Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Educação Curso de Licenciatura em Pedagogia INGRID DA SILVA FERREIRA ALFABETIZAÇÃO EM QUESTÃO: UM OLHAR SOBRE POLÍTICAS DE ALFABETIZAÇÃO NO BRASIL COM ÊNFASE NOS DOCUMENTOS DA POLÍTICA NACIONAL DE ALFABETIZAÇÃO - PNA (2019) Natal 2020 INGRID DA SILVA FERREIRA ALFABETIZAÇÃO EM QUESTÃO: UM OLHAR SOBRE POLÍTICAS DE ALFABETIZAÇÃO NO BRASIL COM ÊNFASE NOS DOCUMENTOS DA POLÍTICA NACIONAL DE ALFABETIZAÇÃO - PNA (2019) Monografia apresentada ao Curso de Licenciatura em Pedagogia do Centro de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para obtenção do grau de Licenciatura em Pedagogia. Orientador (a): Prof. Dr. Paulo Roberto Lima de Souza. Natal/RN 2020 INGRID DA SILVA FERREIRA ALFABETIZAÇÃO EM QUESTÃO: UM OLHAR SOBRE O DOCUMENTO “POLÍTICA NACIONAL DE ALFABETIZAÇÃO” (PNA) INSTITUÍDA PELO DECRETO Nº 9.765/19 Monografia apresentada ao Curso de Licenciatura em Pedagogia do Centro de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para obtenção do grau de Licenciatura em Pedagogia. Aprovada em: ______/______/______ BANCA EXAMINADORA ______________________________________ Prof. Dr. Paulo Roberto Lima de Souza Orientador UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ______________________________________ Prof.ª Dr. Giane Bezerra Vieira Membro interno UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ______________________________________ Prof.ª Ms. Denise Caballero Membro externo INSTITUTO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR PRESIDENTE KENNEDY AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar agradeço a Deus por, em sua infinita misericórdia e bondade, me conceder a dádiva da vida e todos os demais recursos para construir este trabalho. Por cuidar de mim e dos meus em todo o tempo e em especial neste momento aterrador de pandemia em que, neste dia 17 de julho de 2020, se registram mais de 70.000 mortos. Há muito para agradecer, mas nada a comemorar. Agradeço especialmente ao meu pai, Cristian Ferreira, por todas as batalhas que travou para que eu pudesse estudar, batalhas essas, que as marcas ele traz no corpo e tenho certeza, travaria todas novamente para que eu pudesse chegar até aqui. Agradeço a minha mãe, Maria Lúcia, por me ensinar desde cedo que as mulheres podem ser e fazer tudo que quiserem, podem realizar seus sonhos, podem e devem ser livres, obrigada por lutar comigo todas as batalhas, com todas as suas armas e com toda a sua força. Estendo minha gratidão a minha irmã, Amanda Ferreira e a todas as mulheres de minha família por acreditarem em mim e por me fazerem sentir todo o amor e apoio independente da distância. Agradeço ao meu esposo, Flaviano Lima, por suportar comigo todos os processos e desafios da graduação, incluindo este trabalho, com paciência, amor, companheirismo e compreensão. Seu amor é minha maior conquista. Sou imensamente grata ao meu professor orientador Paulo Roberto Lima de Souza por acreditar nesta pesquisa quando nem eu mesma acreditava ou me sentia capaz de construir. Seu companheirismo e leveza tornaram este trabalho possível e o fez florescer apesar das circunstâncias. Não poderia deixar de agradecer a Universidade Federal do Rio Grande do Norte e a todos os professores do curso de licenciatura em pedagogia que fizeram parte desta primeira etapa acadêmica, pois, se hoje me sinto impelida a tornar o mundo um lugar melhor através de minha atuação profissional é porque vocês me fizeram acreditar que isso é possível. Por fim e não menos importante, agradeço a cada um dos professores que me acolheram nos campos de estágio remunerado e obrigatório, com vocês aprendi a amar a escola e à docência e a expressar esse amor com um trabalho comprometido e estudando sempre para me tornar uma professora cada dia melhor. Estendo minha gratidão a cada um dos alunos que tive e que, com expectativa, espero ter. Nada me preparou para os ensinamentos que me proporcionaram e estar em sala de aula com vocês é frequentemente meu último pensamento antes de dormir. “Tudo o que eu tenho rendo aos Teus pés, a mais ninguém. Te dei meus fracassos e as vitórias te darei também “. (Trecho da canção “Diz” de Gabriela Rocha) RESUMO O presente trabalho tem como objetivo discutir e relacionar a Política Nacional de Alfabetização (2019) com outras três políticas de alfabetização instauradas no Brasil entre 2000 e 2018, sendo o Programa De Formação De Professores Alfabetizadores – Profa - (2001), o Pró-letramento: Mobilização Pela Qualidade Da Educação (2005) e o Pacto Nacional Pela Alfabetização Na Idade Certa – Pnaic (2013). A metodologia da pesquisa foi baseada em uma abordagem qualitativa, de natureza exploratória e a análise documental foi a técnica para construção e análise dos dados. Para fundamentar nossas discussões temos como base as reflexões teóricas de Ferreiro E Teberosky (1999), Lopes E Vieira (2011) e em Soares (2003), dentre outros autores e documentos oficiais. Os resultados desta pesquisa apontam um rompimento, por meio da PNA (2019), com mais de 20 anos de avanços em estudos e concepções progressistas de alfabetização instituídas por meio de políticas e programas anteriores, bem como, revela um enlace com perspectivas empiristas e tradicionais, demonstrando um profundo retrocesso no campo educacional brasileiro. Palavras-chaves: Política Nacional de Alfabetização. Políticas de alfabetização no Brasil. Alfabetização. ABSTRACT This paper aims to discuss and relate the National Policy of Literacy (2019) with other three literacy policies established in Brazil between 2000 and 2018, them being the Literacy Teacher Training Program - Profa (2001), the Pro-Literacying: Mobilization for the Quality of Education (2005) and the National Agreement for the Literacy in the Correct Age - Pnaic (2012). The methodology of this research was based on a quantitative approach and a document analysis was the technique of data analysis. In order to substantiate our debates we have the theoretical reflections of FERREIRO and TEBEROSKY (1999), LOPES E VIEIRA (2011), and in SOARES (2003) The outcome of this research reveal a rupture, through the PNA (2019), with more than 15 years of progress in studies and progressive conceptions of literacy instituted through policies and previous programs, as well as reveals a link with empiricist and traditional perspectives, evincing a deep regression in the educational brazilian field. Keywords: National Policy for Literacy. Literacy policies in Brazil. Literacy. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Avaliação Nacional da Alfabetização - ANA.......................................... 13 Figura 2 - Títulos e a carga horária dedicada ao estudo de cada disciplina.............. 26 Figura 3 - Diferentes níveis de literacia.................................................................. 32 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Programa de Formação de Professores Alfabetizadores - Profa (2001).. 17 Quadro 2 - Pró-Letramento: mobilização pela qualidade da educação...................... 20 Quadro 3 - Objetivos do Pró-Letramento................................................................... 21 Quadro 4 - Concepções do ensino da língua escrita................................................... 23 Quadro 5 - Princípio centrais que orientam a concepção dos cadernos de formação do PNAIC................................................................................................. 25 Quadro 6 - Temas apresentados pelo caderno 2 do PNAIC....................................... 27 Quadro 7 - Teoria de fases do desenvolvimento da leitura e da escrita em sistemas alfabéticos................................................................................................. 33 Quadro 8 - Trechos do Art. 2º do decreto Nº 9765/19................................................ 34 Quadro 9 - Trechos do Art. 3º do decreto Nº 9765/19................................................ 35 Quadro 10 - Trechos do Art. 5º do decreto Nº 9765/19................................................ 35 Quadro 11 - Quatro temas apresentados pelo Caderno do PNAIC............................... 42 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 11 2 RESGATE DE POLÍTICAS ANTERIORES A PNA VOLTADAS À ALFABETIZAÇÃO NO BRASIL...................................................................... 15 2.1 Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – PROFA (2001)................................................................... ................................................. 15 2.2 Pró-letramento: Mobilização Pela Qualidade Da Educação (2005)................ 19 2.3 Pacto Nacional Pela Alfabetização Na Idade Certa - Pnaic (2013).................. 24 3 APRESENTAÇÃO DA POLÍTICA NACIONAL DE ALFABETIZAÇÃO – PNA (2019)..................................................................... 29 5 RESULTADOS E DISCUSSÕES....................................................................... 35 5.1 Uma política, um método!................................................................................... 45 5.2 Letramento ou Literacia?................................................................................... 48 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................. 50 REFERÊNCIAS.................................................................................................. 52 11 1 INTRODUÇÃO As questões relacionadas ao processo de alfabetização de crianças no Brasil, carregam consigo as marcas de um processo desafiador, processo este que abrange aspectos políticos, sociológicos, filosóficos, culturais, econômicos, biológicos, e ainda outros que por questão de tempo não serão evidenciados nesta pesquisa. Como evidenciado no título de nosso trabalho, no caminho que traçaremos para analisar os documentos da Política Nacional de Alfabetização - PNA e as demais políticas vale ressaltar as concepções que os autores desta pesquisa adotam, de forma mais específica, acerca da concepção de alfabetização e letramento: Ao voltar nossos olhares para o cotidiano e para nossa história educacional, a alfabetização permanece em complexidade, é desafio, mas acima de tudo, como parte fundamental do processo educativo, é direito, é garantia constitucional de todo e qualquer cidadão brasileiro e dever do Estado como consta no Art. 205 da constituição cidadã de 1988 A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 1988). Não à toa, a educação está entre as garantias constitucionais fundamentais dos cidadãos brasileiros. Sem a educação como um direito, questões como a participação, inserção e o acesso à vida, as oportunidades, aos direitos e aos bens sociais se torna ainda mais difícil, para não dizer, impossível. Para além dos pontos anteriormente evidenciados, questões como a própria sobrevivência desses sujeitos são postas em xeque, uma vez que tudo em nossa sociedade é permeado pela linguagem em suas múltiplas formas, ainda mais com o advento das tecnologias, em que as interações como conhecíamos passou por profundas transformações. Nesse contexto, ter acesso a um processo formativo de qualidade é inestimável. Muito mais do que servir aos propósitos comunicativos dos sujeitos e expressar pensamentos, “a linguagem é uma atividade sócio histórica, é um dos elementos constitutivos do processo de humanização, da emergência do humano em cada indivíduo” (Lopes e Vieira 2011). A linguagem é uma produção humana e suas transformações, até as formas como a conhecemos hoje, se deu por adaptações às necessidades comunicativas, biológicas, interativas, emocionais, culturais, artísticas, de reflexão sobre si mesmos e sobre o mundo a 12 sua volta, que foram surgindo nos múltiplos tempos e espaços da história de nossa espécie sobre a terra e sendo fundamental para a constituição da consciência humana e das múltiplas elaborações mentais complexas que alcançamos hoje em dia, segundo Luria (1986, p. 80 apud LOPES; VIEIRA, 2011, p. 3) “o desenvolvimento mental através da aquisição da experiência humano-social por meio da linguagem é a maior conquista do gênero humano”. Como dito anteriormente, a linguagem transcende a comunicação e a expressão do pensamento, ela aprofunda-se em funções simbólicas fundamentais à apreensão das significações do mundo, que se torna objeto investigativo e fonte para transformações cognitivas constantes. Para Lopes e Vieira (2011) quando a criança se apropria da linguagem, torna-se apta a organizar, de uma maneira nova, a percepção, a memória, a atenção, a imaginação e assimila formas mais complexas de reflexão sobre os objetos do mundo exterior e conquista as potencialidades do pensamento. Do dia em que a criança nasce ao dia em que deixa este mundo, a linguagem media sua relação com tudo a sua volta. Nesse sentido, compreender a linguagem na perspectiva da interação social requer também coerência no sentido de como sua aprendizagem acontece, nesta pesquisa compreendemos que ocorre na vivência do sujeito com o mundo ao seu redor e com outros sujeitos, em que busca expressar-se de múltiplas formas e por múltiplas razões. Assim como para Lopes e Vieira (2011) “Aprender a falar e aprender a escrever significam aprender a produzir e compreender textos, desde o início, mesmo quando ainda nem se sabe falar, nem se sabe escrever; aprende-se experimentando – mediado por outros mais experientes – a falar, a ouvir, a escrever, a ler”, para nós, a aprendizagem da linguagem é, antes de tudo, experimentar. E nesse universo tão amplo como é a educação e a discussão acerca da linguagem, nosso trabalho se volta a um dos processos mais essencialmente escolares, a alfabetização, e lança um olhar sobre as estratégias estatais, por meio de programas e políticas, para superação dos desafios que a aprendizagem da leitura e da escrita coloca ao nosso país. Nesta pesquisa, compreendemos a aprendizagem da leitura e da escrita - alfabetização - como um processo que pressupõe “a apropriação do conhecimento, e não aprendizagem de uma técnica” (FERREIRO; TEBEROSKY, 1984, p. 289), que