0 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MARIA DO CARMO FERNANDES LOPES ESCREVER E AVALIAR TEXTOS ARGUMENTATIVOS: SABERES DOCENTES EM AÇÃO NATAL−RN 2014 1 MARIA DO CARMO FERNANDES LOPES ESCREVER E AVALIAR TEXTOS ARGUMENTATIVOS: SABERES DOCENTES EM AÇÃO Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte dos requisitos para obtenção do título de doutora em Educação. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Marly Amarilha NATAL−RN 2014 2 3 ESCREVER E AVALIAR TEXTOS ARGUMENTATIVOS: SABERES DOCENTES EM AÇÃO por Maria do Carmo Fernandes Lopes Tese examinada e aprovada pelo Programa de Pós-Graduação, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como um dos requisitos para a obtenção do título de doutora em Educação, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Marly Amarilha. BANCA EXAMINADORA _________________________________________ Prof.ª Dr.ª Marly Amarilha Orientadora _________________________________________ Prof.ª Dr.ª Leiva de Figueiredo Viana Leal Examinador Externo _________________________________________ Prof.ª Dr.ª Luci Banks-Leite Examinador Externo _________________________________________ Prof.ª Dr.ª Maria Bernadete Fernandes de Oliveira Examinador Interno _________________________________________ Prof.ª Dr.ª Marta Araújo Examinador Interno _________________________________________ Prof.ª Dr.ª Telma Ferraz Leal Suplente Externo _________________________________________ Prof.ª Dr.ª Alessandra Cardozo de Freitas Suplente Interno Natal−RN, ______ de_____________ de _________. 4 Para meus pais, Cosme e Delmira (in memoriam), de quem herdei a intransferível herança da educação para a vida. Para os meus irmãos, que sonharam comigo o meu sonho. Para Marly, mestra de todos os ensinamentos; amiga de toda uma vida. Para Sylvia, que muito sabe e que tudo ensina em generosa partilha. 5 AGRADECIMENTOS A Deus, que, por sua singular onisciência, sempre me guiou os passos nas veredas mais intransponíveis. Aos professores e alunos, sujeitos anônimos nessa menção, que me concederam o privilégio da autoria de suas histórias de ensino-aprendizagem do texto escrito. À professora Marly, que, com inefável sabedoria, orientou os muitos caminhos a percorrer na construção de mais esta “trajetória de sentidos”. À professora Bernadete, que me ensinou – para além dos saberes disciplinares – o verdadeiro sentido do “ser para o outro na vida e na arte”. À professora Leiva, por tão instigante mediação, sempre reveladora e consequente. À professora Marta Araújo, com quem aprendi a construir pontes entre saberes tão imprescindíveis à minha formação como educadora. À professora Aparecida Queiroz, pela competente intervenção na fase embrionária desta escritura. Aos colegas do “polifônico” grupo de Bakhtin (Ailton, Andrea, Araceli, Janaina, Jefferson, João Palhano, Marília, Penha, Renata, Rosinha e Zilmar), com quem partilhei dúvidas e com quem aprendi (entre tantos indizíveis saberes) que “nada sou, senão na relação com a alteridade”. À minha família, que insistente e silenciosamente lutou ao meu lado. A José, por sua admirável transigência. Aos colegas do grupo de literatura (Alessandra, Daniele, Ivan, Maurílio, Nazineide), com quem “combati o bom combate”. Às mãos sementeiras, que semearam fios de discursos (Sylvia e Nubiacira); que “transplantaram” caligrafias (Nubiacira, Alessandra, Veneranda, Aldemir, Socorro, Osnilda, Elisa, Ivoneide, Nazineide, Ailton, Kalyne e Lúcia); que, postando- se em prece, regaram muitas ideias com suas orações (meus parentes, meus amigos...). Aos anjos da messe: Aldemir, Augusto, Dani, Edileuda, Gija, Ivan Cabral, Ivoneide, José, Lara, Lourdes Aquino, Noelle, Nubiacira, João Palhano, Rejane, Sandra Barros, Selma Alas, Socorro e Sylvia. 6 Que Deus me conceda falar com inteligência e um pensar semelhante a este dom, pois ele não só mostra o caminho da Sabedoria, mas também dirige os sábios; nas suas mãos estamos nós, nossas palavras, toda a inteligência e a perícia do agir. Sab. 7, 15-16 7 RESUMO Com o propósito de desvelar a natureza e a pertinência dos saberes por que se orienta o professor no processo de avaliação do texto argumentativo, configurado no gênero artigo de opinião, produzido em situação escolar, investigam-se textos escritos por alunos de duas turmas do 3º ano do Ensino Médio, de uma escola da rede pública de Natal−RN, e por seus respectivos professores. O corpus analisado perfaz um total de dezesseis textos, sendo quatro deles correspondentes à produção de dois docentes (duas produções por professor) e doze referentes à produção de seis alunos (duas produções por aluno, sendo três alunos por turma). Todo o material relativo à produção desses sujeitos foi coletado ao longo do ano letivo de 2008, com especial tratamento para as produções discentes, que somente eram recolhidas após serem submetidas à avaliação docente. Fazendo ancoragem em saberes da linguística textual, da análise do discurso, da teoria da enunciação e da estética da recepção, procedeu-se à análise das produções, que, observando a proposta metodológica, se realizou em duas etapas: em um primeiro momento, analisaram-se as produções discentes e docentes, em separado, tendo por fim verificar que saberes sobre o objeto esses sujeitos revelavam já haver assimilado. Em um segundo momento, compararam-se os dois conjuntos (os textos de cada professor com os textos de seus respectivos alunos). A pretensão consistia em desvendar a existência (ou não) de uma conexão entre os saberes subjacentes à produção textual desses professores e aqueles saberes por eles manifestos no ato avaliativo quando das intervenções realizadas sobre as produções dos aprendizes. Constatou-se que há uma estreita correlação entre os saberes revelados nessa ação e aqueles evidenciados em suas produções escritas, o que se constitui em um forte argumento para validar a tese de que os professores se mostram, ainda, pouco proficientes no desempenho de seu papel de produtores e avaliadores de textos. Palavras-Chave: Saberes docentes. Avaliação. Texto argumentativo. Artigo de opinião. 8 ABSTRACT This study has investigated texts written by students from two high school- 3rd grade classrooms, a public school in Natal- RN, and their teachers in order to reveal the nature and relevance of the knowledge that has oriented the teacher in the process of evaluation of argumentative text, set in the genre, opinion article, produced in the school setting. The corpus analyzed is compound with a total of sixteen texts, four of them corresponding to the production of two teachers (two productions per teacher) and twelve on the production of six students (two productions per student, with three students per class). All material on the production of these subjects was collected throughout the 2008 school year, with special attention for students’ productions, which were collected only after being subjected to teacher evaluation. Working knowledge of text linguistics, discourse analysis, the theory of enunciation and the aesthetics of reception, we proceeded to the analysis of production, which in according to the methodological proposal, it was held in two stages: at first, the student and faculty productions were analyzed, separately, in order to verify what knowledge about the object these subjects revealed to have already assimilated. Secondly, two sets were compared (each teacher's texts with the texts of their students). The intention was to unravel the existence (or not) of a connection between the underlying knowledge to the textual production of these teachers and their knowledge manifested in the evaluative act when the interventions made on the productions of the learner. It was found that there is a close correlation between the knowledge revealed in this action and those evidenced in their written productions, which constitutes a strong argument to validate the thesis that teachers also have been shown little proficient in performing their role as producers and evaluators of texts. Keywords: Faculty Knowledge. Evaluation. Argumentative Text. Opinion Article. 