UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA INTEGRADO DE DOUTORADO EM FILOSOFIA UFRN-UFPB-UFPE SÔNIA SOARES Ética da alimentação: porque devemos, segundo Kant, escolher uma alimentação adequada e saudável Natal 2015 SÔNIA SOARES Ética da alimentação: porque devemos, segundo Kant, escolher uma alimentação adequada e saudável Tese apresentada como requisito para obtenção do grau de doutor no Programa Integrado de Doutorado em Filosofia – do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, UFRN-UFPB-UFPE Natal 2015 SOARES, Sônia. Ética da alimentação: porque devemos, segundo Kant, escolher uma alimentação adequada e saudável. 268 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte; Universidade Federal da Paraíba; Universidade Federal de Pernambuco. Natal, 2015. Tese apresentada como requisito para obtenção do grau de doutor no Programa Integrado de Doutorado em Filosofia – do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, UFRN-UFPB-UFPE Aprovada em 20/11/2015 Banca Examinadora __________________________________________ (Presidente) Orientadora Professora Doutora: CINARA MARIA LEITE NAHRA Instituição: UFRN __________________________________________ Professor Doutor: ALESSANDRO PINZANI Instituição: UFSC __________________________________________ Professor Doutor: JOEL THIAGO KLEIN Instituição: UFRN __________________________________________ Professor Doutor: PAULO SÉRGIO MARINHO LÚCIO Instituição: UFRN __________________________________________ Professor Doutor: MARCO ANTÔNIO OLIVEIRA DE AZEVEDO Instituição: UNISINOS __________________________________________ (Suplente) Professora Doutora: ISLÂNDIA BEZERRA Instituição: UFPR __________________________________________ (Suplente) Professor Doutor: ALÍPIO DE SOUZA FILHO Instituição: UFRN UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede Catalogação da Publicação na Fonte Soares, Sônia. Ética da alimentação: porque devemos, segundo Kant, escolher uma alimentação adequada e saudável / Sonia Soares. - Natal, RN, 2015. 268 f. : il. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Cinara Maria Leite Nahra. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte; Universidade Federal de Pernambuco; Universidade Federal da Paraíba. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa Integrado de Doutorado em Filosofia. 1. Alimentação saudável - Tese. 2. Comportamento alimentar - Tese. 3. Ética - Tese. 4. Transgênicos - Tese. 5. Direito humano à alimentação adequada (DHAA) - Tese. 6. Nutricionista - Tese. I. Nahra, Cinara Maria Leite. II. Título. RN/UF/BCZM CDU 17:612.3 [...] a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exato e rigoroso sinônimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em ação, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste. José Saramago RESUMO Esta tese defende a adoção de uma perspectiva filosófico-prática para o debate sobre o tema da alimentação saudável, tendo em vista os problemas atuais de saúde (da fome à obesidade) que afetam a segurança alimentar e nutricional e constituem objeto de políticas públicas. Utiliza, para isso, elementos políticos, éticos, pedagógicos e antropológicos da filosofia de Immanuel Kant, como contribuições à prática do profissional Nutricionista comprometido com a defesa e a realização do direito humano à alimentação adequada (DHAA). Pressuposto este direito, pretende avançar em relação à perspectiva dominante nas políticas e programas sociais que utilizam o argumento da utilidade, propondo considerar a alimentação saudável também um dever de virtude, segundo a doutrina kantiana dos deveres para consigo. Apresenta o caso da liberação de sementes transgênicas no Brasil como um exemplo de violação do direito à alimentação que afeta negativamente a segurança alimentar, fruto do desacordo entre a política e a moral na atuação do governo. Conclui que a realização do DHAA exige o compromisso tanto do Estado como de cada cidadão e que a filosofia de Kant pode trazer importantes contribuições para a fundamentação da prática do profissional Nutricionista que precisa estar esclarecido acerca do tema. Palavras-chave: Alimentação saudável. Transgênicos. Direitos humanos. Ética. Nutricionista. ABSTRACT This thesis proposes the adoption of a practical and philosophic approach to the discussion about what should be a healthy food, in view of the actual problems concerning this subject (from famine to obesity), which affect food and nutritional security and constitute target of many official policies. In order to handle this task, this work resorts to ethic, pedagogical and anthropological concepts inherent to Immanuel Kant’s philosophy, as valuable contributions to the practice of the professional nutritionist committed to the support and accomplishment of the human right to adequate nutrition (DHAA). Under this assumption, it intends to surpass the prevailing idea inside the social programs and policies favoring the utilitarian argument. It considers rather that a healthy food is also a duty of virtue, according to the Kantian duties to one-self. The liberation of transgenic seeds in Brazil comes up as an example of the violation of the right to food security and affects it negatively, resulting from the conflict between politics and moral faced by the Brazilian government. This paper concludes that DHAA realization requires not only a committed state, but also committed citizens and suggests that Kant’s philosophy should offer important contributions to supporting the practice of the professional nutritionist, awarding him the necessary information about this matter. Key words: Healthy Food. Transgenic Foods. Human Rights. Ethics. Nutritionist. RIASSUNTO Questa tesi difende adotare il punto di vista dalla filosofia pratico-morale per discutere sul tema della sana alimentazione, considerando i problemi atuali di salute (dalla fame alla obesità) che riguardano alla sicurezza alimentaria e nutrizionale dalla popolazione brasiliana e che costituiscono oggetto di politiche pubbliche. Usa, per questo, elementi politici, etici, pedagogici e antropologici dalla filosofia di Immanuel Kant, come contribuizioni alla pratica del professionista Nutrizionista impegnato nella difesa e realizzazione del diritto umano alla sana alimentazione. Assunto tale diritto, propone avanzare riguardo la prospectiva dominante che considera l’argomento dalla utilità e considera la sana alimentazione anche come um dovere di virtù, secondo la dottrina kantiana dei doveri verso se stessi. Presenta il caso del rilascio dei semi transgenici nel Brasile come uno esempio di violazione del diritto umano ad una sana alimentazione che colpisce negativamente la sicurezza alimentaria, risultato del disacordo tra la politica e la morale nell’azione del governo. Conclude che la realizzazione del diritto alla sana alimentazione esige l’impegno sia dello Stato sia del cittadino e che la filosofia di Kant può contribuire per la fondamentazione dalla pratica del Nutrizionista che ha bisogno della chiarificazione del tema. Parole-chiave: Sana alimentazione. Transgenici. Diritti umani. Etica. Nutrizionista LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS DAS OBRAS DE KANT* Antr Antropologia (AA 07) CF O conflito das faculdades (AA 07) Conjecturas Começo conjectural da história humana/Início conjectural da história humana (AA 08) DC Sobre a expressão corrente isto pode ser correto na teoria mas nada vale na prática (AA 08) DV Doutrina da virtude (AA 06) FMC Fundamentação da metafísica dos costumes (AA 04) Ideia Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita (AA 08) CRP Crítica da razão pura (segunda edição – B) CRPr Crítica da razão prática (AA 05) CJ Crítica do juízo (AA 05) LE Lições de ética (Lezioni di ética) MC Metafísica dos Costumes (AA 06) Orientar-se Que significa orientar-se no pensamento (AA 08) Ped Sobre a pedagogia (AA 09) Prol Prolegômenos a toda a metafísica futura (AA 04) Progressos Os progressos da metafísica (AA 20) PP A paz perpétua: um projeto filosófico/Rumo à paz perpétua (AA 08) Rel A religião nos limites da simples razão (AA 06) Resposta Resposta à pergunta: o que é o iluminismo (AA 08) *A indicação entre parênteses corresponde ao volume em que se encontra o texto na compilação das obras de Kant da Academia de Berlim; em a CRP utilizo o sistema tradicional de paginação indicando a versão utilizada (B); em CF, Rel, PP, Lições de ética e MC (2003) utilizo apenas a página da versão em português; nas outras obras, indico a paginação original da Academia, seguida da página da versão em português. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 12 2 PORQUE A ALIMENTAÇÃO INTERESSA À FILOSOFIA: DA UTILIDADE FÍSICA AO DIREITO HUMANO .......................................................................................................... 28 2.1 A utilidade do alimento ............................................................................................... 31 2.2 O direito de todos à alimentação saudável e adequada ................................................. 43 2.2.1 Alimentação adequada: o conflito (ou a interdependência) entre direito social e direito político .......................................................................................................................... 49 2.3 O Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) no Brasil: progressividade ou retrocesso?........................................................................................................................ 65 2.3.1 A (falta de) alimentação como problema moral..................................................... 68 3 PORQUE O DHAA INTERESSA À FILOSOFIA DE KANT: DO DIREITO HUMANO AO DEVER DO ESTADO ........................................................................................................ 79 3.1 A questão renovada do progresso na história humana: resgatando em Kant as origens do DHAA .............................................................................................................................. 83 3.1.1 Kant e o DHAA no âmbito da destinação humana ................................................ 95 3.2 O entusiasmo pelos direitos humanos: defendendo o DHAA a partir da ilustração e da sociabilidade................................................................................................................... 101 3.2.1 O Nutricionista esclarecido para a defesa do DHAA ........................................... 106 3.2.2 A alimentação como parte da sociabilidade ........................................................ 116 3.3 A política como aplicação do direito: realizando o DHAA a partir da constituição republicana e do direito à terra ........................................................................................ 127 3.3.1 Conceitos elementares de uma metafísica dos costumes ..................................... 129 3.3.2 Kant e o jusnaturalismo: a liberdade e o alimento no estado de natureza ............. 135 3.3.3 Kant e o direito à terra: condição primeira de realização do DHAA .................... 142 4 KANT EM DEFESA DA ALIMENTAÇÃO SAUDÁVEL: DEVER DO ESTADO E DEVER DE VIRTUDE ..................................................................................................... 150 4.1 Virtude e felicidade em Kant: a encruzilhada da alimentação saudável...................... 158 4.2 Cuidar de si: fim natural e fim moral ......................................................................... 168 4.2.1 Os Imperativos (não morais) da alimentação saudável ........................................ 178 4.3 Dilemas morais na prática do Nutricionista: o papel da educação na formação para a virtude ............................................................................................................................ 184 5 KANT CONTRA OS ALIMENTOS TRANSGÊNICOS ................................................ 193 5.1 Transgenia: para onde nos conduz o fio condutor dessa história? .............................. 199 5.1.1 Da Revolução Verde à Transgenia: ética, ciência e direito .................................. 204 5.2 O caso da transgenia no Brasil: o governo contra o povo........................................... 216 5.2.1 Esclarecimento e precaução na defesa do DHAA ................................................ 227 5.3 A (in)utilidade do alimento transgênico .................................................................... 234 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 245 REFERÊNCIAS................................................................................................................ 247 1 Textos e Obras de Kant ................................................................................................ 247 2 Obras gerais ................................................................................................................. 248 12 1 INTRODUÇÃO Esta tese insere-se no grande tema “ética da alimentação”.1 É um tema relativamente recente no Brasil, tendo em vista que ainda lutávamos – até 2010 – para garantir na Carta Magna um “direito à alimentação”, isto é, a necessidade de estabelecer um direito, como forma de, a partir disso, fortalecer a luta para assegurá-lo na prática, poderia levar a discussão sobre o como realizar este direito para um momento posterior. No entanto, não se pode separar o direito à alimentação de uma ética da alimentação, não apenas porque a alimentação é um direito humano, mas porque esta alimentação deve ser adequada e saudável e obtida sob certas condições, como estabelece a lei orgânica de segurança alimentar e nutricional,2 de modo que as formas de sua realização passam a ser também questões éticas, visto que envolvem escolhas, e nossas escolhas alimentares atuais revelam uma situação preocupante, dadas as consequências que se verificam no perfil epidemiológico nacional que são relacionadas à alimentação.3 Se é recente o contexto jurídico nacional em que foi estabelecido o direito humano à alimentação adequada (DHAA), a tendência que resultou na mudança do perfil alimentar brasileiro começou a ser delineada já nos anos 90, para o que foi fundamental o processo de urbanização e industrialização que alteraram profundamente os hábitos alimentares das famílias e dos trabalhadores, com reflexos também nas taxas de fecundidade.4 Nosso perfil alimentar e nutricional revela um paradoxo: a despeito dos avanços na ciência, na tecnologia e na redistribuição de renda no Brasil, não podemos falar em progresso para melhor do ponto de vista da realidade de saúde afetada pela alimentação, na medida em que o perfil não foi apenas alterado, mas tornou-se ainda mais complexo, com o que se conhece por dupla carga de doenças, ou seja, ao mesmo tempo em que podemos dizer que houve significativa redução das chamadas doenças da pobreza (como a desnutrição), também sabemos que a má qualidade da 1 Fora do Brasil, a ética da alimentação vem sendo considerada uma nova disciplina, tendo em vista os problemas éticos que surgiram, especialmente, a partir da produção e do consumo de alimentos que geraram movimentos sociais como o veganismo e movimentos de agricultores. Cf. http://www.food.unt.edu/philfood/. Acesso em 17 mai 2015. O campo mais abrangente seria o de uma “filosofia da alimentação”. Cf. KAPLAN, David M.(ed.). Philosophy of food. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 2012. Disponível em https://books.google.com.br/books?id=idubdeClka0C&pg=PA103&hl=pt- BR&source=gbs_toc_r&cad=3#v=onepage&q&f=false. Acesso em 17 mai 2015. 2 BRASIL. 2006b. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional . SISAN com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Disponível em . Acesso em 28 fev 2010. Referida como LOSAN. 3 KAC, G; SICHIERI, R.; GIGANTE, DP. (Org.). Epidemiologia Nutricional. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz/Atheneu, 2007. 4 BATISTA FILHO, M; RISSIN, A. A transição nutricional no Brasil: tendências regionais e temporais. Cad Saúde Pública 2003; 19 Suppl 1:S181-91. 13 alimentação está associada à persistência das doenças carenciais e à epidemia de sobrepeso.5 Para enfrentar esta realidade, a Ciência da Nutrição aplicada ao campo da Saúde Pública enfatiza, por um lado, o aspecto individual das escolhas alimentares, com o discurso da prevenção de doenças e da promoção da saúde, geralmente, anunciado nas práticas educativas; por outro lado, aplicada às políticas públicas, a ênfase se dá na garantia de certas condições voltadas para a segurança alimentar e nutricional de todos, tais como a fortificação de alimentos, a redução de certos nutrientes nocivos à saúde, as regras de rotulagem, sempre valorizando aspectos preventivistas e de promoção de saúde.6 Pode-se dizer que nossas políticas públicas, voltadas para a alimentação, a nutrição e a segurança alimentar, inclusive no que diz respeito às ações educativas, são orientadas por aspectos técnicos e pragmáticos, expressando uma clara perspectiva utilitarista, na medida em que destacam os benefícios pessoais e coletivos obtidos a partir da escolha de uma alimentação saudável, o que representaria para o governo e a sociedade uma redução significativa dos custos com tratamento de doenças evitáveis.7 Não há, na verdade, o uso de argumentos que apontem para o caráter moral das escolhas alimentares, que leve em consideração a vida humana em geral e a condição do homem como cidadão do mundo, numa perspectiva cosmopolita. A argumentação acerca dos motivos para nossas escolhas alimentares, quando existe, é baseada nos fundamentos de uma ética utilitarista. É diante deste perfil e dos desafios colocados pelos problemas alimentares brasileiros, na prática do profissional Nutricionista, que se faz necessário debater (também) eticamente a alimentação, um direito que se constituiu historicamente como direito humano, objeto de políticas públicas, campo de convergência de múltiplos saberes e ligado intrinsecamente à dignidade da vida humana. Como profissional de saúde, entendo que a situação epidemiológica atual – no Brasil e no mundo – em relação às doenças que tem o alimento como fator condicionante ou determinante coloca um grande desafio para todos nós.8 Mas também julgo necessário reconhecer que nossas “regras” sobre uma alimentação saudável, os conselhos de 5 COUTINHO, J.G et al. A desnutrição e obesidade no Brasil: o enfrentamento com base na agenda única da nutrição. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 24 Sup 2:S332-S340, 2008. 6 BRASIL. Portaria 710, de 10 de junho de 1999. Aprova a Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis, atualizada pela Portaria 2715, de 17 de novembro de 2011, disponível em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt2715_17_11_2011.html; BRASIL, 2006a. Portaria 687, de 30 de março de 2006. Aprova a Política Nacional de Promoção da Saúde. Disponível em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2006/prt0687_30_03_2006.html. Acesso em 30 abr 2011. 7 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise de Situação de Saúde. Plano de ações estratégicas para o enfrentamento das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) no Brasil 2011-2022. Brasília: Ministério da Saúde, 2011. Série “Textos Básicos de Saúde”. 8 ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE (OPS). Doenças crônico-degenerativas e obesidade: estratégia mundial sobre alimentação saudável, atividade física e saúde. OPS: Brasília, 2003; ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Obesity: Preventing and Managing the Global Epidemic. Geneva, 2000; BRASIL, 2011, op.cit.; KAC, 2007, op. cit. 14 prudência e os programas voltados para mudança de hábitos alimentares, que se utilizam do argumento “boa alimentação traz mais vida e saúde”, não são suficientes e precisam de mais fundamentação que não seja unicamente aquela do discurso científico, sustentado no apelo utilitarista da felicidade e do bem estar. Minha escolha pelo tema deste trabalho revela, então, uma necessidade profissional, diante da constatação de que a solução dos graves problemas sociais e políticos, que envolvem a relação entre o homem e o alimento, exige ampliar o debate atual sobre o direito humano à alimentação adequada, a partir de uma perspectiva filosófico- prática.9 Meu interesse em defender a alimentação saudável como dever moral é, portanto, um interesse filosófico. Como questão moral, porém, se a alimentação tem sido pouco explorada pela filosofia contemporânea no Brasil, muito menos a área específica da saúde e da nutrição faz uso de algum referencial filosófico. Analisada a partir de outras abordagens para além da questão mais tradicional da composição alimentar e sua relação com a saúde, a alimentação é inserida, preponderantemente, nos campos da economia, do social e do cultural.10 É verdade que a relação entre corpo e alimentação inicia com a própria vida humana, e sempre esteve carregada de simbolismo, como se verifica desde épocas bem remotas.11 No entanto, se a aparente trivialidade do ato alimentar pode ser apontada como uma das dificuldades de se legitimar a alimentação como objeto de pesquisa da Sociologia e da Antropologia, ao longo da história destas disciplinas,12 não parece ser esse o caso da Filosofia. Para Kaplan, a explicação para que apenas ocasionalmente filósofos tenham se dedicado à alimentação está na dificuldade do tema, sua falta de clareza, que o torna vexatório, se se quiser 9 Czeresnia, ao tratar das abordagens da promoção da saúde, reconhece que: “Não há como trabalhar devidamente e de modo prático a construção da idéia de promoção da saúde sem enfrentar duas questões fundamentais e interligadas: a necessidade da reflexão filosófica e a conseqüente reconfiguração da educação (comunicação) nas práticas de saúde”. Cf. CZERESNIA, Dina. O conceito de saúde e a diferença entre prevenção e promoção. In: CZERESNIA, Dina; FREITAS, Carlos Machado de. Promoção da Saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2003, p. 51. 10 BRAGA, Vivian. Cultura alimentar: contribuições da antropologia da alimentação. Saúde em Revista. Piracicaba, v. 6, n. 13, p. 37-44, 2004; MURCOTT, A. Sociological and social anthropological approaches to food and eating. World Review of Nutrition and Dietetics, n. 55, p. 1-40, 1988; MINTZ, S. W; DU BOIS, C. M. The Antropology of Food and Eating. Annu. Rev. Anthropol. v. 31, p. 99-l19, out. 2002. doi:10.1146/annurev.anthro.32.032702.131011, 2002; MENASCHE, Renata. Os grãos da discórdia e o risco à mesa: um estudo antropológico das representações sociais sobre os cultivos e alimentos transgênicos no Rio Grande do Sul. 2003. 279 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003; CANESQUI, , Ana Maria. (Org.). Antropologia e nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005. Coleção “Antropologia e Saúde”; CARNEIRO, Henrique. Comida e sociedade: uma história da alimentação. Rio de Janeiro: Campus, 2003. 11 FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da alimentação. Tradução Luciano Vieira Machado; Guilherme João de Freitas Teixeira. São Paulo: Estação Liberdade, 1998; 12 POULAIN, Jean-Pierre. Alimentazione, cultura e società. Traduzione: Aldo Pasquali. Bologna: Il Mulino, 2008. 15 analisá-lo como algo que coloca desafios filosóficos originais.13 Sócrates, por exemplo, considerava uma prisão, o corpo. Os prazeres da comida e da bebida nunca atraíram o filósofo,14 que precisava afastar-se do corpo, de modo a liberar a alma para o pensamento, pois, “a alma pensa melhor quando [...], concentrada ao máximo em si mesma, dispensa a companhia do corpo”.15 Por outro lado, sabemos que, na origem, estiveram juntas, a filosofia e a medicina, originada da dietética, como prescrição sobre o modo de vida, que incluía a alimentação, tendo em vista a saúde.16 Foi a descoberta do fogo e sua utilização para a cocção dos alimentos – momento que teria permitido a passagem do estado bestial à civilização – que possibilitou o surgimento da arte médica, pela observação do efeito dos alimentos crus e cozidos sobre o indivíduo são e o indivíduo doente, na medida em que, ao serem digeridos através da cocção (pépsis), os alimentos são incorporados ao corpo, gerando todos os elementos da phýsis.17 Quero mostrar com isso que o alimento ingerido, transformado pelas reações metabólicas, vai permitir não apenas os processos básicos para manutenção da vida vegetativa, como também a reflexão típica do filosofar, por isso, o filósofo não precisa desprezá-lo. A analogia entre cozinhar e pensar, elaborar um prato e um pensamento, ou entre alimento e palavra, que tem a boca como órgão comum do sentido, ou mesmo a origem comum das palavras sapore e sapere,18 revelam que são muitas as possibilidades pelas quais a alimentação pode interessar à filosofia. É preciso pensar, pois, sobre a alimentação, ainda que com a alma 13 A alimentação pertence simultaneamente ao campo da economia, ecologia e da cultura. Envolve vegetais, química, atacadistas; pecuária, geladeiras e cozinheiros; fertilizantes, peixe, e varejistas. Rapidamente o assunto se liga a inúmeras questões práticas e empíricas que frustra as tentativas de pensar sobre suas propriedades essenciais. “Food is vexing. It is not even clear what it is. It belongs simultaneously to the worlds of economics, ecology, and culture. It involves vegetables, chemists, and wholesalers; livestock, refrigerators, and cooks; fertilizer, fish, and grocers. The subject quickly becomes tied up in countless empirical and practical matters that frustrate attempts to think about its essential properties. It is very difficult to disentangle food from its web of production, distribution, and consumption.” KAPLAN, 2012, op. cit. p. 1. 14 PLATÃO. Protágoras, Górgias, Fédon. Tradução Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2002. Fédon, 64d. 15 Fédon, 65c. 16 A respeito da relação entre medicina e filosofia na antiguidade e em Kant, a partir do conflito das faculdades, ver minha dissertação SOARES, S. Medicina filosófica: as relações entre medicina e filosofia na Grécia Antiga e em Kant. 2008.133 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Natal, 2008. 17 Como campo originário da medicina antiga, a dietética tratava do mais adequado a cada um, conforme sua natureza. Cf. HIPÓCRATES. Scritti scelti. Trento: Orsa Maggiore Editrice, 1993. É no tratado Antiga Medicina que se encontra o registro mais antigo do termo dieta (διαιτα) no Corpus Hippocraticum, aplicado à alimentação, como prescrição sobre o modo de vida tendo em vista a saúde, o que compreendia não apenas a alimentação, mas tudo aquilo que implicava na manutenção ou recuperação da saúde. Cf. CAIRUS, Henrique & ALSINA, Julieta. A alimentação na dieta hipocrática. Classica (Brasil) 20.2, 999-999, 2007, p. 2. 18 Saber (lat. Sapere) e sabor (lat. Sapore) significam, respectivamente, ter gosto e sabor. Cf. NASCENTES, Antenor. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Livraria Francisco Alves: Rio de Janeiro, 1955. 16 aprisionada neste laboratório que pode ser o corpo.19 Da divulgação do legado Hipocrático, feita pelo médico Galeno de Pergamo (131-200 d. C) à dietética medieval, dominada por receitas mágicas, alquimia e superstições, chega-se ao Tratado da Vida Sóbria20 (Discorsi della vita sóbria, 1558), escrito pelo veneziano Luigi Cornaro (1463?-1566), em que a dietética vai buscar na razão sua orientação, e assim movimentando o debate entre as faculdades. Durante o Renascimento, proliferaram os tratados de dietética que faziam um forte apelo à razão para governar e controlar o corpo. Tratava-se de um instrumento não apenas do próprio indivíduo em relação a si mesmo, mas também do emergente Estado-nação, em relação ao corpo dos indivíduos. Um aspecto original e importante, ainda hoje, dessa dietética que floresceu a partir do século XVII, foi sua relação com a política; o próprio termo dieta, à época, também significava uma assembleia de estados, realizada geralmente à mesa, daí o termo banquetting room, lugar onde, por exemplo, alemães realizavam a maioria de suas assembleias.21 O filósofo Immanuel Kant (1724-1804), que participou ativamente dos debates sobre o tema, chegou a propor uma dietética filosófica, sendo inegável a influência do Renascimento na sua filosofia. É nesse contexto que deve ser entendido o conflito entre as faculdades de filosofia e medicina, abordado por ele,22 em que aponta de que modo os médicos poderiam servir tanto aos interesses do Estado, como aos interesses dos teólogos, donde o conflito com a filosofia, que também se poderia dedicar à medicina, através de uma dietética, mas sem se sujeitar a nenhuma autoridade. Ao contrário de Sócrates, Kant viu no corpo, como organismo vivo, não apenas uma condição para o conhecimento, mas a condição absoluta da própria vida, porque é mediante o corpo que temos poder sobre a vida.23 Um aspecto intrínseco à reflexão sobre o conhecimento 19 A respeito do corpo no corpus kantiano ver BOCHICCHIO, Vincenzo. Il laboratorio dell’anima: immagini del corpo nella filosofia de Immanuel Kant. Genova: Il Melangolo, 2006. 20 Disponível em www.iperteca.it/download.php?id=1453. Acesso em 20 jul. 2014. 21 Cf. CHAMBERS, Ephraim. Cyclopedia, or an Universal dictionary of arts and sciences. London: J. J. Knapton, 1728. v.1, p. 211. Disponível em ttp://digital.library.wisc.edu/1711.dl/HistSciTech.CycloSupple02. Não apenas os homens, mas também os deuses se sentavam à mesa para tomar decisões. Cf. JOANNÈS, Francis. A função social do banquete nas primeiras civilizações. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. Tradução de Luciano Vieira Machado e Guilherme João de Freitas Teixeira. São Paulo: Estação Liberdade, 1998, p. 54-67. 22 KANT, Immanuel. O conflito das faculdades. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1993. Textos Filosóficos, p. 113 et seq. 23 “Se il corpo fosse legato alla vita in modo acidentale, non come una condizione, ma come uno stato di essa, in maniera, [...] da poterlo abbandonare, [...] noi saremmo in grado, allora, di disporre di esso[...] assoggettarlo al nostro libero arbitrio [...] il corpo costituisce la condizione assoluta della vita[...] nn ci è possibile usare dalla nostra libertà se non servendoci di esse.” Cf. Lezioni di ética. Tradução Augusto Guerra. Roma-Bari: Editori Laterza, 1991, p. 169 170. 17 é esta relação entre corpo e alimentação: é papel do alimento a construção orgânica do corpo e o seu funcionamento, mas o corpo também participa, seja do conhecimento sobre o alimento – atribuindo-lhe “características organolépticas” (ou sensoriais), importantes, por exemplo, para conferir atributos de “próprios” ou “impróprios” para consumo –, seja do interesse que leva à escolha alimentar, como na expressão “comer com os olhos”. Por isso merece destaque nesta tese o papel peculiar do corpo no sistema kantiano em relação à sua filosofia prática.24 Foi pensando no corpo como um instrumento da vontade, que Kant pode estabelecer a necessidade de certos cuidados, dentre os quais, os cuidados com a alimentação. O próprio sentimento moral de respeito pela lei da razão só pode se manifestar no corpo, por isso, afirma Kant, na segunda crítica, que a lei moral não pode impor respeito a um “ente livre de toda a sensibilidade”.25 Se Sócrates viu o corpo como um obstáculo à filosofia, Kant pode ver na filosofia uma atividade terapêutica do corpo.26 Destarte, a partir do alimento que constrói o corpo, do corpo que conhece e escolhe o alimento sendo, ao mesmo tempo, afetado por ele, é possível estabelecer importantes conexões para defender uma ética da alimentação baseada na filosofia de Immanuel Kant, como se pretende neste trabalho, para o que será importante a definição kantiana de vida – como “faculdade de um ente agir segundo as leis da faculdade de apetição”27 – e de prazer, como “a representação da concordância do objeto ou da ação com as condições subjetivas da vida”.28 O corpo é a sede de necessidades, inclinações e desejos, e o alimento, ao mesmo tempo em que garante a vida, é também um objeto de prazer; o homem, por sua natureza, é um ser corpóreo, que vive porque conhece e sente (o alimento) na sua corporeidade; como ser livre, cabe a ele 24 São várias as metáforas sobre o corpo na filosofia kantiana. A respeito das metáforas orgânicas, ver os estudos de MARQUES, Ubirajara Rancan de Azevedo. Kant e a epigênese a propósito do “inato”. Scientiæ studia, São Paulo, v. 5, n. 4, p. 453-70, 2007. 25 Crítica da Razão Prática. Tradução de Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 124. 26 “On Philosophers’ Medicine of the Body” (“De medicina corporis, quae philosophorum est”), published posthumously in Johannes Reicke, “Kant’s Rede ‘De medicina corporis, quae philosophorum est’,” Altpreussische Monatsschrift, 18 (1881), p. 293-300, and published separately as Immanuel Kant, Rede de medicina corporis, quae philosophorum est (Königsberg: Beyer, 1881), 19 p. [Ak. 15:939-53] “On Philosophers’ Medicine of the Body.” Translated by Mary J. Gregor in Kant’s Latin Writings: Translations, Commentaries, and Notes, edited by Lewis White Beck (New York: Peter Lang Publ., 1986), p. 228-43 27 CRPr, 16, p. 15. 28 ib. 18 também escolher o que comer.29 De todo modo, diante dos problemas alimentares atuais, não apresentarei regras dietéticas para uma alimentação saudável do ponto de vista da Ciência da Nutrição, dado que minha proposta é ir além da visão utilitarista dominante nas políticas públicas. Assim sendo, também não seria original apresentar uma proposta utilitarista. É inegável que, do ponto de vista fisiológico, por ser necessário à manutenção da vida, o alimento constitui já uma fonte física de utilidade, como reconhece Jeremy Bentham (1748-1832),30 fundador do utilitarismo, e representa um dever para consigo mesmo. Por isso, apelar para sua defesa, especialmente em condições de privação, como no lema “a fome tem pressa”, é algo que pode prescindir de um debate moralmente amplo, em que se discuta o sistema de produção e a distribuição da terra, por exemplo, afinal, sensibilizar pessoas a ajudarem os famintos pode ser mais fácil do que convencer alguém que habitualmente bebe refrigerantes a deixar de fazê-lo. Exemplo disso é que, no início da década de setenta, o filósofo utilitarista Peter Singer problematizou moralmente a questão da fome, defendendo que, se a fome é algo ruim, deve ser evitada ou aliviada, portanto, devemos nos sentir moralmente obrigados a fazer algo a respeito, desde que, ao fazê-lo, não produzamos nenhuma consequência danosa para nós.31 Mais de trinta anos depois, é o mesmo Singer a defender uma ética da alimentação, desta vez, preocupado com o impacto sobre os outros das nossas escolhas alimentares, ou seja, para o utilitarista, “se você gosta tanto de comida e insalubre que está disposto a aceitar o risco de doenças e morte prematura, então, da mesma forma como a decisão de fumar ou escalar o pico do Himalaia, trata-se primariamente de uma questão pessoal”.32 Parece, então, ser mais facilmente compreensível aceitar a fome como algo ruim, que deve ser evitado por aqueles que não vivem essa condição, do que ver nas escolhas alimentares 29 Relacionado a isto, cabe apresentar que é possível fazer uma distinção entre alimento e comida. O antropólogo Roberto da Matta (1987) esclarece que nem todo alimento é comida, pois o que escolhemos para comer é determinado não necessariamente por causa de seu valor nutritivo ou sua relação com aspectos biológicos, mas tem a ver com o contexto cultural, onde estão presentes os valores, símbolos e significados que atribuímos a cada alimento que vai se tornar comida para nós. Sabemos que ao longo da nossa história, distintas regras foram atribuídas aos alimentos, estabelecendo quais devem ser escolhidos para comer, como devem ser preparados, por quem podem ser consumidos, e quando. Cf. DAMATTA, R. Sobre o simbolismo da comida no Brasil. O Correio da Unesco. Rio de Janeiro, 15(7), 1987. Não vou me ater a esta distinção entre comida e alimento, pois, como veremos em seguida, ao tratar de políticas e leis sobre segurança alimentar e nutricional, o termo utilizado é alimento/alimentação. 30 BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. Tradução de Luiz João Baraúna. São Paulo: Abril Cultural, 1984. Coleção Os Pensadores. 3 ed. Utilizo esta versão, referida como Introd., para todas as citações de Bentham neste trabalho 31 SINGER, Peter. Famine, affluence, and morality. Philosophy and public affairs. Vol. 1, nº 3, Spring, 1972, 229- 242. 32 SINGER, P.; MASON, J. A ética da alimentação: como nossas escolhas alimentares influenciam o meio ambiente e nosso bem-estar. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 2. 19 não saudáveis algo que deve ser evitado, por ser também ruim para aqueles mesmos que escolhem. Imagens de pessoas famintas certamente afetam nossa sensibilidade, mas penso que se requer mais do que a sensibilidade, se quisermos que alguém, diante de um prato de batatas fritas, hambúrguer e refrigerante, veja algo de ruim, quando tem prazer ao consumi-lo. O que quero dizer com isto é que, do mesmo jeito que a fome não deve ser considerada uma questão pessoal, também as escolhas alimentares não devem ser consideradas apenas sob o aspecto do interesse próprio, para evitarmos um tipo de egoísmo moral.33 Como pano de fundo para este debate, será fundamental não desconsiderar a conjuntura específica de globalização, que trouxe profundas mudanças para o viver humano – como resultado do extraordinário desenvolvimento das técnicas de produção de alimentos, fruto do avanço científico –, ao mesmo tempo em que se deu o avanço na garantia jurídica dos direitos humanos. Com efeito, para além da situação epidemiológica de epidemia de obesidade, grande parte causada pela inadequação da alimentação disponível à maioria da população, temos ainda o importante problema da liberação de alimentos transgênicos, defendida e promovida pelo governo brasileiro, em atitude frontalmente contrária ao posicionamento dos movimentos sociais e de cientistas independentes,34 o que expressa uma grave situação de violação do direito humano à alimentação adequada (DHAA), reveladora de contradições entre a política, a moral e o direito. A verdadeira política não dá um passo sem render homenagens à moral, afirma Kant, e se há discrepância, como parece ser o caso dos transgênicos no Brasil, “o direito dos homens deve ser mantido como coisa sagrada”;35 somente o recurso à moral é capaz de desatar o nó e alinhar a política com o direito. Isto nos obriga a fazer ainda uma reflexão moral sobre a ciência, tendo em vista o enorme avanço do conhecimento sobre a vida, que teve profundas consequências sobre as formas de produzir alimentos e afetou a relação milenar estabelecida na agricultura entre o homem e a semente. À medida que passamos de caçadores-coletores do que a natureza nos oferecia a cultivadores e produtores, o desenvolvimento da agricultura e da pecuária nos fez 33 Para Kant, o egoísta moral é aquele que reduz todos os fins a si mesmo, de modo que o fundamento de determinação de sua vontade está apenas na utilidade e na própria felicidade. Cf. Antropologia de um ponto de vista pragmático. Tradução de Clélia Aparecida Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006, 130, p. 29-30. Toda a ética kantiana está baseada no conceito positivo de liberdade, ou seja, a liberdade como autonomia, a liberdade do sujeito que estabelece para si mesmo somente aquilo que a razão pode estabelecer como fim. 34 A carta em que mais de 800 cientistas, de 82 países, expressam sua posição contrária aos transgênicos foi divulgada no ano passado. Cf. em http://www.ihu.unisinos.br/noticias/532297-cientistas-pedem-a-suspensao-dos- transgenicos-em-todo-o-mundo. Acesso em 12 dez 2014; 35 Rumo à paz perpétua. Tradução de Heloísa Sarzana Pugliesi. São Paulo: Ícone Editora. 2010. Coleção Fundamentos do Direito, p. 107. 20 verdadeiros “criadores” de novas tecnologias aplicadas aos processos de produzir alimentos, por meio das quais, matérias antes nunca existentes passaram a ser incorporadas nos alimentos e no nosso corpo, algumas sem possibilidade de eliminação, como certos aditivos alimentares que não são metabolizados e, portanto, tem efeito cumulativo.36 Os maiores desafios hoje no que diz respeito à produção agrícola, tendo em vista a segurança alimentar no Brasil, decorrem do progresso da ciência e do alcance de suas aplicações no campo. A área da produção de sementes em laboratório, seguramente, constitui um dos melhores exemplos de como a relação entre saber e poder, poder este conferido pela possibilidade de aplicação técnica daquele saber, se deu de modo mais intrincado e permeado por valores os mais controversos. Por isso, a reflexão filosófica sobre a biotecnologia aplicada às sementes constitui um rico campo de debate, seja do ponto de vista da filosofia da ciência, seja do ponto de vista do direito, da ética e da política. Da revolução verde à revolução genética, ao revelar suas leis, a partir dos experimentos científicos, a natureza abriu a porta para ser dominada e controlada por meio de tecnologias desenvolvidas para alterar aquelas leis, no mesmo movimento em que a ciência, cujo valor intrínseco era produzir conhecimento como fim em si mesmo, passou a ser cada vez mais valorizada por seu valor instrumental, tornando difícil separar ciência de tecnologia. A ciência de hoje, diz Jean-Jacques Salomon, no que se tornou uma ciência operacional, em que não se distingue da técnica, “não tem nada a ver com sabedoria: ela é essencialmente pesquisa, aperfeiçoamento, gestão, exploração de poderes sobre as coisas e sobre os homens.”37 Foi diante deste poder, que fez do homem também uma coisa, que Hans Jonas propôs uma ética da responsabilidade,38 cujo princípio da precaução será aqui utilizado para o debate sobre os transgênicos. Em trabalho sobre a atualidade do método de análise da geografia de Josué de Castro, aquela mesma que buscara integrar uma visão social e natural dos problemas relacionados à alimentação, Abramovay identifica três elementos comuns a três importantes documentos que 36 POLÔNIO, Maria Lúcia Teixeira; PERES, Frederico. Consumo de aditivos alimentares e efeitos à saúde: desafios para a saúde pública brasileira. Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 25, n. 8, p. 1.653-1.666, ago. 2009; ALBUQUERQUE, Miriane Vieira et al. Educação alimentar: uma proposta para redução do consumo de aditivos alimentares. Química Nova Escola, v. 34, n. 2, p. 51-57, maio 2012. 37 SALOMON, Jean-Jacques. Sobreviver à ciência: uma certa ideia do futuro. Tradução de Antonio Viegas. Instituto Piaget: Lisboa, 1999, p. 11. 38 JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradução de Marijane Lisboa, Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006. 21 abordam os desafios para o século XXI na questão da segurança alimentar.39 O primeiro reconhece os progressos da produtividade agrícola, decorrentes da Revolução Verde, mas que “beneficiaram de maneira muito desigual o conjunto da população do planeta” [...], além do “custo ambiental – em termos de solo, água, biodiversidade e mudança climática – incompatível com o crescimento populacional previsto até 2050, quando as necessidades alimentares vão praticamente dobrar”; o segundo elemento aponta a necessidade de “integrar o conhecimento científico e os saberes tradicionais no preparo do solo, na produção, na armazenagem, na distribuição e no próprio consumo”, considerando que uma das funções decisivas deste século será exatamente a preservação da biodiversidade, para o que os agricultores estão entre os mais importantes protagonistas; por fim, o terceiro elemento é o “reconhecimento do caráter multifuncional da atividade agrícola, que não se restringe à oferta de alimentos, fibras e energia, mas cumpre funções decisivas na preservação da biodiversidade e do equilíbrio da ecosfera”.40 Assim, as preocupações éticas mais importantes suscitadas pelas pesquisas que trabalham com manipulações genéticas devem apontar tanto para os objetivos – determinados preponderantemente pelos patrocinadores – como para o referencial teórico que orienta a pesquisa, em geral, dirigido para o controle e a dominação da natureza. Em sua crítica sobre o lobby científico e industrial da nova genômica e suas pretensões, por exemplo, Jacques Testart afirma que: “O futuro dirá o que essa atitude comporta de ilusões, mas a atualidade permite constatar sua vontade globalizante, certamente totalitária”.41 A situação da transgenia no Brasil será, pois, um excelente caso para aplicação de correntes éticas, seja pelo princípio da utilidade, da autonomia ou da responsabilidade, admitindo-se que uma ética da alimentação atual pode elaborar reflexões importantes sobre como produzimos o que comemos, no âmbito do debate sobre o próprio futuro da humanidade e a sustentabilidade, pois a realização de tal necessidade básica no mundo contemporâneo, tanto pode levar não apenas à morte e à doença individualmente, como pode levar à extinção toda a 39 Os documentos analisados pelo autor são: 1.o relatório do International Assessment of Agricultural Knowledge, Science and Technology for Development (IAASTD); 2. o plano estratégico francês do Centre de Coopération Internationale em Recherche Agronomique pour le Développement (CIRAD); 3.a plataforma internacional de discussão liderada pelo CIRAD e pelo Institut National de la Recherche Agronomique (INRA), também francês, sobre os desafios agrícolas e alimentares numa perspectiva de desenvolvimento sustentável no horizonte 2050. Cf. ABRAMOVAY, Ricardo. Integrar sociedade e natureza na luta contra a fome no século XXI. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 24(11):2704-2709, nov, 2008, p. 2708. 40 ABRAMOVAY, 2008, op. cit., p. 2708. 41 TESTART, J. Plantas transgênicas: inúteis e perigosas. In: ZANONI, M & FERMENT, G. (org.). Transgênicos para quem? Agricultura, ciência e sociedade. Brasília: MDA, 2011a, p. 221-238, p. 224. 22 espécie humana.42 Frente a esta realidade, e considerando a importância do conceito de liberdade para toda a Moral, vou encontrar o fundamento filosófico para a defesa da alimentação saudável como dever moral na doutrina kantiana dos deveres, apresentada na obra Metafísica dos Costumes.43 Sabemos que Kant não foi indiferente às questões práticas, de realização do princípio moral e de sua aplicação, por isso, sua filosofia prática foi escolhida para orientar a construção deste trabalho, que considerará também sua doutrina do direito, uma vez que a alimentação saudável, como direito humano, é um direito natural que precisa ser garantido permanentemente, como direito público. Como direito de todo cidadão, exigem-se obrigações por parte do Estado para a garantia do DHAA, o que será discutido à luz dos textos políticos de Kant,44 destacando a necessidade do acordo entre a política e a moral, dado o conflito entre liberdade e poder.45 As obrigações do Estado para respeitar o DHAA incluem tanto o cumprimento de prestações positivas, como ações de caráter regulatório e fiscalizador, para impedir obstáculos à realização daquele direito, onde se instala o conflito (externo) no âmbito das relações do Estado com o setor produtivo de alimentos, cujo interesse maior é apenas a obtenção do lucro. Há, no entanto, outro conflito, uma vez que não será por imposição do Estado que faremos as escolhas adequadas a respeito da nossa alimentação: falo de um conflito interno, quando se considera a alimentação saudável como dever de virtude, que exige a superação das próprias inclinações. Disso fica claro que a existência de responsabilidades por parte do Estado não isenta o cidadão de obrigações, na medida em que, sob certas condições, é ele o responsável por suas escolhas alimentares. Em ambos os casos, o alimento saudável deve ser o fim destas escolhas. Neste ponto, claramente, identifica-se uma divergência com correntes sociológicas que 42 FORESIGHT PROJECT. Global Food and Farming Futures. Future of Food and Farming: Challenges and Choices for Global Sustainability: Final Project Report. London: The Government Office for Science, 2011. Disponível em: . Acesso em 02 mar 2011; ANDRIOLI. Antônio Inácio; FUCHS, Richard. (Orgs.). Transgênicos: as sementes do mal. São Paulo: Expressão Popular, 2008; FOOD AND AGRICULTURAL ORGANIZATION – FAO. Building a Common Vision for Sustainable Food and Agriculture: Principles and Approaches. Roma, 2014. Disponivel em: . Acesso em 19 jun. 2015. 43 Utilizo duas versões desta obra: Metafísica dos Costumes. Tradução Clélia Aparecida Martins (primeira parte) e Bruno Nadal, Diego Kosbiau e Monique Hulshor (segunda parte). Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2013; e Tradução de Edson Bini. Bauru, SP: EDIPRO, 2003. 44 A paz perpétua e outros opúsculos. Tradução de Artur Morão Lisboa: Edições 70, 1995. Textos Filosóficos. 45 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Brasiliense, 2005. 23 avaliam que as decisões alimentares não são nem individuais nem racionais.46 Poulain, por exemplo, considera uma ideologia mais ou menos psicologizante da dieta a que postula um consumidor alimentar livre para escolhas e decisões racionais. Ora, é indiscutível que o ato de comer tem sofrido mudanças profundas ao longo do tempo, e que não podemos mais considerá- lo nem como uma atividade fora do espaço da política, nem que serve apenas para atender às necessidades vitais. Aquele simples ato, instintivo, elementar para a manutenção da vida, adquiriu tamanha complexidade que hoje está também diretamente associado à morte e à doença, pela produção do “não alimento”.47 Se essa transformação fez da alimentação um complexo fenômeno que inclui aspectos psicológicos, socioculturais, políticos, técnicos, estéticos e econômicos, não há motivos para deixar de fora as considerações éticas. Por isso, a liberdade será discutida neste trabalho, aplicada não apenas à questão da escolha individual pelo alimento – onde conflitam autonomia e livre arbítrio –, mas também à sua garantia, como direito, onde podem conflitar liberdade interna e externa. Assim sendo, a abordagem ética que defendo para as escolhas alimentares, do ponto de vista individual, vai além do aspecto antropológico e sociológico, tradicionalmente discutidos sobre esta questão no âmbito do setor saúde. Apresento a importância da dimensão ética (individual) na consideração de um problema que é também jurídico-político, pois, embora assegurada juridicamente para todos, uma vez que o Estado tem intervenção limitada no campo das escolhas individuais, há que se valorizar, do ponto de vista de cada cidadão, seu papel como cidadão do mundo. Neste contexto, à luz ainda da Pedagogia48e da Antropologia49 de Kant, será importante propor práticas educativas que promovam as escolhas alimentares saudáveis como escolhas éticas, a partir de uma reflexão sobre nossos deveres para conosco, como deveres éticos, sempre relacionando com o conceito de liberdade. Isto posto, considero que a defesa dos direitos humanos muito se enriquece com a filosofia de Kant, profundamente ligada à ideia de dignidade. Do ponto de vista da história dos direitos humanos, identifico um fio condutor, um sentido de progresso, que conduziu à afirmação e ampliação daqueles direitos para incluir o DHAA. Reconheço, porém, graves conflitos do ponto de vista do direito e da política, que resultam em violações daquele direito. 46 POULAIN, 2008, op. cit., p. 132. 47 Non food, expressão usada por Krista Scott-Dixon, corresponderia ao que no Brasil estamos opondo à “comida de verdade”, tema da conferencia de segurança alimentar e nutricional deste ano. Cf. SCOTT-DIXON, Krista. What Do Cyborgs Eat? Oral Logic in an Information Society. Meso-RX, 20 jan. 2000. Disponível em https://thinksteroids.com/articles/cyborgs-bodybuilders-nonfood/. Acesso 20 mai 2015. 48 Sobre a Pedagogia. Tradução de Francisco Cock Fontanella. Piracicaba: Editora UNIMEP, 1996. 49 Antropologia de um ponto de vista pragmático. Tradução de Clélia Aparecida Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006. 24 Busco, então, a partir disso, tendo a moralidade como fim da história humana, apresentar de que modo a alimentação saudável está inserida no alcance da destinação do gênero humano, tornando-se, assim, um dever moral. Sempre seguindo o pensamento de Kant, destaco a importância do uso público da razão no exercício da profissão de Nutricionista, um profissional de saúde, que deve atuar na defesa de um direito, cuja realização exige fazer escolhas morais. A opção de aprofundar a ética kantiana e não aquela utilitarista deu-se em função da riqueza de possibilidades que Kant apresenta para atender aos objetivos do trabalho. No entanto, não desconsidero a abordagem utilitarista, por reconhecer que esta predomina nos debates sobre hábitos alimentares, na medida em que serve para estabelecer quais escolhas devemos fazer, em função das consequências, tanto individuais – o adoecimento, por exemplo – como coletivas, quando se considera também a sustentabilidade ambiental da produção de alimentos.50 Dito isso, e admitindo claro o problema ético da nossa alimentação atual, seja dentro de uma abordagem voltada para o âmbito público – que trate das escolhas políticas de gestores e governos preocupados com a saúde pública e suas regulamentações –, seja voltada para o âmbito pessoal – que considere a liberdade de escolha, como autonomia individual –, devo reconhecer a importância dos estudos antropológicos nesta área – como uma antropologia filosófica da alimentação –, que tratam das formas de satisfação de um impulso e necessidade básica, sem deixar de perceber o que há de moral neste ato que se insere no campo da cultura. Tais estudos devem ser vistos, porém, como parte de uma sistematização “totalizante” que inclui: o conhecimento da alimentação como direito humano e do direito à soberania alimentar (reino da política); o conhecimento do que o homem, como ser livre, pode e deve fazer, ou seja, quais deveres para consigo ele pode e deve estabelecer, tanto no que se refere às escolhas alimentares individuais, como no que se refere à produção de alimentos (reino da moral); e o conhecimento da natureza do homem e o conhecimento da natureza do alimento (reino da física); Deste modo, a relação entre o direito, a ética, a política, a história, a pedagogia e a antropologia em Kant, aplicada à práxis da alimentação saudável, será apresentada nesta tese, 50 Em 2013, o tema escolhido pela FAO para debater no Dia Mundial da Alimentação, comemorado em 16 de outubro, foi “Sistemas alimentares saudáveis”; em 2014, novamente a sustentabilidade está presente no tema “Alimentar o mundo, cuidar do planeta”. O ano de 2014 foi também escolhido pela FAO como o Ano Internacional da Agricultura e 2015 é o Ano Internacional do solo. Para um histórico dos temas ver COELHO, Ana Íris Mendes et al . Dia Mundial da Alimentação: duas décadas no combate aos problemas alimentares mundiais. Rev. Nutr., Campinas, v. 18, n. 3, June 2005 . Disponvel em . Acesso em 10 fev 2015. 25 considerando a seguinte questão: sendo hoje a alimentação um direito humano e constitucional, como efetivar sua realização, diante dos graves problemas alimentares que constituem o atual perfil epidemiológico e nutricional da população brasileira? Qual o papel do Nutricionista nessa questão? Que contribuições a filosofia prática de Kant pode oferecer? Para apresentar a tarefa do Nutricionista, que nada mais é que uma tentativa de aplicação da moral kantiana, parto do que diz Kant sobre o caráter do homem, como animal dotado da faculdade da razão, portanto, que pode: fazer de si um animal racional (animal rationale); nisso ele, primeiro, conserva a si mesmo e a sua espécie; segundo, a exercita, instrui e educa para a sociedade doméstica; terceiro, a governa como um todo sistemático (ordenado segundo princípios da razão) próprio para a sociedade.51 A conservação, portanto, aparece em primeiro lugar na formação do homem, para o que, evidentemente, temos de considerar o papel da alimentação, como fonte de vida. Mas também será necessário que se desenvolva uma pedagogia que eduque a todos para a escolha de uma alimentação saudável, tendo em vista os problemas apontados decorrentes das escolhas incorretas que podem, inclusive, afetar a conservação da espécie. E uma vez que o indivíduo sozinho não pode dar conta de atender esta necessidade básica, ainda que esteja comprometido com a escolha do que é saudável, políticas públicas se fazem necessárias para garantir aquele que é um direito, que somente no contexto da segurança alimentar pode ser garantido a todos de modo permanente, sem comprometer as outras necessidades. Em todos esses campos, é inevitável a relação que vemos na filosofia kantiana entre natureza e liberdade. Metodologicamente, conduzirei as questões sobre uma ética da alimentação transversalmente às principais obras de Kant,52 seguindo suas pistas, para mostrar a relevância e a atualidade da sua filosofia em um tema tão essencial, que expressa tanto um direito como um dever. Ao estilo kantiano, tentarei unir o teórico e o prático no campo da alimentação, para o que não posso prescindir da sua Antropologia e da sua Pedagogia, pois, sem conhecer a natureza humana não é possível sequer imaginar a realização de ações morais, nem atuar (pedagogicamente e politicamente) para sua promoção. Devo alertar que tal percurso transversal de modo algum será exaurido neste trabalho, antes, terá como mérito tão somente abrir caminhos para novas investigações aprofundadas, seja no campo crítico-metafísico, seja 51 Antr., 322, p. 216. 52 Refiro-me às obras fundamentais para a compreensão da sua filosofia moral: a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, a Crítica da razão prática e a Metafísica dos Costumes. 26 no campo histórico-político da filosofia kantiana, afinal, à pergunta: “o que é o alimento para o homem?” muito tem a dizer sobre “o que é o homem?”. Passo agora à descrição sucinta da estrutura da tese em quatro capítulos. O primeiro capítulo é propedêutico, busca preparar o caminho para a discussão dos outros capítulos, construídos a partir de Kant; começo por uma abordagem genérica sobre a importância do tema para a filosofia e destaco o princípio da utilidade de Bentham, porque esta visão utilitarista é dominante na defesa da alimentação saudável no nosso contexto político atual. Em seguida, para alicerçar o debate central da tese sobre alimentação saudável como dever moral, abordo os documentos mais importantes que reconheceram a alimentação como direito humano no âmbito internacional desde a Declaração da ONU (1948). A importância dessa “história empírica” é porque nela posso encontrar fundamentos para a solução das questões práticas apresentadas na última seção, em que trato dos problemas nacionais, à luz do ordenamento jurídico brasileiro. No segundo capítulo, sigo com a filosofia política de Kant para refletir sobre alimentação, ética e direito, tendo como pano de fundo as relações entre progresso jurídico e progresso moral. A partir da compreensão do DHAA como uma conquista da sociedade brasileira, fruto de um “progresso” na história dos direitos humanos, cujo referencial mais importante foi, sem dúvida, a Revolução Francesa, serão importantes aqui as considerações sobre a destinação humana, o esclarecimento e o entusiasmo, o que requer pensar o homem kantiano como um cidadão do mundo,53 cuja natureza o leva à busca da moralidade, da qual a sociedade civil é a condição principal. É também com base no pensamento político de Kant, que apresento de que modo o Nutricionista poderia fazer a defesa do DHAA, atuando também como educador. Com isso, preparo o caminho para a abordagem da doutrina da virtude aplicada à alimentação saudável no capítulo seguinte. O terceiro capítulo é dedicado à doutrina da virtude kantiana, a partir da qual fundamento o dever em relação à alimentação saudável como um dever para consigo e problematizo o papel do Nutricionista na defesa desta abordagem. Aqui será importante fazer o confronto com aquela visão inicial do alimento como utilidade, uma vez que a discussão em Kant está ligada à ideia de dignidade humana e de como se tornar digno da felicidade. Destaco a importância da atuação profissional na promoção da autonomia, evitando a postura 53 Ao cidadão do mundo, Kant vai opor “o filho da terra”, espectador do mundo, a quem só interessa os negócios e aquilo que se refere às coisas que influenciam nosso bem-estar; ao cidadão do mundo, com seu olhar cosmopolita, interessa toda a humanidade, seu valor intrínseco (Refl. 1170 apud TARABORELLI, Angela. Cosmopolitismo: dal citadino del mondo al mondo dei cittadini. Saggio su Kant. Asterios: Trieste, 2004. 27 paternalista condenada por Kant. No último capítulo, faço uma aplicação da filosofia kantiana à questão dos alimentos transgênicos, tendo em vista o que foi abordado nos capítulos anteriores, desta vez, enfatizando o papel do Estado no problema específico da liberação das sementes transgênicas. Uma vez que cabe ao Estado a garantia da realização do DHAA, parto de elementos históricos marcantes que resultaram na aprovação do cultivo de sementes transgênicas no Brasil, para analisar as relações entre a política e o direito, diante dos avanços da ciência. Reivindico, nesta questão, um comportamento ético também por parte dos que fazem a ciência, para o que será importante considerar o princípio da precaução e, por isso, complemento a análise kantiana com a teoria da responsabilidade de Hans Jonas. Finalizo, retomando a abordagem utilitarista, no que diz respeito à produção e ao consumo de alimentos transgênicos, em virtude de importantes consequências para a segurança alimentar já observadas em estudos sobre o tema. 28 2 PORQUE A ALIMENTAÇÃO INTERESSA À FILOSOFIA: DA UTILIDADE FÍSICA AO DIREITO HUMANO Uma causa principal das doenças filosóficas: dieta unilateral – alimentamos nosso pensamento com apenas uma espécie de exemplos (Wittgenstein, Investigações, § 593) No texto Começo conjectural da história humana54 (1786), a partir do relato bíblico, o filósofo Immanuel Kant destaca o papel central da alimentação,no início da história do agir humano (como primórdios da história humana), a qual vai se desdobrar como história do primeiro desenvolvimento da liberdade. O termo “conjecturas” é utilizado para este momento inicial exatamente porque, segundo o autor, os primórdios da história humana são uma obra da natureza, portanto, podem ser deduzidos da experiência, uma vez que se pode supor que a natureza de sua época – século XVIII – não é melhor nem pior do que aquela descrita no Gênesis.55 Já para o desdobramento da história humana, como história do progresso da liberdade, as conjecturas não poderiam ser mais que mera ficção. Ainda neste texto, Kant, seguindo o fio condutor da razão ligada à experiência, permite-se um passeio “nas asas da imaginação”, e destaca quatro momentos da história humana. A alimentação, como instinto, evidentemente, tem de se colocar no primeiro momento, para garantir a própria existência humana. Segundo o relato bíblico, nas conjecturas de Kant, o primeiro casal teve de adquirir certas habilidades, dada a impossibilidade de uma herança que lhe conferisse habilidades inatas. Certamente a habilidade de se erguer e andar lhe permitia seguir a voz de Deus, como instinto, na busca dos alimentos permitidos. Neste momento, bastariam o olfato e o paladar para que a nova criatura pudesse “pressentir” – como todas as outras criaturas – a adequação ou não do alimento ao consumo. Mas, então, ocorre que a razão, por intervenção de outro sentido independente do instinto – o da visão –, será instigada a buscar outros alimentos, na medida em que, por meio da visão, foi apresentado algo semelhante ao já experimentado, que ainda não se experimentou, possibilitando assim extrapolar seus conhecimentos a respeito dos alimentos. Claro que, eventualmente, o que se lhe apresentava, embora não recomendado pelo instinto, poderia não 54 Utilizo, como referências, as duas traduções do texto para o português: Tradução de Joel Thiago Klein. ethic@ Florianópolis v. 8, n. 1 p. 157 - 168 Jun 2009; Tradução de Edmilson Menezes. São Paulo, UNESP, 2010. 55 Este é um ponto interessante para as discussões na última parte deste trabalho, porque já não se pode mais afirmar isso, muito pelo contrário, pois, hoje, a natureza que temos é artificialmente construída, inclusive aquela da qual se originam os alimentos, tanto pela produção agrícola, como pela produção industrial, com a adição de produtos sintéticos cujas estruturas não são nem mesmo copiadas da natureza. 29 contradizê-lo, porém, surge aí um problema, a saber, que “é uma propriedade da razão que ela, com o auxílio da imaginação, pode criar não apenas desejos desprovidos de impulso natural, mas pode criar até mesmo desejos contrários a ele”.56 Minha intenção com este relato é mostrar que Kant identifica o primeiro ato de liberdade com o ato de escolher um alimento, o que coloca, intrínseca e originariamente unidos, a liberdade (razão) e a alimentação. Para alimentar o corpo, movido pelo desejo, o homem se descobriu livre, por isso Kant estabelece o começo da história humana nessa ruptura entre o instinto e a razão, uma razão que transpõe os limites de toda a animalidade, mas não a aniquila. É preciso ressaltar ainda, sempre no caso da alimentação, que é o sujeito que estabelece o que poderá servir ou não como alimento, movido pela imaginação, mas não apenas por ela. Foi em virtude da natureza deste sujeito que Kant assim afirmou, nas Lições de Direito Natural (1784): “O ser humano sabe que não deve comer aquilo que lhe é nocivo. Isto é uma regra objetiva. Se ele, no entanto, deixa-se levar pela sensibilidade e come, ele está agindo segundo regras subjetivas da vontade.”57A natureza própria do sujeito que é capaz de saber, mas também de querer algo diferente do que sabe, ou seja, de ter uma vontade, é o que lhe possibilita estabelecer regras para si mesmo. Tal só é possível pela liberdade do arbítrio humano, o qual, embora possa ser afetado, não é determinado pela sensibilidade. Nisto nos distinguimos de toda a animalidade. Veremos nesta tese que a relação entre corpo e alimentação mediada pela razão, que inicia a história humana, acompanhará todo o processo civilizatório, na passagem do estado de natureza para o estado civil, e vem a se tornar, nos dias de hoje, um elemento essencial também do próprio futuro da humanidade, o que permite fazer da alimentação um campo de análise filosófica, dado o conflito que pode advir, naquela relação, entre o desejar, o conhecer, o poder e o dever. Deste modo, é inegável o interesse da filosofia pela alimentação, seja como filosofia da história, seja como filosofia moral e política. Além disso, se ficamos livres de uma submissão à natureza como provedora do nosso alimento, porque dependíamos dos ciclos naturais para sua obtenção, somos hoje quase que totalmente dependentes das novas tecnologias que garantem alimentos de forma homogênea e globalizada, num processo substituição da physis pela techne, que parece descontrolado, a ponto de gerar medo e angústia. Diante disso, refletir sobre o que escolhemos comer implica avaliar também como produzimos o que comemos, sendo que nesta relação produção-consumo vem à 56 Conjecturas, 2009, 111, p. 159, grifos do autor. 57 Direito Natural Feyerabend. Tradução Fernando Costa Mattos. Cadernos de Filosofia Alemã. nº 15 – p. 97-113 – jan.-jun. 2010, p. 105. 30 tona questões cujas consequências podem afetar não apenas nós mesmos, mas todo o gênero humano e o meio ambiente em geral. Deste modo, a razão que orienta o saber e a técnica na produção de alimentos – como razão instrumental – nos colocou diante de uma encruzilhada, por isso, a alimentação, mais uma vez, interessa à filosofia como filosofia da ciência. Há que se reconhecer, portanto, um conflito crucial no campo das escolhas alimentares, que pode ser analisado do ponto de vista do indivíduo e da sociedade. A clínica desenvolveu as medidas antropométricas como forma de obter conhecimento do corpo individual e avaliar seu estado nutricional, e a epidemiologia faz uso de inquéritos dietéticos que avaliam o consumo e os hábitos alimentares em populações. Em ambos os casos, o estudo do todo – como organismo vivo – possibilita conhecer suas partes, seja este todo um corpo individual, seja uma sociedade como corpo político. Este aspecto estrutural de um todo organizado por partes – que caracteriza o organismo – serviu para Kant estabelecer tanto o requisito de uma verdadeira ciência, como seu método filosófico: começar pelo todo, pois é quando a ideia do todo precede as partes que se tem um sistema, já que, se as partes precedem o todo, o que se obtém é um agregado. Exemplo disso, começo, neste capítulo, focando no indivíduo, para abordar a necessidade física do alimento para sua autoconservação, a partir do princípio da utilidade proposto por Jeremy Bentham; porém, logo se revela que a alimentação não pode ser considerada apenas no âmbito privado, como escolha individual, onde o princípio da utilidade poderia até parecer suficiente, já que considera cada indivíduo como um todo, mas, nas medida em que o comportamento de um pode afetar a felicidade e o interesse dos outros, torna-se necessário deslocar o foco da análise para o âmbito do direito de todos à alimentação adequada, cuja origem será buscada nas normas jurídicas internacionais. Por isso, delimito os avanços obtidos em termos de garantias jurídicas no contexto internacional, relacionando com o ordenamento jurídico interno, expresso nas Políticas de Segurança Alimentar e Nutricional, de Alimentação e Nutrição, e de Saúde, onde é possível identificar um viés utilitarista, para destacar o conflito entre liberdade (como autonomia individual) e poder do Estado e apontar a necessidade de superação do referencial baseado na utilidade. O utilitarismo aqui não será apresentado em termos de mais uma “corrente ética” nem em suas várias versões. É feita a exposição do princípio da utilidade conforme apresentado por Bentham porque a discussão contemporânea no âmbito da saúde considera a relação custo- benefício – tradução daquele princípio de utilidade – como regra para análise das consequências do agir humano. A escolha por Bentham justifica-se ainda em função de uma convergência peculiar com Kant: ambos tiveram um papel importante na história do pensamento jurídico, 31 inclusive na relação com a saúde58, e ambos consideraram a alimentação um dever de virtude, embora com justificativas diferentes como ficará claro ao longo deste trabalho.59 2.1 A utilidade do alimento E quem diz que a hora de filosofar ainda não chegou ou já passou assemelha- se ao que diz que ainda não chegou ou já passou a hora de ser feliz (Epicuro, A Filosofia e o seu Objetivo) O princípio de utilidade, proposto por Jeremy Bentham, parte da constatação do poder que a dor e o prazer têm na determinação das ações humanas. Em sua obra Uma introdução aos princípios da moral e da legislação (1781), Bentham defende que este princípio “aprova ou desaprova qualquer ação, segundo a tendência que tem a aumentar ou a diminuir a felicidade da pessoa cujo interesse está em jogo”60 e está baseado no conceito de utilidade, sendo esta “uma propriedade em virtude da qual o objeto tende a produzir ou proporcionar benefício, vantagem, prazer, bem ou felicidade [...] a impedir que aconteça o dano, a dor, o mal ou a infelicidade para a parte cujo interesse está em jogo”.61 O princípio pode ser aplicado a um indivíduo apenas – como parte interessada – e pode também se referir a uma comunidade, um “corpo fictício” constituído de pessoas individuais reconhecidas como seus membros, de modo que no cálculo da felicidade de uma comunidade leva-se em consideração a soma dos interesses de seus membros. Para Bentham não há dúvida: apenas em virtude da dor (para diminuir) ou do prazer (para aumentar), os homens podem ser moralmente obrigados a fazer algo, isto é, “muitos outros princípios – ou seja, outros motivos – podem constituir a razão que explica por que esta ou aquela ação foi praticada, porém a utilidade constitui a única razão que explica por que a mencionada ação pode (moralmente) ou deve ser praticada”. 62 Em função disto, as regras de conduta serão estabelecidas conforme o cálculo das consequências das ações em termos de dor e prazer. Como empirista que é, Bentham parte da experiência individual da dor e do prazer – que 58 Sobre a influência de Bentham na reforma sanitária inglesa ver ROSEN, George. Uma história da saúde pública. São Paulo: Hucitec-Abrasco, 1994, p. 115; 140 et seq. 59 Uma divergência interessante, mas que não será abordada neste trabalho, diz respeito à relação entre ética e direito, entre Bentham e Kant. A respeito disso ver DIAS, Maria Cristina Cardoso Longo. Trans/Form/Ação, Marília, v. 38, n. 1, p. 147-166, Jan./Abr., 2015 http://dx.doi.org/10.1590/S0101-31732015000100009. 60 Introd., Cap. I, §§ II, III, p. 3. 61 Introd., Cap. I, §§ II, III, p. 4. 62 Introd., Cap. II, §19, p. 11, grifos do autor. 32 ele chama de “termos reais” – e considera que é em virtude dessa que se pode construir o que o que chama de “termos ficcionais” como o direito, a política e a ética. 63 Para ele, a ética em sentido amplo é “a arte de dirigir as ações do homem para a produção da maior quantidade possível de felicidade em benefício daqueles cujos interesses estão em jogo”. 64 E uma vez que o homem pode dirigir as ações que lhes são próprias, e também as ações de outros agentes, é preciso ter uma ética privada – autogoverno – como arte de dirigir as próprias ações, e uma legislação – governo – como arte de governar, por meio do direito. 65 A arte do governo diz respeito ao governo de ações de pessoas não adultas, portanto, como educação, de modo que toda ética é uma ética privada. Bentham assinala que, em primeiro lugar, a felicidade do indivíduo depende daqueles setores do seu comportamento que interessam somente a si mesmo, daí a ética ser denominada uma ética de deveres para consigo que expressa a qualidade da prudência, termo também usado para designar o amor à vida em um sentido bom.66 Mas, em segundo lugar, a felicidade do indivíduo depende daqueles setores de comportamento que podem afetar a felicidade alheia, gerando assim uma obrigação em relação aos outros, a benevolência, que pode se expressar negativamente, como probidade – quando me abstenho de agir, seja para causar dor ou reduzir a felicidade alheia – ou positivamente, como beneficência – quando procuro aumentar a felicidade alheia. Prudência, probidade e beneficência são, portanto, as três formas de conduta humana, sobre as quais vão se debruçar a ética e o direito.67 A partir disso, considerando que já temos evidências empíricas da relação entre certos alimentos – ricos em gordura saturada, açúcar e sódio – e doenças na população, quero discutir os motivos que levam às escolhas alimentares não saudáveis, para expor o conflito que pode se dar entre a (im)prudência e a benevolência, ou seja, avalio como os interesses de uma coletividade podem ser afetados a partir dessas escolhas individuais. Para o utilitarismo interessa as consequências da ação, então é preciso saber o que vai causar as melhores consequências, em termos de maior prazer e menor dor para o indivíduo. 63 A compreensão desta distinção entre termos reais e ficcionais como recurso metodológico para a construção epistemológica do utilitarismo de Bentham pode ser vista em DIAS, Maria Cristina Longo Cardoso. Uma reconstrução racional da concepção utilitarista de Bentham: os limites entre a legislação e a ética. São Paulo, 2006. Dissertação. (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. 64 Introd., Cap. XVII, §1, II, p. 63. 65 Introd., Cap. XVII, §1, V, p. 64. 66 Introd., Cap. X, XXVII, p. 39. 67 A beneficência se traduz nas ações propriamente ditas, cujo motivo é a benevolência efetiva positiva. A probidade, considerada benevolência efetiva negativa, se traduz na abstenção de gerar dor aos outros; é neste último campo de ação que deve atuar a legislação, enquanto o campo da ética se volta para a prudência e a benevolência positiva. 33 Qualquer coisa que visivelmente possa estar relacionada com as consequências do ato, em termos de causalidade, é o que Bentham chama de circunstância. Devemos considerar as circunstâncias – ainda que não possamos conhecê-las em sua totalidade – antes mesmo de dizer qualquer coisa a respeito das consequências, pois disto depende a interpretação sobre estas.68 O ato em si de se alimentar tem a peculiaridade de precisar ser realizado em função da utilidade de sobrevivência, por necessidade. Neste sentido, pensando a “utilidade do alimento”, à luz das “fontes” apontadas por Bentham69 de onde costumam derivar a dor e o prazer – fontes estas que diferem apenas segundo as circunstâncias de sua produção –, podemos distingui-lo como fonte física, fonte política, fonte moral ou fonte religiosa. 70 Estas fontes são consideradas sanções porque os prazeres/dores delas derivados passam a ter uma força obrigatória. Para Bentham, 71 a sanção física está incluída em cada uma das outras três, mas pode operar independente delas. Esta sanção diz respeito às forças da natureza e é apontada por ele como o fundamento de todas as outras; vou tratar aqui da sanção física, pois nesta já se pode perceber a força desta “utilidade” (primeira) do alimento. Começo, então, afirmando o seguinte: o alimento como causa eficiente, portanto como meio, pode ser uma fonte física tanto de dor como de prazer, e isso em função de sua qualidade, da quantidade, da forma de apresentação, a duração do seu consumo, entre outras coisas. Vejamos, a seguir, a relação de circunstâncias que Bentham utiliza para medir a tendência geral de um ato em gerar dor ou prazer, e aplicar ao caso da alimentação. São sete as circunstâncias apresentadas na proposta de Bentham para medir os prazeres e as dores72: 1) intensidade, 2) duração, 3) certeza ou incerteza, 4) proximidade ou longinquidade no tempo, 5) fecundidade, 6) pureza, e 7) extensão, sendo que 1, 2, 3, e 4 podem ser consideradas na avaliação do prazer e da dor em si mesmos, enquanto 5 e 6 só devem ser consideradas na avaliação da tendência do ato ou evento pelo qual o prazer ou a dor foram produzidos, e 7 refere-se ao número de pessoas afetadas pelo prazer ou pela dor. Assim, a 68 Uma circunstância é material quando é visível, e uma circunstância imaterial é aquela que não apresenta relação visível com as consequências, isto é, não apresenta relação causal nem direta nem indiretamente. Nesta relação causal, a circunstância tanto pode produzir diretamente a consequência (pela via da causalidade produtora), como contribuir para isso (pela via da derivação), podendo ainda estar apenas implicada na produção tanto da circunstância como da consequência (pela via da conexão colateral), ou somente por influência conjunta, quando tanto consequência como circunstância contribuem para produção de outra consequência que lhes é comum (Introd., Cap. VII, XXIII, p. 20-21). 69 Introd., Cap. III, II, p. 13. 70 Quando o prazer ou a dor de uma pessoa em particular ou de uma comunidade deriva da vontade que expressa o poder de um soberano ou Estado, temos a sanção política; a sanção é moral quando a dor ou prazer depende da disposição espontânea de cada um (não segundo uma regra como no caso da sanção política); a sanção religiosa é aquela em que o prazer ou a dor está nas mãos de um ser superior (Introd., Cap. III, IV, V, VI, p. 13-14). 71 Introd., Cap. III, XI, p. 15. 72 Introd., Cap. IV, §II, IV, e V, p. 20-21. 34 fecundidade de uma dor ou de um prazer é a probabilidade que um ou outro sejam seguidos por sensações da mesma espécie – um prazer fecundo é o que tem maior probabilidade de ser seguido por outro prazer; já a pureza refere-se à probabilidade de não ser seguido por sensações do tipo contrário, isto é, um prazer será tanto mais puro quanto menor for a chance de ser seguido de dor. Facilito a compreensão disto com os versos apresentados pelo autor sobre estes pontos, onde repousam o edifício da moral e da legislação fundado no utilitarismo: Intensos, duradouros, certos, fecundos, puros – / Tais são os sinais dos prazeres e das dores/ Procura tais prazeres; se forem privados, sejam o teu fim; / Se forem públicos, faze com que se estendam amplamente. / Tais dores evita, qualquer que seja tua visão; / Se as dores forem inevitáveis, que não sejam muito extensas. 73 Passo agora à aplicação. Embora o comensal possa reconhecer a proximidade e a certeza de um prazer de forte intensidade ao ingerir alimentos não saudáveis, mesmo que a duração deste prazer não seja tão longa, isso pode não ser suficiente para ele deixar de realizar sua escolha. Por outro lado, se considerarmos os malefícios que o consumo daqueles alimentos pode trazer, desde o desconforto abdominal por causa do excesso de açúcar e gordura – expressando assim a impureza do prazer – até o dano a longo prazo na forma de doenças como diabetes e dislipidemias, seria possível avaliar como indesejáveis para nós as consequências daquele ato de consumo, de modo que, em razão do princípio da utilidade, não deveríamos fazer aquelas escolhas, e sim agirmos com prudência. É interessante observar, em Bentham, que as normas de obrigação moral que menos necessitam do concurso de uma legislação são exatamente as normas de prudência, aquelas que se referem aos deveres para consigo.74 Evitar o alimento não saudável seria, portanto, uma regra de conduta a ser adotada por todo aquele que reconhecer o malefício disso, considerando as circunstâncias enumeradas acima. Para Bentham, uma deficiência neste campo só pode ser atribuída à deficiência por parte da inteligência, que é suscetível de três estádios: a consciência (se acredita existirem as circunstâncias que realmente existem), a inconsciência (se não percebe circunstâncias que existem) e a falsa consciência (se acredita que existem circunstâncias que não existem). Por isso, afirma Bentham: “se a pessoa age de maneira errônea, só pode ser ou por inadvertência ou por alguma falsa suposição com respeito às circunstâncias das quais 73 Introd., Cap. IV, §II, p. 20, nota 7. 74 Introd., Cap. XVII, §1, XV, p. 66. 35 depende a sua felicidade”.75 Não parece ser esse o caso das nossas escolhas alimentares individuais. Se é fato que muitos não são advertidos ou tem falsas suposições acerca dos malefícios de certos alimentos, também é certo que mesmo sob a condição de plena informação, ou seja, mesmo quando somos conscientes das consequências realmente danosas que um alimento pode trazer, ainda assim, podemos fazer a escolha pelo pior alimento do ponto de vista de sua utilidade para a saúde. Como explicar essa escolha, dado que não se pode dizer que seja falta de inteligência? O que está por trás da má aplicação do princípio da utilidade no caso dos alimentos não saudáveis, objetos de nossas escolhas? “A qualidade humana mais rara é a coerência e a constância no modo de agir e pensar”, diz Bentham. 76 Assim sendo, ele aponta duas maneiras pelas quais fugimos do princípio da utilidade: pelo ascetismo – quando constantemente se busca o contrário do prazer, o que não condiz com nossa realidade no que se refere à alimentação – ou pelo princípio da simpatia ou antipatia, isto é, quando alguém simplesmente se sente disposto a aprovar ou desaprovar certas ações, apenas com base nos próprios sentimentos e convicções internas, sem qualquer fundamento externo,77 o que poderia explicar a estranha situação de termos simpatia por alimentos sabidamente nocivos à saúde. Teríamos, assim, mais simpatia por alimentos ricos em açúcar do que fundamento para orientar nossa escolha alimentar com base na utilidade; neste caso, deveríamos propor a antipatia por alimentos não saudáveis como uma possível solução e, deste modo, desistir de encontrar um fundamento utilitarista para a defesa moral de uma alimentação saudável? É possível defender moralmente uma ‘utilidade’ do alimento? Vamos verificar com mais detalhes se o cálculo apresentado anteriormente é suficiente para a análise. Até agora mensuramos dor e prazer e avaliamos a tendência (consequência) dos atos. Bentham observa que são consequências tanto aquelas que poderiam ter derivado do ato independente da intenção, como também aquelas que tem conexão com a intenção.78 O que causa a intenção é o motivo. A intenção pode se referir tanto ao ato em si como a suas consequências.79 Os atos, junto com suas consequências, são objeto tanto da vontade como da inteligência, mas a inteligência refere-se apenas à consciência – faculdade intelectiva – que 75 Introd., Cap. XVII, §1, XV, p. 66, grifos do autor. 76 Introd., Cap. I, XII, p. 5. 77 Introd., Cap. II, II, XI, p. 8-9. 78 Introd., Cap. VII, IV, p. 19. 79 Se a intenção afeta apenas o ato, o ato é intencional; se afeta as consequências – o que só ocorre quando afeta também o ato, pelo menos na sua primeira etapa – estas serão ditas intencionais; se a intenção afeta ambos, toda a ação é dita intencional (Introd., Cap. VII, II). 36 temos das circunstâncias. Assim, quanto às consequências, a intenção depende tanto do estado da vontade ou intenção em relação ao ato, como do estado de inteligência, isto é, da percepção em relação às circunstâncias. A questão principal que quero apontar aqui, para a análise da escolha alimentar como uma escolha utilitarista, diz respeito ao motivo que é causa da intenção. Bentham faz questão de esclarecer as diversas significações à palavra motivo, a qual, em sentido vasto, é entendida como qualquer coisa que pode contribuir para produzir, evitar ou impedir uma ação.80 Ora, nós podemos ter como ações de um ser pensante tantos atos do corpo como atos da mente. Os atos da mente são ou atos da consciência (faculdade intelectiva) ou atos da vontade. Os atos da faculdade intelectiva podem repousar apenas na inteligência, sem influenciar a vontade (intenção), são atos imateriais, que não tem influência sobre atos externos nem sobre consequências, por isso não interessam aqui; os motivos que influenciam este tipo de ato são motivos especulativos. O que vai interessar são os atos da vontade e os motivos que os influenciam, ou seja, os motivos práticos.81 Temos ainda um sentido real e um sentido figurado da palavra motivo. Em sentido real, motivo é qualquer fator realmente existente capaz de originar o ato, que dispõe à ação; o sentido figurado refere-se a uma paixão, um estado da mente que a influencia para tomar a decisão. Retomando a “utilidade” primordial do alimento, que é alimentar, fazer crescer, isto é, a satisfação de uma necessidade vital que está assegurada pelo instinto de auto-preservação. Bentham se refere a isso, quando trata dos motivos, ao dizer a respeito das dores da fome e da sede, que aqui “a necessidade física em muitos casos dificilmente se pode distinguir do desejo físico”. 82 Interessante observar que tanto o desejo físico como a autopreservação são considerados inicialmente motivos neutros ou indiferentes, segundo a classificação do autor. Na verdade, para Bentham, os motivos não são constantemente bons nem maus, pois, “um motivo não é substancialmente outra coisa senão o prazer ou a dor operando de uma determinada forma”. 83A única forma que ele vê para qualificar um motivo como bom ou mau é com referência aos seus efeitos em cada caso individual e, sobretudo, a partir da intenção derivada do motivo (um motivo é bom quando a intenção dele originada é boa), mas a qualidade da intenção não depende só do motivo, o que torna difícil classificar os motivos. 80 Introd., Cap. X, §1º, p. 28. Ação é o ato mais a consequência. 81 Há, no entanto, motivos que, através da inteligência, podem exercer influência sobre a vontade e, por isso, são também práticos; outros motivos práticos são os objetos que tendem a induzir a uma crença em relação à existência de um motivo prático (Introd., Cap. X, §1º, p. 30). 82 Introd., Cap. X, §2, XXVII, p. 38. 83 Introd., Cap. X, §2º, IX, p. 31. 37 E sendo a classificação dos motivos sempre um arranjo imperfeito, Bentham considera um método mais cômodo distribuir os motivos, segundo a influência que eles tem sobre os interesses de outros membros da comunidade, uma espécie de influência social, de modo a harmonizar os interesses pessoais com os da comunidade. Lembremos que o sujeito auto- interessado do utilitarismo é aquele sempre em busca do maior prazer e menor dor para si, mas é no próprio interesse, segundo Bentham, que este sujeito encontra o único motivo para se sentir obrigado a promover a felicidade alheia, já que há coincidência entre benevolência e utilidade. Deste modo, aqueles motivos anteriormente classificados como neutros, quais sejam, a autopreservação e o desejo físico, passam a ser self-regarding, ou seja, motivos pessoais. Não há sentido mau na autopreservação porque seu objetivo é evitar a dor. No entanto, sabe-se que a dor (assim como a doença e até mesmo a morte) pode ser consequência de uma alimentação inadequada, porém, desejada pelo prazer que proporciona. Extrapolando estas consequências para a coletividade, o resultado pode ser o que já temos hoje, uma epidemia de doenças crônicas que tem no alimento ingerido seu principal fator de risco. Bentham chama de calamidade o sofrimento que atinge uma pessoa no decurso natural e espontâneo dos acontecimentos, e de castigo derivante da sanção física, a calamidade que é decorrente da imprudência da pessoa. 84 As consequências, em forma de adoecimento, por exemplo, poderiam assim ser consideradas um castigo decorrente da imprudência no cuidado de si, pela não consideração do princípio da utilidade. Em resumo, defender a utilidade do alimento implica levar em consideração, além do ato e suas consequências, as circunstâncias – as quais estão em relação causal com as consequências – e os motivos que causam as intenções, mas, se os motivos não podem necessariamente ser considerados bons ou maus e, no entanto, causam as intenções que tem por objeto o ato, então o que pode ser bom ou mau no agente que admite ser dirigido por um ou outro motivo? Para Bentham, é a disposição, aquilo que supostamente permanece na estrutura ou inteligência de uma pessoa ao ser influenciada em qualquer ocasião por este ou aquele motivo a praticar um ato.85 Há, como é de se esperar, uma relação entre a disposição e o motivo, pois, a natureza da disposição depende da natureza dos motivos que a influenciam. Sempre tendo em mente a experiência, Bentham vai presumir que, dada a constância e uniformidade nas ações de uma pessoa, pode-se concluir que provavelmente sua disposição sofrerá a mesma influência em outros casos. 86 84 Introd., Cap. III, VIII, p. 14. 85 Introd.¸Cap. XI, I, p. 50. 86 Introd., Cap. XI, I, p. 51. 38 Se o ato é de natureza perniciosa, o motivo que levou a tal prática será um motivo sedutor/corruptor, ao passo que o motivo opositor, isto é, que vai agir como demovente do ato, será chamado de preservador. Dada a natureza do motivo, afirmada anteriormente, qualquer motivo pode ser tanto preservador, como sedutor. Da classificação dos motivos conforme sua influência sobre os interesses da comunidade, o motivo de boa vontade ou benevolência é apontado por Bentham como “aquele cujos ditames, considerados de maneira geral, apresentam a maior certeza de coincidirem com os motivos do princípio da utilidade”, já que “os ditames da utilidade não são nem mais nem menos do que os ditames da benevolência”. 87 Exatamente este motivo de benevolência é o que menos está propenso a atuar como sedutor, sendo sua maior tendência atuar como preservador, ou seja, no sentido de demover o motivo que levaria à prática perniciosa, catalogado como preservador permanente, ainda que possa também atuar como sedutor. A autopreservação aparece como um dos motivos mais aptos a atuar como preservadores, na condição, porém, de preservador ocasional, e não permanente, o que talvez possa explicar o nosso problema frente às escolhas alimentares que nos trazem doenças. Nem sempre escolhemos o alimento saudável tendo em vista nossa preservação, mesmo tendo conhecimento, porque a certeza da intensidade do prazer imediato proporcionado pelo alimento não saudável constitui motivo suficiente para a escolha, o que possibilita o desenvolvimento de hábitos alimentares perniciosos. Entretanto, uma vez que a escolha do alimento está relacionada à preservação da vida e da saúde, tal escolha deveria ser motivada, segundo o princípio da utilidade, a produzir como consequências os maiores efeitos benéficos em termos de saúde e bem-estar, não apenas para si, mas para todos (ou a maioria). Diante disso, é importante avaliar a relação entre os motivos sedutores e os motivos preservadores ocasionais, como a autopreservação. Bentham enumera alguns perigos aos quais se opõe a autopreservação, um deles é a tentação, cuja força vai depender daquela relação, de modo que se a força dos motivos sedutores for maior, então o indivíduo praticará o ato pernicioso. Sabemos que alimentos ricos em açúcar, pelo prazer instantâneo que proporcionam, tem uma força de tentação tão forte que pode superar o motivo de autopreservação que recomendaria não consumí-los. Mas, de que modo isso seria pernicioso para a sociedade? Se cada indivíduo apenas fosse movido pela tentação mais forte que o motivo de autopreservação, que consequências isso traria do ponto de vista dos motivos sociais? Não há liberdade individual para a escolha alimentar? 87 Introd., Cap. X, § 4º, XXXVI, p. 43. 39 Os motivos sociais – no caso, a benevolência, portanto, a benevolência pública que se refere à obtenção de mais prazer do que dor no balanço final – devem sempre prevalecer. Na análise de Bentham, esta é “a tendência geral e constante de cada ser humano”,88 pois, “são os motivos sociais que, sempre que os motivos pessoais forem neutros, regulam e determinam o teor da sua vida”.89 Se assim é, então, o indivíduo deve fazer o cálculo dos danos provocados à sociedade como um todo, no caso de cada membro não superar a tentação dos hábitos alimentares perniciosos. Para analisar a situação atual, à luz do princípio da utilidade, é importante observar que dada a falta de prudência generalizada, na medida em que a soma das fracas disposições individuais produz uma disposição prejudicial, com consequências negativas para toda a sociedade, mesmo nos atos considerados individuais, como é o caso das escolhas alimentares, não se pode dizer que não há interações, pois, a escolha do consumo individual está intimamente relacionada com a produção, e isso traz consequências para toda a sociedade. Considero fundamental, portanto, reconhecer que as formas de produção e consumo de alimentos não podem estar dissociadas. Sabemos que os hábitos alimentares da família, por exemplo, são reproduzidos por seus membros. Por conseguinte, indivíduos adultos que tem hábitos perniciosos tem grandes probabilidades de prejudicar a educação alimentar dos filhos, que vão reproduzir estes hábitos. Com isso, a totalidade dos membros de uma sociedade cujos hábitos são motivados pela tentação causada por certos tipos de alimentos, terá, muito provavelmente, graves problemas de saúde no futuro. Estes problemas acarretarão prejuízos econômicos, com o adoecimento das pessoas, o aumento no consumo de medicamentos, etc. Assim está posto o conflito: no âmbito individual, o indivíduo ‘sofre’ a tentação para buscar alimentos perniciosos, ainda que com plena consciência de seus malefícios, o que nos leva a supor que sua disposição para a felicidade própria seja fraca, já que ele age contra a prudência; no âmbito do social, dependendo do número de indivíduos que tem tal comportamento pernicioso, isso poderá ser um problema, de acordo com o princípio da utilidade, pois, após fazer o cômputo entre dor e prazer e examinar a extensão disto para a comunidade, verificamos que, como é o nosso caso, temos uma situação epidêmica quanto a problemas decorrentes de alimentação inadequada. É possível ainda extrapolar para além das consequências singulares em uma comunidade de indivíduos, e considerar as consequências 88 Introd., Cap. XI, XLII, p. 57. 89 Introd., Cap. XI, XLII, p. 57. 40 para os sistemas alimentares como um todo, que incluem outras espécies, além dos fatores abióticos como solos, rios e ares, e chegar à conclusão que, do ponto de vista da ética utilitarista, nossas escolhas alimentares individuais estão incorretas; neste caso, nossa disposição é prejudicial, perniciosa, porque agimos contra a benevolência. De fato, sobre isso alerta o Biólogo Robert Babault, ao fazer a seguinte afirmação: Não é a sobrevivência biológica do homem que está ameaçada, é a sua sobrevivência como ser humano com H maiúsculo que está na corda bamba, isto é, sua dimensão de ser humano. As causas da destruição da biodiversidade são as mesmas que desencadeiam a degradação social.90 É amplamente conhecido que o modelo agrícola de produção alimentar implantado pela chamada Revolução Verde, que teve início nos anos 40, produziu impactos gravíssimos em termos de contaminação ambiental (com o uso de pesticidas e fertilizantes), o que inclui solos e fontes de água, além da contaminação humana, levando a casos de intoxicação aguda, bem como aumento no número de casos de câncer e infertilidade, e à perda da diversidade genética.91 Para Susan George, tratou-se de um “sistema complexo para a dominação da agroindústria, para determinar quanto, aonde e o que os agricultores do Terceiro Mundo irão produzir e a que custo”. 