se configura como um processo ativo de reconstrução do conhecimento por parte do sujeito, que só pode apropriar-se verdadeiramente de um conhecimento quando compreende seu modo de produção. Em um contexto mais atual, segundo os resultados da Avaliação Nacional da Alfabetização - ANA de 2016, 54,73% de mais de 2 milhões de alunos concluintes do 3º ano 13 do Ensino Fundamental apresentaram desempenho abaixo do esperado para sua faixa escolar no exame de proficiência em leitura e desse total, cerca de 450 mil alunos foram classificados no nível 1 da escala de proficiência, o que significa que ainda não conseguem localizar informações explícitas em textos simples de até cinco linhas e de identificar a finalidade de textos como convites, cartazes, receitas e bilhetes (INEP, 2015b). Com relação à escrita, 33,95% estavam em níveis também abaixo do esperado para sua faixa escolar (1, 2 ou 3), apesar de, em comparação com a leitura parecer um número relativamente menor, cerca de 680 mil alunos na faixa etária de 8 anos estão nos níveis 1 e 2, o que significa que estes ainda apresentam grande dificuldade na escrita de palavras e na produção de textos curtos. Figura 1 - Avaliação Nacional da Alfabetização - ANA Fonte: INEP (2015b) Como dito inicialmente em nosso texto, a alfabetização continua sendo um desafio para todos que fazem a educação em todos os níveis, para as famílias, para a sociedade, para os professores e em especial para os próprios estudantes que serão, e muitas vezes já são, cobrados por um processo que lhes deveria ter sido garantido na infância com toda a qualidade. Buscando contribuir com as discussões e reflexões acerca da questão da alfabetização em nosso país, o objetivo deste trabalho é discutir e relacionar os documentos da Política Nacional de alfabetização - PNA com algumas outras políticas e programas de alfabetização instauradas no Brasil entre os anos 2000 e 2019, sendo estes o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores - PROFA (MENEZES: SANTOS, 2001), o Pró-letramento: Mobilização Pela Qualidade Da Educação (2005) e o Pacto Nacional Pela Alfabetização Na Idade Certa – Pnaic - PNAIC (2013). No campo metodológico, a presente pesquisa é de abordagem qualitativa, de natureza exploratória e de análise documental “ A pesquisa documental recorre a fontes mais diversificadas e dispersas, sem tratamento analítico, tais como: tabelas estatísticas, jornais, revistas, relatórios, documentos oficiais, cartas, filmes, fotografias, pinturas, tapeçarias, 14 relatórios de empresas, vídeos de programas de televisão, etc. (FONSECA, 2002, p. 32) e em nosso caso, trabalhamos com o documento oficial da Política Nacional de Alfabetização – PNA (2019) de forma mais específica e abordaremos também outras políticas de alfabetização no recorte temático de 2000 á 2018 traçando um paralelo entre ambas e refletindo sobre os avanços e retrocessos que a PNA representa no atual contexto educacional brasileiro. Iniciamos nossa pesquisa realizando uma leitura atenta do documento que iríamos investigar e logo após buscamos nos periódicos da capes e no portal Scielo, obras que pudessem contribuir com a compreensão e análise de nosso documento. Como resultado dessa busca utilizamos as obras “Letramento e alfabetização: as muitas facetas” de SOARES (2003), “Linguagem, alfabetização e Letramento” de LOPES e VIEIRA (2011) “ Psicogênese da Língua escrita” de FERREIRO E TEBEROSKY (1984) e “O direito a diferença em um mundo feito em alfabeto” de Coelho (2016). O presente trabalho organiza-se da seguinte forma : Inicia fazendo um breve resgate dos programas e políticas voltados à alfabetização no Brasil dentro do recorte temporal de 2000 à 2019, logo após, apresenta a Política Nacional de Alfabetização - PNA (2019), e por fim traz algumas reflexões sobre as sobre os documentos da PNA e demais políticas à luz dos autores aqui evidenciados. 15 2 PROGRAMAS DE ALFABETIZAÇÃO NO BRASIL ANTES DA POLÍTICA NACIONAL DE ALFABETIZAÇÃO - PNA Nesta seção pretendemos apresentar alguns programas importantes voltados à superação dos altos índices de analfabetismo no Brasil a partir dos anos 2000. A escolha deste recorte temporal se deu pela limitação de tempo para realização da pesquisa e pela relevância destas políticas nas últimas décadas. A seguir iremos apresentar quais foram essas políticas, suas características e algumas perspectivas teóricas que fundamentam esses projetos. Nesse sentido, seguiremos a seguinte ordem. 2.1 Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Profa - Iniciaremos nosso resgate falando um pouco sobre o PROGRAMA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES ALFABETIZADORES - PROFA (MENEZES; SANTOS, 2001). Este programa foi lançado pela Secretaria de Educação Fundamental (SEF) do Ministério da Educação (MEC) em 2001, pois, apesar dos esforços e mudanças realizadas até aquele momento a questão do fracasso escolar no Brasil, principalmente no que se referia a alfabetização, ainda apresentavam altos índices. Como não haviam explicações claras sobre as razões que faziam da aprendizagem da leitura e da escrita um desafio para as escolas, a responsabilidade pelo não aprendizado sobrecaia, direta ou indiretamente, sobre os próprios estudantes. No Guia do formador do PROFA, a SEF afirma que a partir desse processo de culpabilização dos sujeitos alfabetizandos “consolidou-se progressivamente uma cultura escolar da repetência, da reprovação, que, como toda cultura que se instaura, acabou por ser aceita como um fenômeno natural” (MENEZES; SANTOS, 2001, p. 1) e dessa forma houve uma conformação quanto ao fato de as crianças não alcançarem a alfabetização dentro do período esperado. Na análise da SEF entre as principais causas desta situação em nosso país destacam- se: “a formação inadequada dos professores e seus formadores e a falta de referências de qualidade para o planejamento de propostas pedagógicas que atendam às necessidades de aprendizagem dos alunos – situações didáticas e materiais adequados” (MENEZES; SANTOS, 2001 p. 1), neste sentido o programa visa, Contribuir para a superação desses dois problemas, favorecendo a socialização do conhecimento didático hoje disponível sobre a alfabetização e, ao mesmo tempo, reafirmando a importância da implementação de políticas públicas 16 destinadas a assegurar o desenvolvimento profissional de professores. (MENEZES; SANTOS, 2001, p. 1). O Programa de Formação de Professores Alfabetizadores se desafiou a construir um processo de formação desses docentes em que estes aprendessem a alfabetizar crianças e adultos de forma que pudessem “assumir a condição de cidadãos da cultura letrada” (MENEZES; SANTOS, 2001, p. 2). Esse curso visou, como o próprio nome diz, contribuir com o desenvolvimento profissional dos educadores alfabetizadores brasileiros e que este desenvolvimento tinha como alvo a aprendizagem e o desenvolvimento de todos os estudantes. No contexto formativo em os professores alfabetizadores se inseriram, alguns pontos eram fundamentais, um deles, em especial era a reflexão sobre a prática, a consciência da responsabilidade do próprio professor ao decidir sobre suas abordagens em sala de aula. Assim, uma das perspectivas do curso era contribuir com uma visão não dicotomizada da relação teoria e prática, refutando a afirmativa de que na realidade do dia a dia escolar a teoria se distanciava da prática, para o programa esta afirmação era um equívoco, uma vez que “Teoria e prática são indissociáveis; sempre há teorias que embasam o trabalho do professor, mesmo que ele não saiba quais são elas. A teoria ilumina a prática, e a prática põe em questão a teoria” (MENEZES; SANTOS, 2001, p. 4). O Curso incentivou e acompanhou os professores alfabetizadores nesta análise sócio histórica de suas práticas, contribuindo na identificação de que teorias as fundamentaram, dando-os a oportunidade de construir uma consciência dessas influências e tornando-os mais autônomos em seu fazer, uma vez que passaram a conhecer as origens epistemológicas de suas práticas. Outro ponto importante é a visão do programa acerca dos educadores que fariam parte do curso, apesar do entendimento de que transformações aconteceriam e seriam necessárias nesse processo de aprendizagem, o programa propõe um olhar de valorização das experiências, da compreensão dos sujeitos com individualidades, histórias de vida e múltiplos saberes que deveriam em todo o processo formativo ser respeitados, preservados e ampliados. Para alcançar níveis de reflexão que compreendessem a realidade dos professores, o curso buscava garantir que a base de seus estudos fossem o mais próximo possível do cotidiano enfrentado pelos educadores, para que estes pudessem refletir ao máximo sobre as ações que desempenham no contexto escolar. Nesse ponto, o programa prezou pela qualificação dos formadores desses educadores, para que estes encorajassem, apoiassem, acompanhassem e buscassem ao máximo garantir a qualificação desse momento reflexivo. 17 O programa visava que a partir do curso de formação, os educadores alfabetizadores desenvolvessem uma série de competências que pudessem progressivamente subsidiar práticas de alfabetização cada vez mais qualificadas e conscientes. Segundo o Menezes e Santos (2001) para que os estudantes pudessem ter assegurado o seu direito de aprender a ler e escrever esperava-se que com o curso de formação do PROFA seus professores se tornassem, dentre outras tantas possibilidades, capazes de: Encará-los como pessoas que precisam ter sucesso em suas aprendizagens para se desenvolver pessoalmente e para ter uma imagem positiva de si mesmos, orientando-se por esse pressuposto; desenvolver um trabalho de alfabetização adequado às necessidades de aprendizagem dos alunos, acreditando que todos são capazes de aprender; reconhecer-se como modelo de referência para os alunos: como leitor, como usuário da escrita e como parceiro durante as atividades; utilizar o conhecimento disponível sobre os processos de aprendizagem dos quais depende a alfabetização, para planejar as atividades de leitura e escrita; (MENEZES; SANTOS,2001, p. 9). O Documento do qual extraímos essas informações Menezes e Santos (2001, p. 9) acentua em sua nota de rodapé que: As competências profissionais e os conteúdos tratados neste documento referem-se às necessidades colocadas aos professores que ensinam a ler e escrever - há um conjunto de competências e conteúdos decorrentes da condição de professor da educação básica que aqui não são abordados (ver Referenciais para a Formação de Professores, MEC / SEF, 1998, e Guia de Orientações Metodológicas Gerais, (MENEZES; SANTOS, 2001, p. 9). Para além do desenvolvimento das competências explicitadas acima, o programa também se preocupou com os conteúdos, temas e conceitos primordiais à formação desses alfabetizadores, os quais não iremos apresenta na íntegra, mas tentaremos primar pela exposição de pontos que abordaremos posteriormente em nossas análises. Essas informações foram extraídas de um dos documentos oficiais do programa, o guia do formador (MENEZES; SANTOS, 2001 p. 10). Quadro 1 - Programa de Formação de Professores Alfabetizadores - Profa (2001) PROGRAMA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES ALFABETIZADORES - PROFA (2001) Procedimentos Análise da produção escrita dos alunos, identificando o que ela revela sobre o seu conhecimento linguístico sobre a escrita; Identificação das variáveis que interferem favorável e desfavoravelmente na aprendizagem; 18 Gestão adequada da sala de aula, especialmente quando há níveis heterogêneos de conhecimento em relação ao sistema de escrita; (MENEZES; SANTOS, 2001 p.11) Atitudes Respeito aos diferentes ritmos e formas de aprendizagem, identificando qual é a ajuda necessária para que todos se alfabetizem; Acolhimento de diferentes hipóteses e falas dos alunos quando expressam seus conhecimentos; Observação atenta dos alunos quando realizam atividades e se relacionam uns com os outros; Disponibilidade para discutir a prática de alfabetização desenvolvida; (MENEZES; SANTOS, 2001 p.11) Leitura, Escrita Diferentes concepções de alfabetização; Relação entre alfabetização e letramento; e Processos de Importância da alfabetização e do sucesso escolar na vida das pessoas; Aprendizagem (MENEZES; SANTOS, 2001 p.11) na Alfabetização Conhecimento Uso do conhecimento prévio do aluno em favor da alfabetização; Uso da heterogeneidade de conhecimentos em relação à escrita como vantagem Didático pedagógica para a alfabetização; Gêneros textuais adequados ao trabalho pedagógico no período de alfabetização; Papel das interações produtivas entre os alunos na aprendizagem inicial da leitura e da escrita; (MENEZES; SANTOS 2001, p. 12) Fonte: Própria autora (2020). No que se refere a estrutura do Programa de Formação de professores alfabetizadores, o curso se organizava em três Módulos, compostos por unidades. A quantidade de Unidades em cada Módulo era variável, embora sempre houvesse um módulo destinado à avaliação individual dos professores. Sobre os módulos do curso segundo o Menezes e Santos (2001, p.13) define da seguinte forma: ● O Módulo 1 trata de conteúdos de fundamentação, relacionados aos processos de aprendizagem da leitura e escrita e à didática da alfabetização. O principal objetivo desse módulo é demonstrar que a aprendizagem inicial da leitura e da escrita é resultado de um processo de construção conceitual que se dá pela reflexão do aprendiz sobre as características e o funcionamento da escrita. ● No Módulo 2 são discutidas situações didáticas de alfabetização. O objetivo é demonstrar que a alfabetização é parte de um processo mais amplo de aprendizagem de diferentes usos da linguagem escrita, em situações de leitura e produção de texto. ● O Módulo 3 também tem como foco as situações didáticas. O objetivo é apresentar e discutir outros conteúdos de língua portuguesa que fazem sentido no período de alfabetização. 