9 RÉSUMÉ Afin de connaître la nature et la pertinence des savoirs par lesquels s’oriente l'enseignant dans le processus d'évaluation du texte argumentatif, encadré dans le genre article d’opinion, produit en contexte scolaire, nous étudions des textes écrits par des lycéens, classe terminale, d’une école publique de Natal−RN, ainsi que ceux de leurs enseignants. Le corpus analysé soit un total de seize textes, quatre d'entre eux correspondant à la production de deux enseignants (deux productions par enseignant) et douze sur la production de six élèves (deux productions par élève, avec trois élèves par classe). Toute la production de ces sujets a été recueillie tout au long de l'année scolaire 2008, un traitement spécial a été atribué à la production des élèves, qui a été analysée après l'évaluation des enseignants. Sur la base de l’apport théorique de la linguistique textuelle, de l'analyse du discours, de la théorie de l'énonciation et de l'esthétique de la réception, nous sommes passés à la phase d’analyse des productions, qui a été mise en place en deux étapes: dans un premier moment, nous avons analysé, séparément, les productions des élèves et celles des professeurs, afin de vérifier quels savoirs sur l’objet avaient déjá été acquis par ces sujets. Dans une deuxième étape, nous avons comparé les deux ensembles (les textes de chaque enseignant avec les textes de leurs élèves). L'intention étant celle de vérifier l'existence (ou pas) d'un lien entre les savoirs sous-jacents à la production textuelle de ces enseignants et ceux manifestés lors de l’évaluation sur les productions des élèves. Nous avons constaté qu'il existe une étroite corrélation entre les savoirs révélés dans cette action et ceux temoignés dans leurs productions écrites, ce qui constitue un argument solide pour valider la thèse que les enseignants sont encore peu compétents dans l'exercice de leur rôle de producteurs et évaluateurs de textes. Mots-Clés: Savoirs enseignants. Évaluation.Texte argumentatif. Article d’opinion. 10 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO................................................................................................ 11 2 OS SABERES SOBRE O TEXTO COMO PONTO DE PARTIDA.................. 28 3 OS SABERES SOBRE TEXTO ARGUMENTATIVO COMO PONTO DE CHEGADA........................................................................................................... 47 3.1 A ARGUMENTAÇÃO: RECONSTITUINDO PERCURSOS.......................... 48 3.1.1 Da verdade à verossimilhança................................................................. 51 3.2 O TEXTO ARGUMENTATIVO E SEU FUNCIONAMENTO........................... 62 3.2.1 Os muitos já-ditos para um saber sobre o objeto.................................. 62 3.2.2 Outros tantos dizeres para tantos outros saberes................................ 85 3.2.3 Dos saberes sobre os gêneros aos saberes sobre o artigo de opinião................................................................................................................. 104 3.2.4 Dos saberes sobre a avaliação aos saberes para avaliar o artigo de opinião................................................................................................................. 124 4 A PESQUISA EMPÍRICA EM SUA TRAJETÓRIA METODOLÓGICA: REGISTROS DE UM CASO DE ENSINO-APRENDIZAGEM DO TEXTO ARGUMENTATIVO ESCRITO............................................................................. 148 5 PRODUÇÃO E AVALIAÇÃO DE TEXTOS ARGUMENTATIVOS ESCRITOS EM SITUAÇÃO ESCOLAR: SABERES DOCENTES EM AÇÃO...................... 173 5.1 PARA ENTENDER A ANÁLISE DAS PRODUÇÕES TEXTUAIS................ 173 5.2 ANÁLISE DAS PRODUÇÕES DOCENTES................................................. 175 5.2.1 Texto n. 1 (professor Jonas).................................................................... 176 5.2.2 Texto n. 2 (professor Jonas).................................................................... 178 5.2.3 Texto n. 1 (professora Margarida)........................................................... 190 5.2.4 Texto n. 2 (professora Margarida)........................................................... 193 5.3 ANÁLISE DAS PRODUÇÕES DISCENTES................................................. 204 5.3.1 Textos dos alunos do professor Jonas.................................................. 204 5.3.1.1 Texto n. 1 (aluno Rogério)........................................................................ 205 5.3.1.2 Texto n. 2 (aluno Rogério)........................................................................ 207 5.3.1.3 Texto n. 1 (aluno Ernesto)........................................................................ 217 5.3.1.4 Texto n. 2 (aluno Ernesto)........................................................................ 219 5.3.1.5 Texto n. 1 (aluno Bento)........................................................................... 227 5.3.1.6 Texto n. 2 (aluno Bento)........................................................................... 229 5.3.2 Textos dos alunos da professora Margarida.......................................... 237 5.3.2.1 Texto n. 1 (aluno Eduardo)....................................................................... 238 5.3.2.2 Texto n. 2 (aluno Eduardo)....................................................................... 240 5.3.2.3 Texto n. 1 (aluna Renata)......................................................................... 249 5.3.2.4 Texto n. 2 (aluna Renata)......................................................................... 251 5.3.2.5 Texto n. 1 (aluno Ronaldo)....................................................................... 259 5.3.2.6 Texto n. 2 (aluno Ronaldo)....................................................................... 261 5.4 ENTRECRUZANDO SABERES DOCENTES E DISCENTES....................... 268 6 ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES.......................................................................... 280 REFERÊNCIAS.................................................................................................... 