episódio- símbolo da idéia axiomática acima referida, conservadora e resistente na mentalidade da cultura, melhor resumida, quem sabe, na letra da velha canção disposta a pregar que ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais. Cartas A narrativa curta de futebol é, aqui, nesta sua particular expressão literária, portadora de uma novidade quanto ao seu projeto interno de fatura: torna-se um conto epistolar na forma e um conto policial no conteúdo. Ambos (forma e fundo) articulados em torno de um motivo coerente para o qual converge o tecido lógico do seu desenvolvimento fabular: a comunicação, via cartas, entre um filho e um pai, das situações e circunstâncias que prenunciam um desfecho inesperado para uma história comum envolvendo um jogador de futebol prestes a ver o seu time cair da primeira para a segunda divisão. O epílogo não é bom que se revele, porém é bom que se diga que a história se sustenta mais pela forma – palatável e verossímil em si mesma porque é sempre bom ler cartas independentemente do conteúdo – do que pela frustrada e pretensa surpresa do seu teor conclusivo. É um caso em que a narrativa de ficção agrada mais pela maneira dizer do que propriamente pelo que tem a dizer. Gandula Mais uma das inúmeras figuras da extensa e rica galeria do universo intrínseco do futebol entra em cena nesta história. Desta vez, o protagonista é um gandula, aquele sujeito que é encarregado de colocar a bola do jogo de futebol sempre ao alcance dos atletas quando esta é, por algum motivo, arremessada para longe do campo de disputa. Normalmente invisível em meio ao espetáculo do jogo, o gandula desta narrativa ganha status de 295 personagem literário por uma paradoxal novidade: permanece invisível. Só que com essa sua invisibilidade, digamos ativa, muda o curso natural das coisas e altera, aqui, o resultado de uma partida. Não, ele não invade o campo e nem sequer toca na bola; a não ser nos momentos em que por ofício é obrigado a colocá-la à disposição dos jogadores. Sua intervenção nos rumos desta história é mais sutil e diria mesmo engenhosa. Com duas ordens táticas aos jogadores do time do seu coração, dadas às escondidas, ele faz as vezes do técnico e leva sua equipe a ganhar um jogo que parecia impossível contra o melhor time do campeonato. Como conseqüência, este perde o título que parecia ganho enquanto aquele – o do gandula – deixa de cair para a segunda divisão; o que até a sua ação, parecia inevitável. Boa história contada em ritmo de agradável anedota. O guardião O segredo continua sendo, como sempre, a alma do negócio. Esta é a inevitável conclusão a que se chega, quando se acaba de ler esse conto de futebol em que um filho de um jogador do passado interpela o amigo do seu pai acerca de um episódio em que um caso de dopping comprovado arruinara a carreira e o resto da vida do seu velho. Toda a narrativa é estruturada para dar a entender ao leitor – através da curiosidade do filho expressa ao amigo do seu pai – que existe um segredo ainda não revelado que explicaria de todo o episódio ainda mal assimilado por todos aqueles que conheciam o antigo jogador. O resultado disso tudo – que de certa maneira salva a trama razoavelmente bem urdida desta história – é que, por fim, o segredo é revelado ao leitor nos seguintes termos: “Ele sabia que, mais cedo ou mais tarde, teria de contar ao garoto o que de fato ocorrera. Mas mesmo quando essa hora chegasse, não contaria toda a verdade, não poderia. Havia uma parte que ele manteria para sempre em segredo; a parte que o comprometeria terrivelmente, como autor da idéia que desencadeou toda aquela desgraça, o principal responsável pelo passo em falso, fatal, do seu melhor amigo”. Ou seja: a chave da narrativa é um segredo revelado em forma de outro segredo; um bom truque do narrador para envolver a curiosidade do leitor, ao invés de satisfazê-la. Feliz Natal As lembranças do ex-jogador Odair, lateral medíocre, pai e marido alcoólatra e violento dominavam a mente dos três irmãos. Essas palavras do narrador sintetizam bem o enredo dessa história de desagregação familiar que tem o futebol como pano de fundo. São 296 três irmãos relativamente bem encaminhados no mundo da bola – todos jogam em categorias diferentes no maior clube da cidade onde moram – que esperam ansiosamente a visita do pai prometida por ele para o dia de Natal. Cada um dos filhos nutre sentimentos diferentes pelo velho (vai desde a admiração distanciada, passando pela indiferença até a aversão pura e simples) e aproveitam a ocasião para discutirem a relação com o pai. Narrativa dolorosa, denunciativa, que expõe novamente de forma incisiva e contundente uma daquelas situações (a exemplo do conto Zezo, do mesmo autor – pág. 286) em que o futebol é abordado enquanto metáfora do jogo da vida. E, aqui, mais uma vez, numa dimensão em que ocorre um radical empate numa das partidas da existência. Sonhos Narrativa comovente que põe em relevo um dos aspectos mais poderosos e fascinantes do jogo de futebol: a sua condição de elemento constitutivo da cultura de quase todos os povos; a sua potencialidade de ser um código de comunicação que integra, na mesma sensação de pertencimento à nossa humanidade mais primordial, os mais diferentes e distantes indivíduos; de ser um curioso amálgama de sentidos e sensações que liga e aglutina as nossas afinidades lúdicas e infantis; de ser um repositório de símbolos e ritos com os quais nos identificamos e selamos nossa solidariedade comum de destino. O caso aqui é de um encontro entre uma criança equatoriana e um jornalista brasileiro, ocorrido por ocasião de uma visita deste a um canteiro de obras numa cidadezinha daquele país. Sem nunca se terem visto, os dois se ligam por fortes laços afetivos e emocionais por intermédio da brincadeira com a bola. A criança, frágil e doente, sonha, a despeito disso, em ser um jogador de futebol, e por saber que o jornalista pertence ao “país da bola”, com ele se identifica imediata e profundamente; a ponto do encontro de ambos fazer ressoar, na memória emocional do homem adulto, um outro encontro não mesmo significativo para este: a confluência identitária dele para com ele mesmo. “Fui para casa me lembrando de um menino de calção rasgado e tênis surrados, sem camisa, correndo num terreno baldio atrás de uma bola de couro com gomos pretos e brancos, ao lado de primos e amigos, numa cidade do interior do Rio Grande do Sul, mais de trinta anos trás. Pensei nele e tive a certeza de que aquele menino e eu não tínhamos nos perdido um do outro; ainda éramos um só”, confessa, a certa altura, o personagem-narrador da história. 4.4.1.21 Cyro De Matos 297 Cyro de Matos nasceu em Itabuna, Bahia, a 31 de janeiro de 1939. É contista, novelista, ensaísta, cronista, organizador de antologias e autor de livros para jovens e crianças. Advogado aposentado e jornalista com passagem na imprensa do Rio de Janeiro, publicou – na condição de poeta que também o é – dez livros para o leitor adulto assim como quatro infanto-juvenis. Como autor de prosa de ficção curta, publicou Os Brabos, que ganhou o Prêmio Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras de 1979; O Mar na Rua Chile, crônicas, com o qual foi finalista do Prêmio Jabuti de 2003, e O Goleiro Leleta e Outras Fascinantes Histórias de Futebol, que venceu o Prêmio Hors Concours Adolfo Aizen da União Brasileira de Escritores, também 2003. Está presente em diversas antologias do conto no Brasil e em Portugal, Alemanha, Dinamarca e Rússia. Sua história “Ladainha nas Pedras” participa da antologia “Visões da América Latina”, organizada por Uffe Harder e Peter Poulsen, Editora Vindrose, Copenhague, ao lado de contos de Jorge Luís Borges, Juan Rulfo, Mario Vargas Llosa, Uslar Pietri, Alejo Carpentier, Juan José Arreola, Miguel Astúrias, Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Aníbal Machado e Clarice Lispector, dentre outros. O conto O goleiro Leleta, que segue, integra a coletânea de história curtas organizada pelo autor, intitulada Contos brasileiros de futebol, publicada pela editora LGE, de Brasília, em 2005. O goleiro Leleta Esta é uma narrativa simplória sobre futebol, o que não quer dizer desprovida de tom dramático e certo lirismo às vezes bucólico, às vezes elegíaco, que derrama seus efeitos sobre o leitor. O motivo do texto é contar uma situação humana particular vivida por entre um clima que mistura festa e alegria com pesar e tristeza. E em meio a tudo isso, o flagrar-se a universalidade do futebol enquanto fator de sociabilidade humana presente nas mais diferentes culturas e nos mais distantes e longínquos rincões do mundo. 4.4.1.22 Daniel Piza Daniel Piza nasceu em São Paulo em 28 de março de 1970. Estudou Direito no Largo de São Francisco (USP) e começou sua carreira de jornalista em O Estado de S. Paulo (1991-92), onde foi repórter do Caderno2 e editor-assistente do suplemento Cultura. Trabalhou em seguida na Folha de S. Paulo (1992-95) como redator, repórter e editor- assistente da Ilustrada, cobrindo especialmente as áreas de livros e artes plásticas. Foi 298 também editor e colunista do caderno Fim de Semana da Gazeta Mercantil (1995-2000). Em maio de 2000, retornou ao Estadão como editor-executivo e colunista cultural; desde 2004 assina também uma coluna sobre futebol. É colaborador da revista Continente Multicultural, comentarista do canal Globo News e da rádio Eldorado, de São Paulo. Traduziu oito livros de autores como Herman Melville e Henry James, e organizou seis outros, nas áreas de jornalismo cultural e literatura brasileira. Publicou quatorze livros: quatro ensaios, um volume de aforismos, quatro coletâneas, um romance juvenil, um infantil, dois perfis e uma biografia de Machado de Assis intitulada, "Machado de Assis – Um Gênio Brasileiro", que saiu pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, em 2005. A narrativa “Golpe de vista”, está publicada na coletânea, 11 histórias de futebol, publicada em 2006 e que reúne, junto com Daniel Piza, mais dez escritores brasileiros escolhidos pela Editora Nova Alexandria, de São Paulo, para tratar ficcionalmente do tema do futebol. Golpe de vista Texto que retrata ficcionalmente, sem nenhuma criatividade formal ou de conteúdo a ressaltar, uma batalha particular que está prestes a acontecer entre um atacante e um zagueiro adversário durante uma partida de futebol que pode decidir um campeonato para uma das partes. A idéia de fundo é demonstrar, pelas vias labirínticas da ficção – embora o tecido textual não contenha o intrincamento necessário a estes casos – o quanto se repelem, mas também se complementam, as forças de criação e de destruição, ambas representadas aqui pelas figuras do jogador que defende e do que tem a incumbência de atacar, no emaranhado tabuleiro do jogo de bola aos pés. 4.4.1.23 Deonísio da Silva Deonísio da Silva nasceu em Siderópolis, Santa Catarina, em 1948. É escritor e professor universitário brasileiro, que mora no Rio de Janeiro e trabalha na Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de Cultura e Coordenador de Letras. Doutor em Letras pela USP, com uma tese sobre os livros proibidos no Brasil no período pós-1964, sempre conciliou sua vida de escritor com a docência universitária e com uma ativa colaboração na imprensa brasileira. Já Publicou os seguintes romances: A mulher silenciosa (1981); A cidade dos padres (1986); Orelhas de aluguel (1988); Avante, soldados: para trás (1992), Teresa (1997), Os guerreiros do campo (2000) e Goethe e Barrabás (2008). Também escreveu diversos 299 livros de contos, gênero com o qual estreou, começando em 1975, e de que são exemplos as seguintes coletâneas, com contos publicados em francês, espanhol, alemão e sueco, entre outras: Exposição de motivos (1976), transposto para a televisão por Antunes Filho; Livrai-me das tentações (1984); O assassinato do presidente (1994) e A primeira coisa que eu botei na boca (2002). Publicou também livros infanto-juvenis e vários ensaios literários. Atualmente escreve uma coluna semanal de etimologia na revista Caras, periodicamente reunidas no livro De onde vêm as palavras (1997), constantemente reeditado, e outra, de crítica de mídia, no Observatório da Imprensa. O conto, 1958, também compõe a coletânea, 11 histórias de futebol, publicada em 2006, pela Editora Nova Alexandria, de São Paulo, tendo como tema central o futebol. 1958 Excelente narrativa de viés memorialístico que tem o futebol como tema (“E tudo isso escrevo para dizer que eu nasci em 1958. Dez anos depois de ter vindo ao mundo”) e na qual, ao encetar uma jogada literária em que forma e conteúdo se irmanam num paralelismo de fundo tático, o narrador começa dando um drible no leitor quanto as suas intenções com o manejo da palavra ficcional para expor as suas próprias motivações interiores como centralidade de uma história em que o jogo de bola entra como dissimulado leitmotif. 4.4.1.24 Dias da Costa Dias da Costa nasceu em Salvador, Bahia, em 1907. Foi redator, no Rio de Janeiro, das revistas “Pã” e “Leitura”. Publicou os volumes de contos, Canção do Beco (1939), e Mirante dos Aflitos (1960). Deixou um legado literário pequeno, mas expressivo, merecendo sua obra estudo de avaliação crítica. O conto, Uma vez Flamengo..., foi originalmente publicado na coletânea “Dias da Costa conta histórias do Mirante dos Aflitos”, publicada por Gumercindo Rocha Dórea Editor, em 1943, com o título, De tarde e domingo: um conto de futebol. Já com o título de Uma vez Flamengo..., abaixo, foi inserido na coletânea, Contos brasileiros de futebol, organizada por Cyro de Matos e publicada pela Editora LGE, de Brasília, em 2005. Uma vez Flamengo... 300 Esse é um daqueles contos de futebol que não trás nenhuma novidade técnico-literária e tampouco investe de forma segura em nenhum dos seus aspectos temáticos mais fascinantes como, por exemplo, os paradoxos de complementaridade e de fundação do jogo da bola. Aqui, novamente é tematizada uma situação que se não for devidamente elaborada de forma que dela se possa extrair um bom rendimento estético, o seu mero registro ficcional pode se tornar inócuo, senão perigosamente clicherizado, como é o caso em questão, de um sujeito que em meio a um fluxo poderoso de emoções díspares, morre em plena arquibancada do estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, vitimado por um ataque cardíaco. Ou seja: o clássico quadro estrutural da reversibilidade semântica do futebol por onde se pode ver que da mais funda alegria pode-se extrair a mais profunda tristeza. 4.4.1.25 Domingos Pellegrini Domingos Pellegrini nasceu Londrina (PR), em 23 de julho de 1949 e é jornalista e escritor. Entre as suas obras destacam-se Terra Vermelha, que conta a história da colonização do Paraná; O Caso da Chácara Chão e O Homem Vermelho, sendo que por estas duas últimas obras – um romance e um livro de contos, pela ordem – o autor foi premiado com o prêmio Jabuti de literatura, oferecido pela Câmara Brasileira do Livro nos anos de 2001 e 1977, respectivamente. Atualmente vive na sua cidade natal, Londrina, onde estudou Letras. Trabalha com jornalismo e publicidade. É autor de contos, poesias, e romances, entre os quais devem ser registrados, além dos títulos já citados: Questão de Honra (1999) e O Mestre e o Herói (2006). O conto de futebol, A última pelada de Mané, está publicado na coletânea 11 Histórias de futebol, reunião de contos integrante da Coleção Prosa Presente, da Editora Nova Alexandria, de São Paulo, que saiu em 2006. A última pelada de Mané Excelente narrativa ficcional que destaca, em tom rapsódico, a figura de um personagem ao mesmo tempo histórico e mítico do futebol brasileiro: Manoel Francisco dos Santos, Garrincha, o jogador bicampeão do mundo pelo Brasil em 1962 e estrela maior do Botafogo do Rio de Janeiro pelo anos seguidos da década de 1960. Com uma prosa brincalhona (risonha até), mas extremamente segura e adequada aos seus propósitos, que é contar os últimos ditos e feitos de um emblemático herói nacional – aquele a quem o povo consagrou país afora pela sua magnanimidade artística com a bola nos pés –, o inventivo 301 narrador criado por Domingos Pellegrini brinda aqui o leitor com uma estória curta cujo apelo estético é seu próprio personagem central. 4.4.1.26 Duílio Gomes Duílio Gomes nasceu em Mariana (MG), em 1944, e reside em Belo Horizonte. Formou-se em Direito pela UFMG, mas sempre atuou no âmbito do jornalismo cultural. Expoente de uma geração de contistas mineiros surgida na década de 1960, em Belo Horizonte, capitaneada pelo veterano escritor Murilo Rubião – e que trazia em suas fileiras nomes como Luiz Vilela, Jaime Prado Gouvêa, Adão Ventura, Sérgio Tross, Lucienne Samôr e Sérgio Sant’Anna – o escritor Duílio Gomes já publicou, até agora, cinco livros de contos, tendo ainda participado de trinta e três antologias de histórias curtas. Recebeu inúmeros prêmios literários, entre eles seis em âmbito nacional: "Cidade de Belo Horizonte" (duas vezes), "Prêmio Guimarães Rosa / Secretaria Estadual de Cultura de MG", "Revista Status", "MinasCaixa" e "Prêmio Fernando Chinaglia". Seus contos estão traduzidos para oito idiomas. Em 1983, Duílio dirigiu o “Suplemento Literário do Minas Gerais”, ganhando para o semanário o Prêmio UBE (União Brasileira de Escritores, São Paulo) na área Melhor Jornal Literário do País. Em 1985, foi convidado pelo escritor Ricardo Ramos (filho de Graciliano Ramos), para co-organizar, em São Paulo, duas Bienais Nestlé de Literatura (1985/1988), compondo um grupo com os escritores Adonias Filho, Moacyr Scliar, José J. Veiga, Bella Jozeff, e Antônio Holfeldt. O grupo, dirigido por Ricardo Ramos e Iraty Ramos, julgou concursos literários de âmbito nacional e promoveu debates culturais entre estudantes e populares em São Paulo, Goiânia, Alagoas e Curitiba. O conto, O massagista, consta da coletânea Contos brasileiros de futebol, organizada por Cyro de Matos, e publicada pela Editora LGE, de Brasília, em 2005. Já a história curta, Lucrécia, está em: COSTA, Flávio Moreira da (Org). 22 contistas em campo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. O massagista Narrativa leve – e por isso mesmo muito saborosa – de caráter reminiscente que mistura futebol e política internacional para compor um curioso quadro da repercussão dos efeitos desta no micro-mundo daquele. Para desenvolver o tema ficcionalmente, o contista Duílio Gomes lança mão de um dos personagens mais interessantes do universo do futebol: o 302 massagista, aquele profissional encarregado de prestar os primeiros socorros aos atletas em caso de contusão ou avarias médicas no campo de jogo. Lucrécia História contada a partir da condição e do ponto de vista de uma personagem- narradora mulher, que tem como foco principal o significado das ações e peripécias de outra mulher cuja inserção social súbita numa cidadezinha do interior de Minas Gerais, por volta da década de 1960, revoluciona os costumes e modos de agir da comunidade local. A narrativa aborda o tema da situação feminina ante um mundo governado pelos homens e tangencia, por decorrência, através do sub-tema do futebol (ver O goleiro do time, de Edson Gabriel Garcia, (pág. 304), dada a posição privilegiada desse jogo na configuração de uma cultura provinciana de viés um tanto machista, a importância do lugar das mulheres neste mesmo mundo em que elas são obrigadas a disputar com os homens, em condições desfavoráveis e desiguais, seus espaços de existência e realização. A novidade dessa história fica por conta do seu conteúdo levemente irônico com o qual pretende comunicar uma mensagem de ordem ética, a saber: que para além e acima das questões de gênero, em qualquer sociedade humana que se preze, tanto o homem pode agir como mulher quanto a mulher pode agir como homem. E isso, genericamente, para o bem ou para o mal. 4.4.1.27 Edla Van Steen Edla van Steen nasceu em Florianópolis, Santa Catarina, em 12 de julho de 1936. Seu pai era belga e cônsul-honorário naquela cidade. Tem 25 livros publicados, entre contos, romances, entrevistas, peças de teatro e livros de arte. A escritora vive em São Paulo há quase quarenta anos e como autora já recebeu vários prêmios nas áreas de cinema, literatura e teatro. O Último Encontro, sua primeira peça encenada, recebeu o prêmio Molière de "Melhor Autor". Teve quatro livros publicados nos Estados Unidos, com tradução de David George, que mereceram excelentes críticas: Village of the Ghost Bells, A Beg of Stories, Early Morning e Scent of Love. A autora dirige cinco coleções da Editora Global: Melhores Contos, Melhores Poemas, Jovens Inteligentes e Magias I e II, infanto-juvenis. Um de seus contos, O Sr. e a Sra. Martins, foi publicado numa antologia internacional “Sudden Fiction”, ao lado dos mais importantes nomes da literatura contemporânea, pela editora W. W. Norton & Company. Edla van Steen é casada com o historiador e crítico teatral, Sábato Magaldi, e é 303 membro do PEN Clube do Brasil. Com o livro de contos, Cheiro de Amor, ganhou o Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira, categoria autor consagrado, em 1996. O conto de futebol, Que horas São?, foi publicado em 2002 na coletânea, 22 contistas em campo, organizada por Flávio Moreira da Costa, a convite da Ediouro, do Rio de Janeiro. Que horas são? Outro tema recorrente do universo do futebol é aqui retratado ficcionalmente por um hábil – porém tradicionalíssimo – narrador em terceira pessoa das histórias curtas: o caso do atleta que é obrigado a abandonar a profissão e os projetos de vida dela decorrentes por causa de uma séria contusão que o afasta dos gramados. Neste caso, trata-se do craque Edu, promessa de uma carreira brilhante constantemente anunciada pelos jornais e que se vê agora paralisado em casa, frente à TV, a assistir ao jogo de abertura da Copa de 1978, na Argentina, na qual tomaria parte não fosse uma grave contusão no joelho que lhe tirou todas as esperanças. Ao contrário da ênfase na brevidade do tempo que passa para a carreira de um futebolista (ver o conto Vadico, de Edilberto Coutinho), aqui o enfoque de efeito de sentido do conto, dirigido pelo narrador, recai sobre a demora da passagem das horas para alguém que, apesar de tudo, ainda almeja – mesmo que inutilmente – a superação de uma situação insuperável. Daí, a reiteração insistente da pergunta do personagem principal a sua mulher: “– Que horas são?”, a simbolizar a inexorabilidade de um drama a um só tempo pessoal e conjugal, que só termina quando não é mais possível se perguntar mais nada. 4.4.1.28 Edilberto Coutinho Edilberto Coutinho nasceu em 28 de setembro de 1938, em Bananeiras, no estado da Paraíba, e morreu no ano de 1996, na cidade do Recife (PE). Foi advogado, jornalista, professor e escritor dedicado à cultura nordestina. Escreveu nos principais jornais e revistas do Brasil e durante algum tempo foi correspondente, na Europa, do Jornal do Brasil e da Revista Manchete e, nos Estados Unidos, dos Diários Associados, através dos veículos informativos, O Jornal e O Cruzeiro, esta uma revista semanal. Em 1970, transferiu-se definitivamente para o Rio de Janeiro. Pela atuação nos meios intelectuais e literários, conquistou vários prêmios, tanto no Brasil como no exterior, entre os quais, destacamos: “Ensaios de Jornalismo Literário e de Ficção”, conferido pela Academia Brasileira de Letras; “Crítica Literária”, da Associação Paulista de Críticos de Arte; “Estudos Brasileiros de 304 Ficção”, da Fundação Cultural de Brasília – Conselho Federal de Cultura; “Ensaio Biográfico”, da Associação Brasileira de Crítica Literária, tendo sido o primeiro brasileiro a ganhar o prêmio "Casa de Las Americas", de Havana, com o livro Maracanã, adeus: onze histórias de futebol (1980), em que estão presentes as narrativas abaixo enfocadas. Publicou ainda, entre outros, os seguintes livros: Onda boiadeira e outros contos (1954), Erotismo no romance brasileiro, anos 30 a 60 (1967), Rondon e a integração amazônica (1968), Um negro vai à forra (1977), Sangue na praça (1979); Criaturas de papel (1980), Erotismo no conto brasileiro (1980); Memória demolida (1982); a seleta de contos O jogo terminado (1983) e A imaginação do real, também de 1983. Preliminar Texto muito criativo que coloca e procura discutir literariamente em planos simultâneos e, às vezes, paralelos – tomando o futebol como pretexto e o duro cotidiano de um casal de subúrbio como contexto – o confronto especulativo da vida com a arte. Para isso, o autor se serve do personagem José Dias da Cruz, torcedor fervoroso do time do Bangu, do Rio de Janeiro, e da sua mulher, Raimunda, e cria um panorama do cotidiano difícil da gente suburbana da Cidade Maravilhosa que mesmo vivendo em condições as mais abjetas encontra no esporte (nesse caso, o futebol, que é tratado como uma arte popular) a sua válvula de escape ante as durezas da existência pobre, conforme se pode ver nesse trecho: “Além do esgoto, o lixo das casas de cima, no segundo foi um cruzamento de Nicanor da direita, aí houve aquela confusão toda, com as cabeçadas dos zagueiros do Bota e dos atacantes do Ban, a bola sobrou e, desce toda a sujeira pelas valas, dentro da área pela meia-esquerda, entupindo tudo, fazendo transbordar, entrando nas casas, Maninho levantou na medida pra João Jorge cabecear, frente a frente com o goleiro deles, por isto os ratos vivem como querem, no meio da sujeira. Aos 13 minutos do segundo tempo”. Narrativa de forma muito inventiva (veja-se a mistura dos discursos) e de conteúdo social denunciativo, esse conto de futebol tem na disposição dos diálogos expostos pelo narrador (que contrapõem os universos do marido com o da esposa, revelando a pobre visão de mundo do casal) a sua chave de formalização literária adequada para o tratamento do tema da alienação da existência humana, no choque contra um sistema econômico e social injusto e excludente como é o capitalismo. Eleitorado, ou 305 Literatura de resistência, essa narrativa procura formalizar esteticamente a discussão do jogo de futebol como um esporte passível de ser utilizado como mecanismo de alienação das massas. A estratégia formal de resolução desse intuito do autor é a utilização, por parte do narrador, do recurso às possibilidades técnicas do dialogismo como mecanismo apto à exposição de diferentes perspectivas sobre um mesmo