19 Como dito inicialmente, nosso objetivo é apresentar ao leitor deste trabalho um panorama geral do programa de formação de professores alfabetizadores - Profa, e dessa forma esperamos que a partir do que aqui foi apresentado seja possível refletir sobre as perspectivas que orientaram esse programa, seus objetivos e projeções. Para finalizar nossa apresentação deste programa gostaríamos de trazer algumas das definições extraídas de um dos documentos oficiais e que é muito importante para nós nas reflexões a serem construídas posteriormente. Para o Menezes e Santos (2001, p. 9), alfabetizar quer dizer “ensinar a ler e escrever. A opção foi essa porque, se utilizássemos o termo como sinônimo de alfabetização plena, ficaria difícil denominar o processo de ensino e aprendizagem inicial de leitura e escrita”. Competência profissional significa “a capacidade de mobilizar múltiplos recursos para responder às diferentes demandas colocadas pelo exercício da profissão, ou seja, a capacidade de responder aos desafios inerentes à prática, de identificar e resolver problemas, de pôr em uso o conhecimento e os recursos de que se dispõe”. (MENEZES; SANTOS, 2001, p. 9). A seguir trataremos de mais uma política voltada à superação dos desafios que a alfabetização coloca ao nosso país no campo da formação docente, o programa PRÓ- LETRAMENTO. 2.2 Pró-Letramento: mobilização pela qualidade da educação O programa de formação continuada de professores, PRÓ-LETRAMENTO: MOBILIZAÇÃO PELA QUALIDADE DA EDUCAÇÃO, segundo o portal do MEC, surge em 2005 com o intuito de contribuir com a melhoria da qualidade da leitura e escrita nos anos/séries iniciais do ensino fundamental da educação básica do Brasil. O Ministério da Educação em parceria com uma rede de mais de dezoito Universidades Públicas que integravam a Rede Nacional de Formação Continuada oportunizou aos estados e municípios um programa formativo para todos os professores em exercício nas séries/anos iniciais das escolas públicas. A estrutura organizacional do programa de dava pela integração do MEC, da Rede Nacional de Formação Continuada e dos sistemas de ensino. O Pró-Letramento se dava na modalidade semipresencial, com um suporte de materiais impressos e audiovisuais, composto por 7 fascículos e 4 fitas de vídeo, bem como, garantiam aos professores incluídos no programa acompanhamento constante com 20 professores orientadores/tutores. O curso oferecido pelo programa tinha duração de 120 horas com uma duração de oito meses. Desde de 2005, quando o programa foi lançado pelo MEC, mais de 254 mil profissionais da educação básica foram qualificados. Em 2009, segundo dados da Coordenação-Geral de Formação de Professores apresentados no portal do MEC, 169.754 professores ingressaram nos cursos do Pró-Letramento. No campo dos conteúdos abordados no programa apresentaremos de forma sintética com base na descrição do que o programa se propunha a trabalhar em cada um dos fascículos, forma como chamavam suas unidades de formação. Quadro 2 - Pró-Letramento: mobilização pela qualidade da educação PRÓ-LETRAMENTO: MOBILIZAÇÃO PELA QUALIDADE DA EDUCAÇÃO Fascículo 1. Capacidades Apresentam-se vários conceitos fundamentais, que subsidiam o projeto do Pró-Letramento e que serão retomados nos fascículos Linguísticas: seguintes, tais como: Alfabetização, Letramento e Ensino de Língua. Também se apresentam as principais capacidades a serem desenvolvidas pelos alunos nos anos iniciais da escolarização. Fascículo 2. Alfabetização Discutem-se questões voltadas a avaliação, através de estratégias de avaliação formativa e continuada. Anexo aos materiais apresentam-se e Letramento: Questões sugestões de atividades a serem desenvolvidas em sala de aula, a fim sobre avaliação: de se atingirem algumas das capacidades elencadas no fascículo 1. Fascículo 3. A Analisam-se situações de ensino e aprendizagem a partir do ponto de vista da organização do tempo escolar e do planejamento das Organização do Tempo atividades por parte do docente, através de relatos de experiências. Pedagógico e o Dá-se especial atenção às práticas de leitura e escrita na rotina escolar, recuperando e desenvolvendo a noção de letramento apresentada no Planejamento do Ensino: fascículo anterior. Fascículo 4. Organização Discute-se a importância da Biblioteca Escolar ou da Sala de Leitura, sua organização e possibilidades de uso. Analisam-se diferentes e Uso da Biblioteca modalidades de leitura, a diversidade de suportes de textos e a Escolar e das Salas de fundamental mediação do (a) professor (a) ao longo do processo de letramento. Por fim, discute-se a relevância do Dicionário como Leitura: aliado no dia-a-dia da sala de aula. Fascículo 5. O Lúdico na Discute-se alguns exemplos de jogos e brincadeiras realizados por professoras de escolas públicas do Estado de Pernambuco. Em todos Sala de Aula: Projetos e eles, os alunos colocam em prática habilidades diretamente Jogos: relacionadas à Língua Portuguesa: na produção de um almanaque, em atividades lúdicas de leitura e escrita, de canto e expressão oral e de compreensão do sistema de escrita alfabética. 21 Continuação Fascículo 6. O Livro Apresentam-se questões relacionadas ao uso do livro didático de Alfabetização e de Língua Portuguesa em sala de aula. Discutem-se Didático em Sala de Aula: os processos de modificação dos livros didáticos a partir da Algumas Reflexões: institucionalização do PNLD; os processos de escolha e as características dos novos livros didáticos; e o uso que os (as) professores (as) fazem do livro didático em suas práticas de ensino. Fascículo 7. Modos de Discutem-se modos de falar e modos de escrever, bem como a integração entre essas duas práticas e as suas relações com a Falar / Modos de aprendizagem da escrita. Analisam-se o trabalho de uma professora Escrever: de escola pública do Distrito Federal, em atividades de leitura e produção de textos que levam em consideração a competência comunicativa dos alunos. Fonte: Própria autora (2020). Quadro 3 – Objetivos do Pró-Letramento Quanto aos objetivos, o Pró-Letramento pretendia: Oferecer suporte à ação pedagógica dos professores dos anos/séries iniciais do ensino fundamental, contribuindo para elevar a qualidade do ensino e da aprendizagem de língua portuguesa e matemática; Propor situações que incentivem a reflexão e a construção do conhecimento como processo contínuo de formação docente; Desenvolver conhecimentos que possibilitem a compreensão da matemática e da linguagem e de seus processos de ensino e aprendizagem; Contribuir para que se desenvolva nas escolas uma cultura de formação continuada; Desencadear ações de formação continuada em rede, envolvendo Universidades, Secretarias de Educação e Escolas Públicas dos Sistemas de Ensino. Fonte: própria autora (2020). Como apontado anteriormente, o programa Pró-Letramento tem um fascículo dedicado unicamente aos estudos dos conceitos fundamentais que subsidiaram os estudos no curso. E como registrado no PROFA, programa descrito anterior a este, alguns conceitos são para nós também fundamentais, uma vez que pretendemos resgatá-los no decorrer deste trabalho. Desta forma, com base no documento oficial do programa “ Alfabetização e linguagem”, traremos algumas dos conceitos fundamentais ao programa e importantes para nossas reflexões futuras, sendo estes: Língua e ensino de língua, alfabetização, letramento e ensino da língua escrita. 22 O programa Pró-Letramento compreende Língua e ensino de Língua da seguinte forma: A língua é um sistema que tem como centro a interação verbal, que se faz através de textos ou discursos, falados ou escritos. Isso significa que esse sistema depende da interlocução (interlocução = ação linguística entre sujeitos). Partindo dessa concepção, uma proposta de ensino de língua deve valorizar o uso da língua em diferentes situações ou contextos sociais, com sua diversidade de funções e sua variedade de estilos e modos de falar. Para estar de acordo com essa concepção, é importante que o trabalho em sala de aula se organize em torno do uso e que privilegie a reflexão dos alunos sobre as diferentes possibilidades de emprego da língua. Isso implica, certamente, a rejeição de uma tradição de ensino apenas transmissiva, isto é, preocupada em oferecer ao aluno conceitos e regras prontos, que ele só tem que memorizar, e de uma perspectiva de aprendizagem centrada em automatismos e reproduções mecânicas. Por isso é que uma adequada proposta para o ensino de língua deve prever não só o desenvolvimento de capacidades necessárias às práticas de leitura e escrita, mas também de fala e escuta compreensiva em situações públicas (a própria aula é uma situação de uso público da língua). (BRASIL, 2008 p. 9). O programa Pró-Letramento compreende alfabetização a partir da seguinte perspectiva: A partir dos anos 1980, o conceito de alfabetização foi ampliado com as contribuições dos estudos sobre a psicogênese da aquisição da língua escrita, particularmente com os trabalhos de Emília Ferreiro e Ana Teberosky. De acordo com esses estudos, o aprendizado do sistema de escrita não se reduziria ao domínio de correspondências entre grafemas e fonemas (a decodificação e a codificação), mas se caracterizaria como um processo ativo por meio do qual a criança, desde seus primeiros contatos com a escrita, construiria e reconstruiria hipóteses sobre a natureza e o funcionamento da língua escrita, compreendida como um sistema de representação. Progressivamente, o termo passou a designar o processo não apenas de ensinar e aprender as habilidades de codificação e decodificação, mas também o domínio dos conhecimentos que permitem o uso dessas habilidades nas práticas sociais de leitura e escrita. (BRASIL, 2008 p. 10). O programa Pró-Letramento compreende Letramento a partir da seguinte perspectiva: É na segunda metade dos anos 1980 que essa palavra surge no discurso de especialistas das Ciências Linguísticas e da Educação, como uma tradução da palavra da língua inglesa literacy. Sua tradução se faz na busca de ampliar o conceito de alfabetização, chamando a atenção não apenas para o domínio da tecnologia do ler e do escrever (codificar e decodificar), mas também para os usos dessas habilidades em práticas sociais em que escrever e ler são necessários. Implícita nesse conceito está a ideia de que o domínio e o uso da língua escrita trazem consequências sociais, culturais, políticas, econômicas, cognitivas, linguísticas, quer para o grupo social em que seja introduzida, quer para o indivíduo que aprenda a usá-la. Letramento é pois, o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever, bem como o resultado da ação de usar essas habilidades em práticas sociais, é o estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da 23 língua escrita e de ter-se inserido num mundo organizado diferentemente: a cultura escrita. (BRASIL, 2008 p. 11). O programa Pró-Letramento revela sua concepção acerca do ensino da língua escrita por meio de algumas discussões, para uma melhor compreensão dessas discussões optamos por organizá-las didaticamente em subcategorias, sendo estas: Língua como um sistema, métodos silábico, método fônico, métodos analíticos, práticas de alfabetização construtivistas e relações entre alfabetização e letramento, a seguir apresentamos esses elementos: Quadro 4 – Concepções do ensino da língua escrita A língua é um sistema que se estrutura no uso e para o uso, escrito e falado, sempre contextualizado. No entanto, a condição básica para o uso escrito da língua, que é a apropriação do sistema alfabético, envolve, da parte dos alunos, aprendizados muito específicos, independentes do contexto de uso, relativos aos componentes do A língua como um sistema fonológico da língua e às suas inter-relações. Explicando e sistema o programa traz exemplificando: as relações entre consoantes e vogais, na fala e na escrita, permanecem as mesmas, independentemente do gênero a seguinte perspectiva: textual em que aparecem e da esfera social em que circule; numa piada ou nos autos de um processo jurídico, as consoantes e vogais são as mesmas e se inter-relacionam segundo as mesmas regras. O estágio atual dos questionamentos e dilemas no campo da educação nos impõe a necessidade de firmar posições consistentes, evitando polarizações e reducionismos nas práticas de alfabetização. (BRASIL, 2008, p. 11). Acerca do método A opção pelos princípios do método silábico, por exemplo, contempla alguns aspectos importantes para a apropriação do código silábico de alfabetização: escrito, mas supõe uma progressão fixa e previamente definida e reduz o alcance dos conhecimentos linguísticos, quando desconsidera as funções sociais da escrita. (BRASIL, 2008, p. 12). Da mesma forma, os métodos de base fônica, embora focalizando um ponto fundamental para a compreensão do sistema alfabético, que é Acerca do método fônico a relação entre fonema e grafema, restringem a concepção de alfabetização, quando valorizam exclusivamente o eixo da de alfabetização: codificação e decodificação pela decomposição de elementos que se centram em fonemas e sinais gráficos. (BRASIL, 2008, p. 12). Por sua vez, os métodos analíticos orientam a apropriação do código escrito pelo caminho do todo para as partes (de palavras, sentenças Acerca dos métodos ou textos para a decomposição das sílabas em grafemas/fonemas). Apesar de procurarem situar a relação grafema/fonema em unidades analíticos de de sentido, como palavras, sentenças e textos, os métodos analíticos tendem a se valer de frases e textos artificialmente curtos e alfabetização repetitivos, para favorecer a estratégia de memorização, considerada fundamental. (BRASIL, 2008, p. 12). [...] ao longo das últimas décadas, trazem como ponto positivo a introdução ou o resgate de importantes dimensões da aprendizagem significativa e das interações, bem como dos usos sociais da escrita e da leitura, articulados a uma concepção mais ampla de letramento. Mas, em contrapartida, algumas compreensões equivocadas dessas 24 Práticas de alfabetização teorias têm acarretado outras formas de reducionismo. Isso se verifica quando essas práticas negam