285 11 1 INTRODUÇÃO Uma verdadeira viagem de descobrimento não é encontrar novas terras, mas ter um olhar novo. Marcel Proust Uma verdadeira viagem de descobrimento, por mais que se aventure na imprevisibilidade ─ posto ser esta a sua natureza ─, nem sempre precisa orientar seu percurso na direção do absolutamente desconhecido. Isso porque o real sentido de uma descoberta não consiste apenas na primazia do olhar sobre um novo achado. Pode tão-somente corresponder àquilo que nosso olho expande sobre o mesmo, que, iluminado por uma perspectiva inovadora, já se mostra outro: um déjà- vu de tonalidade diversa, porque submetido a uma peculiar apreciação. Em essência, o pensamento proustiano induz-nos à consideração dessa mesma linha de raciocínio em nossas pesquisas, uma vez que, desenvolvendo esse modo de percepção no decorrer de um processo investigativo, estaremos mais bem preparados para o encontro com o objeto da descoberta, que, aos nossos olhos, e à nossa compreensão, ainda que ressurgente, se mostrará inusitado, dando por bem- sucedida a travessia realizada no intuito desse descobrimento. Nesta pesquisa, não nos aventuramos por terras virgens, nem tampouco por caminhos minimamente palmilhados; ao contrário, retomamos veredas antigas e refizemos seu curso em novas andanças, numa tentativa de viabilizar, com a necessária consistência, a ambicionada ultrapassagem do conhecido em prol de renovados alcances no mundo dos saberes. Norteando-nos por essa perspectiva, nosso ponto de partida não poderia ser outro senão o inevitável retorno ao passado, uma paragem obrigatória para que pudéssemos compreender, no tempo presente, o objeto primário desta investigação ─ o discurso/texto argumentativo1, que, neste estudo, será analisado em seu modo 1 Numa aproximação com o pensamento de Bakhtin (2003, p. 311), emprega-se a palavra texto, nos termos em que o autor concebe o enunciado, tomando-o como uma unidade real da comunicação verbal, “cujo acontecimento (a vida do texto, sua verdadeira essência) sempre se desenvolve na fronteira de duas consciências, de dois sujeitos.” Verticalizando ainda mais essa concepção, o autor esclarece: “Só o enunciado tem relação imediata com a realidade e com a pessoa viva do falante (o sujeito). Na língua, existem apenas as possibilidades potenciais (esquemas) dessas relações (formas pronominais, temporais, modais, recursos lexicais, etc.) Contudo, o enunciado não é determinado por sua relação apenas com o objeto e com o sujeito-autor falante (e por sua relação com a linguagem 12 de funcionamento numa circunstância específica de produção escrita, realizada por professores e alunos em situação escolar. Alinhando-nos a essa finalidade, lançamo-nos à procura de vínculos remanescentes, que, à revelia do tempo, se mantiveram inquebrantáveis. Assim se nos afiguram os laços que ligam a argumentação à retórica, à dialética e à filosofia, uma vez que, à satisfação de suas naturais necessidades, essas três disciplinas adotaram a argumentação em seus processos discursivos, seja como instrumento intelectual de persuasão, seja como recurso de lucubrações dialéticas ou filosóficas. Nascida no seio dessa tríade, a argumentação tornou-se beneficiária de seus expedientes discursivos, fazendo deles o fermento com que se transformaria em um poderoso dispositivo de defesa e/ou de acusação. E para assim sistematizar- se, escolhe o caminho da transigência: esteia-se no verossímil, sem, todavia, se abster, por inteiro, do recurso aos meios de prova demonstrativos, desde que se façam estes também necessários para imprimir a pretendida credibilidade. E é justamente porque se lhe atribui a função de mediatizar situações em que se promove a defesa ou a refutação de pontos de vista que a argumentação se torna vital à nossa convivência em sociedade; digamos que ela justifica nosso estar no mundo. Nas palavras de Lemgruber e Oliveira (2011, p. 9), essa justificação alcança sua plenitude e sua tangibilidade: Somos seres feitos pelas palavras, a partir das quais tecemos argumentos que desejamos submeter àqueles que nos escutam ou que nos leem. Somos oradores, seja nas rodas de conversas cotidianas ou nos debates acadêmicos. Somos também auditórios, pois, no desejo legítimo de persuadir, podemos perfeitamente ser persuadidos pelo outro, que não é nosso inferno, como chegou a comentar Sartre, mas o contraponto necessário para que não nos enfeiticemos, como Narcisos, com a beleza das próprias convicções. Na condição de seres de discurso, segundo nos configuram os autores, enredamo-nos nas mais diversificadas situações comunicativas em que, de modo inevitável, somos compelidos a agir discursivamente. Por natural decorrência, quase sempre, a assunção desse comportamento implica também a demonstração de uma competência argumentativa. Essa requisitada presença da argumentação nas várias enquanto sistema de possibilidades potenciais, enquanto dado), mas imediatamente – e isso é o que mais importa para nós − com os outros enunciados no âmbito de um dado campo da comunicação [...]” (BAKHTIN, 2003, p. 328, grifo do autor). 13 práticas discursivas de que participamos torna definitiva sua importância em nossa vida. A partir dessa consideração, podemos afirmar, sem incorrer em exagero, que, se não nos apropriarmos desse saber, estaremos fadados a uma existência não apenas silenciosa mas também submissa, por total desprovimento da capacidade de argumentar em defesa de nossas causas. Vale, nessa passagem, rememorar Montaigne (2002, p. 267), que, bem antes, já demonstrara sua preocupação acerca dessa problemática, assim se pronunciando: “Quanto mais vazia e sem contrapeso está a alma, mais facilmente ela cede sob a carga da primeira persuasão”. No tempo corrente, essa reveladora advertência ainda ressoa em ecos bem audíveis, confirmando o mesmo vaticínio: as mentes pouco versadas na arte de argumentar fatalmente capitularão ─ de tão indefesas, porque se veem à mercê de sua própria incapacidade de enfrentamento ─, mesmo ante o mais improcedente dos argumentos. Nada poderia ser mais contraproducente aos objetivos de uma educação que visa formar cidadãos críticos e participativos, timoneiros de si próprios, de sua própria existência. Por isso mesmo é que precisamos reverter esse quadro; ou pelo menos atenuar os efeitos danosos desse presumido embotamento intelectual. E o caminho possível para esse alcance não nos parece ser outro senão o de ensinar os alunos a utilizarem com proficiência o discurso argumentativo2 (quer na modalidade oral, quer na modalidade escrita), ferramenta imprescindível à sua navegação social. Mas não há como viabilizar esse processo agindo de modo impertinente. Em outras palavras, não se trata, na situação aludida, de encher a cabeça dos educandos de tantos ou quantos saberes circunscritos a esse campo discursivo; afinal, como nos alerta Montaigne (2002), mais vale uma cabeça bem feita do que bem cheia. Na interpretação de Morin (2006, p. 24), que retoma o ensaísta em sua menção, está o correlato sentido para tal ponderação: “Uma cabeça bem-feita é uma cabeça apta a organizar os conhecimentos e, com isso, evitar sua acumulação estéril”. Formar “cabeças bem-feitas” deve, pois, constituir-se o objetivo almejado 2 Retorna-se à concepção bakhtiniana sobre enunciado para justificar também, sob tal patrocínio, a utilização do termo discurso, que, nesta abordagem (desconsideradas algumas divergências teóricas, por vezes, fundamentadas em sutilezas semânticas que apontam para a distinção entre essas duas noções), foi, alternadamente, empregado em substituição ao termo texto, por entender-se que, justamente em função dessas sutilezas semânticas (que os impregnam), se abre uma possibilidade ao intercâmbio que aqui se realizou. 