assunto. Assim, no conto em questão, é apresentado ao leitor, em forma de uma entrevista dada por um jogador de futebol à imprensa, um arrazoado sobre o estado de consciência política dessa classe profissional perante a realidade brasileira à época da ditadura militar que governou o Brasil de 1964 a 1985. Diante da perspectiva do sucesso do futebol brasileiro – representado pela seleção nacional que então disputaria mais uma Copa do Mundo em condições de vencê-la – ser utilizado politicamente pelo regime ditatorial como propaganda de sua auto-legitimação, graças ao “amor cego” do brasileiro a esse esporte, Edilberto Coutinho cria uma história verossímil que sugere sutilmente a força do próprio futebol como elemento cultural através do qual é possível a afirmação de um contra-poder. Tal idéia é sustentada pela sugestão de que a partir do interior do próprio esporte – através da politização das futuras gerações de jogadores e da inversão da lógica de que, então, a torcida brasileira se confundia com um grande e passivo eleitorado – possa surgir uma reação a esse entendimento de que esporte e alienação necessariamente andam juntos. O fim de uma agonia Texto ficcional escrito na mesma linha do conto anterior (Eleitorado, ou) só que com enfoque diverso: enquanto a narrativa acima privilegia a dimensão coletiva desse fenômeno cultural que é o futebol, isto é, aborda o aspecto da alienação como um elemento que implicaria a manipulação da massa – a torcida – como objeto político de manobra por parte do regime militar em favor de sua auto-legitimação, esta história curta de Edilberto Coutinho toma o jogador enquanto individualidade inserida nesse mesmo processo. Escrita com o mesmo grau de inventividade formal, exemplificada com o recurso sempre útil à literatura desse período da vida literária brasileira, marcada pela fragmentação da narrativa, que aqui comparece através do uso de blocos de escrita separados e sucessivos, com títulos próprios e aparente autonomia ante o conjunto propositivo do texto, essa história aborda o caso da possível venda de um importante jogador do futebol brasileiro, o craque Leleco, que deixaria o País para ir jogar no exterior. Aproveitando-se do apelo popular em favor da permanência do jogador em gramados brasileiros, o regime militar age no sentido de convencê-lo a ficar 306 oferecendo-lhe favores diversos e faturando tal jogada política como um feito diplomático de alto alcance. Ambiguamente malandro e não de todo alheio à dimensão política de sua profissão como uma peça da engrenagem geral do sistema capitalista que sustentava as ditaduras militares que grassava na América Latina nas décadas de 60 e 70 do século passado, o personagem Leleco, em certa passagem, define a sua condição contextual passando a mesma idéia do conto anterior, que sugere sutilmente a força do próprio futebol como elemento cultural através do qual é possível a afirmação de um contra-poder ante esse estado de coisas: “estava fechado o círculo nacional da prostituição”, diz o narrador em discurso indireto livre, assumindo o pensamento de Leleco. “Só Maria das Dores, Dorzinha, assumia, mas todos, na verdade, todos tinham um preço, e ninguém era livre. Chutou uma pedra com raiva súbita. Mas quem não é? Tudo escravo, ia pensando Leleco, tudo putos e putas nessa puta vida. Mas é isso mesmo, porra: bola pra frente. Agora, caminhando de consciência leve pela larga avenida junto ao mar. Do calçadão, onde pára, fica admirando um menino que empina papagaio. Esse troço aí é legal pacas”, conclui o jogador, “porque acostuma o moleque a olha pro alto”. Vadico Glosando um dos temas recorrentes do universo do futebol, a rememoração de um ídolo do passado glorioso de um time ou seleção nacional por motivo da perda, decorrente da inadaptação à vida fora dos gramados depois da “aposentadoria” compulsória pela limitação física para continuar na profissão (geralmente casos de morte por suicídio ou decorrente do alcoolismo), este conto tem como destaque a figura de Vadico, “artilheiro que brilhou ao lado de Pelé” – como é apresentado na narrativa –, e mistura as linguagens literária e televisiva com o propósito de retirar desta o sentido da rapidez com que o tempo passa, assim na tela como na vida real, mote de conteúdo desta história. É que é dessa mistura de linguagens, feita competentemente pelo narrador, que sobressai um dos seus elementos formais mais interessantes, e, por isso mesmo, fundamental para o adequado entendimento do seu conteúdo humano: o foco narrativo ou ponto de vista da narração. Pluralizando – e por isto, dinamizando – o ângulo através do qual o leitor acompanha a vida do jogador e agora do ancião aposentado Vadico (revisto através de um documentário de TV e, simultaneamente, ao vivo, por um senhor também aposentado que o acompanha pelos bancos de um parque), Edilberto Coutinho dá formalização literária competentíssima a um aspecto relevante da trajetória dos homens que se tornam celebridades: a efemeridade da glória alcançada, que é 307 aqui dimensionada pelo franco e duro paralelo que o autor faz com a efemeridade da própria vida humana. Tem explicação, doutor? Conto que se resume numa situação muito simples: um sujeito durante uma consulta a um médico – em pleno diálogo de anamnese – pede explicações para o fato de durante um período que estivera inconsciente por conseqüência de um acidente ter-se lembrado de uma conversa que tivera, através de uma carta, com um certo americano chamado, Steve, que, entretanto, nuca conhecera na vida. A história consiste, na sua maior parte, no relato dessa carta cujo teor é o motivo para o narrador rememorar, para os leitores, suas lembranças da despedida de Pelé do time do Cosmos, de Nova York, para onde fora na década de 1970 com o objetivo de difundir a prática do futebol entre os ianques. Em meio a esse diálogo, um pequeno panorama da relação meio promíscua que o governo militar tinha com o futebol, cuja função principal, pelo menos aos olhos desconfiados da esquerda intelectual do período, parecia ser a de servir de instrumento político-eleitoral para forjar a sua legitimação. História literalmente curta sobre o tema do futebol no contexto da ditadura militar, mote principal do livro, Maracanã, adeus!, que contém essas onze narrativas do escritor Edilberto Coutinho sobre o esporte mais popular do Brasil. Bola falando grosso História trágica em que um gol contra marcado por um garoto durante um jogo entre dois times do subúrbio do Rio de Janeiro simboliza a incapacidade de o talento individual por si só – em contextos em que este atributo humano se vê desprotegido em seus encaminhamentos para desenvolver as suas potencialidades – não consegue se impor ante a força aterradora do poder econômico. Este, no contexto da narrativa, é representado pelo bicheiro Agenor, que disputa com Josemar, detentor daquele (o talento para jogar bola) os amores de uma mulata que é mãe de um garoto, o Dema, que é quem marca o gol contra cuja significação na história vai além da mera questão esportiva. Seu Agenor, é bom que se diga, era quem mandava em tudo, na Escola de Samba, no jogo do bicho e no time do bairro. “Aquelas cenas, Mãe gritando com seu Agenor. Seu Agenor achava que resolvia tudo com um dinheirinho”, pontua, a certa altura do entrecho do conto, o garoto Dema, que, como narrador- personagem da trama, inicia sua história sugerindo o seu próprio fim: o dele, bem entendido, e 308 o do entrecho mesmo da narrativa. “Seu Agenor lá dentro da rede. E agora, Mãe? Eu devia era ter pedido para sair quando fiz o gol contra. O Nelci tem só um ano a mais do que eu, mas a bola dele já tá falando grosso. Meu gol. Josemar, meu amigão, e agora?”. A cena aí é a do assassinato final do Seu Agenor, cometido pelo garoto Dema logo após ter marcado seu gol contra, e toda a narrativa até chegar esse ponto consiste na elucidação, para o leitor, do contexto que, num crescendo, levam as coisas a esse cúmulo. História forte, narrada em diferentes planos de focalização para mostrar os diferentes ângulos do seu cerne, esse conto de futebol inscreve-se como mais um gol de placa (este, a favor, é claro) do escritor Edilberto Coutinho na sua intenção de tratar o tema desse esporte na sua relação com a sociedade em que é praticado e, por conseguinte, legitimamente compreendido como um vigoroso elemento de sua cultura, passível, portanto, de ser transfigurado em produtiva matéria literária, o que é o caso em apreciação. Navio negreiro Narrativa em que, a pretexto da transferência de um jogador de futebol de um clube de elite do Rio do Janeiro para um mais modesto do interior de São Paulo, o narrador passa em revista a situação histórica da inserção do elemento social negro no universo desse esporte no Brasil. Numa técnica de narração que mescla duas situações narrativas concomitantes – a primeira tendo como agente o próprio jogador, ainda na categoria de juniores, que entrevista o pai como se fora um repórter esportivo, para saber dele como fora o futebol de sua época no Rio de Janeiro, e a segunda esse mesmo jogador transformado em personagem-narrador da sua própria situação presente no mundo da bola –, o escritor Edilberto Coutinho se debruça sobre as implicações sociais da prática do futebol no Brasil sob uma legislação que a pretexto de proteger o futebolista com o manto da profissionalização regulamentada, o condena a uma forma de servilismo e dependência comparável a uma nova e moderna estrutura de escravidão que o próprio título da história denuncia de forma paródica. “O navio negreiro tá lá fora te esperando, rapaz, lá fora, lá fora, lá fora. Mãe aperta os olhos, Paião fazendo de duro, e até com aquele palavreado brusco que é tão diferente do jeito dele, o carrão preto do doutor Eusébio, navio negreiro me esperando, quem falou que teve a Lei Áurea pra jogador de futebol?”. Comentando a importância literária do livro, Maracanã, adeus!, desse escritor – em que está incluso este conto – disse a crítica literária Regina Zilberman, no pósfácio que fez à obra, que ao glosar ficcionalmente a trajetória de alguns dos jogadores de futebol que povoam o imaginário popular do brasileiro, caminho que não raro envolve o sucesso, a 309 exploração pelos outros e a própria decadência, tal litertura tem o mérito de expor a dimensão social desses heróis da bola ao mesmo tempo em que procura denunciar a realidade de que por trás de cada um desses ídolos do dia existe uma máquina que os absorve, triturando-os até a morte. Embora não seja tão radicalmente contundente nesse sentido, essa narrtiva se encaminha literariamente para este fim. A celebração dos pés O tropo metonímico sustenta técnica e conteudisticamente essa narrativa de futebol que toma os pés dos jogadores como um sofisticado fetiche e, por extensão, o próprio jogo de bola aos pés como um vigoroso instrumento de alienção e de manipulação política cujo teatro operacional de funcionamento é o contexto das ditaduras militares implantadas na América Latina ao longo da década de 1970. Na história, um ex-militar e agora dublê de jornalista esportivo, o mal disfarçado coronel Cornélio Bandeira, leva a sua amada esposa à Buenos Aires sob o pretexto de uma segunda lua de mel, mas na verdade intenta mesmo é cobrir, para o jornal Letras em Marcha, a Copa do Mundo de futebol, ocorrida na Aregentina no ano de 1978. Acontece que a sua amada – entediada e confinada num hotel da capital argentina enquanto o marido cobre a Copa – é fissurada pelos pés do atacante argentino Mário Alberto Kempes, que passa a cultuar com voracidade voluptuosa e calculado alheamento da realidade que os cerca, servindo-se inusitadamente de alguns exemplares de revistas esportivas. O narrador da história toma esse mote para fazer uma exposição satírica, pontuada e refinada de sutil ironia, de como os militares liam o mundo à sua volta sob a mediação do poder que detinham. Como o seu próprio nome sugere, o bilaquiano e nacionalista coronel, Cornélio Bandeira, leva um retumbante e simbólico chifre de sua amada enquanto apregoa nas páginas do Letras em Marcha, as virtudes do futebol brasileiro no exterior. Conforme se sabe, a Seleção Brasileira foi declarada, pelo seu próprio treinador nessa Copa (ele mesmo um militar do exército, o capitão Cláudio Coutinho), a verdadeira campeã moral do torneio, uma vez que a Argentina, a campeã de fato, teria subornado o time do Peru de quem precisava vencer com uma diferença de seis gols para superar o Brasil e ir às finais do mundial. Narrada numa linguagem coloquial, que mistura recursos lingüísticos do jornalismo com os da escrita literária, essa história extremamente satírica do escritor Edilberto Coutinho quer no fundo demonstrar que todo poder é difuso, pluridimensonal e indeterminado, por isso mesmo permanentemente arrostado por um contra-poder que o enfrenta. Nesse caso, expresso na idéia, prevalente ao longo do texto, de que a virtude da moral não pode ser sustentada num 310 contexto em que se trocam as mãos (que carregarm as armas) pelos pés (que conduz a bola), numa alusão à inversão da ordem legal imposta pelas ditaduras que então davam as carta em vários países de América latina, entre eles o Brasil do técnico Cláudio Coutinho e a propria Argentina, de Mário Kempes. O rei nu Uma trama mirabolante para matar o rei do futebol, Pelé – o maior jogador de todos os tempos –, envolvendo uma tal de Almirante (na verdade, o apelido de uma garota de programa de Ipanema, no Rio de Janeiro) e um Coronel (por sua vez, a alcunha do zagueiro, Eduardo Silva, amigo de Pelé e que jogava com ele no Cosmos, de Nova York, no início dos anos de 1980), e ainda uma mulher conhecida por Laura, é o tema dessa história curta que mistura de maneira muito eficiente a realidade com a ficção para mostrar o ambiente social confuso sob o qual se vivia em plena vigência do regime militar implantado no Brasil no início da década de 1960. A história, propositalmente escrita também de forma mirabolante – composta de blocos narrativos superpostos, à maneira de depoimentos de boltins de ocorência prestados à polícia –, inclui ainda um homossexual que presta serviços de manicure e é louco por futebol e fã incondicional do rei Pelé. Depois de ter sido chamado para pintar as unhas da garota de programa a quem supostamente Pelé e seu amigo, Coronel, visitariam certo dia, no Rio de Janeiro, o manicure Nivaldo, o Nini Maravilha, fica sabendo de um plano para assassinarem Pelé, durante a cerimônia de entrega de um prêmio que o rei ia fazer já de volta a Nova York. Esse, portanto, é o enredo em torno do qual essa narrativa elabora uma satírica crítica de costumes sobre a realidade brasileira do período em foco em confronto com valores da cultura americana vigentes à mesma época. Mulher na jogada Mais uma união eficiente das linguagens jornalística e literária dá forma a essa narrativa de futebol em que sob o ângulo da visão feminina sobre certo período da historia desse esporte no Brasil, se explora a inserção das duas classes sociais que a construiu tempos afora: a elite urbana, branca, letrada e intelctualizada, e o operariado pobre, miscigenado e morador dos subúrbios das grandes cidades do País. Sua estrutura formal é a de um documentário jornalístico baseado em entrevistas editadas de maneira superpostas uma a outra – a página aparentando uma tela de TV dividida ao meio – onde duas mulheres de jogadores 311 importantes do futebol brasileiro falam concomitantemente sobre suas relações com eles e, por extensão, com o universo do futebol em suas respectivas épocas. São elas, a poetisa Maria Amélia Carneiro de Mendonça, esposa do legendário goleiro do Fluminense do Rio de Janeiro e da Seleção Brasileira dos anos de 1920, o também historiador, Marcos Carneiro de Mendonça, e a cantora e sambista Elza Soares, então mulher do jogador e também astro da Seleção Brasileira nas décadas de 1950, 60 e 70, Manuel Francisco dos Santos, o Garrincha. Escrita propositalmente em duas colunas de textos paralelas, com a intenção de permitir ao leitor contrastar, já na visualidade do texto, as diferenças que se quer realçar entre dois mundos que simultaneamente se confluem e se bifurcam, a história vai contrapondo tempos diferentes da historia social do futebol brasileiro a partir das figuras e trajetórias de dois dos seus mais importantes construtores. Isso tudo pontuado pela inserção da mulher no contexto, o que equivale dizer que essa história, com H maiúsculo, é também a história cultural, ficcionalmente repassada, dos duros embates de classes sociais antagônicas (e entre estas, os embates de gênero) que disputaram – e ainda disputam – através do advento do jogo de futebol no Brasil, seus espaços de realização e reconhecimento. Maracanã, adeus! Toda a trajetória da vida de um jogador de futebol (glória e decadência) é passada aqui em revista, nessa história contada sob a luz de duas focalizações narrativas: uma interna, em primeira pessoa, pela qual o próprio jogador Anselmo, outrora um craque do Flamengo do Rio de Janeiro, desfila o drama de sua derrocada como atleta profissional que sucumbe ao alcoolismo, e a outra externa, em terceira pessoa, através da qual seu amigo e ex-companheiro de profissão, o compadre Nelsão, como que testemunha tudo ao acompanhá-lo em seu dramático relato até minutos antes da hora final em que o “esperado silêncio” sorrateiramente explode em pleno Maracanã. Sustentado num modelo narrativo arquetípico, o relato da vida e morte de um herói (ou anti-herói, como queiram), esse conto de Edilberto Coutinho encerra o ciclo de histórias do livro homônimo, Maracanã, adeus!, obra em que, através da segura focagem do futebol como assunto, o autor redimensiona a perquirição literária dos temas populares ao revelar neles a potencialidade sempre presente da sua elaboração artística. 4.4.1.29 Edy Lima 312 Edy Lima nasceu em Bagé, Rio Grande do Sul, no dia 7 de junho de 1924 e viveu muitos anos em São Paulo e no Rio de Janeiro. É jornalista e escreve desde os 17 anos. Fez várias adaptações para cinema e televisão. Ganhou diversos prêmios com seus livros, entre eles o Jabuti de Literatura Brasileira, sobretudo a partir da série infantil “A Vaca Voadora”. Seus livros – um misto de realidade, magia e fantasia – conquistaram êxito em vários países. São muito divertidos, com personagens estranhos como Lalau, o menino que tem duas tias gêmeas: uma mais voltada aos afazeres domésticos e a outra, à ciência e à alquimia. Entre seus trabalhos, destacam-se, O Minuano (1959); A quadratura do Círculo (1980); A vaca voadora (2002) e O caneco Dourado, publicado pela Editora Companhia Nacional, em 2006. O conto, Futebol, paixão e glória, entretanto, está publicado na coletânea, Histórias de futebol, organizada por Maria Viana e Adilson Miguel, São Paulo, Editora Scipione, 2006. Futebol, paixão e glória O costumeiro clima de festa em torno do qual os brasileiros se reúnem para assistir aos jogos da seleção nacional durante as copas do mundo de futebol é retratado, nesta narrativa, com agradável nostalgia por parte uma mulher que relembra a família a torcer pelo Brasil. Embora simplória, sem nenhum cometimento de ordem formal ou estilístico, a narrativa consegue transferir para o leitor a alegria desses encontros em que o futebol é o elo sócio- cultural que alimenta o prazer de se estar junto. Para torcer, para ganhar ou para perder. E, principalmente, para referendar os laços ocultos que fundam a nacionalidade num país que já chamaram – e com muita razão – de cordial. Isto é: mais que tudo, movido pelo coração! 4.4.1.30 Edson Gabriel Garcia Edson Gabriel Garcia nasceu na cidade de Nova Granada, em São Paulo. Foi para São José do Rio Preto, onde fez o curso de Pedagogia. Em São Paulo, onde mora até hoje, foi professor, coordenador e diretor de escolas. Cursou pós-graduação em Educação e Comunicação. É autor de livros didáticos de Língua Portuguesa e de paradidáticos sobre cidadania e valores para alunos das séries iniciais do ensino fundamental. Escreveu diversos livros para crianças e jovens, dentre eles O diário de Biloca, Treze contos, O tesouro perdido do Gigante Gigantesco, Sete gritos de terror e as coleções Tantas histórias e Meninos & meninas. A história curta sobre futebol, O goleiro do time, foi publicada em: MATTOS, Cyro. Org. Contos brasileiros de futebol. Brasília: LGE, 2005. 313 O goleiro do time Estória curta, curtíssima, de tonalidade ligeiramente lírica e comovente que se assenta na ambigüidade da situação feminina ante o mundo masculino do futebol e suas amplas adjacências. Ou seja, o mundo mesmo, o vasto mundo em que as mulheres são obrigadas a disputar com os homens em condições desiguais seus espaços de existência e realização. Outra vez a história é de demanda intrínseca, tendo a figura e a função do goleiro como personagens principais. 4.4.1.31 Fábio Fernandes Fábio Fernandes nasceu em 1966, na cidade do Rio de Janeiro. É Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e leciona nos cursos de Tecnologia e Mídias Digitais e Jogos Digitais dessa mesma instituição. É membro do Grupo de Pesquisa Com+, da ECA- USP, onde realiza pós-doutoramento sobre a subversão da linguagem no Twitter, e também do Steering Group Visions of Humanity in Cyberculture, da Universidade de Oxford, Inglaterra. Tem publicados os livros A Construção do Imaginário Cyber; William Gibson, Criador da Cibercultura (2006) e Os Dias da Peste (2009), além de artigos e capítulos em diversas revistas e livros no Brasil e no exterior. Traduziu os seguintes clássicos da literatura mainstream e de ficção científica: Neuromancer, Fundação, O Homem do Castelo Alto e Laranja Mecânica, entre outros. Tem contos publicados em vários países e atualmente está traduzindo a série de quadrinhos “Hellblazer”, em São Paulo, capital, onde reside. A história curta, 2010, o ano em que faremos contato, foi publicada na reunião de contos de ficção científica, Outras Copas, Outros Mundos, organizada por Marcello Simão Branco e publicada pela editora Ano-Luz; Grupo PECAS, São Caetano do Sul-SP, em 1998. 2010, o ano em que faremos contato Fabulação ficcional genuína da chamada literatura de antecipação – ou de ficção científica – em que um técnico de futebol conversa com um interlocutor virtual, um repórter a quem concede uma entrevista, sobre uma partida entre uma seleção de jogadores representando a humanidade, comandada por ele, e uma outra equipe de alienígenas que visitam a terra com o objetivo de fazer intercâmbio de tecnologias. Narrando em primeira 314 pessoa para reforçar com seu testemunho a verossimilhança da história que conta – apesar da sua tácita, mas apenas relativa plausibilidade –, o narrador-personagem vai desfiando a meada de um caso em que se vê com o encargo de dirigir uma equipe dos melhores jogadores do mundo contra os saranaii – povo de outro planeta – como requisito para a troca de experiências interplanetária. “Pois é, eu até que acabei gostando no fim das contas: deu pra descansar e a gente começou a ficar aliviado, depois de perceber que eles não queriam nos invadir nem nos destruir, só fazer amizade e oferecer um lugar junto à Comunidade Galática, ou seja lá o nome que dão àquilo do que eles fazem parte. Você sabe, aquele negócio de paz e harmonia entre as espécies. Enfim”. Está aí dada a senha para o desenrolar de uma história mirabolante e que para surtir efeito no leitor, é recheada de peripécias em que não faltam humor intrínseco: “– Os senhores vão jogar conosco aqui, com a nossa gravidade? – perguntei ao Controlaador. - Quê que é isso, garotinho! – respondeu o alienígena baixinho. – Pingou na grande área, a gente chuta! Se derrubar é pênalti! – e deu aquele sorrisinho enigmático”. Não falta engenhosidade de conteúdo: “Resumindo: cientes de que, devido à forte gravidade da Terra e à compleição delicada de seus corpos, os saranaii jamais poderiam nos enfrentar numa partida de futebol, eles optaram pela solução mais lógica: teleclones. [...] O jogo foi um sucesso. Claro, eles podiam ter dado um desconto pra gente; treze a zero foi um pouco demais. Mas, vá lá que seja, o presidente avisou pra não contrariar, que eles nos prometeram intercâmbio de tecnologia”. Não faltam arranjos hiperbólicos de tom retórico: “[...] Afinal, os bonecos – como todo mundo passou a chamar os teleclones – eram onze Pelés em campo, onze garrinchas, enfim os sujeitos eram invencíveis. [...] eles haviam usados os esquemas táticos de todos os países ganhadores das copas do mundo em uma só partida. Começaram no 4-2-4, passando para o 4-3-3, carrossel holandês, pontas rotativos, 3- 5-2 com alas, líberos e armadores defensivos, enfim, o escambau. [...] Rapaz, não faltou nem o suicida paredão ucraniano de 2002, o dificílimo 10-0-0, que só era tentado em último caso... e que não garantiu a vitória deles em cima dos Camarões na semi-final”. E, por fim, não falta aquele arremate de efeito lógico para transmitir a sensação de verdade pura no que é apenas genuína, fantasiosa e saborosa invenção: “E já tinha clube querendo contratar os bonecos: O PSV Eindhoven foi o primeiro a abrir as negociações oficialmente, seguido de perto pelo Manchester United, pelo Flamengo e 315 pelo Boca Juniors. [...] Sim, eu sei que isso hoje não quer dizer nada, que os saranaii nos vendem toda a tecnologia de que precisamos, por um precinho camarada. Dizem até que a fome do mundo está acabando. Mas que o governo francês não gostou daquele negócio da ONU ter vendido o Louvre, isso eu sei que não gostou, que eu conversei outro dia com o presidente Paltini e ele estava puto. Ora, puto fiquei eu: tudo bem que o estádio que eles puseram no lugar do Maracanã é até bonito, funciona, tal e coisa. Mas precisava ter levado o estádio pro planeta deles? Sei não, mas desconfio que nesse intercâmbio de tecnologia que está se dando bem são eles.” 4.4.1.32 Fernando Bonassi Fernando Bonassi nasceu em São Paulo, no ano de 1962. É roteirista de cinema e TV, dramaturgo, cineasta e escritor de diversas obras, entre elas: Um céu de estrelas, Subúrbio, Crimes conjugais, 100 histórias colhidas na rua, O amor é uma dor feliz, Uma carta para Deus, Vida da gente, O céu e o fundo do mar, 100 coisas, Declaração universal do moleque invocado e São Paulo/Brasil – esses dois últimos finalistas do Prêmio Jabuti nos seus anos de lançamento. É co-roteirista de filmes como Os matadores (de Beto Brant), Através da janela (de Tata Amaral), Castelo Rá-Tim-Bum (de Cao Hamburguer), Carandiru (de Hector Babenco), Aurélia Schwarzenêga (de Carlos Reichenbach) e Cazuza (de Sandra Werneck). Tem diversos prêmios como roteirista no Brasil e no exterior, além de obras literárias adaptadas para o cinema e textos em antologias em países como França, Estados Unidos e Alemanha. Desde 1997 é colunista do jornal Folha de S.Paulo. O conto, Os meninos não choram, integra a coletânea, Histórias de futebol, organizada por Maria Viana e Adilson Miguel, a convite da Editora Scipione, São Paulo, 2006, e o conto Goleiro cego encontra-se publicado na Revista Confraria 2 anos. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2007, p. 99. Meninos não choram Narrativa em prosa direta, expressa, sem desvio retórico, que conta um dia de agruras vivido por um garoto que não sabe jogar futebol e que por isso mesmo é estigmatizado por todos que o cercam. O texto se propõe a mostrar, através de uma série de eventos desastrados em que o menino só se fere física e psicologicamente, o quanto este esporte penetra a vida do brasileiro, povo que por injunções de natureza histórico-cultural, supõe-se que o carrega nas veias. Assim, quanto a este pormenor, as circunstâncias de ter dado tudo errado naquele dia na 316 vida do garoto (que só conseguiu atrapalhar o seu time numa partida que disputou), irrompem, na história, como uma espécie de liame simbólico que liga os elementos de uma cultura que este esporte reforça no seu forte apelo viril e em que, ambígua e sorrateiramente, para o bem de uns e mal de outros, se confundem sofrimento com fraqueza. Goleiro cego Conto de esteio filosófico em que um goleiro cego (mais uma vez, um goleiro como personagem principal) explica o fenômeno de ser duplamente privilegiado (por ser o único jogador a poder pegar a bola com as mãos no jogo de futebol) e desprivilegiado (por ser desprovido da visão, sentido humano aparentemente essencial para quem exerce essa função no jogo). Assim, essa dúplice condição de jogador – e suas circunstâncias –, explicada por um narrador em primeira pessoa (o narrador-personagem-protagonista), é a base do enredo dessa narrativa que une filosofia, futebol e literatura na idéia comum de demonstrar que nem sempre o que dever ser, deve ser. 4.4.1.33 Fernando Sabino Fernando Tavares Sabino nasceu no dia 12 de outubro de 1923, em Belo Horizonte (MG), e morreu no Rio de Janeiro, em 11 de outubro de 2004. No início da década de 1940, começou a cursar a Faculdade de Direito e ingressou no jornalismo como redator da Folha de Minas. O primeiro livro de contos, Os grilos não cantam mais, foi publicado em 1941, no Rio de Janeiro quando o autor tinha apenas dezoito anos. Morando na capital fluminense, tornou-se colaborador regular do jornal Correio da Manhã, onde conheceu Vinicius de Moraes, de quem se tornou amigo. O encontro marcado, uma de suas obras mais conhecidas, foi lançada em 1956, ganhando edições até no exterior, além de ser adaptada para o teatro. Sabino decidiu, então (1957), viver exclusivamente como escritor e jornalista. Iniciou uma produção diária de crônicas para o Jornal do Brasil, escrevendo mensalmente também para a revista Senhor. Em 1960, Fernando Sabino publicou o livro O homem nu, pela Editora do Autor, fundada por ele, Rubem Braga e Walter Acosta. Publicou, em 1962, A mulher do vizinho, que recebeu o Prêmio Fernando Chinaglia, do Pen Club do Brasil. Em 1966, fez a cobertura da Copa do Mundo de Futebol para o Jornal do Brasil. Fundou, em 1967, em conjunto com Rubem Braga, a Editora Sabiá, onde publicou livros de Vinicius de Moraes, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, Carlos Drummond de Andrade, Manuel 317 Bandeira, Cecília Meireles e Clarice Lispector, entre outros. Publicou O grande mentecapto em 1979, iniciado mais de trinta anos antes. A obra, que lhe rendeu o Prêmio Jabuti, e acabaria sendo adaptada para o cinema, com direção de Oswaldo Caldeira, em 1989, e também para o teatro. Em julho de 1999, recebeu da Academia Brasileira de Letras o prêmio Machado de Assis pelo conjunto de sua obra. O texto, Iniciada a peleja, está publicado na reunião de textos sobre futebol intitulada, A palavra é... futebol, organizada por Ricardo Ramos, e publicada pela Editora Scipione, de São paulo, em 1990. Iniciada a peleja Conto breve em que um executivo de um banco qualquer ouve pelo rádio, em meio a uma reunião de negócios, uma partida amistosa entre a Seleção Brasileira de futebol e o A.C. Fiorentina, ocorrida na cidade de Florença, Itália, como jogo preparatório para a Copa de 1958, que se realizaria na Suécia. A novidade desta narrativa de futebol – no mais, comezinha e bastante simplória quanto a sua exploração do tema – é a maneira como o narrador mistura, na mesma linguagem técnica dos negócios financeiros, a linguagem lúdica da narrativa do jogo que se desenrolava na Europa. Tudo isso almejando figurar a maneira vigorosa como o jogo de bola aos pés adentra por todos os meandros a vida e a cultura nacionais. 4.4.1.34 Flávio Carneiro Flávio Carneiro nasceu em Goiânia, em 1962, e mudou-se para o Rio de Janeiro no início dos anos de 1980. Escritor, crítico literário, roteirista e professor de literatura da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), publicou doze livros e escreveu dois roteiros para cinema. Como ficcionista, é autor de um livro de contos, três romances e cinco novelas para crianças e jovens. Participou também de algumas antologias, como “Os cem menores contos brasileiros do século”, organizada pelo escritor Marcelino Freire, com o mini- conto, Na sala de espelhos, e “22 contistas em campo”, organizada por Flávio Moreira da Costa, com o conto, Penalidade Máxima. Como ensaísta, é autor de dois livros e diversos artigos em revistas especializadas. De 2000 a 2007, foi colaborador regular dos suplementos literários do jornal O Globo – caderno Prosa & Verso – e Jornal do Brasil (caderno Idéias), com os quais ainda colabora esporadicamente. É professor de graduação e pós-graduação em literatura brasileira e comparada, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde 318 leciona desde 1995 e seu mais recente livro publicado, que trata especialmente sobre futebol, intitula-se, Passe de letra: futebol & literatura, editado pela Editora Rocco do Rio de Janeiro, em 2009. O conto, Penalidade máxima, conforme já citado, está em 22 contistas em campo, organizada por Flávio Moreira da Costa e publicado pela Ediouro, do Rio de Janeiro, em 2006. Penalidade máxima Narrativa que intenta captar e transmitir para o leitor um dos momentos mais concentrados do futebol em termos de economia de meios, o que significa, na prática do joga da bola, a convergência radical de estratégias técnicas pessoais, o domínio das emoções controladas e a confluência de expectativas díspares quanto ao seu desfecho: a batida de um pênalti por parte de um jogador encarregado de cobrá-lo, como se diz no vocabulário futebolístico especializado. Enquanto fato de efetivação estética na composição literária, esse momento crucial do jogo é abordado aqui, por parte do narrador, a partir do ponto de vista de um jogador de 21 anos que tem nas mãos a oportunidade única de resolver para si, num único, preciso e irrepetível instante, duas questões a ele correlatas: dar a vitória ao seu time no campeonato de futebol de várzea que disputa como artilheiro e jogador de destaque e, à mesma feita, encetar uma vingança pessoal contra o goleiro adversário por quem supostamente sua garota se enamorara, num vislumbre de puro alumbramento da parte dela, percebido por ele, dentro do gramado do jogo. Percuciente análise subjetiva da interioridade humana quando exposta a casos particulares de momentos decisivos é o mérito maior desta narrativa de ficção que encontra no futebol seu meio adequado de expressão. 4.4.1.35 Flávio José Cardoso Flávio José Cardoso nasceu no município de Lauro Müller (SC), no dia 2 de novembro de 1938. Jornalista, professor, funcionário público e escritor, pertence à Academia Catarinense de Letras e a várias outras instituições culturais do estado e do país. Projetou-se, inicialmente, com os livros de contos, Singradura (1970); Zélica e Outros (1978) e Longínquas Baleias (1986). A partir do final da década de 1970, passou a escrever crônicas, quase diariamente, tornando-se um dos mais importantes cronistas do seu estado. Muitas dessas crônicas estão reunidas em livros, a exemplo de Água do Pote (1982); Beco da Lamparina (1987); Tiroteio Depois do Filme (1980): Senhora do Meu Desterro (1991); 319 Trololó para Flauta e Cavaquinho (1999) e Uns Papéis que voam (2003). Incursionou pela literatura infanto-juvenil com O Tesouro da Serra do Bem-bem (2004) e, finalmente, retornou à terra e época em que nasceu, para retratar os mineiros do carvão nas narrativas que formam a obra Guatá (2005). O conto, Jogadores, também integra a coletânea, 22 contistas em campo, organizada por Flávio Moreira da Costa e publicado pela Ediouro, do Rio de Janeiro, em 2006. Jogadores Texto comovente e de um vigor poético inestimável porque eficazmente assentado na contraposição do universo puro, inocente e lúdico da infância (representado paradisiacamente e onde a paixão e a emoção são sentimentos predominantes) em oposição ao mundo corrompido, instrumental, competitivo e interessados dos adultos. Tal exercício de experienciação comparada, digamos assim – a licença do termo querendo denotar aqui seu aspecto duplo de comparação de experiências ontológico-vivenciais e sua correspondente formalização literária –, confere ao jogo da bola um alto grau de significação simbólica porque o toma como o elemento que opõe a gratuidade com que podemos enxergar a vida (algo que só na fase da infância fazemos muito bem) ao seu instrumentalismo desmedido da fase adulta. O recurso fabular através do qual o narrador põe em cena essa questão – por meio de uma narrativa esteticamente sublime e eticamente correta – é a exploração dos resultados absurdamente díspares para os seres humanos quando colocados como jogadores de práticas lúdicas (a bola sendo seu elemento primordial) em contraste com os seus jogos de azar (a ruína potencial do jogador sendo o seu fim inevitável). Alta poesia, sutileza retórica e delicadeza empática com o tema, são outros de tantos bons atributos deste conto memorável que toma a significação cultural do jogo como tema privilegiado e através do qual a magia do futebol é dimensionada pela magia da palavra. 4.4.1.36 Flávio Moreira da Costa Flávio Moreira da Costa nasceu em Porto Alegre, em 1945, e foi criado em Santana do Livramento (RS). Jornalista desde os 15 anos, trabalhou nos principais jornais e revistas brasileiros como repórter, redator, editor, colunista e crítico. Romancista, contista, antologista, crítico de cinema, arte e literatura e, com cerca de 30 livros publicados, foi o escritor brasileiro mais premiado na década de 1990. Por O Equilibrista do Arame Farpado 320 recebeu os prêmios Machado de Assis da Biblioteca Nacional, Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, de Melhor Romance da União Brasileira de Escritores e foi finalista do Prêmio Nestlé de Literatura. Organizou sua primeira antologia – do conto gaúcho –, no início da década de 1970 e desde então publicou muitas outras, como Crime à Brasileira; Viver de Rir I e Crime feito em casa: contos policiais brasileiros (2005). Em 2001, selecionou, traduziu e organizou Os 100 Melhores Contos de Humor da Literatura Universal, imediatamente aplaudido por público e crítica. No final de 2002, lançou Os 100 Melhores Contos de Crime e Mistério da Literatura Universal, e em 2003, As cem melhores histórias eróticas da literatura universal. Participou também, como contista, de antologias do conto brasileiro publicadas na Alemanha, Polônia e Estados Unidos. Este seu conto, A solidão do goleiro, também está publicado na coletânea, 22 contistas em campo, organizada por ele e publicada pela Ediouro, do Rio de Janeiro, em 2006. A solidão do goleiro Estória coloquial, simples, sem demais recursos estéticos que não os próprios elementos que sustentam o seu conteúdo temático (em si mesmos carregados de potencial dramático e expressivo), consideradas as nuances de fatura que se podem acrescentar, pelo instrumento da ficção, à formalização literária do tema futebol. Pois seja dito que esta narrativa trata de um dos personagens mais instigantes do jogo de bola, o goleiro, a par, também, e às voltas, no caso, com uma das situações mais instigantes da experiência do convívio humano, a traição amorosa, fato que inelutavelmente aponta para o elemento profundo da nossa condição ontológica: a solidão do indivíduo no mundo, aqui simbolizada, literariamente, pela solidão do goleiro no universo do jogo. O quadro diegético é o seguinte: na véspera de uma partida decisiva da Copa do Mundo, um goleiro intui que sua mulher o estava traindo e, por isso, não consegue dormir na concentração, necessitado que estava de tirar a prova dos nove. Tirada a prova, eis que se sente forte o bastante para jogar a final do dia seguinte, quando tem que defender um pênalti faltando dez minutos para o fim da partida de um jogo que estava empatado em 2 a 2. Novamente, a análise subjetiva da natureza humana quando exposta a situações limites é posta em cena aqui por meio do futebol, nesta narrativa um tanto frouxa na sua resolução dramática, mas relativamente bem sucedida, quanto ao autor, por este saber usar o instante máximo da cobrança do pênalti como metáfora extensiva do enfrentamento do homem com seus próprios demônios. 321 4.4.1.37 Gerson-Lodi Ribeiro E Adriana Simon Gerson Lodi-Ribeiro nasceu no Rio de Janeiro em 8 de Julho de 1960. Seu conto, O rude esporte humano, abaixo, escrito em parceira com Adriana Simon, integra a coletânea, Outras Copas, Outros Mundos, organizada por Marcello Simão Branco, e publicada pela editora Ano-Luz; Grupo PECAS, São Caetano do Sul-SP, em 1998. Este mesmo registro vale para a história curta, Pátrias de chuteiras, com a ressalva de que desta vez a narrativa foi escrita unicamente pelo autor. Ver notícia biográfica mais completa do autor à pág. 271 deste Guia. O rude esporte humano Narrativa de ficção científica que mostra o futebol como um fato cultural total a ponto de dever ser transplantado para outros planetas como fator de revigoramento sócio-cultural de modos de vida alienígenas e longínquos, fortalecendo vínculos intergalácticos e intercâmbios cósmicos. A história gira em torno de um habitante de outro planeta (o distante Callis) que é nomeado Conselheiro de Entretenimento com uma missão a realizar junto ao seu povo, segundo o narrador do conto. “Tudo depende disso. A decadência cultural e moral devia ser afastada a qualquer custo, ou seu povo se tornaria dentro de alguns breves milênios mais uma daquelas culturas interestelares extintas do passado galáctico”. Com esse intuito, portanto, é que Cirar – o Conselheiro de Entretenimento de Callis – decide fazer mais uma de suas viagens virtuais interplanetárias e fortuitamente se depara com a prática do futebol na região do cosmos denominada Terra. A partir daí o futebol é tratado na narrativa como um jogo fascinante e apto a resolver os problemas daquela cultura em decadência. A narrativa, que se encaminha de forma clicherizada, com todos os tiques de linguagem das histórias do gênero de ficção científica – até mesmo a antevisão de um fato histórico futuro já comprovável no presente, a realização de uma Copa do Mundo no Brasil em 2014 (no texto, em 2018) –, esboça ficcionalmente uma questão interessante: o jogo é transplantado para Callis com toda a sua ontologia díspar e multifacetada onde o quinhão de violência a ele inerente reponta – tanto na terra como nos céus – tal qual uma parte a ser extirpada do todo deste esporte, mutilando, assim, com a própria força da operação, a paradoxal essência de sua beleza e magia, que a história glosa muito bem e de forma empática e bem intencionada. Pátrias de chuteiras 322 A partida final de uma Copa do Mundo fictícia (e alternativa) ocorrida nos Estados Unidos, em 1986, é o pretexto configuracional desta narrativa de futebol, escrita em tom paródico e ligeiramente satírico, em que uma emergente nação negra da América do Sul, Palmares, enfrenta o Brasil com o objetivo determinado de se sagrar tricampeão do mundo de futebol e, com isso, levar definitivamente para os seus domínios a Taça Jules Rimet, já que, junto com o nosso país, detinha dois títulos mundiais deste esporte. O acontecimento serve de mote adequado para que o narrador amplie o espectro temático da história e inclua na sua pauta de glosa narrativa aspectos tecnológicos, políticos, culturais e sociológicos que estão sempre em jogo em disputas como essa – entre duas nações que disputam entre si algo mais do que uma taça do mundo, no universo geopolítico do concerto mundial das nações. Questões internas dos dois países – tais como o racismo contra os negros no Brasil, e este mesmo, invertido, contra os brancos, em Palmares, por exemplo – são encenadas pela narrativa na figura de um painel especulativo que inclui pretensas hegemonias nacionais apresentadas literalmente em campo aberto e opostos. Tudo de forma irônica e bem humorada. A começar pelo técnico da seleção de Palmares, um brasileiro chamado Nascimento dos Santos que, por força de circunstâncias profissionais, enfrenta, neste jogo, o seu país de origem; a pátria de nascimento. “Nascimento sabe que não há preconceito ou discriminação contra ele entre os jogadores. Para os seus comandados, ele não é negro, cafuzo, índio ou branco, mas simplesmente Nascimento, o maior jogador de todos os tempos; um ídolo acima do bem e do mal para qualquer futebolista ou peladeiro em ambas as margens do rio São Francisco”, comenta com certa ironia, em tal altura do conto, o narrador, a nos lembrar a natureza suprafenomênica do futebol na figura de um dos seus maiores representantes. E como Nascimento é dos Santos, o leitor fica logo sabendo de quem se trata. Outra característica importante desta narrativa é o uso temático do futebol como recurso válido e eficiente para – por meio dele – tornar possível, através do ardil ficcional, certa reavaliação de acontecimentos históricos; certa inflexão autoral no apontar correção de rumos, enfim; certa postura teleológica de uma literatura que, pelo uso apropriado da sátira, tem o fim último de consertar (ou pelo menos apontar) certos costumes e vícios que, no lento caminhar do tempo histórico, vão cimentar a cultura política das nações e conformar as suas mentalidades. Escrita e inscrita num tempo narrativo que é o tempo cronológico do próprio jogo, os 90 minutos da partida em disputa, esta história de futebol está entre aquelas narrativas que funde coerentemente humor e amor por este esporte. Basta conferir o andamento dos atos 323 e fatos (inclusive de linguagem) dos seus personagens, quando o autor competentemente os envolve no duplo jogo da bola e da palavra literária. 4.4.1.38 Hélio Pólvora Hélio Pólvora de Almeida nasceu numa fazenda de cacau, no município de Itabuna, Bahia, em 2 de outubro de 1928. Passou 32 anos no Rio de Janeiro e reside em Salvador desde 1990. Atuou em vários veículos importantes de comunicação, entre eles, Jornal do Brasil, Correio da Manhã, Diário de Notícias, Diário Carioca, Correio Braziliense e revista Veja. É contista, crítico literário, cronista e tradutor. Sua estréia literária deu-se em 1958, com Os Galos da Aurora, publicado com o selo da Civilização Brasileira; seguiram-se, a partir daí, cerca de 25 títulos. Conquistou importantes prêmios literários, entre os quais os da Bienal Nestlé de Literatura, anos 1982 e 1986, primeiro lugar, gênero conto, e mais os prêmios da Fundação Castro Maya, para o livro Estranhos e Assustados, e Jornal do Commercio, para Os Galos da Aurora. A história curta, O gol de Gighia, está publicado na coletânea, Contos brasileiros de futebol, organizada em 2005 por Cyro de Matos, sob os auspícios da Editora LGE, de Brasília. O gol de Ghiggia Conto que narra as impressões subjetivas de uma criança respingando na sua memória de adulto sobre um fato datado e especialmente trágico para o inconsciente emocional brasileiro: o 16 de junho de 1950, dia da derrota para o Uruguai no Maracanã, em plena Copa de 50, momento em que contra todas as evidências de sua superioridade técnica, a Seleção Brasileira deixa escapar a oportunidade objetiva de ganhar o seu primeiro título mundial de futebol. E bem na cara da gente, à frente do nosso nariz, sob o testemunho ocular de mais de duzentos mil brasileiros presentes ao jogo final. 4.4.1.39 Henrique Félix Henrique Félix nasceu em São Paulo, no bairro do Ipiranga, no ano de 1961. Formou-se bacharel em Português e Espanhol pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Foi assistente editorial e editor de Literatura Infanto- Juvenil e Paradidáticos da Atual Editora, de 1987 a 2005. Em 2006, passou a atuar como 324 gerente editorial de livros universitários e de negócios da Editora Saraiva. É autor, entre outros, dos títulos, Chinês ao contrário, Quermesse maluca e Aventuras de um micróbio amarelinho. Seu livro mais recente intitula-se, Sem brincadeira, publicado pela Editora Positivo, do Paraná, em 2009. A história curta, Gol sem apelido, integra a coletânea de contos de futebol, Histórias de futebol, organizada por Maria Viana e Adilson Miguel, a convite da Editora Scipione, São Paulo, 2006. Gol sem apelido Um gol motivado por uma aposta e que, se marcado, fosse responsável pela vitoria do time do seu autor, é o episódio-ápice dessa história bem humorada que glosa, em tom de brincadeira e deliciosa alegria reminiscente, as peripécias de uma turma de garotos moradores das praias da cidade de São Vicente, no litoral paulista. Aquiles Rossi, um dos garotos, enverga o constrangedor apelido de “Aquilo Roxo”, nele colocado pelo amigo de infância conhecido como Lombriga. Certo dia – por achar que este apelido além de tudo atrapalharia a possível conquista de sua musa da praia –, ele resolve apostar com o amigo Lombriga a retirada, por este, da malsinada alcunha, prometendo fazer o gol da vitória do seu time. Como Aquiles Rossi era muito ruim de bola, o narrador dessa sua história teve que jogar muito para, ao seu lado, no Estrela do Mar, ter-lhe ajudado a sair dessa, algo que só ao final da narrativa o leitor constatará entre gratificado e surpreso. 4.4.1.40 Hilda Hilst Hilda Hilst é paulistana de Jaú, nascida no dia 21 de abril de 1930 e falecida a 4 de fevereiro de 2004. Ficcionista, poeta e dramaturga, Hilda Hilst é reconhecida, quase pela unanimidade da crítica brasileira, como uma das principais autoras do País, sendo considerada uma das mais importantes vozes da Língua Portuguesa do século XX. Distinguida por vários de nossos mais significativos prêmios literários, presente em numerosas antologias de poesia e ficção, tanto nacionais como estrangeiras, há muito seu nome está incluído nos dicionários de autores brasileiros contemporâneos. Ao iniciar sua ficção, em 1970, com o livro Fluxo Floema, inaugura também um momento raro na literatura brasileira pela vigorosa revitalização da linguagem, que utiliza como meio de desestruturação, reformulação e catarse, para afinal reconstruir a Idéia (o Homem) dentro de novos limites. O conto de futebol, Agüenta coração, abaixo, segue essa linha estética e está publicado na antologia de histórias 325 curtas sobre esse esporte, intitulada, Onze em campo e um banco de primeira, organizada por Flávio Moreira da Costa e Ana Maria Martins, que saiu pela Editora Relume-Dumará, do Rio de Janeiro, em 1998. Agüenta coração Conto-poema ou narrativa comandada por uma linguagem concentradamente poética em que a palavra bola (metonímia sintética e extensiva do futebol) recebe carga semântica de símbolo primordial em torno do qual se organiza, por meio de sugestões e ordens de ordem volutiva, uma determinada entidade particular não bem determinada – um certo Lula! – que se erige enquanto fenômeno reconhecível em meio a frases assim: “... pensa o redondo triturando o agudo de tudo, uma bola-matriz triturando farpas botas, ...traz a bola de volta, leve líquida é apenas uma bola entre os teus pés sobe sobre ela, sobre a vida, equilibra-te no ilimitado tenso, no lívido gramado, a bola-vida a besta-bola, ...Lula de pé luzindo metálico sobre o gramado, respira fundo, mais, conserva-te inteiriça sob o arco desses pés. Goleia”, etc. Experimento poético-narrativo interessantíssimo em torno das potencialidades simbólicas do futebol enquanto matéria literária. 4.4.1.41 Ignácio de Loyola Brandão Ignácio de Loyola Lopes Brandão nasceu em Araraquara (SP), no dia 31 de julho de 1936, dia de Santo Ignácio de Loyola, santo cujo nome inspirou o seu. É contista, romancista e jornalista. Sua carreira começou em 1965 com o lançamento de Depois do Sol, livro de contos no qual o autor já se mostrava um observador curioso da vida na cidade grande, bem como de seus personagens. Trabalhou como editor da Revista Planeta entre 1972 e 1976. Dono de um "realismo feroz", seu romance Zero foi publicado inicialmente em tradução italiana. Quando saiu no Brasil, em 1975, foi proibido pela censura, que só o liberou em 1979. Em 2008, o romance O Menino que Vendia Palavras, publicado pela editora Objetiva, ganhou o Prêmio Jabuti de melhor livro de ficção do ano. Autor de uma obra vasta, se expressou bem nos vários gêneros literários, passando pelo conto, romance, poesia, memória, crônica e biografia. O conto de futebol, É gol, abaixo, está em 22 contistas em campo, coletânea organizada por Flávio Moreira da Costa e publicada pela Ediouro, do Rio de Janeiro, em 2006, e que tem como foco temático o esporte bretão. 326 É gol Narrativa cujo mérito artístico consiste em conferir literariedade à narração de um jogo de futebol feita por um dos veículos de comunicação visceralmente ligado à história desse esporte: o rádio. Transfigurado simbolicamente em outros quatro narradores – o locutor que irradia a partida, o repórter de pista que auxilia a narração com suas informações e entrevistas, o comentarista que empenha sua opinião na análise dos lances e circunstâncias do evento e o plantonista que fornece à equipe informações adicionais –, o narrador diegético dessa história impõe uma conceituação perspectivista aos fatos narrados e com isso acaba demonstrando que a mímese literária (neste caso, naturalizada até o paroxismo pela cessão da voz enunciativa às outras vozes direta e objetivamente ligas à matéria narrada), se sustenta na polissemia multifacetada que o signo estético provoca. 