92 Uma consequência conhecida da Revolução Verde no Brasil foi o aumento no consumo de venenos na agricultura, que nos tornou o maior consumidor de agrotóxicos do mundo.93 Em decorrência disso, diversos movimentos sociais94 vêm constatando a insustentabilidade do atual modelo de produção de alimentos, não apenas alimentos que provêm da agricultura, mas também do modelo da produção animal. Como disse o Mahatma Gandhi, a grandeza de uma nação e seu progresso moral podem ser julgados pela forma como ela trata 90 Cf. http://www.asabrasil.org.br/Includes/VersaoImpressao.asp?COD_CLIPPING=728. Acesso em 28 abr 2014. 91 PERES, F.; MOREIRA, J. C. (Org.). É veneno ou é remédio? Agrotóxicos, saúde e ambiente. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003. 92 GEORGE, Susan. O mercado da fome: as verdadeiras razões da fome no mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 111. 93 SEMINÁRIO DE MERCADO DE AGROTÓXICO E REGULAÇÃO, 11 de abril de 2012. [Trabalhos apresentados]. Brasília: Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa; Universidade Federal do Paraná – UFPR. 94 Em 2001, ocorreu em Cuba, o Fórum Mundial de Soberania Alimentar, que condenou o modelo do agronegócio, defendendo “O direito dos povos de definir as próprias políticas e estratégias sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos que garantam o direito a boa alimentação para toda a população com base na pequena e média produção, respeitando suas próprias culturas e diversidades dos modos camponeses, pesqueiros e indígenas de produção agropecuária, de comercialização e de gestão dos espaços rurais, nos quais a mulher desempenha um papel fundamental”. Tal proposta encontra-se tanto no Relatório final da III Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA, 2007), como no Decreto 7272/2010, que regulamenta o direito humano à alimentação adequada. 41 seus animais. Assim, é significativo que uma Corporação como a McDonald´s seja condenada por práticas cruéis contra animais usados para produzir carne, revelando o escândalo moral também na produção de alimentos de origem animal.95 O filósofo Peter Singer, há mais de 40 anos, desenvolve o tema da ética animal e suas implicações no sistema alimentar, apontando os danos que a criação intensiva de animais em granjas e fazendas industriais tem causado ao meio ambiente, à sociedade e aos animais. Na obra “A ética da alimentação”, escrita em parceria com um fazendeiro, Singer reconhece o papel da pressão econômica na manutenção de práticas cruéis contra os animais, vistos apenas como produtos que devem competir em um mercado acirrado, onde o tempo é um fator fundamental. Como consequência, os custos e os riscos são repassados a toda a população. Ele ainda relaciona a obesidade como uma questão ética, na medida em que o excesso de consumo representaria um desperdício de recursos limitados, além de contribuir para a poluição e o aumento do sofrimento animal. O problema da obesidade é apenas um caso ilustrativo de como hábitos alimentares podem trazer danos à saúde, mas o mesmo poderia ser dito a respeito de várias outras patologias, quanto aos danos à saúde individual, como também no que se refere aos prejuízos à saúde ambiental e animal. São tais aspectos, de forte apelo utilitarista, que orientam as políticas e programas de saúde, na medida em que estas costumam considerar o problema a partir das consequências, tentando, com esse argumento, obter mudanças comportamentais consideradas desejáveis, numa perspectiva de promoção da saúde ou prevenção de riscos e danos futuros. O apelo presente nas campanhas educativas sobre alimentação saudável, estilos de vida e atividades físicas, por exemplo, utilizam a estratégia do reforço positivo para convencer as pessoas à mudança de hábitos (melhor alimentação + exercícios = menor adoecimento + saúde e longevidade). Não se pode negligenciar, contudo, o poder sedutor do apelo contrário, que leva à tentação e à simpatia por escolhas inadequadas. Por parte do Estado, o argumento de redução dos custos com o adoecimento é também um importante motivo para implantação daquelas políticas. No Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) no Brasil, 2011- 2022, em que se “define e prioriza as ações e os investimentos necessários para preparar o país para enfrentar e deter as DCNT nos próximos dez anos”, 96 são consideradas as intervenções mais “custo-efetivas”, além daquelas consideradas as “melhores apostas”, ou seja, “ações a 95 Trata-se do ‘Caso McLibel’, em que um juiz britânico condenou a McDonald´s, em 1997, por práticas cruéis de criação de frangos apinhados. Cf. SINGER, P.; MASON, J, 2007, op. cit., p. 25. 96 BRASIL, 2011, op. cit., p. 10. 42 serem executadas imediatamente para que produzam resultados acelerados em termos de vidas salvas, doenças prevenidas e custos altos evitados”. 97 Ainda segundo o documento, que reconhece a alimentação inadequada como um dos fatores de risco para a alta prevalência de excesso de peso (48%) e de obesidade (14%) em adultos, a realidade brasileira está assim determinada: “apenas 18,2% consomem cinco porções de frutas e hortaliças em cinco ou mais dias por semana, 34% consomem alimentos com elevado teor de gordura e 28% consomem refrigerantes 5 ou mais dias por semana”.98 O excesso de peso acomete um em cada dois adultos e uma em cada três crianças brasileiras.99 Alimentação inadequada, portanto, traz problemas para o indivíduo, o que exige dele compromisso com a prudência, mas escolhas individuais podem afetar o bem-estar da sociedade, incluindo outras espécies e o meio ambiente como um todo, e exigem intervenções por parte do Estado, no sentido de garantir a benevolência pública. Para terminar esta seção sobre a “utilidade” do alimento, cujo objetivo foi mostrar como a ética utilitarista, segundo o princípio da utilidade proposto por Bentham, pode ser um lócus importante para o debate acerca de uma ética da alimentação – onde possa ser justificado por que fazer escolhas alimentares moralmente corretas –, quero agora reforçar a necessidade de aproximação entre ética e direito neste campo específico das escolhas alimentares. Na forma como Bentham estabeleceu, a ética seria privada, por sua atuação naquilo que o indivíduo auto- interessado buscaria, isto é, a felicidade própria, e o direito atuaria no campo das questões públicas, quando a realização da felicidade própria afetasse a felicidade de uma coletividade de pessoas, portanto, visando à felicidade de outros. No mundo globalizado de hoje, tendo em vista que o direito à alimentação já está assegurado para nós, na constituição brasileira, e considerando as questões colocadas que afetam a produção e o consumo de alimentos, não vejo sentido nessa separação, pelo contrário, minha proposta é aproximar a ética e o direito no debate sobre alimentação saudável, de modo a considerar as complexas relações entre a autonomia individual e o papel do Estado na proteção daquele direito, como forma de criar condições para sua realização efetiva. Nesse sentido, é preciso avançar da felicidade, um conceito empírico, para a liberdade, um conceito metafísico. Isto posto, torna-se necessário discutir o caráter de um “direito humano à alimentação adequada e saudável”, não apenas por causa dos conflitos entre o que é racionalmente correto 97 BRASIL, 2011, op. cit., p. 4. 98 BRASIL, 2011, op. cit., p. 11. 99 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Guia alimentar para a população brasileira. 2. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2014, p. 5. 43 tendo em vista um bem como a saúde e o que é apenas prazeroso, mas também porque o direito humano à alimentação adequada (DHAA) tem relação intrínseca com o direito à vida. Podemos dizer que, dentre os chamados “direitos naturais”, o DHAA é o mais anterior, aquele que precede qualquer outro, pois diz respeito à condição mesma de existência humana. Contudo, há uma característica peculiar do sujeito deste direito: ao mesmo tempo em que busca meramente o prazer que o alimento oferece, pode ocorrer – como já é fato – que ao invés de saúde e realização de um direito, o alimento traga doenças, morte e sofrimento futuro, indicando uma contradição com o próprio significado da palavra, relacionado à vida e à nutrição e refletido na medicina hipocrática, que afirmava: seja o teu alimento o teu remédio. Deixo claro com isso que, ao tratar de um direito à alimentação, deve-se ter em mente que o que se quer é afirmar um direito humano à alimentação adequada, portanto, implica considerar um conjunto de circunstâncias que incluem as condições sociais, econômicas, culturais, climáticas, ecológicas, dentre outras, como mostro a seguir. 2.2 O direito de todos à alimentação saudável e adequada A história da humanidade tem sido, desde o princípio, a história de sua luta pela obtenção do pão-nosso-de-cada-dia (Josué de Castro, Geopolítica da fome) No âmbito internacional, a alimentação foi considerada um direito humano100 pelo Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), adotado no ano de 1966, pela Assembleia geral da Organização das Nações Unidas (ONU), juntamente com o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP). Demorou 10 anos para que houvesse o número suficiente de ratificações e os Pactos pudessem entrar em vigor no âmbito internacional.101 Um Pacto, assim como um tratado ou uma convenção internacional, tem caráter vinculante, significa que as pessoas são titulares de direitos e os Estados são titulares das obrigações.102 O PIDESC e o PIDCP tinham o objetivo de conferir obrigatoriedade aos direitos e liberdades afirmados na Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) aprovada pela 100 Observe-se que na 3ª Convenção de Genebra (1929), o Capítulo II trata da Alimentação e do Vestuário dos Prisioneiros de Guerra, entretanto, como seu âmbito é restrito a prisioneiros, não consideramos sua anterioridade do ponto de vista do reconhecimento da alimentação como um “direito humano”. 101 A lista com a data em que as Nações assinaram o pacto pode ser vista em https://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src=IND&mtdsg_no=IV-3&chapter=4&lang=en. Acesso em 24 jan 2015. 102 FAO. Guía para legislar sobre el derecho a la alimentación. Roma, 2010. 44 Assembleia Geral da ONU, em 1948, uma vez que a Declaração nada mais era do que uma recomendação de princípios gerais dos direitos humanos, sem poder vinculante. É o artigo XXV, parágrafo 1º da DUDH que contém uma referência explícita à alimentação como direito, embora, de maneira indireta, como parte do direito à vida: “toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação” (grifo meu). A alimentação sempre foi uma preocupação para as nações unidas, antes mesmo do fim da guerra.103 Entre maio e junho de 1943, por iniciativa do Presidente americano Franklin Delano Roosevelt, ocorreu na cidade de Hot Springs (Virginia), uma Conferência das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação, da qual participaram 44 Nações, inclusive o Brasil, quando uma Comissão interina foi formada para elaborar um plano específico de uma organização permanente para a área, do que resultou a criação da FAO (Organização para Agricultura e Alimentação),104 ainda hoje uma importante referência nos estudos sobre a situação alimentar no mundo que podem orientar a formulação de políticas no combate à insegurança alimentar. Compreende-se, então, a importância da primeira das conferências convocadas para tratar da reconstrução do mundo ter sido sobre alimentação.105 Assim sendo, o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC) criou, em 1946, uma Comissão de Direitos Humanos, para elaborar propostas de uma Carta Internacional de Direitos Humanos e sugestões para sua efetiva implementação. A Comissão decidiu constituir três grupos de trabalhos: um elaboraria um documento em forma de declaração, outro grupo ficou responsável por elaborar um documento na forma de convenção (pacto), que definiria direitos específicos, e um terceiro grupo cuidaria de propor medidas para sua 103 O termo “nações unidas”, sugerido pelo presidente americano, foi usado pela primeira vez no documento Declaração das Nações Unidas (de 1º de janeiro de 1942), assim consideradas as nações envolvidas na luta pelo fim da guerra e que davam seu apoio à Carta do Atlântico, documento que resultou do encontro entre Churchill e Roosevelt, em 14 de agosto de 1941, no qual ficou estabelecido, além da necessidade de manter a paz e a segurança, aquilo que foi reafirmado no discurso do presidente americano, o famoso discurso das quatro liberdades: a liberdade de expressão; a liberdade de toda pessoa adorar deus à sua própria maneira; a liberdade de viver sem passar necessidade (isto é, sem fome); e a liberdade de viver sem medo. Cf. http://www.un.org/en/aboutun/history/index.shtml. Acesso em 06 jan 2015. 104 A Conferência de instalação da nova organização da ONU deu-se em Quebec, no dia 16 de outubro de 1945, data escolhida para comemoração do dia internacional da alimentação. Cf. http://www.fao.org/docrep/009/p4228e/P4228E04.htm. Acesso em 06 jan 2015. A Constituição da nova entidade, firmada naquela data, entrou em vigor para o Brasil no plano jurídico externo em outubro daquele ano, foi ratificada, isto é, entrou em vigor internamente em 28 de abril de 1965, mas só foi promulgada pela Presidenta Dilma Rousseff, com a assinatura do decreto 7752/2012. Cf. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011- 2014/2012/Decreto/D7752.htm. Acesso em 18 fev 2015. 105 O brasileiro Josué de Castro foi a segunda pessoa a ocupar o cargo de Presidente Independente do Conselho da FAO, eleito por dois períodos de 1952-1956. Em 2012, assumiu o mandato de Diretor geral da FAO, até julho e 2015, o segundo brasileiro, José Graziano da Silva, coordenador do Programa Fome Zero, em 2003. 45 implementação, incluindo o que fazer em casos de violação, os chamados Protocolos. O conjunto formado pela DUDH, PIDCP e PIDESC e seus respectivos protocolos recebeu o nome de Carta Internacional dos Direitos Humanos. Uma vez assinado, o Pacto requer dos Estados a ação necessária à execução de suas normas, inclusive com adequação nas leis domésticas. Com a assinatura do Protocolo, o Estado reconhece – no caso do PIDESC – a competência do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais/Comitê DESC como órgão de vigilância do Pacto, que recebe e examina comunicações de violações daqueles direitos, e, no caso do PIDCP, a competência da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas para receber individualmente comunicações de uma violação de direitos civis e políticos. Assim, com os Protocolos, qualquer cidadão pode acessar o sistema internacional de proteção aos direitos humanos.106 A Carta Internacional dos Direitos Humanos foi construída ao longo de décadas. A Declaração foi aprovada já em 10 de dezembro de 1948, a aprovação de uma convenção sobre direitos humanos só veio a se efetivar, como dito acima, 20 anos depois, com a adoção dos dois referidos Pactos, mas a terceira etapa, pensada pela Comissão – criar “uma maquinaria adequada para assegurar o respeito aos direitos humanos e tratar os casos de violação”107 –, não se pode dizer ainda que foi completada, pois, o que se tem até agora são Protocolos facultativos, anexos aos Pactos, que representam aquela possibilidade de denúncia e investigação de violação de direitos. Há um aspecto interessante a observar neste processo de elaboração dos Pactos que afeta a compreensão do direito à alimentação, especialmente no que diz respeito à sua realização e exigibilidade. Refiro-me ao caráter conferido à alimentação como um direito social e não um direito político. Como visto antes, a alimentação foi primeiro reconhecida como direito humano na DUDH, e posteriormente reafirmada, como direito social, no PIDESC. No âmbito da tradição 106 A respeito dos procedimentos formais para formular uma queixa junto ao Comitê, ver o documento PROTOCOLO FACULTATIVO AO PIDESC: Uma ferramenta para exigir os DESC. Disponível em http://www.gloobal.net/iepala/gloobal/fichas/ficha.php?entidad=Documentos&id=17987&opcion=sumario. Acesso em 10 mar 2015. 107 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 136. 46 das gerações de direitos,108 os direitos civis e políticos constituíram a primeira geração, expressando o ideal de liberdade do súdito – agora cidadão – perante o governante, inclusive com liberdade de participar do poder, que passou a ter limites; tratava-se dos direitos que surgiram das lutas contra o Estado absolutista, cujo poder não tinha limites. Já os direitos econômicos, sociais e culturais, considerados de segunda geração, articularam-se em torno do ideal de igualdade,109 associado à justiça social; enquanto os primeiros tem uma base individual, e limita o poder do Estado sobre o indivíduo, implicando o dever de abstenção, os segundos têm uma base coletiva, que exigem a intervenção do Estado para sua garantia, ou seja, implica deveres de ação.110 Evidencia-se, assim, na DUDH, a influência dos ideais revolucionários expressos na declaração americana e naquela francesa, de inspiração jusnaturalista, que limitavam o poder dos governantes e estabeleciam a noção de direitos do cidadão. Os direitos sociais, como direitos fundamentais, nasceram das lutas por melhores condições de vida e trabalho, em uma época de capitalismo nascente, e foram se expandindo no pós-segunda guerra, dando origem ao Estado de bem-estar social. Embora a proteção seja também individual, a não garantia destes direitos recai sobre toda a sociedade, por isso, eles são ditos sociais, na medida em que constituem prestações positivas por parte do Estado, em forma de políticas públicas dirigidas 108 Há fortes críticas ao uso deste termo “geração”, tendo em vista a concepção errônea que dela pode derivar, ao supor que as gerações se sucedem no tempo, como um tipo de melhoria, de que resultaria a substituição de uma geração por outra, daí a opção de usar o termo “dimensão”. Quem formulou a tese das gerações de direito, adotada por Bobbio, foi o funcionário da UNESCO Karel Vasak, em conferência ministrada em 1979 (Estrasburgo), como relata Cançado Trindade na V Conferência Nacional de Direitos Humanos. In: Seminário Direitos Humanos das Mulheres: A proteção Internacional. 25 out. 2010. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/cancadotrindade/cancado_bob.htm. Acesso em 08 fev 2015. Na análise de Bobbio, até chegar ao universalismo que culminou na Declaração da ONU houve uma evolução do ponto de vista jurídico, se considerarmos que os direitos estabelecidos nas declarações anteriores (Declaração francesa e Declaração americana), que nasceram de teorias filosóficas jusnaturalistas, eram direitos naturais, universais, porém, com a positivação, por ocasião da independência daqueles Estados, perderam a universalidade para ganhar em eficácia, já que passaram a ter validade naqueles estados que os adotaram no seu sistema jurídico. Deixaram, portanto, de ser direitos do homem para se tornarem direitos do cidadão; seguindo essa linha de raciocínio, o que se busca hoje é uma universalização positiva, ou seja, que os direitos universais sejam positivados em cada Nação, de modo a se tornarem “direitos do homem enquanto direitos do cidadão do mundo” BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, pp 28-31. 109 No dizer de Bobbio (1992, op. cit., p. 33), são também direitos de liberdade, só que “por meio do Estado”, donde sua distinção entre “liberdades” como os direitos garantidos pela não intervenção do Estado, e “poderes” os direitos que exigem sua intervenção, o que pode gerar incompatibilidades (ib., p. 43). Este conflito entre liberdade e poder na realização do DHAA será discutido nos próximos capítulos. 110 Pode-se falar ainda em direitos de terceira geração, que incluem o direito à paz, ao meio ambiente, à qualidade de vida, ao desenvolvimento, ditos direitos de solidariedade, que se referem a povos e não mais a indivíduos, por isso, sua origem pode ser identificada com o princípio da fraternidade numa perspectiva humanitária. Cf. TOSI, Giuseppe. O significado e as consequências da Declaração Universal de 1948. In: ZENAIDE, Maria de Nazaré Tavares et al. (Org.). Direitos Humanos: capacitação de educadores. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2008, p. 49-56. Para Laffer, tais direitos são fruto da mobilização nos países do Terceiro Mundo (grupo dos 77), a partir da distância entre teoria e prática no respeito aos DH nos territórios de colonização europeia. Cf. LAFFER, Celso. A ONU e os Direitos humanos. Estudos Avançados 9 (25), 1995, p. 176. 47 aos mais fracos.111 Nesse sentido, é comum a interpretação de uma sucessão temporal linear de direitos. Contrário a isso, Trindade vai dizer que para tal não há fundamentos, nem de ordem jurídica, nem na realidade histórica; juridicamente falando, o autor considera o direito à vida um direito de primeira, segunda, terceira ou qualquer geração, e historicamente falando, ele lembra que: “No plano internacional, os direitos que apareceram primeiro foram os econômicos e os sociais. As primeiras convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT) anteriores às Nações Unidas, surgiram nos anos 20 e 30”;112 o autor admite, porém, que só seria correto pensar naquela evolução no plano do direito interno dos países. É o que se pode verificar, por exemplo, no caso da legislação nacional brasileira que apenas recentemente admitiu na Carta Magna o direito à alimentação como direito social, o que pode ser considerado um avanço113. Seguindo essa linha de pensamento, adotar a tese da geração de direitos levaria a uma fragmentação e à aceitação de uma hierarquização dos direitos, como se uns fossem mais importantes que outros, ou que primeiro uns deveriam ser respeitados, para em seguida se pensar no respeito a outros. A influência disso para o DHAA, considerado um direito social e não político, será discutida juntamente com a tese da progressividade. O fato é que, se por um lado, as declarações nacionais tiveram o mérito de iniciar um sistema de direitos positivos, tais direitos, por outro lado, só tem validade internamente a cada Nação, como direitos dos seus cidadãos. Com a DUDH, buscou-se afirmar direitos de modo universal e positivo, como um ideal de plenitude dos direitos do cidadão para todos os cidadãos do mundo, ideal esse considerado por Bobbio como “germe”, que ainda tem de ser perseguido na maioria das Nações deste planeta.114 Seria mais coerente pensar que os direitos foram se acumulando, isto é, ampliando-se à medida que progredia a sociedade e as instituições jurídicas e políticas, num processo que continua até hoje, em algumas Nações. Vale ressaltar que, ainda que se possa fazer uma 111 A esse respeito ver RAMOS, Elisa Maria Rudge. Evolução histórica dos direitos sociais. Disponível em http://www.lfg.com.br. 19 de dezembro de 2008. RAMOS, Elisa Maria Rudge. Os direitos sociais: direitos humanos e fundamentais. Disponível em http://www.direitosociais.org.br/author/elisa-maria-rudge-ramos/. 17 de dezembro de 2010. Acesso em 10 out 2014. 112 Cf. http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/cancadotrindade/cancado_bob.htm. Acesso 8 fev 2015. 113 Por meio da Emenda Constitucional nº 64 de 04 de fevereiro de 2010, a alimentação foi incluída no artigo 6º da CF. 114 BOBBIO, 1992, op. cit. p. 31. Da análise histórica dos direitos humanos no âmbito internacional, Bobbio identifica um processo inicial de universalização – cujo marco é a declaração universal dos direitos humanos (ONU, 1948) – em que o direito das gentes é transformado em direito dos indivíduos singulares, seguido da multiplicação – quando outros sujeitos passam a ser considerados, como a família, as minorias e sujeitos não humanos – até chegar à especificação, quando a atribuição de direitos leva em conta diferenças específicas, tais como direitos dos homossexuais, direitos dos índios, etc. Cf. BOBBIO, 1992, op. cit., p. 67 et seq. 48 distinção histórica entre os direitos humanos – quanto à sua positivação –, isso não significou distinção no seu fundamento jurídico, que permanece sendo a dignidade da pessoa humana, como bem afirma a DUDH. Por isso, os direitos fundamentais gozam do efeito cliquet,115 isto é, um postulado de proteção máxima que veda o retrocesso, uma vez que eles sejam reconhecidos. Não é objetivo deste trabalho fazer uma análise exaustiva dos documentos internacionais que tratam dos direitos humanos do ponto de vista formal. Pode-se, é verdade, criticar o rigor formalístico na construção deste tema – direitos humanos – na medida em que o próprio documento original da DUDH reconhece a dignidade humana como fundamento, algo que não necessitaria ser juridicamente defendido, por ser independente de qualquer poder ou autoridade, posto que inerente à condição humana. Como observa Comparato, o artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça estabelece que “a par dos tratados ou convenções, o direito internacional é também constituído pelos costumes e os princípios gerais de direito”.116 Para o jurista, os direitos humanos já seriam hoje o que o costume e os princípios jurídicos internacionais reconhecem como exigências básicas de respeito à dignidade, de modo que “a vigência dos direitos humanos independe de sua declaração em constituições, leis e tratados internacionais, exatamente porque se está diante de exigências de respeito à dignidade humana, exercidas contra todos os poderes estabelecidos, oficiais ou não”.117 Não obstante, no Preâmbulo da DUDH, consta a necessidade de proteção jurídica desses direitos como forma de evitar que o homem “seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão”, ou seja, a Declaração, ao repudiar os regimes totalitários, faz uma defesa da democracia (“A vontade do povo será a base da autoridade do governo”, art. XXI, 3) e do estado de direito (“[...] toda pessoa estará sujeita apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem [...]”, art. XXIX, 2), reconhecendo como única condição possível para a realização dos direitos humanos, a condição de paz no mundo. Bobbio, por outro lado, considera o fundamento dos direitos humanos uma “convicção partilhada universalmente”,118 convicção essa que foi expressa em um documento, o que torna o fundamento histórico e não absoluto. Assim sendo, o problema do fundamento seria um problema resolvido, “em certo sentido”, não cabendo mais se preocupar com isso. Para Bobbio, 115 O termo “cliquet”, de origem francesa, é usado por alpinistas para designar aquele ponto da escalada a partir do qual não é mais possível retroceder, devendo-se seguir sempre para cima. 116 COMPARATO, 2003, op. cit. p. 137. 117 COMPARATO, 2003, op. cit. p. 137. 118 BOBBIO, 1992, op. cit., p. 26. 49 o problema do fundamento dos direitos humanos teve sua solução atual na DUDH por causa do consenso de uma comunidade internacional em torno de sua validade.119 Este consenso é assim expresso no primeiro parágrafo do Preâmbulo, que relaciona a dignidade à liberdade, justiça e paz no mundo: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”. Percebe-se nisso a dimensão “humana” do direito, a sua universalidade, isto é, seu caráter global, que se expressa pelo reconhecimento da dignidade de toda pessoa. A questão que me coloco, portanto, não é mais de fundamentar, mas de como realizar o direito humano, para o que faço considerações tanto jurídicas como éticas. Entendo que, para que nós Nutricionistas possamos defender o direito humano à alimentação, é preciso, primeiro, defender os direitos humanos como um todo. Assumir a defesa da alimentação como direito humano implica reconhecer sua dimensão múltipla, porém, indivisível. Não se trata de apenas estar alimentado do ponto de vista fisiológico, o que poderia ser feito mediante a oferta de rações mínimas diárias, mas de se encontrar, permanentemente, em um estado de segurança alimentar. O que quero destacar nesse momento é que, como direito social, a alimentação reivindica do Estado certas obrigações, mas para que a alimentação seja um dever moral, será preciso considerá-la também um direito político, e isso pode gerar conflitos incompatíveis entre a liberdade do indivíduo e a obrigação do Estado. Penso que uma solução para esse conflito passa pelo conceito de interdependência entre os direitos humanos. Vejamos um pouco sobre isso, no âmbito da distinção entre direitos políticos e direitos sociais, que se reflete nas dimensões do direito humano à alimentação adequada, dimensões estas que estão inseridas no contexto da evolução do conceito de segurança alimentar e nutricional. 2.2.1 Alimentação adequada: o conflito (ou a interdependência) entre direito social e direito político A proposta inicial apresentada à Assembleia Geral da ONU, em 1950, era de um pacto internacional de direitos humanos e fazia alusão apenas às liberdades civis e políticas. Essa 119 É o que ele chama “a prova do consenso”, uma das três maneiras de fundar valores; quanto mais aceito um valor, mais fundado está tal valor, o que poderia substituir a prova da objetividade – a natureza humana, caso pudesse ser realmente objetivada e conhecida em sua essência – e o apelo à evidência que não se sustenta à verificação histórica. Bobbio (1992, p. 26-27), no entanto, reconhece que o consenso é apenas um fundamento histórico e não absoluto. 50 proposta foi considerada insuficiente, por não abranger os direitos econômicos, sociais e culturais, posto que havia o entendimento de que existe interdependência entre os direitos civis e políticos, de um lado, e os direitos econômicos, sociais e culturais, de outro. A Assembleia justificou a interdependência, na Resolução 421/1950, dizendo que: “o ser humano privado dos direitos econômicos, sociais e culturais não representa a pessoa humana que a Declaração Universal considera como ideal de ser humano livre”, e solicitou ao ECOSOC que a Comissão incluísse, expressamente, na proposta apresentada, “os direitos econômicos, sociais e culturais de modo a relacioná-los com as liberdades civis e políticas”.120 Apesar de parecer bastante clara a relação entre as duas supostas categorias de direitos, indicando sua indissociabilidade, visto que tanto os direitos e garantias individuais (tradicionalmente assim chamados os direitos civis e políticos) como os direitos sociais já faziam parte do conjunto de direitos apresentados no corpo da DUDH,121 não foi fácil para o ECOSOC discutir com a Comissão as medidas para a implementação da proposta do Pacto, revelando que, na verdade, os direitos humanos estabelecidos na DUDH jamais representaram um consenso absoluto, diante da fragilidade de um sistema jurídico internacional que requer, ao mesmo tempo, a consideração das relações entre os Estados e o respeito à soberania de cada Nação.122 Como consequência, a negociação com os representantes governamentais tornou-se problemática e demorada e resultou na elaboração de dois pactos distintos, que somente puderam ser adotados, quase duas décadas, após a apresentação da primeira versão unificada. A elaboração de Pactos separados teve a ver com a nova organização dos Estados no pós-guerra, em que o mundo ficou dividido entre dois blocos vencedores: de um lado, o bloco socialista que defendia os direitos econômicos e sociais, de outro lado, o bloco capitalista que defendia os direitos civis e políticos. Segundo Tosi,123 antes do começo da guerra fria, foi possível chegar a um consenso quanto a certos princípios básicos – o que permitiu a aprovação da declaração –, mas tão logo acirrou-se a disputa entre os dois blocos, tornou-se impossível o consenso. O fato é que grande parte dos países socialistas não assinou o PIDCP, assim como muitos países capitalistas se recusaram a assinar o PIDESC, entre eles os Estados Unidos, que 120 “The enjoyment of civil and political freedoms and of economic, social and cultural rights are interconnected and interdependent” and that “when deprived of economic, social and cultural rights man does not represent the human person whom the Universal Declaration regards as the ideal of the free man”. ONU. Doc. A.2929, Cap. I, 21, 1955. Disponível em http://humanrightsdoctorate.blogspot.com.br/2010/07/un-doc-a2929-annotations-on- covenants.html. Acesso em 20 jan 2015. 121 Na DUDH, os direitos civis e políticos são apresentados nos artigos 1º a 21, e do 22 ao 28 apresentam-se os direitos sociais, econômicos e culturais. 122 Prova disso é que as seguintes nações, dentre as 64, abstiveram-se de votar a favor da DUDH: União Soviética, Ucrânia e Rússia Branca (Bielorússia), Tchecoslováquia, Polônia, Iugoslávia, Arábia Saudita e África do Sul. 123 TOSI, 2008, op. cit., p. 50. 51 ainda hoje não reconhecem tais direitos como “verdadeiros direitos”,124 embora denunciem amplamente violação dos direitos humanos quando se trata das liberdades civis e políticas em outros países. Laffer, ao reconhecer nesse processo o desenvolvimento de uma hierarquização de direitos, aponta que: O fato de um país pertencer a um dos blocos levava-o a aplicar e a promover seletivamente determinada categoria de direitos e a negligenciar a observância de outros. Os países em desenvolvimento, por seu turno, utilizavam o atraso econômico como justificativa de violações de direitos humanos em seus territórios.125 O principal fator que levou à elaboração de dois documentos, dado o entendimento de que se tratava de duas categorias de direitos, remetia à questão de que também sua implementação seria diferente. Os defensores dessa linha de pensamento acreditavam que os direitos incorporados ao PIDESC não seriam direitos de obrigação vinculante (justiciable rights), portanto, não teriam efeito jurídico direto, ou seja, sua aplicação não era imediata e sim progressiva, por constituírem direitos coletivos, os quais dependeriam ainda das condições do Estado para garanti-los, ao contrário dos direitos reconhecidos no PIDCP, que seriam de caráter absoluto, isto é, aplicáveis de imediato, por serem individuais.126 Chegou-se mesmo a pensar que nem era necessário um Pacto para os direitos sociais, uma vez que estes apenas podiam ser 124 Em discurso na Sorbonne, a primeira-dama americana procura explicar a forma distinta de considerar os DESC, segundo a ótica dos EUA e da URSS. Diz ela: “The U.S.S.R. representatives assert that they already have achieved many things which we cannot achieve because their government controls the accomplishment of these things. Our government seems powerless to them because, in the last analysis, it is controlled by the people. They would not put it that way — they would say that the people in the U.S.S.R. control their government by allowing their government to have certain absolute rights. We, on the other hand, feel that certain rights can never be granted to the government, but must be kept in the hands of the people.” Cf. https://www.facinghistory.org/for- educators/educator-resources/readings/social-and-economic-rights-eleanor%E2%80%99s-speech-sorbonne. É famosa também a afirmação de Margareth Thatcher, inspirada no que disse o Apóstolo Paulo, de que “quem não tiver trabalho não terá o que comer”. Em seu discurso na Assembleia Geral da Igreja da Escocia, em 1988, a dama de ferro disse: “You recall that Timothy was warned by St. Paul that anyone who neglects to provide for his own house (meaning his own family) has disowned the faith and is ‘worse than an infidel’.” Cf. http://www.margaretthatcher.org/Speeches/displaydocument.asp?docid=107246>. O discurso pode ser visto aqui https://www.youtube.com/watch?v=J21NXB6rIw0. 125 LAFFER, 1995, op. cit., p. 179. 126 “Those in favour of drafting two separate covenants argued that civil and political rights were enforceable, or justiciable, or of an ‘absolute’ character, while economic, social and cultural rights were not or might not be; that the former were immediately applicable, while the latter were to be progressively implemented; and that, generally speaking, the former were rights of the individual ‘against’ the State, that is, against unlawful and unjust action of the State, while the latter were rights which the State would have to take positive action to promote. Since the nature of civil and political rights and that of economic, social and cultural rights, and the obligations of the State in respect thereof, were different, it was desirable that two separate instruments should be prepared.” ONU, 1955, op. cit., Cap. II, 9. 52 promovidos progressivamente.127 Como resultado deste debate, o Protocolo dos direitos civis e políticos, que prevê a constituição de um Comitê permanente para receber denúncias, foi apresentado simultaneamente ao Pacto, já em 1966, e entrou em vigor em 1976, enquanto o PIDESC, cujo Protocolo só foi apresentado em 2008, entrou em vigor apenas em 2013. Vale observar que o Brasil até o momento não assinou o Protocolo do PIDESC. A diferença na compreensão dos direitos tem suas origens no debate sobre os limites do poder e das funções do Estado moderno, que expressa o tradicional conflito entre liberdade do indivíduo em relação ao poder do Estado como realidades incompatíveis, de tal modo que, se aumenta uma, diminui a outra. Tratava-se da contraposição entre um Estado liberal – que pouco intervém na esfera privada do indivíduo, valorizando sua liberdade – e um Estado social – cuja intervenção é exigida a fim de assegurar direitos iguais a todos –, que se expressou na forma como os Estados capitalistas e socialistas interpretaram os direitos de primeira e segunda geração. Segundo entendimento de Bobbio, a liberdade em relação ao Estado é a liberdade no sentido predominante da doutrina liberal, que é um sentido negativo, isto é, trata-se da liberdade de não estar obrigado a fazer o que não deseja, nem impedido de fazer o que deseja.128 No caso do DHAA, considero que as duas dimensões (política e social) estão presentes e que é preciso defender a liberdade positiva no sentido da autonomia, ou seja, além da necessidade da intervenção do Estado que garanta condições de realização daquele direito como direito social, o cidadão, que é um sujeito político, deve ter sua autonomia respeitada, para que se possa exigir dele também algumas obrigações no mesmo sentido.129 O que estou defendendo é que a esfera de realização do DHAA é tanto privada como pública e requer tanto o poder do Estado e sua responsabilidade social, como a autonomia de cada cidadão para fazer escolhas saudáveis. O lapso de tempo para aceitação dos Protocolos revela a dificuldade dos Estados em admitirem a exigibilidade dos direitos sociais. Para Laffer, a demora dos Estados em ratificar os Pactos pode ser atribuída à relutância dos governos em submeter sua situação interna, no que se refere aos direitos humanos, à supervisão internacional.130 Por isso, o autor julga que a política internacional continua sendo melhor compreendida pelo modelo hobbesiano- maquiavélico, no qual prevalece o antagonismo de interesses, o que faz da sobrevivência a 127 ONU, 1955, op. cit., Cap. II, 12. 128 BOBBIO, 1992; 2005. 129 BOBBIO, 2005, op. cit., p. 20. No próximo capítulo, trato da necessidade de considerar a liberdade em sentido positivo, conforme destacada no âmbito da filosofia de Kant, para apresentar a alimentação tanto um direito político como um dever moral. 130 LAFFER, 1995, op. cit., p. 177. 53 única lei do sistema internacional,131 como se os Estados nacionais vivessem num permanente estado de natureza, ao mesmo tempo em que resistem a um controle por parte de uma entidade internacional.132 Este controle fica mais evidente com a assinatura dos Protocolos, mas mesmo o PIDESC, adotado, inicialmente, sem Protocolo, estabelece em seu art. 16 que os Estados signatários se comprometem a apresentar, a cada cinco anos, relatórios com as medidas que vem adotando no sentido de assegurar os direitos reconhecidos neste instrumento.133 Uma vez reconhecido o direito, é inevitável a sua exigibilidade. A preocupação com a soberania pode, então, fazer sentido quando se consideram as medidas que devem ser implantadas por cada Nação, para a garantia dos direitos firmados nos Pactos. Por outro lado, tanto o PIDESC como o PIDCP além de manterem o reconhecimento dos direitos como inerentes à dignidade humana, seguindo a concepção de direitos naturais estabelecida na DUDH, asseguram ainda o direito dos povos à autodeterminação. Em seu artigo 1º, ambos afirmam que, em virtude deste direito, os povos “determinam livremente seu estatuto político e asseguram livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural”. Essa autodeterminação é fundamental para a garantia da soberania alimentar, que está fortemente articulada à questão da fome e da segurança alimentar e nutricional, como veremos ao longo desta e da próxima seção. Vários documentos e eventos posteriores ratificaram o direito à alimentação no âmbito 131 Laffer utiliza a clássica distinção feita por Martin Wight (1913-1972), expoente da chamada Escola Inglesa do Direito Internacional, acerca das relações entre os Estados, as quais estariam influenciadas por três tradições de pensamento, consideradas por ele como paradigmas: a tradição que ele chama de revolucionista ou universalista, associada a Kant, por valorizar a relação não entre os Estados, mas entre os indivíduos que compõem o Estado; a tradição realista, representada por Hobbes e Maquiavel, onde a noção de poder é central; e a tradição racionalista, derivada do pensamento de Hugo Grotius, que representaria uma via intermediária, ao admitir, além da relação de poder, a necessidade de cooperação na relação entre os Estados. À luz das tradições, Wight procurou analisar os discursos e ações de vários estadistas para identificar a relação entre a teoria e a prática. Para uma análise introdutória sobre o assunto ver SOUZA, Emerson Maione de. A escola inglesa de relações internacionais e o direito internacional. Mural Internacional. Ano IV, n. 1, junho 2013; PORTER, Brian. The International Thought of Martin Wight. International Affairs, v. 83, n. 4, p. 783-789, jul. 2007. 132 LAFFER, 1995, op. cit., p. 172. Essa situação será tratada mais adiante na discussão da Paz Perpétua de Kant. 133 O Brasil, desde que ratificou o PIDESC, em 1992, já apresentou 3 relatórios ao Comitê da ONU, nos anos de 2002, 2007 e 2014. 54 internacional.134 Não é meu objetivo abordar todos, mas certamente é preciso partir do que diz o PIDESC a respeito, para defender que a alimentação é tanto um direito social, como político: 1. Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas [...] 2. Os Estados-partes no presente Pacto, reconhecendo o direito fundamental de toda pessoa de estar protegida contra a fome, adotarão, individualmente e mediante cooperação internacional, as medidas, inclusive programas concretos, que se façam necessários para: a) Melhorar os métodos de produção, conservação e distribuição de gêneros alimentícios pela plena utilização dos conhecimentos técnicos e científicos, pela difusão de princípios de educação nutricional e pelo aperfeiçoamento ou reforma dos regimes agrários, de maneira que se assegurem a exploração e a utilização mais eficazes dos recursos naturais; b) Assegurar uma repartição equitativa dos recursos alimentícios mundiais em relação às necessidades, levando-se em conta os problemas tanto dos países importadores quanto dos exportadores de gêneros alimentícios.135 Da análise do seu art. 11 acima exposto, verifica-se que o PIDESC reafirma a alimentação como parte de um campo maior de direitos, uma condição para o exercício do direito a um “nível de vida adequado”, e assim admite a interdependência dos direitos, uma vez que é sabido, por exemplo, o quanto o saneamento e a educação interferem na realização do direito à alimentação. De acordo com o parágrafo 1, todos tem direito à alimentação adequada. Por conseguinte, entendo que este direito, por si só, implica não apenas estar livre da fome, isto é, ter o que comer, mas é também o direito a uma alimentação adequada, compatível com aquele “nível de vida adequado”. Posso estar livre da fome e não ter alimentação adequada, mas não é possível ter alimentação adequada e ter fome, portanto, o direito à alimentação só está plenamente realizado quando respeita as duas dimensões, sendo que a segunda dimensão, por si só, já inclui a primeira. Para complementar minha análise sobre a progressividade, cito o Comentário Geral nº 134 Só para citar alguns: a Declaração Universal sobre a Erradicação da Fome e Desnutrição (1974), a Declaração do Direito ao Desenvolvimento (1986), a Conferência Mundial de Alimentação (1974), a Declaração de Princípios e Programa de Ação da Conferência Mundial sobre a Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural (1979), a Conferência Internacional sobre Nutrição (1992), a Declaração e Programa de Ação da Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena (1993); a Declaração e Programa de Ação da Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Social de Copenhague (1995), a Declaração de Roma sobre a Segurança Alimentar e o Plano de Ação da Cúpula Mundial de Alimentação (1996), a Cúpula Mundial sobre Alimentação – 5 anos depois: Aliança Internacional contra a Fome (2002), a Declaração da Conferência de Alto Nível sobre a Segurança Alimentar Mundial (2008), a Terceira Cúpula Mundial da Alimentação (2009), a Segunda Conferência Internacional sobre Nutrição (2014). 135 PIDESC, artigo 11, grifos meus. 55 12, documento sobre o direito à alimentação defendido pelo PIDESC, lançado em 1999, pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais do Alto Comissariado de Direitos Humanos/ONU, a pedido dos Estados membros, durante a Cúpula Mundial da Alimentação (1996), que assim esclarece o conteúdo normativo daquele artigo 11: O direito à alimentação adequada realiza-se quando cada homem, mulher e criança, sozinho ou em companhia de outros, tem acesso físico e econômico, ininterruptamente, à alimentação adequada ou aos meios para sua obtenção. O direito à alimentação adequada não deverá, portanto, ser interpretado em um sentido estrito ou restritivo, que o equaciona em termos de um pacote mínimo de calorias, proteínas e outros nutrientes específicos. O direito à alimentação adequada terá de ser resolvido de maneira progressiva. No entanto, os estados têm a obrigação precípua de implementar as ações necessárias para mitigar e aliviar a fome, como estipulado no parágrafo 2 do artigo 11, mesmo em épocas de desastres, naturais ou não.136 É importante destacar ainda que o Comitê afirma, no mesmo documento, a importância do conceito de “adequado”137 (parágrafo 8), associando-o ao de sustentabilidade, ou seja, a alimentação adequada é aquela que está disponível e acessível, tanto hoje como para as gerações futuras. Disponibilidade e acesso (físico e econômico) constituem, portanto, o núcleo do conceito do DHAA, “a disponibilidade do alimento, em quantidade e qualidade suficiente para satisfazer as necessidades dietéticas das pessoas, livre de substâncias adversas e aceitável para uma dada cultura”, e a acessibilidade sustentável de modo a não impedir “a fruição de outros direitos humanos” (Comentário 12, parágrafo 8). Observe-se também, quanto à questão da aplicabilidade, que somente no PIDESC (§ 1º do artigo 2º) – e não no PIDCP – aparece o termo progressivamente, ao tratar do compromisso dos Estados em adotar medidas para assegurar o pleno exercício dos direitos ali reconhecidos. O Comentário 12, como se lê acima, reafirma esta tese.138 Entendo, porém, que a progressividade pode ser igualmente pensada na realização dos direitos políticos, a seguir o pensamento da própria ONU. Por exemplo, estamos avançando na garantia do princípio básico de toda democracia que é a participação social, se compararmos os 136 ONU, Comentário Geral nº 12, 6, 1999, grifo meu. 137 Evidentemente, o adequado fica condicionado a vários aspectos, não apenas do ponto de vista da ciência, mas em função de condições sociais, econômicas, culturais, climáticas, ecológicas e outras (Comentário, parágrafo 7). 138 E para apoiar os esforços dos Estados-membros interessados na realização progressiva do DHAA, adequada ao contexto da segurança alimentar nacional, a FAO aprovou em 2004 o documento Diretrizes Voluntárias: em apoio à realização progressiva do direito à alimentação adequada no contexto da segurança alimentar nacional. Disponível em www.fao.org/3/b-y7937o.pdf. Acesso em 20 mar 2015. Cf. versão resumida em ABRANDH, AÇÃO BRASILEIRA PELA NUTRIÇÃO E DIREITOS HUMANOS. ABRANDH. Diretrizes Voluntárias em apoio à realização progressiva do direito à alimentação adequada no contexto da segurança alimentar nacional, Roma, 20-23 de setembro de 2004. – Brasília: Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos, 2005. 56 conselhos de saúde, que têm caráter deliberativo,139 em relação aos conselhos de segurança alimentar e nutricional, que são apenas consultivos.140 Esta condição pode ser reveladora de uma progressividade no respeito ao direito político de participação social. O mesmo se verifica no caso do respeito ao direito à vida, que avançou no sentido de abolição da pena de morte, já que o PIDCP admitia que a pena de morte podia ser aplicada “em decorrência de uma sentença transitada em julgado e proferida por tribunal competente” (art. 6º, § 2º). Para realmente defender o direito à vida, tal como proposto na DUDH, o PIDCP precisou avançar e propor a abolição da pena capital, já que ela constitui uma grave exceção àquele direito.141 Diante disso, não se sustenta a tese que distingue a (imediata ou progressiva) aplicabilidade entre os direitos. Seria mais coerente avançar e considerar que estamos diante de uma grave exceção ao DHAA, quando as pessoas só tem acesso a alimentos não saudáveis, e não que se trata de uma “progressividade” na realização daquele direito. Infelizmente, o Comitê que elaborou o Comentário Geral sobre o direito à alimentação, apesar de reconhecê-lo como direito humano, portanto, inerente à dignidade humana, manteve a ideia de progressividade, corroborando aquela distinção entre os direitos de aplicação imediata e os de aplicação progressiva, como se, de imediato, fosse admitida apenas a obrigação de aliviar a fome. Por outro lado, no mesmo documento, o Comitê reconhece que “fundamentalmente, as raízes do problema da fome e da desnutrição não residem na falta de alimento, mas na falta de acesso ao alimento disponível, entre outras razões por causa da pobreza de grandes segmentos da população mundial”.142 O que o Comitê parece dizer é: 1. Existe fome; 2. Não falta alimento; 3. É possível acabar com a fome. 4. A fome deve ser resolvida de imediato. A questão que se coloca, então, passa a ser: que alimento é esse que temos para acabar com o problema da fome? É este alimento adequado para realizar o direito de estar livre da fome? Devo aceitar realizar o parágrafo 2 do artigo 11 – proteção contra a fome 139 Cf. Lei 8142/1990 que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde – SUS e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área de saúde, e dá outras providências. 140 Cf. LOSAN, e Decreto 6272/2007 que Dispõe sobre as competências, a composição e o funcionamento do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - CONSEA. 141 Isso só aconteceu em 1989, com o Segundo Protocolo Opcional ao PIDCP, que aboliu a pena de morte. Na Europa, foi a Convenção Europeia de Direitos Humanos (1950) que aboliu a pena capital, complementada pelo Protocolo nº6 à Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais relativo à Abolição da Pena de Morte (1983) e pelo Protocolo nº 13 à Convenção Europeia de Direitos Humanos (2002), que baniu a pena de morte inclusive em casos de guerra (ao contrário da Constituição Brasileira). O retorno da pena de morte foi vetado, nos países onde já tinha sido abolida, em 1969, pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos, sendo que em 1990 foi aprovado o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos referente à abolição da pena de morte. Sobre pena de morte na Europa ver http://europa.eu/legislation_summaries/human_rights/human_rights_in_third_countries/r10106_pt.htm. 142 ONU, 1990. Comentário geral n. 3, item 6. Disponível em http://www.dhnet.org.br/dados/cursos/dh/br/pb/dhparaiba/2/c3.html. Acesso em 02 out 2012. 57 – sem exigir, simultaneamente realizar o parágrafo 1, isto é, ter uma alimentação adequada? Quanto tempo devo esperar entre realizar 2 e realizar 1? A fome tem pressa, mas a alimentação adequada pode esperar? Posso estabelecer uma distinção entre grupos populacionais que terão direito a 1, enquanto outros tem direito a 2? Respondo a tais perguntas, exemplificando minha crítica à progressividade, a partir de duas situações concretas de violação do DHAA, sendo que, nesta seção, comento uma situação externa, e no último capítulo, comento a situação que ocorre no Brasil, ambas envolvendo a utilização de sementes transgênicas. Para tanto, resgato em outro Comentário anterior, o Comentário Geral nº 3 (1990), as obrigações dos Estados-parte quanto à garantia dos direitos sociais. O documento reconhece que a realização progressiva está ligada à limitação de recursos disponíveis, mas que há também várias obrigações que são de efeito imediato. Uma dessas obrigações diz respeito à tarefa dos Estados em comprometer-se a garantir que direitos relevantes serão exercidos sem discriminação (Comentário 3, parágrafo 1) e a buscar “a cooperação internacional para o desenvolvimento e assim para a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais” (parágrafo 14). Ora, o direito à alimentação adequada pode ser considerado um direito relevante. Mesmo assim, o documento afirma, no parágrafo 2, que “enquanto a completa realização de direitos relevantes pode ser alcançada progressivamente, providências em direção ao objetivo devem ser tomadas dentro de um tempo razoavelmente curto depois da entrada em vigor do Pacto para os Estados envolvidos”. Segundo sua interpretação da realização do DHAA, a ONU reconhece a necessidade da progressividade, tendo em vista os recursos disponíveis de cada Estado, que poderia impossibilitar a plena realização do direito em um curto espaço de tempo, mas adota um núcleo mínimo de obrigações – sem o qual o PIDESC não teria razão de ser –, dentre estas, uma que se refere a impedir que “qualquer número significativo de indivíduos” (parágrafo 10) seja privado de gêneros alimentícios essenciais; é nestas circunstâncias que cada Estado deve buscar o máximo de esforços, inclusive a cooperação internacional, como explicitado anteriormente. Como Nutricionista, profissional de saúde, é minha obrigação alertar que garantir o mínimo – que corresponderia a proteger da fome – não deve significar garantir alimentos inadequados, em nome de uma suposta progressividade. E para fundamentar que não devemos aceitar que primeiro é preciso resolver o problema da fome, para depois lutar por uma alimentação adequada, explicito as obrigações dos Estados estabelecidas no Comentário 12, para a garantia do DHAA, quais sejam: respeitar, proteger, prover e promover (facilitar), tendo 58 em vista a não discriminação na garantia do relevante direito à alimentação adequada: A obrigação de respeitar o acesso existente à alimentação adequada requer que os Estados Parte não tomem quaisquer medidas que resultem no bloqueio deste acesso. A obrigação de proteger requer que medidas sejam tomadas pelo Estado para assegurar que empresas ou indivíduos não privem outros indivíduos de seu acesso à alimentação adequada. A obrigação de satisfazer (facilitar) significa que o Estado deve envolver-se proativamente em atividades destinadas a fortalecer o acesso de pessoas a recursos e meios, e a utilização dos mesmos, de forma a garantir o seu modo de vida, inclusive a sua segurança alimentar, e a utilização destes recursos e meios por estas pessoas. Finalmente, sempre que um indivíduo ou grupo está impossibilitado, por razões além do seu controle, de usufruir o direito à alimentação adequada com os recursos a sua disposição, os Estados tem a obrigação de satisfazer (prover) o direito diretamente. Esta obrigação também deve existir no caso de vítimas de desastres naturais ou provocados por causas diversas.143 Com estes elementos, podemos avaliar a primeira situação de violação do DHAA acatada pela ONU. Jean Ziegler – relator da ONU para o direito à alimentação (2000-2008) – descreve um fato bem interessante que ocorreu na Zâmbia, país que sofria com a seca no ano de 2002, e recebeu ajuda humanitária do Programa Alimentar Mundial (PAM) da FAO.144 Recordo que o § 1º do artigo 11 do PIDESC reconhece “a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento” para que as Nações consigam assegurar o DHAA. Pois bem, o Presidente da Zâmbia, ao saber que se tratava de milho transgênico, pediu a interrupção da distribuição daquele alimento. Questionado sobre sua posição, diante da decisão do Presidente, Ziegler respondeu que aquela nação africana tinha o mesmo direito que a França, ou qualquer nação europeia, que também rejeita a importação e o cultivo em suas terras de sementes transgênicas, sobretudo, se se considerar o dano econômico de contaminação transgênica, já que, em tempos de boa colheita, a Zâmbia exportava milho não transgênico para União Europeia, de modo que isso afetaria profundamente a economia do país. O PAM foi obrigado a substituir o milho por outro não transgênico, e segundo Ziegler,145 a rejeição do Presidente evitou uma catástrofe financeira para os cidadãos. Alguém poderia defender que o Presidente da Zâmbia errou ao não aceitar receber 143 ONU, Comentário 12, op. cit., parágrafo 15. 144 Sobre o funcionamento do PAM, ver ZIEGLER, Jean. Destruição em massa: geopolítica da fome. Tradução de José Paulo Netto. São Paulo: Cortez Editora, 2013, op. cit., p. 195 et seq. 145 ZIEGLER, Jean. Dalla parte dei deboli: il diritto all’alimentazione. Traduzione di Monica Fiorini. Milano: Marco Tropea Editore, 2004, p.23-24. O relator descreve ainda a ofensiva diplomática que sofreu dos delegados americanos na ONU, ao ser acusado de favorecer a fome na África e duvidar da generosidade do povo americano. O milho em questão era da empresa americana Monsanto. 59 alimento para distribuir a uma população faminta. Ele poderia, progressivamente, eliminar a ajuda (transgênica) para buscar assegurar o direito à alimentação adequada, por outros meios, mas não poderia, contudo, impedir a contaminação da produção local – a ser estimulada progressivamente, com o fim da seca – e o prejuízo permanente decorrente disso. Concordo plenamente com Ziegler. O Presidente não fez mais do que cumprir seu papel, ao defender o direito dos cidadãos de Zâmbia a um alimento adequado e, por esse motivo, sua decisão deveria ser reproduzida por outras Nações pobres que ficam à mercê dos países ricos, detentores das patentes de sementes transgênicas. Cabe ao Estado prover a população com alimentos adequados, respeitar seu acesso a estes, bem como proteger a população de quem impede tal acesso, como corporações produtoras de sementes transgênicas, e ainda promover práticas saudáveis de produção de alimentos que garantam o acesso e a disponibilidade a todos. No exemplo dado, o governo cumpriu sua obrigação, ao impedir o acesso da população a alimentos transgênicos, como forma de protegê-la, tendo em vista as desastrosas consequências da sua utilização.146 De imediato, já parece correto fazer uso deste que é um critério utilitarista, isto é, avaliar as consequências futuras da decisão de aceitar milho transgênico de uma ajuda humanitária, entretanto, o fato de se tratar de uma população faminta, que não pode esperar, nos obriga a refletir ainda sobre o papel do Estado na proteção de um direito que é anterior a qualquer outro, portanto, é preciso considerar o princípio da dignidade dos cidadãos. Se o sentido da defesa dos direitos humanos tem um sentido histórico, na direção do moralmente melhor, então, a defesa de um direito humano como o direito à alimentação só pode ser a defesa do alimento mais adequado, e não a defesa do alimento “menos pior”, especialmente porque aqui nos encontramos em uma situação de total vulnerabilidade, tratando de pessoas vítimas da fome, pessoas que sequer estão em condições de fazer uma escolha sobre qual alimento consumir. Admitir que famintos, só porque estão famintos, não tem direito ao melhor alimento, é uma espécie de discriminação negativa, o que deve ser combatido, pois, é absolutamente incompatível com a defesa dos direitos humanos, já que todas as pessoas tem a mesma dignidade. Além disso, o Estado deve dar mais atenção aos que mais precisam, se se quer praticar a equidade, um princípio da bioética, de modo que a atitude do Presidente da Zâmbia foi correta também sob este aspecto ético, de defesa da dignidade do seu povo, no que ele foi 146 O movimento de consumidores da África também deu apoio ao Presidente. Cf. http://www.i- sis.org.uk/ACLSZ.php. 60 apoiado, em documento emitido por diversas entidades de 45 nações africanas147. Diante do exposto, considero o termo progressivo bastante problemático quando aplicado à alimentação, pois não parece atender ao que estabelece o artigo 11 do PIDESC, uma vez que pressupõe que seja admissível resolver o problema da fome com alimentos inadequados, o que seria contraditório com o direito à alimentação adequada, se este é entendido como um direito indivisível. Além do mais, o PIDCP assegura o direito à vida (art. 6º), que não existe sem o alimento, de modo que seria totalmente absurdo considerar que o direito à vida seja de aplicação imediata e o direito à alimentação não seja. Como bem observa Ziegler: “uma criança que morre de fome hoje é assassinada”.148 De todo modo, o grande desafio da questão da progressividade parece ser a questão do tempo político, já que não se trata de falta de alimento. Ao entender a progressividade no contexto de uma busca pela plena realização do DHAA, em um sentido histórico, conforme estabelecido no Comentário 12, sobre as obrigações dos Estados, “A obrigação principal é aquela de adotar medidas para que se alcance, de forma progressiva, a total realização do direito à alimentação adequada. Isto impõe a obrigação de que isto seja feito de forma tão rápida quanto possível”.149 sendo que, nesse caminho, o mínimo é garantir que todos estejam livres da fome. Ora, se o problema da fome não é técnico, e nem mesmo de insuficiência de alimentos, quando será “tão rápido quanto possível”, considerando que é já possível hoje? O documento parece não querer enfrentar a verdadeira causa da fome. No primeiro documento de âmbito internacional dirigido especificamente ao problema da fome, a Declaração Universal sobre a Erradicação da Fome e Desnutrição (1974), foi abordada a necessidade de estabelecer um sistema mundial de segurança alimentar visando à disponibilidade suficiente de alimentos a preços razoáveis, a qualquer momento, para o que seria importante “eliminar os obstáculos à produção alimentar e conceder incentivos adequados aos produtores agrícolas” (parágrafo 4). Diante da grave crise alimentar que assolou o mundo, 147 Vandana Shiva também se posicionou favorável à atitude do Presidente da Zâmbia, por considerar “desumana” a ajuda alimentar por meio de alimentos transgênicos, o que faz de pessoas famintas meras cobaias das corporações de sementes transgênicas. Cf. Why I must believe sending GMOs to starving people is inhuman aid. Disponivel em http://stopogm.net/sites/stopogm.net/files/InhumanAid.pdf. Acesso em 20 mai 2015. Já o diretor da FAO Jacques Diouf considerou que as nações deviam repensar a rejeição da ajuda humanitária, tendo em vista que os alimentos não apresentam riscos à saúde e podem ser consumidos. “the food being offered to Southern African countries is not likely to present a human health risk and may be eaten”. Cf. http://www.un.org/events/wssd/pressreleases/FAOPR0294En.pdf. Acesso em 25 mai 2015. 148 Cf. http://reporterbrasil.org.br/2013/07/uma-crianca-que-morre-de-fome-hoje-e-assassinada-diz-jean-ziegler/. Acesso em 25 jan 2015. 149 ONU, Comentário 12, op. cit., parágrafo 14, grifos meus. 61 em 1972,150 decidiu-se, naquela Primeira Conferência Mundial sobre Alimentação, promovida pela FAO, que a humanidade deveria agir para aliviar a fome de mais de 815 milhões de pessoas e erradicar este flagelo, no espaço de dez anos. Os participantes do evento declararam-se cientes de que “A sociedade possui atualmente os recursos, a capacidade organizadora e a tecnologia suficientes e, portanto, a capacidade para alcançar esta finalidade” (parágrafo 1). O esforço foi em vão, e na reunião seguinte da FAO (1996), a Cúpula Mundial da Alimentação (CMA) – World Food Summit –, os chefes de Estado e de Governo ali reunidos, mais uma vez, reafirmaram, na Declaração de Roma sobre a Segurança Alimentar Mundial, o direito de toda pessoa a ter acesso a uma alimentação segura e nutritiva, em consonância com o direito humano a uma alimentação adequada e com o direito fundamental de toda pessoa de estar livre da fome (parágrafo 1), só que desta vez elaboraram um Plano de Ação da CMA, no qual assumiam o compromisso bem mais modesto de, num prazo de quase 20 anos, reduzir pela metade o número de pessoas subalimentadas.151 Diante disto, a única resposta possível ao problema parece ser a decisão política, uma vez que não há o que esperar, trata-se de exigir a intervenção do Estado na garantia de um direito, portanto, estamos falando do necessário acordo entre o direito, a política e a ética, no que diz respeito às formas de produção e consumo de alimentos. O Estado tem obrigações para com a realização do DHAA, seja este direito considerado social ou político, e as pessoas não tem apenas uma necessidade fisiológica do alimento, elas têm também o direito de decidir sobre qual alimento plantar, produzir ou consumir, o que significa que elas têm o direito de participar 150 A respeito dessa crise, e suas causas, ver CHONCHOL, Jacques. O desafio alimentar: a fome no mundo. São Paulo: Marco Zero. 1987. 151 É neste Plano de Ação que se afirma existir “segurança alimentar quando as pessoas têm, a todo momento, acesso físico e económico a alimentos seguros, nutritivos e suficientes para satisfazer as suas necessidades dietéticas e preferências alimentares, a fim de levarem uma vida ativa e saudável” (FAO, 1996, parágrafo 1). O Plano pode ser lido aqui http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/FAO-Food-and-Agriculture-Organization- of-the-United-Nations-Organiza%C3%A7%C3%A3o-das-Na%C3%A7%C3%B5es-Unidas-para-a- Alimenta%C3%A7%C3%A3o-e-a-Agricultura/cupula-mundial-de-alimentacao-declaracao-de-roma-sobre-a- seguranca-alimentar-mundial-a-plano-de-acao-da-cupula-mundial-da-al.html. A legislação brasileira aperfeiçoou esse conceito acrescentando a dimensão nutricional. Quando ficou claro que a única meta quantitativa do PAM não seria atingida, a FAO organizou outra Conferência, a Cúpula + 5 (2002), boicotada pelos países ricos. O número absoluto de pessoas com fome no mundo, na verdade, diminuiu muito pouco desde a primeira conferência (815 milhões nos anos 70), pois, ainda em 2014, seguimos com cerca de 805 milhões de famintos. Proporcionalmente, porém, houve uma redução de 18,6 (1990-92) para 12,5 (2010-12), mas a falência em assumir o compromisso com esse escândalo é visível: nos anos 70, a meta era erradicar a fome em 10 anos; nos anos 90, a meta foi de reduzir pela metade até 2015, o que se tornou o objetivo número 1 das metas estabelecidas em 2000, pela ONU, conhecidas como “objetivos do milênio”, sendo o primeiro deles, a erradicação da fome e da miséria, também para o ano de 2015. A redução estabelecida implicaria chegar a algo como 400 milhões de famintos, o que certamente não será alcançado, em termos mundiais. O prazo se esgota em 31 de dezembro de 2015. Cf. Objetivos de desenvolvimento do milênio. Disponível em http://www.unicef.org/brazil/pt/resources_9540.htm. Acesso em 06 jan 2015. O mapa global com a situação de cada nação quanto à consecução dos objetivos do milênio pode ser encontrado aqui: http://www.fao.org/fileadmin/templates/ess/foodsecurity/poster_web_001_MDG.jpg. Acesso em 28 fev 2015. 62 da elaboração de políticas públicas e da regulação sobre alimentos, papel que é típico do Estado. Nesse sentido, George Kent, ao comparar a satisfação da necessidade fisiológica de pessoas encarceradas com a realização do DHAA, afirma que, ainda que fossem bem alimentadas, do ponto de vista nutricional, aquelas pessoas, na medida em que não tem o poder de influenciar sobre o que e como serão alimentadas, não se pode dizer que seu direito à alimentação está sendo realizado, porque se trata, principalmente, de defender a dignidade humana, não sobre satisfazer necessidades fisiológicas.152 Reconhecer a alimentação como direito político e como direito social implica defender sua aplicabilidade imediata e admitir que somente a democracia torna isso possível, como estabelece o artigo XXI da DUDH. Como direito humano, a alimentação está intrinsecamente ligada ao direito à vida de qualquer pessoa, seja ela cidadã africana ou europeia. Ao me referir à vida, não estou tratando apenas de uma vida no aspecto biológico – como vida nua (zoè), para usar a expressão de Agamben – mas, sobretudo, da vida política, como bios, um tipo particular de vida.153 E uma vez que a realização do DHAA não se dá meramente na esfera privada, não há como separar a dimensão política da dimensão social. Este foi o espírito da DUDH, mas é a relação entre o cidadão, a sociedade civil e o Estado o que determina a formulação dos direitos em cada Estado Nacional, não um documento. Dessa relação outro problema pode surgir, no caso do direito à alimentação, quando se admite que o poder do Estado chegaria ao ponto de obrigar o indivíduo a comer o que não deseja. Poderia, então, o direito à alimentação ser realizado em um regime autoritário, no qual o Estado impusesse determinados alimentos à população, impedindo-a de livremente escolher o que comer? O Estado poderia, em nome de sua responsabilidade para garantir aquele direito, estabelecer quais alimentos estariam à disposição de todos, limitando a liberdade de escolha como autonomia individual? Poderia o aparato estatal determinar o tipo de semente a ser plantada? Abordo estas questões, especialmente, quando apresentar o segundo exemplo de violação do DHAA, qual seja, o caso brasileiro da liberação de sementes transgênicas. Para concluir minha defesa contra a progressividade, não posso deixar de citar outro 152 “Certainly one can provide food for individuals that will meet their basic nutrient requirements, as in a rison or an army. However, if people have no chance to influence what and how they were being fed, if they are fed prepackaged rations or capsules or are fed from a trough, their right to adequate food is not being met, even if they get all the nutrients their bodies need.” Cf. KENT, George. Freedom from want: the human right to adequate food. Washington, D.C.:Georgetown University Press, 2004, p. 46. Disponivel em http://press.georgetown.edu/book/georgetown/freedom-want. Acesso em 05 jan 2015. Tivemos uma situação semelhante no Rio Grande do Norte, quando um Promotor de Justiça “decidiu” que a população encarcerada deveria comer carne de jumento. Cf. http://erivanmorais.blogspot.com.br/2014/03/promotor-propoe-carne-de- jumento-na.html. Acesso em 5 mai 2015. 153 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua 1. Belo Horizonte: Humanitas, 2010. 63 documento internacional, também muito importante para a defesa dos direitos humanos, que emergiu com o fim da guerra fria, por ocasião da realização, em Viena (1993), da Segunda Conferência Mundial para os Direitos Humanos,154 convocada pela ONU, logo após a queda do muro de Berlim. A Declaração e Programa de Ação de Viena (DPAV)155 reafirmaram a interdependência entre os direitos e colocou a fome como obstáculo à realização de todos os direitos humanos (parágrafo 30). A Declaração de Viena considerou “fora de questão” a natureza universal e as liberdades de todas as pessoas, conforme definido pela DUDH, ao estabelecer que “os direitos humanos e as liberdades fundamentais são direitos naturais aos seres humanos; sua proteção e promoção são responsabilidades primordiais dos Governos” (art. 1º). Esta Declaração aborda ainda o importante tema do direito ao desenvolvimento (previsto em declaração específica156), defendendo, em seu artigo 10, que: “a falta de desenvolvimento não pode ser invocada para justificar limitações aos (outros) direitos humanos reconhecidos internacionalmente”. Para Laffer,157 o fim da guerra fria foi “a mais importante mudança no sistema internacional, depois da Segunda Guerra mundial”, e a DPAV trouxeram um “direito novo”, só possível naquele contexto. Afinal, os direitos humanos tinham se tornado um dos temas globais, (em 92, o ONU havia realizado no Brasil, a Conferência do Meio Ambiente), segundo Laffer,158 “de inspiração kantiana”, por apresentar o ponto de vista da humanidade. Para o autor, a Conferência de Viena “favorece a subordinação das soberanias à ética dos princípios representados pelos direitos humanos”.159 Sobre o que considera a marca kantiana na evolução dos direitos humanos, Celso Laffer diz o seguinte: Os direitos humanos [...] tornaram-se, com base na Carta, no mundo pós- 154 O Brasil teve destaque nesta Conferência porque o embaixador Gilberto Vergne Saboia presidiu o Comitê de Redação. Em 1968 (Ano Internacional dos Direitos Humanos), com o fim de avaliar os 20 anos da DUDH, ocorreu, em Teerá, a Primeira Conferencia Internacional de Direitos Humanos, cuja Proclamação confirmava a indivisibilidade dos direitos, ao afirmar: “como os direitos humanos e as liberdades fundamentais são indivisíveis, a realização dos direitos civis e políticos sem o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais torna-se impossível” (ONU, 1968, parágrafo 13); no entanto, sobre o ostracismo da Conferência de Teerã ver HERNANDEZ. Matheus de Carvalho. Os direitos humanos como temática global e a soberania no sistema internacional pós-Guerra Fria: a Conferência de Viena. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2010.377 f., p. 28. 155 ORGANIZAÇAO DAS NAÇOES UNIDAS. Declaração de Viena e Programa de Ação. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/viena/viena.html. Acesso em 10 mai 2012. 156 A Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento foi adotada pela Assembléia Geral em 1986, com voto contrário dos EUA e 8 abstenções (Dinamarca, Finlândia, República Federal da Alemanha, Islândia, Israel, Japão, Suécia e Reino Unido). Cf. http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Direito-ao- Desenvolvimento/declaracao-sobre-o-direito-ao-desenvolvimento.html. Acesso em 20 dez 2014. 157 LAFFER, 1995, op. cit., p. 179. 158 LAFFER, 1995, op. cit., p. 180. 159 LAFFER, 1995, op. cit., p. 182. 64 Guerra Fria, um tema global, à maneira kantiana. Representam o reconhecimento axiológico do ser humano como fim e não meio; tendo direito a um lugar no mundo; um mundo que encontra um terreno comum entre a Ética e a Política através da associação convergentes de três grandes temas: direitos humanos e democracia no plano interno e paz no plano internacional.160 Uma estratégia defendida em Viena para superar as dificuldades foi a cooperação internacional: por meio de relações econômicas equitativas, as nações devem se ajudar em busca desse que deve ser um ideal comum, o desenvolvimento, indissociável do ideal de democracia e respeito aos direitos e liberdades fundamentais (artigo 8). Sobre esse aspecto, retomo o último paradigma, narrado por Laffer, na “evolução” dos direitos humanos, no plano internacional, que remete à filosofia de Hugo Grocius. Trata-se do modelo baseado não no poder soberano (hobbesiano-maquiavélico), mas na convivência que “pressupõe a existência na sociedade internacional de um potencial de sociabilidade e solidariedade que torna possível conceber a política internacional como um jogo que não é, inapelavelmente, de soma-zero”.161 Interessa aqui particularmente o artigo 5º da Declaração de Viena, porque estabelece os traços fundamentais dos direitos humanos que devem ser considerados para a sua defesa, quais sejam: a universalidade, a indivisibilidade, a interdependência e inter-relação. Ao reconhecer que “particularidades nacionais e regionais devam ser levadas em consideração, assim como diversos contextos históricos, culturais e religiosos”, a Declaração afirma que “é dever dos Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam quais forem seus sistemas políticos, econômicos e culturais” (art. 5º). Tenta-se, com isso, eliminar aquelas diferenças que levaram à elaboração dos dois Pactos em separado.162 Quanto à universalidade, não há o que discutir, pois o art. 1º da DUDH já deixava isso bem explícito. A interdependência, inter-relação e indivisibilidade dos direitos humanos implicam na prática que, no caso da alimentação, um direito social, não se justifica garantir uma alimentação saudável e adequada para todos, se todos não tem o direito de expressar livremente seu pensamento, ou, ao contrário, que as liberdades políticas, por exemplo, o direito de votar e ser votado, devam prevalecer sobre a responsabilidade do Estado em garantir a realização do 160 LAFFER, 1995, op. cit., p. 172, grifos do autor. 161 LAFFER, 1995, op. cit., p. 172. 162 No Comentário 3, a “neutralidade” do PIDESC também havia sido afirmada no parágrafo 8, ao dizer que “em termos de sistemas políticos e econômicos, o Pacto é neutro e seus princípios não podem ser precisamente descritos como sendo afirmados exclusivamente sobre a necessidade ou a conveniência de sistema capitalista ou socialista ou misto [...]. [...] os direitos reconhecidos no Pacto são suscetíveis de realização dentro do contexto de uma ampla variedade de sistemas econômicos e políticos, com a única condição de que a interdependência e a indivisibilidade dos dois grupos de direitos humanos [...]. O Comitê também nota a relevância sob esse aspecto de outros direitos humanos e em particular o direito ao desenvolvimento”. 65 DHAA; implica, na verdade, que só posso realizar meu direito à alimentação, se tiver também a garantia do meu direito à saúde, pois, certas condições patológicas vão exigir cuidados especiais na minha alimentação. Por fim, por ser indivisível, não posso aceitar metade do meu direito à alimentação, portanto, não posso ser obrigada a escolher entre não passar fome, ou comer alimentos inadequados. O direito à alimentação é apenas um: o direito à alimentação adequada, e isso significa estar livre da fome. Assim como o fundamento de todo direito humano é a dignidade, sendo esta um único valor, não se pode pensar em dividir os direitos humanos, porque seu fundamento é único, o que torna artificial aquela divisão dos Pactos, e a distinção na sua aplicabilidade, contraditória com os princípios da DUDH. É impossível, na prática, realizar uns direitos sem satisfazer outros. A seguir, apresento, em linhas gerais, os aspectos mais importantes na constituição do direito à alimentação no Brasil, para dar continuidade à reflexão sobre a realização do DHAA como direito social e político, e destacar a atuação do Nutricionista neste contexto. 2.3 O Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) no Brasil: progressividade ou retrocesso? Tanto progresso no social e no técnico desse quarto de século entre as duas guerras mundiais, e mesmo assim não há nenhuma nação em nosso pequeno mundo ocidental que não tenha perdido imensuravelmente muito da antiga alegria de viver e despreocupação (Stefan Zweig, O Mundo que Eu Vi) A experiência de duas grandes guerras, que marcou o início do século passado, sem dúvida, revelou ao mundo a importância que tem para a soberania de uma nação possuir estoques de alimentos. Sabemos que o alimento – ou a falta dele – havia se tornado uma importante arma de guerra, de modo que a primeira grande preocupação inicial com a segurança alimentar foi a de proteger da fome as populações. Josué de Castro (1908-1973), em sua obra Geopolítica da fome (1965), narra com precisão de detalhes como Hitler preparou a Alemanha para a segunda guerra, estocando alimentos, tendo em vista a experiência do bloqueio alimentar que a nação sofrera no primeiro conflito. Tão logo chegou ao poder, em 1933, Hitler criou um organismo próprio – Reichnaehrstand – que controlava, por meio de uma legislação especial, toda a produção de alimentos, o que significou ter sob controle não apenas agricultores, criadores e pescadores, mas também industriais de alimentos e comerciantes. Não foi bastante aumentar a eficiência produtiva interna, com a utilização dos meios mais eficientes da época; o racionamento foi imposto aos países dominados e os gêneros alimentícios foram confiscados e 66 pilhados; cada Nação da Europa teve seus estoques alimentares saqueados pelos nazistas, como forma de produzir uma fome em massa, cujo poder destrutivo era maior que qualquer outra arma.163 O plano de fome organizado pelo terceiro Reich estabelecia distintos padrões alimentares, segundo a classificação dos grupos populacionais: os alemães (único grupo de bem alimentados, com mais de 2000 calorias), os insuficientemente alimentados (1000 calorias diárias), os famintos (judeus, ciganos, com privação intensa), e aqueles cujo destino era morrer de fome nos campos de concentração (com 400 calorias), por serem “indignos de viver”, ou seja, o fundamento nazista do “direito” à alimentação era a dignidade, só que esta não era aceita como um atributo universal conforme expresso na DUDH. Quero destacar, nesta seção, o progresso na concepção do direito à alimentação na legislação brasileira, tendo por referência os documentos internacionais discutidos na seção anterior. Do que foi exposto anteriormente, ficou evidente a importância dos Pactos Internacionais no âmbito do sistema jurídico internacional de defesa do direito à alimentação expresso na DUDH. No caso brasileiro, é significativo o lapso de tempo entre a aprovação dos Pactos na ONU (1966) e a sua ratificação, nos anos 90. Durante o período de ditadura militar instaurada no país, a partir de 1964, a discussão da fome sequer era permitida; foi somente em 1992 que o Brasil ratificou os dois Pactos: o PIDESC, por meio do Decreto nº 591, e o PIDCP por meio do Decreto 592. No Relatório Nacional Brasileiro elaborado para a CMA (1996), o governo defendeu o acesso à alimentação como “direito humano em si mesmo”, por reconhecer que “a alimentação constitui-se no próprio direito à vida”, portanto, “negar esse direito é, antes de mais nada, negar a primeira condição para a cidadania, que é a própria vida”,164 no entanto, foi preciso esperar até 2010 para que a alimentação viesse a se tornar um direito constitucional, positivando, em âmbito nacional, a universalidade dada pela DUDH, o que indica a aceitação jurídica da alimentação como direito humano.165 A adoção de medidas legislativas é um dos meios previstos no PIDESC (art. 2º, § 1º) – 163 Castro cita a jornalista polonesa Maria Babicka (1943): “Pela primeira vez na história, o controle de alimentos é levado a efeito, não para proporcionar uma distribuição racional dos suprimentos, mas como uma arma de fome, lenta e segura, de um plano de extermínio”. Cf. CASTRO, Josué de. Geopolítica da Fome: ensaios sobre os problemas de alimentação e de população. 2ºv. &ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1965, p. 363. 164 BRASIL. Relatório Nacional Brasileiro – Cúpula Mundial da Alimentação. Brasília (DF), Ministério das Relações Exteriores, 1996, p. 8. 165 Embora eu não tenha abordado a distinção entre direito humano e direito fundamental, por considerar que são idênticos, na medida em que seu fundamento é o mesmo, essa distinção pode ser apresentada, para efeito didático, considerando como “fundamental” o direito que é reconhecido na Constituição de cada Estado, sendo o direito humano aquele aceito como direito universal, no campo do direito internacional. Cf. COMPARATO, 2003, op. cit. p. 36. 67 também explicitado no Comentário 12 (§ 29) – de que dispõe os Estados para garantir os direitos ali elencados. Sob esse aspecto, é inegável o progresso na concepção do direito à alimentação, no âmbito do ordenamento jurídico nacional. Signatário da DUDH e dos Pactos, a evolução brasileira pode ser acompanhada pelos temas abordados nos relatórios das Conferências, e até pela nomenclatura utilizada, visto que a I Conferência Nacional de Alimentação e Nutrição (1986) foi seguida da I Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (1994), termo em vigor até hoje.166 Pode-se dizer que avançamos da proteção contra a fome para a segurança alimentar, incluímos a dimensão nutricional, até chegarmos à concepção de soberania e sustentabilidade alimentar. A abrangência do termo segurança alimentar e nutricional significa a aceitação de que não se trata apenas de estar livre da fome, mas de ter acesso a uma alimentação de qualidade (do ponto de vista biológico, nutricional, sanitário e tecnológico), produzida de modo sustentável e respeitando a diversidade cultural. Daquele sentido original de abastecimento alimentar, baseada na produção e garantia de estoques de alimentos e garantia de ração mínima, a segurança alimentar incorpora hoje noções de autonomia e soberania dos povos, sustentabilidade da produção, equidade, justiça social, direito à vida e dignidade. Foi como consequência das demandas da sociedade (consubstanciadas nos relatórios das conferências) e dos avanços políticos na democracia brasileira, que o arcabouço jurídico adequou-se à defesa da alimentação como direito humano, um direito indispensável a todos os outros. É o que se lê no artigo 2ª da LOSAN: a alimentação adequada é um direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o Poder Público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a Segurança Alimentar e Nutricional da população. Como se pode ver, repetem-se, na legislação nacional, os princípios da Carta Internacional dos Direitos Humanos: a dignidade como fundamento do direito à alimentação, 166 O tema da I Conferência Nacional de Segurança Alimentar (1994) foi “Fome: uma questão nacional”; somente 10 anos depois, ocorreu a II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (nova dimensão incorporada), com o tema “A construção da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional”; a III Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (2007) trouxe para o debate a questão da sustentabilidade e da soberania alimentar com o tema “Por um desenvolvimento sustentável com soberania e segurança alimentar e nutricional” (recordo que a nova lei de biossegurança que liberou os OGM no Brasil foi aprovada em 2005); a IV Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, realizada em 2011, após a emenda constitucional 64, veio com o tema: “Alimentação saudável e adequada: um direito de todos”. O tema da próxima conferência a ser realizada em 2015 também expressa a conjuntura atual, de preocupação com o que estamos comendo. A V Conferencia discutirá: “Comida de verdade no campo e na cidade: por direitos e soberania alimentar”. 68 e a indissociabilidade dos direitos. É importante recordar que a Lei 8080/90, que regulamentou o direito à saúde, já tinha reconhecido a alimentação como condicionante e determinante daquele direito (art. 3º) e estabelecido a competência do SUS para formular e executar políticas e ações de alimentação e nutrição (art. 16). Por isso, ao garantir a alimentação como direito, a LOSAN (§ 2º, art. 2º) obriga o poder público a “respeitar, proteger, promover, prover, informar, monitorar, fiscalizar e avaliar a realização do direito humano à alimentação adequada, bem como garantir os mecanismos para sua exigibilidade”. Em sua regulamentação, dada pelo Decreto 7272/2010, foi criado o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) e foram definidas as diretrizes e objetivos da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN), bem como os parâmetros para a elaboração do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o que inclui mecanismos para monitoramento e avaliação do estado de segurança alimentar e nutricional da população, como forma de monitorar a realização do direito à alimentação, além da regulamentação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA). A realização deste direito, porém, exige também do sujeito de direito um papel ativo. O direito à alimentação não se realiza por meio de imposições alimentares, no sentido que o Estado possa obrigar alguém a consumir alimentos saudáveis, pois, não se trata apenas de satisfazer uma necessidade biológica, tecnicamente estabelecida, o que poderia ser feito, por exemplo, com rações balanceadas em forma de pó ou cápsulas. Realizar a necessidade fisiológica por alimento é diferente de realizar o direito à alimentação, porque tal direito implica considerar a liberdade do sujeito, portanto, seu direito também à escolha. Essa escolha só pode ser uma escolha moral, conforme discuto na próxima seção, cujo fundamento, apresentado no próximo capítulo, está baseado na doutrina da virtude kantiana, a qual ordena considerar sagrado o direito dos seres humanos.167 2.3.1 A (falta de) alimentação como problema moral O século XX foi marcante para o debate sobre o problema alimentar no mundo, seja pelo acúmulo do conhecimento na área que teria iniciado já com as descobertas de Lavoisier (1743-1794) – e assim possibilitado o nascimento de uma Ciência da Nutrição –, seja pela experiência das duas grandes guerras que revelou ser a alimentação não apenas uma questão 167 MC, 2013, op. cit., 394, p. 206 69 social e econômica, mas de segurança nacional.168 No início dos anos 30, ao mesmo tempo em que avançava o conhecimento científico sobre a biologia humana que permitiu conhecer a fundo a desnutrição, economicamente, agricultores dos países industrializados lidavam com o problema do excedente alimentar, chegando-se ao paradoxo em que: os especialistas em nutrição humana alertavam sobre a necessidade de aumentar as disponibilidades alimentares simultaneamente ao fato de que os economistas recomendavam reduzir a produção agrícola para resolver o problema dos excedentes invendáveis.169 Essa situação é reveladora de como a relação entre ciência e política é fundamental na abordagem ética que precisa ser feita sobre a solução dada aos problemas alimentares, sobretudo, quando se busca garantir um direito humano.170 No mesmo período, também no Brasil, o tema “alimentação” veio a se tornar um novo campo de saber científico171 – a “nutrologia”, que passou a ser “nutrição” –, a partir do desenvolvimento de várias pesquisas que originaram duas vertentes principais de estudo,172 além da criação de cursos nas escolas médicas que ajudou na formulação de políticas públicas. Dessa articulação entre ciência e economia resultou a política que instituiu o salário mínimo, por meio da lei 185/36,173 embasada nos estudos que mostravam a relação entre renda e 168 Não que em épocas anteriores o mundo tenha desconhecido este mal, sobretudo, sua forma coletiva. Segundo registros bíblicos, a fome remonta aos tempos de Abraão. Cf. http://www.bibliacomentada.com/Busca.aspx?Palavra=fome#axzz3Tp43xSVf. Acesso 08 mar 2015. 169 CHONCHOL, 2005, op. cit., p. 33. 170 SEN registra que a economia teve duas origens relacionadas à política, mas diversamente ligadas à ética. A respeito da “origem ética” da economia, de fonte aristotélica, ver SEN, Amartya. Sobre ética e economia. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras,1999, p.19 et seq. 171 Sobre uma reconstrução dos estudos no campo da nutrição no Brasil, que aponta seu início ainda no século XIX, ver VASCONCELOS, Francisco de Assis Guedes de; BATISTA FILHO, Malaquias. História do campo da Alimentação e Nutrição em Saúde Coletiva no Brasil. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro , v. 16, n. 1, p. 81-90, Jan. 2011. 172 Uma vertente priorizou estudos de caráter predominantemente biológico, da utilização de nutrientes, enfocando uma fisiologia da nutrição no âmbito clínico individual; a outra vertente voltou-se para os aspectos sócio- econômicos no âmbito populacional, englobando a produção e distribuição de alimentos, o que viria a constituir o campo da alimentação e nutrição em saúde coletiva. Cf. VASCONCELOS, Francisco de A.G. de. Tendências históricas dos estudos dietéticos no Brasil. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.14, n.1, p.197-219, jan.-mar. 2007. 173 A lei estabelece em seu Art. 1º que “Todo trabalhador tem direito, em pagamento do serviço prestado, num salário mínimo capaz de satisfazer, em determinada região do Paiz e em determinada época, das suas necessidades normais de alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte”. CF. http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1930-1939/lei-185-14-janeiro-1936-398024-publicacaooriginal-1- pl.html. Acesso em 11 jan 2015. A lei estabelecia uma ração mínima, composta por 12 itens alimentares, segundo a região do trabalhador. 70 alimentação, cujo precursor foi o médico pernambucano Josué de Castro174. Os estudos de Castro trouxeram à luz o tabu da fome.175 Para ele, a fome tinha um fundamento moral: “tanto a fome de alimentos, como a fome sexual, é um instinto primário e por isso um tanto chocante para uma cultura racionalista como a nossa, que procura por todos os meios impor o predomínio da razão sobre os instintos na conduta humana”.176 A fome não era discutida; considerada uma fatalidade, nada se podia fazer a respeito. O grande responsável por essa visão fatalista foi, sem dúvida, Thomas Malthus (1766-1834), cuja obra Ensaio sobre a população (1798) explicava a fome como uma forma de regulação demográfica, uma vez que a população crescia mais do que seus recursos alimentares. Era, portanto, a necessidade, como lei da natureza, que trazia a miséria humana e a fome para estabelecer limites e garantir o equilíbrio entre o crescimento da população e a produção de alimentos. Malthus não poderia defender um direito humano à alimentação que exigisse intervenção do Estado para garantir alimento a todos; ao contrário, ele considerava repugnantes as leis sociais, o pobre precisava saber que eram as leis da natureza – como leis de Deus – que o condenavam à miséria. Por outro lado, Malthus admitiu, em seu ensaio, que: “É uma verdade reconhecida pela filosofia que uma teoria verdadeira sempre será confirmada pela experiência” e que “uma teoria não verificada na prática não pode ser razoavelmente assegurada como provável, muito menos como correta, até que todos os argumentos contra ela tenham sido sabiamente confrontados e refutados clara e firmemente”. 177 A experiência confrontou Malthus e o derrotou, dado que os números atuais sobre a fome e a produção de alimentos não confirmaram sua teoria. Segundo Ziegler, “depois de 2005, a curva global das vítimas da fome cresceu de forma catastrófica, enquanto o crescimento demográfico, em torno de 400 milhões de seres a cada cinco anos, permaneceu estável”.178 A população onde é maior a prevalência de fome não se encontra nas regiões mais populosas: temos 24% de famintos na população da Ásia – região mais populosa – e 34% na África subsaariana. A FAO reconheceu que a produção de alimentos é suficiente para alimentar 12 bilhões de pessoas, em um mundo com pouco mais da metade 174 Mesmo assim, o enfoque que prevaleceu na orientação dos programas destinados ao enfrentamento dos graves problemas alimentares, foi aquele que explicava o problema a partir da falta de educação, ou seja, era preciso ensinar o povo a comer de modo correto. Cf. VASCONCELOS & BATISTA FILHO, 2011, op. cit. 175 Outro tabu apontado por Castro, fundamental na solução do problema da fome, foi a reforma agrária. Não pode existir direito à alimentação sem direito à terra. Nenhuma sociedade pode viver em paz, se existe fome entre os seus, e foi isso o que tornou possível usar a fome como arma de guerra. Cf. CASTRO, Josué de. Geografia da Fome: o dilema brasileiro: pão ou aço. 10ª ed. Rio de Janeiro: Antares, 1984. 176 CASTRO, 1984, op. cit. p. 30. 177 MALTHUS, Thomas Robert. Ensaio sobre a população. Tradução Antônio Alves Cury, São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 244. 178 ZIEGLER, 2013, op. cit., p. 50. 71 disso.179 Portanto, a fome permanece existindo num mundo de abundância de alimentos.180 Recordo que essa realidade já era conhecida pela FAO nos anos 70, afirmada na primeira Cúpula Mundial da Alimentação (CMA) e reafirmada nos anos 90, quando se reconheceu na pobreza a causa da fome (Segunda CMA). Para onde e para quem vai tanto alimento produzido, se ainda temos tanta gente sem acesso? Segundo dados do Relatório (2008-2014) de Olivier de Shutter, relator especial da ONU para o DHAA, as perdas alimentares no campo alcançam de 20 e 40% da safra em potencial nos países em desenvolvimento, sendo de 12% a até 50%, as perdas de frutas, legumes e hortaliças; outro destino da produção agrícola de alimentos é produzir ração animal: segundo as estimativas, em função do aumento do consumo de carne, até metade do século, metade da produção mundial de cereais será destinada a isso; a perda de calorias da alimentação animal com cereais representa a necessidade calórica anual para mais de 3,5 bilhões de pessoas; outro importante destino da produção de alimentos, além do lixo e da ração animal, é a produção de biocombustíveis. 