14 pela educação. Mirando nessa perspectiva, defendemos o ensino-aprendizagem da argumentação como sendo o grande aliado nesse empreendimento. Assim dimensionada, a argumentação marca sua relevância no processo educacional, na medida em que, por interveniência de seu ensino-aprendizagem, se pode passar de um estado de relativa inadimplência discursiva a um estado de consequente responsividade ativa. Essa passagem, no entanto, não se realiza de pronto, como se fosse um passe de mágica. Dá-se ao compasso de aprendizagens transformadoras, em tudo similares ao trabalho das abelhas, que, na percepção de Montaigne (2002, p. 227), “[...] sugam das flores aqui e ali, mas depois fazem o mel, que é todo delas: já não é tomilho nem manjerona”. Também os alunos se mostrarão capazes de construir esse percurso, desde que, favorecidos pela situação pedagógica, interajam com um mestre que os exponha aos mais variados ensinamentos, para que possam reunir tantos saberes quantos lhes sejam necessários para viver, com dignidade, sua condição humana. Bem em sintonia com o que preconizava Rousseau (2004, p. 15): “Viver é o ofício que [devemos] ensinar-lhes”. Decerto, um projeto educacional de tamanha responsabilidade requer, para sua execução, não apenas o fervor educativo dos que ensinam mas também, e sobretudo, a penhora de seus saberes. Notadamente, é pela ação dos saberes docentes que os alunos despertam para o acontecimento da aprendizagem. Essa constatação reforça o pressuposto de que os professores precisam saber ensinar: é o mínimo que se espera daqueles que se profissionalizam nesse ofício. Se, por exemplo, se propõem ensinar a escrever, devem mostrar-se competentes produtores de textos; não sendo assim, como podem legitimar o parecer avaliativo com que assinalam o desempenho de seus alunos investidos do papel de escritores aprendizes? À maneira de Rousseau (2004, p. 102), com quem dividimos a crença de que “[...] para ser o mestre da criança, é preciso ser mestre de si mesmo”, entendemos que, somente se tornando um obstinado aprendiz de seu objeto de ensino, o professor adquire ciência para o exercício competente de seu magistério. No caso específico do ensino do texto argumentativo escrito, exige-se do professor o domínio de saberes concernentes à tessitura textual, numa particular referência ao 15 processo mesmo de construção, em que se conjugam, de modo inextricável, forma e conteúdo, pilares fundamentais dessa arquitetônica. Conceber o processamento textual a partir da compreensão de que forma e conteúdo são inseparáveis; de que a forma envolve o conteúdo exteriormente, exterioriza-o, ou seja, encarna-o, como nos esclarece Bakhtin (1998), é saber indispensável para o ensino-aprendizagem do texto, seja qual for sua configuração genérica. Isso porque se implica, nessa percepção, uma visão global do “ser texto”; de sua representação como uma unidade de sentido, tal como deve ser entendido ao se tornar objeto de leitura/avaliação docente. São esses, sem dúvida, os conhecimentos necessários para que se possa proceder a uma intervenção proficiente sobre os textos dos alunos. Mas como certificar que os professores são detentores desses saberes? Em busca de respostas para essa questão, empreendemos esta viagem de descobrimento. Nossa pretensão, como sempre, é desvendar novos horizontes, mas cuidando para não criarmos uma expectativa muito além daquela que já nos proporcionaria uma grande satisfação − a de constatar que, mesmo não atingindo nosso propósito, abrimos espaço para novos percursos. Em se reportando à sua natividade, o tema ora focalizado não se pode apresentar como algo novel. Não obstante, se contemplado na circunscrição desta abordagem ─ em que se dá sua ressurgência ─, apresenta-se, por certo, singular. Essa compreensão é tributária da crença de que a singularidade de um tema não está na sua “novidade”, mas no modo inusitado de apreensão de uma mesma realidade, que, por natureza, é sempre plural, no sentido de poder-se multifacetar ad infinitum. E é justamente no entremeio dessas muitas faces que, no mundo do fazer científico, se vislumbra a possibilidade de uma nova investigação. À luz dessa reflexão, concebeu-se o tema; e também se entreteceu a sua história, enredada nos muitos fios de outras histórias; histórias de ensino e de aprendizagem, protagonizadas por alunos e professores, uns e outros agentes e pacientes de umas tantas acontecências, que, embora mantidas no resguardo do universo escolar, precisam dar-se à notoriedade, em razão do caráter axiológico de sua ressonância. Ou seja: tornadas públicas, essas ocorrências podem revelar-se bastante valiosas, na medida em que se prestarão ao esclarecimento de situações- 16 problema de mesma procedência que possam estar afetando a viabilidade de muitos projetos de ensino no âmbito das instituições escolares. Na retrospectiva de alguns desses acontecimentos, em que se evocam significativas reminiscências de nosso memorial docente, foi-se delimitando o tema, que somente se consagrou, assumindo sua identidade, ao deslindar-se das demais possibilidades com que se rivalizou desde o seu advento. Sua primeira aparição (relativamente ao registro efetivo de nossos estudos sobre essa temática) reservou- se à nossa dissertação de mestrado A interferência do leitor virtual-professor em dissertações escolares (defendida em 1999), em que, também como o fazemos nesta tese, priorizamos a avaliação de textos escritos em situação escolar. Naquele momento, visávamos investigar os modos de intervenção mais recorrentes na prática da avaliação docente e as reais consequências dessa ação intervencionista no progresso dos alunos como produtores de textos dissertativos escritos. Todavia, vale ressalvar o fato de que, mesmo retomando, neste estudo, semelhantes passos, não estamos a rebatizar um objeto anteriormente patenteado. Neste novo investimento, propomo-nos avançar para além dessas reincidências: a investigação, neste momento empreendida, direciona-se, mais particularmente, para o desempenho docente, vez que objetivamos, pela análise de textos produzidos por professores, em confronto com os textos produzidos por seus respectivos alunos e submetidos à sua (dos professores) avaliação, desvelar os saberes por que se orientam os docentes quando se investem do papel de produtores/avaliadores no curso dessa experiência. A insistência nesse tema e a intenção de verticalizá-lo justificam-se como uma tentativa de contribuir ─ quem sabe, com novas descobertas ─ para a visível evolução dos estudos nessa área e de preencher o hiato que vimos abrir-se ao despontarem os resultados de nossa investigação precedente em prol da construção da dissertação de mestrado. Nessa pesquisa, conforme revelaram as conclusões a que chegamos, o professor ─ na sua atuação como leitor-avaliador ─ pareceu pouco preparado para avaliar o objeto de ensino. As interferências realizadas não atingiram o texto dissertativo-argumentativo em sua construção macroestrutural, nem mesmo tangenciaram orientações no sentido de uma recomposição do esquema prototípico tese x argumentos; tampouco fizeram qualquer advertência no tocante à coerência argumentativa (tese x argumentos; argumentos x contra-argumentos...). Limitaram- 17 se, quase sempre, a questões de norma linguística e/ou convenções ortográficas: o formal sobrepujou o semântico. Essa é uma indicação de que o professor, em vez de comportar-se como um leitor virtual ─ o que lhe permitiria uma ultrapassagem no processo de interpretabilidade, rendendo, em consequência, uma orientação mais proveitosa para o aluno ─, circunscreveu-se ao papel de mero revisor de questões linguísticas superficiais. Ora, se o problema ortográfico estava desfeito ou a concordância lógica restabelecida, isso não seria suficiente para atestar que se havia alcançado a idealidade do ensino-aprendizagem desse tipo de texto. Mas foi esse o veredicto proferido pelo professor ao final do processo, alimentando o aluno com a ilusão de que seu desempenho havia sido satisfatório. Lamentavelmente, um caso de perdas e danos. Refinando essas conclusões em função dos resultados, ainda nos cabe ressalvar o fato de que, embora a interação com o professor tenha sido produtiva (considerando-se que todas as suas solicitações de “correção” foram rigorosamente observadas, e as respostas dos alunos a essas intervenções pareceram contentá- lo), o aprendizado, em relação à produção do texto dissertativo-argumentativo, não se consolidou, uma vez que as interferências do professor não orientaram, senão tangencialmente, no