4.4.1.42 Ivan Ângelo Ivan Ângelo nasceu em Barbacena, a 4 de fevereiro de 1936 e é jornalista, cronista, novelista e romancista brasileiro. Seu romance A Festa, de 1963, conquistou o Prêmio Jabuti de 1976, ano em que foi republicado, sendo considerado pela crítica um dos mais vigorosos e inventivos textos da literatura praticada no Brasil no contexto da censura à liberdade de expressão, imposta pelo regime militar que tomou o poder político do País com o golpe de 1964. Sua obra, no entanto, é extensa e prolífica, incluindo vários títulos principalmente de contos, crônicas e romances. Entre eles, podemos citar: Duas faces (1961 – contos escritos em parceria com Silviano Santiago); A face horrível (1986); Uma situação delicada e outras histórias (1997), idem, e os romances, A casa de vidro (1979); Amor (1995) e Marco zero ( 1998). O conto-crônica, O homem do Maracanã, está publicado na coletânea, A vez da bola: crônicas e contos do imaginário esportivo brasileiro, que inclui nomes de escritores-jornalistas como Lourenço Diaféria e Daniel Piza, e foi editada pela Companhia Editora Nacional, de São Paulo, em 2004. O homem do maracanã Como o próprio título já prenuncia, este conto-crônica de Ivan Ângelo, que encerra a coletânea acima citada, é centrada em um tipo humano específico assim como em sua situação social e cultural localizada. Num país que tem o futebol como uma espécie de argamassa 327 cultural que pacifica – e muitas vezes até incendeia – seu povo pela “magia hipnótica da bola tocada de pé em pé”, a figura do futebolista torcedor, tema da história, é em si mesmo um fato social total, como classificaria o sociólogo francês, Marcel Mauss, a condição desse homem social singular, apaixonado por esse esporte de origem inglesa, mas formador de uma nação como a brasileira. 4.4.1.43 Ivan Carlos Regina Ivan Carlos Regina é paulista da cidade de Bauru. É escritor de ficção científica com vários livros publicados; engenheiro de formação e trabalha no planejamento do transporte público da cidade de São Paulo. Um dos mais influentes nomes da ficção científica brasileira, escreveu, em 1988, o “Manifesto Antropofágico da Ficção Científica Brasileira”, panfleto que pedia por um gênero com características brasileiras, com histórias que enfocassem temas relativos a nosso país e cultura. Publicou a coletânea, O Fruto Maduro da Civilização (1993), reunindo textos vazados numa prosa absurdista, experimental e humorística, aspectos também revelados nesse seu conto abaixo, intitulaado, Santos F. C. que saiu publicado na coletânea de ficção científica sobre futebol, Outras Copas, Outros Mundos, organizada por Marcello Simão Branco, e publicada pela editora Ano-Luz; Grupo PECAS, São Caetano do Sul-SP, em 1998. Santos F. C. Narrativa de estrutura e caráter espistolar em que um pai escreve a um filho – não se sabe de onde – para contar o episódio de uma visita do famoso e fenomenal time do Santos Futebol Clube da década de 1960, para fazer uma partida amistosa com um selecionado da localidade cósmica de Aldebarã onde certa feita habitara, tal como o faz agora o destinatário de sua missiva. Na carta, o narrador mistura a um só tempo realidade e fantasia, fórmula como que necessárias para dar conta da grandeza monumental que empresta ao personagem principal de sua história: “O Santos Futebol Clube foi um clube que existiu num obscuro país chamado Brazil durante a última década do século XX, e que possuía um time magistral, liderado por um negro chamado Pelé que foi considerado o melhor jogador do mundo de todos os tempos”, comunica ao menino que completara dez anos e que fora selecionado para o time de futebol de sua escola. O conto é uma singela homenagem da literatura de ficção, aventura e mistério ao futebol-arte de Gilmar; Carlos Alberto, Mauro, Ramos Delgado e 328 Rildo; Zito e Mengálvio; Dorval, Coutinho, Pelé e Pepe, pois que são ungidas de mistério cósmico as fontes que encerram a narrativa: “Fique atento aos céus, porque, uma vez a cada geração, a Terra nos envia, de seu passado longínquo, naves com times que jamais poderemos esquecer: AJAX, REAL MADRID, PALMEIRAS, e até um chamado estranhamente de PUTFIRE, que possui um robô anão de pernas tortas, as quais, dizem, faz maravilhas na ponta direita. Neste dia você conhecerá o que foram os anos de glória de nosso futebol, quando a Terra ainda existia. Beijos do teu pai. Aguardo carta breve”. 4.4.1.44 João Anzanello Carrascoza João Anzanello Carrascoza nasceu em 1962 na cidade de Cravinho (SP). É redator de propaganda e professor universitário e, como escritor de literatura, já publicou os livros de contos, Hotel Solidão, O vaso azul, Duas tardes, Meu amigo João e Dias raros. Carrascoza também é autor de novelas e romances para o público infanto-juvenil. Dos prêmios que recebeu, destaca-se o Guimarães Rosa e o Radio France Internationale. Em 2006, a convite da Art Omi International Arts Center, participou, como escritor-residente, do Programa Ledig House – International Writer`s Colony, nos Estados Unidos, e foi escolhido para representar o Brasil na Antologia de Contos Breves Latino-Americanos, publicada em mais de dez países, sob o patrocínio da Unesco. O conto, O último gol, saiu publicado em VIANA, Maria; MIGUEL, Adilson (orgs.). Histórias de futebol. São Paulo: Editora Scipione, 2006. O último gol Nessa história, um narrador que é pai conta, numa prosa em tom de desabafo e incontido pesar, o último encontro que teve com seu filho. É uma narrativa sobre as perdas e, dentre elas, talvez a maior de todas, posto que inverte brutalmente a ordem natural das coisas: a perda de um filho. Aqui, o futebol entra como uma grande metáfora da experiência da perda e como pretexto para a formalização literária de uma das mais viscerais provações humanas. Texto contido, sincero, breve e definitivo, como a própria morte. 4.4.1.45 João Antônio 329 João Antônio Ferreira Filho nasceu em 27 de janeiro de 1937, em meio a uma família de imigrantes portugueses de poucos recursos, na cidade de São Paulo (SP), e faleceu em 31 de outubro de 1996. Nos mais de quinze livros que deixou mostra sua extrema habilidade em fundir a linguagem falada nas ruas e a escrita literária. Tema historicamente um tanto marginal na literatura brasileira, o futebol também ocupou as preocupações estéticas de João Antônio. A narrativa, Almas da galera, foi publicada na coletânea, 11 Histórias de futebol, reunião de contos integrante da Coleção Prosa Presente, da Editora Nova Alexandria, de São Paulo, que saiu em 2006; o conto, Afinação da arte de chutar tampinhas, está em Histórias de futebol, reunião de textos do tema, organizada por Maria Viana e Adilson Miguel, a convite da Editora Scipione, São Paulo, 2006, e a história curta, Juiz, foi publicada na coletânea, A palavra é... futebol, organizada por Ricardo Ramos, e publicada pela Editora Scipione, de São paulo, em 1990. Almas da galera Estória curtíssima cuja idéia de força é destacar um momento singular – aliás, dois – entre tantos outros que compõem a cartografia sensitiva – a mentalidade cultural e afetiva da cidade do Rio de Janeiro –, neste caso, através da paixão desbragada dos seus habitantes pelo jogo de futebol. Sucessivamente dissertativa (ensaística até) e narrativa, essa história poderia começar assim: “Torcedor doente é redundância”, mas inicia dessa outra forma, em tom epigráfico: “Poucas coisas tão velhas quanto dizer que não há nada mais perdido sobre a terra do que o coração do homem. E talvez ainda não se tenha dito que pouca coisa haverá, tão fiel, quanto o coração de um torcedor”. Pronto, acrescente-se aí a enunciação dêitica do narrador: “Flagrei outra cena, das que me ficaram fundo, bem isolada de outras que mexem com torcedores...”, e se terá o espírito geral que governa técnica e conteudisticamente esse belo conto, escrito numa pegada de viés etnográfico e antropológico, uma vez que se preocupa em flagrar as experiências do homem em relação com o seu ambiente social e cultural particulares. Afinação da arte de chutar tampinhas Narrativa em primeira pessoa em que um homem conta de si mesmo e de um hábito singular seu: o costume (ou arte) de chutar tampas de garrafas pelas ruas. De caráter reminiscente, haurida verdadeiramente das entranhas da memória – de modo que o passado é 330 invocado para dar sentido ao presente –, a história é construída por um narrador que se qualifica a si mesmo como uma singularidade de valor meramente pessoal, como se o mundo exterior não comportasse mais a existência de um seu mundo interior. Assim é que o futebol se mistura com a música (principalmente, o samba) para tecer os fios de uma individualidade (e suas instâncias) construída por uma infância, uma adolescência e conseqüente fase adulta, que se orientou por dar ênfase ao extraordinário, no sentido do que isso possa ter de incomum; fora da norma social consuetudinária, tendendo para o sem valor, o traço marginal da existência. “Se ouço um samba de Noel... Muito difícil dizer, por exemplo, o que é mais bonito – o “Feitio de oração” ou as minhas tampinhas”, observa, a certa altura, este narrador de João Antônio, numa amostra de que, além de contundente, a sua literatura pode também ser lírica. Extremamente lírica. Juiz Desta vez, o tema desta narrativa de futebol é o das relações sócio-raciais da formação social brasileira que aqui é dramatizado a partir de dois ângulos simultâneos e metodologicamente complementares da abordagem literária: o enfoque estrutural-sincrônico somado a uma visada conjuntural-diacrônica da mesma realidade. Assim, em termos gerais e exemplificando esses dois aspectos da mesma situação, a elaboração, pelo viés estético, da condição de inserção (até hoje política e culturalmente mal-resolvida) do negro na vida social brasileira é levada a cabo através da figura de um juiz de futebol cujo comportamento dentro do campo (tanto o de jogo da bola quanto o propriamente social) é analisado em função do seu duplo papel ali desempenhado: o de juiz e o de homem negro. A contundência da elaboração crítica desta condição, ainda desfavorável para o mulato na sociedade brasileira, fica por conta do processo de heroicização do personagem, conferido pelo narrador e pela explicitação categórica da tentativa de criação de uma dinâmica vivencial suportável, a ser conseguida através do equilíbrio entre as forças que a ele são conjunturalmente hostis. E isso se dá – em nível narrativo –, tanto no âmbito da partida que o personagem apita quanto do da própria realidade social que ela metaforicamente representa. Literatura de demanda intrínseca e forte teor social, portanto. Neste particular, bem ao estilo característico do escritor João Antônio. 4.4.1.46 João Nunes 331 João Nunes nasceu na pequena cidade de Juquiratiba, estado de São Paulo. Formado em teologia e jornalismo, Nunes é critico de cinema do jornal Correio Popular, de Campinas, São Paulo, onde atua desde 1999. É também escritor, tendo já publicado os livros, Partido ao Meio (romance, 1999) e As Mãos de Pelé (contos, 2006). Ele também já atuou como palestrante, dramaturgo e roteirista de filmes como Meu Avô e Eu, dirigido por Caue Nunes e exibido na edição de 2009 do Festival Paulínia de Cinema. As onze narrativas que seguem integram o seu livro de contos de futebol, intitulado, As mãos do Pelé, publicado pela Pontes Editores, de Campinas, São Paulo, no ano de 2006. Como se quisesse abraçar o mundo Conto escrito em formato de testemunho (um narrador em primeira pessoa relata situações de um desconforto pessoal em face do imponderável) que se baseia na confrontação sutil de dois tipos de crença: o credo religioso e a fé estética. Entre um pólo e outro, o futebol como elemento cultural que permeia todo um conflito que toma foros de dilema, envolvendo o narrador-personagem da história. É que durante a famosa partida em que o Brasil perdeu para a Itália por 3 a 2, com três gols de Paulo Rossi – e foi desclassificado da Copa da Espanha de 1982 –, mesmo tendo reconhecidamente a àquela época a melhor seleção de futebol do planeta, um seminarista prestes a se ordenar padre se põe em crise de consciência ao perceber que a sua crença religiosa em nada ajudaria a sua desbragada fé no futebol brasileiro. Fraqueza, tentação, culpa, queda moral e posterior redenção são os ingredientes de um drama pessoal que, por vezes risível, dada a base de cunho metafísico em que se apóia, tem no mínimo o mérito de mostrar que a realidade é muito maior do que as nossas vãs e ordinárias crenças sobre ela. Mesmo que ao fim de tudo vença, na consciência estética do narrador, a beleza do futebol brasileiro que cai perante os três míseros chutes do atacante italiano Paolo Rossi, naquela que foi uma das mais injustas derrotas sofridas pela Seleção Brasileira em copas do mundo. O Aranha Negra Esta é mais uma daquelas narrativas de futebol que põem em cena a figura fleumática, enigmática ou heróica dos goleiros; os únicos jogadores que têm o sagrado direito, reconhecido por lei, de pegar, apalpar, acariciar, acolher ou reposicionar a “pelota” no jogo de bola aos pés com o concurso das mãos. Nesta história, o goleiro César, do Clube Atlético 332 Juquiratibense, de uma cidade do interior do Brasil, é ungido à condição de herói por um garoto de 14 anos que assiste, fascinado, a uma de suas impossíveis e inimagináveis jogadas de defesa. Também escrita em primeira pessoa – para dar a chancela de testemunho pessoal por parte do narrador –, esta história exemplar, no sentido moral do termo, tem o condão de revelar, a despeito de sua simplória concepção formal, a mais lídima e pura face humana dos heróis de nossa infância, sendo a beleza da narrativa a irrupção súbita daquilo que os teóricos do conto chamam de o “momento de iluminação”, a cena capital da narrativa, o instante microcósmico em que se dá uma epifania sobre a qual toda aguda formalização literária se sustenta. Neste caso, um momento sublime em que o futebol – por alguma razão que só os leitores e amantes do jogo entenderão – faz um homem perceber no outro a sua potencial condição de ser um ser superior, e, com isso, ainda mais embelezar o mundo. Aquele gol do Caniggia Um fato que se repete rigorosamente igual, mas em circunstâncias diferentes num tempo futuro, é espantosa e contraditoriamente o instante epifânico que alicerça essa história em que futebol, amor e sexo, se misturam de maneira incomum e intrigantemente criativa. Trata-se do gol marcado por Cláudio Caniggia, atacante da seleção argentina na Copa de 1990, realizada na Itália, e que tirou da competição a seleção brasileira de futebol. Outros fatos que se relacionam a este criam uma trama intrincada em que traição amorosa, paixão pelo futebol e golpes do destino (simbolizados pelo gol em que quatro jogadores brasileiros poderiam impedi-lo, mas não conseguiram deter o passe fatal de Maradona para Caniggia marcar o tento) forjam o pano de fundo para que o narrador-personagem conte sua experiência pra lá de excêntrica – apesar de rigorosamente verossímil – com os desígnios do imponderável que cercam tanto o universo do futebol quanto o da própria vida. Aqui, a forma do tema, no jogo, determina o tema da forma, na narrativa, uma vez que nesta o que se sobressai é um conteúdo novo para uma maneira de contar tradicional e consideravelmente cediça. As mãos de Pelé Novamente um fato revelador, epifânico, vivido por um garoto na fase tortuosa da adolescência, faz ele descobrir na humanidade do seu ídolo do futebol a sua própria humanidade. E uma humanidade radiosa, retumbante, cheia de promessas de um mundo 333 acalentadamente reparador. Esse é o mote de conteúdo sobre o qual se estrutura essa narrativa em que a construção da idolatria se mostra um ritual de formação e de passagem absolutamente necessários à constituição do homem comum, tido como resultante da confluência de fatores do seu meio cultural. Assim é que o simples gesto de tocar as mãos de Pelé, o rei do futebol, o ídolo maior e figura de alcance planetário e, por isso mesmo, inatingível ao toque de um garoto “balofo, Lua, bolinha, elefante, foca amestrada, leão marinho, filhote de baleia etc”- como se autodenomina o narrador da história –, assim é que a força deste gesto, retomemos, ao qual Pelé inesperadamente retribui com afeto e carinho, revoluciona a interioridade de um menino que enxergava o mundo defensivamente e com justificada desconfiança. Assim é, pois, que este conto de futebol, escrito com uma pureza e sinceridade comoventes, numa prosa traçada com laivos de contundente poesia, elegantemente conecta o futebol com a literatura naquilo que os dois têm de mais humano: a capacidade de desvendar a nossa solidariedade de destinos. Aqui, com a exemplificação ficcional da idéia de que os ídolos nada mais são do que o próprio homem comum. Apesar da aura de glórias que os circunda. Noventa voltas A conjunção de dois fenômenos diferentes porém parecidos (futebol e religião) são o tema desta narrativa composta de provação, paixão e fé, elementos que, no nível desta transposição literária, entram como componentes estruturais do seu principal assunto de fabulação. Este, são as peripécias vividas pelo personagem-narrador da história, enredado que fica por causa de uma promessa que fizera para o seu time, o Guarani Futebol Clube, da cidade de Campinas, São Paulo, ser campeão brasileiro de futebol ao enfrentar o Palmeiras da capital, na partida decisiva do Campeonato Brasileiro de 1978. Diante do inesperado (o Guarani nunca tinha disputado um título sequer e se vê na iminência de ser justamente campeão brasileiro), o torcedor, que conta a história do seu medo de tudo dar errado naquele dia para o seu time, resolve fazer uma promessa para, ao invés de assistir ao jogo – em troca os santos garantiriam o título do Guarani –, passar os 90 minutos da partida dando voltas no fosso do estádio sem ver o embate que se desenrola a poucos metros de sua vista. Oportunamente, do ponto de vista narrativo, a provação sacrificial (elemento estrutural da religião) se funde aqui com o paradoxo fundante do esporte (o separar para unir) e montam o cenário discursivo em que futebol e religião se equivalem na sua faculdade comum de servir 334 de repositório privilegiado para onde jogamos nossa incapacidade de lidar com os desígnios do desconhecido. Esperando Godot Fato: o time da Associação Atlética Ponte Preta, de Campinas, São Paulo, cai para a segunda divisão em 1988, mas ganha, na justiça comum, um recurso que lhe dá o direito de disputar o campeonato paulista da primeira divisão daquele ano, embora a legislação esportiva disponha que litígios envolvendo times de futebol não podem ser resolvidos pela justiça comum. Ficção: um torcedor conta os detalhes de uma conversa que teve com um repórter esportivo em que este lhe explica a situação absurda de toda semana o time da Ponte Preta entrar em campo para não enfrentar ninguém, já que os demais clubes se negam a enfrentá-la em protesto contra o alegado desrespeito à legislação desportiva. Este é, em suma, o enredo deste conto que mistura realidade e ficção para mostrar a cota de absurdo que vez por outra povoa as coisas humanas. Sim, porque a história mostra a situação sui generis por que passa esse torcedor e o seu clube: enquanto ele se questiona porque sai de casa, coloca uma bandeira debaixo dos braços, vai ao estádio vazio, sabendo que não vai haver jogo, ainda aplaude os jogadores quando um deles tem que bater um pênalti para marcar um gol num goleiro adversário inexistente, já que o time tem que ganhar com o placar mínimo por WO, o repórter lhe assegura da possibilidade dele ter que comemorar o título do seu clube sem que este não faça um jogo sequer naquela temporada. Narrativa simplória composta em tom de desabafo, mas que prende a atenção pelo inusitado da situação que expõe. Valtinho sumiu na poeira Outra vez futebol e política se cruzam (ver Escanteio, de Ana Maria Martins, pág. 265) para reatualizar um debate inesgotável sobre até que ponto a instância da superestrura (âmbito da cultura) pode interferir na instância da infraestrutura (âmbito da economia e da política) social, ou vice-versa. Neste sentido, a trama dessa narrativa parece por em evidência a clássica formulação de Karl Marx segundo a qual “os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”. Pois bem! Parece ser precisamente essa máxima filosófica que rege os destinos dos três personagens desta história que tem na própria História do país (o período é a década de 1970 da ditadura 335 militar e da Copa do Mundo do México) o momento de inflexão máxima de suas vidas. Como o próprio personagem-narrador define “O Valtinho radicalizou de uma lado, o Tonho do outro. Eu fiquei no meio, ‘alienado’, como dizia meu amigo. Já se vê, portanto, que a intenção aqui é repassar os fatos de certo passado da vida nacional em que as contingências do tempo e do espaço políticos, no Brasil, impunha inapelavelmente que se fizesse algo: entrar para a luta política (o que em certos casos significava a luta armada), entrar para a repressão a esta luta (o destino de muitos jovens brasileiros cooptados por um emprego nas forças armadas) ou simplesmente torcer pelo Brasil, que então encantava o mundo com as jogadas e os gols de Pelé e companhia. Esta bela, as vezes terna, mas corajosa e franca narrativa de futebol faz, através dos testemunhos do seu narrador-personagem, esse acerto de contas com o passado. E faz muito bem. A bicicleta do Neto O tema principal dessa história são as circunstâncias que envolvem a existência de um triângulo amoroso: o que o cria, o que o alimenta e, quase que inevitavelmente, o que o destrói. E mais importante ainda: o que o redimensiona. É aqui que entra o futebol como uma espécie de fato cultural total; um elo de relação que faz com que um triângulo amoroso clássico, baseado na paixão de dois por um terceiro elemento de ligação comum se transforme na paixão total de todos por um mesmo elemento também comum: o próprio futebol. Já o tema incidental dessa mesma história são as diferentes possibilidades através das quais esse objeto de amor comum (repita-se: o futebol) pode penetrar as relações humanas a tal ponto de engrandecê-las ao máximo (como um poema sublime que faça os ombros suportarem o mundo) ou, a seu anverso, encurtá-las a seu ponto mínimo, o do esgarçamento, como um nada que se foi sem explicação. O caso aqui é o de três amigos (um casal mais uma terceira pessoa) que se reúnem religiosamente ao menos três vezes por semana para assistir e discutir futebol, sendo os dois homens da relação torcedores do Gaurani de Campinas, São Paulo, e a mulher torcedora do Corinthians, da capital. Pois num belo dia, ao assistirem juntos a uma partida final de campeonato entre os dois clubes, percebem que um gol de bicicleta de Neto, então craque do Guarani, é responsável, na beleza arrasadora do lance, por uma reviravolta desconcertante na vida dos três. O que sempre há de oculto nas relações se revela aqui de súbito, num lépido lance de futebol. E o que há de revelador neste mesmo oculto, quando mediado pela palavra, se transfigura aqui, nesta narrativa, como o supremo poder que a 336 literatura tem de transpor para o plano da plausibilidade humana os mistérios e arcanos que governam os seres quando postos em relação. O piripaque do Ronaldo Ao contrário do que se possa imaginar, essa história é sobre a imaginação. Não é propriamente sobre aquela convulsão que quase tirou Ronaldo, o fenômeno, atacante da Seleção Brasileira de futebol, da partida final da Copa do Mundo de 1998, contra a França. É sobre a capacidade humana de imaginar, de preencher com a fantasia os espaços vazios e lacunares da realidade dura e insuficiente das coisas. Escrita na forma de um extenso solilóquio, essa narrativa de futebol dá vazão, na figura do seu narrador, a um monte de idéias conspiratórias que teriam tomado corpo e efetivação prática por ocasião da derrota do Brasil para a França na final da Copa do Mundo realizada em 1998 naquele país. Pela conspiração, todos os jogadores da Seleção Brasileira, e principalmente Ronaldo, teriam sido vítima dos efeitos de um medicamento a eles ministrados ocultamente e que os deixariam com os músculos frouxos e sem capacidade para agir conforme as necessidades de uma partida de futebol. De forma claramente irônica (de maneira a zombar das teorias conspiratórias surgidas a época e que defendiam que o Brasil entregara o jogo aos franceses), o narrador recorre à internet para mostrar que houve uma trama combinada entre os dirigentes da CBF, o então presidente do Brasil, FHC, e o presidente da França, para que aquela Copa não saísse das mãos dos franceses. Toda a história é uma espécie de tapa com luva de pelica em todos aqueles (inclusive a imprensa, séria ou sensacionalista) que não conseguem enxergar que, por mais estapafúrdias que possam parecer, as coisas são como são. O gol que Valéria não viu Amor e arte, ou melhor: as artes do amor, ou mais precisamente ainda, o amor das artes, ou tudo isso junto, compreendido aqui o futebol, formam o tema deste belo conto em que seu narrador e protagonista desabafa o processo de expiação por que passou ao ser abandonado pelo amor da sua vida sem uma explicação sequer. O pretexto para contar sua história é um jogo sem importância alguma entre os times do Guarani e do Marília, ambos de Campinas, São Paulo, pelo campeonato de 1982, ocorrido no mesmo dia da morte da cantora Elis Regina, e a que ele vai assistir sem nem mesmo saber por quê. Em meio à intensa dor e autocomiseração a que é submetido pelo que lhe sucedera, o jogo de futebol serve de 337 contraponto para que a vida e a arte sejam reparametrados nessa formalização literária de que esse narrador nos dá – entre outros igualmente compungentes, dois momentos representativos e exemplares: “Pois foi... banhado em lágrimas, morrendo de pena de mim mesmo, aferrado a dolorido despeito, contaminado por atroz sofrimento e corroído de ciúme e de impotência que me transformei. Mudei o comportamento e decidi esquecer Valéria, jogá-la no lixo, na vala comum”. E depois: “Quem continuou viva e jamais envelheceu foi a Elis Regina. Tempos depois, ela saiu da gaveta, deixou de ser vinil e virou CD. Tenho a coleção completa e a ouço sempre, sem saudosismo e sem entristecer. Mesmo quando me lembro daquele jogo em que o Guarani venceu o Marília por 4 a 2 na dolorosa noite de 20 de janeiro de 1982. Gols que a Valéria não viu. Nem a Elis. Nem sei se ela gostava de futebol. Sei que cantava Gilberto Gil do mesmo jeito que brasileiro joga bola. ‘Prezado amigo Afonsinho/eu continuo aqui mesmo/aprefeiçoando o imperfeito/dando um tempo, dando um jeito/desprezando a perfeição/que a perfeição é uma meta/defendida pelo goleiro/que joga na seleção...’