os aspectos psicomotores ou grafo fundamentadas no motores, desprezando seu impacto no processo inicial de ideário construtivista: alfabetização e descuidando de instrumentos e equipamentos imprescindíveis a quem se inicia nas práticas da escrita e da leitura. Essa postura prejudica sobretudo as crianças que vivem em condições sociais desfavorecidas e que, por isso, só têm oportunidade de contato mais amplo com livros, revistas, cadernos, lápis e outros instrumentos e tecnologias quando ingressam na escola. Outra questão controversa diz respeito à oposição do construtivismo ao ensino meramente transmissivo, que limita o aluno a apenas memorizar e reproduzir conceitos e regras. O problema é que, em nome dessa crítica, algumas interpretações equivocadas do construtivismo têm recusado a apresentação de informações relevantes ao avanço dos alunos, como se todos os conhecimentos pertinentes à apropriação da língua escrita pudessem ser construídos pelos próprios alunos, sem a contribuição e a orientação de um adulto mais experiente. Mais um problema resultante de interpretações errôneas do construtivismo tem sido a defesa unilateral de interesses e hipóteses das crianças, o que acaba limitando a ação pedagógica ao nível dos conhecimentos prévios dos alunos. Essa limitação gera fracassos, porque compromete a proposição e a avaliação de capacidades progressivas e acaba sendo usada, pela própria ação pedagógica, como justificativa para o que não deu certo. (BRASIL, 2008, p. 12). Acerca da relação entre Assim, não se trata de escolher entre alfabetizar ou letrar; trata-se de alfabetizar letrando. Também não se trata de pensar os dois processos alfabetização e como sequenciais, isto é, vindo um depois do outro, como se o Letramento : letramento fosse uma espécie de preparação para a alfabetização, ou, então, como se a alfabetização fosse condição indispensável para o início do processo de letramento. O desafio que se coloca para os primeiros anos da Educação Fundamental é o de conciliar esses dois processos, assegurando aos alunos a apropriação do sistema alfabético-ortográfico e condições possibilitadoras do uso da língua nas práticas sociais de leitura e escrita. [...] Assim, entende-se que a ação pedagógica mais adequada e produtiva é aquela que contempla, de maneira articulada e simultânea, a alfabetização e o letramento. (BRASIL, 2008, p. 13). Trazer essas definições é muito importante, pois nos é fundamental que no decorrer da leitura deste e dos demais documentos seja possibilitado ao leitor já ir percebendo possíveis divergências e convergências entre as políticas. A seguir trataremos de mais um programa com relevância nacional voltado à questão da alfabetização em nosso país, O PACTO NACIONAL PELA ALFABETIZAÇÃO NA IDADE CERTA - PNAIC. 2.3 o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa - Pnaic Com lançamento em 08 de novembro de 2012, O Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa - Pnaic, se deu por meio de uma articulação entre o governo federal, e os 25 governos estaduais e municipais que se demonstraram “ dispostos a mobilizar todos os seus esforços e recursos, na valorização dos professores e escolas, no apoio pedagógico com materiais didáticos de alta qualidade para todas as crianças e na implementação dos sistemas adequados de avaliação, gestão e monitoramento” (BRASIL, 2015). Em seu início o programa tinha como foco a formação em língua portuguesa, em 2014 ampliou-se para a formação em matemática, em 2015, ano de publicação do documento base desta apresentação, o programa expandiu-se para as demais áreas do conhecimento, buscando atender a formação integral das crianças em seu processo de escolarização inicial. Sobre o processo de formação, o programa “privilegia um diálogo permanente e sistemático com a prática docente e com a equipe pedagógica da escola para a garantia dos direitos de aprendizagem e desenvolvimento dos estudantes e para a melhoria da qualidade do ensino público brasileiro” (BRASIL, 2015, p. 7). As ações do PNAIC se deram em quatro eixos de atuação, sendo o 1ª a Formação continuada presencial para professores alfabetizadores e seus orientadores de estudo; o 2º Materiais didáticos, obras literárias, obras de apoio pedagógico, jogos e tecnologias educacionais; o 3º Avaliações sistemáticas; e o 4º Gestão, controle social e mobilização. Entre as ações que compunham o PNAIC, a principal frente de atuação do programa era seu curso de formação de professores alfabetizadores, para os quais foram construídos um conjunto de cadernos que subsidiaram as discussões referente ao curso. Segundo seu caderno de apresentação (2015) os cadernos tratavam-se, de forma geral, de “[...]encaminhamentos metodológicos que possibilitem o desenvolvimento dos Direitos de Aprendizagem dentro do ciclo de alfabetização”. O PNAIC buscou desenvolver ações que estimulassem a ação reflexiva do professor sobre o tempo e o espaço escolar, nesse sentido cinco princípios centrais orientam a concepção dos cadernos de formação, reafirmado constantemente como material fundamental para todo o programa. Quadro 5 - Princípio centrais que orientam a concepção dos cadernos de formação do PNAIC Princípio centrais que orientam a concepção dos cadernos de formação do PNAIC : Perspectiva de um currículo inclusivo, que defende os Direitos de Aprendizagem de todas as crianças, fortalecendo as identidades sociais e individuais; Integração entre os componentes curriculares; 26 Foco central na organização do trabalho pedagógico; Seleção e discussão de temáticas fundantes em cada área de conhecimento; Ênfase na alfabetização e letramento das crianças. Fonte: Brasil (2015, p. 32). Segundo o Caderno de Apresentação do PNAIC (BRASIL, 2015), o currículo inclusivo é contemplado no programa a medida em que os direitos de aprendizagem das crianças é ponto fundamental na produção dos materiais didáticos e dos processos formativos. Em cada edição do programa novos materiais são produzidos, para exemplo apresentaremos os títulos e a carga horária dedicada ao estudo de cada um deles no curso de formação do PNAIC – edição 2015. Segue tabela abaixo. Figura 2 - Títulos e a carga horária dedicada ao estudo de cada disciplina Fonte: BRASIL (2015, p. 32). Para o PNAIC, seu programa de formação deveria estar vinculado ao momento histórico em que se implementava, à história da formação de professores, aos saberes práticos e teóricos que foram sendo construídos através de experiências anteriores. Seu objetivo era “desenvolver uma cultura de formação continuada individual e em rede [...]” (MEC/SEB, 2015 p.30) em houvesse um comprometimento institucional e individual, 27 “Institucionalmente, conta com apoio do Governo Federal e das Secretarias de Educação, que atuam como financiadores e apoiadores; conta também com as universidades, que são parceiras na elaboração e execução das ações do programa. ” (BRASIL, 2015, p. 30) e individualmente por parte do conjunto de professores que “continuar o seu processo formativo e, para isso, recebem incentivos do Governo Federal e de seus municípios de atuação” (BRASIL, 2015, p. 30). Nesse momento nos voltaremos para um dos cadernos do PNAIC e trabalharemos com alguns recortes do caderno 2 “ A criança no ciclo de alfabetização” da edição de 2015, para olharmos mais de perto algumas concepções que, como dito nos programas apresentados anteriormente, são para nós fundamentais. No caderno 2 do PNAIC, o programa faz questão de iniciar trazendo uma reflexão histórica sobre as concepções de criança e de infância e deixa clara sua concepção das crianças como atores sociais, sujeitos de direitos, com deveres, com identidades e atuações. Nesse sentido, defendem que as práticas e ideias voltadas as crianças são construções históricas e socioculturais, e assim como os demais processos sociais estão em constantes transformações. Nesta primeira discussão feita proposta pelo caderno é apresentado quatro temas que, para os idealizadores do projeto, são importantes de serem registrados, uma vez que os debates acerca da criança e da infância passaram a ser tratados pela escola, família e pela sociedade como um todo. Apresentamos em tabela abaixo: Quadro 6 – Temas apresentados pelo caderno 2 do PNAIC Quatro temas apresentados pelo Caderno 2 do PNAIC (2015) acerca da criança e da infância: Reconhece-se que, em seus processos de socialização, as crianças sofrem diversas influências – família, escola, mídia, igreja e grupo de pares, por exemplo –, os quais se fazem e desfazem, são sucessivos e contínuos, portanto não terminam quando as crianças deixam a infância. O mundo da infância é feito daquilo que se cria para ele e daquilo que as crianças fazem dele, portanto é fundamental conhecer as interações que as crianças estabelecem em seus espaços e tempos sociais, e a cultura delas. As instituições criadas para as crianças não só efetivam a infância e esse espaço como sendo delas como – e em quarto lugar - reconhecem as crianças como um grupo social. Fonte: Própria autora (2020). O ciclo de alfabetização, no contexto do PNAIC, situa-se nos três primeiros anos do ensino fundamental, esse período deve ocorrer dos 6 aos 8 anos de idade, e o programa demonstra preocupar-se com o aspecto da ludicidade que tende a perder-se a medida que a criança avança nos anos iniciais do ensino fundamental. Nesse sentido o segundo caderno 28 também chama traz a atenção do professor, em seu curso de formação, para a importância de que esse processo não se perca, uma vez que não deve haver um rompimento entre os níveis escolares, mas uma continuação. Para o PNAIC: “Os jogos e as brincadeiras são vistos como oportunidades de mediação entre o prazer e o conhecimento historicamente construído. Assim, a ludicidade e a aprendizagem são vistas como ações complementares, nas quais o lúdico se faz como recurso facilitador e motivador da aprendizagem escolar (BRASIL, 2015, p. 32). Em seu caderno, propõem um processo de alfabetização articulado com a infância, em que o processo de desenvolvimento das práticas de leitura e escrita das crianças não fossem marcados como o fim da infância, mas como um dos produtos do processo de brincar e de experienciar a infância. Com isso não estamos afirmando que a aprendizagem da linguagem escrita pode acontecer apenas a partir do brinquedo e sem atividades intencionais de ensino, mas, sim, que o brinquedo tem um papel significativo e que não é apenas um adereço sem importância na prática pedagógica [...] Não será pelo treino e pelo desenho de letras que as crianças aprenderão sobre a escrita. Mas o processo de brincar, por meio do qual a criança percebe a possibilidade de um objeto denotar outro, poderá contribuir para o desenvolvimento de mecanismos psíquicos importantes para a compreensão do que é a escrita e do que ela representa, embora se trate de simbolizações de naturezas diferentes. (BRASIL, 2015, p. 50). Caminhando para o encerramento da apresentação da última política de alfabetização que antecede a PNA -2019 , trazemos de forma mais objetiva os conceitos de alfabetização e letramento na perspectiva no PNAIC. Segundo o caderno 1 da primeira edição do programa em 2012, a concepção adotada pelo PNAIC é a de uma alfabetização na perspectiva do letramento: Defendemos que as crianças possam vivenciar, desde cedo, atividades que as levem a pensar sobre as características do nosso sistema de escrita, de forma reflexiva, lúdica, inseridas em atividades de leitura e escrita de diferentes textos. É importante considerar, no entanto, que a apropriação da escrita alfabética não significa que o sujeito esteja alfabetizado. Essa é uma aprendizagem fundamental, mas para que os indivíduos possam ler e produzir textos com autonomia é necessário que eles consolidem as correspondências grafofônicas, ao mesmo tempo em que vivenciem atividades de leitura e produção de textos. (BRASIL, 2012, p. 22). 29 Todas as políticas apresentadas até aqui foram de extrema importância para os avanços que obtivemos até os dias atuais na questão da alfabetização em nosso país, que, como dito anteriormente nesse texto, perpassa muitas outras dimensões de nossa sociedade. A seguir apresentaremos a política mais recente do MEC para superação dos desafios postos atualmente para nosso país na temática da alfabetização. 