sentido da assimilação e da consolidação desse saber. O tempo desse acontecimento, evidentemente, é passado. Entretanto, muitas histórias reagem à sua tendência de efemeridade; por isso ressurgem no presente. Nada a estranhar, se nos lembrarmos de que por trás de cada história há um dedo humano, quase sempre disposto a permanecer em riste, seja por medo de mudar ou de não saber como operar a mudança. Essa reflexão emerge em meio à rememoração de fatos que se sucederam em sala de aula logo após o nosso retorno à universidade, ao término do curso de mestrado, e que, em adendo aos resultados da pesquisa recém-concluída, foram determinantes em nossa tomada de decisão quanto ao tema a ser abordado. Em nossa prática docente, novamente vivenciamos situações incômodas e preocupantes. Dentre as mais marcantes, registramos o caso de uma aluna que, em prantos, demonstrava sua inconformação com a nota (três) que havíamos atribuído a um texto por ela produzido, um artigo de opinião. No teor de sua argumentação, sobressaíam-se justificativas que a definiam como aluna interessada, participativa e atenciosa, qualidades que, em sua opinião, a tornavam merecedora da fama de boa 18 escritora ─ uma aluna nota 10 ─ a que fazia jus em função do julgamento de seus mestres predecessores. Em contraposição à “retórica” da aluna, insurgia-se o seu próprio texto, que se evidenciava realmente problemático: não respondia satisfatoriamente à proposta de produção; não apresentava progressão discursiva (estruturava-se em parágrafos atomizados, fazia mau uso dos operadores argumentativos) e ainda padecia do mal das incoerências localizadas, de notáveis impropriedades semânticas (inadequação de vária natureza relativamente ao uso de determinados elementos linguísticos), bem como de outras falhas menos pontuais. Estávamos, outra vez, diante de mais um caso de perdas e danos: uma aluna que pouco aprendera sobre como produzir um texto, mas que fora induzida a acreditar que tudo sabia. Era mais um atestado da incompletude de nosso estudo. As interrogações se sucediam: o que levara o professor a se mostrar tão comedido em suas intervenções? Uma questão que remete ao professor-avaliador sujeito de pesquisa da dissertação de mestrado. E retomando o episódio da aluna “nota dez”, o que levara seus professores a fazerem aquele ajuizamento? E ainda em relação aos dois casos (professor sujeito de pesquisa e professores da aluna): por que esses professores se haviam comportado de modo tão pouco proficiente ao se investirem do papel de leitores-avaliadores dos textos escritos por seus alunos? As respostas a essas indagações não podiam ser silenciadas. Tampouco podíamos dar-nos ao regalo da ignorância dos fatos. Decidimos, então, revisitar o tema aproveitando alguns dos procedimentos anteriormente utilizados, já que, em função desses, se desenvolveria nosso novo percurso investigativo. O propósito, evidentemente, não era o de nos intrometer na avaliação docente, no sentido de denunciar essa ou aquela prática. Interessava-nos escrutar, particularmente nos textos a serem produzidos por professores, a manifestação (ou não) de problemas relacionados com qualquer um dos níveis (formal, semântico e pragmático) da composição textual, para, em decorrência disso (e em confronto com os textos de seus respectivos alunos ─ já devidamente avaliados), podermos tomar como referendada a hipótese de que, assim como lhes escapam à percepção os pontos vulneráveis de suas produções escritas, os professores, muito provavelmente, também não se revelarão aptos para perceber, nas produções de seus alunos, semelhantes falibilidades. 19 O tema assim redimensionado, embora recorrente, em se considerando os pormenores de seu aparecimento, justifica sua pertinência ao abrir espaço, na prática docente, para que o professor possa confrontar-se com seus saberes. Não só aqueles saberes construídos por ele próprio ao longo de sua formação (dos quais julga já se haver apropriado) mas ainda os demais saberes construídos a partir de sua atuação ou de experiências vividas, no âmbito da instituição escolar, com seus alunos, com seus pares, ou com outros sujeitos com os quais é levado a interagir em sociedade. Nesse processo de confrontação, coloca-se ao professor a possibilidade de refletir sobre seu trabalho, o que implica seu engajamento crítico em uma situação de autoavaliação, uma espécie de retorno às representações de sua prática (e de si mesmo), tal como esta se efetiva nessa circunstância. Essa oportunidade de reflexão pode/deve suscitar mudanças significativas no empreendimento de novos percursos. Em essência, é essa tese que defende Baillauquès (2001, p. 45): “Após um conhecimento mais preciso da realidade pessoal e profissional, as reflexões suscitam remanejos, além da renúncia a imagens, valores, crenças e convicções”. O investimento nesse modo de compreensão do agir docente revela-se bem propício à construção das competências profissionais, que “estão diretamente ligadas às suas [do professor] capacidades de racionalizar sua própria prática, de criticá-la, de revisá-la [...]” (TARDIF; GAUTHIER, 2001, p. 208). É certamente essa postura clínica que devem assumir os professores no exercício de sua profissão; em particular, aqueles que se dedicam ao ensino-aprendizagem do texto escrito. Mas a assunção de semelhante conduta requer uma grande perseverança em exercitar a reflexividade, traço marcante do verdadeiro profissional do ensino, como ponderam Perrenoud et al. (2001, p. 223): “Tornar-se um professor profissional é, acima de tudo, aprender a refletir sobre sua prática, não somente a posteriori, mas no momento mesmo da ação. [...] sobretudo, aprender a partir da experiência”. É dessa forma que concebemos o trabalho docente. E é na perspectiva do desenvolvimento de uma prática notadamente reflexiva que inscrevemos nossa proposta de estudo, entendendo, como Schön (2000, p. 34), que “o repensar de algumas partes de nosso conhecer-na-ação leva a experimentos imediatos e a mais pensamentos que afetam o que fazemos ─ na situação em questão e talvez em outras que possamos considerar como semelhantes a ela”. 20 Quando solicitamos ao professor a produção de um texto, sob as mesmas condições a que antes submetera seu aluno no cumprimento dessa tarefa, oferecemos-lhe uma oportunidade ímpar para refletir sobre sua prática no momento mesmo da ação. Assim como seus alunos, o professor condiciona-se ao espaço- tempo da experiência; mas a vivencia bem mais subjetivamente, considerando-se que, nesse processo, lhe cabe flagrar-se a si mesmo em plena autoria. Nessa situação de inusitada ocorrência, o professor assume não só seu papel de autor mas ainda experimenta todas as incertezas de que, naturalmente, será objeto, tal como sucede a todo sujeito que se enreda no processo de produção de um texto. Por cautela, não deverá deixar de submeter-se a uma prévia inquisição: como encarar o trabalho de escrever um texto? Que saberes necessita mobilizar no processo de escritura de um texto? Que dificuldades lhe sobrevêm? Como solucioná-las? Como redator, sabe manter o necessário distanciamento para investir-se do papel de leitor crítico de seu texto? Essa reflexão-na-ação, nos termos de Schön (2000), quer passada, quer presente, pode configurar indiretamente as ações futuras do professor, vez que se mostra plena de significações/informações que poderão levá-lo a agir de modo diferente num acontecimento posterior, de correlato feitio. Também é possível que esses diversos questionamentos possam render-lhe dilemas de vária natureza, tanto no plano teórico quanto no plano prático e até no representacional. Mas essa não é uma situação de perdas e danos. Ao contrário, acreditamos que esses prováveis dilemas ─ aparentemente constrangedores ─ vivenciados pelo professor, no processo de produção de seu texto, mostram-se instrutivos para que possa compreender, em termos mais aproximados de uma visão do real, quais ações/intervenções realizadas (no desempenho de sua particular função de leitor-avaliador crítico dos textos escritos por seus alunos) podem ser consideradas como sendo procedentes ou improcedentes nessa situação de ensino- aprendizagem. Além do mais, como protagonista dessa experiência, o professor não somente tem a chance de avaliar as consequências de sua atuação docente (o que já contemplaria um dos aspectos da singularidade de nossa proposta temática), como também é impelido a “tomar decisões num processo [a produção do texto] que se vai moldando e adquire identidade enquanto ocorre” (SACRISTÁN, 1999, p. 87). 