. E, sobre o tema, não se diga que o essencial já aqui não esteja dito. A arte de Venâncio Este conto nada mais é do que uma singela homenagem aqueles milhares de craques de futebol anônimos que existem no Brasil. Verdadeiros artistas da bola a quem o destino não sorriu conforme merecia a graça de sua arte. Representando todos aqui, está a figura de Venâncio, um garoto que, segundo o narrador da história (seu amigo sem talento para a bola que decidira se tornar repórter esportivo), “tinha um dom oferecido somente a seres especiais, iluminados. Talvez, espíritos evoluídos”, conclui. A trajetória difícil e ingrata desses garotos que pontificam nas chamadas várzeas do futebol, sejam nas cidades do interior ou nas capitais do país, seus sonhos de um dia virem a ser astros em um grande clube, suas desilusões com o universo pragmático e utilitarista do futebol, mas, e principalmente, a encantada descrição dos seus talentos com a bola nos pés, são a pedra de toque desta narrativa simples, porém honesta e admirada, feita sobretudo da gratidão que um artista deve dispensar a outro quando literalmente está em jogo a importância e a beleza da sua arte. 4.4.1.47 João Ubaldo Ribeiro João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro nasceu na Ilha de Itaparica, Bahia, em 23 de janeiro de 1941, na casa de seu avô materno, à Rua do Canal, número um. Estreou no 338 jornalismo, começando a trabalhar como repórter no Jornal da Bahia, em 1957, tendo posteriormente se transferido para A Tribuna da Bahia, onde chegou a exercer o posto de editor-chefe. Como escritor, tem hoje uma vasta obra que inclui romances, contos, crônicas, ensaios e até algumas obras no segmento infanto-juvenil. Dentre as suas obras mais famosas destacam-se: Setembro não tem sentido (1968); Sargento Getúlio (1971); Viva o povo brasileiro (1984) e A casa dos Budas ditosos (1999). O conto, Já podeis da pátria filhos, integra a coletânea, 22 contistas em campo, organizada por Flávio Moreira da Costa e publicado pela Ediouro, do Rio de Janeiro, em 2006. Já podeis da pátria filhos Estória narrada em registro extremamente coloquial e modulada por um linguajar regional típico do interior do Brasil em que um técnico relata os detalhes de uma partida de futebol envolvendo os jogadores locais e um time formado por estrangeiros (americanos e japoneses) que chegam à localidade sob os auspícios do governo brasileiro, atraídos para a oportunidade de desenvolverem, ali, atividades de extração mineral. Ao contrapor o elemento nativo ao estrangeiro (suas diferenças de cultura, situação econômica e formação social) através do encontro futebolístico, o conto dramatiza um aspecto particularmente caro ao entendimento sociológico deste esporte como forte vetor de representação social, no Brasil: a questão das formulações identitárias que ligam as idéias de indivíduo à de coletividade e as de sociedade à de nação. Contada por um narrador literalmente técnico (o próprio treinador da equipe local), o ponto forte da formalização literária desta história é justamente o grau de verossimilhança com que enfoca o embate de culturas tendo o futebol como meio privilegiado de encenação. 4.4.1.48 José Cruz Medeiros José Cruz Medeiros nasceu no dia 19 de setembro do ano de 1909, em Curitiba, Paraná, e morreu em 9 de setembro de 1982. Estreou como contista com o livro, Bicho carpinteiro, em 1959, e a partir daí desenvolveu uma boa carreira de escritor de histórias curtas e ensaísta. Foi membro da União Brasileira de Escritores-UBE e responsável, durante muito tempo, pelo “Boletim Bibliográfico Brasileiro”, revista mensal que prestou importantes serviços ao pensamento da literatura brasileira. Tem publicado ainda, fechando a sua obra, os livros de contos, Pinheiros (1956); Uns contos por aí (1969) e A hora nona (1981). Seu 339 conto, “Cavalo Miranda”, foi incluído na antologia “Contos Brasileiros de Bichos”, publicada em 1970 e organizada por Cyro de Matos e Hélio Pólvora. Já o conto de futebol, Mindinho, que segue, venceu o Concurso de Conto Desportivo do Rio de Janeiro, em 1958, integrando a comissão julgadora Paulo Mendes Campos, Antonio Olinto e Henrique Pongetti. A narrativa está publicada na coletânea, Contos brasileiros de futebol, organizada em 2005 por Cyro de Matos, sob os auspícios da Editora LGE, de Brasília. Mindinho Narrativa em que, à maneira de um narrador machadiano – aquele que escreve com a pena da galhofa e a tinta da melancolia – nos é contada a curiosa história da vingança de um jogador de futebol já falecido sobre o seu companheiro de clube ainda vivo. E tudo isso por causa de uma “desfeita moral” que o narrador habilmente faz transformar-se numa espécie de traição em que o jogo da bola entra como elemento de conteúdo e significação. Noutras palavras: o ponto culminante de uma trama onde tudo pode ser resumido no emblemático aforismo: sorte no amor, azar no jogo. Ou vice-versa. Principalmente, vice-versa, como o leitor poderá conferir se prestar bem atenção nessa literalmente fantástica estória curta de futebol. 4.4.1.49 José Roberto Torero José Roberto Torero Fernandes Júnior nasceu em Santos, a 9 de outubro de 1963. Conhecido como Torero, é escritor, cineasta, roteirista, jornalista e colunista de esportes. Formado em Letras e Jornalismo pela Universidade de São Paulo, é autor de diversos livros, como "O Chalaça", vencedor do prêmio jabuti de 1995. Além disso, escreveu roteiros para cinema e tevê, como em Retrato Falado para Rede Globo de Televisão. Cursou, sem concluir, pós-graduação em Cinema e Roteiro. No Jornal da Tarde, de São Paulo, iniciou sua carreira de cronista e depois começou a escrever para revista Placar textos sobre futebol, colaborando ainda com a Folha de São Paulo desde 1998. É roteirista, entre outros, nos longa metragem A Felicidade É e Pequeno Dicionário Amoroso. Também e sócio proprietário da Realejo Livros, em Santos. Atualmente, Torero mantém um blog no portal UOL, o Blog do Torero, e publica ainda um outro, o Blog do Lelê, seu sobrinho fictício, iniciado durante a Copa do Mundo de 2006, realizada na Alemanha. A narrativa, Se as coisas não tivessem sido como foram, o que é não seria, se encontra publicado na reunião de contos, 11 Histórias de 340 futebol, integrante da Coleção Prosa Presente, da Editora Nova Alexandria, de São Paulo, que saiu em 2006. Se as coisas não tivessem sido como foram, o que é não seria Conto em estilo jornalístico e cortes oriundos da sintaxe cinematográfica que, entretanto, subverte as normas da teleologia epistemológica do jornalismo ao falsificar os dados da realidade sobre a qual discorre: o Brasil dos anos 70 do século passado mergulhado numa brutal ditadura política, porém confiante na conquista do terceiro campeonato mundial de futebol com realização no México. Daí, toda a carga ficcional da narrativa recair nessa inversão da ordem das coisas, já devidamente anunciada no seu título de fundo aforismático e charadístico. 4.4.1.50 Lima Barreto Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro a 13 de maio de 1881 e morreu na mesma cidade a 1.° de novembro de 1922. Filho de um tipógrafo da Imprensa Nacional e de uma professora pública, era mestiço de nascença e foi iniciado nos estudos pela própria mãe, que perdeu aos 7 anos de idade. Foi funcionário público, jornalista e boêmio. Mestiço de origem humilde, era alcoólatra e chegou a ser internado em hospícios. Muito influenciado pelo pai, um culto tipógrafo, Lima Barreto foi incentivado a seguir a carreira da Medicina, mas se tornou engenheiro civil. Começou a sua colaboração na imprensa desde estudante, em 1902, no A Quinzena Alegre, depois no Tagarela, O Diabo, e na Revista da Época. Em jornais de maior circulação, começou em 1905, escrevendo no Correio da Manhã uma série de reportagens sobre a demolição do Morro do Castelo. Daí em diante, colaborou em vários jornais e revistas, Fon-Fon, Floreal, Gazeta da Tarde, Jornal do Commercio, Correio da Noite, A Noite (onde publicou, em folhetim, Numa e a Ninfa), Careta, ABC, um novo A Lanterna (vespertino), Brás Cubas (semanário), Hoje, Revista Souza Cruz e O Mundo Literário. 1909 foi o ano de sua estreia como escritor de ficção, publicando, em Portugal, o romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Em 1914 começou a publicação, em formato de folhetins no Jornal do Dia, de sua mais importante obra, Triste Fim de Policarpo Quaresma, que um ano mais tarde foi editado em brochura e considerado pela crítica especializada como basilar no período do Pré-Modernismo. Em sua obra, de temática social, privilegiou os pobres, os boêmios e os arruinados. Para ele, o escritor tinha uma função 341 social. É nesse contexto geral de sua obra, que Lima Barreto tematiza o futebol em suas narrativas. O conto, Herói, inicialmente publicado na revista Careta, do Rio de Janeiro, em 18 de novembro de 1922, está também no seu livro, Coisas do Reino do Jambon. Vol. VIII. Obras de Lima Barreto. Org. Francisco de Assis Barbosa com colaboração de Antônio Houaiss e M. Cavalcanti Proença. São Paulo: Editora Brasiliense, 1956; a narrativa, Doença do Antunes, integra a 2ª edição de Histórias e sonhos, publicada em 1951 (Companhia Editora Nacional), tendo sido originalmente publicado também em Careta, não se logrando determinar o ano; o conto, A biblioteca, possivelmente a primeira narrativa de ficção sobre futebol no Brasil, foi também publicado originalmente em Careta, no ano de 1915, e depois incluído na 1ª edição da coletânea Histórias e sonhos, editada por Schettino em 1920 (a única de contos de Lima publicada em vida) e, por último, a narrativa, Quase ela deu o "sim", mas..., extraída da revista Careta, edição de 29 de janeiro de 1921, consta, também, do livro O homem que sabia javanês e outros contos, que saiu pela editora Pólo Editorial do Paraná, Curitiba, em 1997. Herói Conto vazado em linguagem irônica que trata da inserção do futebol na vida cultural da sociedade brasileira. Bem conforme a maneira como o autor via, no primeiro quartel do século XX, a prática desse jogo como problemática para o desenvolvimento de um desejado espírito culto à recém implantada nação republicana, a narrativa contrapõe, através de dois personagens – os filhos mais velhos de dois amigos que se reencontram depois de muito tempo sem se verem –, duas situações que expressam as posições dominantes do debate da época em torno da questão da implantação, no Brasil, de uma prática esportiva estrangeira que, conforme um dos lados da questão (justamente o defendido pelo próprio escritor através da imprensa), significaria o embrutecimento nas condições de criação de um possível ethos nacional, que cedesse à desvantagem da valorização do trabalho manual (ironicamente representado pelos pés dos futebolistas que ganhavam cada vez mais prestígio na sociedade brasileira) em detrimento do labor intelectual. Ao conceder a condição de herói a um jovem que optou, na época, pela profissão de jogador, (que “venceu o Campeonato Sul-Americano de Football”, mas que “não dera pra nada. Tudo estudara e nada aprendera. A sua mania era o tal football”), Lima Barreto atesta, no fundo, mesmo que com a providencial ironia desta das primeira narrativas ficcionais sobre o futebol no Brasil, o sucesso, já então, deste jogo como patrimônio cultural, recém incorporado pelo povo à vida social do país. 342 A doença do Antunes Conto de timbre irônico e sarcástico que tangencia o tema do futebol (o seu personagem principal além de médico é goleiro), mas que se atém a outra preocupação de assunto: o senso de avareza que acometia a pequena burguesia carioca do início do século XX, metida entre ralar para ganhar o dinheiro que garantiria uma vida de ostentações e, no caso de insucesso, entretida no culto mundano a essas próprias ostentações que, assim, adquiriam um status local, importado das nações européias na forma das mais rasteiras imitações. O conceito geral era de que assim, entre modismos e sugestionamentos, era que deveria ser vivida a vida dos ricos. Quanto ao futebol propriamente dito, a nota de destaque da narrativa é a costumeira e aguda ironia, largamente espraiada pela história, com que o autor via, no primeiro quartel do século XX, a prática desse jogo como franco óbice ao desenvolvimento de um desejado espírito culto à recém implantada nação republicana, já em plena experimentação política e social a partir do Rio de Janeiro. Basta informar aqui que após ter sido convidado para participar, na sua condição de goleiro, de um desafio internacional envolvendo dois clubes da América Central (o Libertad Foot-ball Club, da Costa Rica, e o Airoca Foot-ball Club, da Guatemala), é assim que o narrador relata a recusa do convite pelo seu personagem principal: “O doutor Gedeão, porém, não pode aceitar o convite, pois a sua atividade mental anda agora norteada para a descoberta da composição Pomada Vienense, específico muito conhecido para a cura dos calos”. Parece que o futebol, esporte por essa época já bastante popular na capital da República – e por isso mesmo auto- imposto como tema jornalístico e ou literário – era mesmo um calo na vida do escritor Lima Barreto. A biblioteca Parece também que a antipatia do escritor Lima Barreto pelo futebol chega a ganhar mesmo foros de mote para certa acentuação programática de sua obra literária. Assim é que, nesta narrativa, o tema comparece em sua ficção como inequívoca e enfática pedra de toque da sua tese de que o esporte bretão (por ele entendido como "instrumento e meio de estrangeirismo"; de assimilação de valores e hábitos importados na direção da efetivação política de um "pretenso, falso, artificial e detestável progresso bem a gosto desta República de bacharéis e aristocratas"), é mesmo um agente de evasão bárbara frente à necessidade de 343 construção de um espírito culto para o país (ver, nessa mesma direção, o conto Herói – ver pág. 325). A ilustração ficcional dessa idéia está no enredo dessa história através de um pai que herdara (também do seu pai) uma portentosa biblioteca contendo valiosas obras de ciências físicas e matemáticas a que espera dar destino útil na figura de um dos seus filhos. Após ver frustrada a tentativa de depositar nos três mais velhos a esperança da formação familiar fundada na educação dos livros, é no filho caçula temporão que espera ver cumprido seu objetivo. Até que um dia qualquer – “cheio dos seus dezesseis anos, muito robusto, não havia nele nem angústias nem dúvidas –, o garoto sem mais nem menos resolve pedir ao pai cinco mil-réis para ir ao jogo de futebol”. Pronto, a seqüência final da narrativa só vem comprovar a tese acima aludida. O sarcasmo impiedoso e não disfarçado do autor para com a preferência “perigosa” da escolha, por parte da juventude carioca de então, pelos ofícios do corpo em detrimento das obras do espírito, dá o tom preponderante da tessitura dessa história curta em que o livro parece começar, no Brasil, a perder para a bola a sua primazia no coração do povo. Quase ela deu o "sim", mas... Nesta história, a conhecida militância do escritor Lima Barreto contra a prática do futebol, no Brasil, é expressa sutilmente debaixo de um subterfúgio: a criação de um enredo em que o jogo é aludido, nas entrelinhas, como algo de que não se pode tirar vantagem alguma; uma ocupação inútil e improdutiva; um ofício confundido com o ócio. A trama dá conta de um rapaz que, morando na casa dos tios onde tinha moradia, comida, roupa, calçado e algum dinheiro – “que a sua bondosa tia e madrinha lhe dava para os cigarros” –, passava a maior parte do dia “em dar loucos pontapés, numa bola”, e que ao encontrar a oportunidade de um bom partido para se casar na figura de uma viúva de adequadas posses para a manutenção da família, depara-se com um inusitado óbice: ter que agir ao invés de jogar. Ao preferir a vida de solteiro à de chefe de família, João Cazu, personagem principal da narrativa, parece deixar no sentido do seu gesto, a idéia geral de que, para o narrador, a prática do futebol não combina com os afazeres de um homem sério e socialmente bem intencionado. Claro que essa ilação oferecida sutilmente pelo narrador ao leitor do conto é construída e manobrada com a habilidade e ironia costumeiras pelas quais o autor faz, na sua ficção, a imaginação tornar-se idéia. 4.4.1.51 Lourenço Cazarré 344 Lourenço Cazarré nasceu em Pelotas (RS) em 29 de julho de 1953. Desde 1981, ano em que saiu seu primeiro livro, Agosto, sexta-feira, treze, este escritor e jornalista gaúcho já teve mais de duas dezenas de obras publicadas. Grande contista brasileiro, conquistou o Prêmio Açorianos de Literatura, na categoria Contos, em 2002, com Ilhados. Esteve presente por duas vezes na Bienal Nestlé de Literatura, em 1982 e 1984; no Prêmio Jabuti, em 1999 e em mais de uma dezena de outros concursos. Sua novela, O mistério da obra-prima, foi traduzida para o espanhol e editada pela Fondo de Cultura Económica, do México. Entre sua obra infanto-juvenuil destacam-se os livros, Clube dos leitores e histórias tristes, A cidade dos ratos: uma ópera-roque, Quem matou o mestre de matemática? e Nadando contra a morte, que levou o Prêmio Jabuti de 1999. O conto, Meia encarnada, dura de sangue, nomeia uma coletânea de textos sobre esportes, organizada pelo jornalista gaúcho, Ruy Carlos Osterman, que foi publicada no ano de 2001 pela Editora Artes e Ofícios de Porto Alegre, em cuja edição a narrativa foi inserida. A história de futebol, O homemvestido de negro, foi publicada na coletânea, 11 Histórias de futebol, integrante da Coleção Prosa Presente, da Editora Nova Alexandria, de São Paulo, que saiu em 2006, e o conto, A arte excêntrica dos goleiros, está no seu livro homônimo, publicado em 2004 pela LGE Editora, de Brasília. Meia encarnada, dura de sangue Bem escrita, densa até, na sua plasticidade expressiva, o que talvez tenha pesado na sua transformação, pela Rede Globo de Televisão, num dos episódios de teledramaturgia exibidos para todo o País em 2001, esta narrativa traz como tema central a custosa e difícil inserção para esta raça do elemento negro da nossa formação social no início da profissionalização do futebol no Brasil. E, paralelamente, mostra a bravura e o talento de um dos seus representantes mais singulares no ambiente de geografia humana em que se passa a história: o Rio Grande do Sul de ethos viril e personagens fundadores. Homem vestido de negro História de futebol que traz uma novidade: tem como objeto de sua narrativa o futebol de salão e como tema o talento e a figura de um goleiro virtuose na sua função debaixo das traves. É narrada em primeira pessoa para um interlocutor virtual inominado a quem outro goleiro confessa sua admiração pelo mestre que certa vez enfrentou sem sucesso. Desta feita, a figura do goleiro é heroicizada utilizando-se para isso um recurso narrativo adequado: o 345 solilóquio – tipo de diálogo sempre útil por meio do qual uma personagem pode expressar para outra, com a verossimilhança da sinceridade testemunhada, as suas impressões sobre as coisas e os seres deste mundo. A arte excêntrica dos goleiros Uma entrevista jornalística é o recurso formal que estrutura esta narrativa curta de futebol em que mais uma vez a figura do goleiro – um jogador estrutural e funcionalmente diverso dos demais membros de um time – aparece em destaque como tema e como personagem. De certa forma, este conto de Lourenço Cazarré é uma espécie de complemento e extensão deste outro de sua autoria, “Homem vestido de negro”, em que, a certa altura, o personagem-narrador assim se expressa: “Quando eu era pequeno, nas noites de sábado, meu pai me levava para assistir às partidas do campeonato de futebol de salão da cidade. No início eu não prestava muita atenção nos jogos porque, a todo instante, meus olhos se voltavam para os homens debaixo das traves. Eu era fascinado pelos goleiros. Torcia por eles, vibrava quando um deles, qualquer um, fazia uma defesa. Achava meio estúpido aquilo de correr atrás da bola. O legal era ficar debaixo do gol, esperando o ataque”. Pois o entrecho narrativo dessa outra sua estória curta de futebol repõem em cena, embora com menos sofisticação e verticalidade de observação, a figura dos goleiros de futebol em geral, desta feita analisados sob o enfoque de um personagem em particular de quem, pela lógica e estruturação da pauta jornalística – sempre um projeto lingüístico-formal que visa a captação da singularidade das coisas – se tenta comunicar a sua existência diversa; a atuação distinta e excepcional que lhe recobre de certa aura para além do campo de jogo. “Sim, um goleiro é sempre aristocrático – disse à jornalista e se pôs de pé”, assinala, em certo trecho, o narrador da história, para uma observação da repórter ao personagem de sua matéria, momentos antes de encerrar a entrevista. A resposta do entrevistado diz tudo sobre a significação da figura do goleiro como jogador e como tema literário de quem se pretende haurir, como nesta narrativa breve, o conteúdo de humanidade exemplar que está por trás de sua mera condição dentro do jogo: “É. Um goleiro não se mistura – resmungou o homem”. E não se mistura mesmo, basta observar a solidão e supra-responsabilidade, dentro das quatro linhas, de quem encarna as funções de último jogador da defesa do seu time e o primeiro do ataque, algo que não o permite errar jamais, sob pena de o mundo lhe cair sobre os ombros. Sob essa perspectiva, o goleiro é mesmo intrinsecamente um dos melhores homens no jogo de futebol, justificando, assim, o tratamento de distinção – aristocrático – dado a ele pelo narrador dessa história. 346 4.4.1.52 Lourenço Diaféria Lourenço Carlos Diaféria nasceu em São Paulo, a 28 de agosto de 1933, e morreu na mesma cidade em 16 de setembro de 2008. Foi contista, cronista e jornalista brasileiro. Sua carreira jornalística começou em 1956 na Folha da Manhã, atual Folha de S. Paulo. Como cronista o início foi mais tardio, em 1964, quando escreveu seu primeiro texto assinado. Permaneceu no periódico paulista até 1977, quando foi preso pelo regime militar por causa do conteúdo da crônica, Herói. Morto. Nós, considerada ofensiva às Forças Armadas. A crônica comentava o heroísmo do sargento Sílvio Hollenbach, que pulou em um poço de ariranhas no zoológico de Brasília para salvar um menino. A criança se salvou, mas o militar morreu, vencido pela voracidade dos animais. A crônica também citava o duque de Caxias, o patrono do Exército, lembrando o estado de abandono de sua estátua no centro da capital de São Paulo, próximo à estação da Luz. Diaféria só seria considerado inocente em 1979. Durante algumas semanas, a Folha deixou em branco o espaço destinado ao colunista, em repúdio à sua prisão. Depois da Folha, levou suas crônicas para o Jornal da Tarde, o Diário Popular e o Diário do Grande ABC, além de quatro emissoras de rádio e a Rede Globo de Televisão. Católico, escreveu A Caminhada da Luz, livro sobre dom Paulo Evaristo Arns, a quem admirava. Outra "religião" era o futebol: muitas de suas crônicas falavam desse esporte — e de seu time, o Corinthians. As histórias curtas do autor, abaixo, estão em: DIAFÉRIA, Lourenço; PIZA, Daniel; ANGELO, Ivan. A vez da bola: crônicas e contos do imaginário esportivo brasileiro. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2004. p. 7-9. (Coleção toque de letra. Série Lazuli). Urgente, em mãos Escrito especialmente para a coleção Toque de Letra, série Lazuli, da Companhia Editora Nacional, organizada por Miguel de Almeida, com a coletânea intitulada, A vez da bola, publicada em 2004, este conto se insere no campo daquelas narrativas de ficção que flagra o futebol como uma arena em que seus personagens cumprem um destino trágico, a despeito – e mesmo por isso – de terem sido vazados numa atmosfera de ligeiro heroísmo A rã misteriosa 347 Também escrito especialmente para essa mesma coleção, este outro conto de Lourenço Diaféria é bem mais simplório do que “Urgente, em mãos”. Tanto do ponto de vista da situação da trama, mais propensa a ter melhor rendimento estético no gênero crônica, porque se assenta naquelas veredas por onde costumeiramente se captam as coisas do cotidiano, quanto da resolução que é dada a ela, através de um texto fluido em que se quer expor, a partir do mote dos esportes (aqui, de novo o futebol), o lado mais uma vez irônico e também risível dos contrastes da vida humana. 