3 O DOCUMENTO DA POLÍTICA NACIONAL DE ALFABETIZAÇÃO – PNA (2019) Em 11 de abril de 2019, o Ministério da Educação, por meio da Secretaria de Alfabetização (SEALF), sob o decreto nº 9765/19, apresentou a Política Nacional de Alfabetização - PNA. Considerada como um “marco na educação Brasileira” (BRASIL, 2019) por seus idealizadores, a política, segundo o próprio documento, visa elevar a qualidade da alfabetização e combater o analfabetismo em todo território nacional. Para elaboração da PNA, o ministério da educação convocou representantes de diversos setores do governo para que por meio de um grupo de trabalho houvesse a formulação da política, sendo estes, representantes da Secretaria de Alfabetização (Sealf), da Secretaria de Educação Básica (SEB), da Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação (Semesp), da Secretaria Executiva (SE), do Gabinete do Ministro, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). O grupo formado pelo MEC para elaboração da política, também se dedicou a realizar uma análise da atual situação da alfabetização no Brasil e para isso, afirma na apresentação da PNA, realizou audiências com representantes da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CNE), do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação(Undime), e convidou renomados pesquisadores da área de alfabetização para apresentarem suas contribuições, no entanto, por não terem sido nomeados no documento, não tivemos como registrar aqui os nomes dos referidos pesquisadores. Por fim e não menos importante, o grupo de trabalho do MEC também se dedicou a estudar experiências exitosas de estados e municípios brasileiros, bem como de outros países que tiveram a formulação de suas políticas de alfabetização baseada em evidências 30 científicas, e dessa forma conseguiram melhorar seus indicadores de leitura, escrita e matemática. Vale ressaltar que esta política é materializada em um caderno e um decreto que apresenta suas concepções e determinações. O caderno que explicita a política, inicia com uma breve contextualização acerca da atual situação do Brasil com relação a alfabetização, trazendo a relevância da temática para a sociedade, a urgência de mudanças na concepção das políticas voltadas ao tema, bem como apresenta resultados das avaliações nacionais e de como estas reafirmam a importância desta política no atual contexto educacional brasileiro. Alguns dos dados apresentados na PNA trazem os seguintes resultados com base na Avaliação Nacional da Alfabetização - ANA: No que se refere a leitura: Segundo os resultados da Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA), de 2016, 54,73% de mais de 2 milhões de alunos concluintes do 3º ano do ensino fundamental apresentaram desempenho insuficiente no exame de proficiência em leitura. Desse total, cerca de 450 mil alunos foram classificados no nível 1 da escala de proficiência, o que significa que são incapazes de localizar informação explícita em textos simples de até cinco linhas e de identificar a finalidade de textos como convites, cartazes, receitas e bilhetes. (BRASIL, 2019, p. 10). No que se refere à escrita: Em escrita, 33,95% estavam em níveis insuficientes (1, 2 ou 3). Embora o número não seja tão alto em comparação com leitura, percebe-se a gravidade do problema diante da descrição desses níveis: aproximadamente 680 mil alunos de cerca de 8 anos estão nos níveis 1 e 2, o que quer dizer que não conseguem escrever “palavras alfabeticamente” ou as escrevem com desvios ortográficos. Quanto à escrita de textos, ou produzem textos ilegíveis, ou são absolutamente incapazes de escrever um texto curto. (BRASIL, 2019, p. 10). A PNA também apresenta que a comparação entre os resultados das edições de 2014 e de 2016 da ANA, com base em informações do INEP, revelam uma estagnação no desempenho dos alunos e dessa forma faz com que o Brasil se mantenha distante do alcance da meta 5 do Plano Nacional de Educação (PNE) que prevê a necessidade de alfabetizar todas as crianças, no máximo, até o final do 3º ano do ensino fundamental. Ainda segundo a meta 9 do PNE, o Brasil deveria reduzir em 50% a taxa de analfabetismo funcional até 2024. Também é apresentado em seu caderno uma linha do tempo com os marcos históricos e normativos da questão da alfabetização no Brasil e um breve relatório acerca dos relatórios sobre a alfabetização no Brasil e no mundo. Para a PNA a palavra alfabetização causa confusão didática e pedagógica, dificuldade de diálogo entre os atores os sujeitos envolvidos na educação e desconhecimento dos pais sobre a real alfabetização de seus filhos pois é usada, muitas vezes de forma imprecisa. Para 31 seus idealizadores, a definição apropriada para alfabetização é “ O ensino das habilidades de leitura e de escrita em um sistema alfabético” (BRASIL, 2019, p. 18) bem como, apresenta que, segundo seus especialistas: Do ponto de vista operacional, alfabetizar é: no primeiro ano do ensino fundamental, ensinar explicitamente o princípio alfabético e as regras de decodificação e de codificação que concretizam o princípio alfabético na variante escrita da língua para habilitar crianças à leitura e soletração de palavras escritas à razão de 60 a 80 palavras por minuto com tolerância de no máximo 5% de erro na leitura. (BRASIL, 2019, p. 18). A PNA também apresenta o termo literacia, que consiste “no ensino e na aprendizagem das habilidades de leitura e de escrita, independentemente do sistema de escrita utilizado” (BRASIL, 2019, p. 18). Para a PNA o passo crucial para a alfabetização é o princípio alfabético, a compreensão do sujeito acerca da correspondência grafema-fonema (sinais gráficos-sons da fala), e esse passo “deve ser ensinado de forma explícita e sistemática, numa ordem que deriva do mais simples para o mais complexo” (BRASIL, 2019, p. 18). Nesse sentido, para a PNA o ensino das habilidades de leitura e de escrita com base na decodificação e codificação é que constitui o processo de alfabetização, ainda que essa técnica não seja um fim em si, pois visa-se que o estudante possa avançar na leitura e escrita de texto mais complexos, “ O objetivo é fazer que se torne capaz de ler e escrever palavras e textos com autonomia e compreensão” (BRASIL, 2019, p. 19) e nesse contexto ler e escrever com autonomia significa: É conhecer o código alfabético e as correspondências grafofonêmicas a ponto de conseguir ler e escrever apropriadamente, sem a intervenção, antes necessária, de um mediador. É ser capaz de ler e de escrever corretamente qualquer palavra da sua língua, até mesmo uma palavra nunca antes lida ou ouvida, ou uma pseudopalavra, que atenda às regras do código ortográfico. (BRASIL, 2019, p. 19) O caderno da PNA também nos chama a refletir sobre o que significa a compreensão de textos, e afirma que: A compreensão de textos, por sua vez, consiste num ato diverso do da leitura. É o objetivo final, que depende primeiro da aprendizagem da decodificação e, posteriormente, da identificação automática e palavras e da fluência em leitura oral. Outros fatores também influem na compreensão, como o vocabulário, o conhecimento de mundo e a capacidade de fazer inferências. (BRASIL, 2019, p. 19). 32 Outro ponto importante da PNA é sua adoção por uma alfabetização baseada em evidências, que significa propor que programas, orientações curriculares e práticas de alfabetização tenham como base o que o caderno define como “ os achados mais robustos das pesquisas científicas”. Segundo a PNA entre os ramos da ciência que mais contribuíram para a compreensão dos processos de leitura e escrita está a chamada ciência cognitiva da leitura, sendo esta entendida pelo campo interdisciplinar que estudam a mente e sua relação com o cérebro. Para a PNA, com o avanço das tecnologias de imagens cerebrais campos de pesquisa antes desconhecidos passaram a ser estudados e nesse contexto surgem as ciências cognitivas: [...]como a neurociência cognitiva, que desvendam o funcionamento do cérebro, incluindo o que nele acontece durante a aprendizagem da leitura e da escrita, e ajudam a perceber como é possível facilitar a aprendizagem por meio de um ensino mais apropriado (BRASIL, 2019, p. 20). Assim como os estudos da ciência cognitiva apresentam-se como pontos de inovação na PNA o termo literacia também ganha destaque na política. O termo apresentado, segundo a PNA, traz diversas vantagens pois é uma forma de alinhar-se a terminologias científicas consolidadas internacionalmente, a exemplo da França e de Portugal. O caderno da PNA define Literacia como: Literacia é o conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes relacionados à leitura e à escrita, bem como sua prática produtiva. Pode compreender vários níveis: desde o mais básico, como o da literacia emergente, até o mais avançado, em que a pessoa que já é capaz de ler e escrever faz uso produtivo, eficiente e frequente dessas capacidades, empregando-as na aquisição, na transmissão e, por vezes, na produção do conhecimento (BRASIL, 2019, p. 21). Também é apresentado no caderno uma pirâmide que trata sobre os diferentes níveis de literacia. A seguir conheça a pirâmide: Figura 3 - Diferentes níveis de literacia 33 Fonte: PNA (2019, p. 22) Também é para nós muito importante trazer para essa apresentação a concepção de aprendizagem da leitura e da escrita por crianças. Para a PNA, com base na teoria psicolinguística da amalgamação (EHRI, 2005, 2013, 2014)., o processo de aprendizagem da leitura e da escrita ocorre da seguinte forma: Quando alguém aprende a falar, aprende diferentes aspectos ou identidades das palavras: seus sons (identidade fonológica), seus significados (identidade semântica), seus usos em sentenças (identidade sintática) e seus usos sociais (identidade pragmática). Todas essas identidades ficam armazenadas numa espécie de amálgama, ou seja, numa fusão perfeita em que todas as partes 34 formam uma única peça final, uma representação da palavra na memória. Quando se aprende a ler e a escrever, aprende-se um novo aspecto das palavras, a sua representação ortográfica (identidade ortográfica), que se funde de tal maneira às demais identidades que qualquer uma pode ativar as outras reciprocamente (BRASIL, 2019, p. 26). Apresenta ainda a chamada Área da forma visual da palavra (AFVP) situada na região situada na região occipitotemporal esquerda, uma área localizada área atrás da orelha esquerda, onde as regiões de processamento visual se conectam com as regiões de processamento fonológico, tornando-se assim, ideal para responder ao processo de leitura e de escrita. Para encerrar nossa apresentação do caderno da PNA, não poderíamos deixar de falar também da proposta teórica sobre a aprendizagem feita pela PNA, sendo esta a teoria de fases do desenvolvimento da leitura e da escrita em sistemas alfabéticos, teoria esta formulada por Linnea Ehri (2013, 2014) que descreve a progressão das crianças na aprendizagem da leitura e da escrita em sistemas alfabéticos, como o português. Ehri distingue quatro maneiras de ler palavras: Por predição, por analogia, por decodificação e por reconhecimento automático. Apresentaremos a seguir as definições extraídas do caderno da PNA: Quadro 7 – Teoria de fases do desenvolvimento da leitura e da escrita em sistemas alfabéticos Progressão das crianças na aprendizagem da leitura e da escrita em sistemas alfabéticos(PNA) Predição Decodificação É a maneira mais simples de ler palavras. Tenta- É a maneira mais precisa de ler palavras e leva à se “adivinhar” a palavra escrita por meio do automatização. É também a melhor estratégia para contexto (por exemplo, cores, formas, imagens) ler palavras novas e permite a leitura autônoma de ou pela presença de alguns elementos conhecidos, palavras desconhecidas. Envolve o conhecimento como as letras iniciais. É utilizando essa das relações grafema-fonema para identificar o estratégia que crianças muito pequenas são fonema correspondente a cada grafema, capazes de “ler” nomes de produtos, marcas ou aglutinando-os em pronúncias que formam empresas em rótulos, outdoors e placas. Leitores palavras reconhecíveis. Contudo, Quando a proficientes também podem usar a predição para correspondência entre grafemas e fonemas em uma descobrir uma palavra incompleta: por exemplo, Palavra não é biunívoca, o leitor iniciante poderá na frase “no hospital há muitos médicos e en...”, ter dificuldade para extrair a pronúncia correta. o contexto pode levar à suposição de que se trata de “enfermeiros” ou de “enfermos”. Analogia Reconhecimento automático É uma maneira um pouco mais precisa de ler Depois que uma palavra é lida várias vezes, palavras. Envolve o reconhecimento de palavras armazena-se na memória e passa a ser reconhecida por meio da associação com partes (rimas, por imediatamente, sem a necessidade de estratégias exemplo) de outras palavras familiares. A criança intermediárias como a predição, a analogia e a decodificação. É a maneira mais eficiente e menos 35 que aprende a ler “gato” pode, por analogia, ler as custosa para a memória, permitindo que o leitor palavras “rato”, “mato” e “pato”. leia com rapidez e prosódia, faça inferências e compreenda frases e textos. Fonte: Própria autora (2020). Há ainda outros conceitos importantes no caderno da PNA e outra ramificações da própria literacia, mas, por questões de tempo, não poderemos nos aprofundar, dessa forma, reafirmamos a importância de que o leitor conheça na integra o documento da PNA, bem como das demais políticas aqui apresentadas. A seguir traremos alguns pontos importantes sobre a política que foram expostos no decreto Nº 9765/19. O Decreto Nº 9765/19 de 11 de abril de 2019 institui a Política Nacional de Alfabetização por meio da qual, a união em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios irão implementar programas e ações voltados à promoção da alfabetização baseada em evidências científicas, visando melhorar a qualidade da alfabetização em todo o país, no que se refere as etapas, modalidades da educação básica e da educação não formal. A seguir apresentaremos algumas das definições expostas no Art. 2º do decreto Nº9765/19. Quadro 8 – Trechos do Art. 2º do decreto Nº 9765/19 Art. 2º Para fins do disposto neste Decreto, considera-se: I - alfabetização - ensino das habilidades de leitura e de escrita em um sistema alfabético, a fim de que o alfabetizando se torne capaz de ler e escrever palavras e textos com autonomia e compreensão; IV. consciência fonêmica - conhecimento consciente das menores unidades fonológicas da fala e a habilidade de manipulá-las intencionalmente; V. instrução fônica sistemática - ensino explícito e organizado das relações entre os grafemas da linguagem escrita e os fonemas da linguagem falada; VI. fluência em leitura oral - capacidade de ler com precisão, velocidade e prosódia; VII. literacia - conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes relacionadas com a leitura e a escrita e sua prática produtiva; Fonte: Própria autora (2020). Também apresentaremos alguns pontos dos Art. 3º e 5 do decreto, que trata dos princípios e diretrizes da PNA. Quadro 9 – Trechos do Art. 3º do decreto Nº 9765/19 Art. 3º São princípios da Política Nacional de Alfabetização: III. fundamentação de programas e ações em evidências provenientes das ciências cognitivas; IV. ênfase no ensino de seis componentes essenciais para a alfabetização: a) consciência fonêmica; b) instrução fônica sistemática; c) fluência em leitura oral; 36 d) desenvolvimento de vocabulário; e) compreensão de textos; e f) produção de escrita; V. adoção de referenciais de políticas públicas exitosas, nacionais e estrangeiras, baseadas em evidências científicas; Fonte: Própria autora (2020). Quadro 10 – Trechos do Art. 5º do decreto Nº 9765/19 Art. 5º Constituem diretrizes para a implementação da Política Nacional de Alfabetização: I. priorização da alfabetização no primeiro ano do ensino fundamental; III. integração de práticas motoras, musicalização, expressão dramática e outras formas artísticas ao desenvolvimento de habilidades fundamentais para a alfabetização; IV. participação das famílias no processo de alfabetização por meio de ações de cooperação e integração entre famílias e comunidade escolar; Fonte: Própria autora (2020). Assim concluímos nossa apresentação de partes do caderno e do decreto da PNA (2019) em que buscamos mostrar os pontos mais essenciais para compreensão de política e de suas perspectivas no campo da alfabetização no Brasil. 