21 E mesmo passando pelo constrangimento de se dividir entre o papel de aprendiz (que acreditava estritamente reservado ao seu aluno ─ como produtor de textos em situação escolar) e a responsabilidade de orientar, por seu ensino, o curso dessa aprendizagem (como sujeito supostamente mais experiente no processo interativo em que naturalmente se desenvolve a produção do texto escrito), o professor ainda se torna, por certo, beneficiário desse processo. Isso considerando o fato de que, em decorrência dessa ação-reflexão, amplia a sua consciência profissional, que, na concepção de Sacristán (1999), se consolida e se desenvolve na medida em que também se desenvolve sua competência para solucionar problemas, referentes a (ou decorrentes de) opções assumidas, para reorientar percursos, ou mesmo para explicar/justificar determinadas ações. Nem é necessário acrescentar o fato de que, em tal situação, não só se beneficiam os professores; também se tornam mais bem assistidos seus alunos, ora sob a orientação de um sujeito docente, que, instruído por seu próprio savoir-faire, não mais será dado à insensibilidade de ignorar ─ nem sequer por negligência, e menos ainda por mero desconhecimento de causa ─ as dificuldades mais pontuais que se revertem nas repetidas queixas dos aprendizes em geral: não ter ideias; não entender o objetivo da proposta de produção em sua artificialidade como exercício escolar; não dominar um repertório de informações suficiente para tratar sobre o tema; não compreender a dimensão dialógica do texto, sendo isso um impedimento para estabelecer uma interlocução mais profícua com o seu leitor virtual; não saber adequar seu texto às exigências do gênero de discurso em que deverá configurar- se, entre outras de menor visibilidade na arquitetura textual. A natureza das dificuldades referenciadas e sua tendência à recursividade reforçam a necessidade de um ensino-aprendizagem do texto escrito suscetível de substituir a malsucedida persistência de práticas inoperantes, porque desprovidas do objetivo de promover o real desenvolvimento das habilidades requeridas para a transformação dos alunos em proficientes produtores de textos. Vislumbrando, por um lado, essa perspectiva, e considerando, por outro lado, que “é possível flagrar no plano da argumentação alguns problemas que podem justificar a ‘infelicidade’ do texto” (OSAKABE, 1977, p. 51, grifo do autor), optamos por trabalhar, neste novo empreendimento, com o texto argumentativo escrito. Certamente não é nossa pretensão (e isso também se coloca subjacente ao 22 pensamento do autor) afirmar, em termos categóricos, que a argumentação é a única ou a mais privilegiada das áreas de manifestação de problemas textuais. Entretanto, afiançamos, ainda em consonância com a opinião desse autor, que se [...] trata de um dos domínios que, uma vez negligenciado, passa a reter em si mesmo a chave para o desvendamento de problemas que não se revelam diretamente na cadeia puramente sintática, nem na morfologia nem noutros níveis mais explícitos da formulação lingüística (OSAKABE, 1977, p. 51). Muito provavelmente, não é nessa dimensão que se considera ─ na prática de sala de aula ─ a importância da argumentação no processo de ensino- aprendizagem do texto escrito. E é precisamente esse um dos pontos sobre o qual o professor deve refletir, admitindo-se, como Breton (1999, p. 19), que “[...] argumentar não é um luxo, mas uma necessidade [...]”; e que não saber tomar a palavra para convencer aumenta consideravelmente a probabilidade de exclusão social. “Como ser dotado de razão e vontade, o homem, constantemente, avalia, julga, critica, isto é, forma juízos de valor” (KOCH, 2008, p. 17), o que, portanto, legitima nossa escolha temática, orientada para o trabalho com o texto argumentativo escrito, que julgamos ser fundamentalmente importante para a navegação social, considerando-se que é nele que se expõem de forma explícita os argumentos em defesa dos pontos de vista mais díspares e se exercita o raciocínio lógico em âmbito linguístico. É nele também, talvez mais do que em qualquer outro tipo de discurso, que se entrecruzam as vozes afinadas ou dissonantes da polifonia babélica do mundo em que se vive (LOPES, 1999, p. 9). Na linha desses discursos, fortalecem-se ainda mais as razões em que se vai ancorar a justificativa para uma nova especificação em nossa proposta temática: a escolha do gênero artigo de opinião como objeto de ensino-aprendizagem do texto argumentativo escrito. A opção por esse gênero faz-se propícia na medida em que pretendemos envolver professores e alunos numa situação comunicativa que os instigue a defender suas próprias opiniões a respeito dos mais diversos temas. Além disso, acreditamos que o artigo de opinião, por ser um gênero de discurso que se constrói, essencialmente, em torno de pontos de vista divergentes, constitui-se na forma ideal de produção, no sentido de instaurar, no curso de sua escrita, uma situação argumentativa em que “as diferentes posições sobre os diferentes assuntos 23 discutidos se explicitem, bem como alguns (quiçá todos...) dos valores implícitos e ideologias subjacentes” (BRÄKLING, 2000, p. 223). Nessa perspectiva, inserir nos programas de ensino a produção escrita do gênero artigo de opinião é proporcionar aos alunos e aos professores as condições necessárias para que possam, por meio de um processo de argumentação (em que se lhes apresenta a possibilidade de se assumirem como sujeitos de seu dizer), instituir-se interlocutores ─ não meros espectadores ─ dos acontecimentos sociais. E se ainda nos for exigido, como absolutamente indispensável, melhor fundamentar as justificativas precedentes, acrescentamos-lhes mais um argumento: “O domínio da produção desse gênero pode se constituir como um dos instrumentos para o ‘exercício efetivo da cidadania’ e para a ‘participação plena no mundo letrado’” (RODRIGUES, 2000, p. 219, grifos da autora). Tamanhos benefícios tornam (assim acreditamos) realmente significativa a nossa preferência temática; ademais se considerarmos que viver essa experiência da autoria já é uma forma de participação no mundo letrado e de exercício efetivo da cidadania. Ao professor, bem mais particularmente, apresenta-se a oportunidade de desvestir-se de seu papel de leitor-avaliador (ou, normalmente, de um simples “corretor”) do texto de outrem, o de seu aluno, para assumir-se como autor e leitor crítico de seu próprio texto. Essa atuação “dupla face” poderá devolver-lhe a dignidade profissional, aprisionada que estava no desconhecimento (provavelmente involuntário) de suas deficiências de leitura e de escrita, as quais, em consequência, passam a refletir-se