UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MESTRADO EM DIREITO TIAGO JOSÉ DE SOUZA LIMA BEZERRA A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DA DEMOCRACIA DIGITAL NO DIREITO BRASILEIRO: a regulação das políticas e estratégias de governança digital na Administração Pública Federal NATAL 2020 TIAGO JOSÉ DE SOUZA LIMA BEZERRA A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DA DEMOCRACIA DIGITAL NO DIREITO BRASILEIRO: a regulação das políticas e estratégias de governança digital na Administração Pública Federal Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Professor Doutor Otacilio dos Santos Silveira Neto NATAL 2020 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas - CCSA Bezerra, Tiago José de Souza Lima. A constitucionalização da democracia digital no direito brasileiro: a regulação das políticas e estratégias de governança digital na Administração Pública Federal / Tiago José de Souza Lima Bezerra. - 2020. 190f.: il. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Programa de Pós-Graduação em Direito. Natal, RN, 2020. Orientador: Prof. Dr. Otacílio dos Santos Silveira Neto. 1. Dados abertos - Dissertação. 2. Democracia digital - Dissertação. 3. Democracia participativa - Dissertação. 4. Governança da internet - Dissertação. 5. Governança digital - Dissertação. 6. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - Dissertação. I. Silveira Neto, Otacílio dos Santos. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/UF/Biblioteca CCSA CDU 342.721:351 Elaborado por Eliane Leal Duarte - CRB-15/355 A todos os pesquisadores, cientistas e bolsistas das universidades federais brasileiras. AGRADECIMENTOS Primeiramente, a mim mesmo, por não ter desistido diante de tantos desafios. A Deus, energia cósmica universal, e a todos os guias espirituais que estiveram comigo durante esta jornada. À minha família: meus pais; Amor; minhas irmãs, Gal e Gói; Liege; Jaqueline; Diego; e Dona Marinês. Aos meus amigos de Caicó, especialmente, Cínthia Ferreira; Mislene Ingrid; Gabriel Fernandes; e Isadora Martins. Aos grandes amigos e companheiros que conheci no mestrado: Thaisi Leal e Gabriel Maciel. A Marcelo Modesto, por ter cuidado da minha saúde mental durante este processo. Ao meu orientador, Dr. Otacílio dos Santos Silveira Neto. Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, especialmente: Patrícia Borba Vilar Guimarães; Adriana Carla Oliveira; Ivan Lira de Carvalho; Fabrício Germano Alves; e Artur Cortez Bonifácio. Aos professores do curso de Direito do Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES/UFRN), em especial, ao Dr. Orione Dantas de Medeiros. Ao Projeto Embaixadoras de Inovação Cívica, da Open Knowledge Brasil. Ao Comitê Gestor da Internet no Brasil, por proporcionar a participação no Programa Youth Brasil. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior — Brasil (CAPES) — Código de Financiamento 001. “The revolution will not be televised.” (Gil Scott-Heron) “Tem dias que a gente se sente Como quem partiu ou morreu A gente estancou de repente Ou foi o mundo então que cresceu A gente quer ter voz ativa No nosso destino mandar Mas eis que chega a roda vida E carrega o destino pra lá Roda mundo, roda-gigante Roda moinho, roda pião O tempo rodou num instante Nas voltas do meu coração.” (Chico Buarque) RESUMO O presente trabalho trata da democracia digital sob a perspectiva da governança pública e da importância da utilização de tecnologia da informação e comunicação (TIC) para a consecução dos princípios constitucionais da atividade administrativa. Considerando-se a governança da internet um processo multissetorial complexo que envolve a interação de diversos agentes, o tema será delimitado a partir dos seus aspectos jurídicos, mediante o método dialético com pesquisa aplicada bibliográfica de documentos que abarquem os conceitos da democracia digital, sua relação com a regulação da governança de dados, e sua manifestação na Administração Pública Federal através das políticas e estratégias de governança digital. Justifica-se a relevância dessa pesquisa diante da atualidade do tema e das implicações práticas das políticas de governança digital na sociedade, afinal, com a expansão de medidas eficientes voltadas para a abertura de dados, transparência, publicidade e participação social, a TIC passou a afetar todos os elementos que tradicionalmente constituem o Estado Moderno, principalmente após a revelação da 4ª Revolução Industrial. Verifica-se que existe uma problemática causada pelo conflito entre o direito fundamental à proteção de dados pessoais e o direito à publicidade/transparência, desdobrado nas iniciativas de Governo Aberto, nos pedidos de acesso à informação e, de modo prático, para a exploração econômica de dados (monetização). Diante disso, objetiva-se analisar as implicações jurídicas causadas pelo uso de TIC na governança pública, como ferramenta de persecução da democracia, na Administração Pública Federal, além de discorrer sobre as consequências da (in)existência de regulação sobre a matéria, em meio a uma crescente economia baseada em dados. Conclui-se que a realização da democracia digital pressupõe a superação do modelo liberal da representação política, de modo que a participação social seja efetivada pelos princípios da governança pública e ampliada pela abertura de dados governamentais. Constata-se que as normas da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais são compatíveis com os princípios constitucionais da ordem econômica, em especial a livre iniciativa, e com as operações de tratamento de dados que exijam sua abertura e publicidade, considerando-se que a monetização de dados, dentro da legalidade, é condicionada por fatores que limitam seu uso indevido, e aquelas atividades constituem um importante fator para o desenvolvimento nacional na economia digital. Palavras-chave: Dados abertos. Democracia digital. Democracia participativa. Governança da internet. Governança digital. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. ABSTRACT This master thesis deals with digital democracy from the perspective of public governance and the importance of using information and communications technology (ICT) to achieve the constitutional principles of administrative activity. Considering internet governance as a complex multisectoral process that involves the interaction of diverse agents, the theme will be delimited from its legal aspects by means of the dialectical method with the applied bibliographic research of documents that encompass the concepts of digital democracy, its relation with data governance regulation and its manifestation in the Federal Public Administration through digital governance policies and strategies. The relevance of this research is justified in view of the topicality of the theme and the practical implications of digital governance policies in society, after all, with the expansion of efficient measures aimed at opening data, transparency, disclosure and social participation, ICT started to affect all the elements that traditionally constitute the Modern State, mainly after the revelation of the 4th Industrial Revolution. It seems that there is a problem caused by the conflict between the fundamental right to the protection of personal data and the right to disclosure/transparency, unfolded in Open Government initiatives, requests for access to information and, in a practical way, for the economic exploitation of data (monetization). Given this, the objective is to analyze the legal implications caused by the use of ICT in public governance as a tool for the pursuit of democracy in the Federal Public Administration, in addition to discussing the consequences of the (non)existence of regulation on the matter amid a rising data-driven economy. It is concluded that the achievement of digital democracy implies the overcoming of the liberal model of political representation, so that social participation is accomplished by the public governance principles and expanded by the opening of government data. It seems that the rules of the Brazilian General Data Protection Law are compatible with the constitutional principles of the economic order, mainly free enterprise, and with data processing operations that require its opening and disclosure, considering that data monetization, within legality, is conditioned by factors that limit its improper use, and those activities constitute an important factor for national development in digital economy. Keywords: Open data. Digital democracy. Participatory democracy. Internet governance. Digital governance. General Data Protection Law. LISTA DE FIGURAS Figura 1 — Distribuição geográfica dos integrantes do Projeto Embaixadoras no 1º ciclo de inscrições...................................................................................................................................67 Figura 2 — Distribuição geográfica dos novos integrantes do Projeto Embaixadoras no 2º ciclo de inscrições..............................................................................................................................68 Figura 3 — Ecossistema da Internet.......................................................................................123 LISTA DE TABELAS Tabela 1 — Total acumulado de Eventos Interativos (e-Cidadania) entre 2012 e 18/10/2020................................................................................................................................57 Tabela 2 — Número de participantes e perguntas por tipo de Evento Interativo...................................................................................................................................58 Tabela 3 — Total acumulado da Consulta Pública (e-Cidadania) entre 2013 e 18/10/2020................................................................................................................................61 Tabela 4 — Total acumulado das Ideias Legislativas (e-Cidadania) entre 2012 e 18/10/2020................................................................................................................................62 Tabela 5 — Número de Ideias Legislativas por situação...........................................................63 LISTA DE QUADROS Quadro 1 — Diferenças entre governo e governança...............................................................47 Quadro 2 — Ferramentas do Portal e-Cidadania......................................................................54 Quadro 3 — Competências da ANPD....................................................................................115 Quadro 4 — Conselho Diretor da ANPD, nomeado pela Presidência da República em 15 de outubro de 2020.......................................................................................................................118 Quadro 5 — Atribuições e estrutura do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br)...........124 Quadro 6 — Princípios, diretrizes e mecanismos da Política de Governança da Administração Pública Federal........................................................................................................................140 Quadro 7 — Finalidades, princípios e diretrizes da Política de Governança Digital (Decreto nº 8.638/2016).............................................................................................................................148 Quadro 8 — Comparação entre os princípios gerais da atividade econômica e os princípios de liberdade econômica................................................................................................................163 Quadro 9 — Direito autônomo à proteção de dados pessoais na jurisprudência do STF (ADI 6.387 MC-REF/DF)................................................................................................................165 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 — Relatório de Eventos Interativos (e-Cidadania) entre 2012 e 18/10/2020.............57 Gráfico 2 — Relatório da Consulta Pública (e-Cidadania) entre 2013 e 18/10/2020................60 Gráfico 3 — Relatório das Ideias Legislativas (e-Cidadania) entre 2012 e 18/10/2020..........62 LISTA DE INFOGRÁFICOS Infográfico 1 — Histórico das mudanças para entrada em vigor da LGPD e possíveis cenários, em junho/2020...........................................................................................................................73 Infográfico 2 — O escândalo Cambridge Analytica.................................................................93 Infográfico 3 — Atores envolvidos no escândalo da Cambridge Analytica..............................94 Infográfico 4 — As quatro Revoluções Industriais.................................................................134 Infográfico 5 — Riscos das Revoluções Industriais................................................................135 Infográfico 6 — Principais marcos do Governo Eletrônico à Governança Digital (2000 – 2020).......................................................................................................................................145 Infográfico 7 — Linha do tempo, do Governo Eletrônico à Governança Digital (2000 – 2018).......................................................................................................................................146 Infográfico 8 — Conceitos fundamentais sobre dados abertos (artigo 2º, I – V, Decreto nº 8.777/2016).............................................................................................................................154 Infográfico 9 — Benefícios do uso de dados abertos governamentais para a sociedade..........159 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................15 2 AS BASES TEÓRICAS DA CONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA DIGITAL...........20 2.1 DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO SOCIAL..............................................................20 2.2 DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA À DEMOCRACIA PARTICIPATIVA.........33 2.3 A DEMOCRACIA DIGITAL.............................................................................................47 3 O DIREITO REGULATÓRIO DA GOVERNANÇA DE DADOS...............................70 3.1 DA REGULAÇÃO DA INTERNET À GOVERNANÇA DE DADOS..............................70 3.2 A ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DAS AGÊNCIAS REGULADORAS............95 3.3 A NATUREZA JURÍDICA DA AUTORIDADE NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS..........................................................................................................105 4 A GOVERNANÇA DA INTERNET NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA..................................................................................................................122 4.1 A REVOLUÇÃO 4.0 E A GOVERNANÇA DA INTERNET..........................................122 4.2 DO GOVERNO ELETRÔNICO À GOVERNANÇA DIGITAL.....................................137 4.3 GOVERNO ABERTO E DADOS ABERTOS GOVERNAMENTAIS............................152 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................168 REFERÊNCIAS....................................................................................................................174 15 1 INTRODUÇÃO Questionar o padrão dos elementos que tradicionalmente constituem e definem um Estado Democrático de Direito é um dos primeiros passos para se iniciar a discussão sobre o status vigente das democracias contemporâneas e das suas projeções para um futuro a ser instaurado definitivamente sob a influência da presença da tecnologia da informação e comunicação (TIC) nas relações sociais, políticas, culturais, jurídicas e econômicas. O Estado Democrático de Direito representa um novo conceito revolucionário de transformação do status quo, ao ser formado da superação e da reunião entre o Estado Democrático e o Estado de Direito1. Tem-se no século XXI a ascensão de uma “revolução” comandada, desta vez, por agentes tecnológicos globais que redimensionam os conceitos, as estruturas, as relações e os poderes decorrentes do Estado de Direito, seja ele democrático ou não. A própria concepção de democracia se expande diante desse frenesi revolucionário, dando origem às discussões sobre o controverso processo recorrentemente denominado “democracia digital”. A relevância dessa pesquisa se justifica diante do corrente processo de inovação, conjugado às novas tecnologias decorrentes da 4ª Revolução Industrial, que invade a Administração Pública, a partir de iniciativas estatais e parcerias com o setor privado, com o objetivo de melhorar a eficiência da atividade administrativa e a qualidade dos serviços públicos oferecidos, pautando-se na reaproximação entre o Estado e a sociedade, e se utilizando de instrumentos típicos da democracia participativa e caracterizadores da governança pública que, sob os auspícios do contexto tecnológico, ganha a acepção de governança digital. Inevitavelmente, surgem questionamentos sobre a legitimidade e a constitucionalidade dessas ações. A partir de quais princípios constitucionais derivam as normas que fundamentam as estratégias e políticas de governança digital na Administração Pública Brasileira? É possível traçar uma análise regulatória para a delimitação da atuação estatal e dos agentes privados no uso das tecnologias da informação e comunicação como instrumentos da atividade administrativa, considerando-se que esse exercício implica, necessariamente, no tratamento de dados (pessoais) e na sua monetização? A partir da investigação desses problemas, surge essa dissertação, inserida na linha de pesquisa “Constituição, Regulação Econômica e Desenvolvimento”, pertencente à área de concentração “Constituição e Garantia de Direitos”, do Programa de Pós-Graduação em Direito, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 1 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 114. 16 Apesar de o tratamento de dados pessoais envolver atividades em meios físicos e digitais, o foco desse trabalho é o ecossistema da governança da internet. A partir da compreensão desse fenômeno, surge o entendimento sobre a importância da imprescindível participação social na governança pública que, com a utilização da tecnologia da informação e comunicação, ganha o status de governança digital e promove novos métodos para o processo democrático: a democracia digital. A construção do estágio atual não se deu ao acaso. O corrente processo democrático e o referencial que se tem de Estado-Nação assim se apresentam devido a fatores históricos, jurídicos, sociais, políticos, econômicos, religiosos, filosóficos e tecnológicos que se interseccionam e datam de eras demasiadamente precedentes ao século XIX. O objetivo deste trabalho não é, todavia, fazer uma reconstrução historiográfica pormenorizada do surgimento da democracia desde os seus primeiros indícios na Grécia Antiga até os dias atuais. Este é um trabalho científico-jurídico sobre a regulação dos processos de governança da internet referentes ao tratamento de dados pelo setor público em diferentes contextos democráticos. Não obstante, utilizar-se-á uma abordagem metodológica interdisciplinar, pelo fato de que é impossível encontrar soluções para os problemas propostos unicamente através da ciência jurídica. A Economia, a Tecnologia da Informação, a Comunicação Social, a Ciência Política e a Filosofia são fundamentais para preencher algumas das lacunas que o Direito tem deixado desde que assumiu para si a institucionalização do Estado e das relações de poder entre os homens. Diante da necessidade de interdisciplinaridade e da compreensão do objeto de estudo em sua visão holística, abarcada por inúmeros fatores determinantes próprios de cada uma daquelas ciências, far-se-á uso do método dialético2. Trata-se de pesquisa aplicada, cujos resultados ultrapassam o campo teórico e visam a estabelecer meios para a solução eficiente de problemas estruturais e institucionais atuais na Administração Pública através do uso da tecnologia da informação e comunicação. Não obstante, reconhece-se a importância de uma fundamentação teórica robusta e fundamentada nos preceitos normativos do ordenamento jurídico pátrio. Governos, agentes privados, grupos de pesquisa e a própria sociedade civil poderão utilizar os parâmetros estabelecidos nesse 2 “Portanto, para a dialética, as coisas não são analisadas na qualidade de objetos fixos, mas em movimento: nenhuma coisa está ‘acabada’, encontrando-se sempre em vias de se transformar, desenvolver; o fim de um processo é sempre o começo de outro. Por outro lado, as coisas não existem isoladas, destacadas uma das outras e independentes, mas como um todo unido, coerente. Tanto a natureza quanto a sociedade são compostas de objetos e fenômenos organicamente ligados entre si, dependendo uns dos outros e, ao mesmo tempo, condicionando-se reciprocamente.” (LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de Metodologia Científica. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 101.) 17 trabalho para avaliar o status da democracia digital em suas respectivas realidades, e aplicar as soluções sugeridas em instrumentos que favoreçam o desenvolvimento e instiguem o aperfeiçoamento das conclusões. Quanto aos procedimentos técnicos, trata-se de pesquisa bibliográfica e documental. Para o primeiro aspecto, utilizar-se-ão livros; guias governamentais; artigos científicos disponíveis em periódicos nacionais e internacionais; e monografias, dissertações e teses publicadas em repositórios institucionais de renomadas universidades brasileiras. Para o segundo aspecto, realizar-se-ão consultas à legislação federal; jurisprudência dos tribunais superiores; políticas e estratégias governamentais sobre governança digital e abertura de dados; e relatórios, gráficos e levantamentos estatísticos disponibilizados em sites governamentais oficiais (e.g., Portal e-Cidadania, do Senado Federal) e, também, realizados por organizações não governamentais (e.g., Open Knowledge Brasil e Diretoria de Análise de Políticas Públicas da FGV). Apesar da análise de alguns gráficos e tabelas, bem como do surgimento de indagações sobre os resultados numéricos obtidos nessas publicações, tem-se predominantemente uma pesquisa qualitativa. Será crucial compreender amplamente a construção jurídica das principais formas do Estado de Direito no decorrer da história, assim como das diferentes manifestações do processo democrático, para que se reflita sobre a fase atual desse processo e a configuração do Estado no século XXI, moldado pelo avanço da tecnologia da informação e comunicação, pela globalização, pela economia digital, pela pós-modernidade e pela fluidez das relações. No século XXI, há um instigante fator determinante de dominação e poder que abala a estrutura clássica do Estado: a tecnologia da informação e comunicação. Agitam-se, assim, os modos de produção vigentes e a dinâmica das relações políticas e socioeconômicas estabelecidas na sociedade capitalista globalizada. A partir do estabelecimento de relações traçadas entre essas variáveis3, a realidade social e o conjunto normativo, com vista à formulação do levantamento teórico do assunto, aproximar-se-ão os objetivos das pesquisas exploratória e descritiva. Ao se pensar em um Estado pautado nos princípios de uma democracia digital, quem dita “as regras do jogo” no universo computadorizado, considerando que no decorrer da história sempre houve uma relação dialética entre opressores e oprimidos na construção do processo político?4 Qual é a base constitucional desses princípios? De que forma é possível inseri-los no 3 PRODANOV, Cleber Cristiano; FREITAS, Ernani Cesar de. Metodologia do Trabalho Científico: métodos e técnicas da pesquisa e do trabalho acadêmico. 2. ed. Novo Hamburgo: Feevale, 2013, p. 52. 4 “With each new technology came contrasting assessments about whether it would intrinsically favor incumbent or challenging politicians, left- or right-wing ideologies, major or minor parties, central or peripheral regions, rich or poor persons, ethno-linguistic majorities or minorities, entrenched or reformist policies, and so forth.” 18 âmbito do direito regulatório, considerando que, inevitavelmente, há de se tratar também da influência de novos agentes econômicos e da expansão da economia baseada em dados, principalmente diante do cenário deixado pela pandemia da COVID-195, a qual demandou a adaptação impremeditada da sociedade a novas realidades tecnológicas voltadas ao isolamento social, como o teletrabalho, a telemedicina, a educação à distância e o comércio digital? Busca-se compreender de que forma a Democracia Digital se manifesta atualmente no Brasil através de iniciativas estatais que incentivam a manifestação de processos democráticos participativos e deliberativos, de modo que se parte da premissa de que a representação política e o voto em eleições periódicas como únicas formas de exercício da cidadania não são suficientes. Pretende-se discorrer sobre os principais aspectos conceituais da Revolução 4.0 (4ª Revolução Industrial) e suas implicações no ecossistema da governança da internet aplicada à Administração Pública Brasileira, de modo que se torna imprescindível refletir se seria possível aplicar, na íntegra e na prática, os clássicos princípios constitucionais da ordem econômica na atual economia baseada em dados. De que forma a economia digital alcança o Poder Público e como é possível coadunar essa atividade com as Estratégias de Governança Digital e as Políticas de Governo Aberto, bem como com as normas e princípios da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais? Há alguma relação entre a aplicação dessas estratégias (governança pública, governança digital e governo aberto) e a regulação econômica, considerando-se que em ambas é comum ouvir digressões sobre eficiência e princípios da ciência econômica? Pretende-se buscar alguns caminhos e alternativas para esses questionamentos nessa dissertação. O Capítulo 2 tratará dos aspectos teóricos e práticos da democracia digital no Brasil, cuja compreensão dependerá do conhecimento das bases liberais da construção do Estado Moderno e da sua transformação em Estado de Bem-Estar Social. Estabelecer-se-ão as limitações impostas pelo tradicional modelo de representação política, e serão delimitados os princípios para o surgimento de uma nova forma do processo democrático: a democracia (KIES, Raphael et al. Evaluation of the use of new technologies in order to facilitate democracy in Europe. Luxemburgo: Parlamento Europeu, out. 2003, p. 2. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/etudes/join/2003/471583/IPOL- JOIN_ET(2003)471583_EN.pdf. Acesso em: 21 jun. 2020.) 5 “COVID-19 é a doença infecciosa causada pelo novo coronavírus, identificado pela primeira vez em dezembro de 2019, em Wuhan, na China.” [...] “Em 11 de março de 2020, a COVID-19 foi caracterizada pela OMS como uma pandemia. O termo ‘pandemia’ se refere à distribuição geográfica de uma doença e não à sua gravidade. A designação reconhece que, no momento, existem surtos de COVID-19 em vários países e regiões do mundo.” (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Organização Pan-Americana da Saúde. Folha informativa – COVID-19 (doença causada pelo novo coronavírus). 07 maio 2020. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875. Acesso em: 08 maio 2020). 19 participativa fixada na governança pública, com a superação das ideias de “governo” e do monopólio do poder político por um ente estatal centralizador. O Capítulo 3 apresentará conceitos do Direito Regulatório e os aplicará a um tópico especial da governança da internet: a proteção de dados pessoais e a regulação das atividades que cercam esse setor por uma autoridade independente, considerando o modelo adotado pela organização da Administração Pública Brasileira, direta e indireta. Por fim, o Capítulo 4 analisará a atuação do ecossistema da governança da internet na Administração Pública Federal, apresentando os principais conceitos pertinentes ao tema e as suas aplicações jurídicas mais relevantes no exercício da atividade administrativa diante da Revolução 4.0: a passagem do Governo Eletrônico para a Governança Digital, e o tratamento de dados abertos governamentais. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior — Brasil (CAPES) — Código de Financiamento 001. 20 2 AS BASES TEÓRICAS DA CONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA DIGITAL 2.1 DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO SOCIAL A conquista de direitos e garantias fundamentais sob o amparo de um regime democrático assim como a materialização desses direitos através do fortalecimento do pluralismo e da participação política são parte de um longo processo de construção e reconstrução de políticas sociais e econômicas que remodelaram os elementos do Estado Moderno e (re)definiram as bases do Constitucionalismo Contemporâneo. O Constitucionalismo do final do século XX é marcado, assim, pela esperança e pelas projeções de um futuro cujos anseios por mudanças resultam no Estado Democrático de Direito6. Esse, por sua vez, “[...] foi formado a partir das tentativas de enfrentar as arbitrariedades e desigualdades dos modelos pretéritos de Estado e de dominação/legitimação política”7. Bonavides delimita quatro proeminentes processos revolucionários ocorridos entre os séculos XVIII e XX, e os associa, respectivamente, a uma tentativa de efetivar uma forma de Estado8. As Revoluções da Liberdade e da Igualdade (calhadas no Primeiro Mundo), sucedidas pelas Revoluções da Fraternidade e a do Estado Social (nos países subdesenvolvidos), tentaram pôr em prática, respectivamente, o Estado Liberal; o Estado Socialista; o Estado Social das Constituições Programáticas; e o Estado Social dos direitos fundamentais9. Assimilar essa conjuntura é crucial para compreender a magnitude do Estado Democrático de Direito, bem como ser capaz de apreciá-lo como um processo inacabado, em incessante construção e, principalmente, sujeito a falhas e hiatos incompatíveis com sua própria dimensão ontológica. O direito à liberdade, bem como a contraprestação estatal simétrica de interferir nas relações de interesse público, sempre foi um contratempo decisivo nessas formas de Estado, proporcionando controvérsias sobre o nível que era possível consenti-lo sob o ponto de vista do indivíduo, do próprio Estado, e das relações entre Estado-indivíduo (verticalmente) e indivíduo- indivíduo (horizontalmente). Esse direito propõe a elaboração de novos modelos teóricos 6 MORAES, Ricardo Quartim de. A evolução histórica do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito e sua relação com o constitucionalismo dirigente. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 51, n. 204, out./dez. 2014, p. 270. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/509938. Acesso em: 20 jul. 2020. 7 MORAES, Ricardo Quartim de. A evolução histórica do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito e sua relação com o constitucionalismo dirigente. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 51, n. 204, out./dez. 2014, p. 270. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/509938. Acesso em: 20 jul. 2020. 8 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 29. 9 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 29. 21 divisores das esferas pública e privada, e delimita as fronteiras do Direito Público, bem como da intervenção do Estado no domínio econômico. Streck e Bolzan de Morais identificam o Estado como “um fenômeno original e histórico de dominação”10, de modo que cada um dos seus tipos seria determinado pelo momento histórico e pelo modo de produção prevalecente, assim como pelas condições socioeconômicas que emergiriam da forma de dominação interessante às classes hegemônicas11. Com isso, acarreta-se que as relações de poder decorrentes dessa organização política são derivadas daquelas condições, tendo, a priori, o protagonismo de uma classe dominante. O primeiro arquétipo que se tem do Estado de Direito12 decorre da revelação do Liberalismo em detrimento das monarquias absolutistas. Silva aponta três das suas características basilares: a) submissão ao império da lei, essa com um conceito restritivo limitado aos atos emanados pelo Poder Legislativo; b) divisão dos poderes de forma independente e harmônica; e c) enunciado e garantia dos direitos individuais.13 Somado a isso, os principais acontecimentos do modelo liberal do século XIX foram: o fim da escravidão; a manifestação da liberdade de imprensa; a ampliação da educação e do sufrágio; a criação de Constituições escritas; a consolidação do governo representativo como modelo de organização política; a garantia de livre comércio; e o fim de taxações.14 Verifica-se que todos esses acontecimentos têm como premissas a liberdade do indivíduo, a legalidade e a intervenção mínima do Estado — pilares do Liberalismo. Gradativamente, ocorre a passagem (não linear) de modelos representativos para arquétipos democráticos firmados na participação e na deliberação. Não obstante, não se discutem, nessa 10 STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Ciência Política e Teoria do Estado. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 28. 11 STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Ciência Política e Teoria do Estado. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 28. 12 “Houve, porém, concepções deformadoras do conceito de Estado de Direito, pois é perceptível que seu significado depende da própria ideia que se tem do Direito. Por isso, cabe razão a Carl Schmitt quando assinala que a expressão “Estado de Direito” pode ter tantos significados distintos como a própria palavra “Direito” e designar tantas organizações quanto as a que se aplica a palavra “Estado”. Assim, acrescenta ele, há um Estado de Direito feudal, outro estamental, outro burguês, outro nacional, outro social, além de outros conformes com o Direito natural, com o Direito racional e com o Direito histórico. Disso deriva a ambiguidade da expressão Estado de Direito, sem mais qualificativo que lhe indique conteúdo material. Em tal caso a tendência é adotar-se a concepção formal do Estado de Direito à maneira de Forsthoff, ou de um Estado de Justiça, tomada a justiça como um conceito absoluto, abstrato, idealista, espiritualista, que, no fundo, encontra sua matriz no conceito hegeliano do Estado Ético, que fundamentou a concepção do Estado fascista [...].” (SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 115.) 13 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 114 - 115. 14 STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Ciência Política e Teoria do Estado. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 64 – 65. 22 época e nesse contexto, com afinco, direitos coletivos15, pois o foco está no homem, na sua liberdade e na garantia da proteção individual pelo Estado. O Liberalismo é apresentado como uma teoria antiestado, no sentido de que seu foco é o indivíduo e suas iniciativas, estando a atividade estatal limitada à manutenção da ordem e segurança, assumindo o Estado um papel negativo de proteger as liberdades civis, pessoais e econômicas dos indivíduos no mercado capitalista16. Verifica-se, de modo sintetizado, que No Estado Liberal clássico, não havia na verdade preocupação com a participação estatal na economia, seja como agente econômico ou por meio de qualquer tipo de intervenção indireta, a exemplo de realizações de políticas de planejamento econômico. Todas as ações neste sentido eram função exclusiva dos agentes privados de mercado que, por meio de regras e princípios próprios, seriam os responsáveis pela atuação em todos os segmentos econômicos e pelas eventuais soluções necessárias à resolução de entraves e problemas verificados.17 Essa realidade começa a mudar a partir de meados do século XIX, quando o Estado Liberal “[...] passa a assumir tarefas positivas, prestações públicas, a serem asseguradas ao cidadão como direitos peculiares à cidadania, agindo, assim, como ator privilegiado do jogo socioeconômico”18. Com a ampliação da atividade estatal positiva e da intervenção, a figura do “Estado mínimo” abre espaço para a estruturação de um novo modelo que, gradativamente, surge com a adaptação dos elementos sociais, políticos e econômicos existentes19. A transformação do papel estatal não foi natural, e decorreu de inúmeras falhas consequentes dos abusos praticados pelos agentes privados no mercado: 15 “Muitos autores referem-se a ‘gerações’ dos direitos fundamentais, afirmando que sua história é marcada por uma gradação, tendo surgido em primeiro lugar os direitos clássicos individuais e políticos, em seguida os direitos sociais e, por último, os ‘novos’ direitos difusos e/ou coletivos como os de solidariedade, ao desenvolvimento econômico (sustentável) e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, havendo também direitos de quarta geração relacionados ao cosmopolitismo e à democracia universal. [...] Tal opção terminológica (e teórica) é bastante problemática, já que a ideia das gerações sugere uma substituição de cada geração pela posterior, enquanto no âmbito que nos interessa nunca houve abolição dos direitos das anteriores ‘gerações’, como indica claramente a Constituição brasileira de 1988, que inclui indiscriminadamente direitos de todas as ‘gerações’.” (DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 22 – 23.) 16 STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Ciência Política e Teoria do Estado. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 62. 17 SENA SEGUNDO, Oswalter de Andrade; FRANÇA, Vladimir da Rocha. Estado Regulador e Estado Empresário: coexistência e possibilidades. In: MENDONÇA, Fabiano André de Souza; FRANÇA, Vladimir da Rocha; ALENCAR XAVIER, Yanko Marcius de (org.). Regulação Econômica e Proteção dos Direitos Humanos: um enfoque sob a óptica do direito econômico. 1. ed. Fortaleza: Fundação Konrad Adenauer, 2008, p. 101. 18 STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Ciência Política e Teoria do Estado. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 64. 19 STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Ciência Política e Teoria do Estado. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 64. 23 Em seguida, antes da transição para o Estado Social, houve uma compreensão de que este liberalismo desenfreado e não planejado causara muitos problemas sérios no conjunto social e até mesmo econômico. A máxima de que os agentes econômicos pudessem por si garantir o pleno funcionamento do mercado de forma satisfatória e em regime de real concorrência com benefícios múltiplos, gerais e suficientes, não se confirmou. Muitas grandes empresas praticaram concorrência desleal com outras menores, forçando-as a deixar de atuar no mercado ou a vender suas estruturas. Houve concentração de mercado em vários setores, até mesmo com formação de monopólios. Vários setores menos rentáveis sofreram com a falta de investimentos. A falta de padrões de qualidade exigíveis e o descontrole de preços se tornaram entraves à própria saúde do mercado. Sem qualquer atuação estatal efetiva na promoção de políticas sociais e de emprego, as regras de mercado impuseram severas restrições salariais e mínimas condições de trabalho aos operários das indústrias que estavam em plena expansão.20 Tem-se, então, o Liberalismo como principal doutrina econômica e ideologia social que se desenvolveu entre os séculos XVII e XX, cujas premissas se baseiam na autorregulação natural do mercado (Liberalismo econômico) e na garantia de direitos individuais pelo Estado como forma de combater o uso arbitrário do poder pelos governantes (Liberalismo jurídico)21. Assim, “esse primeiro Estado de Direito, com seu formalismo supremo, que despira o Estado de substantividade ou conteúdo, sem força criadora, reflete a pugna da liberdade contra o despotismo na área continental europeia”22. Essa luta pela liberdade se refere à liberdade da burguesia (classe que se estrutura para a destruição do Antigo Regime), e não à do povo, que se viu limitado à garantia de poucos direitos individuais e à exclusão dos direitos de participação política, inclusive do sufrágio. Como se pode observar, o modelo de Estado Liberal trouxe consequências devastadoras para a economia, a exemplo de práticas contrárias à própria ideia de livre mercado e livre concorrência, e para o pleno desenvolvimento da sociedade e da redução das desigualdades sociais, diante das falhas do mercado e da atuação contrária de muitos agentes privados à realização dos direitos fundamentais. Todavia, apesar das falhas do Estado Liberal, o que se esperava era seu aperfeiçoamento e/ou superação através de um modelo que fosse capaz de conciliar os interesses dos agentes privados, da comunidade operária e do próprio Estado. Definitivamente, voltar à estrutura do Antigo Regime e do Estado Absolutista não era uma opção. É por isso que o Estado de Bem- Estar Social começa a dar indícios como uma solução viável; não obstante, futuramente perde 20 SENA SEGUNDO, Oswalter de Andrade; FRANÇA, Vladimir da Rocha. Estado Regulador e Estado Empresário: coexistência e possibilidades. In: MENDONÇA, Fabiano André de Souza; FRANÇA, Vladimir da Rocha; ALENCAR XAVIER, Yanko Marcius de (org.). Regulação Econômica e Proteção dos Direitos Humanos: um enfoque sob a óptica do direito econômico. 1. ed. Fortaleza: Fundação Konrad Adenauer, 2008, p. 101. 21 MORAES, Ricardo Quartim de. A evolução histórica do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito e sua relação com o constitucionalismo dirigente. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 51, n. 204, out./dez. 2014, p. 271. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/509938. Acesso em: 20 jul. 2020. 22 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 41. 24 seu foco e acaba se desvirtuando da proposta para a qual foi criado, se tornando tão nocivo para a economia e para o desenvolvimento quanto o clássico Estado Liberal. Para que se compreenda, de fato, o ideal de liberdade perseguido no Estado Liberal, é vital que sejam conhecidas as relações de poder vigentes àquela época. Inicia-se com a ascensão da burguesia como classe revolucionária (ou, no mínimo, promissora da Revolução) que combateria o poder absoluto dos reis e levaria a tão almejada liberdade ao povo. Fala-se de uma “Revolução” cujos ideais de “liberdade”, “igualdade” e “fraternidade” não são contemplados com a mesma veemência pelos diferentes agentes sociais que lutam para combater o Antigo Regime. É precipuamente da dinâmica da antinomia histórica entre a liberdade do indivíduo e o absolutismo do monarca, na Idade Moderna, que surge a matriz liberal do Estado de Direito23. A função precípua do Estado é garantir a liberdade do seu povo, e isso encontra barreiras no poder absoluto dos reis24. Se o Estado não é capaz de proteger o povo contra os abusos e a concentração do poder real, quem o fará, senão o próprio povo? A solução encontrada para este impasse “[...] decide-se no movimento de 1789, quando o direito natural da burguesia revolucionária investe no poder o terceiro estado”25. A Revolução Francesa é pautada pelos princípios da burguesia, e o primeiro protótipo de Estado de Direito projetado naquele momento incorpora a concepção burguesa de representação política, a qual, segundo Bonavides, só existe na teoria formalmente como filosofia universal26. Na prática, a representação e os direitos de liberdade são restritos apenas àquela classe, que se utiliza da demagogia para falar em nome de toda a sociedade27. Essa, por sua vez, não possui as condições materiais para “[...] transpor as restrições do sufrágio e, assim, concorrer ostensivamente, por via democrática, à formação da vontade estatal”28. Portanto, apesar de a Revolução ter sido “[...] levada a cabo principalmente pelas partes mais baixas do Terceiro Estado, ou seja, pelos camponeses pobres e então aliados à nascente burguesia”29, “[...] os burgueses cuidaram para que seus efeitos se restringissem a satisfazer seus anseios, mas não 23 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 41. 24 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 41. 25 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 41. 26 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 42. 27 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 44. 28 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 44. 29 MORAES, Ricardo Quartim de. A evolução histórica do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito e sua relação com o constitucionalismo dirigente. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 51, n. 204, out./dez. 2014, p. 271. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/509938. Acesso em: 20 jul. 2020. 25 fossem a ponto de realizar o tipo de justiça social almejado pelo campesinato e pelos sans- culottes”30. É a partir disso que se arquiteta o constitucionalismo europeu, [...] cuja primeira grande manifestação se deu na França com as referidas Declarações de Direitos, tinha por motor filosófico as ideias iluministas que buscavam a fundamentação racional de decisões políticas, perseguindo ideais universalistas. Do ponto de vista político, essa orientação era socialmente situada, devendo ser entendida em seu contexto sociopolítico. Baseava-se na luta da ascendente classe burguesa contra os privilégios estamentais dos quais se beneficiava, sobretudo, a nobreza. A nobreza ostentava um status social não justificado economicamente e a classe burguesa considerava-a “parasita”. Ao mesmo tempo, a miséria das classes populares no campo e na cidade aumentava a tensão social, sendo que a classe burguesa procurava como consequência controlar e manipular a ira popular para a garantia de seus próprios interesses. O discurso universalista, “iluminista” dos principais intelectuais franceses do século XVIII não tem como ser corretamente interpretado sem a consideração do contexto sociopolítico em que se inseria, vale dizer, sem a consideração da origem e das relações sociais de tais intelectuais.31 Verifica-se, nesse contexto, algumas das fragilidades do sistema representativo que, até hoje, são sentidas pelo povo, especialmente nos Estados cujos sistemas políticos e administrativos foram consolidados a partir (ou sob influência) do modelo francês pós- Revolução. É o caso do Brasil. Trata-se de uma crítica à estrutura política, e não jurídica, reconhecendo-se a separação entre esses dois campos. É possível compreender que um Estado liberal não é necessariamente um Estado democrático, e vice-versa, a partir do exemplo da Revolução Francesa, com a ascensão da burguesia à custa do povo. Como já exposto, aquela defende seus próprios ideias e se utiliza de uma política demagógica para alcançar sua liberdade contra uma organização absolutista, assegurando esse direito ao povo apenas formalmente, sem a execução de qualquer medida que favoreça sua materialização efetiva. O apoio e a atuação das camadas mais pobres foram fundamentais para a derrocada do Estado Absolutista, todavia, também foram elementos-chave para a elevação da burguesia enquanto classe detentora do poder não só econômico, mas também político. Ressalta-se que “o Estado Burguês de Direito se caracteriza por uma ideologia de manutenção do status quo, de aversão à mudança. Sua finalidade é sua própria 30 MORAES, Ricardo Quartim de. A evolução histórica do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito e sua relação com o constitucionalismo dirigente. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 51, n. 204, out./dez. 2014, p. 271. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/509938. Acesso em: 20 jul. 2020. 31 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 15. 26 autocontenção, excetuadas apenas as hipóteses de ameaça à segurança individual”32. Constata- se que As massas miseráveis eram bem-vindas para a ideologia constitucionalista francesa como chair à canon (“alimentação de canhões), ou seja, como munição de guerra e isso a despeito dos tais direitos “naturais” do “homem e do cidadão” serem inalienáveis, imprescritíveis e “universais”, ou seja, assistirem a “todos” sem exceção. O constitucionalismo francês do século XVIII inseriu, além de inegáveis avanços em racionalidade, também um novo elemento à filosofia política: a hipocrisia. De fato, é difícil conceber que os autores estavam convencidos do caráter puramente racional e não político-ideológico de suas obras. Basta pensar que a França do período revolucionário não somente tomou poucas providências para diminuir as desigualdades econômicas e manteve as mulheres em situação de exclusão política e social, como também admitiu mesmo a continuação da escravidão nas colônias.33 O que caracteriza o Liberalismo é, segundo Bobbio, a concepção de um Estado com poderes e funções limitadas, contrapondo-se ao Estado absoluto e ao Estado Social34. A democracia, por sua vez, é uma forma de governo “[...] em que o poder não está nas mãos de um só ou de poucos, mas de todos, ou melhor, da maior parte, como tal se contrapondo às formas autocráticas, como a monarquia e a oligarquia”35. Com a Revolução Francesa, a burguesia destrói o Antigo Regime, limita os poderes do Estado, antes absolutista, e implanta, assim, o Estado Liberal — “Essa forma de Estado de Direito permite, como é intuitivo, que um sem número de iniquidades se perpetuem sob a égide da lei”36 —. A democracia, todavia, não se efetiva, pois o poder se concentra agora nas mãos daquela classe, que impossibilita o povo de conquistar a plenitude dos seus direitos (como o sufrágio universal). Apesar da relação melindrosa entre a burguesia (classe dominante) e as camadas mais populares da sociedade, a inserção dos valores daquela e a influência dos princípios econômicos liberais (principalmente a separação dos Poderes) nos ordenamentos jurídicos foram essenciais para a emancipação da Administração Pública e, consequentemente, para o fortalecimento da proteção das garantias e direitos individuais, guiados pela liberdade, pois “para ser real o respeito da Constituição e dos direitos individuais por parte do Estado, é necessário dividir o 32 MORAES, Ricardo Quartim de. A evolução histórica do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito e sua relação com o constitucionalismo dirigente. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 51, n. 204, out./dez. 2014, p. 273. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/509938. Acesso em: 20 jul. 2020. 33 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 15 – 16. 34 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 2000. Tradução de: Marco Aurélio Nogueira, p. 7. 35 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 2000. Tradução de: Marco Aurélio Nogueira, p. 7. 36 MORAES, Ricardo Quartim de. A evolução histórica do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito e sua relação com o constitucionalismo dirigente. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 51, n. 204, out./dez. 2014, p. 273. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/509938. Acesso em: 20 jul. 2020. 27 exercício do poder político entre órgãos distintos, que se controlem mutuamente”37, de forma que “percebe-se a importância da separação dos Poderes no controle do exercício do poder político. Cada Poder corresponde a um limite ao exercício das atividades do outro. Assim, o poder freia o poder, evitando a tirania”38. A realização histórica do Estado Liberal acontece “[...] em sociedades nas quais a participação no governo é bastante restrita, limitada às classes possuidoras”39. Sua crise se dá “[...] pelo progressivo processo de democratização produzido pela gradual ampliação do sufrágio até o sufrágio universal”40. Evidencia-se a democratização progressiva, fenômeno em construção que não se completou com o advento do Estado Social. A Revolução eclode, no século XVIII, do descontentamento da burguesia em abarcar apenas o poder econômico, aspirando ao poder político que, até então, se concentrava na aristocracia de tradição feudal41. De um lado, há as classes populares exigindo a representação material dos seus direitos; de outro, os interesses da burguesia como aspirante à vida política, o que logo põe em evidência o conflito burguesia-operariado42, trazendo à tona todas as contradições expostas e que foram determinantes para a crise do Estado Liberal e para a ascensão do Estado Social. Assim, “no século XIX, o Liberalismo tornou-se a doutrina da monarquia limitada e de um governo popular igualmente limitado, já que o sufrágio e a representação eram restritos a cidadãos prósperos”43. Limita-se o poder real absoluto; a burguesia se fortalece politicamente; e o povo é demagogicamente colocado, novamente, às margens do poder, existindo participação popular apenas de modo formal, despida de qualquer substantividade nas relações políticas. Consequentemente, desse paradoxo entre as ideias de liberdade (Liberalismo) e igualdade (Democracia), no que se refere ao contexto político em estudo, decorre o seguinte: As restrições ao sufrágio, antes que a democracia abrangesse, mesmo do ponto de vista político, todas as classes, patenteiam que a Revolução Francesa não derrogara a totalidade dos privilégios que obstruíam a participação ativa do povo na escolha de seus governantes e que as ideias imediatamente vitoriosas, semeadas naquele 37 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 42. 38 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 43. 39 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 2000. Tradução de: Marco Aurélio Nogueira, p. 7. 40 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 2000. Tradução de: Marco Aurélio Nogueira, p. 8. 41 STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Ciência Política e Teoria do Estado. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 51. 42 STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Ciência Política e Teoria do Estado. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 54. 43 STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Ciência Política e Teoria do Estado. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 57. 28 catecismo político, foram, sobretudo, as de liberdade, e não as de democracia, a menos que se entenda esta num sentido de aplicação restrita. [...] A burguesia, com o longo tirocínio de sua pugna contra o absolutismo, passara a desconfiar do poder. E no Estado liberal-democrático, erguido pelo constitucionalismo pós-revolucionário, o princípio liberal triunfara indiscutivelmente sobre o princípio democrático.44 Posteriormente, verifica-se que o processo de industrialização, o progresso econômico e a democratização no final do século XIX alteraram materialmente o “[...] modelo liberal de Estado limitado (mínimo), com a incorporação dos aspectos de “justiça social” [...]”45. Não basta que o Estado seja mínimo, intervindo apenas na garantia da conservação de sua estrutura; demanda-se que haja a inserção de valores e princípios que possibilitem materialmente o bem- estar social. Um importante marco no processo de transformação e superação do Estado Liberal foi a promulgação da Constituição de Weimar em 1919, de modo que “[...] como resultado do processo de industrialização acelerado por Bismarck desde 1871, formou-se na Alemanha uma numerosa classe operária que gradualmente organizou-se em sindicatos e partidos políticos”46. Para reagir e conter a expansão de eventuais conflagrações que colocassem em risco seu status quo, a exemplo da Revolução Francesa, “a burguesia procurou neutralizar os movimentos revolucionários, negativamente, mediante repressão, e, positivamente, por meio de um projeto de república democrática e social que foi a República de Weimar”47. O alargamento do sufrágio entre os séculos XIX e XX possibilita uma maior participação popular, qualitativamente e quantitativamente, e isso induz as massas populares e os partidos políticos a reivindicarem por melhorias no sistema eleitoral e na atividade prestativa dos entes políticos48. Surgem novas demandas sociais conduzidas, principalmente, pelos movimentos operários, referentes à regulação das relações produtivas, da segurança e da jornada de trabalho; à diminuição da pobreza e do desemprego; e à proteção do trabalho de menores49. É evidente que, para dar conta dos reais anseios populares, a prestação negativa do Estado, a partir de normas constitucionais de organização e da positivação de alguns direitos 44 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 68. 45 STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Ciência Política e Teoria do Estado. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 56. 46 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 21. 47 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 21. 48 STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Ciência Política e Teoria do Estado. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 65. 49 STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Ciência Política e Teoria do Estado. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 65. 29 individuais, não seria suficiente, exigindo-se sua atuação positiva para desenvolver estratégias que permitiriam a concretização daqueles direitos pleiteados — o que implicaria no aumento da interferência estatal e na limitação da liberdade dos indivíduos. Sem embargo, a constitucionalização daqueles direitos sociais “[...] mediante normas desprovidas de valor, programáticas, nada mais foi do que um canto de sereias a atrair uma enorme massa de marinheiros”50. As normas constitucionais de princípio programático “[...] são traduzidas no texto supremo apenas em princípio, como esquemas genéricos, simples programas a serem desenvolvidos ulteriormente pela atividade dos legisladores ordinários”51. As principais críticas em relação às normas programáticas dizem respeito à sua efetividade, que “[...] depende de fatores eminentemente políticos”52: “[...] não têm eficácia imediata e são destituídas de imperatividade [...], não passando de meros planos/programas que serão realizados com a evolução do Estado”53. Não obstante, Silva destaca a importância e a imperatividade dessas normas na instauração da democracia substancial54, de modo que “[...] procuram dizer para onde e como se vai, buscando atribuir fins ao Estado, esvaziado pelo liberalismo econômico”55, e “[...] revelam um compromisso entre as forças políticas liberais e tradicionais e as reivindicações populares de justiça social”56, pois Como normas de eficácia limitada, sua aplicação plena, relativamente aos interesses essenciais que exprimem os princípios genéricos e esquemáticos, depende da emissão de uma normatividade futura, em que o legislador ordinário, integrando-lhe a eficácia, mediante lei ordinária (a Constituição vigente, pelo menos nesse aspecto, foi sábia em não exigir a integração por meio de lei complementar, em sentido próprio), lhes dê capacidade de execução em termos de regulamentação daqueles interesses visados. 50 MORAES, Ricardo Quartim de. A evolução histórica do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito e sua relação com o constitucionalismo dirigente. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 51, n. 204, out./dez. 2014, p. 275. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/509938. Acesso em: 20 jul. 2020. 51 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 137. 52 SANTOS, Marcos André Couto. A efetividade das normas constitucionais (as normas programáticas e a crise constitucional). Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 37, n. 147, jul./set. 2000, p. 9. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/602. Acesso em: 18 set. 2020. 53 SANTOS, Marcos André Couto. A efetividade das normas constitucionais (as normas programáticas e a crise constitucional). Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 37, n. 147, jul./set. 2000, p. 9. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/602. Acesso em: 18 set. 2020. 