37 5 RESULTADOS E DISCUSSÕES Até aqui buscamos apresentar ao leitor um panorama mais geral acerca de algumas políticas que foram, e ainda são, importantes para os avanços já obtidos até aqui na questão da alfabetização em nosso país e para o aprendizado contínuo de professores que até os dias atuais utilizam os materiais produzidos por estes programas. Também buscamos trazer um panorama geral da PNA (BRASIL, 2019) evidenciando alguns dos pontos principais do documento, assim como nos demais a partir do nosso olhar, e esperamos que durante a leitura tenha sido possível perceber convergências e divergências entre as políticas anteriores e a PNA. A seguir nos propomos a refletir sobre essas convergências e divergências à luz de alguns autores e esperamos contribuir com a sua reflexão acerca do que a PNA representa no atual contexto educacional brasileiro. É importante salientar que este trabalho não intenciona defender uma saída fácil e única para os desafios que a alfabetização impõe cotidianamente, ou até mesmo fazer do leitor contrário a PNA, mas apenas olhar, de forma crítica e reflexiva, um pouco mais de perto os caminhos que o MEC, por meio da PNA, demonstra traçar para superar esses desafios. Para iniciar nossas discussões recorremos a uma obra importantíssima de SOARES (2003) intitulada “ Letramento e alfabetização: as muitas facetas”, em que a autora nos traz alguns pontos muitos valiosos para entendermos como a PNA surge no contexto educacional brasileiro. Em seu texto, Soares (2003), traz o aspecto, denominado por ela de curioso, que em meados de 1980 sociedades muito diferente em diversos aspectos, culturais, socioeconômicos e até bem distantes geograficamente tenham, de forma quase que simultânea, sentido a necessidade de nomear e reconhecer práticas de leitura e de escrita mais complexas do que os resultantes da aprendizagem do sistema de escrita, no caso, as práticas do ler e escrever. Assim, é em meados dos anos de 1980 que se dá, simultaneamente, a invenção do letramento no Brasil, do illettrisme, na França, da literacia, em Portugal, para nomear fenômenos distintos daquele denominado alfabetização, alphabétisation. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, embora a palavra literacy já estivesse dicionarizada desde o final do século XIX, foi também nos anos de 1980 que o fenômeno que ela nomeia, distinto daquele que em língua inglesa se conhece como Reading instruction, beginning literacy tornou-se foco de atenção e de discussão nas áreas da educação e da linguagem, o que se evidencia no grande número de artigos e livros voltados para o tema, publicados, a partir 38 desse momento, nesses países, e se operacionalizou nos vários programas, neles desenvolvidos, de avaliação do nível de competências de leitura e de escrita da população [...] (SOARES, 2003, p. 6). No entanto, apesar da semelhança acerca do momento histórico em que essa concepção emerge nesses países, SOARES (2003) aponta que o contexto e as causa dessa emersão são essencialmente diferentes em países em desenvolvimento, como Brasil, e em países desenvolvidos como Estados Unidos, França e Inglaterra. Nos países, ditos, de primeiro mundo, a exemplo da França e dos EUA, após a constatação de que sua população alfabetizada, apresentava dificuldades no domínio das habilidades de leitura e escrita que atendessem plenamente as demandas das práticas sociais, profissionais, da participação efetiva e competente, as questões acerca do Ilettrisme e de literacy surgem de forma independente das questões de aprendizagem da escrita, uma vez que sua população não demonstrava de forma expressiva, dificuldades relacionadas ao saber ler e escrever, o que não significa que este último ponto não apresente dificuldades distintas ou que não seja alvo de estudos para aperfeiçoamento. O que Soares (2003) destaca nesse ponto de forma mais objetiva é que: [...] o domínio precário de competências de leitura e de escrita necessárias para a participação em práticas sociais letradas e as dificuldades no processo de aprendizagem do sistema de escrita, ou da tecnologia da escrita– são tratados de forma independente, o que revela o reconhecimento de suas especificidades e uma relação de não-causalidade entre eles. (SOARES, 2003, p. 7). Já no contexto do Brasil, Soares (2003) afirma que houve o processo inverso, pois, a compreensão da importância das habilidades de uso da leitura e da escrita tem sua origem vinculada ao processo inicial de aprendizagem da escrita. Nesse sentido, diferentemente de países como EUA e França, em nosso país os conceitos de alfabetização e letramento se mesclam e segundo a autora muitas vezes se confundem. Aqui o conceito de alfabetização vem se estendendo em direção ao letramento. Enquanto nesses outros países a discussão do letramento – illettrisme, literacy e illiteracy – se fez e se faz de forma independente em relação à discussão da alfabetização – apprendre à lire et à écrire, reading instruction, emergent literacy, beginning literacy –, no Brasil a discussão do letramento surge sempre enraizada no conceito de alfabetização, o que tem levado, apesar da diferenciação sempre proposta na produção acadêmica, a uma inadequada e inconveniente fusão dos dois processos, com prevalência do conceito de letramento[...]. (SOARES, 2003, p. 8). 39 Soares (2003) afirma que essa fusão entre os conceitos de alfabetização e letramento no Brasil acabou por, de certa forma, anuviar as especificidades da alfabetização em comparação com o letramento e que isso, não único, mas é um dos responsáveis pelo fracasso das aprendizagens nas escolas brasileiras, fracasso este que se expressa e se é divulgado/denunciado de forma ampla. Soares (2003) diz ainda que o fracasso em alfabetização do Brasil é um fato inusitado e insistente há muitas décadas, uma vez que se revelava de forma mais concentrada nas avaliações internas e que talvez seja possível afirmar que esse fracasso ocorresse pelo “excesso de especificidade” , entendida como “a autonomização das relações entre o sistema fonológico e o sistema gráfico em relação às demais aprendizagens e comportamentos na área da leitura e da escrita[...]”(SOARES, 2013, p. 9), resultando em altos índices de reprovação e de evasão. Atualmente expressa-se em avaliações externas a escola (estaduais, nacionais e internacionais) nos diversos níveis e modalidades. Não parando por aí, Soares (2003) apesar de pontuar alguns outros fatores como responsáveis pela atual falta de especificidade na alfabetização, ela se volta ao que chama de um “ fenômeno mais complexo” ou seja, a mudança conceitual sobre a aprendizagem da língua escrita que se difundiu no Brasil na década de 1980. Em seu trabalho Soares (2003) cita Gaffney e Anderson (2000) para afirmar que nas últimas três décadas houve mudanças nos paradigmas teóricos da alfabetização que podem ser resumidos em: Um paradigma behaviorista que prevaleceu nos anos 1960 e 1970, que na década de 1980 é substituído por um paradigma cognitivista, que é aprimorado na década de 1990 para um paradigma sociocultural. A autora defende que apesar dos estudos de Gaffney e Anderson (2000) terem como contexto os EUA, aqui no Brasil ocorreu o mesmo movimento. Voltando-se a década de 1980 e 1990, diferentemente de Países como os EUA, em que o paradigma cognitivista foi proposto para todo e qualquer conhecimento escolar, no Brasil esse paradigma chega pelo viés da alfabetização, por meio dos estudos de Emília Ferreiro e Ana Teberosky com a psicogênese da língua escrita. Nesse sentido, a concepção de alfabetização passou por uma profunda mudança. Na perspectiva psicogenética, segundo Soares (2003) a construção da representação da língua escrita, pela criança, a coloca como sujeito ativo no processo, capaz de construir e reconstruir esse sistema de representação, interagindo com a língua escrita em seus usos e práticas sociais, contrapondo-se assim, a perspectivas mais tradicionais, em que a criança é dependente de estímulos externos para aprender o sistema de escrita, interagindo com 40 materiais artificialmente produzidos para que a criança aprenda a ler, “os chamados pré requisitos para a aprendizagem da escrita, que caracterizariam a criança “pronta” ou “madura” para ser alfabetizada – pressuposto dos métodos “tradicionais” de alfabetização” ( SOARES 2003 p. 11). Estes pontos anteriores são rejeitados por perspectivas interacionistas que “rejeita uma ordem hierárquica de habilidades, afirmando que a aprendizagem se dá por uma progressiva construção do conhecimento, na relação da criança com o objeto “língua escrita” ( SOARES, 2003, p. 11), e as dificuldades apresentadas pelas crianças, nesse processo de aprendizagem da escrita, são vistos como “ erros construtivos” na perspectiva interacionista, enquanto é vista como “deficiência” ou “disfunções” na perspectiva tradicional. Para Soares (2003) é incontestável a contribuição dessa mudança de paradigma na história da alfabetização no Brasil, no entanto, é preciso reconhecer que alguns equívocos e inferências ocorreram. Em primeiro lugar “Em outras palavras, privilegiando a faceta psicológica da alfabetização, obscureceu-se sua faceta linguística – fonética e fonológica” (SOARES, 2003, p. 11). Em segundo lugar, uma falsa inferência surgiu da concepção construtivista, a de que métodos de alfabetização são incompatíveis com o paradigma conceitual psicogenético, “Talvez se possa dizer que, para a prática da alfabetização, tinha- se, anteriormente, um método, e nenhuma teoria; com a mudança de concepção sobre o processo de aprendizagem da língua escrita, passou-se a ter uma teoria, e nenhum método. (SOARES, 2003, p. 11). Soares (2003) ainda acrescenta que surgiu também um falso pressuposto de que apenas pelo convívio intenso da criança com o material escrito que circula socialmente, a criança se alfabetiza, “A alfabetização, como processo de aquisição do sistema convencional de uma escrita alfabética e ortográfica, foi, assim, de certa forma obscurecida pelo letramento, porque este acabou por frequentemente prevalecer sobre aquela, que, como consequência, perde sua especificidade”. (SOARES, 2003, p. 11). Nesse sentido, segundo Soares (2003), de forma lamentável, atualmente está ocorrendo a percepção de que as crianças estão sendo letradas e não alfabetizadas na escola, e que isto parece estar encaminhando soluções com base em retorno a processos de alfabetização autônomos, independentes do letramento e anterior a ele. Que é o que ela vai chamar de reinvenção da alfabetização, É o que estou considerando ser uma reinvenção da alfabetização que, numa afirmação apenas aparentemente contraditória, é, ao mesmo tempo, perigosa – se representar um retrocesso a paradigmas anteriores, com perda dos avanços e 41 conquistas feitos nas últimas décadas – e necessária – se representar a recuperação de uma faceta fundamental do processo de ensino e de aprendizagem da língua escrita. (SOARES, 2003, p. 14). Como podem perceber, as políticas, anteriores a PNA, seguem as perspectivas interacionista apontada por Soares (2003) nas mudanças de paradigmas que ocorreram no Brasil e em alguns outros países após a década de 1980 e que sim, aqui a discussão do letramento permeou profundamente a principais políticas de alfabetização das últimas décadas. Fica evidente nas políticas anteriores a PNA, sua relação conceitual com perspectivas interacionista e com um processo de alfabetização enraizadamente relacionado ao letramento, de forma que os professores eram formados sob o ideal do alfabetizar letrando, vejam alguns trechos dos documentos: ● PROFA: O principal objetivo desse módulo é demonstrar que a aprendizagem inicial da leitura e da escrita é resultado de um processo de construção conceitual que se dá pela reflexão do aprendiz sobre as características e o funcionamento da escrita. [...] a alfabetização é parte de um processo mais amplo de aprendizagem de diferentes usos da linguagem escrita, em situações de leitura e produção de texto. (BRASIL, 2001, p. 13). ● PRÓ-LETRAMENTO: Assim, não se trata de escolher entre alfabetizar ou letrar; trata-se de alfabetizar letrando. Também não se trata de pensar os dois processos como sequenciais, isto é, vindo um depois do outro, como se o letramento fosse uma espécie de preparação para a alfabetização, ou, então, como se a alfabetização fosse condição indispensável para o início do processo de letramento. O desafio que se coloca para os primeiros anos da Educação Fundamental é o de conciliar esses dois processos, assegurando aos alunos a apropriação do sistema alfabético-ortográfico e condições possibilitadoras do uso da língua nas práticas sociais de leitura e escrita. [...] Assim, entende- se que a ação pedagógica mais adequada e produtiva é aquela que contempla, de maneira articulada e simultânea, a alfabetização e o letramento. (BRASIL, 2008, p. 13). ● PNAIC: “Defendemos que as crianças possam vivenciar, desde cedo, atividades que as levem a pensar sobre as características do nosso sistema de escrita, de forma reflexiva, lúdica, inseridas em atividades de leitura e escrita de diferentes textos. É importante considerar, no entanto, que a apropriação da escrita alfabética não significa que o sujeito esteja alfabetizado. Essa é uma aprendizagem fundamental, mas para que os indivíduos possam ler e produzir textos com autonomia