181 Isto posto, ainda que pudesse ter sido razoável, matematicamente falando, aceitar o raciocínio de Malthus, para a sua época, sobre a progressão geométrica do crescimento populacional e a progressão aritmética da produção de alimentos, é inadmissível técnica e eticamente que ainda hoje o pensamento malthusiano possa estar presente, quando se tenta “culpar” a reprodução dos pobres pelos mais graves problemas do mundo, como a fome e a destruição da natureza, sobretudo, porque temos alimentos suficientes para alimentar bem mais do que a população da Terra. Entretanto, se Thomas Malthus teve grande aceitação entre a burguesia europeia de sua época que encontrou na sua teoria uma justificativa para a exploração que promovia, especialmente, em outros continentes, como a América Latina, a Ásia e a África – exatamente os mais afetados pela fome –, não é de se espantar que, em tempos de globalização e com a 179 ONU E/CN.4/2001/53. The right to food. Jean Ziegler. Disponível em: . Acesso em 05 fev 2015. 180 A Monsanto, porém, líder na produção de sementes transgênicas, insiste no discurso da falta de alimentos decorrente do crescimento populacional. Cf. http://descubra.monsanto.com.br/crescimento-populacional/. Acesso em 20 mai 2015. Segundo Andrioli, “As tentativas tecnocráticas de forçar a sociedade a usar uma técnica inefetiva estão fundamentadas ideologicamente, seja através do medo neomalthusiano (de que futuramente faltaria comida para alimentar uma crescente população mundial) ou através da crença nos milagres da técnica”. ANDRIOLI, Antônio Inácio. O mito da neutralidade da ciência. Revista Espaço Acadêmico, nº 96, maio de 2009, p. 2. 181 DE SHUTTER, Olivier. Agroecologia e o direito humano à alimentação. Relatório. Tradução Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN). Brasília, DF: MDS, 2012, p. 14-15. A respeito disso, vale a pena ler também o capítulo específico sobre a segurança alimentar no Brasil, intitulado “A maldição da cana-de-açúcar”, na obra de Ziegler, onde o autor critica a afirmação do Presidente Lula de que não havia motivos para se inquietar com a expansão do Proálcool, pois: “o Proálcool nada tem a ver com a alimentação. A cana não é comestível” (2013, op. cit., p. 258). 72 necessidade incessante de “novos mercados”, a ideia de responsabilizar os pobres por sua própria miséria seja retomada para justificar abusos, em nome da sobrevivência de toda a humanidade. Como diz Ziegler: “Admirável Malthus! Provavelmente sem pretendê-lo de forma deliberada, ele libertou os ocidentais de sua má consciência [...]. Naturalizando o massacre, creditando-o à necessidade, Malthus livrou os ocidentais de sua responsabilidade moral.”182 Defender Malthus ainda hoje é absolutamente incompatível com tudo o que foi apresentado aqui sobre o direito à alimentação na configuração do direito internacional, no qual se espelha o direito brasileiro. Na verdade, a fome constitui um obstáculo ao exercício dos direitos humanos, e se tais direitos são naturais porque tem por fundamento a dignidade da pessoa humana – como afirmado em todos os documentos internacionais após a DUDH –, a fome não pode ser natural, porque não afeta a todos igualmente. Diante disso, devemos nos orgulhar de poder questionar tanto Malthus como a tese das raças,183 graças aos estudos sobre a fome de Josué de Castro que mostraram que não era a necessidade, Deus ou a natureza, a causa deste flagelo, mas a ação humana. Com Josué de Castro, a humanidade pode retomar sua responsabilidade moral, reconhecendo que a fome pode e precisa ser vencida. Por isso, Castro falou sobre a fome,184 não como fenômeno natural e inevitável, mas como a expressão biológica de males sociológicos, produto da exploração colonial imposta à maioria dos povos. Em resposta a Malthus,185 Josué de Castro nos diz: “as dificuldades a vencer, ao contrário do que afirma a tese malthusiana, não são de ordem técnica, são dificuldades de natureza política, de uma complexidade bem maior”.186 Não se justifica, portanto, que um profissional Nutricionista se declare um mero ‘técnico’, sem admitir o seu papel político (e moral) na defesa do DHAA. Vimos que a experiência europeia do horror da fome pode ter alterado a consciência do problema, antes considerado resultado da explosão demográfica entre os pobres. Mesmo após o fim da guerra, a situação permanecia devastadora, com a destruição das nações e a redução da área cultivada e da mão-de-obra. Esse caos possibilitou às “nações unidas” iniciarem uma 182 ZIEGLER, 2013, op. cit. p. 108. 183 Segundo essa tese, índios, negros e caboclos eram preguiçosos, pouco inteligentes por causa da raça. Josué escreveu, para derrubar essa tese, Alimentação e raça, afirmando que os males que afetavam essas pessoas tinham sua origem na fome, e não na raça. 184 Fome (Limós) é filha da Discórdia (Éris). Cf. BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 449. 185 Sobre a resposta de Josué de Castro a William Vogt – que publicou, em 1948, a obra intitulada O caminho da sobrevivência, bíblia dos neomalthusianos – ver CASTRO, Josué de. Malthus e o caminho da Perdição. In: Ensaios de biologia social. São Paulo: Brasiliense, 1968, p. 127-133. 186 CASTRO, Josué de. Fome um tema proibido: últimos escritos de Josué de Castro. Anna Maria de Castro (org.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 59. 73 guerra contra a fome, reconhecendo a alimentação como direito de todos, e negando sua inexorabilidade, para o que era necessário romper o tabu da fome. Na avaliação de Ziegler, os europeus “tornaram-se mais receptivos às análises de Josué de Castro. Rejeitando a ideologia malthusiana da lei da necessidade, eles convictamente se engajaram, então, na campanha contra a fome [...].”187 Não podemos dizer que a campanha foi um sucesso, a julgar pelos vergonhosos dados mundiais, que revelam a persistência de um grave problema cuja solução é plenamente possível. A fome passou de tabu a escândalo moral. E pior, mesmo quando se aceita discutir o problema e se assume o compromisso político de escolher a fome como prioridade,188 é possível ainda persistir no desrespeito ao direito à alimentação. A distribuição dos recursos do orçamento público brasileiro é um retrato desta contradição: enquanto o percentual do PIB destinado ao pagamento de juros da dívida interna gira em torno de 40%, os percentuais destinados à saúde, agricultura, assistência social e direitos de cidadania – somados – giram em torno de 10%.189 O exemplo brasileiro mostra a tendência, já percebida por Josué de Castro sobre o tabu da fome e seu enfrentamento, em que: ao imperialismo econômico e ao comércio internacional a serviço do mesmo, interessava que a produção, a distribuição e o consumo de produtos alimentares continuassem a se processar indefinidamente como fenômenos exclusivamente econômicos – dirigidos e estimulados dentro dos seus interesses econômicos – e não como fatos intimamente ligados aos interesses da saúde pública.190 Como resultado do predomínio da visão econômica desconectada do direito, não apenas a fome permanece no mundo, como agora também a alimentação – por ser inadequada – se tornou um problema de saúde pública no Brasil e no mundo e, igualmente, uma questão moral, dado que constitui uma violação da dignidade humana. No mundo da economia global, o alimento não é um componente do direito à 187 ZIEGLER, 2013, op. cit., p. 137 188 “Minha presença aqui, em mais esta importante reunião, renova meu compromisso e o do meu governo com aquela que tem sido nossa primeira prioridade: a segurança alimentar e a erradicação da fome”. (Presidente Lula, na abertura da Cúpula Mundial da Alimentação, Roma, 2009). Disponível em http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/ex-presidentes/luiz-inacio-lula-da-silva/discursos/2o-mandato/2009/2o- semestre/16-11-2009-discurso-do-presidente-da-republica-luiz-inacio-lula-da-silva-na-sessao-de-abertura-da- cupula-mundial-sobre-seguranca-alimentar/view. Acesso em 01 mar 2015. 189 Ver a esse respeito os estudos feitos pela auditoria cidadã, disponibilizados no site da entidade. http://www.auditoriacidada.org.br/e-por-direitos-auditoria-da-divida-ja-confira-o-grafico-do-orcamento-de- 2012/. Acesso em 05 jan 2015. 190 CASTRO, 1984, op. cit., p. 31. 74 alimentação, mas uma commodity. Em um de seus estudos mais recentes, a FAO191 repete aquela afirmação de Josué de Castro, no título da publicação: Economic growth is necessary but not sufficient to accelerate reduction of hunger and malnutrition, isto é, para reduzir a fome e a má nutrição não basta redistribuir a renda, embora isso seja necessário, mas é preciso redistribuir a terra e que o “mercado mundial” considere os produtos agrícolas algo além de meras mercadorias. Apresentei a importância dos estudos sobre a fome no início do século passado, mas com o surgimento das políticas de abastecimento alimentar, incentivos agrícolas e programas sociais na área, os estudos evoluíram para considerações também acerca do acesso e da produção sustentável; neste início de século XXI, os problemas decorrentes do consumo de alimentos inadequados revelaram outra realidade, em que não mais se trata de garantir alimento/comida para todos, mas sim alimentação saudável ou “comida de verdade”. A relação entre economia e alimentação faz-se sentir de modo cada vez mais preocupante, e o confronto que se dá, nos dias de hoje, exige uma reflexão ética sobre as escolhas alimentares visando à garantia do direito já conquistado à alimentação saudável, não apenas do ponto de vista individual, mas também do ponto de vista das políticas públicas, quando estas devem optar entre atender os interesses sociais ou aqueles econômicos. Há, portanto, duas preocupações: do ponto de vista das políticas públicas, que envolve o debate ético sobre a ação estatal, na garantia do DHAA; e do ponto de vista individual, quando se pensa nas escolhas moralmente corretas que deve fazer o cidadão, sendo que nesse caso, há também necessidade da intervenção do Estado, mas no sentido de possibilitar o exercício dessa autonomia por meio da garantia de condições de vida cidadã, em que se desfrute da liberdade de escolha. O profissional Nutricionista deve enfrentar na sua prática as duas questões. É evidente que slogans do tipo “quem tem fome tem pressa”,192 ou a expressão food first,193 e programas como o Fome Zero tem forte apelo público para a dimensão da segurança alimentar que implica estar livre da fome, no entanto, diante do perfil nutricional contemporâneo, torna-se imperativo buscar a realização do direito à alimentação em sua forma plena, ou seja, garantir que todos tenham o que comer e que essa alimentação acessível a todos 191 FAO, WFP and IFAD. 2012. The State of Food Insecurity in the World 2012. Economic growth is necessary but not sufficient to accelerate reduction of hunger and malnutrition. Rome, FAO. 192 Esse foi o slogan da Campanha da Ação Cidadania contra a fome e a miséria e pela vida, desencadeada em 1993, pelo Movimento pela Ética na Política, liderado pelo sociólogo Herbert de Souza (Betinho). 193 Food first é um movimento que começou a partir dos trabalhos de Frances Moore Lappé e Joseph Collins, para atuar contra as injustiças que causam a fome. O movimento já publicou mais de 60 livros e inúmeros artigos expondo as causas da fome, ajudando os movimentos a buscar soluções. Para maiores informações ver http://foodfirst.org/. 75 seja adequada e saudável. A preocupação com o “adequado” e “saudável” tornou-se indispensável, porque o perfil nutricional da população brasileira começou a se modificar, em um fenômeno que ficou conhecido como “transição nutricional”, processo inserido na transição epidemiológica e associado à transição demográfica por que passou o país nas últimas três décadas, que levou à redução das chamadas doenças carenciais e ao aumento das doenças causadas pelos excessos de gordura, sódio, açúcar e alimentos processados revelando, a tendência de aumento da obesidade e excesso de peso em todas as faixas etárias. 194 A OMS recomenda,195 para a prevenção da obesidade e de outras doenças associadas à alimentação, aumentar o consumo de alimentos in natura, o que inclui consumo de frutas, legumes e verduras, cereais integrais e oleaginosas, reduzir o consumo de produtos industrializados, gorduras, açúcares livres e sódio, além da manutenção do balanço energético. No Brasil, o Ministério da Saúde reconhece que “O modo de viver da sociedade moderna tem determinado um padrão alimentar que, aliado ao sedentarismo, em geral não é favorável à saúde da população”.196 No combate à fome, já enfrentamos o pior, e o Brasil é referência internacional, segundo o mais recente Relatório da FAO sobre a insegurança alimentar do mundo, no qual são citadas, “As experiências exitosas como transferência de renda, compras diretas para aquisição de alimentos, a capacitação técnica de pequenos produtores, entre outras, estão sendo transferidas para outros países”.197 Contudo, não podemos dizer que houve uma realização “progressiva” do DHAA, como apontam os estudos desde os anos 90, os quais já indicavam a pouca expressão da fome no 194 Para conhecer este processo, diversos estudos podem ser consultados: MONTEIRO, Carlos Augusto; MONDINI Lenise. Mudanças no padrão de alimentação na população urbana brasileira (1962-1988). Revista de Saúde Pública, v. 28, n. 6, p. 433-439, dez. 1994; MONTEIRO, Carlos Augusto et al. Da desnutrição para a obesidade: a transição nutricional no Brasil. In: MONTEIRO, Carlos Augusto (Org.) Velhos e novos males da saúde no Brasil: a evolução do país e suas doenças. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2000, p. 247-255; MONTEIRO, Carlos Augusto. A dimensão da pobreza, da desnutrição e da fome no Brasil. Estudos Avançados, v. 17, n. 48, p. 7-20, 2003; MONTEIRO, Carlos A.; CONDE, Wolney L.; POPKIN, Barry M. The burden of disease from undernutrition and overnutrition in countries undergoing rapid nutrition transition: a view from Brazil. American Journal of Public Health, v. 94, n. 3, p. 433-434, maio/ago. 2003; BATISTA FILHO & RISSIN (2003, op. cit.). A respeito da crítica ao Programa Fome Zero, no contexto epidemiológico brasileiro, ver COUTINHO Marília; LUCATELLI Márcio. Produção científica em nutrição e percepção pública da fome e alimentação no Brasil. Rev Saúde Pública 2006; 40(N Esp): 86-92. 195 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Organização Mundial da Saúde. Doenças crônico-degenerativas e obesidade: estratégia mundial sobre alimentação saudável, atividade física e saúde. Brasília, 2003. 196 BRASIL 2006c. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Obesidade. Brasília: Ministério da Saúde, 2006, p. 8. 197 FAO. O estado da segurança alimentar e nutricional no Brasil: um retrato multidimensional. Brasília, agosto de 2014, p. 5. No original em inglês, a sigla SOFI refere-se a The State Of Food Insecurity in the World. 76 Brasil e a importância da obesidade como fenômeno epidemiológico.198 A tendência brasileira era acompanhar o cenário internacional. A partir da década de 90, a obesidade passou a ser um problema de dimensões mundiais. Não que a questão da fome no mundo tenha deixado de ser um escândalo, pois deve ser inaceitável um só caso de fome onde quer que seja, e temos mais de 800 milhões pessoas nessa condição, mas em termos absolutos, temos hoje mais obesos que famintos.199 A OMS divulgou esta realidade no “Informe Mundial sobre saúde 2002: reduzir os riscos e promover uma vida saudável”,200 a partir do qual foi aprovada na 57ª Assembléia Mundial de Saúde, em 2004, a Estratégia Global em Alimentação Saudável, Atividade Física e Saúde, onde se declara que “são em grande medida os mesmos em todos os países” os principais fatores das DCNT, quais seja, “os alimentos hipercalóricos pouco nutritivos com alto teor de gordura, açúcares e sal” (parágrafo 9). O documento é claro, ao dizer que: A alimentação pouco saudável e a falta de atividade física são, pois, as principais causas das doenças não transmissíveis mais importantes, como as cardiovasculares, a diabetes tipo 2 e determinados tipos de câncer, e contribuem substancialmente para a carga mundial de morbidade, mortalidade e incapacidade. Outras doenças relacionadas com a má alimentação e a falta de atividade física, como a cárie dental e a osteoporose, são causas muito maiores de morbidade (parágrafo 5) O argumento utilizado pela OMS, em defesa de uma alimentação saudável é claramente fundamentado na utilidade: dado que “Existem provas concludentes das relações que existem entre determinados comportamentos e o estado de saúde ou a morbidade posteriores” (parágrafo 16), e que “os conhecimentos atuais justificam uma urgente ação de saúde pública” (parágrafo 19), “É possível desenhar e realizar intervenções eficazes para possibilitar que as pessoas vivam mais e levem uma vida mais saudável, reduzir as desigualdades e promover o desenvolvimento” (parágrafo 16), ou seja, “Trata-se de uma oportunidade única para formular e aplicar uma estratégia eficaz dirigida a reduzir substancialmente a mortalidade e a morbidade mundial” (parágrafo 16). É preciso destacar ainda que a Estratégia Global é defensora do direito à 198 Basta compararmos o primeiro grande estudo, o Estudo Nacional da Despesa Familiar (ENDEF) de 1974- 1975, que detectou a prevalência de obesidade nos homens em 2,8% e nas mulheres em 7,8%, com a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2008-2009, que apresentou obesidade masculina em 12,4% e feminina em 16,9%, para verificamos o expressivo aumento na prevalência de obesidade em ambos os sexos. 199 No mundo há mais de 2 bilhões de obesos, sendo o Brasil o quinto colocado no cenário mundial, com mais da metade da população (tanto masculina como feminina) com sobrepeso ou obesidade. Cf. http://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/bbc/2014/05/29/brasil-e-o-quinto-pais-com-mais-obesos-no- mundo-diz-estudo.htm. Acesso em 10 jan 2015. 200 OMS. Informe Mundial sobre saúde 2002: reduzir os riscos e promover uma vida saudável, 2002. 77 alimentação adequada, no contexto mais amplo da segurança alimentar e nutricional, pois afirma (parágrafo 47) que “A política em matéria de alimentação e nutrição deve compreender também as questões da pureza dos alimentos e a sustentabilidade da segurança alimentar”, e no que se refere à alimentação, entende que (parágrafo 29): esta compreende todos os aspectos da nutrição (por exemplo, tanto a alimentação excessiva como a desnutrição, a carência de micronutrientes e o consumo excessivo de determinados nutrientes); a segurança alimentar (acesso, disponibilidade e seguridade dos alimentos saudáveis); os alimentos inofensivos; e o apoio e a promoção de práticas de amamentação natural exclusiva durante seis meses. Isto posto, podemos afirmar com segurança que saímos da fome para um estado preocupante de adoecimento que tem na alimentação um dos principais fatores condicionantes e determinantes, o que vai de encontro ao ideal de “nível de vida adequado”, proclamado desde a DUDH. O caso brasileiro é exemplo da contradição resultante da aceitação da progressividade na realização do DHAA: se podemos hoje dizer que avançamos em direção ao melhor, em relação a alguns direitos civis e políticos (temos hoje um regime democrático “estável”, tivemos sete eleições presidenciais sem interrupção), não se pode dizer o mesmo da situação de segurança alimentar da população em geral, que é bastante preocupante. Esta condição revela que é possível “resolver” o problema da fome e “avançar” para uma condição de insegurança alimentar, que expressa a não realização do direito humano à alimentação adequada, inclusive do ponto de vista do direito interno, porque desrespeita a nossa LOSAN. O Ministério da Saúde está ciente do desafio que representa considerar a obesidade uma questão social, fortemente relacionada a temas como globalização, consumismo, e a necessidade de prazeres rápidos e respostas imediatas. Segundo documento oficial indicado aos profissionais de saúde do SUS, para enfrentar este problema: “A obesidade envolve uma complexa relação entre corpo-saúde-alimento e sociedade, uma vez que os grupos têm diferentes inserções sociais e concepções diversas sobre estes temas, que variam com a história”.201 Em resposta a isso, o MS requer na atenção básica, propostas de intervenção “tanto ao nível populacional quanto no cuidado individual, [...], norteadas a partir das diversas concepções presentes na sociedade sobre alimentação, corpo, atividade física e saúde”, 202 que adotem “metodologias que estimulem o espírito crítico e o discernimento das pessoas diante de 201 BRASIL, 2006c, p. 9. 202 BRASIL, 2006c, p. 10. 78 sua realidade e promovam a autonomia de escolha no cotidiano, a atitude protagonista diante da vida e o exercício da cidadania”.203 Neste sentido, a realização “progressiva” do DHAA, como admitida no PIDESC, deveria garantir que o fim da fome culminasse com a alimentação adequada de todos. Como se sabe, não foi isso o que aconteceu, e não é só por causa da falta de discernimento e espírito crítico dos cidadãos, ainda que isso seja também um problema. No Brasil, como nos EUA, por exemplo, o processo de transição nutricional trouxe profundas alterações no processo produtivo, ou cadeia alimentar, afastando os consumidores dos produtores, e facilitando o acesso de grande parte da população à alimentação inadequada. Exemplo disso, no nosso caso, são as praças da alimentação nos centros urbanos, mais frequentadas do que as feiras, um fenômeno de influência norte-americana, aqui chamado de Mcdonaldização,204 que caracteriza o que lá se chama “food deserts”, áreas onde as pessoas não tem acesso a alimentos frescos e saudáveis.205 Se não há acesso, não se pode falar em autonomia do cidadão. Em resumo, a alimentação saudável e adequada é um direito de todos reconhecido como direito social na Carta Magna brasileira. O governo brasileiro está ciente do perfil nutricional da população que coloca a alimentação como importante fator de risco para graves problemas de saúde. Temos hoje políticas públicas voltadas para a segurança alimentar e nutricional que buscam garantir a realização do DHAA, o que tem levado à superação de problemas históricos, como no caso da fome e da desnutrição.206 Estaríamos, assim, diante de um “progresso moral” no dizer kantiano? Não me parece ser o caso, e vou apresentar as razões que me levam a dizer isso, apresentando, em seguida, o que Kant considerou que seria um progresso moral, no contexto da sua filosofia política. 203 BRASIL, 2006c, p. 13. 204 Cf. FISCHLER, Claude. A “McDonaldização” dos costumes. In: Flandrin JL, Montanari M. História da alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. 205 Mais de 20 milhões de americanos vivem em desertos alimentares, longe de acesso a alimentos saudáveis, contando apenas com fast food. Cf http://apps.ams.usda.gov/fooddeserts/foodDeserts.aspx. Acesso em 10 nov 2015. 206 O governo comemorou o feito histórico de retirar o Brasil do mapa da fome. Cf. http://mds.gov.br/area-de- imprensa/noticias/2014/setembro/brasil-sai-do-mapa-da-fome-das-nacoes-unidas-segundo-fao. Acesso em 23 out 2014. Não se tratou que importância pode ter tido, na obtenção destes dados, da mudança de metodologia, quando a alimentação fora do domicílio, propiciada pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) foi incluída no cálculo da prevalência da subalimentação. 79 3 PORQUE O DHAA INTERESSA À FILOSOFIA DE KANT: DO DIREITO HUMANO AO DEVER DO ESTADO A cocção [...] se revela uma operação fundamental para tornar acessível o mundo, uma característica indispensável do processo filosófico (Francesca Rigotti, La filosofia in cucina) Apresentei anteriormente uma história do direito à alimentação, a partir da experiência da ONU cuja formação é considerada um marco importante na defesa daquele direito. O objetivo geral deste capítulo é inserir o direito à alimentação adequada no contexto do pensamento político de Kant, seguindo algumas pistas da sua filosofia prática, a partir da relação entre a filosofia da história e a doutrina do direito.207 Segundo Kersting, olhar para a filosofia política na estrutura da filosofia prática kantiana implica encontrar a filosofia do direito e da história, na medida em que para a filosofia política de Kant se requer tanto a reconstrução da sua doutrina do direito – espinha dorsal da sua filosofia política –, como a reflexão sobre as condições empíricas de realização das normas do direito.208 Para manter a coerência metodológica com o primeiro capítulo, também aqui será necessário prestar atenção ao “panorama da história das ideias”, afastando-me, momentaneamente, do pensamento crítico, para bem compreender Kant na questão, tipicamente iluminista, do progresso.209 Não será difícil reconhecer a marca kantiana na abordagem anterior sobre o tema dos direitos humanos.210 De fato, os direitos humanos só podem ser pensados como universais, portanto, abarcam todo o gênero humano. Os documentos assinados, de Declarações a Pactos e 207 Para Pinzani, a filosofia da história de Kant oferece a melhor chave de leitura para entender plenamente seu pensamento político e jurídico. Cf. PINZANI, Alessandro.Costretti alla libertà? Sulla filosofia della storia kantiana e sul concetto di autonomia in essa implicito. In: PINZANI, Alessandro; MONETI, Maria. Diritto, politica e moralità in Kant. Milano: Mondadori, 2004, p. 37-49, p. 37. 208 Para o autor, a filosofia política de Kant reflete as condições empíricas para a realização do Direito, para descobrir as possibilidades de mudanças livres de coerção e orientadas por princípios, o que ele chama de pragmatismo não maquiavélico, mas segundo princípios, ou seja, sua filosofia da história “esperava que o desenvolvimento histórico de estados não fosse linear, mas, nem por causa disso, deixando de ser um progresso incapaz de ser detido de direito”. Cf. KERSTING, Wolfgang. Política, liberdade e ordem: A filosofia política de Kant. In: GUYER, Paul (org.). Kant. Tradução de Cassiano Terra Rodrigues. Aparecida, São Paulo: Ideias & Letras, 2009, p. 409-437, p. 411. 209 A recomendação foi feita por Hinske. Cf. HINSKE. Norbert. Le cose buone sono tre. La riproposizione della domanda sul progresso nel Conflitto delle facoltà. In BERTANI, Conrado; PRANTEDA, Maria Antonietta (org.). Kant e il conflitto delle facoltà: Ermeneutica, progresso storico, medicina. Bologna: Il Mulino, 2003. p. 191-212, p. 197. 210 Para Höffe, Kant “estabelece para a ideia moderna dos direitos humanos o mais elevado padrão de medida, [...] e fundamenta Direito e Estado a partir de princípios de uma razão (jurídico-) prática pura”. Cf. HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. Tradução de Christian Viktor Hamm e Valerio Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 232- 233. 80 Protocolos, no âmbito internacional, e internamente, no caso brasileiro, de Leis e Políticas que visam à segurança alimentar e nutricional ao reconhecimento constitucional do direito à alimentação como direito social, podem ser vistos como reveladores do sentido de progresso na história humana, tal qual nos fala Kant.211 Adotada para refletir sobre a história do direito à alimentação, a ideia de propósito, ou finalidade, marca da filosofia da história de Kant, permite identificar um sinal deste progresso, se tomarmos como referência o momento imediatamente anterior à Carta da ONU. Certamente, no campo jurídico, esse progresso é explícito: o direito à alimentação passou de mera proclamação, em uma declaração, a direito fundamental, portanto, adquiriu caráter (universal) de obrigação e imputabilidade. Com as sucessivas “gerações” mais direitos foram incorporados, e com os Pactos, ficou assegurada a proteção dos cidadãos, diante da violação daqueles direitos por parte dos Estados. Por outro lado, aqueles fatos da nossa história também podem indicar um progresso moral, se relacionados ao desenvolvimento da liberdade, na medida em que os chefes de Estado livremente fizeram suas escolhas. A diferença de posição entre os blocos capitalistas e socialistas na defesa do DHAA é indicativa de como as Nações podem escolher caminhos distintos em relação a esse progresso. Esse, no entanto, é um aspecto problemático, na medida em que não parece ter havido acordo entre a política e a moral, dado que os compromissos assumidos pelos chefes de Estados não foram cumpridos, no tocante à realização do direito à alimentação adequada, e nem mesmo quanto à eliminação da fome no mundo. O fato é que, se por um lado, a experiência histórica de evolução na abordagem do DHAA pode revelar algum progresso da humanidade, por outro lado, nos coloca diante da responsabilidade que devemos ter, em relação aos que virão, para manter aquele sentido e impedir retrocessos. Recentemente, nos EUA, vinte cidades decretaram vetos quanto à ajuda alimentar concedida aos sem-teto, numa clara intervenção negativa do Estado contra o acesso dos cidadãos à alimentação.212 211 Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita é o primeiro escrito em que Kant trata especificamente da ideia de uma história humana (universal) como um progresso. In: A paz perpétua e outros opúsculos, 1995, op. cit., p. 21-37. A ideia de propósito ou finalidade não será aprofundada neste trabalho, embora reconheça o papel fundamental que tem, em toda a filosofia kantiana; interessa, no entanto, para resgatar aspectos práticos relacionados à defesa de um direito à alimentação, como direito natural, a questão da destinação como ideia fundante do iluminismo, do que trato na sub-seção 3.1.1.Trato aqui a história humana (universal) como história da humanidade, para distinguir da história empírica. A respeito da utilização do termo “história universal” como contraponto a uma “história empírica” ver KLEIN, Joel Thiago. O problema da fundamentação de uma história universal no sistema crítico-transcendental de Kant. 132f. Dissertação. Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, 2008. 212 A criminalização da ajuda alimentar em cidades americanas chega a estabelecer multa de 500 dólares ou 60 dias na prisão para quem fornecer comida a moradores de rua. Cf. http://nationalhomeless.org/new-report- criminalization-food-sharing-practices/. Acesso em 20 mai 2015. 81 A respeito da importância dessa história empírica para uma história filosófica, Kant afirma que: Seria uma falsa interpretação do meu propósito crer que, com a ideia de uma história universal, que tem em certo sentido um fio condutor a priori, pretendi rejeitar a elaboração de uma história concebida de um modo simplesmente empírico; constitui apenas um pensamento acerca do que uma cabeça filosófica (que, de resto, deve estar muito informada no plano histórico) poderia investigar ainda a partir de um outro ponto de vista. Além disso, a riqueza de pormenores, aliás famosa, com que agora se elabora a história da sua época, levará cada qual decerto a considerar com precaução como conseguirá a nossa ulterior descendência carregar com o peso da história que lhe vamos deixando, ao longo dos séculos. Apreciará, sem dúvida, as épocas mais antigas, cujos documentos já há muito terão desaparecido, somente a partir do ponto de vista do que lhe interessa, a saber, o que os povos e os governos fizeram, ou não, com um propósito cosmopolita. Mas tomar isto em consideração, juntamente com a ânsia de glória dos chefes de Estado e dos seus servidores, para os encaminhar em direcção ao único meio que lhes pode assegurar a recordação gloriosa no tempo futuro, pode proporcionar-nos ainda um pequeno motivo para intentar semelhante história filosófica.213 É na história empírica que nos deparamos com a necessidade de fazer escolhas, diante dos obstáculos que surgem para a realização dos direitos humanos. À necessidade de acabar com a fome, por exemplo, apresentada no final do capítulo anterior, caberia unir ações (necessárias como obrigações) institucionais e individuais, no sentido da realização do direito de todos a uma alimentação adequada, como parte de um progresso da humanidade. Por isso, é fundamental o ponto de vista de uma “cabeça filosófica” sobre a história dos direitos humanos, para identificar seu sentido numa perspectiva de progresso, unindo a moral, a política e o direito. A importância desse ponto de vista é possibilitar encontrar pistas para a solução de problemas práticos, afinal, como referido acima, o papel secundário da experiência não isenta o filósofo de estar muito bem informado sobre a história empírica nem de estar atento aos “sinais” do progresso. Da história empírica aprendemos que somente a formalização do direito não é suficiente para garantir alimentação saudável para todos, haja vista a nossa grave situação decorrente da não realização plena do DHAA. Além disso, como se sabe, sem a garantia do direito à alimentação, não podemos ter um estado de paz nem o desenvolvimento das capacidades humanas, donde se pode justificar todo o empenho dos Estados na sua plena realização. Kant já era cônscio de que o progresso jurídico não se daria por livre acordo entre os 213 Ideia, 9ª prop., p. 37. 82 indivíduos, e sim “apenas por meio de progressiva organização dos cidadãos da terra na e para a espécie, como um sistema cosmopolita unificado”.214 Assim sendo, ainda que se admita a realização do DHAA como um ideal que nunca será alcançado, é essencial, contudo, que deva ser sempre buscado, para o que se requer o esforço, por meio do ensino e da educação, de cada indivíduo e de cada órgão da sociedade.215 Mesmo sem entrar na discussão sobre a primazia do interesse teórico ou prático na filosofia da história, conforme apresentada por Wood, aqui será bastante adotar o que diz o autor sobre a relação com o prático: A filosofia da história kantiana é guiada, fundamentalmente, primeiro pelo objetivo de descobrir alguma coisa racionalmente compreensível nas ocorrências aparentemente acidentais que compõem a história e, segundo, pela necessidade de relacionar tal entendimento aos nossos objetivos práticos e esperanças práticas.216 A despeito das críticas sobre o formalismo da sua filosofia, a necessidade de aplicação prática não é negligenciada por Kant. No Prefácio de sua Antropologia, ele afirma que o fim de todos os progressos na civilização é que “os conhecimentos e habilidades adquiridos sirvam para o uso do mundo, mas no mundo o objeto mais importante ao qual o homem pode aplica- los é o ser humano, porque ele é seu próprio fim último”,217 donde conclui que uma doutrina do conhecimento do ser humano, sistematicamente composta, é denominada pragmática, se aborda o que ele faz de si mesmo ou pode e deve fazer como ser que age livremente.218 Portanto, não é o caso de negar o caráter empírico da atuação humana, muito pelo contrário. O evento da Revolução Francesa, por exemplo, que foi um marco no progresso político ao estabelecer direitos de humanidade, teve na filosofia kantiana um espelho dos seus ideais. Na análise de Ternay, sobre a relação de Kant com a Revolução francesa, ele nos diz o seguinte: Para julgar o desenrolar da história na sua continuidade, estabelecer que tal ou 214 Antr. 333, p. 227. 215 DUDH, Preâmbulo, claramente kantiano. 216 WOOD, Allen. Kant. Tradução de Delamar Volpato Dutra. Porto Alegre: Artmed, 2008, p. 138. 217 Antr., p. 21. 218 Do ponto de vista pragmático, opondo-se ao fisiológico, o caráter do homem se diz físico e moral: o primeiro diz respeito ao homem como ser sensível ou natural; o segundo o distingue como ente racional dotado de liberdade (Antr. 285, p. 181). Por isso, Wood considera que o escopo da antropologia pragmática é mais amplo que o da antropologia prática. A respeito dos quatro usos distintos da antropologia pragmática em Kant, ver WOOD, Allen. Kant and the problem of human nature. Disponível em http://philpapers.org/rec/WOOKAT-2. Acesso em 3 jan 2015. 83 tal acontecimento constitui um progresso no desenvolvimento de toda a humanidade, Kant utiliza dois termos que são por eles mesmos bastante significativos do seu tipo de reflexão. O primeiro tem freqüentes ocorrências no seu ensaio de 1784 intitulado Idéia de uma história universal do ponto de vista cosmopolita: o símbolo do fio condutor. O outro, que ele chama de sinal histórico ou sinal de história (Geschichtszeichen),encontra-se no texto do Conflito das Faculdades [...].219 Isto posto, começo este capítulo pela abordagem, em linhas gerais, da retomada feita por Kant da ideia de progresso na história humana, a partir da importância que teve o grande evento da revolução francesa; destaco o fio condutor na ideia de moralidade como destinação da espécie humana, o papel da pedagogia, e o papel do entusiasmo, em sua relação com a sociabilidade e a ilustração, para o que será imprescindível distinguir os usos público e privado da razão; problematizo o conflito entre liberdade e poder, atualizado no campo da biopolítica, para propor a atuação do Nutricionista na defesa atual do DHAA que leve em conta seu papel educativo, como cidadão e como profissional, inclusive como professor. Por fim, apresento alguns elementos da doutrina kantiana do direito que estão nas origens do direito internacional aplicado à alimentação como direito natural, de inspiração jusnaturalista, para destacar o direito à terra. 3.1 A questão renovada do progresso na história humana: resgatando em Kant as origens do DHAA O homem é moralmente bom ou mau por natureza? Não é bom nem mau por natureza, porque não é um ser moral por natureza. Torna-se moral apenas quando eleva a sua razão até aos conceitos do dever e da lei (Kant, Pedagogia) Inicio a abordagem sobre a importância do pensamento de Kant para a história dos direitos humanos, a partir da relação que ele faz, no escrito intitulado Questão renovada: estará o gênero humano em constante progresso para o melhor?, entre um acontecimento – a revolução francesa – e a ideia de progresso moral, consubstanciada no direito natural. O acontecimento foi tão importante que Kant retomou a questão do progresso, já abordada em 219 TERNAY. Henri d’Aviou de. Kant e a Revolução Francesa. Síntese Nova Fase, 47(1989): 13-28, p. 19. Esta interpretação foi resgatada de LYOTARD, Jean-François. El entusiasmo: crítica kantiana de la historia. Traducción de Alberto L. Bixio. Barcelona: Gedisa, 2009, p. 66. 84 outros textos.220 Chamo a atenção para este fato, tendo em vista que podemos ter aqui aquele momento singular em que a razão prática encontra a realidade para promover os fins da humanidade, revelando que somente o homem livre pode condicionar positivamente a história. Diante da história apresentada no capítulo anterior, poderíamos considerar as Assembleias da ONU para fundação dos direitos humanos proclamados na Carta Internacional como exemplos destes momentos singulares, no entanto, considero que o fato dos atores terem sido apenas chefes de Estados, embora tenham legislado para toda a humanidade em nome da dignidade de toda pessoa, pode ter sido um fator negativo que impediu a continuidade do avanço, no sentido de acabar com a fome no mundo, posto que aqui se trata da efetiva realização do direito. O direito, assim como a paz que somente por meio dele se alcança, deve extrapolar a mera ideia, ainda que expressa no papel.221 No texto citado, que introduz a segunda parte222 da obra O Conflito das Faculdades (1798), sobre o conflito da faculdade filosófica com a faculdade de direito, Kant traz à tona, de um lado, a filosofia da história (como progresso moral), de outro, a doutrina do direito, cuja 220 Como observa Hinske (2003), Kant se coloca a questão sobre o progresso moral em três textos autônomos – o que chama a atenção – que cobrem um período que vai de 1784 a 1798. O primeiro texto, Ideia, o segundo aparece na terceira seção do Dito comum (1795) – contra Mendelssohn, especificamente –, e o terceiro constitui esta segunda parte do Conflito. A respeito da polêmica com Mendelssohn, Hinske aponta tanto sua reação desfavorável ao texto Ideia, como o fato dele não ter se empenhado na leitura da Crítica da razão pura, como motivos para Kant transformar o que era amizade e admiração em profunda amargura. No texto Jerusalém, ou sobre o poder religioso e o judaísmo, publicado em 1783, Mendelssohn apresenta uma filosofia negativa da história (abdetirismo), em que nega ser possível o progresso moral da humanidade, cujo curso do tempo é cíclico, só sendo possível o progresso do ponto de vista individual, algo completamente refutado por Kant, em todos os textos acima. Cf. HINSKE, 2003, op. cit., p. 191-211. É também nesta obra, ao tratar do último conflito, entre a faculdade de medicina e a faculdade de filosofia, que Kant resgata a questão do cuidado com a saúde como objeto de uma razão prática. 221 Muito já se disse e fez para mostrar a importância e a atualidade do pensamento político de Kant e relacionar suas contribuições ao direito internacional. Sobre isso ver NOUR, Soraya. Os cosmopolitas. Kant e os “temas kantianos” em relações internacionais. Contexto Internacional, Rio de Janeiro, v. 25, nº 1, janeiro/junho 2003, p. 7-16. 222 Em função do edito de religião, em vigor desde 1788, esta parte da obra – que trata do conflito com a faculdade de direito – bem como a primeira parte, que trata do conflito com a faculdade de teologia, foram censuradas, em 1794 e 1797. Talvez isso explique algumas das ambiguidades de Kant sobre a revolução. 85 realização – a constituição republicana – é um dos fins da história.223 Ambas vão desembocar em uma filosofia política, que aqui será debatida, tendo em vista os propósitos deste trabalho, também à luz de preceitos antropológicos e pedagógicos. Sobre o que se quer saber – se o gênero humano (em geral) está em constante progresso para melhor –, Kant esclarece que se trata de buscar não uma história empírica – como aquela dos historiadores, que narra os fatos históricos segundo as relações no tempo e no espaço –, nem “uma história natural do homem (de saber se, no futuro, surgirão novas raças suas)”,224 mas sim um fragmento da história do nosso futuro, ou seja, uma história “pré-anunciadora”, todavia “natural”, que se diferencia tanto de uma história profética como de uma história divinatória, cujos fundamentos são sobrenaturais.225 Responder à questão por meio de uma descrição, possível a priori, dos eventos que devem acontecer, somente seria possível, diz Kant, se apenas quem responde, é também quem faz e organiza os eventos previamente anunciados, tais como os profetas, políticos e eclesiásticos, ou aqueles cuja vontade fosse inata e invariavelmente boa.226 Não é essa a história que vai interessar ao filósofo. Se é certo que a natureza humana, constituída de uma mescla do bem e do mal na disposição, não nos permite prever o nosso destino e, portanto, somente sob o ponto de vista da Providência227 tal seria possível, Kant precisaria negar que pela experiência se pudesse resolver o problema do progresso moral da 223 Não vou tecer considerações sobre o significado e o lugar da “história” na filosofia kantiana, tampouco vou adentrar na sua reconstrução a partir de pressupostos teóricos e práticos, para destacar qual é prioritário. Segundo Perez (2006, p. 72), “há duas grandes correntes de interpretação que buscam determinar o significado do conceito de história e ulteriormente seu lugar sistemático dentro do corpus kantiano. Por um lado, estão aqueles que propõem leituras unificadoras, por outro, os que propõem mais de um sentido ou de uma teoria da história em Kant”. Cf. PEREZ, Daniel Omar. Os significados da história em Kant. Philosophica, 28, Lisboa, 2006, p. 67-107. A esse respeito ver KLEIN, Joel Thiago. Kant sobre o progresso na história. Ethic@ - Florianópolis v.12, n.1, p. 67 – 100, Jun. 2013, e Os fundamentos teóricos e práticos da filosofia kantiana da história no ensaio Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita. Studia Kantiana 9 (2009), p. 161-186. Sobre o mesmo tema, ver ainda CARVALHO, Zilmara de Jesus Viana de. Teleologia e moral na Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. 2013. 183 fls. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em filosofia, Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013; e NADAI, Bruno. Progresso e moral na filosofia da história de Kant. 2011. 306 f. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. 224 CF, § 1, p. 95. 225 CF, § 2, p. 95-6. 226 CF, § 4, p. 100. 227 Na Paz Perpétua (nota 11), anterior a este escrito, Kant faz uma longa explanação sobre os sentidos de Providência. A providência divina geral refere-se à determinação do fim, pelo Criador, no mecanismo da Natureza; a providência fundadora é aquela considerada na gênese do mundo; a providência reguladora é aquela considerada no curso da Natureza, com poder de conservá-la segundo as leis universais de finalidade. Para Kant, não cabe distinguir a providência segundo os objetos do universo a que se refere, isto é, materialmente, mas apenas formalmente, segundo o modo de realizar seus propósitos, de que resulta a divisão em ordinária e extraordinária. A ordinária diz respeito, por exemplo, ao mecanismo das estações; a extraordinária pode explicar as causas físico- mecânicas de certos fenômenos – como as correntes marítimas que transportam troncos de árvores. É neste último caso que não se pode prescindir da explicação teológica, que supõe a providência de uma sabedoria, suprema e dominadora do mundo. O que Kant não aceita, porém, neste momento, é a colaboração ou o concurso divino nos fenômenos do mundo sensível. 86 humanidade, pois, como seres livres que somos, é possível ditar o que devemos fazer, mas nunca predizer o que realmente faremos.228 Trata-se, portanto, de um problema que a ciência fundada nas leis da natureza não tem condições de resolver, tendo em vista a condição humana de liberdade que transcende os limites do saber teorético. Já na primeira crítica, ele havia dito: Pois qual seja o grau mais elevado em que a humanidade deverá parar e a grandeza do intervalo que necessariamente separa a idéia da sua realização, é o que ninguém pode nem deve determinar, precisamente porque se trata de liberdade e esta pode exceder todo o limite que se queira atribuir.229 A saída encontrada por Kant, no texto ora em análise, não sendo possível prever nem determinar, foi trazer um novo ponto de vista para considerar o curso humano das coisas, de maneira que agora se possa inferir o rumo da história a partir da experiência, a partir de um acontecimento, um evento, que não seja tanto uma causa, mas um indicativo, um signum, uma espécie de sinal histórico que indica (não que prova) a tendência do gênero humano à progressão para o melhor, portanto, não se trata de atos ou fatos individuais, de quem quer que seja, e sim da tendência que é de todo o gênero humano. Tal inferência poderia até mesmo se estender à história do tempo passado, de que sempre esteve em progresso (signum rememorativum, demonstrativum, prognosticon230). Deste modo, se a história profética, divinatória, pode apenas pressagiar, trata-se de agora considerar aquele evento extraordinário – que realmente aconteceu – como ponto de partida de uma história prognosticante para descobrir o curso de um propósito da natureza. Ora, é sabido que, em seus textos políticos anteriores, tratando do mesmo tema do progresso, isto é, se a humanidade progride para o melhor, Kant havia considerado o papel secundário da experiência. No primeiro ensaio em que tratou do tema (1784), por exemplo, ele reconheceu que muito pouco “a experiência nos descobre algo de um tal curso do propósito da Natureza”,231 tendo em vista o quão longo pode ser o percurso da humanidade para alcançar 228 CF, § 4, p. 99. 229 CRP B 374. 230 Rememora o passado, diagnostica o presente e prognostica o futuro. Cf. Antr., § 39, 193, p. 91. É isto que faz com que se assegure que a causa sempre esteve lá, garantindo a tendência geral do gênero humano em sua totalidade no sentido do progresso. Interessante ver a leitura de Foucault (1984) sobre esse texto de Kant, onde ele identifica que a Revolução “como palco do entusiasmo para aqueles que a assistem e não como principio de transtorno para os que dela participam, é um “signum rememorativum”, pois ela revela esta disposição desde a origem; é um “signum demostrativum”, porque ela mostra a eficácia presente desta disposição; e é também um “signum prognosticum”, pois se existem resultados da revolução que não podem ser recolocados em questão, não se pode esquecer da disposição que se revelou através dela”. Cf. FOUCAULT, Michel. “Qu’est-ce que les Lumières?”. Tradução Wanderson Flor do Nascimento. Magazine Littéraire, nº 207, mai 1984, p. 35-39. (Retirado do curso de 5 de Janeiro de 1983, no Collège de France). 231 Ideia, 8ª prop., p. 33. 87 sua finalidade; mais tarde, no Dito Comum (1793), Kant afirma que “a experiência histórica até agora ainda não quis provar o bom êxito das doutrinas da virtude”.232 Mais contundente ainda parece ser seu pensamento expresso na Religião (1793), conforme passagem a seguir: Mais nova, mas muito menos difundida, é a opinião heroica contrária que encontrou assento só entre filósofos e, na nossa época, sobretudo entre pedagogos: que o mundo progride precisamente na direcção contrária, a saber, do mau para o melhor, de forma ininterrupta (se bem que dificilmente perceptível), que pelo menos se encontra no homem a disposição para tal. Decerto não foram buscar esta opinião à experiência, se se fala do bem ou do mal moral (não da civilização), pois a história de todos os tempos fala contra ela com força excessiva.233 No entanto, da análise dos §§ 4 e 5 do CF, verifica-se, respectivamente, que Kant passa da negação de um nexo imediato com a experiência, ao reafirmar que não é possível resolver imediatamente (como objeto dado na intuição sensível) o problema do progresso, na medida em que a experiência nem recusa nem confirma as alternativas possíveis (de progresso, regresso ou estagnação234), para a afirmação de um nexo mediato, ao admitir que é preciso associar a história profética do gênero humano a qualquer experiência, um evento que permitirá inferir a progressão para o melhor. Uma vez que não será imediatamente, Kant propõe que seja por meio de um sinal, em que o evento assim chamado prognóstico indicaria a constituição (disposição) e aptidão (faculdade) humana para ser causa desse progresso. O que explicaria, então, essa mudança de perspectiva? Para Hinske, a mudança de perspectiva está indicada pelo fato da questão colocada por Kant sobre o tema do progresso moral, no texto do Conflito, ser apresentada como “questão renovada”. Agora, diferentemente dos textos anteriores, com base numa situação histórica fundamentalmente diversa, Kant pode apelar para um exemplo da experiência. Ele tem à sua disposição os fatos, os dados da experiência para retomar seu debate com Mendelssohn, que rejeitava a ideia kantiana de progresso da humanidade exatamente por querer se ater aos fatos 232 Sobre a expressão corrente: isto pode ser correcto na teoria, mas nada vale na prática. In: A paz perpétua e outros opúsculos. 1995, op. cit., p. 72. 233 A religião nos limites da simples razão. Tradução Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 1992, p. 26. 234 Kant diferencia as três condições que poderiam indicar esta predição: o regresso para pior (terrorismo), o qual não poderia durar para sempre, pois, aniquilaria a si mesmo; a inércia (abdetirismo), em que bem e mal se alternam, “como um jogo burlesco”; e o eudemonismo (quiliasmo), em que a quantidade de bem no homem, mesclada com o mal elevar-se-ia, avançando sempre para o melhor. Cf. CF, p. 97-99. 88 e não a hipóteses.235 De Pasquale vê a mudança de perspectiva como análoga à revolução copernicana na doutrina do conhecimento,236 já que o fato novo – a revolução francesa – que oferece a possibilidade de construir ou delinear o futuro tem origem no sujeito, “no seu agir, na sua decisão de renascer e nas reações que essa decisão suscita”,237 de modo que, é da perspectiva dos sujeitos que Kant tentaria construir uma história profética de progresso moral da humanidade. Se o homem não pode saber a priori com certeza sobre os fatos vindouros, os quais, no campo prático, são ações humanas e não objetos da natureza, ele pode, pelo menos, condicioná-los positivamente ainda que parcialmente, pois, com a revolução, mostrou que é o autor da história. Foi esse dado da experiência, como ação humana, que se tornou indicador da sua capacidade de agir como causa, de ser autor da sua história. Evidentemente, Kant não poderia ser alheio a este fato. Tanto a história como a antropologia fazem parte da sua filosofia prática. Para Kersting: a natureza humana e a história constituem o domínio da aplicação empírica dos princípios da moralidade e do direito. Elas contem as condições de realização, sem cuja atenção a razão pura prática permanece incapaz, e devem, portanto, ser consideradas por uma filosofia prática preocupada com a realização de seus próprios princípios.238 Assim, a história empírica tem sua importância, inclusive para o homem de Königsberg. Aquele outro ponto de vista, de uma cabeça filosófica, pode ter sido dado a Kant a partir da experiência revolucionária, mas não como fato em si, e sim pelo que ela revelou como causa, a partir da manifestação do entusiasmo. Sobre este importante acontecimento para a história universal da humanidade ele vai dizer: É simplesmente o modo de pensar dos espectadores que se trai publicamente neste jogo de grandes transformações, e manifesta, no entanto, uma participação tão universal e, apesar de tudo, desinteressada dos jogadores num 235 No seu debate com Mendelssohn, Kant traz à luz o papel da esperança, afirmando que, mesmo que haja razões empíricas contrárias, “o ânimo sente-se, porém, incitado pela perspectiva de que as coisas podem ser melhores no futuro e, claro está, com uma benevolência desinteressada, pois já há muito estaremos no túmulo e não colheremos os frutos que em parte temos semeado” (DC, A 276, p. 97). Já Mendelssohn, mesmo após perder sua filha, de apenas 11 meses, justificou que a mesma havia realizado progressos surpreendentes, que havia se tornado o germe de uma criatura racional (TARABORRELLI, 2004, op. cit., p. 53). 236 Na verdade, como aponta Ferry, os filósofos alemães viram na Revolução Francesa a realização do esclarecimento, pois, “a Revolução confundia de imediato sua causa com a do sujeito humano que se torna fundamento de seu próprio destino, em suma, com a causa da liberdade compreendida como subjetividade”. Cf. FERRY, Luc. Uma leitura das três críticas. Tradução Karina Jannini. 2ª ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010, p. 293. 237 Nell’agire del soggetto, nella sua decisione di rinascere e nelle reazioni che questa decisione suscita (grifos da autora). DE PASQUALE, Carla. La costituzione repubblicana al punto di confluenza fra diritto e morale, ovvero della libertà dello storico. In: BERTANI &; PRANTEDA. (Org.), 2003, op. cit. p. 177. 238 KERSTING, 2009, op. cit., p. 410. 89 dos lados, contra os do outro, inclusive com o perigo de se lhes tornar muito desvantajosa esta parcialidade, e demonstra assim (por causa da universalidade) um caráter do gênero humano no seu conjunto e, ao mesmo tempo (por causa do desinteresse), um seu caráter moral, pelo menos, na disposição, caráter que não só permite esperar a progressão para o melhor, mas até constitui já tal progressão, na medida em que se pode por agora obter o poder para tal.239 O caráter moral da revolução, portanto, está expresso em um modo de pensar, universal e desinteressado, que é também é publicamente manifesto, apesar das situações de perigo. Kant admite ter visto aí uma prova da disposição moral no gênero humano. Sem tal manifestação pública do pensamento, diz ele, é totalmente impossível “o progresso de um povo para melhor, mesmo no que concerne à menor das suas exigências, a saber, o seu simples direito natural”.240 Já Bobbio havia chamado a atenção para a tese kantiana de que a disposição moral da espécie humana como causa do entusiasmo manifesta-se “na afirmação do direito – um direito natural – que tem um povo a não ser impedido, por outras forças de se dar a Constituição civil que creia ser boa”.241 Este direito natural, veremos logo em seguida, é a liberdade e, nessa seção, será importante colocar a liberdade como ponto de união entre a política e a ética, para aproximar a realização do direito à alimentação saudável com o dever de uma alimentação saudável. Apesar de suas conhecidas ideias contrárias à revolução,242 Kant identificou na manifestação do entusiasmo pela revolução francesa uma dupla causa moral: 239 CF, p. 101-102, grifos do autor. 240 CF, § 8, p. 117. 241 BOBBIO, 1992, op. cit., p. 135. 242 Para Kant, mesmo com a revolução não seria possível chegar a uma “verdadeira reforma do modo de pensar. Novos preconceitos, justamente como os antigos, servirão de rédeas à grande massa destituída de pensamento.” Cf. Resposta à pergunta: que é o iluminismo. In: A paz perpétua e outros opúsculos, 1995, op. cit., A 484, p.13. Ao contrário de revolução, o que Kant defende é a evolução do Estado por meio de reformas sucessivas (CF, §10, p. 111). É conhecida sua posição contrária a qualquer direito de resistência por meio da violência, mesmo a um poder despótico (PP, p. 93), ou à opressão tirânica (PP, p.111). Kant também nega o direito de rebelião na Doutrina do Direito (2003, § 49, A, p. 163), o que leva à consideração habitual dele ser um reformista conservador, que defendia apenas a forma representativa de governo como única capaz de tornar possível o republicanismo, onde um menor número dos que mandam e a maior representação dos que governam permitiria reformas sucessivas para o alcance daquele ideal de constituição jurídica perfeita, daí ele afirmar que atingir esse ideal na democracia, só “por meio de uma revolução violenta” (PP, p. 47). Para Kant, democracia é necessariamente despotismo: “porque estatui um poder executivo no qual todos decidem sobre um, e até por vezes contra um – se este não dá o seu consentimento [...], o que constitui uma contradição da vontade geral para consigo mesma e em relação à liberdade” (PP, p. 45). A respeito da posição “jacobina” de Kant, e a distinção entre resistência e desobediência civil, ver Pinzani, (2004, p. 28 et seq.). O autor defende a coerência da defesa kantiana contra um suposto direito de resistência, dentro do seu sistema lógico do direito que tem bases metafísicas. Seria impossível juridicamente admitir um direito de resistência, sem cair na anarquia. Exemplo disso, se um movimento revolucionário instaurar uma constituição mais de acordo com o direito, Kant admite que já não é mais permitido que se volte ao estado anterior, e na nova condição, o soberano retrocede à condição de súdito, portanto, passa ser também vedado a ele sublevar-se para restabelecer o antigo regime (PP, p. 93). 90 primeiro, é a do direito de que um povo não deve ser impedido por outros poderes de a si proporcionar uma constituição civil, como ela se lhe afigurar boa; em segundo lugar, a do fim (que é ao mesmo tempo dever), de que só é em si legítima e moralmente boa a constituição de um povo que, por sua natureza, é capaz de evitar, quanto a princípios, a guerra ofensiva – tal não pode ser nenhuma outra a não ser a constituição republicana, pelo menos segundo a ideia, portanto apta para ingressar na condição graças à qual é afastada a guerra (fonte de todos os males e corrupção dos costumes), e assim se assegura negativamente ao gênero humano, em toda a sua fragilidade, o progresso para o melhor, pelo menos, não ser perturbado na progressão.243 Percebe-se aqui que o campo do direito e da moral estão imbrincados, não apenas porque é um direito do povo se dar uma constituição e esta é um fim que é um dever moral, mas também porque esta constituição deve ser legítima, isto é, o povo deve ser co-partícipe de sua elaboração, e moralmente boa. Kant refere isso como a união da natureza e da liberdade, segundo princípios internos do direito, já que “o verdadeiro entusiasmo refere-se sempre apenas ao ideal e, claro está, puramente moral, o conceito de direito, por exemplo, e não pode enxertar- se no interesse próprio”.244 Para De Pasquale, sendo a constituição moralmente boa aquela em que o povo participa na elaboração da lei, sua legitimidade se apoia nesta moralidade e não se reduz à mera legalidade. Segundo a autora, o inevitável e mais relevante produto da aproximação entre o plano moral e o plano jurídico no texto em análise é o interesse político que emana da “questão renovada”, ou seja, a experiência da revolução seria a oportunidade de por à prova o progresso moral da humanidade em direção ao melhor, a partir da ideia da razão de uma constituição política perfeita, a constituição civil republicana, e a manifestação pública desse modo de pensar em defesa da liberdade, um direito natural, que obteve a simpatia do público, é o seu sinal mais significativo.245 Para melhor compreender a moral e o direito no contexto da filosofia política de Kant, é preciso resgatar seu conceito de república, modelo de sua constituição política do Estado. É na primeira crítica, ao tratar das ideias em geral e após observar que “Platão encontrou suas ideias predominantemente em tudo o que é prático”,246 que Kant o apresenta: Uma constituição, que tenha por finalidade a máxima liberdade humana, segundo leis que permitam que a liberdade de cada um possa coexistir com a 243 CF, p. 102-103, grifos do autor. 244 CF, p. 103. Note-se uma aproximação que Kant faz entre o entusiasmo e o conceito moral de direito, conforme apresentado na doutrina do direito, sem qualquer motivação egoísta (MC, 2013, 230, p. 35). Sobre a relação da moral com o interesse próprio discutirei no próximo capítulo. 245 DE PASQUALE, 2003, op. cit., p. 185. 246 CRP, B 372. 91 de todos os outros (não uma constituição da maior felicidade possível, pois esta será a natural conseqüência), é pelo menos uma ideia necessária, que deverá servir de fundamento não só a todo o primeiro projeto de constituição política, mas também a todas as leis, e na qual, inicialmente, se deverá abstrair dos obstáculos presentes, que talvez provenham menos da inelutável natureza humana do que de terem sido descuradas as ideias autênticas em matéria de legislação.247 Por conseguinte, há um caráter ideal e necessário neste conceito kantiano de república que se caracteriza pela coexistência da liberdade de todos, que são igualmente livres. Como ideal, no entanto, trata-se de respublica noumenon, uma norma para a constituição civil em geral; o exemplo da experiência – respublica phaenomenon – como sociedade civil organizada em conformidade com essa norma só “penosamente após múltiplas hostilidades e guerras” pode ser alcançada, mas, “uma vez adquirida em grande escala, qualifica-se como a melhor entre todas para manter afastada a guerra, destruidora de todo o bem”.248 Pode-se afirmar, então, que a evolução do direito natural, ao levar à constituição republicana, foi o que permitiu a Kant predizer ao gênero humano sua progressão para o melhor, cujo ápice seria o estado de cidadania mundial, como uma república mundial, livre de guerras. Também na época de Kant, o “estado civil mundial de pública segurança estatal” estava longe de ser alcançado; no entanto, mesmo admitindo o triste espetáculo do que os homens fazem uns aos outros, Kant nunca renunciou à ideia de progresso: Pois, pretender que o que ainda não se conseguiu até agora também jamais se levará a efeito não justifica sequer a renúncia a um propósito pragmático ou técnico (como, por exemplo, a viagem aérea com balões aerostáticos), e menos ainda a um propósito moral que, se a sua realização não for demonstrativamente impossível, se torna um dever.249 Temos aqui uma referência clara à distinção entre ser e dever ser, ou seja, do fato de ainda não termos alcançado qualquer propósito moral, não segue que não devemos almejá-lo.250 Sabedor da tendência humana para a guerra,251 Kant insiste na importância de superá-la, como se lê na passagem a seguir: 247 CRP, B 373, grifos do autor. 248 CF, § 8, p. 108. 249 DC, A 276-7, p. 97-8. 250 Uma vez que o dever expressa a matéria de uma obrigação, sendo esta a necessidade de uma ação livre sob o imperativo categórico da razão, se a razão estabelece um dever é porque ele é possível, dado que seria irracional da razão emanar algo impossível. 251 Ver, a esse respeito, a sociável insociabilidade (Ideia, 4ª prop.), e o papel da guerra (PP, suplemento primeiro). 92 Enquanto os Estados, porém, empregarem todas as suas forças nos seus vãos e violentos propósitos de expansão, impedindo assim sem cessar o lento esforço da formação interior do modo de pensar dos seus cidadãos, subtraindo- lhes também todo o apoio em semelhante intento, nada há a esperar nesta esfera; pois que se requer uma longa preparação interior de cada comunidade para a formação (Bildung) dos seus cidadãos. Mas todo o bem, que não está imbuído de uma disposição de ânimo (Gesinnung) moralmente boa, nada mais é do que pura aparência e coruscante penúria. Nesta situação permanecerá, sem dúvida, o gênero humano até sair, do modo como referi, do estado caótico das suas relações estatais.252 Lembremos que a característica da forma republicana de governar é a separação de poderes, ausente no despotismo, onde o déspota também promulga as leis,253 e ainda que, ao dar-se uma constituição republicana, o povo está também se dando o direito de co-legislar, na medida em que o cidadão, como membro co-legislador no Estado, tem o direito, por meio dos seus representantes eleitos, de participar das decisões, embora de forma indireta, como defende Kant, na democracia representativa. Os fundamentos da constituição republicana estabelecidos no primeiro artigo definitivo para a Paz Perpétua são expressos nos seguintes princípios: o princípio da liberdade de todos os membros de uma sociedade (enquanto homens) de não obedecer a leis exteriores, a não ser que se tenha dado consentimento; o princípio da dependência de todos em relação a uma legislação comum (enquanto súditos), como relação entre os súditos e o Estado, que não há necessidade de defini-la por já estar implícita no conceito de constituição política;254 e o princípio da igualdade de todos (enquanto cidadãos), que consiste na relação entre cidadãos segundo a qual ninguém pode impor a outro uma obrigação jurídica, se não puder ser também obrigado a isso, ou seja, ninguém pode apenas mandar e ninguém apenas obedecer. Assim, ao tratar da forma regiminis republicana,255 Kant está falando em progresso no âmbito jurídico; no entanto, ao dizer que tal constituição deve ser moralmente boa, é inevitável 252 Ideia, 7ª prop., p. 32-3. 253 No § 59 da terceira crítica, Kant mais uma vez se serve de metáfora orgânica ao comparar o estado monárquico, governado por leis populares próprias, como se fosse um corpo animado, ao passo que o estado despótico seria uma mera máquina, como um moinho, governado por uma única vontade absoluta. 254 PP, p. 41. 255 No primeiro artigo definitivo da Paz Perpétua, Kant distingue as formas de soberania (forma imperii) das formas de governo (forma regiminis); a primeira distinção diz respeito ao número de pessoas que detém o poder soberano, e a segunda ao modo como o soberano governa o povo. Assim, distinguem-se as três formas possíveis de soberania: autocracia (apenas um é soberano), aristocracia (alguns são soberanos) e democracia (todos são soberanos), e as duas formas possíveis de governo: a republicana ou despótica. Fica claro, portanto, que república não se confunde com democracia. 93 considerar o plano moral.256 Em tempos de guerras e revoluções, pode-se entender a preocupação de Kant com o alcance da paz, mas disso não resulta que se deva entender uma separação rigorosa entre direito, política e moral. Ora, uma das formas de sair do estado caótico que a guerra produz, é exatamente garantir a participação pelo esclarecimento, uma condição de possibilidade do progresso por meio da “formação interior do modo de pensar”, tarefa de uma pedagogia. É problemático, porém, que à pergunta sobre em que ordem se pode esperar o progresso para o melhor, Kant responda que não é “graças ao curso das coisas de baixo para cima, mas de cima para baixo”,257 conforme se lê na passagem abaixo: Esperar que, por meio da formação da juventude na instrução doméstica e, em seguida, nas escolas, desde as mais baixas às superiores, numa cultura intelectual e moral, reforçada pelo ensino religioso, se chegue por último não só a educar bons cidadãos, mas a educar para o bem o que ainda pode progredir e conservar-se, é um plano que dificilmente permite esperar o êxito desejado. Com efeito, o povo julga que os custos da educação da sua juventude não devem ser suportados por ele, mas pelo Estado e, em contrapartida, o Estado não tem, por seu lado, dinheiro a mais para pagar a mestres capazes e cumprindo com prazer as suas funções (como se queixa Büsching), porque precisa dele todo para a guerra.258 Vemos que os motivos alegados por Kant para tal fracasso da Educação mostram-se assustadoramente atuais, mas é de se pensar se teria havido uma mudança no seu pensamento acerca do papel da Pedagogia, onde ele afirmara que “o homem não pode tornar-se homem senão pela educação”,259 afinal não há de ser também um homem aquele que deve governar? Como, então, esperar o progresso apenas de cima para baixo, pela atuação do governo? Kant não ignora estas dificuldades, pois “entre as descobertas humanas há duas dificilíssimas, e são: a arte de governar os homens e a arte de educá-los”.260 Seu projeto reformista entende que sucessivas reformas no Estado são necessárias, “de modo permanente para o melhor”;261 com isso, está garantido o papel da educação na formação dos governantes, 256 Não se deve entender, contudo, como se Kant fosse um sonhador ou tivesse uma cabeça exaltada. Ele está ciente que a criação de uma respublica noumenon – como Atlanta e Utopia – são criações políticas, das quais apenas podemos nos aproximar, algo que “não é só pensável mas, até onde se pode harmonizar com a lei moral, é o dever não dos cidadãos, mas do chefe do Estado” (CF, p. 110, grifos do autor). Este posicionamento está coerente com o pensamento expresso no texto de que o progresso só pode se dar de cima para baixo, ou seja, aqui Kant nega o papel da Pedagogia (ib.). Percebe-se sua preocupação com o governante – e não com o cidadão – mas ele reconhece que também aquele precisa ser educado. 257 CF, § 10, p. 110, grifos do autor. 258 CF, § 10, p. 110-1. 259 Ped., 444, p. 15 260 Ped., 446, p. 21. 261 CF, §10, p. 111. 94 para manter a esperança no progresso, segundo uma sabedoria do Alto (Providência). No entanto, o que se pode esperar e exigir dos homens é apenas uma “sabedoria negativa” para aquele fim, isto é, que os homens “se vejam forçados a tornar a guerra, o maior obstáculo da moral [...] e enveredar por uma constituição que, [...] fundada em genuínos princípios de direito, possa avançar com consistência para o melhor”.262 Nesse sentido, o direito aparece como necessidade primeira para garantir o progresso humano, inclusive a educação, tendo em vista nossa condição de seres imperfeitos que exigem a coerção externa para efetivação da lei. Não me parece, então, que Kant tenha negligenciado o papel da Pedagogia, pois, ao tratar da importância da revolução, a despeito mesmo que esta fracassasse, pode-se ver a afirmação, desta vez, positiva, da instrução como operadora de mudança no ânimo: tal acontecimento é demasiado grande, demasiado entretecido com o interesse da humanidade e, segundo a sua influência, demasiado propalado no mundo em todas as suas partes para, entre os povos, não ter de ser despertado na memória e na repetição de novos intentos desta índole, em qualquer ocasião de circunstâncias favoráveis; porque então, num assunto tão importante para o género humano, a constituição intentada deve finalmente, numa época qualquer, alcançar a solidez que a instrução mediante a múltipla experiência não deixaria de operar nos ânimos de todos.263 Se a instrução é a parte positiva da educação, a qual, junto com a disciplina (parte negativa) compõe a formação,264 então Kant acredita que, a longo prazo, esse processo auxiliaria a solidez das instituições. A República, portanto, necessita de uma Pedagogia, e ambas atuam sinergicamente para desenvolver as disposições humanas para a moralidade, por isso, é dever ingressar na constituição republicana, mas até que se alcance esse estágio, caberia ao monarca governar de modo republicano, tratando “o povo segundo princípios conformes ao espírito das leis de liberdade”.265 Para finalizar essa questão do progresso, apresento, em linhas gerais, a visão de Kant sobre a moralidade como destinação à luz de sua pedagogia, no contexto das ideias iluministas. 262 CF, § 10, p. 111. 263 CF, § 7, p. 105. 264 Ped., 443, p. 14. 265 CF, § 8, p. 109. 95 3.1.1 Kant e o DHAA no âmbito da destinação humana A retomada da questão do progresso como associado à destinação do homem trouxe à tona um tema caro ao debate iluminista.266 Para Norbert Hinske,267 a discussão do iluminismo seria inimaginável sem a ideia de destinação do homem, considerada, por isso, uma ideia base do iluminismo alemão, que sustentava as três ideias programáticas do ecletismo, pensamento autônomo e maioridade.268 Foi em meio aos debates iluministas sobre a questão da destinação humana que Kant apresentou sua ideia de uma história humana (universal), como um progresso que se dá a partir de uma tendência natural do homem e tendo em vista um propósito da natureza, que nada mais é, no que se refere à natureza humana, do que a moralidade.269 Kant estava ciente de que nenhuma criatura humana – nas condições individuais de sua existência – seria adequada à ideia da mais alta perfeição de sua espécie,270 isso somente poderia ser alcançado coletivamente, isto é, pelo gênero humano. 266 Sobre a gênese da acepção kantiana de destinação do homem em relação com o contexto iluminista alemão, independente do contexto crítico, ver MACOR, Laura Anna. L’accezione kantiana de Bestimmung des Menschen e la sua prima ricezione (1784-1793). Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 3, n. 2, p. 211-222, jul-dez, 2008. A autora destaca os debates sobre o sentido kantiano de destinação, não mediante o estudo do seu sistema crítico, mas à luz da sua filosofia da história, nas Universidades de Jena e Tubinga. 267 Norbert Hinske (apud Taraborrelli, 2004, p. 43 et seq). 268 Cf. Le idee portanti dell’Illuminismo tedesco. Tentativi di una tipologia, in “Annali della Scuola Normale Superiore di Pisa”, vol. XV, 3, 1985, p. 997-1034. Segundo a tipologia apresentada por Hinske nessa obra, coube ao teólogo protestante alemão Johann Joachim Spalding a primeira utilização do termo destinação, ao publicar, em 1748, o texto (que fez muito sucesso, com 13 edições e traduções em francês, latim e holandês) Betrachtungüber die Bestimmung des Menschen, no qual, à tentativa de responder a questão “quem sou eu” e “que devo ser como criatura racional”, apresenta a ideia de um aperfeiçoamento infinito, para a eternidade, relacionando o problema da destinação do homem com o sentido da existência humana. O termo “cosmopolita” também se tornou no século XVIII uma das palavras programáticas do iluminismo. Cf. BACH. Thomas. Insocievole socievolezza all’incrocio di storia della natura e dell’umanità. In: FRIGO. Gian Franco. Bios e anthropos: filosofia, biologia e antropologia. Milano: Guerini Studio. 2007, p. 141-172. 269 Para Wood, dizer que o estudo da historia deve ser guiado por uma ideia – no caso, a ideia de progresso – é dizer que nos aproximamos da história usando um conceito a priori do que faria o curso dos eventos humanos inteligível, e procurar caminhos nos quais a história corresponde a esta ideia (“to say that the study of history is to be guided by an ‘idea’ is to say that we approach history using an a priori concept of what would make the course of human events maximally intelligible to us and look for ways in which history corresponds to this idea”). WOOD, Allen. Kant’s ethical thought. Cambridge: Cambridge UP, 1999, p. 208. 270 Na primeira crítica, resgatando em Platão um termo que será caro à sua filosofia, Kant diz: “Uma planta, um animal, a ordenação regular da estrutura do mundo (presumivelmente também toda a ordem da natureza) mostram, claramente, que apenas são possíveis segundo ideias; que, sem dúvida, nenhuma criatura individual nas condições individuais da sua existência, é adequada à ideia da mais alta perfeição da sua espécie (assim como tampouco o homem é adequado à ideia de humanidade que traz na alma como arquétipo das suas ações)”, CRP, B 375. 96 A humanidade tem, portanto, um propósito prático.271 Para pensar isto, Kant partiu da doutrina teleológica da natureza, segundo a qual toda disposição da natureza tem em vista um fim, ou seja, o desenvolvimento das disposições naturais conforme a um fim, observado em toda a natureza, também ocorre na natureza humana.272 E sendo específico nesta, as disposições para o uso da razão, será possível distinguir no homem tanto uma história natural, como uma história moral, o que leva Kant a admitir dois caminhos para o estudo da natureza entendida como o conjunto de tudo o que existe de modo determinado segundo leis: o teórico e o teleológico. No caso deste último, na física, empregam-se fins conhecidos pela experiência, e na metafísica, os fins estabelecidos pela razão pura.273 O problema é que, embora as disposições para o uso da razão, por serem naturais, já se encontrem em cada indivíduo, seu desenvolvimento só pode se dar completamente na espécie, pois, não apenas a razão não conhece limites, como também sendo ela uma faculdade de ampliar regras e intenções do uso de suas forças para além do instinto natural, sucessivas gerações serão necessárias para a transmissão de conhecimentos que levem ao alcance daquela “intenção oculta da natureza”, mediante a passagem de um estado de rudeza à perfeição do desenvolvimento de suas disposições. Isto quer dizer que a razão é inata, mas seu uso não é, ou seja, não nascemos como seres morais, apenas temos em nós a disposição para nos tornarmos morais, o que vai requerer – e isso também é especificamente humano – um tempo de aprendizado, muito maior 271 Isto será aprofundado no próximo capítulo, quando discuto a FMC e a ideia de fim que é um dever, conforme exposta na Doutrina da Virtude. Seguirei, portanto, em sentido contrário à tese de Höffe (2005, p. 275), para quem não é possível de modo algum encontrar o sentido último da História em Kant “em um progresso interior, em um desenvolvimento da disposição moral”, porque “o progresso só pode ser esperado no âmbito exterior, na instituição de relações de direito segundo critério da razão prática pura”. Ao discutir a relação entre direito e moral – conforme aplico na defesa da alimentação saudável –, e considerando ainda a importância das escolhas alimentares para a história humana como desenvolvimento da liberdade, defendo que o sentido da história, como progresso em direção à moralidade, pode ser encontrado no desenvolvimento das nossas disposições para o uso da razão em relação às escolhas alimentares, na medida em que podemos nos aperfeiçoar ao fazer as escolhas moralmente corretas. Para tanto, não apenas instituições são necessárias, mas também um processo de esclarecimento dos cidadãos. 272 Taraborrelli apresenta quatro contextos em que o conceito de natureza aparece na filosofia de Kant: 1. No contexto da primeira crítica, como a existência das coisas enquanto determinadas por leis universais; 2. No contexto da terceira crítica, ao tratar de uma finalidade da natureza em relação aos organismos; 3. No contexto antropológico e político, quando trata de disposição natural do homem (como natural e racional); 4. No contexto dos escritos histórico-políticos, ao tratar de intenção da natureza, esta aparece como como ideia, como providência. Cf. TARABORRELLI, 2004, op., cit., p. 41-42. O “natural” é também um conceito polissêmico quando aplicado à alimentação, conforme utilizado por profissionais, consumidores ou pela mídia. Cf. LIFSCHITZ, Javier. Alimentação e cultura: em torno do natural. Physis, Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 7 (21); 69-83, 1997. 273 A existência desta possibilidade parece ter animado Kant em suas pesquisas. Após a publicação da terceira crítica, em agosto de 1790, ele escreveu uma carta ao jovem fisiologista Blumenbach (1752-1848) da faculdade de Göttingen, na qual reconhecia a novidade dos seus escritos, qual seja, a “reunião (Vereinigung) de dois princípios (Principien), o do modo de explicação físico-mecânico e o do modo de explicação simplesmente teleológico da natureza organizada (der physisch-mechanischen und der blos teleologischen)”, o que seria considerada “uma referência mais próxima às idéias com as quais eu particularmente me ocupo, que justamente carecem de uma tal confirmação através dos fatos”. A carta está citada em MARQUES, 2007, op. cit., p. 455. 97 do que a vida de cada homem. Dito de outro modo, do ponto de vista individual, para alcançar uma perfeição no uso das disposições naturais que se referem ao uso da sua razão, o que pode se dar de uma forma diferente para cada membro da espécie, seria necessário viver um tempo muito longo para que cada um aprendesse como usar com perfeição suas disposições naturais. Assim, o progresso e com ele a história humana só pode ser alcançado do ponto de vista do gênero, mas não é independente de cada progresso individual, pois tal progresso estará sempre submetido ao jogo da liberdade, portanto, não podemos ter garantias de alcançar nossa destinação, como tem os animais e os outros organismos vivos da natureza. Mediante a ampliação do uso do princípio de conformidade a fins, fio condutor na organização da natureza em geral, esta sempre empiricamente condicionada, Kant pode pensar também a história humana como se nesta o homem devesse desenvolver suas disposições originárias. O princípio de conformidade a fins é um juízo reflexionante, isto é, funciona metodologicamente como ferramenta da razão para dar sistematicidade ao particular – no caso, a diversidade dos fatos da história humana – sem, contudo, produzir conhecimento. A história será, portanto, uma “ideia” em seu sentido transcendental, isto é, como um todo, regular e sistemático das manifestações da liberdade da vontade humana, que vai dar um sentido e uma direção ao processo histórico, compreendido não como um agregado de fatos que constitui a história empírica, nem mesmo como uma história natural do homem onde ele é um mero animal, mas como história moral.274 Dito isto, será relevante considerar neste trabalho que há uma ordem natural na natureza humana que é uma ordem de fins de liberdade,275 e o alimento está presente, seja naquela que se considera uma ordem meramente animal, seja na ordem moral. No entanto, enquanto o animal, por seu próprio instinto, chega naturalmente ao seu fim, o homem, não, por isso nós 274 Para entender como ideia reguladora o sentido de progresso com que Kant apresenta a história, remeto à Segunda Seção do Livro Primeiro da Dialética Transcendental, em que como cânones do entendimento, as ideias podem servir para “estabelecer uma transição entre os conceitos da natureza e os conceitos práticos e assim proporcionar consistência às idéias morais e um vínculo com os conhecimentos especulativos da razão” (CRP, B 386). Como princípio regulativo, a ideia kantiana de progresso funciona apenas para dar sentido à história humana, isto é, jamais será realizada completamente na prática. A ideia predileta de Kant, de uma história a priori, pode- se dizer, é a marca característica de sua filosofia da história. Nesta filosofia da história “orgânica” não há espaço para uma reconstrução genealógica, mas o propósito de Kant é buscar uma chave de leitura para interpretar a história do gênero humano como se tal história tivesse um significado próprio, qual seja, a realização de um fim da natureza (PINZANI, 2004, op. cit., p. 39). 275 É inegável a ligação entre fins naturais e fins morais em toda a filosofia kantiana, mas não me cabe aprofundar isso neste trabalho; considero importante apenas remeter a duas passagens na primeira crítica, pertinentes ao abordado neste capítulo: 1) na Refutação da Prova de Mendelssohn, Kant reconhece que a ordem dos fins é uma ordem da natureza, sendo também o domínio próprio da razão (CRP B 425); e 2) na Seção primeira do cânone da razão pura, ele ressalta que “o fim último da natureza sábia e providente na constituição da nossa razão, consiste somente no que é moral” (CRP B 829). 98 precisamos da Pedagogia para aprender a escolher nossa alimentação, uma Pedagogia que pode esconder o grande segredo da perfeição da natureza humana.276 Esta Pedagogia deve ser prática e também deve ter em vista a destinação humana, nas palavras de Kant: “a arte da educação ou pedagogia deve, portanto, ser raciocinada, se ela deve desenvolver a natureza humana de tal modo que esta possa conseguir o seu destino”.277 Fica assim evidente que o homem depende da própria razão para vir a ser homem, e que uma geração precisa educar a outra. De acordo com a ideia de progresso, Kant admite que a educação pode ser melhorada a cada geração, para que se possa seguir os passos rumo ao aperfeiçoamento humano, abrindo “a perspectiva para uma futura felicidade da espécie humana”.278 Não se quer dizer com isso que esse progresso é linear e sem obstáculos. Há que se considerar o conflito que pode surgir – como realmente ocorre na nossa realidade, e também naquela retratada por Kant – entre a ação do governo e a educação, tendo em vista que “os príncipes, para atingir seus objetivos, se preocupam não com o bem do mundo, mas com o bem do seu Estado”.279 Vimos antes que, diante da revolução, Kant admitiu o progresso apenas de cima para baixo. Na Pedagogia ele reconheceu o conflito, mesmo quando os príncipes prestavam auxílio à educação, pois estes reservavam “o direito de estabelecer o plano que lhes convém”;280 a educação, se se quer que tenha em vista a moralidade, não devia ficar a cargo dos governantes,281 já que “alguns poderosos consideram, de certo modo, o seu povo como uma parte do reino animal e tem em mente apenas a sua multiplicação”.282 Assim, pode-se entender porque Kant afirma que “pessoas particulares devem em primeiro lugar estar atentas à finalidade da natureza, mas, devem, sobretudo, cuidar do desenvolvimento da humanidade, [...] conduzir a posteridade a um grau mais elevado do que elas atingiram”.283 Para não cair na circularidade, a solução para o problema de uma Pedagogia que eduque 276 Ped., 444, p. 16. 277 Ped., 447, p. 22, grifos do autor. 278 Ped., 444, p. 17. 279 Ped., 449, p. 25. 280 Ped., 449, p. 25. 281 Nada difere da situação descrita, um pouco antes, aqui mesmo no Brasil, no Sermão da Visitação do Pe. Vieira, em que ele diz que vai representar, “o estado do nosso enfermo Brasil, as causas de sua enfermidade, e, do modo que souber, o remédio dela” (§ I), na doença de S. João, a quem a Virgem Maria foi visitar e dar saúde. No Sermão, proferido no dia 2 de julho de 1640, na Bahia, Vieira saúda o vice-rei e assim refere a situação da colônia: “Perde- se o Brasil, senhor, porque alguns ministros de vossa majestade não vêm cá buscar nosso bem, vêm cá buscar os nossos bens...[...]. Este tomar o alheio, ou seja o do rei ou o dos povos, é a origem da doença;[...] pergunto para que as causas dos sintomas se conheçam melhor: Toma nesta terra o Ministro da Justiça? Sim, toma. Toma o Ministro da Fazenda? Sim, toma. Toma o ministro da República? Sim, toma. Toma o Ministro da Milícia? Sim, toma. Toma o Ministro do Estado? Sim, toma” (§VI). Disponível em http://www.brasiliana.com.br/obras/por- brasil-e-portugal/pagina/154/texto. Acesso em 04 fev 2015. 282 Ped., 449, p. 26. 283 Ped., 449, p. 26. 99 os governantes, cujo papel é também educativo, passa pela consideração de distintos atores neste cenário. De um lado, os indivíduos, como cidadãos livres, que devem fazer uso da própria razão, não renunciando ao esclarecimento; além disso, cabe a estes mesmos indivíduos exigir medidas dos governantes que não impeçam o progresso da humanidade, ao contrário, que promovam o alcance da sua destinação. Por outro lado, a educação não deve ficar a cargo apenas dos governantes, pois, há de se considerar que também estes precisam do esclarecimento. Nesta relação entre cidadãos e governo, temos a importante figura de professores e funcionários do governo. Kant abordou novamente este conflito quando tratou especificamente da relação entre as faculdades. Ao estabelecer as máximas fundamentais da filosofia à luz da reapresentação dos preceitos de Ulpiano,284 ele formulou uma dupla relação: associando cada preceito aos fins naturais, os quais, segundo ele, o povo põe acima de tudo como interesses fundamentais, e reproduzindo a divisão das faculdades superiores segundo os motivos que o governo utiliza para ter influência sobre o povo. Não é que o governo por si mesmo ensine, mas por meio das faculdades de direito, teologia e medicina tem o poder de estabelecer suas doutrinas aos que ensinam, consequentemente, tem influência sobre o que é publicamente exposto, já que era atividade comum das faculdades o debate público. Desta feita, temos que: a) ao preceito de viver honestamente, relaciona-se o bem eterno de cada um (ser bem-aventurado após a morte/salvação da alma), aos cuidados da Faculdade de Teologia; b) ao preceito de não fazer mal a ninguém, associa-se o bem civil como membro da sociedade (estar seguro do que é seu mediantes leis públicas), a cargo da Faculdade de Direito; e c) ao preceito de comportar-se com temperança no gozo e com paciência nas doenças, Kant relaciona o bem corporal (viver longamente e ter saúde/ esperar o gozo físico da vida em si mesma), com que se ocupa a Faculdade de Medicina.285 A crítica que Kant faz à faculdade que me interessa, qual seja, a faculdade de medicina – posto que a dietética é um dos seus campos de atuação –, é que, por meio dos seus ensinamentos, o governo almeja um povo forte e numeroso, “utilizável para seus propósitos”.286 Temos assim, claramente, a instrumentalização do povo por parte do governo, realidade essa que ainda se faz presente hoje, como vimos no capítulo anterior, quando expus a abordagem que o governo brasileiro faz acerca da alimentação como direito de todos, impregnada da 284 A esse respeito ver BRANDT, Reinhard. Il conflito dele facoltà. Determinazione razionale ed eterodeterminazione nell’università kantiana. In: BERTANI & PRANTEDA (Org.). 2003, op. cit., p. 13-52. 285 CF, p. 34. 286 CF, p. 24. 100 doutrina utilitarista, na medida em que as políticas públicas são formuladas em termos de custos para o tratamento das doenças decorrentes de uma alimentação inadequada. Considerar o povo em termos de utilidade, tendo em vista menores gastos públicos em saúde, certamente, não contribui para o progresso da humanidade nos termos em que foi apresentado, por isso, merece consideração o papel do Nutricionista nestas políticas, seja como erudito que pode se dirigir ao público para expor a inconveniência daquelas ações, seja como técnico do saber, para o que é necessário conhecer também a história do DHAA. Em resumo, para atribuir inteligibilidade ao encadeamento apresentado dos fatos relacionados aos direitos humanos, seguindo a teleologia kantiana, vimos um fio condutor que pode nos dar uma perspectiva totalizante de uma “vista consoladora do futuro, na qual o género humano se representa ao longe como atingindo, por fim, o estado em que todos os germes, que a Natureza nele pôs, se podem desenvolver plenamente e o seu destino cumprir-se aqui na Terra”.287 Do fato histórico de constituição da ONU não se pode negar a “conexão causal” entre a proclamação da DUDH, a assinatura dos Pactos e a alteração no nosso arcabouço jurídico que garantiu a alimentação como direito fundamental de todas as pessoas. Normas jurídicas universalmente válidas, de fato, indicam o sentido de um avanço da própria história humana; a partir do ponto de vista dos direitos humanos admite-se um progresso jurídico que se manifestou proclamando e estabelecendo condições de garantia e exigibilidade do direito à alimentação, na forma de declarações e pactos. Entretanto, o progresso pode se dar de modo descontínuo. Se devemos a positivação do direito à alimentação à formação de uma “liga de estados”, também esperamos décadas para sua efetivação, mesmo assim, isso se dá de modo incompleto, portanto, assim como na época de Kant, o progresso está ainda muito longe de ser alcançado. O que se pode apenas afirmar até o momento é uma tendência, uma orientação global no sentido do progresso, dado que vários países passaram a incorporar o direito à alimentação em seus estatutos; o sinal deste progresso, a DUDH, revelou aquele fio condutor da história humana, porque foi redigida com base em princípios universais como a igualdade, a liberdade e a dignidade humana. Além disso, como já dito, a Assembleia da ONU que proclamou a DUDH como “o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações” também reconheceu a necessidade de esforço “através do ensino e da educação”, “de cada indivíduo e cada órgão da sociedade”. Isto posto, é preciso reconhecer a necessidade de avançar moralmente, para realmente assegurar a realização daqueles direitos, porque, no tema do DHAA, não pode haver 287 Ideia, 9ª prop. 101 distanciamento entre o progresso jurídico, isto é, positivar o direito numa condição civil, e o progresso moral, expresso pela realização do direito e pelo desenvolvimento da virtude. Para tanto, vou destacar a importância do esclarecimento propiciado pela educação. A condição humana de imperfeição nos exige fazer parte de um processo educativo permanente que nos mantenha no caminho do progresso. Nessa interseção entre direito e moral, ressalto, tendo em vista o papel do Estado na realização do direito à alimentação, o papel educativo do profissional Nutricionista, como agente público, inclusive como professor universitário, uma vez que professores ensinam as políticas públicas que tem em vista os fins do governo, e o governo tem interesses utilitaristas em relação à alimentação do povo. Para romper esse ciclo, já que professores de faculdades de nutrição devem exercer um papel político na defesa do direito à alimentação saudável, faço, a seguir, a defesa da liberdade de uso da razão. 3.2 O entusiasmo pelos direitos humanos: defendendo o DHAA a partir da ilustração e da sociabilidade O pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala: [...] sempre lhe afogou as palavras na garganta, ou o respeito, ou a violência; e se alguma vez chegou algum gemido aos ouvidos de quem o devera remediar, chegaram também as vozes do poder, e venceram os clamores da razão (Pe. Vieira, Sermão da Anunciação) O “entusiasmo” de Kant com a Revolução Francesa288 justifica-se na medida em que se trata de um acontecimento, sem dúvida, marcante para a história universal da humanidade. Se é certo que, na história dos direitos humanos, a proclamação da DUDH foi o evento significativo do século XX, no âmbito mundial, e a inclusão do direito à alimentação na nossa Carta Magna (2010), nosso equivalente doméstico, para Kant, o evento significativo foi a Revolução Francesa, da qual resultou não só a queda do absolutismo e instituição da república, mas também a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Na Antropologia, ele reconheceu que o conceito de direito “é um impulso muito mais importante e move muito mais fortemente a vontade que o da benevolência”, 289 admitindo que “o desejo de estar num estado e numa relação com os seus próximos em que pode ser dado a cada um o que manda o direito”290 é um fundamento de determinação do livre arbítrio pela 288 É famosa a reação de Kant, ao saber da proclamação da República Francesa, citando o Evangelho de Lucas (2, 29-30): “Senhor! Deixa que teu servo vá em paz, pois eu vi a salvação do mundo.” 289 Antr. § 83, 271, p. 168. 290 Antr. § 83, 271, p. 168, grifos do autor. 