54 “As normas programáticas, introduzidas na constituição como resultado do conflito de interesses, importam, ao menos, uma tentativa de superação da democracia formal e tendem, como visto, a instaurar um regime de democracia substancial, ao determinarem a realização de fins sociais, através da atuação de programas de intervenção na ordem econômica, com vistas à realização da justiça social e do bem comum.” (SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 156.) 55 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 141. 56 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 145 – 146. 30 Muitas, contudo, podem ser aplicadas independentemente de lei, mas por meio de outras providências, como aquela que visa ao amparo da cultura pelo Estado.57 As distorções e fragilidades do Estado Liberal trazem à tona o Estado Social, que tenta aprimorar os principais elementos daquele para satisfazer os anseios de uma sociedade carente de justiça, isonomia e participação política efetiva. Ao mesmo tempo em que se reconhece a importância do capitalismo como modo de produção essencial ao desenvolvimento, visa-se ao bem-estar social — Welfare State — que, em tese, conciliaria as duas realidades (social e econômica) e superaria os limites daquela primeira concepção de Estado (Burguês) de Direito. O Estado Social, então, “[...] surge como uma nova adaptação do capitalismo à sociedade e, assim sendo, surge como uma necessidade do capital, que não mais podia sobreviver dentro do esquema de outrora”58. Com o Estado Social, buscou-se ampliar suas atribuições, criticando-se o seu papel de “[...] tão somente proteger e garantir as forças de mercado e a liberdade de iniciativa [...]”59. Também deveria ser obrigação do Estado, o que implicaria no aumento da sua intervenção: [...] viabilizar a melhoria de vida da população não agregada ao processo produtivo regular, impor limites à atuação de certos agentes econômicos no interesse do próprio mercado e criar outros meios de participação e acesso social, tanto no âmbito econômico quanto político. Passou o Estado a agir, devidamente amparado constitucionalmente, como agente econômico, atuando em setores da economia antes de exclusiva atuação privada. Além da prestação se [sic] serviços públicos, obrigação sua, originariamente, agora estava o Estado apto a atuar no cenário econômico.60 Para corrigir as distorções concorrenciais do Liberalismo, o grau de intervenção do Estado “[...] não pode ser tão suave ao ponto de se manter as distorções concorrenciais, mas também não pode ser tão forte a ponto de se restringir excessivamente a liberdade de mercado, 57 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 163 – 164. 58 MORAES, Ricardo Quartim de. A evolução histórica do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito e sua relação com o constitucionalismo dirigente. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 51, n. 204, out./dez. 2014, p. 276. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/509938. Acesso em: 20 jul. 2020. 59 SENA SEGUNDO, Oswalter de Andrade; FRANÇA, Vladimir da Rocha. Estado Regulador e Estado Empresário: coexistência e possibilidades. In: MENDONÇA, Fabiano André de Souza; FRANÇA, Vladimir da Rocha; ALENCAR XAVIER, Yanko Marcius de (org.). Regulação Econômica e Proteção dos Direitos Humanos: um enfoque sob a óptica do direito econômico. 1. ed. Fortaleza: Fundação Konrad Adenauer, 2008, p. 102. 60 SENA SEGUNDO, Oswalter de Andrade; FRANÇA, Vladimir da Rocha. Estado Regulador e Estado Empresário: coexistência e possibilidades. In: MENDONÇA, Fabiano André de Souza; FRANÇA, Vladimir da Rocha; ALENCAR XAVIER, Yanko Marcius de (org.). Regulação Econômica e Proteção dos Direitos Humanos: um enfoque sob a óptica do direito econômico. 1. ed. Fortaleza: Fundação Konrad Adenauer, 2008, p. 102. 31 afrontando os dispositivos constitucionais de liberdade concorrencial e livre iniciativa”61. Com base nesse paradigma, surge um meio-termo: o Estado Social, ainda limitado, devido à “[...] tensão intransponível entre os interesses do capital e os anseios das classes populares, em maior ou menor grau”62. No contexto atual, é imprescindível que se observe a situação financeira e as peculiaridades socioeconômicas e orçamentárias de cada Estado, pois para que o crescimento econômico aconteça proporcionalmente ao desenvolvimento (em ampla acepção), algumas contenções e políticas de austeridade são imperiosas diante da escassez e limitação de recursos. Antes que se discorra sobre as políticas de austeridade no contexto da escassez de recursos, é de significativa relevância a compreensão sobre o que é, de fato, o desenvolvimento. Segundo Elali: A Constituição brasileira, em diversos dispositivos, impõe a atuação do Estado e dos agentes econômicos privados na promoção do desenvolvimento econômico, numa aplicação sistemática dos vários princípios da ordem econômica, quais sejam, a soberania econômica nacional, a proteção da livre iniciativa e da livre concorrência, a proteção da propriedade e a sua função social, a valorização do trabalho humano e o pleno emprego, a defesa do meio ambiente e do consumidor e a redução das desigualdades regionais e sociais. Afinal, diz-se que o Estado economicamente desenvolvido é aquele marcado pela estrutura harmônica entre o padrão de modernização e a proteção dos valores coletivos. Busca-se ao mesmo tempo o crescimento, com a liberdade das atividades econômicas, desde que tal conviva com a proteção do consumidor, do meio ambiente, do trabalho, da educação de todos etc. Um Estado que enfatiza apenas a vertente da modernização, desprezando a sua harmonia com os demais elementos, não pode se configurar como desenvolvido; pode, no máximo, ser um Estado modernizado, mantendo a sua estrutura de ineficiência alocação de seus recursos, pois os problemas sociais acabam gerando mais custos estatais, falando-se, por isso mesmo, num “vicious circle of poverty”.63 O grande problema da adoção das referidas medidas austeras (e isso perdura desde a “criação” do Estado Social) é a falta de equilíbrio entre a reserva do possível e a deficiência estatal (muitas vezes, dolosa) na prestação positiva das garantias do mínimo existencial. A livre iniciativa e a justiça social não são incompatíveis, e essa última não é uma utopia projetada irracionalmente nas cartas constitucionais. Todavia, é incabível se escusar sempre na reserva 61 SILVEIRA NETO, Otacílio dos Santos. O equilíbrio inter-regional da concorrência: uma análise a partir da Constituição Federal e da nova Lei Antitruste brasileira. Revista Digital Constituição e Garantia de Direitos, v. 6, n. 01, 17 out. 2013, não paginado. Disponível em: https://www.periodicos.ufrn.br/constituicaoegarantiadedireitos/article/view/4383/3577. Acesso em: 08 set. 2020. 62 BOLZAN DE MORAIS, José Luis. O Estado de Direito “confrontado” pela “Revolução da Internet”!. Revista Eletrônica do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Maria, v. 13, n. 3, 2018, p. 880. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/revistadireito/article/view/33021/pdf. Acesso em: 18 set. 2020. 63 ELALI, André de Souza Dantas. Concorrência fiscal internacional: a concessão de incentivos fiscais em face da integração econômica internacional. 2009. Tese (Doutorado em Direito) — Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2009, p. 56 – 57. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/4168. Acesso em: 05 nov. 2020. 32 do possível quando o próprio Estado não assegura, na medida das suas obrigações, as condições existenciais mínimas para toda a população e, ainda, é omisso no combate às práticas de corrupção; na erradicação da pobreza e da marginalização; e na redução das desigualdades sociais e regionais. As novas relações sociais impulsionadas, especialmente, por fatores econômicos, ideológicos e políticos desencadeados após as Revoluções Industriais e as Guerras Mundiais contribuíram para a expansão das promessas estatais de transformação social, o que não foi possível se concretizar nem tão cedo devido à falta de consolidação prática das normas constitucionais programáticas, e à falta de interesses político-econômicos dos agentes detentores de privilégios, como a classe burguesa. Assim, enumeram-se os principais fatores que contribuíram para o declínio do Estado Liberal e a ascensão do Estado Social: a) a Revolução Industrial, acompanhada dos processos de proletarização e urbanização; b) a Primeira Guerra Mundial, com as exigências de armamento e aprovisionamento; c) a crise econômica de 1929 (a Grande Depressão), que expôs a necessidade de uma economia interventiva e da reconciliação entre a iniciativa privada e a ação governamental; d) a Segunda Guerra Mundial; e) as crises cíclicas, em consequência dos monopólios econômicos e do aumento das desigualdades sociais; f) o fortalecimento dos movimentos sociais e das liberdades positivas; g) o nazifascismo, na Europa Ocidental, e o socialismo real, na antiga URSS; h) a independência dos países afro-asiáticos, seguida por mecanismos de planejamento estatal; i) a doutrina social da Igreja, especialmente a publicação da encíclica papal Rerum Novarum (1891); e j) os movimentos socialistas, principalmente o Manifesto Comunista de 1848.64 Como se pode verificar, a maioria das transformações que levaram à crise do Liberalismo estão relacionadas a fatores econômicos. O trágico cenário proporcionado pela Primeira Guerra Mundial demandou a redefinição da atividade regulatória estatal e o nascimento de novos modelos econômicos. O decorrer dos acontecimentos demonstra que o Estado Social não era, afinal, a solução perfeita que se buscava para enfrentar as fatalidades do Liberalismo. Aquele, assim como seu 64 STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Ciência Política e Teoria do Estado. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 70 - 72. 33 antecessor, se vê diante de uma crise devido à impossibilidade de realizar seus compromissos65 (muitos, utópicos) e às limitações financeiras66. 2.2 DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA À DEMOCRACIA PARTICIPATIVA Ao analisar a consolidação do Estado Democrático de Direito na sociedade moderna, no contexto do (res)surgimento de regimes democráticos na Europa após a Segunda Guerra Mundial, Bobbio elenca um conjunto de transformações que contribuíram para definir o padrão mínimo desse tipo de regime, preferindo utilizar o vocábulo “transformações”, sem atribuir sentido axiológico positivo ou negativo, em vez de “crise”, segundo a visão de que esse último termo remeteria a um colapso iminente, o que não representaria o estágio corrente do processo democrático67, afinal, “a democracia não goza no mundo de ótima saúde, como de resto jamais gozou no passado, mas não está à beira do túmulo”68. A dinamicidade do processo democrático permite analisá-lo sob diferentes perspectivas, na medida em que ele nunca estará completo, mas em constante evolução e sob a influência de inúmeros agentes políticos, econômicos e sociais. Desse modo, conforme aponta Canotilho, “[...] a democracia é um processo dinâmico inerente a uma sociedade aberta e activa, oferecendo aos cidadãos a possibilidade de desenvolvimento integral e de liberdade de participação crítica no processo político em condições de igualdade econômica, política e social [...]”69. A partir de uma análise interdisciplinar, considera-se que o ecodesenvolvimento e a busca pela concretização dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 65 ORTIZ, Gaspar Ariño. Principios de Derecho Público Económico: modelo de Estado, gestión pública, regulación económica. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2003, p. 152. No original: “Ahora bien, todo ello está hoy en crisis, no porque el Derecho se haya impuesto al Estado social, sino porque el Estado Social está en quiebra: no puedo pagar sus compromisos. También en quiebra conceptual, de sus pensadores y teóricos.” 66 ELALI, André de Souza Dantas. Concorrência fiscal internacional: a concessão de incentivos fiscais em face da integração econômica internacional. 2009. Tese (Doutorado em Direito) — Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2009, p. 50. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/4168. Acesso em: 05 nov. 2020. Segundo o autor: “Tem-se, nesse contexto histórico, uma mudança do perfil da grande maioria dos Estados contemporâneos com a crise dos denominados Welfare States, não havendo mais espaço para países que pretendam exercer, diretamente, como regra geral, as atividades econômicas, seja pela competitividade dos novos mercados, seja pelas suas próprias limitações financeiras. Na atualidade, resta disseminada a noção de que cabe aos Estados contemporâneos auxiliar os agentes econômicos para que se atinja o equilíbrio das forças do capital e dos valores socialmente relevantes.” 67 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 19. Tradução de: Marco Aurélio Nogueira. 68 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 19. Tradução de: Marco Aurélio Nogueira. 69 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, [2003?], p. 289. 34 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) são elementos imprescindíveis que atuam como referenciais para as democracias na contemporaneidade. Sobre a sustentabilidade, Algumas palavras sobre a sustentabilidade cabem aqui. Muitas vezes, o termo é utilizado para expressar a sustentabilidade ambiental. Creio, no entanto, que este conceito tem diversas outras dimensões. Deixem-se enumerá-las, brevemente: — a sustentabilidade social vem na frente, por se destacar como a própria finalidade do desenvolvimento, sem contar com a probabilidade de que um colapso social ocorra antes da catástrofe ambiental; — um corolário: a sustentabilidade cultural; — a sustentabilidade do meio ambiente vem em decorrência; — outro corolário: distribuição territorial equilibrada de assentamentos humanos e atividades; — a sustentabilidade econômica aparece como uma necessidade, mas em hipótese alguma é condição prévia para as anteriores, uma vez que um transtorno econômico traz consigo o transtorno social, que, por seu lado, obstrui a sustentabilidade ambiental; — o mesmo pode ser dito quanto à falta de governabilidade política, e por esta razão é soberana a importância da sustentabilidade política na pilotagem do processo de reconciliação do desenvolvimento com a conservação da biodiversidade; — novamente um corolário se introduz: a sustentabilidade do sistema internacional para manter a paz — as guerras modernas são não apenas genocidas, mas também ecocidas — e para o estabelecimento de um sistema de administração para o patrimônio comum da humanidade.70 Diante da análise das palavras de Sachs, umas das formas de se visualizar a democracia é a partir do fenômeno da sustentabilidade, com a percepção de que a última constitui um processo holístico multissetorial, que engloba desde a proteção do meio ambiente até a governabilidade política. Com base nas dimensões estabelecidas por Sachs, a própria Constituição Federal de 1988 positiva a sustentabilidade: a partir do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225, CF); do pleno exercício dos direitos culturais e a proteção das manifestações das culturas populares (artigo 215, CF); da democratização da seguridade social (artigo 194 e seguintes, CF); do pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e o bem-estar de seus habitantes, através da política de desenvolvimento urbano (artigo 182, CF); da valorização do trabalho humano e da livre iniciativa, fundamentos da ordem econômica (artigo 170, CF); do exercício da soberania popular pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto (artigo 14, CF); e da defesa da paz e a cooperação entre os povos como princípios da República Federativa do Brasil (artigo 4º, CF). Cada um dos direitos citados acima pode ser visualizado na definição de sustentabilidade proposta por Sachs. Igualmente, assim se satisfaz o processo democrático, em seu aspecto dinâmico e multidimensional. Como já demonstrado, essa pluralidade de matérias 70 SACHS, Ignacy. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: Garamond, 2009, p. 71 – 72. 35 protegidas constitucionalmente decorre de um longo processo histórico-político que se inicia com a “passagem” do Estado Liberal para o Estado Social, e da adaptação do último para o Estado Democrático de Direito. Da mesma forma, as percepções sobre a representação e a participação evoluem e ganham novas formas no decorrer do tempo — algumas, mais parecidas com os tradicionais modelos atenienses do século V a.C.; outras, peculiares e disruptivas. Elali apresenta uma visão de sustentabilidade que se aproxima do conceito de Sachs: [...] nota-se que a sustentabilidade, aqui relacionada à economia, é um problema multidimensional, implicando que sejam tomados comportamentos responsáveis em face das gerações futuras. Não obstante o termo seja de difícil definição, relaciona-se a sustentabilidade, também, ao bem-estar social, englobando-se nele elementos como a saúde, a riqueza e a prosperidade da população. [...] Pelos mesmos argumentos de Streeten, conclui-se que para a estruturação de uma economia desenvolvida em termos sustentáveis, é imprescindível a existência de um sistema jurídico compatível, que sirva de base para a atuação do Estado e dos agentes econômicos privados, equilibrando, sempre, as “regras do jogo do mercado” e fomentando as correções de suas possíveis falhas.71 O ODS 10 (“reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles”72), da Agenda 2030 da ONU, possui especificamente três metas que, em síntese, traduzem o espírito da ascensão de um projeto de democracia participativa e deliberativa que, para obter êxito, necessita do fortalecimento da sustentabilidade política e dos direitos e garantias fundamentais: [...] 10.2 Até 2030, empoderar e promover a inclusão social, econômica e política de todos, independentemente da idade, gênero, deficiência, raça, etnia, origem, religião, condição econômica ou outra 10.3 Garantir a igualdade de oportunidades e reduzir as desigualdades de resultados, inclusive por meio da eliminação de leis, políticas e práticas discriminatórias e da promoção de legislação, políticas e ações adequadas a este respeito [...] 10.6 Assegurar uma representação e voz mais forte dos países em desenvolvimento em tomadas de decisão nas instituições econômicas e financeiras internacionais globais, a fim de produzir instituições mais eficazes, críveis, responsáveis e legítimas [...]73 71 ELALI, André de Souza Dantas. Concorrência fiscal internacional: a concessão de incentivos fiscais em face da integração econômica internacional. 2009. Tese (Doutorado em Direito) — Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2009, p. 58 – 59. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/4168. Acesso em: 05 nov. 2020. 72 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Transformando Nosso Mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, Nova York, set. 2015. Disponível em: https://nacoesunidas.org/wp- content/uploads/2015/10/agenda2030-pt-br.pdf. Acesso em: 20 jun. 2020. 73 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Transformando Nosso Mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, Nova York, set. 2015. Disponível em: https://nacoesunidas.org/wp- content/uploads/2015/10/agenda2030-pt-br.pdf. Acesso em: 20 jun. 2020. 36 Quando se aborda, por exemplo, o tema da democracia digital sob o viés da governança pública, é imprescindível mencionar os problemas decorrentes da exclusão digital e da falta de igualdade de tratamento entre os diferentes agentes que constituem o ecossistema da Governança da Internet. Existe um caráter político por trás dessas pautas, que justifica a concretização de políticas públicas direcionadas às múltiplas realidades encontradas na sociedade globalizada. Na sociedade da informação, quando se pretende fomentar a participação e a representação em um ambiente democrático regulado, e executar o fundamento constitucional da erradicação da pobreza, da marginalização e da redução das desigualdades sociais e regionais, há um fator crucial a ser considerado: o acesso democrático e universal à tecnologia da informação e comunicação. Como prevê a Agenda de Túnis para a Sociedade da Informação: 96 Relembramos a importância de se criar um ambiente legal, regulatório e político confiável, transparente e não discriminatório. Para esse fim, reiteramos que a UIT e outras organizações regionais devem tomar medidas para garantir o uso racional, eficiente e econômico, bem como o acesso equitativo ao espectro de radiofrequência por todos os países, com base nos acordos internacionais pertinentes. 97 Reconhecemos que a participação das partes interessadas é essencial para a construção bem sucedida de uma Sociedade da Informação centrada nas pessoas, inclusiva e orientada ao desenvolvimento, e que os governos podem desempenhar um papel importante nesse processo. Ressaltamos que é chave para o sucesso a participação de todas as partes interessadas no acompanhamento e na implementação dos resultados da CMSI nos níveis nacional, regional e internacional, com o objetivo principal de ajudar os países a alcançar internacionalmente as metas e objetivos de desenvolvimento acordados, inclusive as Metas de Desenvolvimento do Milênio.74 A definição formal mínima que Bobbio tem da democracia é constituída pelos seguintes elementos: a) a existência de regras de procedimentos para a formação de decisões coletivas; e b) a previsão e facilitação da participação mais ampla possível dos interessados.75 O autor adiciona uma terceira condição, que considera indispensável: que aos cidadãos sejam dadas alternativas reais, para que o poder de decisão realmente exista76. O funcionamento desses mecanismos procedimentais, que caracterizam um regime democrático, se daria através da garantia do reconhecimento constitucional dos direitos invioláveis do indivíduo, sob os quais 74 COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL. Documentos da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação: Genebra 2003 e Túnis 2005. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2014, p. 109. Disponível em: https://www.cgi.br/media/docs/publicacoes/1/CadernosCGIbr_DocumentosCMSI.pdf. Acesso em: 18 nov. 2020. 75 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 22. Tradução de: Marco Aurélio Nogueira. 76 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 32. Tradução de: Marco Aurélio Nogueira. 37 nasceu o Estado Liberal77,78. Sem embargo, é válido lembrar as fragilidades da associação necessária entre democracia e liberalismo, já tratadas na seção anterior, em virtude do contexto sociopolítico em que aquelas transformações aconteceram. Outrossim, há várias deficiências no modelo liberal-burguês que o conduzem a uma crise de representatividade: Em um contexto social marcado por turbulências e rupturas, o constitucionalismo francês tinha como principal alvo os aparatos da Administração e da Justiça, dominados pelos representantes e pela mentalidade do ancien régime, e confiava no Parlamento que era composto, em sua esmagadora maioria, por representantes da burguesia, sendo apresentado, no plano da ideologia política, como único legítimo representante da soberania nacional e do “interesse geral”, ou seja, também das crescentes massas miseráveis que deixavam os campos em direção às cidades. Principal preocupação era a garantia do princípio da legalidade (inicialmente positivado na terceira Constituição francesa de 1795), isto é, da prevalência da lei, submetendo a esta as decisões dos demais poderes e aguardando do legislador a tutela e harmonização dos direitos fundamentais sem ulteriores possibilidades de controle.79 Segundo Bobbio, a regra da maioria ainda é válida como a regra fundamental de uma democracia, em que a tomada de decisões coletivas atinge todo o grupo, inclusive aquele responsável por decidir80. A escolha dos que têm direito ao voto, em um regime democrático, deveria considerar as circunstâncias históricas e um juízo comparativo, estando o processo de democratização historicamente vinculado ao alargamento progressivo do número de indivíduos com direito ao voto81. Considerando essa concepção, percebe-se naturalmente por que “democracia” e “Liberalismo” não se pressupõem, como já apresentado na seção anterior, de 77 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 32. Tradução de: Marco Aurélio Nogueira. 78 “No entanto, mesmo para uma definição mínima de democracia, como é a que aceito, não bastam nem a atribuição a um elevado número de cidadãos do direito de participar direta ou indiretamente da tomada de decisões coletivas, nem a existência de regras de procedimento como a da maioria (ou, no limite, da unanimidade). É indispensável uma terceira condição: é preciso que aqueles que são chamados a decidir ou a eleger os que deverão decidir sejam colocados diante de alternativas reais e postos em condição de poder escolher entre uma e outra. Para que se realize esta condição é necessário que aos chamados a decidir sejam garantidos os assim denominados direitos de liberdade, de opinião, de expressão das próprias opiniões, de reunião, de associação, etc. — os direitos à base dos quais nasceu o Estado liberal e foi construída a doutrina do Estado de direito em sentido forte, isto é, do Estado que não apenas exerce o poder sub lege, mas o exerce dentro de limites derivados do reconhecimento constitucional dos direitos ‘invioláveis’ do indivíduo. Seja qual for o fundamento filosófico destes direitos, eles são o pressuposto necessário para o correto funcionamento dos próprios mecanismos predominantemente procedimentais que caracterizam um regime democrático. As normas constitucionais que atribuem estes direitos não são exatamente regras do jogo: são regras preliminares que permitem o desenrolar do jogo.” (BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 32. Tradução de: Marco Aurélio Nogueira.) 79 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 16. 80 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 31. Tradução de: Marco Aurélio Nogueira. 81 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 31. Tradução de: Marco Aurélio Nogueira. 38 tal maneira que o Estado Liberal começa a desmoronar a partir do momento em que o sufrágio universal é posto em questão. Não obstante, a democracia e a participação política não se limitam ao voto: “[...] nunca poderá ser reduzida apenas aos processos eletivos”82. Existem controvérsias sobre aspectos práticos e teóricos que questionam a legitimidade da regra da maioria como premissa democrática e desassociam o sufrágio universal como pedra angular do axioma democrático. Sobre a prevalência da vontade da maioria, “[...] não se pode construir uma democracia efetiva quando se está diante de uma preponderância absoluta e ilimitada da vontade da maioria, colocando em risco os direitos da minoria83”. O ideal é que exista “[...] uma harmonia entre a vontade da maioria com o respeito aos direitos das minorias, dirimindo possíveis abusos de poder perpetrados pela parcela majoritária”84. Ademais, importantes são as considerações exteriorizadas por Häberle, que defende a relativização da hermenêutica constitucional jurídica através da ampliação do círculo de intérpretes e da normatização da esfera pública pluralista85, de modo que “a sociedade torna-se aberta e livre, porque todos estão potencial e atualmente aptos a oferecer alternativas para a interpretação constitucional”86. Essa última “[...] traduz (apenas) a pluralidade da esfera pública e da realidade [...], as necessidades e as possibilidades da comunidade, que constam do texto, que antecedem os textos constitucionais ou subjazem a eles”87. Assim, [...] a democracia não se desenvolve apenas no contexto de delegação de responsabilidade formal do Povo para os órgãos estatais (legitimação mediante eleições), até o último intérprete formalmente ‘competente’, a Corte Constitucional. Numa sociedade aberta, ela se desenvolve também por meio de formas refinadas de 82 MOURA, Kate de Oliveira; SILVEIRA NETO, Otacílio dos Santos. A superação da tensão existente entre as agências reguladoras brasileiras e o regime democrático. Revista Digital Constituição e Garantia de Direitos, v. 9, n. 2, 19 jun. 2017, p 339. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/constituicaoegarantiadedireitos/article/view/12326/8525. Acesso em: 15 dez. 2020. 83 MOURA, Kate de Oliveira; SILVEIRA NETO, Otacílio dos Santos. A superação da tensão existente entre as agências reguladoras brasileiras e o regime democrático. Revista Digital Constituição e Garantia de Direitos, v. 9, n. 2, 19 jun. 2017, p. 337 – 338. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/constituicaoegarantiadedireitos/article/view/12326/8525. Acesso em: 15 dez. 2020. 84 MOURA, Kate de Oliveira; SILVEIRA NETO, Otacílio dos Santos. A superação da tensão existente entre as agências reguladoras brasileiras e o regime democrático. Revista Digital Constituição e Garantia de Direitos, v. 9, n. 2, 19 jun. 2017, p. 338. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/constituicaoegarantiadedireitos/article/view/12326/8525. Acesso em: 15 dez. 2020. 85 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: S. A. Fabris Editor, 1997, p. 41. 86 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: S. A. Fabris Editor, 1997, p. 43. 87 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: S. A. Fabris Editor, 1997, p. 43. 39 mediação do processo público e pluralista da política e da práxis cotidiana, especialmente mediante a realização dos Direitos Fundamentais (Grundrechtsverwirklichung), tema muitas vezes referido sob a epígrafe do ‘aspecto democrático’ dos Diretos Fundamentais. Democracia desenvolve-se mediante a controvérsia sobre alternativas, sobre possibilidades e sobre necessidades da realidade e também o ‘concerto’ científico sobre questões constitucionais, nas quais não pode haver interrupção e nas quais não existe e nem deve existir dirigente.88 A participação é inerente à própria concepção de democracia; entretanto, nem sempre é planejada e executada, na prática, pelo Estado e pelos demais intérpretes da sociedade aberta de modo a possibilitar sua satisfação, ampliação e materialização associadas aos elementos clássicos da representação e da deliberação. Muitas vezes, são executadas políticas públicas que, apesar do atrativo apelo participativo, mantêm o poder de decisão em um grupo fechado que não representa, de fato, a vontade do povo (em sentido plural) nem das minorias. Nessa interpretação degenerada da democracia participativa, independentemente das deliberações e das escolhas advindas diretamente da participação, as decisões finais serão sempre as mesmas, sem pluralismo, monopolizadas pelos “representantes” eleitos ainda que de forma legítima. No princípio democrático, deveria haver a conciliação entre os elementos da teoria democrática representativa e da democracia participativa, como explana Canotilho: Em primeiro lugar, o princípio democrático acolhe os mais importantes postulados da teoria democrática representativa — órgãos representativos, eleições periódicas, pluralismo partidário, separação de poderes. Em segundo lugar, o princípio democrático implica democracia participativa, isto é, a estruturação de processos que ofereçam aos cidadãos efectivas possibilidades de aprender a democracia, participar nos processos de decisão, exercer controlo crítico na divergência de opiniões, produzir inputs políticos democráticos.89 Na democracia representativa, “[...] o povo não toma ele mesmo as decisões que lhe dizem respeito, mas elege seus próprios representantes, que devem por ele decidir”90, de modo que “[...] surge diante da impossibilidade do exercício de democracia direta nas sociedades de massas, gerando uma atuação limitada dos cidadãos nas esferas políticas”91. Essa concepção pressupõe a capacidade dos representantes eleitos pelo povo em avaliar o que realmente interessa à coletividade, já que os cidadãos, individualmente, observariam seus próprios 88 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: S. A. Fabris Editor, 1997, p. 36 – 37. 89 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, [2003?], p. 288. 90 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 2000. Tradução de: Marco Aurélio Nogueira, p. 33 – 34. 91 MAGRANI, Eduardo. Democracia conectada: a internet como ferramenta de engajamento político- democrático. Curitiba: Juruá, 2014, p. 39. 40 interesses92. Todavia, “neste contexto relegou-se ao cidadão como principal papel de participação política a ação de voto”93. É válido lembrar que essa ênfase nas eleições e na representação dos interesses dos cidadãos deriva da concepção liberal da democracia, cujos princípios são eleições livres e justas, e um processo eleitoral competitivo, resultando na congregação daqueles interesses individuais94. O que não é levado em consideração, muitas vezes, nesse modelo democrático é que os próprios representantes eleitos podem agir como seres egocêntricos, perseguindo interesses individuais, contra a legalidade e/ou finalidade, o que obsta a persecução do interesse público e conduz a problemas graves que atingem toda a sociedade e o Estado, como atos de improbidade, corrupção, abusos de autoridade e, até mesmo, práticas antidemocráticas de cunho neofascista. Essas questões mostram que essa faceta formal da democracia representativa ainda não é verdadeiramente suficiente para atender à concepção de “governo do povo”95. No que se refere à teoria dos órgãos públicos e à relação entre as vontades dos agentes e do Estado, é válido mencionar o significado da imputação direta em oposição à representação: A relação existente entre a vontade dos órgão [sic] e dos agentes, ou até, para nos expressarmos com maior rigor, entre a vontade do Estado e de seus agentes, é uma relação de imputação direta dos atos dos agentes ao Estado. Esta é, precisamente, a peculiaridade da chamada relação orgânica. A vontade do agente é imputada diretamente ao Estado, ou seja, é havida como sendo própria do Estado e não de alguém diferente dele, distinto dele. O que o agente queira, no exercício de sua atividade funcional – pouco importa se bem ou mal desempenhada – entende-se ser o que o Estado naquele momento quis, ainda que haja querido mal. O que o agente nestas condições faça é o que o Estado fez. Nas relações externas não se considera se o agente obrou bem ou mal. Considera-se, isto sim, se o Estado agiu bem ou mal. Em suma: não se biparte Estado e agente (como se fossem representante e representado) mas, pelo contrário, são considerados como uma unidade. A relação orgânica, pois, entre o Estado e o agente não é uma relação externa, constituída exteriormente ao Estado, porém interna, ou seja, processada na intimidade de pessoa estatal.96 Não obstante, a clássica democracia direta ateniense não é o ideal que se busca, e instrumentos mais modernos como o referendo apenas forçaria uma escolha entre duas 92 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 2000. Tradução de: Marco Aurélio Nogueira, p. 34. 93 MAGRANI, Eduardo. Democracia conectada: a internet como ferramenta de engajamento político- democrático. Curitiba: Juruá, 2014, p. 39. 94 MEIJER, Albert J. The Do It Yourself State. Information Polity, Países Baixos, v. 17, n. 3,4, 4 dez. 2012, p. 305. Disponível em: https://content.iospress.com/articles/information-polity/ip000283. Acesso em: 27 out. 2020. 95 Nas palavras do presidente americano Abraham Lincoln, no Discurso de Gettysburg (The Gettysburg Address), proferido em 19 de novembro de 1863, na Pensilvânia: “that this nation, under God, shall have a new birth of freedom -- and that government of the people, by the people, for the people, shall not perish from the earth.” (ABRAHAM LINCOLN ONLINE. The Gettysburg Address, c2020. Disponível em: http://www.abrahamlincolnonline.org/lincoln/speeches/gettysburg.htm. Acesso em: 25 ago. 2020.) 96 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Apontamentos sobre os agentes e órgãos públicos: regime jurídico dos funcionários públicos. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, p. 71 – 72. 41 alternativas e obrigaria o cidadão a decidir sob exclusão, faltando, portanto, o necessário debate político livre97. O uso das novas tecnologias não provocará a substituição da representação pela democracia direta, mas seu fortalecimento através do melhor acesso à informação, de modo que o povo possa avaliar de forma transparente as visões políticas dos representantes e os programas de governo98. Amaral apresenta pertinentes críticas ao modelo representativo: Se a democracia, uma variedade de mecanismos políticos e processos de decisão em que predomina a expressão da soberania popular, é um bem inquestionável – e certamente estamos em face da mais importante conquista política do Ocidente no último quartel do século XX, referimo-nos à recuperação e revalorização dos valores democráticos clássicos –, não é certo que a democracia representativa deva estar com ela identificada, ou muito menos que a encerre, porque não se trata, esta, de governo do povo, mas de processo de exercício do governo ou de elaboração de leis, de que o povo não participa, senão indiretamente. Se ao povo (isto é, ao colégio eleitoral) é dado escolher, com as distorções insuperáveis do mecanismo político-eleitoral, algumas pessoas encarregadas do processo de tomada de decisões – governamentais ou legislativas –, não lhe cabe interferir diretamente nessas decisões. A democracia representativa não é uma forma de governo popular, mas tão-somente um conjunto de procedimentos de controle sobre o governo, ou de mera legitimação do poder, mediante o processo eleitoral, mediatizado pelo poder econômico, pelo (abuso) do poder político e pela manipulação da vontade eleitoral pelos meios de comunicação, questões insolúveis na sociedade de massa.99 Amaral tem uma visão pessimista sobre a democracia representativa. Percebe-se que as críticas são direcionadas ao distanciamento e/ou à ausência de um elemento material que satisfaça a expressão da vontade popular na representação, a exemplo do que ocorria no Estado Liberal (Burguês). A concepção liberal considera o processo democrático de tomada de decisões como o melhor resultado das preferências individuais, de modo que se espera que as novas tecnologias permitam seu cumprimento através de pesquisas na internet, referendos e votos conscientes pela otimização das informações sobre os representantes100. Todavia, só há, conforme a visão de Canotilho, representação democrática material “[...] quando os cidadãos (povo), para além das suas diferenças e concepções políticas, se podem reencontrar nos atos dos representantes em virtude do conteúdo justo destes atos [...]”101. É possível haver a 97 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 22. Tradução de: Marco Aurélio Nogueira. 98 MEIJER, Albert J. The Do It Yourself State. Information Polity, Países Baixos, v. 17, n. 3,4, 4 dez. 2012, p. 304. Disponível em: https://content.iospress.com/articles/information-polity/ip000283. Acesso em: 27 out. 2020. 99 AMARAL, Roberto. Apontamentos para a reforma política: a democracia representativa está morta; viva a democracia participativa. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 38, n. 151, jul./set. 2001, p. 29 – 30. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/699. Acesso em: 25 ago. 2020. 100 MEIJER, Albert J. The Do It Yourself State. Information Polity, Países Baixos, v. 17, n. 3,4, 4 dez. 2012, p. 303. Disponível em: https://content.iospress.com/articles/information-polity/ip000283. Acesso em: 27 out. 2020. 101 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, [2003?], p. 294. 42 identificação da democracia com a representação quando essa ultrapassa os aspectos da formalidade e se encontra na soberania popular em sentido material. Em síntese, A representação democrática significa, em primeiro lugar, a autorização dada pelo povo a um órgão soberano, institucionalmente legitimado pela Constituição (criado pelo poder constituinte e inscrito na lei fundamental), para agir autonomamente em nome do povo e para o povo. A representação (em geral parlamentar) assenta, assim, na soberania popular. Esta, por sua vez, [...] pressupõe a ideia de povo igual, ou seja, o povo formado por cidadãos iguais, livres e autônomos e não por um povo distribuído, agrupado e hierarquizado em termos estamentais, corporativos ou orgânicos. É isso que se pretende realçar quando se fala da representação do povo como “a realização prática da soberania popular num Estado jurídico- constitucionalmente ordenado”. Esta autorização e legitimação jurídico-formal concedida a um órgão <> (delegação da vontade) para exercer o poder político designa-se representação formal.102 Considerando a necessidade de regras bem definidas para a formação do processo de tomada de decisões, e da ampliação da participação social e da deliberação no mundo atual (da globalização, do big data e da sociedade da informação) é possível que haja realmente a satisfação da soberania popular pelos representantes eleitos quando se tem, por exemplo, um processo eleitoral viciado pelo uso indevido da tecnologia da informação e comunicação para prejudicar oposições políticas e manipular a opinião pública através de fake news, desinformações, uso indevido de algoritmos preditivos, manipulação de fotos e vídeos por deepfake, e tratamento de dados pessoais sem o livre consentimento? Alguns desses questionamentos são retratados pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito103 – Fake News (CPMI das Fake News), criada nos termos do Requerimento de Instituição de CPMI nº 11/2019104 e instalada em 04/09/2019. Diante dos constantes processos disruptivos, que se renovam a cada dia e se aceleram com o poder da Globalização e do avanço da infraestrutura da internet, não seria possível que 102 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, [2003?], p. 293. 103 Artigo 58, § 3º, Constituição Federal: As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores. (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 01 maio 2020.) 104 BRASIL. Congresso Nacional. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito – Fake News. Requerimento de Instituição de CPMI nº 11, de 2019. Criação de Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, composta de 15 (quinze) Senadores e 15 (quinze) deputados, e igual número de suplentes, para, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, investigar os ataques cibernéticos que atentam contra a democracia e o debate público; a utilização de perfis falsos para influenciar os resultados das eleições 2018 [...]. Senado Federal: atividade legislativa, Brasília, 2019. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg- getter/documento?dm=7974346&ts=1588202654055&disposition=inline. Acesso em: 01 maio 2020. 43 o Poder Constituinte Originário pensasse em todas essas implicações advindas da tecnologia em 1988, pois muitas delas nem existiam; tampouco que o Constituinte Derivado e o legislador ordinário imaginassem há dez anos que processos eleitorais seriam totalmente transformados pela TIC, o que ficou bem claro após as eleições presidenciais de 2016 nos EUA, e de 2018 no Brasil. É nesse sentido que se insere a atuação (muitas vezes, ativista) do Judiciário para suprir os hiatos deixados pelo legislador inerte, e para garantir o cumprimento da democracia e dos direitos e garantias fundamentais diante do universo computadorizado. Como se observa, existem aspectos da representação que perdem sua essência diante das inovações tecnológicas, sendo necessário repensar a estrutura do processo eleitoral-político, as formas de participação, e os próprios limites do fenômeno democrático, cada vez mais inclinado para uma tradição jurisprudencial de inspiração neoconstitucionalista, e cercado constantemente pelo conflito de princípios e regras, como a antinomia histórica entre o direito de acesso à informação e o direito à privacidade. É nítida a corrente crise de representação política global, especialmente nos países da América Latina, marcados por um austero histórico de corrupção, crises socioeconômicas, golpes, ditaduras e processos de impeachment. Conforme observa Magrani, “estas crises espelham déficits democráticos que podem e devem ser minimizados através da implementação de processos deliberativos”105. A concepção deliberativa consiste em realizar a democracia através de um debate público (Habermasiano) no qual todos os argumentos são apresentados e discutidos, de modo que a democracia deliberativa resulta da ponderação pública da diversidade de ideias106. No que se refere à contribuição das novas tecnologias nesse processo, isso aconteceria através do uso de blogs, websites e mídias sociais, nos quais os cidadãos poderiam participar de debates públicos e, assim, fortalecer consideravelmente seu engajamento107. A falta generalizada de confiança nas instituições públicas clássicas e a ausência de um sentimento constitucional apontam os indícios da ruptura do modelo representativo com o processo democrático. Rever as bases desse processo dinâmico, em contínua transformação, seguido antagonicamente por períodos de maior ou menor estabilidade, se faz necessário frente à construção de um novo constitucionalismo do século XXI e da ressignificação dos ideais de “democracia”. 105 MAGRANI, Eduardo. Democracia conectada: a internet como ferramenta de engajamento político- democrático. Curitiba: Juruá, 2014, p. 39. 106 MEIJER, Albert J. The Do It Yourself State. Information Polity, Países Baixos, v. 17, n. 3,4, 4 dez. 2012, p. 303. Disponível em: https://content.iospress.com/articles/information-polity/ip000283. Acesso em: 27 out. 2020. 107 MEIJER, Albert J. The Do It Yourself State. Information Polity, Países Baixos, v. 17, n. 3,4, 4 dez. 2012, p. 303. Disponível em: https://content.iospress.com/articles/information-polity/ip000283. Acesso em: 27 out. 2020. 44 A superação dessa crise não se faz, todavia, com a quebra definitiva do modelo representativo. Retroceder a modelos distantes aplicados em contextos históricos passados e/ou próprios de sociedades severamente distintas da brasileira, como a democracia direta ateniense108, não é uma solução a ser ponderada, afinal, “o exercício do poder directamente pelo povo — democracia directa — pressupõe uma estrutura territorial e social praticamente inexistente na época actual.”109. Moreira Neto expõe a insuficiência da representação e a ascensão das instituições participativas: Dada a insuficiência da representação, cujos vícios e carências são notórios [...], e, de outro lado, as dificuldades operativas da participação direta, torna-se cada vez maior o interesse nas antigas e novas formas da democracia indireta. Assim, no horizonte prescrutável da instituição estatal, é de se esperar o prosseguimento da tendência à pluralização das instituições participativas, não só multiplicando-as e facilitando a aplicação das mais tradicionais, como sejam o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular, como ampliando o uso das que estão despontando no campo do Direito Administrativo, como a coleta de opinião, o debate público, a audiência pública, o colegiado misto, as agências reguladoras e a mais recente delas, a delegação atípica, outorgada às chamadas entidades intermédias.110 No eixo organizacional discricionário das instituições públicas, a mudança não pode ocorrer apenas internamente, desconsiderando a vontade popular, o respeito às minorias e a opinião pública. É imperativo que haja a efetiva participação111 do povo além do momento do 108 “What has been much less consistent over its long history is the ‘technology of democracy’. The specific mechanisms that have translated its eternal principles into everyday practices of voting, representing, deciding, implementing, and complying by citizens and their rulers have changed greatly and, seemingly, irrevocably. At its founding, citizens walked to a central place, assembled there for a lengthy period to listen to the rhetoric of fellow citizens, tried to reach a consensus and/or occasionally voted by voice or small wooden balls in order to select their leaders or courses of action. In the ensuing years, the means whereby citizens were brought together and allowed to express their choices have changed so radically that it is highly unlikely that an ancient Greek transported to the present would recognize as democratic any of the technologies that are routinely used to nominate candidates, campaign for election, vote for competing tickets, tally up the winners and announce the results to the general public. Probably, the most mystifying aspect of all these technological revolutions to him would be the extent to which so many of them involve the act of political representation, i.e. of selecting and then delegating to some person or organization the right to act in lieu of the individual citizen.” (KIES, Raphael et al. Evaluation of the use of new technologies in order to facilitate democracy in Europe. Luxemburgo: Parlamento Europeu, out. 2003, p. 1. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/etudes/join/2003/471583/IPOL- JOIN_ET(2003)471583_EN.pdf. Acesso em: 21 jun. 2020.) 109 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, [2003?], p. 294. 110 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 13 – 14. 111 “Por certo, ainda, mesmo que adequadamente instituída, a participação não venha a ser panaceia, parece contudo inegável que, sabiamente aplicada, onde e quando se demande aquele tipo de decisões que digam mais ao bom senso que à técnica e seja desnecessária ou desrecomendada a partidarização de alternativas, pode-se vislumbrar sua crescente importância na homogeneização do continuum sociedade-Estado, preparando um futuro de maior legitimidade e até de maior eficiência para a ação estatal, pois as decisões públicas compartilhadas com os seus destinatários são cumpridas com mais empenho e com menor resistência.” (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 15.) 45 voto, incluindo a execução do controle social, que passa a ser colaborativo e pressupõe a existência de transparência, publicidade, abertura de dados, responsabilidade, integridade, prestação de contas, gestão de riscos e garantia de acesso à informação. Essa participação ativa ultrapassa os limites da concepção de “governo” e traz consigo as marcas da governança, não se confundindo com os mecanismos de democracia direta (ex.: plebiscito, referendo). Trata-se, assim, da teoria da democracia participativa-deliberativa aplicada à governança pública: A falta de confiança nas instituições públicas está intrinsicamente ligada à (ausência de) abertura democrática auferida pelo Estado, de maneira que a adoção de critérios e princípios de governança, compliance, participação social, transparência, accountability e compartilhamento da tomada de decisões empoderam o cidadão, na medida em que este passa a se sentir sujeito ativo / protagonista dos processos governamentais e, consequentemente, do próprio processo democrático. A governança é um fenômeno que depende da abertura democrática, do incentivo à participação popular nos processos decisórios, e da reestruturação das relações de poder, especialmente diante das transformações trazidas pela Revolução 4.0 e pela economia digital. Corrupção, burocratização, desconhecimento das leis, baixo nível de escolaridade e renda são fatores relacionados à perda de confiança nas instituições (públicas e privadas, especialmente nas primeiras). A governança visa a retomar esse laço de confiabilidade através de um processo de promoção da transparência, accountability, e do reconhecimento do papel protagonista do cidadão nos processos institucionais, burocráticos e democráticos.112 Em todas as definições possíveis de democracia, Bobbio aponta aquilo que não pode faltar em qualquer que seja a perspectiva adotada: a visibilidade ou transparência do poder113. É útil observar estes elementos na era atual sob o viés da necessidade por transparência, responsabilidade e controle social, o que influi diretamente na realização da governança pública. Atualmente, é impossível pensar na democracia participativa sem tratar da importância da governança, pelo fato de ambos processos terem como foco o protagonismo social na tomada de decisões e ações independentemente do Governo. É preciso compreender, de uma vez por todas, que “[...] os administrados não são meros sujeitos passivos na relação com o poder público, mas verdadeiros titulares do poder político exercido; são eles protagonistas e não meros destinatários do agir do Estado [...]”114. Koulias define a governança como “sistemas e 112 BEZERRA, Tiago José de Souza Lima. Sustentabilidade, tecnologia da informação e justiça: a governança digital no Poder Judiciário brasileiro em meio ao desenvolvimento sustentável. In: OLIVEIRA, Adriana Carla Silva de; GUIMARÃES, Patrícia Borba Vilar; ALENCAR XAVIER, Yanko Marcius de (org.). Sustentabilidade e cidadania: o meio ambiente na era digital. 1. ed. Natal: Motres, 2019, p. 20. 113 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 21. Tradução de: Marco Aurélio Nogueira. 114 ISMAIL FILHO, Salomão. Boa administração: um direito fundamental a ser efetivado em prol de uma gestão pública eficiente. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 277, n. 3, nov. 2018, p. 109. Disponível em: http://dx.doi.org/10.12660/rda.v277.2018.77679. Acesso em: 07 nov. 2020. 46 processos que garantem total efetividade em uma organização, seja uma empresa, órgão público ou organizações internacionais”115. Boyte destaca o fato de que a governança implica na colaboração e no empoderamento, em vez de hierarquia e controle, sendo comum associá-la a conceitos como capital social e redes sociais116. Rosenau explica com precisão a diferença entre governo e governança: [...] governança não é o mesmo que governo. Os dois conceitos referem-se a um comportamento visando a um objetivo, a atividades orientadas para metas, a sistemas de ordenação; no entanto, governo sugere atividades sustentadas por uma autoridade formal, pelo poder de polícia que garante a implementação das políticas devidamente instituídas, enquanto governança refere-se a atividades apoiadas em objetivos comuns, que podem ou não derivar de responsabilidades legais e formalmente prescritas e não dependem, necessariamente, do poder de polícia para que sejam aceitas e vençam resistências. Em outras palavras, governança é um fenômeno mais amplo do que governo; abrange as instituições governamentais, mas implica também mecanismos informais, de caráter não-governamental, que fazem com que as pessoas e as organizações dentro da sua área de atuação tenham uma conduta determinada, satisfaçam suas necessidades e respondam às suas demandas.117 O conceito de Rosenau ajuda a entender por que alguns juristas positivistas têm receio em aceitar um tipo de abordagem interdisciplinar quando se trata da governança. Sua compreensão exige desvincular o poder coercitivo do Estado e visualizar outras formas de comunicação com a sociedade, reduzindo a importância da formalidade hierárquica do ente público, e dando ênfase ao protagonismo de pessoas e organizações que não têm ligação com o Estado. Isso não significa, de forma alguma, afronta ao princípio da legalidade, mas supremacia da soberania popular, afinal, todo o poder emana do povo. A ideia de governo ainda está vinculada “[...] a uma organização institucional que procede de maneira verticalizada, ou seja, a partir de uma forma de ordenação hierarquizada (top down) [...]”118; a governança, por sua vez, “[...] reporta-se a um sistema horizontal, não necessariamente atrelado à autoridade estatal, 115 KOULIAS, Christina. Governance. United Nations Global Compact, Nova York, [20--], tradução nossa. Disponível em: https://www.unglobalcompact.org/what-is-gc/our- work/governance#:~:text=Governance%20is%20the%20systems%20and,business%2C%20government%20or% 20multilateral%20institution.&text=Companies%20can%20engage%20with%20the,peace%20and%20rule%20o f%20law. Acesso em: 28 out. 2020. No original: “Governance is the systems and processes that ensure the overall effectiveness of an entity – whether a business, government or multilateral institution.” 116 BOYTE, Harry C. Reframing Democracy: governance, civic agency, and politics. Public Administration Review, v. 65, n. 5, set. – out. 2005, p. 537. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/3542520. Acesso em: 28 out. 2020. 117 ROSENAU, James N. Governança, ordem e transformação na política mundial. In: ROSENAU, James N.; CZEMPIEL, Ernst-Otto (org.). Governança sem governo: ordem e transformação na política mundial. Brasília: UnB, 2000, p. 15 – 16. 118 VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. A Governança em suas múltiplas formas de expressão: o delineamento conceitual de um fenômeno complexo. Revista Estudos Institucionais, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, 2016, p. 678. Disponível em: https://doi.org/10.21783/rei.v2i2.64. Acesso em: 28 out. 2020. 47 e ordenado a partir de uma lógica distinta (bottom up)”119,120. O Quadro 1 apresenta um contraste entre os dois conceitos: Quadro 1 — Diferenças entre governo e governança Fonte: Moreau Defarges apud Villas Bôas Filho.121 2.3 A DEMOCRACIA DIGITAL Normalmente, quando se aborda a democracia digital, existe uma forte tendência doutrinária na academia em associar esse tema com a democracia deliberativa, e em analisar a influência das novas tecnologias e mídias sociais no processo comunicativo a partir da filosofia 119 VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. A Governança em suas múltiplas formas de expressão: o delineamento conceitual de um fenômeno complexo. Revista Estudos Institucionais, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, 2016, p. 678. Disponível em: https://doi.org/10.21783/rei.v2i2.64. Acesso em: 28 out. 2020. 120 “Contudo, não se pode considerar a governança uma espécie de panaceia no que concerne à participação mais alargada na tomada de decisões. Conforme observa André-Jean Arnaud, tratando-se da governança, é preciso saber dela se servir e querer fazê-lo. Desvios são, evidentemente, possíveis. A eventual organização de lobbies com o intuito de instrumentalização da governança para fins escusos ou distanciados do interesse geral, por exemplo, não pode ser desconsiderada. Torna-se necessária, portanto, uma vigilância permanente para coibir desvios o que, por sua vez, implica a presença das condições indispensáveis à plena implementação da cidadania.” (VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. A Governança em suas múltiplas formas de expressão: o delineamento conceitual de um fenômeno complexo. Revista Estudos Institucionais, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, 2016, p. 695. Disponível em: https://doi.org/10.21783/rei.v2i2.64. Acesso em: 28 out. 2020.) 121 MOREAU DEFARGES, Philippe. La Gouvernance. 5. ed. Paris: Presses Universitaires de France, 2015, p. 27 apud VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. A Governança em suas múltiplas formas de expressão: o delineamento conceitual de um fenômeno complexo. Revista Estudos Institucionais, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, 2016, p. 678. Disponível em: https://doi.org/10.21783/rei.v2i2.64. Acesso em: 28 out. 2020. 