4.4.1.53 Luis Fernando Veríssimo Luis Fernando Verissimo nasceu em 26 de setembro 1936, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Filho do grande escritor Érico Veríssimo, iniciou seus estudos no Instituto Porto Alegre, tendo passado por escolas nos Estados Unidos quando morou lá, em virtude de seu pai ter ido lecionar em uma universidade da Califórnia, por dois anos. Voltou a morar nos EUA quando tinha 16 anos, tendo cursado a Roosevelt High School de Washington, onde também estudou música, sendo até hoje inseparável de seu saxofone. Jornalista, iniciou sua carreira no jornal Zero Hora, em Porto Alegre, em fins de 1966, onde começou como copydesk mas trabalhou em diversas seções ("editor de frescuras", redator, editor nacional e internacional). Escritor prolífico, são de sua autoria, dentre outros, O Popular, A Grande Mulher Nua, Amor Brasileiro, publicados pela José Olympio Editora; As Cobras e Outros Bichos, Pega pra Kapput!, Ed Mort em "Procurando o Silva", Ed Mort em "Disneyworld Blues", Ed Mort em "Com a Mão no Milhão", Ed Mort em "A Conexão Nazista", Ed Mort em "O Seqüestro do Zagueiro Central", Ed Mort e Outras Histórias, O Jardim do Diabo, Pai não Entende Nada, Peças Íntimas, O Santinho, Zoeira, Sexo na Cabeça, O Gigolô das Palavras, O Analista de Bagé, A Mão Do Freud, Orgias, As Aventuras da Família Brasil, A Velhinha de Taubaté, A Mulher do Silva e O Marido do Doutor Pompeu, publicados pela L&PM Editores; A Mesa Voadora, pela Editora Globo e Traçando Paris, pela Artes e Ofícios. O conto abaixo está publicado na coletânea, Os donos da bola, organizada por Eduardo Coelho e publicada em 2006 pela Editora Língua Geral, do Rio de Janeiro. Já a narrativa, Os moralistas, consta do livro do autor intitulado, As mentiras que os homens contam, publicado pela Editora Objetiva, do Rio de Janeiro, em 2000. A importância relativa das coisas 348 Conto em tom de crônica ou crônica com tonalidade de conto, tanto faz, no sentido de que a composição, em forma narrativa, pretende apanhar detalhes comezinhos do cotidiano social e, através da sua exposição arguta e bem articulada, explorá-los na sua dimensão de fator modificador desse mesmo cotidiano social. O tema central é tratado nas entrelinhas do texto: a maneira diversa com que homens e mulheres vêem e atribuem valores diferentes as mesmas coisas da sua vida relacional. Só então é que o futebol entra como sub-tema (não menos importante, é bom que se frise) dessa questão maior – uma questão de gênero, em última instância – em que, por verem a importância das coisas por ângulos diferentes, homens e mulheres tomam o futebol como fator de dissolução de vínculos fortes de há muito mantidos com o real pelo cimento da cultura. Bem humorado e bem escrito, como é praxe no caso deste autor, o texto acaba por demonstrar como a centralidade cultural desse esporte no país influi até no âmbito íntimo das relações afetivas. Os moralistas História com viés de fábula – a começar pelo título – em que três amigos tentam convencer um quarto companheiro de “pelada” a desistir de se divorciar da esposa, apesar de acharem-na uma mulher inadequada para ele. Formalmente estruturada quase toda por meio de diálogos, essa estória curta de futebol reúne alguns elementos através dos quais é possível perceber como esse jogo, no seu entranhamento cultural, faz mesmo parte do dia-a-dia do brasileiro. Simulando linguisticamente um verdadeiro bate-bola entre amigos (os diálogos fluem como numa ágil linha de passes) a narrativa culmina com uma situação equivalente a um gol em termos do jogo que representa tematicamente. Isto é: os três personagens amigos do pretendente a divorciado conseguem finalmente o tento almejado. Com malícia, astúcia e bom humor – como sói ocorrer com as narrativas bordadas pelo engenho prodigioso de Luis Fernando Veríssimo –, ele mesmo um amante do futebol, e, aqui, na fabulação ficcional em questão, também um habilíssimo jogador. 4.4.1.54 Luis Galdino Luiz Galdino nasceu em Caçapava (SP), em 1940. Formado em Artes, sempre atuou na área de Jornalismo e Publicidade, tendo trabalhado em criação nas principais agências do país. Participou de antologias de autores premiados em diversos concursos literários. Escreveu para adultos, mas foi com o público juvenil que encontrou maior 349 receptividade como escritor de ficçao. Com sua obra, conquistou inúmeros prêmios. Tem mais de quarenta títulos publicados, inclusive no México e Estados Unidos, entre os quais estão: Primeiro amor; Amigas para sempre e As cruzadas. O conto de futebol, Sem defesa, encontra-se publicado na coletânea, 11 Histórias de futebol, da Editora Nova Alexandria, de São Paulo, que saiu em 2006. Sem defesa Estória com estrutura de conto policial e texto enigmático em que um goleiro veterano e negro tem um filho metido no submundo dos vícios e de repente se vê na iminência de perdê-lo por causa de um “justiçamento” ordenado, ao que parece, pelo escalão superior de certa máfia controladora de negócios escusos. Clima de suspense e mistério, conseguido por uma narrativa seca, direta, sem rodeios – como a figurar o campo discursivo nada dialético do universo mafioso –, prepondera neste conto sugestivo que coloca o futebol como mais um dos vários tentáculos por onde se espalha a atuação à margem da lei de grupos poderosos que sobrevivem de atividades ilícitas. 4.4.1.55 Luiz Henrique Luis Henrique nasceu em Nazaré das Farinhas (BA), em 25 de janeiro de 1926. É contista, novelista, cronista e romancista. Doutor em História do Brasil e Professor Emérito da Universidade Federal da Bahia, publicou, entre outros livros, História da Bahia (1987); Moça sozinha na sala (1961), com o qual ganhou o Prêmio Carlos de Laet da Academia Brasileira de Letras, e Almoço posto na mesa (1990). A história curta, Campeonato de futebol, está na coletânea, Contos brasileiros de futebol, organizada em 2005 por Cyro de Matos, sob os auspícios da Editora LGE, de Brasília. Campeonato de futebol Estória rápida, curtíssima, que narra as jogadas-proeza de uma dupla de ataque de um time qualquer, de um bairro qualquer, de uma cidade qualquer do Brasil, país do futebol. O texto é veloz e instantâneo como a figurar a própria fugacidade dos dribles e fintas dos dois personagens que quer destacar para o leitor, através de um testemunho em terceira pessoa comandado por uma reminiscência admirada com o que conta e com a distância temporal que 350 decorreu do que conta. Daí o texto fixar-se no motivo do talento de um tipo de futebol que talvez já tenha se perdido na poeira da sua própria história: o nosso tão decantado futebol-arte. 4.4.1.56 Luis Ruffato Luiz Ruffato nasceu em Cataguases (MG), em fevereiro de 1961, filho de um pipoqueiro e de uma lavadeira. É formado em Comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) como jornalista, profissão que exerce em São Paulo, onde mora há dez anos. Publicou dois livros de contos, Histórias de Remorsos e Rancores (1998) e Os sobreviventes (2000), ambos pela Boitempo Editorial, de São Paulo. Ganhou os prêmios APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) e Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional com o romance Eles Eram Muitos Cavalos, de 2001. Este livro foi publicado também na Itália (Milão, Bevino Editore, 2003), na França (Paris, Métailié, 2005) e Portugal (Espinho, Quadrante, 2006). Em 2002, publicou As máscaras singulares (poemas) e Os Ases de Cataguases, contribuição para a história dos primórdios do Modernismo (ensaio). Em 2005, iniciou a série Inferno provisório, projetada para cinco volumes, com os livros Mamma, son tanto felice e O mundo inimigo. Destes seguiram-se Vista parcial da noite e O livro das impossibilidades. Esses romances foram premiados pela APCA como melhor ficção de 2005. O conto, Cicatrizes (uma história de futebol), está publicado em Os donos da bola, coletânea organizada por Eduardo Coelho e publicada em 2006 pela Editora Língua Geral, do Rio de Janeiro. Cicatrizes (uma história de futebol) História que assume a forma de saga, nas acepções de “história de uma família” ou de “jornada heróica” – conferidas ao termo por Massaud Moisés no seu Dicionário de termos literários –, para narrar as circunstância de criação e vida exitosa de um time de futebol de um povoado encravado numa cidade do interior de Minas Gerais, o Botafogo Futebol Clube de Cataguazes, o “Botafoguinho”, que, conforme a lenda, “caso raro nos anais do desporto bretão, desmantelou, invicto, após vinte partidas disputadas entre agosto e dezembro daquele ano”. O ano era o de 1970, o mesmo em que o Brasil se sagrou tricampeão mundial de futebol, arrebatando de vez, para os seus domínios, a taça do mundo Jules Rimet, que o narrador toma como “gancho” para construir o seu breve relato. Com uma linguagem formalizada em dicção local, rica em arranjos sintáticos característicos do ambiente e 351 dinamizada por uma expressão em que até a aparência do significante lingüístico conta como matéria de conteúdo (na intenção de figurar a simultaneidade da riqueza e pobreza do universo retratado), Luis Ruffato dá, neste texto, a correta dimensão da importância que o futebol adquiriu para um país de diversidade cultural tão característica como é o Brasil. 4.4.1.57 Luiz Vilela Luiz Vilela nasceu em Ituiutaba (MG), em 31 de dezembro de 1942. Aos quinze anos, foi para Belo Horizonte, onde cursou Filosofia. Em 1967, estreou com o livro de contos Tremor de terra, e com ele ganhou, em Brasília, o Prêmio Nacional de Ficção. Na mesma época, veio para a capital paulista, onde trabalhou como redator e repórter do Jornal da Tarde. Foi premiado também no I e no II Concurso Nacional de Contos, do Paraná, e recebeu ainda o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, para o melhor livro de contos do ano, com O Fim de tudo. Depois de morar em Belo Horizonte, São Paulo, Espanha e Estados Unidos, Vilela decidiu voltar para a sua cidade natal, onde vive até hoje. Suas obras, que incluem contos, romances e novelas, já foram traduzidas nos Estados Unidos, Alemanha, França, Inglaterra, Itália, Suécia, Polônia, República Tcheca, Argentina, Paraguai, Chile, Venezuela, Cuba e México. A história curta, abaixo, foi publicada em 22 contistas em campo, coletânea de textos de futebol, organizada por Flávio Moreira da Costa e publicada pela Ediouro, do Rio de Janeiro, em 2006. Escapando com a bola Narrativa sobre um caso recorrente nos temas de estórias curtas sobre futebol: a história do jogador que é obrigado a abandonar a profissão e os projetos de vida dela decorrentes por causa de uma séria contusão que o afasta dos gramados. Só que, aqui, o escritor Luiz Vilela aborda o tema a partir de uma opção fabular astuciosa: a escolha de um narrador em terceira pessoa que observa do seu lugar privilegiado – o balcão ou a mesa de um bar onde se encontram o agressor e a vítima da jogada violenta que destruíra seus sonhos de glória – um acerto de contas, depois de um longo tempo, entre os dois ex-jogadores adversários. A estratégia narrativa é astuciosa por duas razões, uma de forma e outra de conteúdo. A primeira por permitir o distanciamento necessário (transmitido como mensagem ética ao leitor) para a abordagem de um aspecto tão delicado do tema da dor de consciência ao se causar, mesmo que involuntariamente, como é o caso, um mal irreparável a alguém. A 352 segunda, por sutilmente incluir um elemento de conteúdo quase que inevitável na questão da vida atribulada e sempre decadente dos jogadores de futebol que abandonam a profissão: a convivência com o alcoolismo que quase sempre os leva à morte prematura. 4.4.1.58 Marcelino Freire Marcelino Freire nasceu em 20 de março de 1967 na cidade de Sertânia, Sertão de Pernambuco. Vive em São Paulo desde 1991. É autor de EraOdito (Aforismos, 2ª edição, 2002), Angu de Sangue (Contos, 2000) e BaléRalé (Contos, 2003), todos publicados pela Ateliê Editorial, de São Paulo. Em 2002, idealizou e editou a Coleção 5 Minutinhos, inaugurando com ela o selo eraOdito editOra. É um dos editores da PS:SP, revista de prosa lançada em maio de 2003, e um dos contistas em destaque nas antologias Geração 90 (2001) e Os Transgressores (2003), publicadas pela Boitempo Editorial. O conto, o Amigo do rei, encontra-se publicado em Histórias de futebol, reunião de textos sobre futebol, organizada por Maria Viana e Adilson Miguel, a convite da Editora Scipione, São Paulo, que saiu em 2006. Já a narrativa, Botica, encontra-se em: LIMA, João Gabriel de. (Org.). Livro Bravo! Literatura e futebol. São Paulo: Abril, 2010. O amigo do rei Este conto é centrado num aspecto importante da cultura brasileira, aquele elemento de viés machista, que tem no futebol um dos grandes fatores de apoio: a idéia batida e naturalizada de que, quando garoto, quem não gosta de futebol, no Brasil, terá sempre questionada a sua sexualidade, que, neste caso, passará sempre pelo agravante de ser confundida com a própria falta de masculinidade (ver: Meninos não choram, de Fernando Bonassi, pág 306. O enredo da narrativa, vazado numa prosa seca, direta, telegráfica, para não deixar dúvida quanto à verdade das observações acima, tem nas atribulações de um pai que quer porque quer ver seu filho um jogador de futebol – enquanto o menino se inclina a ser poeta – o cerne do seu conteúdo fabular. A cena final da história, de conteúdo, digamos, psicanalítico, é exemplar quanto ao teor de ambigüidade presente tanto na formação da nossa mentalidade individual quanto coletiva, o que, talvez, só a literatura, com seus meandros e segredos – a serem desvendados pela experiência da leitura, possa por em questão. Botica 353 Nessa narrativa, um sujeito se vê num momento crucial de sua vida de envolvimento com o futebol e esse envolvimento constitui o próprio cerne da narrativa. Seu entrecho consiste na evocação, por parte do personagem-narrador, de uma situação em que tem que bater um pênalti e marcar o gol, custe o que custar. É aí que surge na sua mente a figura do Botica (que dá título ao conto), um amigo de infância e de peladas de várzea cuja lembrança naquele momento passa a mediar os instantes de pavor que passa a experimentar com a obrigação de marcar o gol. “A torcida foi ficando nervosa, gritando palavrões a toda hora. Se eu demorasse mais um pouco, pulavam daquela arquibancada pobre. Sem contar os que me cercavam, de perto. Cutucando as minhas pernas, na minha nuca uma pistola automática. Juro. A coisa era braba”. A história é curta, curta mesmo, o suficiente para que esse narrador a um só tempo evocativo e acuado (paira no ar um clima de infância e de estripulias perdidas na obrigação dos adultos) comunique ao leitor – entre atordoado e aflito – a sua admiração pelo talento futebolístico do amigo enquanto francamente teme pela ausência desse atributo em si mesmo. 4.4.1.59 Marcello Simão Branco Marcello Simão Branco nasceu em São Paulo, capital, em 6 de janeiro de 1958. É jornalista, mestre e doutor em ciência política pela USP. Leciona na Universidade Paulista (Unip), em São Paulo, e é autor de Democracia na América Latina: Os Desafios da Construção (1983-2002), publicado pela Editora Humanitas/Fapesp, 2007 e Os Mundos Abertos de Robert Silverberg (Edições Hiperespaço, 2004). Editou, entre 1988 e 2004, o premiado fanzine de ficção científica e horror, Megalon, e atualmente é co-autor do Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica, em sua sexta edição em 2009, patrocinado pela Devir Livraria; além de ter no prelo a antologia internacional por ele organizada, Assembleia Estelar: Histórias de Ficção Científica Política, também pela Devir Livraria. Foi o organizador da antologia Outras Copas, Outros Mundos (Editora Ano-Luz, São Caetano do Sul-SP, 1998), onde também publicou o conto Derby, descrito abaixo. Derby Mais uma história curta de ficção científica em que o futebol entra como tema de especulação sobre o seu status futuro. Sendo assim, o narrador conta a história de um grande 354 clássico do futebol paulista (a nomeação de derby teria sido criada pelo jornalista Thomaz Mazzonni, durante sua atuação na crônica esportiva paulista, na década de 50, justamente para classificar esses jogos em que está presente uma grande rivalidade entre os adversários) envolvendo as equipes do Corinthians e do Palmeiras. A partida se dá no ano de 2100, um jogo muito esperado para os dois lados, já que segundo a narrativa, “ambos não decidiam um título há dez anos e, além disso, não venciam um campeonato paulista há mais de duas décadas”. Outras duas novidades – que são responsáveis por certa carga dramática da história, embora pouco aproveitadas do ponto de vista diegético – são duas circunstância que recobrem a história: o fato de os campeonatos regionais (os torneios estaduais) não mais existirem, sendo disputados simbolicamente dentro do campeonato nacional de futebol, e a realidade futurista de os jogadores não serem mais humanos e sim andróides especificamente criados para este fim. Daí decorre uma metonímia radical a influir diretamente no jogo – o de futebol e o do entrecho da própria narrativa – ou em seu resultado final: os jogadores não são substituídos, mas, sim, partes deles, como no caso do jogador Donizetti, do Palmeiras, que a certa altura sofre um pênalti numa entrada dura do adversário que lhe quebra a perna, e sobre quem o narrador do conto comenta: “Cinco minutos depois, Donizetti voltou com uma perna perfeita instalada no lugar da antiga”. Segue-se que ele mesmo bate o pênalti, empatando o jogo e possibilitando a virada do Palmeiras logo em seguida, o que dá o título de campeão Paulista ao verdão, segundo as novas formatações do futebol na virada do século XXI para o XXII, para desespero dos dois últimos torcedores dos dois times no século XX: Seu Fernando Gonsales, corinthiano, e o imigrante italiano José Gagliardi, palmeirense, amigos unidos no prazer da rivalidade sadia. Em tempos em que a FIFA já estuda a possibilidade de permitir a intrusão tecnológica no jogo para que o futebol extirpe da sua gramática agônica a falha, a falta, a lacuna humana – e, portanto, o que há de mais autenticamente humano, demasiado humano, a lhe conferir força e beleza universais –, não deixa de ser auspicioso ver a ficção especulando sobre tais temas. 4.4.1.60 Marcos Rey Marcos Rey é o pseudônimo de Edmundo Donato, que nasceu em São Paulo, a 17 de fevereiro de 1925, e morreu na mesma cidade em 1 de abril de 1999. Foi escritor, tradutor e cineasta brasileiro. Trabalhou como redator de programas de televisão, tendo adaptado os clássicos O Príncipe e o Mendigo, de Mark Twain e A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo em forma de telenovela. Foi um dos autores do roteiro de Vila Sésamo e 355 participou da equipe de redação do Sítio do Picapau Amarelo. O autor se dedicou principalmente às obras voltadas ao público juvenil. Escreveu crônicas, contos e se destacou escrevendo romances. No ano de 1999, após voltar de uma viagem à Europa, Marcos Rey foi internado para uma cirurgia, e não resistindo às complicações, faleceu no dia 1 de abril, aos 74 anos, sem recuperar a consciência. Foi cremado, e um mês depois sua esposa Palma Bevilacqua Donato sobrevoou com helicóptero o centro da cidade, espalhando as cinzas do autor sobre São Paulo e realizando assim a reunião eterna de Marcos Rey com a metrópole que foi a grande personagem de toda a sua obra. Sua história curta sobre futebol, Penalti!, abaixo, foi publicada em 22 contistas em campo, coletânea de textos de futebol, organizada por Flávio Moreira da Costa e publicada pela Ediouro, do Rio de Janeiro, em 2006. Pênalti! Desta vez, o momento mais concentrado do futebol em termos da economia dos seus meios – a cobrança de um pênalti decisivo para o resultado de um jogo ou de um campeonato – é aqui o pretexto para que o narrador em terceira pessoa desta história curta (homologamente concentrada nos seus elementos formais: ritmo, peripécia e enredo, por exemplo) aproveite-se da sua técnica com as palavras para, literalmente, dar um drible no leitor que, desnorteado pelo desenrolar surpreendente do desfecho da trama, inelutavelmente sente que fora fintado. Assim, enquanto os fatos narrados levam as atenções do leitor para certa direção, capturado que já está pelo encadeiamento semântico dos elos de conteúdo da matéria fabular, o fecho de sua resolução as empurra para um sentido contrário. E sentido aqui no sentido de ele mesmo – sentido enquanto direção –, conferir sentido ao todo da história. 4.4.1.61 Maurício Matos Maurício Matos nasceu no Rio de Janeiro em 1973. É doutor em Literatura Portuguesa pela Pontífice Universidade Católica do Rio da Janeiro-PUC-RJ e autor de vários ensaios sobre poesia (sobretudo as de Camões) e poemas publicados em periódicos especializados no Brasil e Portugal. O seu livro de poemas, Aquém das retinas, publicado pela Editora 7Letras, foi concluído com os subsídios da Bolsa para Escritores Brasileiros com Obras em fase de Conclusão, concedida pela Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro em 2000. O seu conto de futebol, Lençol em curva, integra a coletânea de textos sobre o tema, 356 Os donos da bola, organizada por Eduardo Coelho e publicada em 2006 pela Editora Língua Geral, do Rio de Janeiro. Lençol em curva Estruturada de modo que o seu final bem que poderia ser o começo – “Confesso que não sei se isso realmente aconteceu, mas venho repetindo essa história desde os meus 11 ou 12 anos” –, essa narrativa curta e simplória na sua composição, trata de um aspecto importante do jogo de futebol além de estruturalmente essencial a qualquer tipo de jogo: o seu caráter de instância de suspensão do mundo real cotidiano; de criação de um mundo à parte, espaço vivencial especial fora da lógica e regras da vida ordinária, assim como da sua dimensão de momento de pausa, de um intervalo que damos no curso normal da existência. O texto conta a extraordinária proeza de um garoto que, preterido e humilhado por seus colegas de colégio pela sua inabilidade para o jogo da bola, certo dia espanta a todos com uma jogada genial que decide uma partida a favor do seu time e, com o gesto, acaba por demonstrar a beleza escondida por trás dos desígnios e encantos ocultos que encerram esse jogo fascinante. Simples, modesto, comedido em seu tom de relato apaixonado, esse é mais um daqueles contos concebidos como um hino de amor a este esporte. 4.4.1.62 Miguel Sanches Neto Miguel Sanches Neto é paranaense, natural de Bela Vista do Paraíso, onde nasceu no ano de 1965. Aos quatro anos, ficou órfão de pai e passou a viver em Peabiru, no mesmo estado, onde estudou em colégio agrícola e chegou a trabalhar na agricultura. Mais tarde, formou-se em Letras, tornou-se doutor em Teoria Literária pela Universidade de Campinas-Unicamp e professor de Literatura Brasileira na Universidade Estadual de Ponta Grossa (PR). Crítico literário da Gazeta do Povo (PR) e da revista Carta Capital, o autor vem recebendo críticas favoráveis à sua obra, como a publicada sobre o romance Um amor anarquista, lançado em 2005, pela Editora Record, e que o consagrou como “o melhor autor da sua geração”, de acordo com artigo do jornalista Mario Sabino, da revista Veja, publicado na edição de 24 de agosto de 2005. Recebeu o Prêmio Nacional Luis Delfino pelo livro Inscrições a giz (FCC, 1991) e o Prêmio Cruz e Souza por Hóspede secreto, livro de contos que saiu pela Editora Record, em 2003. A narrativa, Jogar com os mortos, está na coletânea 11 Histórias de futebol, da Editora Nova Alexandria, de São Paulo, que saiu em 2006. 357 Jogar com os mortos Literatura vigorosa em que um narrador adulto, transfigurado num jogador de futebol de um time de adolescentes, conta a saga da criação e extinção do Combate Futebol Clube, uma equipe de meninos de bairro cuja trajetória inclui – à falta de uma bola para jogar – sessões de treinos com crânios humanos. Algumas representações básicas da história social da prática do futebol no Brasil são encenadas simbolicamente nesta narrativa que mescla nostalgia com memorialismo; lirismo intimista com realismo confessional; poesia de inspiração com prosa de registro. Enfim: boa literatura para boa crítica social através dos instrumentos da ficção. 4.4.1.63 Moacir Japiassu Moacir Japiassu nasceu em João Pessoa em 4 de julho de 1942, mas tem raízes também em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, onde vive desde 1970. Iniciou-se na profissão de jornalista em 1962, tendo trabalhado em alguns dos mais importantes órgãos da imprensa do país, como os jornais Diário de Notícias, O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde e Jornal da República, além das revistas Isto É, Veja, Senhor, Pais & Filhos, Enciclopédia Bloch e Elle, entre tantos outros. Foi também editor-chefe do Fantástico, da Rede Globo, e repórter, redator e apresentador de programas de rádio e televisão. Em 1997, fundou a revista Jornal dos Jornais (Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa de 1999). Escritor de renome, é autor de dois livros infanto-juvenis; um de gastronomia; um compêndio com as melhores pérolas publicadas em sua coluna, "Perdão, Leitores", da revista Imprensa; e três romances. Seu conto de futebol, A bola e a rede, saiu na coletânea, Contos brasileiros de futebol, organizada em 2005 por Cyro de Matos, e publicada pela Editora LGE, de Brasília. A bola e a rede Estória curtíssima, milimétrica, direta, envolvendo o futebol, o cangaço e o coronelismo nordestinos em que três situações típicas resolvem tudo em termos de sua dimensão fabular: um personagem com fama de macho, por ter desafiado um cangaceiro atemorizante; uma partida de futebol envolvendo o time da cidade do coronel-prefeito, o Democrático versus o Sport Clube Recife, apitada por um juiz temeroso de deixar o time local 358 perder, e a cobrança de um pênalti que tinha a função de deixar as coisas conforme as expectativas do povo da cidade de Rio Branco, no dia do seu aniversário. É sobre a resolução do conflito envolvendo esses três elementos que essa história move seu enredo, sob o pano de fundo do autoritarismo arraigado do meio rural nordestino. 