102 razão prática pura. A passagem seguinte me parece resumir isso: Assim, o conceito de liberdade sob leis morais não apenas desperta uma afecção, denominada entusiasmo, mas a mera representação sensível da liberdade exterior aumenta a inclinação de persistir nela ou, pela analogia com o conceito de direito, a amplifica até torná-la uma paixão impetuosa.291 O que Kant viu de moral no agir revolucionário ressoou nos eventos de elaboração da DUDH e seus desdobramentos e pode ainda nos ser útil diante da realidade atual acerca dos direitos humanos. Como bem observa Ternay, a leitura de Kant sobre tal acontecimento pode nos ajudar a reencontrar desafios atuais, para nos tornarmos “mais comprometidos nos processos de libertação que se impõem aqui hoje”.292 E visto que meu objetivo nesta seção é destacar o papel do Nutricionista na defesa do DHAA, considerando a realidade atual e seu compromisso como agente público, inclusive como professor universitário, faço uma atualização do pensamento de Kant, a partir da Carta Internacional dos Direitos Humanos, posto que este documento, publicamente manifesto, expressou um novo modo de pensar e uma ruptura com os eventos anteriores da guerra e do holocausto, trazendo a esperança de um mundo melhor. Os chefes de Estado reunidos no pós-guerra para proclamar a DUDH, que também buscaram mecanismos vinculantes como os Pactos e os Protocolos – a condição (externa) do direito –, tinham em vista um fim moral, já expresso no Preâmbulo da Declaração conforme passagem a seguir: Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum (grifo meu). Nossa mais alta aspiração, então, está enraizada nas liberdades. Destaquei antes a liberdade de viver a salvo da necessidade, ou seja, da fome, primeira dimensão do direito à 291 Antr. § 82, 269, p. 167. Embora não esteja entre os objetivos deste trabalho tratar a liberdade como inclinação, merece citar o texto de La Rocca sobre a passagem acima, em que o autor defende que a analogia do choro do neonato com o conceito de direito dá-se porque Kant considerou aquele grito como um grito da liberdade externa. Cf. LA ROCCA, Claudio. La prima voce. Libertà come passione nell’antropologia kantiana. In: ARAMAYO, Roberto R. & ONCINA, Faustino. Etica y antropologia: um dilema kantiano. Granada: Colmares Ed., 1999, cap. IV. 292 TERNAY, 1989, op. cit., p. 14. 103 alimentação; destaco agora a liberdade de expressão do pensamento para a defesa deste direito, para o que remeto às considerações de Kant sobre o caráter moral da revolução, expresso naquele modo de pensar universal e desinteressado, publicamente manifesto. Além disso, no ensaio “Que significa orientar-se no pensamento” (1786), Kant defende a liberdade de expressão, dizendo que impedir esta liberdade de expressar publicamente o pensamento é, ao mesmo tempo, roubar também a liberdade de pensar: “o único tesouro que, apesar de todos os encargos civis, ainda nos resta e pelo qual apenas se pode criar um meio contra todos os males”,293 o que me leva a afirmar que, sem a liberdade de expor o pensamento sobre os problemas alimentares – como abordado nesta tese – nem mesmo poderíamos ter pensado sobre eles, portanto, estaríamos impedidos da única condição de poder resolvê-los. A Revolução foi um evento popular, mas não se pode dizer o mesmo das Assembleias da ONU, das quais (ainda hoje) apenas chefes de Estado participam. De todo modo, a participação atualmente é um direito, e por meio dela é que se pode dizer de um povo que é soberano, ou seja, que tem o controle de todas as instâncias de poder, público ou privado. Para Comparato, “o controle político contém duas prerrogativas essenciais: o poder de fixar as grandes diretrizes da vida política nacional e o de responsabilizar diretamente os agentes públicos, de qualquer ramo do Estado, pelos atos cometidos contra o bem comum do povo”.294 No entanto, não podemos dizer que vivemos numa época esclarecida, dadas as dificuldades que persistem para exercer a liberdade de pensamento. Sendo assim, eu também adotaria a ironia kantiana, para afirmar que fazer uso público da razão é a mais inofensiva das liberdades. A manifestação pública do pensamento, como expressão da liberdade da razão, foi a essência do iluminismo,295 cujo lema sapere aude exigia ainda a coragem de se manifestar. Sobre este lema de Horácio, Brandt296 explica que não implica que cada um vá dominar todo ramo do saber, mas que apenas se deve reconquistar os conhecimentos e competências erroneamente delegadas a uma instância que se fez independente, até contraposta ao homem. 293 Que significa orientar-se no pensamento. Tradução Artur Morão. Textos filosóficos. Lisboa: Ed. 70, 1995, p. 52. 294 COMPARATO, Fábio Konder. Para regenerar a vida política no Brasil. Democracia Viva, n. 28, ago set 2005, p. 16. 295 A exaltação do iluminismo inglês e sua influência no continente está refletida na famosa exclamação de Diderot (apud Porter) que sem os ingleses, a razão e a filosofia ainda estariam na infância mais desprezível na França. Cf. PORTER, Roy. Enlightenment: Britain and the Creation of the Modern World. Penguin Books: London, 2001. Disponível em https://books.google.com.br/books?id=dn1YGGxCL-0C&printsec=frontcover&hl=pt- BR#v=onepage&q&f=false. Acesso em 06 jan 2015. A despeito das controvérsias sobre o iluminismo como era das luzes – por oposição à chamada idade das trevas do período medieval, o que pode ser bastante questionado – para minhas considerações neste trabalho, enfatizo uma de suas ideias básicas, qual seja, o pensamento autônomo, que caracteriza a liberdade como direito individual, tendo em vista sua relação com o princípio da autonomia e dignidade das pessoas, conforme prevê o art. 8º da LOSAN. 296 BRANDT, 2003, op. cit., p. 35. 104 Trata-se, portanto, de uma resposta ao jugo do soberano sobre várias instâncias da vida do indivíduo, num claro conflito entre a liberdade individual e o poder político.297 O cuidado de si como autodeterminação está entre uma destas competências que são próprias do indivíduo,298 e a partir disso pode-se compreender, no nascente Estado alemão do século XVIII, quando a medicina se organizava também como “polícia médica”, porque surgiu uma disputa política entre esta instituição – ligada aos interesses do Estado para garantir sua influência sobre o povo – e a filosofia, que também se dedicava à medicina, através de uma dietética, mas sem se sujeitar a nenhuma autoridade. Com a polícia médica alemã, a saúde passou a ser uma questão de Estado, fortemente influenciada pelo espírito iluminista e humanista da época,299 e Kant não ficou alheio a isso, como se depreende, sobretudo, da sua obra O Conflito das Faculdades, na qual reconhece que tem o médico maior importância em relação ao teólogo e ao jurista, porque o povo busca o instinto natural de conservação da vida mais do que qualquer outra coisa.300 O preceito médico por excelência – a moderação – será adotado também na regulação médica do governo, tendo em vista o conforto e a segurança pública, como polícia médica. É sabido que da relação com os Estados nacionais e as constituições civis começaram a ser discutidos os direitos civis e políticos, anunciando um clima de progresso (iluminismo) que também foi encontrado no campo da medicina pela expressão iluminismo médico, como sendo 297 Esse poder, mais tarde, viria a constituir o que Foucault chamou de “biopoder”, um poder do Estado sobre a vida, não do indivíduo, mas do conjunto dos cidadãos, tendo como foco as características biológicas da espécie humana, num processo de “estatização do biológico”. Cf, FOUCAULT, Michael. Em defesa da sociedade. Tradução de Mana Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes,1999, p. 286. 298 BRANDT, 2003, op. cit., p. 36. 299 O termo (Medizinichepolizei) surgiu na Alemanha e foi usado pela primeira vez em 1764, por Wolfgang Thomas Rau, em seu livro Reflexões sobre a utilidade e a necessidade de um regulamento de polícia médica para um Estado. Tratava-se de um tipo de intervenção médica por parte do governo que, dentre outras atribuições, deveria criar um corpo de funcionários médicos competentes, por ele nomeados, para interferir diretamente com o seu conhecimento e sua autoridade sobre uma determinada região, quando a medicina e o médico se tornaram o primeiro objeto de normalização do Estado. Cf. ROSEN, 1994, op. cit., p. 134 et seq. Foi com base neste modelo de Medicina de Estado da Alemanha – como o primeiro grande modelo de Medicina Social – que Michael Foucault usou o termo “biopolítica”, pela primeira vez, em 1974, em uma conferência proferida no Rio de Janeiro. Ao tratar das origens da Medicina Social, ele apontou aquela intervenção médica por parte do governo, constituída pela polícia médica, um exemplo de transformação da saúde em problema do Estado, na medida em que a saúde da população constituía a força do Estado; não por acaso, o médico foi o primeiro indivíduo normalizado pelo Estado, cabendo a ele administrar a saúde a partir da observação e registro dos fenômenos vividos pela população, o que inseriu a vida natural nos mecanismos e nos cálculos do poder estatal. Foucault chama de biopolítica um dos pólos em torno dos quais se desenvolveu essa organização do poder sobre a vida: de um lado, a anátomo-política do corpo, procedimentos que caracterizam as disciplinas voltadas para o corpo-máquina, visando o seu adestramento e docilidade; de outro, uma biopolítica da população, constituída por intervenções e controle reguladores do corpo- espécie. Cf. FOUCAULT, Michael. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon de Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988, cap. V. 300 CF, p. 24. 105 a saída do homem da minoridade em relação às coisas que tratam do seu bem-estar.301 Era inevitável, portanto, que a alimentação – elemento fundamental de toda e qualquer dietética – passasse a fazer parte não só da filosofia política de Kant, mas também da sua doutrina da virtude. Diante disso, proponho defender o DHAA, não tanto por sua relação com a conservação física da vida, mas já apontando para sua relação com a moral, a partir do inegável papel da sociabilidade humana para a satisfação desta que é uma necessidade vital e teve na mesa um lugar muito próprio.302 Tomo como referência o § 60 da CJ, onde Kant afirma a humanidade como “universal sentimento de participação” e como a “faculdade de poder comunicar-se íntima e universalmente”, donde “estas propriedades coligadas constituem a sociabilidade conveniente à humanidade ‘Menschheit’, pela qual ela se distingue da limitação animal”. Há, portanto, uma vinculação entre humanidade e sociabilidade,303 sendo que participação e comunicabilidade implicam ainda aquele outro conceito chave da filosofia política de Kant: a publicidade, como condição para o esclarecimento.304 A questão do esclarecimento, no contexto da defesa do DHAA, está relacionada com a necessidade do debate público, o que exige de nós uma postura de respeito pelo pensamento do outro, também livre para se manifestar. Somente neste debate é que podemos realmente avançar na defesa e garantia deste direito. Um Nutricionista esclarecido pode ajudar a solucionar nossos problemas atuais, inclusive sugerindo modificações na legislação.305 Minha proposta, então, nesta seção, é que possamos estabelecer uma ágora para manter permanentemente diálogos sobre a alimentação, a partir dos quais leis possam ser (re)formuladas, considerando a necessária participação ativa do cidadão e a disposição para a comunicação. Um debate permanente sobre a alimentação poderia ser um fator impeditivo das sociedades secretas que decidissem contra os interesses do povo, além de possibilitar a ampliação do próprio 301 Definição dada pelo médico Johann Karl Osterhausen (1765-1839) em seu livro Ueber die medicinische Aufklärund, de 1798. Cf. ENGELHARDT, Dietrich von. In: BERTANI & PRANTEDA (Org.), 2003, op. cit., p. 257. 302 “O prazer da mesa é próprio da espécie humana”. Cf. BRILLAT-SAVARIN, Fisiologia do gosto. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 170. 303 A respeito das origens desse conceito ver KLEIN, Joel Thiago. A sociabilidade insociável e a antropologia kantiana Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 25, n. 36, p. 265-285, jan./jun. 2013. 304 A comunicação recíproca das ideias é também uma condição prévia para a sociabilidade legal (CJ, § 60, 263, p. 200). Sobre a extensão conceitual da sociabilidade comunicativa para sociabilidade legal, como capacidade do homem realizar a sua humanidade em conjunto com outros homens, isto é, por meio do direito, ver ROHDEN, Valério. Sociabilidade legal: uma ligação entre direito e humanidade na terceira crítica. Analytica. Vol 1, n 2. 1994, p. 97-106. 305 Kant admite que, “no tocante à legislação não há perigo em permitir aos seus súbditos fazer uso público da sua própria razão e expor publicamente ao mundo as suas ideias sobre a sua melhor formulação, inclusive por meio de uma ousada crítica da legislação que já existe” (Resposta, A 493, p. 18). 106 pensamento, útil ao auto-aperfeiçoamento.306 Em seguida, defendo a sociabilidade, que é uma disposição técnica e pragmática, também como moral e política, quando relacionada à alimentação. 3.2.1 O Nutricionista esclarecido para a defesa do DHAA Ao responder à pergunta no ensaio que coloca a questão, Kant afirma: “o iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado”,307 ou seja, a culpa pela menoridade – a incapacidade para orientar-se segundo seu próprio entendimento308 – é do próprio homem, se ele mesmo não decidir, por preguiça e covardia, sair desse estado. O que é necessário, então, para deixar de ser menor? Apenas a liberdade de pensar por si mesmo. Defendo, nesta seção, que a liberdade de pensamento é fundamental para a defesa do DHAA; para tanto, resgato o papel social da filosofia, uma vez que, concomitante à saída do estágio de menoridade, à medida que o homem desenvolve o uso público da razão rumo ao esclarecimento, está aberta a possibilidade de um progresso moral na história, no que tem papel fundamental as instituições do direito público.309 Embora não caiba neste trabalho maiores considerações sobre o termo em si (“enlightenment”) – iluminismo/esclarecimento/ilustração –, é importante considerar os dois sentidos que tinha na época. Em sentido genérico, referia-se àquela atitude ou processo que só reconhecia a autoridade do indivíduo livre, ou seja, neste sentido não se podia estabelecer um começo ou fim de um período de ilustração, mas tratava-se do domínio da análise crítica, portanto, do uso da razão, algo que alguém faz, não uma era a que pertence; em sentido específico, o termo era usado para designar um período da história européia, grosseiramente falando, o século XVIII, quando emergiu uma consciência do papel e da promessa do iluminismo em questões de moral, política e religião, e a ciência se tornou o modelo de conduta para os negócios públicos e para análise e solução de problemas públicos.310 De qualquer modo, 306 Um exemplo de “sociedade secreta” será apresentado no último capítulo, na discussão sobre as decisões para liberação de OGMs. 307 Resposta, A 481, p. 11. 308 A respeito do sentido de entendimento (Verstand) substituído por Vernunft no ensaio “Que significa orientar- se no pensamento” (1786) ver KLEIN, Joel Thiago. A resposta kantiana à pergunta: que é esclarecimento. Ethic@ Florianópolis v. 8, n. 2 p. 211 - 227 Dez 2009. 309 Sobre o papel da cultura para o progresso da moralidade ver NADAI, Bruno. Progresso e moral na filosofia da história de Kant. 2011. 306f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2011, p. 59 et seq. 310 Essa distinção é atribuída ao filósofo Charles Frankel. Cf. SCHMIDT, James. What counts as an Answer to the question “what is enlightenment”. Talk for the Philosophy Department, Boston University, 2011. Disponível em http://people.bu.edu/jschmidt/James_Schmidt/Welcome_files/What%20Counts.pdf. Acesso em 20 abr 2015. 107 para saber se o termo ilustração se aplicava a este ou aquele processo ou comportamento, era preciso antes responder à questão “o que é o esclarecimento”, e esse foi o contexto em que o ensaio de Kant foi escrito,311 portanto, ele não estava preocupado em definir um período da história.312 O que me interessa no ensaio kantiano é a relação que ele faz entre os usos da razão e o esclarecimento, a partir da qual eu discuto de que modo os usos da razão podem ser empregados para a defesa do DHAA e os conflitos que surgem quando se considera o papel do Nutricionista, como agente público e como cidadão. Considero fundamental a liberdade de manifestação pública do pensamento para a defesa dos direitos humanos, visto que, para que um povo possa defender os seus direitos, é preciso estar acerca deles esclarecido; para tanto, defendo a atuação do Nutricionista como sujeito partícipe que colabora para o esclarecimento de uma comunidade republicana.313 Seria inaceitável para tal profissional, sendo a alimentação um direito humano, que renunciasse ao esclarecimento,314 já que também temos a obrigação de conhecer este direito, para saber como exigi-lo e contribuir para outras pessoas fazerem o mesmo, o que apenas publicamente pode ser feito. A exigibilidade do direito humano requer a liberdade de crítica, na qual repousa a própria existência da razão.315 Minha primeira crítica é que, diferentemente do contexto kantiano – marco na evolução dos direitos de humanidade –, não identifico aqui o entusiasmo que Kant presenciou, seja por parte da população, seja por parte dos políticos, frente às questões públicas que dizem respeito à alimentação. Por outro lado, é certo que a história brasileira apresenta fatos bem diferentes, mas questionei no início deste trabalho se poderíamos balizar algo como um “progresso moral”, 311 O iluminismo, naquele sentido específico, é tudo, menos algo que expresse uma uniformidade ou unidade entre os filósofos, especialmente os da Inglaterra, França e Alemanha. Ver PORTER, Roy. The enlightment in England. Excerpt. In: PORTER, Roy; TEICH, Milulás. Enlightenment in the National Context. Cambridge University Press, 1981. Disponível em https://books.google.com.br/books/about/The_Enlightenment_in_National_Context.html?id=j- v3Li4uaysC&redir_esc=y. Acesso em 06 jan 2015. 312 Na verdade, Kant julgou “enfadonho” esclarecer uma época, dados os obstáculos que dificultariam a educação dos sujeitos individuais, com o que facilmente se poderia instituir a ilustração (Orientar-se, nota A 330, p. 55). 313 Quando se trata de direitos naturais, “a ilustração do povo é a sua instrução pública acerca dos seus deveres e direitos no tocante ao Estado a que pertence”, cujos arautos e intérpretes serão os filósofos, difamados como iluministas, gente perigosa para o Estado (CF, § 8, p. 106-7). Não à toa Kant compara a faculdade de filosofia à ala esquerda do parlamento (da ciência), por oposição à ala direita que representaria o partido do governo representado pelas faculdades superiores. O primado da faculdade de filosofia só veio com a reforma universitária de Humboldt, que se deu em 1810. Cf. POZZO, Riccardo; OBERHAUSEN, Michael. The place of science in Kant’s university. History of Science, XL, 129, 2002. Disponível em http://adsabs.harvard.edu/full/2002HisSc..40..353P. Acesso em 10 out 2014. 314 No ensaio Resposta à pergunta: que é o iluminismo (1784) em que abordou pela primeira vez a questão do esclarecimento, Kant afirmou: “Um homem, para a sua pessoa, e mesmo então só por algum tempo, pode, no que lhe incumbe saber, adiar a ilustração; mas renunciar a ela, quer seja para si, quer ainda mais para a descendência, significa lesar e calcar aos pés o sagrado direito da humanidade” (Resposta, A 490, p. 16). 315 CRP, B 766. 108 no campo da alimentação, a partir dos avanços no campo do direito e da política no Brasil. A respeito disso, Kant afirma que o lucro que este progresso para melhor trará ao gênero humano não será uma “quantidade sempre crescente da moralidade na disposição de ânimo, mas um aumento dos produtos da sua legalidade em ações conformes ao dever, sejam quais forem os motivos que as ocasionem”, 316 ou seja, o resultado do progresso seria observado “nos atos bons dos homens, que se tornarão sempre mais numerosos e melhores, portanto nos fenômenos da condição moral do gênero humano”.317 Por enquanto, não fomos capazes de moralidade, pois, sequer chegamos a um acordo entre o direito, a política e a moral no campo da alimentação, como apresento nesta tese. Se, por um lado, pode-se dizer que temos resolvido alguns graves problemas da não realização do direito à alimentação – no que diz respeito à escassez –, por outro lado, uma nova realidade se configura, agora caracterizada pelo excesso de alimentos pouco saudáveis disponíveis no mercado, os alimentos extremamente processados pela indústria, e pela adoção de estilos alimentares, decorrentes da modernização do trabalho e intensa urbanização, com graves consequências para a saúde. Neste processo, identifica-se tanto a ação como a omissão do Estado na exposição da população a riscos decorrentes da alimentação, ferindo frontalmente o que assegura a lei de segurança alimentar e nutricional. Temos ainda algumas políticas que não traduzem na prática o que é direito, revelando um desacordo entre a política e a moral, que não deveria existir.318 Assim sendo, para as considerações feitas nesta seção acerca do papel do Nutricionista, tenho como pressuposto a participação social, já devidamente reconhecida nas políticas públicas319 como elemento essencial do próprio Estado de Direito, que reflete a ideia mesma de república, e tomo como referências do exercício profissional as diretrizes curriculares para o Curso de Nutrição, estabelecidas pelo MEC, nas quais se estabelece o perfil deste profissional conforme segue: Nutricionista, com formação generalista, humanista e crítica, capacitado a atuar, visando à segurança alimentar e à atenção dietética, em todas as áreas 316 CF, § 9, p. 109 (grifos do autor). 317 CF, § 9, p. 109. Apesar da ética kantiana ser uma ética da boa vontade, ele mesmo admite a impossibilidade de conhecer as intenções humanas, nesse sentido, poderíamos identificar os atos morais, não suas intenções. 318 No I Apêndice da Paz Perpétua, Kant distingue a política como aplicação da doutrina do direito e a moral como teoria dessa doutrina. Deste modo, o direito seria fundado teoricamente pela moral e aplicado pela política, de forma que não seria possível o desacordo entre moral e política, pois, isso implicaria uma contradição. O acordo entre a política e a moral tem na sua origem aquele estado inicial de violência, quando homem se obriga a sair do estado de natureza e erigir o estado civil. Para isto, há que se admitir a liberdade. 319 A FAO reconhece a participação como princípio para a garantia do DHAA. Cf. Diretrizes Voluntárias, 2005, op. cit. A participação e o controle social também são hoje uma diretriz da nova PNAN (Portaria 2715/2011). 109 do conhecimento em que alimentação e nutrição se apresentem fundamentais para a promoção, manutenção e recuperação da saúde e para a prevenção de doenças de indivíduos ou grupos populacionais, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida, pautado em princípios éticos, com reflexão sobre a realidade econômica, política, social e cultural.320 Uma das habilidades e competências deste profissional para exercer sua profissão, segundo o perfil esperado descrito acima, é a comunicação, “na interação com outros profissionais de saúde e o público em geral”.321 Esta habilidade tem uma função muito importante em toda a discussão deste capítulo. Já vimos como foi importante para o progresso, e agora vou tratar da relação entre comunicação e esclarecimento na nossa atuação profissional. Kant reconhece na comunicação recíproca, “uma vocação natural da humanidade”, especialmente, quando “diz respeito ao homem em geral”.322 O que diz respeito ao homem em geral é o que nos é dado pelo ponto de vista cosmopolita do homem, isto é, do homem como cidadão do mundo. Em qualquer lugar que habite, o homem deverá ter o alimento que garanta sua vida, e é tarefa do Nutricionista declarar ao público, de qualquer lugar do mundo, a alimentação como direito universal. Parto, então, da consideração do uso do termo “Declaração” (de origem francesa), segundo expõe a historiadora Lynn Hunt, isto é, como um modo público de afirmar algo, de modo solene ou formal. De acordo com a autora, as declarações, “mais do que assinalar transformações nas atitudes e expectativas gerais [...] ajudaram a tornar efetiva uma transferência de soberania”.323 É o que expressa a Declaração francesa, em que “os representantes do povo [...] resolveram apresentar numa declaração solene os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem”.324 Proclamar a Declaração foi um ato soberano de um povo que se deu uma constituição e isso é o que confere poder àquele que declara. Não tivemos aqui uma revolução, mas a alimentação foi reconhecida como direito social na nossa Constituição. Entretanto, não deixa de ser lamentável que se possa, ainda nos dias de hoje, no Brasil, afirmar a ausência do povo, especialmente pela fala, que é o modo de afirmar 320 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA/MEC. Conselho Nacional de Educação/CNE. Câmara de Educação Superior/CES. Resolução nº 5/2001, art. 3º, I. 321 MEC/CNE, Resolução nº 5/2001, art. 4º. 322 DC, A 267, p. 92. 323 HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Cia das Letras, 2009, p. 113. 324 Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Disponivel em http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/dec1793.htm. Acesso em 18 abr 2015. 110 sua soberania.325 Fábio Konder Comparato, ao tratar do sentido e alcance do processo eleitoral no regime democrático de representação, assim avalia a condição brasileira: A partir de 1945, quando o número de votantes nas eleições nacionais cresceu progressivamente, de 16% da população a mais de 50% nos anos 80 em diante, o grande desafio para os grupos ou classes dominantes consistiu, justamente, em admitir o funcionamento do mecanismo eleitoral sem que a maioria do povo assumisse, em razão de sua esmagadora predominância numérica, as rédeas do Estado.326 Temos, portanto, uma condição historicamente desfavorável ao esclarecimento, apesar da nossa constituição atual ser republicana e do nosso progresso jurídico no que se refere à positivação do direito à alimentação. Mas também no caso específico da segurança alimentar, a situação preocupa; basta analisarmos a organização do SISAN (Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), que requer a participação da sociedade civil organizada na formulação e implementação de políticas, planos, programas e ações com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada.327 O artigo 8º da LOSAN estabelece os seguintes princípios de organização daquele sistema: I – universalidade e eqüidade no acesso à alimentação adequada, sem qualquer espécie de discriminação; II – preservação da autonomia e respeito à dignidade das pessoas; III – participação social na formulação, execução, acompanhamento, monitoramento e controle das políticas e dos planos de segurança alimentar e nutricional em todas as esferas de governo; e IV – transparência dos programas, das ações e dos recursos públicos e privados e dos critérios para sua concessão. Recordo que Conselhos e Conferências foram criados para possibilitar a 325 A respeito do “mutismo brasileiro” ver LIMA, Venício A. de. História, fronteiras conceituais e diferenças. Palestra. Disponível em http://observatoriodaimprensa.com.br/jornal-de- debates/_ed749_historia_fronteiras_conceituais_e_diferencas/. Acesso em 30 abr 2015. 326 COMPARATO. Fabio K. Sentido e alcance do processo eleitoral no regime democrático. Estudos Avançados. 14 (38), 2000, p. 135. 327 O Estado do Rio Grande do Norte, embora tenha instalado o Conselho Estadual de SAN, até o momento, não tem uma Política Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional. 111 participação e o controle social.328 Uma das competências do CONSEA, estabelecidas no art. 2º do Decreto 7272/2006, é “zelar pela realização do direito humano à alimentação adequada e pela sua efetividade”, no entanto, continuamos na condição de infante, apesar de não termos a censura como nos tempos de Kant, e todos, inclusive os filósofos, poderem falar e ser ouvidos, já que a publicidade é também um preceito constitucional. Se o que realmente precisamos é “uma verdadeira reforma do modo de pensar”, e para isso, nada mais se exige do que a liberdade no uso público da razão, então, é por meio desse uso que chegaremos ao esclarecimento, ou seja, se se dá a liberdade de uso da razão, o público se ilumina por si mesmo. Porém, de que se trata esse uso público da razão e em que se distingue do uso privado? Para responder a isto, começo citando Kant: “Por uso público da própria razão entendo aquele que qualquer um, enquanto erudito, dela faz perante o grande público do mundo letrado. Chamo uso privado àquele que alguém pode fazer da sua razão num certo cargo público ou função a ele confiado.”329 Inicialmente, julgo necessário, para entender a citação acima, esclarecer os grifos do autor, pois, à primeira vista, se pode pensar que o uso público da razão estaria restrito a uma categoria, a dos eruditos, perante um público também restrito, o do mundo letrado; restaria aos que ocupam cargos públicos apenas o uso privado da razão, sendo este limitado a uma comunidade específica, no exercício da profissão. De fato, ao tratar novamente do tema na obra O Conflito das Faculdades, Kant chama de eruditos os mestres públicos, professores das universidades – eruditos corporativos – e os independentes que não fazem parte das universidades e sim de corporações livres do saber, como sociedades e academias, além dos 328 A respeito disso, ver WENDHAUSEN, Águeda. O duplo sentido do controle social: (des) caminhos da participação em saúde, A autora constata, no caso dos conselhos de saúde, que só a presença dos usuários não qualifica sua participação, o governo se utiliza da maior parte dos espaços de fala, em função das relações desiguais (quanto às diferenças de escolaridade, profissionalização, status social), caracterizando relações de saber/poder, sendo as resistências pontuais, frágeis e desarticuladas. Disso, a autora conclui que “a institucionalização da participação não garante sua efetivação e as práticas que temos podem, contrariamente, voltar-se contra a democracia, tornando-se, o conselho, um braço popular que serve apenas à legitimação das políticas governamentais” disponível em http://hygeia.fsp.usp.br/cepedoc/trabalhos/Trabalho%20543.htm. Acesso em 13 maio 2015. A situação na saúde é espelho do que acontece nos conselhos gestores em geral respeito da participação e o exercício do controle social em SAN, há vários trabalhos reportando as dificuldades encontradas, tais como fragilidade da organização popular; dificuldade de acesso à educação de qualidade e acesso a informações, baixa representatividade. In: SILVA, Maria Ozanira da Silva e. Participação social nas políticas de segurança alimentar e nutricional. Revista de Políticas públicas. 2005, 9, (2). Os próprios movimentos sociais estão conscientes do problema. Cf. http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Direitos-Humanos/Entidades-apontam-fragilidades-no- controle-social-de-programas/5/3753. Acesso em 10 mai 2014. O melhor exemplo do desacordo entre a vontade popular e as decisões do governo será dado com a discussão sobre alimentos transgênicos no último capítulo. 329 Resposta, A 485, p. 13, grifos do autor. 112 que vivem num estado de natureza da erudição, chamados amadores.330 Os letrados constituem outra categoria de eruditos, aquela que está investida em um cargo público e, por isso, funcionam como “instrumentos do governo, para um fim peculiar seu (não precisamente para o maior bem da ciência)”.331 A estes técnicos do saber, rigorosamente mantidos na ordem pelo governo para cumprir sua função pública, cujos princípios fundamentais emanam apenas dos sábios, só é exigido “o conhecimento empírico dos estatutos da sua função (portanto, no tocante à prática)”.332 Kant diz ainda que eles não são livres para fazer uso público do saber “porque se dirigem diretamente ao povo, composto de ignorantes (como, porventura, o clero aos leigos) e detêm em parte, na sua especialidade, o poder executivo, se não legislativo”.333 Todavia, é preciso fazer a ressalva, que este uso no Conflito é limitado ao contexto do debate científico entre as faculdades superiores e a faculdade de filosofia.334 Nada impede qualquer erudito de se dirigir por escrito a um público letrado, como parte de um conflito legal com a faculdade filosófica, que a tudo deve examinar segundo os princípios da razão. É neste conflito que a filosofia exerce o seu papel de examinar a verdade de cada ciência.335 É oportuno destacar, entre os dois textos (Resposta e Conflito), uma distinção que será importante para minhas considerações sobre o papel do Nutricionista, pois se coloca no âmbito de uma disputa política com as ciências. No primeiro texto, Kant está especialmente preocupado com as coisas da religião, chegando mesmo a afirmar que “em relação às artes e às ciências os nossos governantes não têm interesse algum em exercer a tutela sobre os seus súbditos”;336 já no segundo texto, torna-se evidente que o governo também quer exercer seu poder sobre as ciências,337 por exemplo, no conflito entre a faculdade de medicina e a faculdade de filosofia, Kant fala sobre o papel do médico, o qual, como um instrumento do governo, não é livre para 330 CF, p. 19-20. 331 CF, p. 20. 332 CF, p. 20. 333 CF, p. 20. 334 O termo “Streit” (conflito), segundo uma pesquisa no léxico da época, aparece também na expressão técnica “Streitsschriften”, que quer dizer escritos polêmicos, referindo-se a uma tipologia de escritos em busca da verdade ou falsidade de uma matéria que foi exposta por outrem, e que é demonstrada publicamente seguindo apenas as regras da razão. Tratava-se, portanto, de um tipo específico de debate científico. Cf. DI DONATO, Francesca. Università, scienza e política nel conflitto dele facoltà di Kant. 4. Il “conflitto” tra le facoltà: principi e condizioni. Bolletino telematico di filosofia política. Disponível em http://btfp.sp.unipi.it/dida/streit/. Acesso em 08 abr 2015. 335 O termo usado para designar aquele confronto necessário entre as faculdades superiores e a faculdade inferior – é transposto por Kant também para o âmbito político, quando ele diz que as faculdades superiores, como ala direita do parlamento da ciência, representariam o partido do governo, e a faculdade de filosofia seria o “partido de oposição (ala esquerda), CF, p. 40. 336 Resposta, A 492, p. 18. 337 Até mesmo a divisão das faculdades é criticada por Kant, na medida em que seguiu um critério empírico, segundo a ordem do governo e não a ordem dos eruditos que teria proporcionado uma idéia da razão como critério para aquela divisão (CF, p. 21). 113 fazer uso público do saber, devendo submeter-se à censura de sua faculdade, no que diz respeito à polícia médica, que é interesse do governo.338 Outra diferença é que, no primeiro texto, mesmo defendendo a necessidade de sair da menoridade, Kant parece aceitar que em certos casos não seja permitido raciocinar, mas sim obedecer, quando se trata de “assuntos que têm a ver com o interesse da comunidade”, nos quais “é necessário um certo mecanismo em virtude do qual alguns membros da comunidade se devem comportar de um modo puramente passivo”, para, “mediante uma unanimidade artificial serem orientados pelo governo para fins públicos ou que, pelo menos, sejam impedidos de destruir tais fins”.339 Ora, um destes fins é a saúde, então, como o povo poderia ser passivo e apenas receber as orientações de quem pode fazer isso por ele, ou seja, dos profissionais de saúde? Restaria ao povo, apenas a cômoda condição de menoridade que dele não exige qualquer esforço? Seria a saúde apenas uma questão técnica e não política? Cabe, então, ao Nutricionista um papel meramente de “técnico do saber”? Não é isso que Kant defenderia. Vimos que, a serviço do governo, aqueles profissionais, a quem só cabe fazer uso privado da razão, não podem contradizer suas doutrinas, ainda que não concordem com elas, o que comprometeria o esclarecimento, se se deixa o povo a depender somente das orientações desses agentes públicos. Ocorre que, tanto os profissionais como qualquer cidadão não devem ser impedidos de, como erudito, expor em público suas ideias contra a inconveniência ou injustiça de tais prescrições para que outros as julguem.340 A única liberdade necessária à ilustração é a de fazer uso público da razão, portanto, Kant só poderia entender que qualquer um estaria apto a fazer este uso, dado que a liberdade é um direito natural. Na verdade, é quase inevitável que o público se esclareça, uma vez que lhe seja concedida a liberdade de uso público da razão. No caso da situação brasileira, vimos que algumas condições estão postas para o esclarecimento do povo, mas é preciso que este participe ativamente. Como dito antes, a liberdade de pensamento só se realiza quando este pensamento é comunicado ao público, e isto decorre do que Kant chama direito originário e sagrado da razão humana de “não conhecer nenhum outro juiz senão a própria razão humana universal, onde cada um tem a sua voz”.341 O que o cidadão comum precisa, portanto, é apenas a liberdade de usar o espaço público 338 CF, p. 29-30. 339 Resposta, A 485, p. 13-14. 340 Resposta, A 486, p. 14. 341 CRP B 780. 114 para comunicar sua razão e, neste espaço que é público, submeter-se à crítica, afinal, Kant sabia que sua época era a época da crítica e tudo a ela devia submeter-se, uma vez que a razão só concede respeito “a quem pode sustentar o seu livre e público exame”.342 Disso segue que a esfera do grande público não pode ser limitada, e qualquer um pode sair da menoridade, não sem esforço, porém, haja vista que, para alguns, a menoridade já se tornou “quase uma natureza”.343 Certamente, no processo de esclarecimento pelo uso público da razão, surgem dificuldades, como também era do conhecimento de Kant à sua época. Ele afirma que “pela grande diferença no modo como as mentes consideram exatamente os mesmos objetos e se consideram mutuamente, [...], a natureza produz um espetáculo digno de ser visto no palco dos observadores e pensadores infinitamente distintos em sua espécie”.344 É nesse palco, porém, que há de emergir a verdade, e como tal, não será como aquilo aceito por alguém que na condição de menor (observador) apenas tomou para si o pensamento que afirmou o outro. No palco da verdade não pode faltar a filosofia, com seus princípios e regras do pensar, quais sejam: pensar por si mesmo, isto é, não ser coagido; pensar de modo liberal, isto é, colocando-se, na comunicação com seres humanos, no lugar do outro; e pensar de modo coerente, isto é, sempre de acordo consigo mesmo.345 Pensar por si mesmo nada mais é do que procurar na própria razão “a suprema pedra de toque da verdade”, ou seja, examinar se o princípio pelo qual se admite algo pode ser universalizado.346 O grande problema parece ser, então, como qualquer cidadão pode se tornar um erudito e assim poder falar, deixar de ser infante e submeter-se à crítica, criticando.347 Se, por um lado, pode ocorrer, como ainda hoje, que a maioria dos homens considere difícil e perigosa a passagem para a maioridade, por outro lado, é porque nunca se lhe permitiu – como no caso brasileiro retratado por Pe. Vieira – sequer tentar. Manter-se nessa direção seria escolher a contramão do progresso para o melhor. Assim colocado, vejamos o que pode ocorrer se permanece o problema da menoridade, quando numa condição de permanência desejada, isto é, quando o povo toma os agentes públicos como verdadeiros taumaturgos, e leva o governo a ceder às inclinações populares, e 342 CRP, A XI. 343 Resposta, A 483, p. 12. 344 Antr. 228, p. 126. 345 Antr. 228, p. 126. 346 Orientar-se, p. 55, nota. 347 Nesse sentido, parece que pior do que não falar, é sequer dar o primeiro grito, como faz o recém-nascido, porque “vê como coerção sua incapacidade de se servir de seus membros”, anunciando “seu direito à liberdade” (Antr. § 82, 269, p. 166). 115 até influenciar as doutrinas da Universidade. Em tal cômoda situação, poderia nem mesmo ser necessário declarar a alimentação como direito humano, ou ensinar nas universidades a doutrina do direito aos futuros profissionais, considerando que estes, na sua função de agentes públicos, não poderiam criticar as políticas ou as leis vigentes, nem tampouco apresentar suas contradições com o direito estabelecido; como técnicos do saber, esses nutricionistas exerceriam sua função levando às pessoas os argumentos utilitaristas orientadores das políticas do governo, sem contestar sequer sua eficácia, à luz da realidade de saúde do povo. De fato, não se afirmando o direito, o povo nada poderia exigir, mas bem poderia ficar satisfeito na condição de beneficiários de programas sociais compensatórios da falta do direito, assim como com as indicações profissionais sobre regras dietéticas, tendo em vista sua saúde e felicidade, mesmo sem acesso à alimentação saudável, afinal, para quem vive na menoridade, a alimentação nada mais pode ser do que um conjunto de regras pragmáticas, visando ao próprio bem-estar corporal. Nosso filósofo teria razão: “preceitos e fórmulas, instrumentos mecânicos do uso racional ou, antes, do mau uso dos seus dons naturais, são os grilhões de uma menoridade perpétua”.348 Ao exigir o respeito às normas de regulação pública da saúde, por exemplo, o Nutricionista no exercício de sua função na vigilância sanitária – equivalente da polícia médica à época de Kant – nada poderia criticar, não poderia tornar público como aqueles preceitos foram estabelecidos, suas falhas, nem a quais interesses (secretos) estavam atendendo. As Ciências da Saúde, aí incluída a Nutrição são, sem dúvida, portadoras de muitos grilhões, na forma de preceitos e fórmulas, portanto, seus profissionais poderiam atuar sobre o povo não para esclarecê-los, mas para mantê-los sob seu jugo. Teríamos aquele estado em que, de um lado, o povo que quer ser dirigido e dominado, de outro, o profissional – como tutor da boa vontade – que toma para si a responsabilidade de estabelecer o melhor benefício para o povo, a quem não caberia se esforçar. É diante de tal possibilidade que se impõe a necessidade do esclarecimento para os profissionais e a exigência de coragem para expor seus pensamentos publicamente, inclusive para criticar as doutrinas ensinadas no âmbito privado e até leis já aprovadas, bem como para propor novos estatutos. É o que Kant esperaria de um “erudito não 348 Resposta, A 483, p. 12. 116 egoísta”,349 um verdadeiro homem de ciência. O que quero afirmar é que o esclarecimento do Nutricionista passa por reconhecer na sua ciência algo que não deve residir apenas naqueles da sua categoria profissional, mas deve ter por finalidade uma aplicação ao mundo, e isso vai exigir o uso público da razão. Entretanto, apesar dos espaços atualmente estabelecidos por conselhos e conferências, ainda é necessário ampliar o debate naquela dimensão do que Kant considerava “público”, onde o povo não seja mero expectador, ou seja, a participação popular deve ter força suficiente para modificar o estado de coisas, tendo em vista o desacordo entre as propostas de conferências e as decisões do governo, como ocorreu no caso da liberação de cultivo das sementes transgênicas, apresentado no último capítulo. Assim sendo, para a defesa do DHAA, é preciso que se discuta como fazê-lo, o que só pode ocorrer no espaço público do qual o Nutricionista deve ser ator permanente, orientado pela filosofia, de modo que possa ver a sua ciência, nesse debate com o público, pelos olhos dos outros. Apresento, a seguir, o papel fundamental da sociabilidade para a defesa de um DHAA, como uma questão não apenas técnica e pragmática, mas política e moral. 3.2.2 A alimentação como parte da sociabilidade Como exposto anteriormente, a participação dos espectadores foi um aspecto fundamental na análise kantiana da revolução francesa. Tratava-se de uma participação segundo o desejo, na fronteira do entusiasmo, isto é, como participação no bem com paixão,350 que só podia ter como causa, dada a sua universalidade, “uma disposição moral no gênero humano”,351 cujo fim era a constituição republicana. Estavam todos, de algum modo, tomados pelo entusiasmo, segundo Kant: os revolucionários, por se saberem defensores do direito do povo; 349 Kant usa a figura do ciclope para referir-se ao egoísta da ciência, aquele erudito a quem falta humanidade, pela ausência de convivência com o outro, que lhe propicie outro ponto de vista sobre seu saber. Cf. Reflexão 903, apud CONCEIÇÃO, Jorge Vanderlei Costa da. Anthropologie transscendentalis: uma reorientação da teoria dos juízos em Kant. Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 2, p.131-149 jul.– dez., 2013, p. 131. O segundo olho, diz Kant, é o “autoconhecimento da razão humana, sem o qual não possuímos nenhuma medida ocular da grandeza de nosso conhecimento” (ib.). Battaglia, tratando do mesmo tema, faz a observação que rejeitar o cientista egoísta, defendendo a humanidade, não é contraditório com a defesa da autonomia do pensamento, pois esta não significa encorajar o pensamento egoísta, mas buscar independência da tradição recebida passivamente, atribuindo à validade da ampliação dos nossos conhecimentos prévia avaliação crítica de suas premissas. O segundo olho seria o direito da razão de por à prova seus próprios princípios. Cf. BATTAGLIA, Fiorella. Filosofia trascendentale: la posizione dell’uomo nella filosofia critica di Kant. Dottorato di ricerca in filosofia e politica. Università degli studi di Napoli. 2002-2003. 350 Kant não pode deixar de reconhecer algo de reprovável no entusiasmo que, como paixão, merece censura, mas nesse caso, está associado a um ideal moral. 351 CF, § 6, p. 102. 117 o povo, ainda que expectador, pela simpatia que tal entusiasmo provocava; já os inimigos da revolução não chegaram à grandeza da alma dos revolucionários e viram esvanecer seu ideal de nobreza guerreira. Nesta seção, vou relacionar a visão kantiana sobre esse acontecimento com o pensamento da historiadora Lynn Hunt na obra A invenção dos direitos humanos (2009), na qual, a autora, ao buscar a gênese da ideia de direitos humanos, aponta a importância do romance e seus efeitos psicológicos.352 Na hipótese de Hunt, ao usar a narrativa do envolvimento, e não discursos moralizadores explícitos, o romance afetava a moralidade de um modo diferente, tornando os leitores mais compreensivos em relação aos outros.353 Por isso, a autora pergunta se seria coincidência que os três maiores romances de identificação psicológica do século XVIII tenham sido publicados no período imediatamente anterior ao surgimento dos “direitos humanos”, que teve na Declaração francesa seu marco mais significativo. Para Hunt, a massificação das histórias de sofrimento narradas nos romances levou a uma identificação imediata com suas heroínas, o que propiciou um clima favorável à aceitação da ideia de direitos humanos, a partir do sentimento de empatia e igualdade. Desse modo, poder- se-ia afirmar que a mudança social e política que representou o advento dos direitos humanos ocorreu porque: “muitos indivíduos tiveram experiências semelhantes, não porque todos habitassem o mesmo contexto social, mas porque, por meio de suas interações entre si e com suas leituras e visões, eles realmente criaram um novo contexto social”.354 Ao apresentar os personagens como seus semelhantes, por partilharem dos mesmos sentimentos íntimos e o desejo de autonomia, a leitura dos romances “criava um senso de igualdade e empatia por meio do envolvimento apaixonado com a narrativa”,355 e os leitores 352 A autora relata especificamente três romances, que tem em comum, além do sucesso extraordinário, o fato de terem no título nomes femininos: Pamela (1740) e Clarissa (1747-8) de Richardson e Júlia, ou a nova Heloísa de Rousseau, publicado em 1761. Cf. HUNT, 2009, op. cit.. Kant, na nota 17 das Observações sobre o belo e o sublime, cita o terceiro romance epistolar de Richardson, A História de Sir Charles Grandison (1753-4), em uma crítica a quem prefere ler Robinson Crusoé; na Antropologia (327, p. 221), ele também faz referência ao romance de Rousseau A nova Heloísa, cuja intenção seria criticar a suposta moralização por meio de uma educação contrária à natureza, e o dano que isso teria causado à nossa espécie. Kant critica Rousseau por considerar o estado de natureza como um estado de inocência, “maculado” por aquele tipo de educação, mas entende que o romance citado, bem como O Discurso sobre as ciências e as artes, e Sobre a desigualdade, teriam servido como fio condutor para obras como o Emílio e o Contrato Social, lançando um olhar retrospectivo para aquele estado originário de inocência. 353 Considere-se, por exemplo, o que foi apresentado no capítulo anterior, sobre as origens da DUDH/ONU, em que foi também após um momento de graves conflitos que se chegou a um consenso acerca de direitos universais, inclusive o direito à alimentação. A experiência da fome e da escassez de alimentos durante as duas grandes guerras certamente contribuiu para essa consciência universal, que se expressou no reconhecimento de que todos tem o mesmo direito. 354 HUNT, 2009, op. cit., p. 33. 355 HUNT, 2009, op. cit., p. 39. 118 aprendiam a estender o seu alcance de empatia para além das fronteiras tradicionais. Tal identificação, por exemplo, é reconhecida por Diderot, acerca do romance Clarissa de Samuel Richardson. O autor do artigo sobre o direito natural para a enciclopédia iluminista admite que “as paixões que ele pinta são as que sinto em mim mesmo”.356 No elogio que escreve por ocasião da morte de Richardson, Diderot afirma: “nós nos sentimos atraídos para o bem com uma impetuosidade que não reconhecemos. Quando confrontados com a injustiça, experimentamos uma aversão que não sabemos como explicar para nós mesmos.”357 O próprio Rousseau, que tanto influenciou Kant, ganhou atenção internacional um ano antes de publicar O Contrato Social, com a publicação do romance Júlia, ou a nova Heloísa (1761), numa alusão à Heloísa de Abelardo tão famosa no período medieval.358 Os leitores imediatamente se identificaram com Júlia, e o Journal des Savants admitiu que somente os de coração empedernido podiam resistir às “torrentes de emoções que tanto devastam a alma, que provocam de forma tão imperiosa e tirânica lágrimas tão amargas”.359 Na análise de Hunt, a leitura de Júlia predispôs os leitores a uma nova forma de empatia, pois, o tema principal do romance era a paixão, o amor e a virtude, de modo que, “Júlia encorajava uma identificação extremamente intensa com os personagens e com isso tornava os leitores capazes de sentir empatia para além das fronteiras de classe, sexo e nação”.360 Segundo Hunt, “essa identificação mostrava como o despertar de uma paixão podia ajudar a transformar a natureza interior do indivíduo e produzir uma sociedade mais moral”.361 Thomas Jefferson, outro amante do romance, acreditava que este tipo de leitura produzia “o desejo de imitação moral com uma eficácia ainda maior que a da leitura de história”.362 Evidente que nem todos iriam pensar assim. Aqueles para quem os romances eram causa de degeneração moral, representantes do clero católico e protestante, bem como médicos, em geral, julgavam que a leitura de romances era causadora de perdas (de fluidos vitais, moralidade e religião), por estimular o que tinha de pior no indivíduo. Hunt, ao contrário, pensa que a identificação provocada pelos romances, no que levou as pessoas a pensarem a igualdade, possibilitou o florescimento dos direitos humanos. Os leitores se viram capazes de criar por sua 356 apud Hunt, 2009, op. cit., p. 55. 357 apud Hunt, 2009, op. cit., p. 56. 358 A história do romance, condenado pelos costumes da época, entre a jovem Heloísa de 17 anos e o importante filósofo Abelardo, vinte anos mais velho, ocorreu no século XII, e foi eternizada nas cartas trocadas entre os amantes após a separação que consumou o trágico destino de cada um: ela no convento, ele no monastério. 359 apud Hunt, 2009, op. cit., p. 36. 360 HUNT, 2009, op. cit., p. 38. 361 HUNT, 2009, op. cit., p. 58. 362 HUNT, 2009, op. cit., p. 57. 119 própria conta um mundo moral, no que ela chama de “moralização empática”, fazendo da natureza interior dos humanos a base para autoridade social e política. É visível a aproximação entre esta análise de Hunt sobre a influência dos romances no período de fundação dos direitos humanos e a forma como Kant expressou o entusiasmo da população pela Revolução Francesa, uma manifestação que só podia ser causada por uma disposição moral no gênero humano, um tipo de disposição para o bem. Além disso, o reconhecimento de ser igual como todos os outros, como copartícipes nos dons da natureza, foi, para Kant, mais importante na constituição da sociedade do que mesmo o amor e a inclinação. Ele reconhece o fundamento da ilimitada igualdade entre os seres humanos na sua condição de fim da natureza. Uma vez que todos os outros seres podem ser considerados meios, e apenas o homem é fim, então, ninguém pode ser feito meio para ninguém. Esta condição de igualdade não apenas possibilitou, como exigiu o direito, tendo em vista as inclinações humanas que ameaçam constantemente esta igualdade.363 Vimos antes (3.1.1) que o termo disposição, em Kant, é sempre associado ao “natural”, algo que já está presente também na natureza humana e por meio do que a natureza realiza seu propósito no homem: conservar a espécie, para que realize sua destinação. Foi no ensaio Ideia que Kant primeiro apresentou a sociabilidade insociável como uma característica fundamental do homem, representada por um antagonismo de tendências,364 causa de uma ordem legal de todas as suas disposições.365 Se “no curso dos afazeres humanos há todo um exército de dificuldades que aguardam o homem”,366 para lidar com essas dificuldades, o homem conta, em sua própria natureza, com o antagonismo das disposições, isto é, ao mesmo tempo em que é inclinado a entrar em sociedade – porque neste estado se sente mais como homem – também apresenta uma propensão a resistir e se isolar.367 O resultado disso é que temos, por um lado, a sociabilidade, que permite o pleno desenvolvimento das nossas disposições naturais, por outro lado, a insociabilidade, que nos leva a esperar resistência de todos, tal como a sabemos dentro 363 Conjecturas, 2010, 114, p. 22. 364 A respeito da sociabilidade humana, já tematizada em Aristóteles, como a distinção entre viver em sociedade ou não, ao contrário do antagonismo kantiano, ver BACH, 2007, op. cit., p. 142-144. 365 Ideia, 4ª prop. 366 Ideia, 3ª prop. 367 Na Religião Kant esclarece a relação entre propensão e inclinação: propensão é o fundamento subjetivo da possibilidade de uma inclinação (desejo habitual, concupiscentia), na medida em que ela é contingente para a humanidade em geral; apesar de poder ser inata, é permitido pensá-la (quando é boa) como adquirida ou (quando é má) como contraída pelo próprio homem; a inclinação pressupõe conhecimento do objeto do apetite. Propensão é, na verdade, uma predisposição para a ânsia de uma fruição; quando o sujeito faz a experiência desta última, a propensão suscita a inclinação para ela. Entre a propensão e a inclinação, encontra-se o instinto, que é uma necessidade sentida de fazer ou saborear algo de que não se tem ainda conceito algum. Uma propensão que se pode aceitar como universalmente inerente ao homem (logo, como pertencente ao carácter da sua espécie), é o que se chama inclinação natural (Rel, p. 34-5). 120 de nós. Essa resistência, no entanto, é o que desperta no homem todas as suas forças para “vencer a inclinação para a preguiça e, movido pela ânsia das honras, do poder ou da posse, para obter uma posição entre os seus congéneres, que ele não pode suportar, mas de que também não pode prescindir”.368 É pelo antagonismo que acompanha a sociedade humana que o homem dá “os primeiros passos verdadeiros desde a brutalidade para a cultura”,369 e sendo a guerra o meio usado pela natureza para obtenção daquele fim que a razão humana impõe ao homem como obrigação moral, a sociabilidade aparece como fundamento da constituição civil, e o dever de participar dela, como dever de direito, torna-se inevitável. Embora, num primeiro momento, Kant estabeleça a constituição dessa sociedade como “patologicamente provocada”, levando a crer que é apenas antropológico o primeiro sentido de sociabilidade, sem caráter legal ou político, muito menos, moral, na falta desse mesmo antagonismo não seria possível a sociedade civil, nem qualquer outro progresso, de modo que a sociabilidade serve ao homem, seja na condição de animalidade, seja na condição de humanidade. Dito de outra forma, sem um limite para este mecanismo natural do antagonismo – pela coerção externa segundo leis universais – a tendência humana ao dissenso levaria à extinção da espécie, o que seria já contraditório com a finalidade da natureza; na verdade, as tendências egoístas dos homens devem ser aproveitadas em prol da sua conservação numa comunidade. Por conseguinte, pode-se conceder à sociabilidade um caráter legal, pois, por meio dela, um povo pode constituir uma república duradoura, porém, é preciso que se vincule a sociabilidade ao conceito de humanidade, para evitar uma república de demônios,370 e constituir um Estado como “sociedade de homens”. Kant reconhece que não basta apenas a união pelas leis, ainda que motivada pelas tendências egoístas, que leve cada um a refrear seus sentimentos, é preciso que os homens se sintam obrigados moralmente; é da boa constituição do Estado, porém, que se deve esperar a boa formação de um povo. Disso se vê que o antagonismo das forças contrárias não leva à neutralidade, pelo contrário, por meio dessa discórdia, de que resultam sucessivas guerras, levando ao povoamento de toda a terra e ao surgimento do direito, a natureza faz brotar a concórdia entre os homens, possibilitando o progresso. Como o progresso só pode ser da espécie, Kant identifica nesse germe da discórdia o característico da espécie humana, comparada com possíveis seres racionais em geral.371 368 Ideia, 4ª prop., grifos do autor. 369 Ideia 4ª prop. 370 PP, p. 77. 371 Antr., 322, p. 216. 121 No ensaio sobre a Religião (1793), a respeito da disposição originária para o bem na natureza humana, Kant diz que as disposições de um ser são “tanto as partes constituintes para ele requeridas como também as formas da sua conexão para ser semelhante ser”,372 logo, não basta estudar as disposições em si, separadamente, é necessário buscar identificar a relação entre elas. As disposições para o bem são consideradas originárias, não pelo fato de serem inatas, mas sim porque pertencem à possibilidade mesma da existência da natureza humana enquanto espécie, isto é, sem elas, a natureza humana não seria tal; são elas que imediatamente se referem à faculdade de desejar e ao uso do arbítrio.373 Três são as classes de disposições originárias para o bem, características da natureza humana: a disposição para a animalidade do homem como ser vivo; disposição para a humanidade enquanto ser vivo e racional; e a disposição para sua personalidade, como ser racional e, ao mesmo tempo, suscetível de imputação. De acordo com tal classificação, a disposição para a animalidade corresponde a uma disposição para o amor a si mesmo físico, simplesmente mecânico, portanto, para a qual não se requer a razão; essa disposição pode ter em vista três fins: a conservação de si próprio, a propagação da sua espécie, e “o impulso à sociedade” que tem em vista a comunidade com outros homens.374 Sobre isso, faço uma observação crítica para poder considerar a disposição para a animalidade, no caso da alimentação e tendo em vista aqueles fins,375 como uma disposição para o manejo das coisas, isto é, mecânica, porém vinculada à consciência, portanto, técnica, que se utiliza da razão, conforme terminologia utilizada por Kant, ao tratar das disposições de caráter da espécie na Antropologia de um ponto de vista pragmático. Quando expõe a caracterização do ser humano como um animal racional, Kant diz que esta caracterização já está contida “na simples forma e organização de sua mão, de seus dedos e pontas de dedos, em parte na estrutura, em parte no delicado sentimento deles”.376 Ele quer dizer com isso que a natureza tornou o homem apto para todas as formas de manejo das coisas, indefinidamente, portanto, para o emprego da razão, daí a disposição técnica ser de um animal racional. A partir disso, relaciono a sociabilidade com a disposição para a humanidade, por sua relação com o conceito de dignidade, fundamental para a doutrina dos deveres. Meu interesse 372 Rel., p. 34. 373 Rel., p. 34. 374 Rel., p. 32. 375 A complementação dessa defesa, no que se refere à conservação de si, será explicitada a partir da doutrina da virtude, discutida no próximo capítulo. 376 Antr., 324, p. 218, grifos do autor. 122 é colocar a sociabilidade como elemento importante a ser trabalhado pelo Nutricionista na defesa do DHAA,377 para o que reflito sobre a seguinte questão: em que circunstâncias, no tocante à alimentação, o homem usaria a razão, mesmo na sua condição de animalidade, ao contrário dos outros seres vivos não racionais? Ora, sabemos que não há qualquer instinto animal para produzir o fogo, como há, por exemplo, para a construção de ninhos, o que faz com que, por natureza, qualquer ser vivo coma apenas cru, enquanto o homem é o único que pode comer cozido. A descoberta do fogo e sua utilização para a produção de alimentos, certamente, exigiu habilidades técnicas, portanto, o uso da razão, e muito antes do estado civil, o que nos leva a pensar em um tipo de animalidade humana distinta daquela dos outros seres vivos,378 em que artefatos eram produzidos para a mera conservação física do indivíduo. O fogo não levou o homem à sociedade civil, mas certamente o tirou da animalidade bestial.379 O que quero dizer, no que se refere à alimentação, é que a animalidade como disposição que não utiliza a razão não parece ser uma disposição compartilhada entre seres humanos e outros seres não racionais, visto que a garantia da animalidade em nós requer também desenvolver o que é característico da espécie, isto é, nossas disposições para o uso da razão, mesmo naqueles aspectos considerados “simplesmente mecânicos”, como é o caso da busca e produção do alimento para conservação de si próprio. Além do elemento distintivo da descoberta do fogo, e isso muito antes de qualquer estado civil, no homem, ao contrário do que ocorre com as outras espécies, a busca por alimentos pode ainda gerar vícios, os quais “não brotam por si mesmos da disposição”.380 Kant considera a gula, por exemplo, um vício da brutalidade da natureza, um desvio do fim natural, até bestial, o que nos permite pensar uma obrigação de usar a razão para atender 377 Retorno ao tema das disposições, conforme apresentadas na Antropologia, e também na Pedagogia, no próximo capítulo. Na análise de Wilson, embora na Antropologia Kant não mencione a predisposição para a animalidade, e na Religião não discuta a predisposição técnica, não há qualquer inconsistência, na medida em que se trata de propósitos distintos: na Antr. Kant quer evidenciar no que o homem se distingue dos outros seres vivos, enquanto que na Rel. ele quer descobrir a fonte do mal nos seres humanos. Cf. WILSON, Holly L. Kant’s pragmatic antropology: its origin, meaning and critical significance. SUNY series in Philosophy, 2006, p. 61-62. Segundo Wilson, a animalidade pode ter um papel na origem do mal, mas não a disposição técnica. Talvez hoje não se possa mais considerar assim, devido ao avanço da tecnologia, como apresento no último capítulo. 378 Considera-se com isso a passagem do homem da condição biológica para a social. Os mitos da descoberta do fogo são descritos por LÉVI-STRAUSS, C. O cru e o cozido. Mitológicas. Vol. 1. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. 379 Na mitologia grega, foi Prometeu que, roubando o fogo dos deuses para doá-lo aos homens, tornou possível a existência humana, pelo domínio das técnicas e inteligência. Sobre a conexão entre o mito de Prometeu e o iluminismo ver AZAMBUJA, Celso Candido. Prometeu: a sabedoria pelo trabalho e pela dor. Archai, n. 10, jan- jul, p. 19-28. 380 Rel., p. 32. 123 àquela necessidade, ainda que tendo em vista apenas nossa conservação física. Precisar da razão para a mera conservação física do corpo já coloca a alimentação no campo prático, de modo que a conservação de si próprio não pode ser vista como fim de uma disposição apenas mecânica. Pensar numa animalidade humana meramente mecânica que dispensa a razão, seria negar o próprio caráter da natureza humana, como se fosse possível isolar seu componente sensível do inteligível.381 A natureza deste sujeito mantém unidos, de forma inseparável, tanto o ser livre como o ser submetido às leis da natureza. É esta indefinição ou indeterminação humana que permite uma infinitude de habilidades técnicas, certamente, também no campo da alimentação, levando a questionamentos éticos, como veremos no último capítulo, no caso da produção de alimentos transgênicos. Por outro lado, concordo, se pensada para os outros animais, que a disposição para a animalidade prescinda da razão, inclusive no que diz respeito ao impulso para à sociedade, como é o caso de sociedades de abelhas e cupins.382 Na construção de colmeias, por exemplo, cada abelha exerce seu papel – como zangão, rainha ou operária – obedecendo ao mecanismo que é fixado pelas leis da natureza.383 Toda a finalidade da natureza para as abelhas, portanto, a sua perfeição, pode ser realizada desta maneira sem a intervenção de qualquer razão. Mas do fato de os homens precisarem da razão para obter seu alimento, a partir da descoberta do fogo, não posso concluir que abelhas, na medida em que produzem seu mel, também tenham de possuí-la,384 afinal, sociedades humanas são sociedades de pessoas, não de meros seres vivos. O que Kant chama de personalidade é exatamente “a liberdade e a independência do mecanismo de toda a natureza, considerada [essa liberdade], ao mesmo tempo como faculdade de um ente submetido a leis peculiares, a saber, leis práticas puras dadas por sua própria razão”.385 Diferentemente de abelhas, pessoas podem constituir sociedades em que todos são igualmente livres, portanto, capazes de legislar para si mesmos, sem papéis fixos determinados. Nisso fica claro que as sociedades humanas não podem ser pensadas igualmente às sociedades de outros 381 Se isso fosse possível, então a moral seria impossível. Na terceira seção da FMC Kant deixa bem claro como essa relação deve ser pensada no homem para possibilitar o imperativo categórico. Cf. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2014, BA 111-113, p. 110-112. Sobre a dupla natureza dos seres racionais, ver a solução da terceira antinomia da razão pura (CRP, B 567). Esta “dupla” condição humana será importante tanto para a discussão sobre o direito como para a discussão sobre a moral. 382 “Sociedade” é o termo que designa uma relação harmônica entre indivíduos da mesma espécie, não ligados anatomicamente, e que se organizam de modo cooperativo. Cf. http://www.sobiologia.com.br/conteudos/Ecologia/relacoesecologicas.php. Acesso em 10 mai 2014. 383 Kant, no entanto, parece admitir semelhanças entre a abelha rainha em uma colmeia e um monarca em uma república, mas vê diferenças na guerra entre colmeias – em que uma busca usar para si o esforço da outra – e entre povos, onde a guerra é uma estratégia para fortalecimento de um povo sobre seus vizinhos (Antr., 330, p. 224). 384 CJ, § 90, nota 268, p. 304. 385 CRPr, 155, p. 141. 124 seres vivos, na verdade, não somente a sociedade humana ainda está longe de alcançar sua perfeição, como pode até estar destruindo a perfeição de outras sociedades como as abelhas.386 Isso posto, aceitando-se a animalidade como disposição técnica (mecânica, mas vinculada à consciência), acrescento agora que, para atender nossa necessidade por alimentos, precisamos uns dos outros, e também nisso é possível falar em um tipo de sociabilidade insociável, no ato próprio da refeição, pois, do primitivismo fisiológico de uma refeição passamos à comensalidade, que estabeleceu, pela primeira vez, a regularidade das refeições, superando o naturalismo do ato de comer, quando se comia quando se tinha fome.387 Segundo Simmel, a refeição alia “a frequência de estar junto e o costume de estar em companhia ao egoísmo exclusivista do ato de comer”.388 De que modo o ato de comer é egoísta? Vejamos nas palavras do próprio autor: De tudo o que os seres humanos têm em comum, o mais comum é que precisam comer e beber. E é singular que este seja o elemento mais egoísta, que é por sinal o mais imprescindível e imediatamente restrito ao indivíduo. Já o que se pensa, pode-se dar a conhecer a outros; o que se vê, pode-se deixar que outros vejam; o que se fala, centenas podem escutar; mas o que se come não pode, de modo algum, ser igualmente comido por outro. Em nenhuma esfera elevada da vida humana pode-se encontrar uma tal situação: de que o que um deva possuir seja absolutamente impossível para o outro.389 O antagonismo do ato de comer se expressa pela necessidade que temos de estarmos juntos partilhando uma refeição, na condição em que ninguém pode dividir com o outro o que se toma para comer. Deste modo, o meu e o teu, em relação à alimentação, sequer necessitaria do direito público, mas somente da liberdade de cada um tomar para si o seu alimento, conforme a sua necessidade; nesse sentido, o alimento só poderia ser visto como direito natural, e não como propriedade ou mercadoria, no entanto, veremos na próxima seção, como a questão da terra e sua posse, na medida em que é nela que o homem pode praticar o pastoreio e a agricultura, vão alterar profundamente esse que poderia ser um estado de natureza alimentar, só possível, talvez, no paraíso, dada a nossa insociabilidade. 386 Há inúmeros relatos sobre isso no mundo, inclusive no Brasil, sugerindo que a causa pode ser a intervenção humana na natureza. Cf. http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Meio-Ambiente/Abelhas-estao-desaparecendo-no- sul-do-Brasil/3/13742// http://www.semabelhasemalimento.com.br/parecer-da-cba-sobre-o-desaparecimento-das- abelhas-e-suas-consequencias-para-o-agronegocio-e-o-uso-dos-pesticidas-neonicotinoides/. Acesso em 14 mai 2015. 387 SIMMEL, Georg. Sociologia da refeição. Tradução de Edgar Malagodi. Estudos históricos. Rio de Janeiro, n. 33, jan-jun 2004, p. 159-166. 388 SIMMEL, 2004, op. cit., p. 160. 389 SIMMEL, 2004, op. cit., p. 160. 125 De disposição técnica, como parte da animalidade, a sociabilidade vai adquirindo caráter pragmático, a partir da comensalidade, quando surgem outras prescrições sobre a forma de consumação dos alimentos. O sentido comum de ser parte de algo que todos têm de fazer permitiu desenvolver a socialização do ato de comer, colocando a alimentação no campo da destinação humana, como objeto de regras da razão. A própria comensalidade – o comer junto – é percebida como elemento fundador da civilização humana, a imagem da vida em comum, como apontam Flandrin & Montanari: “o regime alimentar tem um papel essencial nesse processo de definição de um modelo de vida civilizado [...] ele funda sua própria diferença [...] em três valores: a) a comensalidade; b) os tipos de alimentos; c) a cozinha e a dietética.390 O segundo tipo de disposição enumerada por Kant na Religião, é exatamente essa disposição para a humanidade, que se refere ao amor de si, comparado aos outros, ou seja, trata- se da inclinação para obter aprovação alheia, baseada no valor da igualdade, quando o homem reconhece seu valor social numa condição de interação com os outros. Na Antropologia, corresponderia à disposição pragmática, mediante a qual o homem tende a sair da rudeza de sua natureza, por meio da cultura promovida nas relações sociais, para a civilização.391 Dentre os vícios da cultura, por exemplo, Kant cita a inveja e a rivalidade como os maiores.392 Não é difícil supor que Kant conhecesse bem estes males da sua sociedade.393 Na enciclopédia alemã Zedler Universal Lexicon (1736), há uma descrição minuciosa dos verbetes: corte, cortesia e cortesão. A respeito deste último, por exemplo, lê-se: “a vida na corte sempre foi descrita, por um lado, como perigosa, devido ao favor caprichoso do príncipe, às muitas pessoas invejosas, aos caluniadores ocultos e aos inimigos declarados, e por outro como depravada, [...]”. A respeito da cortesia, na mesma obra, lê-se: “as pessoas, preocupadas demais com exterioridades, são muito mais influenciadas pelo que atinge externamente seus sentidos, especialmente quando as circunstâncias concomitantes são de ordem a afetar-lhes especialmente a vontade”.394 O valor social dos alimentos acompanhava – como ainda hoje – o movimento das classes sociais daquele período. No Discurso das preferências da nobreza, de Florentin Thierrat, a 390 FLANDRIN & MONTANARI, 1998, op. cit., p. 108-9. 391 Antr. 324, p. 218 392 Rel., p. 33. 393 Frederico, o Grande, em 1780, publicou uma obra intitulada De la lettérature alemande, onde lamentava o fracasso da literatura alemã, o pedantismo dos seus intelectuais e culpava as sucessivas guerras, o baixo desenvolvimento do comércio e da burguesia, e a pobreza de homens, não de dinheiro. No entanto, o rei como que pressagia, ao apontar para um iminente “processo civilizador que dará aos alemães um lugar igual entre as demais nações” (apud ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Vol. 1. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1994, p. 31). 394 apud ELIAS, 1994, op. cit., p. 253. 126 superioridade desta classe é associada ao que ela consome: “comemos mais perdizes e carnes delicadas do que eles (os que não pertencem a nobreza), e isso nos dá uma inteligência e uma sensibilidade mais vivas do que a daqueles que se alimentam de boi e porco”.395 A corte francesa e sua nobreza eram a referência para a classe cortesã alemã, tanto que falar o francês era símbolo de status da classe superior.396 Diante disto, interpreto aquelas considerações de Kant a respeito da sociabilidade e seus vícios como um reflexo do que está colocado no seu primeiro texto político, conforme se lê a seguir: Estamos cultivados em alto grau pela arte e pela ciência. Somos civilizados, até ao excesso, em toda a classe de maneiras e na respeitabilidade sociais. Mas falta ainda muito para nos considerarmos já moralizados. De fato, a ideia da moralidade faz ainda parte da cultura; mas o uso de tal ideia, que se restringe apenas aos costumes no amor matrimonial e na decência externa, constitui simplesmente a civilização.397 Percebe-se aqui a distinção entre uma dimensão interna e outra externa, entre o que o indivíduo pensa de si, e de como ele é visto e se pensa a partir de sua interação com os outros.398 Se apenas é possível falar de progresso moral do ponto de vista da espécie, é intersubjetivamente que se pode dar a degradação moral do homem, pelo desenvolvimento dos vícios da cultura, suscitados pela comparação entre si dos homens em sociedade que desperta inveja e rivalidade. Daí Kant poder afirmar que a sociabilidade se transforma em “bem estar que prejudica a humanidade”, quando “a fruição das relações sociais se torna presunçosa pela ostentação”; trata-se, na verdade, de uma falsa sociabilidade.399 Embora possa haver controvérsias400 na Antropologia sobre a resposta de Kant à questão se o homem seria um animal social ou solitário, por temor ao vizinho,401 nas Lições de Antropologia (1775-76), ao fazer a mesma pergunta, quando tratou pela primeira vez o tema do 395 apud MONTANARI & FLANDRIN, 1998, op. cit., p. 472. 396 ELIAS, 1994, op. cit., p. 30. 397 Ideia, 7ª prop. 398 Essa interação com os outros será também abordada na próxima seção, visto tratar-se da condição de intersubjetividade, um dos elementos do direito. É em função dela que Kant define que “todos os homens que entre si podem exercer influências recíprocas devem pertencer a alguma constituição civil” (PP, p. 39), de onde segue sua tipologia do direito público, segundo a qual é o direito das gentes “o único estado em que as disposições da humanidade que tornam a nossa espécie digna de amor se podem desenvolver de um modo conveniente” (DC, Nota A 271, p. 94), assim como, no direito cosmopolita que considera “os homens e os Estados, na sua relação externa de influência recíproca, como cidadãos de um estado universal da humanidade” (PP, p. 39). 399 Antr. § 88, 277, p. 174. 400 A esse respeito ver BACH, 2007, op. cit., p. 167. 401 Antr., 322, p. 217. 127 “caráter da humanidade em geral”, ele diz: “o homem, tomado enquanto animal, é um animal extremamente intratável. No estado selvagem, nada há que ele mais tema do que um outro homem”.402 Por outro lado, ele não deixou de reconhecer o quanto a verdadeira humanidade se beneficia do bem-estar proporcionado por uma boa refeição em boa companhia, pois, comer junto à mesa é como formalizar um contrato de segurança.403 Sendo assim, é possível, a partir de Kant, acrescentar um caráter moral à disposição para a sociabilidade, tendo em vista sua relação com a humanidade. Tornar-se ativamente digno da humanidade implica na participação, um dos elementos da sociabilidade. Essa só pode ser uma participação moral, ou seja, o homem deve atuar racionalmente no mundo, em sentido moral. No caso da alimentação, esta participação implica uma ação ética – que toma como dever de virtude o cuidado individual com a alimentação – e uma ação legal que estabelece o direito de todos à alimentação saudável, donde a necessidade de debater eticamente o direito à alimentação e as políticas públicas voltadas para sua garantia. 3.3 A política como aplicação do direito: realizando o DHAA a partir da constituição republicana e do direito à terra Ele não tem o direito de me coagir a abandonar os meus. Será um belo fim se eu morrer, tendo cumprido esse dever (Sófocles, Antígona) A época em que Kant viveu, como se sabe, foi marcada pelo advento de revoluções – as revoluções inglesas, americana e a revolução francesa – e suscitou um amplo debate político acerca do papel do Estado que se configurava no horizonte de queda das monarquias absolutas. Tratava-se, sobretudo, de buscar garantias para direitos individuais, por oposição ao absolutismo do poder dos príncipes. Foi neste contexto que três grandes grupos de teorias políticas foram conformadas: o jusnaturalismo, as teorias de separação dos poderes e as teorias 402 Breve apresentação de: “Do carácter da humanidade em geral”. Lições sobre Antropologia. Immanuel Kant [1777-76]. Tradução Leonel Ribeiro dos Santos. Estudos kantianos. Marília, v. 1, n. 1, p. 255-264, Jan./Jun., 2013, e ainda “Do carácter da humanidade em geral”. Lições sobre Antropologia. Immanuel Kant [1777-76]. Tradução Fernando M. F. Silva. Marília, v. 1, n. 1, p. 265-282, Jan./Jun., 2013, p. 269. 403 Antr. § 88, 280, p. 176. Era comum haver interdições à comensalidade, como relata Simmel, sobre a Guilda de Cambridge que impôs, no século XI, pena, a quem comesse ou bebesse com algum assassino de um membro da Guilda. Cf. SIMMEL, 2004, op. cit., p. 161. 128 de soberania popular ou democracia.404 Pode-se identificar no pensamento de Kant a influência destas três teorias. O jusnaturalismo moderno foi a escola do direito natural que fundamentou filosoficamente o Estado liberal – entendido como aquele que se opõe ao Estado absolutista – e começou a surgir no final do século XVIII. O pai do jusnaturalismo liberal – John Locke (1632-1704) – elaborou a doutrina dos direitos naturais, segundo a qual todos os homens tinham, por natureza, certos direitos fundamentais, como o direito à vida, à saúde, à liberdade, à segurança (garantia da propriedade) e à defesa desses direitos (direito de resistir), os quais não dependiam da instituição de um soberano. Os direitos naturais eram tidos como liberdades individuais que pré-existiam perante o Estado, logo, não era necessário um contrato social ou um estado civil que os estabelecesse, e sim apenas obrigações negativas, da parte dos outros e da parte do Estado, quando constituído, para que não interferissem no sentido de limitar ou vetar aquelas liberdades. É com vistas a tal limitação jurídica do poder do Estado, que Bobbio considera ser Kant quem apresenta “uma das melhores formulações, válidas ainda hoje, da concepção liberal do Estado”.405 Liberal, mas reformista, como já visto. Além dessa limitação de poder expressa na oposição entre um Estado Absoluto (sem limites) e um Estado (liberal) de Direito, pode-se ainda fazer uma oposição a partir da limitação de funções, em que o Estado liberal se distingue do Estado máximo, entendido como Estado de bem-estar social que tem, além das obrigações negativas (mínimas), uma atuação mais extensiva, de modo a assegurar aqueles chamados direitos sociais.406 Para concluir esta etapa de estabelecer aplicabilidade do pensamento jurídico-político de Kant à história do DHAA, tendo em vista a realização desse direito, é necessário agora destacar como referência os elementos da sua doutrina do direito – de concepção claramente jusnaturalista, a mesma que orientou a fundamentação dos direitos humanos na Carta da ONU – dos quais recordo, inicialmente, o conceito moral de direito, qual seja, “o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode conciliar-se com o arbítrio de outro, segundo uma 404 As teorias de separação de poderes propõem o Estado constitucionalista, caracterizado pela separação entre os poderes, independentemente de ter o poder estatal que se deter diante de direitos preexistentes. O importante é que seja feita a distribuição do poder de estado de forma a impedir sua concentração nas mãos de poucas pessoas. Já as teorias democráticas propõem a participação de todos os cidadãos, portanto, trata-se não de uma limitação de poder – como no caso do constitucionalismo – mas de uma mudança de titularidade, pois, sendo o poder fundamentado no consenso popular, fica inviável o abuso de poder que as outras teorias buscavam limitar. Cf. BOBBIO. Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emmanuel Kant. Tradução de Alfredo Fait. São Paulo: Mandarim, 2000, cap. 3. 405 BOBBIO, 2000, op. cit., p. 213. 406 BOBBIO, 2005, op. cit., p. 17. 129 lei universal da liberdade”.407 Uma das formas de garantir a coexistência dos arbítrios é estabelecer leis jurídicas. Por isso, desenvolvo nesta seção as ideias kantianas acerca da passagem do estado de natureza para a condição civil e da liberdade como direito inato, originário, isto é, que independe de ato jurídico que o estabeleça, porque “cabe a todo homem em virtude de sua humanidade”.408 Ainda no campo do direito privado, abordo a questão da posse originária da terra, tendo em vista sua importância para a realização do DHAA. Ao finalizar este capítulo, preparo o debate seguinte, sobre a limitação das funções do Estado, em que abordo o conflito entre paternalismo e autonomia, conflito que se expressa na nossa prática, quando se tem em vista a realização do DHAA, e exige reflexões éticas. Mais uma vez, ficará evidente o papel da liberdade como ponto de união na relação entre o direito e o dever (moral) em relação à alimentação. Como bem observa Höffe: só a comunidade entre direito e moral em sua simultânea diferença permite uma compreensão adequada do direito, sem querer dizer com isso, que se deva aceitar uma moralização totalitária, “segundo a qual Direito e Estado devem promover a moralidade (virtude) de seus cidadãos”.409 3.3.1 Conceitos elementares de uma metafísica dos costumes A primeira distinção importante para este trabalho, tanto nas considerações sobre alimentação como direito humano quanto como dever moral, é que não se trata aqui de fazer uma defesa da felicidade. Kant não está preocupado com isso, haja vista o seu esforço, também no que diz respeito ao prático, para buscar princípios a priori. Se somente a experiência fosse suficiente para nos informar o que nos faz feliz e traz alegrias, então seria absurdo buscar na razão princípios de uma doutrina dos costumes. O problema é que Kant considera a alimentação um “impulso natural”, portanto, capaz de nos informar “a cada um de nós, e cada um apenas no seu modo particular, no que encontrará essas alegrias”.410 Ao mesmo tempo, ele estabelece também uma doutrina da virtude, na qual temos deveres para conosco, um deles, o de cuidar do nosso corpo, o que inclui, necessariamente, cuidar da nossa alimentação. Satisfazer a necessidade por alimentos, portanto, 407 MC, 2013, § B, 230, p. 36. 408 MC, 2013, 237, p. 44. 409 HÖFFE, 2005, op. cit., p. 235 410 MC, 2003, p. 58. 130 é inerente à condição (natural) da vida411 e, ao mesmo tempo, indispensável para a condição também moral do homem, na medida em que, para Kant, trata-se de uma condição (física) essencial para o desenvolvimento da moralidade.412 É diante dessa problemática que devemos considerar a Metafísica dos Costumes, tal qual utilizo, neste capítulo, como garantia para a realização de um direito à alimentação saudável, tendo sempre em vista as implicações práticas no exercício da profissão de Nutricionista, afinal, uma metafísica dos costumes não pode prescindir de princípios de aplicação e precisa “tomar frequentemente como objeto a natureza particular do homem, cognoscível apenas pela experiência, para nela mostrar as conclusões dos princípios morais universais”,413 sem tirar sua pureza, claro. Isto posto, passo à apresentação dos conceitos fundamentais que serão utilizados a partir desta seção. Kant contrasta as leis da natureza com as leis da liberdade, as primeiras referem-se a como são as coisas no mundo natural, as segundas, a como devem ser no que diz respeito à ação humana. Assim, leis morais são leis da liberdade; quando dirigidas a ações externas, são chamadas leis jurídicas; dirigidas a ações internas, são leis éticas. Ações externas exigem apenas a conformidade à lei para serem realizadas, caracterizando sua legalidade; ações internas exigem a ideia de dever como motivo para a ação, o que caracteriza sua moralidade (eticidade). Disso decorre que Kant coloca o campo do direito – das leis jurídicas – como parte do campo da moral, ao lado da ética, o que é coerente com a sua divisão da metafísica da moral como um todo, constituída de duas partes: a doutrina do direito e a doutrina da virtude.414 A relação entre ética e direito pode ser melhor compreendida a partir da distinção entre lei e legislação, onde a primeira é um elemento da segunda. A legislação apenas pode prescrever ações internas ou externas, a priori ou não, enquanto que a lei representa objetivamente como necessária a ação que precisa ser realizada, ou seja, a ação que é um dever; o segundo elemento da legislação é o motivo, que relaciona subjetivamente um fundamento que determina a escolha 411 A palavra alimento vem do latim alimentu, que quer dizer o que serve para conservar a vida; o verbo nutrire quer dizer alimentar, assim como alimentare, que tem ligação com alere, cujo significado é fazer crescer; do grego temos o verbo trophein, que quer dizer alimentar, nutrir, sendo trophé o equivalente a alimento. MANIATOGLOU. Maria da Piedade Faria. Dicionário grego-português, português-grego. Porto: Porto Editora, 2004. 412 Por isso, ao tratar do vício da gula, ele o condena dizendo que este “nem sequer estimula a imaginação para um jogo ativo de representações, com o que se aproxima o ser humano ainda mais estreitamente do prazer do gado” (MC, 2003, p. 269). 413 MC, 2013, 217, p. 23, grifos do autor. 414 Na introdução à doutrina da virtude, Kant repete a mesma distinção da Metafísica dos Costumes, no “sistema da doutrina universal dos deveres”, dividido em doutrina do direito (ius) – apropriado para as leis externas – e doutrina da virtude (ethica), para a qual leis externas não são apropriadas (MC, 2013, 379, p. 189). 131 da ação com aquela representação da lei. Assim, toda legislação é constituída por um elemento objetivo, a lei, que obriga universalmente, e um elemento subjetivo, o motivo.415 O estímulo do sujeito para a ação é o que une a lei com o motivo. Esse elemento subjetivo distingue a legislação ética, que faz da lei – o elemento objetivo que contém o dever de agir – o motivo suficiente para a escolha, da legislação jurídica, que não inclui o motivo do dever na lei, e admite outro motivo distinto da ideia de dever, portanto, um motivo externo.416 Disso se depreende uma importante distinção (formal) entre ética e direito que não diz respeito à lei, mas ao motivo: na legislação ética é fundamental que o motivo para a ação seja o respeito à lei que representa a ação como dever; não há qualquer outro interesse na ação que não seja a própria ideia de dever, isto é, o que determina a ação não é a mera conformidade com a lei, mas com sua máxima, um princípio subjetivo que o próprio sujeito converte em regra. Na legislação jurídica, ao contrário, o móbil não precisa ser a ideia do dever, mas deve ser buscado entre as aversões, porque, diz Kant, esta “deve ser uma legislação que obriga, não uma atração que convida”,417 portanto, a ação é realizada conforme ao dever que está prescrito na lei. O impulso adequado à legislação ética é o respeito à lei, e à legislação jurídica é o medo de desrespeitar a lei. Por fim, há também a distinção entre deveres internos e externos. Os deveres de acordo com a legislação jurídica – os chamados deveres de direito – só podem ser deveres externos, tanto porque a legislação jurídica não exige que a ideia de dever seja o fundamento que determina a escolha do agente, como também porque só pode relacionar motivos externos à lei, de modo que, se a ideia de dever não pode servir como motivo, a legislação jurídica é também chamada legislação externa.418 Quanto à legislação ética, esta pode ser aplicada a qualquer dever em geral, visto que ela não exclui as ações externas, mesmo transformando ações internas em deveres, porém, como necessariamente a legislação ética inclui na sua lei a ideia de dever, que é um motivo interno, ela só pode ser uma legislação interna, isto é, não pode ser externa. O que Kant quer dizer com isso é que a legislação ética pode conter deveres que se 415 Motivo é o que se chama espírito da lei (l’anima legis), LE, p. 54. O espírito da lei moral se apoia na intenção (LE, p. 58). 416 MC, 2003, p. 71. 417 MC, 2013, 219, p. 25. 418 Segundo Kersting (2009, op. cit., p. 409), o substantivo kantiano Recht, ‘super abrangente’ e eterno ‘problema para os tradutores’, “conota uma situação completa de legalidade externa (em oposição à moralidade interna)”; no entanto, o autor prefere traduzir o termo por simplesmente “direito” (e não justiça). Na mesma linha deste trabalho, no contexto kantiano do direito, ao falar na obrigação do Estado em relação ao DHAA, estou me referindo à legalidade externa, enquanto na sua doutrina da virtude, trato de moralidade interna; seguindo Kersting, o termo ‘rights’, no plural (que não é possível para Recht), é o termo adotado nos documentos da ONU, mas também aqui a ONU reconhece a necessidade de obrigações por parte do Estado para assegurar ao sujeito (toda pessoa humana) aqueles direitos de que é titular. 132 apoiam em uma legislação externa, desde que tais deveres se tornem motivos em sua lei, daí ele afirmar que “todos os deveres, simplesmente por serem deveres, pertencem à ética; mas não se segue que a legislação para eles estará sempre contida na ética: para muitos deles se acha fora da ética”.419 Resultado disso, toda obrigação jurídica pode ser cumprida como obrigação ética, e não o contrário. Por outro lado, embora afirmando que a legislação ética não pode ser externa porque precisa do componente subjetivo, qual seja, a ideia de dever como motivo para a ação, o que significa que ninguém pode me obrigar a cumpri-la, no caso da legislação jurídica, Kant afirma que ela também pode ser uma legislação externa, gerando certa ambiguidade, como se a legislação jurídica pudesse ser interna, algo que ele não nega, como faz explicitamente no caso da legislação ética. É certo, porém, que Kant afirma ainda que só existem deveres ou de direito – “para os quais é possível uma legislação externa” – ou deveres de virtude, para os quais “não é possível uma tal legislação”,420 mas não deixa de admitir alguma combinação entre direito e ética, quando distingue o direito em sentido estrito como sendo aquele completamente externo421 e reconhece a honestidade jurídica como dever de direito interno. Embora não seja meu objetivo aprofundar a discussão sobre os deveres de direito apresentados por Kant na Divisão geral dos deveres de direito da MC, por meio das fórmulas de Ulpiano,422 será importante aqui tratar da questão da honestidade expressa na primeira das três fórmulas (honeste vive), por sua relação com a virtude, a partir da qual posso estabelecer um ponto de interseção entre o direito e a ética no que se refere à alimentação. Há duas maneiras de se referir ao dever de honestidade: como honestidade jurídica e como honestidade interna (ética). Ambas derivam do direito da humanidade de cada pessoa. A característica básica da humanidade é a capacidade de se colocar fins, à qual está ligada a vontade racional.423 Esse princípio da humanidade e de toda natureza racional em geral como fim em si mesma é a própria condição do direito, na medida em que limita a liberdade. Para Kant, se algo tem dignidade, isto é, está acima de qualquer preço, então deve ser tratado como fim, pois a dignidade “é a condição só graças à qual qualquer coisa pode ser um fim em si mesma”,424 consequentemente, servir-se das pessoas como simplesmente meios, sem 419 MC, 2003, p. 72. 420 MC, 2013, 239, p. 45. 421 MC, 2003, p. 78. 422 Para uma análise detalhada desses deveres, ver também PINZANI, Alessandro. O papel sistemático das regras pesudo-ulpianas na Doutrina do Direito de Kant. Studia Kantiana, n. 8, 2009, p. 94-120. 423 Kant afirma: “a dignidade da humanidade consiste precisamente nesta capacidade de ser legislador universal, se bem que com a condição de estar ao mesmo tempo submetido a essa mesma legislação” (FMC, BA 87, p. 90). 424 FMC, BA 77, p. 82. 133 considerar que elas, como seres racionais, devem ser tratadas como fins, é violar o direito humano. O dever de honestidade, portanto, é um dever perfeito, e este mesmo princípio também será condição dos deveres de virtude.425 A honestidade jurídica (honestas iuridica) é o dever interno de viver honestamente (honeste vive), uma obrigação que surge do direito da humanidade na nossa pessoa e consiste em afirmar meu valor (dignidade) como ser humano na minha relação com os outros.426 Afirmar a dignidade nada mais é do que reconhecer-se como fim em si mesmo, por isso, honeste vive se expressa também nas palavras: “não faças de ti mesmo apenas um meio para os outros, mas sejas simultaneamente um fim para eles”.427 Uma vez que se estabelece numa relação perante os outros, honeste vive poderia ser um dever externo e como tal pertencente à legislação jurídica; por outro lado, não fazer de mim mesma um meio implica me considerar como pessoa que tem um valor, não como coisa, e isto consiste numa atitude interna, donde é possível considerar aquele dever de honestidade como sendo também um dever ético; além disso, para Kant, viver honestamente nada mais é do que ser um ser humano irrepreensível (iusti), o que significa não causar dano a ninguém “antes de realizar qualquer ato que afete direitos”,428 portanto, numa condição pré-jurídica. Diante disso, compreende-se o caráter híbrido atribuído por Pinzani à honestidade jurídica, que representaria “a transição da dimensão ética do respeito pela própria dignidade humana para a dimensão jurídica da afirmação da própria personalidade jurídica perante os outros”.429 Para o autor, o princípio honeste vive “não preenche completamente nenhuma das condições que são necessárias para um dever puramente ético ou puramente jurídico”.430 De fato, se, por um lado, trata-se de ser justo em relação aos outros, tem-se aqui uma dimensão inter-subjetiva, que caracteriza o elemento jurídico,431 por outro, exige-se uma atitude interna, 425 Por isso, não vejo porque concordar com a afirmação de Höffe (2005, p. 238) de que “Kant distingue com toda clareza entre direito e virtude e vê que questões de atitude interna não tem relevância jurídica”. As áreas de interseção entre direito e virtude impedem confirmar tal clareza. 426 MC, 2003, p. 82. 427 MC, 2003, p. 82. 428 MC, 2003, p. 84. 429 PINZANI, 2009, op. cit., p. 101. 430 PINZANI, 2009, op. cit., p. 101. 431 Os elementos que definem o objeto da doutrina do direito são: intersubjetividade, reciprocidade, e formalismo. O caráter formal do direito se expressa na lei universal do direito: “age externamente de modo que o livre uso de teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal” (MC, 2003, p. 77), não há preocupação com a matéria ou fim do arbítrio, mas apenas com sua forma na relação com os outros, donde o elemento da reciprocidade, isto é, que delimita o direito às relações entre arbítrios, não entre desejos ou aspirações. Sobre isso, ver BOBBIO, 2000, p. 108 et seq. Se o “direito pertence ao mundo das relações práticas que o homem tem com outros homens” (ib., p.109), nem todas as relações intersubjetivas vão fazer parte do campo do direito, mas é possível pensar aquelas relacionadas à alimentação, como parte de uma sociabilidade legal. 