48 de Jürgen Habermas. Apesar da relevante contribuição do autor para os citados estudos, acredita-se que essa repetição massiva de ideias limita os avanços na área e a contribuição de outras perspectivas, principalmente daqueles que defendem a democracia participativa e a democracia digital sob o viés da governança. A deliberação não é suficiente, apesar de importante; é preciso que o povo realmente participe e tenha o efetivo poder de decisão além de processos eleitorais. A democracia digital é uma das variáveis mais dinâmicas, pluralistas e inclusivas do processo democrático na sua totalidade. Sua compreensão é totalmente possível quando se aceita a prevalência e a importância da participação social nos processos de governança pública. O que isso significa? Ao contrário das formas tradicionais, a democracia digital parte tanto de iniciativas oficiais do ente soberano estatal (a exemplo da oferta de serviços públicos em websites e aplicativos disponíveis em dispositivos eletrônicos), como de iniciativas do próprio indivíduo, que não precisa ter sua vontade ratificada por força de um grupo majoritário para se manifestar politicamente (como ocorre normalmente no tradicional processo eleitoral, ainda que se utilizem urnas eletrônicas e sistemas biométricos de identificação). Observa-se que “[...] sob muitos aspectos, os governos ainda funcionam e retêm sua soberania; no entanto, [...] uma parte da sua autoridade foi transferida para coletividades subnacionais”122, ou seja, “[...] agora certas funções da governança estão sendo executadas mediante atividades que não têm origem nos governos”123. Parte-se da hipótese de que na democracia digital cada indivíduo é “soberano” ante a (in)existência de limites do universo computadorizado; a representação política clássica sucumbe a manifestações e intervenções virtuais de pensamento pautadas nos valores e princípios da igualdade124, da liberdade (de expressão125, de crença126, intelectual, artística, 122 ROSENAU, James N. Governança, ordem e transformação na política mundial. In: ROSENAU, James N.; CZEMPIEL, Ernst-Otto (org.). Governança sem governo: ordem e transformação na política mundial. Brasília: UnB, 2000, p. 14. 123 ROSENAU, James N. Governança, ordem e transformação na política mundial. In: ROSENAU, James N.; CZEMPIEL, Ernst-Otto (org.). Governança sem governo: ordem e transformação na política mundial. Brasília: UnB, 2000, p. 14. 124 Artigo 5º, caput, Constituição Federal: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes. (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 29 mar. 2020.) 125 Artigo 5º, IV, Constituição Federal: É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 29 mar. 2020.) 126 Artigo 5º, VI, Constituição Federal: É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. 49 científica e de comunicação127), da transparência e do acesso à informação128, ao mesmo tempo em que se busca o consenso pela vedação aos discursos de ódio e pela proteção à intimidade, à privacidade, à honra, à imagem129, à segurança, à não discriminação130, enfim, às liberdades individuais. O cerne da democracia digital não está unicamente no fato de alguém poder exteriorizar seu espírito político na internet diante da sociedade global, livre de barreiras físicas, mas no efeito e nas consequências que esse ato potencialmente tem ante a enorme velocidade e quantidade de dados constantemente trocados. Esse efeito ganha proporções ainda maiores quando seu autor é um agente público, utiliza a rede como ferramenta de comunicação governamental oficial, e confunde os limites entre as esferas pública e privada, prática que se tornou comum no Brasil especialmente após as eleições de 2018. Seguindo essas primeiras reflexões, é possível que de um tweet decorra um ato administrativo, por exemplo? Um agente público que trata simultaneamente de questões pessoais e governamentais na mesma conta do Twitter pode praticar atos administrativos virtuais? É possível obter a invalidação de um tweet, como ato administrativo, pelo Poder Judiciário? Poderia haver uma condenação por improbidade administrativa decorrente de atos emanados pela rede pessoal do agente? Não há, prontamente, respostas para essas questões na doutrina clássica positivista. A tecnologia cria conjunturas inéditas que a ciência jurídica, em sua clássica dogmática, não possui instrumentos hermenêuticos capazes de fornecer soluções práticas para os problemas apresentados com base no conjunto normativo disponível. A priori, qualquer pessoa adulta tem capacidade para criar uma conta privada em uma rede social (Facebook, Instagram, Twitter ou Tinder, por exemplo). Normalmente, há três requisitos a serem preenchidos para que isso suceda: 1) possuir um dispositivo eletrônico (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 29 mar. 2020.) 127 Artigo 5º, IX, Constituição Federal: É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 29 mar. 2020.) 128 Artigo 5º, XIV, Constituição Federal: É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional. (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 29 mar. 2020.) 129 Artigo 5º, X, Constituição Federal: São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 29 mar. 2020.) 130 Artigo 3º, Constituição Federal: Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...] IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 29 mar. 2020.) 50 (computador, notebook, celular, tablet, etc.); 2) contratar um provedor de conexão à internet; e 3) cadastrar-se na rede, após fornecer o acesso a dados pessoais e concordar integralmente com os termos de uso e políticas de privacidade, que funcionam, muitas vezes, como contratos de adesão. O único fato de alguém ter acesso a uma rede social não configura, por si, um elemento de uma nova forma de democracia — digital. Esse conceito, ainda em construção e determinante de controvérsias entre as principais linhas teóricas, é dotado de fluidez e, para sua compreensão, pressupõe-se a contraposição de diferentes contextos e perspectivas, o que será examinado neste trabalho a partir de alguns exemplos, a seguir. Em uma primeira situação hipotética, visualiza-se o contexto de uma empresária brasileira, adulta, solteira, pós-graduada, que mora em um bairro “nobre” da cidade de São Paulo, tem acesso à internet sem fio de alta velocidade, e usa sua conta no Instagram para registrar momentos comuns da sua rotina, como imagens de refeições, vestimentas e local de trabalho. A personagem utiliza seu Facebook como uma ferramenta de trabalho, promovendo marketing pessoal através de dicas de moda, o que lhe proporciona parcerias lucrativas com diversas pessoas físicas e jurídicas, nacionais e internacionais. No Twitter, comenta diariamente sobre reality shows, utilizando-o unicamente como forma de entretenimento. No Tinder, conhece várias pessoas e marca, pela plataforma, encontros amorosos. Os fatos do exemplo retratado não decorrem de quaisquer inovações valorativas e normativas que já não estejam previstas na Constituição Federal de 1988, a ponto de se cogitar a configuração de uma nova fase do processo democrático tradicional. A presença de instrumentos tecnológicos (computadores, celulares, internet, redes sociais) do ecossistema da Governança da Internet, para a prática do direito à liberdade e demais garantias constitucionais da personagem, nesse caso, não é um elemento distintivo crucial dotado de força suficiente para causar qualquer impacto significativo nas estruturas basilares dos princípios democráticos da ordem constitucional vigente. Se, em vez da internet, o indivíduo tivesse manifestado sua liberdade em um livro físico, revista ou tradicionais meios, como a televisão, o efeito seria o mesmo nas dimensões do processo democrático. O exercício desses direitos fundamentais se garante, por si, nas normas e valores da vigente Constituição Federal, independentemente do meio (físico ou digital) que abrangem, pois não há nenhuma inovação normativa e/ou valorativa diante dos fatos apresentados naquele contexto, especialmente pelas circunstâncias pessoais do agente. As lutas sociais, os valores e as conquistas normativas que deram origem ao texto constitucional de 1988 se aplicam perfeitamente ao caso concreto, independentemente da existência de facilitadores tecnológicos. 51 A mesma conclusão não se poderia aplicar se o exemplo retratado fosse de uma mulher árabe, adulta, casada e proibida de estudar e trabalhar, ao tentar utilizar a internet na Arábia Saudita, para buscar refúgio em outros países e denunciar abusos praticados pelo marido, considerando-se que, naquele país, há altos índices de violações de direitos humanos, principalmente pela desigualdade de gênero, e o governo impõe severas restrições ao acesso da internet, intensificando-se a censura, nos âmbitos público e privado, após os movimentos conhecidos como “Primavera Árabe”. O fato de alguém conseguir exercer direitos e garantias fundamentais, como a liberdade, em um ambiente digital censurado por um Estado que permite a desigualdade de gênero e a violência contra mulheres, representa, por si, uma conquista revolucionária e um símbolo da ascensão da democracia digital, ao ultrapassar as limitações impostas pelos elementos valorativos e normativos que fundamentaram a tradicional configuração antidemocrática daquele ordenamento jurídico. Entre os direitos citados, é imprescindível que se incluam a liberdade de expressão, o respeito à dignidade, a isonomia (em todas as suas formas), a igualdade de gênero, a proteção da privacidade e a inclusão digital. Assim, é possível visualizar, nesse contexto, a diferença entre a prática do processo antidemocrático no mundo físico e da democracia digital no ambiente computadorizado. Para que se entenda o contraste entre os dois exemplos, apresentar-se-á a plataforma Absher, criada pelo Governo da Arábia Saudita com o objetivo de oferecer serviços online, como renovar passaportes, pagar multas de trânsito e solicitar vistos131. O problema surge diante do fato de que, com a obrigação de as mulheres sauditas de terem um guardião (pai, marido, irmão, filho), esses homens também usam o aplicativo e são os responsáveis por conceder ou negar permissão para que mulheres e crianças realizem viagens internacionais e retirem passaportes132. Logo, a tecnologia é utilizada para controlar os passos das mulheres, impedir que realizem viagens, inclusive a estudos e a trabalho, e há relatos de que o sistema dificulta a denúncia e a fuga daquelas que são vítimas de violência doméstica133. Nesse caso, verifica-se um processo oposto à democracia digital, com o uso da tecnologia para favorecer práticas autoritárias e a violação de direitos humanos. 131 SAUDI Arabia’s Absher App: controlling women’s travel while offering government services. Human Rights Watch, 6 maio 2019. Disponível em: https://www.hrw.org/news/2019/05/06/saudi-arabias-absher-app- controlling-womens-travel-while-offering-government. Acesso em: 28 out. 2020. 132 SAUDI Arabia’s Absher App: controlling women’s travel while offering government services. Human Rights Watch, 6 maio 2019. Disponível em: https://www.hrw.org/news/2019/05/06/saudi-arabias-absher-app- controlling-womens-travel-while-offering-government. Acesso em: 28 out. 2020. 133 SAUDI Arabia’s Absher App: controlling women’s travel while offering government services. Human Rights Watch, 6 maio 2019. Disponível em: https://www.hrw.org/news/2019/05/06/saudi-arabias-absher-app- controlling-womens-travel-while-offering-government. Acesso em: 28 out. 2020. 52 Vale lembrar que o uso das redes sociais e o acesso à Deep Web foram partes essenciais na organização e disseminação de movimentos contra governos ditatoriais no Continente Africano e no Oriente Médio a partir de 2010, culminando na Primavera Árabe. Bartkowiak et al. citam a formação de uma ágora virtual, [...] onde a sociedade civil pode trocar informações e compartilhar suas indignações e desejos. As redes sociais foram usadas para além de seus propósitos, pois o Twitter, o Facebook e os blogs não tinham como propósito levantar a indignação política popular. Porém, como estes são meios de comunicação, onde se conectam pessoas de diversos países, estão propensos a reunir afinidades de todas as proporções e na Primavera Árabe acabou tornando-se o principal meio de se fazer política.134 A partir de 2005, o grupo egípcio de oposição suprapartidária Kefaya, mesmo sem possuir sede física, já utilizava fóruns online para divulgar informações e coordenava atividades pela internet contra a ditadura de Hosni Mubarak, que governou o Egito por trinta anos e renunciou em 2011 após manifestações populares135. Como o Estado controlava a grande mídia, blogs tornaram-se ferramentas de mobilização para protestos, campanhas, anúncios, relatos e deliberação política subversiva136. Muitos dos protestos que resultaram na destituição de Mubarak foram organizados pelo Twitter e Facebook, cuja importância, segundo Almeida, “foi cabal já que, pelo controle de informações que havia no país, em muitas ocasiões esses complementaram, ou até substituíram, o jornalismo mainstream”137. A autora conclui que, apesar de as redes sociais terem exercido um papel fundamental para a difusão internacional das ideias democráticas independente das mídias tradicionais ligadas ao governo ditatorial, seria descabido simplificar a Primavera Egípcia como uma revolução do Twitter ou do Facebook, levando em consideração a construção histórica dos anos de movimentos (online e 134 BARTKOWIAK, Jaqueline Zandona et al. A Primavera Árabe e as redes sociais: o uso das redes sociais nas manifestações da Primavera Árabe nos países da Tunísia, Egito e Líbia. Cadernos de Relações Internacionais, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, 2017, p. 68. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/30432/30432.PDF. Acesso em: 26 abr. 2020. 135 ALMEIDA, Helga. Cyberativismo e Primavera Árabe: um estudo sobre o uso da internet no Egito para a construção da grande ruptura de 2011. Revista de Discentes de Ciência Política da UFSCAR, São Carlos, v. 1, n. 2, 2013, p. 38. Disponível em: http://www.agendapolitica.ufscar.br/index.php/agendapolitica/article/view/17. Acesso em: 26 abr. 2020. 136 ALMEIDA, Helga. Cyberativismo e Primavera Árabe: um estudo sobre o uso da internet no Egito para a construção da grande ruptura de 2011. Revista de Discentes de Ciência Política da UFSCAR, São Carlos, v. 1, n. 2, 2013, p. 39. Disponível em: http://www.agendapolitica.ufscar.br/index.php/agendapolitica/article/view/17. Acesso em: 26 abr. 2020. 137 ALMEIDA, Helga. Cyberativismo e Primavera Árabe: um estudo sobre o uso da internet no Egito para a construção da grande ruptura de 2011. Revista de Discentes de Ciência Política da UFSCAR, São Carlos, v. 1, n. 2, 2013, p. 45. Disponível em: http://www.agendapolitica.ufscar.br/index.php/agendapolitica/article/view/17. Acesso em: 26 abr. 2020. 53 offline) da sociedade civil e o papel das lideranças nos movimentos sociais e nas manifestações nascidas nas ruas138. Ao analisar a relação entre a internet e a mobilização política, Pereira propõe a democratização das relações sociais, em um processo transformador, a partir dos movimentos sociais: O papel dos movimentos sociais contemporâneos é o de promover a democratização das relações sociais dentro da sociedade civil, através da redefinição de papéis, normas, identidades (individuais e coletivas), conteúdos e modos de interpretação de discursos existentes na esfera pública.139 A concretização desse exercício político, no que se refere à redefinição de paradigmas da esfera pública, através dos movimentos sociais, tem estrita consonância com a proposta de transformação do status quo a partir das abordagens conceituais trazidas pelo Estado Democrático de Direito. Esse, “[...] mais do que uma continuidade, representa uma ruptura, porque traz à tona, formal e materialmente, a partir dos textos constitucionais diretivos e compromissórios, as condições de possibilidade para a transformação da realidade”140. Qual seria, então, o conceito de democracia digital? Não há um entendimento pacífico sobre essa definição141. Segundo Magrani, Estas formas de engajamento político-democrático são manifestações de uma democracia virtual, digital, também chamada de e-democracia, como forma de diálogos participativos e deliberativos entre o governo e a população, através da internet. Existem diferentes conceitos de e-democracia. Na tentativa de se buscar uma definição mínima e plausível, seria possível afirmar que esta consiste na possibilidade trazida pela rede de os cidadãos terem um contato simultâneo e de dupla via (ou duplo vetor) através de todos os meios eletrônicos de comunicação que habilitem/auxiliem cidadãos em seus esforços para participar, fiscalizar e controlar governantes/políticos sobre suas ações no poder público.142 138 ALMEIDA, Helga. Cyberativismo e Primavera Árabe: um estudo sobre o uso da internet no Egito para a construção da grande ruptura de 2011. Revista de Discentes de Ciência Política da UFSCAR, São Carlos, v. 1, n. 2, 2013, p. 48. Disponível em: http://www.agendapolitica.ufscar.br/index.php/agendapolitica/article/view/17. Acesso em: 26 abr. 2020. 139 PEREIRA, Marcus Abílio. Internet e mobilização política — os movimentos sociais na era digital. In: ENCONTRO DA COMPOLÍTICA, 4., 2011. Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2011, p. 2 – 3. Disponível em: http://www.compolitica.org/home/wp-content/uploads/2011/03/Marcus-Abilio.pdf. Acesso em: 26 abr. 2020. 140 STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Ciência Política e Teoria do Estado. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 105. 141 “One notable feature of the literature on e-democracy is that there is no commonly shared understanding of what e-democracy means.” (KIES, Raphael et al. Evaluation of the use of new technologies in order to facilitate democracy in Europe. Luxemburgo: Parlamento Europeu, out. 2003, p. 3. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/etudes/join/2003/471583/IPOL- JOIN_ET(2003)471583_EN.pdf. Acesso em: 21 jun. 2020.) 142 MAGRANI, Eduardo. Democracia conectada: a internet como ferramenta de engajamento político- democrático. Curitiba: Juruá, 2014, p. 64. 54 A partir do conceito exposto por Magrani, torna-se plausível compreender a relação entre a tecnologia da informação e comunicação (mais precisamente, a internet) e o fortalecimento dos processos democráticos, especialmente através das vias participativas e deliberativas, e com a superação, ainda que parcial, dos modelos representativos. Nesse sentido, Moreira Neto relaciona o progresso eletrônico com o exercício da participação: Por outro lado, o progresso eletrônico em muito facilitará o exercício da participação. Com a Internet, reduziu-se significativamente o custo de intercâmbio entre indivíduos e destes com as instituições, ao mesmo tempo, a velocidade da difusão de dados e imagens passou a permitir a pesquisa de opinião em tempo real. A conjugação do processamento de dados à transmissão de imagens, a telemática, implicará também em substancial mudança no modo de participar e de se ‘fazer política’ no século vindouro. [...] Contudo, uma importante tendência proporcionada pela participação é desde já perfeitamente identificável: a radical mudança de peso entre os interlocutores do diálogo político, antes perfeitamente hierárquico, partindo do líder ou da autoridade para seus liderados mais abaixo, hoje transformado em relações lateralizadas ou ‘de baixo para cima’.143 Uma das ferramentas mais populares da democracia digital brasileira, e que retrata o que foi exposto por Moreira Neto, é o portal e-Cidadania do Senado Federal que, desde 2012, tem “[...] o objetivo de estimular e possibilitar maior participação dos cidadãos nas atividades legislativas, orçamentárias, de fiscalização e de representação do Senado”144. O Portal possibilita três formas de participação: Quadro 2 — Ferramentas do Portal e-Cidadania FERRAMENTAS DO PORTAL E-CIDADANIA (SENADO FEDERAL) FERRAMENTA UTILIDADE EXEMPLO Enviar e apoiar ideias legislativas, que são sugestões de alteração Ideia: Fim do na legislação vigente ou de criação de novas leis. As ideias que auxílio moradia receberem 20 mil apoios serão encaminhadas para a Comissão para deputados, de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), onde juízes e senadores. receberão parecer. Ideia Legislativa Proponente: Link: Marcela Tavares https://www12.senado.leg.br/ecidadania/principalideia (RJ) Nº de apoios: 253.804 143 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 15. 144 BRASIL. Senado Federal. e-Cidadania, Brasília, [2012?]. Sobre o portal e-Cidadania. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/sobre. Acesso em: 17 out. 2020. 55 Transformada em: Sugestão nº 30, de 2017 Decisão da CDH: Transformada em Proposta de Emenda à Constituição nº 222, de 2019.145 Participar de audiências públicas, sabatinas e outros eventos Audiência abertos. Para cada audiência/sabatina/evento, é criada uma pública: página específica onde haverá: a transmissão ao vivo; espaço Reforma para publicação de comentários; apresentações, notícias e Tributária: documentos referentes ao evento. contribuições dos segmentos Link: “Educação” e https://www12.senado.leg.br/ecidadania/principalaudiencia “Economia Digital” Evento Data: 25/09/2020, Interativo às 14:00 Organização: Comissão Mista Temporária da Reforma Tributária Número de perguntas e comentários: 21146 Opinar sobre projetos de lei, propostas de emenda à Constituição, Consulta: PEC medidas provisórias e outras proposições em tramitação no 106/2015 Senado Federal até a deliberação final (sanção, promulgação, envio à Câmara dos Deputados ou arquivamento). Dá nova redação aos arts. 45 e 46 da Link: Constituição https://www12.senado.leg.br/ecidadania/principalmateria Federal para reduzir o número Consulta de membros da Pública Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Tramitação encerrada. Resultado final: SIM - 1.859.114 145 BRASIL. Senado Federal. e-Cidadania, Brasília, 2017. Ideia Legislativa. Fim do auxílio moradia para deputados, juízes, senadores. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaoideia?id=80429. Acesso em: 17 out. 2020. 146 BRASIL. Senado Federal. e-Cidadania, Brasília, 2020. Evento Interativo. Reforma Tributária: contribuições dos segmentos “Educação” e “Economia Digital”. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaoaudiencia?id=19207. Acesso em: 17 out. 2020. 56 NÃO - 10.699147 Fonte: Brasil, Senado Federal, adaptado pelo autor.148 O portal e-Cidadania dispõe de relatórios com dados quantidades sobre a participação popular nas três ferramentas citadas, além de arquivos em formatos PDF e CSV com todas as proposições com votos na Consulta Pública, o que representa um importante passo em relação à transparência e à abertura do Governo. A publicação desses dados é essencial para que se possa qualificar a efetividade daquelas ferramentas no contexto das propostas da democracia digital. Com o uso de inteligência artificial e técnicas de aprendizado de máquina, é possível extrair dados atualizados, em tempo real e de forma automática sobre o perfil dos participantes/proponentes, e responder alguns questionamentos: Quais Estados têm maior e menor participação? Qual a faixa etária média, o gênero, a raça/etnia e a classe social dos participantes? Quantas pessoas com deficiência têm acesso às plataformas? De que forma esses dados se relacionam com o acesso universal à rede e são influenciados pela exclusão digital? Quem controla a autenticidade e o grau de atualização dos dados? A partir das informações obtidas, o Estado pode elaborar e executar políticas públicas de inclusão digital, especialmente voltadas para grupos vulneráveis e minoritários; de universalização à rede; de acessibilidade nos portais eletrônicos; e de aperfeiçoamento aos sistemas para que, cada vez mais, busque formas autênticas de participação social que se concretizem de forma democrática, e não se limitem a grupos privilegiados. Afinal, ter acesso à internet de qualidade e a dispositivos eletrônicos sofisticados ainda é um privilégio em um país marcado por desigualdades sociais como o Brasil. 147 Brasil. Senado Federal. e-Cidadania, Brasília, c2021. Consulta Pública. PEC 106/2015. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaomateria?id=122432. Acesso em: 29 jan. 2021. 148 BRASIL. Senado Federal. e-Cidadania, Brasília, [2012?]. Sobre o portal e-Cidadania. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/sobre. Acesso em: 17 out. 2020. 57 Gráfico 1 — Relatório de Eventos Interativos (e-Cidadania) entre 2012 e 18/10/2020 Fonte: Brasil, Senado Federal.149 Tabela 1 — Total acumulado de Eventos Interativos (e-Cidadania) entre 2012 e 18/10/2020 Fonte: Brasil, Senado Federal.150 149 BRASIL. Senado Federal. Relatório dos Eventos Interativos. Brasília, 18 out. 2020, p. 1. Disponível em: https://www.senado.gov.br/bi-arqs/Arquimedes/ecidadania/rel-evento-Interativo-completo-pdf.pdf. Acesso em: 19 out. 2020. 150 BRASIL. Senado Federal. Relatório dos Eventos Interativos. Brasília, 18 out. 2020, p. 1. Disponível em: https://www.senado.gov.br/bi-arqs/Arquimedes/ecidadania/rel-evento-Interativo-completo-pdf.pdf. Acesso em: 19 out. 2020. 58 Tabela 2 — Número de participantes e perguntas por tipo de Evento Interativo Fonte: Fonte: Brasil, Senado Federal.151 A partir da observação das tabelas, verifica-se que houve 2.459 eventos interativos no portal e-Cidadania entre 2012 e 18/10/2020 (data de geração do relatório)152. Há, porém, uma inconsistência entre o Gráfico 1 e as Tabelas 1 e 2, considerando que a soma dos eventos interativos do primeiro (barras azuis) é igual a 2.458. É válido lembrar que as informações foram extraídas em 19/10/2020, um dia após a geração do relatório supostamente atualizado. Do total de 2.459 eventos, os tipos mais frequentes foram audiências públicas (1.941), sabatinas (312) e uma categoria ampla denominada “evento interativo” (83). Com o menor número total de ocorrências, houve um workshop, oito congressos e quatro simpósios.153 Segundo a Tabela 1, houve um total acumulado de 30.395 participantes nos eventos desde 2012 e a realização de 79.181 comentários. Novamente, os primeiros dados são 151 BRASIL. Senado Federal. Relatório dos Eventos Interativos. Brasília, 18 out. 2020, p. 2. Disponível em: https://www.senado.gov.br/bi-arqs/Arquimedes/ecidadania/rel-evento-Interativo-completo-pdf.pdf. Acesso em: 19 out. 2020. 152 BRASIL. Senado Federal. Relatório dos Eventos Interativos. Brasília, 18 out. 2020, p. 1 – 2. Disponível em: https://www.senado.gov.br/bi-arqs/Arquimedes/ecidadania/rel-evento-Interativo-completo-pdf.pdf. Acesso em: 19 out. 2020. 153 BRASIL. Senado Federal. Relatório dos Eventos Interativos. Brasília, 18 out. 2020, p. 2. Disponível em: https://www.senado.gov.br/bi-arqs/Arquimedes/ecidadania/rel-evento-Interativo-completo-pdf.pdf. Acesso em: 19 out. 2020. 59 inconsistentes. De acordo com o gráfico inferior, o número total de participantes (barras verdes) é de 31.455; e, conforme a Tabela 2, esse número é de 31.762 participantes.154 Os Estados com maior participação nos Eventos Interativos foram São Paulo (6.497 participantes e 16.133 comentários), Rio de Janeiro (3.614 participantes e 9.111 comentários), Minas Gerais (3.078 participantes e 6.968 comentários) e o Distrito Federal (2.089 participantes e 12.128 comentários). O Rio Grande do Norte aparece em 17º lugar, com 421 participantes e 1.113 comentários.155 Os Estados com menor participação nos Eventos Interativos foram o Amapá (79 participantes e 151 comentários), Roraima (99 participantes e 206 comentários), Tocantins (181 participantes e 508 comentários) e Rondônia (225 participantes e 557 comentários).156 O evento que teve maior participação foi a audiência pública “Transparência e demais assuntos relacionados ao Sistema S”, ocorrido em 11/04/2018, com 1.574 participantes e 2.400 perguntas. Considerando o número de perguntas, em segundo lugar posiciona-se a audiência pública com o Ministro Sérgio Moro para esclarecimentos a respeito das notícias veiculadas na imprensa relacionadas à Operação Lava Jato, ocorrida em 19/06/2019, com 1.721 perguntas e 555 participantes. Em seguida, tem-se a sabatina de Alexandre de Moraes, indicado ao cargo de Ministro do STF, em 21/02/2017, com 1.674 perguntas e 1.006 participantes.157 Verifica-se uma tendência a haver, quantitativamente, maior participação popular nos períodos de transição política e instabilidade democrática: entre 2016 e 2017 (Governo Michel Temer, pós-impeachment), houve o aumento de 4.336 para 8.118 participantes, havendo uma queda em 2018 (6.130 participantes e 10.958 comentários). Em 2016, contabilizaram-se 9.398 comentários; em 2017, o número subiu para 14.440.158 A mesma tendência é observada entre 2018 e 2019, período marcado por um pleito eleitoral marcado por escândalos, resultando na eleição e no impopular governo de Jair 154 BRASIL. Senado Federal. Relatório dos Eventos Interativos. Brasília, 18 out. 2020, p. 1 – 2. Disponível em: https://www.senado.gov.br/bi-arqs/Arquimedes/ecidadania/rel-evento-Interativo-completo-pdf.pdf. Acesso em: 19 out. 2020. 155 BRASIL. Senado Federal. Relatório dos Eventos Interativos. Brasília, 18 out. 2020, p. 3. Disponível em: https://www.senado.gov.br/bi-arqs/Arquimedes/ecidadania/rel-evento-Interativo-completo-pdf.pdf. Acesso em: 19 out. 2020. 156 BRASIL. Senado Federal. Relatório dos Eventos Interativos. Brasília, 18 out. 2020, p. 3. Disponível em: https://www.senado.gov.br/bi-arqs/Arquimedes/ecidadania/rel-evento-Interativo-completo-pdf.pdf. Acesso em: 19 out. 2020. 157 BRASIL. Senado Federal. Relatório dos Eventos Interativos. Brasília, 18 out. 2020, p. 4. Disponível em: https://www.senado.gov.br/bi-arqs/Arquimedes/ecidadania/rel-evento-Interativo-completo-pdf.pdf. Acesso em: 19 out. 2020. 158 BRASIL. Senado Federal. Relatório dos Eventos Interativos. Brasília, 18 out. 2020, p. 1. Disponível em: https://www.senado.gov.br/bi-arqs/Arquimedes/ecidadania/rel-evento-Interativo-completo-pdf.pdf. Acesso em: 19 out. 2020. 60 Bolsonaro. Enquanto em 2018 (ano eleitoral) contabilizaram-se 6.130 participantes e 10.958 comentários, em 2019 houve 22.852 comentários e 6.711 participantes159. Em relação à ferramenta “Consulta Pública”, verifica-se que, entre 2013 e a data de publicação do relatório (18/10/2020), 10.184.602 cidadãos votaram; houve 24.087.118 votos; 9.727 proposições receberam votos; São Paulo (6.211.432), Rio de Janeiro (3.095.450), Minas Gerais (2.355.845) e Rio Grande do Sul são os Estados com maior número de votos; e Roraima (38.204), Amapá (58.001), Tocantins (101.630) e Rondônia (125.786) são os Estados com menor número de votos.160 Gráfico 2 — Relatório da Consulta Pública (e-Cidadania) entre 2013 e 18/10/2020 Fonte: Brasil, Senado Federal.161 159 BRASIL. Senado Federal. Relatório dos Eventos Interativos. Brasília, 18 out. 2020, p. 1. Disponível em: https://www.senado.gov.br/bi-arqs/Arquimedes/ecidadania/rel-evento-Interativo-completo-pdf.pdf. Acesso em: 19 out. 2020. 160 BRASIL. Senado Federal. Relatório da Consulta Pública. Brasília, 18 out. 2020, não paginado. Disponível em: https://www.senado.gov.br/bi-arqs/Arquimedes/ecidadania/rel-consulta-publica-pdf.pdf. Acesso em: 20 out. 2020. 161 BRASIL. Senado Federal. Relatório da Consulta Pública. Brasília, 18 out. 2020, não paginado. Disponível em: https://www.senado.gov.br/bi-arqs/Arquimedes/ecidadania/rel-consulta-publica-pdf.pdf. Acesso em: 20 out. 2020. 61 Tabela 3 — Total acumulado da Consulta Pública (e-Cidadania) entre 2013 e 18/10/2020 Fonte: Brasil, Senado Federal.162 Sobre a ferramenta “Ideia Legislativa”, verifica-se que, entre 2012 e a data de publicação do relatório (18/10/2020), contabilizaram-se 82.721 ideias, 51.678 autores; 8.495.630 apoios e 4.548.772 apoiadores. 2017 e 2018 foram os anos em que houve maior participação: no primeiro, registraram-se 26.671 ideias e 18.529 autores; no último, 19.808 ideias e 12.200 autores. Do total de 82.721 ideias, 27 foram convertidas em Projeto de Lei ou PEC; 67 não foram acatadas pela CDH; 15.399 foram arquivadas por ferir os termos de uso; e 63.056 foram encerradas sem apoios suficientes. São Paulo (19.658), Rio de Janeiro (12.519), Minas Gerais (7.366) e Rio Grande do Sul (4.273) são os Estados com maior número de ideias. Roraima (152), Amapá (241), Tocantins (395) e Rondônia (572) são os Estados com menor número de ideias.163 162 BRASIL. Senado Federal. Relatório da Consulta Pública. Brasília, 18 out. 2020, não paginado. Disponível em: https://www.senado.gov.br/bi-arqs/Arquimedes/ecidadania/rel-consulta-publica-pdf.pdf. Acesso em: 20 out. 2020. 163 BRASIL. Senado Federal. Relatório das Ideias Legislativas. Brasília, 18 out. 2020, p. 1 – 12. Disponível em: https://www.senado.gov.br/bi-arqs/Arquimedes/ecidadania/rel-ideia-legislativa-completo-pdf.pdf. Acesso em: 20 out. 2020. 62 Gráfico 3 — Relatório das Ideias Legislativas (e-Cidadania) entre 2012 e 18/10/2020 Fonte: Brasil, Senado Federal.164 Tabela 4 — Total acumulado das Ideias Legislativas (e-Cidadania) entre 2012 e 18/10/2020 Fonte: Brasil, Senado Federal.165 164 BRASIL. Senado Federal. Relatório das Ideias Legislativas. Brasília, 18 out. 2020, p. 1. Disponível em: https://www.senado.gov.br/bi-arqs/Arquimedes/ecidadania/rel-ideia-legislativa-completo-pdf.pdf. Acesso em: 20 out. 2020. 165 BRASIL. Senado Federal. Relatório das Ideias Legislativas. Brasília, 18 out. 2020, p. 1. Disponível em: https://www.senado.gov.br/bi-arqs/Arquimedes/ecidadania/rel-ideia-legislativa-completo-pdf.pdf. Acesso em: 20 out. 2020. 63 Tabela 5 — Número de Ideias Legislativas por situação Fonte: Brasil, Senado Federal.166 Sem embargo, não se pode afirmar que a democracia digital se revela somente através da manifestação do engajamento político, pois a própria afirmação de outros direitos fundamentais não-políticos (liberdade de expressão artística, por exemplo) na internet já é, por si, um símbolo da democracia digital. Considerável, além do mais, observar que esse processo engloba múltiplos graus, que dependem do contexto histórico, da sociedade, do sujeito e das condições sócio-político-econômicas nas quais o fenômeno se manifesta. Kies et al. seguem uma linha teórica semelhante a Magrani, entretanto distinguem a e- democracia do e-governo (governo eletrônico), pois esse consistiria no uso de TIC para que o governo atuasse de forma mais eficiente167. As experiências de e-governo (e-gov) serviriam, conforme aponta Faria, “[...] como instrumentos para fins de eficiência do Estado, tais como os processos de comunicação e 166 BRASIL. Senado Federal. Relatório das Ideias Legislativas. Brasília, 18 out. 2020, p. 2. Disponível em: https://www.senado.gov.br/bi-arqs/Arquimedes/ecidadania/rel-ideia-legislativa-completo-pdf.pdf. Acesso em: 20 out. 2020. 167 KIES, Raphael et al. Evaluation of the use of new technologies in order to facilitate democracy in Europe. Luxemburgo: Parlamento Europeu, out. 2003, p. 3. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/etudes/join/2003/471583/IPOL- JOIN_ET(2003)471583_EN.pdf. Acesso em: 21 jun. 2020. No original: “It is important to note that e-democracy is distinct from, but may overlap with the ICT techniques being used for making government operate more efficiently. The latter is commonly referred to as e-government.” 64 organização interinstitucional no âmbito do governo [...]”168. Sua manifestação se daria pela disponibilização de serviços públicos na internet, e.g., a declaração de imposto de renda e a emissão de certidões169. Discorda-se da visão dos autores, na medida em que as experiências de governo eletrônico, bem como a oferta de serviços públicos digitais e o alcance do ideal de governança digital são elementos imprescindíveis para a consolidação da e-democracia, sobretudo considerando-se que os princípios da eficiência e da publicidade estão previstos constitucionalmente (artigo 37, caput, CF) e, dificilmente, teriam o mesmo impacto na execução, no controle e na fiscalização da atividade administrativa sem a presença da tecnologia da informação e comunicação. Não se pode permitir, portanto, que a positivação do Direito Digital enrijeça a dogmática e crie conceitos imutáveis, pois a imutabilidade é totalmente contrária à natureza das questões práticas enfrentadas por essa Ciência. Em sua definição de e-democracia, Kies et al. adicionam mais um elemento: a atribuição de responsabilidade (accountability) a governantes e políticos por suas ações, possibilitada pelo empoderamento dos cidadãos através de qualquer meio eletrônico de comunicação170. Contudo, “[...] não nos parece ser esse o propósito exclusivo das práticas de democracia digital”171, principalmente quando “[...] um importante objetivo do Estado é tirar proveito da criatividade e do conhecimento dos cidadãos, ou seja, da inteligência coletiva para a construção de políticas públicas mais eficazes”172. Assim, A e-Democracia consiste em todos os meios eletrônicos de comunicação que capacitam/empoderam os cidadãos em seus esforços para responsabilizar governantes/políticos por suas ações no setor público. Dependendo do aspecto da 168 FARIA, Cristiano Ferri Soares de. O parlamento aberto na era da internet: pode o povo colaborar com o Legislativo na elaboração das leis? Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2012, p. 97 – 98. Disponível em: https://livraria.camara.leg.br/o-parlamento-aberto-na-era-da-internet-pode-o-povo-colaborar-com-o- legislativo-na-elaboracao-das-leis. Acesso em: 21 jun. 2020. 169 FARIA, Cristiano Ferri Soares de. O parlamento aberto na era da internet: pode o povo colaborar com o Legislativo na elaboração das leis? Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2012, p. 98. Disponível em: https://livraria.camara.leg.br/o-parlamento-aberto-na-era-da-internet-pode-o-povo-colaborar-com-o-legislativo- na-elaboracao-das-leis. Acesso em: 21 jun. 2020. 170 KIES, Raphael et al. Evaluation of the use of new technologies in order to facilitate democracy in Europe. Luxemburgo: Parlamento Europeu, out. 2003, p. 3. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/etudes/join/2003/471583/IPOL- JOIN_ET(2003)471583_EN.pdf. Acesso em: 21 jun. 2020. 171 FARIA, Cristiano Ferri Soares de. O parlamento aberto na era da internet: pode o povo colaborar com o Legislativo na elaboração das leis? Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2012, p. 97. Disponível em: https://livraria.camara.leg.br/o-parlamento-aberto-na-era-da-internet-pode-o-povo-colaborar-com-o-legislativo- na-elaboracao-das-leis. Acesso em: 21 jun. 2020. 172 FARIA, Cristiano Ferri Soares de. O parlamento aberto na era da internet: pode o povo colaborar com o Legislativo na elaboração das leis? Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2012, p. 97. Disponível em: https://livraria.camara.leg.br/o-parlamento-aberto-na-era-da-internet-pode-o-povo-colaborar-com-o-legislativo- na-elaboracao-das-leis. Acesso em: 21 jun. 2020. 65 democracia a se promover, a e-democracia pode utilizar diferentes métodos: (1) para aumentar a transparência dos processos políticos; (2) para melhorar o envolvimento direto e a participação dos cidadãos; e, (3) melhorar a qualidade da formação de opinião através da abertura de novos espaços de informação e deliberação.173 Faria classifica, então, a e-democracia em duas categorias: a não institucional e a institucional: Na primeira classe de experiências, destacam-se aquelas realizadas pela sociedade com objetivos políticos ou cívicos, mas sem interação formal com o Estado. Essa categoria denominada de e-democracia não institucional abrangeria pelo menos quatro categorias principais: a) mobilização eleitoral; b) ativismo social; c) jornalismo cidadão; e d) transparência. E, na segunda classe, destacam-se aquelas outras experiências organizadas e providas por alguma entidade do Estado e, por isso, denominadas em regra de institucionais. Como o fundamento da e-democracia institucional é a viabilização de formas variadas de colaboração entre sociedade e Estado, principalmente no processo de formulação e implementação de políticas públicas, denominamos essa produção colaborativa de coprodução, para os efeitos deste trabalho.174 A Open Knowledge Brasil desenvolveu em 2019 o projeto “Embaixadoras”, com o objetivo de promover a inovação cívica a partir do uso da tecnologia da informação e comunicação e de metodologias abertas, de modo a se estabelecer uma rede colaborativa entre a Organização e cidadãos de todo o Brasil, com foco no incentivo a projetos municipais e regionais (eventos, workshops, sprints, etc.)175. Um dos principais projetos das Embaixadoras é o “Querido Diário”, Fruto dos desdobramentos da Operação Serenata de Amor, projeto que utiliza inteligência artificial para fiscalizar os gastos da cota parlamentar, o Querido Diário tem como foco a captura e o armazenamento dos textos contidos nos diários oficiais. Em sua maioria, esses textos são publicados em formato fechado e sem padronização, o que dificulta o exercício do controle social por parte da população. Com o Querido Diário, queremos acessar, armazenar e disponibilizar essas informações em formato aberto para uso livre em uma plataforma idealizada especialmente para esse tipo de 173 KIES, Raphael et al. Evaluation of the use of new technologies in order to facilitate democracy in Europe. Luxemburgo: Parlamento Europeu, out. 2003, p. 3, tradução nossa. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/etudes/join/2003/471583/IPOL- JOIN_ET(2003)471583_EN.pdf. Acesso em: 21 jun. 2020. No original: “e-Democracy consists of all electronic means of communication that enable/empower citizens in their efforts to hold rulers/politicians accountable for their actions in the public realm. Depending on the aspect of democracy being promoted, e-democracy can employ different techniques: (1) for increasing the transparency of the political process; (2) for enhancing the direct involvement and participation of citizens; and, (3) improving the quality of opinion formation by opening new spaces of information and deliberation.” 174 FARIA, Cristiano Ferri Soares de. O parlamento aberto na era da internet: pode o povo colaborar com o Legislativo na elaboração das leis? Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2012, p. 97. Disponível em: https://livraria.camara.leg.br/o-parlamento-aberto-na-era-da-internet-pode-o-povo-colaborar-com-o-legislativo- na-elaboracao-das-leis. Acesso em: 21 jun. 2020. 175 PROGRAMA Embaixadoras: espalhe tecnologias cívicas como o Serenata de Amor por todo o Brasil. Open Knowledge Brasil, São Paulo, 11 set. 2019. Disponível em: https://www.ok.org.br/noticia/programa- embaixadoras-espalhe-tecnologias-civicas-como-o-serenata-de-amor-por-todo-o-brasil/. Acesso em: 26 out. 2020. 66 publicação e conectada a outras bases de dados, possibilitando o monitoramento e a fiscalização por qualquer pessoa que tenha interesse em acompanhar as atividades de seus governantes.176 Os mapas a seguir apresentam a distribuição geográfica da rede de Embaixadoras no primeiro ciclo (fechado em 7 de novembro de 2019) e no segundo ciclo (fechado em 1º de junho de 2020). É importante mencionar o incentivo às políticas de inovação cívica em âmbito municipal, atingindo tanto capitais como cidades menos desenvolvidas localizadas nas regiões mais distantes dos grandes polos econômicos: 176 ALVES, Ariane. Contribua para libertar a informação dos diários oficiais das capitais brasileiras. Open Knowledge Brasil, São Paulo, 24 jun. 2020. Disponível em: https://www.ok.org.br/noticia/contribua-para- libertar-a-informacao-dos-diarios-oficiais-das-capitais-brasileiras/. Acesso em: 26 out. 2020. 67 Figura 1 — Distribuição geográfica dos integrantes do Projeto Embaixadoras no 1º ciclo de inscrições Fonte: Alves.177 177 ALVES, Ariane. Quem são as pessoas embaixadoras de inovação cívica no Brasil? Medium: serenata, São Paulo, 7 nov. 2020. Disponível em: https://medium.com/serenata/quem-s%C3%A3o-as-pessoas-embaixadoras- de-inova%C3%A7%C3%A3o-c%C3%ADvica-no-brasil-1ad13944dcfc. Acesso em: 26 out. 2020. 68 Figura 2 — Distribuição geográfica dos novos integrantes do Projeto Embaixadoras no 2º ciclo de inscrições Fonte: Alves.178 Outro importante trabalho realizado no Brasil no âmbito da democracia digital são as pesquisas desenvolvidas pela Diretoria de Análises de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (DAPP FGV), um centro de pesquisa social aplicada criado em 2012, “[...] que tem o objetivo de promover a inovação para políticas públicas por meio do uso de tecnologia, transparência e análise de dados”179. A DAPP realiza “[...] pesquisas e análises a partir do uso de redes sociais, dados abertos e conhecimento interdisciplinar”180, e um dos seus principais projetos é a Sala de Democracia Digital, que monitora o debate público na internet “[...] para o 178 ALVES, Ariane. Projeto Embaixadoras: conheça o perfil do segundo ciclo de participantes. Medium: serenata, São Paulo, 1 jun. 2020. Disponível em: https://medium.com/serenata/projeto-embaixadoras-conhe%C3%A7a-o- perfil-do-segundo-ciclo-de-participantes-1b2e712101eb. Acesso em: 26 out. 2020. 179 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Diretoria de Análise de Políticas Públicas (DAPP FGV). Sala de Democracia Digital: sobre. Disponível em: http://observademocraciadigital.org/sobre/. Acesso em: 28 mar. 2020. 180 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Diretoria de Análise de Políticas Públicas (DAPP FGV). Sala de Democracia Digital: sobre. Disponível em: http://observademocraciadigital.org/sobre/. Acesso em: 28 mar. 2020. 69 combate a estratégias de desinformação que ameaçam a lisura de processos político-eleitorais com o objetivo de fortalecer as instituições democráticas”181. Outrossim, a publicação de gráficos e mapas de interação sobre questões públicas nas redes pela DAPP retrata satisfatoriamente o status da opinião pública sobre a atuação estatal diante dos iminentes problemas sociais, e sua capacidade de lidar com a execução de políticas e estratégias em tempos de crise, o que se intensificou com a pandemia da COVID-19. As pesquisas realizadas e os relatórios emitidos pela DAPP a partir dos dados coletados nas redes sociais permitem conhecer o perfil do cidadão digital (inclusive do gestor público), e fomentar o debate em um ecossistema democrático com características participativas e deliberativas, de sorte que é possível identificar ostensivamente a formação gradual na internet de grupos antagônicos politicamente, muitas vezes extremistas e contrários aos valores democráticos. A vertiginosa troca global de grandes quantidades de dados é um fator significativo para essa polarização, ao se considerar que o acesso à informação (e a aquisição de conhecimento) tende a deixar de ser monopolizado por grupos detentores de maior poder econômico nos espaços físicos, e passa a ser difundido com maior facilidade para qualquer pessoa que possua os aparatos tecnológicos básicos de acesso à rede. Todavia, não se deve imaginar que o “cidadão digital” representa, de modo fidedigno, o cidadão real do universo físico não-computadorizado. Ainda que haja iniciativas que incentivem a deliberação nas redes, se não forem garantidas e satisfeitas oportunidades de participação significativa de grupos majoritariamente excluídos da sociedade (por questões econômicas, sociais, políticas), não restará configurado um cenário de democracia digital. À vista disso, torna-se imprescindível inserir nas agendas deliberativas projetos de inclusão digital, para que não se forme uma espécie de segregação virtual, e para que as deliberações não se tornem antidemocráticas e enviesadas por filtros-bolha. Não se pode negar, destarte, que existem realidades que impedem a plena satisfação dos fins do processo democrático (digital), como a exclusão digital de pobres, mulheres, idosos, população em situação de rua e pessoas com deficiência; a falta de segurança em rede; o cyberbullying; a prática de crimes virtuais e a ineficiente atuação jurisdicional no seu combate e repressão; a censura e o controle da internet por governos autoritários, entre numerosas outras situações que se distanciam de um ecossistema digital compatível com o livre exercício da cidadania; a dignidade humana; o pluralismo; o respeito pelos direitos humanos; e o desenvolvimento em sua acepção mais ampla. 181 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Diretoria de Análise de Políticas Públicas (DAPP FGV). Sala de Democracia Digital: sobre. Disponível em: http://observademocraciadigital.org/sobre/. Acesso em: 28 mar. 2020. 70 3 O DIREITO REGULATÓRIO DA GOVERNANÇA DE DADOS 3.1 DA REGULAÇÃO DA INTERNET À GOVERNANÇA DE DADOS A internet é um dos setores mais complexos de se regular à luz da ordem econômica constitucional tradicional. Quando se trata desse ambiente, não são apenas as questões jurídicas propriamente ditas que pesam como fator regulador, mas há, principalmente, aspectos técnicos e estruturais próprios do universo computadorizado que se destacam em meio a um ambiente cercado pelos pilares da globalização e da pós-modernidade. Observa-se, desde já, que a internet sempre foi governada, não no sentido tradicional da governança promovida pelo Estado-Nação, mas em relação à coordenação e controle além das fronteiras por vários atores, como o setor privado, estruturas governamentais tradicionais, novas instituições globais e, até mesmo, pelos próprios cidadãos182. Essa é uma das razões pelas quais se destaca a importância da interdisciplinaridade desta pesquisa. O que antes dizia respeito apenas à comunidade técnica e a alguns estudiosos da área da Ciência da Informação, tornou-se parte da agenda política de todos os governos: DeNardis aponta que o modo como a internet é desenvolvida e administrada implica em uma série de questões políticas públicas, como o direito à privacidade; estabilidade econômica; segurança nacional; liberdade de expressão; e inclusão digital.183 Esse argumento justifica, por si, a importância desse trabalho, que aborda aspectos constitucionais e regulatórios da governança da internet e suas implicações no processo democrático conduzido pela Administração Pública Federal. A Agenda de Túnis para a Sociedade da Informação, estabelecida na segunda fase da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação em 2005, reconhece o caráter interdisciplinar da governança da internet: 58 Reconhecemos que a governança da Internet inclui mais do que a atribuição de nomes e domínios na Internet. Inclui também outras questões significativas de políticas públicas, tais como, entre outros, recursos críticos da Internet, segurança e proteção na Internet, e aspectos e questões de desenvolvimento relativas ao uso da Internet. 182 DENARDIS, Laura. Introduction: Internet Governance as an Object of Research Inquiry. In: DENARDIS, Laura et al. (ed.). Researching Internet Governance: Methods, Frameworks, Futures. [S.l.]: The MIT Press, 2020, p. 3. Disponível em: https://doi.org/10.7551/mitpress/12400.003.0002. Acesso em: 28 out. 2020. 183 DENARDIS, Laura. Introduction: Internet Governance as an Object of Research Inquiry. In: DENARDIS, Laura et al. (ed.). Researching Internet Governance: Methods, Frameworks, Futures. [S.l.]: The MIT Press, 2020, p. 1. Disponível em: https://doi.org/10.7551/mitpress/12400.003.0002. Acesso em: 28 out. 2020. 71 59 Reconhecemos que a governança da Internet inclui questões sociais, econômicas e técnicas como acessibilidade, confiabilidade e qualidade do serviço. 60 Nós reconhecemos ainda que há muitas questões transversais de políticas públicas internacionais que exigem atenção e não são tratadas adequadamente pelos mecanismos atuais. 61 Estamos convencidos de que há necessidade de iniciar e reforçar, conforme o caso, um processo transparente, democrático e multilateral, com a participação dos governos, setor privado, sociedade civil e organizações internacionais, em seus respectivos papéis. Esse processo poderia prever a criação de um marco ou de mecanismos adequados, caso se justifique, estimulando, assim, a evolução contínua e ativa do regime atual, a fim de criar sinergia entre os esforços existentes nesse sentido.184 De modo geral, a governança da internet é definida como “[...] a administração e o desenvolvimento das tecnologias que mantêm o funcionamento da internet; e o estabelecimento de políticas sobre essas tecnologias”185. A Agenda de Túnis para a Sociedade da Informação a define como [...] o desenvolvimento e a aplicação por parte dos governos, do setor privado e da sociedade civil, em seus respectivos papéis, de princípios, normas, regras, procedimentos decisórios e programas compartilhados que dão forma à evolução e uso da Internet.186 A fluidez do ecossistema digital e a dinâmica dos processos de tratamento de grandes quantidades de dados são fatores que impedem a fixação de normas rígidas a longo prazo. Não se pode esperar muito das produções parlamentares: o processo legislativo é, muitas vezes, lento e/ou ineficiente, e a maioria dos representantes políticos não detém os conhecimentos multissetoriais desejados para a compreensão da governança da internet em sua total complexidade. Exigir-se-iam, então, planos e estratégias a curto prazo promovidos pelo Executivo, na tentativa de pôr em prática ações que conduziriam ao desenvolvimento, à inovação, à redução das desigualdades sociais e ao crescimento econômico. Todavia, nem sempre essas estratégias se pautam na boa governança e em finalidades condizentes com o 184 COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL. Documentos da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação: Genebra 2003 e Túnis 2005. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2014, p. 96 – 97. Disponível em: https://www.cgi.br/media/docs/publicacoes/1/CadernosCGIbr_DocumentosCMSI.pdf. Acesso em: 18 nov. 2020. 185 DENARDIS, Laura. Introduction: Internet Governance as an Object of Research Inquiry. In: DENARDIS, Laura et al. (ed.). Researching Internet Governance: Methods, Frameworks, Futures. [S.l.]: The MIT Press, 2020, p. 3, tradução nossa. Disponível em: https://doi.org/10.7551/mitpress/12400.003.0002. Acesso em: 28 out. 2020. No original: “Internet governance can be generally defined as the administration and design of the technologies that keep the Internet operational and the enactment of policy around these technologies.” 186 COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL. Documentos da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação: Genebra 2003 e Túnis 2005. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2014, p. 90. Disponível em: https://www.cgi.br/media/docs/publicacoes/1/CadernosCGIbr_DocumentosCMSI.pdf. Acesso em: 18 nov. 2020. 72 Estado Democrático de Direito; como consequência, o excesso de confiança no Executivo para pautar tais questões pode conduzir a cenários antidemocráticos e/ou totalitários ditados por decretos e medidas provisórias distantes das hipóteses constitucionalmente previstas, não apenas formal, mas também materialmente. Moura e Silveira Neto destacam alguns aspectos que demonstram as insuficiências do Legislativo e, em decorrência disso, o fortalecimento e a instrumentalização do Executivo através da criação de agências reguladoras: Em contraposição, vivencia-se, nos dias atuais, um Poder Legislativo atônito às mudanças socioeconômicas, seja: i) pela estrutura colegiada e deliberativa que torna naturalmente a sua função morosa; ii) pela má vontade dos parlamentares de se insurgir contra o eleitorado com a aprovação de medidas impopulares; iii) pela sua insuficiência técnica para compreender e enfrentar os problemas advindos do pós- modernismo; iv) por não dispor de instrumentos legiferantes céleres no intuito de responder a tempo, e de forma eficiente, as constantes transformações socioeconômicas decorrentes de um mundo extremamente competitivo. Desse modo, percebemos ausência de instrumentos legais adequados para as novas circunstâncias fáticas e sociais que vão se firmando no mundo contemporâneo. O fato é que se começou a se difundir a ideia de instrumentalizar e fortalecer os órgãos do Executivo para enfrentar as mudanças rápidas de uma sociedade informacional, sendo as Agências Reguladoras, o mecanismo pelo qual se poderia promover a regulação do Estado sobre o domínio econômico de modo adequado e eficiente, nos termos do art. 174 da Constituição Federal. Ao se instrumentalizar o Executivo, na pessoa das Agências Reguladoras, por exemplo, seria possível regular e se antecipar às inovações e, consequentemente, novas relações que estavam sendo formadas, haja vista tais órgãos já estarem inseridos em um novo modelo de gestão que primava pela tecnicidade, eficiência e imparcialidade.187 Para melhor exemplificar o que foi afirmado acima, utilizar-se-á a Lei Geral de Proteção de Dados como referência: em sua vacatio legis sofreu diversos vetos, alterações e acréscimos decorrentes, inclusive, de medida provisória. A decisão sobre sua vigência foi cingida por tensões políticas e conflitos de interesses entre o Congresso Nacional, a Presidência da República, o setor privado e as organizações não governamentais voltadas para a defesa da democracia digital e da governança pública. Vide o infográfico: 187 MOURA, Kate de Oliveira; SILVEIRA NETO, Otacílio dos Santos. A superação da tensão existente entre as agências reguladoras brasileiras e o regime democrático. Revista Digital Constituição e Garantia de Direitos, v. 9, n. 2, 19 jun. 2017, p. 332. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/constituicaoegarantiadedireitos/article/view/12326/8525. Acesso em: 15 dez. 2020. 73 Infográfico 1 — Histórico das mudanças para entrada em vigor da LGPD e possíveis cenários, em junho/2020 Fonte: Copelli.188 188 COPELLI, Marcelo. Senado aprova antecipação da LGPD para este ano e texto vai à sanção. Instituto Nacional de Proteção de Dados (INPD), Curitiba, maio 2020. Disponível em: https://www.inpd.com.br/post/senado- aprova-antecipa%C3%A7%C3%A3o-da-lgpd-para-este-ano. Acesso em: 11 jun. 2020. 74 A partir das informações fornecidas pelo infográfico, estes foram os cenários criados, à época, para a entrada em vigor da LGPD, o que causou completo estado de insegurança jurídica para aqueles que aguardavam a possibilidade de aplicar efetivamente a “nova” lei, considerando-se que ela afetaria todos os setores da sociedade, principalmente o setor empresarial e o próprio governo, que lidam constantemente com grandes quantidades de dados pessoais, inclusive sensíveis: 1) Caso o Presidente da República sancione o PL 1179, a LGPD entra em vigor em maio de 2021 e as penalidades administrativas em agosto de 2021; 2) Caso o Presidente da República vete o PL 1179, a LGPD terá eficácia plena e integral em maio de 2021. Os cenários acima não consideram a possibilidade de caducidade da Medida Provisória 959. Caso ela não seja convertida em lei, temos mais dois cenários possíveis: 1) Caso o Presidente da República sancione o PL 1179 e a MP 959 caduque, a LGPD entra em vigor em agosto de 2020 e as penalidades administrativas em agosto de 2021. 2) Caso o Presidente da República vete o PL 1179 e a MP 959 caduque, a LGPD terá eficácia plena e integral em agosto de 2020.189 Em 14 de maio de 2020, a Câmara dos Deputados apresentou a Redação Final do Substitutivo da Câmara ao Projeto de Lei nº 1.179-A/2020190, do Senado Federal. O artigo 18 previa que o caput do artigo 65 da LGPD passaria a vigorar acrescido do inciso I-A, segundo o qual aquela entraria em vigor em 1º de agosto de 2021 quanto aos artigos 52, 53 e 54191. Em 19 de maio de 2020, apresentou-se o Requerimento nº 396/2020, com destaque de votação em separado do artigo 18 do Substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei nº 1.179/2020. O requerimento se sobressai por apostar, implicitamente, no equilíbrio dos três Poderes na proteção, salvaguarda e consumação dos fins constitucionais no Estado Democrático de Direito: ao tratar do processo legislativo da criação de um regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de direito privado durante a pandemia da COVID-19, abordam-se aspectos da regulação da vigilância e da proteção de dados pessoais, 189 COPELLI, Marcelo. Senado aprova antecipação da LGPD para este ano e texto vai à sanção. Instituto Nacional de Proteção de Dados (INPD), Curitiba, maio 2020. Disponível em: https://www.inpd.com.br/post/senado- aprova-antecipa%C3%A7%C3%A3o-da-lgpd-para-este-ano. Acesso em: 11 jun. 2020. 190 A redação original do artigo 20 do PL nº 1.179/2020 do Senado Federal era a seguinte: Art. 20. O art. 65 da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, passa a vigorar com a seguinte redação: “Art.65. ......................................................................................................................................................... II – 1º de agosto de 2021, quanto aos arts. 52 a 54; III – 1º de janeiro de 2021, quanto aos demais artigos.” (NR) (BRASIL. Senado Federal. Redação Original do PL 1.179/2020. Brasília, 13 abr. 2020. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1880267. Acesso em: 24 out. 2020. 191 BRASIL. Câmara dos Deputados. Redação Final do Substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei nº 1.179-A de 2020 do Senado Federal. Brasília, 14 maio 2020. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1894311. Acesso em: 24 out. 2020. 75 de modo que não só questões econômicas são preocupantes, mas se deve atentar à aplicação do direito fundamental à proteção de dados, recentemente reconhecido pelo STF, e à omissão do Executivo em concretizar a política fiscalizatória daquele direito através da criação e do fortalecimento da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). Percebe-se, com a justificativa do proponente, a importância da conciliação entre os três Poderes no processo regulatório: A prorrogação da LGPD para 2021 como proposto no substitutivo do Senado enviado à Câmara, nos parece inadequada uma vez que vivemos num momento em que mais precisamos da coleta e do uso de dados com base em parâmetros legais, que forneçam segurança jurídica para o Estado e para as empresas. Precisamos coletar e processar dados pessoais relacionados à saúde pública dos cidadãos a fim de formular políticas públicas aptas a protegê-los, não temos balizas jurídicas para garantir a segurança desse processamento, cenário no qual se destaca a omissão do Poder Executivo em constituir uma autoridade nacional de proteção de dados, por isso, essa Lei precisa valer a partir de agora e não deixá-la para 2021. O Supremo Tribunal Federal no dia 07 de maio reconheceu o direito fundamental autônomo à proteção de dados pessoais. O julgamento do plenário suspendeu a aplicação da Medida Provisória 954/2018, que obrigava as operadoras de telefonia a repassarem ao IBGE dados identificados de seus consumidores de telefonia móvel, celular e endereço. A decisão torna expresso pela primeira vez na história constitucional brasileira a tutela dos dados pessoais como um direito fundamental. Não por acaso, a tônica do julgamento se deu em torno da centralidade que o tema da proteção de dados exerce para a manutenção da democracia. A preocupação da Corte foi justamente com o perigo de que a vigilância, aparentemente justificável em tempos de crise sanitária, possa ser propositalmente estendida para além desse momento. Como afirmado pela Ministra Rosa Weber, a história nos ensina: uma vez estabelecida a sistemática de vigilância, há grande perigo de que as medidas não retrocedam e que os dados já coletados sejam usados em contextos muito diversos daquele que justificaram inicialmente a sua coleta. Assim, o quadro brasileiro atual – de prorrogação da LGPD e da omissão do Poder Executivo em criar a ANPD (que fiscalizará o cumprimento da lei) – está em clara contrariedade aos valores constitucionais.192 Em 20 de maio de 2020, o Senado Federal publicou o Parecer nº 37/2020193 sobre o Substitutivo da Câmara dos Deputados ao PL nº 1.179/2020. Votou-se pela rejeição à alteração 192 BRASIL. Senado Federal. Requerimento nº 396/2020. Destaque de votação em separado do art. 18 do Substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei nº 1.179, de 2020. Autor: Senador Weverton (PDT/MA). Brasília, 19 maio 2020. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg- getter/documento?dm=8113056&ts=1600363372360&disposition=inline. Acesso em: 24 out. 2020. 193 “A alteração aprovada por esta Casa no art. 65 da LGPD foi no sentido de estabelecer os seguintes prazos para a vacatio legis da referida Lei: a) dia 1º de agosto de 2021, para a entrada em vigor dos arts. 52 a 54, que tratam das sanções administrativas aplicáveis por infrações no tratamento dos dados; e b) 1º de janeiro de 2021, como marco temporal para o início da vigência dos demais artigos da LGPD, que ainda não entrou plenamente em vigor. O relator na Câmara dos Deputados, Deputado Enrico Misasi, divergiu parcialmente dessa solução dada pelo Senado Federal, ao manter apenas a prorrogação do prazo relativo à imposição das sanções administrativas, datado para 1º de agosto de 2021. Quanto à data de entrada em vigor dos demais artigos da LGPD, o substitutivo aprovado na CD manteve o texto atual do inciso II do art. 65 da LGPD, que previa a data inicial de 14 de agosto de 2020, mas foi recentemente alterado pela Medida Provisória nº 959, de 29 de abril de 2020, e postergou a vacatio legis para 3 de maio de 76 proposta pela Câmara (sanções administrativas em 1º de agosto de 2021, e demais artigos da LGPD em 14 de agosto de 2020 — alterado para 3 de maio de 2021, pela MP nº 959/2020)194, para “[...] garantir o adiamento da vigência dos dispositivos remanescentes da LGPD para 1º de janeiro de 2021, com exceção dos artigos que tratam de sanções administrativas, que somente irradiarão efeitos após 1º de agosto de 2021”195. Em 21 de maio de 2020, o Senado Federal encaminhou o Ofício nº 545/2020 à Câmara dos Deputados, comunicando a rejeição, em parte, e o arquivamento do Substitutivo da Câmara ao Projeto de Lei nº 1.179/2020, enviando-o, em seguida, à sanção196. Após a aprovação do PL pelas duas Casas do Congresso Nacional, procedeu-se à sanção presidencial (Mensagem nº 39/2020)197. Vetado parcialmente, o PL 1.179/2020 se transformou na Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020198. Posteriormente, o Congresso Nacional rejeitou, em parte, o veto parcial presidencial, promulgando-se a parte vetada em 8 de setembro de 2020199. Em 26 de agosto de 2020, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei de Conversão nº 34/2020, proveniente da Medida Provisória nº 959/2020200. Nessa ocasião, declarou-se prejudicado o artigo 4º do PLV, nos seguintes termos: O Senador Eduardo Braga formula questão de ordem apontando a prejudicialidade do art. 4º da Medida Provisória 959 na pauta de hoje, em virtude de o Senado já haver deliberado sobre esse assunto neste mesmo ano, sobre o mesmo tema. 2021.” (BRASIL. Senado Federal. Parecer nº 37, de 2020 – PLEN/SF. Brasília, 20 maio 2020, p. 5. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8113580&ts=1600363372651&disposition=inline. Acesso em: 24 out. 2020.) 194 BRASIL. Senado Federal. Parecer nº 37, de 2020 – PLEN/SF. Brasília, 20 maio 2020, p. 5. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8113580&ts=1600363372651&disposition=inline. Acesso em: 24 out. 2020. 195 BRASIL. Senado Federal. Parecer nº 37, de 2020 – PLEN/SF. Brasília, 20 maio 2020, p. 6. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8113580&ts=1600363372651&disposition=inline. Acesso em: 24 out. 2020. 196 BRASIL. Senado Federal. Ofício nº 545/2020. Comunica à Câmara dos Deputados o encaminhamento à Presidência da República do Projeto de Lei n° 1.179, de 2020. Brasília, 21 maio 2020. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8113626&ts=1600363371581&disposition=inline. Acesso em: 24 out. 2020. 197 BRASIL. Senado Federal. Mensagem nº 39/2020. Encaminha à sanção o Projeto de Lei n° 1.179, de 2020. Brasília, 21 maio 2020. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg- getter/documento?dm=8113605&ts=1600363371456&disposition=inline. Acesso em: 24 out. 2020. 198 BRASIL. Presidência da República. Mensagem nº 331, de 10 de junho de 2020. Brasília, 12 jun. 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-331.htm. Acesso em: 24 out. 2020. 199 BRASIL. Congresso Nacional. Veto nº 20/2020. Veto Parcial aposto ao Projeto de Lei nº 1.179, de 2020, que "Dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19)". Brasília, 2020. Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/vetos/-/veto/detalhe/13325. Acesso em: 25 out. 2020. 200 BRASIL. Congresso Nacional. Medida Provisória nº 959, de 2020. Diário do Senado Federal nº 112 de 2020. Sessão: 26 ago. 2020. Publicação: 27 ago. 2020, p. 9 – 24. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/diarios/ver/104730?sequencia=9. Acesso em: 30 jan. 2021. 77 De fato, o art. 334 do Regimento Interno prevê que será considerada prejudicada matéria dependente de deliberação do Senado em virtude de seu prejulgamento pelo Plenário em outra deliberação. Consultando a tramitação do PL 1.179, de 2020, verifica-se que, no dia 19 de maio deste ano, foi proposto e aprovado destaque apresentado pela Liderança do PDT e também pela Liderança do MDB, na pessoa de seus Líderes, Senador Weverton e Senador Eduardo Braga, relativamente ao art. 18 daquela proposição. Na ocasião, o Senado Federal entendeu que a vigência da LGPD não deveria ser novamente prorrogada e manteve sua vigência para agosto deste ano, ressalvadas as punições que foram adiadas para o ano de 2021. Repito: nós deliberamos sobre este assunto em um requerimento de destaque que foi vencedor ainda neste ano. Observa-se que, quando o Senado Federal [...] deliberou sobre esse tema, já estava vigente esta MP 959. Esta observação é fundamental: o Senado já conhecia a argumentação para adiar a entrada em vigor da LGPD e decidiu, no Plenário do Senado, democraticamente, contrariamente à proposta de adiamento. Sendo assim, assiste razão ao Líder Eduardo Braga e a vários Líderes que subscreveram a questão de ordem, pois o tema efetivamente, concretamente e claramente foi deliberado pelo Plenário do Senado Federal, vencendo o destaque apresentado pelo PDT e pelo MDB alguns meses atrás. Assim, em atendimento à Questão de Ordem apresentada pelo Senador Eduardo Braga e outros Líderes, nos termos do art. 48, inciso XII, e do art. 334, inciso II, do Regimento Interno, esta Presidência decide e declara a prejudicialidade do art. 4º do Projeto de Lei de Conversão. O texto é considerado como não escrito no projeto.201 A Presidência da República sancionou o PLV nº 34/2020, convertido na Lei nº 14.058/2020, em 17 de setembro de 2020202. Por fim, em 16 de novembro de 2020, [...] esgotou-se o prazo previsto no § 11 do art. 62 da Constituição Federal sem edição de decreto legislativo que discipline as relações jurídicas decorrentes da Medida Provisória nº 959, de 2020, cuja vigência encerrou-se em 18-09-2020, com a publicação da Lei nº 14.058, de 2020, sancionada em 17-09-2020 (§ 12 do art. 62 da Constituição Federal).203 Após todas as alterações normativas proporcionadas na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, esse diploma legal passou a ter os seguintes marcos de vigor: Art. 65. Esta Lei entra em vigor: (Redação dada pela Lei nº 13.853, de 2019) I - dia 28 de dezembro de 2018, quanto aos arts. 55-A, 55-B, 55-C, 55-D, 55-E, 55-F, 55-G, 55-H, 55-I, 55-J, 55-K, 55-L, 58-A e 58-B; e (Incluído pela Lei nº 13.853, de 2019) I-A – dia 1º de agosto de 2021, quanto aos arts. 52, 53 e 54; (Incluído pela Lei nº 14.010, de 2020) 201 BRASIL. Congresso Nacional. Medida Provisória nº 959, de 2020. Diário do Senado Federal nº 112 de 2020. Sessão: 26 ago. 2020. Publicação: 27 ago. 2020, p. 9 – 24. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/diarios/ver/104730?sequencia=9. Acesso em: 30 jan. 2021. 202 BRASIL. Presidência da República. Diário Oficial da União. Seção: 1, Brasília, DF, edição 180, p. 3, 18 set. 2020. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/despacho-do-presidente-da-republica-278155195. Acesso em: 30 jan. 2021. 203 BRASIL. Congresso Nacional. Diário do Congresso Nacional nº 52, de 2020. Brasília, DF, p. 16, 19 nov. 2020. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/diarios/ver/105452?sequencia=16. Acesso em: 30 jan. 2021. 78 II - 24 (vinte e quatro) meses após a data de sua publicação, quanto aos demais artigos. (Incluído pela Lei nº 13.853, de 2019)204 Depender da eventual caducidade de uma medida provisória e do veto de um projeto de lei para se definir a data de entrada em vigor do principal marco normativo da proteção de dados de um país que levou quase três anos para criar sua Autoridade Nacional (em proteção de dados) demonstra um elevado grau de incompetência e omissões em relação à regulação e à positivação dos direitos digitais. É importante mencionar que essas tensões se intensificaram diante da pandemia da COVID-19205, quando houve o aumento significativo do uso da internet, dispositivos eletrônicos e, consequentemente, da coleta de dados pessoais por agentes públicos e privados em decorrência do teletrabalho, da telemedicina, do homeschooling, dos serviços públicos digitais, dos aplicativos de delivery, da assinatura de serviços de streaming, e do uso de dados para vigilância em massa pelo Estado. Não se pode esperar que a regulação da internet e da proteção de dados pessoais, em um Estado Democrático de Direito, dependa exclusivamente da vontade política de qualquer um dos Poderes da República, especialmente do Executivo através da publicação de medidas provisórias e decretos. O excesso desses atos é típico de governos autoritários e antidemocráticos, e os princípios da governança da internet idealizam o oposto dessa realidade, primando-se pela construção de um ambiente digital democrático, universal, colaborativo e que atenda às necessidades de todos os setores sociais. Espera-se, assim, que os processos regulatórios contemplem não apenas os princípios para a internet no Brasil, elencados pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) em 2009, mas também as recomendações do Encontro Multissetorial Global sobre o Futuro da Governança da Internet (NETmundial), e os documentos da Cúpula Mundial da Sociedade da Informação em Genebra (2003) e Túnis (2005). 204 BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm. Acesso em: 31 jan. 2021. 205 “Situações de crise, como a deflagrada pela pandemia global da COVID-19 e marcada pelas medidas excepcionais que têm sido adotadas para o seu enfrentamento, tendem a favorecer o enfraquecimento de direitos, especialmente porque as instituições que em outro momento estariam menos permeáveis a tais investidas tornam- se, em momentos tais, menos vigilantes ou aderem às narrativas que visam a justificá-las a partir da crise posta.” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Referendo na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.387 Distrito Federal. Relatora: Min. Rosa Weber. Julgamento: 07 maio 2020. Publicação: 12 nov. 2020. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754357629. Acesso em: 05 jan. 2021.) 79 De que se trata, afinal, a regulação, e como esse tema se relaciona com a governança da internet e a inserção dos seus elementos na construção das políticas públicas e estratégias estatais para o direito ao desenvolvimento? Martins apresenta múltiplas perspectivas sobre o conceito de regulação, que se distingue de acordo com o âmbito no qual se insere206: o significado técnico ou científico, estabelecido pela Cibernética; a regulação econômica, de tendência liberal ou neoliberal, definida principalmente pela teoria das falhas do mercado, pelo sistema de concorrência, pela eficiência e equidade econômicas, e pelos interesses dos agentes econômicos; a regulação jurídica, decorrente dos textos normativos vigentes, especialmente a Constituição Federal; e a regulação administrativa207. Não há consenso entre os doutrinadores sobre essa classificação, de modo que os conceitos apresentados por cada autor variam muito da linha teórica e da área do conhecimento nas quais estão inseridos. Enquanto Martins apresenta uma sólida definição jurídica de regulação, Marques Neto tende a aproximar esse conceito da regulação econômica. Wiener utiliza o termo “Cibernética” para se referir ao campo “[...] que inclui não apenas o estudo da linguagem mas também o estudo das mensagens como meios de dirigir a maquinaria e a sociedade, o desenvolvimento de máquinas computadoras e outros autômatos [...]”208. A Cibernética objetiva “[...] desenvolver uma linguagem e técnicas que nos capacitem, de fato, a haver-nos com o problema do controle e da comunicação em geral [...]”209,210. Os conceitos se tornam mais claros com a percepção de Ashby, ao apontar que, apesar de a Cibernética ser uma 206 “O estudo etimológico da palavra ‘regulação’ indicou dois significados básicos: ‘estabelecer regras’ e ‘dirigir, governar’. O estudo cibernético indicou um significado técnico: ‘manter ou restabelecer o funcionamento equilibrado de um sistema’. O estudo econômico sugeriu um acréscimo ao significado cibernético: regular é manter ou restabelecer o funcionamento equilibrado do mercado e – acrescentou-se – atuar sobre ele para que se torne mais justo – não só manter ou restabelecer o equilíbrio do sistema, mas alterar esse sistema.” (MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação Administrativa à luz da Constituição Federal. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 100 – 101.) 207 MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação Administrativa. In: MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação Administrativa à luz da Constituição Federal. São Paulo: Malheiros, 2011, capítulo II. 208 WIENER, Norbert. Cibernética e Sociedade: o uso humano de seres humanos. Tradução: José Paulo Paes. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1968, p. 15. 209 WIENER, Norbert. Cibernética e Sociedade: o uso humano de seres humanos. Tradução: José Paulo Paes. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1968, p. 17. 210 “A tese deste livro é a de que a sociedade só pode ser compreendida através de um estudo das mensagens e das facilidades de comunicação de que disponha; e de que, no futuro desenvolvimento dessas mensagens e facilidades de comunicação, as mensagens entre o homem e as máquinas, entre as máquinas e o homem, e entre a máquina e a máquina, estão destinadas a desempenhar papel cada vez mais importante. Quando dou uma ordem a uma máquina, a situação não difere essencialmente da que surge quando dou uma ordem a uma pessoa. Por outras palavras, tanto quanto alcança minha consciência, estou ciente da ordem emitida e do sinal de aquiescência recebido de volta. Para mim, pessoalmente, o fato de o sinal, em seus estágios intermediários, ter passado por uma máquina em vez de por uma pessoa, é irrelevante, e em nenhum caso altera significativamente minha relação com o sinal. Dessarte, a teoria do comando em engenharia, quer seja ele humano, animal ou mecânico, constitui um capítulo da teoria das mensagens.” (WIENER, Norbert. Cibernética e Sociedade: o uso humano de seres humanos. Tradução: José Paulo Paes. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1968, p. 16.) 80 teoria das máquinas, não trata da coisa em si, mas do seu comportamento: a relevância não consiste em saber “o que é o objeto”, mas “o que ele faz”211. Martins explora essas ideias e, ao utilizar um termostato de geladeira como exemplo (citação de Tércio Sampaio Ferraz Jr. sobre regras de calibração212), conclui que “[...] a Cibernética atribuiu um significado técnico ao signo ‘regulação’ – é o bloqueio dos fatores que, ao atuarem num sistema, o levariam ao desequilíbrio. Esse significado ficou conhecido como significado técnico ou científico”213. Apesar da importância dos estudos desenvolvidos na Cibernética, seu conceito de regulação não é suficiente e não tem muita utilidade para a resolução de problemas jurídicos, não obstante a defesa, realizada nesse trabalho, pela adoção de abordagens metodológicas interdisciplinares. Seguindo-se ao estudo com a regulação econômica, ela se faz necessária devido às falhas da “mão invisível” do mercado214, que “[...] obstam ao equilíbrio dos mercados competitivos e exigem a intervenção estatal”215. Outrossim, “a ‘mão invisível’ não garante a eficiência econômica nem a equidade econômica – noutras palavras, nem a máxima alocação possível dos recursos, nem a distribuição equitativa desses recursos”216. Deve-se atentar, nessa perspectiva, que os rendimentos da economia digital são imensos, considerando-se que todos os setores industriais dependem da internet para funcionar e, anualmente, o comércio digital movimenta 211 ASHBY, W. Ross. An Introduction to Cybernetics. Londres: Chapman & Hall LTD, 1957, p. 1. 212 “A expressão regra de calibração provém da Cibernética (Cube, 1967:23). Trata-se de regras de regulagem ou ajustamento de um sistema. Tomemos, por exemplo, uma máquina, como a geladeira. Para controle do grau de temperatura interna, seu maquinismo de produção de frio é regulado por um termostato: sem ele, a geladeira iria esfriando o ambiente (sua finalidade) ilimitadamente, o que a levaria a uma disfunção. Para evitar isso, o termostato permite manter uma temperatura, de modo que, se esta cai abaixo de um limite ou sobe acima dele, o motor volta a produzir frio ou cessa de fazê-lo, respectivamente. Para produzir esse efeito, estabelecemos um valor (por exemplo, 20 graus) chamado valor de dever-ser, que o termostato ‘compara’ com o valor real ou valor de ser (temperatura abaixo ou acima de 20 graus). Nesse momento, se for abaixo, a produção de frio é retomada; se acima, é desligada. Esses valores, que compõem o termostato, não são propriamente elementos do motor (não operam o esfriamento), mas o regulam, isto é, determinam como os elementos funcionam, isto é, como eles guardam entre si relações de funcionamento. Eles fazem parte da estrutura de funcionamento da geladeira. Em suma, os valores de dever-ser e de ser correspondem a regras de calibração ou de regulagem (regras estruturais) do sistema.” (FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2018. E-book.) 213 MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação Administrativa à luz da Constituição Federal. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 85. 214 MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação Administrativa à luz da Constituição Federal. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 87. 215 MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação Administrativa à luz da Constituição Federal. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 90. 216 MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação Administrativa à luz da Constituição Federal. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 87. 81 trilhões de dólares; portanto, uma queda do ciberespaço representa uma queda da economia global217. Elali explica uma terceira etapa na evolução do Estado constitucional, que deu prosseguimento aos Estados Liberal e de Bem-Estar Social: é o Estado Regulador, que surge diante dos transtornos da liberalização econômica e controla, fiscaliza e fomenta a economia (direta ou indiretamente), em face da atribuição de atividades econômicas no mercado à iniciativa privada218. A necessidade do Estado Regulador se apresenta diante da “[...] limitação dos orçamentos públicos aliada aos efeitos da concorrência internacional, marcada pela mobilidade dos fatores econômicos”219. O autor cita que os fundamentos desse modelo de Estado, adotado pela Constituição brasileira, são “[...] aspectos como a correção das falhas de mercado, a descentralização da organização estatal, a estabilização econômica e a fiscalização do mercado [...]”220. Martins explica que o conceito jurídico de regulação deriva dos textos normativos vigentes, principalmente da Constituição Federal, utilizando o constituinte, várias vezes, os termos “regular” e “regulação” “[...] com o significado, próprio da linguagem comum ou natural, de ‘disciplinar’, ‘estabelecer regras’”221. Considerando-se que “toda função pública consiste na edição de normas jurídicas [...], legislar, administrar e julgar é editar normas. Nesse sentido, é possível uma regulação legislativa, administrativa e jurisdicional”222. Assim, conclui que: No sistema constitucional brasileiro, salvo disposição expressa do texto em sentido contrário, estabelecer ponderações autônomas no plano abstrato, quer dizer, efetuar disciplina de conduta com prognose do caso concreto, é incumbência do Legislativo. [...] regulação abstrata autônoma, salvo expressa disposição constitucional em 217 DENARDIS, Laura. Introduction: Internet Governance as an Object of Research Inquiry. In: DENARDIS, Laura et al. (ed.). Researching Internet Governance: Methods, Frameworks, Futures. [S.l.]: The MIT Press, 2020, p. 1. Disponível em: https://doi.org/10.7551/mitpress/12400.003.0002. Acesso em: 28 out. 2020. 218 ELALI, André de Souza Dantas. Concorrência fiscal internacional: a concessão de incentivos fiscais em face da integração econômica internacional. 2009. Tese (Doutorado em Direito) — Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2009, p. 44 – 45. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/4168. Acesso em: 05 nov. 2020. 219 ELALI, André de Souza Dantas. Concorrência fiscal internacional: a concessão de incentivos fiscais em face da integração econômica internacional. 2009. Tese (Doutorado em Direito) — Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2009, p. 46. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/4168. Acesso em: 05 nov. 2020. 220 ELALI, André de Souza Dantas. Concorrência fiscal internacional: a concessão de incentivos fiscais em face da integração econômica internacional. 2009. Tese (Doutorado em Direito) — Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2009, p. 47. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/4168. Acesso em: 05 nov. 2020. 221 MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação Administrativa à luz da Constituição Federal. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 100 – 101. 222 MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação Administrativa à luz da Constituição Federal. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 102. 82 sentido contrário, é efetuada por lei, é regulação legislativa. Na maioria das vezes o constituinte foi didático, afirmou que a regulação será feita por lei. Na omissão constitucional, se o contexto não indicar claramente o contrário, é por lei que a regulação abstrata deve ser efetuada. O núcleo essencial da função legislativa é efetuar ponderações autônomas no plano abstrato; o núcleo essencial da função administrativa é realizar ponderações no plano concreto – edição de normas jurídicas concretizadoras das ponderações constitucionais e legislativas; e o núcleo essencial da função jurisdicional é verificar o acerto das ponderações legislativas e administrativas. As três, portanto, dizem respeito à edição de normas jurídicas. Assim, num sentido amplo, a regulação administrativa consiste na edição de normas administrativas e é sinônimo de exercício de função administrativa. Há, pois, que se indagar: há um conceito técnico ou científico de regulação administrativa no texto constitucional, ou seja, há, por decorrência do texto, uma regulação administrativa em sentido estrito, enquanto categoria ou espécie da função administrativa – regulação administrativa em sentido amplo? A resposta é afirmativa.223 A regulação não se limita à edição de normas abstratas, segundo o pensamento de Martins224, e, para explicar a complexidade dessa questão, enfatiza a diferença entre as funções legislativa e administrativa, fazendo-se necessário entender o significado da função normativa disposta no texto constitucional: Afirmou-se que, enquanto a função legislativa caracteriza-se precipuamente pela realização de ponderações no plano abstrato, a função administrativa caracteriza-se pela realização de ponderações no plano concreto. [...] nos termos do inciso IV do art. 84 da CF e do inciso I do art. 25 do ADCT, à Administração é permitido efetuar ponderações no plano abstrato apenas e tão somente para concretizar as ponderações legislativas e constitucionais. As ponderações abstratas da Administração são instrumentais das ponderações legislativas e constitucionais. Por isso, enfatiza-se a necessidade do qualificativo: legislar é efetuar ponderações autônomas no plano abstrato; administrar é efetuar ponderações no plano concreto e ponderações instrumentais ou não autônomas no plano abstrato. Feitos esses esclarecimentos, registra-se: função normativa, no texto constitucional vigente, diz respeito à edição de normas abstratas, à realização de ponderações no plano abstrato, sejam autônomas ou instrumentais. Pois bem: regulação no caput do art. 174 não tem o significado de “estabelecer normas abstratas”, pois esse é o significado de “agente normativo”. A palavra “regulação” é, assim, constitucionalmente ambígua: em diversos dispositivos é utilizada no sentido genérico de “estabelecer normas”, no caput do art. 174 é utilizada num sentido específico ou técnico. Regulação administrativa em sentido estrito, primeira conclusão, não consiste numa atividade normativa no sentido constitucional da palavra, quer dizer, na edição de normas abstratas, na realização de ponderações autônomas ou não autônomas no plano abstrato. Regular é, nesse dispositivo, para os fins constitucionais, efetuar ponderações no plano concreto.225 223 MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação Administrativa à luz da Constituição Federal. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 103 – 104. 224 MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação Administrativa à luz da Constituição Federal. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 106. 225 MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação Administrativa à luz da Constituição Federal. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 105 – 106. 83 Marques Neto, ao tratar do tema, aborda a regulação sob um viés econômico mais amplo, todavia não se limita a explicá-la pela correção das falhas de mercado226. Contextualiza o surgimento da atividade regulatória estatal diante das transformações ocorridas no Brasil que conduziram à “[...] separação entre o operador estatal e o ente encarregado da regulação do respectivo setor [...]”227 e à “[...] admissão do setor regulado da existência de operadores privados competindo com o operador público (introdução do conceito de competição em setores sujeitos à intervenção estatal direta) [...]”228. Logo no início da sua apresentação, é possível verificar a incompatibilidade da teoria de Marques Neto, sobre a regulação, com o pensamento de Martins, ora exposto. Aquele se concentra em explicar essa atividade a partir dos contrastes entre as atividades regulatória e regulamentar. Enquanto a regulamentação tem caráter normativo, a regulação deriva do artigo 174 da Constituição Federal, recaindo sobre atividades econômicas em sentido estrito e serviços públicos, e alcançando a fiscalização, o incentivo e o planejamento229. Em síntese, A atividade de regulação estatal [...] — funções muito mais amplas que a função regulamentar (consistente em disciplinar uma atividade mediante a emissão de comandos normativos, de caráter geral, ainda que com abrangência meramente setorial). A regulação estatal envolve [...] atividades coercitivas, adjudicatórias, de coordenação e organização, funções de fiscalização, sancionatórias, de conciliação (composição e arbitragem de interesses), bem como o exercício de poderes coercitivos e funções de subsidiar e recomendar a adoção de medidas de ordem geral pelo poder central. Sem essa completude de funções não estaremos diante do exercício de função regulatória.230 Existe uma certa aproximação entre os conceitos de regulamentação propostos por Marques Neto e Martins, na medida em que esse a define como "[...] edição de normas abstratas pelo chefe do Executivo para tornar possível a fiel execução das ponderações legislativas. Dessarte, a edição de regulamentos é atividade privativa do chefe do Executivo [...]”231. 226 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências Reguladoras Independentes: fundamentos e seu regime jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 35. 227 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências Reguladoras Independentes: fundamentos e seu regime jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 30. 228 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências Reguladoras Independentes: fundamentos e seu regime jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 30. 229 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências Reguladoras Independentes: fundamentos e seu regime jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 38 e 42. 230 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências Reguladoras Independentes: fundamentos e seu regime jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 37 – 38. 231 MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação Administrativa à luz da Constituição Federal. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 108. Segundo o autor: “O legislador efetua uma ponderação no plano abstrato e fixa um meio de concretização dos princípios constitucionais. A Administração deve, no plano concreto, atentar para a ponderação legislativa. Sem embargo, antes de cumprir a lei, deve efetuar também uma ponderação no plano abstrato, em antecipação ao caso concreto. Quer dizer: supondo-se que a lei será integralmente cumprida, fazem-se necessárias normas que tornem 84 Diante das definições apresentadas, é possível regular/regulamentar a internet, de modo que esse setor atenda tanto aos interesses da Constituição Econômica, como aos princípios da Administração Pública, e concilie os valores dos atores da sua governança em sua dimensão multissetorial? Qual o status atual da regulação da internet, e como apresentar essa dimensão sob o ponto de vista jurídico? Inicialmente, para que se possa refletir sobre tais questões, é necessário tecer alguns comentários sobre a Lei nº 9.472/1997, que diferencia a telecomunicação do serviço de valor adicionado. A compreensão dessa distinção é um passo inicial para visualizar o locus da internet no Direito Regulatório. Assim, Art. 60. Serviço de telecomunicações é o conjunto de atividades que possibilita a oferta de telecomunicação. § 1º Telecomunicação é a transmissão, emissão ou recepção, por fio, radioeletricidade, meios ópticos ou qualquer outro processo eletromagnético, de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza. [...] Art. 61. Serviço de valor adicionado é a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação, movimentação ou recuperação de informações. § 1º Serviço de valor adicionado não constitui serviço de telecomunicações, classificando-se seu provedor como usuário do serviço de telecomunicações que lhe dá suporte, com os direitos e deveres inerentes a essa condição. [...]232 Qual é a natureza da internet, então, de acordo com as definições apresentadas? Ao enfrentar a matéria, no julgamento do Habeas Corpus 127.978/PB, a Primeira Turma do STF deferiu a ordem, por unanimidade, nos termos do voto do relator (ministro Marco Aurélio), ao fixar o entendimento de que a oferta de internet constitui serviço de valor adicionado, e que a prática de transmitir clandestinamente sinal de internet por meio de radiofrequência (como no caso julgado) é atípica formalmente por não ser serviço de telecomunicação (artigo 61, § 1º, Lei nº 9.472/1997), não se podendo aplicar o artigo 183 da Lei nº 9.472/1997233 (“desenvolver clandestinamente atividades de telecomunicação: Pena — detenção de dois a quatro anos, possível o cumprimento da ponderação legislativa pela Administração. Essas normas, necessárias ao cumprimento da lei, são editadas pelo chefe do Executivo: são chamadas de regulamentos e sua edição é chamada de regulamentação. A ponderação efetuada pelo chefe do Executivo – perceba-se – também é abstrata, mas instrumental da ponderação legislativa. Todo regulamento no Direito Brasileiro é executivo. Logo, não se admitem regulamentos autônomos ou independentes e autorizados ou delegados.” (p. 108). 232 BRASIL. Agência Nacional de Telecomunicações. Lei nº 9.472, de 16 de julho de 1997. Dispõe sobre a organização dos serviços de telecomunicações, a criação e funcionamento de um órgão regulador e outros aspectos institucionais, nos termos da Emenda Constitucional nº 8, de 1995. Disponível em: https://www.anatel.gov.br/legislacao/leis/2-lei-9472#livroIIItituloIcapI. Acesso em: 11. jun. 2020. 233 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (1. Turma). Habeas Corpus 127.978/PB. Inteiro teor do acórdão. Relator: Min. Marco Aurélio, 24 out. 2017. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=14153364. Acesso em: 11 jun. 2020. 85 aumentada da metade se houver dano a terceiro, e multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais)”234). O parecer do Ministério Público Federal, por sua vez, esclareceu bem a diferença conceitual a partir dos dispositivos legais supracitados: À luz das disposições legais ora referidas, verifica-se que a conduta imputada ao paciente — retransmissão de sinal de internet via rádio a terceiros — configura prestação de “serviço de valor adicionado”, o qual é excluído expressamente da categoria de atividades de telecomunicação, não podendo, dessa forma, configurar o delito do art. 183 da referida lei. Isso porque a atividade por ele exercida mais se assemelha a um serviço de provedor de internet, destinado a viabilizar o acesso pelos usuários à rede mundial de computadores, não se confundindo com o próprio serviço de comunicação prestado pela empresa concessionária. [...] Desse modo, a atividade do paciente, ao se limitar a viabilizar o acesso da internet para terceiros, se enquadra como serviço de valor adicionado, razão por que o acórdão do TRF da 5ª Região deve ser restabelecido, ante a manifesta ausência de tipicidade penal.235 Apesar de, na atualidade, a internet estar associada a diversos serviços de telecomunicações, o que se intensifica com as inovações advindas da Internet das Coisas, ela não faz parte daquele setor, conforme se apreende da exegese da Lei nº 9.472/1997 e do entendimento jurisprudencial do STF. Logo, não é possível aplicar as normas vigentes do Direito Regulatório das Telecomunicações à internet, considerando-se que é um serviço de valor adicionado, e que possui peculiaridades que demandam regulação própria e um forte diálogo multissetorial. Quando se trata da governança de dados, a divergência entre os dois setores (internet x telecomunicações) se intensifica, pois um mesmo elemento pode estar presente nos meios físico e digital, apresentar características de ambos os setores, e exigir tratamento regulatório diverso em cada um deles, inclusive no que diz respeito à definição da autoridade regulatória competente, podendo ocasionar a emissão de normas antinômicas e, consequentemente, insegurança jurídica. A dificuldade que se tem para regular a internet deriva, entre outros fatores, da forma como ela foi introduzida no mercado brasileiro e da transformação do seu papel, de militar à 234 BRASIL. Agência Nacional de Telecomunicações. Lei nº 9.472, de 16 de julho de 1997. Dispõe sobre a organização dos serviços de telecomunicações, a criação e funcionamento de um órgão regulador e outros aspectos institucionais, nos termos da Emenda Constitucional nº 8, de 1995. Disponível em: https://www.anatel.gov.br/legislacao/leis/2-lei-9472#livroIIItituloIcapI. Acesso em: 11. jun. 2020. 235 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (1. Turma). Habeas Corpus 127.978/PB. Manifestação da PGR. Subprocuradora-Geral da República, 07 jul. 2015. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=307188924&ext=.pdf. Acesso em: 11 jun. 2020. 86 acadêmico236, e desse para comercial. Além disso, “o que a tecnologia tem de maravilhoso é que as pessoas acabam fazendo com ela algo diferente daquilo para que foram originalmente criadas. É essa fortuidade que subjaz à criatividade na sociedade e à inovação nos negócios”237. Desse modo, A internet é global, mas desde que chegou por aqui foi marcada pelo chamado “jeitinho brasileiro”. A rede, que já teve caráter militar, na década de 60, e acadêmico, nas décadas de 70 e de 80, conquistou o mundo na década de 90, quando surgiu a internet comercial. [...] As primeiras redes brasileiras se desenvolveram no meio acadêmico, mas não havia um protocolo que as unificasse, como veio a acontecer com a chegada do TCP/IP – conjunto de regras que permitiu a comunicação global. [...] A rede foi mais bem organizada em 1992, por conta da ECO-92, no Rio de Janeiro. Universidades e organizações montaram uma estrutura capaz de informar ao mundo o que ocorria no evento. Em 1995, surgiu a internet comercial. “No Brasil os pequenos provedores eram sufocados pela Embratel, que, apesar de não ter dado importância para a rede nos primeiros anos, tinha agora pretensões de monopolizar o serviço”, conta Antonio Tavares, presidente da Associação Brasileira dos Provedores de Acesso [...]. Foi a Portaria 004/95 do Ministério das Comunicações que permitiu a competição. Empresas de telefonia ficaram proibidas de fornecer o serviço ao usuário final, podendo fazê-lo apenas aos provedores. Foi criado também o Comitê Gestor da Internet no Brasil, que gerencia o registro.br.238 A Norma 004/95, do Ministério das Comunicações, aprovada pela Portaria nº 148, de 31 de maio de 1995, teve um papel fundamental na regulação da governança da internet no Brasil, ao estabelecer o fim do monopólio da EMBRATEL e definir a internet como serviço de valor adicionado, diferente dos serviços de telecomunicações239. As críticas a essa norma 236 “As origens da Internet podem ser encontradas na Arpanet, uma rede de computadores montada pela Advanced Research Projects Agency (ARPA) em setembro de 1969. A ARPA foi formada em 1958 pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos com a missão de mobilizar recursos de pesquisa, particularmente do mundo universitário, com o objetivo de alcançar superioridade tecnológica militar em relação à União Soviética na esteira do lançamento do primeiro Sputnik em 1957. A Arpanet não passava de um pequeno programa que surgiu de um dos departamentos da ARPA, o Information Processing Techniques Office (IPTO), fundado em 1962 com base numa unidade preexistente. O objetivo desse departamento, tal como definido por seu primeiro diretor, Joseph Licklider, um psicólogo transformado em cientista da computação no Massachusetts Institute of Technology (MIT), era estimular a pesquisa em computação interativa. Como parte desse esforço, a montagem da Arpanet foi justificada como uma maneira de permitir aos vários centros de computadores e grupos de pesquisa que trabalhavam para a agência compartilhar on-line tempo de computação.” (CASTELLS, Manuel. A Galáxia da Internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. E-book.) 237 CASTELLS, Manuel. A Galáxia da Internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. E-book. 238 NASCIDA na universidade, rede brasileira ganha as ruas. Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (nic.br), 25 maio 2005. Disponível em: https://nic.br/noticia/na-midia/nascida-na-universidade-rede- brasileira-ganha-as-ruas/. Acesso em: 06 nov. 2020. 239 CGI.BR: governança multissetorial e pluriparticipativa da internet no Brasil. Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (nic.br), 3 set. 2014. 1 vídeo (17:51 minutos). Publicado pelo canal NICbrvideos. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5CD6TPfIIYs&feature=emb_title. Acesso em: 06 nov. 2020. 87 decorrem do fato de ela estabelecer que “[...] quando a conexão é feita via linha telefônica fixa, é preciso contratar também os serviços de um provedor”240, enquanto “outras companhias que atuam nessa área, como as de TV a cabo e de telefonia celular, podem vender o acesso à internet sem provedor”241. Vide os principais conceitos da Norma 004/95: a) Internet: nome genérico que designa o conjunto de redes, os meios de transmissão e comutação, roteadores, equipamentos e protocolos necessários à comunicação entre computadores, bem como o “software” e os dados contidos nestes computadores; b) Serviço de Valor Adicionado: serviço que acrescenta a uma rede preexistente de um serviço de telecomunicações, meios ou recursos que criam novas utilidades específicas, ou novas atividades produtivas, relacionadas com o acesso, armazenamento, movimentação e recuperação de informações; c) Serviço de Conexão à Internet (SCI): nome genérico que designa Serviço de Valor Adicionado, que possibilita o acesso à Internet a Usuários e Provedores de Serviços de Informações; d) Provedor de Serviço de Conexão à Internet (PSCI): entidade que presta o Serviço de Conexão à Internet; e) Provedor de Serviço de Informações: entidade que possui informações de interesse e as dispõem na Internet, por meio do Serviço de Conexão à Internet; f) Usuário de Serviços de Informações: Usuário que utiliza, por intermédio do Serviço de Conexão à Internet, as informações dispostas pelos Provedores de Serviço de Informações; g) Usuário de Serviço de Conexão à Internet: nome genérico que designa Usuários e Provedores de Serviços de Informações que utilizam o Serviço de Conexão à Internet;242 240 GREGO, Maurício. Provedores de internet são inúteis, mas o governo quer salvá-los: o governo deve mudar a norma que obriga o consumidor a contratar um provedor para ter acesso à internet, mas quer salvar essas empresas da extinção. Exame, 17 ago. 2011. Disponível em: https://exame.com/tecnologia/provedores-de-internet-sao- inuteis-mas-o-governo-quer-salva-los/. Acesso em: 06 nov. 2020. 241 GREGO, Maurício. Provedores de internet são inúteis, mas o governo quer salvá-los: o governo deve mudar a norma que obriga o consumidor a contratar um provedor para ter acesso à internet, mas quer salvar essas empresas da extinção. Exame, 17 ago. 2011. Disponível em: https://exame.com/tecnologia/provedores-de-internet-sao- inuteis-mas-o-governo-quer-salva-los/. Acesso em: 06 nov. 2020. Segundo o autor, “Em outros países, uma pessoa precisa apenas contratar uma conexão para ter acesso à internet. No Brasil, porém, a norma 4 da Anatel, de 1995, estabelece que, quando a conexão é feita via linha telefônica fixa, é preciso contratar também os serviços de um provedor. Essa empresa faz a autenticação do usuário e estabelece a conexão do ponto de vista lógico. Obviamente, a própria operadora pode fazer isso, de modo que o provedor não é necessário tecnicamente. Um aspecto bizarro da norma 4/95 é que ela vale apenas para as operadoras de telefonia fixa. Outras companhias que atuam nessa área, como as de TV a cabo e de telefonia celular, podem vencer o acesso à internet sem provedor. Já entre companhias de telefonia, há ofertas que contornam a obrigatoriedade ao incluir um provedor ‘gratuito’ no pacote adquirido pelo usuário. Em algumas promoções, por exemplo, a Telefônica oferece o serviço do Terra como provedor para o Speedy; e a Oi inclui o iG como provedor gratuito para o Velox. A norma 4/95 talvez fizesse algum sentido 16 anos atrás, quando o acesso à internet era feito por conexões discadas. Se ela tivesse sido eliminada quando a banda larga começou a e espalhar, há cerca de uma década, os provedores teriam tido tempo de fazer uma transição suave para outros negócios. Como foram mantidos artificialmente vivos pela obrigatoriedade, o fim da norma 4 pode ser catastrófico para eles.”. 242 BRASIL. Ministério das Comunicações. Norma 004/95. Uso de meios da Rede Pública de Telecomunicações para acesso à internet. 1 jun. 1995. Disponível em: https://www.anatel.gov.br/legislacao/normas-do-mc/78- portaria-148. Acesso em: 06 nov. 2020. 88 No âmbito regulatório da LGPD, é importante destacar alguns pontos da atuação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais (ANPD), que será bastante parecida com a da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL); todavia, a regulação da internet (e do tratamento de dados pessoais em meio digital) não se encaixa suficientemente no mesmo patamar que os demais serviços de telecomunicação (rádio, televisão, telefone, etc.), como demonstrado pela exegese da Lei nº 9.472/1997 e pelo julgamento do Habeas Corpus 127.978/PB. A partir dessa dicotomia, faz-se importante apresentar duas abordagens: 1 Abordagem real às questões legais na qual a Internet é essencialmente tratada da mesma forma que outras tecnologias de telecomunicação, na extensa linha evolutiva dos sinais de fumaça até o telefone. Com uma comunicação mais rápida e abrangente, a Internet apresenta mudanças quantitativas, mas não qualitativas, na sociedade moderna. Consequentemente, quaisquer regras jurídicas existentes também podem ser aplicadas à Internet. 2 Abordagem ciber às questões legais, com base na premissa de que a Internet introduz novos tipos de relacionamentos sociais no ciberespaço. Consequentemente, existe a necessidade de formular novas leis cibernéticas para regular o referido ciberespaço. Um argumento para tal abordagem é de que a mera velocidade e volume da comunicação transnacional facilitada pela Internet prejudica o cumprimento das regras jurídicas existentes.243 Muitos dos problemas relacionados à discussão “real” x “ciber” são decorrentes da forma como a governança da internet foi incorporada nos tradicionais sistemas jurídicos vigentes, e da falta de efetiva comunicação entre os diferentes atores que fazem parte desse ecossistema em sua suposta estrutura multistakeholder. Além disso, as indefinições e a falta de consenso sobre a regulação (econômica? jurídica? administrativa? técnica?) acentuam as divergências sobre qual seria a melhor abordagem da internet a ser adotada. Há parlamentares, gestores públicos, juristas e juízes que tratam questões do universo computadorizado de forma estritamente jurídica, como se não houvesse aspectos técnicos relevantes e uma infraestrutura própria da governança da internet a ser considerada. A Norma 004/95 é um claro exemplo da importância de conhecer aspectos da infraestrutura da internet, e demonstra o quanto essas questões técnicas interferem na sua regulação jurídica e podem ocasionar problemas socioeconômicos. É impossível, assim, tentar regular a internet (seja de forma administrativa, econômica ou jurídica), independentemente do sistema econômico vigente, sem que se leve em consideração as peculiaridades do ecossistema digital, com princípios e fundamentos próprios. 243 KURBALIJA, Jovan. Uma introdução à governança da internet. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2016, p. 111. Disponível em: https://cgi.br/media/docs/publicacoes/1/CadernoCGIbr_Uma_Introducao_a_Governanca_da_Internet.pdf. Acesso em: 27 maio. 2020. 89 Por outro lado, a comunidade técnica e os órgãos técnicos regulatórios da rede, como a ICANN, por exemplo, em muitas ocasiões se isolam dos demais atores da Governança da Internet, pelo elevado grau de complexidade dos termos técnicos e das normas internas referentes à infraestrutura, dificultando, assim, o diálogo e um consenso entre as abordagens “real” e “ciber”, apesar das várias tentativas de integração multistakeholder, como ocorre no Fórum de Governança da Internet (Internet Governance Forum — IGF), “[...] evento anual realizado sob os auspícios da Organização das Nações Unidas (ONU) para o diálogo multissetorial sobre políticas públicas relacionadas à governança da Internet”244. Em consequência dessas disparidades, muitas políticas públicas, estratégias, decisões e leis já surgem inconsistentes, com vícios crassos decorrentes da falta de consonância entre as realidades técnica e jurídica. Termos técnicos são incorporados vulgarmente no mundo jurídico sem qualquer apreço por seu real significado, resultando em demandas judiciais que têm, por fim, uma resposta ativista, diante da incapacidade cognitiva e dialógica do Judiciário em captar o verdadeiro sentido das normas jurídicas referentes à governança da internet, as quais também são dotadas de erros graves decorrentes da falta de know-how do Legislativo. Ironicamente, inovações disruptivas surgem continuamente sem precedentes regulatórios no direito positivo. A Agenda de Túnis para a Sociedade da Informação recomendou aos atores da governança da internet, de modo geral, que adotassem medidas multissetoriais que garantissem a privacidade e a proteção de dados pessoais, com base na colaboração e na Declaração de Princípios de Genebra245. Em síntese, 46 Apelamos a todas as partes interessadas para que garantam o respeito à privacidade e à proteção de informações e dados pessoais, seja por meio da adoção de medidas legislativas e da implementação de estruturas de colaboração, seja mediante o intercâmbio entre empresas e usuários de melhores práticas, mecanismos de autorregulação e medidas tecnológicas. Encorajamos todos os grupos de interesse, os governos particularmente, a garantirem o direito das pessoas de acesso à informação de acordo com a Declaração de Princípios de Genebra e com outros instrumentos internacionais pertinentes acordados mutuamente, e a estabelecerem sua coordenação internacional, conforme o caso.246 244 COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL. Fórum de Governança da Internet: relatórios dos dez primeiros IGF. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2017, p. 16. Disponível em: https://www.cgi.br/media/docs/publicacoes/1/CadernoCGIbr_Forum_de_Governanca_da_Internet.pdf. Acesso em: 08 jun. 2020. 245 COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL. Documentos da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação: Genebra 2003 e Túnis 2005. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2014, p. 93. Disponível em: https://www.cgi.br/media/docs/publicacoes/1/CadernosCGIbr_DocumentosCMSI.pdf. Acesso em: 18 nov. 2020. 246 COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL. Documentos da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação: Genebra 2003 e Túnis 2005. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2014, p. 93. Disponível em: https://www.cgi.br/media/docs/publicacoes/1/CadernosCGIbr_DocumentosCMSI.pdf. Acesso em: 18 nov. 2020. 90 O papel regulatório da ANPD é uma questão que merece destaque porque estará sob sua proteção tanto os dados pessoais tratados em meios físicos como nos digitais (artigo 1º da LGPD — “esta lei dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais [...]”247), o que implica dizer que haverá uma intersecção entre as abordagens ciber e real ante a necessidade de adaptar as estruturas físicas às realidades digitais, inclusive na própria questão legislativa. Assim, nos termos da atual legislação, o controle e a sanção sobre o vazamento de dados pessoais de usuários de uma operadora telefônica, por exemplo, seria competência primária da ANPD, órgão público, e não da ANATEL, “[...] entidade integrante da Administração Pública Federal indireta, submetida a regime autárquico especial e vinculada ao Ministério das Comunicações, com a função de órgão regulador das telecomunicações [...]”248. Evidentemente, tal competência não excluiria a colaboração de outros órgãos e entidades como o Ministério Público, a Polícia Federal e a própria ANATEL. Não obstante, caberá exclusivamente à ANPD a aplicação das sanções previstas na LGPD, “[...] e suas competências prevalecerão, no que se refere à proteção de dados pessoais, sobre as competências correlatas de outras entidades ou órgãos da Administração Pública”249 (artigo 55-K, LGPD). Ainda no que se refere à intersecção entre as abordagens ciber e real, os questionamentos voltados para a distinção entre os serviços de telecomunicações e os de valor adicionado se intensificam quando se aborda o universo da internet das coisas (IoT), sobre o qual Existem fortes divergências em relação ao conceito de IoT, não havendo, portanto, um conceito único que possa ser considerado pacífico ou unânime. De maneira geral, pode ser entendido como um ambiente de objetos físicos interconectados com a internet por meio de sensores pequenos e embutidos, criando um ecossistema de computação onipresente (ubíqua), voltado para a facilitação do cotidiano das pessoas, introduzindo soluções funcionais nos processos do dia a dia. O que todas as definições de IoT têm em comum é que elas se concentram em como computadores, sensores e objetos interagem uns com os outros e processam informações/dados em um contexto de hiperconectividade.250 247 BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm. Acesso em: 22 jul. 2019. 248 BRASIL. Lei nº 9.472, de 16 de julho de 1997. Dispõe sobre a organização dos serviços de telecomunicações, a criação e funcionamento de um órgão regulador e outros aspectos institucionais, nos termos da Emenda Constitucional nº 8, de 1995. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9472.htm. Acesso em: 22 jul. 2019. 249 BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm. Acesso em: 22 jul. 2019. 250 MAGRANI, Eduardo. A internet das coisas. Rio de Janeiro: FGV, 2018, p. 20. 91 Essa “[...] relação entre as coisas (produtos, serviços, lugares etc.) e as pessoas que se torna possível por meio de diversas plataformas e tecnologias conectadas”251 — internet das coisas — varia desde assistentes virtuais, como o Amazon Echo Dot252, a eletrodomésticos inteligentes, como geladeiras smart com conexão Wi-Fi253; redes inteligentes de energia elétrica (smart grids)254; e, até mesmo, em aplicações do agronegócio255. Dispositivos ganham novas funções pelas TIC e por big data, e cada vez se torna mais difícil distinguir com precisão a natureza dos serviços ofertados e definir seus respectivos regimes jurídicos. Em 15 de junho de 2020, o WhatsApp anunciou que habilitaria uma nova funcionalidade no Brasil, denominada Facebook Pay, para possibilitar a realização de transações financeiras 251 SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. São Paulo: Edipro, 2016, p. 29. 252 “O Echo Dot é o assistente pessoal da Amazon capaz de controlar os dispositivos inteligentes da casa, realizar ligações, chamar um Uber, pedir pizza, entre outras opções. Tudo isso graças à Alexa, que recebe o comando de voz do dono e está programada para entender o contexto.” (CARDOSO, Pedro. Tudo sobre Amazon Echo Dot: veja se funciona no Brasil e ficha técnica. TechTudo, maio 2018. Disponível em: https://www.techtudo.com.br/noticias/2018/05/tudo-sobre-amazon-echo-dot-veja-se-funciona-no-brasil-e-ficha- tecnica.ghtml. Acesso em: 05 jul. 2020.) 253 “As geladeiras inteligentes InstaView ThinQ, da LG e a Family Hub, da Samsung, ganharam novas gerações mais poderosas na CES 2020. Os lançamentos contam com câmeras internas equipadas com inteligência artificial, que monitoram os alimentos guardados, registram o consumo e avisam ao usuário se a comida ou bebida estão chegando ao fim. Os sistemas avançados também sugerem refeições baseadas nos ingredientes disponíveis no interior do refrigerado [sic]. Além disso, os aparelhos permitem que o usuário busque receitas e assista ao conteúdo de vídeo em uma tela integrada, instalada na porta da geladeira. Os refrigeradores serão comercializados ainda em 2020, mas as datas específicas e os preços ainda não foram divulgados.” (ALVES, Paulo. Geladeira smart que avisa quando comida está acabando é destaque na CES 2020. TechTudo, jan. 2020. Disponível em: https://www.techtudo.com.br/noticias/2020/01/geladeira-smart-que-avisa-quando-comida-esta-acabando-e- destaque-na-ces-2020-ces2020.ghtml. Acesso em: 05 jul. 2020.) 254 “Um dos primeiros sinais do avanço da Internet das coisas no Brasil é a adoção gradual das smart grids (redes inteligentes de energia elétrica). Estudo da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) estima um investimento de R$ 3 bilhões no segmento em 2013 e 2014. Um exemplo é o da CPFL Energia, que vem instalando 25 mil medidores em usuários de redes de alta tensão e equipando parte expressiva da frota operacional com sistemas de geolocalização e tablets. ‘Essa telemedição e a melhor gestão das equipes móveis permitem que tenhamos um acompanhamento em tempo real das nossas operações. Ao ganharmos tempo em deslocamento, temos mais produtividade’, analisa o diretor de engenharia da CPFL Energia, Paulo Ricardo Bombassaro. Com as redes inteligentes, as falhas são detectadas automaticamente, reduzindo o tempo de resposta, o que diminui o tempo sem energia ao cliente. As redes automaticamente também ajudam a empresa em zonas urbanas altamente povoadas. Como se sabe onde está o problema, pode-se traçar a melhor rota para as viaturas de manutenção, reduzindo perdas de tempo em congestionamentos.” (ROCKMANN, Roberto. Conexões por toda parte: a Internet das coisas promete revolucionar setores como saúde, energia e transportes. Revista .br. Comitê Gestor da Internet no Brasil, edição 07, ano 05, 24 out. 2014, p. 17. Disponível em: https://www.cgi.br/publicacao/revista-br-ano-05-2014-edicao-07/. Acesso em: 05 jul. 2020.) 