é necessário que eles consolidem as correspondências 42 grafofônicas, ao mesmo tempo em que vivenciem atividades de leitura e produção de textos”. (BRASIL, 2012, p. 22) Vale salientar que, em nossa opinião, fica evidente nos materiais a busca pela conexão entre a alfabetização e o letramento, mas que há uma busca por garantir as especificidades de cada um dos elementos, no entanto, é válido e possivelmente existam pesquisas que expliquem se houve uma superação ou não dos problemas relacionados aos equívocos e inferências errôneas citadas por Soares (2003) infelizmente não nos foi possível expandir nossa pesquisa a esse ponto, mas citamos aqui alguns dados que mostram que os índices ainda demonstram um longo caminho a ser traçado no campo da alfabetização no Brasil. Apesar de perceber a evidência das especificidades nos materiais dos programas, achamos importante trazer essa reflexão de Soares (2003) acerca das especificidades, por acreditar que os processos de formação são complexos e que nem todos os professores brasileiros tiveram acesso aos cursos oferecidos pelos programas e que sim são apontamentos pertinentes, mas principalmente porque a própria PNA (2019 p.18) aponta que a palavra alfabetização causa confusão didática e pedagógica, dificuldade de diálogo entre os atores e os sujeitos envolvidos na educação e desconhecimento dos pais sobre a real alfabetização de seus filhos pois é usada, muitas vezes de forma imprecisa, e se propõe a superar esse equívoco. Mas a que preço e de que forma esses equívocos serão superados. Voltando a Soares (2003), ela nos fala sobre “uma reinvenção da alfabetização” que seria necessária se representasse a recuperação da especificidade do processo de ensino e de aprendizagem da língua escrita, mas nos fala também de uma reinvenção perigosa se representasse um retrocesso a paradigmas anteriores, causando uma perda dos avanços e conquistas feitos nas últimas décadas. Mas quais seriam esses avanços? De forma objetiva, uma vez que seria necessária uma outra pesquisa para pontuar com a qualidade necessária, usarei aspectos bem específicos aqui já citados que representam apenas uma fagulha dos múltiplos avanços. No contexto do Profa, a busca por formar professores alfabetizadores que compreendessem a criança como um sujeito ativo em seu processo de aprendizagem, como o centro de tudo o que é pensado pedagogicamente: Encará-los como pessoas que precisam ter sucesso em suas aprendizagens para se desenvolver pessoalmente e para ter uma imagem positiva de si mesmos, orientando- se por esse pressuposto; desenvolver um trabalho de alfabetização adequado às necessidades de aprendizagem dos alunos, acreditando que todos são capazes de aprender; reconhecer-se como modelo de referência para os alunos: como leitor, 43 como usuário da escrita e como parceiro durante as atividades; utilizar o conhecimento disponível sobre os processos de aprendizagem dos quais depende a alfabetização, para planejar as atividades de leitura e escrita; (BRASIL,2001 p.9) No contexto do PRÓ-LETRAMENTO a busca por compreender o processo de alfabetização de forma não reducionista: A partir dos anos 1980, o conceito de alfabetização foi ampliado com as contribuições dos estudos sobre a psicogênese da aquisição da língua escrita, particularmente com os trabalhos de Emília Ferreiro e Ana Teberosky. De acordo com esses estudos, o aprendizado do sistema de escrita não se reduziria ao domínio de correspondências entre grafemas e fonemas (a decodificação e a codificação), mas se caracterizaria como um processo ativo por meio do qual a criança, desde seus primeiros contatos com a escrita, construiria e reconstruiria hipóteses sobre a natureza e o funcionamento da língua escrita, compreendida como um sistema de representação. Progressivamente, o termo passou a designar o processo não apenas de ensinar e aprender as habilidades de codificação e decodificação, mas também o domínio dos conhecimentos que permitem o uso dessas habilidades nas práticas sociais de leitura e escrita. (BRASIL, 2008, p. 10). No contexto do Pnaic, a compreensão da criança como sujeito sócio histórico, reconhecendo – os como participantes fundamentais de nossa sociedade, como um grupo social; Quadro 11 - Quatro temas apresentados pelo Caderno do Pnaic Quatro temas apresentados pelo Caderno 2 do PNAIC (2015) acerca da criança e da infância: Reconhece-se que, em seus processos de socialização, as crianças sofrem diversas influências – família, escola, mídia, igreja e grupo de pares, por exemplo –, os quais se fazem e desfazem, são sucessivos e contínuos, portanto não terminam quando as crianças deixam a infância. O mundo da infância é feito daquilo que se cria para ele e daquilo que as crianças fazem dele, portanto é fundamental conhecer as interações que as crianças estabelecem em seus espaços e tempos sociais, e a cultura delas. As instituições criadas para as crianças não só efetivam a infância e esse espaço como sendo delas como – e em quarto lugar - reconhecem as crianças como um grupo social. Fonte: Própria autora (2020). Mas, o que seria essa reinvenção da alfabetização que pode ser necessária ou perigosa? No contexto atual a PNA se demonstra necessária ou perigosa? Vejamos... Soares (2003) de forma bastante didática nos apresenta em seu texto um termo usado com frequência na área da educação representando a tendência ao raciocínio alternativo (ou isso, ou aquilo, se isto, então, não aquilo) a metáfora da “curva da vara”. Segundo ela, essa 44 autonomização ou desvinculação do letramento com o processo de alfabetização, como vem ocorrendo atualmente, pode ser lida como a curvatura da vara para o outro lado, se anteriormente a vara curvava-se em direção a perda da especificidade, neste momento revela- se curvando radicalmente para o outro lado, O “lado” contra o qual essa tendência se levanta, aquele que, de certa forma, dominou o ensino da língua escrita não só no Brasil, mas também em vários outros países, nas últimas décadas, baseia-se numa concepção holística da aprendizagem da língua escrita, de que decorre o princípio de que aprender a ler e a escrever é aprender a construir sentido para e por meio de textos escritos, usando experiências e conhecimentos prévios; no quadro dessa concepção, o sistema grafofônico (as relações fonema–grafema) não é objeto de ensino direto e explícito, pois sua aprendizagem decorreria de forma natural da interação com a língua escrita. É essa concepção e esse princípio que fundamentam a whole language, nos Estados Unidos, e o chamado construtivismo, no Brasil. (SOARES, 2003, p. 12, grifo do autor). No entanto, segundo Soares (2003) com base nos resultados de avaliações, especialmente de larga escala, essa perspectiva tem recebido múltiplas críticas não só no Brasil como em países como, França e EUA, que geralmente são usados como referência para nós, por não ter no cerne de sua concepção a instrução direta e específica do código alfabético e ortográfico. Porém, com base em algumas pesquisas que você leitor poderá ter acesso no texto completo de Soares (2003), França e EUA constituem uma “reinvenção da alfabetização” diferenciada do Brasil, uma vez que evidenciam a concepção de aprendizagem da língua escrita de uma forma mais ampla e multifacetada, o que os estudos de ambos os países demonstram é a necessidade de que a especificidade/faceta da alfabetização recupere sua importância no processo de aprendizagem da escrita de forma que ela seja objeto de ensino direto, explícito e sistemático. Em nosso contexto, o que tem se apresentado são grupos a favor e contra determinado processos, que numa tendência ao radicalismo tornam essa reinvenção perigosa, voltando a metáfora da curva da vara, demonstrando que para endireitar a vara fosse necessário levá-la aos extremos do lado oposto “O que é preciso reconhecer é que o antagonismo, que gera radicalismos, é mais político que propriamente conceitual[...]” (SOARES, 2003, p. 14) De forma geral, o que diferencia ambas concepções, a partir de Soares (2003) é: [...] enquanto nas primeiras considera-se que as relações entre o sistema fonológico e os sistemas alfabético e ortográfico devem ser objeto de instrução direta, explícita e sistemática, com certa autonomia em relação ao desenvolvimento de práticas de leitura e escrita, nas segundas considera-se que essas relações não constituem propriamente objeto de ensino, pois sua 45 aprendizagem deve ser incidental, implícita, assistemática, no pressuposto de que a criança é capaz de descobrir por si mesma as relações fonema–grafema, em sua interação com material escrito e por meio de experiências com práticas de leitura e de escrita. Pode-se talvez dizer que, no primeiro caso, privilegia-se a alfabetização, no segundo caso, o letramento (SOARES, 2003, p. 4, grifos do autor). Ainda para Soares (2003) é um equívoco dissociar alfabetização e letramento porque nos campos de estudo das atuais concepções psicológicas, linguísticas e psicolinguísticas de leitura e escrita, no mundo escrito ambos os processos ocorrem simultaneamente “pela aquisição do sistema convencional de escrita – a alfabetização – e pelo desenvolvimento de habilidades de uso desse sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que envolvem a língua escrita – o letramento” (SOARES, 2003, p. 14) e dessa forma não se revelam como independentes, mas interdependentes e indissociáveis. E no contexto da PNA, é claramente está a proposta, de autonomizar o processo de alfabetização, de torna-lo independente do processo de letramento ou Literacia no contexto na Política. Vejamos algumas partes da PNA que evidenciam essa perspectiva. Acerca do processo de ensino da língua escrita que consta no caderno da PNA “deve ser ensinado de forma explícita e sistemática, numa ordem que deriva do mais simples para o mais complexo” (BRASIL, 2019, p. 18), nas diretrizes do decreto em seu Art. 3º consta “ IV. Ênfase no ensino de seis componentes essenciais para a alfabetização: a) consciência fonêmica; b) instrução fônica sistemática; c) fluência em leitura oral; d) desenvolvimento de vocabulário; e) compreensão de textos; e f) produção de escrita; ”. Soares (2003) em um movimento reflexivo admirável e milimétrico, evidencia em sua obra que as relações teóricas e práticas estão na ordem do dia, em 2003 e em 2020, uma vez que equívocos e errôneas inferências ocorriam e ainda ocorrem, e que apesar dos diversos esforços já feitos até os dias atuais, seja na formação de professores, seja na produção de materiais pedagógicos por meio das políticas e programas, os índices ainda demonstram que há muito a ser feito. No entanto, é fundamental afirmarmos aqui que a PNA infelizmente, não reflete a necessária reinvenção da alfabetização demonstrada por Soares (2003) mas que representa a “curvatura da vara” para o lado oposto, revelando em toda sua composição a expressão de um antagonismo radical que, a partir de nossas reflexões, tendem perigosamente a nos levar de volta aos paradigmas retrógrados já superados. Assim como defende Soares (2003) compreendemos que o processo de alfabetização não deve ser dissociado do letramento, e assim como é evidenciado nas políticas anteriores 46 a PNA, que definitivamente demonstram essa preocupação de alfabetizar na perspectiva do letramento, a PNA não deveria representar um rompimento com os avanços e perspectivas que foram construídos ao longo de mais de duas décadas de estudos e pesquisas, mas que deveria, assim como as anteriores, representar, se não uma continuação, mas um aperfeiçoamento do que já vem sendo construídos pelos pesquisadores e professores de nosso país. 5.1 Uma política, um método! A concepção tradicional de alfabetização não se expressa apenas teoricamente, ela se traduz na prática, ainda que muitos dos sujeitos que a praticam não tenham consciência dessa relação, o que não é o caso dos idealizadores/produtores da PNA. Nesse sentido para SOARES (2003) essa concepção tradicional em que a alfabetização e o letramento são independentes é traduzida nos métodos analíticos ou sintéticos. a alfabetização – a aquisição do sistema convencional de escrita, o aprender a ler como decodificação e a es-crever como codificação – precedendo o letramento – o desenvolvimento de habilidades textuais de leitura e de escrita, o convívio com tipos e gêneros variados de textos e de portadores de textos, a compreensão das funções da escrita. (SOARES, 2003, p. 14). Para Soares (2003) nas concepções atuais, em que os processos de alfabetização e letramento ocorrem de forma simultânea, não há espaço para apenas um método, mas para múltiplos métodos, no quadro desta concepção, não há um método para a aprendizagem inicial da língua escrita, há múltiplos métodos, pois a natureza de cada faceta determina certos procedimentos de ensino, além de as características de cada grupo de crian- ças, e até de cada criança, exigir formas diferenciadas de ação pedagógica (SOARES, 2003, p. 16). Infelizmente, no contexto da PNA, o que se evidencia, não é o espaço para a busca do professor ao método mais adequado a realidade de sua turma e de seu alunado, mas é a nítida orientação da política acerca de um método para a aprendizagem inicial da língua escrita, vejamos alguns trechos da política que evidenciam essa orientação, Para a PNA o passo crucial para a alfabetização é o princípio alfabético, a compreensão do sujeito acerca da correspondência grafema-fonema (sinais gráficos-sons da fala), e esse passo “deve ser ensinado de forma explícita e sistemática, numa ordem que deriva do mais simples para o mais complexo (BRASIL, 2019, p. 18). 