134 a qual não pode sofrer coerção, e por isso não pode ser jurídica.432 De todo modo, nas Lições de Ética, para as quais Kant utilizou o compêndio de Baumgarten, a proposição honeste vive foi considerada um princípio ordinário de ética, dado que o motivo para a ação não era a coação, mas um móbil interno.433 Reescrevendo a proposição, teríamos: “faça o que te torna objeto de estima e respeito”.434 Ocorre que, além da aprovação alheia, os deveres para consigo implicam ainda o respeito diante de si mesmo. A honestidade é um dever para comigo, na medida em que não respeitar meu valor intrínseco é desonrar a humanidade na minha pessoa. A consequência disso é que quanto mais sou desprezível, menos tenho valor intrínseco. Só quando nossas ações são dignas de louvor, somos verdadeiramente honestos. Ser honesto consigo mesmo em relação à humanidade de sua pessoa (honestas interna) significa não ceder às tentações e inclinações. Kant associa honestas interna à virtude, que se opõe aos vícios contrários à dignidade inata de um ser humano, como um amor à honra.435 Assim, o dever de não me deixar instrumentalizar pelos outros só é possível se eu também me sentir obrigada a afirmar minha dignidade perante mim mesma. Da relação entre honestas iuridica e honestas interna resulta que: afirmar a própria liberdade (externa) perante os outros é condição para que eu entre em relação com eles, estabelecendo uma condição jurídica, no entanto, tal afirmação de liberdade requer uma atitude interna que implica que devo também afirmar esta liberdade (interna) perante mim mesma, logo, o dever de afirmar a própria dignidade deve ser entendido como condição, seja para o direito, seja para a ética, mas nunca poderá exigir uma legislação externa, visto que ninguém poderia me obrigar a isso. Do mesmo modo que não devo abdicar da minha condição humana, livre, para me tornar um mero instrumento dos outros, também não devo ser mero instrumento das minhas próprias inclinações. Detalho, em seguida, de que modo está posta a relação entre direito e moral, a partir das considerações de Kant sobre a passagem do estado de natureza para o direito público. 432 A investigação sobre como seria possível uma legislação jurídica também interna encontra-se em PINZANI, Alessandro. Sul rapporto tra morale, politica e diritto in Kant. In: PINZANI & MONETI, 2004, op. cit., p. 97. 433 Pinzani (2005, op. cit., p. 98) também cita a Metaphyisik Vigilantius, onde se pode resgatar este sentido com que Kant entende o preceito ulpiano honeste vive como um dever interno, de virtude. Heck, no mesmo sentido, afirma que: “Na preleção do semestre de inverno de 1793/94, quando expõe as obrigações jurídicas para consigo mesmo como as mais excelsas que assistem aos humanos, Kant não insere o chamado direito interno na esfera jurídica, mas continua a prestigiá-lo como instância ética, assim como fizera nas preleções de direito natural em meados da década de oitenta”. Cf. HECK, José N. Kant e os princípios de Ulpiano: a erradicação da doutrina do direito natural. Ethic@ Florianópolis v. 8, n.2 p. 229 - 245 Dez 2009, p. 237. 434 “Fa ciò che ti rende oggetto di rispetto e di stima” (LE, p. 56). As outras duas regras de Ulpiano, Kant considera como deveres jurídicos, dado o seu caráter coativo. 435 MC, 2003, p. 262. 135 3.3.2 Kant e o jusnaturalismo: a liberdade e o alimento no estado de natureza Seguindo a linguagem jusnaturalista, Kant assim expressa o ato pelo qual o povo mesmo se constitui num Estado, ao sair do estado de natureza: A se expressar rigorosamente, o contrato original é somente a ideia desse ato, com referência ao qual exclusivamente podemos pensar na legitimidade de um Estado. De acordo com o contrato original, todos (omnes et singuli) no seio de um povo renunciam a sua liberdade externa para reassumi-la imediatamente como membros de uma coisa pública, ou seja, de um povo considerado como um Estado (universi).436 Estado é um conjunto de indivíduos numa condição jurídica – submetida a leis de direito – em relação aos seus membros, por isso, pode também ser chamado de coisa pública; não se refere, portanto, a solo ou a ter um patrimônio, é uma sociedade autônoma, no sentido em que somente ela manda em si própria, isto é, faz suas próprias leis e só a elas se submete. Ao constituir o estado civil, cada indivíduo abdica da sua liberdade individual (aquela que existe no estado de natureza) e assume no corpo político a condição de uma vontade geral, autônoma, pois a ela cabe elaborar as leis, às quais, cada membro da comunidade tem de dar o seu consenso. O Estado, portanto, é autônomo, como vontade pública e ente moral, e expressa a autonomia política de um povo. Inicialmente, é importante destacar que o estado de natureza em Kant é também uma ideia, não é uma realidade histórica,437 mas uma situação (sempre) provisória de ausência de justiça pela falta de uma autoridade coativa: a única liberdade aí presente é o arbítrio de cada um, como liberdade negativa, e a única justiça possível é a justiça comutativa, ou seja, a justiça entre as partes iguais nos próprios direitos. O resultado da permanência no estado de natureza é uma condição constante de injustiça, caracterizada pela insegurança jurídica, com permanente disputa de direitos e violência recíproca, condição da qual o homem busca sair, rumo ao estado 436 MC, § 47, 2003, p. 158. 437 A respeito da defesa ou não de uma realidade histórica do estado de natureza entre os jusnaturalistas, ver BOBBIO, 2000, p. 200 et seq. Para Bobbio, a posição de Kant, ao desconsiderar a origem histórica do poder, não só elimina do povo uma importante arma crítica, como qualquer força revolucionária. De fato, Kant afirma que “o súdito não deve raciocinar, em termos práticos, a respeito da origem dessa autoridade, como um direito ainda passível de ser questionado (ius controversum) no tocante à obediência que a ele deve [...]. A um povo já submetido à lei civil esses raciocínios [...] ameaçam perigosamente o Estado” (MC, 2003, p. 161). A importância da realidade empírica do estado de natureza é também apontada por Höffe, para quem esse é um ponto “que Kant não torna suficientemente claro: que sem elementos empíricos gerais não se faz uma doutrina filosófica do direito”. HÖFFE, Otfried. O imperativo categórico do direito: uma interpretação da “introdução à doutrina do direito”. Studia Kantiana 1 (1): 203-236, 1998, p. 214. No entanto, ao tratar da propriedade, na questão da posse originária da terra, Kant deixa claro que todo o direito privado nasce de uma base material. 136 civil. Neste estado de guerra permanente que é o estado de natureza, não existem deveres jurídicos, porque tudo o que se conhece é apenas a liberdade de escolha (arbítrio) de cada um, a qual não conhece limites. Do mesmo modo que o estado de natureza, o contrato originário é apenas pensado, como ideia da razão, à qual, porém, todo estado deve conformar-se como se todas as leis emanassem da vontade coletiva de um povo. Bobbio chama a atenção para a posição moderada de Kant nessa passagem de um estado de natureza para um estado civil, se comparada a Hobbes e Rousseau, em quem seria necessária a completa aniquilação do estado de natureza, pela alienação total dos direitos naturais; para Kant, ao contrário, é possível, no estado civil, a conservação do estado de natureza pela salvaguarda dos direitos naturais, antes provisórios, de modo que “o estado civil nasce não para anular o direito natural, mas para possibilitar seu exercício através da coação”.438 De fato, embora no estado de natureza inexistam deveres jurídicos e leis coercitivas, por falta de autoridade para exercer a coerção, no estado civil, diz Kant, “não há nada além, nem mesmo mais deveres dos homens entre si”,439 do que o que pode ser pensado no estado de natureza; trata-se, portanto, de uma mudança formal, não substancial: o que antes era provisório, passa a ser permanente. Além disso, Kant não opõe um estado de natureza a um estado de sociedade, ambos, “o estado de natureza e o estado social podem ser denominados estado de direito privado”.440 Como condição não jurídica, o estado de natureza deve ser contraposto à condição jurídica;441 disso resulta que a oposição que deve ser feita é entre um direito privado (natural) e um direito público (civil), oriundo daquele contrato originário.442 Mas, o que levaria os homens a constituírem esse contrato e abdicarem de suas liberdades individuais? Em primeiro lugar, não pode ser na experiência da violência, e sim numa ideia a priori – a de que sem a condição jurídica os homens nunca estarão seguros contra a violência recíproca para garantir algo como seu – que assenta o dever de sair do estado de natureza, sendo este o postulado do direito público, como direito do Estado. Se o estado de natureza é, por natureza, provisório, então, necessariamente, há de se buscar sair deste estado, senão ele não seria provisório, e querer permanecer neste estado seria levar a um estado de 438 BOBBIO, 2000, op. cit., p. 192. 439 MC, 2013, § 41, 306, p. 112. 440 MC, 2013, § 41, 306, p. 112, grifo do autor. 441 “Condição jurídica é aquela relação dos seres humanos entre si que encerra as condições nas quais, exlusivamente, todos são capazes de fruir seus direitos” (MC, 2003, 150). 442 Tradicionalmente, a distinção entre direito público e privado decorre da forma da relação jurídica: a) de coordenação, entre sujeitos em condições de igualdade, como no direito privado; e b) de subordinação no direito público, onde há sujeitos em níveis diferentes, já que existe uma autoridade (BOBBIO, 2000, p. 135). 137 injustiça permanente.443 Por fim, e mais importante para minhas considerações, cito outra característica peculiar desse contrato original que marca a passagem do estado de natureza para a condição jurídica do direito, exposta por Kant, no texto que escreve contra Hobbes: A união de muitos homens em vista de um fim (comum) qualquer (que todos têm) encontra-se em todos os contratos de sociedade; mas a união dos homens que neles próprios é um fim (que cada qual deve ter), portanto, a união em toda a relação exterior dos homens em geral, que não podem deixar de se enredar em influência recíproca, é um dever incondicionado e primordial: tal união só pode encontrar-se numa sociedade enquanto ela radica num estado civil, isto é, constitui uma comunidade (gemein Wesen). Ora o fim, que em semelhante relação externa é em si mesmo um dever e até a suprema condição formal (conditio sine qua non) de todos os restantes deveres externos, é o direito dos homens sob leis públicas de coacção, graças às quais se pode determinar a cada um o que é seu e garanti-lo contra toda a intervenção de outrem.444 Neste trecho torna-se mais clara a exigência de entrar no estado civil, a partir do conceito de fim que o homem coloca a si mesmo. Pode-se afirmar que o direito (público) surge de uma necessidade (moral) para que os homens – que de outro modo não poderiam existir – possam constituir uma comunidade.445 O caráter moral da exigência foi reconhecido por Kant, quando disse que a sociedade civil se instaurou mais pela coerção do respeito à lei do que pelo medo, auxiliada pelo impulso à sociabilidade legal.446 Graças à nossa disposição para a sociabilidade, que expressa um dos elementos do direito – a interação recíproca ––, foi possível iniciar a difícil tarefa de unir liberdade à coerção;447 e sendo a sociabilidade uma disposição natural, pode-se entendê-la como parte daquele plano oculto da natureza, para que cheguemos à nossa destinação.448 Inegavelmente, temos aqui um significativo ponto de interseção entre o pensamento 443 A obrigação é expressa pela 3ª fórmula de Ulpiano, citada por Kant: “se não puderes deixar de relacionar-te com os outros, participa de uma associação com eles na qual cada um seja capaz de conservar o que é seu (suum cuique tribue)”, MC, 2003, p. 83. 444 DC, A 233, p. 73-74. 445 Por isso, Bobbio (2000, op. cit., p. 195) afirma que a constituição do Estado em Kant “não é um capricho nem uma necessidade natural, mas uma exigência moral”. 446 CJ, § 60, 263, p. 200: “A época e os povos, nos quais o ativo impulso à sociabilidade legal, pela qual um povo constitui uma coletividade duradoura, lutou com as grandes dificuldades que envolvem a difícil tarefa de unir liberdade (e portanto, também, igualdade) à coerção (mais do respeito e da submissão por dever do que por medo)”. 447 Kalsing, ao analisar a ligação da sociabilidade legal e o princípio honeste vive, afirma que a sociabilidade legal “não constitui ainda o direito propriamente, mas, enquanto capacidade e disposição a se deixar guiar por seus princípios, se constitui na condição para o estabelecimento do direito”. KALSING, Rejane Margarete Schaefer. Sobre a honestidade jurídica em Kant. Revista Húmus. Jan/Fev/Mar/Abr. 2012. N° 4, p. 18-29, p. 24. 448 Ideia, 8ª prop., ou como dito na PP (p. 77): “A natureza quer a todo custo que o direito conserve a supremacia”. 138 político-jurídico de Kant e sua filosofia moral, no contexto da filosofia da história, orientada pela ideia de progresso e finalidade como já apresentada antes. Somente na constituição civil podemos realizar nossa finalidade como espécie, ou seja, ao contrário de outros jusnaturalistas, para Kant, não se trata de constituir o Estado em nome de algum interesse ou vantagem pessoal, mas tão somente o direito – como limitador das liberdades externas individuais, única condição mediante a qual a vontade humana é limitada – tendo em vista a humanidade de todo o gênero humano. Já vimos que no estado de natureza só é possível falar em interesses individuais, porque cada indivíduo é uma totalidade por si mesmo, apenas no estado civil – com a instauração do direito público – é que se pode proteger, além desses interesses individuais, também os interesses coletivos.449 Se, como dito, entrar no estado civil é uma exigência moral, então as leis públicas de coação devem ser leis universais. Kant diz que encontrar uma lei universal (externa ou interna) a partir das inclinações individuais, “é simplesmente impossível”,450 daí que as leis do direito devem ser também leis da razão prática. Vale lembrar que o estado de natureza não é desprovido de direito, apenas todo direito ali é provisório, entretanto, se o direito adquirido somente é possível na condição civil, Kant reconhece um, e apenas um, direito inato, nesse estado de natureza: a liberdade, a qual, conforme apresentada antes, é condição tanto para as relações jurídicas – como liberdade externa – como para a ética. O direito se diz inato porque não requer sua instituição por nenhum ato jurídico de aquisição, já que está baseado apenas em princípios a priori. É o direito que “compete a cada um por natureza”.451 Assim, antes do direito, isto é, antes da condição jurídica, o que existe é um estado de natureza, onde só temos a liberdade como direito inato. Na condição pré-jurídica já temos, porém, as disposições naturais, que levam tanto ao uso da razão como à busca pela constituição do direito público, condição única na qual o homem pode realizar sua destinação. Para Kant, “o signo distintivo mais característico da superioridade do homem para, conforme sua destinação, preparar-se para fins mais longínquos”452 é a expectativa de futuro. Da preocupação com o futuro nascem muitos dos males que nos oprimem, Kant nos diz: “selvagens são como animais, 449 Neste ponto, Pinzani (2004, op. cit., p. 22) vê proximidade entre Hobbes e Kant, mesmo tratando de suas diferenças. Enquanto para Hobbes, entrar no estado jurídico é resultado de um cálculo instrumental, tendo em vista os perigos e as ameaças constantes no estado de natureza, para Kant, trata-se de reconhecer um dever moral imposto pela razão prática. O autor observa que, para ambos, é sempre a natureza que obriga os homens a sair do estado original de guerra, sendo que, em Hobbes, é a natureza humana dos indivíduos singulares, a que se sente ameaçada; em Kant, é a natureza do homem em geral, como natureza do gênero humano. 450 CRPr, 51, p. 47. 451 MC, 2013, 237, p. 43. 452 Conjecturas, 2009, 113, p. 20. 139 que não estão sujeitos a doença alguma e não tem nenhum pressentimento do mal, [...], não se martirizam com o temor da morte”,453 por isso, são considerados inocentes, mas exatamente por isso, o selvagem “não é ainda virtuoso”, e sim “negativamente bom. Ele não tem nenhuns deveres, pois não tem nenhuns conceitos desses deveres; ele não conhece nenhuma lei, [...] não pode ser imoral”.454 Se é tão bom o estado natural, por que, então, entrar no estado civil? Kant observa que “nenhum povo transitou do estado civilizado para o estado selvagem, por isso, este não é um passo à frente para o aperfeiçoamento da humanidade”.455 Para romper com sua condição animal e seguir sua destinação com respeito à humanidade, é preciso, então, o direito, só possível porque temos a capacidade de nos colocar fins que são deveres. O mais importante destes deveres é o dever da humanidade na nossa pessoa, portanto, também na pessoa de qualquer outra; é deste dever de humanidade que resultam tanto a honestidade jurídica como a honestidade interna, necessária àquela, pois, sem ser capaz de ser honesta comigo mesma, não posso me colocar em relação com o outro, do qual exijo honestidade. Por outro lado, buscar o próprio fim nada mais é que buscar a perfeição, e esta é um dever de virtude, o que inclui o cultivo da vontade em cumprir todos os deveres. Torna-se difícil, assim, separar o direito da moral, pois, o próprio conceito de direito – como vinculado a uma obrigação a ele correspondente – é um conceito moral de direito. A relação jurídica é uma relação direito-dever entre seres humanos, em que se eu tenho dever em relação aos outros, é porque os outros tem o direito de exigir de mim o cumprimento daquele dever. É importante observar que esse conceito (moral) de direito, vinculado a uma obrigação, tem a ver somente com uma relação externa prática, isto é, com a influência das ações de uma pessoa sobre a escolha (livre) de outra; trata-se apenas de saber se a escolha de alguém pode conviver com a escolha de outrem, segundo uma lei universal da liberdade, por isso, estritamente falando, “direito e competência de empregar a coerção são a mesma coisa”.456 Nas Lições de ética, Kant dizia: “na moral, as leis tem relação com a felicidade dos outros; na obrigação jurídica as leis tem relação com o querer de um outro”.457 De fato, a felicidade alheia é um dever de virtude, mas no conceito moral de direito, não se leva em conta a matéria da escolha, apenas a forma do querer. Por fim, vimos que o direito é condição para assegurar nosso progresso moral. 453 Lições sobre Antropologia, p. 274. 454 Lições sobre Antropologia, p. 275. 455 Lições sobre Antropologia, p. 276. 456 MC, § E, p. 78 457 “Nella morale le leggi posseggono um rapporto com la felicita degli altri; nel caso dell’obbligo giuridico le leggi contraggono um rapporto com il volere di un altro” (LE, p. 57). 140 Assegurar, mas não determinar. Se a liberdade externa (independência de ser constrangido pela escolha alheia) é o único direito inato, portanto, existente antes da condição jurídica, para chegar à moralidade precisamos da liberdade interna, aquela por meio da qual podemos nos obrigar a respeitar também a liberdade externa. Na caracterização daquele direito originário, no entanto, não é possível distinguir liberdade interna de liberdade externa, pois, é o próprio Kant quem estabelece como faculdades que residem no princípio da liberdade inata e que não são distintas dela: a igualdade inata (na relação entre os arbítrios, portanto, não ser obrigado mais do que pode obrigar); em decorrência disso, ser seu próprio senhor (isto é, obrigar a si mesmo, o que seria auto-coerção), e a qualidade de ser íntegro, irrepreensível (não fazer nada incorreto); por fim, “está autorizado a fazer aos outros qualquer coisa que em si mesma não reduza o que é deles, enquanto não quiserem aceitá-la”.458 Isto é totalmente compatível com o que já vimos a respeito da ideia de república em Kant, que tem na liberdade e na igualdade seus fundamentos, na verdade, a igualdade é a de que todos somos igualmente livres. Há ainda uma importante observação a fazer sobre a relação entre os deveres de direito e os deveres de virtude. Para Kant, a primeira condição de todo dever ético é realizar, antes de tudo, a obrigação jurídica, ou seja, a obrigação que deriva do direito de um outro deve ser satisfeita primeiro, para que, então, livre de obrigações jurídicas, portanto, independente do arbítrio de outrem, possa realizar o dever ético. É como se eu tivesse primeiro que me desobrigar dos meus deveres de coerção externa, para poder cuidar dos meus deveres éticos,459 mas isso não quer dizer se desobrigar dos outros, dado que ainda temos deveres éticos para com os outros, como a felicidade alheia, que é um dever de virtude, de coerção interna. Em resumo, a liberdade como direito inato é um direito humano e já está presente no estado de natureza. No entanto, após estabelecer que as leis externas (em geral) são “leis obrigatórias para as quais é possível haver uma legislação externa”, Kant distingue, dentre elas: as leis naturais, que são externas, mas “podem ser reconhecidas como obrigatórias a priori”460 mesmo sem legislação externa, e as leis positivas, que só obrigam com a efetiva legislação externa, portanto, só com esta são leis. Percebe-se aqui que uma lei natural teria de preceder a uma lei somente positiva para estabelecer a autoridade do legislador, pois, Kant esclarece que, no caso de conflito entre dois fundamentos para o dever, “a filosofia prática diz não que a obrigação mais forte tem precedência (fortior obligatio vincit), mas que o fundamento de 458 MC, 2003, p. 84. 459 “L’obbligo derivante dal diritto di um altro deve essere soddisfatto per primo [...] se non sono ancora libero dall’obbligazione giuridica, io debbo prima di tutto affrancarmi da essa, adempiendola, per poi adempire subito il dovere ético” (LE, p. 59). 460 MC, 2003, p. 67. 141 obrigação mais forte prevalece (fortior obliganti ratio vincit)”;461 o fundamento a priori é o mais forte. Deste modo, antes mesmo de ser um direito estabelecido por uma lei externa, o direito à alimentação pode ser considerado um direito natural, por sua relação intrínseca com a vida, muito mais do que com a liberdade, porque os que ainda não nasceram também precisam ser alimentados. Afirmo com isso que, se é certo que não pode haver liberdade sem vida, também não pode haver vida sem alimento, por isso, seguindo a filosofia kantiana, considero a alimentação um direito natural intrinsecamente ligado à vida, até mais do que a condição de liberdade como direito inato de cada indivíduo, posto que é um direito tão intrínseco que, antes mesmo de ser possível a liberdade, já está lá, se pensarmos na vida intrauterina que também precisa do alimento.462 Por outro lado, o direito de cada um obter seu alimento não pode impedir o direito de outrem de fazer o mesmo. Vimos que foi pela liberdade da razão – ainda no estado de natureza – que o homem pôde selecionar alimentos de modo diferente ao que seria feito apenas instintivamente. No entanto, neste estado de natureza, a liberdade de cada um escolher conforme sua razão encontra-se ameaçada, tanto pela liberdade dos outros como pela própria sensibilidade.463 Assim, a liberdade (negativa), quando referida à liberdade de escolha dos alimentos, nesse estado de natureza, estaria também em constante ameaça, na medida em que os homens disputariam os mesmos alimentos, gerando um estado permanente de guerra que poderia levar à ameaça de sobrevivência da espécie, dado que o alimento é essencial à vida. Por isso, uma vez que a realização do direito à alimentação requer ações humanas para obtenção, preparação, etc., a compatibilização da liberdade de todos só poderá ser feita na condição civil, se se quiser garantir a segurança deste direito, algo inexistente no estado de natureza. É preciso reconhecer, então, a importância da passagem que vai fazer do direito inato um direito adquirido no sentido de possibilitar a realização do DHAA de modo permanente. Um elemento fundamental que constitui mesmo uma condição para isso é abordado por Kant na doutrina do direito privado. 461 MC, 2003, p. 67. 462 Este direito também já é considerado público, haja vista que nossa Constituição estabelece, no mesmo artigo 6º, que reconhece a alimentação um direito social, também o direito de proteção à maternidade, o que é repetido no artigo 201, que trata da previdência social, cujo inciso II diz que atenderá à proteção à maternidade, sobretudo à gestante. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Brasília: Senado, 1988. Disponível em Cf. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 04 mar 2014. 463 Recorde-se, da primeira crítica (B 562), que “liberdade no sentido prático é a independência do arbítrio frente à coação dos impulsos da sensibilidade”. O arbítrio humano é um arbitrium sensitivum, porque é afetado pelos móbiles da sensibilidade, mas não é um arbitrium brutum – aquele que pode ser patologicamente necessitado, isto é, aquele que a sensibilidade torna necessária a sua ação, ao contrário, sendo livre, o homem possui a capacidade de determinar-se por si, independentemente da coação dos impulsos sensíveis. 142 3.3.3 Kant e o direito à terra: condição primeira de realização do DHAA Mesmo reconhecendo as ricas e distintas possibilidades para abordagem deste tema, e de modo mais profundo, nesse momento, vou tratar somente das considerações de Kant sobre a posse da terra, uma vez que a terra foi e continua sendo a melhor garantia de prover alimentos saudáveis para realizar o DHAA. Para dar um exemplo, o maior e mais antigo programa de alimentação escolar do mundo, nosso PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar), tem a possibilidade jurídica, desde 2009, de ser executado em integração com a agricultura familiar, visando à realização do DHAA das crianças. Na prática, a partir da Lei nº 11.947/2009, 30% dos recursos do programa devem ser destinados à compra de produtos da agricultura familiar. O próprio governo brasileiro, por meio do guia alimentar para a população, estimula “o engajamento dos cidadãos na reivindicação junto às autoridades municipais para a implantação de projetos de agricultura urbana e periurbana, que visam estimular a produção orgânica de alimentos em áreas ociosas das cidades e do seu entorno”.464 A importância da terra para a garantia do direito à alimentação é inegável.465 Ainda hoje, grande parte da nossa alimentação vem de produtos agropecuários,466 mas na época de Kant essa, certamente, era a única fonte utilizada. Entretanto, se nos dias de hoje já está suficientemente estabelecido que o campo da alimentação, embora diga respeito à satisfação da mais básica das necessidades naturais, não pertence apenas ao campo da natureza, do mundo físico, também na época de Kant, ele já percebera a insuficiência do instinto, como se lê na passagem a seguir: É difícil compatibilizar com a precaução que a natureza tomou com a conservação da espécie pensar um primeiro casal humano, já plenamente desenvolvido, que a natureza pusesse diante de meios de subsistência sem lhe ter dado ao mesmo tempo um instinto natural para eles, instinto que todavia não nos assiste no nosso atual estado de natureza.467 464 BRASIL, 2014, op. cit., p. 109. 465 ZIEGLER (2013, op. cit., p. 301-314) relata a especulação promovida pelos bancos em terras de países africanos. A respeito de uma crítica aos projetos de reforma agrária vinculados ao Banco Mundial, que tem sido implantados no Brasil, ver PEREIRA, João Márcio Mendes; SAUER, Sérgio. A “reforma agrária assistida pelo mercado” do Banco Mundial no Brasil: dimensões políticas, implantação e resultados. Revista Sociedade e Estado, v. 26, n. 3, set./dez. 2011, pp 587-612; FERRANTE, Vera Lúcia Silveira Botta, WHITAKER, Dulce Consuelo Andreatta (ORG.). Reforma agrária e Desenvolvimento: desafios e rumos da política de assentamentos rurais/; [autores] Bernardo Mançano Fernandes...[et al]. Brasília: MDA; São Paulo: Uniara [co-editor], 2008. 466 A disponibilidade de alimentos pode ser verificada no site da Companhia Nacional de Abastecimento, órgão vinculado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, responsável pela execução de uma política de preços mínimos. Cf. http://www.conab.gov.br/conteudos.php?a=1111&t=2. Acesso em 2 fev 2015. 467 Antr. 323, p. 217. 143 Apesar de todas as criaturas vivas necessitarem de alimentos, é apenas no homem, como ser racional, que tal necessidade precisa da razão. Se nos jardins do paraíso, o alimento era uma dádiva, com a queda, passou a ser tarefa humana, e o homem “passou da época de paz e tranquilidade para outra de trabalho e discórdia”468 na busca pelo alimento, embora possa ter sido de forma suficientemente lenta “a transição da selvagem vida de caçador para o primeiro estado [a vida de pastor] e a passagem da esporádica coleta de frutos e raízes para o segundo estado [a vida de agricultor]”.469 A partir do seu relato bíblico, Kant mostra as primeiras diferenças nos gêneros de vida humana, segundo o tipo de atividade para prover seu alimento: cômoda e mais segura é a vida pastoril, pois, o pastor pode sempre escapar com seu rebanho quando lhe convier, ao passo que a vida agrícola, além de mais penosa, por também se encontrar na dependência das condições do clima, requer ainda a propriedade limitada do solo.470 O agricultor poderia até sentir inveja do pastor, mas na verdade se ressente com o prejuízo que o rebanho pode causar em sua terra, por isso, teve de empregar a violência para defendê-la, afastando-a dos pastores. Aqui, claramente, Kant identifica o antagonismo da vida em sociedade presente também na luta pelo alimento, e uma vez não sendo mais suficiente apenas o instinto, a razão é chamada a assumir o seu papel nessa atividade, mas a condição para fazer isso com segurança há de ser apenas a sociedade civil. Do ponto de vista da ideia de uma história universal, poderíamos pensar um estado de natureza alimentar em que o homem vivesse do que lhe oferecia a natureza, e no qual houvesse muita disputa para obtenção do alimento, caracterizando uma situação constante de insegurança alimentar. Seguindo o fio condutor do progresso nessa história, a sociedade política tornar-se- ia necessária para garantir aquele direito natural – a alimentação – como um direito público, de modo que com o estabelecimento da condição jurídica, e até por isso mesmo, as pessoas manteriam em segurança seu direito de livremente escolher sua alimentação sem afetar o direito das outras pessoas, pois a legislação estabelecida por uma vontade geral, à qual todos aceitaram se submeter, estabeleceria as condições adequadas para isso. No Suplemento Primeiro da Paz Perpétua, Kant faz alusão à mudança na forma de 468 Conjecturas, 2009, 118, p. 162 (grifos do autor). 469 Conjecturas, 2009, 118, p. 162. 470 A agricultura nasceu ligada à natureza, seja como uma questão de esforço e vigilância, seja como um “culto”, uma participação ativa à ordem natural e divina, ou atividade guerreira, mas, sobretudo como atividade que ensina a justiça. Cf. XENOFONTE. Econômico. Tradução de Anna Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Tendo Sócrates como interlocutor, o personagem Iscômaco, rico proprietário de terras, descreve a agricultura como “uma arte tão amiga dos homens e tão fácil que basta que a olhemos e a ouçamos para que ela nos torne peritos nela. Sobre muitas coisas, disse, é ela mesma que ensina como usá-la da melhor maneira” (XENOFONTE, XIX, 17, 18, p. 89). O elogio de Sócrates à agricultura está no cap. V, p. 25-29. 144 obtenção dos alimentos que levou à variedade e diversidade de gêneros e destaca a importância de dois fatores que garantiram o avanço neste processo: a organização dos Estados e a garantia da propriedade. É com base neles que concluo minhas considerações sobre a importância do pensamento de Kant para a defesa do DHAA, incluindo a questão do direito à terra, imprescindível para a realização daquele direito. No âmbito do direito público, a atuação do Estado seria apenas negativa, para impedir as disputas individuais que afetassem os direitos de cada um. O problema que pode surgir é quando, mantidos os arbítrios individuais, o homem cede às próprias tentações e faz escolhas alimentares inadequadas, colocando em risco sua própria vida, o que poderia supor a necessidade de uma intervenção do Estado no sentido coercitivo. Se todos fizerem escolhas alimentares inadequadas, mesmo sem violar o direito de nenhum outro de fazer as adequadas escolhas, como assegura o direito, então, nenhuma coerção estatal – na forma do direito público – seria necessária, posto que Kant entende o direito como coação, mas para coagir quem viola o direito, isto é: “se um certo uso da liberdade é ele próprio um obstáculo à liberdade de acordo com leis universais [...], a coerção que se lhe opõe, enquanto impedimento de um obstáculo da liberdade, concorda com a liberdade segundo com leis universais”.471 Nesse caso, a atuação do Estado de forma coercitiva serviria para proibir o uso incorreto da liberdade, aquele uso que é, na verdade, um obstáculo ao correto uso da liberdade de acordo com leis universais. Porém, nos limites da liberdade externa, como convém ao direito, eu poderia admitir que, uma vez que meus maus hábitos alimentares não prejudicam o direito de outrem de manter seus hábitos saudáveis, não cabe ao Estado qualquer intervenção. Como, então, poderia ocorrer o progresso moral de uma espécie que se alimenta de modo a extinguir a vida? Que relação teria o direito com esse progresso? Ora, pelo exposto no primeiro capítulo, vimos que o progresso jurídico se deu na medida em que a concepção de segurança alimentar foi sendo ampliada até chegarmos ao conceito que temos hoje, relacionado à sustentabilidade, que entende a alimentação adequada como um direito fundamentado na dignidade humana. A pergunta que se faz, então, é: por que alguém renunciaria à própria dignidade, usando seu livre arbítrio para escolher alimentos não saudáveis? O direito humano à alimentação é um direito à alimentação adequada, ou seja, se eu faço outra escolha quando poderia escolher o que me é direito, estou simplesmente renunciando ao meu direito, e não há como eu ser coagida, já que não estou violando o direito de outrem. Nesse caso, a obrigação para realizar o direito à alimentação adequada de cada 471 MC, 2013, § D, p. 37, grifos do autor. 145 pessoa só poderia vir da ética, como dever de virtude. Ocorre que, nos dias de hoje, já não podemos simplesmente afirmar isso. Na verdade, o reconhecimento do dever jurídico de proibir ações nocivas à sociedade já tinha sido estabelecido na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que assim afirma em seu artigo 5º: “A lei não proíbe senão as ações nocivas à sociedade”, cuja justificativa encontra-se no artigo 6º: “A lei é expressão da vontade geral”, sendo assim, representa uma vontade coletiva na proteção e na punição.472 Precisamos, portanto, da proteção social. Além do mais, hoje mais que antes, nossas escolhas alimentares afetam as escolhas alheias, de modo que o livre arbítrio de cada um há de requerer um limite. Na medida em que consumo alimentos não saudáveis, estou estimulando sua produção, e com isso, os efeitos nocivos dessa produção que afetam não só a mim, nem a outras pessoas, mas até mesmo outras espécies, o solo e a água, como é o caso dos produtos agrícolas que contém venenos. Desta maneira, não posso defender uma imposição de cima de modelos morais ou formas de vida de um Estado ético.473 Para Bobbio, a tarefa do Estado protetor “não é dirigir os súditos para este ou aquele fim, mas unicamente vigiá-los para impedir que, na busca dos seus próprios fins, cheguem a conflitos”.474 Uma das formas de impedir é evitando a produção dos alimentos não saudáveis, tarefa que cabe ao Estado por meio de seu poder de polícia, fundamentado na lei. Assim, leis que protegem o direito à alimentação deveriam proibir tudo aquilo que viola esse direito. Para isso, precisamos de legisladores comprometidos com a garantia de realização do DHAA e de pessoas esclarecidas que exijam que tais leis sejam formuladas, exercendo o livre pensamento e a crítica. Não nos esqueçamos que são os princípios da liberdade “os únicos capazes de instituir uma constituição jurídica concordante com o direito”.475 Essa condição jurídica é pensada não apenas no âmbito do direito público do Estado, mas também no direito das gentes e no direito cosmopolita.476 Para Kant a relação é tão forte que: “se o princípio de liberdade externa limitada pela lei não estiver presente em qualquer uma dessas três formas possíveis de condição jurídica, a estrutura de todas as outras será inevitavelmente solapada e terá, finalmente, que desmoronar”.477 472 Disponível em http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0- cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos- do-homem-e-do-cidadao-1789.html. Acesso em 03 abr 2014. 473 PINZANI, 2004, op. cit., p. 131. 474 BOBBIO, 2000, op. cit., p. 7. 475 PP, p. 95. 476 Sobre esta distinção, ver nota 398. 477 MC, 2003, § 43, p. 154. 146 E é ao tratar do direito cosmopolita que Kant faz a segunda consideração importante que interessa ao DHAA. Ele diz que o direito de hospitalidade está fundado na posse comum da superfície da Terra, sobre a qual, enquanto superfície esférica limitada, dada a impossibilidade de ocupação até o infinito, os homens devem suportar-se uns aos outros, pois, “originariamente ninguém tem melhor direito do que qualquer outro a permanecer em determinado lugar do planeta”.478 Trata-se de uma posse comum, porque não foi escolhida nem adquirida. O que Kant chama de posse é a condição subjetiva de qualquer uso possível.479 A posse da terra é tratada na Doutrina do Direito Privado, no campo do que é externamente meu ou teu. O postulado jurídico da razão prática estabelece que posso ter como meu qualquer objeto externo de minha escolha, haja vista que seria contrário à lei que um objeto de escolha em si mesmo, isto é, objetivamente, tivesse de pertencer a ninguém (res nullius), por isso, “é um dever de direito agir com os outros de sorte que o que é externo (utilizável) possa também se tornar de alguém”.480 É suficiente estar consciente de ter uma coisa em meu poder para pensá-la como objeto de minha escolha, mas, neste caso, ainda não se trata da posse física, e sim inteligível. Um objeto de minha escolha é aquele cujo uso está em meu poder, o que requer que eu tenha poder físico para usá-lo como me agrade. Ocorre que apenas o poder físico não basta para usar uma coisa, e nem mesmo é suficiente; é necessário ainda supor a posse jurídica, que é meramente inteligível, mas fundamental para estabelecer a posse empírica.481 Somente no estado de natureza seria possível obter apenas a posse empírica como modo de ter alguma coisa externa como sua, sempre de modo provisório. É no estado civil que são dadas as condições para a garantia da relação jurídica de propriedade. Depois de tomar posse de um objeto que não pertence a ninguém, tenho ainda de indicar esta posse, excluindo qualquer outra pessoa dele, e para isso é necessário uma lei externa que obrigue a todos a respeitar a escolha que fiz ao tomar aquele objeto como meu. Mesmo a condição de comunidade (communio) do que é meu ou teu – que jamais pode ser pensada como 478 PP, p. 61. 479 Para Bobbio (2000, op. cit., p. 153), onde Kant fala de posse de uma coisa, poderia também ser dito direito (subjetivo) a uma coisa. 480 MC, § 2, p. 93. 481 Kant assim distingue: posse jurídica é uma posse intelectual, trata-se de minha relação intelectual com o objeto, na qual o tenho sob meu controle, o que é independente de determinações espaciais, pois, “a razão prática requer que pensemos a posse separada da posse desse objeto de minha escolha na aparência (ocupando-o), pensá-la não em termos de conceitos empíricos, mas conceitos do entendimento, aqueles que possam conter condições a priori de conceitos empíricos” (MC, 2003, p. 99, grifos do autor). A posse física é a posse empírica, fenomênica, pensada por meio da ocupação, de modo que posso ocupar uma coisa, sem ainda possuí-la juridicamente, do mesmo modo que, para que uma coisa esteja na situação de minha posse, juridicamente falando, não é absolutamente necessário que ela esteja na situação de minha posse física. Posse física e posse inteligível não coincidem, mas somente as duas caracterizam a propriedade jurídica. 147 original – tem de ser adquirida (por um ato que estabeleça o direito externo); original aqui não quer dizer ser primeira, mas que foi resultado de uma escolha unilateral.482 Fica claro que a primeira aquisição de uma coisa só pode ser a do solo,483 chamada de “aquisição original”, ocupação ou empoderamento. A aquisição é original porque não deriva do que é de outrem, por isso não exige um contrato. Diz Kant: “nada externo é originalmente meu, mas bem pode ser adquirido originalmente, isto é, sem ser derivado do que é de outrem”.484 O princípio da aquisição externa fica assim estabelecido: é meu o que trago para o meu controle (de acordo com a lei da liberdade exterior); o que, como um objeto de minha escolha, é alguma coisa para cujo uso tenho capacidade (conforme o postulado da razão prática); e o que, finalmente, quero que seja meu (em conformidade com a idéia de uma vontade unida possível).485 Em resumo, “qualquer pedaço de terra pode ser adquirido originalmente, e a possibilidade de tal aquisição está baseada na comunidade original da terra em geral”,486 porque no estado de natureza, antes de qualquer ato de escolha que estabeleça um direito, “todos os seres humanos estão originalmente numa posse de terra que está em conformidade com o direito”.487 Disso resulta que a comunidade da terra em geral decorre da mera existência dos homens sobre a Terra, cuja superfície esférica une todos os lugares sobre si, de modo que se o planeta fosse um plano ilimitado, “as pessoas poderiam estar de tal forma dispersas sobre ela que não chegariam a formar nenhuma comunidade entre si”;488 trata-se de uma posse constituída pela própria natureza, cujo conceito não é empírico. A posse original comum (communio possessionis originaria) é “um conceito da razão prática que encerra a priori o princípio exclusivamente de acordo com o qual as pessoas podem usar um lugar sobre a Terra conforme princípios de direito”.489 O interessante da resposta de Kant é que isso é assim porque os homens tem o direito de estar “onde quer que a natureza ou o acaso (independentemente da vontade deles) os 482 Nisso se distingue do primitivo: na comunidade primitiva supõe-se não estar baseada em princípios, por ter se estabelecido no mais remoto tempo, portanto, na história; mesmo assim: “teria sempre que ser pensada como sendo adquirida e derivada” (MC, 2003, §10, p. 103). 483 MC, 2003, § 12, p. 106. 484 MC, 2003, § 10, p. 103. 485 MC, 2003, § 10, p. 103, grifos do autor. 486 MC, 2003, § 13, p. 107. 487 MC, 2003, § 13, p. 107. 488 MC, 2003, § 13, p. 107. 489 MC, 2003, § 13, p. 107. 148 colocou”,490 ou seja, é uma condição natural – a superfície finita e limitada do planeta – que possibilita, na verdade, obriga os homens a estabelecerem relações recíprocas de respeito ao arbítrio de cada um, portanto às suas escolhas. É nesta condição que os homens devem desenvolver a chamada sociabilidade insociável, visando à paz, uma vez que o compartilhamento da terra faz com que a violação ao direito de um implique ferir o direito de todos. Essa ideia também possibilita pensar a universalização dos direitos, não fazendo mais sentido que apenas os nascidos em um determinado pedaço de terra tenham direitos e outros não,491 muito menos que alguns sejam expulsos de onde estavam.492 A proposta de um retorno ao compartilhamento da terra e seus produtos, como a semente, tem se tornado cada vez mais presente nos debates sobre a insegurança alimentar no mundo. O direito de usufruir dos bens comuns da terra, de onde provem alimentos (e água), certamente, é imprescindível para a garantia do DHAA. A discrepância da realidade brasileira, na questão do destino de recursos públicos ao latifúndio e aos pequenos proprietários é preocupante, tendo em vista que 70% dos alimentos produzidos para consumo interno vem da agricultura familiar.493 Valoriza-se mais a exportação de grãos do que a produção interna de alimentos, o que se reflete na inaceitável concentração de terra vigente no país, que não conseguiu até hoje reverter os efeitos da lei de terras.494 O Relatório da Câmara Federal para avaliar os avanços e desafios das políticas públicas de segurança alimentar e nutricional (2012) observa que, apesar do Brasil não ter realizado uma efetiva reforma agrária, “se pretende avançar na erradicação da pobreza e na garantia da segurança alimentar, não poderá deixar de considerar e tratar a reforma agrária como uma política estruturante que permitirá alcançar esse 490 MC, 2003, § 13, p. 107. 491 A proteção e o direito à terra já se encontravam assegurados no Código de Hamurabi, artigo 36: “O campo, o horto e a casa de um oficial, gregário ou vassalo não podem ser vendidos”. Cf. http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/hamurabi.htm. Acesso em 03 fev 2015. 492 Kant, no entanto, é criticado por defender a propriedade privada como até mesmo necessária para o ordenamento jurídico, embora aceite que, voluntariamente, se possa renunciar a ela. Uma vez que ele admite a liberdade como único direito inato, a doutrina do direito só pode se referir ao que é externamente meu ou teu. Ocorre que para fruir desses direito, de modo permanente, vivendo em sociedade, é preciso estabelecer o direito público. 493 Cf. https://mpabrasiles.wordpress.com/2010/02/18/censo-agropecuario-confirma-agricultura-camponesa-e-a- principal-produtora-de-alimentos-do-pais/. Acesso em 15 jan 2015. A agricultura familiar constitui 84,4% dos estabelecimentos brasileiros, mas ocupa uma área de apenas 24,3% da área ocupada por todos os estabelecimentos agropecuários brasileiros. Apesar de representarem 15,6% do total dos estabelecimentos, os estabelecimentos não familiares ocupam 75,7% da área ocupada. Enquanto a área média dos estabelecimentos familiares é de 18,37 hectares, a dos não familiares chega a 309,18 hectares. Cf. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo Agropecuário 2006: agricultura familiar. Rio de Janeiro, 2009, p. 19. 494 A associação entre a concentração de terras e o processo de apropriação de novas áreas para a produção voltada à exportação é uma realidade no Brasil: estabelecimentos rurais com menos de 10 hectares ocupam 2,4% da área total dos estabelecimentos, enquanto os grandes estabelecimentos com mais de 1.000 hectares concentram 44% dessa área. Relatório da Subcomissão Especial Destinada a Avaliar os Avanços e Desafios das Políticas Públicas de Segurança Alimentar e Nutricional em Nosso País, Brasília, 2012, p. 55. 149 objetivo”.495 Diante desta realidade, só podemos concluir que é preciso defender o direito à terra para a realização do DHAA. Para tanto, a reforma agrária é imprescindível. 495 Relatório da Subcomissão Especial Destinada a Avaliar os Avanços e Desafios das Políticas Públicas de Segurança Alimentar e Nutricional em Nosso País, 2012, p. 56. 150 4 KANT EM DEFESA DA ALIMENTAÇÃO SAUDÁVEL: DEVER DO ESTADO E DEVER DE VIRTUDE Somente a descida aos infernos do autoconhecimento constrói o caminho da glorificação (Kant, DV) Minha discussão sobre as escolhas alimentares começou a partir do ponto de vista de suas consequências individuais e ambientais, incluindo danos a espécies vegetais e animais, e a outras pessoas envolvidas na cadeia alimentar. De acordo com a visão conseqüencialista, mais difundida, especialmente a partir do movimento vegano que defende a vida animal, e mais recentemente pelos que já se posicionam contra os alimentos transgênicos, ganhou importância o reconhecimento das relações estabelecidas no ato de comer, como afirma King: Estas relações podem ser estreitas e locais ou de um espaço vital muito maior, mas a forma como comemos inevitavelmente nos conecta a outras pessoas, a animais, aos habitats e ao solo, e ainda ao nosso próprio senso de identidade pessoal. Essas relações, tanto com outras pessoas quanto com nós mesmos, são temas ricos para reflexões morais. Antes que possamos nos responsabilizar pelo que comemos, precisamos perceber a dimensão relacional do consumo.496 A dimensão relacional nos dias de hoje, no que se refere ao consumo e produção de alimentos, atingiu o âmbito global e, com isso, trouxe problemas cada vez mais complexos não só do ponto de vista da ética como do direito. Nossa legislação de segurança alimentar reconhece isso, ao propor considerar as dimensões ambientais, culturais, econômicas, regionais e sociais na elaboração das políticas e ações para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população.497 Tratei até aqui de um direito humano à alimentação adequada; vimos a construção histórica deste direito; defendi que tal direito, por sua relação intrínseca com a vida, fosse também um direito inato, independente de estatuto jurídico para estabelecê-lo; e como no estado de natureza todos os direitos são meramente provisórios, a condição civil, o Estado, tornou-se imperativa para garantir peremptoriamente aquele direito. Neste percurso, foi inevitável considerar que a garantia jurídica do DHAA no Brasil pode-se colocar como pré-condição para uma reflexão ética. 496 KING. Roger J.H. Comendo bem: pensando a comida eticamente. In: Allhoff, F. & Monroe D. (Org.). Comida e filosofia: coma, pense e seja feliz. Tradução Marina Herrmann. Rio de Janeiro: Tinta Negra, 2012, p. 216. 497 LOSAN, art. 2º, §1º. 151 Assim sendo, para ampliar o DHAA, tendo em vista sua efetivação, é preciso agora considerar o o âmbito da escolha individual e da liberdade interna, para o que será útil a doutrina da virtude proposta por Kant. Enquanto a doutrina do direito tinha a ver apenas com a condição formal da liberdade externa, isto é, a coexistência dos arbítrios (direito), uma doutrina da virtude tem de dar uma matéria, um objeto do livre arbítrio, que será um fim da razão pura representado como objetivamente necessário, independente de toda inclinação e que a ela se contrapõe. Embora Kant diga que o direito seja mais fácil de explicar do que o dever,498 sua realização não é nem um pouco fácil, como ficou evidenciado pela realidade que apresentei no capítulo inicial. Em primeiro lugar, o DHAA não pode se realizar de modo isolado, quer dizer, quando se considera apenas um indivíduo, na verdade, nem poderia existir qualquer direito se os homens não fossem seres sociais. Assim, é em sociedade que se deve pensar tanto a realização daquele direito como a aplicação de uma doutrina da virtude, de modo que ao falar em “escolhas individuais” não devemos entender um indivíduo tomado isoladamente, mas sua condição de pessoa humana, como ser social, afinal, é em sociedade que nos tornamos humanos, e a sociabilidade, como já vimos, é um importante componente das escolhas alimentares. O que caracteriza a humanidade, em Kant, é a faculdade de propor-se fins. É pela representação de um fim – como objeto do livre-arbítrio – que uma ação, para produzir aquele fim, é determinada, por isso, ter um fim é um ato de liberdade. Os fins podem ser objetivos (motivos) ou subjetivos (móbiles); fins subjetivos são relativos, tem valor para nós apenas como efeito de nossa ação, enquanto os fins objetivos tem valor absoluto.499 Toda ação tem um fim, mas nem todo fim é um dever, e nem todo dever é um dever de virtude. Kant esclarece que fins que são também deveres não são fins que “o ser humano se propõe segundo os impulsos sensíveis de sua natureza”; são, ao contrário, “objetos do livre- arbítrio sob suas leis, os quais ele deve propor-se como fim”.500 Esta distinção é fundamental e resume toda a problemática no campo alimentar abordada neste trabalho: ao mesmo tempo em que o alimento é objeto da sensibilidade, para o qual os impulsos da natureza humana podem ser direcionados, é o alimento saudável – objeto principal deste capítulo – que deve ser também um fim e para tanto, princípios práticos a priori, e não empíricos, são aqui apresentados. Certamente, uma defesa kantiana da alimentação saudável não poderá ser feita a partir de meras recomendações dietéticas. O que busco são imperativos, afinal, afetado pela sensibilidade, nosso arbítrio pode fazer escolhas não saudáveis, sucumbindo diante das 498 Lições de Direito Natural, p. 102. 499 FMC, BA 64-67, p. 71-73. 500 MC, 2013, 385, p. 196, grifos do autor. 152 múltiplas inclinações alimentares, e visto que não temos uma vontade santa, isto é, aquela em que a máxima do arbítrio pode ao mesmo tempo ser uma lei prática objetiva, vou mostrar a necessidade da virtude, “a coisa mais elevada que uma razão prática finita pode conseguir”.501 Deixo claro que minha discussão não tem por objetivo estabelecer um padrão alimentar moral com base no discurso científico, apresentando o que a ciência estabelece como “alimentação saudável”, em relação à quantidade e do ponto de vista da qualidade biológica, nutricional, tecnológica, higiênica e sanitária. É verdade que não posso negligenciar a importância dos “conselhos dietéticos”, como imperativos hipotéticos de prudência, para os quais a razão só fornece leis pragmáticas (não morais) que justificam a necessidade da alimentação adequada para obter mais saúde, qualidade de vida e prevenir doenças, até porque tais normas fazem parte de políticas públicas e programas voltados à segurança alimentar e convém reconhecer o seu papel no contexto político-educativo. Contudo, segundo Kant, enquanto no dever jurídico, o meu e o teu tem de ser determinados pela precisão da balança da justiça, no dever de virtude não se trata da precisão da matemática, nem de “saber qual é o dever a ser realizado (o que, em razão dos fins que todos os homens naturalmente têm, pode ser facilmente estipulado), mas sim, e antes de tudo, do princípio interno da vontade, a saber, que a consciência deste dever seja, ao mesmo tempo, móbil das ações”502 – é isso que se requer para dizer de alguém que junta ao seu conhecimento esse princípio de sabedoria que é um filósofo prático. O problema, então, é como atender a uma necessidade essencial de modo moral, a partir de uma lei da razão que determine a vontade, independente de qualquer móbil, o que apenas para seres racionais pode ser pensado, pois, é característica do livre arbítrio poder superar o impulso sensível. Não se quer, com isso, dizer que qualquer estímulo sensível para a escolha saudável dos alimentos deva ser excluído, o que faria da alimentação um ato meramente mecânico, pelo contrário, isso é até uma condição necessária, mas jamais suficiente para que se possa estabelecer um imperativo ético em relação à alimentação saudável. Por outro lado, é possível questionar a necessidade de um imperativo da razão para a satisfação de uma necessidade fisiológica para a qual já existe em nós um impulso natural,503 por exemplo, um bebê, logo ao nascer, busca o seio da mãe para se alimentar. Por que, então, precisaríamos de um imperativo para obter alimentos quando fôssemos sujeitos livres? A boa vontade é mesmo necessária para a escolha de uma boa alimentação? A natureza não seria 501 CRPr 58, p 55. 502 MC, 2013, 375, p. 185, grifos do autor. 503 MC, 2013, 215, p. 21. 153 suficiente para nos possibilitar a correta escolha dos alimentos? Como estabelecer deveres em relação a uma necessidade natural? São estas as questões que orientam a construção deste capítulo, cujo ponto mais destacado será a defesa de que somente o indivíduo, como vontade particular, pode dar a si mesmo uma lei que o obrigue à correta alimentação, para distinguir da obrigação que tem o Estado em relação à alimentação como direito de todos. Sobre a distinção entre lei e dever, conforme se trate do direito ou da ética, já foi estabelecido que o dever está em relação imediata com a lei, tanto para o direito como para a ética, pois o conceito de dever é já o conceito de coação; a diferença é que no direito essa coação é externa, e na ética é auto-coação, isto é, coação interna. Disso resulta que o direito só pode estabelecer leis para as ações, enquanto na ética a lei só pode prescrever a máxima das ações – que é um princípio subjetivo504 –, e não as próprias ações. Assim sendo, uma legislação é ética se somente inclui o motivo interno do dever na própria lei; caso contrário, é uma legislação jurídica, cujo motivo é externo (o constrangimento alheio ou a ameaça de punição). Deste modo, o que distingue a doutrina do direito da doutrina da virtude não é tanto uma diferença entre deveres, mas, uma diferença na legislação, a qual relaciona um motivo ou outro com a lei. É bastante ter presente como motivo a ideia de dever para realizar uma ação virtuosa. Kant exemplifica isso com o dever de cumprir uma promessa ou um contrato, cuja legislação pode ser externa, mas a ética por si mesma ordena cumprir os próprios compromissos mesmo sem qualquer coerção externa; assim, da conciliação entre a coerção (externa, portanto, oriunda do direito) e a liberdade do arbítrio, o conceito de dever se torna ético. A simples conformidade ou não de uma ação com a lei, independentemente do motivo para ela, é o que Kant denomina sua legalidade (licitude), ao passo que somente aquela conformidade na qual a ideia de dever que emerge da lei é também o motivo da ação pode ser chamada de moralidade. No direito temos uma relação de heteronomia, e na ética, de autonomia. Essa é a distinção fundamental para aceitar um dever de virtude relacionado ao cuidado com a própria alimentação, como ampliação do direito. Na verdade, impor um dever ético quanto a isso através da força coercitiva do Estado – no campo do direito – seria já uma contradição, segundo aquela distinção feita por Kant entre legalidade e moralidade (eticidade). Isto posto, para defender a alimentação saudável como um dever de virtude, apresento neste capítulo a doutrina da virtude de Kant, tendo como pressupostos o direito à alimentação 504 O fato de ser subjetivo aqui, de nenhum modo deve ser pensado como relativo, como se fosse um princípio de felicidade que cada um estabelece para si; ao contrário, a máxima traz consigo um caráter de universalidade, na medida em que leis práticas, quando se tornam, “ao mesmo tempo, fundamentos subjetivos da ação, isto é, princípios subjetivos, chamam-se máximas” (CRP, B 840). 154 como direito inato e a necessidade da condição jurídica para que esse direito tenha segurança, isto é, para que todos possam realizá-lo a partir de suas livres escolhas. Meu objetivo é distinguir a alimentação saudável como um dever (interno) de virtude, que não se confunde com a obrigação jurídica (externa) do indivíduo, nem com as obrigações do Estado. Não posso defender uma legislação jurídica que estabeleça um dever de direito quanto a uma alimentação saudável,505 pois o que temos no campo jurídico é o direito de todos a uma alimentação saudável, que gera uma obrigação do Estado no sentido de propiciar as condições para a realização deste direito e não colocar obstáculos a isso.506 Além disso, defender uma doutrina da virtude alimentar exige considerar inconcebível, como para Kant, que a prática da virtude se dê tendo em vista, seja a natureza humana, enquanto fenômeno e submetida às leis de causalidade natural, seja a felicidade própria. Ademais, considero que uma auto-reflexão moral da práxis alimentar, na forma conduzida por Kant, isto é, tendo em vista a moralidade do sujeito na perspectiva do progresso, pode levar à definição da alimentação saudável como dever de virtude, e como tal, um ideal inalcançável, por isso mesmo, sempre em progresso, portanto, que deve sempre ser buscado. É na busca constante da alimentação saudável que seguimos o caminho do aperfeiçoamento, em respeito à nossa dignidade, fundamento de todo o direito humano, afinal, o traço humano distintivo em relação às outras criaturas é exatamente poder se aperfeiçoar, dada a sua condição livre, por meio da qual pode estabelecer a perfeição como fim que é dever. Já foi dito que Kant pensou a moralidade como destinação do homem (possível somente para a espécie). Nas Lições de Ética, ele nos diz que viver como homens é viver dignamente e não degradando a nossa humanidade.507 Veremos, ao longo deste capítulo, de que modo a alimentação pode degradar a humanidade em nós, para reconhecer que, também no caso desta atividade básica, a razão terá um importante papel a cumprir, porque tem interesse (prático) naquilo que escolhemos comer, ao contrário do que disse Sócrates;508 tal interesse, porém, será distinto daquele já apresentado, que recorre ao princípio da utilidade. 505 Deveres de direito são officia iuris, isto é, são obrigações que alguém tem por causa de um direito alheio, portanto posso ser obrigada por outrem a fazer (ou não) alguma coisa; deveres de virtude são officia virtutis scilicet ethica e se distinguem pelo fato de que para estes, não é possível uma legislação externa, portanto, são obrigações que somente eu posso impor a mim mesma, não havendo direito corresponde de outrem, mas sim um fim que é um dever (MC, 2013, 239, p. 45). 506 Sobre isso, remeto, mais uma vez, ao artigo 2º da nossa LOSAN, que estabelece as obrigações do Estado, tendo em vista o DHAA. 507 “La vita stessa non va tenuta in pregio se non perché, vivendo, si vive da uomini: essa, cioè, non consiste nella ricerca degli agi, ma nel non degradare la mostra umanità. Bisogna dunque vivere degnamente, da uomini: qualunche cosa ci privi di ciò ci rende incapaci a tutto e ci annulla come uomini” (LE, p. 137). 508 Fédon, 64d. 155 Ao estabelecer uma nova dimensão, a dimensão moral, para as escolhas alimentares, proponho uma ampliação de perspectiva na consideração do direito à alimentação: reconhecendo na falta do alimento uma condição indigna para o ser humano, o direito à alimentação resgatou a dignidade humana como seu fundamento, algo que é essencial para a realização da destinação do homem. Quando torno moral a escolha alimentar, reconheço também que será possível determiná-la tendo em vista a humanidade como fim, o que implica sair do âmbito pragmático-instrumental, aquele que entende a alimentação apenas como meio para manter a vida e a saúde, para entrar no campo da doutrina dos deveres (moral), relacionando liberdade, dignidade e moralidade no campo da alimentação. Se pensada a alimentação apenas do ponto de vista meramente fisiológico, sabemos que é possível “manter- se vivo”, porém, de forma indigna, como milhões de pessoas que não se alimentam adequadamente e vivem naquilo que consideramos “condições sub-humanas” ou “indignas” de vida, o que mostra que há um ideal a ser perseguido, um ideal de moralidade, segundo o qual será possível rejeitar certas escolhas por serem imorais. Disso resulta que defender a alimentação saudável no âmbito da doutrina da virtude exige reconhecer a importância não apenas da liberdade do indivíduo, seja como independência do arbítrio frente à coerção por impulsos, seja como autonomia, mas também daquilo que Kant chamou de antropologia moral, o outro membro da filosofia prática,509 ou seja, não posso prescindir de aspectos antropológicos da alimentação ao tentar estabelecer o fundamento de um dever de virtude quanto à alimentação saudável. Por isso, o estudo das disposições morais – apresentadas no capítulo anterior – também será aplicado às escolhas alimentares. Utilizo, neste capítulo, a forma apresentada na Antropologia para aprofundar de que modo o alimento pode estar relacionado a cada uma das disposições: técnica, pragmática e moral, o que me leva a considerar, na discussão dos deveres de virtude, os hábitos alimentares tecnicamente considerados saudáveis, embora constituam apenas costumes e práticas tradicionais. Destaco, neste ponto, a importância do conhecimento empírico para a atitude ética que se requer aqui. Da relação entre ética e antropologia em Kant, Rohden afirma que “o elemento antropológico da ética consiste em reconhecer que também no conhecimento prático levamos em conta a experiência, mas que este conhecimento empírico apenas indica o horizonte de mundo da determinação ética”,510 dado que as leis mediante as quais a ética determina o agir de “seres livres guiados por representações de fins, são leis práticas racionais do que o homem 509 MC, 2013, 217, p. 23. 510 ROHDEN, Valério. O humano e o racional na ética. Studia Kantiana 1 (1): 307-321, 1998, p. 310. 156 deve ser, e não leis empíricas do que o homem é”.511 Se é possível dizer quem somos a partir do que comemos,512 então se pode refletir, kantianamente, sobre o que devemos comer – como seres livres que somos – em função do que devemos ser, numa perspectiva teleológica. Para a discussão da escolha alimentar como dever de virtude, será necessário, além do referencial antropológico, que perpassa toda a obra de Kant, a sua Pedagogia, ambas orientadas por um princípio teleológico, já abordado no capítulo anterior. Como reconhece Höffe: um ajuizamento abrangente da filosofia prática de Kant teria de considerar também textos como Antropologia de um ponto de vista pragmático ou a preleção sobre Pedagogia, na qual Kant interpreta o processo educacional como uma espécie de ponte entre natureza e moral, entre o caráter empírico e o caráter inteligível do homem.513 Neste processo, a pedagogia de Kant será fundamental, pois, “o homem não pode tornar- se um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz”.514 Discuto, ao final deste capítulo, o papel da educação no campo alimentar, quando considero a relação entre nossos hábitos alimentares e nossa postura como “espectador” ou como “agente”. É como agente que o homem pode livremente fazer suas escolhas alimentares com base em um caráter, quando o que importa é o que ele faz de si mesmo, e não o que a natureza faz dele. Como “consequente maneira de pensar prática segundo máximas imutáveis”,515 o caráter só pode ser fundado por um “motivo moral puro”, que é unicamente o respeito à lei. Assim, se existe uma virtude alimentar, no sentido de ser a alimentação saudável um dever de virtude, é porque existe o homem que pode ter um caráter, ou seja, “aquela qualidade da vontade segundo a qual o sujeito se obriga a seguir determinados princípios práticos que prescreveu inalteravelmente para si mesmo mediante sua própria razão”.516 Já ficou claro que o horizonte de mundo no campo da alimentação, nos dias de hoje, coloca imensos desafios para a prática do Nutricionista, diante dos inúmeros conflitos que surgem entre as regras da boa alimentação – o que sabe que se deve fazer – e as escolhas 511 ROHDEN, 1998, op. cit., p. 310, grifos do autor. 512 É famoso o adágio “dize-me o que comes e te direi quem és” (BRILLAT-SAVARIN, 1995, op. cit., p. 15). O autor da frase é Feuerbach, cf. http://homo-homini.blogspot.com.br/2009/05/feuerbach-el-hombre-es-lo-que- come.html. Acesso em 10 jul 2015. 513 HÖFFE, 2005, op. cit., p. 187. 514 Ped., 443. 515 CRPr, 271, p. 241. 516 Antr., 292, p. 187-8. 157 efetivamente adotadas.517 Mesmo no âmbito do direito, onde não se pode negar o progresso jurídico, este é extremamente frágil, se refletirmos sobre o exercício do poder de polícia do Estado quando necessário à proteção social. A forte pressão da indústria alimentar e do agronegócio, por exemplo, revelam a desigualdade entre a força do direito e da moral, quando confrontados com o poder político e econômico.518 Passo, então, à apresentação da doutrina kantiana da virtude para mostrar como ela ainda pode nos auxiliar na fundamentação de uma obrigação ética quanto às escolhas alimentares saudáveis, no contexto atual. Se é um dever de virtude escolher alimentos saudáveis, então é preciso buscar na metafísica os princípios de uma doutrina da virtude para chegar aos primeiros princípios deste dever. Novamente, a ideia central aqui será a da liberdade, desta vez, não a liberdade externa, mas interna, tendo como pano de fundo a interação entre natureza e liberdade que se dá no campo alimentar. De necessidade básica para a qual os instintos nos prepararam, a escolha do alimento, como ato de liberdade, terá de ocorrer pela interação com a natureza, numa situação de conflito entre a virtude e a felicidade. Ao final, discuto como esse conflito pode ser trabalhado pelo Nutricionista na prática da educação nutricional, segundo a perspectiva da pedagogia de Kant. Para tanto, aponto alguns problemas que podem surgir na nossa prática, quando queremos estabelecer, didaticamente, uma doutrina moralmente prática para as escolhas alimentares, não aquelas escolhas que estão apenas submetidas aos hábitos, inclinações e às leis da natureza, mas as que se encontram em harmonia com as leis da liberdade, afinal, cabe ao profissional promover aquilo que seria mais próximo da perfeição nesta relação de harmonia entre um ser que, ao mesmo tempo em que está submetido às leis naturais, é também livre, único capaz de obrigar a si mesmo. 517 A alimentação saudável tem leis universais que indicam o que se deve fazer. São quatro as leis da alimentação propostas pelo médico argentino Pedro Escudero: quantidade, qualidade, adequação e harmonia. Cf. LANDABURE PB. Pedro Escudero: his thoughts, his doctrine and his works. Prensa Med Argent 1968;55(41):1983-9. Escudero é considerado o pai da nutrição latino-americana, e o dia de seu nascimento tornou- se o dia do nutricionista no continente. 518 O ex-relator da ONU para o DHAA, Jean Ziegler, enumerou os sete principais obstáculos econômicos à realização do DHAA: 1. problemas relacionados ao comércio mundial, especialmente as políticas para a agricultura de países desenvolvidos, sancionadas pela OMC; 2. Juros da dívida externa, incluindo os programas de ajuste estrutural do FMI; 3. Desenvolvimento da biotecnologia, incluindo os OGM, a propriedade de patentes internacionais do agronegócio dos países do Norte e a proteção internacional dessas patentes; 4. guerras; 5. Corrupção; 6. Acesso à terra e ao crédito; 7. Discriminação contra as mulheres. ONU. ECONOMIC, SOCIAL AND CULTURAL RIGHTS. The right to food Report by the Special Rapporteur on the right to food, Mr. Jean Ziegler. E/CN.4/2001/53 7 February 2001. Sobre como responsabilizar empresas transnacionais – cujas ações se pautam pela obtenção do lucro máximo – por seus crimes de violação de direitos humanos, ver PRIOSTE, Fernando Gallardo Vieira & HOSHINO, Thiago de Azevedo Pinheiro. Empresas transnacionais no banco dos réus: Violações de Direitos Humanos e Possibilidades de Responsabilização. Curitiba: Terra de Direitos, 2009. 158 4.1 Virtude e felicidade em Kant: a encruzilhada da alimentação saudável A virtude não deve ser barata, mas também não tão cara, de forma que a maioria não possa comprá-la. Preferimos também que a virtude brilhe por sua própria luz em vez de brilhar em contraste com a escuridão do vício, embora seja esta a situação em que ela mais reluz (Hans Jonas, O princípio responsabilidade) Na Metafísica dos Costumes, onde apresenta uma doutrina do direito e uma doutrina da virtude, Kant explica porque toda a doutrina dos costumes (moral) não é também chamada de doutrina dos direitos: é porque todas as leis morais (e aí estão incluídos todos os direitos e os todos os deveres) provêm da liberdade, e esta só pode ser conhecida por meio do imperativo moral, “que é uma proposição que ordena o dever e a partir da qual pode ser desenvolvida, depois, a faculdade de obrigar aos outros, isto é, o conceito do direito”.519 Se a faculdade de obrigar aos outros (o direito) vem depois, pode-se supor que primeiro vem a faculdade de obrigar a si mesmo (a virtude). A autocoerção parece, então, estar colocada antes da coerção externa que se estabelece na minha relação com o outro, mas pode se tratar apenas de uma obrigação moral de autolimitação às ações que são direito, sem que isso faça parte do direito.520 O certo é que nossas obrigações externas dizem sempre respeito ao direito dos outros, embora também possamos ter obrigações internas para com os outros, como temos para conosco, que não estão no âmbito do direito, ou seja, para as quais não cabe coerção externa. A anterioridade da ética (doutrina da virtude) pode ser pensada ainda a partir da distinção entre deveres de direito e deveres de virtude, conforme já exposto.521 No caso dos deveres de virtude, na medida em que tem a ver com fins que são deveres, não é possível legislação externa, porque “nenhuma legislação externa é capaz de fazer alguém estabelecer um fim para si mesmo (já que isto constitui um ato interno da mente), a despeito de lhe ser possível prescrever ações externas que conduzem a um fim sem que o sujeito o torne seu fim”.522 É crucial entender que a existência de tais deveres em relação a si mesmo é fundadora de qualquer outro dever, do que resulta que um dever jurídico pode ser um dever ético, mas um dever ético não pode ser um dever jurídico. De todo modo, é inegável que há certa ambiguidade 519 MC, 2013, 239, p. 45. 520 WOOD, 1999, op. cit. p. 322. 521 Apesar das ambiguidades, Kant admite a anterioridade dos deveres para consigo em relação a qualquer outro dever, ao afirmar que: “supondo que não houvesse tais deveres, não haveria deveres quaisquer que fossem e, assim, tampouco deveres externos, posto que posso reconhecer que estou submetido à obrigação a outros somente na medida em que eu simultaneamente submeto a mim mesmo à obrigação” (MC, 2003, p. 260). 522 MC, 2003, p. 85. 159 na leitura de Kant, pois ele coloca ainda a obrigação jurídica como condição do dever ético.523 À parte as ambiguidades, porém, existem similaridades entre deveres jurídicos e deveres éticos, como já apontadas neste trabalho, a partir dos pontos de interseção entre ética e direito aplicados à alimentação. No caso brasileiro, recordo que, do ponto de vista do direito público, poderíamos pensar que o direito à alimentação não é um direito inato, posto que precisou ser estabelecido por um ato legal, no entanto, nossa LOSAN o coloca como inerente à condição humana e anterior e indispensável à realização de todos os outros direitos constitucionais que são adquiridos. Ser inerente pode ser considerado como interno à condição humana, portanto, seria inato no sentido kantiano, já que Kant afirma que “o que é inatamente meu ou teu também pode ser qualificado como o que é internamente meu ou teu”.524 Se nossa constituição considera o direito à alimentação inerente à condição humana, então a alimentação é inerente à liberdade porque a condição humana é a de um ser livre.525 Assim, para pensar uma ética da alimentação orientada pela doutrina kantiana da virtude, preciso conciliar – no que diz respeito à relação com o alimento, no ato mesmo da escolha – a dupla condição da natureza humana, isto é, devo considerar tanto seus aspectos físicos e biológicos – submetidos às leis da natureza –, como sua condição de um ser dotado de liberdade, capaz de atuar sobre esta mesma natureza. Uma escolha alimentar “ética” pressupõe uma intervenção da razão como causa de ações no mundo sensível, já que nossa natureza é tanto sensível como racional. E mesmo reconhecendo que a natureza peculiar do homem só pode ser conhecida pela experiência, Kant não vê nisso nenhum prejuízo quanto à pureza dos princípios morais universais que ele pretende estabelecer,526 pois, se a antropologia não pode fundamentar a moralidade, pode, no entanto, funcionar como laboratório para a filosofia prática, já que sem aquela, esta seria apenas especulativa, anunciando regras conhecidas de todos, porém como sermões vazios sem nenhuma utilidade. De nada serve qualquer regra se não se puder tornar os homens dispostos a observá-la, por isso, é necessário conhecer o homem para saber se ele pode realizar o que se exige dele,527 donde a importância da pedagogia e da antropologia para a 523 LE, p. 57. 524 MC, 2003, p. 83, grifos do autor. 525 O aforismo I de Brillat-Savarin (1995, op. cit., p. 15) expressa essa relação íntima entre vida e alimentação: “o universo nada significa sem a vida, e tudo o que vive se alimenta”. 526 MC, 2013, 217, p. 23. 527 LE, p. 5. 160 aplicação da doutrina da virtude ao campo da alimentação saudável.528 Virtude, em Kant é, basicamente, firmeza da máxima no cumprimento do dever, é a faculdade moral de autocoerção a partir de um princípio da liberdade interna. A natureza humana, por seus móbiles que podem afetar o arbítrio, requer um obstáculo, que é exatamente a virtude, uma resistência que se opõe ao adversário da disposição moral em nós. É capaz de impor resistência aos obstáculos contrários ao dever quem faz da consciência do dever o móbil da ação, algo que não pode ser imposto a outrem, por isso, a autocoerção é o que faz do dever um dever ético, e a virtude é considerada a moralidade humana no seu grau mais elevado.529 Ela exige uma firmeza moral “da vontade de um ser humano no cumprimento do seu dever, que é uma necessitação moral por meio de sua própria razão legisladora, na medida em que esta se constitui como um poder executivo da lei”.530 Kant disse: a verdadeira “figura da virtude” nada mais é do que “representar a moralidade despida de toda a mescla de elementos sensíveis e de todos os falsos adornos da recompensa e do amor de si”.531 Ele rejeitou que os modelos de virtude obtidos pela experiência pudessem servir como arquétipos; eles podem, no máximo, servir como exemplos, conforme se lê na passagem abaixo: Quem quisesse extrair da experiência os conceitos de virtude ou quisesse converter em modelo de fonte de conhecimento (como muitos realmente o fizeram) o que apenas pode servir de exemplo para um esclarecimento imperfeito, teria convertido a virtude num fantasma equívoco, variável consoante o tempo e as circunstâncias e inutilizável como regra.532 Para Kant, a virtude é uma ideia pura da razão, e é pela ideia pura de virtude – independente de todo o empírico – que todo o juízo sobre valor ou desvalor moral é possível.533 Caberá à virtude fundar a perfeição moral, a despeito dos obstáculos da nossa natureza para realizar esta ideia. É preciso distinguir a virtude do dever de virtude que se quer estabelecer: se a virtude diz respeito ao elemento formal das máximas, é o dever de virtude que vai se referir à 528 Embora a Antropologia pareça ficar fora do projeto crítico kantiano, como apenas uma observação do homem útil para “investigar fisiologicamente as causas de suas ações” (CRP, B 578), ainda é possível admitir que o afastamento do empírico na fase crítica não se traduz na negação do seu papel, pois o mesmo Kant confirma o alto valor que possui esse conhecimento empírico acerca do homem “como meio para se atingir fins da humanidade que na maior parte das vezes são contingentes, mas ao fim e ao cabo também para se alcançar fins necessários e essenciais” (CRP, B 878). Trata-se, portanto, de uma estratégia metodológica, pela exigência da completa separação do empírico, que leva Kant a colocar a antropologia como “análogo da física empírica” (CRP, B 877). 529 MC, 2013, 383, p. 194. 530 MC, 2013, 405, p. 217. 531 FMC, BA 61, p. 69. 532 CRP B 370. 533 CRP, B 372. 161 matéria, isto é, ao fim das ações que é pensado como dever, de modo que só vamos ter uma virtude, mas deveres de virtude podem ser vários, porque podemos propor várias coisas como fim para nossas ações.534 Se quisermos estabelecer um dever de virtude em relação à alimentação, considerando que a virtude não pode ser fundada na experiência, como são os impulsos à alimentação, então, tenho de tirar a alimentação do campo da natureza e levá-la para o campo moral. Fora do campo da moral as escolhas alimentares podem trazer prejuízos à saúde, conforme já apresentado, no entanto, considerando o ponto de vista de Kant, não se trata de fazer referência às consequências negativas da alimentação para a saúde, e sim de pensar na conservação e no cuidado de si como fins que são deveres, tais como o dever de manter a vida e a saúde. Ao longo dessa seção, será possível evidenciar a distinção profunda entre o que vai propor Kant, com sua doutrina da virtude, e a ética utilitarista, apresentada no início deste trabalho”.535 A questão inicial que se coloca é a da própria necessidade de tais deveres, quero dizer, que obstáculos a natureza criaria para os seres racionais de modo que se devesse alimentar sem ter por fundamento os instintos naturais? Afinal, criaturas não racionais cumprem bem sua destinação apenas determinadas pelos impulsos sensíveis, inclusive no que se refere à alimentação. Na verdade, os obstáculos não são criados pela natureza, mas pela natureza humana. À diferença dos outros animais, não nos alimentamos apenas guiados por impulsos sensíveis. Existe uma necessidade fisiológica que nos impele a isso, é verdade, mas somente seres racionais podem tomar interesse por alguma coisa, e certamente o interesse está presente na relação do homem com o alimento, na medida em que o agradável pode influir na vontade por meio das sensações. Na determinação das escolhas alimentares, o alimento é matéria (objeto) da faculdade de apetição – isto é, “um objeto, cuja efetividade é apetecida”536 –, sendo indiscutível que o prazer é um princípio prático, “na medida em que a sensação de agrado que o sujeito espera da efetividade do objeto determina a faculdade de apetição”,537 contudo, os conceitos de prazer e desprazer, de desejos e inclinações, etc., fundados sobre a condição subjetiva da receptividade, são todos de origem empírica e não podem ser, por si mesmos, os fundamentos dos preceitos morais; são, em realidade, obstáculos que deverão ser transpostos 534 MC, 2013, 395, p. 206. 535 Na opinião de Höffe (2005, op. cit., p. 185), por exemplo, a ética kantiana “apresenta o mais importante contra- modelo à ética utilitarista [...] pela extremamente elaborada conceituação [...]”. 536 CRPr, 38, p. 36. 537 CRPr, 40, p. 38. 162 ou estímulos que não deverão converter-se em móbiles para a ação moral.538 Sobre interesse, Kant dá a seguinte definição : “interesse é aquilo porque a razão se torna prática”,539 quer dizer, é aquilo que faz a razão determinar a vontade, mas que “só tem pois lugar numa vontade dependente que não é por si mesma em todo o tempo conforme à razão”,540 ou seja, apenas os santos não tem interesse. Ora, vontade nada mais é que razão prática, isto é, a “faculdade de escolher só aquilo que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como praticamente necessário, quer dizer como bom”,541 e praticamente bom é aquilo que determina a vontade por meio de representações da razão que são princípios válidos para todo ser racional. Ações morais não podem ser praticadas tendo em vista atender interesses pelo objeto, apenas interesse na ação mesma.542 Sabemos que são empíricas as condições em que se dá a satisfação humana da necessidade de alimentação, que é natural e essencial à manutenção da própria vida. A alimentação faz parte da nossa vida cotidiana, temos hábitos alimentares que são produzidos a partir das mais diversas influências, o que nos permite situar esta atividade no âmbito da cultura. Poderíamos, fazendo uma analogia com a ideia de progresso em Kant, dizer que saímos da brutalidade no campo alimentar – quando dividíamos com os animais os produtos da natureza – para um estado civilizatório, em que desenvolvemos técnicas que mudaram profundamente a forma de obtenção de alimentos e até mesmo a forma como a natureza produz seus frutos. Por outro lado, o progresso da técnica na produção de alimentos trouxe uma grande contradição em relação à sua finalidade natural de manter a vida, na medida em que muitos alimentos, ao invés de vida e saúde, portam consigo o risco de morte ou doença. Dito isto, ficaríamos limitados na análise dos nossos problemas alimentares se considerássemos a alimentação como parte apenas da nossa existência animal, no âmbito da natureza. Para estabelecer um dever de escolher uma alimentação saudável, e este terá de ser um dever ético e não de direito, dado que apenas eu mesma posso me obrigar a isso,543 é preciso 538 CRP, B 29. 539 FMC, BA 122, p. 119. 540 FMC, BA 38, p. 51. 541 FMC, BA 36, 37, p. 50 542 Kant distingue dois tipos de interesse: o interesse prático que indica a dependência da vontade em face dos princípios da razão em si mesmos – tal interesse é puro e significa que tenho interesse (imediato) na ação; e o interesse patológico, quando me interessa o objeto da ação (que me é agradável), e indica a dependência da vontade em face dos princípios da razão em proveito da inclinação neste caso, a razão ministra somente a regra prática para poder satisfazer as necessidades da inclinação, e, por isso, se diz que o interesse é mediato. Inclinação é a dependência em que a faculdade de desejar está em face das sensações (FMC, BA 38, p. 51.) 543 Pode-se ver nesse aspecto uma relação com aquele egoísmo do ato de comer referido por Simmel. Ver nota 387. 163 considerar a alimentação dentro do campo da moral,544 afinal, O dever não tem qualquer significação se tivermos apenas diante dos olhos o curso da natureza. Não podemos perguntar o que deverá acontecer na natureza, nem tão pouco que propriedades deverá ter um círculo; mas o que nela acontece ou que propriedades este último possui.545 Numa filosofia prática não temos de determinar os princípios do que acontece segundo leis da natureza, mas as leis do que deve acontecer, leis objetivas práticas – ainda que isso nunca aconteça –, como princípios a priori, segundo os quais todos devem agir, recordando que “prático é tudo aquilo que é possível pela liberdade”.546 O conceito de dever é, portanto, central na filosofia prática, e aqui interessa os deveres da doutrina da virtude (ética) kantiana, aquela que submete a liberdade interna a leis da razão. A importância disso no sistema kantiano é basilar: a referência a leis da razão humana encontra- se associada ao próprio conceito cósmico de filosofia, como “a ciência da relação de todo o conhecimento aos fins essenciais da razão humana (teleologia rationis humane)”.547 Para Kant, o filósofo é, não um artista da razão, mas o legislador da razão humana, sendo esta legislação aplicada a dois objetos: a natureza e a liberdade. Será tarefa da filosofia, portanto, fornecer “o fundamento para as nossas maiores expectativas e esperanças com vista aos fins últimos, nos quais todos os esforços da razão finalmente tem que se reunir”.548 Como sistema dos fins da razão prática pura, a ética só contém deveres de coerção interna, dado que não se pode coagir outrem a colocar fins para si mesmos; assim sendo, deveres de virtude são deveres internos porque têm por fundamento leis éticas. Somente pela virtude podemos determinar nosso arbítrio a um fim que estabelecemos para nós mesmos, segundo leis da razão. Portanto, é correto dizer que, para ser virtuoso, segundo Kant, não se trata de seguir conforme a natureza, aqui entendida como as inclinações naturais, como se não houvesse oposição entre as leis da natureza e as leis da liberdade, pelo contrário, na Reflexão 6.658, do ano 1769, Kant (apud Rohden549) afirma que: “Viver de acordo com a natureza significa: não viver segundo os instintos da natureza, mas segundo a ideia que se encontra como fundamento 544 Utilizo aqui a distinção feita por Kant na Metafísica dos Costumes, já apresentada no capítulo anterior, em que a Moral, diz respeito às leis da liberdade, nas quais se incluem a leis éticas e as leis jurídicas. 545 CRP, B 575. 546 CRP, B 828. 547 CRP, B 867. 548 CRP, B 491, p. 303. 549 ROHDEN, Valério. A gênese do conceito de fórmula em Cícero e sua reformulação no imperativo categórico de Kant. Conjectura. Caxias do Sul, v. 17, n. 1, p. 16-41, jan./abr. 2012, p. 18. 164 da natureza.” Essa ideia é a ideia de fim, donde o princípio supremo da doutrina da virtude: “aja segundo uma máxima de fins que tê-los possa ser uma lei universal para todos”.550 Isto coloca o homem como fim, seja para si, seja para os outros, ou seja, “propor como fim o ser humano em geral é em si mesmo dever do ser humano”.551 Tal princípio, diz Kant, como um imperativo categórico, não permite nenhuma prova, apenas, uma dedução a partir da razão prática pura: sendo esta uma faculdade de fins em geral, tudo aquilo que pode ser um fim na relação dos seres humanos entre si e consigo mesmos é um fim para a razão prática pura, de modo que seria uma contradição não ter interesse nesses fins. Comparando o dever que deriva do conceito de direito – o dever de limitar a liberdade para assegurar a liberdade de todos – com o princípio da doutrina da virtude, temos uma ampliação daquele conceito, com a introdução da liberdade interna; agora já não basta apenas coexistir com a liberdade externa, para se conformar à lei universal do direito, é preciso ser capaz de se colocar um fim como dever, coisa de que o direito se abstrai, já que trata apenas do formal. Com a ideia de fim que é também dever, um dever de virtude, Kant amplia o conceito de dever jurídico: neste imperativo que ordena o dever de virtude, além do conceito de uma autocoerção, ainda se adiciona o conceito de fim não que nós temos, mas que devemos ter, que, portanto, a razão prática pura tem em si, cujo fim supremo, incondicionado (que, contudo, é sempre um dever), consiste nisto: a virtude é seu próprio fim.552 Assim, o que Kant quer é defender o valor da virtude mesma, como fim da humanidade, o que “ultrapassa de longe o valor de toda utilidade e de todos os fins empíricos e vantagens que ela, em qualquer caso, possa ter como consequência”.553 Encontramos nisto absoluta coerência com a tese kantiana de progresso na história segundo uma finalidade da natureza, conforme se lê na Ideia, ao tratar dos “dotes naturais” no homem, razão e liberdade da vontade, quando Kant reconheceu que a intenção da natureza não era a sua felicidade ou bem-estar, mas sim que o homem “se desenvolvesse até ao ponto de, pelo seu comportamento, se tornar digno da vida e do bem-estar”.554 Uma vida virtuosa é o que nos torna dignos de merecer a felicidade. 550 MC, 2013, 395, p. 207. 551 MC, 2013, 395, p. 207. 552 MC, 2013, 397, p. 208. 553 MC, 2013, 397, p. 209. 554 Ideia, 3ª prop., p. 25. 165 Felicidade é o conjunto de todas as inclinações “tanto extensive, quanto à sua multiplicidade, como intensive, quanto ao grau e também protensive, quanto à duração”,555 para o que não há necessidade de qualquer obrigação, de modo que não se é virtuoso quando se busca a felicidade. O que Kant chama de felicidade é “a consciência que um ente racional tem da sensação do agrado da vida e que acompanha ininterruptamente toda a sua existência”.556 Ao conjunto de todas as inclinações cuja satisfação constitui o que se chama felicidade própria, Kant dá o nome de solipsismo,557 que consiste ou no amor próprio – equivalente grego de philautia, benevolência em relação a si mesmo – ou no amor próprio como presunção – ou arrogantia, complacência em si mesmo. O amor de si, como propensão a fazer de si mesmo – ou das condições subjetivas do seu arbítrio – o fundamento objetivo determinante da vontade, ao converter-se em princípio prático incondicionado, pode ser chamado de presunção. O princípio do amor de si faz da felicidade o fundamento determinante do arbítrio. Tanto a felicidade como o amor de si são princípios práticos materiais, ou seja, “pressupõem um objeto (matéria) da faculdade de apetição como fundamento determinante da vontade”,558 por isso, não podem fornecer nenhuma lei prática. Submetida a vontade a regras empíricas, estamos diante de uma heteronomia para a razão pura, daí a afirmação de Kant: “Se a eudemonia (o princípio da felicidade) é erigida como princípio em lugar da eleuteronomia (o princípio da liberdade de legislação interna), então a consequência disso é a eutanásia (suave morte) de toda a moral.”559 Uma vez que a felicidade de cada um tem a ver com seus sentimentos particulares, a mesma só poderia ser um princípio contingente, variando segundo a diversidade dos sujeitos, portanto, absolutamente inadequado para fundamentar leis práticas. Não por acaso Kant considerou a felicidade uma ideia “vacilante”, um conceito “indeterminado”, que pode até prejudicar algumas de nossas inclinações por causa disso. Ele dá um exemplo de como uma só inclinação determinada quanto ao prazer que promete e quanto à época em que poderá ser satisfeita pode sobrepor a vaga idéia de felicidade: um gotoso pode escolher o regalo que lhe dá qualquer comida de que gosta e 555 CRP, B 834. 556 CRPr, 40, p. 38. 557 CRPr 129, p. 117. 558 CRPr, 39, p. 36. 559 MC, 2013, 378, p. 188. A respeito da utilização de Kant do termo eleuteronomia em substituição à autonomia, ver TREDANARO, Emanuele. Liberdade como eleuteronomia nos Metaphysische Anfangsgründe der Tugendlehre de Kant, ANPOF, 2014. Disponível em http://www.anpof.org/portal/index.php/pt-BR/agenda- encontro-2/user-item/475-sergiomariz/139-agenda-xvi-encontro/10898-liberdade-como-eleuteronomia-nos- metaphysische-anfangsgruende-der-tugendlehre-de-kant. Acesso em 10 jul 2015. 166 sofrer quanto pode, porque, pelo menos segundo seu cálculo, não quis renunciar ao prazer do momento presente em favor da esperança, talvez infundada da felicidade que possa haver na saúde.560 É assim que se deve entender sua crítica aos sistemas morais antigos que mesclavam os conceitos de virtude e felicidade na busca pela moralidade: As antigas escolas gregas dão-nos disso mais exemplos dessas virtudes, exemplos que não encontramos nesta época sincretística, na qual se constróem com princípios totalmente contraditórios sistemas conciliadores, destituídos de solidez e boa fé, porque se recomendam melhor a um público que se satisfaz com saber um pouco de tudo, sem saber afinal coisa alguma, pretendendo, contudo, tratar de todos os assuntos.561 Como consequência, Kant reconhece que: o princípio da felicidade pode, sem dúvida, fornecer máximas mas jamais aquelas que se prestassem para leis da vontade, mesmo que se tomasse a felicidade geral como objeto [...] o conhecimento desta assenta sobre meros dados de experiência [...]cada juízo depende muito da opinião de cada um [...], assim pode bem haver regras gerais mas jamais universais [...]; por conseguinte nenhuma lei prática pode fundar-se sobre elas.562 Dito isso, penso que se pode aceitar que devemos descartar a felicidade como princípio para a determinação da vontade no que diz respeito às escolhas alimentares, se quisermos que estas sejam escolhas virtuosas. Não será pelo princípio geral do amor de si ou da felicidade própria que teremos um comportamento alimentar virtuoso, dado que a busca pelo alimento, na medida em que proporciona prazer e alegria, pode tornar-se objeto da faculdade de apetição; tais princípios não podem fornecer leis práticas, porque são apenas empíricos. Afirmo, então, que a doutrina da felicidade não tem utilidade no campo da alimentação, quando se quer fundamentar a alimentação saudável como dever de virtude. Seria absurdo do ponto de vista kantiano, pois, princípios a priori são os únicos capazes de estabelecer a moralidade e a felicidade tem seus princípios estabelecidos a partir da experiência. A encruzilhada da alimentação está assim colocada: a alimentação ocorre na esfera do empírico e o alimento é objeto do nosso querer em vista da nossa felicidade, mas sua efetividade não pode constituir um princípio de moralidade para determinar nossa vontade, porque o 560 FMC, BA 13, p, 30. 561 CRPr, 44, p. 41. 562 CRPr, 63, p. 60. 167 fundamento da lei moral só pode ser encontrado a priori para que esta lei possa valer para todo ser dotado de razão e vontade. Se é assim, as dificuldades para estabelecer um dever ético quanto à alimentação saudável parecem insuperáveis. A alimentação insere-se no âmbito dos “impulsos naturais”,563 para os quais se desenvolvem nossas predisposições naturais, em busca das “alegrias da vida”, e o princípio supremo de toda a moralidade só pode ser obtido livrando- se de todo o empírico. Onde encontrar, então, o ponto de ligação entre alimentação saudável e moralidade? Kant nos disse que a lei moral terá de excluir qualquer influência do amor de si sobre seu princípio prático supremo. Para ele, o que, em nosso juízo, rompe com a nossa presunção, humilha, ou seja, a lei moral “humilha todo homem na medida em que ele compara com ela a propensão sensível de sua natureza”.564 Enquanto a presunção é abatida pela lei moral, no caso do amor-próprio, “a razão prática pura apenas causa dano ao amor-próprio na medida em que ela o limita – enquanto natural e ativo em nós ainda antes da lei moral – apenas à condição da concordância com esta lei, em cujo caso então ele denomina-se amor de si racional”.565 Ora, cuidar de si é uma forma do amor de si, mas somente um amor de si racional poderia produzir um cuidado que estabelecesse a alimentação saudável como dever. Sabemos que, diante do conhecimento teórico que se tem sobre alimentação, é possível estabelecer alguns princípios racionais para uma alimentação saudável, no entanto, isso nada nos garante que nossas escolhas obedecerão aqueles princípios, haja vista a nossa natureza de seres livres que podem ser afetados pela sensibilidade. E do mesmo modo que saber como obter uma alimentação saudável não faz dela um dever para nós, não queremos universalizar nossas máximas que se colocam na direção contrária a esse dever. Dessa dialética natural, que coloca o senso comum diante do conflito entre razão e sensibilidade, emerge já uma noção vulgar de dever, como observa Kant, ao afirmar que: “o conhecimento daquilo que cada homem deve fazer, e por conseguinte saber, é também pertença de cada homem, mesmo do mais vulgar”.566 A noção “vulgar” do que é moralmente correto como aquilo que tem uma motivação racional está na base da noção de dever moral e serve àquela distinção entre legalidade e moralidade, que se expressa na oposição entre agir por dever 563 MC, 2013, 215, p. 21. 