255 “Imagine a seguinte situação: uma fazenda precisa monitorar todo tipo de operação, desde a porteira que abriu até se seus animais estão saudáveis ou mesmo se o solo está propício para o plantio. Como monitorar clima, umidade da terra e se ali, naquele local específico, o plantio será bem-sucedido? E quanto ao transporte de sementes: será que elas estão devidamente armazenadas para que, ao se deslocar do campo para a cidade, não sofram grandes perdas por conta de mudanças drásticas na temperatura em que foram acondicionadas? São diversas variáveis em uma fazenda com seus muitos hectares. Como, então, gerir um ambiente tão aberto e complexo? A resposta é a Internet das Coisas.” (VICENTIN, Tissiane. O campo conectado: a Internet das Coisas pode mudar completamente a maneira como trabalham os produtores rurais. Revista.br. Comitê Gestor da Internet no Brasil, edição 15, ano 10, 01 mar. 2019, p. 7. Disponível em: https://www.cgi.br/media/docs/publicacoes/3/revistabr-ano-10-2019-edicao15.pdf. Acesso em: 05 jul. 2020.) 92 no aplicativo (envio e recebimento de dinheiro por cartão de crédito ou débito, e pagamento de produtos e serviços)256. É inevitável não se intimidar diante dessa inovação, pois se tem um serviço de telecomunicações (envio de mensagens de texto em tempo real e ligações telefônicas) que, necessariamente, demanda o fornecimento de internet (valor adicionado) para funcionar e, a partir de agora, ingressa no setor financeiro como provedor de serviços, à semelhança dos bancos. São inúmeras as implicações jurídicas que esse fenômeno provoca, não apenas à luz do Direito Regulatório, mas sob o Direito Financeiro, Tributário, Bancário, das Relações de Consumo e, principalmente, do Direito Digital (da proteção de dados). A justificativa para a escolha do Brasil como pioneiro na iniciativa se deu pela popularidade do aplicativo no país (120 milhões de usuários em 2017) e o apoio ao desenvolvimento econômico através dos pagamentos digitais257. Além do número de telefone, o usuário deverá informar ao WhatsApp outros dados pessoais, como seu nome, CPF, cartão emitido por um banco parceiro, e concordar com os termos de uso258. Não se pode esquecer que a empresa foi adquirida pelo Facebook, em fevereiro de 2014, por 19 bilhões de dólares259. O Facebook, por sua vez, está envolvido em vários escândalos graves sobre violações à privacidade e aos dados pessoais dos usuários, sendo condenado a pagar, em 2019, uma multa de 5 bilhões de dólares à Federal Trade Commission (FTC) por vazar dados de mais de 87 milhões de usuários à Cambridge Analytica260. O escândalo da Cambridge Analytica foi tão grande que ultrapassou a esfera privada, concentrada nas discussões sobre a intimidade e a privacidade dos usuários da rede, e atingiu a esfera pública, na medida em que os vazamentos de dados foram cruciais para o lançamento de 256 WHATSAPP vai permitir enviar e receber dinheiro pelo aplicativo; Brasil será primeiro país com a novidade. G1, 15 jun. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2020/06/15/whatsapp-vai- permitir-enviar-e-receber-dinheiro-pelo-aplicativo-brasil-sera-primeiro-pais-com-a-novidade.ghtml. Acesso em: 05 jul. 2020. 257 WHATSAPP vai permitir enviar e receber dinheiro pelo aplicativo; Brasil será primeiro país com a novidade. G1, 15 jun. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2020/06/15/whatsapp-vai- permitir-enviar-e-receber-dinheiro-pelo-aplicativo-brasil-sera-primeiro-pais-com-a-novidade.ghtml. Acesso em: 05 jul. 2020. 258 WHATSAPP vai permitir enviar e receber dinheiro pelo aplicativo; Brasil será primeiro país com a novidade. G1, 15 jun. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2020/06/15/whatsapp-vai- permitir-enviar-e-receber-dinheiro-pelo-aplicativo-brasil-sera-primeiro-pais-com-a-novidade.ghtml. Acesso em: 05 jul. 2020. 259 RUSHE, Dominic. WhatsApp: Facebook acquires messaging service in $19bn deal. Massive purchase is Facebook’s largest ever and comes after Google reportedly made $1bn offer for the company last year. The Guardian, Nova York, 20 fev. 2014. Disponível em: https://www.theguardian.com/technology/2014/feb/19/facebook-buys-whatsapp-16bn-deal. Acesso em: 05 jul. 2020. 260 FUNG, Brian. Facebook will pay an unprecedented $5 billion penalty over privacy breaches. CNN Business, Atlanta, 25 jul. 2019. Disponível em: https://edition.cnn.com/2019/07/24/tech/facebook-ftc- settlement/index.html. Acesso em: 05 jul. 2020. 93 estratégias de publicidade eleitoral direcionada, determinantes na eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos da América, em 2016. Vide os infográficos: Infográfico 2 — O escândalo Cambridge Analytica Fonte: Mauro.261 261 MAURO, Alexandre. Relembre como foi o escândalo envolvendo Cambridge Analytica e o Facebook. Infográfico elaborado em 20 dez. 2018. 1 infográfico. In: FACEBOOK pagará multa recorde de US$ 5 bilhões por violação de privacidade. G1, [s. l.], 24 jul. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2019/07/24/facebook-pagara-multa-de-us-5-bilhoes-por- violacao-de-privacidade.ghtml. Acesso em: 05 jul. 2020. 94 Infográfico 3 — Atores envolvidos no escândalo da Cambridge Analytica Fonte: Cadwalladr; Graham-Harrison.262 A implantação do sistema de transações financeiras mencionado, sob controle de uma empresa bilionária envolvida em graves escândalos a nível global de violação e vazamento de dados pessoais, se torna bastante oportuna em um país cuja atuação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados é inexistente no mundo fático e não havia, até pouco tempo, segurança jurídica de quando a Lei Geral de Dados (Lei nº 13.709/2018), promulgada em 2018, entraria em vigor. Quem garantirá a adoção de boas práticas e de governança; a observância de princípios, como a finalidade, a segurança, a prevenção, a responsabilização e prestação de contas; e a efetiva fiscalização e aplicação de sanções nas operações de tratamento? 262 CADWALLADR, Carole; GRAHAM-HARRISON, Emma. Revealed: 50 million Facebook profiles harvested for Cambridge Analytica in major data breach. The Guardian, 17 mar. 2018. Disponível em: https://www.theguardian.com/news/2018/mar/17/cambridge-analytica-facebook-influence-us-election. Acesso em: 07 nov. 2020. 95 3.2 A ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DAS AGÊNCIAS REGULADORAS Quando se aborda a organização da Administração Pública, uma das primeiras questões comumente trazidas pela doutrina são as diferenças conceituais entre a descentralização e a desconcentração. Di Pietro define a primeira como “[...] a distribuição de competências de uma para outra pessoa, física ou jurídica”263. A segunda consistiria em uma “[...] distribuição interna de competências, ou seja, uma distribuição de competências dentro da mesma pessoa jurídica”264. Enquanto a “[...] desconcentração é uma técnica administrativa de simplificação e aceleração do serviço dentro da mesma entidade”265, segundo Meirelles, a descentralização “[...] é uma técnica de especialização, consistente na retirada do serviço dentro de uma entidade e transferência a outra para que o execute com mais perfeição e autonomia”266. A apresentação dessa sistematização auxiliará na compreensão dos contrastes e limites de atuação dos órgãos e entidades, segundo a legislação vigente, a partir das ideias perpassadas pelos fenômenos da independência e autonomia administrativas. Segundo a definição de Bandeira de Mello, a descentralização ocorre quando há o exercício da atividade administrativa por pessoa distinta do Estado; a centralização, por sua vez, significa que a atividade é exercida diretamente pelo próprio Estado através dos seus órgãos267. Há, ainda, o fenômeno da desconcentração, que representa a “[...] distribuição interna de plexos de competências decisórias, agrupadas em unidades individualizadas [...]”268. Em relação ao primeiro e ao último conceito, importante é a diferenciação doutrinária apresentada por Aragão: A desconcentração significa, simplesmente, uma divisão de competências entre órgãos integrantes de uma mesma pessoa jurídica. É método de organização que distribui competências e atribuições de um órgão central para órgãos periféricos de escalões inferiores. Costuma-se citar a desconcentração apenas em relação à Administração Direta [...], mas o fenômeno também existe internamente em cada pessoa jurídica da Administração Indireta. [...] Já a descentralização não trata de mera criação de órgãos dentro da mesma pessoa jurídica. A atividade administrativa descentralizada é exercida por pessoa jurídica diversa do ente político central – União, estados, Distrito Federal ou municípios –, que seria originariamente competente para exercê-la. O ente central, ao qual a CF 263 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. E-book. 264 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. E-book. 265 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 439. 266 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 439. 267 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 153 – 154. 268 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 154. 96 atribuiu a competência, vale-se de uma entidade distinta, dotada de personalidade jurídica própria, para exercê-la.269 À vista disso e do que já foi apresentado sobre o Estado regulador na seção anterior, “[...] a introdução de uma nova forma de intervenção do Estado sobre a ordem econômica e a noção de moderna regulação econômica [...] demandam também o surgimento de instrumentos aptos para o exercício regulatório”270. Um exemplo desses instrumentos são as agências reguladoras, que, segundo Moura e Silveira Neto, ponderam e harmonizam a contraposição de interesses dos seus regulados, ou seja, do Estado, dos agentes econômicos e dos cidadãos271. Não obstante, frisa-se “[...] que não necessariamente os entes incumbidos de regulação carecem de se constituir na configuração jurídica de agências [...], por exemplo, o primeiro órgão de regulação setorial criado foi o Banco Central do Brasil [...]”272. Na descentralização por serviços, o Estado “[...] cria uma pessoa jurídica de direito público ou privado e a ela atribui a titularidade e a execução de determinado serviço público”273. É assim que surgem as autarquias, fundações governamentais, sociedades de economia mista e empresas públicas que exerçam serviços públicos, e os consórcios públicos274. Além de deter a titularidade e a execução do serviço, reconhece-se a personalidade jurídica do ente descentralizado, com sua capacidade de autoadministração; patrimônio próprio; capacidade específica, que o sujeita ao princípio da especialidade e o impede de cometer desvios de finalidade; e sujeição a controle ou tutela pelo ente instituidor275. Na descentralização por colaboração, tem-se um “[...] contrato ou ato unilateral, pelo qual se atribui a uma pessoa de direito privado a execução de serviço público, conservando o Poder Público a sua titularidade”276. É o que ocorre com as concessões, permissões e autorizações de serviços públicos executados por pessoas jurídicas constituídas de capital exclusivamente privado; e com a delegação da execução desses serviços a empresas sob 269 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de Direito Administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 238 – 239. 270 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências Reguladoras Independentes: fundamentos e seu regime jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 43. 271 MOURA, Kate de Oliveira; SILVEIRA NETO, Otacílio dos Santos. A superação da tensão existente entre as agências reguladoras brasileiras e o regime democrático. Revista Digital Constituição e Garantia de Direitos, v. 9, n. 2, 19 jun. 2017, p. 330. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/constituicaoegarantiadedireitos/article/view/12326/8525. Acesso em: 15 dez. 2020. 272 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências Reguladoras Independentes: fundamentos e seu regime jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 51. 273 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. E-book. 274 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. E-book. 275 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. E-book. 276 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. E-book. 97 controle acionário do Poder Público (distintas das empresas públicas e sociedades de economia mista)277. Meirelles opta por tratar a descentralização sob o viés da outorga e da delegação. Na outorga, “[...] o Estado cria uma entidade e a ela transfere, por lei, determinado serviço público ou de utilidade pública”278 — é equivalente ao conceito de descentralização por serviços. Na delegação, há a transferência, por contrato (concessão ou consórcio público) ou ato unilateral (permissão ou autorização), da “[...] execução do serviço, para que o delegado o preste ao público em seu nome e por sua conta e risco, nas condições regulamentares e sob controle estatal”279 — equivale à descentralização por colaboração. A Constituição Federal prevê no artigo 37, inciso XIX, a criação de autarquias por leis específicas280. Sendo pessoas jurídicas de direito público e integrantes da Administração Indireta, decorrem do processo de descentralização administrativa por serviço (detêm a titularidade e a execução) e dispõem de capacidade específica para prestar os serviços para os quais foram criadas, sob controle ou tutela exercida nos limites da lei281. No âmago da descentralização por serviços, as autarquias têm direitos e obrigações perante as pessoas jurídicas públicas políticas que as instituíram, pois suas “[...] funções seriam do Estado, mas este preferiu descentralizá-las a entidades às quais atribuiu personalidade jurídica, patrimônio próprio e capacidade administrativa [...]”282. Já “perante os particulares, a autarquia aparece como se fosse a própria Administração Pública, ou seja, com todas as prerrogativas e restrições que informam o regime jurídico-administrativo”283. Personifica-se, pela descentralização, um serviço público típico (não se incluindo atividades industriais e econômicas) da Administração centralizada em forma de autarquia, para que essa exerça uma função pública própria que fora outorgada pelo Estado284. Meirelles observa que as autarquias “são entes autônomos, mas não são autonomias”285, pois a autonomia legisla para si e está livre de controle (e.g., Municípios); já a autarquia apenas 277 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. E-book. 278 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 438. 279 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 438. 280 Artigo 37, inciso XIX, Constituição Federal: Somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso, definir as áreas de sua atuação. (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 03 jul. 2019.) 281 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. E-book. 282 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. E-book. 283 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. E-book. 284 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 441. 285 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 439. 98 administra a si própria e sofre controle da entidade estatal a que pertence286. Entre essas duas há uma mera vinculação, sendo inexistente qualquer forma de subordinação hierárquica287: as autarquias “[...] não são subordinadas a órgão algum do Estado, mas apenas controladas [...]”288. Uma das vantagens da inexistência dessa subordinação é a convicção de que a autarquia poderá atuar livre de interesses tão-somente políticos e terá um grau de independência suficiente para atingir o verdadeiro interesse público. Evidentemente, é inescusável que haja o contínuo controle nos limites da lei, o qual mede o comprometimento da entidade e dos seus agentes com as normas vigentes e com a finalidade administrativa. Quando se trata do fenômeno da descentralização, “[...] a relação entre a entidade central e as entidades descentralizadas não é de hierarquia como acontece na desconcentração. [...] há, outrossim, uma relação de tutela ou de controle [...]”289. Nesse sentido, delimita-se o controle das autarquias como “[...] o poder que assiste à Administração Central de influir sobre elas com o propósito de conformá-las ao cumprimento dos objetivos públicos em vista dos quais foram criadas, harmonizando-as com a atuação administrativa global do Estado”290. Em síntese, o controle é uma forma de a Administração salvaguardar o estrito cumprimento do dever legal e da finalidade administrativa pelos entes encarregados de executar as funções delegadas ou outorgadas, garantindo a persecução do interesse público, da legalidade e da eficiência administrativa, bem como de todos os demais princípios norteadores da Administração Pública. Existem autarquias que são dotadas de regime especial, em decorrência de certas características e privilégios atribuídos pela lei instituidora. É o caso das agências reguladoras, cuja gestão é regulada pelas Leis nº 9.986/2000 e nº 13.848/2019. As autarquias de regime especial têm mais regalias, privilégios e maior autonomia em relação às autarquias comuns, observadas as restrições constitucionais291. Bandeira de Mello, por sua vez, aponta que o único elemento que realmente diferencia as agências reguladoras das autarquias comuns é a investidura e fixidez do mandato dos seus dirigentes, considerando que a independência administrativa, a autonomia administrativa e suas derivações são comuns a toda e qualquer 286 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 439. 287 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 441. 288 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 165. 289 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de Direito Administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 239. 290 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 166. 291 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 448 – 449. 99 autarquia292. Consequentemente, “[...] não há peculiaridade alguma; o que pode ocorrer é um grau mais ou menos intenso destes caracteres”293. A ampliação da autonomia das agências reguladoras é possibilitada, em tese, pela estabilidade dos seus dirigentes, cujos mandatos têm prazo fixo — artigo 6º, Lei nº 9.986/2000, os quais só serão perdidos em caso de renúncia, condenação judicial transitada em julgado ou processo administrativo disciplinar294 (artigo 9º da Lei nº 9.986/2000). Ressalta-se que seu presidente, ou o diretor-geral, ou o diretor-presidente e os membros do Conselho Diretor são escolhidos e nomeados pelo presidente da República após aprovação pelo Senado Federal entre brasileiros de reputação ilibada, formação universitária e elevado conceito no campo de especialidade dos cargos para os quais serão nomeados295 (artigo 5º da Lei nº 9.986/2000). A estabilidade do mandato dos dirigentes e a impossibilidade de livre exoneração sem que haja uma das hipóteses previstas no artigo 9º da Lei nº 9.986/2000 são as garantias que a agência tem para atuar, supostamente, livre de retaliações por parte da autoridade máxima da Administração Central. Sua autonomia reforçada “[...] se traduz em organização colegiada, impossibilidade de exoneração dos seus dirigentes ad nutum, independência decisória, além da especialidade técnica para o campo de atuação”296. Assim, “essa estabilidade garante que as referidas decisões sejam tomadas sem que por trás delas haja algum supedâneo político- eleitoral, com a submissão da agência aos interesses de quem nomeia seus dirigentes”297. Em 25 de junho de 2019, foi sancionada com vetos a Lei nº 13.848/2019 (“Lei das Agências Reguladoras), oriunda do Projeto de Lei do Senado nº 52/2013, que, conforme seu artigo 1º, “[...] dispõe sobre a gestão, a organização, o processo decisório e o controle social das agências reguladoras [...]”298. Destaca-se a ênfase que esse diploma normativo deu aos 292 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 178. 293 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 178. 294 BRASIL. Lei nº 9.986, de 18 de julho de 2000. Dispõe sobre a gestão de recursos humanos das Agências Reguladoras e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9986.htm. Acesso em: 06 jul. 2019. 295 BRASIL. Lei nº 9.986, de 18 de julho de 2000. Dispõe sobre a gestão de recursos humanos das Agências Reguladoras e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9986.htm. Acesso em: 06 jul. 2019. 296 ANDRADE, Marília Carla Gomes de. A autonomia das agências reguladoras brasileiras: uma análise da possível captura desses entes pelo poder político. 2012. Dissertação de Mestrado – Centro de Ciências Jurídicas / Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, p. 62. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/10527. Acesso em: 25 jul. 2019. 297 ALBUQUERQUE, Romero Paes Barreto de. Controle jurisdicional das agências reguladoras: a atividade normativa das agências reguladoras e seu controle pelo Poder Judiciário. 2016. Dissertação de Mestrado – Centro de Ciências Jurídicas / Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, p. 52. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/24723. Acesso em: 30 jul. 2019. 298 BRASIL. Lei nº 13.848, de 25 de junho de 2019. Brasília, 25 jun. 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13848.htm. Acesso em: 24 jan. 2021. 100 mecanismos de controle; ao fortalecimento da autonomia administrativa às agências; e à implementação do compliance e da governança aplicados ao setor público. A natureza especial daqueles entes é caracterizada no artigo 3º, baseando-se em: a) ausência de tutela ou de subordinação hierárquica; b) autonomia funcional, decisória, administrativa e financeira; c) investidura a termo de seus dirigentes e estabilidade durante os mandatos; e d) demais disposições legais299. O Substitutivo da Câmara dos Deputados nº 10/2018, ao Projeto de Lei do Senado nº 52/2013, previa alterações significativas na Lei nº 9.986/2000, cujo artigo 5º passaria a vigorar com as seguintes alterações, conforme o artigo 42 daquele Projeto: § 1º A escolha, pelo Presidente da República, de Conselheiros, Diretores, Presidentes, Diretores-Presidentes e Diretores-Gerais de agências reguladoras, a serem submetidos à aprovação do Senado Federal, será precedida de processo público de pré-seleção de lista tríplice a ser formulada em até 120 (cento e vinte) dias antes da vacância do cargo decorrente de término de mandato, ou em até 60 (sessenta) dias depois da vacância do cargo nos demais casos, por comissão de seleção, cuja composição e procedimentos serão estabelecidos em regulamento. § 2º O processo de pré-seleção será amplamente divulgado em todas as suas fases e será baseado em análise de currículo do candidato interessado que atender a chamamento público e em entrevista com o candidato pré-selecionado. § 3º O Presidente da República fará a indicação prevista no caput em até 60 (sessenta) dias após o recebimento da lista tríplice referida no § 1º. § 4º Caso a comissão de seleção não formule a lista tríplice nos prazos previstos no § 1º, o Presidente da República poderá indicar, em até 60 (sessenta) dias, pessoa que cumpra os requisitos indicados no caput. [...] § 6º Caso o Senado Federal rejeite o nome indicado, o Presidente da República fará nova indicação em até 60 (sessenta) dias, independentemente da formulação da lista tríplice prevista no § 1º. [...]300 O processo público de pré-seleção de lista tríplice representava um passo importante no combate à captura das agências reguladoras. Logicamente, não seria suficiente para pôr fim a todas as ingerências políticas negativas sobre os entes, mas auxiliaria a reprimir e prevenir essa prática. A Presidência da República vetou os parágrafos supracitados301, com a justificativa de 299 BRASIL. Lei nº 13.848, de 25 de junho de 2019. Brasília, 25 jun. 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13848.htm. Acesso em: 24 jan. 2021. 300 BRASIL. Câmara dos Deputados. Substitutivo da Câmara dos Deputados nº 10, de 2018, ao Projeto de Lei do Senado nº 52, de 2013. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg- getter/documento?dm=7962868&ts=1594009406727&disposition=inline. Acesso em: 24 jan. 2021. 301 “No último sábado (22), o presidente da República havia criticado a proposta, afirmando que os parlamentares querem transformá-lo em uma ‘rainha da Inglaterra’, referindo-se ao fato de que a soberana do país europeu não é a chefe de governo. [...] ‘A decisão, até o momento, para indicar os presidentes de agências, é minha. A partir deste projeto, uma lista tríplice feita por eles [parlamentares]. Então, essa parte (a criação de uma lista tríplice) será vetada de hoje para amanhã. É um projeto que tramitou em comissões, teve parecer terminativo em comissões, não passou pelo 101 que tal procedimento seria inconstitucional, ao violar a separação dos poderes e “[...] excluir a atuação do chefe do Poder Executivo na iniciativa de livre indicação dos dirigentes das agências reguladoras, subvertendo a própria natureza de autarquia especial [...]”302. O presidente Jair Bolsonaro justificou em uma entrevista que vetaria a proposta devido à importância de o presidente da República indicar tais dirigentes e, em decorrência disso, ter algum poder de influência sobre as entidades303. Moura e Silveira Neto destacam que a legitimação democrática das agências reguladoras não se limita à observação dos processos eletivos de nomeação dos seus dirigentes, sendo necessário verificar a congregação de outros valores democráticos com a consecução das finalidades públicas304: Ante o exposto, nota-se que a legitimação democrática pode ser auferida sob diversas nuances, não se limitando exclusivamente ao processo eletivo. Nesse sentido, não se poderia afirmar a existência de ‘déficit democrático’ nas agências reguladoras simplesmente em face da nomeação dos seus dirigentes, não observando que tais entes administrativos podem, ainda assim, congregar diversos valores democráticos, com a consecução das finalidades públicas, a neutralização de decisões majoritárias antidemocráticas, a concretização de valores e direitos fundamentais e, inclusive, dando espaço à participação popular no processo decisório de tais entes. No entanto, resta insuficiente a mera existência formal das agências reguladoras para assegurar a ampliação de preceitos democráticos. Para tal intento, deve a estrutura organizacional das agências reguladoras estarem voltadas para o florescimento e a maturidade democrática, caso contrário, sua legitimação continuará deficitária. Nesse ínterim, somente poderá afirmar a falta de legitimidade de tais entes administrativos quando o exercício de suas funções acarretar o aprofundamento das deficiências democráticas ou, simplesmente, fugir ao cumprimento das finalidades para a qual foram criadas.305 É evidente que os elementos normativos que constituem a autonomia reforçada das agências reguladoras não garantem, por si, total imunidade a algum tipo de desvio de finalidade plenário. As agências têm um poder muito grande e essa prerrogativa de o presidente indicar os presidentes é muito importante, porque teremos algum poder de influência nestas agências’, declarou o presidente nesta segunda-feira [...].” (MAZUI, Guilherme; GARCIA, Gustavo. Bolsonaro anuncia que vetará proposta de lista tríplice para diretoria de agências reguladoras. G1, Brasília, 24 jun. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/06/24/bolsonaro-anuncia-que-vetara-proposta-de-lista-triplice-para- diretoria-de-agencias-reguladoras.ghtml. Acesso em: 24 jan. 2021.) 302 BRASIL. Presidência da República. Mensagem nº 266, de 25 de junho de 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Msg/VEP/VEP-266.htm. Acesso em: 24 jan. 2021. 303 MAZUI, Guilherme; GARCIA, Gustavo. Bolsonaro anuncia que vetará proposta de lista tríplice para diretoria de agências reguladoras. G1, Brasília, 24 jun. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/06/24/bolsonaro-anuncia-que-vetara-proposta-de-lista-triplice-para- diretoria-de-agencias-reguladoras.ghtml. Acesso em: 24 jan. 2021. 304 MOURA, Kate de Oliveira; SILVEIRA NETO, Otacílio dos Santos. A superação da tensão existente entre as agências reguladoras brasileiras e o regime democrático. Revista Digital Constituição e Garantia de Direitos, v. 9, n. 2, 19 jun. 2017, p. 342. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/constituicaoegarantiadedireitos/article/view/12326/8525. Acesso em: 15 dez. 2020. 305 MOURA, Kate de Oliveira; SILVEIRA NETO, Otacílio dos Santos. A superação da tensão existente entre as agências reguladoras brasileiras e o regime democrático. Revista Digital Constituição e Garantia de Direitos, v. 9, n. 2, 19 jun. 2017, p. 342 – 343. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/constituicaoegarantiadedireitos/article/view/12326/8525. Acesso em: 15 dez. 2020. 102 por parte dos seus agentes. Ainda que haja transparência, accountability, gestão de risco, auditorias, controle social e um efetivo programa de compliance, a agência nunca estará completamente blindada contra atos ímprobos e de corrupção em sentido amplo. Essa é uma das razões pelas quais são importantes a valorização do sistema de unidade de jurisdição e o fortalecimento de mecanismos de acesso à Justiça, com a possibilidade de questionamento de quaisquer atos administrativos perante o Judiciário. Não se espera utopicamente que a solução para todos os problemas de corrupção esteja nesse Poder, mas é admirável que ele seja uma alternativa de controle, prevenção e repressão a tais atos quando as medidas da própria Administração não forem suficientes. Importante característica das agências, que ganhou destaque na Lei nº 13.848/2019 através do incentivo à governança e ao compliance, é a permeabilidade à sociedade306. Essa permeabilidade se dá, conforme Marques Neto, com ações que proporcionem a efetiva participação dos atores sociais pelo “[...] diálogo permanente, transparente e aberto do regulador com os agentes sujeitos à regulação”307, e pela “[...] abertura de canais institucionais com os administrados, [...] a promoção de espaços de interlocução com entidades que buscam representar os cidadãos [...], até o incentivo à criação de associações de usuários [...]”308. A Lei nº 13.848/2019 possibilita essa relação aberta entre reguladores e regulados, na medida em que prevê ações concretas voltadas para o controle externo e o controle social. Assim, dispõe o artigo 14 que “o controle externo das agências reguladoras será exercido pelo Congresso Nacional, com auxílio do Tribunal de Contas da União”309, o que já era previsto nos artigos 70 e 71 da Constituição Federal. A Lei nº 13.848/2019 determina à agencia reguladora, no artigo 15, a elaboração de um relatório anual circunstanciado de suas atividades, em que 306 “A permeabilidade da atuação do órgão regulador irá se traduzir em vários mecanismos que tentaremos brevemente sumariar. Ela envolve i) mecanismos de participação nas atividades dos órgãos (consultas públicas, audiências, sessões de deliberação abertas, forte incentivo ao contraditório nas decisões); ii) a institucionalização de organismos de representação da sociedade no cumprimento das funções do regulador (conselhos consultivos, por exemplo); iii) a institucionalização dos espaços de interlocução entre regulador e regulado (mesas de negociação, comitês técnicos, etc.); iv) na disponibilidade aos interessados do acervo de informações amealhado pelo regulador, com facilitação de acesso e possibilidade de cruzamento com outros bancos de dados; v) a instituição de agentes de promoção da permeabilidade e abertura do órgão como as ouvidorias ou os conselhos de representantes dos operadores ou usuários; vi) a formatação de convênios com órgãos governamentais ou não governamentais que permitam o intercâmbio de experiências, demandas e informações relevantes para o setor regulado; vii) a difusão e incentivo da criação, na sociedade, de agrupamentos voltados a participar da atividade regulatória (conselhos de usuários, comitês de acompanhamento dos regulados, etc.).” (MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências Reguladoras Independentes: fundamentos e seu regime jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 65 – 66.) 307 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências Reguladoras Independentes: fundamentos e seu regime jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 64. 308 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências Reguladoras Independentes: fundamentos e seu regime jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 64 – 65. 309 BRASIL. Lei nº 13.848, de 25 de junho de 2019. Brasília, 25 jun. 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13848.htm. Acesso em: 24 jan. 2021. 103 deverá destacar o cumprimento da política do setor e de planos estratégicos e de gestão310. Um dos objetivos desses planos é “aperfeiçoar o acompanhamento das ações da agência reguladora, inclusive de sua gestão, promovendo maior transparência e controle social”311. Harada define o dispositivo do artigo 74, § 2º, da Constituição Federal como controle privado, também denominado controle social ou controle popular312, o que significa que “qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União”313. O Brasil adotou o sistema de unidade de jurisdição; logo, ainda que a agência atue em última instância administrativa na resolução de conflitos, o Judiciário sempre poderá revisar suas decisões, com fundamento no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal314. Em relação ao Legislativo, a agência deverá observar as normas constitucionais e legais, a partir do princípio da legalidade, e sofrerá controle do Congresso Nacional com auxílio do Tribunal de Contas315. A maior abertura que se tem é do Executivo, sujeitando-se a todas as normas aplicáveis às autarquias comuns, todavia “[...] como autarquias de regime especial, os seus atos não podem ser revistos ou alterados pelo Poder Executivo”316. Há formas perniciosas de fugir do interesse público e obstar as finalidades para as quais as agências foram criadas. É o caso da captura, econômica e política: A primeira se dá quando o setor regulado, de maneira organizada, promove ingerências nas atividades dos entes regulatórios com o fim de obter vantagens, preterindo os interesses dos consumidores/usuários de serviços públicos ou do Estado. Isto é, o setor regulado, que possui suas atividades pautadas pela obtenção do lucro, envida esforços ilegítimos para viabilizar a percepção dos seus interesses econômicos. [...] Já a captura política trata-se da influência governamental perniciosa sobre as atividades das agências. Nessa perspectiva, nota-se que há possibilidade de manipulação política nas atividades das agências sob os mais diversos expedientes, tais como a incompletude do quadro de diretores, o que inviabiliza a tomada de decisões regulatórias importantes, o contingenciamento de recursos e a nomeação de dirigentes sem qualquer técnica para o cargo que ocupam.317 310 BRASIL. Lei nº 13.848, de 25 de junho de 2019. Brasília, 25 jun. 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13848.htm. Acesso em: 24 jan. 2021. 311 BRASIL. Lei nº 13.848, de 25 de junho de 2019. Brasília, 25 jun. 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13848.htm. Acesso em: 24 jan. 2021. 312 HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 29. ed. São Paulo: Atlas, 2020. E-book. 313 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 17 jul. 2019. 314 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. E-book. 315 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. E-book. 316 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. E-book. 317 ANDRADE, Marília Carla Gomes de. A autonomia das agências reguladoras brasileiras: uma análise da possível captura desses entes pelo poder político. 2012. Dissertação de Mestrado – Centro de Ciências Jurídicas / Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, p. 92 – 93. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/10527. Acesso em: 25 jul. 2019. 104 Exemplificar-se-á a captura econômica no âmbito da proteção de dados pessoais a partir de um caso que aconteceu no carnaval do Rio de Janeiro em 2019, com o controverso uso de tecnologias de reconhecimento facial para fins de segurança pública. Conduzido pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, o projeto funcionou da seguinte forma: [...] a tecnologia foi adquirida da empresa de telefonia Oi por “custo zero” – guarde essa informação. Funciona assim: as câmeras captarão imagens das pessoas na rua e das placas dos carros; então, as imagens serão cruzadas com bases da Polícia Civil e da justiça, além do departamento de trânsito, para identificar criminosos à solta e veículos roubados. Os vídeos dos foliões serão enviados para uma central, onde eles serão processados e analisados de forma automática. “Em um bloco de carnaval, podemos identificar de forma imediata a presença de um criminoso”, diz o comunicado da PMERJ. Para que o sistema funcione, será preciso escanear rosto por rosto e armazenar as imagens em um banco de dados. Todo mundo será submetido à vigilância. Mas nossos rostos – ou dados biométricos – são considerados dados sensíveis pela Lei Geral de Proteção de Dados, ou seja, podem colocar pessoas em risco se forem expostos indevidamente. Por isso, eles precisam de um tratamento especial, mais seguro, e só podem ser coletados com autorização das pessoas.318 Não houve uma efetiva transparência no processo de tratamento dos dados, sobre “[...] quem terá acesso a essas imagens, por quanto tempo elas ficarão guardadas e para quem elas serão fornecidas”319. Para agravar a problemática, a empresa de telefonia Oi, que doou o sistema de vigilância ao Governo do Estado do Rio de Janeiro, e é a responsável por responder aquelas perguntas e esclarecer informações sobre a tecnologia, “[...] já foi multada pelo Ministério da Justiça por violar a privacidade ao monitorar a navegação de seus clientes”320. Outrossim, A Oi está bem interessada na popularização desse tipo de monitoramento. Em Búzios, na Região dos Lagos fluminense, a empresa também “doou” dez câmeras de segurança em janeiro deste ano, cinco com reconhecimento facial e cinco com identificação de placas de veículos. Em Niterói, no mesmo mês, a empresa de telefonia anunciou sua parceria com a prefeitura para ampliar a rede de câmeras local. A empresa vende o sistema como uma “plataforma de vídeo-monitoramento inteligente” capaz de “compartilhar informações com facilidade, inclusive entre instituições públicas e privadas”. Para a empresa, espalhar essa tecnologia é um 318 RONCOLATO, Murilo; DIAS, Tatiana. Por que você deveria usar uma máscara no carnaval neste ano. The Intercept Brasil, 28 fev. 2019. Disponível em: https://theintercept.com/2019/02/27/carnaval-cameras-rio/. Acesso em: 29 maio 2020. 319 RONCOLATO, Murilo; DIAS, Tatiana. Por que você deveria usar uma máscara no carnaval neste ano. The Intercept Brasil, 28 fev. 2019. Disponível em: https://theintercept.com/2019/02/27/carnaval-cameras-rio/. Acesso em: 29 maio 2020. 320 RONCOLATO, Murilo; DIAS, Tatiana. Por que você deveria usar uma máscara no carnaval neste ano. The Intercept Brasil, 28 fev. 2019. Disponível em: https://theintercept.com/2019/02/27/carnaval-cameras-rio/. Acesso em: 29 maio 2020. 105 negócio potencialmente lucrativo: câmeras inteligentes demandam uma boa conexão à internet, e a Oi é fornecedora de fibra ótica.321 A multa da Oi pelo Ministério da Justiça em 2014, no valor de R$ 3,5 milhões, foi consequência de um software desenvolvido pela operadora telefônica em parceria com a empresa britânica Phorm; aquele software, denominado “Navegador”, traçava os perfis de navegação dos usuários na internet através do mapeamento do seu tráfego de dados, e os comercializava “[...] com anunciantes, agências de publicidade e portais da web, para ofertar publicidade e conteúdo personalizados”.322 Se em 2014 já houvesse uma lei geral sobre a proteção de dados em vigor e existisse uma agência reguladora com as funções previstas na atual LGPD, a multa que a Oi recebeu por violar a privacidade e os dados dos seus usuários na internet teria sido aplicada pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados. No contexto atual, dificilmente uma empresa privada com o histórico da Oi estaria apta a se envolver em políticas públicas que envolvam o tratamento de dados pessoais, principalmente os classificados como sensíveis, sem que antes apresentasse relatórios de impacto; pareceres técnicos; garantias concretas de segurança do titular; e implementasse um programa de governança em privacidade, conforme prevê a Lei nº 13.709/2018. Por essa razão, é tão importante fortalecer a ANPD com instrumentos que possibilitem a sua atuação independente, com autonomia reforçada, livre de capturas (política e econômica) e capaz de aplicar preventivamente e repressivamente as disposições da LGPD, inclusive as de caráter meramente técnico-consultivo. 3.3 A NATUREZA JURÍDICA DA AUTORIDADE NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS A criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados está prevista no artigo 55-A da Lei nº 13.709/2018, sob a forma de um órgão da Administração Pública Federal, integrante da Presidência da República, com natureza jurídica transitória, podendo ser transformada pelo Executivo em entidade da Administração Pública Federal Indireta, submetida a regime autárquico especial e vinculada à Presidência da República (artigo 55-A, § 1º, LGPD). A 321 RONCOLATO, Murilo; DIAS, Tatiana. Por que você deveria usar uma máscara no carnaval neste ano. The Intercept Brasil, 28 fev. 2019. Disponível em: https://theintercept.com/2019/02/27/carnaval-cameras-rio/. Acesso em: 29 maio 2020. 322 MINISTÉRIO da Justiça multa Oi por monitorar navegação de consumidores na internet. Ministério da Justiça e Segurança Pública, 23 jul. 2014. Disponível em: https://www.justica.gov.br/news/ministerio-da-justica-multa- oi-por-monitorar-navegacao-de-consumidores-na-internet. Acesso em: 29 maio 2020. 106 avaliação quanto a essa transformação ocorreria em até dois anos da data de entrada em vigor da estrutura regimental da ANPD (artigo 55-A, § 2º, LGPD).323 Acontece que nem sempre a ANPD foi positivada com essa estrutura, apesar da permanente indefinição sobre sua classificação perante a sistemática normativa clássica do Direito Administrativo, categorizando-se atualmente como “híbrida”. Em sua vacatio legis, a LGPD passou por profundas mudanças, como já foi demonstrado, principalmente em relação à natureza, à estrutura, à entrada em vigor e às funções da ANPD. Inicialmente, será feita uma reconstrução desse processo legislativo. O Projeto de Lei da Câmara nº 53/2018 (PL nº 4.060/2012, na Câmara dos Deputados) foi transformado em norma jurídica com veto parcial em 15 de agosto de 2018, sancionando- se, assim, a Lei nº 13.709/2018. Seu texto inicial previa a criação da ANPD como integrante da Administração Pública Federal Indireta, submetida a regime autárquico especial, vinculada ao Ministério da Justiça, regida pela Lei nº 9.986/2000, dotada de independência administrativa, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes e autonomia financeira324, 325. Como se observa, a proposta consistia em criar a ANPD como uma agência reguladora. Ao sancionar a Lei nº 13.709/2018, a Presidência da República vetou os 323 BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm. Acesso em: 17 jul. 2019. 324 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei da Câmara nº 53, de 2018 (nº 4.060/2012, na Câmara dos Deputados). Dispõe sobre a proteção de dados pessoais e altera a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/133486. Acesso em: 17 jul. 2019. 325 Projeto de Lei da Câmara nº 53, de 2018 (nº 4.060/2012, na Câmara dos Deputados): Art. 55. Fica criado o órgão competente, Autoridade Nacional de Proteção de Dados, integrante da administração pública federal indireta, submetido a regime autárquico especial e vinculado ao Ministério da Justiça. § 1º. A Autoridade deverá ser regida nos termos previstos na Lei nº 9.986, de 18 de julho de 2000. § 2º. A Autoridade será composta pelo Conselho Diretor, como órgão máximo, e pelo Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade, além das unidades especializadas para a aplicação desta Lei. § 3º. A natureza de autarquia especial conferida à Autoridade é caracterizada por independência administrativa, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes e autonomia financeira. § 4º. O regulamento e a estrutura organizacional da Autoridade serão aprovados por decreto do Presidente da República. § 5º. O Conselho Diretor será composto por 3 (três) conselheiros e decidirá por maioria. § 6º. O mandato dos membros do Conselho Diretor será de 4 (quatro) anos. [...] (BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei da Câmara nº 53, de 2018 – nº 4.060/2012, na Câmara dos Deputados. Dispõe sobre a proteção de dados pessoais e altera a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7738705&ts=1571776630943&disposition=inline. Acesso em: 14 maio. 2020.) 107 artigos 55 a 59, com a justificativa de que seriam inconstitucionais por violarem os artigos 61, § 1º, II, “e”326 e 37, XIX327 da Constituição Federal328. Assim, um vício de iniciativa no processo legislativo provocou o veto na criação da ANPD em seu formato autárquico especial (agência reguladora). Em síntese: como órgão da Administração Pública, deveria ter sido criado por ato de iniciativa privativa do presidente da República (artigo 61, § 1º, II, “e”, CF); como autarquia, somente poderia ser criada por lei específica (artigo 37, XIX, CF). O Poder Legislativo não teria competência para criar a ANPD da forma como ela foi originalmente concebida, por expressa previsão constitucional em sentido contrário329. Na redação original do Projeto de Lei da Câmara nº 53/2018 não havia quaisquer dúvidas quanto à natureza jurídica da ANPD. Previa-se expressamente que seria uma autarquia especial, na qualidade de uma agência reguladora, submetida às disposições da Lei nº 9.986/2000. Como já demonstrado na seção anterior, essas agências têm maior “autonomia” em relação às autarquias comuns, pois os mandatos dos seus dirigentes têm prazo delimitado, havendo perda apenas por renúncia, condenação judicial transitada em julgado ou processo administrativo disciplinar (artigos 6º e 9º da Lei nº 9.986/2000). É possível imaginar, nessas condições, uma ampla atuação regulatória da agência, com a garantia de que a ANPD seria 326 Artigo 61, Constituição Federal: A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição. § 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que: [...] II - disponham sobre: [...] e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 84, VI. (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 17 jul. 2019.) 327 Artigo 37, XIX, Constituição Federal: A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...] XIX - somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso, definir as áreas de sua atuação; (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 17 jul. 2019.) 328 BRASIL. Presidência da República. Mensagem nº 451, de 14 de agosto de 2018. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/Msg/VEP/VEP-451.htm. Acesso em: 17 jul. 2019. 329 “Segundo o Presidente, houve um “vício de iniciativa” na criação da autoridade e, por isso, declarou que enviará um projeto ao Congresso sobre o mesmo tema. No entendimento do governo, cabe ao Executivo propor a criação. Temer não informou quando enviará o projeto ao Congresso. Questionado após a cerimônia sobre se a autoridade ficará vinculada ao Ministério da Justiça, o presidente afirmou que ainda vai definir. ‘Vou definir, vou mais ou menos deixar tal como está do projeto. A questão teve vício de iniciativa. Portanto, vou consertar este vício de iniciativa, nada mais do que isso. No mais, continua igual’, disse”. (MAZUI, Guilherme; CASTILHOS, Roniara. Temer sanciona com vetos lei de proteção de dados pessoais. Legislação regulamenta uso, proteção e transferência de dados pessoais no país. Projeto que deu origem à lei foi aprovado pelo Congresso Nacional no mês passado. G1, 14 ago. 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2018/08/14/temer-sanciona-lei-de- protecao-de-dados-pessoais.ghtml. Acesso em: 17 jul. 2019.) 108 dirigida por membros capacitados e livres de vontades desviadas do interesse público ou exclusivamente ligadas a interesses políticos de indivíduos em posições superiores na Administração Central. A própria legislação garantia autonomia técnica e impedia, de certo modo, intervenções arbitrárias e antidemocráticas do Executivo, seja na figura do presidente da República ou dos seus ministros de Estado. Como aponta o Instituto de Tecnologia & Sociedade do Rio, Uma autoridade verdadeiramente independente, autônoma e com corpo técnico qualificado é fundamental para que a regulação do tema não seja fracionada nas mais diversas instâncias que passarão a aplicar a lei nos níveis federal, estadual e municipal. Como a Autoridade deve ter entre suas funções a possibilidade de monitorar o próprio Estado, ela deve se encontrar em posição que lhe permita atuar sem intervenções indevidas. A entidade exerceria uma função uniformizadora, orientando a fiscalização do cumprimento da nova lei. Além disso, a Autoridade Nacional poderia também oferecer orientações sobre como interpretar os dispositivos legais. Sem ela, são elevadas as chances de que os indivíduos comecem a levar ao Judiciário os direitos que a lei nova traz e que isso comece a gerar os mais variados entendimentos nos tribunais brasileiros, tribunais esses que não têm o conhecimento técnico especializado que a matéria exige, havendo então a possibilidade de interpretações diametralmente opostas sobre um mesmo tema, o que poderá gerar uma enorme insegurança jurídica. Pela experiência prática, sabe-se que serão necessários pelo menos três anos de vigência da lei para que as discussões comecem a chegar aos tribunais superiores, quando, só então, os entendimentos começarão a ser uniformizados.330 Em 27 de dezembro de 2018, a Presidência da República publicou a Medida Provisória nº 869/2018 para alterar a LGPD e criar a ANPD. Dessa vez, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados surge sem aumento de despesa, como órgão da Administração Pública Federal, integrante da Presidência da República331. É a partir desse momento que surge o questionamento da possibilidade de existência de um regime híbrido: esse órgão teria autonomia técnica; seus dirigentes seriam nomeados pelo presidente da República e escolhidos entre brasileiros de reputação ilibada, com nível superior de educação e elevado conceito no campo de especialidade dos seus cargos; o mandato dos membros do Conselho Diretor seria de quatro anos, e só perderiam seus cargos em virtude de renúncia, condenação judicial transitada em julgado ou pena de demissão decorrente de processo administrativo disciplinar, sendo este 330 INSTITUTO DE TECNOLOGIA & SOCIEDADE DO RIO. Proposta para a criação da Autoridade Brasileira de Proteção aos Dados Pessoais. Rio de Janeiro, 11 dez. 2018, p. 7 – 8. Disponível em: https://itsrio.org/wp-content/uploads/2018/12/autoridade-protecao-de-dados.pdf. Acesso em: 03 dez. 2020. 331 BRASIL. Medida Provisória nº 869, de 27 de dezembro de 2018. Altera a Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, para dispor sobre a proteção de dados pessoais e para criar a Autoridade Nacional de Proteção de Dados, e dá outras providências. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg- getter/documento?dm=7904411&ts=1563401794270&disposition=inline. Acesso em: 18 jul. 2019. 109 instaurado pelo Ministro de Estado Chefe da Casa Civil da Presidência da República e conduzido por comissão especial constituída por servidores públicos federais estáveis332. Justifica-se a caracterização de um regime administrativo “híbrido” à ANPD pela adoção de elementos que a individualizariam tanto como um órgão, segundo as definições da Lei nº 9.784/1999, como uma agência reguladora (entidade), definida pelas Leis nº 13.848/2019 e nº 9.986/2000. Enquanto um órgão é “a unidade de atuação integrante da estrutura da Administração direta e da estrutura da Administração indireta”333, uma entidade é “a unidade de atuação dotada de personalidade jurídica”334. Há consequências jurídicas relevantes decorrentes de cada conceito. Os órgãos públicos são, segundo Medauar, “[...] unidades de atuação, que englobam um conjunto de pessoas e meios materiais ordenados para realizar uma atribuição predeterminada no âmbito do Poder Público”335. Di Pietro os define como “[...] uma unidade que congrega 332 Medida Provisória nº 869, de 27 de dezembro de 2018: Art. 1º. A Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, passa a vigorar com as seguintes alterações: “Art. 55-A. Fica criada, sem aumento de despesa, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD, órgão da administração pública federal, integrante da Presidência da República.” (NR) “Art. 55-B. É assegurada autonomia técnica à ANPD.” (NR) “Art. 55-C. ANPD é composta por: I – Conselho Diretor, órgão máximo de direção; II – Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade; III – Corregedoria; IV- Ouvidoria; V – órgão de assessoramento jurídico próprio; e VI – unidades administrativas e unidades especializadas necessárias à aplicação do disposto nesta Lei.” (NR) “Art. 55-D. O Conselho Diretor da ANPD será composto por cinco diretores, incluído o Diretor-Presidente. § 1º. Os membros do Conselho Diretor da ANPD serão nomeados pelo Presidente da República e ocuparão cargo em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superior - DAS de nível 5." (NR) § 2º. Os membros do Conselho Diretor serão escolhidos dentre brasileiros, de reputação ilibada, com nível superior de educação e elevado conceito no campo de especialidade dos cargos para os quais serão nomeados. § 3º. O mandato dos membros do Conselho Diretor será de quatro anos. [...] “Art. 55-E. Os membros do Conselho Diretor somente perderão seus cargos em virtude de renúncia, condenação judicial transitada em julgado ou pena de demissão decorrente de processo administrativo disciplinar. [...] “Art. 55-G. Ato do Presidente da República disporá sobre a estrutura regimental da ANPD. [...] (BRASIL. Medida Provisória nº 869, de 27 de dezembro de 2018. Altera a Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, para dispor sobre a proteção de dados pessoais e para criar a Autoridade Nacional de Proteção de Dados, e dá outras providências. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg- getter/documento?dm=7904411&ts=1586466609518&disposition=inline. Acesso em: 14 maio 2020.) 333 BRASIL. Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Brasília, 29 jan. 1999. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9784.htm. Acesso em: 04 dez. 2020. 334 BRASIL. Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Brasília, 29 jan. 1999. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9784.htm. Acesso em: 04 dez. 2020. 335 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 21. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 46. 110 atribuições exercidas pelos agentes públicos que o integram com o objetivo de expressar a vontade do Estado”336. Assim, “como partes das entidades que integram, os órgãos são meros instrumentos de ação dessas pessoas jurídicas, preordenados ao desempenho das funções que lhes forem atribuídas [...]”337. Ao comparar esses conceitos com o das agências reguladoras, notavelmente se percebe a proeminência do poder de atuação dessas em relação àqueles, diante da ampliação da independência que é garantida pela legislação às agências sobre o ente da Administração Central ao qual se vinculam. Dessa forma, os órgãos resultam de uma forma sistematizada de repartir as funções, atribuições e vontades estatais em unidades coerentes através da atuação dos agentes públicos: À vista do exposto, pode-se conceituar os órgãos como “unidades abstratas que sintetizam os vários círculos de atribuições do Estado. Estes devem ser expressados pelos agentes investidos dos correspondentes poderes funcionais, a fim de exprimir na qualidade de titulares deles, a vontade estatal.” [...] Importa assinalar que os órgãos não são pessoas e não se distinguem do Estado. Nada mais significam que os círculos de atribuições, os feixes individuais de poderes funcionais repartidos no interior da personalidade estatal e expressados através dos agentes neles providos. Os órgãos são meras constelações de funções unitariamente consideradas, cuja reunião coincide com a totalidade das atribuições do Estado, viabilizadas, em seus diversos segmentos, pela atuação dos servidores públicos prepostos ao desempenho delas.338 A Medida Provisória nº 869/2018 criou notadamente um órgão com características relevantes de uma agência reguladora: dirigentes estáveis com mandatos fixos e autonomia técnica. Comparando a MP nº 869/2018 com a redação original do Projeto de Lei da Câmara nº 53/2018, tem-se nominativamente a transformação do que seria uma agência reguladora em um órgão. Além do mais, todas as outras características das agências são mantidas, com um grau menor de “autonomia”. A respeito dessa questão, reitera-se que “[...] o órgão não tem personalidade jurídica própria, já que integra a estrutura da Administração Direta, ao contrário da entidade, que constitui unidade de atuação dotada de personalidade jurídica [...]”339. Apesar da ausência de personalidade dos órgãos, não se pode negar a natureza jurídica das suas relações, como aponta Bandeira de Mello: Ora, que os órgãos não têm personalidade é evidente, pois, se tivessem, os direitos e obrigações decorrentes de uma ação ou inação seriam deles e não do Estado. Assim, se ocorresse um dano para particular, em consequência de ato do órgão, este é que 336 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. E-book. 337 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 72. 338 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Apontamentos sobre os agentes e órgãos públicos: regime jurídico dos funcionários públicos. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, p. 69 – 70. 339 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. E-book. 111 deveria ser processado, ao invés do interessado proceder contra o Estado. Em suma: a própria personalidade do Estado desapareceria se os direitos e obrigações fossem dos órgãos. Por outro lado, que as relações entre os órgãos são jurídicas é evidente, caso contrário os vínculos de subordinação, os conflitos de competência, os atos de controle – para citar apenas algumas das possíveis relações inter-orgânicas [sic] – não teriam sentido algum, não seriam obrigatórios para ninguém e deles não decorreria efeito de nenhuma espécie no plano jurídico, o que seria notoriamente absurdo.340 Se a Medida Provisória nº 869/2018 manteve as características de uma agência reguladora, por que a Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais não foi construída, desde então, como tal? Qual a motivação administrativa de se criar com as limitações de um órgão algo que tem a exata natureza jurídica e as características de uma autarquia especial? Seria a ANPD um “órgão descentralizado” ou uma “entidade apenas formalmente descentralizada”? Para que se possa refletir sobre as questões apresentadas, importantes são as considerações de Aragão sobre as relações entre órgãos e entidades no contexto da descentralização: O conceito formal de descentralização é, muitas vezes, desvirtuado na prática, graças a grandes controles eventualmente impostos a algumas entidades da Administração Indireta, que faz com que, de fato, elas acabem se assemelhando a meros órgãos. Em razão disso, pode-se sustentar também uma acepção material de descentralização, não consistente no critério meramente formal de existência ou não de personalidade jurídica. Podemos ter, então, órgãos verdadeiramente descentralizados e entidades apenas formalmente descentralizadas, mas que, na prática, à conta de tantos controles, estão longe de conquistarem sua descentralização material.341 Marques Neto explica que a introdução das agências no direito brasileiro aconteceu para que fosse possível o desempenho da moderna regulação, porém o termo, extraído do direito americano (agencies), não foi a melhor escolha, seja por questões conceituais que divergem entre o direito pátrio e o alienígena, ou pelo fato de a Constituição Federal fazer referência expressa ao termo “órgão regulador”, e não agências, nos artigos 21, XI, e 177, §2º, III342. Diante dessas questões, o autor opta por designar esses entes reguladores como “autoridades reguladoras independentes”343: 340 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Apontamentos sobre os agentes e órgãos públicos: regime jurídico dos funcionários públicos. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, p. 72 – 73. 341 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de Direito Administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 240. 342 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências Reguladoras Independentes: fundamentos e seu regime jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 53 – 54. 343 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências Reguladoras Independentes: fundamentos e seu regime jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 55. 112 O fato é que o nome não tem o condão de alterar a coisa. E o direito positivo introduziu, definitivamente, entre nós o conceito de agência para a grande maioria de órgãos reguladores modelados nos termos acima. Não obstante, há casos de entes de regulação que não foram denominados de agências como é o caso da Comissão de Serviço Público de Energia do Estado de São Paulo. Menos por razões de purismo conceitual e mais por uma questão didática e metodológica, de nossa parte preferimos utilizar o termo Autoridades Reguladoras Independentes para designar estes entes reguladores de nova geração. E isso por um singelo motivo. Essa designação (constante na doutrina europeia, portuguesa em particular) tem o mérito de nela embutir os três aspectos centrais para caracterização das agências: serem elas i) órgãos públicos, dotadas de autoridade; ii) voltados ao exercício da função de regulação e iii) caracterizados pela independência. Se bem entendidos estes três aspectos, estarão expostos os pressupostos das agências no direito brasileiro.344 As razões apresentadas por Marques Neto justificam a necessidade da exposição, nesse trabalho, de três pontos que já foram explorados, para, enfim, compreender a natureza jurídica e a função regulatória da Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais: a) a definição de órgãos públicos e seus contrastes com as agências; b) os conceitos de regulação; e c) a caracterização da independência e da autonomia no Direito Administrativo. O entendimento sobre esses tópicos é essencial para compreender o presente objeto de estudo. Aprovado o Projeto de Lei de Conversão nº 7/2019 na Câmara dos Deputados, proveniente da Medida Provisória nº 869/2018, o texto foi considerado pelo Senado Federal e, posteriormente, submetido à sanção presidencial, transformando-se em norma jurídica com veto parcial — Lei nº 13.853, de 8 de julho de 2019345. Com as alterações da Lei nº 13.853/2019, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais passou a ter a seguinte redação: [...] Art. 55-A. Fica criada, sem aumento de despesa, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), órgão da administração pública federal, integrante da Presidência da República. § 1º A natureza jurídica da ANPD é transitória e poderá ser transformada pelo Poder Executivo em entidade da administração pública federal indireta, submetida a regime autárquico especial e vinculada à Presidência da República. § 2º A avaliação quanto à transformação de que dispõe o § 1º deste artigo deverá ocorrer em até 2 (dois) anos da data da entrada em vigor da estrutura regimental da ANPD. § 3º O provimento dos cargos e das funções necessários à criação e à atuação da ANPD está condicionado à expressa autorização física e financeira na lei orçamentária anual e à permissão na lei de diretrizes orçamentárias. Art. 55-B. É assegurada autonomia técnica e decisória à ANPD. [...] Art. 55-D. O Conselho Diretor da ANPD será composto de 5 (cinco) diretores, incluído o Diretor-Presidente. 344 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências Reguladoras Independentes: fundamentos e seu regime jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 54 – 55. 345 BRASIL. Congresso Nacional. Medida Provisória nº 869, de 2018. Tramitação. Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/135062. Acesso em: 18 jul. 2019. 113 § 1º Os membros do Conselho Diretor da ANPD serão escolhidos pelo Presidente da República e por ele nomeados, após aprovação pelo Senado Federal, nos termos da alínea ‘f’ do inciso III do art. 52 da Constituição Federal, e ocuparão cargo em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores - DAS, no mínimo, de nível 5. § 2º Os membros do Conselho Diretor serão escolhidos dentre brasileiros que tenham reputação ilibada, nível superior de educação e elevado conceito no campo de especialidade dos cargos para os quais serão nomeados. § 3º O mandato dos membros do Conselho Diretor será de 4 (quatro) anos. [...] Art. 55-E. Os membros do Conselho Diretor somente perderão seus cargos em virtude de renúncia, condenação judicial transitada em julgado ou pena de demissão decorrente de processo administrativo disciplinar. § 1º Nos termos do caput deste artigo, cabe ao Ministro de Estado Chefe da Casa Civil da Presidência da República instaurar o processo administrativo disciplinar, que será conduzido por comissão especial constituída por servidores públicos federais estáveis. § 2º Compete ao Presidente da República determinar o afastamento preventivo, somente quando assim recomendado pela comissão especial de que trata o § 1º deste artigo, e proferir o julgamento. [...]346 É importante mencionar que, para garantir a efetiva proteção de dados pessoais, a ANPD atuará não só contra entes privados, mas também contra o próprio Estado; contra a pessoa jurídica da Administração Direta a quem está vinculada; e, em situações extraordinárias, contra seus próprios agentes. Por isso, é essencial que sua autonomia, enquanto agência, seja garantida desde sua criação, com uma estrutura semelhante a de órgãos de caráter investigativo e punitivo (e.g., Ministério Público); que seus membros sejam escolhidos por critérios técnicos objetivos legalmente estabelecidos (e.g., formação universitária; atuação na área; reputação ilibada; sabatina perante o Congresso Nacional, etc.); que seja estabelecida uma estratégia transparente de governança pública digital; e que seja implementado um programa de compliance com princípios e pilares concretos, bem estabelecidos e aplicados a todo o quadro corporativo. Um ponto que merece preocupação é a natureza transitória da ANPD, de órgão para agência reguladora. Como será feita essa transição em dois anos? De que forma isso afetará os atos emanados por essa autoridade enquanto órgão? Como sua estrutura funcional será afetada? E se não houver previsão orçamentária? Quais modelos institucionais nacional e internacional serão seguidos? Essas questões ainda estão obscuras e parece que não houve um planejamento crítico sobre o impacto desse processo transitório durante os debates que deram origem à Autoridade. No Parecer (CN) nº 1/2019, da Comissão Mista da Medida Provisória nº 869/2018, o relator comparou a estrutura dos modelos inicialmente previstos para a ANPD e enfatizou a 346 BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm. Acesso em: 18 jul. 2019. 114 preocupação dos especialistas em relação à alocação da Autoridade na Administração Direta, sob o risco de não ter um “[...] ambiente institucional de independência suficiente para exercer com autonomia suas funções, eminentemente técnicas”347. Enfatizou-se expressamente o regime híbrido da ANPD e o receio de novos vetos por vício de iniciativa caso houvesse novas alterações em sua natureza jurídica, de órgão para autarquia federal348,349. Como solução, e expressando o desejo pela criação de uma autarquia, de fato, independente, votou-se pela manutenção do órgão na Administração Direta, com sua transformação em autarquia no prazo de dois anos da aprovação de sua estrutura regimental350; pela realização de sabatina, dos membros do Conselho Diretor, pelo Senado Federal; e pela alteração do afastamento preventivo de conselheiros pelo presidente da República, somente podendo ocorrer se recomendado por comissão especial instaurada para apurar processo administrativo disciplinar351. Verifica-se, assim, que a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados introduziu no ordenamento jurídico brasileiro uma figura jurídica de natureza híbrida, tipificada como órgão, mas materialmente constituída de elementos comuns às agências reguladoras. A problemática se complica ainda mais na medida em que “o termo ‘órgão’, aplicado a setores da Administração Pública, é utilizado, às vezes, sem precisão técnica, para denominar qualquer parte da Administração Pública”352. Não obstante, parece ter sido intencional a opção em se 347 BRASIL. Congresso Nacional. Comissão Mista da Medida Provisória nº 869, de 2018. Parecer (CN) nº 1, de 2019. Brasília, 2019, p. 45. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg- getter/documento?dm=7948833&ts=1563401782118&disposition=inline. Acesso em: 22 jul. 2019. 348 “Diante disso, embora fosse desejável que a autoridade fosse uma autarquia independente, nosso posicionamento é de que, sob o risco de que novo veto crie vácuo jurídico de autoridade para regular e fiscalizar o tratamento de dados no Brasil, é oportuno e prudente a manutenção do órgão na estrutura administrativa tal como estabelecido na MP. Entretanto, julgamos pertinente reforçar o máximo possível aspectos da autoridade que possibilitem uma atuação independente, reforçando seu caráter técnico e provendo legitimidade, liberdade e autonomia de atuação para seus diretores, sempre dentro dos limites do nosso mandato constitucional.” (BRASIL. Congresso Nacional. Comissão Mista da Medida Provisória nº 869, de 2018. Parecer (CN) nº 1, de 2019. Brasília, 2019, p. 47. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg- getter/documento?dm=7948833&ts=1563401782118&disposition=inline. Acesso em: 22 jul. 2019.) 349 BRASIL. Congresso Nacional. Comissão Mista da Medida Provisória nº 869, de 2018. Parecer (CN) nº 1, de 2019. Brasília, 2019, p. 46. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg- getter/documento?dm=7948833&ts=1563401782118&disposition=inline. Acesso em: 22 jul. 2019. 350 “Para finalizar neste tópico da estrutura da ANPD, após ouvir posicionamentos públicos de representantes do governo nesta comissão, e posicionamento dos colegas integrantes deste colegiado, assim como o setor produtivo e o terceiro setor, resta aqui a nossa declaração de que um órgão da administração indireta terá que ser prontamente criado pelo Poder Executivo como única forma para o exercício pleno dos princípios, direitos, garantias e deveres previstos na LGPD. Nesse sentido, incluímos novos parágrafos ao art. 55-K indicando expressamente que a natureza jurídica da ANPD terá que ser transformada em autarquia no prazo de dois anos da aprovação de sua estrutura regimental, bem como a tempo de ser incluída nas Leis Orçamentárias.” (BRASIL. Congresso Nacional. Comissão Mista da Medida Provisória nº 869, de 2018. Parecer (CN) nº 1, de 2019. Brasília, 2019, p. 48. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg- getter/documento?dm=7948833&ts=1563401782118&disposition=inline. Acesso em: 22 jul. 2019.) 351 BRASIL. Congresso Nacional. Comissão Mista da Medida Provisória nº 869, de 2018. Parecer (CN) nº 1, de 2019. Brasília, 2019, p. 47 – 48. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg- getter/documento?dm=7948833&ts=1563401782118&disposition=inline. Acesso em: 22 jul. 2019. 352 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 21. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 46. 115 criar um órgão, limitado por sua própria natureza jurídica, com a aparência de uma autarquia especial, o que facilita, de certo modo, a intervenção, além dos limites e finalidades legalmente previstas, pela Administração Pública Direta. Como órgão integrante da Presidência da República, a ANPD perde a essência para qual foi projetada, ao estar submetida à captura e intervenções políticas, principalmente diante de indícios de tratamentos indevidos de dados pessoais pelo setor público federal. Como agência reguladora, sua capacidade de autoadministração possibilitaria condições favoráveis para uma atuação livre de interferências do Poder Executivo, não obstante a nomeação dos seus dirigentes pelo presidente da República. Através do Decreto nº 10.474, de 26 de agosto de 2020, a Presidência da República aprovou a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança da ANPD, com entrada em vigor na data de publicação da nomeação do seu diretor-presidente no Diário Oficial da União353. O artigo 1º da Estrutura Regimental da ANPD (Anexo I do Decreto nº 10.474/2020) reafirma sua autonomia técnica e decisória, e a define como órgão integrante da Presidência da República354. Suas competências estão previstas no artigo 2º: Quadro 3 — Competências da ANPD COMPETÊNCIAS DA AUTORIDADE NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (ANPD) Artigo 2º, Estrutura Regimental da ANPD (Anexo I – Decreto Nº 10.474/2020) Inciso I Zelar pela proteção dos dados pessoais, nos termos da legislação; Inciso II Zelar pela observância dos segredos comercial e industrial, observada a proteção de dados pessoais e do sigilo das informações, quando protegido por lei ou quando a quebra do sigilo violar os fundamentos do art. 2º da Lei nº 13.709, de 2018; Inciso III Elaborar diretrizes para a Política Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade; Inciso IV Fiscalizar e aplicar sanções na hipótese de tratamento de dados realizado em descumprimento à legislação, mediante processo administrativo que assegure o contraditório, a ampla defesa e o direito de recurso; Inciso V Apreciar petições de titular contra controlador após a comprovação pelo titular da apresentação de reclamação ao controlador não solucionada no prazo estabelecido em regulamentação; Inciso VI Promover na população o conhecimento das normas e das políticas públicas sobre proteção de dados pessoais e das medidas de segurança; 353 BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 10.474, de 26 de agosto de 2020. Aprova a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança da Autoridade Nacional de Proteção de Dados e remaneja e transforma cargos em comissão e funções de confiança. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10474.htm#art6. Acesso em: 17 out. 2020. 354 BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 10.474, de 26 de agosto de 2020. Anexo I – Estrutura Regimental da Autoridade Nacional de Proteção de Dados. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10474.htm#art6. Acesso em: 17 out. 2020. 116 Inciso VII Promover e elaborar estudos sobre as práticas nacionais e internacionais de proteção de dados pessoais e privacidade; Inciso VIII Estimular a adoção de padrões para serviços e produtos que facilitem o exercício de controle dos titulares sobre seus dados pessoais, os quais deverão levar em consideração as especificidades das atividades e o porte dos responsáveis; Inciso IX Promover ações de cooperação com autoridades de proteção de dados pessoais de outros países, de natureza internacional ou transnacional; Inciso X Dispor sobre as formas de publicidade das operações de tratamento de dados pessoais, respeitados os segredos comercial e industrial; Inciso XI Solicitar, a qualquer momento, aos órgãos e às entidades do Poder Público que realizam operações de tratamento de dados pessoais, informe específico sobre o âmbito, a natureza dos dados e os demais detalhes do tratamento realizado, com a possibilidade de emitir parecer técnico complementar para garantir o cumprimento da Lei nº 13.709, de 2018; Inciso XII Elaborar relatórios de gestão anuais acerca de suas atividades; Inciso XIII Editar regulamentos e procedimentos sobre proteção de dados pessoais e privacidade e sobre relatórios de impacto à proteção de dados pessoais para os casos em que o tratamento representar alto risco à garantia dos princípios gerais de proteção de dados pessoais previstos na Lei nº 13.709, de 2018; Inciso XIV Consultar os agentes de tratamento e a sociedade em matérias de interesse relevante e prestar contas sobre suas atividades e seu planejamento; Inciso XV Arrecadar e aplicar suas receitas e publicar, nos relatórios de gestão a que se refere o inciso XII, o detalhamento de suas receitas e despesas; Inciso XVI Realizar auditorias ou determinar sua realização, no âmbito da atividade de fiscalização de que trata o inciso IV e com observância ao disposto no inciso II, sobre o tratamento de dados pessoais efetuado pelos agentes de tratamento, incluído o Poder Público; Inciso XVII Celebrar, a qualquer momento, compromisso com agentes de tratamento para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa, no âmbito de processos administrativos, de acordo com o previsto no Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942; Inciso XVIII Editar normas, orientações e procedimentos simplificados e diferenciados, inclusive quanto aos prazos, para que microempresas, empresas de pequeno porte e iniciativas empresariais de caráter incremental ou disruptivo que se autodeclarem startups ou empresas de inovação possam adequar-se ao disposto na Lei nº 13.709, de 2018; Inciso XIX Garantir que o tratamento de dados de idosos seja efetuado de maneira simples, clara, acessível e adequada ao seu entendimento, nos termos da Lei nº 13.709, de 2018, e da Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 - Estatuto do Idoso; Inciso XX Deliberar, na esfera administrativa, em caráter terminativo, sobre a Lei nº 13.709, de 2018, as suas competências e os casos omissos, sem prejuízo da competência da Advocacia-Geral da União estabelecida pela Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993; Inciso XXI Comunicar às autoridades competentes as infrações penais das quais tiver conhecimento; Inciso XXII Comunicar aos órgãos de controle interno o descumprimento do disposto na Lei nº 13.709, de 2018, por órgãos e entidades da administração pública federal; Inciso XXIII Articular-se com as autoridades reguladoras públicas para exercer suas competências em setores específicos de atividades econômicas e governamentais sujeitas à regulação; Inciso XXIV Implementar mecanismos simplificados, inclusive por meio eletrônico, para o registro de reclamações sobre o tratamento de dados pessoais em desconformidade com a Lei nº 13.709, de 2018. Fonte: Brasil, Presidência da República, adaptado pelo autor.355 355 BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 10.474, de 26 de agosto de 2020. Anexo I – Estrutura Regimental da Autoridade Nacional de Proteção de Dados. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10474.htm#art6. Acesso em: 17 out. 2020. 117 A atuação da ANPD será pautada pelos princípios gerais da atividade econômica, cuja ordem é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, conforme dispõe o artigo 170 da Constituição Federal. Essa conclusão é abstraída da norma prevista no artigo 2º, § 1º, da Estrutura Regimental da ANPD, que determina a observação, pelo órgão, da exigência de mínima intervenção quando impor condicionantes administrativas ao tratamento de dados pessoais por agentes de tratamento privado (limites, encargos ou sujeições)356. Apesar das marcas do neoliberalismo, o diploma legal dá abertura a uma certa participação social, na medida em que determina que “os regulamentos e as normas editados pela ANPD devem ser precedidos de consulta e audiência públicas e de Análise de Impacto Regulatório”357 (artigo 2º, § 2º, Estrutura Regimental). De forma positiva, visualiza-se nessa norma a manifestação do princípio da governança democrática e colaborativa, ao permitir a participação dos vários setores da sociedade, a multilateralidade democrática e a criação coletiva358. Em 15 de outubro de 2020, o presidente da República encaminhou ao Senado Federal despacho com a nomeação dos membros que irão compor o Conselho Diretor da ANPD. A data escolhida para as sabatinas foi 19 de outubro de 2020. A população pode participar do evento com perguntas e comentários pelo portal e-Cidadania359, importante instrumento de aproximação entre o povo e o Legislativo e de materialização da democracia digital. Todavia, é motivo de preocupação a ausência do multissetorialismo na escolha dos dirigentes, ligados, na maioria, às Forças Armadas: Waldemar Gonçalves (coronel do Exército Brasileiro; atuação nos Ministérios da Defesa e das Comunicações); Arthur Pereira Sabbat (coronel do Exército Brasileiro; atuação como diretor do Departamento de Segurança da Informação do Gabinete de 356 BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 10.474, de 26 de agosto de 2020. Anexo I – Estrutura Regimental da Autoridade Nacional de Proteção de Dados. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10474.htm#art6. Acesso em: 17 out. 2020. 357 BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 10.474, de 26 de agosto de 2020. Anexo I – Estrutura Regimental da Autoridade Nacional de Proteção de Dados. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10474.htm#art6. Acesso em: 17 out. 2020. 358 COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL. CGI.br, [s.d.]. Princípios para a governança e uso da internet. Disponível em: https://principios.cgi.br/. Acesso em: 17 out. 2020. 359 Sabatina de Arthur Pereira Sabbat — Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaoaudiencia?id=19436. Acesso em: 17 out. 2020. Sabatina de Joacil Basilio Rael — Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaoaudiencia?id=19438. Acesso em: 17 out. 2020. Sabatina de Miriam Wimmer — Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaoaudiencia?id=19437. Acesso em: 17 out. 2020. Sabatina de Nairane Farias Rabelo Leitão — Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaoaudiencia?id=19439. Acesso em: 17 out. 2020. Sabatina de Waldemar Gonçalves Ortunho Júnior — Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaoaudiencia?id=19435. Acesso em: 17 out. 2020. 118 Segurança Institucional da Presidência da República); e Joacil Basilio Rael (tenente coronel do Exército Brasileiro)360. Somado a isso, a ausência de autonomia do órgão evidencia indícios de sua captura: “[...] os órgãos reguladores acabam sendo capturados pelos regulados e, assim, a regulação acaba não por buscar o ‘interesse público’, mas os interesses dos regulados”361. Como resultado da militarização da ANPD, [...] tal opção do governo demonstra uma clara confusão entre atribuições de órgãos com finalidades completamente diversas, quando não opostas. Garantias de privacidade e proteção de dados pessoais não podem se confundir com a defesa da segurança nacional e a proteção de informações estratégicas para o país. Pelo contrário, atividades de vigilância conduzidas por órgãos de defesa nacional e segurança pública muitas vezes podem colocar em risco direitos e garantias que deveriam justamente ser protegidas pela ANPD, visando a constituição de um sistema equilibrado dentro do Estado Democrático de Direito. Isso se torna ainda mais grave considerando que, em seus primeiros anos de atividade, a ANPD terá um papel fundamental de construção de parâmetros normativos, instruções e recomendações que orientem a aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados em todo o país. O que a Autoridade fizer nesses próximos anos provavelmente definirá o cenário regulatório sobre a proteção de dados no futuro. Nesse sentido, a composição da ANPD deveria ter espelhado o caráter técnico e independente do governo que a função exige, além da perspectiva multissetorial, que foi fator indispensável na elaboração da lei para a garantia dos direitos dos cidadãos brasileiros à privacidade – e ao direito à proteção de dados como sua extensão.362 Quadro 4 — Conselho Diretor da ANPD, nomeado pela Presidência da República em 15 de outubro de 2020 CONSELHO DIRETOR DA AUTORIDADE NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (ANPD), NOMEADO PELA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA EM 15 DE OUTUBRO DE 2020 CARGO NOME MANDATO MENSAGEM Diretor Joacil Basilio Rael Quatro anos Nº 614, de 15 de outubro de 2020 Diretora Nairane Farias Rabelo Leitão Três anos Nº 615, de 15 de outubro de 2020 Diretora Miriam Wimmer Dois anos Nº 616, de 15 de outubro de 2020 Diretor Arthur Pereira Sabbat Cinco anos Nº 617, de 15 de outubro de 2020 Diretor- Waldemar Gonçalves Ortunho Seis anos Nº 618, de 15 de outubro de 2020 Presidente Junior Fonte: Brasil, adaptado pelo autor.363 360 DATA PRIVACY BRASIL. Perfil de Autoridades de Proteção de Dados Pessoais: civis ou militares? São Paulo: Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa, 2020, p. 10 – 11. Disponível em: https://observatorioprivacidade.com.br/wp-content/uploads/2020/10/Perfil-de-Autoridades-de- Prote%C3%A7%C3%A3o-de-Dados.-Data-Privacy-Brasil.pdf. Acesso em: 26 out. 2020. 361 MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação Administrativa à luz da Constituição Federal. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 98 – 99. 362 ANPD militarizada: risco para a proteção de dados pessoais. Coalizão Direitos na Rede, [s.l.], 16 out. 2020. Disponível em: https://direitosnarede.org.br/2020/10/16/anpd-militarizada-risco-para-a-protecao-de-dados- pessoais/. Acesso em: 26 out. 2020. 363 BRASIL. Presidência da República. Diário Oficial da União. Seção 1: extra, Brasília, DF, edição 198-B, p. 1, 15 out. 2020. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/despachos-do-presidente-da-republica-282912237. Acesso em: 17 out. 2020. 119 A militarização da ANPD representa uma ameaça concreta aos ideais democráticos de governança pública que devem preservar e garantir o formato participativo, universal e multissetorial da Governança da Internet e das suas derivações. A nomeação de diretores associados às Forças Armadas e que já participaram de órgãos estratégicos de segurança pública voltados para a vigilância revela o obscuro interesse da Presidência da República em instaurar uma autoridade centralizadora de vigilância, e não de proteção de dados. Por sua própria natureza, a vigilância é oposta à maximização da transparência e da publicidade; esses últimos, entretanto, são princípios norteadores de qualquer atividade estatal voltada à proteção de dados e à privacidade364. Nesse sentido, deve-se considerar que: A democracia tem a visibilidade e a accountability como elementos essenciais para a sua existência. Infelizmente, ao contrário do que se gostaria de imaginar, a tendência atual das tecnologias da informação demonstra que elas são utilizadas mais como ferramenta de manipulação política e econômica do que como instrumento de emancipação democrática. Tal fato se dá porque a “transparência” democrática, que permite a accountability dos detentores de poder, é diametralmente oposta à visibilidade proporcionada pela surveillance. Embora a democracia esteja sendo constantemente reinventada conforme as mudanças do mundo, ela não pode evitar a accountability dos detentores do poder, que é primordial para a existência de qualquer regime democrático representativo. Sob tal aspecto, Deborah Johnson e Kent Wayland, ao tratarem sobre o tema, afirmam que, embora a surveillance e a transparência envolvam a visibilidade, a ideia por trás de cada uma delas é diametralmente oposta. A visibilidade da surveillance não possui, ao contrário da transparência democrática, a conotação positiva. Isso porque, diferentemente da surveillance, “[...] a transparência sugere a operação da democracia, dos poderosos sendo responsabilizados” (2010, p. 26).365 As declarações do presidente Jair Bolsonaro sobre o poder de influência do Chefe do Executivo nas agências reguladoras; a militarização da ANPD, o que leva a crer que o órgão também será utilizado como instrumento de vigilância em massa; e o formato daquela Autoridade como órgão, cuja vinculação à Presidência da República limita sua autonomia 364 “Penso que o maior perigo para a Democracia nos dias atuais não é mais representado por golpes de Estado tradicionais, perpetrados com fuzis, tanques ou canhões, mas pelo progressivo controle da vida privada dos cidadãos, levada a efeito por governos de distintos matizes ideológicos, mediante a coleta maciça e indiscriminada de informações pessoais, incluindo, de maneira crescente, o reconhecimento facial. E esses dados são submetidos ao novo instrumental da tecnologia de informações denominado big data, que consegue armazenar, interligar e manipular uma enorme quantidade de dados, para o bem ou para o mal.” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Referendo na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.387 Distrito Federal. Relatora: Min. Rosa Weber. Julgamento: 07 maio 2020. Publicação: 12 nov. 2020. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754357629. Acesso em: 05 jan. 2021.) 365 MENEZES NETO, Elias Jacob de. Surveillance, democracia e direitos humanos: os limites do Estado na era do Big Data. 2016. Tese (Doutorado em Direito) — Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2016, p. 199 – 200. Disponível em: http://www.repositorio.jesuita.org.br/bitstream/handle/UNISINOS/5530/Elias+Jacob+de+Menezes+Neto_.pdf;js essionid=3B74F6E39D5C65E50626C565B6723D4E?sequence=1. Acesso em: 26 out. 2020. 120 administrativa, são circunstâncias que demonstram seu déficit democrático e questionam sua legitimidade, nos termos anteriormente definidos. Em entrevista concedida ao programa de televisão Roda Viva, em 15 de junho de 2020, o ministro do STF Luís Roberto Barroso criticou o esforço de alguns grupos em identificarem o Governo com as Forças Armadas, de modo que não se deve haver essa identificação em um Estado Democrático de Direito, devido à própria questão da alternância do poder. Se as Forças Armadas fossem o Governo, e esse fosse derrotado nas urnas, então aquelas também seriam derrotadas? — questiona Barroso. Isso é, certamente, inadmissível. Em seguida, o ministro aponta que é ruim e preocupante povoar cargos do Governo com militares: é o que aconteceu na Venezuela366, a “chavização”. A multiplicação de militares no Governo faz com que aqueles comecem a se identificar com o último, exigindo vantagens e privilégios, o que representa um desastre, a exemplo da Venezuela.367 O Tribunal de Contas da União aprovou, em 17 de junho de 2020, uma proposta do ministro Bruno Dantas para que se realize um “[...] levantamento a fim de verificar o atual quadro de militares, ativos e na reserva, que estariam compondo os cargos civis do governo neste momento, e apresentar comparativo com os últimos três governos [...]”368. Segundo o ministro, a medida se justificaria “[...] dados os riscos de desvirtuamento das forças armadas que isso pode representar, considerando seu papel institucional e as diferenças entre os regimes militar e civil”369. 366 “O Brasil de Jair Bolsonaro já tem, proporcionalmente, mais militares como ministros do que a vizinha Venezuela, onde há muito tempo as Forças Armadas abdicaram da neutralidade e se tornaram fiadoras da permanência de Nicolás Maduro no poder. Para especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, essa presença expressiva de militares, especialmente da ativa, atuando dentro do governo, contribui para a ideologização de uma instituição que deveria ser neutra. [...] O número de militares como ministros no governo de Jair Bolsonaro também é superior a três dos cinco presidentes da ditadura militar (Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo) – cada um deles tinha na composição de seus ministérios sete nomes das Forças Armadas. Na mesma base de comparação, o governo de Bolsonaro empata com o de Costa e Silva, mas ainda está atrás de Castelo Branco, que tinha doze militares como ministros.” (BARRUCHO, Luís. Brasil de Bolsonaro tem maior proporção de militares como ministros do que Venezuela; especialistas veem riscos. BBC News, 26 fev. 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51646346. Acesso em: 10 dez. 2020.) 367 RODA Viva | Luís Roberto Barroso | 15/06/2020. Publicado pelo canal Roda Viva. Jun. 2020. 1 vídeo (90 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gxDsglWkVJQ. Acesso em: 09 dez. 2020. 368 BRASIL. Tribunal de Contas da União (Plenário). Ata nº 22, de 17 de junho de 2020. Sessão Telepresencial. Data da sessão: 17 jun. 2020; data da aprovação: 24 jun. 2020; data da publicação no D.O.U: 26 jun. 2020. Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/redireciona/acordao-completo/%22ATA-SESSAO- 222020001%22. Acesso em: 10 dez. 2020. 369 BRASIL. Tribunal de Contas da União (Plenário). Ata nº 22, de 17 de junho de 2020. Sessão Telepresencial. Data da sessão: 17 jun. 2020; data da aprovação: 24 jun. 2020; data da publicação no D.O.U: 26 jun. 2020. Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/redireciona/acordao-completo/%22ATA-SESSAO- 222020001%22. Acesso em: 10 dez. 2020. 121 É imprescindível que, para garantir os direitos fundamentais dos titulares dos dados, haja ampla transparência, governança, autonomia administrativa e respeito aos princípios constitucionais da Administração Pública pelos membros que comporão a ANPD; igualmente, que o Chefe do Executivo Federal se comporte como esperado em um Estado Democrático de Direito; e que órgãos de controle, como o Tribunal de Contas, o Ministério Público e as Controladorias-Gerais adotem ações preventivas e repressivas diante dos abusos praticados, envolvendo diretamente a população através de processos decisórios abertos, transparentes e participativos. A Autoridade Nacional de Proteção de Dados não pode se tornar o Panóptico370, de Bentham, nem o Big Brother371, de George Orwell. 370 “Sua essência consiste, pois, na centralidade da situação do inspetor, combinada com os dispositivos mais bem conhecidos e eficazes para ver sem ser visto. Quanto à forma geral do edifício, a mais apropriada, para a maioria dos propósitos, parece ser a circular, mas esta não é uma circunstância absolutamente essencial. De todas as figuras, esta é, entretanto, a única que permite uma visão perfeita, e a mesma visão, de um número indefinido de apartamentos das mesmas dimensões; que permite um ponto desde o qual, sem qualquer mudança de posição, um homem pode escrutinar, com a mesma perfeição, o número total de apartamentos e, com não mais do que uma mudança de postura, a metade do número total ao mesmo tempo [...] Você ficará satisfeito em observar que, embora o ponto mais importante seja, talvez, o de que as pessoas a serem inspecionadas devam sempre sentir-se como se estivessem sob inspeção ou, pelo menos, como tendo uma grande possibilidade de estarem sob inspeção, essa não é, de forma alguma, a única possibilidade. Se fosse, a mesma vantagem poderia ser atribuída a edifícios de praticamente qualquer forma. O que é também de importância é que, para a máxima proporção de tempo possível, cada homem deve realmente estar sob inspeção. É importante, em todos os casos, que o inspetor possa ter a satisfação de saber que a disciplina realmente tenha o efeito para o qual é planejada [...]”. (BENTHAM, Jeremy. O Panóptico. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p. 28 – 29.) 371 “A teletela recebia e transmitia simultaneamente. Todo som produzido por Winston que ultrapassasse o nível de um sussurro muito discreto seria captado por ela; mais: enquanto Winston permanecesse no campo de visão enquadrado pela placa de metal, além de ouvido também poderia ser visto. Claro, não havia como saber se você estava sendo observado num momento específico. Tentar adivinhar o sistema utilizado pela Polícia das Ideias para conectar-se a cada aparelho individual ou a frequência com que o fazia não passava de especulação. Era possível inclusive que ela controlasse todo mundo o tempo todo. Fosse como fosse, uma coisa era certa: tinha meios de conectar-se a seu aparelho sempre que quisesse. Você era obrigado a viver — e vivia, em decorrência do hábito transformado em instinto — acreditando que todo som que fizesse seria ouvido e, se a escuridão não fosse completa, todo movimento examinado meticulosamente.” (ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. E-book.) 122 4 A GOVERNANÇA DA INTERNET NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA 4.1 A REVOLUÇÃO 4.0 E A GOVERNANÇA DA INTERNET A compreensão do fenômeno da governança da internet é um processo que exige um debate interdisciplinar e uma imersão conceitual sobre princípios e diretrizes que dizem respeito a todos os setores da sociedade, impactando a existência de todos os membros da comunidade, inclusive, do próprio Estado. A Figura 3 representa o aspecto multissetorial, a nível global, do ecossistema da internet, formado por uma complexa rede de atores. Nesse sentido, a Agenda de Túnis para a Sociedade da Informação, estabelecida na segunda fase da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação em 2005, reconheceu que “a gestão internacional da Internet deve ser multilateral, transparente e democrática, com a plena participação dos governos, do setor privado, da sociedade civil e das organizações internacionais”372. Essa Agenda deu ênfase à multissetorialidade, destacando os papéis dos atores da governança da internet: 35 Reafirmamos que a gestão da Internet engloba tanto questões técnicas quanto de políticas públicas, e devem envolver as partes interessadas e organizações intergovernamentais e internacionais: a) A autoridade política para questões de políticas públicas relacionadas com a Internet é direito soberano dos Estados. Eles têm direitos e responsabilidades no que se refere a questões internacionais de políticas públicas relacionadas à Internet. b) O setor privado teve, e deve continuar a ter, um papel importante no desenvolvimento da Internet, nos campos técnico e econômico. c) A sociedade civil também tem desempenhado um papel importante em questões da Internet, especialmente no nível comunitário, e deve continuar a desempenhar esse papel. d) As organizações intergovernamentais tiveram, e devem continuar a ter, um papel facilitador na coordenação de políticas públicas relacionados à Internet. e) As organizações internacionais também tiveram, e devem continuar a ter, um papel importante no desenvolvimento de normas técnicas e das políticas relevantes relacionadas à Internet. 36 Reconhecemos a valiosa contribuição da comunidade acadêmica e técnica nos grupos de interesse mencionados no parágrafo 35 na evolução, no funcionamento e no desenvolvimento da Internet. 37 Buscamos melhorar a coordenação das atividades de cooperação internacional e de organizações intergovernamentais e outras instituições preocupadas com a governança da Internet e com a troca de informações entre si. Uma abordagem multissetorial deve ser adotada, sempre que possível, em todos os níveis.373 372 COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL. Documentos da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação: Genebra 2003 e Túnis 2005. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2014, p. 89. Disponível em: https://www.cgi.br/media/docs/publicacoes/1/CadernosCGIbr_DocumentosCMSI.pdf. Acesso em: 18 nov. 2020. 373 COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL. Documentos da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação: Genebra 2003 e Túnis 2005. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2014, p. 90 – 91. 123 Figura 3 — Ecossistema da Internet374 Fonte: Internet Society.375 Cada ator tem sua função no ecossistema e, para que ele se mantenha equilibrado, é necessário que todos entendam a importância da sua participação ativa na construção de um ambiente desenvolvido. A Figura 3 transmite a ideia de um trabalho colaborativo, em que um mesmo ator pode exercer diferentes papéis em diversos setores. É o caso dos governos, que ora são agentes responsáveis pelo desenvolvimento de políticas globais, ora são usuários. Disponível em: https://www.cgi.br/media/docs/publicacoes/1/CadernosCGIbr_DocumentosCMSI.pdf. Acesso em: 18 nov. 2020. 374 Para uma melhor visualização do conteúdo da imagem, utilizar nível de zoom em 160%. 375 INTERNET SOCIETY. The Internet Ecosystem. 3 fev. 2014. Disponível em: https://www.internetsociety.org/wp-content/uploads/2017/09/factsheet_ecosystem.pdf. Acesso em: 29 out. 2020. 124 Em 1995, foi criado o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), através da Portaria Interministerial nº 147, de 31 de maio de 1995, cujas funções variavam desde acompanhar a disponibilização dos serviços de internet no país, a coordenar a atribuição de endereços IP e deliberar sobre questões a ele encaminhadas376. O Comitê tinha nove membros, todavia todos eram indicados conjuntamente pelo Governo (Ministério das Comunicações e Ministério da Ciência e Tecnologia)377, ainda que o representante fosse da comunidade empresarial ou da comunidade de usuários da internet, e não tivesse qualquer relação direta com o Estado. Posteriormente, a estrutura do CGI.br foi repensada, adotando-se um caráter mais participativo, multissetorial e descentralizado. Essas alterações decorreram do Decreto nº 4.829, de 3 de setembro de 2003. Suas atribuições foram expandidas; aumentou-se a quantidade de representantes, inclusive da sociedade civil; e a indicação dos membros de cada comunidade passou a ser realizada por um colégio eleitoral formado por entidades de representação pertinentes aos respectivos segmentos378. Vide o quadro comparativo entre a Portaria Interministerial nº 147, de 31 de maio de 1995, e o Decreto nº 4.829, de 3 de setembro de 2003: Quadro 5 — Atribuições e estrutura do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL (CGI.BR) Portaria Interministerial nº Decreto nº 4.829, de 3 de 147, de 31 de maio de 1995 setembro de 2003 Ministério das Comunicações e Presidência da República Órgão emissor Ministério da Ciência e Tecnologia Artigo 1º: Artigo 1º: I - Acompanhar a disponibilização I - Estabelecer diretrizes de serviços Internet no país; estratégicas relacionadas ao uso e desenvolvimento da Internet no II - Estabelecer recomendações Brasil; relativas a: estratégia de implantação e interconexão de II - Estabelecer diretrizes para a Atribuições redes, análise e seleção de opções organização das relações entre o tecnológicas, e papéis funcionais Governo e a sociedade, na de empresas, instituições de execução do registro de Nomes de educação, pesquisa e Domínio, na alocação de Endereço desenvolvimento (IEPD); IP (Internet Protocol) e na administração pertinente ao III - Emitir parecer sobre a Domínio de Primeiro Nível aplicabilidade de tarifa especial de (ccTLD - country code Top Level telecomunicações nos circuitos por Domain), " .br ", no interesse do 376 BRASIL. Ministério das Comunicações; Ministério da Ciência e Tecnologia. Portaria Interministerial nº 147, de 31 de maio de 1995. Disponível em: https://cgi.br/portarias/numero/147/. Acesso em: 07 nov. 2020. 377 BRASIL. Ministério das Comunicações; Ministério da Ciência e Tecnologia. Portaria Interministerial nº 147, de 31 de maio de 1995. Disponível em: https://cgi.br/portarias/numero/147/. Acesso em: 07 nov. 2020. 378 BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 4.829, de 3 de setembro de 2003. Dispõe sobre a criação do Comitê Gestor da Internet no Brasil - CGI.br, sobre o modelo de governança da Internet no Brasil, e dá outras providências. Disponível em: https://www.cgi.br/pagina/decretos/108/. Acesso em: 07 nov. 2020. 125 linha dedicada, solicitados por desenvolvimento da Internet no IEPDs qualificados; País; IV - Recomendar padrões, III - Propor programas de pesquisa procedimentos técnicos e e desenvolvimento relacionados à operacionais e código de ética de Internet, que permitam a uso, para todos os serviços Internet manutenção do nível de qualidade no Brasil; técnica e inovação no uso, bem como estimular a sua disseminação V - Coordenar a atribuição de em todo o território nacional, endereços IP (Internet Protocol) e o buscando oportunidades constantes registro de nomes de domínios; de agregação de valor aos bens e serviços a ela vinculados; VI - Recomendar procedimentos operacionais de gerência de redes; IV - Promover estudos e recomendar procedimentos, VII - Coletar, organizar e normas e padrões técnicos e disseminar informações sobre o operacionais, para a segurança das serviço Internet no Brasil; redes e serviços de Internet, bem assim para a sua crescente e VIII - Deliberar sobre quaisquer adequada utilização pela questões a ele encaminhadas. sociedade; V - Articular as ações relativas à proposição de normas e procedimentos relativos à regulamentação das atividades inerentes à Internet; VI - Ser representado nos fóruns técnicos nacionais e internacionais relativos à Internet; VII - Adotar os procedimentos administrativos e operacionais necessários para que a gestão da Internet no Brasil se dê segundo os padrões internacionais aceitos pelos órgãos de cúpula da Internet, podendo, para tanto, celebrar acordo, convênio, ajuste ou instrumento congênere; VIII - Deliberar sobre quaisquer questões a ele encaminhadas, relativamente aos serviços de Internet no País; IX - Aprovar o seu regimento interno. Art. 2°. O Comitê Gestor será Art. 2° O CGI.br será integrado composto pelos seguintes pelos seguintes membros titulares e membros, indicados pelos respectivos suplentes: conjuntamente pelo Ministério das Comunicações e Ministério da I - Um representante de cada órgão Membros Ciência e Tecnologia: e entidade a seguir indicados: I - Um representante do Ministério a) Ministério da Ciência e da Ciência e Tecnologia, que o Tecnologia, que o coordenará; coordenará; 126 b) Casa Civil da Presidência da II - Um representante do Ministério República; das Comunicações; c) Ministério das Comunicações; d) Ministério da Defesa; III - Um representante do Sistema e) Ministério do Desenvolvimento, Telebrás; Indústria e Comércio Exterior; f) Ministério do Planejamento, IV - Um representante do Conselho Orçamento e Gestão; Nacional de Desenvolvimento g) Agência Nacional de Científico e Tecnológico - CNPq; Telecomunicações; e h) Conselho Nacional de V - Um representante da Rede Desenvolvimento Científico e Nacional de Pesquisa; Tecnológico; VI - Um representante da II - Um representante do Fórum comunidade acadêmica; Nacional de Secretários Estaduais para Assuntos de Ciência e VII - Um representante de Tecnologia; provedores de serviços; III - Um representante de notório VIII - Um representante da saber em assuntos de Internet; comunidade empresarial; IV - Quatro representantes do setor IX - Um representante da empresarial; comunidade de usuários do serviço Internet. V - Quatro representantes do terceiro setor; VI - Três representantes da comunidade científica e tecnológica. Artigo 3º, parágrafo único: A Art. 3° O Fórum Nacional de nomeação dos membros do Comitê Secretários Estaduais para Gestor será mediante portaria Assuntos de Ciência e Tecnologia conjunta do Ministério das será representado por um membro Comunicações e Ministério da titular e um suplente, a serem Ciência e Tecnologia. indicados por sua diretoria, com mandato de três anos, permitida a recondução. Art. 4° O Ministério da Ciência e Tecnologia indicará o representante de notório saber em assuntos da Internet de que trata o inciso III do art. 2°, com Nomeação dos membros mandato de três anos, permitida a recondução e vedada a indicação de suplente. Artigo 5º - Setor Empresarial § 1º: A indicação dos representantes de cada segmento empresarial será efetivada por meio da constituição de um colégio eleitoral, que elegerá, por votação não-secreta, os representantes do respectivo segmento. § 2° O colégio eleitoral de cada segmento será formado por entidades de representação 127 pertinentes ao segmento, cabendo um voto a cada entidade inscrita no colégio e devendo o voto ser exercido pelo representante legal da entidade. Art. 6° A indicação dos representantes do terceiro setor será efetivada por meio da constituição de um colégio eleitoral que elegerá, por votação não- secreta, os respectivos representantes. § 1° O colégio eleitoral será formado por entidades de representação pertinentes ao terceiro setor. Art. 7° A indicação dos representantes da comunidade científica e tecnológica será efetivada por meio da constituição de um colégio eleitoral que elegerá, por votação não-secreta, os respectivos representantes. § 1° O colégio eleitoral será formado por entidades de representação pertinentes à comunidade científica e tecnológica. Art. 8° Realizada a eleição e efetuada a indicação dos representantes, estes serão designados mediante portaria interministerial do Ministro de Estado Chefe da Casa Civil da Presidência da República e dos Ministros de Estado da Ciência e Tecnologia e das Comunicações. Fonte: Comitê Gestor da Internet no Brasil, adaptado pelo autor.379 Em 2014, aconteceu no Brasil o Encontro Multissetorial Global sobre o Futuro da Governança da Internet — NETmundial, resultado da parceria realizada entre o CGI.br e a /1Net, com o objetivo de elaborar princípios de Governança da Internet e propor um roteiro para a evolução desse ecossistema, baseando-se em um modelo plural e participativo380, com a presença de “[...] representantes da sociedade civil, do setor privado, da academia e da 379 COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL. CGI.br, c2020. Portaria Interministerial nº 147, de 31 de maio de 1995. Disponível em: https://cgi.br/portarias/numero/147/. Acesso em: 07 nov. 2020; COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL. CGI.br, c2020. Decreto nº 4.829, de 3 de setembro de 2003. Disponível em: https://www.cgi.br/pagina/decretos/108/. Acesso em: 07 nov. 2020. 380 NETMUNDIAL. NETmundial, 2014. NETmundial: o início de um processo. Disponível em: https://netmundial.br/pt/about/. Acesso em: 07 nov. 2020. 128 comunidade técnica para estabelecer diretrizes estratégicas relacionadas ao uso e desenvolvimento da Internet no mundo [...]”381. O contexto da realização do encontro se inseriu “[...] pouco depois do discurso382 da presidenta Dilma Rousseff na Assembleia Geral das 381 NETMUNDIAL. NETmundial, 2014. NETmundial: o início de um processo. Disponível em: https://netmundial.br/pt/about/. Acesso em: 07 nov. 2020. 382 “[...] Em meados de 2013, as revelações sobre os mecanismos abrangentes de espionagem e de monitoramento coletivo de comunicações provocaram indignação e repúdio em amplos setores da opinião pública brasileira e mundial. No Brasil, cidadãos, empresas, representações diplomáticas e a própria Presidência da República tiveram suas comunicações interceptadas. Esses fatos são inaceitáveis e continuam sendo inaceitáveis. Eles atentam contra a própria natureza internet; natureza aberta, plural e livre. A internet que queremos, ela só é possível num cenário de respeito aos direitos humanos, em particular a privacidade e a liberdade de expressão. Daí porque no meu discurso na 68ª Assembleia da ONU, fiz uma proposta de combate a essas práticas, e propus uma discussão a respeito do estabelecimento de um marco civil global para governança e uso da internet, e de medidas que garantissem a efetiva proteção dos dados que por ela trafegam. Também, junto com a chanceler Ângela Merkel, nós levamos à ONU um projeto de resolução sobre o ‘Direito à Privacidade na Era Digital’. Aprovamos por consenso esse projeto e aprovamos também o chamado aos Estados para que cessassem a coleta arbitrária ou ilegal de dados pessoais e fizessem valer o direito à privacidade. Aliás, é importante reiterar que os direitos que as pessoas têm offline também devem ser protegidos online. [...] Viemos a São Paulo, portanto, com o propósito comum de aperfeiçoar e democratizar a governança da Internet, mediante a construção de consensos, consensos em torno de princípios e também da elaboração de um roteiro para a sua evolução. Nós, e isso eu quero reiterar, não pensamos que se trata de substituir os inúmeros fóruns que já se ocupam do tema, mas, sim, de imprimir aos debates uma nova dinâmica e um necessário sentido de urgência. [...] E aí eu gostaria de dizer aos senhores e às senhoras, aos amigos aqui presentes, que o Brasil defende que a governança da Internet seja multissetorial, multilateral, democrática e transparente. Nós consideramos o modelo multissetorial a melhor forma de exercício da governança da Internet. Em consonância com essa visão, nosso sistema local de governança, em funcionamento há 20 anos, conta com a participação efetiva, no Comitê Gestor da Internet, de representantes da sociedade civil, de acadêmicos, de empresários e do Governo. De modo não-excludente com o que acabo de dizer, também, nós consideramos importante a perspectiva multilateral, segundo a qual a participação dos governos deve ocorrer em pé de igualdade entre si, sem que um país tenha mais peso que os demais. Essa defesa do multilateralismo é consequência natural de um princípio elementar das relações internacionais contemporâneas, consagrado na Constituição brasileira: a ‘igualdade entre os Estados’. Não vemos, portanto, oposição entre multilateralismo e multissetorialismo. Seu contrário é o unilateralismo, este sim indefensável. Não é democrática uma Internet submetida a arranjos intergovernamentais que excluam os demais setores. Tampouco são aceitáveis arranjos multissetoriais sujeitos à supervisão de um ou de poucos Estados. Nós queremos, de fato, democratizar as relações dos governos com a sociedade e as relações entre os governos. Queremos mais democracia, e não menos democracia. É necessário e inadiável dotar de um caráter global as organizações que hoje são responsáveis pelas funções centrais da Internet. [...] Para que a governança global da Internet seja efetivamente democrática, são necessários mecanismos que permitam maior participação dos países em desenvolvimento, em todos os setores. Temas do interesse desses países, os grandes usuários da internet, como a ampliação da conectividade, a acessibilidade e o respeito à diversidade, devem ser centrais na agenda internacional. Não basta que os foros sejam abertos do ponto de vista formal. Precisamos identificar e remover as barreiras visíveis e as barreiras invisíveis à participação de toda a população de cada país, sob pena de restringir o papel democrático e o alcance social e cultural da Internet. Esse esforço requer, ainda, o fortalecimento do Fórum de Governança da Internet como instância de diálogo apta a produzir resultados e recomendações; uma ampla revisão dos 10 anos da Cúpula Mundial da Sociedade da Informação; e o aprofundamento das discussões sobre ética e privacidade na UNESCO.”. (ROUSSEFF, Dilma. Discurso da Presidenta da República, Dilma Rousseff. In: CERIMÔNIA DE ABERTURA DO ENCONTRO GLOBAL MULTISSETORIAL SOBRE O FUTURO DA GOVERNANÇA DA INTERNET – NET MUNDIAL, 23 abr. 2014, São Paulo. Biblioteca Presidência da República. Brasília, 2014. Disponível em: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/discursos/discursos-da- presidenta/discurso-da-presidenta-da-republica-dilma-rousseff-durante-cerimonia-de-abertura-do-encontro- 129 Nações Unidas, no qual criticou de modo firme o monitoramento das Comunicações pela Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (NSA)”383. As denúncias realizadas por Edward Snowden sobre um programa de espionagem em massa conduzido pela Agência de Segurança Nacional (NSA) dos Estados Unidos da América revelaram que esse país coletava dados ilegalmente da sua própria população, de cidadãos europeus, latino-americanos, e de autoridades políticas, como a presidente do Brasil, Dilma Rousseff, e a chanceler alemã, Angela Merkel, através do monitoramento de e-mails, telefonemas e de servidores de empresas, como Google, Apple e Facebook384. Isso acelerou o processo de aprovação do Marco Civil da Internet no Brasil (Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014), que prevê, no artigo 3º, os seguintes princípios para o uso da internet: Art. 3º A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios: I - garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal; II - proteção da privacidade; III - proteção dos dados pessoais, na forma da lei; IV - preservação e garantia da neutralidade de rede; V - preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede, por meio de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e pelo estímulo ao uso de boas práticas; VI - responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei; VII - preservação da natureza participativa da rede; VIII - liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet, desde que não conflitem com os demais princípios estabelecidos nesta Lei. Parágrafo único. Os princípios expressos nesta Lei não excluem outros previstos no ordenamento jurídico pátrio relacionados à matéria ou nos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.385 Como se observa, o Marco Civil da Internet preza, além da proteção à privacidade e aos dados pessoais dos usuários da internet (art. 8º: “a garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações é condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet”386), pela preservação de elementos da democracia participativa no ecossistema global-multissetorial-sobre-o-futuro-da-governanca-da-internet-net-mundial-sao-paulo-sp. Acesso em: 07 nov. 2020.) 383 NET Mundial e Multistakeholder Internet Governance. FGV Direito Rio, 16 abr. 2014. Disponível em: https://direitorio.fgv.br/noticia/net-mundial-e-multistakeholder-internet-governance. Acesso em: 07 nov. 2020. 384 DENÚNCIAS de Snowden revelam amplo monitoramento. Em Discussão: os principais debates do Senado Federal. Brasília: Senado Federal, ano 5, n. 21, jul. 2014, p. 12. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/emdiscussao/edicoes/espionagem-cibernetica/@@images/arquivo_pdf/. Acesso em: 08 nov. 2020. 385 BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Brasília, 23 abr. 2014. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011- 2014/2014/lei/l12965.htm. Acesso em: 08 nov. 2020. 386 BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Brasília, 23 abr. 2014. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011- 2014/2014/lei/l12965.htm. Acesso em: 08 nov. 2020. 130 multissetorial, na medida em que prevê a natureza participativa da rede (artigo 3º, VII; art. 24, I; art. 25, V) e cria mecanismos de comunicação entre os provedores, os usuários e o Estado para facilitar a responsabilização de agentes que cometam ilícitos (art. 10, § § 1º e 2º; art. 15, § § 1º a 3º; art. 22). Deve-se destacar, ainda, que o Marco Civil da Internet incentiva a liberdade econômica, a modernização e o desenvolvimento na sociedade globalizada, na medida em que tem como fundamentos a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor (art. 2º, V); a liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet é um dos seus princípios (art. 3º, VIII); e tem como objetivo a promoção da inovação e do fomento à ampla difusão de novas tecnologias e modelos de uso e acesso (art. 4º, III)387. Um dos pontos mais importantes da governança da internet é a economia digital, também denominada economia baseada em dados. É primordial trazer análises econômicos à discussão da governança da internet, de dados e das suas derivações quando se está diante de uma sociedade cujas decisões políticas e padrões normativos são influenciados diretamente pelo poder econômico e por princípios inspirados no neoliberalismo388. Há uma transformação histórica significativa no pensamento econômico que norteia o surgimento da internet, de modo que o que havia em seus primórdios era um projeto sem fins lucrativos financiado por bolsas de pesquisa nos Estados Unidos (“rotear pacotes”), evoluindo, entre os anos 90 e início dos anos 2000, para novos modelos de negócios emergentes no Vale do Silício, priorizando a receita advinda de publicidade (“rotear dólares”)389. Tem-se, então, “[...] a evolução da Internet como projeto sem fins lucrativos para um dos principais negócios 387 BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Brasília, 23 abr. 2014. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011- 2014/2014/lei/l12965.htm. Acesso em: 08 nov. 2020. 388 “Há marcante contradição entre o neoliberalismo – que exclui, marginaliza – e a democracia, que supõe o acesso de um número cada vez maior de cidadãos aos bens sociais. Por isso dizemos que a racionalidade econômica do neoliberalismo já elegeu seu principal inimigo: o Estado Democrático de Direito. O discurso neoliberal confronta o discurso liberal, que viabilizou o acesso da generalidade dos homens não apenas a direitos e garantias sociais, mas também aos direitos e garantias individuais. Pois é contra as liberdades formais, no extremo, que o discurso neoliberal investe. A exclusão social se dá sob múltiplas modalidades – são excluídos, afinal, tanto a vítima do crime quanto o criminoso. Vivemos um momento marcado pela insegurança e pelo comprometimento da coesão social. [...] Urge reconstruirmos o Estado Social, projeto que não pode ser recusado mesmo pelos adeptos bem-intencionados do capitalismo.” (GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 55 – 56.) 389 KURBALIJA, Jovan. Uma introdução à governança da internet. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2016, p. 145. Disponível em: https://cgi.br/media/docs/publicacoes/1/CadernoCGIbr_Uma_Introducao_a_Governanca_da_Internet.pdf. Acesso em: 08 set. 2020. 131 e motores do crescimento econômico da sociedade moderna”390, de modo que “o fluxo de ideias e criatividade dos primórdios da Internet foi complementado pelo fluxo de dinheiro, sendo que cada vez mais a Internet se encontra competindo por dinheiro”391. Assim, No universo profissional e dos negócios, essa revolução tem se desdobrado no que foi chamado de “transformação digital”. Isso porque negócios – tradicionais ou não – estão sendo direta e rapidamente afetados por novas tecnologias. A economia caminha no ritmo da digitalização, e todos os seus setores, sejam públicos ou privados, passam a formar a economia digital, que nada mais é do que a própria economia, já tendo passado, ou passando, pelo processo de transformação digital. Isso é, a economia, no centro dessa nova revolução, também se transforma de forma absoluta em sua nova forma: a economia digital. Considerando o tratamento de dados como aspecto central desse modelo, também é por vezes referida como economia baseada em dados ou data-driven economy.392 É por essa razão que, no capítulo inicial, fizeram-se digressões sobre os modelos de Estado (Liberal, Social e Democrático). Apesar de a internet ser um produto da década de 60, ela surgiu em meio a um embate político (a Guerra Fria) que, inevitavelmente, estava cercado de interesses econômicos. Esses, por sua vez, modularam e influenciaram o comportamento de toda a sociedade, em especial, daqueles que futuramente são denominados atores da governança da internet. No contexto atual, de modo a satisfazer os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, “a principal crítica à atual economia da Internet é o risco do monopólio das principais empresas de Internet e telecoms que poderia levar à distorção do mercado”393. Além disso, “a estratégia fundamental para ganhar competitividade está na capacidade de inovar, portanto, as empresas que não forem constantemente inovadoras tendem a não sobreviver”394. Deve-se considerar, ainda, que 390 KURBALIJA, Jovan. Uma introdução à governança da internet. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2016, p. 145. Disponível em: https://cgi.br/media/docs/publicacoes/1/CadernoCGIbr_Uma_Introducao_a_Governanca_da_Internet.pdf. Acesso em: 08 set. 2020. 391 KURBALIJA, Jovan. Uma introdução à governança da internet. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2016, p. 145. Disponível em: https://cgi.br/media/docs/publicacoes/1/CadernoCGIbr_Uma_Introducao_a_Governanca_da_Internet.pdf. Acesso em: 08 set. 2020. 392 PORTO, Fábio Ribeiro. O impacto da utilização da inteligência artificial no executivo fiscal: estudo de caso do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. In: FERNANDES, Ricardo Vieira de Carvalho; CARVALHO, Angelo Gamba Prata de (org.). Tecnologia Jurídica & Direito Digital: II Congresso Internacional de Direito, Governo e Tecnologia. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 126. 393 KURBALIJA, Jovan. Uma introdução à governança da internet. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2016, p. 145. Disponível em: https://cgi.br/media/docs/publicacoes/1/CadernoCGIbr_Uma_Introducao_a_Governanca_da_Internet.pdf. Acesso em: 08 set. 2020. 394 RIBEIRO, Simone Abreu; ANDRADE, Raphael Medina Gomes de; ZAMBALDE, André Luiz. Incubadoras de empresas, inovação tecnológica e ação governamental: o caso de Santa Rita do Sapucaí (MG). Cadernos EBAPE.br, Rio de Janeiro, v. 3, n. spe, 2005, p. 2. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/cebape/v3nspe/v3nspea10.pdf. Acesso em: 01 out. 2020. 132 A realidade social é mutável. Ela altera-se ao sabor dos interesses das pessoas que a compõe, sobretudo os interesses econômicos. Esses, por serem ilimitados, estão sempre procurando novas fronteiras para a expansão de seus propósitos. A década de 70 viu o processo de globalização crescer assustadoramente no mundo todo. Empurrada pela rápida expansão das tecnologias de transporte e telecomunicações, a globalização toma uma magnitude jamais vista. Transações financeiras, que antes demoravam dias para serem concretizadas, passam a ser feitas por meio eletrônico em poucos segundos. A mobilidade de grandes somas de capital corre o mundo de forma rápida e precisa. As empresas, por sua vez, aproveitando-se desse meio, aumentam seu campo de atuação antes restrito a países vizinhos para entre continentes distantes com extrema facilidade.395 Essas transformações decorrem essencialmente “[...] da globalização, da valorização do capital intelectual, do advento da facilidade e eficiência das novas Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) e dos desequilíbrios provocados pelo homem na natureza”396. Apesar de comumente se associar a economia digital ao comércio eletrônico, principalmente a forma Business-to-consumer (B2C), nesse setor há um relevante componente que interessa ao Direito Público, seja em relação à tributação; à proteção de dados; ou à regulação econômica, que tem efeitos sobre toda a sociedade enquanto consumidora (a defesa do consumidor é matéria de interesse público), e sobre os demais agentes do mercado enquanto fornecedores, administradores ou acionistas, em observância aos princípios da livre concorrência e livre iniciativa — “[...] instrumentos catalisadores do desenvolvimento econômico de uma nação de tal forma que não há desenvolvimento que não passe necessariamente por esses dois institutos [...]”397 —; da defesa do meio ambiente; da redução das desigualdades regionais e sociais; e da busca do pleno emprego (princípios da ordem econômica, previstos no artigo 170 da Constituição Federal). Assim como nos tradicionais setores econômicos, verifica-se na economia baseada em dados “[...] notoriamente uma forte concentração empresarial e da atividade econômica nas regiões Sul e Sudeste em detrimento das regiões Norte e Nordeste do país”398, provocando, 395 SILVEIRA NETO, Otacílio dos Santos. A Terceira Onda – a glória extemporânea do livre mercado no Brasil. Revista Digital Constituição e Garantia de Direitos, v. 6, n. 02, 15 set. 2014, não paginado. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/constituicaoegarantiadedireitos/article/view/5800/4618. Acesso em: 31 ago. 2020. 396 CASAES, Júlio César Costa. Governança de dados abertos governamentais: framework conceitual para as universidades federais, baseado em uma visão sistêmica. 2019. Tese (Doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019, p. 23. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/211662. Acesso em: 02 out. 2020. 397 SILVEIRA NETO, Otacílio dos Santos. O equilíbrio inter-regional da concorrência: uma análise a partir da Constituição Federal e da nova Lei Antitruste brasileira. Revista Digital Constituição e Garantia de Direitos, v. 6, n. 01, 17 out. 2013, não paginado. Disponível em: https://www.periodicos.ufrn.br/constituicaoegarantiadedireitos/article/view/4383/3577. Acesso em: 08 set. 2020. 398 SILVEIRA NETO, Otacílio dos Santos. O equilíbrio inter-regional da concorrência: uma análise a partir da Constituição Federal e da nova Lei Antitruste brasileira. Revista Digital Constituição e Garantia de Direitos, v. 133 como consequência, “[...] um profundo desequilíbrio concorrencial de forma que a atividade econômica das regiões menos desenvolvidas tende a se desenvolver mais lentamente que as demais dada a menor oportunidade de expansão de suas atividades”399. Como consequência, cada vez menos investimentos relevantes são realizados nessas regiões menos desenvolvidas, e isso reflete diretamente na qualidade de vida da população, na sua educação, na saúde, nas oportunidades de trabalho, no desenvolvimento socioeconômico, e na participação política. As tabelas sobre a distribuição geográfica dos participantes do e-Cidadania, apresentadas no Capítulo 2, demonstram bem essa situação: em todas as ferramentas, a participação sempre é maior nos Estados das regiões Sul e Sudeste, e menor na região Norte. O mesmo problema pode ser verificado nos mapas das Embaixadoras da Open Knowledge Brasil: além de haver Estados do Norte que não têm nenhum participante, essa região e o Nordeste são as que têm o menor número de membros, enquanto o Sul e Sudeste lideram o topo. No mesmo contexto, inserem-se as inovações e consequências sociopolíticas advindas das Revoluções Industriais. Como já demonstrado, apesar de todos os avanços tecnológicos conquistados e do vultoso crescimento econômico, o clássico processo de industrialização, a partir do século XVIII, intensificou as tensões entre os agentes econômicos; expôs a necessidade de positivação de direitos sociais e prestações positivas pelo Estado; impulsionou as desigualdades sociais e a exploração de grupos minoritários; e alterou as formas de intervenção do Estado no domínio econômico. Tem-se, então, a chegada da 4ª Revolução Industrial, ou Revolução 4.0, ou Indústria 4.0, e a ascensão da sociedade globalizada. Verifica-se o “[...] surgimento de novos modelos de negócios, pela descontinuidade dos operadores e pela reformulação da produção, do consumo, dos transportes e dos sistemas logísticos”400, havendo, ainda, a fusão das “[...] tecnologias dos mundos físico, digital e biológico”401, e a valorização do conhecimento compartilhado, de modo que “[...] todos os stakeholders da sociedade global — governos, empresas, universidades e sociedade civil — devem trabalhar juntos para melhor entender as tendências emergentes”402. O que difere, à vista disso, a Revolução 4.0 das anteriores? Schwab aponta três razões que o fazem acreditar na sua existência distinta, mormente a fusão de tecnologias disruptivas 6, n. 01, 17 out. 2013, não paginado. Disponível em: https://www.periodicos.ufrn.br/constituicaoegarantiadedireitos/article/view/4383/3577. Acesso em: 08 set. 2020. 399 SILVEIRA NETO, Otacílio dos Santos. O equilíbrio inter-regional da concorrência: uma análise a partir da Constituição Federal e da nova Lei Antitruste brasileira. Revista Digital Constituição e Garantia de Direitos, v. 6, n. 01, 17 out. 2013, não paginado. Disponível em: https://www.periodicos.ufrn.br/constituicaoegarantiadedireitos/article/view/4383/3577. Acesso em: 08 set. 2020. 400 SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. São Paulo: Edipro, 2016, p. 14. 401 SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. São Paulo: Edipro, 2016, p. 14. 402 SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. São Paulo: Edipro, 2016, p. 15. 134 (sistemas e máquinas inteligentes e conectadas; sequenciamento genético; nanotecnologia; energias renováveis; computação quântica) e a interação entre os campos físicos, digitais e biológicos403: — Velocidade: ao contrário das revoluções industriais anteriores, esta evolui em um ritmo exponencial e não linear. Esse é o resultado do mundo multifacetado e profundamente interconectado em que vivemos; além disso, as novas tecnologias geram outras mais novas e cada vez mais qualificadas. — Amplitude e profundidade: ela tem a revolução digital como base e combina várias tecnologias, levando a mudanças de paradigma sem precedentes da economia, dos negócios, da sociedade e dos indivíduos. A revolução não está modificando apenas o “o que” e o “como” fazemos as coisas, mas também “quem” somos. — Impacto sistêmico: ela envolve a transformação de sistemas inteiros entre países e dentro deles, em empresas, indústrias e em toda sociedade.404 Para facilitar a compreensão, principalmente sobre a diferença entre a Terceira Revolução Industrial e a Revolução 4.0, que comumente são associadas a um único processo, vide as imagens a seguir: Infográfico 4 — As quatro Revoluções Industriais Fonte: Autodoc.405 403 SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. São Paulo: Edipro, 2016, p. 19. 404 SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. São Paulo: Edipro, 2016, p. 15 – 16. 405 INDÚSTRIA 4.0: tudo o que você precisa saber. Autodoc, 18 jul. 2019. Disponível em: https://site.autodoc.com.br/industria-4-0-tudo-o-que-voce-precisa-saber/. Acesso em: 06 set. 2020. 135 Infográfico 5 — Riscos das Revoluções Industriais406 Fonte: Alves.407 406 Para uma melhor visualização do conteúdo da imagem, utilizar nível de zoom em 180%. 407 ALVES, Eder Junior. Evolução dos riscos na Indústria 4.0. IGTI Blog, 17 set. 2018. Disponível em: https://www.igti.com.br/blog/evolucao-dos-riscos-na-industria-4-0/. Acesso em: 06 set. 2020. 136 A partir do exposto e da análise das imagens, é possível verificar que a Indústria 4.0 representa, definitivamente, um novo processo revolucionário: “a palavra ‘revolução’ denota mudança abrupta e radical”408. É inconcebível acreditar que a tecnologia emergida na década de 60, marcada pela 3ª Revolução Industrial e que tem como um dos marcos o surgimento da internet não sofreu nenhum aperfeiçoamento significativo a ponto de transformar a sociedade e a relação do homem com o mundo digital — “[...] as revoluções têm ocorrido quando novas tecnologias e novas formas de perceber o mundo desencadeiam uma alteração profunda nas estruturas sociais e nos sistemas econômicos”409. Os principais símbolos da 4ª Revolução Industrial são o big data, a Internet das Coisas e as técnicas avançadas de aprendizado de máquina. A internet passa, desde seu surgimento na década de 60, por longos estágios até atingir a maturação (em constante evolução) em seu nível atual. Em um futuro não tão distante, falar-se-á concretamente, ainda, de transumanismo, com aplicações práticas e usos acessíveis e cotidianos. Em síntese, [...] acredito que hoje estamos no início de uma quarta revolução industrial. Ela teve início na virada do século e baseia-se na revolução digital. É caracterizada por uma internet mais ubíqua e móvel, por sensores menores e mais poderosos que se tornaram mais baratos e pela inteligência artificial e aprendizagem automática (ou aprendizado de máquina). As tecnologias digitais, fundamentadas no computador, software e redes, não são novas, mas estão causando rupturas à terceira revolução industrial; estão se tornando mais sofisticadas e integradas e, consequentemente, transformando a sociedade e a economia global.410 Assim como nas três primeiras Revoluções Industriais houve fragilidades e consequências que o sistema econômico-político não foi capaz de suportar, relacionadas a cada novo tipo de produção, não seria diferente com a Revolução 4.0. É preciso abandonar os estereótipos reducionistas de que a tecnologia atual trará como consequência “a substituição do homem pela máquina”. Levando-se em consideração o processo industrial, aquele episódio seria muito mais plausível nas 1ª e 2ª Revoluções, com a produção mecânica em massa e a falta de direitos e garantias fundamentais aos trabalhadores, que já trabalhavam em situações insalubres sem qualquer garantia de segurança, do que na Revolução 4.0, marcada por avanços não só no campo tecnológico, mas nos direitos humanos e, em especial, no direito ao 408 SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. São Paulo: Edipro, 2016, p. 18. 409 SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. São Paulo: Edipro, 2016, p. 18. 410 SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. São Paulo: Edipro, 2016, p. 19. 137 desenvolvimento. Todavia, deve-se mencionar que as Revoluções Industriais não são processos lineares: A segunda revolução industrial precisa ainda ser plenamente vivida por 17% da população mundial, pois quase 1,3 bilhão de pessoas ainda não têm acesso à eletricidade. Isso também é válido para a terceira revolução industrial, já que mais da metade da população mundial, 4 bilhões de pessoas, vive em países em desenvolvimento sem acesso à internet. O tear mecanizado (a marca da primeira revolução industrial) levou quase 120 anos para se espalhar fora da Europa. Em contraste, a internet espalhou-se pelo globo em menos de uma década.411 Além disso, a internet assente a propagação de novos produtos e serviços por agentes autônomos, permitindo a inovação em ambos os setores, público e privado, e contribuindo para o crescimento dos índices de desenvolvimento socioeconômico. Os princípios de governança da internet, os fóruns (nacionais e internacionais) e a atuação de grupos regionais de inovação cívica facilitam o uso responsável daquele bem, reduzindo os impactos negativos da transformação digital. 4.2 DO GOVERNO ELETRÔNICO À GOVERNANÇA DIGITAL A tecnologia da informação e comunicação transformou significativamente a dinâmica dos processos públicos de governança, voltados para a consecução eficiente da supremacia do interesse público através do trinômio transparência/accountability/controle social, e sob a ação descentralizada e colaborativa entre o Estado, a comunidade técnica, o setor privado, as organizações não governamentais e a sociedade civil, essa última enquanto detentora do poder no Estado Democrático de Direito. Casaes aponta a necessidade, ao tratar dos processos de conhecimento, das organizações revisarem e redesenharem seus processos internos e estrutura organizacional412, de modo que “quando se trata de governo, a gestão pública tem essa responsabilidade, apoiada pela governança pública que permite governar em rede de forma colaborativa e voltada para resultados, buscando um valor público sustentável”413. No Brasil, 411 SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. São Paulo: Edipro, 2016, p. 20. 412 CASAES, Júlio César Costa. Governança de dados abertos governamentais: framework conceitual para as universidades federais, baseado em uma visão sistêmica. 2019. Tese (Doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019, p. 24. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/211662. Acesso em: 02 out. 2020. 413 CASAES, Júlio César Costa. Governança de dados abertos governamentais: framework conceitual para as universidades federais, baseado em uma visão sistêmica. 2019. Tese (Doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019, p. 24. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/211662. Acesso em: 02 out. 2020. 138 verifica-se a adoção de atos normativos materializados em políticas públicas que têm acelerado o desenvolvimento nacional, aliado à transformação digital e à inovação: Do ponto de vista do poder público, há avanços importantes na consolidação de um ambiente institucional capaz de dar suporte e fomento à transformação digital no país. O Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/2014) estabeleceu princípios para o uso da Internet no país, demarcando direitos e obrigações de empresas e usuários. Em 2018, a partir da promulgação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei n. 13.709/2018), há uma perspectiva de maior segurança jurídica para os indivíduos e organizações em uma economia que cada vez mais movida a dados. Em 2019, foi instituído o Plano Nacional de Internet das Coisas (Decreto n. 9.854/2019), que visa regular e estimular a interconexão de objetos no país. Há de se mencionar, ainda, a publicação da Estratégia Brasileira para a Transformação Digital (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações [MCTIC], 2018), que aponta caminhos para o aproveitamento das inovações tecnológicas e dá atenção aos seus aspectos sociais, como o impacto no emprego e na qualificação dos cidadãos. Essas iniciativas governamentais buscam criar as condições necessárias para que o potencial das tecnologias digitais se concretize em aumento da produtividade e da competitividade das empresas brasileiras e, ao mesmo tempo, no aumento do volume de negócios no ambiente digital.414 As discussões sobre a institucionalização da governança no setor público surgiram a partir da crise fiscal dos anos 1980, resultando na elaboração de práticas e princípios que visassem à ampliação da eficiência e ética, pautando-se na transparência, integridade e prestação de contas415. A Instrução Normativa Conjunta MP/CGU nº 01/2016 delimita os aspectos gerais da governança e dessa no setor público: Art. 1º Os órgãos e entidades do Poder Executivo federal deverão adotar medidas para a sistematização de práticas relacionadas à gestão de riscos, aos controles internos, e à governança. Art. 2º Para fins desta Instrução Normativa, considera-se: [...] VIII – governança: combinação de processos e estruturas implantadas pela alta administração, para informar, dirigir, administrar e monitorar as atividades da organização, com o intuito de alcançar os seus objetivos; IX – governança no setor público: compreende essencialmente os mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a atuação da gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade;416 414 COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL. Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nas empresas brasileiras: TIC Empresas 2019. São Paulo, 2020, p. 95 – 96. Disponível em: https://www.cgi.br/media/docs/publicacoes/2/20200707094721/tic_empresas_2019_livro_eletronico.pdf. Acesso em: 08 set. 2020. 415 BRASIL. Tribunal de Contas da União. Governança Pública: referencial básico de governança aplicável a órgãos e entidades da administração pública e ações indutoras de melhoria. Brasília: TCU, 2014, p. 17. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/biblioteca-digital/governanca-publica-referencial-basico-de-governanca-aplicavel-a- orgaos-e-entidades-da-administracao-publica-e-acoes-indutoras-de-melhoria.htm. Acesso em: 01 ago. 2019. 416 BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão; Controladoria-Geral da União. Instrução Normativa Conjunta nº 1, de 10 de maio de 2016. Dispõe sobre controles internos, gestão de riscos e governança no âmbito do Poder Executivo Federal. Disponível em: https://www.in.gov.br/materia/- 139 O compliance público, por sua vez, vem da preocupação do Estado “[...] em controlar a si mesmo, isto é, em garantir o respeito, por seus próprios agentes administrativos, de padrões adequados de conduta pública”417. Compliance é um dos mecanismos de governança que compreende não só a verificação do cumprimento de normas, no âmbito da legalidade, mas também a adoção de padrões éticos preventivos que visam a aumentar a eficiência, a transparência, a prestação de contas e a participação social, e a diminuir os riscos e as perdas causadas por uma má administração, conflitos, desvios de finalidade, abusos de poder e corrupção, atingindo os atos praticados por todos os elementos subjetivos que compõem a corporação/empresa/administração/entidade, incluindo-se, portanto, a alta administração. A Lei nº 13.848/2019 institucionalizou a adoção de práticas de governança e programas de compliance pelas agências reguladoras, na medida em que determinou no artigo 3º, § 3º que: As agências reguladoras devem adotar práticas de gestão de riscos e de controle interno e elaborar e divulgar programa de integridade, com o objetivo de promover a adoção de medidas e ações institucionais destinadas à prevenção, à detecção, à punição e à remediação de fraudes e atos de corrupção.418 Os principais mecanismos de governança pública previstos no artigo 3º, § 3º, da Lei nº 13.848/2019 são a gestão de riscos; o controle interno; e a integridade. Os objetivos dessas práticas são comuns ao compliance, no que se refere à prevenção, detecção e punição de fraudes e atos de corrupção. É importante mencionar que as autarquias federais estão submetidas à Política de Governança Pública prevista no Decreto nº 9.203/2017, bem como a outros atos normativos referentes ao tema, e.g. a Instrução Normativa Conjunta MP/CGU nº 01/2016. O compliance abarca não somente “[...] uma espécie de demonstração externa de conformidade e boa conduta, como também uma estrutura existente na gestão dos riscos empresariais”419. Desta forma, “[...] tem como diretrizes norteadoras fomentar a cultura de ética corporativa, mapear os /asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/21519355/do1-2016-05-11-instrucao-normativa-conjunta-n-1-de- 10-de-maio-de-2016-21519197. Acesso em: 29 jan. 2021. 417 SUNDFELD, Carlos Ari. Compliance: uma reflexão sobre os sistemas de controle nos setores privado e público. Cadernos FGV Projetos. Rio de Janeiro, ano 11, n. 28, nov. 2016, p. 93. Disponível em: https://fgvprojetos.fgv.br/publicacao/cadernos-fgv-projetos-no28-compliance-gestao-e-cultura-corporativa. Acesso em: 01 ago. 2019. 418 BRASIL. Lei nº 13.848, de 25 de junho de 2019. Brasília, 25 jun. 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13848.htm. Acesso em: 24 jan. 2021. 419 SIMONSEN, Ricardo. Os desafios do compliance. Cadernos FGV Projetos. Rio de Janeiro, ano 11, n. 28, nov. 2016, p. 62. Disponível em: https://fgvprojetos.fgv.br/publicacao/cadernos-fgv-projetos-no28-compliance- gestao-e-cultura-corporativa. Acesso em: 01 ago. 2019. 140 riscos e investigar as denúncias ou suspeições de fraude”420. O Decreto nº 9.203/2017 estabelece princípios, diretrizes e mecanismos para o exercício da governança pública: Quadro 6 — Princípios, diretrizes e mecanismos da Política de Governança da Administração Pública Federal POLÍTICA DE GOVERNANÇA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA FEDERAL DIRETA, AUTÁRQUICA E FUNDACIONAL (DECRETO Nº 9.203/2017) Governança Pública: conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade. (Art. 2º, I, Decreto nº 9.203/2017) PRINCÍPIOS (ART. 3º) DIRETRIZES (ART. 4º) MECANISMOS (ART. 5º) I – Capacidade de resposta; I – Direcionar ações para a busca I – Liderança, que compreende de resultados para a sociedade, conjunto de práticas de natureza II – Integridade; encontrando soluções tempestivas humana ou comportamental e inovadoras para lidar com a exercida nos principais cargos das III – Confiabilidade; limitação de recursos e com as organizações, para assegurar a mudanças de prioridades; existência das condições mínimas IV – Melhoria regulatória; para o exercício da boa II – Promover a simplificação governança, quais sejam: V – Prestação de contas e administrativa, a modernização da responsabilidade; gestão pública e a integração dos a) integridade; serviços públicos, especialmente VI – Transparência. aqueles prestados por meio b) competência; eletrônico; c) responsabilidade; III – Monitorar o desempenho e avaliar a concepção, a d) motivação; implementação e os resultados das políticas e das ações prioritárias II – Estratégia, que compreende a para assegurar que as diretrizes definição de diretrizes, objetivos, estratégicas sejam observadas; planos e ações, além de critérios de priorização e alinhamento entre IV – Articular instituições e organizações e partes interessadas, coordenar processos para melhorar para que os serviços e produtos de a integração entre os diferentes responsabilidade da organização níveis e esferas do setor público, alcancem o resultado pretendido; com vistas a gerar, preservar e entregar valor público; III – controle, que compreende processos estruturados para mitigar V – Fazer incorporar padrões os possíveis riscos com vistas ao elevados de conduta pela alta alcance dos objetivos institucionais administração para orientar o e para garantir a execução comportamento dos agentes ordenada, ética, econômica, públicos, em consonância com as eficiente e eficaz das atividades da funções e as atribuições de seus organização, com preservação da órgãos e de suas entidades; legalidade e da economicidade no dispêndio de recursos públicos. VI – Implementar controles internos fundamentados na gestão de risco, que privilegiará ações 420 SIMONSEN, Ricardo. Os desafios do compliance. Cadernos FGV Projetos. Rio de Janeiro, ano 11, n. 28, nov. 2016, p. 63. Disponível em: https://fgvprojetos.fgv.br/publicacao/cadernos-fgv-projetos-no28-compliance- gestao-e-cultura-corporativa. Acesso em: 01 ago. 2019. 141 estratégicas de prevenção antes de processos sancionadores; VII – Avaliar as propostas de criação, expansão ou aperfeiçoamento de políticas públicas e de concessão de incentivos fiscais e aferir, sempre que possível, seus custos e benefícios; VIII - Manter processo decisório orientado pelas evidências, pela conformidade legal, pela qualidade regulatória, pela desburocratização e pelo apoio à participação da sociedade; IX – Editar e revisar atos normativos, pautando-se pelas boas práticas regulatórias e pela legitimidade, estabilidade e coerência do ordenamento jurídico e realizando consultas públicas sempre que conveniente; X – Definir formalmente as funções, as competências e as responsabilidades das estruturas e dos arranjos institucionais; XI – Promover a comunicação aberta, voluntária e transparente das atividades e dos resultados da organização, de maneira a fortalecer o acesso público à informação. Fonte: Brasil, adaptado pelo autor.421 Respeitando as limitações constitucionais da separação de poderes, o Executivo é responsável diretamente pelo planejamento e execução de estratégias e políticas públicas que proporcionem o desenvolvimento de um ecossistema tecnológico inovador, inclusivo, propício ao desenvolvimento e acessível a todos os setores da população, principalmente pela modernização das plataformas governamentais, pela adoção dos princípios internacionais da governança da internet, pela ampliação do governo digital e oferta de serviços públicos digitais, 421 BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 9.203, de 22 de novembro de 2017. Dispõe sobre a política de governança da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/D9203.htm. Acesso em: 29 jan. 2021. 142 e pelo fortalecimento de mecanismos que efetivem a transparência, o acesso à informação, o controle social, a abertura de dados e a comunicação com os usuários dos serviços através de ouvidorias. A Estratégia de Governança Digital é um dos vários mecanismos que têm sido adotados pelo Estado na consecução dos princípios administrativo-constitucionais a partir da governança da internet aplicada ao setor público e associada, principalmente, à economia baseada em dados. Destaca-se a importância da TIC nos processos governamentais, pois “[...] possibilita criar e trabalhar iniciativas estratégicas por meio do governo eletrônico (e-Gov), proporcionando maior transparência, participação e colaboração da sociedade”422. A positivação da governança digital na Administração Pública Federal Brasileira (direta, autárquica e fundacional) se dá através do Decreto nº 10.332/2020, que institui a Estratégia de Governo Digital para o período de 2020 a 2022423. Fazem-se críticas à terminologia positivada, “governo” (seja eletrônico ou digital), em vez de “governança”, uma vez que aquele retrocede a momentos históricos quando havia insignificante ou nenhuma forma de participação política e controle social nos processos públicos de tomada de decisões, o que tornava o direito ao voto o limite máximo que alguns cidadãos poderiam alcançar para exercer a prática democrática. Para que se compreenda, de fato, a governança pública e sua expansão pela tecnologia da informação e comunicação, é necessário que se superem modelos estáticos de democracia representativa, e que se contemple a inserção de elementos participativos e deliberativos, ainda que gradativamente, naqueles paradigmas tradicionalmente conhecidos. Verifica-se a construção de um novo paradigma na Administração Pública Federal, com o estabelecimento de novas relações entre o Estado e os cidadãos, sustentadas no trabalho colaborativo desses atores para encontrar soluções provenientes de problemas complexos424. Como já demonstrado, com a inserção prática da governança na Administração Pública, “[...] o cidadão não seria mais 422 CASAES, Júlio César Costa. Governança de dados abertos governamentais: framework conceitual para as universidades federais, baseado em uma visão sistêmica. 2019. Tese (Doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019, p. 24. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/211662. Acesso em: 02 out. 2020. 423 BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 10.332, de 28 de abril de 2020. Institui a Estratégia de Governo Digital para o período de 2020 a 2022, no âmbito dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional e dá outras providências. Brasília, 28 abr. 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Decreto/D10332.htm. Acesso em: 22 jul. 2020. 424 CASAES, Júlio César Costa. Governança de dados abertos governamentais: framework conceitual para as universidades federais, baseado em uma visão sistêmica. 2019. Tese (Doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019, p. 29. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/211662. Acesso em: 02 out. 2020. 143 tratado como sujeito inerte dos serviços e prestações do Estado, mas sim como protagonista e sentido de todo o agir administrativo”425. Entre 2016 e 2019 houve, de fato, uma tentativa consistente de se estabelecer uma Política de Governança Digital na Administração Pública Federal, positivada pelo Decreto nº 8.638/2016, que expressamente utilizava o termo “governança”. Assim previa a versão revisada da Estratégia: Decorridos 17 anos, o estágio do governo eletrônico no Brasil ainda requer um reposicionamento das ações alinhando-se aos avanços da tecnologia e das demandas da sociedade. Assim, o conceito de governo eletrônico, que se refere à ideia de informatizar os serviços prestados pelo governo para a sociedade, foi expandido para o de governança digital, segundo o qual o cidadão torna-se partícipe da construção de políticas públicas, que já nascem em plataformas digitais. A EGD pretende convergir esforços, infraestruturas, plataformas, sistemas e serviços dos órgãos federais com as iniciativas de governo digital e sensibilizar os gestores do Governo Federal sobre a importância da governança digital para o Estado brasileiro.426 De acordo com os conceitos apresentados, quando se fala em governança digital há dois elementos essenciais que devem ser muito bem observados nesse processo: a) a participação popular ativa na construção e no controle de políticas públicas, de modo que o povo deixa de ser mero espectador do processo democrático; e b) a adoção e ampliação de políticas públicas, sistemas, serviços, plataformas e infraestruturas digitais — não se trata apenas do processo mecânico de digitalização do físico para o digital, pois aquelas estruturas já surgem em meio eletrônico. É possível pensar no governo eletrônico como a fase incipiente do uso das TIC no início da década de 2000 “[...] para democratizar o acesso à informação, visando ampliar o debate e a participação popular na construção das políticas públicas, e também aprimorar a qualidade e a efetividade dos serviços e informações”427. Como supracitado, a TIC era apenas uma ferramenta auxiliar na eficiência administrativa, de modo que não existia uma cultura forte de transparência, publicidade, controle social e acesso à informação, ainda que independente de solicitações (vale lembrar que a Lei de Acesso à Informação, Lei nº 12.527/2011, só foi 425 ISMAIL FILHO, Salomão. Boa administração: um direito fundamental a ser efetivado em prol de uma gestão pública eficiente. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 277, n. 3, nov. 2018, p. 108. Disponível em: http://dx.doi.org/10.12660/rda.v277.2018.77679. Acesso em: 07 nov. 2020. 426 BRASIL. Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Estratégia de Governança Digital – EGD. Transformação digital: cidadania e governo, 2016 – 2019. Brasília, 2018, p. 19. Disponível em: https://www.gov.br/governodigital/pt-br/estrategia-de-governanca- digital/revisaodaestrategiadegovernancadigital20162019.pdf. Acesso em: 22 jul. 2020. 427 BRASIL. Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Estratégia de Governança Digital – EGD. Transformação digital: cidadania e governo, 2016 – 2019. Brasília, 2018, p. 13. Disponível em: https://www.gov.br/governodigital/pt-br/estrategia-de-governanca- digital/revisaodaestrategiadegovernancadigital20162019.pdf. Acesso em: 22 jul. 2020. 144 promulgada em novembro de 2011), e o Estado é quem detinha primordialmente o controle discricionário sobre o fluxo de dados e os processos gerenciais e decisórios, não havendo espaço para uma influente participação social. Desencadeia-se, então, a evolução para o governo digital, que [...] contempla a ampliação da interatividade e a participação política nos processos do Estado, bem como a facilitação de navegação e acesso a portais e serviços de governo em prol da integração, da transparência e do atendimento às demandas da sociedade. O Governo Digital alinha-se aos objetivos da comunicação de governo, como: fortalecimento da democracia, prestação de contas à sociedade, comunicação aos cidadãos, geração de mensagem no lugar e na hora certa e interação com a sociedade.428 Esta pesquisa está alinhada às teorias que diferenciam materialmente o governo digital da governança digital, o que se demonstra pela análise comparativa e transição das estratégias adotadas pela Administração Pública Federal, de 2016 – 2019 e de 2020 – 2022. Independentemente da adjetivação “eletrônico” ou “digital”, o principal símbolo que marca a mudança de paradigma institucional na Administração Pública brasileira é o reconhecimento e a positivação da governança enquanto política/estratégia eficaz no mesmo patamar do governo para a persecução da supremacia dos fins constitucionais e democráticos. Compreende-se que O principal elemento diferenciador da era do governo eletrônico para a governança digital é que naquele primeiro o Estado é o agente ativo durante todo o processo, sendo o cidadão mero espectador das políticas que ele tem a oferecer com o uso da tecnologia. Já no segundo acontece o contrário: o povo deixa de ser agente passivo e se torna protagonista de todo o processo governamental, não só durante a execução das políticas públicas, mas durante seu próprio processo de criação e avaliação.429 O próprio Governo Federal reconhece, de certo modo, a mudança de paradigma instituída pela Estratégia de Governança Digital de 2016 (EGD 2016 – 2019)430, sendo possível 428 BRASIL. Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Estratégia de Governança Digital – EGD. Transformação digital: cidadania e governo, 2016 – 2019. Brasília, 2018, p. 13. Disponível em: https://www.gov.br/governodigital/pt-br/estrategia-de-governanca- digital/revisaodaestrategiadegovernancadigital20162019.pdf. Acesso em: 22 jul. 2020. 429 BEZERRA, Tiago José de Souza Lima. Sustentabilidade, tecnologia da informação e justiça: a governança digital no Poder Judiciário Brasileiro em meio ao desenvolvimento sustentável. In: OLIVEIRA, Adriana Carla Silva de; GUIMARÃES, Patrícia Borba Vilar; ALENCAR XAVIER, Yanko Marcius de (org.). Sustentabilidade e cidadania: o meio ambiente na era digital. 1. ed. Natal: Motres, 2019, p. 25. 430 “Desde o ano 2000, o governo brasileiro tem buscado evoluir seus processos e a prestação de serviços públicos com o auxílio das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC). O Programa de Governo Eletrônico iniciou no Brasil uma série de adaptações, inovações e desafios para a realização da melhoria da qualidade do serviço público. Diversas políticas e iniciativas foram realizadas até 2016, mas com a publicação da Estratégia de Governança Digital (EGD), foi implantado um novo paradigma de gestão pública e das relações entre o Estado brasileiro e a Sociedade. Desburocratização, modernização do Estado, simplificação de processos, melhoria no acesso à informação pública, transparência, melhoria nos atendimentos e racionalização de gastos públicos são alguns 145 estabelecer, ao total, quatro fases “do eletrônico ao digital”: 2000 – 2014 (governo eletrônico); 2015 (transição do governo eletrônico para o governo digital); 2016 – 2019 (governança digital); 2020 (Estratégia de Governo Digital 2020 – 2022). Os Infográficos 6 e 7 apresentam uma linha do tempo com os principais marcos da passagem do governo eletrônico (2000) à governança digital (2020): Infográfico 6 — Principais marcos do Governo Eletrônico à Governança Digital (2000 – 2020) Fonte: Brasil.431 avanços que a política de governança eletrônica e digital proporcionaram.” (BRASIL. gov.br, 25 nov. 2019. Governo Digital, Estratégia de Governança Digital, do Eletrônico ao Digital. Disponível em: https://www.gov.br/governodigital/pt-br/estrategia-de-governanca-digital/do-eletronico-ao-digital. Acesso em: 24 jul. 2020.) 431 BRASIL. gov.br, 25 nov. 2019. Governo Digital, Estratégia de Governança Digital, do Eletrônico ao Digital. Disponível em: https://www.gov.br/governodigital/pt-br/estrategia-de-governanca-digital/do-eletronico-ao- digital. Acesso em: 27 out. 2020. 146 Infográfico 7 — Linha do tempo, do Governo Eletrônico à Governança Digital (2000 – 2018) Fonte: Brasil.432 O ano 2000 é marcado pela eclosão do conceito de governo eletrônico, com ênfase na construção de “[...] novas formas de relacionamento da Administração Pública com a sociedade 432 BRASIL. Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Estratégia de Governança Digital – EGD. Transformação digital: cidadania e governo, 2016 – 2019. Brasília, 2018, p. 15. Disponível em: https://www.gov.br/governodigital/pt-br/estrategia-de-governanca- digital/revisaodaestrategiadegovernancadigital20162019.pdf. Acesso em: 22 jul. 2020. 147 e vice-versa, evidenciando a prestação de serviços sem a necessidade da presença física”433. Esses serviços se limitavam a ações isoladas, com mínima ou nenhuma capacidade de diálogo e transformação subjetiva das experiências com o cidadão, sendo [...] oferecidos por meio da Internet como a entrega de declarações do Imposto de renda, divulgação de editais de compras governamentais, emissão de certidões de pagamentos e impostos, acompanhamentos de processos judiciais e prestação de informações sobre aposentadorias e benefícios da previdência social, entre outros.434 Em 2015, verifica-se um processo transitório, do governo eletrônico para o governo digital: o primeiro é caracterizado pela informatização dos processos internos de trabalho; o segundo foca na sua relação com a sociedade435, “[...] a fim de tornar-se mais simples, mais acessível e mais eficiente na oferta de serviços ao cidadão por meio das tecnologias digitais”436. Em 2016, a Presidência da República publicou a Política de Governança Digital no âmbito dos órgãos e das entidades da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional (Decreto nº 8.638/2016). Esse ato tem importância significativa e representa um marco na democracia digital brasileira, na medida em que promove, de forma conjunta, a transparência, o acesso à informação, a accountability, serviços digitais e a participação/controle social ativa através de atos concretos. O cidadão não precisa mais esperar pelo Governo para exercer a cidadania; além de ser ouvido, é protagonista das próprias ações e tem efetivo poder no processo de tomada de decisões. O Quadro 7 apresenta suas finalidades, seus princípios e diretrizes: 433 BRASIL. gov.br, 25 nov. 2019. Governo Digital, Estratégia de Governança Digital, do Eletrônico ao Digital. Disponível em: https://www.gov.br/governodigital/pt-br/estrategia-de-governanca-digital/do-eletronico-ao- digital. Acesso em: 24 jul. 2020. 434 BRASIL. gov.br, 25 nov. 2019. Governo Digital, Estratégia de Governança Digital, do Eletrônico ao Digital. Disponível em: https://www.gov.br/governodigital/pt-br/estrategia-de-governanca-digital/do-eletronico-ao- digital. Acesso em: 24 jul. 2020. 435 BRASIL. gov.br, 25 nov. 2019. Governo Digital, Estratégia de Governança Digital, do Eletrônico ao Digital. Disponível em: https://www.gov.br/governodigital/pt-br/estrategia-de-governanca-digital/do-eletronico-ao- digital. Acesso em: 27 out. 2020. 436 BRASIL. gov.br, 25 nov. 2019. Governo Digital, Estratégia de Governança Digital, do Eletrônico ao Digital. Disponível em: https://www.gov.br/governodigital/pt-br/estrategia-de-governanca-digital/do-eletronico-ao- digital. Acesso em: 27 out. 2020. 148 Quadro 7 — Finalidades, princípios e diretrizes da Política de Governança Digital (Decreto nº 8.638/2016) POLÍTICA DE GOVERNANÇA DIGITAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA FEDERAL (DECRETO Nº 8.638/2016) Governança Digital: a utilização pelo setor público de recursos de tecnologia da informação e comunicação com o objetivo de melhorar a disponibilização de informação e a prestação de serviços públicos, incentivar a participação da sociedade no processo de tomada de decisão e aprimorar os níveis de responsabilidade, transparência e efetividade do governo. (Art. 2º, III, Decreto nº 8.638/2016) FINALIDADES (ART. 1º) PRINCÍPIOS (ART. 3º) DIRETRIZES (ART. 4º) I – Gerar benefícios para a I – Foco nas necessidades da I – O autosserviço será a forma sociedade mediante o uso da sociedade; prioritária de prestação de serviços informação e dos recursos de públicos disponibilizados em meio tecnologia da informação e II – Abertura e transparência; digital; comunicação na prestação de serviços públicos; III – Compartilhamento da II – Serão oferecidos canais digitais capacidade de serviço; de participação social na II – Estimular a participação da formulação, na implementação, no sociedade na formulação, na IV – Simplicidade; monitoramento e na avaliação das implementação, no monitoramento políticas públicas e dos serviços e na avaliação das políticas V – Priorização de serviços públicos disponibilizados em meio públicas e dos serviços públicos públicos disponibilizados em meio digital; disponibilizados em meio digital; digital; III – Os dados serão III – Assegurar a obtenção de VI – Segurança e privacidade; disponibilizados em formato informações pela sociedade, aberto, amplamente acessível e observadas as restrições VII – Participação e controle utilizável por pessoas e máquinas, legalmente previstas. social; assegurados os direitos à segurança e à privacidade; VIII – Governo como plataforma; IV – Será promovido o reuso de IX – Inovação. dados pelos diferentes setores da sociedade, com o objetivo de estimular a transparência ativa de informações, prevista no art. 3º e no art. 8º da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011; V – Observadas as disposições da Lei nº 12.527, de 2011, será implementado o compartilhamento de dados entre os órgãos e as entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, sempre que houver necessidade de simplificar a prestação de serviços à sociedade. Fonte: Brasil, adaptado pelo autor.437 437 BRASIL. Decreto nº 8.638, de 15 de janeiro de 2016. Institui a Política de Governança Digital no âmbito dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Brasília, 2016. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cciViL_03/_Ato2015-2018/2016/Decreto/D8638.htm. Acesso em: 27 out. 2020. 149 Com o objetivo de disponibilizar de maneira centralizada as informações institucionais, as notícias e os serviços públicos prestados pelo Governo Federal, a Presidência da República publicou o Decreto nº 9.756/2019, que instituiu o portal único “gov.br”438. Essa é uma das medidas de simplificação e desburocratização adotadas pelo Poder Executivo Federal, processo que se positivou pelo Decreto nº 9.094/2017. Esse último adota, por sua vez, princípios e diretrizes da Política de Governança Digital, como o compartilhamento de informações (artigo 1º, II); a simplificação de processos e procedimentos de atendimento aos usuários dos serviços públicos a partir da aplicação de soluções tecnológicas (artigo 1º, VI); a utilização de linguagem clara (artigo 1º, VII); e a articulação com os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e os outros Poderes para a integração, racionalização, disponibilização e simplificação de serviços públicos (artigo 1º, VIII)439. Em 28 de abril de 2020, o Governo Federal publicou a Estratégia de Governo Digital para o período de 2020 a 2022, no âmbito da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional. Publicou-se o Decreto nº 10.332/2020 e foram revogados os Decretos nº 8.638/2016 (Política de Governança Digital) e nº 9.584/2018 (Rede Nacional de Governo Digital). A Estratégia de Governo Digital (2020 – 2022), assim com a Estratégia de 2016, se propõe à transformação digital do Governo, e difere da segunda, de certo modo, ao ressaltar “[...] o objetivo final de reconquistar a confiança dos brasileiros”440, e ao propor “um Governo centrado no cidadão, que busca oferecer uma jornada mais agradável e responde às suas expectativas por meio de serviços de alta qualidade”441. Além da busca pela eficiência administrativa, que é comum aos atos anteriores, percebe-se na Estratégia de 2020 uma certa apelação populista comedida pela exaltação ao princípio da moralidade. Do que trata, então, a eficiência administrativa, que sempre está presente nas pautas relacionadas à governança pública? Previsto no artigo 37 da Constituição Federal, esse princípio estabelece que “[...] toda a ação administrativa deve ser orientada para a concretização 438 BRASIL. Decreto nº 9.756, de 11 de abril de 2019. Institui o portal único “gov.br” e dispõe sobre as regras de unificação dos canais digitais do Governo federal. Brasília, 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D9756.htm. Acesso em: 27 out. 2020. 439 BRASIL. Decreto nº 9.094, de 17 de julho de 2017. Dispõe sobre a simplificação do atendimento prestado aos usuários dos serviços públicos [...]. Brasília, 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/d9094.htm. Acesso em: 27 out. 2020. 440 BRASIL. Decreto nº 10.332, de 28 de abril de 2020. Institui a Estratégia de Governo Digital para o período de 2020 a 2022, no âmbito dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional e dá outras providências. Brasília, 2020. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/decreto-n- 10.332-de-28-de-abril-de-2020-254430358. Acesso em: 27 out. 2020. 441 BRASIL. Decreto nº 10.332, de 28 de abril de 2020. Institui a Estratégia de Governo Digital para o período de 2020 a 2022, no âmbito dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional e dá outras providências. Brasília, 2020. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/decreto-n- 10.332-de-28-de-abril-de-2020-254430358. Acesso em: 27 out. 2020. 150 material e efetiva da finalidade posta pela lei, segundo os cânones do regime jurídico- administrativo”442, conforme França. Todavia, o conceito apresentado por esse autor não é adequado, pois se contenta em demonstrar a eficiência apenas sob um viés jurídico positivista que não demonstra a real complexidade do princípio (que tem suas bases na ciência econômica) e a limita aos aspectos da finalidade443 e da legalidade. Medauar associa o princípio em análise ao dever de agir, da Administração Pública, “[...] de modo rápido e preciso, para produzir resultados que satisfaçam as necessidades da população”444. A eficiência significa “[...] a melhor realização possível da gestão dos interesses públicos, posta em termos de plena satisfação dos administrados com os menores custos para a sociedade [...]”445, conforme pontua Moreira Neto. Em síntese, A eficiência administrativa é o dever de escolha de melhores e menos custosos meios para a produção da maior satisfação para o maior número de cidadãos, mas dentro das possibilidades legalmente admissíveis e dentro das interpretações plausíveis que existirem. Ou seja, o princípio da eficiência deve ser visto sempre dentro da legalidade: deve-se observar a opção interpretativa ou discricionária mais eficiente que a lei admitir.446 A governança pública permite surgir um novo Direito Administrativo de viés constitucional447, que “[...] não tem por preocupação expandir as ações do Estado, mas as tornar eficientes, justificadas/motivadas e limitadas por uma regra de competência que tutela as ações dos servidores públicos em geral”448. Todas as políticas e estratégias de governança pública devem se pautar na realização do direito à boa administração pública: 442 FRANÇA, Vladimir da Rocha. Eficiência administrativa na Constituição Federal. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 220, abr. 2000, p. 168. Disponível em: http://dx.doi.org/10.12660/rda.v220.2000.47532. Acesso em: 07 nov. 2020. 443 “Contudo, enquanto que no princípio da eficiência administrativa, determina-se que a ação material da administração pública deve atingir efetivamente, e de modo lícito, a finalidade legal, o princípio da finalidade esclarece que o ato administrativo somente pode ter uma finalidade pública, estabelecida em lei. A impessoalidade veda uma finalidade estranha ao interesse público na ação administrativa; já a eficiência administrativa, a falta da administração em atingir o fim legal.” (FRANÇA, Vladimir da Rocha. Eficiência administrativa na Constituição Federal. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 220, abr. 2000, p. 171. Disponível em: http://dx.doi.org/10.12660/rda.v220.2000.47532. Acesso em: 07 nov. 2020.) 444 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 21. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 127. 445 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. E-book. 446 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de Direito Administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 176. 447 ISMAIL FILHO, Salomão. Boa administração: um direito fundamental a ser efetivado em prol de uma gestão pública eficiente. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 277, n. 3, nov. 2018, p. 110. Disponível em: http://dx.doi.org/10.12660/rda.v277.2018.77679. Acesso em: 07 nov. 2020. 448 ISMAIL FILHO, Salomão. Boa administração: um direito fundamental a ser efetivado em prol de uma gestão pública eficiente. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 277, n. 3, nov. 2018, p. 110. Disponível em: http://dx.doi.org/10.12660/rda.v277.2018.77679. Acesso em: 07 nov. 2020. 151 O direito fundamental à boa administração pública revela-se, assim, como um direito de natureza prestacional, que vincula o administrador à observância dos princípios constitucionais relacionados com a gestão pública, inclusive aqueles que permitem uma maior participação procedimental do administrado na gestão da res publicae (por meio de audiências públicas; direito de oitiva particular; consultas à população).449 Os parâmetros gerais da boa administração são, segundo Moreira Neto, a eficiência e o resultado de gestão, ou seja, “[...] a eficiência, como a otimização da aplicação dos meios administrativos disponíveis e o resultado, como a idoneidade do fruto da gestão realizada para atender satisfatoriamente aos interesses públicos visados”450. Além da boa administração, surge, em paralelo, a concepção de boa governança: Boa governança, outrossim, significa governar com transparência, tomando decisões fundamentadas, onde o usuário do serviço público, sempre que possível, deve ser ouvido e precisa ter acesso aos motivos ensejadores da decisão governamental. Isso porque deve-se ter sempre em conta a permanente necessidade de prestação de contas (accountability). Por conseguinte, emerge a necessidade de um planejamento prévio das decisões administrativas e que exista um diálogo permanente (canal de comunicação) entre executivos do serviço público (administradores ou gestores públicos) e usuários/destinatários da prestação.451 Todas as estratégias e políticas de governança digital deverão observar estritamente as normas derivadas da Lei Geral de Proteção de Dados e do Marco Civil da Internet, além da própria Constituição Federal, evidentemente. A constitucionalização material desses atos se faz através da realização dos princípios da Administração Pública (em especial, a legalidade, a eficiência, a finalidade e a boa administração) e da manifestação da possibilidade de exercitar direitos fundamentais a partir da governança, à luz da democracia participativa, de caráter inclusivo, aberto, transparente e plural. A Estratégia de Governo Digital enfrenta um novo desafio a partir de 2020: promover a máxima eficiência da atividade administrativa, com o uso inovador e democrático da tecnologia da informação e comunicação, de modo a permitir a ampliação dos serviços públicos digitais; a preservação dos direitos fundamentais; e a maximização da participação e do controle social, através da transparência, do acesso à informação e da accountability, em meio às dificuldades apresentadas pela Pandemia da COVID-19. 449 ISMAIL FILHO, Salomão. Boa administração: um direito fundamental a ser efetivado em prol de uma gestão pública eficiente. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 277, n. 3, nov. 2018, p. 114. Disponível em: http://dx.doi.org/10.12660/rda.v277.2018.77679. Acesso em: 07 nov. 2020. 450 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. E-book. 451 ISMAIL FILHO, Salomão. Boa administração: um direito fundamental a ser efetivado em prol de uma gestão pública eficiente. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 277, n. 3, nov. 2018, p. 117. Disponível em: http://dx.doi.org/10.12660/rda.v277.2018.77679. Acesso em: 07 nov. 2020. 152 Tendo em vista a observância dos princípios da ordem econômica constitucional, alicerçada na valorização do trabalho, na livre iniciativa, na dignidade humana e na justiça social, incentiva-se o fortalecimento da economia criativa; a realização de parcerias com o setor privado e a comunidade técnica, em caráter multissetorial, com a incorporação dos princípios da governança da internet; a cooperação internacional; e o reconhecimento, por fim, do governo aberto. 