47 Vejamos mais um trecho; Do ponto de vista operacional, alfabetizar é: no primeiro ano do ensino fundamental, ensinar explicitamente o princípio alfabético e as regras de decodificação e de codificação que concretizam o princípio alfabético na variante escrita da língua para habilitar crianças à leitura e soletração de palavras escritas à razão de 60 a 80 palavras por minuto com tolerância de no máximo 5% de erro na leitura. (BRASIL, 2019, p. 18). A única proposta metodológica disposta na PNA para a aprendizagem inicial da língua escrita, e que vem para reafirmar os pontos anteriormente apresentado por nós, é o método sintético e fônico, que segundo Ferreiro e Teberosky (1984) consiste em um processo voltado a correspondência entre o oral e o escrito, entre o som e a grafia, em que o ponto principal desse método é estabelecer essas correspondências a partir dos elementos mínimos, em um processo que, como a própria PNA define, vai do mais simples para o mais complexo, das partes para o todo. A PNA então, traz o fonema como a unidade mínima da fala, que deve ser associada a representação gráfica correspondente. Ferreiro e Teberosky (1984) serão nossa base teórica para discutir aqui o elemento do método disposto na PNA de forma mais específica e de forma mais ampla nas demais políticas anteriores a PNA. Voltando as características do método fônico proposto pela PNA, com base em Ferreiro e Teberosky (1984), é necessário que a criança seja capaz de isolar e conhecer os diferentes fonemas de seu idioma para poder, posteriormente, estabelecer as correspondências com os respectivos sinais gráficos. Como o foco do método está na análise auditiva para separação dos sons e estabelecimento de correspondências grafema-fonema (Letras-sons) duas questões se instituem previamente: a) que a pronúncia seja correta para evitar confusões entre os fonemas, e b) que as grafias de formas semelhantes sejam apresentadas separadamente para evitar confusões visuais entre as grafias. Outro dos importantes princípios para o método é ensinar um par de fonema-grafema por vez, sem passar ao seguinte enquanto a associação não esteja bem fixada. Na aprendizagem, está em primeiro lugar a mecânica da leitura (Decifrado do texto) que, posteriormente, dará lugar à leitura “ inteligente” (compreensão do texto lido) que, culminando em uma leitura expressiva, na qual se junta a entonação (FERREIRO; TEBEROSKY, 1984, p. 21). Nesse contexto metodológico sintético, inicialmente a aprendizagem da leitura e da escrita é uma questão mecânica, trata-se de adquirir as técnicas necessárias para decifrar o 48 texto, “Pelo fato de se conceber a escrita como a transcrição gráfica da linguagem oral, como sua imagem (imagem mais ou menos fiel, segundo casos particulares), ler é decodificar o escrito em som” (FERREIRO; TEBEROSKY, 1984, p. 22). Mas como bem evidencia, Ferreiro e Teberosky (1984), o método se torna mais eficaz mediante um sistema de escrita o mais de acordo possível com os princípios alfabéticos, ou seja, quanto mais próxima seja a correspondência som – letra mais eficaz o método se torna. Por esta razão é que se recomenda que esse processo de aprendizagem da leitura e da escrita se dê inicialmente com os casos de “ortografia regular”, ou seja, como palavras em que a grafia corresponda com a pronúncia. E é para esse processo que as cartilhas e os livros de iniciação a leitura existem, para reunir todos esses princípios: “evitar confusões auditivas e /ou visuais; apresentar um fonema (e seu grafema correspondente por vez); e finalmente trabalhar com os casos de ortografia regular” (FERREIRO; TEBEROSKY, 1984, p. 22). Nesse tipo de material, geralmente são usadas sílabas sem sentido, o que gera a inevitável dissociação do som de seu significado e assim, a leitura da fala. Para Ferreiro e Teberosky (1984) estes princípios não se expressam apenas como posturas metodológicas, mas correspondem a concepções psicológicas muito específicas. Assim sendo, a ênfase nas discriminações auditivas e visuais e a correspondência grafema- fonema, revelam um processo de aprendizagem da leitura visto como mera associação entre as respostas sonoras à estímulos gráficos, modelo coerente com a perspectiva associacionista originada na concepção empirista de desenvolvimento. Ferreiro e Teberosky (1984) afirmam que há uma certa confusão acerca da compreensão do que são métodos de ensino e processos de aprendizagens e que esse equívoco leva a uma percepção dicotomizada da aprendizagem, em que esta, se divide em dois momentos: “quando não se sabe, inicialmente, é necessário passar por uma etapa mecânica; quando já se sabe, chega-se a compreender ( momentos claramente representados pela sequência clássica “ leitura mecânica, compreensiva)” (FERREIRO; TEBEROSKY, 1984, p. 22). Vale aqui salientar, mesmo tendo buscado evidenciar desde o início de nosso trabalho, essas perspectivas, como define Ferreiro e Teberosky (1984) de “ primitivo mecanismo” vem sendo superadas a mais de duas décadas com base em estudos e pesquisas internacionalmente reconhecidas. Apesar dos inúmeros programas e políticas voltados a formação de professores esse método e essas perspectivas de aprendizagem são insistentes no cotidiano escolar. Assim 49 como na década de 1980 em que Ferreiro e Teberosky (1984) lançam suas pesquisas, nos dias atuais ela encontra adesão em muito profissionais que, por inúmeras razões, se encontram menos engajados nos avanços científicos e mais apegados as tradições do que “antigamente funcionava”, respaldados por discursos e no caso da PNA – documentos, que buscam um processo de retomada da aprendizagem num contexto de autoridade do professor por meio de metodologias de ensino mais tradicionais, que como bem evidencia Ferreiro e Teberosky (1984) tem aplicações práticas que costumam exceder o próprio método, chegando, em determinadas ocasiões, a parecer que literalmente se baseiam no velho e funesto refrão “ La letra com sagre entra” . No intuito de evitar equívocos, não estamos nos referindo a processos de violência ou abusos físicos, mas em processos de aprendizagem que causam diversos impactos emocionais, psicológicos, entre outros, na relação da criança com a leitura, a escrita e aprendizagem de forma geral. Acerca da discussão e proposição de métodos nas políticas anteriores a PNA, não identificamos indicação de um método de alfabetização, mas de teorias de aprendizagem, de forma que ao professor se propunha autonomia plena e reflexiva sobre os métodos e melhores abordagens nos processos de ensino-aprendizagem da leitura e da escrita. A partir de nossas reflexões, chegamos ao ponto de que, para além do retrocesso que o retorno à teorias empiristas, no atual contexto educacional brasileiro, representa, infelizmente a proposta unitária do método exposto na PNA, só nos revela que, como bem evidencia Soares (2003), documentos como a PNA representam um retorno a processos e paradigmas educacionais sistemáticos e reducionistas perigosamente guiados por antagonismos radicais, que muitas vezes representam mais o viés da disputa política do discurso ideológico, que uma preocupação genuinamente pedagógica. 5.2 Letramento ou Literacia? Como evidenciado por Soares (2003) e pela própria PNA o termo Literacia surge na década de 1980 em diversos países como França, EUA, e Portugal, e assim como nos demais, no Brasil surge com uma nomenclatura própria, letramento. Em nossa análise não iremos propriamente nos ater ao que significa Letramento ou Literacia, pois nos diversos países o termo tem um significado, até certo ponto, comum, sendo este de forma objetiva o “desenvolvimento de habilidades de uso do sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que envolvem a língua escrita” (SOARES, 50 2003, p. 14) que infelizmente no contexto da PNA, diferentemente, dos documentos e pesquisas que são utilizados para referenciar o termo na própria PNA, baseado em produções científicas internacionais, aparece com significações e aplicações superficiais e reducionistas . Mas iremos nos voltar a seguinte questão, por que mudar a nomenclatura brasileira para se adequar/alinhar-se internacionalmente? Para fazermos uma breve leitura do que significa essa mudança proposta pela PNA, em nossa perspectiva, nos embasaremos nos estudos de Coelho (2016) que nos lembra de como o processo de escolarização, e em especial alfabetização no Brasil se deu sempre pelo interesse de grupos colonizadores ou por discursos colonizadores. Em uma de suas extensas reflexões Coelho (2016) afirma que os processos que nos constituíram como sujeitos da escrita se deu por um passado que se fez linguagem e memória, e que desde de a imposição dos colonizadores de suas línguas aos povos originários, a condição de população analfabeta nos foi concedida e foi esse movimento que orientou a formação de uma elite política, cultural e social no Brasil e no mundo. O lugar do não saber sempre foi nosso. Nesse sentido, o ponto que nos apegamos neste momento é acerca da valorização das construções e elaborações dos pesquisadores brasileiros, da nomenclatura que construímos para designar nossos processos e da compreensão de que processos de adequação já ocorreram demais em nosso país e ao nosso povo. Nossa língua foi imposta, mas no traçar dos tortuosos caminhos que nos trouxeram ao mundo que conhecemos hoje, conseguimos caminhar a ponto de dominar essa língua, ressignificá-la e fazer ciência de forma excepcional. Dessa forma, esse ponto se constitui para defender o termo letramento como nomenclatura nossa, própria e negar mais um processo de adequação ao pensamento Eurocêntrico que nos levou e nos leva a desvalorizar nossas próprias construções. Vale ainda ressaltar que a mudança dos termos tem implicações de ordem social e ideológica, uma vez que representa o apagamento de décadas de pesquisas e produções científicas no campo da alfabetização no Brasil e vinculá-se a um movimento conservador e neoliberal que emergiu violentamente no contexto político brasileiro e mundial nos últimos anos. Na prática esse movimento político consiste em um forte enfrentamento a perspectivas e concepções progressistas em todos os campos científicos e de elevações inconsistentes e inconsequentes de teorias empiristas e liberais. 51 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Iniciamos essa pesquisa nos propondo a construir um olhar acerca da Política Nacional de Alfabetização (2019) traçando um paralelo entre ela e as demais políticas anteriores entre os anos 2000 e 2018. Nessa trajetória, buscamos apresentar da melhor maneira possível cada uma das políticas evidenciando diversos pontos de cada uma, pontos inclusive que não nos foi possível acolher de forma mais específica nas reflexões, mas que ao nosso ver era importante para que você leitor pudesse compreender a essência dos documentos. Esperamos que ao chegar aqui, esta pesquisa tenha conseguido comunicar os resultados desse “olhar” sobre a PNA, mas caso não tenhamos conseguido ser claros o suficiente no decorrer do texto, deixaremos mais evidente a seguir. Acerca da perspectiva de alfabetização que a PNA defende: afirmarmos aqui que a PNA infelizmente, não reflete a necessária reinvenção da alfabetização demonstrada por SOARES (2003) mas que representa a “curvatura da vara” para o lado oposto, revelando em toda sua composição a expressão de um antagonismo radical que, a partir de nossas reflexões, tendem perigosamente a nos levar de volta aos paradigmas retrógrados já superados. Acerca da proposição do método fônico presente na PNA : a partir de nossas reflexões, chegamos ao ponto de que, para além do retrocesso que o retorno à teorias empiristas, no atual contexto educacional brasileiro, representa, infelizmente a proposta unitária do método fônico exposto na PNA, só nos revela que, como bem evidencia SOARES (2003), documentos como a PNA representam um retorno a processos e paradigmas educacionais sistemáticos e reducionistas perigosamente guiados por antagonismos radicais, que muitas vezes representam mais o viés da disputa política do discurso ideológico, que uma preocupação genuinamente pedagógica. Acerca da mudança da nomenclatura de Letramento para Literacia buscando alinhar-se internacionalmente: O ponto que nos apegamos neste momento é acerca da valorização das construções e elaborações dos pesquisadores brasileiros, da nomenclatura que construímos para designar nossos processos e da compreensão de que processos de adequação já ocorreram demais em nosso país e ao nosso povo. Nossa língua foi imposta, mas no traçar dos tortuosos caminhos que nos trouxeram ao mundo que conhecemos hoje, conseguimos caminhar a ponto de dominar essa língua, resignificá-la e fazer ciência de forma excepcional. Dessa forma, esse ponto se constitui para defender o termo letramento como 52 nomenclatura nossa, própria e negar mais um processo de adequação ao pensamento Eurocêntrico que nos levou e nos leva a desvalorizar nossas próprias construções. Considerando que nossa proposta era desde o início que era apresentar ao leitor um olhar mais atento, uma reflexão, um ponto de vista (com base científica) sobre a PNA (2019) e o que ela representa no atual contexto educacional brasileiro, acreditamos que o objetivo deste trabalho foi alcançado, e que apesar dos diversos percalços que o contexto de quarentena, de saúde mental e de revezamento de materiais tecnológicos para produção deste trabalho nos colocaram, perseveramos por acreditar que é de suma importância refletir sobre os documentos e em si, os discursos, que permeiam as propostas de superação da questão da alfabetização no Brasil. Reforçamos ainda que esta pesquisa é apenas uma gota em um oceano de possibilidades que permeiam a análise desta política, e que muitos pontos fundamentais não foram por nós alcançados, mas esperamos que através dela novos pesquisadores possam ser inspirados a aprofundar estas discussões, a construir reflexões cada vez mais importantes e a contribuir com essa iniciativa. Desejamos que este trabalho seja uma semente e que muitos possam florescer e frutificar com árvores muito maiores. 53 REFERÊNCIAS BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm. Acesso em: 10 jul. 2020. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Alfabetização. Política Nacional de Alfabetização - PNA. Brasília: MEC; SEALF, 2019. 54 p. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. 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