564 CRPr, 132, p. 12. 565 CRPr, 130, p. 119, grifos do autor. 566 FMC, BA 21, p. 37. Para Kant, todos temos disposições morais para o conceito de dever, graças às quais podemos ser obrigados; são elas: o sentimento moral – como receptividade do livre arbítrio para ser movido pela lei moral –, a consciência moral, que mostra ao homem seu dever, o amor ao próximo e o respeito por si mesmo (MC, 2013, 399-403, p. 210 et seq). 168 e agir conforme ao dever. Realizar uma ação por dever é o que concede moralidade a esta ação, e somente esta ação é própria de uma vontade boa. O conceito de boa vontade, portanto, está contido no conceito de dever. A vontade que é boa em si mesma, de modo absoluto, incondicionado, é aquela que tem valor moral e não se realiza visando a qualquer interesse. Se uma ação moralmente boa é aquela que é realizada por dever, então, ao realizar uma ação por dever estou expressando minha boa vontade, pois, realizei a ação apenas pelo simples querer. Mesmo assim, Kant precisou buscar uma origem não empírica para o dever, porque a experiência pode nos dar a regra e ser fonte da verdade no que se refere à natureza, mas “no que toca às leis morais a experiência é (infelizmente!) a madre da aparência e é altamente reprovável extrair as leis acerca do que devo fazer daquilo que se faz ou querer reduzi-las ao que é feito”.567 Se há uma obrigação moral de buscar uma alimentação saudável, o que exige que seja formulado um imperativo categórico, então é preciso por à prova e encontrar seu fundamento a priori. Seguindo Kant, vou partir da relação do alimento com a vida e a dignidade, para encontrar a resposta no cuidado de si como dever de virtude de buscar a própria perfeição.568 4.2 Cuidar de si: fim natural e fim moral Foram precisos séculos para se conhecer uma parte das leis da natureza. Um dia basta ao sábio para conhecer os deveres do homem (Voltaire, O filósofo ignorante) Um dos primeiros biógrafos de Kant, o pastor Reinhold Bernhard Jachmann (1767- 1843), destacou o cuidado do corpo como uma das principais preocupações do filósofo, e não apenas nos últimos anos de sua vida, observando que: “talvez não tenha havido nenhum homem que como Kant deu tanta atenção ao próprio corpo e a tudo o que lhe diz respeito; mas acima de tudo é interessante o fato que aquela atenção não era fruto de fantasias hipocondríacas, mas sim de motivos racionais”.569 Há motivos racionais para nos ocuparmos com o corpo segundo propõe Kant ao abordar 567 CRP, B 375, grifos do autor. 568 Para uma análise dos deveres de si, a partir de Kant, e sua relação com a tradição moderna ver FONNESU, Luca. Sui doveri verso se stessi. A partire da Kant. In: ARAMAYO & ONCINA (Org.), 1999, op. cit. Cap. VI. 569 Apud MARIANETTI, Massimo. Vivere, invecchiare ed essere vecchi: Kant e Christoph Wilhelm Hufeland. Pisa: Istituti Editoriali e Poligrafici, 1999, p. 39. Cassirer, ao contrário, sobre a dietética kantiana, diz que não passa de um conjunto de normas dietéticas soltas, sem um nexo interno, que o filósofo teria provado em sua experiência pessoal, na observação metódica de si mesmo. Cf. CASSIRER, Ernst. Kant, vida y doctrina. Mexico: Fundo de Cultura Económica, 1948. p. 473-4. 169 os deveres para consigo.570 O cuidado com o corpo terá um importante ponto de vista prático, na medida em que “o corpo participa das leis gerais da liberdade”.571 Cuidar do corpo é ter estima de si mesmo, como um ser humano que tem dignidade. Kant insere os deveres para consigo no campo da ética, não só porque eles exigem o consenso próprio – algo desnecessário no dever jurídico – como porque “ao agir contra mim mesmo, eu não ajo contra a justiça”.572 De igual modo, seja no direito, no confronto com o outro, ou no confronto com a nossa pessoa, devemos respeitar a humanidade que há em cada um de nós. A alimentação é uma necessidade para manter a vida orgânica, mas a natureza humana, sensível às inclinações, pode levar à condição em que o corpo desenvolva hábitos que se tornem necessidade, exatamente porque não teve o controle do ânimo (Gemüt), daí a importância de uma disciplina do corpo, não no sentido monacal ou ascético – condenado por Kant –, mas para que o homem possa viver conforme seus propósitos, afinal “é mediante o corpo que o homem tem poder sobre a vida”.573 Para Kant, o corpo não é um acidente em relação à vida, não é um estado da vida, mas sua condição.574 E uma vez que é por meio do corpo – condição absoluta da vida – que somente podemos dispor da nossa vida e da nossa liberdade, os cuidados com o corpo, dentre os quais incluem-se os cuidados com a alimentação, passam a ter uma importância moral. O que Kant quer dizer é que meu corpo é uma parte de mim mesma, só posso usar minha liberdade, servindo-me dele, mas só é possível dispor do próprio corpo se for com a intenção de preservar a si mesmo, pois, embora destruir o corpo e tirar a vida também seja fazer uso do próprio arbítrio, isto é, no entanto, contraditório, dado que a liberdade é a própria condição da vida e não pode ser usada para destruí-la.575 Com isso, seria possível refutar Singer em sua defesa, por exemplo, do uso do cigarro ou de alimentos inadequados, mesmo quando a pessoa conhece os riscos e está disposta a aceitá- los. Para Kant, contradiz o exercício mais amplo da liberdade que ela anule a si mesma, eliminando a vida, por isso, a liberdade precisa de auto-limitação, o que só pode ser feito mediante a autocoerção, isto é, mediante a força da virtude. Ninguém está autorizado a dispor de si mesmo como meio para os fins dados por suas inclinações, pois, entregar-se totalmente às inclinações animais é fazer-se uma coisa contrária à natureza, “um objeto repugnante, privando- 570 Utilizo, como fontes dessa abordagem, além da Doutrina da Virtude, as Lições de Ética. 571 LE, p. 180. 572 LE, p. 135. 573 LE, p. 170. 574 LE, p. 169. 575 LE, p. 170. 170 se, assim, de todo o respeito por si mesmo”.576 Não podem ser escolhas morais aquelas determinadas por fins recomendados pelos sentidos, que não tem em vista os fins da humanidade. Percebe-se nisso que o valor da virtude kantiana em muito supera “o valor de toda utilidade e de todos os fins empíricos e vantagens que ela, em qualquer caso, possa ter como sua consequência”.577 Disciplinar o corpo para observar deveres de si requer o domínio de si mesmo. Tal princípio “consiste em considerar a si mesmo em função dos fins essenciais da humanidade ou da natureza humana, e assumir os deveres de si como única condição para cumprimento de qualquer outro dever”.578 Também no caso do cultivo das capacidades do corpo, como a ginástica, Kant considera “o cuidado com aquilo que nos homens constitui o instrumento (a matéria), sem o qual os fins do homem permaneceriam irrealizáveis; e portanto o revigoramento contínuo e intencional do animal no homem é um fim do homem para consigo mesmo”.579 Percebe-se aqui a união do físico com o moral, necessária ao alcance da destinação humana. Ora, toda a destinação humana, diz Kant, não é outra senão tornar-se “ativamente digno da humanidade na luta com os obstáculos que a rudeza de sua natureza coloca para ele”.580 A partir disso, deve-se entender a distinção feita entre o princípio dos deveres de si como a condição objetiva da moralidade e o domínio de si mesmo como a condição subjetiva.581 Além de ser uma condição subjetiva para a observância dos deveres de si, o domínio de si é também o dever mais alto que se pode ter em relação a si mesmo, já que somente pelo auto-domínio, portanto, dominando nossa sensibilidade, é que podemos submeter nossa vontade à lei moral; por isso, os deveres para consigo representam a condição que torna possível os deveres para com os outros, a condição suprema e o princípio de toda vida moral. Os deveres de si independem de qualquer vantagem ou fins pessoais, posto que consideram apenas a dignidade do homem e o respeito por sua humanidade, ou seja, o valor moral aqui é o valor da própria pessoa.582 Para tornar o homem digno de sua humanidade, a razão ordena deveres para consigo, os quais, somente na medida em que limitam a própria liberdade, vão possibilitar a realização dos fins da humanidade. 576 MC, 2013, 425, p. 238, grifos do autor. 577 MC, 2013, 397, p. 209. 578 Il principio universale del domínio di sé consiste nel considerare se stessi in funzione dei fini essenziali dell’umanità o della natura umana e nel ritenere i doveri verso se stessi come le condizioni sotto cui soltanto ogni altro dovere può essere adempiuto (LE, p. 159). 579 MC, 2013, 445, p. 259. 580 Antr., 325, p. 219, grifos do autor. 581 LE, p. 159. 582 LE, p. 136-140. 171 Pensar um dever para consigo implica admitir que o mesmo ser que (ativamente) obriga é o ser que é (passivamente) obrigado, porém, sendo o sujeito o mesmo, ele poderia também se desobrigar a qualquer momento do dever ao qual está obrigado, implicando em outra contradição, visto que assim não haveria qualquer dever.583 Por outro lado, se considero a vontade humana como uma vontade legisladora universal, isto é, como vontade de todo ser racional, então esta vontade só pode estar submetida a si mesma. É a própria natureza do ser racional que limita todo o arbítrio, e esta faculdade – autonomia – só se encontra nos seres racionais. A ligação que Kant estabelece entre a lei moral e a vontade de um ser racional passa pela ideia da vontade de todo o ser racional concebida como vontade legisladora universal,584 portanto, de uma vontade autônoma, que estabelece ela mesma a lei para si. É esta vontade autônoma o único fundamento possível da obrigação moral. Vejamos, nas palavras de Kant, a solução dada àquela aparente antinomia: Ora, o homem enquanto ser natural dotado de razão (homo phaenomenon) é determinável pela sua razão, enquanto causa, para ações no mundo sensível e aqui não entra ainda em consideração o conceito de uma obrigação. Este mesmo homem, porém, segundo sua personalidade, isto é, pensado como ser dotado de liberdade interna (homo noumenon), é considerado um ser capaz de obrigação e, certamente, para consigo mesmo (a humanidade em sua pessoa); de modo que o homem (considerado em duplo significado) pode reconhecer um dever para consigo mesmo, sem cair em contradição (porque o conceito de homem não é pensado em um único e mesmo sentido).585 Estabelecido o conceito de autonomia – a liberdade em seu sentido positivo –, Kant resolve a contradição que poderia surgir ao considerar os deveres para consigo, afinal, ter um dever significa ser obrigado a, portanto, ser passivamente constrangido, como no caso do dever de direito; por outro lado, quanto mais livre sou, mais sou capaz de obrigar e determinar a mim mesma a partir da lei que minha razão estabelece, pois, a lei em virtude da qual me considero obrigada provém “em todos os casos da minha própria razão prática”.586 Claro está que a autonomia terá de ser pressuposta se se quer estabelecer a alimentação saudável como um dever de virtude, do mesmo modo que tem de ser admitida se se quer considerar a moralidade como alguma coisa real.587 Para os propósitos deste trabalho, 583 MC, 2013, 417, p. 229. 584 FMC, BA 71, p. 77. 585 MC, 2013, 428, p. 230. 586 MC, 2013, 418, p. 230. 587 FMC, BA 95, p. 97. 172 relacionados à alimentação, discuto apenas os deveres (perfeitos) para consigo,588 apresentados na doutrina da virtude, especificamente, dentre estes, o dever de auto conservação como ser animal. Uma vez que nos deveres para consigo só temos que considerar um sujeito, a única divisão que Kant faz é segundo a referência ao objeto (divisão objetiva589); no entanto, em relação ao sujeito é possível uma distinção entre o sujeito do dever que considera a si próprio como ser animal e moral, ou apenas como ser moral; perceba-se nesta distinção que não há possibilidade de excluir o moral da consideração do homem. A consideração unicamente moral do homem “consiste no elemento formal da concordância das máximas de sua vontade com a dignidade da humanidade”,590 donde a proibição, neste caso, de se transformar em coisa. É na consideração da animalidade do homem, isto é, dos impulsos da natureza, quando aborda a conservação do homem e da espécie, que Kant expõe os deveres para consigo no que se refere à alimentação, tendo em vista a conservação da capacidade para desfrutar a vida agradavelmente, ainda que apenas de maneira animal. São deveres restritivos, negativos, isto é, que proíbem agir contra eles, de maneira que é suficiente apresentar os vícios que se opõem a tais deveres.591 Assim, na doutrina da virtude kantiana, é pela consideração do físico, da animalidade do homem, que surgem deveres para com a alimentação, tendo em vista a obrigação de conservar a si mesmo, como natureza animal. São dois os deveres a observar quanto ao corpo: a moderação e a temperança, que se referem aos prazeres e apetites humanos. No caso dos alimentos, o excesso é visto como perversão da moderação, sendo que, no caso do excesso da bebida, Kant considera que tem mais relação com o tipo de bebida (pode-se desejar beber muita água) do que com a quantidade; já no caso dos alimentos, a quantidade é 588 Dado que a ética tem a ver com deveres amplos – ao contrário do direito – os deveres de virtude serão imperfeitos, ou seja, na ética a lei fornece a máxima para as ações, e máximas são princípios subjetivos, portanto, haverá sempre uma latitude para a escolha (livre arbítrio) do agente moral. No entanto, o dever de aumentar a própria perfeição moral é um dever estrito e perfeito quanto ao objeto, sua qualidade, isto é, a ideia cuja realização se deve propor como fim, mas quanto ao sujeito, tal dever permanece imperfeito, quanto ao grau, tendo em vista a fragilidade da natureza humana, que possibilita heterogeneidade na sua realização (MC, 2013, DV, § 22, p. 260). 589 Na divisão objetiva, a distinção é feita segundo o elemento formal e material do dever. Assim, quanto ao primeiro, temos os deveres restritivos, também ditos negativos ou de omissão, que apenas proíbem de agir contra si mesmo, porque formalmente se referem somente à autoconservação moral, pertencendo ao que Kant chama de saúde moral do homem; na consideração do elemento material do dever, temos os deveres extensivos, ditos positivos ou de comissão, que ordenam certos fins que se referem ao aperfeiçoamento de si mesmo, por isso, pertencem à prosperidade moral. Disto resultam dois princípios dos deveres para consigo que são: “viver conforme a natureza”, e “torne-se mais perfeito do que te fez a natureza” (MC, 2013, 419, p. 231). 590 MC, 2013, 420, p. 232, grifos do autor. 591 Cumprir o dever é mérito, descumpri-lo não é demérito, mas ausência de valor moral; a fraqueza de propósito que leva ao descumprimento do dever é o que se chama não tanto vício, mas ausência de virtude; vício é a transgressão proposital tornada princípio (MC, 2013, 390, p. 201-2). Para Kant, como na distinção entre o conhecimento empírico e o racional, não devemos buscar, entre virtude e vício, uma distinção de grau no cumprimento de certas máximas, e sim na sua qualidade específica expressa na relação com a lei (MC, 2013, 404, p. 215). 173 problemática, ainda que seja de alimentos bons. Isso hoje é comprovado pela ciência, pois, mesmo ingerindo alimentos saudáveis, se a quantidade deles é excessiva, isso será prejudicial no sentido de levar ao acúmulo de tecido adiposo, única forma conhecida pelo corpo para armazenamento dos excessos provenientes de quaisquer fontes. A razão para considerar o excesso um vício não pode ser o dano ou o sofrimento físico (doenças) que um ser humano causa a si mesmo, pois, neste caso, o princípio contrariado seria o do conforto e do bem-estar, a felicidade, portanto, estaríamos diante de uma regra de prudência e jamais de um dever. O dano que importa a Kant é que com isso estaríamos restringindo nossa faculdade de usar inteligentemente os recursos de nutrição, quais sejam, os alimentos. Kant vai dizer que o ser humano, “empanturrado com comida, se encontra numa condição em que está incapacitado, durante um certo tempo, para produzir ações que dele exigiriam o uso de seus poderes com habilidade e deliberação”,592 ou seja, “a imoderação animal no desfrute dos alimentos é um abuso dos meios de fruição pelo qual é inibida ou exaurida a faculdade de seu uso intelectual”.593 Trata-se, portanto, de evitar um obstáculo que impede o homem de elevar-se à condição humana. O excesso de comida, diz Kant, é um tipo de perversão bestial, que degrada o homem, sendo, por isso, “crimina contra naturam”.594 Deste modo, a perversão na moderação quanto aos alimentos é compreendida como uma violência quanto aos deveres para consigo, diferente da violação de outros deveres – como a mentira – que não são contrários à natureza do homem. Na comparação entre excesso de comida e excesso de bebida Kant é taxativo: o primeiro é muito mais degradante porque não promove nem a vida em sociedade – como seria o caso da bebida, que pode promover a conversação e até a inspiração, ainda em casos de embriaguez – nem promove a vitalidade do corpo. Por isso, embriagar-se sozinho seria equivalente à ganância por comida (glutonice), em termos de degradação. A glutonice se limitaria, segundo Kant, a aquietar os sentidos dentro de uma condição passiva, e visto que sequer estimula a imaginação para um jogo ativo de representações, aproxima o ser humano ainda mais do “prazer bestial”.595 Posso estabelecer, então, um primeiro dever de virtude no âmbito da doutrina kantiana que está relacionado à alimentação: devemos evitar os excessos. Trata-se de um dever em relação à quantidade de alimentos, mas Kant também reconhece na saúde um fim que é dever, desde que o que se queira seja a remoção dos obstáculos à moralidade. Sendo assim, a busca e 592 MC, 2003, p. 269. 593 MC, 2013, 427, p. 239. 594 LE, p. 182. 595 MC, 2013, 427, p. 239. 174 a promoção da saúde podem ser compreendidos como meios para manter a integridade da moralidade, já que “adversidades, dor e privação são grandes tentações para a transgressão do dever”;596 buscar a saúde, por exemplo, realizando ações para sua promoção, como a escolha de alimentos saudáveis, seria, o meio permitido de remover os obstáculos à moralidade, como um dever indireto.597 Por outro lado, é sabido que todos temos uma inclinação imediata para a conservação da vida, o que levou o próprio Kant a afirmar que inexiste valor moral nas ações praticadas tendo em vista aquele fim, pois,”os homens conservam a sua vida conforme ao dever, sem dúvida, mas não por dever”,598 ou seja, do ponto de vista fisiológico não haveria qualquer necessidade de um dever em relação à alimentação. De fato, buscar o alimento é uma ação entendida por Kant como um impulso natural, a ser satisfeito segundo as mais diversas inclinações particulares, cuja experiência seria suficiente para dar a conhecer tanto o que traz prazer e felicidade como os meios para procurá-los. Neste caso, e levando em conta a afirmação de que a razão “reconhece o seu supremo destino prático na fundação de uma boa vontade”,599 caberia indagar se a boa vontade se ocuparia da alimentação – já que do ponto de vista do bem- estar ou da própria felicidade que se deseja alcançar por meio da alimentação saudável, não há aqui necessidade de um imperativo moral – ou ainda, por que apenas nos seres racionais a satisfação de um impulso natural deveria ocorrer com o auxílio da razão, dado que “na natureza inanimada ou simplesmente animal, não há motivo para conceber qualquer faculdade de outro modo que não seja sensivelmente condicionada”.600 Sabemos que, no caso de todas as outras espécies, a busca por alimento – uma necessidade vital – ocorre de modo seguro, segundo as leis naturais, mas, a experiência nos mostra que, no nosso caso, deixados à determinação de nossos impulsos e inclinações, somos levados a contrariar a lei natural de manutenção da vida, tornando imperativo buscar o porto seguro da razão. A respeito disso, Kant aponta que: se num ser dotado de razão e vontade a verdadeira finalidade da natureza fosse a sua conservação, o seu bem-estar, numa palavra a sua felicidade, muito mal teria ela tomado as suas disposições ao escolher a razão da criatura para executora destas suas intenções. Pois todas as ações que esse ser tem de realizar nesse propósito, bem como toda a regra do seu comportamento, lhe 596 MC, 2013, 388, p. 199. 597 MC, 2013, 388, p. 200. Há que se considerar, no entanto, a contradição atual em que temos alimentos que não alimentam, não promovem a saúde, mas trazem imenso prazer imediato. 598 FMC, BA 9, p. 28, grifos do autor. 599 FMC, BA 7, p. 26. 600 CRP, B 574. 175 seriam indicadas com muito maior exatidão pelo instinto, e aquela finalidade obteria por meio dele muito maior segurança do que pela razão.601 O que Kant quer dizer com isso é que a finalidade da natureza não pode ser a felicidade, quando se trata de um ser que é dotado de razão e vontade, pois, para aquela finalidade (da felicidade), os instintos já seriam suficientes, como o são nos outros seres. No entanto, é importante recordar que na primeira crítica ele havia afirmado que o domínio próprio da razão, qual seja, a ordem dos fins, é simultaneamente uma ordem da natureza, e é por uma analogia com a natureza dos seres vivos neste mundo que o homem pode constituir uma exceção, se considerarmos, por exemplo, que nele a utilização dos impulsos pode se dar de modo desproporcionado.602 Realmente, parece que para as escolhas alimentares em nós os instintos não são suficientes, pelo menos, como lei natural; um exemplo é que, apesar de termos mecanismos naturais reguladores da saciedade, somos capazes, por exemplo, tanto de ficar sem comer, mesmo diante das necessidades naturais, como de comer muito além do que requer a lei natural que nos manteria em equilíbrio (físico).603 A respeito disso, Kant diz que não há nada na natureza que cause dano ao homem, quando ele se dispõe a satisfazer as próprias inclinações; o dano nasce por invenção própria e pelo uso que o homem faz de sua liberdade, pois, por sua liberdade, o homem pode transformar todo o curso da natureza.604 Todavia, deve ficar claro que não podemos responsabilizar moralmente por suas escolhas alimentares aqueles cujo acesso à alimentação é vetado, já que escolhas morais só podem ser feitas no contexto da liberdade. Enquanto os animais seguem as leis da natureza,605 se os homens seguissem livremente suas inclinações, ficariam abaixo dos animais, agindo contra si mesmos, dada a ausência de regras. É diante disso, que a solução apresentada por Kant indica que, mesmo as inclinações no homem devem obedecer a uma regra, ou seja, para servir-se de suas inclinações, o homem também precisa dar-se uma regra, mas a partir de sua própria iniciativa; a regra suprema é aquela de se comportar de modo que o uso de suas forças seja compatível com o maior uso 601 FMC, BA 5, p. 24, grifos do autor. 602 CRP, B 425. 603 Sabe-se que o corpo humano tem mecanismos fisiológicos de controle da alimentação e da saciedade, que envolve substâncias como a leptina e a serotonina, de modo que tanto o comer de modo desenfreado como o não comer representam condições patológicas, do ponto de vista de uma causalidade natural. Cf. VELLOSO, Lício A. O controle hipotalâmico da fome e da termogênese: implicações no desenvolvimento da obesidade. Arq Bras Endocrinol Metab, São Paulo, v. 50, n. 2, p. 165-176, Apr. 2006; FEIJÓ. Fernanda de Matos; BERTOLUCI, Marcello Casaccia; REIS, Cíntia. Serotonina e controle hipotalâmico da fome: uma revisão. Rev Assoc Med Bras 2011; 57(1):74-77. 604 LE, p. 142. 605 LE, p. 141. 176 delas.606 Temos o dever de obter ou fomentar a capacidade de realizar todos os fins possíveis, pois isto é o que nos permitirá fomentar também os fins propostos pela razão. Kant é claro na defesa contra a morte física voluntária, que representaria a privação “da faculdade do uso físico (e com isso indiretamente também do uso moral) de suas forças”.607 Se podemos agir contra a lei natural, é porque somos causados também pela liberdade, aqui no sentido negativo, na medida em que somos independentes da determinação sensível.608 Vimos que, no caso de uma virtude alimentar, isto é, de escolhas éticas quanto ao que comer, será necessário considerar, além desta causalidade natural – o instinto que nos leva a buscar o alimento –, aquilo que Kant chamou de conceito positivo de liberdade, a autonomia como liberdade prática,609 mediante a qual nós fazemos nossas escolhas, como agentes livres que determinamos a nós mesmos a partir de um princípio racional, portanto, diferente das escolhas que são motivadas pelas inclinações e pela mera busca da felicidade. Caberá à virtude, como faculdade de autocoerção, enfrentar os obstáculos colocados pelo próprio homem, suas inclinações naturais, e obrigá-lo a cumprir sua máxima, revelando assim sua liberdade interna, que lhe possibilita realizar ações por dever. Nas palavras de Kant: “os impulsos da natureza, assim, contêm obstáculos à realização do dever no ânimo do ser humano e forças (em parte poderosas) que opõem resistência”.610 Como consequência, além dos adultos que não têm acesso a alimentos saudáveis, não podemos exigir virtude nem das crianças – nas quais apenas a necessidade natural determina a busca por alimentos, como bebês que choram quando querem comer – nem dos casos 606 LE, p. 142. 607 MC, 2013, DV, 421, § 5, p. 233. 608 A possibilidade de existir, no mesmo sujeito do mundo dos sentidos, a liberdade como causalidade inteligível – pela qual ele é a causa dos seus atos, como fenômenos, mas sem estar subordinado a quaisquer condições da sensibilidade, portanto, não sendo ele mesmo fenômeno – não conflita com a lei universal da necessidade natural, mediante a qual os seus atos, enquanto fenômenos, estariam absolutamente encadeados com outros fenômenos (CRP, B 567). Este sentido (negativo) de liberdade, embora nada nos informe sobre ela, é suficiente para nos dizer que seres vivos, racionais, tem vontade, isto é, uma espécie de causalidade que é livre porque independe completamente de causas estranhas que a determinem. 609 Liberdade no sentido prático “é a independência do arbítrio frente à coação dos impulsos da sensibilidade” (CRP, B 562, grifos do autor). Ainda se trata de um conceito negativo de liberdade, na medida em que implica apenas que o arbítrio pode ser livre frente à coação dos impulsos sensíveis, e uma vez que o arbítrio humano também pode ser afetado patologicamente por estes impulsos, diz-se que ele é sensitivum, porém, não é brutum, pois, se assim fosse, o arbítrio seria patologicamente necessitado pelos impulsos, e não mais seria livre. 610 MC, 2013, 380, p. 190. 177 diagnosticados como transtornos de comportamento alimentar, por exemplo, a anorexia611 e a bulimia.612 A bulimia é um distúrbio que afeta especialmente jovens do sexo feminino, em que a pessoa logo após ingerir alimentos – em geral em grandes quantidades – provoca o vômito como forma de evitar o ganho de peso decorrente da excessiva quantidade ingerida. A anorexia, ao contrário, leva a pessoa a rejeitar alimentos, por se considerar gorda, quando na verdade não é, e afeta também, sobretudo, jovens do sexo feminino. Há associação entre os dois transtornos, na medida em que a anorexia pode levar à bulimia. É interessante conhecer o relato do século XIII sobre as “santas anoréxicas”, mulheres que se auto-impunham jejum como uma forma de se aproximar espiritualmente de Deus. O quadro era acompanhado de perfeccionismo, auto- insuficiência, rigidez no comportamento, insatisfação consigo própria e distorções cognitivas, exatamente como hoje.613 Quando abordou a ascética monástica, Kant desaprovou esta última condição, em que são impostas a autotortura e a mortificação da carne: primeiro, porque não se trata de virtude, uma vez que o que se busca é apenas impor-se um castigo e não se arrepender moralmente das falhas, o que é até contraditório, dado que um castigo deveria ser imposto por outrem; segundo, porque a conduta de autoflagelação não traz a alegria que acompanha a virtude, mas “só pode ter lugar com um ódio secreto pelo comando da virtude”.614 Em resumo, existem impulsos naturais para a alimentação que possibilitam uma escolha alimentar tendo em vista a subsistência humana; excetuando os casos patológicos que apresentei acima, ainda assim, é necessário opor resistência à natureza humana, se quisermos produzir um comportamento alimentar virtuoso conforme à nossa condição de dignidade, o que só é possível a partir da nossa liberdade (interna) de ir contra tanto a lei natural como contra nossas inclinações. A partir disso, é possível pensar um dever de virtude relacionado à alimentação, 611 A anorexia, do grego ann (sem) e orexis (apetite ou desejo) ou anorexia nervosa (AN) foi descrita no século XIX e a partir da década de 1970 começou a ser classificada passando a ter critérios operacionais reconhecidos; em alemão usa-se o termo pubertaetsmagersucht (busca da magreza por adolescentes). É comum pacientes bulímicas com história de anorexia. Cf. CORDÁS, Táki Athanássios. Transtornos alimentares: classificação e diagnóstico. Rev. psiquiatr. clín. [online]. 2004, vol.31, n.4, p. 154-157, p. 155. http://dx.doi.org/10.1590/S0101- 60832004000400003. Além da condição dita patológica, uma vez que a liberdade é condição para a escolha, não se pode também exigir virtude de quem não é livre para escolher. 612 O termo, empregado por Hipócrates para designar uma fome doentia, diferente da fome fisiológica, resulta da união dos termos gregos boul (boi) ou bou (grande quantidade) com lemos (fome), ou seja, uma fome muito intensa ou suficiente para devorar um boi. Ainda hoje se usa a expressão “fome de boi”. O termo bulimia nervosa foi dado por Gerald Russell em 1979 (CORDÁS, 2004, op. cit., p. 155). 613 Um dos casos mais conhecidos, relatado por Cordás (2004, op. cit., p. 155) é o de Catarina de Siena que, aos 16 anos, recusou o plano de casamento imposto por seus pais, jurando manter-se virgem e entrando para o convento. Catarina passou a se alimentar de pão e alguns vegetais, autoflagelava-se, e também provocava vômitos com ingestão de plantas. 614 MC, 2013, DV, § 53, 485, p. 302. 178 como um dever para consigo, que implica em dar-se regras para limitar aquela liberdade; trata- se de um dever perfeito, mas que pode ser considerado indireto, porque o fim realmente buscado é manter a integridade da moralidade, a qual exige certas regras, como evitar os excessos alimentares que impediriam a fruição da vida, afinal a perfeição interna do ser humano consiste em ter o uso de todas as suas faculdades em seu poder, para submetê-lo ao seu livre-arbítrio.615 A manutenção/autoconservação da vida é um fim que é dever porque se trata de uma lei universal da natureza, o que levou Kant a também condenar moralmente o suicídio. Dada a relação do alimento com a vida, uma vez que não poderia existir uma lei universal da natureza que atentasse contra a vida, alimentos que sabidamente podem matar seriam moralmente condenáveis, assim como hábitos alimentares que produzem doenças, e atentam contra a vida e a saúde. Embora a virtude seja a condição mais elevada para consideração de deveres em relação à alimentação, para uma perspectiva didática e política, é importante considerar outras formas em que é possível estabelecer deveres para consigo em relação à alimentação. É disso que trato a seguir, apresentando a importância das escolhas alimentares saudáveis como imperativos da razão técnica e pragmática. 4.2.1 Os Imperativos (não morais) da alimentação saudável Há uma distinção fundamental no campo das escolhas alimentares entre o querer e o dever. Existe uma inclinação natural para buscar alimentos e saciar a fome, bem como para buscar prazer e bem-estar imediatos com os alimentos ingeridos, mas nisso não pode haver nenhum imperativo moral que ordene a vontade como um mandamento da razão. Na verdade, se já temos forte e íntima inclinação para a felicidade, algo que se quer por si mesmo, inevitavelmente, seria tolice um mandamento que ordenasse a todos buscá-la.616 Por outro lado, como apresentada, nossa experiência alimentar atual é altamente reprovável, mesmo do ponto de vista pragmático; dominados por apetites e inclinações na hora de escolher o que comer, podemos afirmar que não há determinação moral nas nossas escolhas, nem mesmo por razões utilitaristas, se considerarmos as consequências negativas a longo prazo dos nossos atuais hábitos alimentares. Esta situação exige de nós, Nutricionistas, uma atitude crítica para estabelecer os limites 615 Antr., 144, p. 43. 616 FMC, BA 12, p. 13. 179 da sensibilidade e da razão no campo das escolhas alimentares. Tal atitude é fundamental se se quer defender e promover a escolha da alimentação saudável, visto que não se pode, ao mesmo tempo, afirmar uma total incompatibilidade entre as inclinações e o dever quanto àquela escolha, sobretudo porque no caso da alimentação, a ausência de contentamento levaria facilmente à transgressão.617 Assim sendo, tendo em vista a perspectiva pedagógica que adoto na seção seguinte, trato aqui dos tipos de imperativos (não morais) que também podem determinar a alimentação saudável como necessária. O que Kant chama de imperativo é a fórmula de um mandamento da razão, que nada mais é do que a representação de um princípio objetivo que obriga a vontade, por isso, os imperativos se exprimem com o verbo dever.618 Na conhecida categorização dos imperativos, descrita na segunda seção da FMC, temos dois tipos de imperativos que se exprimem pelo verbo dever (sollen), segundo o modo de ordenar e o tipo de obrigação imposta: são categóricos os imperativos que ordenam a ação como objetivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade; e hipotéticos, os que ordenam a ação como meio em vista de qualquer outra coisa (possível ou real) que é desejada.619 Em ambos os casos, a ação determinada pelo imperativo é boa, o que se distingue é se é boa em si mesma, ou apenas como meio. Trato aqui do último caso, onde mais facilmente podemos situar as escolhas alimentares, tendo em vista a relação direta entre alimento-saúde-bem-estar que faz da escolha pela alimentação saudável um meio de obter saúde e bem-estar. Os imperativos hipotéticos dizem que a ação é boa em vista de uma intenção que pode ser apenas possível ou real, e se distinguem em dois tipos: de destreza ou pragmáticos. São chamados imperativos de destreza ou habilidade aqueles que representam a ação como meio necessário para atingir qualquer intenção possível, mas, por isso mesmo, tornam-se problemáticos, pois serão infinitamente numerosos os princípios da ação para alcançar qualquer fim apenas possível – esse é o caso de todas as artes ou técnicas que tem uma parte prática que pode ser expressa como regras de destreza. Por exemplo, com a técnica dietética, disciplina cujo conhecimento aborda as modificações que sofrem os alimentos durante os processos 617 FMC, BA 12, p. 29. 618 FMC, B37, p. 51. Segundo o estudo de Rohden (2012, op. cit., p. 29) sobre a relação entre a ética de Cícero no De officiis (em que a lei moral aparece como fórmula) e o imperativo categórico de Kant (apresentado por meio de fórmulas), é nessa passagem da Fundamentação que houve, pela primeira vez, o deslocamento do termo imperativo, de um contexto gramatical para um contexto prático. 619 Sobre a relação entre dever e obrigação, é importante ver os Conceitos preliminares da Metafísica dos Costumes: enquanto a obrigação é a “necessidade de uma ação livre sob o imperativo categórico da razão”, o dever é a “ação a que cada um é obrigado”, tratando-se, portanto, da matéria da obrigação (MC, 2013, 222, p. 28-9), por isso, a obrigação em geral é apenas uma, e os deveres podem ser plurais. 180 culinários e de preparação para o consumo, podemos estabelecer regras de manipulação de alimentos, segundo qualquer intenção desejada. Imperativos deste tipo não poderiam ser morais, dado que se fundamentam em princípios empíricos, relacionados àquilo que, na Antropologia, Kant chamou de “disposição técnica” do homem em relação ao alimento.620 É evidente que existe uma disposição técnica alimentar, desenvolvida pelo homem a partir do emprego da razão, algo que o distingue dos outros animais, bem como é inegável seu avanço, e não se trata de um traço instintivo, visto que estas técnicas variam segundo a cultura, porém, o fato de sermos animais racionais, aptos ao emprego da razão com o qual adquirimos capacidade técnica ou habilidade,621 ainda não nos torna morais. Faço uma observação importante sobre este domínio da razão instrumental que se instalou na área da alimentação, durante o processo civilizatório iniciado com a separação entre homem e natureza, na produção de alimentos, seja agrícola, seja industrial, porque isso produziu profundas alterações nos nossos hábitos alimentares, com consequências negativas para a vida e a saúde. Se na agricultura são produzidos alimentos com venenos, cujos efeitos nocivos, em geral, só a longo prazo são percebidos, na indústria, os produtos alimentícios são conhecidos por estimularem fortemente as sensações, na medida em que são coloridos e aromatizados artificialmente, acrescidos de uma gama de substâncias químicas classificadas como “aditivos alimentares” que tem por finalidade, dentre outras coisas, realçar a cor, o aroma, a textura e o sabor, como forma de estimular o consumo. Diante disso, considerando que hoje a técnica consegue até mesmo produzir uma nova natureza, alerto para a necessidade de reflexões éticas sobre a utilização da técnica dietética (e da engenharia de alimentos) no estabelecimento de regras de ação, afinal, as disposições não devem ser analisadas separadamente, assim como os imperativos quando aplicados às escolhas alimentares. No caso dos imperativos hipotéticos, que representam a necessidade prática de uma ação como meio para se alcançar um fim dado como real e certo a priori para todos, como é o caso do bem-estar e da felicidade própria, diz-se que são imperativos assertórico-práticos ou pragmáticos. Pode-se dizer que a destreza na escolha dos melhores meios tendo em vista a felicidade ou o bem-estar como fim universal constitui a prudência, contudo, tendo em vista que é impossível ter uma ideia exata do que seja a felicidade, estes imperativos mais podem ser considerados conselhos de prudência, no sentido mais restrito, e não mandamentos (leis) propriamente ditos, visto que não podem representar ações de maneira objetiva – neste sentido, 620 Antr., 322, p. 216. 621 Antr., 323, p. 218. 181 remeto à distinção que Kant faz entre lei e recomendação.622 Sabemos que é possível produzir alimentos saudáveis a partir das técnicas adequadas da dietética e da gastronomia, o que pode levar alguém a mudar seus hábitos tendo em vista os benefícios desta boa alimentação. A pessoa procura orientação de um profissional para saber que regras seguir para alcançar aqueles fins, como saúde e longevidade. Esta pessoa tem uma inclinação imediata para cumprir à risca as prescrições do profissional, dado o seu interesse no fim a ser alcançado. Na verdade, muitas pessoas cuidam da sua alimentação porque reconhecem nela um fator importante para a prevenção de doenças, por exemplo, e para a manutenção da saúde, o que está associado a um bem necessário à felicidade. Ocorre que o valor moral623 de uma ação não está no efeito que dela se espera, por melhor e desejado que seja tal efeito, como é o caso da saúde, então, também aqui não podemos falar em escolhas morais, já que o cuidado com a alimentação está sendo determinado por inclinações e interesses pessoais. Embora não possam ser consideradas moralmente corretas, tais escolhas são, contudo, tecnicamente corretas, isto é, a razão aqui fornece leis pragmáticas, e são, por isso, escolhas desejadas (e incentivadas) do ponto de vista das políticas de saúde e de segurança alimentar. Estamos diante de um caso típico de uma ação realizada conforme ao dever – contido nas prescrições dietéticas – combinada com uma inclinação imediata, portanto, que não poderia ser caracterizada como ação moral, apesar de ser difícil distinguir, uma vez que a busca pela saúde pode ser um dever de virtude indireto, se o que se quer como fim é a moralidade, conforme exposto no início deste capítulo. Assim, dieta e moderação visando ao bem-estar e à felicidade própria caracterizam uma disposição alimentar no sentido pragmático, para continuar com a classificação da Antropologia,624 mas não se trata de um imperativo moral. A felicidade não pode constituir uma finalidade para a qual uma regra universal possa ser dada, ou seja, nem mesmo quando hábitos alimentares saudáveis são livremente escolhidos podemos falar em virtude, porque esta caracteriza-se pela força da vontade, não é uma mera propriedade do arbítrio. Por outro lado, precisamos reconhecer que uma dificuldade para distinguir as ações por dever em relação às escolhas alimentares é o fato de que os alimentos podem afetar nossas inclinações. Kant 622 A lei se diferencia da recomendação exatamente porque nesta só se exige conhecer os meios mais adequados para o fim, ao passo que aquela elimina o arbitrário das ações, por estar fundamentada no conceito de fim que é dever (MC, 2013, 389, p. 201). 623 Kant reconhece a impossibilidade de se conhecer completamente este valor, na medida em que depende de princípios íntimos – os móbiles secretos – mas sua preocupação não é saber se ações morais acontecem, mas de que modo elas devem acontecer (FMC, BA 26-28, p. 42-43; BA 48, p. 59). 624 Antr., 324, p. 218. 182 reconhece essa dificuldade em distinguir se ações para as quais temos inclinação imediata – como é o caso do instinto para o alimento – foram realizadas por dever ou conforme ao dever.625 As condições para o exercício do nosso livre arbítrio, inclusive no que se refere à alimentação, são empíricas, pois, somente pela experiência, posso saber quais inclinações querem ser satisfeitas e quais são as causas naturais que podem operar nessa satisfação. Além do mais, todos os fins dados por estas inclinações, unificados em um fim único, constitui a felicidade, cuja doutrina da prudência só pode fornecer leis pragmáticas. No entanto, não podemos querer, no caso do dever para com a alimentação saudável, afastar completamente os fins sensíveis, dado que isto tornaria impossível o consumo do alimento e, portanto, a própria realização do direito à alimentação, o que leva à necessidade de unir a felicidade com a virtude no campo das escolhas alimentares. Kant não considera isso impossível nem indesejável, como mostro a seguir. Já no final da primeira crítica, Kant admitia a existência de “leis morais puras que determinam completamente a priori o fazer e o não fazer”,626 isto é, que comandam absolutamente, e assim, na medida em que com isso se podem produzir ações livres, estes princípios da razão pura adquirem uma realidade objetiva em seu uso prático. Vimos que são pragmáticas as leis práticas que tem por motivo a felicidade; como regras de prudência, elas aconselham o que se deve fazer se queremos participar na felicidade.627 Contudo, não devemos pensar que da busca pela felicidade possa resultar a moralidade: Por muitas que sejam as razões naturais que me impelem a querer e por mais numerosos que sejam os móbiles sensíveis, não poderiam produzir o dever, mas apenas um querer que, longe de ser necessário, é sempre condicionado, ao passo que o dever, que a razão proclama, impõe uma medida e um fim, e até mesmo uma proibição e uma autoridade.628 As leis morais determinam o uso da liberdade, abstraindo de toda inclinação e dos meios naturais de satisfazê-las, isto é, comandam, não de modo empiricamente condicionado, mas de modo absoluto.629 Enquanto nas leis pragmáticas o motivo era a felicidade, nas leis morais o móbil é o merecimento de ser feliz, ou seja, elas nos indicam “como devemos nos comportar para unicamente nos tornarmos dignos da felicidade”.630 Neste último caso, a felicidade viria 625 FMC, BA 9, p. 27. 626 CRP, B 835. 627 CRP, B 834. 628 CRP, B 576, grifos do autor. 629 CRP, B 835. Trata-se aqui do uso prático da razão pura. 630 CRP, B 834. 183 como recompensa da moralidade e não como motivo. Podemos estabelecer aqui um paralelo entre a ordem da natureza e a ordem moral, a partir da distinção feita por Kant entre dois tipos de prazer: “É patológico o prazer que precisa preceder a observância da lei para que, assim, se aja em conformidade a esta – tal conduta segue a ordem da natureza. Porém, o prazer que tem de ser precedido pela lei para que seja sentido reside, por sua vez, na ordem moral.”631 Seguir a ordem da natureza no campo alimentar equivaleria a deixar-se levar apenas pelo prazer provocado pelas inclinações e buscar aqueles alimentos que proporcionariam maior satisfação. O chocolate, por exemplo, por favorecer a produção de serotonina, responsável pela sensação de prazer e bem-estar, é motivo para a escolha deste alimento por muitas pessoas. Neste caso, seria mesmo possível a ordem moral, de modo que se pudesse unir a virtude com a felicidade na escolha de uma alimentação saudável? Para responder a essa questão, a partir de Kant, em primeiro lugar, apesar do que ele afirma sobre a felicidade, é importante ter em mente que ele não desdenha da sua existência, nem a exclui de uma relação com a moralidade; ele é claro ao propor como princípio de determinação da vontade, ao invés do princípio da eudemonia, o princípio da eleuteronomia, princípio da liberdade de legislação interior,632 mas de modo algum isso significa que a felicidade está ausente de uma vida moral. É neste sentido que proponho adotar uma perspectiva pedagógica, para a educação nutricional que comece propondo o dever quanto à alimentação saudável a partir dos imperativos hipotéticos, como preparação (ascética ética) para uma “virtude alimentar”, considerando que, “para colocar pela primeira vez nos trilhos do moralmente bom um ânimo inculto ou mesmo degradado, precisa-se de algumas instruções preparatórias para atraí-lo por seu próprio proveito ou atemoriza-lo pelo dano”.633 Entre um caminho e outro, o importante é reconhecermos que a trilha da felicidade pode até ser necessária, mas jamais será suficiente para levar à alma o motivo moral puro, pois esta pedagogia deverá ensinar o homem a sentir a sua própria dignidade. 631 MC, 2013, 378, p. 188, grifos do autor. 632 MC, 2013, 378, p. 188. 633 CRPr, 271, p. 241. 184 4.3 Dilemas morais na prática do Nutricionista: o papel da educação na formação para a virtude Se se quer melhorar um povo, em vez de discursos contra os pecados, dê-lhe melhores alimentos (Feuerbach, Ensenanza de la alimentación) O discurso dominante para a transformação dos nossos hábitos alimentares responsáveis, em grande parte, pelo nosso estado atual de adoecimento, não tem sido o da dietética, como campo da saúde, mas o da má retórica, na concepção platônica, uma coisa de grandeza quase divina. Relembrando Sócrates, a palavra, assim como o fármaco, também pode ser veneno, dependendo da intenção do seu uso, e quando a intenção é apenas lucrar com o consumo de certos alimentos, então nada garante que a mudança promovida pelo discurso midiático em torno da alimentação será para alcançar o melhor, podendo limitar-se ao mais agradável e vantajoso.634 Uma vez que o discurso retórico não promove o conhecimento – apenas a crença – sobre o que é justo ou injusto,635 há que se ter cuidado com este discurso que não visa ao bem, e sim ao prazer, quando aplicado à alimentação. A persuasão é a primeira, mais evidente e mais antiga função da retórica, que é exercida, seja por meio de argumentos de ordem racional, seja pelo uso das emoções, visando exclusivamente agradar e comover.636 Esse discurso aplicado à alimentação não é incomum, mesmo nos dias de hoje. Serviu a Platão para distinguir a medicina da culinária: enquanto esta nada tem de arte, por se tratar apenas de uma rotina que não só carece de razão, como ainda atua usando o prazer como isca somente para agradar, sem qualquer preocupação com a saúde, a medicina, por sua vez, como toda arte, tem um método, e isto significa partir do conhecimento do seu objeto. Neste sentido, a culinária, tida como uma habilidade dedicada ao prazer, sem qualquer téchne, não explica racionalmente a natureza do seu objeto nem dos seus instrumentos e nada conhece sobre as causas, posto que tem origem na memória do hábito.637 No Guia da alimentação para a população brasileira,638 o governo brasileiro reconhece que a publicidade de alimentos tem enorme poder para influenciar as escolhas alimentares e defende o acesso à informação ao consumidor como forma de garantir o consumo consciente. 634 Górgias, 463b. 635 Górgias, 455a. O próprio Kant considerou que a retórica – como arte de servir-se das fraquezas dos homens para seus propósitos – não era digna de nenhum apreço (CJ, § 53, p. 173). 636 Sobre uma introdução à Retórica, ver REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. Tradução Ivone Castilho Benedetti. Martins Fontes: São Paulo, 2004. 637 Górgias, 463b, 464e-465a. 638 BRASIL, 2014, p. 118. 185 A influência da mídia no perfil de consumo alimentar da população, especialmente crianças e jovens, tem sido observada em vários estudos,639 de modo que as “campanhas educativas” parecem estar perdendo a batalha dos discursos, na influência sobre os nossos hábitos alimentares, apesar da reação do marketing nutricional. Mas, seria esta a estratégia indicada para vencer tal disputa? O Conselho Federal de Nutricionistas reconhece o marketing em alimentação e nutrição como uma das áreas de atuação do profissional, sendo de competência do Nutricionista que atua nesta área “a educação nutricional de coletividades, sadias ou enfermas, em instituições públicas ou privadas e em consultórios de nutrição e dietética, divulgando informações e materiais técnico-científicos acerca de produtos ou técnicas reconhecidas”.640 O novo campo de atuação do Nutricionista, voltado para atividades de marketing e publicidade científica, relacionadas à alimentação e à nutrição, está definido, na mesma resolução, como conjunto de ações, estrategicamente formuladas, que visam influenciar o público quanto à determinada ideia, instituição, marca, pessoa, produto, serviço, etc. Reconhece-se, assim, a palavra, como um instrumento importante do trabalho deste profissional. Neste sentido, entendo o referencial filosófico como essencial na formação do Nutricionista, um profissional de saúde que também, e talvez por isso mesmo, deve ser um educador. Mais uma vez, podemos recorrer a Kant, neste caso, à sua Pedagogia. Como única criatura que precisa ser educada, Kant propõe que a educação do homem comece pelo cuidado, logo após o nascimento, quando os pais devem tomar precauções para impedir que as crianças façam uso nocivo de suas forças. O cuidado, portanto, refere-se à conservação e ao trato que deve ser dado nesta fase.641 Pela disciplina, transformamos a animalidade humana em humanidade. Kant distingue a disciplina da instrução: a primeira é negativa, porque impede o homem de se desviar da humanidade, por meio de suas inclinações; a segunda é a parte positiva da educação, na medida em que faz parte, junto com os vários conhecimentos, da cultura. Para ele, não ter disciplina ainda é pior que não ter cultura, pois a falta desta pode ser remediada mais tarde. É selvagem quem não tem disciplina e bruto quem 639 Sobre a influência do marketing no comportamento alimentar de crianças e adolescentes ver MOURA, Neila Camargo de. Influência da mídia no comportamento alimentar de crianças e adolescentes. Segurança Alimentar e Nutricional, Campinas, 17(1): 113-122, 2010; a respeito da influência da mídia sobre crianças, ver MOTTA- GALLO, Sofia Karlla Almeida. Comportamento alimentar e mídia: a influência da televisão no consumo alimentar de crianças do Agreste Meridional Pernambucano, Brasil. 2010. 192p. Tese (Doutorado em Saúde Pública) – Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo; uma revisão de artigos sobre o assunto, com foco no papel da família e a influência da televisão encontra-se em ROSSI et al. Determinantes do comportamento alimentar: uma revisão com foco na família. Rev. Nutr., Campinas, 21(6):739-748, nov./dez., 2008. 640 CFN, Res. 380/2005, Anexo I, Glossário. 641 Ped. 441, p. 11. 186 não tem cultura.642 Para manter a coerência deste trabalho, o ponto de união interessante entre o que já foi dito até agora e a Pedagogia kantiana, tendo em vista meu propósito de estabelecer a alimentação saudável como dever moral, continua sendo a ideia de progresso, uma vez que Kant vê a educação como o desenvolvimento de nossas disposições para o bem, em um processo de produzir em si a moralidade, que é o dever do homem, para o que o direito tem papel fundamental, como já apresentado. Para realizar seu destino, numa perspectiva histórica, ao menos naquilo que Kant entendia por progresso moral da humanidade, é imperativo que cada um estabeleça para si deveres de virtude em relação à alimentação. Quero mostrar com isso que o campo da alimentação perpassa todos os três reinos de que falava Kant no seu programa para o curso de geografia do semestre 1765-66, quando também lecionou ética: o físico, o moral e o político, permeados pela Antropologia e pela Pedagogia. Por ora, não vou tratar aqui do campo físico do alimento, que diz respeito ao conhecimento proporcionado pelas diversas ciências que estudam o alimento em seus aspectos biológicos, bioquímicos, microbiológicos, moleculares, ou fisiológicos, seja quando in natura, seja quando submetidos às mais diversas operações de processamento. Será necessário, no entanto, retomar o alimento em seu aspecto político, visto que se relaciona com a retórica e a educação.643 Minha preocupação será sempre com o caráter ético implicado nas nossas escolhas alimentares, a partir do que destaco aqui a importância da educação neste processo. Educação é uma arte, diz Kant.644 Esta arte, porém, não é mecânica, isto é, não está ordenada sem um plano, para apenas conformar-se às circunstâncias. Apenas em certas oportunidades, isso seria possível, quando aprendemos por experiência se uma coisa é prejudicial ou útil ao homem. Nesse sentido, Kant se aproxima da distinção grega645 feita entre o conhecimento empírico – como episteme – e a mera habilidade (tribè). Para ele, também na Pedagogia, é preciso um plano, pois, a educação é uma arte raciocinada, e seu plano não é o da mera repetição da experiência passada, já que devemos educar as crianças segundo um estado melhor, possível no futuro, tendo sempre em mente a humanidade. A pedagogia deve ser um 642 Ped., 444, p. 452. 643 Discuto o aspecto físico do alimento no próximo capítulo, quando abordarei a evolução tecnológica para a produção de alimentos transgênicos e sua repercussão no direito à alimentação, como exemplo para aplicação da ética kantiana. 644 Ped., 447, p. 21. 645 Gadamer diz que, para os gregos, a episteme, por oposição à práxis, entendia a si mesma como pura theoria, “saber procurado como valor em si mesmo e não pelo seu significado prático”; tribè é a mera repetição do hábito sem reflexão. GADAMER. Hans-Georg. O caráter oculto da saúde. Tradução Antônio Luz Costa. Petrópolis: Vozes, 2006. Coleção Textos filosóficos, p. 12. 187 estudo e precisa de um plano, caso contrário, nada se poderia esperar dela, a não ser a mera reprodução do estado presente das coisas. A pedagogia Kantiana visa ao homem “ilustrado”, e não ao homem treinado, disciplinado, instruído mecanicamente. Não é exatamente esse o nosso comportamento em uma grande praça da alimentação? Esta realidade vai exigir do Nutricionista que atua na educação nutricional, tendo em vista a alimentação como dever moral, uma preocupação com um “estado melhor”, para o que pode ser necessário mudar hábitos alimentares. Entretanto, a necessária mudança de hábitos não há de se fazer mediante regras externas, pois isso não representaria um imperativo moral. Kant deixa clara a distinção entre os costumes e a verdadeira moralidade, haja vista que esta última está inevitavelmente ligada ao princípio da autonomia, o que se contrapõe frontalmente à conformação aos hábitos por mera reprodução (irrefletida) de um padrão já estabelecido, mesmo se por uma razão prático-técnica.646 O hábito é uma habilidade em certas ações, “uma facilidade para agir e uma perfeição subjetiva do arbítrio”;647 significa uma necessidade subjetiva prática, envolve “um certo grau de vontade adquirido pelo uso frequentemente repetido de sua faculdade: quero porque o dever manda”,648 contudo, o hábito “retira o valor moral das boas ações precisamente porque prejudica a liberdade do espírito”,649 por isso, a virtude não pode ser explicada como habilidade, senão seria apenas um mecanismo de aplicação de força. De fato, se o hábito retira o valor moral das boas ações, “a virtude é a força moral no cumprimento do seu dever, que jamais se tornará hábito, devendo provir, sempre de forma inteiramente nova e original, da maneira de pensar”.650 Assim sendo, é necessário, primeiro, o espaço de debate e reflexão sobre a alimentação saudável e os hábitos alimentares que possibilite o esclarecimento do público, a condição de sociabilidade, o respeito ao direito, para então, mediante a própria razão, cada qual fazer as escolhas tecnicamente corretas, não por interesse na utilidade do alimento, mas por dever, isto é, tendo em vista a obrigação individual de auto conservação da sua natureza animal, essencial para o progresso moral da espécie. Não se deve concluir daí que a alimentação será um jogo de regras técnicas a cumprir mediante preceitos morais, por meio da força da virtude, sem que se possa, com isso, obter 646 Para Kant, a ciência dos costumes não constitui ainda uma doutrina da virtude, por isso, existem povos que tem costumes, mas não tem virtude, e outros que tem virtude, mas não tem costumes. A palavra Sitten expressaria melhor o decoro, enquanto Sittlichkeit (hábito social) serve para moralidade, por não ter uma palavra para exprimir a natureza da moralidade (LE, p. 86). Sittlichkeit e Moralität são equivalentes. 647 MC, 2013, 407, p. 218, grifos do autor. 648 Antr. 147, p. 46, grifos do autor. 649 Antr. 149, p. 48. 650 Antr., 147, p. 46, grifos do autor. 188 qualquer prazer ou satisfação. O exercício da virtude alimentar não deve tornar a alimentação odiosa, pelo contrário, esta deve ser prazerosa, seja como mandamento da ética, seja do direito, posto que seria impraticável um dever de se alimentar cuja realização produzisse dor e sofrimento. Além do mais, na doutrina kantiana, os deveres relacionados à alimentação dizem respeito apenas a evitar os excessos. Embora ele trate, evidentemente, de excessos quantitativos, para os dias atuais, seria importante incluir a necessária moderação também no uso de substâncias nocivas, nem sempre produtos alimentícios, mas que fazem parte de sua constituição, tais como aditivos químicos. Kant diz que não se deve recompensar as crianças para não torná-las interesseiras.651 Esta é uma prática comum, quando adultos “negociam” com crianças o consumo de guloseimas, somente após elas consumirem alimentos saudáveis. Tal conduta nada tem de moral e não serve para a formação pedagógica em geral, nem àquela voltada para uma virtude alimentar. O sistema de recompensa e castigo é totalmente condenado por Kant, porque assim a criança fará o certo para ser bem tratada, não por dever; a moralidade não se rebaixa à disciplina.652 Por outro lado, ensina Kant, às crianças não se fala sobre deveres, isso é inútil; para elas ao dever associa-se o castigo por sua transgressão.653 Deve-se aguardar até a adolescência para falar sobre o dever; com as crianças é suficiente a autoridade e o exemplo. A obediência à autoridade é “absolutamente necessária, porque prepara a criança para o respeito às leis”;654 e se alimentos saudáveis fazem parte do cardápio da família, a criança tenderá menos a rejeitar tais alimentos, considerando que a sociabilidade da refeição é algo importante para a formação dos hábitos alimentos saudáveis, como já apresentado. Também na Pedagogia Kant aborda os deveres para consigo como parte da educação prática das crianças.655 Aqui ele diz: “o dever para consigo mesmo, porém, consiste, diríamos, em que o homem preserve a dignidade humana em sua própria pessoa”.656 Igualmente, o papel da virtude é reconhecido como a força exercida sobre si mesma capaz de tornar o homem moralmente bom. Quero apresentar com isso que, tanto na pedagogia prática como na ascética ética, Kant não descura do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual não é incompatível com o desfrute da vida. Para Kant, a prática da virtude, a consciência do cumprimento do dever, é 651 Ped. 483, p. 84. 652 Ped. 481, p. 81. 653 Ped. 484, p. 86. 654 Ped. 482, p. 83. 655 Ped. 488, p. 95. 656 Ped., 490, p. 97. 189 garantia de um espírito e ânimo alegres, por isso “a disciplina que o homem impõe sobre si mesmo só pode tornar-se meritória e exemplar por meio da alegria que a acompanha”.657 Seu método deve ser o dialógico, aquele em que o mestre pergunta à razão (dos alunos), dirigindo o pensamento para desenvolver no aluno a disposição para certos conceitos. Em alusão ao método socrático, Kant diz que o mestre é a parteira dos pensamentos dos alunos.658 Outro ponto importante numa pedagogia que pretende ensinar uma doutrina da virtude alimentar diz respeito à postura do Nutricionista, como profissional detentor de um saber técnico, a quem compete elaborar plano alimentar, orientar condutas terapêuticas, aconselhar, etc., sem que isso represente desrespeito à autonomia do outro. Falo do conflito que pode surgir entre a autonomia e o paternalismo, especialmente no exercício de funções públicas, por exemplo, no âmbito da saúde e da educação. Sobre isso, a posição de Kant é bem conhecida: ele opõe ao paternalismo estatal, o governo patriótico, “o único concebível para homens capazes de direitos, ao mesmo tempo em relação com a benevolência do soberano”.659 Do ponto de vista do Estado, na sua resposta a Hobbes, ele afirma: Um governo que se erigisse sobre o princípio da benevolência para com o povo à maneira de um pai relativamente aos seus filhos, isto é, um governo paternal (imperium paternale), onde, por conseguinte, os súditos, como crianças menores que ainda não podem distinguir o que lhes é verdadeiramente útil ou prejudicial, são obrigados a comportar-se apenas de modo passivo, a fim de esperarem somente do juízo do chefe do Estado a maneira como devem ser felizes, e apenas da sua bondade que ele também o queira – um tal governo é o maior despotismo que pensar se pode (constituição, que suprime toda a liberdade dos súbditos, os quais não têm, portanto, direito algum).660 A crítica de Kant é perfeitamente consistente com sua defesa do iluminismo como saída do estado de menoridade discutido no capítulo anterior. Ele considera que os chefes de Estado que se autodenominam pais do povo, na medida em que julgam saber melhor que seus súditos como fazê-los felizes, com tal atitude, nada mais fazem do que condenar o povo ao estado de minoridade.661 Não se entenda nisso uma condenação da felicidade, pois, o que Kant quer defender é que, com a entrada na sociedade civil, dotado de liberdade, “não basta a fruição da 657 MC, 2013, 486, p. 302. 658 MC, 2013, 478, p. 294. 659 DC, A 236, p. 76. 660 DC, A 236, p. 75. 661 Antr., 210, p. 107. 190 amenidade da vida que, por meio de outrem (e aqui do governo), também lhe pode caber em parte; mas o que importa é o princípio segundo o qual ele a obtém”.662 A felicidade não pode ser obtida a partir da benevolência, seja do Estado, seja de um técnico do saber – como agente público ou não; ao contrário, como defendo neste capítulo, cabe a cada um tornar-se digno dela, por meio de esforço próprio. O paternalismo atualmente é um dos desvios apontados na desconsideração da autonomia, no âmbito dos conflitos tratados pela bioética que deve reger as relações entre profissionais de saúde e pacientes. A julgar pela análise kantiana, será déspota o profissional de saúde que se colocar na posição de pai (ou de mãe), julgando-se conhecedor do que é melhor para seu paciente, ao invés de respeitar, estimular e favorecer o desenvolvimento da autonomia das pessoas. O reconhecimento da alimentação como direito social na nossa constituição, certamente, trouxe implicações éticas para a prática do Nutricionista como agente público que atua na realização daquele direito. Do ponto de vista do direito privado, a alimentação é um direito natural, garantido, peremptoriamente, somente na condição jurídica do Estado, e sendo um direito de todos, cabe ao Estado assegurar as condições de sua realização, removendo os obstáculos para isso. Tal realidade coloca a alimentação saudável no campo da biopolítica. Vimos que, para vencer as inclinações, a virtude precisa ser ensinada; é na defesa da alimentação saudável como dever de virtude, que cabe ao profissional de saúde tanto uma postura de respeito pela liberdade do indivíduo e, nesse sentido, considerando-o em sua igualdade, isto é, um membro igual de uma comunidade cujo fim é a humanidade de cada pessoa, como também uma ação pedagógica que vise ao desenvolvimento de suas disposições para a moralidade. Nesse caso, devo ser um exemplo na minha prática profissional, como Nutricionista que lida diretamente com regras dietéticas da alimentação saudável, mas o caráter pedagógico da minha prática exemplar não decorre de quantos seguirão minha conduta moralmente correta, e sim de eu poder provar, pelas minhas escolhas, que o dever de escolher uma alimentação saudável é exequível.663 Assim, para o enfrentamento desse dilema, é preciso, em primeiro lugar, estar esclarecido sobre o caráter político da alimentação na vida de um cidadão. A mais básica das necessidades naturais não pertence apenas ao campo da vida privada, trata-se de um componente da vida também política, da qual a liberdade é inseparável, por sua relação com a 662 CF, p. 104. 663 O comportamento exemplar do professor é o que Kant chama “meio experimental (técnico) da educação para a virtude”, MC, 2013, DV, § 52, p. 295. 191 moral e o direito, objeto desta tese. Como direito humano e constitucional, a alimentação saudável requer intervenções do Estado coercitivas, no sentido de garantir a oferta de alimentos saudáveis e proibir aquilo que é considerado nocivo para a sua realização; por outro lado, uma vez que não pode ser um dever de direito do indivíduo, e sim um dever de virtude, então, decisões autônomas, por parte de cada indivíduo, tornam-se necessárias. Por isso, defendi, não uma obrigação jurídica (externa) do indivíduo quanto à alimentação saudável, mas uma obrigação ética (interna), embora reconhecendo que a consequência de positivar o direito natural foi gerar obrigações para o Estado (como ente político), ou seja, é um dever (jurídico) do Estado assegurar aquele que é um direito (natural) do cidadão. Para Bobbio, isso, de certa forma, afirma o primado da liberdade do indivíduo sobre o poder do soberano: “a subordinação dos deveres do soberano aos direitos ou interesses do indivíduo”.664 Por fim, quero abordar, em relação a este conflito entre os deveres do Estado e os deveres do cidadão, o vínculo relacional estabelecido com o alimento, discutido no capítulo anterior no contexto da sociabilidade. Na grande pesquisa que comparou modos de comer em distintos países europeus e EUA, a diferença entre individualismo e convivialidade mostrou-se marcante entre americanos e franceses665: enquanto para os primeiros, o espaço da alimentação era essencialmente o espaço do privado, do íntimo e familiar, para os segundos, valoriza-se muito a sociabilidade alimentar, que tem também um caráter de necessidade, tanto quanto o equilíbrio alimentar. Na análise dos autores “o discurso americano se distingue de todos os outros pelo lugar essencial em que persistem os temas nutrição e saúde, e pela afirmação repetida da responsabilidade individual: a medicalização do comer anda de mãos dadas com sua privatização”.666 O individualismo americano é dominado pela ideia de que cada um tem a liberdade – portanto é responsável – por escolher o que comer, como uma competência pessoal, o que é coerente com a não aceitação da alimentação como direito social por parte do governo dos EUA. Consequência de tal posicionamento é que, na esfera do privado, a escolha da alimentação pode também gerar o sentimento de culpa, a partir dos apelos do discurso em prol da saúde, longevidade e bem-estar prometidos pelas regras dietéticas. Já para os franceses (e também suíços), a palavra ‘convivialidade’ foi usada com frequência. Comer bem para eles significa refeições em família, entre amigos, e os 664 BOBBIO, 2005, op. cit., p. 23. 665 FISCHLER, Claude & MASSON, Estelle. Comer: a alimentação de franceses, outros europeus e americanos. Tradução de Ana Luiza Ramazzina Guirardi. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2010. Os autores realizaram a pesquisa, entrevistando 7000 pessoas em seis países, entre 2000 e 2002. 666 FISCHLER & MASSON, 2010, op. cit., p. 53. 192 pesquisadores avaliam que “para os franceses, a convivialidade não é apenas desejável; possui também um caráter de necessidade tão imperativo quanto o do equilíbrio nutricional”.667 Uma defesa kantiana do DHAA, tal como apresento, pensará a alimentação para além do espaço privado e defenderá a liberdade, é verdade, só que não aquela como livre arbítrio de cada um, e sim a limitação de todos os arbítrios sob a lei do direito. É preciso ficar claro que a alimentação como direito não é somente uma questão de satisfazer as necessidades biológicas do corpo – a materialidade da vida –, mas de pensar sua realização para além da singularidade de cada indivíduo, debatendo a forma como os homens se organizam no mundo e seu futuro como espécie, para a garantia daquele direito às próximas gerações. Não caberá, portanto, ao Nutricionista mudar os hábitos alimentares de alguém, nem com base, obviamente, nos conhecimentos científicos, ou nas leis da alimentação, nem mesmo com base na moral kantiana. A perfeição do outro não pode ser meu dever, portanto, o que cabe ao profissional, além de se colocar para si mesmo o dever de uma alimentação saudável, tornando-se um exemplo, a prova de que tal dever é exequível, é facilitar e promover a alimentação saudável de todos, inclusive, atuar junto às instituições – com poder coercitivo – para elaborar e propor normas que assegurem o direito de todos a esta alimentação, sempre em respeito à autonomia. Assim, penso que, uma vez que já temos estabelecido o direito, não cabe mais adiar o debate ético sobre nossas escolhas alimentares. Não podemos desejar que o Estado nos imponha algo que somente nossa consciência é capaz de fazer, isso seria abdicar da própria liberdade e se colocar naquela condição indigna tão condenada por Kant. 667 FISCHLER & MASSON, 2010, op. cit., p. 54. 193 5 KANT CONTRA OS ALIMENTOS TRANSGÊNICOS Não me preocupo de agradar nem aos belos espíritos nem à gente da moda. Em todos os tempos, haverá homens feitos para serem subjugados pelas opiniões do seu século, do seu país e da sua sociedade (Rousseau, Discurso sobre as Ciências e as Artes) Finalizo esta tese com uma aplicação da filosofia prática de Kant para apresentar o grave problema alimentar brasileiro, decorrente da produção e consumo dos novos produtos da biotecnologia,668 os alimentos transgênicos (ou geneticamente modificados). Para tanto, vou partir das questões históricas que levaram à transgenia no Brasil, a fim de identificar, nessa história empírica, “o fio condutor” de um progresso científico, distante do progresso moral, à luz do direito e da política nacional, conforme já apresentados. Reconheço que o avanço científico, especialmente na área de biologia molecular, que possibilitou a manipulação genética, implicou um tipo novo de poder que exige reflexões morais, inclusive porque também diz respeito à destinação da própria espécie humana,669 na medida em que “as histórias das biotecnologias agrícola e humana estiveram estreitamente entrelaçadas”.670 Indiquei, no primeiro capítulo, que nossa realidade epidemiológica nutricional aponta a obesidade como um dos principais problemas de saúde pública, para cuja solução o governo estabelece medidas de caráter utilitarista, claramente expresso em suas políticas. Do ponto de vista do governo, portanto, na questão da obesidade, medidas estão sendo tomadas, embora não se possa dizer que seu impacto já seja visível. Defendi, no capítulo anterior, do ponto de vista do indivíduo, segundo a doutrina kantiana da virtude, que o cuidado de si é um dever ético, o que nos torna moralmente obrigados a escolher uma alimentação saudável, tendo em vista nosso dever de auto-conservação, não por qualquer vantagem individual. As vantagens e desvantagens, nos diz Kant, “devem ser mencionadas apenas incidentalmente, como acréscimos 668 Tomo como referência o conceito de biotecnologia moderna adotado pela Convenção da Diversidade Biológica que consta no art. 3º do Decreto 5705/2006 que promulga o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança: “por ‘biotecnologia moderna’ se entende: a) a aplicação de técnicas in vitro, de ácidos nucleicos inclusive ácido desoxirribonucleico (ADN) recombinante e injeção direta de ácidos nucleicos em células ou organelas, ou b) a fusão de células de organismos que não pertencem à mesma família taxonômica, que superem as barreiras naturais da fisiologia da reprodução ou da recombinação e que não sejam técnicas utilizadas na reprodução e seleção tradicionais”. Cf. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Decreto/D5705.htm. Acesso em 10 mar 2015. 669 Embora eu não trate aqui da manipulação genética humana, é inegável a analogia nos processos e suas consequências, quando se refere, sobretudo, às avaliações de risco, inclusive no que diz respeito à possibilidade de patenteamento da vida. Tais preocupações foram consideradas por Jonas em sua teoria da responsabilidade, diante dos possíveis efeitos do avanço tecnológico para o futuro da humanidade. Cf. JONAS, 2006, op. cit. 670 FUKUYAMA, Francis. Nosso futuro pós-humano: consequências da revolução da biotecnologia. Rio de Janeiro: Rocco, 2003, p. 202. 194 em si dispensáveis, mas que servem de meros veículos para o paladar dos fracos por natureza”.671 Diferentemente da obesidade, porém, o governo brasileiro não reconhece na transgenia qualquer problema sobre o qual atuar para dar resposta; ao contrário, a posição do governo, desde o primeiro pedido de liberação da soja transgênica, tem sido absolutamente favorável, sem questionamentos, a despeito do posicionamento contrário, tanto de cientistas independentes, como da própria sociedade, frente a este mais novo – e talvez mais perigoso – desafio da segurança alimentar. O caso brasileiro revela as profundas e questionáveis relações entre o poder, a ciência, e sua filha predileta, a tecnologia, numa economia de mercado. Na análise de Jacques Testart sobre o perigo das plantas transgênicas, a agilidade com que se deu sua liberação é o preço “das urgências impostas por uma visão ao mesmo tempo liberal (competitiva) e arcaica (cientificismo) do progresso e não parece ter tido equivalente na história das tecnociências”.672 É diante deste quadro que exponho razões morais para não incluir os alimentos transgênicos numa alimentação saudável, tendo em vista, sobretudo, as responsabilidades do governo, já que não toca ao cidadão decidir sobre a liberação ou não de plantas transgênicas, embora devesse ser assim; caso não tivesse havido liberação de plantio de transgênicos no Brasil, esta questão nem se tornaria objeto de escolha do cidadão, nem estaria, certamente, sendo reivindicada pelos que militam na defesa da soberania alimentar. As ações do governo, no entanto, afetaram a liberdade de escolha tanto de consumidores como de agricultores, e a questão da liberação tornou-se problemática, dado que se todos os alimentos/sementes forem transgênicos, então não será possível realizar o dever moral de escolher apenas alimentos/sementes não transgênicos. Assim sendo, mesmo que uma doutrina da virtude atendesse às exigências morais da escolha por uma alimentação saudável, da parte do indivíduo, sendo a alimentação saudável também um direito humano, não se pode descurar das responsabilidades jurídicas por parte do Estado, o que leva à necessidade de, mais uma vez, abordar as relações entre o direito e a política, no campo da moral. Toda a discussão feita neste capítulo deve considerar que estamos diante da seguinte situação: caso não haja impedimento da produção de transgênicos, manteremos uma grave situação de desrespeito aos direitos humanos, como bem observa Andrioli: Se o agricultor não consegue mais produzir de outra forma, o consumidor não 671 MC, 2013, 483, p. 299. 672 TESTART, 2011a, op. cit., p. 236. 195 terá mais a possibilidade de escolher o tipo de alimento. Portanto, de uma só vez, estão sendo restringidos dois direitos históricos dos seres humanos: a) a liberdade dos agricultores de definirem sua forma de produzir; b) a liberdade dos consumidores em sua opção de consumirem alimentos melhores, mais saudáveis e que não contenham toxinas ou resíduos de agrotóxicos.673 Um importante sujeito, intrinsecamente vinculado a esse direito, portanto, é o agricultor.674 Como cidadão, ele tem seu direito à alimentação saudável, mas é na categoria de agricultor que ele aparece como sujeito fundamental, posto que a ele cabe produzir o alimento. Muitas pessoas serão apenas consumidoras, mas algumas, os agricultores, terão a difícil tarefa de alimentar a todos. Nesse sentido, deve-se entender que o direito dos agricultores expressa o entendimento de que as sementes não constituem apenas um recurso material e econômico, mas são também bens culturais que integram o patrimônio dos povos cultivadores, como condição de sua própria existência, evidenciando, assim, “a relação inextricável estabelecida pelos agricultores entre seus conhecimentos e os recursos da biodiversidade”.675 A identidade camponesa caracteriza-se por seu modo próprio de viver que está intrinsecamente ligado à natureza. Além do aporte já apresentado da filosofia kantiana, em seus aspectos históricos, políticos, antropológicos e práticos, necessários à compreensão dos valores que fundamentam o direito humano à alimentação adequada em sua relação com os deveres – o que implica distinguir as responsabilidades do Estado na garantia desse direito, portanto, no campo das políticas públicas tendo em vista a liberdade externa, e as responsabilidades do cidadão, no âmbito da liberdade como autonomia, isto é, autocoerção, para a determinação da vontade segundo a lei moral –, a realidade atual de avanço da ciência com suas implicações práticas, seja sobre o direito e as políticas, seja sobre as condições que afetam as escolhas individuais, exige que se vá além de Kant. Assim, à medida em que articulo a questão da produção de sementes transgênicas com o que foi apresentado sobre o direito, a política e a moral no campo da segurança alimentar, com base na filosofia kantiana, complemento-a com algumas contribuições derivadas da ética 673 ANDRIOLI, Antônio Inácio. Transgênicos: produção de alimentos e combate à fome. Espaço Acadêmico, nº 90, novembro de 2008. Disponível em http://www.espacoacademico.com.br/090/90andrioli.htm. Acesso em 20 mai 2015. 674 Ao tratar da categoria “agricultores”, entendo a inclusão de agricultores familiares, camponeses, extrativistas, assentados da reforma agrária, comunidades locais e populações tradicionais, como pescadores, quilombolas, indígenas e povos da floresta. 675 FERNANDES, Gabriel Bianconi. Os direitos dos agricultores no contexto do Tratado de recursos fitogenéticos da FAO: o debate no Brasil. Rio de Janeiro: ASPTA, 2007. 196 da responsabilidade de Hans Jonas,676 especificamente no que se pode associar ao princípio da precaução, tendo em vista ser esse fundamental no debate sobre os OGMs. Para defender o princípio da precaução no campo da ciência, sendo tal princípio necessário à sustentabilidade aplicada à produção de alimentos, o que também tem relação com o Estado e com o cidadão, além de Jonas, Ulrick Beck677 e Hugh Lacey678 podem ampliar a perspectiva kantiana, de defender um futuro para a humanidade e a realização da sua destinação, desta feita, considerando a própria ação humana sobre a natureza. Isto implica que, ao considerar a produção de alimentos, devo julgar também o conhecimento que a orienta e os riscos nela implicados. Por outro lado, mesmo reconhecendo que os grandes desafios éticos colocados pelo avanço da ciência na área da biologia molecular – que resultou na possibilidade de romper a barreira entre as espécies – não poderiam ter sido objeto de análise de Kant, uma vez que, à sua época, a biologia apenas estava se constituindo como ciência, retomo ainda considerações suas, porque o cenário da discussão neste capítulo exige a inclusão de reflexões éticas sobre a produção de conhecimento científico e suas aplicações no controle da natureza no que diz respeito à produção de alimentos – sempre considerando a alimentação um direito humano e um dever ético –, que tem na modernidade sua origem mais próxima e mais influente, a partir da separação entre fatos e valores.679 Na discussão sobre o direito, vimos a ligação de Kant com as ideias iluministas e com o conflito das faculdades, onde se reconhece o papel do Estado como ente regulador, e das faculdades como instituições que mesclam saber e poder.680 Nessa relação entre o papel das universidades na formação de profissionais que atuam na área de segurança alimentar, considerando o DHAA e o papel do Estado para sua garantia, não se pode 676 JONAS, 2006, op. cit. 677 BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010. 678 LACEY, Hugh. A controvérsia sobre os transgênicos: questões científicas e éticas. Tradução: Paulo Mariconda. 1ª ed. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2006. 679 Sobre a separação entre fatos e valores que se deu no processo de “desencantamento do mundo” ver OLIVEIRA, Marcos Barbosa de. Neutralidade da ciência, desencantamento do mundo e controle da natureza. Scientia Studia, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 97-116, 2008. 680 É inevitável reconhecer o papel que teve o programa baconiano de reforma do conhecimento neste processo de unir saber e poder, e de difundir esperanças na aplicação do conhecimento para obtenção de bem-estar e progresso humanos. Cf. OLIVEIRA, Bernardo Jefferson de. A legitimação do novo ethos cientifico. In: OLIVEIRA, Bernardo Jefferson de. Francis Bacon e a fundamentação da ciência como tecnologia. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010, p. 203-227. Vale observar que na lista das Maravilhas naturais citada na Nova Atlântica há coisas do tipo “produzir alimentos novos a partir de substâncias que atualmente não são utilizadas”, “transplantar uma espécie em outra”, e “fabricar novas espécies” (ib., p. 216). Também Descartes, para quem a conservação da saúde era o maior bem, depositava muitas esperanças de que seria na medicina que encontraríamos o meio de tornar “a maioria dos homens mais avisados e hábeis”. Cf. DESCARTES. Discurso do método. As paixões da alma. Tradução Newton de Macedo. Lisboa: Sá da Costa, 1986, p. 50. 197 negligenciar a importância de termos uma “faculdade de filosofia” para submeter à crítica as doutrinas ensinadas. Para finalizar o capítulo, desenvolvo alguns argumentos utilitaristas, considerando as consequências para o povo e para o meio ambiente em decorrência da utilização de sementes transgênicas, a par dos lucros auferidos pelas empresas de biotecnologia detentoras de suas patentes. Dessa maneira, pretendo mostrar que é possível fazer uma defesa contrária à produção de sementes transgênicas, do ponto de vista da liberdade, da responsabilidade, e da utilidade. Antes de ir adiante, porém, é importante eliminar algumas incompreensões comuns acerca da transgenia. Em primeiro lugar, é importante considerar a própria terminologia adotada. A primeira manipulação transgênica tinha o nome de quimera genética, termo utilizado na biologia molecular para descrever exatamente uma construção envolvendo genes de diversas origens, no entanto, considerando a pouca aceitação que teria uma quimera junto ao mercado consumidor, destaco o papel daquela que foi pioneira nesse ramo: A Monsanto propôs, ou melhor, impôs o termo OGM, de forma que estas técnicas revolucionárias pudessem ser descritas como a continuação, por métodos mais confiáveis, mais precisos, mais previsíveis e mais seguros, daquilo que a humanidade tinha feito desde o início da domesticação de plantas e animais, O fato de a imensa maioria dos biólogos ter aceito sacrificar a precisão científica para o marketing diz muito sobre a comoditização da biologia.681 Não é por acaso, portanto, que em geral se pense que a transgenia pode ser comparada ao processo milenar de melhoramento genético praticado na agricultura, de modo que não haveria motivo para preocupações, por se tratar, em relação ao que já vinha sendo feito, apenas da incorporação de saberes e técnicas agora mais especializadas e sofisticadas, graças ao avanço da ciência. Não devemos aceitar essa falácia.682 Transgenia significa utilização da técnica de DNA recombinante, uma das possibilidades da engenharia genética. Essa técnica é radicalmente 681 BERLAN, Jean-Pierre. Ele semeou, outros colheram: a guerra secreta do capital contra a vida e outras liberdades. In: ZANONI, M & FERMENT, G. (org.). Transgênicos para quem? Agricultura, ciência e sociedade. Brasília: MDA, 2011, p. 140-167, p. 158. O autor propõe que o melhor termo para descrever os OGM seria “Clones de pesticidas quiméricos patenteados”, ib. 682 Para Araújo (2003, p. 7), trata-se de uma das maiores falácias apresentadas pelos defensores da transgenia para confundir o público, com a ideia de que os processos decorrentes da engenharia genética nada mais são do que um passo a mais no curso da milenar da seleção das espécies e dos métodos convencionais de melhoramento vegetal e animal. Cf. ARAÚJO, José Cordeiro de. Análise da Medida Provisória nº 113, de 25 de setembro de 2003. Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados: Estudo Técnico Específico, 29 set. 2003. Documento 2003.4699.032. Disponível em www2.camara.leg.br/documentos-e-pesquisa/...pdf/.../2003_4699.pdf. Acesso em 20 jun 2015. 198 diferente, porque a modificação feita tradicionalmente pelos agricultores se dá a partir da combinação de material genético da mesma espécie ou entre espécies muito próximas, enquanto a técnica da transgenia, que só pode ser obtida em laboratórios de biotecnologia, portanto, submetida à lei de patente e propriedade intelectual, permite a seleção aleatória de genes de um organismo para serem inseridos no DNA de outro, de espécie totalmente diferente. Assim, “os mecanismos de reprodução natural combinam o DNA de organismos parentais de uma maneira muito precisa e sistemática”,683 não permitindo a seleção aleatória, pois segue as regras bem precisas da natureza, de modo que: você não pode misturar espécies não relacionadas e nem inserir um gene sozinho, você tem que pegar o pacote de DNA inteiro. Onde há regras há limites. Por exemplo, quando um jumento cruza com uma burrica, o descendente – uma mula – é estéril. A natureza não permite propagação ou transformação do DNA da mula. A lei natural colocou um limite. A engenharia genética não está sujeita a essas regras e ultrapassa todos os limites colocados pela lei natural.684 Como afirma um documento assinado por oito cientistas e enviado ao Papa Francisco, no ano passado, comparar a domesticação e o melhoramento das espécies alimentares “com as técnicas de modificação genética de organismos por desenho pensadas pela indústria, é uma ideia reducionista pouco séria, dado o nível de conhecimento que temos atualmente”.685 Fazer com que genes de bactérias, por exemplo, possam invadir uma célula e passem a fazer parte do DNA de uma planta, exige, certamente, algo que nenhum agricultor, ao selecionar as melhores sementes, poderia ou estaria fazendo.686 Outra fonte de incompreensão diz respeito às características obtidas a partir do processo de transgenia.687 Tais características, evidentemente, serão derivadas do material genético proveniente do organismo doador do gene, em geral, bactérias. Agricultores não fazem cruzamento de vegetais com bactérias. Que características interessantes pode ter uma bactéria para que um alimento transgênico seja produzido com seu DNA? Tolerância a herbicidas (no 683 Ticciati & Ticciati apud LONDRES, Flavia & VON DER WEID, Jean Marc. Transgênicos: implicações técnico-agronômicas, econômicas e sociais. AS-PTA, Rio de Janeiro, setembro de 2003, p. 4. 684 Ticciati & Ticciati apud LONDRES & VON DER WEID, 2003, op. cit., p. 4. 685 Há três brasileiros entre os oito que assinam o documento. Cf. http://www.ihu.unisinos.br/noticias/534049- porque-os-transgenicos-sao-uma-ameaca-aos-camponeses-a-soberania-alimentar-a-saude-e-a-biodiversidade-no- planeta. Acesso em 31 mai 2015. 686 Para melhor compreender a complexidade da produção de plantas transgênicas ver https://www.youtube.com/watch?v=DiVefu4JBDQ (aos 8’). Acesso em 31 mai 2015. 687 75% dos cultivos transgênicos no mundo são tolerantes a herbicidas, 17% são cultivos Bt e 8% combinam as duas características. Cf. LONDRES & VON DER WEID, 2003, op., cit., p.5. 199 caso da soja) e tolerância a herbicidas, combinada com resistência a insetos, no caso do milho, ou seja, soja e milho transgênico tem como diferencial da soja e milho não transgênicos a característica de tolerar ou resistir a um veneno, no sentido de que banhadas por este veneno, as plantas resistem, não morrem. O milho geneticamente modificado (milho Bt) tem ainda a capacidade para produzir a toxina inseticida do Baccilus thuringiensis. Não é um detalhe sem importância que o herbicida ao qual resiste a planta seja produzido pela mesma empresa detentora da patente da semente, que obtém com isso um “pacote tecnológico” a ser vendido ao agricultor. 5.1 Transgenia: para onde nos conduz o fio condutor dessa história? Alegando, por um lado, a busca de um ideal da ciência e, por outro, os serviços prestados à humanidade, o cientista diz-se alheio às consequências negativas do resultado dos seus trabalhos (Jean-Jacques Salomon, Sobreviver à ciência) Já vimos que, do ponto de vista da segurança alimentar, a compreensão inicial do termo ligava-se, fundamentalmente, à produção agrícola, o que só reforçou a defesa do discurso da indústria química, feita também pela FAO, na I Conferência Mundial de Segurança Alimentar (1974), em cuja declaração final se afirmava que o flagelo da fome e da desnutrição no mundo seria resolvido com o incremento na produção, garantido pelo uso maciço de insumos químicos (fertilizantes e agrotóxicos). Todo o progresso tecnológico, no entanto, não foi suficiente para impedir que a fome, que na época em que a FAO foi criada afetava 80 milhões de pessoas, aumentasse para quase 900 milhões, nos dias atuais. A questão que se coloca, então, é: por que o avanço da ciência, com seu aparato tecnológico, não resultou em um progresso moral? Ou, de outro modo, como o progresso da ciência poderia também significar um progresso moral? Seria o progresso científico e tecnológico incompatível com o progresso humano e social, ou seja, com o progresso moral? Do que já foi afirmado nesta tese, fica claro que tratar do DHAA e da segurança alimentar e nutricional significa abordar a relação homem-ambiente-alimento, no que se refere tanto à produção como ao consumo alimentar, de modo que não há como uma ciência voltada para este vasto campo separar fatos de valores. O fato da produção de alimentos, por exemplo, não pode ser visto como um dado bruto, objetivo, relacionado apenas à produtividade, pois a produção ocorre num contexto de interação social entre homem-natureza, permeado por valores como a identidade cultural e étnica. Há quem diga, por exemplo, que “a diversidade biológica 200 e a diversidade cultural alimentam-se mutuamente. Não é casualidade, é causalidade.”688 É o que se lê no depoimento de um camponês mexicano da região de Oaxaca sobre a contaminação de variedades locais de milho por culturas de transgênicos: “A contaminação de nosso milho tradicional aniquila a autonomia fundamental de nossas comunidades indígenas e agrícolas, pois não estamos simplesmente falando de nosso estoque de alimentos; o milho é uma parte vital de nosso patrimônio cultural”.689 O mesmo se pode observar a respeito do arroz na Tailândia, onde se diz: “arroz jasmim é o orgulho dos agricultores tailandeses e dos habitantes da Tailândia [...] arroz constitui parte integrante de nosso modo de viver e de nossa índole”.690 Também vimos que a realização do direito só se dá em um contexto histórico, de modo que qualquer atividade humana sobre a natureza que implique perda de liberdade de escolha no tocante à produção/consumo de alimentos afeta a soberania dos povos na determinação de seus sistemas alimentares e vai contra a segurança alimentar e o DHAA. Na verdade, o que quer que afete a produção de alimentos, afeta o futuro e o destino da humanidade. É nesta linha de pensamento comprometida com a realização do DHAA, que defendo que as ciências que tem por objeto o alimento e a segurança alimentar, por exemplo, estejam orientadas de acordo com os princípios já estabelecidos pelo direito, ou seja, que busquem apresentar soluções para a garantia do direito de todos à alimentação adequada e saudável, considerando o respeito à dignidade da pessoa humana e a adoção de práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. Para refletir sobre algum limite ético na pesquisa científica sobre OGM, resgato as considerações de Lacey, para quem “a inter-relação entre o ético e o científico penetra em cada aspecto da controvérsia sobre os transgênicos”.691 O autor observa ainda que as questões éticas não se reduzem a questões científicas, pois “a identificação de qual é a pesquisa relevante a ser conduzida implica por si mesma juízos éticos”,692 ou seja, a ciência não pode ser neutra e não 688 RIBEIRO, Sílvia. Camponeses, biodiversidade e novas formas de privatização. In: Horacio Martins de Carvalho (Org.). Sementes: patrimônio do povo a serviço da humanidade. São Paulo: Expressão Popular, 2003, p. 51-72, p. 52. 689 ALTIERI, Miguel A. & NICHOLS, Clara I. Sementes nativas: patrimônio da humanidade essencial para a integridade cultural e ecológica da agricultura camponesa. In: Horacio Martins de Carvalho (org.), 2003, op. cit., p. 159-172, p.162. 690 NILLES, Bernd. Jamais patentear a vida. In: Horacio Martins de Carvalho (org.), 2003, op. cit., p.113-133, p. 119. 691 LACEY, 2006, op. cit., p. 10. 692 LACEY, 2006, op. cit., p. 10. 201 prescinde da ética.693 Já para Salomon, “as grandes opções de investigação científica e técnica refletem efetivamente escolhas de sociedade”;694 tais escolhas fazem parte do campo da moral. No caso da biotecnologia, o grande obstáculo à defesa da neutralidade da ciência está na própria escolha do método experimental como critério de validação de suas teorias, pois isso já traz implícito seu compromisso com a dominação e o controle da natureza, ou seja, há nisso uma valorização da natureza apenas quanto ao seu uso instrumental.695 Aplicada à produção de alimentos, os avanços da biotecnológica levaram da Revolução Verde à Revolução Genética que resultou no patenteamento de sementes transgênicas, o que vem afetando fortemente a soberania alimentar e a autonomia dos povos sobre a decisão do que escolher plantar para comer.696 As consequências da implantação desse modelo já podem ser sentidas, inclusive no Brasil, que se tornou o segundo maior produtor de sementes transgênicas em menos de uma década.697 A ética kantiana, aquela que serve para o homem na encruzilhada, tendo em vista a dialética da razão, permite também refletir sobre as soluções científicas apresentadas para resolver problemas de produção de alimentos, em um mundo cada vez mais urbanizado, considerando a alimentação saudável um direito humano, realizável apenas no contexto democrático da segurança e da soberania alimentar.698 Defender a ética inclusive na prática científica não deve ser considerado um obstáculo ao desenvolvimento da ciência, pelo contrário, é possível pensar, a partir de Kant, em um cientista virtuoso, comprometido com o direito; ao invés de separar fatos e valores, o cientista ético kantiano promoveria sua conexão. Vejamos de que modo Kant une ética e ciência. 