4.3 GOVERNO ABERTO E DADOS ABERTOS GOVERNAMENTAIS Uma das formas mais importantes e eficientes de se atingir os princípios da governança digital através da realização do direito de acesso à informação é pela utilização de dados abertos governamentais. O grande volume de dados emitidos, coletados e tratados diariamente pelo Estado demanda a adoção de múltiplas estratégias, muitas vezes inovadoras, para que se possa manter um padrão adequado dos níveis de publicidade, celeridade e eficiência da atividade administrativa. A abertura de dados é essencial “[...] no aprofundamento da democracia, ao aprimorar a transparência, o acesso à informação, a participação e o controle social, além de contribuir para fomentar a inovação, a geração de conhecimento e o ambiente de negócios”452. A tecnologia da informação e comunicação é intrínseca ao princípio da eficiência. Para que o Estado atinja o máximo rendimento, de forma satisfatória, no menor tempo possível, é imprescindível que a tecnologia se faça presente no cotidiano da atividade administrativa. O mesmo se dá com os processos que envolvam o tratamento de dados, o que constitui uma atividade complexa que não se limita à coleta e publicação. É comum associar, erroneamente, dados abertos a dados públicos. Dados abertos não são apenas dados públicos. São dados (públicos ou privados) disponíveis na internet, em formato aberto, que têm o potencial de permitir a livre utilização por qualquer pessoa e, como consequência, garantem o surgimento de produtos, serviços e soluções na esfera da economia criativa. Segundo a definição da Open Knowledge Foundation, “dados abertos são dados que podem ser livremente usados, reutilizados e redistribuídos por qualquer pessoa — sujeitos, no máximo, à exigência de atribuição da fonte e compartilhamento pelas mesmas regras.”453. A 452 CASAES, Júlio César Costa. Governança de dados abertos governamentais: framework conceitual para as universidades federais, baseado em uma visão sistêmica. 2019. Tese (Doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019, p. 26. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/211662. Acesso em: 02 out. 2020. 453 OPEN KNOWLEDGE FOUNDATION. Open Data Handbook, [201-?]. O que são Dados Abertos? Disponível em: http://opendatahandbook.org/guide/pt_BR/what-is-open-data/. Acesso em: 12 ago. 2020. 153 partir desse conceito, compreende-se que, para que um dado seja considerado aberto, é preciso que ele tenha os seguintes requisitos: • Disponibilidade e Acesso: os dados devem estar disponíveis como um todo e sob custo não maior que um custo razoável de reprodução, preferencialmente possíveis de serem baixados pela internet. Os dados devem também estar disponíveis de uma forma conveniente e modificável. • Reutilização e Redistribuição: os dados devem ser fornecidos sob termos que permitam a reutilização e a redistribuição, inclusive a combinação com outros conjuntos de dados. • Participação Universal: todos devem ser capazes de usar, reutilizar e redistribuir – não deve haver discriminação contra áreas de atuação ou contra pessoas ou grupos. Por exemplo, restrições de uso ‘não-comercial’ que impediriam o uso ‘comercial’, ou restrições de uso para certos fins (ex.: somente educativos) excluem determinados dados do conceito de ‘abertos’.454 A abertura de dados é interpretada sob dois vieses: o legal, que significa a publicação sob uma licença aberta, cuja condição de reuso é a atribuição da fonte; e o técnico, que significa a utilização de formatos legíveis por máquina e não-proprietários, sempre que possível.455 Com a abertura de dados, objetiva-se publicá-los “[...] em formato independente de plataforma e disponibilizados ao público, sem restrições que impeçam a reutilização [...]”456. É importante enfatizar que “[...] os dados devem ser acessíveis, legíveis por máquinas, em formato aberto, e com informação produzida por todos e para todos”457. O artigo 2º, incisos I – V, do Decreto nº 8.777/2016 apresenta cinco conceitos fundamentais da Ciência de Dados (I – dado; II – dado acessível ao público; III – dados abertos; IV – formato aberto; V – Plano de Dados Abertos)458, cuja compreensão, apesar do alto teor técnico, é essencial para o funcionamento institucional efetivo do processo de abertura de dados 454 OPEN KNOWLEDGE FOUNDATION. Open Data Handbook, [201-?]. O que são Dados Abertos? Disponível em: http://opendatahandbook.org/guide/pt_BR/what-is-open-data/. Acesso em: 12 ago. 2020. 455 UNIÃO EUROPEIA. European Data Portal. Open Data Goldbook for Data Managers and Data Holders: practical guidebook for organisations wanting to publish Open Data. União Europeia, 2018, p. 12. Disponível em: https://www.europeandataportal.eu/sites/default/files/european_data_portal_-_open_data_goldbook.pdf. Acesso em: 12 out. 2020. 456 CASAES, Júlio César Costa. Governança de dados abertos governamentais: framework conceitual para as universidades federais, baseado em uma visão sistêmica. 2019. Tese (Doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019, p. 38. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/211662. Acesso em: 02 out. 2020. 457 CASAES, Júlio César Costa. Governança de dados abertos governamentais: framework conceitual para as universidades federais, baseado em uma visão sistêmica. 2019. Tese (Doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019, p. 38. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/211662. Acesso em: 02 out. 2020. 458 BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 8.777, de 11 de maio de 2016. Institui a Política de Dados Abertos do Poder Executivo federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015- 2018/2016/decreto/d8777.htm. Acesso em: 12 ago. 2020. 154 e sua transformação em informações. Vide o Infográfico 8, criado a partir das informações extraídas do referido diploma legal: Infográfico 8 — Conceitos fundamentais sobre dados abertos (artigo 2º, I – V, Decreto nº 8.777/2016) Fonte: Decreto nº 8.777/2016, adaptado pelo autor.459 Assim, nem todo dado aberto é público, mas todo dado público deveria ser aberto. A explicação da primeira afirmação se dá pela razão de que qualquer pessoa (física ou jurídica; de direito público ou privado) é capaz de produzir dados, e essa atividade não se limita a dados do Governo ou de interesse coletivo que justifiquem a sua publicidade. Da mesma forma, a partir da exegese legal e da sistemática doutrinária, pode-se concluir também que a produção de dados não é uma atividade exclusivamente humana, considerando-se que animais irracionais (processo natural) e inteligências artificiais (processo artificial) também os produzem, como o 459 BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 8.777, de 11 de maio de 2016. Institui a Política de Dados Abertos do Poder Executivo federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015- 2018/2016/decreto/d8777.htm. Acesso em: 12 ago. 2020. 155 DNA, no primeiro caso, e o código fonte, no segundo. A abertura desses dados, que não são necessariamente públicos, passa por um processo sistematizado de coleta e adequação a um formato aberto legível por máquina, para que, após um longo processo automatizado de tratamento, que exige o conhecimento de aplicações em big data, possa haver a publicação de informações estruturadas e o desenvolvimento de produtos/serviços a partir da criatividade. Menciona-se, ainda, que só é possível a abertura de dados se esses existirem. Logo, a abertura de dados governamentais demanda, na maioria das vezes, o exercício do direito previsto no artigo 10 da Lei de Acesso à Informação460. Apesar de se ter a publicidade como preceito geral, e o sigilo como exceção461 (artigo 3º, I, Lei nº 12.527/2011), nem todos os órgãos e entes obrigados pela LAI divulgam, de ofício, as informações de interesse público, independentemente de solicitações, conforme está previsto no artigo 3º, II, da Lei nº 12.527/2011. Assim, não corresponde ao princípio da eficiência esperar solicitações individuais para que se faça a publicidade, considerando-se, ainda, que as mesmas informações poderiam ser aproveitadas por outros indivíduos que compartilham os mesmos interesses e, até mesmo, pelos próprios órgãos públicos. Nesse último caso, vê-se de forma positiva o conjunto de iniciativas que incentivam a interoperabilidade no setor público. Não se pode esquecer que, para que os pedidos de acesso à informação aconteçam, é imprescindível que haja um meio técnico eficiente para a realização de tais pleitos, permitindo a ampliação desse direito a qualquer indivíduo, independentemente de limitações físicas e estruturais, e observando, ainda, as garantias de acessibilidade. É por essa razão que se tem como diretriz a “utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação” (artigo 3º, III, Lei nº 12.527/2011), e a obrigação da publicidade em sítios oficiais 460 Artigo 10, Lei nº 12.527/2011: Qualquer interessado poderá apresentar pedido de acesso a informações aos órgãos e entidades referidos no art. 1º desta Lei, por qualquer meio legítimo, devendo o pedido conter a identificação do requerente e a especificação da informação requerida. (BRASIL. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal [...]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12527.htm. Acesso em: 12 ago. 2020.) 461 Art. 3º, Lei nº 12.527/2011: Os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes: I - observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção; II - divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações; III - utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação; IV - fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na administração pública; V - desenvolvimento do controle social da administração pública. (BRASIL. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal [...]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12527.htm. Acesso em: 12 ago. 2020.) 156 da rede mundial de computadores (artigo 8º, § 2º, Lei nº 12.527/2011). Os requisitos desses sites estão previstos no artigo 8º, § 3º, I – VIII, da Lei nº 12.527/2011: § 3º Os sítios de que trata o § 2º deverão, na forma de regulamento, atender, entre outros, aos seguintes requisitos: I - conter ferramenta de pesquisa de conteúdo que permita o acesso à informação de forma objetiva, transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão; II - possibilitar a gravação de relatórios em diversos formatos eletrônicos, inclusive abertos e não proprietários, tais como planilhas e texto, de modo a facilitar a análise das informações; III - possibilitar o acesso automatizado por sistemas externos em formatos abertos, estruturados e legíveis por máquina; IV - divulgar em detalhes os formatos utilizados para estruturação da informação; V - garantir a autenticidade e a integridade das informações disponíveis para acesso; VI - manter atualizadas as informações disponíveis para acesso; VII - indicar local e instruções que permitam ao interessado comunicar-se, por via eletrônica ou telefônica, com o órgão ou entidade detentora do sítio; e VIII - adotar as medidas necessárias para garantir a acessibilidade de conteúdo para pessoas com deficiência, nos termos do art. 17 da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000, e do art. 9º da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pelo Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008.462 Em relação àquela segunda afirmação (“todo dado público deveria ser aberto”), sua explicação se dá por motivos legais derivados do próprio direito de acesso à informação. Além do Decreto nº 8.777/2016, que determina no inciso I, do artigo 1º, “a publicação de dados contidos em bases de dados de órgãos e entidades da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional sob a forma de dados abertos”463, tem-se como fundamento a Lei nº 12.527/2011, que prevê em alguns artigos a interoperabilidade e a exigência da divulgação das informações em sítios oficiais na internet, independentemente de requerimento, em formatos abertos, estruturados e legíveis por máquina. Então, de acordo com a Lei de Acesso à Informação: Art. 8º É dever dos órgãos e entidades públicas promover, independentemente de requerimentos, a divulgação em local de fácil acesso, no âmbito de suas competências, de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas. [...] § 2º Para cumprimento do disposto no caput, os órgãos e entidades públicas deverão utilizar todos os meios e instrumentos legítimos de que dispuserem, sendo obrigatória a divulgação em sítios oficiais da rede mundial de computadores (internet). § 3º Os sítios de que trata o § 2º deverão, na forma de regulamento, atender, entre outros, aos seguintes requisitos: [...] 462 BRASIL. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal [...]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12527.htm. Acesso em: 12 ago. 2020. 463 BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 8.777, de 11 de maio de 2016. Institui a Política de Dados Abertos do Poder Executivo federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015- 2018/2016/decreto/d8777.htm. Acesso em: 12 ago. 2020. 157 II - possibilitar a gravação de relatórios em diversos formatos eletrônicos, inclusive abertos e não proprietários, tais como planilhas e texto, de modo a facilitar a análise das informações; III - possibilitar o acesso automatizado por sistemas externos em formatos abertos, estruturados e legíveis por máquina;464 Casaes explica a diferença entre dois tipos de dados governamentais (DG) não abertos, os acessíveis pelo público e os não acessíveis. Através dos conceitos, facilita-se a compreensão sobre dois elementos importantes que podem estar presentes nos dados governamentais: abertura e acessibilidade. Dados abertos sempre contêm esses dois elementos, além de outros: O governo de forma geral, disponibiliza uma infinidade de dados na Web, esses são denominados Dados Governamentais (DG), sendo que estes podem ser abertos ou não. [...] Os DG não abertos e acessíveis pelo público são aqueles que estão disponibilizados on-line, mas não estão em um formato padronizado e indexados, por exemplo. Já os DG não abertos e, também, não acessíveis pelo público, são dados considerados “sensíveis”, estratégicos, ou ainda não foram digitalizados ou simplesmente não estão disponíveis.465 Apesar da obrigação legal de publicação de dados públicos em formatos abertos, muitos órgãos e entidades não cumprem esse mandamento legal, seja por falta de qualificação técnica; interesses políticos discutíveis; e/ou falta de engajamento social junto aos órgãos de controle. A participação social é imprescindível nesse processo, pois a abertura de dados, por si, não faz sentido sem que haja algum objetivo de se transformar esses dados em informações, e essas em conhecimento. Assim, com a abertura de dados governamentais, permite-se ao cidadão “[...] realizar a coleta de dados, transformando dados em informações tangíveis e, consequentemente, a obtenção do conhecimento”466. Diante desse processo, surge a cadeia de evolução de dados e informações, que “[...] representa a transformação gradual e progressiva sobre o uso de dados e informações”467. 464 BRASIL. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal [...]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12527.htm. Acesso em: 12 ago. 2020. 465 CASAES, Júlio César Costa. Governança de dados abertos governamentais: framework conceitual para as universidades federais, baseado em uma visão sistêmica. 2019. Tese (Doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019, p. 40. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/211662. Acesso em: 02 out. 2020. 466 CASAES, Júlio César Costa. Governança de dados abertos governamentais: framework conceitual para as universidades federais, baseado em uma visão sistêmica. 2019. Tese (Doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019, p. 27. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/211662. Acesso em: 02 out. 2020. 467 BARBOSA, Wellington Luiz; LYRA, Roberto Shayer. Governança de dados: contexto da governança de dados na Administração Pública. Brasília: Escola Nacional de Administração Pública, 2019, p. 8. Disponível em: https://repositorio.enap.gov.br/handle/1/5008. Acesso em: 02 out. 2020. 158 Há, nesse sentido, ainda que não se perceba, a atuação conjunta dos atores da governança da internet: a sociedade civil exerce o direito de acesso à informação; o Estado publica os dados em formatos abertos; a comunidade técnica extrai esses dados, cruza com outras bases e produz informações; o setor privado cria produtos e serviços, além de aperfeiçoar os já existentes, a partir das informações obtidas. O debate sobre a monetização desses dados é uma outra questão, que envolve também componentes éticos. Todavia, não se pode negar que, mesmo na exploração econômica, a abertura de dados cumpre seu papel e todos os atores da governança participam da atividade. É imprescindível que se mencione a importância da abertura de dados governamentais para o fortalecimento da democracia participativa. Consequentemente, é um elemento fundamental da democracia digital, pois permite o acesso à informação, o controle social, a inovação cívica, a transparência dos atos governamentais e a materialização do exercício democrático ativo através da tecnologia da informação e comunicação. Idelfonso Silva aponta que o diálogo estabelecido entre a sociedade e o governo surge da relevância de uma sociedade ativa468, “[...] promovendo a participação social nas tomadas de decisões, de forma que a participação cívica se constitui um pilar de suma importância no ideal de abertura governamental”469. Muitos são os benefícios da abertura de dados governamentais, que varia de acordo com o tipo de agente envolvido470. Semelhante aos efeitos das Estratégias de Governança Digital, a sociedade se beneficia com o uso de dados abertos, conforme demonstra o Infográfico 9: 468 IDELFONSO SILVA, Ângela Rayane. Ouvidoria universitária como espaço de participação social e gestão democrática: estudo de caso da Ouvidoria da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2019. Monografia (Graduação em Direito) — Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Caicó, 2019, p. 16. Disponível em: http://monografias.ufrn.br/handle/123456789/9695. Acesso em: 26 out. 2020. 469 IDELFONSO SILVA, Ângela Rayane. Ouvidoria universitária como espaço de participação social e gestão democrática: estudo de caso da Ouvidoria da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2019. Monografia (Graduação em Direito) — Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Caicó, 2019, p. 16. Disponível em: http://monografias.ufrn.br/handle/123456789/9695. Acesso em: 26 out. 2020. 470 UNIÃO EUROPEIA. European Data Portal. Open Data Goldbook for Data Managers and Data Holders: practical guidebook for organisations wanting to publish Open Data. União Europeia, 2018, p. 12. Disponível em: https://www.europeandataportal.eu/sites/default/files/european_data_portal_-_open_data_goldbook.pdf. Acesso em: 12 out. 2020. 159 Infográfico 9 — Benefícios do uso de dados abertos governamentais para a sociedade Fonte: Brasil, adaptado pelo autor.471 471 BRASIL. Escola Nacional de Administração Pública. Elaboração de Plano de Dados Abertos: módulo 1 – conceitos de dados abertos. Brasília, 2017, p. 22 – 23. Disponível em: http://repositorio.enap.gov.br/handle/1/3152. Acesso em: 12 out. 2020. 160 Não se pode (e não se deve) limitar o potencial econômico da abertura de dados, inclusive governamentais. Qualquer restrição no uso, reuso e redistribuição de dados remove seu caráter aberto, como já foi demonstrado anteriormente. Assim como não deve haver barreiras para o exercício do direito fundamental de acesso à informação, o mesmo se aplica em dados abertos. A importância econômica da governança de dados deriva do fato de que dados e informações não são apenas bens comuns sobre os quais as organizações investem para adquirir valor no futuro: são vitais para as operações cotidianas das organizações, na medida em que representam a “moeda”, a “força vital” e o “novo petróleo” da economia digital, e é impossível realizar negócios sem dados.472 Não se trata de monetizar o exercício de um direito fundamental (acesso à informação), mas de se compensar um trabalho técnico e criativo que utilizou como matéria-prima dados, sejam públicos ou privados. É a lógica da livre iniciativa vigente no sistema capitalista: quem quer usufruir de produtos e serviços, por eles deve pagar. Essa monetização não afetará em nada o acesso do cidadão aos dados públicos, pois qualquer pessoa continuará tendo acesso aos mesmos bancos de dados que a comunidade técnica e o setor privado tiveram quando optaram por extrair esses dados e criar produtos/serviços. Inclusive, a monetização de dados abertos (públicos ou privados) é um incentivo para que cada vez mais agentes (e a própria sociedade civil) se sintam encorajados a criar seus próprios produtos e serviços; aperfeiçoar os já existentes; inovar e ingressar no mercado. Viva os valores sociais do trabalho, a livre iniciativa e a livre concorrência!473 Cabe ao Estado regular 472 DAMA INTERNATIONAL. DAMA-DMBOK: data management body of knowledge. 2. ed. [S. l.]: Technics Publications, 2017. E-book. No original: “Data and information are not just assets in the sense that organizations invest in them in order to derive future value. Data and information are also vital to the day-to-day operations of most organizations. They have been called the ‘currency’, the ‘life blood’, and even the ‘new oil’ of the information economy. Whether or not an organization gets value from its analytics, it cannot even transact business without data.” 473 Artigo 1º, Constituição Federal: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; [...] Artigo 170, Constituição Federal: A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; [...] 161 essas atividades através dos meios jurídicos legítimos e intervir na atividade econômica nos limites previstos na Constituição Federal e demais normas infraconstitucionais, afinal, “como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”474 (artigo 174, Constituição Federal). Desse modo, com as alterações normativas ocorridas na ordem econômica na década de 1990, [...] o Estado, contemporaneamente, não é mais o único agente indutor, responsável pela efetivação de direitos fundamentais intimamente relacionados com atividades não mais exercidas diretamente por ele, mas sim por particulares, haja vista suas novas formas de participação na economia e nos serviços públicos. Assim, modificou-se a forma de agir do Estado quase que por inteiro, já que antes era praticamente o único agente responsável pela busca do desenvolvimento, bem como fez surgir responsabilidades para agentes privados investidos do caráter público, haja vista o Estado assumir, por esse novo espectro, um papel de regulador, fiscalizador e planejador de certas atividades e serviços.475 Essas novas formas de colaboração entre o Estado e o setor privado na persecução do direito ao desenvolvimento e na execução de atividades econômicas e serviços públicos são típicas da governança pública, de modo que a abertura de dados é um fenômeno determinante no êxito desse processo. Além de promover a transparência e o controle dos atos governamentais, o uso de dados abertos pela sociedade permite que ela crie produtos e serviços para si e para os governos476. Uma das formas de se compensar a exploração econômica de dados (principalmente públicos) por agentes privados é através da tributação, que pode ser uma fonte de receitas atrativa para que o próprio Estado desenvolva serviços digitais e beneficie, assim, toda a comunidade. É preciso, todavia, observar a proporcionalidade e a razoabilidade na tributação digital, pois esta pode ter efeito contrário, criar empecilhos e desestimular a atuação de agentes com menor poder aquisitivo, principalmente da comunidade técnica que, muitas vezes, como pessoas físicas e (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 17 jul. 2019.) 474 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 17 jul. 2019. 475 OLIVEIRA, Diogo Pignataro de; MENDONÇA, Fabiano André de Souza; ALENCAR XAVIER, Yanko Marcius de. A Governança Pública e o Estado Regulador Brasileiro na Efetivação do Direito Fundamental ao Desenvolvimento. In: MENDONÇA, Fabiano André de Souza; FRANÇA, Vladimir da Rocha; ALENCAR XAVIER, Yanko Marcius de (org.). Regulação Econômica e Proteção dos Direitos Humanos: um enfoque sob a óptica do direito econômico. 1. ed. Fortaleza: Fundação Konrad Adenauer, 2008, p. 42. 476 ALBANO, Cláudio Sonaglio; REINHARD, Nicolau. Desafios para governos e sociedade no ecossistema brasileiro de dados governamentais abertos (DGA). Cadernos Gestão Pública e Cidadania, São Paulo, v. 20, n. 67, jul./dez. 2015, p. 218. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/cgpc/article/view/41150. Acesso em: 12 out. 2020. 162 startups, depende de recursos escassos provenientes de bolsas estudantis, incubadoras477, programas de incentivo à inovação478, e parcerias público-privadas. É interessante observar a atuação do Estado na economia digital e questionar se as normas previstas especificamente nos artigos 173, 174 e 175 da Constituição Federal são factualmente aplicadas nesses modelos econômicos transformados pela tecnologia da informação e comunicação. Ultimamente, o Estado tem crescido no desenvolvimento e na prestação de serviços públicos digitais, cuja incumbência é do Poder Público, na forma da lei, diretamente; ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, conforme determina o artigo 175 da Constituição Federal479. Com a Lei nº 13.874/2019, instituiu-se a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, “que estabelece normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica e disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e 477 “As incubadoras de empresas são instituições que auxiliam micro e pequenas empresas nascentes ou que estejam em operação, que tenham como principal característica a oferta de produtos e serviços no mercado com significativo grau de inovação. Elas oferecem suporte técnico, gerencial e formação complementar ao empreendedor e facilitam o processo de inovação e acesso a novas tecnologias nos pequenos negócios. As empresas que buscam as incubadoras, além de receberem suporte gerencial, administrativo e mercadológico, recebem apoio técnico para o desenvolvimento do seu produto. Com isso, o empreendimento pode ser acompanhado desde a fase de planejamento até a consolidação de suas atividades com a consultoria de especialistas. Geralmente ofertam ainda espaço físico especialmente construído ou adaptado para alojar temporariamente os empreendedores – chamados neste momento de empresas incubadas – e promovem acesso a serviços que as empresas dificilmente encontrariam agindo sozinhas e sem orientação adequada no mercado.” (COMO as incubadoras de empresas podem ajudar o seu negócio. SEBRAE, [s.d.]. Disponível em: https://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/artigos/as-incubadoras-de-empresas-podem-ajudar-no-seu- negocio,f240ebb38b5f2410VgnVCM100000b272010aRCRD. Acesso em: 01 out. 2020.) 478 “A inovação é cada vez mais importante para o desenvolvimento socioeconômico dos mais diversos países, os quais reconhecem que, para melhorar e ampliar suas estruturas industriais e de exportação, são necessárias medidas cuidadosamente formuladas para estimular atividades de ciência e tecnologia articuladas com as demandas do setor produtivo. Diante desse cenário, tornam-se necessárias políticas públicas de incentivo à ciência e tecnologia (C&T) e à pesquisa e desenvolvimento (P&D), envolvendo os diversos níveis do poder público. Diversas empresas, principalmente as iniciantes, não teriam as condições técnicas e científicas, ou mesmo financeiras, necessárias para se tornarem produtivas e adquirir solidez neste mercado competitivo. Nesse caso, é preciso uma parceria entre o poder público e as empresas, visando à inovação tecnológica.” (RIBEIRO, Simone Abreu; ANDRADE, Raphael Medina Gomes de; ZAMBALDE, André Luiz. Incubadoras de empresas, inovação tecnológica e ação governamental: o caso de Santa Rita do Sapucaí (MG). Cadernos EBAPE.br, Rio de Janeiro, v. 3, n. spe, 2005, p. 2. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/cebape/v3nspe/v3nspea10.pdf. Acesso em: 01 out. 2020.) 479 Artigo 175, Constituição Federal: Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Parágrafo único. A lei disporá sobre: I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; II - os direitos dos usuários; III - política tarifária; IV - a obrigação de manter serviço adequado. (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 17 jul. 2019.) 163 regulador”480 (artigo 1º). Esse diploma legal facilita as expressões da economia digital e, consequentemente, da monetização de dados, pois, conforme o artigo 1º, § 4º, do artigo 1º ao 4º, configuram-se normas gerais de direito econômico481; logo, são aplicáveis também à economia baseada em dados. Tem-se um instrumento que aproxima o Estado dos agentes econômicos e desburocratiza a atividade empreendedora em uma postura neoliberal, a ponto de “[...] recolher os limites de atuação do Estado, reorientando suas funções para as já tradicionalmente conhecidas, facilitando o trânsito de mercadorias com outras economias, numa nítida postura de livre mercado mundial”482. O Quadro 8 apresenta uma comparação entre os princípios gerais da atividade econômica, previstos no artigo 170 da Constituição Federal, e os princípios da Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, dispostos no artigo 2º da Lei nº 13.874/2019: Quadro 8 — Comparação entre os princípios gerais da atividade econômica e os princípios de liberdade econômica PRINCÍPIOS DA DECLARAÇÃO DE PRINCÍPIOS GERAIS DA ATIVIDADE DIREITOS DE LIBERDADE ECONÔMICA ECONÔMICA (ARTIGO 170, I – IX, CF) (ARTIGO 2º, I – IV, LEI Nº 13.874/2019) I - Soberania nacional; I - A liberdade como uma garantia no exercício de II - Propriedade privada; atividades econômicas; III - Função social da propriedade; II - A boa-fé do particular perante o poder público; IV - Livre concorrência; III - A intervenção subsidiária e excepcional do V - Defesa do consumidor; Estado sobre o exercício de atividades econômicas; e VI - Defesa do meio ambiente, inclusive mediante IV - O reconhecimento da vulnerabilidade do tratamento diferenciado conforme o impacto particular perante o Estado. ambiental dos produtos e serviços e de seus processos Parágrafo único. Regulamento disporá sobre os de elaboração e prestação; critérios de aferição para afastamento do inciso IV do VII - Redução das desigualdades regionais e sociais; caput deste artigo, limitados a questões de má-fé, VIII - Busca do pleno emprego; hipersuficiência ou reincidência. IX - Tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, 480 BRASIL. Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019. Institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica; estabelece garantias de livre mercado [...]. Brasília, 20 set. 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13874.htm. Acesso em: 20 out. 2020. 481 BRASIL. Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019. Institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica; estabelece garantias de livre mercado [...]. Brasília, 20 set. 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13874.htm. Acesso em: 20 out. 2020. 482 SENA SEGUNDO, Oswalter de Andrade; FRANÇA, Vladimir da Rocha. Estado Regulador e Estado Empresário: coexistência e possibilidades. In: MENDONÇA, Fabiano André de Souza; FRANÇA, Vladimir da Rocha; ALENCAR XAVIER, Yanko Marcius de (org.). Regulação Econômica e Proteção dos Direitos Humanos: um enfoque sob a óptica do direito econômico. 1. ed. Fortaleza: Fundação Konrad Adenauer, 2008, p. 98 – 99. 164 independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. Fonte: Brasil, adaptado pelo autor.483 Não se deve confundir a monetização de dados abertos com a monetização de dados pessoais. Essa incide, na maioria das vezes, no âmbito da ilegalidade, especialmente quando não há respeito à privacidade, consentimento e autodeterminação informativa (vide os incisos do artigo 2º da LGPD). Sem embargo, a LGPD não é incompatível com a livre iniciativa e com a livre concorrência: são fundamentos previstos no artigo 2º, VI, da Lei nº 13.709/2018, bem como a defesa do consumidor. Além disso, a LGPD “não se aplica ao tratamento de dados pessoais realizado por pessoa natural para fins exclusivamente particulares e não econômicos”484 (artigo 4º, I, Lei nº 13.709/2018). Claramente, esse último dispositivo legal não abrange o caso de grandes empresas que utilizam dados pessoais digitais de seus usuários, muitas vezes, sem consentimento, para oferecer publicidade direcionada para fins econômicos e/ou, inclusive, políticos. Vide o inesquecível escândalo da Cambridge Analytica com o Facebook e suas implicações na campanha eleitoral de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos em 2016. Segundo Carvalho; Guimarães & Oliveira: Alguns dos serviços utilizados por usuários da web, oferecidos por empresas como o Google, Facebook, Twitter, WhatsApp, entre inúmeras outras, utilizam em proveito próprio os mais variados dados e informações deste “rastro digital” que deixamos, monetizando-os – pelo tratamento, cruzamento e análise deles ou na construção de modelos de negócio neles baseados, gerando retornos financeiros consideráveis. Essa monetização se dá no âmbito do chamado “Big data” – conceito que envolve a captação, armazenamento, processamento e capitalização de dados e informações com o intuito de auferir toda sorte de vantagens. Através do tratamento de dados, é possível aprimorar, por exemplo, a publicidade dirigida, baseada em padrões de acesso e consumo, e até mesmo influir no hábito do usuário da internet, escolhendo o que mostrar e o que não mostrar, capitalizando também em cima disto (e até mesmo influenciando o resultado de processos políticos, como sugerem certos estudiosos).485 483 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 17 jul. 2019; BRASIL. Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019. Institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica; estabelece garantias de livre mercado [...]. Brasília, 20 set. 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13874.htm. Acesso em: 20 out. 2020. 484 BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm. Acesso em: 17 jul. 2019. 485 CARVALHO, Victor Miguel Barros de; Guimarães, Patrícia Borba Vilar; Oliveira; Adriana Carla Silva de. Monetização de dados pessoais na internet: competência regulatória a partir do Decreto nº 8.771/2016. Revista Estudos Institucionais, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, 2018, p. 382 – 383. Disponível em: https://estudosinstitucionais.com/REI/article/view/215. Acesso em: 12 out. 2020. 165 Uma das questões que deve interferir no tratamento de dados abertos e na sua monetização é o reconhecimento, pelo STF, do direito fundamental autônomo à proteção de dados pessoais (ADI 6.387 MC-REF/DF). Nessa ocasião, o Plenário referendou, por maioria, medida cautelar concedida pela ministra relatora Rosa Weber na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.387 – DF, suspendendo-se a eficácia da Medida Provisória nº 954/2020486. É imperioso destacar trechos dos votos dos ministros Luiz Fux e Gilmar Mendes, em que se reconheceu expressamente a autonomia do direito fundamental à proteção de dados pessoais: Quadro 9 — Direito autônomo à proteção de dados pessoais na jurisprudência do STF (ADI 6.387 MC-REF/DF) DIREITO À PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS Supremo Tribunal Federal, ADI 6.387 MC-REF/DF “De sorte que eu lavro uma ementa concordando inteiramente com o brilhante voto da Ministra Rosa Weber, que foi cirúrgica num momento tão complexo para fazer esse cotejo entre essa liberdade de informação que municia a estatística e, de outro lado, a privacidade pessoal, para, concordando com Sua Excelência, reitero, a Ministra Rosa Weber, assentar, em primeiro lugar, que a proteção de dados pessoais e autodeterminação informativa são direitos fundamentais autônomos extraídos da garantia da inviolabilidade da intimidade e da vida privada e, consectariamente, do princípio da dignidade da pessoa humana, conforme foi muito bem destacado já, digamos assim, pela Ministra Rosa Weber e já no primeiro voto, o do Ministro Alexandre de Moraes.” “Exatamente por isso tudo, no meu modo de ver, a Medida Provisória nº 954/2020 ultrapassa todos os limites fixados pelos direitos fundamentais à proteção de dados, MINISTRO LUIZ FUX à autodeterminação informativa e à privacidade, inobservando ainda o postulado da proporcionalidade, [...].” “Nesse prisma, entendo que a Medida Provisória 954/2020 desborda dos limites fixados pelos direitos fundamentais à proteção de dados e à autodeterminação informativa, extraídos da garantia da inviolabilidade da intimidade e vida privada (art. 5º, X, CF/88), do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88) e da garantia processual do habeas data (art. 5º, LXXII, CF/88).” “A proteção de dados pessoais e a autodeterminação informativa são direitos fundamentais autônomos, que envolvem uma tutela jurídica e âmbito de incidência específicos.” “O quadro fático contemporâneo deve ser internalizado na leitura e aplicação da Constituição Federal de 1988. Aliás, ousaria a dizer que nunca foi estranha à MINISTRO GILMAR jurisdição constitucional a ideia de que os parâmetros de proteção dos direitos MENDES fundamentais devem ser permanentemente abertos à evolução tecnológica.” 486 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Referendo na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.387 Distrito Federal. Relatora: Min. Rosa Weber. Julgamento: 07 maio 2020. Publicação: 12 nov. 2020. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754357629. Acesso em: 05 jan. 2021. 166 “A adequada compreensão do parâmetro de controle invocado, no entanto, perpassa o aprofundamento do inevitável debate teórico acerca da afirmação da autonomia do direito fundamental à proteção de dados pessoais como categoria dentro do rol dos direitos fundamentais, para além da merda evolução do direito ao sigilo.” “Nesse sentido, a análise do referendo da medida cautelar nesta ADI suscita a oportunidade e o dever de o Supremo Tribunal Federal aprofundar a identificação, na ordem constitucional brasileira, de um direito fundamental à proteção de dados pessoais, a fim de estabelecer de forma clara o âmbito de proteção e os limites constitucionais à intervenção estatal sobre essa garantia individual.” “Essa abrangência da proteção atribuída ao direito de autodeterminação constitui importante chave interpretativa do âmbito de proteção do direito fundamental à proteção de dados pessoais, o qual não recai propriamente sobre a dimensão privada ou não do dado, mas sim sobre os riscos atribuídos ao seu processamento por terceiros.” “[...] a tutela de um direito fundamental à proteção de dados não mais se adstringe à demarcação de um espaço privado, mas, antes, afirma-se no direito à governança, transparência e sindicabilidade do tratamento de dados compreendidos em acepção abrangente.” “A afirmação de um direito fundamental à privacidade e à proteção de dados pessoais deriva, ao contrário, de uma compreensão integrada do texto constitucional lastreada (i) no direito fundamental à dignidade da pessoa humana, (ii) na concretização do compromisso permanente de renovação da força normativa da proteção constitucional à intimidade (art. 5º, inciso X, da CF/88) diante do espraiamento de novos riscos derivados do avanço tecnológico e ainda (iii) no reconhecimento da centralidade do Habeas Data enquanto instrumento de tutela material do direito à autodeterminação informativa.” “Desse modo, a afirmação da força normativa do direito fundamental à proteção de dados pessoais decorre da necessidade indissociável de proteção à dignidade da pessoa humana ante a contínua exposição dos indivíduos aos riscos de comprometimento da autodeterminação informacional nas sociedades contemporâneas.” “É importante ainda assentar que essa afirmação de um novo direito fundamental não resulta de um criacionismo jurisprudencial dissociado da própria tradição jurídica brasileira, naquilo que transformada pelos recentes influxos legislativos. A rigor, entre nós, há mais de duas décadas, já se ensaia a evolução do conceito de privacidade a partir da edição de legislações setoriais que garantem a proteção de dados pessoais, tais como o Código de Defesa do Consumidor, a Lei do Cadastro Positivo, a Lei de Acesso à Informação, o Marco Civil da Internet – que inclusive assegura aos usuários da internet, entre outros direitos, a inviolabilidade e o sigilo do fluxo de comunicações e dos dados armazenados (art. 7º, II e III) – e, mais recentemente, a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018). Este último diploma assenta de maneira clara que ‘a disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos o respeito à privacidade e a autodeterminação informativa’ (art. 2º, incisos I e II). Ao mesmo tempo em que todas essas iniciativas normativas não implicam formalmente alterações dos textos constitucionais, elas consagram materialmente categorias de direitos, princípios e normas de governança para a internet, limitando 167 drasticamente o poder de autoridades públicas e de atores privados nas suas relações com os usuários.” “A partir desses três elementos, valorização da dignidade humana, proteção constitucional à intimidade e vitalização do habeas data, é possível identificar dupla dimensão do âmbito de proteção do direito fundamental à proteção de dados.” Fonte: Brasil, Supremo Tribunal Federal, adaptado pelo autor.487 Apesar dos significativos avanços na Política de Dados Abertos da Administração Pública brasileira, ainda há muitos desafios a serem superados e questões sensíveis a serem tratadas com maior aprofundamento, tais como a “[...] preservação de dados para futuras pesquisas; proteção da propriedade intelectual; proteção de dados sensíveis ou confidenciais [...]”488. Diante da prática de ilícitos por agentes privados e pelo próprio setor público, cabe ao Estado Regulador, através da fiscalização, incentivo, planejamento e outras funções típicas, responsabilizá-los pelos danos ocorridos e pelos abusos praticados, inclusive nas esferas criminal e administrativo-sancionadora. É de fundamental importância, portanto, garantir o diálogo multissetorial e horizontal entre os atores da governança da internet e, acima de tudo, a autonomia na atuação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, que deverá acompanhar com cautela a execução da Política de Dados Abertos nos limites previstos pela LGPD e pela Constituição Federal, cumprindo, de fato, o exercício do direito fundamental à proteção de dados pessoais, conforme o reconhecimento do Supremo Tribunal Federal. 487 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Referendo na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.387 Distrito Federal. Relatora: Min. Rosa Weber. Julgamento: 07 maio 2020. Publicação: 12 nov. 2020. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754357629. Acesso em: 05 jan. 2021. 488 CASAES, Júlio César Costa. Governança de dados abertos governamentais: framework conceitual para as universidades federais, baseado em uma visão sistêmica. 2019. Tese (Doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019, p. 30. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/211662. Acesso em: 02 out. 2020. 168 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Essa pesquisa abordou o fenômeno da regulação da democracia digital a partir da perspectiva jurídica do ecossistema da governança da internet na Administração Pública Federal Brasileira. Diante da digitalização de serviços públicos; do oferecimento de bens e serviços em plataformas de governo digital; da ascensão de uma economia criativa baseada em dados; da abertura e interoperabilidade de dados governamentais; e da adoção de práticas de governança no setor público, verificou-se a necessidade de estudar com mais profundidade a relação entre esses processos e o contexto regulatório da governança da internet aplicada à Administração Pública. Com o avanço das tecnologias da informação e comunicação, e a ampliação do seu uso global pela sociedade em rede, especialmente após a 4ª Revolução Industrial (Revolução 4.0), emergiram mais demandas por transparência, prestação de contas, acesso à informação, responsabilização, eficiência e controle social dos atos públicos. A desconfiança nas instituições, o descontentamento com a prestação dos serviços públicos, a prática reiterada de corrupção, e a desigualdade social trouxeram à tona novas manifestações do processo democrático, sob o clamor por mais participação capaz de ultrapassar as barreiras impostas pela histórica representação política burguesa, consolidada no Estado Liberal, e pela insuficiente deliberação. Conceituou-se e foi apresentado o ecossistema da governança da internet, ponto central de onde partem a democracia digital, a governança digital e a governança de dados. Por se tratar de um fenômeno complexo, que abrange múltiplas perspectivas, preferiu-se realizar um corte metodológico sobre o tema, focando nas suas implicações e relações com o Direito Público — Administrativo e Econômico. Quando se aborda a governança da internet a partir do Direito Público, sua análise se volta principalmente para: a) o uso eficiente da tecnologia, pelo setor público, para a consecução dos princípios constitucionais aplicados à Administração Pública — governança digital; b) a manifestação do processo democrático, promovido e facilitado pelas TIC, fortemente dependente da internet, com profundas modificações nas estruturas tradicionais do Estado — democracia digital; c) a abertura de dados governamentais, normalmente associada ao processo prévio de acesso à informação, e ao processo posterior de monetização, o que implica em questionamentos sobre o direito fundamental à proteção de dados, e ao exercício do controle social sob os pilares da governança (nesse sentido, é válido enfatizar as diferenças conceituais entre governança e governo). 169 Acreditando-se que o Direito é, de fato, uma Ciência Social Aplicada, essa dissertação tratou da relação entre os temas supracitados, destacando-se a importância de um olhar interdisciplinar inspirado no modelo multissetorial da governança da internet. Para que se concretize efetivamente o direito ao desenvolvimento, é imprescindível inserir a tecnologia da informação e comunicação nas práticas governamentais e as institucionalizar em normas que proporcionem e incentivem a criação de um ecossistema propício à inovação, à livre iniciativa, à inclusão, à transparência, ao diálogo institucional e ao empoderamento do povo como detentor soberano do poder. Verificou-se, a partir dessas premissas, que é impossível imaginar a democracia digital sem criticar as falhas do Estado Liberal-Burguês e do modelo representativo, devendo-se exaltar a importância da participação social na implementação das políticas e estratégias voltadas à governança da internet. As Estratégias de Governança Digital, no contexto da democracia digital, ensejam a execução e a garantia permanente de direitos fundamentais e princípios constitucionais clássicos, como a publicidade, a transparência, o acesso à informação, a efetividade, a liberdade de expressão e a proteção à privacidade. Todavia, surgem novas normas com alto teor axiológico, que ressignificam aqueles princípios tradicionais e os adaptam à realidade transformada pela 4ª Revolução Industrial e pela governança da internet. A exemplo, tem-se o direito fundamental à proteção de dados pessoais, reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, ao referendar medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.387 – DF. Para que tenham respaldo constitucional, a Estratégia de Governo Digital e as demais políticas de governança pública adotadas pela Administração Pública deverão preservar a estrutura multissetorial e participativa da governança da internet, o que inclui o aperfeiçoamento contínuo das ferramentas de democracia digital, e o cumprimento das normas previstas na LGPD e no Marco Civil da Internet, sendo imprescindível o diálogo com o Comitê Gestor da Internet, entidades não-governamentais e a comunidade acadêmica. O formato multissetorial da governança da internet tem demonstrado um aumento significativo na qualidade da participação da sociedade civil nas políticas digitais. Merece destaque a engajamento de órgãos de pesquisa e de membros de organizações não governamentais, como a Open Knowledge Brasil, na concretização de projetos voltados à transparência, acesso à informação, abertura e difusão dos princípios da governança da internet. Os governos devem se inspirar nessas iniciativas para aperfeiçoar as políticas de governança digital e repensar formas de superar problemas como a exclusão digital, a falta de acesso à rede, a difusão de notícias falsas, e a discriminação de grupos vulneráveis na internet. 170 A pandemia da COVID-19 acelerou os processos regulatórios da governança da internet e do uso das tecnologias da informação e comunicação pela sociedade, na medida em que o isolamento social exigiu, subitamente, a utilização massiva de meios digitais em ambientes que, tradicionalmente, eram relutantes à inovação tecnológica e, até mesmo, ao uso mais básico da internet. De repente, o mundo se viu diante de uma pandemia; para que a vida continuasse, na medida do possível, foi necessário explorar soluções tecnológicas: teletrabalho; educação à distância; homeschooling; telemedicina; aplicativos de delivery; lives em redes sociais; eventos virtuais; e a disponibilização de inúmeros serviços digitais oferecidos pelo setor público. Todos esses eventos disruptivos aconteceram no Brasil, simultaneamente, com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais em vacatio legis, e sem uma Autoridade Nacional de Proteção de Dados devidamente estruturada. Diante disso, irrompeu-se uma crise institucional, provocada pelo conflito entre a Presidência da República, que tentou regular a matéria através de decretos e medidas provisórias; o Congresso Nacional, que se viu pressionado a enfrentar tais discussões e a fornecer respostas rápidas às demandas, ainda que se desconsiderasse a opinião pública e a importância a participação multissetorial dos atores da governança da internet; e o Supremo Tribunal Federal, a quem coube intermediar os conflitos dos nascentes atos normativos e regulatórios das inovações disruptivas, exercendo o controle de constitucionalidade sobre a governança da internet. Como resultado, houve a pacificação temporária e, de certo modo, a aceitação social, sobre as inovações tecnológicas disruptivas emergidas durante a pandemia da COVID-19. Apesar da impressão da criação de um ambiente digital harmônico perfeitamente regulado, não se pode esquecer que dados pessoais continuam sendo tratados, monetizados e manipulados de forma que, se não houver transparência e o fortalecimento da atuação independente dos órgãos regulatórios da proteção de dados, como a ANPD, violações de direitos fundamentais serão reiteradamente cometidas, principalmente pelo Estado, implantando-se uma cultura de vigilância, a exemplo da utopia orwelliana, em oposição aos princípios e fundamentos da privacidade e da proteção de dados. Como demonstrado, as informações sobre a entrada em vigor da LGPD são confusas, o que provocou, por si, severa insegurança jurídica no meio acadêmico, no setor empresarial e no próprio Estado, especialmente quando levado em consideração o contexto no qual a ANPD foi organizada, não havendo certeza, até então, de como seria sua atuação na prática. A ANPD deveria ser o principal órgão responsável por dirimir todas as questões voltadas à proteção de dados das pessoas naturais, a exemplo de modelos internacionais consolidados, prezando pela realização de consultas públicas e pela preservação de mecanismos de compliance, o que inclui 171 a forte atuação de ouvidorias e ferramentas de participação social, reconhecendo-se a vital importância dos princípios da governança pública (e digital) no processo de tomada de decisões e gestão de processos. Vê-se com entusiasmo as expectativas pela criação de uma autoridade reguladora independente, que teria um desempenho ideal se fosse constituída no formato de uma agência reguladora, a exemplo da ANATEL, dotada de independência e livre de captura ou interferências indevidas, de modo geral, pelo chefe do Executivo e pelos agentes econômicos que lideram o mercado. Considerando a importância da atuação da ANPD na preservação do direito fundamental à proteção de dados pessoais, esse órgão precisa ser dotado de uma infraestrutura técnica, corporativa e financeira capaz de aplicar as normas previstas no Marco Civil da Internet e na LGPD de modo democrático, aberto e transparente, permitindo a participação do povo em todas as etapas dos processos institucionais, inclusive decisórios. O diálogo com o Comitê Gestor da Internet, conselhos populares participativos e demais organizações não-governamentais, como a Open Kowledge Brasil, será imprescindível. Defende-se, portanto, a criação da ANPD como uma agência reguladora, em razão da existência de instrumentos jurídicos que possibilitam sua independência, seu poder decisório e a adoção de critérios técnicos na escolha dos seus dirigentes, avaliando-se de forma positiva as iniciativas de governança e compliance previstas na Lei nº 13.848/2019. Igualmente, devem ser criados mecanismos normativos que permitam a existência de uma estrutura multissetorial independente, a exemplo do Decreto nº 4.829, de 3 de setembro de 2003. A natureza transitória da ANPD (órgão) e sua possível transformação em entidade da Administração Pública Federal Indireta sob regime autárquico especial (agência reguladora) traz insegurança jurídica no que se refere à sua organização e aos limites de sua atuação durante o período transitório. O legislador não deixou claro de que forma ocorrerá a transição e como os elementos autárquicos serão introduzidos gradativamente no órgão. Caberia esse processo regulatório ao presidente da República, ao Poder Legislativo, ou à própria Autoridade? Seria a autorregulação uma possibilidade? Ressalta-se que a natureza jurídica de uma agência reguladora não garante, por si, a liberdade de atuação desvinculada de indevidas interferências políticas. O Substitutivo da Câmara dos Deputados (nº 10/2018) ao PLS nº 52/2013 (Lei das Agências Reguladoras) previa a realização de um processo público de pré-seleção de lista tríplice para compor a indicação dos seus dirigentes pelo presidente da República. Infelizmente, houve vetos quanto à formação dessa lista, e a indicação continua sendo livre, o que indica que, inevitavelmente, o Chefe do Executivo continuará a basear suas escolhas em critérios subjetivos, muitas vezes questionáveis 172 sob o ponto de vista dos princípios da moralidade e da finalidade, em vez de considerar opções sugeridas democraticamente por colegiados, as quais formariam a referida lista tríplice. Espera-se que a ANPD seja formada por profissionais que tenham elevada formação acadêmico-profissional em seu campo de especialidade, e que impere um fator objetivo, sob os auspícios da legalidade e demais princípios da atividade administrativa, na indicação dos seus membros. Destaca-se a importância da instalação de um sistema virtual eficiente e acessível de ouvidorias para o oferecimento de denúncias anônimas, solicitações, reclamações e sugestões, o que é essencial quando se trata do “órgão” responsável por analisar, investigar e punir violações de dados pessoais por agentes públicos e privados. Uma das formas de se fortalecer a estrutura da ANPD contra interferências políticas ímprobas, atos de corrupção e desvios de finalidade é através da implantação de programas de compliance, com a execução efetiva de uma política de governança pública capaz de promover transparência, integridade, gestão de riscos, controle, investigações internas e accountability. Todos esses elementos serão fortalecidos se a ANPD for constituída sob a forma de uma agência reguladora, assegurada sua autonomia e apta a cumprir as funções designadas pela LGPD. A constitucionalização das Políticas e Estratégias de Governança Digital se cumprirá pela realização de atividades e atos normativo-regulatórios que prezem pelos princípios da governança da internet e pelo diálogo entre os atores responsáveis em manter esse ecossistema equilibrado. A edição de normas, concretas ou abstratas, e a execução de políticas multissetoriais se consolidarão nos princípios constitucionais da atividade administrativa e da ordem econômica, contanto que incorporem, na prática, a busca da supremacia do interesse público, a eficiência, a publicidade, a legalidade, a participação social e a democratização do ecossistema digital em todos os seus aspectos. O fortalecimento da independência, da autonomia e da tecnicidade das agências reguladoras seria uma solução para as problemáticas apresentadas neste trabalho, diante das insuficiências do Legislativo para tratar de temas da Revolução Digital, e do risco de práticas antidemocráticas e autoritárias pelo Chefe do Executivo, ao tentar utilizar aqueles instrumentos regulatórios como meios de captura do poder político. Além disso, a participação social é imprescindível em qualquer processo público de governança, o qual deve ser facilitado e democratizado pelas tecnologias da informação e comunicação. Confia-se no controle social, exercido diretamente pelo povo, por instrumentos da democracia participativa que ultrapassam a arcaica democracia direta, essa última manifesta de modo simplório em plebiscitos e 173 referendos. Apesar da exaltação de movimentos fascistas489 por grupos insurgidos das zonas abissais mais profundas da (anti)democracia brasileira após as eleições presidenciais de 2018, tem-se esperança na sobrevivência vitoriosa da democracia e da vedação ao retrocesso, pelo bem das futuras gerações, ainda que isso se dê pela judicialização da política e pelo papel ativo das Cortes Constitucionais, o menor dos males. 489 “Out with Congress, Supreme Court saboteurs! New anticommunist constitution! Criminalize communism!’ read one banner. ‘Military intervention with Bolsonaro,’ read another. A protester waved a sign outside the window of a car: ‘Weapons for upstanding citizens.’ Hundreds of diehard, far-right protesters were gathered on Sunday in Brasília, the capital of Brazil, to rally against the quarantine imposed to slow the spread of the coronavirus and in support of what would amount to a military coup against the legislature and judiciary. Multiple journalists were physically attacked. Among the speakers at the rally was President Jair Bolsonaro himself, who was also present at a similar protest two weeks earlier. Bolsonaro and his allies have repeatedly insisted that these protests in favor of overthrowing the legislature and undermining the Supreme Court are ‘spontaneous movements’ by average supporters, but the Supreme Court has opened an investigation into who is behind them. Multiple members of Congress aligned with the president are suspected of organizing the events, including Bolsonaro’s sons. Bolsonaro, who favors reopening the country against the advice of public health experts, is increasingly at war with anyone in the government who does not bend their knee to him, which includes representatives of almost every democratic institution in the country – stoking fears that Brazil is accelerating its slide toward another dictatorship.” (FISHMAN, Andrew. Brazil’s president goes to war with democratic institutions – and hopes the military has his back: Jair Bolsonaro warmly greeted protesters who called for shutting down Congress and the Supreme Court on Sunday. Journalists were physically assaulted at the rally. The Intercept, 4 maio 2020. Disponível em: https://theintercept.com/2020/05/04/brazil-bolsonaro-military-coup/. Acesso em: 08 jan. 2021.) 174 REFERÊNCIAS ABRAHAM LINCOLN ONLINE. The Gettysburg Address, c2020. Disponível em: http://www.abrahamlincolnonline.org/lincoln/speeches/gettysburg.htm. Acesso em: 25 ago. 2020. ALBANO, Cláudio Sonaglio; REINHARD, Nicolau. Desafios para governos e sociedade no ecossistema brasileiro de dados governamentais abertos (DGA). Cadernos Gestão Pública e Cidadania, São Paulo, v. 20, n. 67, jul./dez. 2015. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/cgpc/article/view/41150. Acesso em: 12 out. 2020. ALBUQUERQUE, Romero Paes Barreto de. 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