4.4.1.64 Moacyr Scliar Moacyr Jaime Scliar nasceu em Porto Alegre (RS), no Bom Fim, bairro que até hoje reúne a comunidade judaica, a 23 de março de 1937, e morreu em Porto Alegre, no dia 27 de fevereiro de 2011. Scliar publicou mais de setenta livros, entre crônicas, contos, ensaios, romances e literatura infanto-juvenil. Seu estilo leve e irônico lhe garantiu um público bastante amplo de leitores, e em 2003 foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, tendo recebido antes uma grande quantidade de prêmios literários como o Jabuti (1988 e 1993), o Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) (1989) e o Casa de las Americas (1989). Suas obras freqüentemente abordam a imigração judaica no Brasil, mas também tratam de temas como o socialismo, a medicina (área de sua formação), a vida de classe média e vários outros assuntos. Entre suas obras mais importantes estão os seus contos e os romances O ciclo das águas, A estranha nação de Rafael Mendes, O exército de um homem só e O centauro no jardim, este último incluído na lista dos 100 melhores livros de temática judaica dos últimos 200 anos, feita pelo National Yiddish Book Center nos Estados Unidos. O conto, Aqui na terra estão jogando futebol, foi publicado na coletânea, 22 contistas em campo, organizada por Flávio Moreira da Costa e publicada pela Ediouro, do Rio de Janeiro, em 2006, enquanto a narrativa intitulada, Pênalti, saiu na reunião de textos sobre futebol organizada por Ruy Carlos Ostermann, intitulada, Meia encarnada, dura de sangue: literatura e esporte, publicada em 2001 pela editora Artes e Ofícios, de Porto Alegre. Aqui na terra estão jogando futebol Ficção de primeiríssima linha que posiciona o tema do futebol em primeiro plano para, secundariamente – nas entrelinhas do entretexto –, tangenciar as possibilidades infinitas do recurso do escritor ao seu mais caro instrumento de trabalho: a imaginação criadora. Imaginação essa que aqui é potencializada e distribuída com maestria e equilíbrio raros por entre a forma e o conteúdo da matéria narrada. O esquema de forma (que logo se transforma em fórmula do conteúdo) é a criação de um diário escolar onde o narrador faz anotações 359 acerca de alguns eventos ocorridos num internato de jovens alunos proibidos, pela direção da instituição, de praticar o jogo de futebol sob o pretexto de que essa prática esportiva estaria prejudicando o rendimento escolar, comprometendo a disciplina pessoal e gerando um clima de dissolução entre os meninos. A solução encontrada para essa questão vital para os personagens da história – e, portanto, para a própria resolução da sua fatura literária correspondente – é a efetivação de uma das mais belas formalizações estéticas sobre esse esporte na literatura brasileira. Para fazer os seus personagens voltarem a jogar o futebol – que no texto adquire uma importância essencial para a vida individual e coletiva dos alunos –, o escritor Moacyr Scliar imagina formas imponderáveis de se praticar o jogo. O resultado disso tudo é uma narrativa que é um verdadeiro libelo em defesa do esporte das multidões como forma lúdica de compreender e vivenciar a existência Pênalti Conto com sabor de crônica em que é repassado um episódio da história de uma pelada jogada tradicionalmente nas tardes de sábado por um grupo de senhores de meia idade. O fato, um tanto pitoresco, dá conta de um enfrentamento inusitado entre um senhor e um jovem jogador habilidoso especialmente convidado para reforçar, com talento novo, o grupo do tradicional encontro futebolístico do fim de semana. Determinado a não perder de forma nenhuma aquela partida que se desenrolava a céu aberto num sábado qualquer (“Não suportava perder; não a partida de futebol do sábado. Já lhe bastavam as frustrações do cotidiano, a mediocridade do trabalho na repartição, as recriminações da mulher. No sábado, custasse o que custasse, tinha de ganhar. E o centroavante – que o destino colocara no outro time – não impediria”). Eis que o rapaz, que driblara meio time numa investida rápida e insinuante, se vê frente a frente com o último adversário, antes de chutar para o gol: era ele, o senhor que não admitia perder aquele jogo de forma alguma. Como último recurso à disposição, ele, o tal senhor, mandou-lhe o pé, “que não acertou a bola, porque não era para acertar a bola; era pra acertar a canela do adversário. Que com um grito caiu”. Ante a momentânea perplexidade de todos, se soube, inadvertidamente, que ali ocorria, mesmo que no âmbito do futebol, uma ríspida disputa entre pai e filho. Como decorrência, claro, o juiz foi obrigado a marcar o pênalti, que, incontinenti, foi convertido com maestria pelo citado rapaz. Segue-se, então, numa prosa brincalhona e ludicamente ajustada aos elementos do episódio narrado, o curioso registro de uma previdente resignação, expressa pelo narrador do caso, nos 360 seguintes termos: “... se tinha de perder – e tinha de perder – era preferível que perdesse para o filho. E se precisasse ajudá-lo com um pênalti – bem, e por que não?”. 4.4.1.65 Monteiro Lobato José Bento Renato Monteiro Lobato nasceu em Taubaté, a 18 de abril de 1882 e morreu em São Paulo, em 4 de julho de 1948. Foi um dos mais influentes escritores brasileiros do século XX. Foi o "precursor" da literatura infantil brasileira e ficou popularmente conhecido pelo conjunto educativo, bem como divertido, de sua obra de livros infantis, o que seria aproximadamente metade da sua produção literária. A outra metade, consistindo de inúmeros e deliciosos contos (geralmente sobre temas brasileiros), artigos, críticas, prefácios, um livro sobre a importância do petróleo e do ferro e um único romance, O Presidente Negro, que não alcançou a mesma popularidade que suas obras para crianças, é vasta e bastante diversa. Entre estas, se encontram, por exemplo, Urupês (1918); Cidades mortas (1919); Idéias de Jeca Tatu (1919); Negrinha (1920); O garimpeiro do Rio das Garças (1924) e O choque (1926). O conto, O 22 da “Marajó”, foi publicado na coletânea, A Onda Verde. Cf. LOBATO, Monteiro. Monteiro Lobato. Editora São Paulo, 1921. O 22 da “Marajó” “Para os gregos, para a massa popular grega, seria inconcebível a idéia de que o filósofo pudesse no futuro ofuscar a glória do lutador”. Essa observação lapidar, expressa no texto à guisa de preâmbulo argumentativo para a narrativa que vai se seguir, diz muito do conteúdo de especulação reflexiva que brota das entrelinhas desse conto-crônica de Monteiro Lobato sobre a capoeira, a pretexto de ser sobre futebol, ou sob o contexto de versar simultaneamente sobre estes dois esportes que, no Brasil, tem em comum o fato de terem sido abrasileirados ao contato do nosso gentio com as culturas que lhe serviram de fonte formativa. A história trata da substituição paulatina da prática da capoeira pela prática do futebol no cotidiano das classes populares brasileiras e, conseqüentemente, da necessidade ingente de se guardar em registro literário ou histórico a memória dessas formas de interação social oriundas da mistura do esporte com o lazer, o que, no fundo, nada mais é do que a expressão de resistências culturais em si mesmas modeladoras do relacionamento social entre as classes. O caso- exemplo aqui é o de certo marinheiro que, exímio capoeirista, e “mestre de desordens” (por isso mesmo transferido da capital do País para o Norte, no Pará), conseguiu casar-se com a 361 viúva de um estrangeiro que, entre seus apreciáveis dotes, detinha o de ser rica e opulenta em tudo. Ocorre que agora morando outra vez no Rio de Janeiro e transformado em lorde e fidalgo, “num perfeito gentleman”, é obrigado a defender-se da inveja de certa turma de rapazes chiques, “fortemente despeitados ante a esmagadora elegância do desconhecido, rival perigoso, sem dúvida, em matéria de esporte feminino”. A seqüência da narrativa é uma pequena amostra metonímica de como as práticas culturais de resistência – em que as sociedades empenham o seu conteúdo agônico-conflitivo interno – podem de repente, ainda que pela ação fugaz do indivíduo, empoderado que esteja pela conquista de um saber de todo não legitimado socialmente, mostrar caminhos de convivência em que a obra do corpo valha mais do que a obra do espírito. Ou em que cada indivíduo, representando a sua classe, possa se afirmar com as armas que tem. 4.4.1.66 Orígenes Lessa Orígenes Lessa nasceu em Lençóis Paulista (SP), em 12 de julho de 1903 e faleceu no Rio de Janeiro, em 13 de julho de 1986. Escritor, com uma obra bastante extensa, publicou, entre outros: Rua do Sal (romance); O Escritor proibido (contos); Garçon, Garçonette, Garçonnière (contos); O Feijão e o Sonho (romance); 9 Mulheres (contos); O Evangelho de Lázaro (romance) e Beco da Fome (romance). Incursionou pela literatura infanto-juvenil com muito sucesso, publicando uma dezena de livros, um dos quais, Memórias de um Cabo de Vassoura, bateu a vendagem de O Feijão e o Sonho, seu maior sucesso editorial. Foi eleito em 9 de julho de 1981 para a Cadeira n° 10 da Academia Brasileira de Letras, na sucessão de Osvaldo Orico. Casado com a jornalista Elsie Lessa, era pai do também escritor Ivan Lessa. A narrativa de futebol, O Esperança Football Club, consta da coletânea, Onze em campo e um banco de primeira. Cf. COSTA, Flávio Moreira da; MARTINS, Ana Maria... [et al.]. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1998. O Esperança Football Club A criação e a trajetória vitoriosa de um clube de futebol de uma pequena cidade do interior de São Paulo, o Esperança Football Club de Buritisal, formam o mote sobre o qual empreendedorismo, rivalidade, heroísmo e inveja se misturam para que se plasme, nessa história bem contada, o espírito emulativo da vida interiorana que em nada difere do que se passa na capital, em termos do essencial que compõe a vivência das coisas humanas. Pois é 362 justamente uma disputa entre o time do interior e o da capital (O Esperança versus O Paulista) que é narrada à guisa de conclusão – tanto do conto quanto da argumentação – de como se debate o espírito humano, seja aqui, ali ou alhures, na busca ontológica pela singularidade e diferenciação. 4.4.1.67 Octavio Aragão Octavio Carvalho Aragão Júnior nasceu em 15 de dezembro de 1964, na cidade do Rio de Janeiro. É mestre e Doutor em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002 e 2007), tendo defendido seu doutorado com a tese A Reconstrução Gráfica de um Candidato: como os chargistas cariocas perceberam a mudança de imagem de Luis Inácio Lula da Silva. É professor Adjunto da Escola de Comunicação – ECO da Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo lecionado antes na Universidade Federal do Espírito Santo (2006/2009), onde fez parte do núcleo de ensino à distância (ne@ad). Tem experiência na área de Desenho Industrial, com ênfase em design gráfico e ilustração. Publicou artigos em revistas como Arte e Ensaios e Nossa História. É autor do romance A Mão que Cria (2006) e editor da antologia de contos Intempol (Ano Luz, 2000). É também co-autor do livro Imaginário Brasileiro e Zonas Periféricas (7 Lettras, 2005), sob a coordenação da professora doutora Rosza Vel Zoladz. Participou de diversas antologias literárias no Brasil e em Portugal. Exerceu os cargos de editor de arte na Ediouro Publicações (2000/2001), sub-editor de arte no jornal O Dia (1997) e coordenador de arte no jornal O Globo (1992/1997). O conto, Eu matei Paolo Rossi, integra a coletânea de ficção científica sobre futebol, Outras Copas, Outros Mundos (Editora Ano-Luz, São Caetano do Sul-SP, 1998). Eu matei Paolo Rossi Literatura fantástica. Aquele típico gênero de narrativa que se caracteriza pela intrusão brutal do mistério dentro dos quadros da vida real, nas palavras do crítico literário francês Jean-Jacques Ampère. Nessa aqui, que toma o futebol como tema de incursão, o narrador conta uma história de mil peripécias em que se envolve também como personagem para corrigir o curso da história e impedir a derrota do Brasil para a Itália na Copa da Espanha, em 1982. O caso em tela – aparecem na trama telas de TV, cartões magnéticos, artefatos eletrônicos de teletransporte etc – é o da utilização criminosa de uma máquina do tempo que permite idas e vindas ao passado e com isso a transformação de personagens da historia neles 363 mesmos em diferentes momentos de suas vidas, conforme o desígnio que lhe atribui a finalidade funcional do conto. Não se está entendendo nada? Pois o diálogo, a seguir, do narrador com um personagem que é policial da Intempol (isso mesmo: Intempol é a polícia internacional do tempo), talvez esclareça alguma coisa: “– Desculpa, Seu Anderson, mas eu não estou entendendo muita coisa, não. O que é CET? E de onde eu fui eliminado mesmo? - CET é o continuum espaço/tempo. Você bagunçou com ele matando Paolo Rossi e fazendo a seleção brasileira ganhar o tricampeonato em 82”. Todo brasileiro sabe muito bem quem é esse tal de Paolo Rossi e o estrago que ele fez em nossos corações e mentes ao marcar os três gols da vitória da Itália sobre o Brasil (talvez a melhor seleção de futebol que o pais já teve, ao lado do time tricampeão em 1970) na Copa da Espanha, quando perdemos por 3 a 2 em jogo que bastava um empate simples para a nossa classificação para as semifinais. Quanto a saber o resto, que se vá à leitura completa desta história curta de futebol que mescla os mistérios do jogo com os mistérios da ficção científica e em que a imaginação mirabolante do autor, temperada com rasgos de saudosismo, numa incursão literal em busca do tempo perdido, inusitada e menos poética – embora mais objetiva e coerentemente prosaica –, encena literariamente o desejo de retorno do recalcado com o que o psiquismo da nação futebolística brasileira possa saudavelmente se confrontar, para o bem do futebol e para o bem da literatura. Bem a exemplo do que já fizera o cinema brasileiro ao glosar motivo parecido no curta-metragem Barbosa, produzido em 1988 e dirigido pelos diretores gaúchos Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado, curiosamente também baseado num conto de futebol: “O dia em que o Brasil perdeu a Copa”, do jornalista e escritor Paulo Perdigão – ver pág. 364. 4.4.1.68 Paulo Bentacur Paulo Roberto Ribeiro Bentancur nasceu em Santana do Livramento (RS), em 20 de agosto de 1957. É escritor, poeta e crítico, praticando diversos gêneros, do infanto-juvenil à poesia. Foi editor da Imprensa Oficial do estado do Rio Grande do Sul (2000-2002), quando, junto com o artista gráfico Antonio Henriqson, editou a revista cultural VOX XXI e foi ainda coordenador do Livro e Literatura da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre. Teve contos publicados na Argentina e na Itália. Trabalhou durante 20 anos em diversas editoras como revisor, preparador de originais, tradutor do espanhol e editor assistente. Publicou, entre outros, os seguintes livros: Instruções para iludir relógios 364 (contos/crônicas); Frio (contos); Bodas de osso (poesia) e A solidão do Diabo (contos). A história curta, É só dar a saída, está publicada na coletânea, Meia encarnada, dura de sangue: literatura e esporte, organizada pelo jornalista Ruy Carlos Ostermann, tendo saído pela editora Artes e Ofícios, de Porto Alegre, em 2001. É só dar a saída História que narra em plena prosa a poesia contida nas peladas de futebol, resultado da gratuidade com que furtiva e aleatoriamente vão se formando os times adversários para os embates onde que mais do que os resultados de vitória ou derrota importa mesmo é o prazer do jogo em si, na sua realização lúdica e gratificante. Neste caso, nos é contado o episódio das circunstâncias da formação e realização de uma pelada de futebol de salão em que um grupo de rapazes resolve enfrentar um time já feito e habituado às pelejas dos jogos dos fins de semana num tal Ginásio Dr. Anthero Luz. Trata-se do Mandinga, respeitável equipe de pelada de futsal que é desafiada por um grupo formado ao sabor das circunstancias mas que, talvez por isso mesmo, consegue-lhe uma derrota por 5 a 3. “Tem homem aí por perto? Homem mesmo, isto é, macho, não homem no sentido de ser humano – se bem que atualmente até mulher está encarando... Tem homem? Tem? Quantos? Menos de 11? Então é só ver os cinco de olho mais vidrado e ir para a quadra. Vai ter futsal daqui a alguns minutos”, anuncia o narrador da história e da partida que vai começar. Um a um os jogadores vão sendo elencados até que de repente: “Alguém bate na bola. Alguém recebe. É o jogo, tensão e prazer”. Segue, pormenorizada, a descrição da partida e de seus personagens; as motivações e os perfis de cada jogador; os lances e momentos cruciais do jogo e do encontro que se prolonga para além da quadra; a sociabilidade que o futebol cria e que faz dele muito mais do que um esporte apenas, no sentido técnico do termo. Assim, por instaurar no leitor a perspectiva da gratuidade com que eventualmente é possível se levar a vida em frente, como se um jogo ela fosse – um jogo em que perder ou ganhar não importasse -; uma partida em que o mais importante é a disputa em si e não os seus resultados contábeis, essa história tem o condão de enfatizar que para isso – para tudo isso – só basta apenas nos juntarmos uns aos outros com uma bola, e dar a saída. 4.4.1.69 Paulo Perdigão 365 Paulo Perdigão nasceu no Rio de Janeiro em 1939 e faleceu na mesma cidade em 31 de dezembro de 2006. Era crítico de cinema, função que exerceu durante muito tempo nos principais órgãos de imprensa do país, e especialista em Jean-Paul Sartre e no existencialismo. Traduziu para o português a maior obra de Sartre, O ser e o nada, e escreveu um livro de interpretação sobre o filósofo intitulado, Existência e liberdade: uma introdução à filosofia de Sartre (1995). Escreveu também um livro sobre seu filme de cabeceira, Shane – Os brutos também amam, de George Stevens (Shane, Rocco, 2002) e foi programador de filmes da TV Globo. Interessou-se muito pelo rádio e deixou um trabalho muito engraçado, e denso, sobre o programa humorístico PRK-30, além de também escrever um livro sobre o assunto: No ar: PRK-30 (Casa Ada Palavra, 2003). O conto, O dia em que o Brasil perdeu a Copa, foi inicialmente publicado no seu livro, Anatomia de uma derrota, mas está também incluso na coletânea, Livro Bravo! Literatura e futebol, organizada por João Gabriel de Lima, e publicada em 2010 pela Editora Abril, de São Paulo. O dia em que o Brasil perdeu a Copa Conto em que o poder criador da literatura, os dispositivos conceituais da psicanálise e os mecanismos imaginativos da ficção se juntam para formar um entretecido de sugestão cujo objetivo é revelar ao leitor uma experiência traumática vivida por um garoto de 11 anos quando este assistiu, também sob os olhos incrédulos de uma multidão de mais de 200 mil pessoas, a derrota do Brasil para o Uruguai, ocorrida no dia 16 de julho de 1950, na Copa do Mundo realizada no Brasil, em pleno estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro. A tal derrota fez com que o Brasil perdesse a Copa em casa, ficando o título para o Uruguai e deixando – aquela experiência traumática – uma profunda marca no psiquismo emocional do personagem principal da história cuja razão de ser se assenta nas circunvoluções e peripécias que ele cria já adulto, um homem feito, para retornar no tempo e reviver – ou melhor: rever – como que num ritual de purgação, a situação que ele acredita ter sido a responsável pela derrocada do Brasil naquele campeonato mundial de futebol. Tal situação é a culpa que ele carrega pela existência afora de se achar o responsável pela distração do goleiro Barbosa no exato momento em que Ghiggia chuta a bola em direção à meta brasileira, marcando o segundo gol uruguaio e decretando para sempre a perda daquele título mundial que a imprensa de todo o mundo já creditava ao Brasil, pela sua insofismável superioridade técnica ante os adversários que enfrentara. De posse de uma máquina do tempo, o personagem-narrador dessa história retorna ao Maracanã e ao ano de 1950 [“– Pois, na dolorosa viagem ao fundo de minha 366 neurose, descobri por que no dia 16 de julho de 1950 comecei a morrer em vida”, diz ele] para provar a si mesmo que não, [“O Uruguai não derrotou o Brasil na Copa de 50. Eu derrotei o Brasil! Eu, somente eu, fui o responsável pelo gol de Ghiggia”], conclui. Narrada em primeira pessoa numa prosa direta e confessional, toda essa narrativa tem como ponto de cúmulo do enredo, portanto, o momento em que, assustado com um suposto grito que dera aquele garoto de 11 anos, Barbosa se distrai num lapso o suficiente para que lhe fosse impossível salvar o gol. É esse fato que pesará para sempre na consciência traumática desse torcedor em particular que, agora travestido de narrador literário, demonstra, com essa sua história, que o futebol, muito mais que um jogo, é em si mesmo um rito e uma magia através dos quais pode- se viver – e reviver, sempre, como representação –, ao seu tempo particular e específico, as experiências de glória e de frustração que, amiúde, marcarão a nossa vida. 4.4.1.70 Plínio Marcos Plínio Marcos de Barros nasceu em Santos, a 29 de setembro de 1935, e morreu em São Paulo, em 19 de novembro de 1999. Foi um grande escritor brasileiro e autor de inúmeras peças de teatro, escritas principalmente na época da censura. Foi também ator, diretor e jornalista. Na década de 1980, época da censura à liberdade de expressão feita pelo governo militar e também sua fase mais produtiva, Plínio Marcos viveu sem fazer concessões, sendo intensamente produtivo e sempre norteado pela cultura popular. Escreveu nos jornais Última Hora, Diário da Noite, Guaru News, Folha de S. Paulo e Folha da Tarde e também na revista Veja, além de colaborar com diversas publicações, como Opinião, O Pasquim, Versus, Placar e outras. Recebeu os principais prêmios nacionais em todas as atividades que abraçou em teatro, cinema, televisão e literatura, como ator, diretor, escritor e dramaturgo. Esse seu conto de futebol, O suborno, integra a coletânea, 22 contistas em campo, organizada por Flávio Moreira da Costa e publicada no Rio de Janeiro, pela Ediouro, em 2006. O suborno Este é um típico conto de situação. Essa, entendida naquela perspectiva de que “o conto tende a cumprir-se na visada intensa de uma situação, real ou imaginária, para a qual convergem signos de pessoas e de ações e um discurso que os amarra”, segundo a conhecida definição do crítico Alfredo Bosi (1997b, p. 8). Precisamente, esse é o caso dessa narrativa em que avulta o seu personagem central: um jogador de futebol experiente e já veterano, que está 367 disputando a segunda divisão do futebol brasileiro e que por se ver imerso em um episódio de suborno, é obrigado a não marcar nenhum gol na partida final do campeonato da série que disputa, quando é levado a cobrar um pênalti marcado aos 40 minutos do segundo tempo por um juiz também suspeito de dirigir o resultado da partida. Drama de consciência, reavaliação do ethos pessoal que orientou toda a sua carreira até então e o enfrentamento de dilemas éticos são os elementos que compõem a as ocorrências sobre as quais se erige esta estória curta em que os recursos estilísticos da repetição, reiteração e redundância retórica – a figurar linguisticamente a intensidade gradativa do drama interior do personagem protagonista –, dão o tom da performance enunciativa de um narrador onisciente e elucidativo que, também a partir de uma privilegiada situação angular, dimensiona toda a história. 4.4.1.71 Rachel De Queiroz Rachel de Queiroz nasceu em Fortaleza (CE), em 17 de novembro de 1910, e faleceu no Rio de Janeiro (RJ) em 4 de novembro de 2003. Estreou nas letras em 1927, com o pseudônimo de Rita de Queiroz, publicando trabalho no jornal O Ceará, de que se tornou afinal redatora efetiva. Em fins de 1930, publicou o romance O quinze, que teve inesperada e funda repercussão no Rio de em São Paulo. Com vinte anos apenas, projetava-se na vida literária do país, agitando a bandeira do romance de fundo social, profundamente realista na sua dramática exposição da luta secular de um povo contra a miséria e a seca. Cronista emérita, publicou mais de duas mil crônicas, cuja seleta propiciou a edição dos seguintes livros: A donzela e a moura torta; 100 Crônicas escolhidas; O brasileiro perplexo e O caçador de tatu. No Rio de Janeiro, onde passou a residir desde 1939, colaborou no Diário de Notícias, em O Cruzeiro e em O Jornal. Tem duas peças de teatro, Lampião, escrita em 1953, e A Beata Maria do Egito, de 1958, laureada com o prêmio de teatro do Instituto Nacional do Livro, além de O padrezinho santo, peça que escreveu para a televisão, ainda inédita em livro. No campo da literatura infantil, escreveu o livro O menino mágico, a pedido de Lúcia Benedetti. A narrativa de futebol intitulada, Amistoso, também faz parte da coletânea, 22 contistas em campo, organizada por Flávio Moreira da Costa e publicada pela Ediouro, do Rio de Janeiro, em 2006. Amistoso 368 O futebol como acontecimento festivo e pitoresco, pretensamente de congraçamento entre seus praticantes e assistentes, como parece querer revelar o título do próprio conto, é o tema desta narrativa que, não obstante – e para reafirmar a natureza da literatura como forma de conhecimento reveladora de aspectos inusitados da realidade experiencial –, se empenha em contar “o outro lado da história”. Para isso, em vez de focar os aspectos gerais que envolvem uma partida amistosa entre times de localidades distintas do interior do Brasil, o narrador em terceira pessoa dessa história curta direciona seu olhar para um episódio em particular que nada tem a ver com o futebol em si, mas que, justamente para evidenciar o caráter de centralidade cultural desse esporte no País, a ele é relacionado. Isso é operado de forma tal que a tecitura ficcional que apanha os aspectos mais comezinhos da vida interiorana, nesta história, é a mesma que capta o lado típico, mas sempre surpreendente do próprio jogo. 4.4.1.72 Renard Perez Renard Perez nasceu em Macaíba (RN), em 3 de janeiro de 1928, e é um escritor brasileiro que dedicou sua carreira, sobretudo, aos gêneros do conto e da novela, embora tenha se aventurado também no romance e no ensaio crítico. Estreou com O beco em 1952. Sob a liderança de Dinah Silveira de Queiroz, integrou o grupo Café da Manhã, ao lado de Fausto Cunha, Samuel Rawet, Luis Canabrava, Daniel Dantas entre outros escritores. Advogado de formação, Renard dedicou-se principalmente ao jornalismo cultural. Passou por diversos jornais e revistas, dentre eles o Correio da Manhã, Revista da Semana, Revista Branca, de Saldanha Coelho, revista Manchete e jornal Última Hora, tendo sido ainda redator- chefe da revista Literatura. Em setembro de 2003, recebeu a Medalha Antônio Houaiss, oferecida pelo Sindicato dos Escritores do Estado do Rio de Janeiro (SEERJ) em sua sede, na Casa de Cultura Lima Barreto, pelos serviços prestados à literatura brasileira. A narrativa de futebol, Copa do Mundo, encontra-se publicada na reunião de contos sobre o tema intitulada, Contos brasileiros de futebol, organizada em 2005 por Cyro de Matos, sob os auspícios da Editora LGE, de Brasília. Copa do mundo Pequena história, que relembra, em ritmo e clima de ressaca, a primeira conquista de um título mundial de futebol pelo Brasil, na Copa de 1958, realizada na Suécia. O texto é todo um registro nauseado das lembranças matutinas de um personagem que acorda ressacado dos 369 excessos de uma festa junina a que tinha ido na noite anterior, e que se vê, agora, conduzido pela ambiência festiva e patriótica em seu entorno, diante da circunstância de enfrentar (assistir, ouvir) ou não, pelo rádio, a partida final da Copa contra a própria Suécia. Este é um daqueles contos através dos quais se opera o encontro da consciência com a memória do narrador para disso resultar uma atmosfera intimista que o relato passa a narrar. 