693 Há dois casos emblemáticos nessa discussão sobre limites éticos aplicados à pesquisa cientifica: o primeiro é o caso Oppenheimer, sobre a produção da bomba atômica; o segundo, mais ligado ao tema em questão, é a moratória de Paul Berg, da qual trato mais adiante. Cf. CASCAIS, Fernando. As notas de Madame. Incerteza, risco, precaução, 2007. Disponível em http://www.cecl.com.pt/workingpapers/content/view/15/38/. Acesso em 25 jun 2015. 694 SALOMON, 1999, op. cit., p. 45. 695 A respeito disso, é interessante a análise do argumento de Galileu em defesa da autonomia como elemento da neutralidade da ciência, feita por MARICONDA, Pablo & LACEY, Hugh. A águia e os estorninhos. Galileu e a autonomia da ciência. Tempo Social; Rev. Sociol.USP, São Paulo, 13(1): 49-65, maio de 2001. 696 SHIVA,Vandana. Monocultures of the mind: perspectives on biodiversity and biotechnology. New York: Zed Books; Penang, Malaysia: Third World Network, 1997a. A autora relaciona a ‘síndrome de TINA’ (There Is No Alternative), provocada pelo hábito de pensar em termos de monoculturas. 697 Essa problemática é abordada em ANDRIOLI & FUCHS, 2008, op. cit.; VEIGA, José Eli (Org.). Transgênicos: sementes da discórdia. São Paulo: Senac, 2007; FERMENT, Gilles et al (Org.). Seminário sobre proteção da agrobiodiversidade e direito dos agricultores: propostas para enfrentar a contaminação transgênica do milho. Brasília: MDA, 2010. 698 Diante dos desafios colocados pela biotecnologia, até uma nova “disciplina” surgiu, a bioética. A respeito da difusão e expansão da bioética, inclusive na América Latina ver GARRAFA V, KOTTOW M, SAADA A (Org.). Tradução Luciana Moreira Prudenzi, Nicolás Nyimi Campanário. Bases conceituais da Bioética, enfoque latino- americano. São Paulo. Editora Gaia, 2006. 202 Nas Lições de ética, Kant nos diz que ser justo e respeitar o direito seu e do outro “promove notavelmente a capacidade de compreensão intelectual;699 para ele, o caráter moral exerce um forte influxo sobre as ciências: prescindir deste caráter moral implica tratar os produtos do seu intelecto como o comerciante trata suas mercadorias, ocultando seus aspectos negativos e enganando o público.700 Kant vê no homem de ciência um instrumento para os fins da humanidade, que fornece uma contribuição ao valor humano, sem por isso adquirir um valor eminente,701 e nas ciências, ele vê princípios para o melhoramento da moralidade.702 Infelizmente, veremos, nesta seção, que o maior influxo hoje sobre as ciências que pesquisam como produzir alimentos não vem do caráter nem de princípios éticos, mas do lucro. No que diz respeito à soberania, valor que deve ser respeitado para garantir o DHAA, uma “solução científica” que impede tal valor, ou que o reduz, não deve, do ponto de vista ético, ser aplicada. Soberania alimentar e patrimônio da humanidade são valores humanos que deveríamos respeitar, mas o fato é que podemos estar rumando no sentido contrário, tendo em vista o grave conflito que se instaurou entre a atividade científica, que inclui a biotecnologia, no caso da produção de sementes transgênicas, e o DHAA. Igualmente, uma pesquisa científica conduzida no sentido de tirar a autonomia dos agricultores em relação ao uso de sementes é, por si mesma, contrária ao direito. Nada impede, contudo, que a pesquisa científica se dirija à investigação e busca de soluções que assegurem e promovam a soberania alimentar, ou que investigue as causas da falta de acesso de grande parte da população aos alimentos disponíveis à outra parte, em um mesmo território. Significa que não nego todo o potencial que tem a ciência em termos de contribuir para o bem-estar da humanidade e para a elaboração de soluções que promovam a vida humana na Terra, pelo contrário, exatamente por reconhecer que a ciência, assim como sua aplicação, como atividades humanas que são, devem estar também submetidas a valores morais, defendo a necessidade de pensar em um sentido para o progresso científico que se harmonize com aquela ideia kantiana de progresso da humanidade703 que deve incluir, além do respeito ao direito, o respeito pela natureza, e não apenas o seu controle para fins instrumentais. Toda a ideia de progresso que influenciou profundamente o curso da história da ciência 699 “L’essere giusti e rispettosi del diritto altrui e della própria persona promove notevolmente le capacità di comprensione intellettuale.” (LE, p. 278). 700 LE, p. 278. 701 “I dotti son dunque gli strumenti di essi (i fini del genere umano), fornendo un contributo al valore umano senza tuttavia acquistare per questo unv alore eminente.” (LE, p. 277). 702 Le scienze sono princìpi per il miglioramento della moralità, (LE, p. 278). 703 No próximo tópico, apresento como a interação ciência-valor, mediada pela atuação da política brasileira, pode interferir favoravelmente, ou não, na garantia do DHAA. 203 sempre esteve intrinsecamente ligada a esta valorização do controle da natureza como meio para obter avanços no bem-estar da humanidade. Do ponto de vista da história empírica, pode- se afirmar que o progresso da biotecnologia agrícola que vai na direção da produção de sementes transgênicas parece ir contra qualquer ideia kantiana de moralidade e paz no mundo, na medida em que o que está em jogo agora, nesse sentido de progresso científico, é a supervalorização das estratégias de controle da natureza que orientam a ciência, de modo descontextualizado e mercantilizado, isto é, sem considerar a interação homem-natureza, e com objetivos apenas comerciais de privatização do material geneticamente modificado.704 O pano de fundo deste debate é uma suposta neutralidade da ciência que vê na natureza um mero objeto a ser controlado e apropriado, sem restrições. Estamos, portanto, diante de uma nova versão da “encruzilhada” científica entre fatos e valores.705 A relação entre a pesquisa científica e os interesses privados só reforçou a ideia de que essa atividade humana, a ciência, como produção de saber voltado à sua aplicação, não podia ser criticada. Um tipo de saber que não se submete à crítica é algo totalmente contrário ao que pensou Kant a respeito do papel da filosofia em relação a todas as ciências; por outro lado, como alerta Lacey,706 uma avaliação ética da pesquisa científica não deve se limitar a suas aplicações, o que envolve um debate sobre riscos e benefícios, mas precisa considerar também prioridades e estratégias alternativas, tais como, no caso da agricultura, considerar as estratégias agroecológicas, as quais sustentam os valores da participação popular e o bem-estar humano, social e ecológico. Assim sendo, a realidade apresentada de insegurança alimentar no Brasil pode nos dar boas razões morais para rejeitar os alimentos transgênicos, na medida em que a transgenia não parece ser o caminho moralmente correto. A alternativa agroecológica, que respeita os princípios da sustentabilidade e da soberania alimentar, precisa ser valorizada. Não é que se deva ser contra a intervenção humana na natureza, pois, é disso que se trata a agricultura, mas de refletir eticamente sobre o tipo de intervenção que deve ser conduzida, inclusive quanto às 704 Para Lacey, por exemplo, “as pesquisas que deram origem ao desenvolvimento dos transgênicos descontextualizam, ou seja, investigam as características que se desejam dessas culturas, suas bases genéticas e as condições químicas e biológicas das quais dependem, utilizando estratégias usuais das pesquisas da biologia molecular e da biotecnologia”. Cf. LACEY, Hugh. Há alternativas ao uso dos transgênicos? Novos Estudos, 78, CEBRAP, julho, 2007, p. 31- 39, p. 32. 705 A respeito das fontes dessa dicotomia ver LACEY, Hugh. Relações entre fato e valor. Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria. v. 9, n.16, jul./dez., 2006, p. 251-266; sobre a importância dessa dicotomia para a concepção moderna de controle da natureza ver MARICONDA, Pablo Rubén. O controle da natureza e as origens da dicotomia entre fato e valor. Scientiae Studia, São Paulo, v. 4, n. 3, 2006, p. 453-72. O autor afirma que “Do ponto de vista histórico, é em torno da dicotomia entre fato e valor que se constituiu o próprio campo da ciência natural no interior da ampla modificação que conduziu ao nascimento da ciência moderna, no arco temporal que vai, para o caso da ciência, de Copérnico a Newton e, para o caso da filosofia, de Bacon a Hume”, op. cit., p. 453. 706 Lacey, 2006; 2008, op. cit. 204 pesquisas científicas.707 A seguir, apresento algumas considerações éticas sobre a transgenia, adotando o ponto de vista de uma profissional comprometida com a realização do DHAA e da segurança alimentar. 5.1.1 Da Revolução Verde à Transgenia: ética, ciência e direito A possibilidade de mudar a compreensão da natureza daquilo que é natural, mas não humano, começou a ser esboçada no século XIX, a partir das contribuições de Darwin e Mendel, culminando na realização do primeiro Congresso Internacional da nova ciência em construção (Genética), em Londres (1899), sobre hibridização e cruzamento de variedades. Da publicação das descobertas de Mendel à descoberta do DNA e sua estrutura, menos de um século se passou, mas foi o salto científico e tecnológico desencadeado pelas duas grandes guerras que trouxe à tona o tema da responsabilidade científica sobre a manipulação da vida. No início deste trabalho, relacionei como os horrores da segunda guerra mundial contribuíram para o surgimento de uma nova geração de direitos humanos, da qual emergiu o direito à alimentação. Sabemos que a ideia de que a guerra traz progresso não foi estranha a Kant, haja vista ser este o mecanismo pelo qual, segundo ele, a humanidade progrediria (rumo à paz), como um impulso a mais “para desenvolver todos os talentos que servem à cultura até o mais alto grau”.708 Um destes talentos levou à produção de novas substâncias, como os agrotóxicos, amplamente utilizados nos alimentos, com graves consequências para a saúde humana e ambiental.709 O objetivo principal da síntese química, amplamente desenvolvida em tempos de guerra, era combater o inimigo (seres humanos), para o que a primeira destas armas químicas utilizadas foi o DDT,710 sintetizado em 1939. Com o fim da segunda guerra mundial, a indústria bélica deu outro destino a esses produtos que passaram a ser denominados 707 A respeito dos valores que devem orientar a pesquisa científica, por exemplo, ver a proposta de Lacey (2006, op. cit., cap. 5) para a pesquisa em agroecologia. 708 CJ, §83, p. 272 709 O Brasil tem ocupado o posto de maior consumidor de agrotóxicos do mundo nos últimos anos, o que significa grave ameaça à segurança alimentar. Sobre os impactos disso para a saúde e a segurança alimentar ver CARNEIRO, Fernando Ferreira et al. (Org.). Dossiê Abrasco: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro: EPSJV; São Paulo: Expressão Popular, 2015. 710 As propriedades do dicloro difenil tricloroetano foram descobertas pelo entomologista suíço Paul Müller, ganhador do Prêmio Nobel da Medicina devido ao uso do DDT no combate à malária. Rachel Carson, nos anos 60, em “Primavera Silenciosa”, alertou sobre os efeitos nocivos do amplo uso do DDT na redução a população de aves, como o falcão peregrino e a águia calva. A Suécia foi o primeiro país a banir o uso de DDT em 1970. Quase 40 anos depois, o Brasil proibiu o DDT. Cf. http://www.anvisa.gov.br/divulga/noticias/2009/200509.htm. Acesso em 29 mai 2015. 205 “defensivos agrícolas” para serem usados na eliminação de pragas da agricultura, da pecuária e de doenças endêmicas transmitidas por vetores.711 Nascia assim a Revolução Verde. Revolução Verde é o nome dado à transformação da agricultura do Terceiro Mundo que começou a ser esboçada nos anos 40, fundamentada no conhecimento científico patrocinado por fundações americanas e agências de fomento, tais como a Fundação Rockfeller, Fundação Ford e Banco Mundial, em parceria com o governo americano.712 A transformação agrícola consistia no uso intensivo de recursos naturais e do “pacote tecnológico” constituído por fertilizantes e pesticidas, servindo aos interesses do mercado, que apresentava a tecnologia como substituto da natureza e da política na promoção da abundância e da paz.713 Seu grande mentor e divulgador, o geneticista Norman Borlaug, certamente, acreditava no progresso da humanidade a partir da razão científica, mas durante seu discurso de aceitação do Nobel da Paz, que ganhou em 1970, por seu trabalho, não deixou de citar o profeta Isaías (35:1,7), ao se referir às possibilidades do avanço tecnológico: “e o deserto rejubilará, e florescerá como a rosa... e o solo ressequido tornar-se-á um lago, e da terra sedenta jorrará água...”.714 Igualmente, os fundadores do projeto Genoma, não se cansaram de evocar a visão do Santo Graal, tanto que o biólogo Lewontin denunciou esse fetichismo do DNA e criticou o messianismo científico ao falar da “alienação a uma religião revelada de uma comunidade científica que tomou como metáfora central o objeto mais carregado de mistério da Cristandade medieval”.715 A investigação científica de hoje tornou-se a religião secular de uma sociedade materialista,716 uma realidade semelhante àquela enfrentada por Kant, quando tentou estabelecer as bases de uma metafísica, livre do dogmatismo. Não obstante o progresso jurídico após a segunda guerra, com a proclamação da DUDH, o fato é que as esperanças em um futuro sem fome, baseado na melhoria das culturas agrícolas pelas modernas tecnologias e mudanças nas estratégias dos governos, com políticas orientadas para o crescimento do setor agrícola e aumento da qualidade de vida das suas populações, 711 ABRASCO, 2015, op. cit., p. 74-85. 712 Sobre o significado da revolução verde para a agricultura de países em desenvolvimento ver SHIVA, V. The violence of the green revolution. New York: Zed Books Ltd, 1997b, e GEORGE, 1978, op. cit. 713 Interessante ver o relato de Vandana Shiva sobre o que aconteceu no Punjab por causa da Revolução Verde e da mudança no significado e natureza da semente, que afetou profundamente as ideias de identidade e de autocompreensão de todo um povo. Cf. SHIVA, 1997b, op. cit. cap. 3. 714 Then, by developing and applying the scientific and technological skills of the twentieth century for “the well- being of mankind throughout the world”, he may still see Isaiah’s prophesies come true: “... And the desert shall rejoice, and blossom as the rose... And the parched ground shall become a pool, and the thirsty land springs of water.” Disponível em http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/peace/laureates/1970/borlaug-lecture.html. Acesso em 07 ago 2013. Dr. Bourlag também ficou conhecido como “apóstolo do trigo”. 715 Apud SALOMON, Jean-Jacques. Sobreviver à ciência: uma certa ideia do futuro. Tradução Antonio Viegas. Instituto Piaget: Lisboa, 1999, p. 10. 716 SALOMON, 1999, op. cit., p. 10. 206 levaram os organismos internacionais, como a FAO, a promoverem a Revolução Verde. Ainda hoje, a despeito do papel histórico da ONU na defesa do DHAA, o atual Diretor geral, o ganês Kofi Anan, não hesita em reproduzir o discurso da Revolução Verde, para defender os OGM.717 O Brasil não ficou de fora das propostas recomendadas pela FAO. Durante o regime militar, o governo instalou o Plano Nacional de Defensivos Agrícolas, que obrigava o agricultor a usar veneno na plantação para obter crédito rural junto ao Banco do Brasil. A medida possibilitou a rápida expansão no uso dos venenos na agricultura, defendido “tecnicamente” pela academia, especialmente, as escolas de formação de agronomia, além de associações científicas. Era o milagre brasileiro da terra, na qual, em se plantando tudo dá. Em análise sobre os programas brasileiros de distribuição de sementes, Petersen et al. afirmam: Ao fundamentarem-se em um enfoque agronômico orientado à extrema artificialização das condições ambientais para que os genótipos manifestem seu potencial produtivo, as políticas públicas têm sido determinantes na substituição das variedades locais por variedades geneticamente desenvolvidas para responder produtivamente ao emprego intensivo de agroquímicos. Os seguidos programas governamentais voltados à distribuição de sementes no semiárido brasileiro talvez sejam a maior expressão da negligência do Estado com relação ao papel decisivo das variedades crioulas para o desenvolvimento de agroecossistemas produtivos e resilientes, numa região marcada pela instabilidade climática e altamente sensível aos efeitos das mudanças climáticas. A própria denominação de um programa lançado em 1995 pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) revela o viés que informa essas iniciativas oficiais: Programa de estímulo à produção e de combate à fome por meio da renovação genética de sementes para mini e pequenos produtores rurais do Nordeste.718 Foi nos anos 70 que a descoberta do DNA recombinante possibilitou a manipulação genética, com o que se abriram as portas para a transgenia, num processo de continuação da Revolução Verde, ainda mais impactante. O principal limite rompido pelo progresso científico 717 Anan faz parte da AGRA, entidade patrocinada pela fundação Rockfeller e fundação Bill e Melinda Gates, cujos interesses estão explicitamente vinculados aos detentores de sementes patenteadas. A respeito do agronegócio como estratégia de dominação no continente africano ver http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Meio- Ambiente/africa-o-agronegocio-e-a-nova-versao-do-colonialismo/3/33388. Acesso em 2 mai 2015. 718 PETERSEN, Paulo; SILVEIRA, Luciano; DIAS, Emanoel, CURADO, Fernando; SANTOS, Amaury. Sementes ou grãos? Lutas para desconstrução de uma falsa dicotomia. Agriculturas, v. 10, n. 1, março de 2013, p. 37. 207 nesta área foi a barreira entre espécies,719 levando a um intenso debate entre os cientistas na Conferência de Asilomar (1975), de que resultou uma proposta de moratória no uso da tecnologia em relação a três experimentos, para um dos quais foi recomendada a precaução, dada a imprevisibilidade dos seus efeitos; para os outros experimentos recomendou-se adiá-los, até que fossem melhor avaliados seus perigosos.720 Não houve, na época, qualquer debate sobre as implicações éticas do uso da tecnologia do DNA recombinante. Como reconheceu Paul Berg (vinte anos depois), presidente do comitê que convocou a conferência, foi uma escolha deliberada porque era prematuro considerar as aplicações de uma tecnologia ainda especulativa, de modo que, em 1975, a preocupação maior eram os possíveis efeitos sobre segurança e saúde pública.721 A moratória só durou um ano e, em seguida, teve início um processo de regulação que buscava um controle por meio de regras de biossegurança. Na análise de Apoteker, sendo essa moratória uma iniciativa interna à comunidade cientifica, que não considerou oportuno convidar os cidadãos para participar de suas reflexões em Asilomar, apesar das questões éticas levantadas pela abertura desses novos campos de conhecimento, “a dimensão técnica descartou a ética e achou soluções aparentemente satisfatórias”.722 Se em Asilomar as preocupações não envolviam a disseminação no meio ambiente de plantas geneticamente modificadas, não demorou muito para que os interesses econômicos da indústria agroquímica e farmacêutica se unissem no campo da produção agrícola. Pioneira no negócio de sementes geneticamente modificadas, a Monsanto, já nos anos 80, começou seus experimentos de campo com cultivos transgênicos. Sua preocupação nunca foi com a segurança alimentar, como bem expressou seu diretor de comunicações Phillip Angell, para isso existe a FDA: “o interesse da Monsanto é vender tanto quanto possível”.723 Em defesa dos negócios, em congresso sobre transgênicos, realizado em 1999, a empresa apresentou seu objetivo de “dentro de 15 a 20 anos, todas as sementes no mundo deveriam estar modificadas pela 719 Em 1973, S. Cohen e A.Y. Chang realizaram um experimento com o qual superaram uma barreira biológica, introduzindo uma molécula de DNA de sapo na bactéria E. coli que começa a produzir o gene estranho. A possibilidade de utilizar essa técnica para inserir genes de vírus tumorais em E. coli e verificar como exercem seus efeitos cancerígenos suscitou o temor entre os cientistas de que a bactéria pudesse transformar-se em um organismo danoso. Cf. MATTE, Ursula. Histórico de fatos relevantes em genética. Disponível em http://www.ufrgs.br/bioetica/crogen.htm. Acesso em 20 ago 2014. 720 CASCAIS, 2007, op., cit., p. 6-7 721 BERG, P; SINGER, M. F. The recombinant DNA controversy: Twenty years later. Perspective. Vol. 92, p. 9011-9013, September 1995. Disponível em http://www.pnas.org/content/92/20/9011.full.pdf. 722 APOTEKER, Arnaud. Ciência e Democracia: o exemplo dos OGM. In ZANONI, M & FERMENT, G. (Org.). Transgênicos para quem? Agricultura, ciência e sociedade. Brasília: MDA, 2011, p. 82-92, p.84. 723 “Monsanto should not have to vouchsafe the safety of biotech food. Our interest is in selling as much of it as possible. Assuring its safety is the F.D.A.’s job.” Cf. POLLAN, Michael. Playing God in the Garden. New York Times Magazine, October 25, 1998, p. 5. 208 transgenia e, com isso, patenteadas”.724 Para alcançar tal objetivo, a Monsanto reconheceu que a melhor estratégia seria influenciar o governo dos EUA para levar seus produtos aos mercados mundiais, antes mesmo que surgisse resistência. A indústria apostava na tese do fato consumado, de modo que, ao dominar o mercado, nada mais se pudesse fazer contra a tecnologia. No próximo item será apresentado como essa estratégia foi usada com sucesso no Brasil. O preço que se pagou pela Revolução Verde foi caro, e até mesmo a FAO, atualmente, propõe uma mudança de paradigma, ao reconhecer a insustentabilidade do modelo que ajudou a disseminar, que produziu aumento na utilização de insumos químicos sem garantir aumento da produtividade.725 Mais uma vez, é importante observar, a FAO admite que, apesar dos quase 900 milhões de famintos, a oferta mundial de alimentos é suficiente para a população do planeta. Segundo documento elaborado na Conferência Internacional sobre Agricultura Orgânica e Segurança Alimentar, a mudança do modelo de produção de alimentos para a agricultura orgânica traria um aporte de 2.640 a 4.380 kcal/pessoa/dia.726 Em meio às ameaças da manipulação genética, e preocupada com as consequências ainda mais desastrosas da transgenia, se considerarmos a possibilidade do patenteamento da vida727 como ameaça ao controle da semente nativa, a Via Campesina lançou, durante a Conferência Mundial de Alimentação, a campanha “Sementes patrimônio do povo a serviço da humanidade”. A proposta da Via Campesina é defender o uso comum da semente, na verdade, 724 FUCHS, Richard. Cultivos transgênicos no mundo: do Canadá à Argentina, da Romênia a China quase 90 milhões de hectares de plantas transgênicas. In: ANDRIOLI, A.I. & FUCHS, R (Org.). Transgênicos: as sementes do mal. A silenciosa contaminação de solos e alimentos. Tradução Ulrich Dressel. São Paulo: Expressão popular, 2008, p. 31-56, p. 32. 725 Na Rio+20, foi lançado pela FAO, seu Plano Estratégico para a Biodiversidade 2011-2020, conhecido como metas de Aichi. Cf. http://planetasustentavel.abril.com.br/glossario/m.shtml?plv=metas-de-aichi.. 726 Em 2007, a FAO organiza a Conferência Internacional sobre Agricultura Orgânica e Segurança Alimentar, sugerindo que a agricultura orgânica pode ser o caminho para se alcançar a segurança alimentar. O informe pode ser lido aqui ftp://ftp.fao.org/docrep/fao/meeting/012/j9918s.pdf. No documento lê-se que “El tránsito de la agricultura global a la gestión orgánica, sin convertir las tierras vírgenes en terrenos agrícolas y sin utilizar fertilizantes nitrogenados, se traduciría en un aporte agrícola global de 2 640 a 4 380 kcal/persona/día” (FAO, OFS 2007/REP, § 8, p. 2). 727 No caso da vida humana, essa discussão levou à necessidade de se falar nos chamados direitos humanos de quarta geração, apresentados na Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, aclamada em 1997, pela Conferência Geral da UNESCO, que aprovou, dois anos depois “Diretrizes para a Implementação da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos”, onde a disseminação dos princípios da Declaração é precondição de sua aplicação. Como desdobramento, em 2004, a UNESCO aclamou também a Declaração Internacional sobre os dados genéticos humanos. A quarta geração de direitos nasce junto com a bioética, em função da preocupação com os avanços científicos, sobretudo da biologia molecular, que possibilitaram profundas transformações não só na natureza, como na natureza humana, portanto, referem-se também às gerações futuras. Como advertira Bobbio (1992, p. 33): “não é preciso muita imaginação para prever que o desenvolvimento da técnica, a transformação das condições econômicas e sociais, a ampliação dos conhecimentos e a intensificação dos meios de comunicação poderão produzir tais mudanças na organização da vida humana [...] novas demandas das liberdades e poderes”. 209 manter este uso que vem sendo praticado há milênios; trata-se, de fato, de defender o direito à vida e à biodiversidade, daí porque considerar a semente um patrimônio comum da humanidade. Para Vandana Shiva, a semente é o instrumento e o símbolo da liberdade em uma época de manipulação e monopólio da vida.728 É exatamente na natureza da semente que reside a principal barreira biológica a ser derrubada para que o capital penetre na agricultura; é esta natureza dual da semente o maior obstáculo para a biotecnologia, pois a semente, tanto meio de produção como produto na forma de grão, representa para o capital um “empecilho biológico simples: dadas as condições apropriadas, a semente se reproduz e se multiplica”.729 Por esse motivo, Berlan afirma que “a vida confronta o capitalismo com um problema difícil: os organismos vivos, plantas, animais, reproduzem-se e multiplicam-se gratuitamente”.730 A lei da natureza desconhece o lucro, por isso, os homens, em busca do lucro, precisaram revertê-la, indo contra o direito à vida e ao alimento como direito natural. Na mesma linha de pensamento, enfatizando a relação da ciência com os mercados mundiais, Salomon afirma que nada é mais revelador do poder que tem a ciência de fundar um novo imperialismo do que o aperfeiçoamento por manipulação genética da semente terminator, também conhecida como semente suicida,731 expressão que pode ser considerada um oximoro, dada a reversão que é dada, pela tecnologia, ao que é uma finalidade da natureza. Graças à manipulação (chamada de controle) da expressão gênica, a planta produz uma colheita normal, mas destrói o germe do grão, eliminando a possibilidade de continuidade da vida. A semente é o primeiro elo da cadeia alimentar,732 sem semente não há vida na terra, por isso, o que afeta a semente, afeta toda a humanidade. No artigo 1º da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, adotada pela UNESCO (1997), é o genoma humano considerado, num sentido simbólico, patrimônio da humanidade, por constituir a base da dignidade e diversidade humana. Nesse sentido simbólico, como patrimônio da humanidade, 728 Il seme si pone dunque come strumento e símbolo di libertà in un’epoca di manipolazione e monopolio della vita. Cf. SHIVA, Vandana. Il bene comune della terra. Tradução Roberta Scafi. Milano: Feltrinelli, 2006, p.104. 729 SHIVA, 1997a, op. cit., p. 242. 730 BERLAN, 2011, op. cit., p. 142. 731 SALOMON, 1999, op. cit., p. 51. Terminator foi patenteada pelo Departamento de Agricultura dos EUA (número 5.723.765) e pela Delta and Pine Land Co. uma companhia privada de sementes de algodão, adquirida pela Monsanto em 2006. Há uma justificativa para usar essa tecnologia como “medida de biossegurança” para evitar a contaminação de plantas convencionais ou agroecológicas por variedades transgênicas. Ora, se plantações orgânicas fossem contaminadas por Terminator, tornar-se-iam também estéreis, e somente por isso não haveria mais contaminação. É mais um exemplo de como uma nova tecnologia é usada para resolver problemas de uma tecnologia anterior. Ver sobre isso GOUYON, Pierre-Henri. O mito do progresso. In: ZANONI, M & FERMENT, G. (org.), 2011, op. cit. p. 63-66. 732 Em sânscrito, semente, bija, significa “fonte de vida”. SHIVA, 2006, p. 107. 210 pode-se dizer que não há diferenças entre a semente e o genoma humano. A diferença pode ser encontrada na dignidade, como algo exclusivamente humano, que independe de suas características genéticas, o que fica bem claro no art. 2º da referida declaração onde se lê: “esta dignidade torna imperativa a não redução dos indivíduos às suas características genéticas e ao respeito à sua singularidade e diversidade”. Assim, à primeira vista, parece que defendemos o valor da semente em função apenas de sua utilidade para nós, ou seja, nosso interesse em proteger a semente nada mais é do que um interesse em proteger a própria vida humana. Desse modo, não haveria um valor intrínseco à semente, mas apenas um valor instrumental: uma vez que a semente se relaciona diretamente com as necessidades (alimentares) humanas, elas devem ser protegidas para garantir nosso direito à segurança alimentar. No entanto, é possível pensar e defender a dignidade das plantas. Em publicação da Comissão Federal de Ética para Biotecnologia no Setor não Humano,733 debate-se, do ponto de vista ético, como o termo “dignidade dos seres vivos (criaturas)” no reino vegetal pode ser concretizado, à luz da Constituição Federal Europeia, que estabelece três formas de proteção das plantas: pela proteção da biodiversidade, proteção das espécies e pela consideração da dignidade das criaturas no manejo de plantas. Assim, embora possa parecer estranho a nós esse debate sobre a dignidade das plantas, como também seria estranho a Kant, a preocupação moral com a modificação genética do reino vegetal, considerando não suas consequências para a saúde humana ou mesmo para o meio ambiente, mas seu valor intrínseco, é já uma realidade.734 Mas meus objetivos neste trabalho não incluem defender a expansão do conceito de dignidade para além da pessoa humana, seja para aplicação a seres não racionais, seja para aplicação aos pós-humanos.735 No caso brasileiro, o que se pode resgatar de mais avançado na 733 A Comissão de Ética para Biotecnologia no Setor não Humano (CENU) é uma comissão independente de experts, constituída em 1998 pelo Conselho Federal Suíço, para garantir às autoridades uma consultoria de caráter ético, em suas atividades legislativas e executivas, no setor de biotecnologia e engenharia genética em âmbito não humano. A comissão é formada por 12 membros, de diversas areas (filosofia, teologia, biologia, medicina e direito). Cf. http://www.ekah.admin.ch/it/la-commissione/index.html. Acesso em 31 mai 2015. 734 Em uma vasta revisão de publicações acadêmicas no campo da ética ambiental e da ecologia, realizada por Gregorowius, Lindemann-Matthies e Huppenbauer (2011), a respeito do discurso ético no uso dos OGM, encontraram-se, em 56.6% dos artigos, preocupações morais com a modificação genética, relacionadas ao valor intrínseco da “naturalness”, das entidades bióticas, ou ao reducionismo conceitual. Cf GREGOROWIUS, D; LINDEMANN-MATTHIES, P; HUPPENBAUER, M. Ethical discourse on the use of genetically modified crops: a review of Academic publications in the fields of ecology and environmental ethics. J Agric Environ Ethics, Vol. 25, No. 3. (June 2012), p. 265-293. Disponível em http://link.springer.com/article/10.1007/s10806-011-9330-6 Acesso em 13 jun 2015. A expansão do conceito de dignidade para além da pessoa humana não será abordada aqui, mas esse também é um tema constante no debate sobre aprimoramento moral. 735 Sobre a defesa da necessidade de expandir a dignidade para seres híbridos, os chamados “pós-humanos”, ver. BOSTROM, Nick. In defense of Posthuman Dignity. Bioethics, v. 19, n. 3, p. 204-214, 2007. 211 legislação, embora em estágio ainda muito incipiente e que reconhece apenas o valor que as plantas tem na sua relação conosco, não por si mesmas, é o Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e a Agricultura (TIRFAA), aprovado pela FAO (2001), assinado pelo Brasil em 2002, aprovado pelo Congresso em 2006, e promulgado pelo Presidente apenas em 2008, pelo Decreto 6476/2008. Os objetivos do TIRFAA, em conformidade com a Convenção sobre Diversidade Biológica, expostos no art. 1º do Decreto 6476/2008 são: “a conservação e o uso sustentável dos recursos fitogenéticos para a alimentação e a agricultura e a repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados de sua utilização [...] para uma agricultura sustentável e a segurança alimentar”. Não há, no Decreto acima, qualquer referência à dignidade ou valor intrínseco dos “recursos fitogenéticos”. O avanço que se pode verificar é o reconhecimento dos “direitos dos agricultores”736 e sua contribuição na conservação e valorização dos recursos fitogenéticos (art. 9º), e dos direitos soberanos dos Estados sobre seus próprios recursos fitogenéticos para a alimentação e a agricultura; na prática, isso implica que a determinação do acesso a esses recursos cabe à autoridade dos governos nacionais e da legislação nacional (art. 10). Em resumo, tudo o que, antes, a revolução verde, e hoje, a transgenia, sempre buscaram foi quebrar os laços entre agricultores e sementes, rompendo a finalidade natural da semente, que é se reproduzir e se aperfeiçoar, seja pela seleção natural seja pela interação com a atividade humana, em defesa da vida. O que se pode dizer é que o avanço científico que levou à produção de alimentos transgênicos tornou-se um obstáculo à defesa da vida, da liberdade, da autonomia e da soberania alimentar, ou seja, constitui uma ameaça ao DHAA. O discurso científico dominante, na medida em que se tornou dogmático, apresenta a transgenia como único caminho a ser seguido em busca da segurança alimentar no mundo. O predomínio da visão clássica de ciência impede, por exemplo, colocar a agroecologia no mesmo nível e desconsidera os saberes tradicionais e as práticas locais desenvolvidas por agricultores, no entanto, como bem questiona Dufumier, que certeza podemos ter de que “seja a genética que limita hoje as disponibilidades alimentares das populações mais submetidas à fome e à subnutrição, a saber, aquelas que já 736 A iniciativa de construção de uma Declaração dos direitos dos camponeses e camponesas partiu da Via Campesina em 2008. A respeito dos direitos dos agricultores do ponto de vista dos mesmos ver PACKER, Larissa Ambrosano (autor). ALMEIDA, Ana Carolina Brolo de (colaborador), REIS, Maria Rita (colaborador). Biodiversidade como Bem Comum: Direitos dos Agricultores, Agricultoras, Povos e Comunidades Tradicionais. Terra de Direitos, 2010. O documento critica o TIRFAA, porque deixou a responsabilidade pela implantação dos direitos dos agricultores a cargo dos governos nacionais, com base em suas leis e necessidades, sem definição de parâmetros mínimos. 212 foram excluídas da revolução verde?”737 O modelo de produção de alimentos baseado na agroecologia foi reconhecido por Olivier De Shutter, Relator especial da ONU para o DHAA, como: um meio de desenvolvimento agrícola que não apenas apresenta fortes conexões conceituais com o direito à alimentação, mas tem resultados comprovados para um rápido progresso na concretização deste direito humano para muitos grupos vulnerabilizados em diversos países e ambientes. Além disto, a agroecologia proporciona vantagens que são complementares às abordagens convencionais mais bem conhecidas, tais como a criação de variedades de alta produtividade. E ela contribui bastante para um maior desenvolvimento econômico.738 Com isto quero apontar para a necessidade de ampliar o debate ético sobre a ciência, não apenas em relação às suas aplicações nem apenas limitado à “comunidade científica”. A manipulação da natureza tendo em vista a criação de uma uniformidade artificial (e insustentável) que produz a perda da diversidade genética, evidentemente, vai contra a finalidade da própria natureza, algo essencial na filosofia de Kant. Deste modo, se no caso da dignidade das plantas, não seria possível uma defesa kantiana porque somente o ser humano tem valor intrínseco, baseado no fato de que tem vontade própria, dado que a autonomia é “o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional”,739 no caso da produção artificial de uma uniformidade na natureza, é possível considerá-la imoral, a partir de Kant, tendo em vista que isso significa ir contra uma disposição natural para a diversidade da vida, o que fere a doutrina teleológica adotada por ele. Além disso, sabemos que no seu segundo ensaio sobre as raças, Kant admite que nenhuma faculdade humana seria capaz de “provocar modificações no antigo original dos gêneros ou espécies através de artifícios externos, de levar tais modificações para dentro da força procriadora e torná-las hereditárias”,740 do contrário estaria admitindo “uma história de fantasmas ou feitiçaria”. Para o nosso filósofo, a história da manipulação genética destinada à transferência de genes entre espécies diferentes seria, então, uma história de feitiçaria e não de tecnologia,741 considerando o alcance da intervenção humana sobre a natureza; representaria a 737 DUFUMIER, Marc. Os organismos geneticamente modificados poderiam alimentar o terceiro mundo? In: ZANONI, M & FERMENT, G. (Org.), 2011, op. cit., p. 268-393, p. 379. 738 DE SHUTTER, 2012, op. cit., p. 9. 739 FMC, BA 80, p. 84, grifo do autor. 740 Ensaio introdutório à determinação do conceito de uma raça humana de Immanuel Kant, tradução de Alexandre Hahn. Kant e‐Prints. Campinas, Série 2, v. 7, n. 2, p. 07‐27, jul.‐dez., 2012, p. 35. 741 Já a partir do Renascimento, o termo tecnologia passou a ser usado como “ordenação sistemática das artes e ciências”. Cf. OLIVEIRA, 2010, op. cit., p. 50. 213 ruptura dos limites da razão. Embora o referencial político seja dominante nesta tese, não posso deixar de reconhecer a importância das considerações de Kant sobre uma “técnica da natureza” e o princípio de conformidade a fins no estudo das ciências da vida. Enquanto a ciência moderna cujas pesquisas orientadas pelas estratégias de controle da natureza deu a esta um valor meramente instrumental, Kant reconheceu, ao contrário, que a natureza poderia suscitar em nós um interesse diante de sua beleza, daí ser também ela um objeto de apreciação estética.742 De qualquer modo, controlar e dominar a natureza, para Kant, não implica, necessariamente, romper com sua harmonia de modo a afetar inclusive a vida humana, como ocorre no caso das modificações feitas com as plantas transgênicas que alteram as leis naturais e as práticas agrícolas, todavia, romper a barreira das espécies e produzir organismos com finalidades diferentes daquelas estabelecidas pela lei natural seria, necessariamente, um atentado contra a lei da natureza. Não posso querer que a natureza seja transformada contrariamente à lei da natureza, o que se torna bem claro quando se pensa na uniformidade produzida na natureza com as sementes de laboratório, à luz da diversidade natural. Uma natureza que destruísse sua própria diversidade contradiria a si mesma. Por outro lado, romper com o equilíbrio na relação entre os outros seres, aplicando veneno de forma maciça, por exemplo, pode ser considerado uma crueldade com a natureza, e assim, não ser permitido moralmente, a julgar pelo que Kant diz sobre a relação que devemos temos com os animais.743 Então, se por um lado, plantas e animais não têm qualquer direito na filosofia kantiana, dado que Ética e Direito só podem ser pensados tendo em vista uma vontade, por meio da qual relações de reciprocidade podem ser estabelecidas, o que não é o caso entre seres racionais e seres não racionais, por outro lado, mesmo admitindo que outros seres possam servir de instrumentos para nós, Kant considera inaceitável que eles sejam apenas um jogo,744 daí que não devemos usar de crueldade para com as criaturas não racionais. Devemos ter certa conduta em relação a outras criaturas não humanas, não porque elas tenham direitos, mas porque isso também é uma forma de nos prepararmos para a moralidade, isto é, tem em vista a nossa 742 A respeito da relação entre as concepções de Kant na terceira crítica e uma “consciência ecológica” ver SANTOS, Leonel Ribeiros dos. Da experiência estético-teleológica da natureza à consciência ecológica: uma leitura da Crítica do Juízo de Kant. Trans/Form/Ação, São Paulo, 29(1): 7-29, 2006. Mesmo não sendo objeto deste trabalho, fica claro que as importantes analogias de Kant sobre arte e natureza podem ser bastante úteis para a discussão sobre o caráter moral da transformação genética da natureza, que produz “eventos” transgênicos. Eventos é como são chamadas as sementes produzidas em laboratório, a fim de obtenção do registro e direito de propriedade intelectual. 743 MC, 2013, DV, § 17, p. 256. 744 LE, p. 274. A metáfora do jogo em relação à manipulação genética foi apresentada por SMITH, Jeffrey M. Roleta genética: riscos documentados dos alimentos transgênicos sobre a saúde. São Paulo: João de Barro, 2009. 214 destinação, tornando-se parte do nosso progresso moral. É neste sentido que não vejo motivos para colocar em rota de colisão a destinação do homem e a destinação das outras criaturas, por isso, posso defender uma harmonia entre a realização da destinação humana, a partir do desenvolvimento de suas disposições naturais, e o desenvolvimento das disposições naturais das outras criaturas. Impedir o desenvolvimento de tais disposições naturais, no que diz respeito às criaturas não humanas, pode ser visto como uma violência contra a própria natureza e revela a necessidade de uma preparação moral nossa para protegê-la. Não se trata de que temos um dever para com os seres não racionais, mas um dever em relação a eles, o qual, diretamente, é apenas um dever do homem para consigo, na medida em que nos prepara o caminho para a moralidade, por meio dessa disposição de amar alguma coisa, ainda que sem intenção de usá-la.745 Poderia ser um sinal de progresso moral se nos obrigássemos a respeitar a natureza da semente como tal, isto é, como fonte de vida, e não considerando-a uma mercadoria que possa ser privatizada e patenteada. Assim, do mesmo modo que lutamos para fazer do direito humano à alimentação adequada um direito constitucional, precisamos também resistir a este sentido de progresso baseado no lucro e no monopólio sobre a produção de alimentos que levou à transformação da semente em mercadoria. Pessoas e movimentos sociais746 estão se unindo nessa luta também no Brasil, pois, se quisermos que o progresso da biotecnologia agrícola siga no mesmo sentido do progresso que tivemos na garantia jurídica do DHAA, é fundamental pensar estratégias alternativas para a produção de alimentos que não utilize as sementes transgênicas. É imperativo resistir ao discurso dominante, dogmático, de que só existe um caminho para isto, numa espécie de determinismo científico.747 Foi como resultado do determinismo dogmático na ciência, que passamos a confiar não só no avanço da ciência, isto é, que seus produtos trariam sempre mais benefícios para a humanidade, mas também que quaisquer problemas decorrentes deste avanço seriam resolvidos com mais avanço, quando, na verdade, o que temos é o contrário: quanto mais progresso 745 MC, 2013, DV, §§ 16 e 17, p. 255-6. 746 Como exemplos desses movimentos de resistência, cito as entidades: SLOW FOOD, TERRA MADRE, GRAIN, VIA CAMPESINA, e os guardiões de sementes no Nordeste Brasileiro (sementes da paixão na Paraíba, sementes da resistência em Alagoas, sementes da fartura no Piauí, sementes da liberdade em Sergipe). Sobre os guardiões das sementes crioulas, ver BEVILAQUA, Gilberto Antônio Peripolli. et al. Agricultores guardiões de sementes e ampliação da agrobiodiversidade. Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v. 31, n. 1, p. 99-118, jan./abr. 2014. 747 A respeito disso, é importante considerar os pontos considerados por Lacey nas controvérsias éticas acerca dos transgênicos, dentre eles, as próprias estratégias de pesquisa na ciência agronômica, em que refuta a noção predominante de que a ciência é neutra, livre de valores, e que o problema ético só surgiria quando da aplicação de seus produtos. Cf. LACEY, Hugh. A controvérsia sobre os transgênicos: questões científicas e éticas. Tradução: Paulo Mariconda. 1ª ed. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2006. 215 científico, mais riscos ameaçam nossas vidas, delineando o paradoxo da sociedade (mundial) de risco748 onde imperam as incertezas. Diante desta situação, adoto, mais uma vez, a defesa kantiana do esclarecimento, o debate público sobre as ciências, onde a razão esteja autorizada a falar, livre de interesses outros, além da verdade. Complemento a abordagem de Kant com o pensamento de Hans Jonas, na análise do caso brasileiro apresentado a seguir, onde faço considerações éticas acerca das decisões políticas que levaram à liberação dos OGM, para questionar os reais interesses por trás da transgenia. Espero mostrar com isso a necessidade de pensar a relação entre ética-política- direito quando se quer discutir a ciência que estabelece (novas) formas de produção de alimentos. E do mesmo modo que o alimento não deve ser visto apenas como mercadoria, também a ciência precisa incorporar valores, dado que a atividade científica não pode estar acima de qualquer outra atividade humana que pode ser criticada, isto é, a ciência não deve ficar de fora da crítica. Se estamos pensando na aplicação de conhecimentos à produção de alimentos, de modo a respeitar o direito à segurança alimentar, a ciência não deve descartar o valor intrínseco do direito humano (a dignidade) nem colocar a obtenção de ganhos econômicos numa sociedade de mercado acima da defesa do direito de todos à alimentação adequada. Também aqui ressalto a importância do esclarecimento do Nutricionista sobre a questão, para exercer um papel que pode ser decisivo na publicidade da realidade vivida quanto às ameaças ao DHAA decorrentes da liberação de sementes transgênicas,749 uma vez que hoje se pode dizer que a ideia iluminista do progresso acabou produzindo uma mística com o dogma central da biologia, a partir da descoberta do DNA, na medida em que a possibilidade de manipulação genética reforçou a ideia de que toda a explicação dos problemas de saúde, por exemplo, que afetam os seres vivos, está no gene.750 748 BECK, 2010, op. cit. 749 Em enquete realizada via site do CFN acerca da questão dos alimentos transgênicos, 99,5% dos participantes consideraram o tema importante para o exercício da profissão, e 85,4% declararam grande interesse e que gostariam de receber informações sobre o assunto a respeito, sendo que 71,6% consideraram insuficientes suas informações a respeito dos produtos transgênicos já liberados para produção e consumo no Brasil. A pesquisa está disponível no site www.cfn.gov.br. 750 É o que Jacques Testart chama de “mística genética”. O pai do primeiro bebê de proveta francês reconhece que a descoberta do DNA levou à crença de que o genoma seria uma espécie de programa do ser vivo, quando na verdade é apenas uma fonte de informações. Cf. TESTART, 2011a, op. cit. p. 222. 216 5.2 O caso da transgenia no Brasil: o governo contra o povo Se os governos não estão dispostos a defender a soberania e a segurança alimentar de nossos países, nem a sua diversidade biológica e a sua diferenciada identidade cultural, somos os povos do mundo os que teremos de tomar a iniciativa (Aldo Gonzales Rojas, A contaminação com transgênicos dos milhos nativos em Serra Juárez, Oaxaca, México) Analiso nesta seção o processo de liberação de OGM no Brasil, a partir das medidas provisórias assinadas pelo Presidente Lula que trataram da primeira autorização para plantio e comercialização de soja transgênica. O objetivo é, a partir do processo político, isto é, das decisões tomadas pelos atores envolvidos, enfatizar o profundo desacordo entre a vontade popular e o Estado representado pelas figuras dos poderes republicanos. Seguindo o fio condutor dessa história, descrevo as decisões do governo como contrárias ao sentido de progresso rumo ao DHAA, na medida em que desrespeitaram a LOSAN e a Constituição Federal e reduziram a autonomia e a soberania no campo da alimentação. Ao fazer isso, tenho em mente o direito político kantiano, isto é, considero, de um lado, o papel do Estado, na aprovação das medidas provisórias e da nova lei de biossegurança (e seus regulamentos) que autorizaram aquele cultivo, e de outro, a vontade do povo brasileiro, expressa em cartas e documentos de conselhos e conferências de segurança alimentar. Destaco ainda a falta de publicidade e transparência nas decisões como um dos elementos que caracterizam esse desacordo entre a política adotada pelo governo e o direito público, em um contexto mais amplo de conflito entre os direitos humanos e o direito de propriedade intelectual. A regulação doméstica sobre a transgenia, porém, só pode ser entendida à luz do sistema dos dois principais acordos internacionais sobre propriedade intelectual: o TRIPS (Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights, Including Trade in Counterfeit Goods) e os tratados da UPOV (União para a proteção de novas variedades vegetais). O interessante sobre os dois acordos e sua influência na legislação brasileira é que, ao contrário do que foi o avanço jurídico na área do DHAA/SAN, neste caso, temos um sentido inverso, e perverso, sobretudo, para as nações em desenvolvimento. Enquanto avançamos na garantia do DHAA, a legislação que possibilitou a proteção via patenteamento de plantas constitui uma grave ameaça àquele direito que torna difícil compatibilizar os direitos de propriedade 217 intelectual com os direitos humanos.751 O relato que apresento a seguir mostra esse conflito entre a garantia da alimentação como direito humano e a garantia de propriedade intelectual sobre a semente, resultado da sua transformação em mercadoria, objeto de regulamentação no comércio internacional, plenamente adotada no âmbito doméstico. O acordo TRIPS, conhecido como Acordo de Propriedade Intelectual, que possibilitou o patenteamento de genes, veio por pressão dos EUA responsáveis pela inclusão do tema nos acordos de livre comércio no âmbito do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT), já nos anos 90.752 Juridicamente, foi por meio desse acordo entre as nações constituintes, firmado por ocasião da criação da Organização Mundial do Comércio753 (OMC, que substituiu o GATT), em 1995, e imposto aos países em desenvolvimento, que ficou assegurada a proteção de patentes e os direitos de propriedade intelectual (DPI) relacionados às variedades vegetais de plantas.754 Um dos resultados das exigências do GATT na Rodada do Uruguay (finalizada em 1994) foi exatamente a filiação dos países do Sul à UPOV,755 criada em 1961, para garantir proteção aos direitos de propriedade intelectual em cultivares (novas variedades de plantas). A proteção dada pela UPOV é considerada um tipo sui generis, diferente do sistema de patentes previsto no TRIPS que também possibilita o sistema sui generis. Apesar de ser considerada uma versão mais branda em relação à OMC, no sentido da proteção aos agricultores, as sucessivas versões dos tratados da UPOV tem se aproximado cada vez mais do 751 Para uma análise da lei de propriedade industrial (lei 9279/1996) e seus reflexos na agricultura, à luz dos tratados UPOV ver FUCK, Marcos Paulo; BONACELLI, Maria Beatriz; CARVALHO, Sérgio Paulino de. Propriedade intelectual em melhoramento vegetal: o que muda com a alteração na Lei de Proteção de Cultivares no Brasil?. Economia & Tecnologia - Ano 03, Vol. 11 – Out./Dez. de 2007, p. 89-98. 752 A história do TRIPS, pode ser lida em DRAHOS, Peter. Global property rights in information: the story of TRIPS at the GATT. Prometheus, v.13, n. 1, june 1995, p. 6-19. 753 A OMC substituiu o GATT (Acordo geral de tarifas e comércio), em sua rodada do Uruguay, com poderes para impor regras e acordos relativamente ao livre comércio. A nação que se sente prejudicada pode se queixar junto à OMC, que pode ainda instituir um painel de entendimento formado por especialistas para recomendar uma solução para os conflitos. Cf. http://www.desenvolvimento.gov.br/sitio/interna/interna.php?area=5&menu=366. Acesso em 26 mai 2015. A respeito da análise de Singer sobre a OMC, ver SINGER, Peter. Um só mundo: a ética da globalização. Trad. Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 67-138. 754 Uma análise detalhada deste acordo pode ser encontrada aqui: Instituto de Estudos Socioeconômicos Acordo TRIPS: acordo sobre aspectos dos direitos de propriedade Intelectual. - Brasília: INESC, 2003. 72p.: il. (Caderno de estudo; n. 1). Texto baseado em palestra do professor Cícero Gontijo, em abril de 2002, na sede do Inesc, em Brasília. 755 Assinado o TRIPS, o Brasil aderiu à UPOV em 1999, tendo antes de aprovar, como exigência prévia, a Lei de Cultivares (Lei nº 9.456/1997). A UPOV é uma organização internacional, estabelecida pela Convenção Internacional de Proteção de Novas Variedades de Plantas, em 1961, em Paris. 218 sistema de patentes, restringindo o “privilégio”756 do agricultor de produzir sementes de cultivares protegidas, desde que para uso próprio, sem precisar de autorização do detentor do direito da cultivar. O conflito entre os DPI e os direitos humanos foi objeto de debate da Sub-Comissão de direitos humanos da ONU, que chegou à conclusão de que a implementação do TRIPS não reflete adequadamente a natureza fundamental e a indivisibilidade de todos os direitos humanos, incluindo o direito de todos de usufruir dos benefícios do progresso científico e suas aplicações, o direito à saúde, o direito à alimentação e o direito à autodeterminação, e que existem ‘conflitos aparentes’ entre o sistema de propriedade intelectual do TRIPS e os direitos humanos internacionais.757 Para Costa, “não há qualquer acordo na OMC que tenha por objetivo estabelecer direitos e obrigações em relação aos direitos humanos. Os direitos humanos não são tratados diretamente pelas disposições dos Acordos da OMC.”758 A realidade é que a alimentação adequada, um direito humano que traz em si valores inerentes à dignidade humana, deixa de ter valor no mercado financeiro que lida com o comércio das commodities agrícolas. Assim sendo, ao impor as regras de comércio das sementes que permitem o seu patenteamento, a OMC alterou profundamente as possibilidades de realização do DHAA, no contexto do desenvolvimento da biotecnologia. É essa realidade que o Nutricionista precisa conhecer para enfrentar. No caso brasileiro, como se não bastasse esse conflito moral que se instalou com a possibilidade legal do patenteamento de formas de vida, a situação inicial de autorização para o comércio de transgênicos deu-se em um cenário de desrespeito à lei, pois as sementes de soja transgênica da Monsanto chegaram ao Brasil clandestinamente, isto é, foram contrabandeadas 756 Essa é a terminologia também usada na legislação brasileira, o que constitui um contrassenso, chamar de privilégio o que tem sido a agricultura em todos os tempos. Nossa lei permite ainda que o agricultor produza sementes para doação ou troca com outros pequenos agricultores. Como observa Berlan “O ‘privilégio dos agricultores’ designa a prática de utilizar o grão colhido como a semente do ano seguinte. Fundou a agricultura. De forma surpreendente, nem os donos da terra no Ancien Régime (Antigo Regime), nem nossos atuais donos de terra capitalistas tentaram tirar esse privilégio dos seus agricultores arrendatários para eles mesmos plantarem suas colheitas” (BERLAN, 2011, op. cit., p. 151). 757 “Since the implementation of the TRIPS Agreement does not adequately reflect the fundamental nature and indivisibility of all human rights, including the right of everyone to enjoy the benefits of scientific progress and its applications, the right to health, the right to food, and the right to self-determination, there are apparent conflicts between the intellectual property rights regime embodied in the TRIPS Agreement, on the one hand, and international human rights law, on the other UN Comission on human rights, Subcomission on the promotion and protection of human rights, ‘Intellectual property rights and human rights’”, Resolution 2000/7, 17 august 2000, § 2. E/CN 4/Sub. 2, Res. 2000/7. Disponível em http://www.unhchr.ch/Huridocda/Huridoca.nsf/TestFrame/c462b62cf8a07b13c12569700046704e?Opendocume nt. Acesso em 02 mai 2014. 758 COSTA, Lígia Maura. Os Direitos Humanos no órgão de solução de controvérsias da OMC: demolindo obstáculos e construindo pontes. Revista de direito internacional dos direitos humanos, v. 1, n. 1, jul. – set. 2013, p. 77-99, p. 80. 219 da Argentina para o Rio Grande do Sul. Como relatam Zanoni et al.: O contrabando feriu dispositivos da legislação e avançou em razão da ausência de fiscalização do Ministério da Agricultura, acompanhado por campanha para a expansão do plantio direto, com eliminação química das ervas adventícias, uma vez que o glifosato se mostra extremamente atrativo em função dos custos relativos. Assim, de forma positivamente associada aos interesses comerciais da empresa proponente, criou-se o fato consumado, essencial para a decisão judicial, autorizando-se a comercialização da soja RR, em 1998.759 O primeiro pedido, feito pela empresa Monsanto, em 1998, para liberação comercial no Brasil de cultivares da soja RR®,760 havia sido prontamente acatado pela CTNBio,761 mas houve questionamento imediato na justiça, por parte do Idec e do Greenpeace, que resultou na sua suspensão (por medidas cautelares),762 ao que diversas entidades da sociedade civil se uniram em uma Campanha por um Brasil Livre de Transgênicos (CBLT). A decisão de primeira instância em favor das entidades, uma vez que não houve elaboração de Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) por parte da Monsanto, manteve-se até o ano de 2003, quando medidas provisórias autorizaram a comercialização da soja 759 ZANONI et al. O biorrisco e a comissão técnica nacional de biossegurança: Lições de uma experiência. In: ZANONI, M & FERMENT, G. (Org.), 2011, op. cit., p. 244-276, p. 244. 760 RR quer dizer Round up Ready, ou seja, a soja “pronta pro Round up”, trata-se da soja modificada geneticamente para “tolerar” o glifosato, veneno que constitui o herbicida, produzido pela Monsanto, vendido comercialmente com o nome de Round up. Tolerar o veneno significa que a planta, banhada pelo glifosato, não morre, apenas as supostas ervas daninhas devem morrer. O fato é que há registro de inúmeros casos de resistência a esse veneno. A buva, por exemplo, tornou-se o símbolo dessa resistência, pois, apesar da utilização da soja RR e do glifosato, a buva insiste em viver. Assim como nos casos de resistência de bactérias a antibióticos, é também um efeito da Revolução Verde a resistência de plantas aos venenos utilizados nas lavouras. Em função disso, cada vez mais venenos, mais potentes são usados. Recentemente, no caso da soja (mas também do eucalipto) foi aprovada a soja 2,4-D, tolerante ao ácido diclorofenoxiacético, conhecido componente usado na fabricação do agente laranja, que serviu como desfolhante na guerra do Vietnã, e libera dioxinas no ambiente, sabidamente cancerígenas. Para uma defesa do 2,4 D ver https://www.iniciativa24d.com.br/mitos-e-verdades/. Sobre as vítimas do agente laranja e as disputas judiciais com a Monsanto, ver http://thefreethoughtproject.com/court-orders- monsanto-compensate-agent-orange-victims/. Para a Monsanto, a questão do agente laranja é “emocional”, e a empresa faz questão de observar que tudo o que fez foi seguindo orientações do contrato com o governo americano. Cf. http://thefreethoughtproject.com/court-orders-monsanto-compensate-agent-orange-victims/, e http://japanfocus.org/-Aaron-Glantz/2126/article.html. Todos os acessos em 24 mai 2015. 761 A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança foi criada pela lei 8974/96, com a função de examinar a segurança dos OGM, por meio de pareceres. A autorização de comercialização para uso humano, animal ou em plantas e para liberação no meio ambiente de OGM deve ser emitida por três ministérios – Agricultura, Saúde e Meio Ambiente. De 1997 a 1999 a CTNBio deferiu mais de 800 pedidos de liberação de OGM no meio ambiente. Sobre uma cronologia dos principais fatos na disputa judicial envolvendo os transgênicos, ver http://www.dhnet.org.br/w3/fsmrn/biblioteca/70_renata_menasche.html. Acesso em 24 ago 2015. Sobre uma crítica à CTNBio de LACEY et al, ver http://jcnoticias.jornaldaciencia.org.br/9-transgenicos-maleficios-invasoes- e-dialogo. Acesso em 24 ago 2015. 762 A primeira decisão pode ser lida aqui. www.greenpeace.org.br/transgenicos/pdf/judicial_19990810.pdf. Acesso em 29 ago 2015. 220 transgênica já plantada ilegalmente.763 A questão que se coloca é que, em 2002, durante a campanha presidencial, todos os candidatos receberam da CBLT uma enquete sobre seu posicionamento a respeito do tema. O então candidato Lula formalizou o compromisso de “apoiar uma moratória à liberação do cultivo comercial e da comercialização de transgênicos no Brasil por tempo indeterminado e de manter uma política de controle rigoroso de atividades com produtos transgênicos”.764 No Programa Vida no Campo, parte do seu programa de governo, o candidato também se comprometia a manter a moratória em relação à “produção, comercialização e consumo dos produtos transgênicos, sem desprezar os investimentos públicos na pesquisa, até a definição do perfil do mercado desses produtos, e o conhecimento científico sobre os seus reais impactos na saúde”765 tanto humana como do meio ambiente. O mais curioso é que no Programa Fome Zero, carro chefe da segurança alimentar proposta pelo PT, pode-se ler o seguinte a respeito dos transgênicos e sua relação com a fome: Coerentemente com o diagnóstico realizado de que o problema da fome do Brasil, hoje, não é a falta de disponibilidade de alimentos, mas o acesso a eles, não concordamos com a justificativa de que a produção de alimentos transgênicos ajude a combater a fome no país. Pelo contrário, a liberação da produção de transgênicos promoverá uma maior dependência dos produtores dessa tecnologia que, além de mais cara, é monopólio de empresas multinacionais (cerca de 90% das variedades em teste no Brasil são patenteadas por apenas seis empresas multinacionais, que estão entre as maiores do mundo). Além disso, agravaria a atual dependência por outras tecnologias associadas, como uso de herbicidas e outros insumos, para os quais essas plantas são resistentes. O cultivo de produtos transgênicos poderá prejudicar o acesso aos mercados externos importantes para o Brasil, que exigem áreas livres de transgênicos e pode promover uma poluição genética com resultados imprevisíveis. Dessa forma, o Projeto Fome Zero apóia as propostas da Campanha Nacional Por um Brasil Livre de Transgênicos, que envolve diversas entidades e ONGs ligadas aos movimentos sociais e ambientais.766 763 A decisão de primeira instância (do Juiz Antônio Souza Prudente) assim estabelecia: a) exigia a realização de EIA-Rima para o plantio em escala comercial da Soja Round up Ready; b) proibia a comercialização de sementes da Soja RR até a regulamentação da matéria relativa à segurança alimentar; c) suspendia o plantio comercial até que fossem esclarecidas falhas da CTNBio; d) proibia o Ministério da Agricultura, da Ciência e Tecnologia, Meio Ambiente e da Saúde à expedição de autorização; e) suspendia as autorizações emitidas. Cf. http://site- antigo.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=1408. Acesso em 20 jul 2015. 764 FERNANDES, Gabriel. Estudo de caso. O Companheiro liberou: o caso dos transgênicos no governo Lula. Relatório de projeto. MAPAS. Monitoramento ativo da participação da sociedade. Dez 2005, p. 3. 765 Programa de governo coligação Lula Presidente. Vida digna no Campo. Desenvolvimento rural, política, agrícola, agrária e de segurança alimentar. Disponível em csbh.fpabramo.org.br/uploads/vidadignanocampo.pdf. Acesso em 24 mai 2015, p. 22. 766 FERNANDES, 2005, op. cit., p. 3, grifo meu. 221 Se o discurso do candidato em campanha é um e sua prática como governante é outra, então temos uma grave desarmonia entre a política e a moral, o que é absurdo para Kant. A decisão tomada pelo governo Lula, diante da situação instalada com o pedido dos plantadores gaúchos de liberação para venda da safra de soja contrabandeada em 2002, foi emitir a Medida Provisória 113/março de 2003 que autorizava a venda da soja clandestina, tanto no mercado interno como externo.767 Diante do descontrole do governo para segregar esta safra, nova MP (131/setembro de 2003) foi necessária para a safra seguinte, tendo em vista que o problema se repetiu. Desta vez, protestos foram realizados em Brasília, com apoio de várias instituições, contra a liberação da soja transgênica.768 Além do povo, a Associação dos Magistrados do Brasil e a Associação Nacional de Procuradores se posicionaram “alertando o vice-presidente sobre os riscos de assinar uma medida considerada inconstitucional”.769 É inevitável lembrar aqui a importância da publicidade como abordada por Kant na Paz Perpétua em sua relação com a justiça; somente publicamente manifesta se pode conceber a justiça que distribui e define o direito, ou seja, se não tivermos a manifestação pública da justiça, não haverá direito, donde a fórmula transcendental do direito: “as ações atinentes ao direito de outros homens são injustas, se a sua máxima não admite publicidade”.770 Trata-se de um princípio jurídico – e não ético –, dado que esconder uma máxima constitui uma ameaça injusta ao direito dos outros. Se na constituição republicana o povo é ele mesmo legislador, então, considerando que os alimentos transgênicos são reprovados pelo povo, a legislação que permitiu a produção comercial de plantas transgênicas constitui um absurdo. A manifestação popular brasileira contra os alimentos transgênicos está inscrita também nas propostas de todas as Conferências Nacionais de Segurança Alimentar e Nutricional de 2004, 2007 e 2011,771 de 767 Observe-se que o estatuto jurídico de “medida provisória”, previsto na Constituição, já seria algo que fere a República, na medida em que concede o poder de legislar a quem, juridicamente, não o tem. Nossa separação de poderes é cláusula pétrea, prevista no artigo 60, §4º, III da Constituição Federal. Ocorre que a lei estabelece o recurso à MP apenas em casos de extrema urgência, deixando a cargo do chefe do executivo estabelecer esta urgência. 768 Sobre todas as formas de manifestação e atores envolvidos ver FERNANDES, 2005, op. cit. p. 10-12. Vale ressaltar que o argumento usado de que faltaria soja no mercado interno, caso toda a safra transgênica fosse exportada, é dado como falácia, haja vista que “as previsões de exportação para o ano eram de mais de 31 milhões de toneladas de equivalente grão e ainda sobrariam quase 19 milhões para o mercado interno, mais do que o suficiente para abastecer as indústrias” (ib., p. 5). 769 FERNANDES, 2005, op. cit. p. 10. A segunda MP foi assinada pelo vice-Presidente, uma vez que o Presidente Lula estava fora do Brasil. 770 PP, p. 109. 771 II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Relatório final, Olinda, 2004, p. 15 e p. 26.; III Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Relatório final, Fortaleza, 2007, p. 10, p. 20, p. 35. IV Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Relatório final, Salvador, 2011, p. 28, p. 35, p. 54. Os Relatórios estão disponíveis em http://www4.planalto.gov.br/consea/eventos/conferencias. Acesso em 20 ago 2014. 222 modo que os representantes do povo não poderiam alegar desconhecimento acerca da vontade popular nessa questão. Se considerássemos, no entanto, que o governante, uma vez no cargo, pudesse mudar seu discurso acerca dos alimentos transgênicos, apesar de ter se comprometido na campanha em não liberá-los, ainda assim não estaria autorizado a fazê-lo, pois um compromisso de campanha é sempre uma promessa, e não cumprir promessas é imoral, como ficou claro na FMC.772 Também seria a morte de toda a política se os candidatos fizessem promessas sem intenção de cumpri-las, caso eleitos: poderíamos, por exemplo, admitir que o candidato não revelou sua verdadeira intenção por medo das consequências prejudiciais, como a perda de votos, o que seria igualmente imoral. Quanto ao enorme poder conferido a quem detém a patente da semente geneticamente modificada que representa uma ameaça à soberania alimentar – a patente, como visto, veio por imposição dos acordos de livre comércio, uma vez que para a OMC a semente é mera mercadoria –, Kant não poderia prever que uma sociedade ou organização privada adquirisse tamanho poder capaz de determinar políticas e estabelecer leis. Trata-se de uma total inversão do seu republicanismo, podendo-se até dizer que temos, atualmente, no campo da produção de sementes transgênicas, uma autocracia despótica das corporações, tendo em vista o modo como as decisões são tomadas e o controle de um pequeno grupo sobre a produção alimentar mundial.773 Na disputa política, Estados se aliam às corporações para a obtenção de patentes, e cidadãos se veem privados da autonomia necessária para a realização de seu direito à alimentação mediante suas escolhas éticas, orientadas pelo imperativo categórico. Já vimos, com Kant, que um sistema de leis para um povo constitui o direito público, cuja distinção com o direito privado é tão somente sua situação de permanência; o poder legislativo, por sua vez, só pode pertencer à vontade unificada do povo, pois dele deve proceder todo o direito.774 Os cidadãos, membros desta sociedade, têm como atributos jurídicos essenciais à sua condição de cidadania: a liberdade legal de não obedecer nenhuma lei com a qual não concordou; a igualdade civil de não reconhecer no povo nenhum superior a si mesmo; e a independência civil de manter sua existência e conservação sem depender do arbítrio de 772 FMC, BA 19, p. 35. 773 Apenas seis empresas transnacionais controlam 60% do mercado de sementes e 76% da produção de agroquímicos, o que explica que 85% dos transgênicos sejam cultivos manipulados para tolerar esses produtos. Cf. http://www.etcgroup.org/sites/www.etcgroup.org/files/CartelBeforeHorse11Sep2013.pdf. Acesso em 07 jun 2015. 774 MC, 2013, § 46, p. 119. 223 outrem.775 Se o bem público é a suprema lei do Estado, ao privatizar a semente, patrimônio da humanidade, os ideais republicanos foram desrespeitados. No caso dos transgênicos, temos leis elaboradas pelo poder legislativo em defesa do mercado e o poder do Estado e das corporações, mas não temos a liberdade do agricultor e do consumidor para escolher suas formas de alimentação, ou seja, a situação é despótica, associada à falta de publicidade, no caso do projeto de lei de biossegurança que resultou da aprovação das medidas provisórias que autorizaram a soja transgênica.776 Essa oposição entre o sentido que quer o povo e o sentido adotado pelo governo na questão da segurança alimentar foi assim expressa por Fernandes: Se por um lado, o uso sustentável das sementes crioulas e o exercício dos direitos dos agricultores ao livre uso das sementes acontecem majoritariamente por iniciativa da sociedade civil, por outro, as iniciativas de restringir esses direitos bem como as ameaças que podem inviabilizar o livre uso das sementes partem, majoritariamente, do agronegócio e do Estado.777 O ataque à autonomia de quem não quer plantar sementes transgênicas é explicitado a seguir nos trechos de uma carta divulgada na imprensa, escrita por um agricultor, a respeito do cultivo de plantas transgênicas: Encurralar: meter em curral, encantoar em local sem saída, sem opção de escolha, perda da liberdade… É assim que está o agricultor que não deseja aderir ao plantio de organismos geneticamente modificados, no meu caso a soja e o milho. [...] A agricultura, atividade milenar que fixou o homem tirando-o do nomadismo, criou a possibilidade de a civilização se desenvolver, é a pedra angular na produção de alimentos para a humanidade. Hoje é uma atividade controlada. [...] A nação que se autossustenta na produção de alimentos tem uma vantagem óbvia em relação às que não forem capazes. [...] nossos governantes (eu me refiro em especial aos parlamentares, congressistas que compõem a bancada ruralista) não estão dando importância para a autossustentabilidade e a segurança alimentar da nação. [...] gostaria de fazer algumas perguntas a esses parlamentares que me referi acima. Por que depender de uma tecnologia criada por um concorrente que tem por principal objetivo o controle sobre as sementes e os agricultores e o controle sobre a produção de alimentos no mundo? Por que deixar corporações estrangeiras 775 Não vou entrar na questão sobre a condição passiva ou ativa que Kant distingue entre o cidadão capaz de manter a si próprio e o que não tem recursos para tal, não tendo, por isso, o que ele chama de personalidade civil, tendo em vista que, para minhas considerações, basta aceitar, como Kant, que essa condição não afeta a essência do cidadão, isto é, sua liberdade e igualdade como seres humanos. 776 Segundo relatado por FERNANDES (2005, op. cit., p. 12), “Por determinação do presidente, o conteúdo do projeto não foi divulgado, e os ministros participantes ficaram proibidos de dar declarações a respeito”. Um detalhe importante que não abordo aqui é que a nova lei de biossegurança incorporou a questão do uso de células-tronco embrionárias, escamoteando o debate sobre OGM. 777 FERNANDES, 2007, op. cit., p. 4. 224 ditarem as regras de um setor tão importante? [...] não seria possível encontrar uma outra solução para os problemas enfrentados pela agricultura além dessa proposta dos organismos geneticamente modificados? Do agricultor foram tirados todos os direitos básicos elementares de optar por um ou por outro sistema de produção, de poder guardar as suas sementes, a liberdade de escolha. [...] ele é jogado no covil desses leões famintos que são essas megacorporações [...] com o aval de quem deveria nos proteger. [...] os representantes do setor agrícola no Congresso. Criando leis, mecanismos que impeçam essas corporações de fazer o que bem entendem, [...] bancada ruralista, a quem vocês estão representando mesmo?778 A carta expressa de forma clara a situação de perda de direito do agricultor na realização de sua atividade milenar, hoje controlada por corporações, totalmente apoiadas pelo governo brasileiro e a grande maioria dos congressistas. Seria um caso de situação em que se expressa, nas palavras de Vandana Shiva, um “totalitarismo alimentar”, 779 algo absolutamente contrário ao que pressupõe o DHAA, fundamentado nas ideias de dignidade, autonomia e soberania alimentar. O mercado de sementes no Brasil está dominado por apenas seis grandes corporações, mas é preocupante que uma instituição pública como a EMBRAPA (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) tenha fortes ligações com as corporações para a produção conjunta de sementes patenteadas, num claro conflito entre o papel do Estado, como coisa pública, e o papel das corporações, como entes privados. Para o governo, é possível praticar todos os tipos de agricultura, cada uma com seu nicho de mercado, tanto que na estrutura ministerial, além do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), forte defensor do agronegócio, do uso de venenos e sementes transgênicas, temos ainda o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), defensor das práticas agrícolas ditas tradicionais, porque respeitam o saber dos agricultores e a proteção das sementes crioulas. A realidade, no entanto, é outra. A impossibilidade da coexistência dos cultivos, na prática, já se tornou concreta, como bem explicitam Londres & van der Weid a respeito da contaminação provocada por cultivos transgênicos, no caso do milho, “O pólen do milho pode percorrer quilômetros de distância e fecundar plantas (de milho) localizadas em outros sítios, e 778 Publicada em http://envolverde.com.br/ambiente/agricultura-ambiente/desabafo-de-um-agricultor/. Acesso em 17 abr 2015. 779 SHIVA, Vandana. Seeds of doubt. Disponível em http://www.newyorker.com/magazine/2014/08/25/seeds-of- doubt. Acesso em 21 mai 2015. 225 não há nenhuma forma de controle sobre isto”.780 Como afirmam cientistas, no documento enviado ao Papa Francisco: “Uma vez que os transgênicos estão no campo, é inevitável a contaminação de cultivos não transgênicos, sejam eles híbridos, nativos ou crioulos, seja por polinização através dos ventos e insetos, ou por trasfego, transportes e armazenagem de grãos e sementes”.781 Podemos falar aqui de um conflito de direito, como expressa Kant, pois não há conciliação entre o arbítrio do agricultor e o arbítrio das corporações produtoras de sementes transgênicas. Vamos opor, então, a liberdade das corporações detentoras de patente para usar (vender) sua semente transgênica e a liberdade do agricultor em escolher plantar sua semente nativa ou crioula, ou seja, vou tentar, a partir do princípio do direito kantiano, mostrar “como não correta a distribuição politicamente não igualitária de liberdade”.782 O conceito chave da liberdade em Kant será utilizado para considerar essa relação entre corporações e agricultores, à luz do grave problema da contaminação e da dificuldade em identificar e separar uma cultura transgênica de outra não transgênica. O direito está preocupado com a liberdade externa, portanto, deve se ocupar com os efeitos da ação de um sobre a ação de outrem. A máxima da ação das corporações pode ser assim expressa: quero obter o maior lucro possível com minha semente transgênica; a máxima do agricultor é: quero poder escolher a semente não transgênica para plantar. Vê-se aqui que a máxima das corporações é incompatível com a máxima do agricultor, cabendo uma ação do Direito, uma autoridade coativa capaz de impedir as corporações de negarem o direito do agricultor de livremente escolher outra semente. A máxima das corporações jamais poderia se tornar uma lei universal, porque isso impediria a liberdade de obtenção de lucro com sementes nativas ou crioulas, acabando, assim, com toda a atividade dos agricultores que não querem usar sementes transgênicas. É impossível garantir a isonomia entre agricultor e corporação. Por conseguinte, se considero a liberdade externa na relação entre os arbítrios, há uma incompatibilidade intrínseca entre produzir alimentos usando sementes transgênicas e produzir 780 LONDRES & VON DER WEID, 2003, op. cit., p. 24. Casos de contaminação por todo o mundo também são relatados por ANDRIOLI & FUCHS (2009, p. 66 et seq.). O caso mais emblemático, que gerou um documentário, e teve ampla repercussão no mundo, (Cf. http://www.democracynow.org/2010/9/17/percy_schmeiser_vs_monsanto_the_story. Acesso em 21 mai 2015) foi o do agricultor canadense Percy Schmeiser, processado pela Monsanto, porque teve sua plantação de canola contaminada por canola transgênica. O juiz entendeu que, independente do fato de não ter causado a contaminação, o agricultor devia royalties a Monsanto, por ser ela a detentora da patente. Após 10 anos de disputa judicial, Pierce, finalmente, ganhou a batalha. Cf. http://transgenicosnao.blogspot.com.br/2008/04/depoimento-de-percy- schmeiser-produtor.html. Acesso em 21 mai 2015. 781 O documento está disponível em http://www.ihu.unisinos.br/noticias/534049-porque-os-transgenicos-sao-uma- ameaca-aos-camponeses-a-soberania-alimentar-a-saude-e-a-biodiversidade-no-planeta. Acesso em 07 jun 2015. 782 KERSTING, 2009, op. cit., p. 414. 226 usando sementes crioulas, uma vez que garantir a liberdade para produzir sementes transgênicas levaria a uma ditadura da transgenia alimentar, donde seria justo o Estado banir aquelas sementes; já no caso da liberdade interna, se considero o consumidor virtuoso, verifica-se que o mesmo fica impedido de ter acesso a produtos não transgênicos para cumprir seu dever de buscar uma alimentação saudável. Já vimos que, do ponto de vista da doutrina dos deveres de virtude, o indivíduo deve rejeitar o alimento transgênico por não ser saudável, o que, à primeira vista, pode parecer um argumento de utilidade, mas, como visto no capítulo anterior, ao escolher o alimento saudável, tendo em vista um fim que é a saúde, não o faço visando minha vantagem pessoal, ou “minha felicidade, mas manter a integridade da minha moralidade”.783 O mesmo vale no caso da seleção da semente por parte do agricultor que deve escolher a semente crioula por ter um valor intrínseco como patrimônio da humanidade e direito natural dos povos.784 Rejeitar os alimentos/sementes transgênicas, no âmbito da filosofia kantiana, portanto, é respeitar o direito e a ética. No Brasil, especialmente no caso do milho, o consumidor já se encontra impedido de escolher milho não transgênico pela dificuldade de encontrá-lo no mercado, condição que será agravada caso seja aprovado o projeto de lei que revoga a rotulagem de transgênicos no país, 785 afinal, sem o direito à informação, como esperar que o cidadão possa fazer sua livre escolha por um alimento saudável no contexto do cuidado de si? Temos, assim, um caso de impossibilidade de coexistência dos arbítrios, de modo que seria injusto permitir a liberação das sementes transgênicas, considerando que assim seria violado o direito de quem planta semente crioula; sementes crioulas não “contaminam” sementes transgênicas, são as sementes transgênicas que contaminam as sementes crioulas. Tal injustiça só pode ser evitada mediante a intervenção de uma autoridade, isto é, do direito, como coação. O banimento parece ser, portanto, o único modo moral e justo do Estado cumprir seu papel na proteção do DHAA.786 783 MC, 2013, DV, 388, p. 200. 784 A Lei de Sementes e Mudas (Lei 10711/2003) assim define semente crioula: Art. 2º, XVI - cultivar local, tradicional ou crioula: variedade desenvolvida, adaptada ou produzida por agricultores familiares, assentados da reforma agrária ou indígenas, com características fenotípicas bem determinadas e reconhecidas pelas respectivas comunidades e que, a critério do MAPA, considerados também os descritores socioculturais e ambientais, não se caracterizem como substancialmente semelhantes às cultivares comerciais. 785 O projeto de lei 4148/2008, aprovado na Câmara Federal, revoga a rotulagem de transgênicos no Brasil. Diante da reação da sociedade, após aprovado, o projeto foi submetido à consulta pública e aguarda votação no Senado. 786 Nesta direção, aponta o Projeto de Lei nº 6432/2013, do deputado Ivan Valente (PSOL) que “proíbe no território nacional a venda, o cultivo e a importação de sementes de plantas alimentícias transgênicas com tolerância a herbicidas”, para o qual o IDEC solicitou apoio dos deputados. Cf. http://www.idec.org.br/em-acao/em-foco/idec- pede-apoio-a-deputados-pela-aprovaco-de-pl-contra-sementes-transgenicas. Acesso em 20 ago 2015. 227 5.2.1 Esclarecimento e precaução na defesa do DHAA Uma interessante proposta de avanço no sentido do esclarecimento popular vem da Dinamarca, com o procedimento das Conferências de Cidadãos, em que cidadãos estudam, interrogam especialistas, discutem entre si e opinam. Especialmente indicadas para os momentos de incerteza sobre o interesse e as consequências das tecnologias, a proposta amplia o círculo dos “experts”, incluindo os pontos de vista dos cidadãos comuns, porém, “bem esclarecidos, graças às informações completas e contraditórias”.787 A proposta da Conferência de Cidadãos alinha-se ao pensamento que reconhece e duvida do modelo representativo de democracia contemporânea e se contrapõe à noção de que a ciência é para especialistas, e que quanto mais complexo o tema, mais distante deve estar do debate público. Como afirma Testart: os observadores das conferências de cidadãos surpreendem-se com a capacidade de pessoas comuns deliberarem sobre assuntos complexos, afastando-se de questões somente locais e imediatas, para propor soluções em geral ignoradas pelos especialistas, e raramente ouvidas nas instâncias políticas. Estamos longe da hipótese de um “público irracional”, que seria incapaz de apreciar os efeitos reais da tecnociência.788 No Brasil, um dos direitos do consumidor previsto na lei 8079/90 é a informação adequada e clara sobre os produtos, inclusive sobre os riscos que apresentam.789 Ora, se um alimento é exposto ao consumo sem que se conheçam seus riscos, como o consumidor poderia ser informado? E se, admitindo os riscos do consumo de tais produtos, não tivermos a devida rotulagem, como garantir o respeito ao direito a esta informação? É para a garantia deste direito, o direito à informação, que o Nutricionista pode exercer um papel fundamental como profissional de saúde defensor do DHAA, ao tornar público o conhecimento existente sobre a realidade dos riscos dos alimentos transgênicos e promover o debate visando ao esclarecimento da sociedade. Um conteúdo importante desse esclarecimento, como abordo mais adiante, é o princípio da precaução. Apesar de ainda hoje termos discutido muito pouco sobre transgênicos, em grande parte do Brasil, a importância do debate como preparo para a ação não é nenhuma novidade, 787 TESTART, Jacques. A conferência dos cidadãos: uma ferramenta preciosa para a democracia. In: ZANONI, M & FERMENT, G. (org.). Transgênicos para quem? Agricultura, ciência e sociedade. Brasília: MDA, 2011b, p. 400-404. 788 TESTART, 2011, op. cit. p. 401. 789 Art. 6º, IV do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/90). 228 conforme se depreende da seguinte passagem da Oração Fúnebre de Péricles: Ver-se-á em uma mesma pessoa ao mesmo tempo o interesse em atividades privadas e públicas, e em outros entre nós que dão atenção principalmente aos negócios não se verá falta de discernimento em assuntos políticos, pois olhamos o homem alheio às atividades públicas não como alguém que cuida apenas de seus próprios interesses, mas como um inútil; nós, cidadãos atenienses, decidimos as questões públicas por nós mesmos, ou pelo menos nos esforçamos por compreendê-las claramente na crença de que não é o debate que é empecilho para a ação, e sim o fato de não se estar esclarecido pelo debate antes de chegar a hora da ação. Consideramo-nos ainda superiores aos outros homens em outro ponto: somos ousados para agir, mas ao mesmo tempo gostamos de refletir sobre os riscos que pretendemos correr, para outros homens, ao contrário, ousadia significa ignorância e reflexão traz a hesitação.790 No entanto, foram as incertezas científicas modernas que levaram o filósofo Hans Jonas (2006) a criticar as éticas do passado, tradicionalmente antropocêntricas, por não terem atuado de modo significativo sobre o mundo dos objetos não humanos. Para Jonas, o domínio da techne no passado seria eticamente neutro, do ponto de vista do sujeito, porque como atividade, ela “compreendia-se a si mesma como um tributo determinado pela necessidade e não como um progresso que se autojustifica como fim precípuo da humanidade, em cuja perseguição engajam-se o máximo esforço e a participação humanos”.791 Contudo, é o próprio Jonas a admitir que a arte (techne) médica foi uma exceção, isto é, a medicina antiga já estaria fora deste campo eticamente neutro; neste caso, sendo a dietética parte dele, não se pode ver contradição com as considerações feitas até aqui sobre a alimentação saudável como dever de virtude segundo a doutrina kantiana, portanto, como objeto de reflexões éticas importantes, inclusive tendo a humanidade como fim, ainda que admitindo o caráter da alimentação como necessidade vital (dever indireto). Já do ponto de vista do objeto, Jonas afirma que “não se colocava em absoluto a questão de um dano duradouro à integridade do objeto e à ordem natural em seu conjunto”,792 uma vez que a techne até então muito pouco afetava a natureza das coisas. Quanto a isso, considerando a atual erosão genética das espécies alimentares, cujo dano pode ser irreversível, realmente, não cabe pensar que Kant pudesse estabelecer qualquer obrigação moral nesse sentido, uma vez que as técnicas utilizadas na produção de alimentos à sua época em nada afetavam a ordem natural, 790 TUCÍDIDES. História da guerra do Peloponeso. Tradução Mário Gama Kury. Brasília: Editora UnB, 1987, p. 99. 791 JONAS, 2006, op. cit., p. 35. 792 JONAS, 2006, op. cit., p. 35. 229 como ocorre hoje com a produção de sementes transgênicas. É por trazer a questão da responsabilidade humana sobre a natureza, que o pensamento de Jonas pode complementar o de Kant, apesar de também apresentar traços antropocêntricos criticados por ele, pois a preocupação com a manutenção da natureza só se coloca porque o destino da humanidade depende dela. Uma diferença apontada pelo autor, no entanto, é exatamente o caráter de irreversibilidade e a acumulação dos danos ao longo do tempo, que muda a situação originária e que pode eliminar a possibilidade mesma da virtude no futuro. Diz Jonas, sobre esse efeito cumulativo: “a autopropagação cumulativa da mudança tecnológica do mundo ultrapassa incessantemente as condições de cada um de seus atos contribuintes e transcorre em meio a situações sem precedentes, diante das quais os ensinamentos da experiência são impotentes”.793 Diante dos efeitos (incertos) desse agir cumulativo-tecnológico, Jonas vai propor a precaução, no âmbito de uma ética da responsabilidade para com o futuro. Ele reconhece, porém, como a parte mais fraca do seu sistema, que a incerteza das projeções sobre o futuro acaba sendo “uma fraqueza sensível ali onde elas tem de assumir o papel de prognósticos, nomeadamente, no emprego prático-político”.794 Para Jonas a responsabilidade é função do poder e do saber, na medida em que o saber técnico confere poder ao nosso agir, o que faz com que o conteúdo do dever seja dado a partir dos feitos desse poder, isto é, das ações derivadas da continuidade da expansão do saber e da técnica. Esse poder (de saber fazer) como causa que libera no mundo seus feitos precisa de controle no caso do homem, porque pode levar à destruição de toda a humanidade.795 Se o projeto de expansão das sementes transgênicas seguir adiante, pelo já exposto, nada restará de sementes crioulas às gerações futuras, portanto, ainda segundo Jonas, a partir do seu imperativo “aja de modo a que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma autêntica vida humana sobre a terra”, temos a responsabilidade de garantir a diversidade das sementes que são um patrimônio da humanidade. Claramente, o princípio de Jonas refere-se aos efeitos das nossas ações para a continuidade da atividade humana no futuro, e a responsabilidade que ele defende não é apenas para com os outros seres humanos, mas para toda a natureza. Assim sendo, em função das consequências negativas das sementes transgênicas, considerando os riscos não apenas para a saúde humana, mas também, os riscos ambientais, deveríamos rejeitá-las, até que se provem seguras, ou seja, enquanto Kant poderia rejeitar a manipulação genética das sementes por alterar as leis da natureza, Jonas rejeitaria 793 JONAS, 2006, op. cit., p. 40. 794 JONAS, 2006, op. cit., p. 74. 795 JONAS, 2006, op. cit., p. 216. 230 indicando o princípio da precaução, tendo em vista suas consequências mesmo que desconhecidas.796 Por fim, do ponto de vista da relação entre o poder e a ciência, é possível ainda refletir kantianamente sobre o papel do Estado e sua relação com a faculdade de filosofia numa situação de conflito legal com outras faculdades. Diante das medidas provisórias do governo quanto à liberação da soja transgênica contrabandeada da Argentina para plantio no Brasil, Kant criticaria essa forma pouco republicana de decidir.797 Ele aconselharia ao Presidente Lula exigir que estudos de impacto ambiental fossem feitos para apresentar garantias de que a plantação de soja transgênica era segura, uma vez que tais estudos são requeridos pelo artigo 225 da Constituição Brasileira, a qual estabelece ainda, em seu artigo 23, VI, que é papel da União “proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas”. Do mesmo modo, ao julgar os pareceres da CTNBio, Kant questionaria tanto a verdade de suas afirmações no que se refere à segurança das sementes transgênicas, quanto a falta de transparência nos seus processos decisórios. A melhor forma de fazer tais questionamentos, sem dúvida, seria o debate público, em respeito ao princípio da publicidade e da participação, próprios da constituição republicana, princípios esses quase sempre desrespeitados pela dita comissão.798 Assim, em um debate público da filosofia com faculdades de agronomia aliadas das corporações, por exemplo, poder-se-ia questionar os interesses por trás da defesa da transgenia, tendo em vista que o direito já prevê a utilização do princípio da precaução na análise de riscos.799 Neste sentido, vejo a positivação do princípio da precaução como uma forma de fortalecer o princípio proposto por Jonas naquilo que ele julgou ser a parte fraca do seu sistema: do ponto de vista do estadista, bastaria exigir o cumprimento da lei. O papel dos movimentos sociais para a adoção da precaução foi fundamental para estabelecer um poder sobre o poder; como havia identificado o próprio Jonas, esse poder tem de surgir da própria sociedade.800 Infelizmente, no caso brasileiro da regulamentação dos 796 A ênfase nos efeitos é típica da ética utilitarista. Sobre as aproximações de Jonas com o consequencialismo ver SANTOS, Robinson dos. Responsabilidade e consequencialismo na ética de Hans Jonas. Rev. Filos. Aurora, Curitiba, v. 24, n. 35, p. 417-433, jul./dez. 2012. 797 A respeito disso, ver análise de audiência pública realizada pelo Ministério Público sobre atuação da CTNBio. Cf. MARICONDA, Pablo Rubén. Epistemologia e ética na liberação comercial de sementes GM pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança CTNBio. Scientiæ Studia, São Paulo, v. 12, n. 4, p. 767-83, 2014. O autor considera que não há transparência na composição nem no funcionamento da CTNBio, a qual não tem como exercer a precaução, nem a avaliação das consequências sócio-ambientais nas áreas de planejamento econômico e social. 798 A CTNBio já se recusou a fazer audiências públicas, em caso de liberação de sementes transgênicas. Cf. http://www.oeco.org.br/rafael-correa/768-oeco-19975. Acesso em 08 jun 2015. 799 Cf. Lei 11.105/2005, artigo 1º (atual lei de biossegurança). 800 JONAS, 2006, op. cit., p. 237. 231 transgênicos, os movimentos sociais não tiveram força bastante para impedir o avanço da transgenia, a despeito de suas manifestações. Quando a nova lei de biossegurança foi aprovada em 2005, manifestações da sociedade foram dirigidas ao Presidente Lula repudiando sua atitude de sancionar a lei.801 Para o cientista Seralini, responsável pelo maior estudo já feito sobre danos de toxicidade crônica decorrente da alimentação transgênica em ratos de laboratórios,802 “a precaução é o verdadeiro motor do progresso”.803 Segundo ele, a ciência ficou confinada à busca dos maiores benefícios para alguns, com o risco de tornar reféns “a saúde humana, os equilíbrios sociais, o planeta e seu futuro”.804 A pioneira e maior produtora de sementes transgênicas, a empresa americana Monsanto, por exemplo, sequer entendeu o direito humano à alimentação, pois afirma em seu site que: “Para nós, independente da localização, desde as maiores cidades até as planícies subsaarianas da África, todas as pessoas no mundo merecem acesso à alimentação, no presente e no futuro”.805 Direito humano tem a ver com dignidade, não com mérito. Assim colocada, a questão parece mais uma benevolência da empresa para com todas 801 Em trecho da Carta assinada por diversas entidades lê-se: “Para as entidades, o presidente Lula prestou um desserviço inédito na história do país, ao isentar a tecnologia dos transgênicos de licenciamento ambiental com estudo de impacto ambiental. Esta decisão é um precedente para que outras atividades e obras potencialmente causadoras de significativa degradação ambiental reivindiquem com sucesso para si o mesmo privilégio, desconstruindo a política ambiental elaborada ao longo das duas últimas décadas pelos governos anteriores, pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente e pela sociedade civil” (apud FERNANDES, 2005, p. 21). 