em sua prática pedagógica como mais um dos casos de perdas e danos a que vimos aludindo. De constatação em constatação, o cerco parece fechar-se em torno do professor. Bernardo (2000, p. 41) é o primeiro a confessar seu (de todos) mea-culpa: “Mandamos o aluno ler muito, e lemos muito pouco. Mandamos o aluno escrever muito, e escrevemos muito pouco. Exigimos, como escola, que ele saiba o que cada um de nós, como professor, não sabe.” Na opinião de Leite, Martins e Sousa (1987, p. 60), os professores precisam vivenciar, sem preconceito, a escrita para que possam estar em condições de compreender, por sua própria experiência, o que exigem de seus alunos, “nem sempre respeitando os impedimentos deles ou suas possibilidades criativas”. Essa sensibilização, admitem as autoras, seria um primeiro 24 passo para que os professores repensassem seus modos de intervenção no processo de ensino-aprendizagem do texto escrito. Em concordância com esses pareceres, Antunes (2009, p. 225) também reconhece as condições pouco ideais em que se dá o exercício da produção escrita: “[...] sem a necessária interlocução com outros textos e na rigidez quase mecânica de modelos tipológicos e de estratégias discursivas que anulam a subjetividade necessária a toda autoria.” E ainda vai além, em sua perspicaz análise, afirmando que outras razões justificam a instauração desse quadro; entre tantas, para a autora, “[...] vale a pena destacar a insuficiência da formação dos professores ─ que devem saber escrever bem para poderem ensinar com eficiência [...]”. Encaminhamos, assim, o professor à descoberta de uma nova identidade para uma nova tarefa, como tão bem sintetiza Guedes (2006, p. 41): Sua apropriação pessoal [do sujeito professor] desse conhecimento e dessa habilidade, a observação da própria prática, a reflexão a respeito de suas experiências, a avaliação dos seus erros e acertos, a repetição corrigida de procedimentos, esse é o trabalho que vai torná-lo capaz de levar seu aluno a construir a própria auto-estima de indivíduo capaz de construir uma motivação interior para aprender. Só reconhecendo no aprender (isto é, no esforço pessoal de tornar-se capaz de ler e entender o que leu e de expressar-se em língua escrita para ser lido e entendido) a verdadeira fonte do conhecimento é que professores e alunos vão construir uma nova auto- estima à revelia do projeto histórico que manda uns e outros sentarem e esperarem que alguém lhes ensine. Se ajustada a essa leitura, nossa proposição torna-se, sem dúvida, ainda mais congruente. Mesmo porque também comungamos semelhante pensamento. Assim como o autor, também enxergamos a necessidade de os professores tornarem-se sujeitos de sua própria prática ─ passando pelas mesmas “provações” por que passam seus discípulos ─ para poderem, então, desempenhar, de modo mais consciente, a função que lhes compete como profissionais do ensino. Tendo em vista essa perspectiva, revela-se providencial a proposta de desvendamento dos saberes docentes que se implicam no processo de ensino-aprendizagem do texto argumentativo escrito configurado no gênero artigo de opinião, em particular os que se manifestam no momento em que os professores procedem à avaliação das produções textuais de seus alunos, uma vez que, segundo pressupomos, esses 25 saberes provavelmente se identificam com aqueles que se fazem subjacentes à própria produção escrita dos professores. Com o objetivo de referendar (ou não) essa conjectura, procederemos à avaliação dos textos produzidos por ambos os grupos de sujeitos (professores e alunos) para, em função dessa análise e dos resultados daí decorrentes, chegarmos a respostas ─ baseadas em evidências, não em palpites ─ possíveis de refutar (ou confirmar) a constrangedora suposição, levantada por Cláudio de Moura Castro, em seu ensaio Educação baseada em palpites (Veja, 31 de agosto de 2005), de que “os nossos alunos estão aprendendo com alguns professores que não são capazes, eles próprios, de decifrar com rigor um texto”. Essa presunção do autor, derivada do fato de haver sido mal interpretado em seu ensaio anterior Educação baseada em evidência (Veja, 03 de agosto de 2005), conforme atestam e-mails que lhe foram enviados por vários docentes, é reforçada por mais uma constatação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica−SAEB (registrada pelo autor no referido ensaio): “Os níveis de compreensão de leitura de nossos alunos são baixíssimos”. Nada mais convincente para imprimir credibilidade à pressuposição do escritor; de tal maneira a enredá-lo em uma nova suspeita: “Haverá alguma conexão”? É também em decorrência de acontecimentos assim desconcertantes que, nessa mesma linha de suspeição, nos questionamos: haverá alguma conexão entre o saber escrever do professor e o seu saber ler/avaliar o texto do aluno? Cabendo-nos o ônus de uma resposta plausível, relativamente a esse questionamento, construímos uma reflexão, que se vai substancializando ao longo de seis capítulos, incluindo-se, nessa totalidade, esta introdução (nomeadamente o primeiro capítulo), em que apresentamos nossa proposição temática e justificamos sua singularidade e sua relevância. No segundo capítulo, Os saberes sobre o texto como ponto de partida, discorremos sobre algumas concepções de texto orientando- nos, em essência, pelos postulados da linguística textual, da teoria da enunciação e da análise do discurso. É ainda nesse capítulo que nos reportamos a determinados estudos cuja centralidade do enfoque converge para a produção e a avaliação de textos escritos, pretendendo, por meio desse resgate, conjugar saberes que nos possibilitassem um acercamento mais substancioso do objeto referencial desta investigação ─ o texto argumentativo escrito. 26 Tendo-se já prefigurado o objeto de estudo, passamos a focalizá-lo, em um terceiro capítulo ─ Os saberes sobre o texto argumentativo como ponto de chegada ─, à luz dos referenciais teóricos convocados para esta abordagem, que, em sua primeira parte, A argumentação: reconstituindo percursos/Da verdade à verossimilhança, apresenta uma retrospectiva histórica acerca da argumentação, com o intuito de dessoterrar as raízes em que esta se enleou desde que se tem notícia de sua existência, de forma mais sistematizada, o que nos rendeu um recuo ao século V a. C. Esse retorno às origens revelou-nos, em seu nascedouro ─ isto é, no intercurso dos embates travados no campo da filosofia e da retórica, quer em prol da verdade, quer em prol da verossimilhança (respectivamente) ─, a vera causa da pronunciada ambivalência do discurso argumentativo, que, embora se realize sob a insígnia do verossímil, do plausível, do provável, não prescinde do recurso à razão, evidenciando, dessa forma, o permanente e indissolúvel vínculo antes estabelecido com a retórica e a dialética gregas. Na segunda parte desse capítulo ─ O texto argumentativo e seu funcionamento ─, aspirando a uma compreensão desse tipo de texto, ancoramo-nos em alguns teóricos que, por primeiro, construíram um saber sobre o processamento argumentativo (Os muitos já-ditos para um saber sobre o objeto); além disso, entendendo a necessidade de verticalizar ainda mais o saber sobre esse objeto, para melhor entender o seu modo de funcionamento e, assim, podermos proceder às análises dos textos com uma maior probabilidade de escrutá- los devidamente, buscamos novos direcionamentos teóricos (Outros tantos dizeres para tantos outros saberes). Ainda nessa segunda parte (Dos saberes sobre os gêneros aos saberes sobre o artigo de opinião), apresentamos algumas concepções sobre os gêneros (ancorando-nos, essencialmente, na concepção teórica de BAKHTIN) e discorremos sobre os saberes concernentes ao artigo de opinião, para entender como funciona esse gênero do discurso a ser didaticamente transposto para a sala de aula. Esse recorte justifica sua pertinência por ser esse o gênero em que se materializam os textos produzidos para esta investigação. Compreender o modo de funcionamento do artigo de opinião fez-se fundamental para, subsequentemente, podermos traçar, com mais propriedade, um caminho possível para a sua avaliação, uma abordagem reservada à seção intitulada Dos saberes sobre a avaliação aos saberes para avaliar o artigo de opinião, com que finalizamos o capítulo. 