4.4.1.73 Ricardo Ramos Ricardo de Medeiros Ramos nasceu em Palmeira dos Índios (AL) em 4 de janeiro de 1929 e morreu no Rio Grande do Sul em 20 de março de 1992. Era filho do escritor Graciliano Ramos e também tornou-se, como o pai, jornalista, contista, novelista e romancista. Dentre a ampla diversidade de expressão de sua obra, que abarca vários gêneros da literatura, destacam-se, entre outros, os seguintes livros: Tempo de espera (1954 – contos); Os caminhantes de Santa Luzia (1959 – novela) e os romances, Memórias de setembro (1968) e As fúrias invísíveis (1974). Ramos também atuou como organizador de várias antologias de contos de escritores brasileiros, a exemplo da reunião de textos sobre futebol, intitulada, A palavra é... futebol, editada pela editora Scipione, de São Paulo, em1990. Seu conto, Casados x Solteiros, no entanto, foi publicado na antologia, Onze em campo e um banco de primeira. Cf. COSTA, Flávio Moreira da; MARTINS, Ana Maria... [et al.]. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1998. Casados x Solteiros Conto cuja representação literária de que trata se pauta mais uma vez por apresentar o paradoxo fundamental da lógica constitutiva dos esportes em geral, que é a faculdade de separar para unir. Isto é: criar-se uma oposição básica sobre a qual se vai dar uma disputa (fundamento da resolução sublimada dos conflitos humanos) e servir-se dela para posteriormente conciliar-se de um lado e de outro a vitória com a derrota. Nesta narrativa, a encenação social desse pressuposto acontece por meio de uma partida de futebol envolvendo as equipes dos homens solteiros contra os casados. Na história, escrita numa prosa de ritmo irregular, como o do próprio jogo que descreve (às vezes rápido e sufocante, às vezes extenuado e modorrrento, com o que envolve os jogadores e, por extensão, o leitor), o autor tenta mostrar que no caso, uma confraternização de uma empresa em que todos trabalham, mais importante que o jogo da bola em si – que os homens disputam como se fosse um 370 embate em que empenham e esgotam a própria força de vontade – é o jogo ritual que ali se trava, na afirmação da vitória social de todos (o bom clima relacional da companhia) pelo sacrifício simbólico de alguns; afinal, os solteiros inapelavelmente ganham a partida pelo placar de 3 a 0. 4.4.1.74 Ricardo Soares Ricardo Soares nasceu em São Pauo, capital. É escritor, jornalista, roteirista e diretor de TV. Já dirigiu documentários para a TV Cultura, programas para a SESC TV e edita a revista Raiz,sobre cultura brasileira. É também conselheiro editorial e colunista da revista Rolling Stone e um dos criadores do programa Metrópolis da Tv Cultura do qual fui o primeiro apresentador. Foi repórter do Caderno B do Jornal do Brasil e tomou parte da equipe fundadora do Caderno 2 do Estadão em 1986. No mesmo jornal foi cronista de 1993 a 1998. Desse ano até 2001 foi cronista do Jornal da Tarde. Dirigiu as redações das revistas TRIP e da extinta HV. De 1998 a 2005 dirigiu, escreveu e apresenteou "Literatura" e "Mundo da Literatura", programas sobre o universo literário que continuam a ser reprisados pelo SESC TV. É co-autor das peças "Olho da Rua" e "Quatro Estações".Tem vários livros publicados como Cinevertigem e os infanto-juvenis Valentão, o Brasil é feito por nós?; Dia de submarino e Falta de ar. O conto de futebol, Família, futebol e regatas, consta da coletânea 11 Histórias de futebol, da Editora Nova Alexandria, de São Paulo, que saiu em 2006. Família, futebol e regatas As árduas discussões à mesa de almoço dos domingos, opondo um genro a um sogro, são o motivo para que o filho de um e neto do outro conte as suas lembranças acerca da Copa do Mundo de 1970, e também de um Brasil governado por uma ditadura militar que se instalara no País apenas seis anos antes da conquista do seu terceiro título mundial de futebol. Transformado pelo signo lingüístico numa figura só, o narrador autodiegético dessa história, aproveita-se da condição privilegiada de membro de uma família de origem portuguesa típica de São Paulo, e, do alto de sua lente de observação de adolescente entre adultos, tece considerações pessoais sobre a relação entre política, futebol e cotidiano, o que acaba por desvendar certos aspectos gerais ainda hoje não tão bem resolvidos da formação social brasileira. 371 4.4.1.75 Rubem Fonseca José Rubem Fonseca nasceu em Juiz de Fora (MG), em 11 de maio de 1925. É formado em Direito, tendo exercido várias atividades antes de dedicar-se inteiramente à literatura. Em 31 de dezembro de 1952 iniciou sua carreira na polícia, como comissário, no 16º Distrito Policial, em São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Aluno brilhante da Escola de Polícia, não demonstrava, então, pendores literários. Ficou pouco tempo nas ruas. Foi, na maior parte do tempo em que trabalhou, até ser exonerado em 06 de fevereiro de 1958, um policial de gabinete. Cuidava do serviço de relações públicas da polícia. Em julho de 1954 recebeu uma licença para estudar e depois dar aulas sobre esse assunto na Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. Escolhido, com mais nove policiais cariocas, para se aperfeiçoar nos Estados Unidos, entre setembro de 1953 e março de 1954, aproveitou a oportunidade para estudar administração de empresas na New York University. Após sair da polícia, Rubem Fonseca trabalhou na Light até se dedicar integralmente à literatura. É autor de uma obra extensa e vigorosa, principalmente na forma conto, gênero que cultiva com mais assiduidade. Escreveu, entre outros, os seguintes livros: Os prisioneiros (contos, 1963); A coleira do cão (contos, 1965); Lúcia McCartney (contos, 1967); O cobrador (contos, 1979) e os romances, A grande arte (1983); Bufo & Spallanzani (1986) e Vastas emoções e pensamentos imperfeitos (1988). O conto de futebol, abaixo, inicialmente publicado no seu livro, Feliz ano novo (1975), integra a coletânea, 22 contistas em campo, organizada por Flávio Moreira da Costa e publicada pela Ediouro, do Rio de Janeiro, em 2006. Abril, no Rio, em 1970 O sonho de ascensão na carreira de um jovem jogador de futebol do subúrbio do Rio de Janeiro e a sua percepção inconsciente de haver certo heroísmo abstrato ligado ao imaginário popular dos candidatos ao estrelato da bola, compõem o arcabouço temático deste conto narrado em primeira pessoa e em que a minúcia investigativa do detalhe (no caso, a inferência do personagem-narrador de que o tipo de cuspe expelido pelo jogador durante os treinos e jogos é índice seguro de sua forma física) constitui o mote simbólico através do qual a narrativa revela as potencialidades estético-especulativas da representação literária. Aspirações de mobilidade social, ingenuidade e certa pureza na leitura do universo social do futebol por parte do seu personagem central, bem como o indisfarçável propósito autoral de 372 questionar alguns estereótipos colados à representação cultural do jogo da bola aos pés no Brasil, são outros detalhes de conteúdo que mobilizam essa história ficcional de pegada extremamente realista, traço que caracteriza, aliás, a literatura sempre contundente de Rubem Fonseca. 4.4.1.76 Salim Miguel Salim Miguel nasceu em Kfarsouroun, Líbano, em 30 de janeiro de 1924, mas há muito tempo reside em Florianópolis (SC). É romancista, contista, poeta, ensaísta crítico e jornalista. Integrou o movimento modernista catarinense Grupo Sul, nas décadas de 1940 e 1950. Entre os seus romances, destacam-se NUR na escuridão em quinta edição pela Record, e A voz submersa – este último, reeditado em 2007 pela mesma editora. O livro mais recente desse autor é o volume O sabor da fome, coletânea de contos que promove a união dos seus dois extremos estilísticos: uma prosa mais solene, rígida, e uma escrita ágil, que reproduz a fala coloquial dos seus personagens. Dessa segunda fase é, com efeito, esse seu conto de futebol, O gol, que está incluso na coletânea, Contos brasileiros de futebol, organizada em 2005 por Cyro de Matos, sob os auspícios da Editora LGE, de Brasília. O gol Texto de cunho pitoresco que narra, no provável tempo da própria jogada, o momento crucial do futebol: um gol. Narrativa curtíssima, portanto, e sem muitas implicações de caráter estético a não ser o válido intuito de contar ficcionalmente os quinze minutos de glória de um personagem até então desconhecido, mas que entra em campo e faz o que se espera (ou talvez o que não se espera) dele, o filho do seu Zé. 4.4.1.77 Sérgio Capparelli Sérgio Capparelli nasceu em Uberlândia, em 11 de julho de 1947. É escritor de literatura infanto-juvenil, jornalista e professor universitário, formado em jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Fez doutorado em Comunicação pela Universidade de Paris e pós-doutorado pela Universidade de Grenoble, na França. Trabalhou durante muitos anos como repórter dos jornais Zero Hora e Folha da Manhã, ambos de Porto Alegre. Foi professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul até se aposentar. Tem 373 mais de trinta livros publicados, entre eles, Os meninos da Rua da Praia; Boi da cara preta; Vovô fugiu de casa; 33 ciberpoemas e uma fábula virtual; As meninas da Praça da Alfândega e O velho que trazia a noite. Além de uma obra dedicada a crianças e adolescentes, Sérgio Capparelli tem vários estudos publicados sobre jornalismo e comunicação de massa. É autor do ensaio Televisão e Capitalismo no Brasil, com o qual ganhou o prêmio Jabuti em Ciências Humanas, em 1983. O conto, O batedor, baixo, encontra-se publicado na coletânea de textos sobre esportes, Meia encarnada, dura de sangue: literatura e esporte, organizada pelo jornalista Ruy Carlos Ostermann, que saiu pela editora Artes e Ofícios, de Porto Alegre, em 2001. O batedor Texto sublime, composto em tom de conversa informal, segredinho, em que um jogador de futebol de várzea conjectura, filosofa, lá com seus botões, sobre a arte de cobrar pênaltis e fazer gols bonitos. O ambiente de tais cismas é um campinho sujo e abandonado onde ele se pega, sozinho, a chutar bolas para um goleiro imaginário, já que seus amigos de peladas tinham viajado de férias. O mote da conversa de si pra si é a descoberta de que a bola é como um passarinho pedindo sempre pra levantar vôo. “Quando bato, bato seco e de peito de pé, pra bola cantar melhor. Outro dia, na marca do pênalti, me veio a certeza de que bola é passarinho, pedindo um impulso pra levantar vôo. Olhei prum canto do gol, pro outro, e paf, aquela verdade que ninguém consegue desmentir: é passarinho. Desde então passo dias ensinando a bola a cantar”. A seqüência da narrativa revela que tal arte ele aprendera com um amigo e ex-goleiro que agora se tornara centroavante, o Batata, que conhecia os segredos tanto de defender quanto de marcar gols bonitos. O propósito da história parece ser o de revelar, no futebol, a sua potencialidade inequívoca de jogo de correlação metafórica com outros aspectos da realidade que nos circunda, nem sempre percebidos pelas simples emanações de si mesmos. A poesia das coisas – parece nos querer dizer essa história – está em olhá-las com gratuidade e discernimento, num gesto de comunhão com os objetos, como a atitude desse jogador que ao bater um pênalti, não apenas chuta a bola, mas a faz voar como se um pássaro ela fosse. “Enquanto houver um pedaço de grama, um quadradinho de terra, bato, bato seco e de peito de pé, para a bola cantar melhor. E sempre, na cabeça, a certeza que a bola é passarinho, pedindo um impulso pra levantar vôo. Olho prum canto, olho pro outro, e paf, lá vai ela cantando, na maior das alegrias”, conclui, assim, o narrador-personagem da 374 história, a nos dizer que esta alegria da bola é, no fundo, a nossa própria alegria de quando estamos jogando de forma lúdica. 4.4.1.78 Sérgio Faraco Sérgio Faraco nasceu em Alegrete, no Rio Grande do Sul, no ano de 1940. De 1963 a 1965 viveu na União Soviética, tendo cursado o Instituto Internacional de Ciências Sociais, em Moscou. Mais tarde, no Brasil, bacharelou-se em Direito. Em 1988, seu livro A Dama do Bar Nevada obteve o Prêmio Galeão Coutinho, conferido pela União Brasileira de Escritores ao melhor volume de contos lançado no Brasil no ano anterior. Em 1994, com A Lua com Sede, recebeu o Prêmio Henrique Bertaso, atribuído ao melhor livro de crônicas do ano. No ano seguinte, como organizador da coletânea, A Cidade de Perfil, fez jus ao Prêmio Açorianos de Literatura — Crônica, instituído pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Em 1996, foi novamente distinguido com o Prêmio Açorianos de Literatura — Conto, pelo livro, Contos Completos. Em 1999, recebeu o Prêmio Nacional de Ficção, atribuído pela Academia Brasileira de Letras à coletânea, Dançar Tango em Porto Alegre, como a melhor obra de ficção publicada no Brasil em 1998. Sua obra de ficcional inclui, entre outros, os seguintes títulos: Idolatria (1970); Depois da primeira morte (1974); Doce paraíso (1987) e Doce paraíso(1991). A história curta, Dia dos mortos, também foi publicada no livro, Meia encarnada, dura de sangue: literatura e esporte, organizado pelo jornalista Ruy Carlos Ostermann, tendo saído pela editora Artes e Ofícios, de Porto Alegre, em 2001. Dia dos mortos Conto que toma o futebol como motivo para discorrer sobre aspectos culturais ligados ao fato-limite definidor da condição humana: a morte, considerada esta tanto do ponto de vista material (o fim da vida) quanto simbólico (a perda momentânea ou definitiva de algum valor essencial à integridade subjetiva com a qual, através dos sentidos que atribuímos às coisas, justificamos a nossa existência no mundo). Assim, a derrota do Brasil para o Uruguai na partida final da Copa de 1950, no Maracanã, por improvável e objetivamente injusta, é um episódio tomado, na narrativa, como alegoria para a ocorrência de uma morte simbólica súbita da nação brasileira, uma vez que naquele dia, segundo o narrador, o brasileiro bruscamente percebeu “que a própria vida era um erro que só agora as pessoas descobriam, sem querer acreditar”. Partindo da angulação particularista (a morte simbólica da nação) para um enfoque 375 mais singularista da questão, a diegese narrativa funde neste primeiro, outro episódio em que um torcedor morre (é assassinado) ao tentar solidarizar-se com seu semelhante por razões humanitárias. A elaboração dos sentidos de morrer material ou simbolicamente, em primeiro plano, e os problemas daí decorrentes quando materializados no enfrentamento com o outro estranho (ou desconhecido; o que a partida final do Maracanã simboliza), num segundo plano, constituem, enfim, a plataforma de encenação igualmente simbólica de que esta narrativa ficcional serve-se para glosar o futebol primeiro como pretexto e, depois, como texto estético propriamente dito. 4.4.1.79 Sérgio Sant´Anna Sérgio Sant'Anna nasceu no Rio de Janeiro, em 30 de outubro de 1941. É contista, romancista e poeta. Sua obra é notória pelo caráter experimental, abordando temas urbanos de várias formas diferentes, algumas bastante transgressivas e inovadoras. Embora já tenha publicado poesia, peças de teatro, novelas e romances, Sant’anna se considera primeiramente um contista. Seu romance mais célebre é As Confissões de Ralfo, publicado em 1975. O livro é a história de um escritor que decide escrever uma "autobiografia imaginária", narrando vários fatos extraordinários numa sucessão inverossímil. Além de O sobrevivente (1969), publicou Notas de Manfredo Rangel, repórter – A respeito de Kramer (1973), Simulacros (1977), O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro (1982), Amazona (1986), Senhorita Simpson (1989), Breve história do espírito (1991), O monstro (1994) e Contos e novelas reunidos (1997). Ganhou por duas vezes o prêmio Jabuti e também, por duas vezes, foi agracia do com o prêmio Status de Literatura. As narrativas, abaixo, No último minuto e Na boca do túnel, foram publicadas, respectivamente, nos livros, Contos brasileiros de futebol, editado em 2005, por Cyro de Matos, sob os auspícios da Editora LGE, de Brasília, e 22 contistas em campo, reunião de textos organizada por Flávio Moreira da Costa e publicada pela Ediouro, do Rio de Janeiro, em 2006. No último minuto Conto muito inventivo que revela particular domínio das formas de narrar em ficção e que se debruça sobre aspectos relevantes do futebol quando entendido como metáfora lingüística extensiva à vida e a alguns dos seus aspectos mais essenciais. O elemento do imponderável, presente tanto na vida quanto no jogo; a força das circunstâncias na definição 376 de situações que parecem revelar certa autonomia dos objetos sobre os seres; a impotência destes diante de fatos consumados que informam a existência; a sensação de um tempo decisivo na configuração de estados sem volta na permanente mudança dos entes e das coisas são, enfim, alguns desses aspectos colocados em pauta por esta história. Na boca do túnel Narrativa refinadíssima em que um técnico de futebol, transfigurado em narrador de primeira pessoa, faz apuradas reflexões sobre a filosofia do jogo da bola e da própria vida, num sentido mais geral, quando esta e este, por razões de contingências especiais, formam um conjunto de fatores sobre os quais se fundem para sustentar uma existência particular: no caso, a desse treinador que assiste a derrota por 7 a 1 do seu time de subúrbio frente a um dos grandes clubes do futebol carioca, no momento em que pressente que está prestes, pela chegada da velhice (simbolizada pelos números acachapantes do placar inexorável e injusto), a abandonar não só o campo do jogo, mas, também, o da própria existência que se esvai. O tempo da história é o do próprio jogo – desde a preleção para os seus jogadores no vestiário até o seu final, com o Maracanã já às escuras – durante o qual a palavra reflexiva e contundente de um senhor já experimentado na arte de comandar técnica, tática e disciplinarmente grupos heterogêneos de homens em interação não controlável de todo, conjectura sobre o sentido ou inutilidade da vida, e, por extensão do próprio jogo de futebol que a ele lhe dar sentido. Além de – por uma atitude reflexa – refletir sobre a própria validade da reflexão, o que, neste caso, transformada em literatura, implica o próprio papel dessa arte como forma de conhecimento humano. Um narrador que muito bem podia se definir assim, numa operacional paráfrase ao poeta Fernando Pessoa: “O que em mim conta, está pensando!” 4.4.1.80 Suzana Montoro Suzana Montoro nasceu em São Paulo em 1957. É formada em Psicologia em 1979, atuando na área como psicoterapeuta clínica e, paralelo a isso, desenvolve a atividade de escritora. Escreve principalmente literatura infantil e juvenil, segmentos em que já publicou, entre outros, os livros, O menino das chuvas (1995) e Em busca da sombra (1996), além da reunião de contos seus, intitulada, Exilados (2003), esta, sim, uma obra para o segmento de leitores adultos. A narrativa de futebol Ninguém morre rindo, foi publicada na 377 coletânea, Contos brasileiros de futebol, organizada em 2005, por Cyro de Matos, e publicada pela Editora LGE, de Brasília. Ninguém morre rindo Narrativa bem articulada que se desenvolve em dois planos distintos: um que conta a visita de um amigo a uma amiga numa tarde de domingo, e outro que conta as circunstâncias da morte do irmão desse amigo durante uma partida de futebol, fato que sugere ter alimentado ainda mais os vínculos dessa amizade forte e, ao que parece, profundamente visceral. De escrita segura – de quem entende do traçado –, esse é mais um conto que põe em cena a representação literária sobre futebol feita por mãos femininas, o que lhe garante um charme a mais na sua leitura e fruição. 4.4.1.81 Valesca de Assis Valesca de Assis é natural de Santa Cruz do Sul (RS), tendo nascido em 14 de outubro de 1945. Estreou como escritora em 1990, com a publicação de A valsa da medusa. Publicou ainda os romances, A colheita dos dias (1992) e Harmonia das esferas (2000), com o qual ganhou o Prêmio da APCA, Associação Paulista de Críticos de Artes, do mesmo ano, além de Todos os meses (2002) em que consta seu conto de futebol, abaixo. Participou, também, de diversas antologias de contos, dentre elas: A cidade de perfil (1994); Nós, os teuto-gaúchos (1996), Crônica & Cidade (1997); O livro das mulheres (1999); Contos de Bolsa (2006); Contos d’lgibeira (2007); Antologia dos contistas bissextos (2007) e Meia encarnada, dura de sangue, organizada por Ruy Carlos Ostermann e publicada pela editora Artes & Ofícios, em 2001, na qual encontra-se também publicado o seu conto de futebol intitulado, A mulher do zagueiro central, abaixo. A mulher do zagueiro central Este conto-crônica sobre futebol tem, acima de tudo – além de paralelamente formalizar com eficiência, em termos de registro literário, o tema do olhar feminino sobre a visão masculina acerca de certos aspectos de um mundo ainda fervorosamente machista, e que relega a mulher –, o mérito de exemplificar como os jogos (aqui, particularmente, os casos do futebol e do torneio verbo-literário) se estruturam no mais das vezes sobre a operação sinuosa 378 de pertinentes estranhamentos. Isso, ao que parece, por conta da condição de narratividades potenciais de caráter comunicativo e estético que os jogos suscitam. A situação aqui é o deslocamento de um elemento intrínseco ao âmbito do jogo da bola (um episódio da vida pessoal do zagueiro central, Assunção, do time do Juventude Futebol Clube da localidade gaúcha de Coroa de Esmeraldas) para o âmbito extrínseco da vida social e familiar. A narrativa literalmente mistura, a partir da glosa de um episódio que une esses dois âmbitos – a costumeira agressão verbal e física a sua mulher, que o tal zagueiro cometia sempre que a via de vestido colado no corpo a assistir os jogos de que participava – dois campos diversos da vivência experiencial dos seres humanos embora nem tão distintos assim: “Então, num gesto tardio, ela protegia o rosto com as mãos. O zagueiro central dava meia-volta e retornava ao campo. Se a partida tinha caráter oficial, o juiz expulsava o atleta e o Juventude Futebol Clube, desconcentrado, perdia o jogo. Revoltados, e não podendo bater na mulher do Assunção, os torcedores caíam em cima do árbitro, acusando-o de ladrão, cornudo e covarde, sendo, que, na maioria das vezes, só o primeiro insulto lhe fizesse justiça”. Como se vê, esse deslocamento da ação do zagueiro central – a costumeira cena de agressão – e do sentido desse deslocamento para expectativas, por parte da torcida, em direção ao árbitro (instância real e simbólica de julgamento e de administração da justiça) cria aqui o estranhamento funcional que quase sempre alimenta de informação criativa as boas narrativas literárias. Esta história de autoria da escritora gaúcha, Valesca de Assis, resume muito bem um momento feliz desses casos. 4.4.1.82 Wladimir Catanzaro Wladimir Catanzaro nasceu em São Paulo em 1950 e é contista, dramaturgo e professor universitário. Formado em Sociologia, tem pautado sua carreira por uma paixão dividida entre a educação e a literatura, campo a que se dedica escrevendo mais assiduamente no gênero conto. Integra várias antologias de histórias curtas, entre as quais se destaca, Assim escrevem os paulistas. Nesse trabalho, Wladimir deu aos textos biográficos de Paulo Pires uma formatação de conto e de crônica fazendo uma ligação das fotos do livro com a poesia de Chico Buarque de Hollanda. Também publicou, em parceria com o fotógrafo, Emídio Luisi, Caixa Populi, uma coleção de cinco volumes sobre as etnias habitantes da cidade de São Paulo. O conto de futebol, A irmão do Biba, está publicado na coletânea sobre o tema, 11 Histórias de futebol, da Editora Nova Alexandria, de São Paulo, que saiu em 2006. 379 A irmã do Biba Um narrador que é ainda garoto, porém exímio jogador de futebol de botão, utiliza-se dessa variante do jogo de futebol como motivo para colocar na pauta das elaborações simbólicas pelo viés da palavra o tema da sempre difícil e árdua iniciação amorosa da fase da adolescência. Em meio aos prazeres e desconfortos típicos deste estado d`alma, esse personagem-narrador da história conta como o jogo da conquista amorosa se reflete nas suas atividades típicas de menino em formação, o que lhe faz perceber que esse dos mais poderosos e importantes afetos humanos implica todos os outros aspectos da vida: do âmbito pragmático e performativo da existência a sua configuração psicológica e emocional. Não é à toa que o elemento lúdico é aqui o liame conceitual que une, na estruturação da narrativa, as instâncias reflexas do jogo do amor com o jogo da bola. 4.4.1.83 Wladir Nader Wladir Nader nasceu na cidade de São Paulo, capital do estado homônimo. É jornalista, escritor e professor de Comunicação da Pontífice Universidade Católica de São Paulo. Tem oito livros publicados entre romances, coletâneas de contos e novelas. Integrou duas antologias, publicadas pela editora Nova Alexandria, a última delas intitulada, Vamos e venhamos, lançada em 2005. A narrativa de futebol, Torcida contra, abaixo, integra a reunião de histórias curtas sobre o tema, intitulada 11 Histórias de futebol, publicada em 2006 pela Editora Nova Alexandria, de São Paulo. Torcida contra Conto de entrecho intrincado e prosa labiríntica em que é narrada e discutida simultaneamente, através do recurso ficcional, a condição geral do torcedor de futebol e o caso específico de um ardoroso e esperto são-paulino que, a partir desse seu ofício das arquibancadas e das ruas, figura a participação concreta, direta e ativa das torcidas no jogo e espetáculo da bola, a ponto de interferir objetivamente nos seus resultados. Imaginação e esperteza no bom sentido (tanto do autor quanto dos seus personagens) são os ingredientes estruturais e de conteúdo que sustentam a união esteticamente feliz entre forma e fundo nesta narrativa que une criatividade autoral e percuciente exploração temática. 380 REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 4. ed. 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