802 SÉRALINI G.E. et al. Long term toxicity of a Roundup herbicide and a Roundup-tolerant genetically modified maize. Food and Chemical Toxicology, 2012, 50, 4221-4222. Amplamente divulgado pela imprensa no mundo todo, o estudo gerou reações a favor e contra, logo após sua publicação em novembro de 2012. O grupo de Seralini observou o efeito não apenas de milho geneticamente modificado, mas também do glifosato; duzentos ratos foram estudados por até dois anos, divididos em três grupos segundo a alimentação recebida: apenas milho NK603, milho NK603 tratado com Roundup e milho não alterado geneticamente e tratado com Roundup; dentre os resultados encontrados, observou-se mortalidade mais rápida nos grupos alimentados com milho GM, por exemplo, o primeiro rato macho alimentado com milho GM morreu um ano antes do rato indicador (que não se alimentou com esse milho); além da mortalidade, também se observou a presença de tumores duas a três vezes mais frequente nos grupos alimentados com milho GM. Vale lembrar que esse milho foi liberado no Brasil pela CTNBio, em 2008. Para explicação sobre a pesquisa ver: https://vimeo.com/50135073. Acesso em 10 jan 2016. O artigo com a pesquisa foi retirado da revista no ano seguinte, sob alegação de não apresentar resultados conclusivos e reconhecendo que não houve fraude nem deturpação intencional dos dados, que foram fornecidos pelos autores, após solicitação. Cf. http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0278691512005637. Acesso em 10 jan 2016. Críticas às alegações da revista, feitas pela Red Europea de Científicos por la Responsabilidad Social y Ambiental, podem ser lidas aqui: http://pratoslimpos.org.br/?tag=nk-603. Acesso em 10 jan 2016. Acusado de fraude científica por seu estudo, Séralini ganhou, em novembro de 2015, um processo por difamação, que resultou em investigação criminal contra a revista francesa Marianne. Cf. http://www.gmoseralini.org/seralinis-team-wins- defamation-and-forgery-court-cases-on-gmo-and-pesticide-research/. Acesso em 10 dez 2015. Já sobre o caso Séralini x Fellous, ainda não concluso, a sentença é esperada para junho de 2016, e já se descobriu que Fellous, que costuma chamar os críticos dos transgênicos de ideológicos e militantes, é dono de patentes. Cf. http://corporateeurope.org/news/ralini-vs-fellous-gmo-libel-case. Acesso em 10 dez 2015. Para mais detalhes, ver página do autor http://www.gmoseralini.org/en/. Acesso em 10 jan 2016. 803 SERALINI, Giles-Eric. Transgênicos, poderes, ciência, cidadania, p. 38. In: ZANONI, M & FERMENT, G. (Org.). Transgênicos para quem? Agricultura, ciência e sociedade. Brasília: MDA, 2011 p. 32-38. 804 SERALINI, 2011, op. cit., p 38. 805 http://descubra.monsanto.com.br/alimentacao-balanceada/. Acesso em 30 ago 2014. 232 as pessoas, até mesmo as pessoas africanas. Assim sendo, a precaução bem poderia ser um princípio ético orientador da pesquisa, no sentido de buscar, não os interesses corporativos, privados, mas o interesse público dos direitos humanos, afinal, cientistas também são cidadãos e fazem parte da comunidade política, de modo que também eles devem adotar princípios éticos na sua prática e respeitar os direitos humanos. Neste contexto, uma vez que a produção de sementes transgênicas é algo que somente por meio de técnicas sofisticadas e conhecimento especializado pode ser obtida, é preciso pensar um imperativo moral para a atividade científica. O cientista kantiano se perguntaria: devo produzir tais sementes? Ou melhor, ao produzir sementes transgênicas, considero a humanidade como fim ou como meio? Penso que esta fórmula do imperativo categórico é a que melhor expressa a inexistência de moralidade kantiana na produção de sementes transgênicas. Quais motivos levariam o cientista a produzir tais sementes, considerando o direito humano à alimentação adequada? O cientista defensor da transgenia poderia ainda dizer que tem o dever de promover a felicidade alheia, por exemplo, dos agricultores e consumidores, colocando-se para si mesmo o dever de produzir sementes transgênicas. Ora, tal defesa é insustentável, porque somente agricultores e consumidores podem estabelecer o que lhes traz felicidade, e já vimos que, ao contrário, eles não querem aquelas sementes. Além disso, se a transgenia implica uma alteração das leis da natureza, que tipo de imperativo representaria a necessidade de tal ação? Que é uma ação possível pelo avanço do conhecimento, não há dúvidas: se quero produzir na natureza qualquer tipo de ser vivo, com qualquer característica, então meu querer será determinado por um imperativo que representa a necessidade da transgenia, como meio de alcançar meu fim, ou seja, estamos diante de um imperativo técnico, que constitui um tipo de destreza na utilização dos meios para obtenção do fim possível desejado, não um imperativo moral. A engenharia genética que possibilita a transferência de genes entre espécies diferentes é, seguramente, um tipo de destreza altamente sofisticada, decorrente da aplicação de certos conhecimentos, mas imperativos de destreza não são imperativos morais, não representam uma necessidade absoluta. A ação de produzir sementes transgênicas vale como meio para alguma coisa, por exemplo, para obter a patente, isto é, o controle da semente produzida, o que representa lucros financeiros. Nesse sentido, mesmo que os cientistas que as produzem nos laboratórios de biotecnologia alegassem ainda que estão contribuindo para o avanço do conhecimento, e as empresas, que tem um direito de utilização deste conhecimento para obtenção de seus lucros, eles não poderiam querer 233 universalizar essa ação,806 revelando que também nesse caso não há um imperativo categórico para a produção de tais sementes. E uma vez que não há estudos mostrando a segurança das plantas geneticamente modificadas, não caberia defender sua liberação no meio ambiente, o que já pode ser feito apenas considerando os aspectos legais. Diante das incertezas que esta tecnologia pode trazer, podemos, como Jonas, considerar mais preocupante o prognóstico que ameaça a segurança alimentar do que as promessas vãs de quem tem interesses meramente comerciais: “em assuntos de certa magnitude – aqueles com potencial apocalíptico – deve-se dar mais peso ao prognóstico do desastre do que ao prognóstico da felicidade”.807 Kant, por sua vez, sabedor que a “paixão de novidades”808 poderia ameaçar o Estado, recomendaria a prudência, e ao político moral não restaria outra saída senão corrigir os defeitos na regulamentação dos transgênicos de modo a respeitar o direito natural, ou seja, “o político deverá fazer isso, mesmo sacrificando seu egoismo”.809 Não se pode considerar prudente a edição da terceira Medida Provisória relacionada à questão da soja transgênica que trata da utilização do glifosato em situação de pós-emergência (MP 223/2003). Até então, o glifosato só tinha permissão de uso para controle do mato antes da cultura nascer. Como relata Fernandes, “tecnicamente a autorização do plantio não serviria para nada, pois, sem o Roundup, de nada serve a semente transgênica”.810 Além da autorização para utilização do Round up, o limite máximo permitido de resíduo do veneno encontrado no produto foi aumentado em 50 vezes.811 Claro está que a transgenia alimentar traz responsabilidades ainda maiores para o Estado, considerando seu papel na garantia do DHAA como ente também regulador e autoridade coativa. Por isto, insisto que a escolha alimentar não pode ser uma questão meramente de “escolha pessoal”. Ao escolher o que comer, estamos também escolhendo o que será produzido. O ato de se alimentar nos torna parte de uma cadeia produtiva que será influenciada por nossas escolhas, ainda que tais escolhas, muitas vezes, também possam ser 806 Esta é a realidade apresentada por Oliveira (2008, op. cit.), ao apontar os problemas decorrentes dos processos de tecnologização – em que o conhecimento científico é valorizado pelo poder de gerar tecnologias, e não como um fim em si mesmo – e de mercantilização da ciência, em que o sistema de patentes é crucial, posto que é rentável. Segundo o autor, a relação entre os dois processos, em que predomina a mercantilização da ciência, é observada nos critérios das agências de fomento à pesquisa, segundo os quais, o peso maior é atribuído ao que é rentável, e não ao que é útil. O mercado passa a ser, então, o princípio regulador da ciência; valorizar o que é rentável é submeter a ciência ao controle do mercado. 807 JONAS, 2006, op. cit., p. 83. 808 CF, p. 103 809 PP, p. 93. 810 FERNANDES, 2005, op. cit. p. 14. 811 O aumento do uso de glifosato em culturas de soja está sendo apurado em inquérito civil público pelo Ministério Público do Mato Grosso (1.20.000.000994/2007-09) e do Mato Grosso do Sul (Procedimento administrativo Procedimento Administrativo nº 1.21.000.001019/2007-72). 234 determinadas pelo sistema produtivo imposto contra a vontade do cidadão, como é o caso dos alimentos transgênicos.812 Somente nos casos em que fosse factível a sociedade boicotar todos os produtos transgênicos, supondo que esse boicote teria uma duração indeterminada, até que, por exemplo, as leis fossem mudadas, admito que o cidadão pouco poder tem nessa questão. O debate sobre transgênicos está mais dominado por crenças do que pela ciência, como veremos a seguir. No entanto, trata-se, basicamente, de um debate político, o qual, numa sociedade democrática deveria ser decidido pela publicidade crítica e não pela arrogância e pelo poder da tecnocracia.813 O governo parece ter adotado aqui a postura paternalista, na medida em que não chamou a sociedade para o debate, colocando-se na posição de tudo determinar para o povo que em tal condição permanece num estado de menoridade. Poderíamos pensar que essa é a condição do povo brasileiro no que se refere aos alimentos transgênicos, como se depreende dos resultados de algumas pesquisas apresentadas na próxima seção. 5.3 A (in)utilidade do alimento transgênico Não sabendo o que vai ser do homem do amanhã, sabemos aquilo que não deve ser: alienado [...] dominador, [...] escravizado. É aqui que a história dos homens difere da dos seres unicamente biológicos condenados a viver e a transmitir as suas mutações. É aqui que a palavra de hoje também serve para o amanhã (Jacques Testart, Homens prováveis) Vimos, no início deste trabalho, que o Programa Alimentar Mundial executado pela ONU814 distribuiu sementes transgênicas a populações famintas, levando à recusa de algumas nações, mesmo diante da situação de seu povo, em aceitar tal oferta. O argumento usado pela entidade coordenadora do programa baseou-se em uma declaração conjunta das Nações Unidas, que afirmava categoricamente: “tanto a FAO, como a OMS, e o PAM, não tem conhecimento de quaisquer casos cientificamente documentados em que o consumo de alimentos 812 Há uma máxima (atribuída a Wendell Berry), bastante conhecida nos EUA, que diz: “if you eat, then you are involved with agriculture”. Cf. http://www.azquotes.com/author/1332-Wendell_Berry?p=8. Acesso em 10 jun 2015. O autor chama a atenção para o perigo de separar “consumidores” de “agricultores”, na medida em que os consumidores (americanos) são, em geral, passivos e desinformados sobre o que está por trás da produção dos alimentos que consomem. Ver ainda http://www.ecoliteracy.org/essays/pleasures-eating. Acesso em 10 jun 2015. 813 http://www.espacoacademico.com.br/096/96andrioli.pdf. Acesso em 15 mar 2015. 814 Enquanto a FAO se ocupa da chamada ‘fome estrutural’, cabe ao PAM cuidar da fome conjuntural, decorrente de catástrofes naturais ou guerras. 235 geneticamente modificados tenha causado qualquer efeito negativo na saúde humana”.815 Ora, há nessa afirmação algumas observações importantes a fazer, quando se trata de novas biotecnologias e tem a ver com o processo de liberação das plantas transgênicas, como apresentado anteriormente.816 De acordo com revisão sobre o assunto, feita por Domingo & Bordonaba,817 não há evidências de que alimentos transgênicos sejam seguros para o consumo, dada a quase ausência de estudos toxicológicos, uma vez que a ênfase dada aos estudos é na eficácia das tecnologias. Além disso, como reconheceu a Agência Européia de Segurança dos Alimentos (EFSA), quase dez anos após a afirmação do PAM, não há protocolos ou diretrizes padronizadas para avaliação dos efeitos crônicos dos transgênicos à saúde.818 Na verdade, desde a Conferência de Meio Ambiente Rio-92, o princípio da precaução foi proposto para a abordagem deste tema. A Convenção da Diversidade Biológica (CDB) assinada na Rio-92 e o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança que dela decorreu adotaram o princípio da precaução no caso da avaliação de riscos decorrentes da manipulação 815 “The FAO, WHO and WFP confirm that they are not aware of any scientifically documented cases in which the consumption of these foods has had negative effects on human health.” Cf. stopogm.net/sites/stopogm.net/files/InhumanAid.pdf. Acesso em 01 jun 2015. Não é a primeira vez que, por meio de uma suposta “ajuda humanitária” aos famintos, organismos internacionais como a ONU preferem atuar em defesa dos países ricos. Vale a pena conhecer o funcionamento do programa Oil for Food (petróleo por alimentos), imposto ao Iraque, no período entre as duas guerras do Golfo (1991-2003), que se revelou mortal para a população civil, através da privação de alimentos e medicamentos, e que levou à destruição completa da economia do país; o programa humanitário foi, na verdade, uma arma de destruição em massa, responsável pela morte de mais de meio milhão de crianças, segundo relatado por Ziegler (2013, op. cit., p. 232 et seq.). Ver mais detalhes em https://www.globalpolicy.org/component/content/article/170-sanctions/41947.html. Acesso em 01 jun 2015. 816 Sobre uma crítica à posição da OMS pró OGM, ver http://aspta.org.br/2008/06/critica-e-isencao-artigo-de-jean- marc-von-der-weid/. Acesso 01 jun 2015. Além disso, recentemente, a IARC (Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer, da Organização Mundial de Saúde) anunciou sua conclusão, também endossada pelo INCA (Instituto Nacional de Câncer do Ministério da Saúde), de que a exposição e ingestão de certos agrotóxicos (incluindo o glifosato) são prováveis causas de câncer. Cf. http://pratoslimpos.org.br/?p=7751. Acesso em 01 jun 2015. 817 DOMINGO, José L.; BORDONABA, Jordi Giné. 'A Literature review on the safety of genetically modified plants', Environment International, 37, 2011, 734-742. Ver ainda DOMINGO José L. Health Risks of GM foods: many options but few data. Science, 288, 2000,1748-9; DOMINGO, José L. Toxicity Studies of genetically modifies plants: a review of published literaure. Crit. Rev. Food Sci. Nutr., 47, 2007, 721-33. 818 Por causa disso, a EFSA, a pedido da Comissão Europeia, elaborou um relatório para subsidiar a recomendação de protocolos para o desenho e condução de estudos bianuais de toxicidade e de carcinogenicidade com roedores. O anúncio foi feito após a primeira publicação do estudo de Séralini (op. cit. 2012), sendo que algumas das recomendações do documento chancelam os procedimentos utilizados nesse estudo. Cf. European Food Safety Authority. Considerations on the applicability of OECD TG 453 to whole food/feed testing. EFSA Journal 2013;11(7):3347, disponível em: http://aspta.org.br/campanha/638-2/. Acesso em 10 dez 2016. É importante destacar outra vitória do grupo de Séralini, que republicou o estudo, após uma nova revisão por pares, dois anos após a retratação, desta vez disponibilizando os dados brutos da pesquisa para toda a comunidade científica. Cf. SÉRALINI G.E. et al. Republished study: long-term toxicity of a Roundup herbicide and a Roundup-tolerant genetically modified maize. Environmental Sciences Europe 2014, 26:14, disponível em http://www.enveurope.com/content/26/1/14. Acesso em 10 jan 2016. 236 de OGM.819 A CDB em seu preâmbulo afirma que: “quando exista ameaça de sensível redução ou perda de diversidade biológica,820 a falta de plena certeza científica não deve ser usada como razão para postergar medidas para evitar ou minimizar essa ameaça”. No entanto, não é raro que a forma como as pessoas são informadas a respeito do assunto oriente-se exatamente na direção contrária à precaução, ou seja, adotando o discurso dominante de que se não há nada que me prove que faz mal, então, posso admitir que faça bem, e assim se justifica a liberação de OGM.821 Um aspecto que revela a adoção do princípio da utilidade pelo povo brasileiro, ao se colocar a escolha sobre OGM, apareceu em pesquisa feita, em 2001, pelo Environics International, em que o Brasil figura entre os países que apresentaram respostas favoráveis ao consumo de OGM no caso de apresentarem vantagem nutricional, ao passo que a maioria dos entrevistados na Europa e na Austrália afirmaram rejeitar os alimentos transgênicos ainda que tivessem maior valor nutricional.822 Por outro lado, em pesquisa encomendada pelo Greenpeace ao IBOPE,823 em 2003, apenas 37% já tinha ouvido falar em OGM, mas 65% dos entrevistados que disseram conhecer transgênicos acharam que o plantio dessas espécies deveria ser proibido, porque há divergências na comunidade científica quanto aos riscos que os OGMs representam para a saúde dos consumidores e para o meio ambiente.824 Em ambas as pesquisas, após ser dada uma definição de OGM, 74% disseram que escolheriam alimento não transgênico. Curiosamente, o mesmo IBOPE havia feito pesquisa semelhante, desta vez, a pedido da 819 O Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança (PCB) aprovado em 2000, foi ratificado pelo Brasil em 2003. Os artigos 10 e 11 do Protocolo tratam do tema, considerando as incertezas científicas acerca dos efeitos dos OGM. O Congresso Nacional aprovou o PCB por meio do Decreto Legislativo nº 908/2003, que entrou em vigor para o Brasil no ano seguinte, tendo sido promulgado pelo Presidente Lula (Decreto nº 5.705/2006). 820 Diversidade biológica significa a variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas. Cf. Convenção da Diversidade Biológica. 821 Exemplo disso é essa matéria recente da revista Carta Maior sobre o arroz. Cf. http://www.cartacapital.com.br/revista/824/arroz-dourado-146.html, em que se afirma que “comprovar que determinado alimento faz mal é fácil, porque aqueles que o ingerem ficam doentes. O oposto é quase impossível.” A respeito de como a mídia tratou a questão da soja no Rio Grande do Sul ver MENASCHE, R. Os grãos da discórdia e o trabalho da mídia. Opin Públic 2005; 11(1):169-191. Sobre o papel da divulgação de transgênicos em jornais brasileiros ver ALLAIN, Juliana Mezzomo; NASCIMENTO-SCHULZE, Clélia Maria and CAMARGO, Brígido Vizeu. As representações sociais de transgênicos nos jornais brasileiros. Estud. psicol. (Natal), 14(1), janeiro-abril/2009, p. 21-30. 822 Apud GUIVANT, Julia S. Transgênicos e percepção pública da ciência no Brasil. Ambiente & Sociedade. Vol. IX nº. 1 jan./jun. 2006, vol.9, n.1, p. 81-103, p. 86. 823 Disponível em http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2003-01-21/pesquisa-do-ibope-aponta- rejeicao-aos-produtos-transgenicos. Acesso em 17 mai 2015. 824 Em 2001, idêntica pesquisa apontou que nunca ouviram falar em OGM, 66% dos entrevistados. resultados semelhantes. Cf. http://www.greenpeace.org/brasil/pt/Documentos/greenpeacebr_010730_transgenicos_pesquisa_ibope_2001_po rt_v1/. Acesso em 17 mai 2015. 237 Monsanto, após sua campanha “desmistificando os transgênicos”, que apontou resultados bem positivos quanto à aceitação dos OGM. A explicação para a diferença nos resultados foi dada por Guivant: “a informação, entendida da forma pouco precisa em que é utilizada nestas pesquisas, leva a posicionamentos e conclusões diferentes”.825 Além disso, diversos estudos na área de percepção pública da ciência têm demonstrado que não há um vínculo direto entre conhecimento e atitudes.826 De todo modo, segundo a autora, há uma desconsideração sobre a participação pública nos debates sobre transgênicos. Do que foi apresentado na seção anterior fica claro que a falta de debates gerou imensa fragilidade no controle social sobre a aplicação das biotecnologias agrícolas. É fato que a introdução de sementes transgênicas no meio ambiente afeta a biodiversidade, na medida em que se trata de sementes padronizadas, uniformizadas, que trazem a possibilidade de contaminação biológica e levam à perda das sementes locais; essa erosão genética torna os sistemas altamente vulneráveis, como aconteceu com as sementes da revolução verde. Daí o alerta de Mariconda sobre as liberações de uso comercial em grande escala, como ocorreu no Brasil, sem monitoramento e reavaliações periódicas, que “correm o risco de serem decisões com sérias consequências éticas, causando em alguns casos danos irreversíveis, que exigem reparação”.827 O fato é que tendemos, hoje, à uma “perigosa monocultura e a homogeneidade tende à morte, já que a heterogeneidade é o estado dinâmico, vital [...] biodiversidade é a forma de se assegurar o indispensável estado dinâmico da heterogeneidade da natureza”.828 Vandana Shiva alerta para a distinção que é preciso fazer entre a diversidade dos produtos da biotecnologia, como diversidade de commodities, que em nada enriquecem a diversidade da natureza, pois, a diversidade das estratégias corporativas e a diversidade das formas de vida no planeta não são a mesma coisa: “biotecnologias são, em essência, tecnologias de criação de uniformidade em plantas e animais”.829 É a diversidade genética das plantas que permite sua adaptação aos mais variados ambientes – pela seleção natural – e possibilita aquele melhoramento genético que tem sido praticado há milênios, numa interação entre agricultores e sementes. Curiosamente, quando o russo Vavilov, que criou os chamados Centros de Vavilov, identificou os centros de origem de plantas, verificou que eram os países ricos os mais pobres em germoplasmas, ou seja, a vida vegetal se expressava naturalmente com toda a sua diversidade nos países pobres, sendo o Brasil 825 GUIVANT, 2006, op. cit, p. 86. 826 GUIVANT, 2006, op. cit., p. 97. 827 MARICONDA, 2014, op. cit., p. 769. 828 MACHADO et al, 2003, op. cit., p. 246. 829 SHIVA, 1997b, p. 114. 238 uma dessas áreas.830 Além da uniformidade, o surgimento de variedades resistentes, isto é, superpragas, é já uma realidade, porque as plantas transgênicas repetem o padrão da Revolução Verde, sendo que, em vez de uma praga-um produto químico, a engenharia genética usa como modelo uma praga-um gene.831 Meu objetivo nesta seção é deixar claro que não se pode defender qualquer utilidade dos alimentos transgênicos para a realização do DHAA832. Não posso querer que a variabilidade da natureza seja reduzida, nem que a alimentação se restrinja a apenas poucas variedades patenteadas. Vimos na análise do DHAA, a partir do PIDESC, que a sustentabilidade ambiental está associada ao adequado, portanto, o direito à alimentação não se realiza sem a sustentabilidade dos sistemas produtivos de alimentos. A nossa LOSAN reconhece a importância da dimensão ambiental na adoção de políticas e ações visando à segurança alimentar e nutricional (art. 2º, § 1º), tanto que afirma que a SAN abrange a conservação da biodiversidade (art. 4º, II), portanto, a perda da diversidade ambiental, uma das consequências dos OGM, implica redução da segurança alimentar. As consequências danosas dos OGM são do conhecimento de cientistas independentes, que não estão vinculados a interesses das corporações de sementes transgênicas, mas estão preocupados com a questão.833 Diversos estudos já apontam, por exemplo, a relação entre aumento do consumo de agrotóxicos e expansão das culturas transgênicas no país.834 Para Melgarejo, são evidentes as consequências negativas dos transgênicos, embora ele reconheça que para alguns, durante algum tempo, facilidades de manejo em função da homogeneização 830 MACHADO, Luiz Carlos Pinheiro; MACHADO FILHO, Luiz Carlos Pinheiro; RIBAS, Clarilton D. E. C. Sementes, direito natural dos povos. In: Horacio Martins de Carvalho (org.). Sementes: patrimônio do povo a serviço da humanidade. São Paulo: Expressão Popular, 2003, p. 245-257. A fonte da maioria das culturas principais constitui apenas uma quarta parte das terras do mundo (Oriente Próximo, Afeganistão, Indo-Birmânia, Malásia- Java, Guatemala, México, Andes peruanos, Brasil, Etiópia). Op., cit., p. 245. 831 ALTIERI, Miguel A. & ROSSET, Peter. Dez razões que explicam por que a biotecnologia não garantirá a segurança alimentar, nem protegerá o meio ambiente e nem reduzirá a pobreza no terceiro mundo. In: Horacio Martins de Carvalho (org.). Sementes: patrimônio do povo a serviço da humanidade. São Paulo: Expressão Popular, 2003, p. 229-243. 832 Para melhor compreensão da complexidade dos riscos dos alimentos transgênicos e do seu processo de avaliação, remeto ao depoimento do cientista Jonathan LATHAM. Growing doubt: a scientist’s experience on GMO. Disponível em http://www.independentsciencenews.org/health/growing-doubt-a-scientists-experience-of- gmos/. Acesso em 20 mar 2015. Sua crítica à revolução verde pode ser encontrada aqui: How the Great Food War Will Be Won. Independent Science News, 12 jan. 2015. Disponível em: . Acesso em 20 mar 2015. 833 Os malefícios das culturas transgênicas foram apresentados no Painel de Cientistas independentes, cujo Relatório final está disponível em http://www.i-sis.org.uk/ispr-summary.php; os artigos científicos estão publicados aqui http://www.i-sis.org.uk/GE-scientific.php. Acesso em 03 jun 2015. Interessante ainda consultar a publicação brasileira Lavouras transgênicas – riscos e incertezas: mais de 750 estudos desprezados pelos órgãos reguladores de OGMs/Gilles Ferment...[et al.]. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2015. 834 Cf. http://reporterbrasil.org.br/2013/11/transgenicos-e-agrotoxicos-uma-combinacao-letal/. Acesso em 20 mai 2015. 239 de processos decisórios relacionados ao controle de herbicidas e de algumas pragas tenham sido observadas, mas mesmo para os que se beneficiam no curto prazo, os resultados de médio e longo prazo não permitem otimismo: houve ampliação de custos produtivos, simplificação das matrizes produtivas regionais, alteração no tamanho mínimo viável para lavouras tecnificadas de milho, soja e algodão, inviabilizando pequenos estabelecimentos, o que levou à exclusão de pequenos produtores; além disso, para os que ficam no campo, a transgenia ameaça a qualidade de vida por causa do volume de agrotóxicos utilizados. Isso significa que, na prática, diz o autor, que coordena o GT agrotóxicos e transgênicos da ABRASCO: “a transgenia tem acelerado uma espécie de reforma agrária às avessas no rural brasileiro”, e “tem mudando para pior a realidade agrícola brasileira”.835 Da derrubada dos “mitos e das falsas promessas”,836 ou das “falácias”837 da biotecnologia, à comprovação – no campo – de que as lavouras transgênicas não consomem menos agrotóxicos, nem são mais rentáveis, nem seguras, a única conclusão a que se pode chegar é que, para a garantia e a defesa do DHAA, os alimentos transgênicos não tem utilidade, e por isso devem ser rejeitados, do ponto de vista do direito, da política e da ciência que se orienta pela ética e tem compromisso com a segurança alimentar. Não é tarefa fácil, porém, quando se considera o marketing para produzir uma “propaganda enganosa”, por parte das empresas,838 como alerta o dirigente da AS-PTA, Jean Marc Von der Weid: Apesar de a propaganda das empresas falar de redução do uso de agrotóxicos, isso só ocorreu nos EUA, nos três primeiros anos do emprego da tecnologia. Depois, como todos os cientistas independentes previram, as ervas tratadas com doses maciças de glifosato adquiriram resistência ao produto e hoje infestam agressivamente os campos de soja, milho e algodão resistentes ao glifosato, produzindo reduções de produtividade que chegam a 50% em casos mais extremos. A perda de eficiência das plantas transgênicas no controle de 835 Entrevista disponível em http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/520591-a-transgenia-esta-mudando-para-pior- a-realidade-agricola-brasileira-entrevista-especial-com-leonardo-melgarejo. Acesso em 20 mai 2015. Um resumo de evidências científicas sobre os riscos ao meio ambiente, à saúde humana e animal, provocados pelo uso da soja transgênica e do herbicida glifosato, pode ser encontrado em publicação de uma coalizão de cientistas que pesquisam o tema, contendo 330 estudos. Cf. ANTONIOU et al. (org.). Soja transgênica: responsável? Sustentável? Bochum, Alemanha-Viena, Áustria: GLS Gemeinschaftsbank eG & ARGE Gentechnik-frei, Setembro, 2010. O documento em português pode ser consultado aqui http://earthopensource.org/wp- content/uploads/gm_sum_por_v5.pdf. Acesso em 10 dez 2015. 836 Cf. http://www.anbio.org.br/opiniao.htm. Acesso em 12 mai 2015. Dois dos mitos apontados por Altieri são que a biotecnologia não atentará contra a soberania ecológica no terceiro mundo, e que melhorará o uso da biologia molecular para beneficio de todos os setores da sociedade. 837 SANTOS, Charles Morphy D. & ZUCOLOTO, Fernando S. Argumentos falaciosos que camuflam os OGMs. Scientific American Brasil, 122, 2012, p. 54-57. 838 O marketing é revestido de cientificidade, quando apoiado por “sociedades científicas”. Cf. https://www.youtube.com/watch?v=JKyo0nRLuLY. Acesso em 03 jun 2015. 240 invasoras e pragas significou que os volumes de agrotóxicos foram aumentando para compensar esse efeito. Além disso, os agricultores tiveram de usar outros agrotóxicos mais agressivos no lugar dos que perdiam sua eficiência, como o glifosato, que está sendo substituído pelo 2,4D, vulgo agente laranja.839 A realidade paradoxal revela a seguinte situação: a) as pessoas mais vulneráveis à fome são os pobres rurais (camponeses, agricultores familiares), segundo o Banco Mundial, 75% dos que vivem na extrema pobreza estão nos campos;840 b) agricultores e camponeses são os principais produtores de alimentos. Assim, se as causas das populações rurais serem as mais pobres do mundo fossem encontradas na falta de tecnologias consideradas adequadas, tais como o uso de sementes transgênicas ou dos pacotes tecnológicos da revolução verde, então, poderíamos admitir, como solução para o problema, um destes pacotes. Não estou sugerindo a rejeição de toda e qualquer tecnologia, pois, não defendo o modelo de agricultura presente em Hesíodo, como algo que estava fora do alcance do cálculo humano e nem podia ser considerada uma téchne, por estar submetido à natureza e suas forças divinas.841 O que questiono são as soluções propostas que derivam de um certo tipo de saber, orientado para a rentabilidade dos processos tecnológicos indicados, que são absolutamente descontextualizados e não consideram a relação homem-natureza. Peter Rosset desenvolveu essa análise, tendo como base o colonialismo e a imposição de um modelo de utilização das terras para produção de alimentos que se seguiu às independências das nações na era pós-colonial, sustentado pela ideologia de que o grande é sempre melhor e que o campesinato era atrasado e improdutivo. A conclusão do autor não podia ser diferente: não é pela falta de sementes milagrosas, que contêm seu próprio inseticida e toleram doses elevadas de herbicidas, que os produtores de alimentos do Terceiro Mundo apresentam uma produtividade em declínio, mas sim pelo fato de que foram expulsos para terras marginais, com solos empobrecidos, dependendo exclusivamente da chuva, ao mesmo tempo em que têm de enfrentar estruturas e políticas macroeconômicas multifacetárias hostis a que os agricultores familiares e camponeses sejam produtores de alimentos.842 839 Jean Marc Von der Weid. Cf. http://reporterbrasil.org.br/transgenicos/transgenicos-e-agrotoxicos-uma- combinacao-letal-2/. Acesso em 02 jun 2015. 840 ZIEGLER, 2013, op., cit., p. 39. 841 VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Trad. Haiganuch Sarian. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. 842 ROSSET, Peter. A fome no terceiro mundo e a engenharia genética: uma tecnologia apropriada? In: Horacio Martins de Carvalho (org.). Sementes: patrimônio do povo a serviço da humanidade. São Paulo: Expressão Popular, 2003, p. 135-156. 241 Resta ainda uma última possibilidade para pensar uma suposta utilidade dos alimentos transgênicos, mesmo reconhecendo que as atuais plantas transgênicas não tem trazido utilidade em relação ao fim da fome, nem à renda do agricultor ou à menor contaminação ambiental. Falo da produção de plantas com características nutritivas e cito o exemplo do arroz rico em beta- caroteno. É certo que a deficiência de vitamina A continua sendo um sério problema de saúde pública, afetando, sobretudo, as crianças, com graves consequências que podem levar à cegueira.843 Entretanto, antes de se propor a transgenia como solução para qualquer deficiência nutricional, caberia, mais uma vez, adotando a metodologia do planejamento estratégico em saúde, conhecer bem o problema, o que significa explicá-lo, em termos de causalidade.844 Ninguém poderá afirmar que a deficiência de vitamina A, nosso exemplo, é provocada pela falta de uma planta geneticamente modificada para produzir um precursor desta vitamina. Há uma riqueza na natureza, considerando a sua diversidade natural, de alimentos que podem ser consumidos regularmente de modo a evitar aquela deficiência. Tivemos um caso exatamente assim. Na edição de agosto de 1999 da revista Science, o Golden rice foi apresentado ao mundo: um arroz geneticamente modificado, desenvolvido pelo Instituto Suíço de Ciência Vegetal em Zurique, sob patrocínio da Fundação Rockfeller e da União Européia. Quem poderia ser contra um alimento que, produzido em larga escala, salvaria milhares de crianças de um grave problema nutricional? Também neste caso é preciso estar atento às armadilhas da biotecnologia. Como observa Rosset, aceitar que a maneira correta de enfrentar o problema é o arroz dourado “revela uma imensa ingenuidade”845 sobre a realidade e as causas dessa deficiência, que é, na verdade, um sintoma do verdadeiro problema, qual seja, a pobreza, que reduz a dieta de milhares de pessoas a um alimento principal, o arroz. Assim, oferecer arroz com betacaroteno, considerando potenciais riscos ecológicos e para a saúde, “enquanto deixa intactos os problemas da pobreza, das dietas insuficientes e da monocultura, não parece poder dar uma contribuição duradoura ao 843 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Carências de micronutrientes. Cadernos de Atenção Básica - nº 20. Série A. Normas e Manuais Técnicos. Brasília – DF, 2007. 844 A necessidade de planejamento em saúde está prevista em lei como importante instrumento da gestão pública. Cf. lei 8080/90, Decreto 7272/2010. Sobre uma introdução à metodologia de planejamento estratégico ver PAIM, Jairnilson Silva. Planejamento em saúde para não especialistas. In: CAMPOS, Gastão Wagner de Souza (Org.). Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo-Rio de Janeiro: HUCITEC-FIOCRUZ, 2009, p. 767-782. 845 ROSSET, 2003, op. cit., p. 148. O projeto desse arroz transgênico na Ásia custou cerca de US$ 100 milhões. O que não é dito é que a batua, planta riquíssima em betacaroteno e cultivada junto com o trigo, desapareceu na área, com o advento da monocultura, privando a população de sua maior fonte para obtenção da vitamina A, o que levou a um aumento vertiginoso da cegueira. Cf. SANTOS & ZUCOLOTO, 2012, op. cit. 242 bem-estar dos afetados”.846 Enfim, se não há utilidades do ponto de vista do consumidor, do agricultor, do cidadão e do meio ambiente, a quem serve a transgenia dos alimentos? Não é difícil responder a isso. Vimos que a apropriação privada das sementes transgênicas, garantida pelo patenteamento, transformou o comércio desta mercadoria numa importante fonte de lucro e poder. A apropriação econômica dos resultados dessa tecnologia, no caso da semente transgênica, levou a um controle jamais visto sobre a produção de alimentos. Por outro lado, o negócio das commodities garante aos governos promotores da economia de mercado o superávit primário que ajuda a pagar débitos a grandes instituições financeiras. Assim, do ponto de vista da ética utilitarista, a decisão do governo de liberar as sementes transgênicas – inicialmente fruto de contrabando – afetou profundamente pequenos agricultores e consumidores em geral, os quais até hoje tem violado o seu direito à informação, não sabendo sequer quais alimentos transgênicos estão à venda no mercado, já que as normas de rotulagem não estão sendo respeitadas.847 Os benefícios só foram obtidos pelas grandes corporações que dominam o mercado de sementes transgênicas, de modo que se pode caracterizar a ação do governo que proporcionou tanto mal a agricultores e consumidores, como uma ação de pura e fecunda dor. Além de se poder afirmar que a liberação de transgênicos no Brasil – por suas consequências – é imoral, pode-se ainda dizer que foi inconstitucional, como aponta Andrioli,848 por falta de EIA/RIMA, exigidos pelo artigo 225 da Constituição Federal em vigor. Diante disso, há que se reconhecer que nossos problemas alimentares, seja pela falta, seja pelo excesso, não são tanto decorrentes da falta de “inovações tecnológicas”, nem tampouco do patenteamento das formas de vida (vegetal e animal) manipuladas geneticamente que podem ser usadas como fontes de alimentos. Na verdade, a incerteza de tais manipulações é o que muitos não querem admitir, mas é o que dá sentido ao princípio da precaução, como apontado anteriormente. Por fim, faço aqui o contraponto entre o princípio da precaução e o princípio da equivalência substancial. Utilizado, em geral, como fundamento para a não regulamentação dos alimentos transgênicos, o princípio da equivalência substancial, adotado nos EUA, tem sido reproduzido no Brasil. Constitui, na verdade, um paradoxo, sua adoção pelos mesmos que defendem o direito de patente, pois seria o caso de aceitar, simultaneamente ao direito de patente que atribui o caráter de uma “invenção” aos alimentos transgênicos, que tais alimentos, dado 846 ROSSET, 2003, op. cit., p. 148. 847 SOARES et al, 2012a; 2012b, sobre a inadequação da rotulagem de óleo de soja e produtos de milho em Natal. 848 ANDRIOLI & FUCHS, 2008, op. cit. p. 118 et seq. 243 que são equivalentes, não necessitariam de qualquer norma especial, por serem considerados tão seguros quanto aqueles derivados de plantas não transgênicas. Nos EUA, o princípio da equivalência substancial tem sido usado como forma de evitar a rotulagem,849 algo que ameaça acontecer também no Brasil. Este princípio, que ainda carece de qualquer validade científica,850 afirma que: Se duas coisas são perfeitamente idênticas em tudo o que, em cada uma, pode ser conhecido em si (em todas as determinações referentes à quantidade e à qualidade), segue-se necessariamente que, em todos os casos e relações, uma pode substituir-se à outra sem que esta substituição venha a originar a mínima diferença apreciável.851 O genoma das plantas pode ser conhecido; o genoma da soja RR tem genes diferentes da soja natural, portanto, não poderiam ser substancialmente equivalentes. Há na soja transgênica material genético que não há na soja não transgênica. Por outro lado, afirma Vandana Shiva, “Patentes sobre sementes são ilegítimas, pois colocar um gene tóxico em uma célula vegetal não corresponde a ‘criar’ ou a ‘inventar’ uma planta. Além disso, patentes são concedidas a invenções, não a formas de vida”.852 Não deixa de ser uma contradição, portanto, que para a obtenção de patente tenha sido atribuído a tais plantas o caráter de “novidade” ou “invenção”, quando se defende, ao mesmo tempo, que elas são “substancialmente equivalentes” ao que já existe na natureza. De todo modo, o que se pode dizer é que enquanto o princípio da equivalência substancial serve aos defensores das sementes transgênicas que são contra a rotulagem dos alimentos derivados delas, o princípio da precaução, como apresentado, pode ser útil para defender uma moratória na liberação de transgênicos, até que se conheçam os riscos potenciais de sua utilização. É sabido que, no âmbito da saúde, a prevenção é já adotada, referindo-se às orientações que consideram os riscos conhecidos para prevenir ou minimizar os danos; no caso da 849 Ao se considerar substancialmente equivalente, a FDA não exige teste toxicológico para autorização do alimento transgênico. Os transgênicos foram enquadrados na categoria de substâncias “geralmente reconhecidas como seguras – GRAS – “generally recognized as safe, ao lado de vinagre, pimenta e sal. Cf. ROBIN, Marie- Monique. O mundo segundo a Monsanto: da dioxina aos transgênicos, uma multinacional que quer o seu bem. Tradução: Cecília Lopes & Georges Kormikiaris. São Paulo: Radical Livros, 2008, p.162. 850 Justifica-se, com isso, que seja considerado um princípio pseudo-científico. PUSZTAI, Arpad. Can science give us the tools for recognizing possible health risks of GM food? Nutr. Health, v. 16, p. 73-84, 2002. 851 Prol., A 57, p. 54. É importante registrar, contudo, que os primeiros técnicos da FDA que analisaram os transgênicos alertaram para os riscos de toxicidade, mas tais advertências foram descartadas tão logo assumiu um cargo importante na agência um representante da Monsanto. Os documentos internos da FDA (obtidos na justiça pela organização americana Alliance for Biointegrity) que mostram isso podem ser consultados aqui http://www.biointegrity.org/. Acesso em 25 ago 2015. 852 Entrevista disponível em https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Revista&id=756. Acesso em 13 jun 2015. 244 precaução é a incerteza quanto aos riscos que deve orientar as medidas a serem tomadas. No que diz respeito à alimentação saudável, os riscos do consumo excessivo de açúcar, sódio e gorduras saturadas, por exemplo, são amplamente conhecidos, e isso serve de fundamento para as orientações dietéticas dirigidas à prevenção de doenças que restringem esse consumo a padrões considerados aceitáveis pela ciência; no caso da precaução, adotada em relação a alimentos transgênicos, é exatamente por se desconhecer os riscos que se deve evitá-los, até que se possa estabelecer sua segurança para o consumo humano. Não foi isso o que aconteceu no Brasil. Se admitíssemos a inutilidade dos alimentos transgênicos do ponto de vista da saúde e da segurança alimentar e tivéssemos adotado o princípio da precaução, os danos apresentados anteriormente como consequência de sua utilização teriam sido evitados, o que mostra a importância do princípio proposto por Jonas, especialmente, em sua forma negativa: “não ponha em perigo as condições necessárias para a conservação indefinida da humanidade sobre a Terra”.853 Destruir a diversidade da vida com a destruição das sementes nativas significa negar o direito à segurança alimentar das gerações futuras. Não se pode considerar que existe segurança alimentar quando uma população não tem poder sobre a semente, por ser esta uma coisa patenteável, que em nada difere de qualquer outra mercadoria. A destruição da semente, entendida como patrimônio da humanidade, ameaça o futuro da humanidade. Diante disso, uma vez que a alimentação saudável, sendo direito essencial à vida, é condição para a realização da destinação humana, as sementes transgênicas, na medida em que se colocam em sentido contrário, tornando logicamente impossível a coexistência do DHAA e da produção de alimentos transgênicos derivados destas sementes, constituem uma ameaça à nossa realização como espécie que tem a moralidade como destinação. 853 JONAS, 2006, op. cit., p. 48. 245 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Estabelecer a alimentação como problema filosófico-prático sobre o qual, como Nutricionista e como docente, tenho a responsabilidade de intervir, foi a condição primeira para a construção deste trabalho, que teve a filosofia de Kant como fio condutor. Tornar moral a escolha alimentar, seguindo a doutrina kantiana da virtude, implica sair do âmbito pragmático- instrumental, aquele que entende a alimentação apenas como meio para manter a vida e a saúde, e entrar no campo da doutrina dos deveres (moral), relacionando liberdade, dignidade e virtude no campo da alimentação. Exige ainda reconhecer que a mais básica das necessidades naturais não pertence apenas ao campo da vida privada, trata-se de um componente da vida também política, da qual a liberdade é inseparável, pela sua relação com a moral e o direito, de modo que a distinção da alimentação como direito social e não político torna-se inapropriada, conforme abordei nesta tese. Como Nutricionista, em primeiro lugar, é preciso estar esclarecida sobre o caráter político da alimentação na vida de um cidadão. E para aproximar a realização do direito à alimentação saudável com o dever de uma alimentação saudável foi preciso considerar o inevitável conflito – que esteve no centro do movimento jusnaturalista – entre o poder do Estado (que tem ainda um dever em relação a esse direito) e a liberdade (interna) do indivíduo (a partir da qual é possível colocar deveres para si mesmo). Apresentei nossa atual realidade de saúde, expressa no perfil alimentar e nutricional, como um escândalo moral; a alimentação, tanto quanto sua falta, não pode não ser também um problema moral, e talvez o maior enfrentado na atualidade, tendo em vista suas consequências para a vida e a sobrevivência de todas as espécies, não apenas da espécie humana. A insegurança alimentar constitui um estado de injustiça social do qual todos devemos buscar sair, dado que somente pela constituição do direito humano à alimentação adequada pode-se assegurar a permanência de uma comunidade, na medida em que a garantia da alimentação para todos assegura a própria existência humana. Por isso, o direito à alimentação foi aqui reconhecido como um direito inato, até mais anterior que o direito à liberdade como estabelece Kant, todavia, ficou claro que, mesmo no estado civil, a garantia jurídica desse direito apresenta-se insuficiente para sua realização efetiva. Por outro lado, é inegável que existe uma abordagem moral dos problemas elencados, que remete à ideia de utilidade do alimento, associada à felicidade, ou seja, considera-se o alimento pelo que ele tem de prazeroso e oferece para a satisfação das nossas necessidades, inclusive de saúde e bem-estar, mas isso se torna problemático quando o próprio alimento constitui hoje um importante fator de risco para diversas patologias que deve ser evitado. 246 Critiquei esse viés utilitarista, presente nas formulações estabelecidas em políticas e programas públicos no Brasil, a partir daquele conflito entre liberdade (como autonomia individual) e poder do Estado, para apontar a necessidade de superação do referencial baseado na utilidade, uma vez que a escolha do que se come está também relacionada à escolha do que é produzido. Foi para enfrentar essa realidade que refleti sobre a necessidade do Nutricionista fundamentar sua prática não somente para garantir a conquista do DHAA, mas para ampliar a esfera de sua realização, no que diz respeito às escolhas individuais e no que se refere ao papel do Estado. Neste sentido, foram importantes as contribuições da filosofia kantiana na abordagem de duas grandes preocupações no campo da segurança alimentar e nutricional: do ponto de vista das políticas públicas, no caso dos transgênicos, defendi a necessidade de exigir o acordo entre a política e a moral; e do ponto de vista individual, apresentei a alimentação saudável como um dever de virtude, reconhecendo que aqui ainda há a necessidade da intervenção do Estado, só que agora no sentido de fomentar o exercício da autonomia. Em ambos os casos, assumo como imprescindível a participação esclarecida do profissional mediante a manifestação pública do seu pensamento. 247 REFERÊNCIAS 1 Textos e Obras de Kant KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Tradução Edson Bini. Bauru, SP: Edipro, 2003. KANT, Immanuel. A paz perpétua e outros opúsculos. Tradução Artur Morão. Lisboa: 70, 1995. Coleção “Textos Filosóficos”. KANT, Immanuel. A religião nos limites da simples razão. Tradução Artur Mourão. Lisboa: 70, 1992. KANT, Immanuel. Antropologia de um ponto de vista pragmático. Tradução Clélia Aparecida Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006. KANT, Immanuel. Anúncio do término próximo para um tratado de paz na filosofia. Tradução Valério Rohden. Ethic@. Florianópolis, v. 5, n. 2, p. 221-233, dez. 2006. KANT, Immanuel. Começo Conjectural da história humana. Tradução de Edmilson Menezes. São Paulo, UNESP, 2010. KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Tradução Valério Rohden e Antônio Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993. KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Tradução Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2002. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985. KANT, Immanuel. Direito Natural Feyerabend. Tradução Fernando Costa Mattos. Cadernos de Filosofia Alemã. nº 15 – p. 97-113 – jan.-jun. 2010, p. 105. KANT, Immanuel. Ensaio introdutório à determinação do conceito de uma raça humana de Immanuel Kant. Tradução Alexandre Hahn. Kant e‐Prints. Campinas, série 2, v. 7, n. 2, p. 07‐ 27, jul./dez., 2012. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafisica dos costumes. Tradução Paulo Quintela. Lisboa: 70, 2014. Coleção “Textos filosóficos”. KANT, Immanuel. Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita. Tradução Artur Morão. In: A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: 70, 1995. Coleção “Textos filosóficos”. KANT, Immanuel. Início conjectural da história humana. Tradução Joel Thiago Klein. Ethic@ Florianópolis v. 8, n. 1 p. 157 - 168 Jun 2009. KANT, Immanuel. Lezioni di ética. Tradução Augusto Guerra. Roma-Bari: Laterza, 1991. 248 KANT, Immanuel. Do carácter da humanidade em geral. Lições sobre Antropologia. Immanuel Kant [1777-76]. Tradução Fernando M. F. Silva. Marília, v. 1, n. 1, p. 265-282, Jan./Jun., 2013, KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes. Tradução Clélia Aparecida Martins (primeira parte); Bruno Nadal Diego Kosbiau; Monique Hulshor (segunda parte). Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista, SP: Universitária São Francisco, 2013. KANT, Immanuel. O conflito das faculdades. Tradução Artur Morão. Lisboa: 70, 1993. Coleção “Textos Filosóficos”. KANT, Immanuel. On Philosophers’ Medicine of the Body (De medicina corporis, quae philosophorum est). Tradução Mary J. Gregor. In: BECK, Lewis White (Ed.). Kant’s Latin Writings: Translations, Commentaries, and Notes. New York: Peter Lang, 1986, p. 228-243. KANT, Immanuel. Progressos da metafísica. Tradução Artur Morão. Lisboa: 70, 1995. Coleção “Textos filosóficos”. KANT, Immanuel. Prolegômenos a toda a metafísica futura. Tradução Artur Morão. Lisboa: 70. Coleção “Textos filosóficos”, v. 13. KANT, Immanuel. Que significa orientar-se no pensamento. Tradução Artur Morão. In: A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: 70, 1995. Coleção “Textos filosóficos”. KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: “o que é o iluminismo?”. Tradução Artur Morão. In: A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: 70, 1995. Coleção “Textos filosóficos”. KANT, Immanuel. Sobre a expressão corrente: Isto pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática. Tradução Artur Morão. In: A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: 70, 1995. Coleção “Textos filosóficos”. KANT, Immanuel. Rumo à paz perpétua. Tradução Heloísa Sarzana Pugliesi. São Paulo: Ícone, 2010. Edição bilíngue. Coleção “Fundamentos do Direito”. 2 Obras gerais ABRAMOVAY, Ricardo. Integrar sociedade e natureza na luta contra a fome no século XXI. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 24(11):2704-2709, nov, 2008. AÇÃO BRASILEIRA PELA NUTRIÇÃO E DIREITOS HUMANOS. ABRANDH. Diretrizes Voluntárias em apoio à realização progressiva do direito à alimentação adequada no contexto da segurança alimentar nacional, Roma, 20-23 de setembro de 2004. – Brasília: Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos, 2005. 44p. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua 1. Belo Horizonte: Humanitas, 2010. 249 ALBUQUERQUE, Miriane Vieira et al. Educação alimentar: uma proposta para redução do consumo de aditivos alimentares. Química Nova Escola, v. 34, n. 2, p. 51-57, maio 2012. ALLAIN, Juliana Mezzomo; NASCIMENTO-SCHULZE, Clélia Maria and CAMARGO, Brígido Vizeu. As representações sociais de transgênicos nos jornais brasileiros. Estud. psicol. (Natal), 14(1), janeiro-abril/2009, pp. 21-30. ALTIERI, Miguel A. & NICHOLS, Clara I. Sementes nativas: patrimônio da humanidade essencial para a integridade cultural e ecológica da agricultura camponesa. In: Horacio Martins de Carvalho (Org.). Sementes: patrimônio do povo a serviço da humanidade. São Paulo: Expressão Popular, 2003, p. 159-172. ALTIERI, Miguel A. & ROSSET, Peter. Dez razões que explicam por que a biotecnologia não garantirá a segurança alimentar, nem protegerá o meio ambiente e nem reduzirá a pobreza no terceiro mundo. In: Horacio Martins de Carvalho (Org.). Sementes: patrimônio do povo a serviço da humanidade. São Paulo: Expressão Popular, 2003, p. 229-243. ANDRIOLI. Antônio Inácio; FUCHS, Richard. (Orgs.). Transgênicos: as sementes do mal. São Paulo: Expressão Popular, 2008. ANDRIOLI, Antônio Inácio. O mito da neutralidade da ciência. Revista Espaço Acadêmico, nº 96, maio de 2009. ANDRIOLI, Antônio Inácio. Transgênicos: produção de alimentos e combate à fome. Revista Espaço Acadêmico, nº 90, novembro de 2008. ANTONIOU, Michael; BRACK, Paulo; CARRASCO, Andrés; FAGAN, John; HABIB, Mohamed, KAGEYAMA, Paulo, LEIFERT, Carlo, NODARI, Rubens Onofre; PENGUE, Walter Pengue. (org.). Soja transgênica: responsável? Sustentável? Bochum, Alemanha- Viena, Áustria: GLS Gemeinschaftsbank eG & ARGE Gentechnik-frei, Setembro, 2010. APOTEKER, Arnaud. Ciência e Democracia: o exemplo dos OGM. In ZANONI, M & FERMENT, G. (Org.). Transgênicos para quem? Agricultura, ciência e sociedade. Brasília: MDA, 2011, p. 82-92. ARAMAYO Roberto R. & ONCINA. Faustino. Etica y antropologia: um dilema kantiano. Granada: Colmares Ed., 1999. ARAÚJO, José Cordeiro de. Análise da Medida Provisória nº 113, de 25 de setembro de 2003. Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados: Estudo Técnico Específico, 29 set. 2003. Documento 2003.4699.032. Disponível em www2.camara.leg.br/documentos-e- pesquisa/...pdf/.../2003_4699.pdf. Acesso 20 jun 2015. AZAMBUJA, Celso Candido. Prometeu: a sabedoria pelo trabalho e pela dor. Archai, n. 10, jan-jul. BACH. Thomas. Insocievole socievolezza all’incrocio di storia della natura e dell’umanità. In: FRIGO. Gian Franco. Bios e anthropos: filosofia, biologia e antropologia. Milano: Guerini Studio. 2007, p. 141-172. 250 BATISTA FILHO, Malaquias; RISSIN, Anete. A transição nutricional no Brasil: tendências regionais e temporais. Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 19, sup. 1, p. 181-191, 2003. BATTAGLIA, Fiorella. Filosofia trascendentale la posizione dell’uomo nella filosofia critica di Kant. 245 f. (Dottorato di Ricerca in Filosofia e Politica) – Università degli Studi di Napoli. Napoli, 2002-2003. BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução Sebastião Nascimento. São Paulo: 34, 2010. BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. Tradução Luiz João Baraúna. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984. Coleção “Os Pensadores”. BERG, Paul; SINGER, Maxine F. The Recombinant DNA Controversy: Twenty Years Later. Perspective, v. 92, p. 9.011-9.013, set. 1995. Disponível em: . Acesso em 20 set. 2014. BERLAN, Jean-Pierre. Ele semeou, outros colheram: a guerra secreta do capital contra a vida e outras liberdades. In: ZANONI, M & FERMENT, G. (org.). Transgênicos para quem? Agricultura, ciência e sociedade. Brasília: MDA, 2011, p. 140-167. BEVILAQUA, Gilberto Antônio Peripolli. et al. Agricultores guardiões de sementes e ampliação da agrobiodiversidade. Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v. 31, n. 1, p. 99-118, jan./abr. 2014. BERTANI, Conrado; PRANTEDA, Maria Antonietta (Org.). Kant e il conflitto delle facoltà: ermeneutica, progresso storico, medicina. Bologna: Il Mulino, 2003. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emmanuel Kant. Tradução Alfredo Fait. São Paulo: Mandarim. 2000. BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Brasiliense, 2005. BOCHICCHIO, Vincenzo. Il laboratorio dell’anima: immagini del corpo nella filosofia de Immanuel Kant. Genova: Il Melangolo, 2006. BOSTROM, Nick. In defense of Posthuman Dignity. Bioethics, v. 19, n. 3, p. 204-214, 2007. BRAGA, Vivian. Cultura alimentar: contribuições da antropologia da alimentação. Saúde em Revista. Piracicaba, v. 6, n. 13, p. 37-44, 2004. BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1991. BRANDT, Reinhard. Il conflito dele facoltà. Determinazione razionale ed eterodeterminazione 251 nell’università kantiana. In: BERTANI Conrado; PRANTEDA, Maria Antonietta (Org.). Kant e il conflitto delle facoltà: ermeneutica, progresso storico, medicina. Bologna: Il Mulino, 2003., p. 13-52. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Brasília: Senado, 1988. Disponível em: . Acesso em 04 mar 2014. BRASIL. Decreto n. 7.272, de 25 de agosto de 2010. Disponível em: . Acesso em 02 jan 2011. BRASIL. Emenda Constitucional n. 64, de 04 de fevereiro de 2010. Disponível em: . Acesso em 04 mar 2014. BRASIL. Lei n. 11.346, de 15 de setembro de 2006b. Disponível em: . Acesso em 28 fev 2010. BRASIL. Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Disponível em: . Acesso em 02 nov 2010. BRASIL. Lei n. 9.279, de 14 de maio de 1996. Disponível em: . Acesso em 02 out 2013. BRASIL. Lei n. 9.456, de 25 de abril de 1997. Disponível em: . Acesso em 05 jun 2012. BRASIL. Decreto n. 5705, de 16 de fevereiro de 2006. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Decreto/D5705.htm. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 687, de 30 de março de 2006a. Disponível em: . Acesso em 20 jan 2011. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 710, de 10 de junho de 1999. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis. Acesso em 10 fev 2010. BRASIL. Relatório Nacional Brasileiro – Cúpula Mundial da Alimentação. Brasília (DF), Ministério das Relações Exteriores, 1996. BRASIL. Lavouras transgênicas – riscos e incertezas: mais de 750 estudos desprezados pelos órgãos reguladores de OGMs/Gilles Ferment...[et al.].– Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2015. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Portaria n. 2715/2011. Disponível em: . Acesso em 04 nov 2012. 252 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Obesidade. Brasília: Ministério da Saúde, 2006c. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Guia alimentar para a população brasileira. 2. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Carências de micronutrientes. Cadernos de Atenção Básica - nº 20. Série A. Normas e Manuais Técnicos. Brasília – DF, 2007. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise de Situação de Saúde. Plano de ações estratégicas para o enfrentamento das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) no Brasil 2011-2022. Brasília: Ministério da Saúde, 2011. Série “Textos Básicos de Saúde”. BRILLAT-SAVARIN, Jean Anthelme. Fisiologia do gosto. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. CAIRUS, Henrique; ALSINA, Julieta. A alimentação na dieta hipocrática. Classica: Revista Brasileira de Estudos Clássicos, v. 20, n. 2, p. 212-238, 2007. CAMPOS, Gastão Wagner de Souza (Org.). Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo-Rio de Janeiro: HUCITEC-FIOCRUZ, 2009. CANESQUI, Ana Maria. (Org.). Antropologia e nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005. Coleção “Antropologia e Saúde”. CARNEIRO, Fernando Ferreira et al. (Org.). Dossiê Abrasco: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro: EPSJV; São Paulo: Expressão Popular, 2015. CARNEIRO, Henrique. Comida e sociedade: uma história da alimentação. Rio de Janeiro: Campus, 2003. CARVALHO, Zilmara de Jesus Viana de. Teleologia e moral na Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. 2013. 183 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. CASCAIS, Fernando. As notas de Madame. Incerteza, risco, precaução, 2007. Disponível em http://www.cecl.com.pt/workingpapers/content/view/15/38/. Acesso 25 jun 2015. CASSIRER, Ernst. Kant, vida y doctrina. Mexico: Fundo de Cultura Económica, 1948. CASTRO. Josué de. Ensaios de biologia social. São Paulo: Brasiliense, 1968. CASTRO. Josué de. Fome um tema proibido: últimos escritos de Josué de Castro. Organização Anna Maria de Castro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CASTRO. Josué de. Geografia da fome: o dilema brasileiro: pão ou aço. 10. ed. Rio de Janeiro: Antares, 1984. 253 CASTRO. Josué de. Geopolítica da fome: ensaios sobre os problemas de alimentação e de população. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1965, v. 2. CASTRO, Josué de. Malthus e o caminho da Perdição. In: Ensaios de biologia social. São Paulo: Brasiliense, 1968, p. 127-133. CASTRO, Josué de. Fome um tema proibido: últimos escritos de Josué de Castro. Anna Maria de Castro (Org.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CHAMBERS, Ephraim. A supplement to Mr. Chambers's cyclopædia: or, universal dictionary of arts and sciences, 1753. Disponível em: . Acesso em 03 jun 2014. CHONCHOL, Jacques. O desafio alimentar: a fome no mundo. São Paulo: Marco Zero. 1987. COELHO, Ana Íris Mendes et al . Dia Mundial da Alimentação: duas décadas no combate aos problemas alimentares mundiais. Rev. Nutr., Campinas, v. 18, n. 3, June 2005 . Disponvel em . Acesso em 10 fev 2015. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2003. COMPARATO, Fábio Konder. Sentido e alcance do processo eleitoral no regime democrático. Estudos Avançados, v. 14, n. 38, p. 307- 320, 2000. COMPARATO, Fábio Konder. Para regenerar a vida política no Brasil. Democracia Viva, n. 28, ago set 2005. CONCEIÇÃO, Jorge Vanderlei Costa da. Anthropologie transscendentalis: uma reorientação da teoria dos juízos em Kant. Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 2, p.131-149 jul.– dez., 2013. CONSELHO FEDERAL DE NUTRICIONISTAS. Resolução n. 380/2005. Disponível em: . Acesso em 04 abr 2012. CORDÁS. Táki Athanássios. Transtornos alimentares: classificação e diagnóstico. Revista de Psiquiatria Clínica, v. 31. n. 4, 2004. Disponível em . Acesso em 24 set 2014. COSTA, Lígia Maura. Os direitos humanos no órgão de solução de controvérsias da OMC: demolindo obstáculos e construindo pontes. Revista de Direito Internacional dos Direitos Humanos, v. 1, n. 1, p. 77-99, jul.-set. 2013. COUTINHO Marília; LUCATELLI, Márcio. Produção científica em nutrição e percepção pública da fome e alimentação no Brasil. Revista Saúde Pública, n. 40 (especial), p. 86-92, ago. 2006. 254 COUTINHO, J. G. et al. A desnutrição e obesidade no Brasil: o enfrentamento com base na agenda única da nutrição. Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 24, sup. 2, p. 332- 340, 2008. CZERESNIA, Dina; FREITAS, Carlos Machado de. Promoção da Saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003. CZERESNIA, Dina. O conceito de saúde e a diferença entre prevenção e promoção. In: CZERESNIA, Dina; FREITAS, Carlos Machado de. Promoção da Saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2003, p. 39-53. DAMATTA, Roberto. Sobre o simbolismo da comida no Brasil. O Correio da Unesco. Rio de Janeiro, v. 15, n. 7, 1987. DE PASQUALE, Carla. La costituzione repubblicana al punto di confluenza fra diritto e morale, ovvero della libertà dello storico. In: BERTANI, Conrado; PRANTEDA, Maria Antonietta (Org.). Kant e il conflitto delle facoltà: ermeneutica, progresso storico, medicina. Bologna: Il Mulino, 2003, p. 171-190. DE SHUTTER, Olivier. Agroecologia e o direito humano à alimentação. Relatório. Tradução Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN). Brasília, DF: MDS, 2012. DESABAFO DE UM AGRICULTOR. Envolverde, 05 dez. 2011. Disponível em: . Acesso em 20 ago 2015. DESCARTES, René. Discurso do método. Tradução Newton de Macedo. Lisboa: Sá da Costa, 1986. DIAS, Maria Cristina Longo Cardoso. Uma reconstrução racional da concepção utilitarista de Bentham: os limites entre a ética e a legislação. 2006. 210 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. DIAS, Maria Cristina Cardoso Longo. Trans/Form/Ação, Marília, v. 38, n. 1, p. 147-166, Jan./Abr., 2015 http://dx.doi.org/10.1590/S0101-31732015000100009. DI DONATO, Francesca. Università, scienza e política nel conflitto dele facoltà di Kant. 4. Il “conflitto” tra le facoltà: principi e condizioni. Bolletino telematico di filosofia política. Disponível em http://btfp.sp.unipi.it/dida/streit/. Acesso em 08 abr 2015. DOMINGO, José L.; BORDONABA, Jordi Giné. 'A Literature review on the safety of genetically modified plants', Environment International, 2011, 37, 734-742. DOMINGO José L. Health Risks of GM foods: many options but few data. Science 2000, 288:1748-9.Toxicity Studies of genetically modifies plants: a review of published literaure. DOMINGO, José L. Toxicity Studies of genetically modifies plants: a review of published literaure. Crit. Rev. Food Sci. Nutr., 2007, 47, 721-33. 255 DRAHOS, Peter. Global Property Rights in Information: the Story of TRIPS at the GATT. Prometheus, v. 13, n. 1, p. 6-19, jun. 1995. DUFUMIER, Marc. Os organismos geneticamente modificados poderiam alimentar o terceiro mundo? In: ZANONI, M & FERMENT, G. (org.). Transgênicos para quem? Agricultura, ciência e sociedade. Brasília: MDA, 2011, p. 268-393. ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes, v. 1. Tradução Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. ENGELHARDT, Dietrich von. Il dialogo fra medicina e filosofia in Kant nel contesto storico. In: BERTANI, Conrado; PRANTEDA, Maria Antonietta (Org.). Kant e il conflitto delle facoltà: ermeneutica, progresso storico, medicina. Bologna: Il Mulino, 2003, p. 253-265. EUROPEAN FOOD SAFETY AUTHORITY. Considerations on the applicability of OECD TG 453 to whole food/feed testing. EFSA Journal, 2013;11(7):3347. FEIJÓ. Fernanda de Matos; BERTOLUCI, Marcello Casaccia; REIS, Cíntia. Serotonina e controle hipotalâmico da fome: uma revisão. Rev Assoc Med Bras 2011; 57(1):74-77. FERMENT, Gilles; FERNANDES, Gabriel; AVANCI, Juliana (Orgs.). Seminário sobre proteção da agrobiodiversidade e direito dos agricultores: propostas para enfrentar a contaminação transgênica do milho. Brasília: MDA, 2010. FERNANDES, Gabriel Bianconi. Os direitos dos agricultores no contexto do tratado de recursos fitogenéticos da FAO. O debate no Brasil. Rio de Janeiro: AS-PTA, 2007. FERNANDES, Gabriel Bianconi. Estudo de caso O Companheiro liberou: o caso dos transgênicos no governo Lula. Relatório de projeto. MAPAS. Monitoramento ativo da participação da sociedade. Dez 2005. FERRANTE, Vera Lúcia Silveira Botta; WHITAKER, Dulce Consuelo Andreatta (Orgs.). Reforma agrária e desenvolvimento: desafios e rumos da política de assentamentos rurais. Brasília: MDA; São Paulo: Uniara, 2008. FERRY, Luc. Uma leitura das três críticas. Tradução Karina Jannini. 2. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010. FISCHLER, Claude. A “McDonaldização” dos costumes. In: Flandrin Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. FISCHLER, Claude & MASSON, Estelle. Comer: a alimentação de franceses, outros europeus e americanos. Tradução de Ana Luiza Ramazzina Guirardi. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2010. FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da alimentação. Tradução Luciano Vieira Machado; Guilherme João de Freitas Teixeira. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. FOOD AND AGRICULTURAL ORGANIZATION – FAO. Building a Common Vision for 256 Sustainable Food and Agriculture: Principles and Approaches. Roma, 2014. Disponivel em: . Acesso em 19 jun. 2015. FOOD AND AGRICULTURAL ORGANIZATION – FAO. Ethical Issues in food and agricultural. Rome, 2001. FAO. Guía para legislar sobre el derecho a la alimentación. Roma, 2010. FAO. O estado da segurança alimentar e nutricional no Brasil: um retrato multidimensional. Brasília, agosto de 2014. FAO, WFP and IFAD. 2012. The State of Food Insecurity in the World 2012. Economic growth is necessary but not sufficient to accelerate reduction of hunger and malnutrition. Rome, FAO. FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. Tradução de Luciano Vieira Machado e Guilherme João de Freitas Teixeira. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. FONNESU, Luca. Sui doveri verso se stessi. A partire da Kant. In: ARAMAYO Roberto R. & ONCINA. Faustino. Etica y antropologia: um dilema kantiano. Granada: Colmares Ed., 1999, Cap. VI. FORESIGHT PROJECT. Global Food and Farming Futures. Future of Food and Farming: Challenges and Choices for Global Sustainability: Final Project Report. London: The Government Office for Science, 2011. Disponível em: . Acesso em 02 mar 2011. FOUCAULT, Michael. Em defesa da sociedade. Tradução Mana Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes,1999. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: v. 1: a vontade de saber. Tradução Maria Thereza da Costa Albuquerque; J. A. Guilhon de Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988. FOUCAULT, Michel. “Qu’est-ce que les Lumières?”. Tradução Wanderson Flor do Nascimento. Magazine Littéraire, nº 207, mai 1984. (Retirado do curso de 5 de Janeiro de 1983, no Collège de France). FRIGO. Gian Franco. Bios e anthropos: filosofia, biologia e antropologia. Milano: Guerini Studio, 2007. FUCHS, Richard. Cultivos transgênicos no mundo: do Canadá à Argentina, da Romênia a China quase 90 milhões de hectares de plantas transgênicas. In: ANDRIOLI, A.I. & FUCHS, R (Org.). Transgênicos: as sementes do mal. A silenciosa contaminação de solos e alimentos. Tradução Ulrich Dressel. São Paulo: Expressão popular, 2008, p. 31-56. FUCK, Marcos Paulo; BONACELLI, Maria Beatriz; CARVALHO, Sérgio Paulino de. Propriedade intelectual em melhoramento vegetal: o que muda com a alteração na Lei de 257 Proteção de Cultivares no Brasil?. Economia & Tecnologia - Ano 03, Vol. 11 – Out./Dez. de 2007, p. 89-98 FUKUYAMA, Francis. Nosso futuro pós-humano: consequências da revolução da biotecnologia. Tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. GADAMER. Hans-Georg. O caráter oculto da saúde. Tradução ntônio Luz Costa. Petrópolis: Vozes, 2006. Coleção Textos filosóficos. GARRAFA V, KOTTOW M, SAADA A (Org.). Tradução Luciana Moreira Prudenzi, Nicolás Nyimi Campanário. Bases conceituais da Bioética: enfoque latino-americano. São Paulo. Editora Gaia, 2006. GEORGE, Susan. O mercado da fome: as verdadeiras razões da fome no mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. GOUYON, Pierre-Henri. O mito do progresso. In: ZANONI, M & FERMENT, G. (org.). Transgênicos para quem? Agricultura, ciência e sociedade. Brasília: MDA, 2011, p. 63-66. GREGOROWIUS, D; LINDEMANN-MATTHIES, P; HUPPENBAUER, M. Ethical discourse on the use of genetically modified crops: a review of Academic publications in the fields of ecology and environmental ethics. J Agric Environ Ethics, Vol. 25, No. 3. (June 2012), p. 265-293. Disponível em http://link.springer.com/article/10.1007/s10806-011-9330-6 Acesso em 13 jun 2015. GUIVANT, Julia S. Transgênicos e percepção pública da ciência no Brasil. Ambiente & Sociedade, v. 9, n. 1, p. 81-105, jan./jun. 2006. GUYER, Paul (org.). Kant. Tradução Cassiano Terra Rodrigues. Aparecida, São Paulo: Ideias & Letras, 2009. HECK, José N. Kant e os princípios de Ulpiano: a erradicação da doutrina do direito natural. Ethic@. Florianópolis, v. 8, n. 2, p. 229-245, dez. 2009. HERNANDEZ, Matheus de Carvalho. Os direitos humanos como temática global e a soberania no sistema internacional pós-Guerra Fria: a Conferência de Viena. 377 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2010. HINSKE, N. Le idee portanti dell’illuminismo tedesco: tentativo di unatipologia. Tradução S. Fabbri Bertoletti. Annali della Scuola Normale Superiore di Pisa: Classe di Lettere e Filosofia, serie 3, v. 15, n. 3, p. 997-1.034, 1985. HINSKE. Norbert. Le cose buone sono tre. La riproposizione della domanda sul progresso nel Conflitto delle facoltà. In BERTANI, Conrado; PRANTEDA, Maria Antonietta (Org.). Kant e il conflitto delle facoltà: ermeneutica, progresso storico, medicina. Bologna: Il Mulino, 2003, p. 191-212. HIPÓCRATES. Scritti scelti. Trento: Orsa Maggiore, 1993. 258 HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. Tradução Christian Viktor Hamm; Valerio Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2005. HÖFFE, Otfried. O imperativo categórico do direito: uma interpretação da “introdução à doutrina do direito”. Studia Kantiana, v. 1, n. 1, p. 203-236, 1998. HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. Tradução Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. IBGE. Censo Agropecuário 2006: agricultura familiar. Rio de Janeiro, 2009. INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS. INESC. Acordo TRIPS: acordo sobre aspectos dos direitos de propriedade Intelectual. - Brasília: INESC, 2003. 72p.: il. (Caderno de estudo; n. 1). JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradução Marijane Lisboa; Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-RJ, 2006. KAC, G.; SICHIERI, R.; GIGANTE, D. P. (Orgs.). Epidemiologia nutricional. Rio de Janeiro: Fiocruz; Atheneu, 2007. KALSING, Rejane Margarete Schaefer. Sobre a honestidade jurídica em Kant. Revista Húmus, n. 4, p. 18-29, jan./fev./mar./abr. 2012. KAPLAN, David M.(ed.). Philosophy of food. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 2012. Disponível em https://books.google.com.br/books?id=idubdeClka0C&pg=PA103&hl=pt- BR&source=gbs_toc_r&cad=3#v=onepage&q&f=false. Acesso em 17 mai 2015. KENT, George. Freedom from Want: The Human Right to Adequate Food. Washington, D.C.: Georgetown University Press, 2004, p. 46. Disponivel em: . Acesso em 05 jan. 2015. KERSTING, Wolfgang. Política, liberdade e ordem: A filosofia política de Kant. In: GUYER, Paul (org.). Kant. Tradução de Cassiano Terra Rodrigues. Aparecida, São Paulo: Ideias & Letras, 2009. KING. Roger J. H. Comendo bem: pensando a comida eticamente. In: ALLHOFF, F.; MONROE, D. (Org.). Comida e filosofia: coma, pense e seja feliz. Tradução Marina Herrmann Rio de Janeiro: Tinta Negra, 2012. KLEIN, Joel Thiago. A sociabilidade insociável e a antropologia kantiana. Revista Filosofia Aurora. Curitiba, v. 25, n. 36, p. 265-285, jan./jun. 2013. KLEIN, Joel Thiago. Kant sobre o progresso na história. Ethic@. Florianópolis, v. 12, n. 1, p. 67-100, jun. 2013. KLEIN, Joel Thiago. A resposta kantiana à pergunta: que é esclarecimento. Ethic@. 259 Florianópolis v. 8, n. 2 p. 211 - 227 Dez 2009. KLEIN, Joel Thiago. O problema da fundamentação de uma história universal no sistema crítico-transcendental de Kant. 132f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, 2008. KLEIN, Joel Thiago. Os fundamentos teóricos e práticos da filosofia kantiana da história no ensaio “Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita”. Studia Kantiana, v. 9, p. 161-186, 2009. LACEY, Hugh. A controvérsia sobre os transgênicos: questões científicas e éticas. Tradução Paulo Mariconda. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2006a. LACEY, Hugh. Valores e atividade científica 1. Tradução Marcos Barbosa de Oliveira; Eduardo Salles de Oliveira Barra; Carlos Eduardo Ortolan Miranda. 2. ed. São Paulo: 34, 2008. LACEY, Hugh. Há alternativas ao uso dos transgênicos? Novos Estudos, 78, CEBRAP, julho, 2007, p. 31- 39. LACEY, Hugh. Relações entre fato e valor. Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria. v. 9, n.16, jul./dez., 2006b, p. 251-266. LACEY, Hugh et al. Transgênicos: malefícios, invasões e diálogo. Jornal da Ciência, n. 5.167. 30 abr. 2015. Disponível em: . Acesso em 02 fev 2015. LAFFER, Celso. A ONU e os Direitos humanos. Estudos Avançados 9 (25), 1995. LANDABURE PB. Pedro Escudero: his thoughts, his doctrine and his works. Prensa Med Argent 1968;55(41):1983-9. LA ROCCA, Claudio. La prima voce. Libertà come passione nell’antropologia kantiana. In: ARAMAYO, Roberto R. & ONCINA. Faustino. Etica y antropologia: um dilema kantiano. Granada: Colmares Ed., 1999, cap. IV. LATHAM, Jonathan. How the Great Food War Will Be Won. Independent Science News, 12 jan. 2015. Disponível em: . Acesso em 20 mar 2015. LATHAM, Jonathan. Growing doubt: a scientist’s experience on GMO. Disponível em http://www.independentsciencenews.org/health/growing-doubt-a-scientists-experience-of- gmos/. Acesso em 20 mar 2015. LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido. Mitológicas. Vol. 1. São Paulo: Cosac & Naify, 2004 LIFSCHITZ, Javier. Alimentação e cultura: em torno do natural. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 7, n. 21, p. 69-83, 1997. LONDRES, Flavia; VON DER WEID, Jean Marc. Transgênicos: implicações técnico- 260 agronômicas, econômicas e sociais. Rio de Janeiro: AS-PTA, set. 2003. LYOTARD, Jean-François. El entusiasmo: crítica kantiana de la historia. Traducción de Alberto L. Bixio. Barcelona: Gedisa, 2009. MACHADO, Luiz Carlos Pinheiro; MACHADO FILHO, Luiz Carlos Pinheiro; RIBAS, Clarilton D. E. C. Sementes, direito natural dos povos. In: Horacio Martins de Carvalho (org.). Sementes: patrimônio do povo a serviço da humanidade. São Paulo: Expressão Popular, 2003, p. 245-257. MACOR, Laura Anna. L’accezione kantiana di bestimmung menschen e sua prima ricezione (1784-1793). Kant e-Prints. Campinas, série 2, v. 3, n. 2, p. 211-222, jul./dez. 2008. MALTHUS, Thomas Robert. Ensaio sobre a população. Tradução Antônio Alves Cury, São Paulo: Nova Cultural, 1996. MANIATOGLOU, Maria da Piedade Faria. Dicionário grego-português, português-grego. Porto: Porto, 2004. MARIANETTI, Massimo. Vivere, invecchiare ed essere vecchi: Kant e Christoph Wilhelm Hufeland. Pisa: Istituti Editoriali e Poligrafici, 1999. MARICONDA, Pablo Rubén. Epistemologia e ética na liberação comercial de sementes GM pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança CTNBio. Scientiæ Studia, São Paulo, v. 12, n. 4, pp. 767-83, 2014. MARICONDA, Pablo Rubén. O controle da natureza e as origens da dicotomia entre fato e valor. Scientiae Studia, São Paulo, v. 4, n. 3, 2006, p. 453-72. MARICONDA, Pablo & LACEY, Hugh. A águia e os estorninhos. Galileu e a autonomia da ciência. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, São Paulo, 13(1): 49-65, maio de 2001. MARQUES, Ubirajara Rancan de Azevedo. Kant e a epigênese a propósito do “inato”. Scientiæ Studia, São Paulo, v. 5, n. 4, p. 453-70, out./dez. 2007. MATTE, Ursula. Histórico de fatos relevantes em genética. Disponível em http://www.ufrgs.br/bioetica/crogen.htm. Acesso em 20 ago 2014. MENASCHE, Renata. Os grãos da discórdia e o risco à mesa: um estudo antropológico das representações sociais sobre os cultivos e alimentos transgênicos no Rio Grande do Sul. 2003. 279 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003. MENASCHE, R. Os grãos da discórdia e o trabalho da mídia. Opin Públic 2005; 11(1):169- 191. MINTZ, S. W; DU BOIS, C. M. The Antropology of Food and Eating. Annu. Rev. Anthropol. v. 31, p. 99-l19, out. 2002. doi:10.1146/annurev.anthro.32.032702.131011. MONTEIRO, Carlos Augusto; MONDINI Lenise. Mudanças no padrão de alimentação na 261 população urbana brasileira (1962-1988). Revista de Saúde Pública, v. 28, n. 6, p. 433-439, dez. 1994. MONTEIRO, Carlos Augusto A dimensão da pobreza, da desnutrição e da fome no Brasil. Estudos Avançados, v. 17, n. 48, p. 7-20, 2003. MONTEIRO, Carlos Augusto et al. Da desnutrição para a obesidade: a transição nutricional no Brasil. In: MONTEIRO, Carlos Augusto (Org.) Velhos e novos males da saúde no Brasil: a evolução do país e suas doenças. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2000, p. 247-255. MONTEIRO, Carlos Augusto; CONDE, Wolney L.; POPKIN, Barry M. The burden of disease from undernutrition and overnutrition in countries undergoing rapid nutrition transition: a view from Brazil. American Journal of Public Health, v. 94, n. 3, p. 433-434, maio/ago. 2003. MOTTA-GALLO, Sofia Karlla Almeida. Comportamento alimentar e mídia: a influência da televisão no consumo alimentar de crianças do Agreste Meridional Pernambucano, Brasil. 2010. 192p. Tese (Doutorado em Saúde Pública) – Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. MOURA, Neila Camargo de. Influência da mídia no comportamento alimentar de crianças e adolescentes. Segurança Alimentar e Nutricional, Campinas, 17(1): 113-122, 2010. MURCOTT, A. Sociological and social anthropological approaches to food and eating. World Review of Nutrition and Dietetics, n. 55, p. 1-40, 1988. NADAI, Bruno. Progresso e moral na filosofia da história de Kant. 2011. 306 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. NASCENTES, Antenor (Org.). Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1955. NILLES, Bernd. Jamais patentear a vida. In: Horacio Martins de Carvalho (Org.). Sementes: patrimônio do povo a serviço da humanidade. São Paulo: Expressão Popular, 2003, p.113-133. NOUR, Soraya. Os cosmopolitas: Kant e os “temas kantianos” em relações internacionais. Contexto Internacional. Rio de Janeiro, v. 25, n. 1, p. 7-16, jan./jun. 2003. OLIVEIRA, Bernardo Jefferson de. Francis Bacon e a fundamentação da ciência como tecnologia. Belo Horizonte: UFMG, 2010. OLIVEIRA, Bernardo Jefferson de. A legitimação do novo ethos cientifico. In: OLIVEIRA, Bernardo Jefferson de. Francis Bacon e a fundamentação da ciência como tecnologia. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010, p. 203-227. OLIVEIRA, Marcos Barbosa de. Neutralidade da ciência, desencantamento do mundo e controle da natureza. Scientia Studia. São Paulo, v. 6, n. 1, p. 97-116, 2008. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Alto Comissariado de Direitos Humanos. Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Comentário Geral n. 12: Direito Humano 262 à Alimentação Adequada, 1999. Disponível em: . Acesso em 02 out 2012. ONU. Alto Comissariado de Direitos Humanos. Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Comentário geral n. 3: A natureza das obrigações dos Estados- partes, art. 2º §1º do Pacto, 1999. Disponível em http://www.dhnet.org.br/dados/cursos/dh/br/pb/dhparaiba/2/c3.html. Acesso em 02 out 2012. ONU. Doc. A.2929, Cap. I, 21, 1955. Disponível em http://humanrightsdoctorate.blogspot.com.br/2010/07/un-doc-a2929-annotations-on- covenants.html. Acesso em 20 jan 2015. ONU. Declaração de Viena e Programa de Ação, 1993. Disponível em: . Acesso em 10 mai 2012. ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em: . Acesso em 20 mar. 2014. ONU. Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, 1986. Disponível em http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Direito-ao-Desenvolvimento/declaracao-sobre- o-direito-ao-desenvolvimento.html. Acesso em 20 dez 2014. ONU. Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, 1966. Disponível em . Acesso em 10 fev 2011. ONU. ECONOMIC, SOCIAL AND CULTURAL RIGHTS. The right to food Report by the Special Rapporteur on the right to food, Mr. Jean Ziegler. E/CN.4/2001/53 7 February 2001. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Organização Mundial da Saúde. Doenças crônico-degenerativas e obesidade: estratégia mundial sobre alimentação saudável, atividade física e saúde. Brasília, 2003. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Organização Mundial da Saúde. Frequently Asked Questions on Genetically Modified Foods. Disponível em: . Acesso em 20 maio 2015. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Organização Mundial da Saúde. Obesity: Preventing and Managing the Global Epidemic. Geneva, 2000. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Organização Mundial da Saúde. World Health Report: Reducing Risks, Promoting Healthy Life. Genevra, 2002. Disponível em: . Acesso em 04 mar 2015. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. FAO. Diretrizes voluntárias para a realização progressiva do direito humano à realização adequada no contexto da segurança alimentar nacional. Roma, 2015. ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE (OPS). Doenças crônico-degenerativas 263 e obesidade: estratégia mundial sobre alimentação saudável, atividade física e saúde. OPS: Brasília, 2003. PACKER, Larissa Ambrosano (autor). ALMEIDA, Ana Carolina Brolo de (colaborador), REIS, Maria Rita (colaborador). Biodiversidade como Bem Comum: Direitos dos Agricultores, Agricultoras, Povos e Comunidades Tradicionais. Terra de Direitos, 2010. PEREIRA, João Márcio Mendes; SAUER, Sérgio. A “reforma agrária assistida pelo mercado” do Banco Mundial no Brasil: dimensões políticas, implantação e resultados. Revista Sociedade e Estado, v. 26, n. 3, set./dez. 2011. PERES, F.; MOREIRA, J. C. (Orgs.). É veneno ou é remédio? Agrotóxicos, saúde e ambiente. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003. PEREZ, Daniel Omar. Os significados da história em Kant. Philosophica. Lisboa, n. 28, p. 67- 107, 2006. PETERSEN, Paulo et al. Sementes ou grãos? Lutas para desconstrução de uma falsa dicotomia. Agriculturas, v. 10, n. 1, p. 36-45, mar. 2013. PINZANI, Alessandro. O papel sistemático das regras pseudo-ulpianas na Doutrina do Direito de Kant. Studia Kantiana, n. 8, p. 94-120, 2009. PINZANI, Alessandro. Costretti alla libertà? Sulla filosofia della storia kantiana e sul concetto di autonomia in essa implicito. In: PINZANI, Alessandro; MONETI, Maria. Diritto, politica e moralità in Kant. Milano: Mondadori, 2004, p. 37-49. PINZANI, Alessandro. Sul rapporto tra morale, politica e diritto in Kant. In: PINZANI, Alessandro; MONETI, Maria. Diritto, politica e moralità in Kant. Milano: Mondadori, 2004, p. 89-106. PINZANI, Alessandro; MONETI, Maria. Diritto, politica e moralità in Kant. Milano: Mondadori, 2004. PLATÃO. Protágoras, Górgias, Fedão. Tradução Carlos Alberto Nunes. 2. ed. Belém: UFPA, 2002. POLLAN, Michael. Playing God in the Garden. New York Times Magazine, October 25, 1998. POLÔNIO, Maria Lúcia Teixeira; PERES, Frederico. Consumo de aditivos alimentares e efeitos à saúde: desafios para a saúde pública brasileira. Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 25, n. 8, p. 1.653-1.666, ago. 2009. PORTER, Roy. Enlightenment: Britain and the Creation of the Modern World. Penguin Books: London, 2001. PORTER, Roy. The Enlightment in England: Excerpt. In: PORTER, Roy; TEICH, Milulás (Eds.). Enlightenment in the National Context. Cambridge University Press, 1981. 264 POULAIN, Jean-Pierre. Alimentazione, cultura e società. Traduzione: Aldo Pasquali. Bologna: Il Mulino, 2008. POZZO, Riccardo; OBERHAUSEN, Michael. The Place of Science in Kant’s University. History of Science, v. 40, n. 3, p. 353-368, 2002. Disponível em: . Acesso em 10 out 2014. PRIOSTE, Fernando Gallardo Vieira & HOSHINO, Thiago de Azevedo Pinheiro. Empresas transnacionais no banco dos réus: Violações de Direitos Humanos e Possibilidades de Responsabilização. Curitiba: Terra de Direitos, 2009 PUSZTAI, Arpad. Can science give us the tools for recognizing possible health risks of GM food? Nutr. Health, v. 16, p. 73-84, 2002. QUINTSLR, Marcia Maria Melo (Coord.). Pesquisa de orçamentos familiares: 2008-2009: antropometria e estado nutricional de crianças, adolescentes e adultos no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 2010. RAMOS, Elisa Maria Rudge. Evolução histórica dos direitos sociais. Disponível em http://www.lfg.com.br. 19 de dezembro de 2008. Acesso em 10 out 2014. RAMOS, Elisa Maria Rudge. Os direitos sociais: direitos humanos e fundamentais. Disponível em http://www.direitosociais.org.br/author/elisa-maria-rudge-ramos/. 17 de dezembro de 2012. Acesso em 10 out 2014. REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. Tradução Ivone Castilho Benedetti. Martins Fontes: São Paulo, 2004. RIBEIRO, Sílvia. Camponeses, biodiversidade e novas formas de privatização. In: Horacio Martins de Carvalho (Org.). Sementes: patrimônio do povo a serviço da humanidade. São Paulo: Expressão Popular, 2003, p. 51-72. ROBIN, Marie-Monique. O mundo segundo a Monsanto: da dioxina aos transgênicos, uma multinacional que quer o seu bem. Tradução Cecília Lopes & Georges Kormikiaris. São Paulo: Radical Livros, 2008. ROHDEN, Valério. A crítica da razão prática e o estoicismo. Doispontos. Curitiba; São Carlos, SP, v. 2, n. 2, p. 157-173, out., 2005. ROHDEN, Valério. A gênese do conceito de fórmula em Cícero e sua reformulação no imperativo categórico de Kant. Conjectura. Caxias do Sul, v. 17, n. 1, p. 16-41, jan./abr. 2012. ROHDEN, Valério. O humano e o racional na ética. Studia Kantiana, v. 1, n. 1, p. 307-321, 1998. ROHDEN, Valério. Sociabilidade legal: uma ligação entre direito e humanidade na terceira crítica. Analytica, v. 2, n. 1, p. 97-106, 1994. ROSEN, George. Uma história da saúde pública. São Paulo: Hucitec-Abrasco, 1994. 265 ROSSET, Peter. A fome no terceiro mundo e a engenharia genética: uma tecnologia apropriada? In: Horacio Martins de Carvalho (Org.). Sementes: patrimônio do povo a serviço da humanidade. São Paulo: Expressão Popular, 2003, p. 135-156. ROSSI, Alessandra; MOREIRA, Emília Addison Machado; RAUEN, Michelle Soares. Determinantes do comportamento alimentar: uma revisão com foco na família. Rev. Nutr., Campinas, 21(6):739-748, nov./dez., 2008. SALOMON, Jean-Jacques. Sobreviver à ciência: uma certa ideia do futuro. Tradução de Antonio Viegas. Instituto Piaget: Lisboa, 1999. SANTOS, Leonel Ribeiros dos. Da experiência estético-teleológica da natureza à consciência ecológica: uma leitura da Crítica do Juízo de Kant. Trans/Form/Ação, São Paulo, 29(1): 7-29, 2006. SANTOS, Charles Morphy D. & ZUCOLOTO, Fernando S. Argumentos falaciosos que camuflam os OGMs. Scientific American Brasil, 122, 2012, p. 54-57. SANTOS, Robinson dos. Responsabilidade e consequencialismo na ética de Hans Jonas. Rev. Filos. Aurora, Curitiba, v. 24, n. 35, p. 417-433, jul./dez. 2012. SCOTT-DIXON, Krista. What Do Cyborgs Eat? Oral Logic in an Information Society. Meso- RX, 20 jan. 2000. Disponível em: . Acesso em Acesso 20 mai 2015. SCHMIDT, James. What counts as an Answer to the question “what is enlightenment”. Talk for the Philosophy Department, Boston University, 2011. Disponível em http://people.bu.edu/jschmidt/James_Schmidt/Welcome_files/What%20Counts.pdf. Acesso em 20 abr 2015. SEMINÁRIO DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES: A PROTEÇÃO INTERNACIONAL, 25 de outubro de 2010. V Conferência Nacional de Direitos Humanos. Antônio Augusto Cançado Trindade. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/cancadotrindade/cancado_bob.htm. Acesso em 08 fev 2015. SEMINÁRIO DE MERCADO DE AGROTÓXICO E REGULAÇÃO, 11 de abril de 2012. [Trabalhos apresentados]. Brasília: Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa; Universidade Federal do Paraná – UFPR. SÉRALINI, Giles-Eric. Transgênicos, poderes, ciência, cidadania, p. 38. In: ZANONI, M & FERMENT, G. (Org.). Transgênicos para quem? Agricultura, ciência e sociedade. Brasília: MDA, 2011 p. 32-38. SÉRALINI, G-E.; CLAIR, E.; MESNAGE, R.; GRESS, S.; DEFARGE, N.; MALATESTA, M.; HENNEQUIN, D.; VENDOMOIS, J. Long term toxicity of a Roundup herbicide and a Roundup-tolerant genetically modified maize. Food Chem Toxicol, 2012: 50, 4221-4231. SÉRALINI, G-E.; CLAIR, E.; MESNAGE, R.; GRESS, S.; DEFARGE, N.; MALATESTA, M.; HENNEQUIN, D.; VENDOMOIS, J. Republished study: long-term toxicity of a Roundup 266 herbicide and a Roundup-tolerant genetically modified maize. Environmental Sciences Europe, 2014, 26:14. SEN, Amartya. Sobre ética e economia. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras,1999. SHIVA, Vandana. Il bene comune della terra. Tradução Roberta Scafi. Milano: Feltrinelli, 2006. SHIVA, V. Monocultures of the mind: perspectives on biodiversity and biotechnology. New York: Zed books and third world network, 1997a. SHIVA, V. The violence of the green revolution. New York: Zed Books Ltd, 1997b. SHIVA, Vandana. Seeds of doubt. Disponível em http://www.newyorker.com/magazine/2014/08/25/seeds-of-doubt. Acesso em 21 mai 2015. SILVA, Maria Ozanira da Silva e. Participação social nas políticas de segurança alimentar e nutricional. Revista de Políticas públicas. 2005, 9, (2). SIMMEL, Georg. Sociologia da refeição. Tradução de Edgar Malagodi. Estudos históricos. Rio de Janeiro, n. 33, jan-jun 2004, p. 159-166. SINGER, Peter. Famine, affluence, and morality. Philosophy and public affairs. Vol. 1, nº 3, Spring, 1972, 229-242. SINGER, Peter; MASON, Jim. A ética da alimentação: como nossas escolhas alimentares influenciam o meio ambiente e nosso bem-estar. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. SINGER, P. Um só mundo: a ética da globalização. Tradução Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Martins Fontes, 2004. SMITH, Jeffrey M. Roleta genética: riscos documentados dos alimentos transgênicos sobre a saúde. São Paulo: João de Barro, 2009. SOARES, Sônia. Medicina filosófica: as relações entre medicina e filosofia na Grécia antiga e em Kant. 2008. 133 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2008. SOARES, S. ; LUZ, A. B. S. ; NASCIMENTO, C. D. ; FREIRE, L. P. F. ; BEZERRA, M. S. . A rotulagem de produtos contendo milho transgênico: um estudo de caso em Natal/RN. In: XXII CONBRAN E III Congresso Ibero-Americano de Nutrição. Rio de Janeiro: ASSOCIAÇAO BRASILEIRA DE NUTRIÇÃO, 2012a, v. 4. SOARES, S. ; BATISTA, L. M. M. ; NUNES, G. ; NASCIMENTO, A. M. S. ; MEDEIROS, J. C. . A rotulagem do óleo de soja transgênica: um estudo de caso em Natal/RN. In: World Nutrition Rio 2012, Rio de Janeiro, 2012b. SOUZA, Emerson Maione de. A escola inglesa de relações internacionais e o direito internacional. Mural Internacional. Ano IV, n. 1, junho 2013. 267 TARABORRELLI, Angela. Cosmopolitismo: dal citadino del mondo al mondo dei cittadini. Saggio su Kant. Trieste: Asterios, 2004. TERNAY, Henri d’Aviou de. Kant e a Revolução Francesa. Síntese Nova Fase, n. 47, p. 13- 28, 1989. TESTART, Jacques. Plantas transgênicas: inúteis e perigosas. In: ZANONI, Magda; FERMENT, Gilles. (Orgs.). Transgênicos para quem? Agricultura, ciência e sociedade. Brasília: MDA, 2011a, p. 221-238. TESTART, Jacques. A conferência dos cidadãos: uma ferramenta preciosa para a democracia. In: ZANONI, M & FERMENT, G. (Org.). Transgênicos para quem? Agricultura, ciência e sociedade. Brasília: MDA, 2011b, p. 400-404. TICCIATI, Laura; TICCIATI, Robin. Genetically Engineered Foods: Are They Safe? You decide. New Canaan, CT: Keats, 1998. TOSI, Giuseppe. O significado e as conseqüências da Declaração Universal de 1948. In: ZENAIDE, Maria de Nazaré Tavares et al (org.). Direitos Humanos: capacitação de educadores. João Pessoa: UFPB, 2008, p. 49-56. TREDANARO, Emanuele. Liberdade como eleuteronomia nos Metaphysische Anfangsgründe der Tugendlehre de Kant, ANPOF, 2014. Disponível em http://www.anpof.org/portal/index.php/pt-BR/agenda-encontro-2/user-item/475- sergiomariz/139-agenda-xvi-encontro/10898-liberdade-como-eleuteronomia-nos- metaphysische-anfangsgruende-der-tugendlehre-de-kant. Acesso em 10 jul 2015. TUCÍDIDES. História da guerra do Peloponeso. Tradução Mário Gama Kury. Brasília: Editora UnB, 1987. VASCONCELOS, Francisco de Assis Guedes de. Tendências históricas dos estudos dietéticos no Brasil. História, Ciências, Saúde: Manguinhos. Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 197-219, jan./mar. 2007. VASCONCELOS, Francisco de Assis Guedes de; BATISTA FILHO, Malaquias. História do campo da alimentação e nutrição em saúde coletiva no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 16, n. 1, p. 81-90, jan. 2011,. VEIGA, José Eli (Org.). Transgênicos: sementes da discórdia. São Paulo: Senac, 2007. VELLOSO, Lício A. O controle hipotalâmico da fome e da termogênese: implicações no desenvolvimento da obesidade. Arq Bras Endocrinol Metab, São Paulo , v. 50, n. 2, p. 165-176, Apr. 2006. VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Trad. Haiganuch Sarian. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. VIEIRA, Antônio. Sermão da visitação de Nossa Senhora. Disponível em: . Acesso em 06 maio 2015. 268 WENDHAUSEN, Águeda. O duplo sentido do controle social: (des) caminhos da participação em saúde. Disponível em http://hygeia.fsp.usp.br/cepedoc/trabalhos/Trabalho%20543.htm. Acesso em 13 maio 2015. WILKINSON, J.; CASTELLI, P. A transnacionalização da indústria de sementes no Brasil: biotecnologias, patentes e biodiversidade. Rio de Janeiro: ActionAid Brasil, 2000. WILSON, Holly L. Kant’s pragmatic antropology: its origin, meaning and critical significance. SUNY series in Philosophy, 2006. WOOD, Allen. Kant’s Ethical Thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. WOOD, Allen. Kant. Tradução de Delamar Volpato Dutra. Porto Alegre: Artmed, 2008. WOOD, Allen. Kant and the problem of human nature. Disponível em http://philpapers.org/rec/WOOKAT-2. Acesso em 3 jan 2015. XENOFONTE. Econômico. Tradução de Anna Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ZANONI et al. O biorrisco e a comissão técnica nacional de biossegurança: Lições de uma experiência. In: ZANONI, M & FERMENT, G. (Org.),COMPLETAR, pp. 244-276 ZENAIDE, Maria de Nazaré Tavares et al (org.). Direitos Humanos: capacitação de educadores. João Pessoa: UFPB, 2008, p. 49-56. ZIEGLER, Jean. “Combate à pobreza precisa de mudança de 180° no Brasil”, diz ex- relator da ONU. Disponível em: . Acesso em 26 out. 2014. Entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos. ZIEGLER, Jean. Dalla parte dei deboli: il diritto all’alimentazione. Tradução Monica Fiorini. Milano: Marco Tropea, 2004. ZIEGLER, Jean. Destruição em massa: geopolítica da fome. Tradução de José Paulo Netto. São Paulo: Cortez Editora, 2013.