27 A ancoragem nesse referencial teórico permitiu-nos avançar em direção ao novo percurso. Assim, no quarto capítulo ─ A pesquisa empírica em sua trajetória metodológica: registros de um caso de ensino-aprendizagem do texto argumentativo ─, delineamos o perfil teórico-metodológico da pesquisa, que se consolida como uma abordagem qualitativa (considerando-se que seu objetivo fundamental orienta- se para a compreensão de um fenômeno social ─ um caso de ensino-aprendizagem direcionado para a produção e a avaliação de textos argumentativos escritos na escola ─ observado em seu acontecimento) e, dentro desse paradigma, como um estudo de caso. Traçadas as diretrizes metodológicas, procedemos, no quinto capítulo (Produção e avaliação de textos argumentativos escritos em situação escolar: saberes docentes em ação), à avaliação dos textos. É justamente nesse capítulo ─ na seção correspondente à análise das produções docentes e discentes ─ que buscamos desvendar os saberes acionados pelos professores, tanto no processo de produção de seus textos quanto na atividade de avaliação dos textos produzidos por seus alunos, orientando-nos sempre pelas categorias de análise preestabelecidas (conforme explicitamos na metodologia) e observando os direcionamentos definidos em Para entender a análise das produções textuais. Concluída a análise desse corpus (os textos produzidos pelos professores e pelos alunos), na seção seguinte ─ entrecruzando saberes docentes e discentes ─, confrontamos os saberes docentes e discentes revelados nas produções textuais, associando-os àqueles provenientes de outras fontes (as entrevistas, sobretudo), visando, em função desse entrecruzamento, à obtenção de pistas mais reveladoras ─ no sentido de se mostrarem estas menos contestáveis ─, a que recorreremos para responder com mais convicção (e menor probabilidade presuntiva) à questão de pesquisa, que retomamos para nossas considerações finais no sexto capítulo: há alguma conexão entre o saber escrever do professor e seu saber ler/avaliar o texto dos alunos? 28 2 OS SABERES SOBRE O TEXTO COMO PONTO DE PARTIDA O texto é a realidade imediata (realidade do pensamento e das vivências) [...] Onde não há texto não há objeto de pesquisa e pensamento. [...] O texto é o dado (realidade) primário e o ponto de partida de qualquer disciplina nas ciências humanas. Mikhail Bakhtin O texto (nessa primeira aproximação, genericamente referenciado) vem sendo tomado como objeto privilegiado de investigação desde que ─ em função dos alcances dos estudos linguísticos ─ se passou a considerar “[...] a produção de textos (orais e escritos) como ponto de partida (e ponto de chegada) de todo o processo de ensino/aprendizagem da língua” (GERALDI, 1991, p. 135). Na gênese das discussões sobre o texto (considere-se, nessa remissão, o fato de não estarmos fazendo um grande recuo na linha do tempo), entrecruzaram- se saberes derivados, mais particularmente, da linguística textual, da teoria da enunciação e da análise do discurso. No campo da linguística textual, os estudos, que ainda em uma fase pré- textual (a denominada fase transfrástica), propendiam para uma compreensão do texto como sendo uma extensão da frase, aspiraram, em um segundo momento, à elaboração de gramáticas textuais, cujo objetivo principal era buscar uma compreensão para certos fenômenos linguísticos não explicáveis por meio da gramática sentencial, vez que transcendiam os limites da frase, já alcançando a própria dimensão textual. Com essas gramáticas textuais, pretendia-se, segundo Koch (2004), não somente explicitar os princípios de constituição de um texto, os fatores responsáveis por sua coerência, sua coesão, as condições em que se manifesta sua textualidade mas ainda determinar os critérios para sua delimitação (colocando-se a completude como uma de suas características essenciais) e diferenciar as várias espécies de textos. Haviam-se alargado, beneficiadas por tão fecundos estudos, as fronteiras da investigação. Ultrapassara-se a sintaxe frasal em prol de uma sintaxe textual, operando-se um deslocamento “[...] da observação das relações internas da frase para as relações internas ao texto” (INDURSKY, 2006, p. 47). Acreditava-se que, do 29 conjunto dessas relações textuais, seria possível abstrair o sentido do texto: sua identificação como uma unidade semântica possibilitava a crença de que fosse este, por conseguinte, dotado de coerência. O interesse investigativo nascente voltava-se, assim, para o objeto texto a ser apreendido em sua totalidade. Convinha, então, examiná-lo a partir de sua propriedade intrínseca ─ a textualidade, o que implicava considerá-lo sob a regência de sua coesão e de sua coerência (HALLIDAY e HASAN, 1976; MARCUSCHI, 1983; CHAROLLES, 1988; KOCH e TRAVAGLIA, 1989, entre outros). No entreato dessa reflexão, vai-se delineando a convicção de que o texto não se podia confinar a uma estrutura de superfície, idealizado e consubstanciado em função das relações coesivas que aí se estabeleciam ou mesmo de outros fatores linguísticos que respondiam por sua coerência interna. Avançando para além dessa perspectiva, vislumbra-se o texto como um ato de comunicação, o que lhe confere uma natureza pragmática: agora “[...] se trata de uma categoria que não é puramente linguística e cuja definição só é viável com a intervenção de critérios de ordem sociocomunicativa [...]”, segundo postula Schmidt (1978, p. 165). Enfatizando esse postulado, e tentando melhor explicitá-lo, o autor ainda acrescenta: “É somente nos jogos de atuação comunicativa que os parceiros realizam efetivamente o conjunto de instruções de um texto, ou seja, o próprio significado deste texto”, o qual, tomado isoladamente, “[...] não possui um significado, mas este significado é adquirido somente nos jogos de atuação comunicativa” (SCHMIDT, 1978, p. 80, grifos do autor). Em observância a esse novo posicionamento, passa-se, pois, a conceber o texto como uma unidade pragmático-comunicativa, na medida em que busca estabelecer uma comunicação com seu interlocutor/leitor a quem se colocam “instruções” que devem ser seguidas adequadamente, para que então se possa realizar com sucesso “o jogo de atuação comunicativa” que aí se estabelece entre os parceiros da comunicação. Evoluindo nessa linha de pensamento, Beaugrande e Dressler (1981) admitem que o texto, para ser concebido como uma “ocorrência comunicacional”, precisa satisfazer a um conjunto de critérios considerados em sua relação de interdependência: os critérios de natureza semântico-formal (a coesão e a coerência, que se relacionam mais diretamente com o material conceitual e linguístico do texto) e os critérios de natureza pragmática (como a intencionalidade, 30 a aceitabilidade, a situacionalidade, a informatividade e a intertextualidade, que correspondem aos fatores pragmáticos envolvidos no processo sociocomunicativo). No curso dessas mudanças de enfoque, a linguística textual é, mais uma vez, impelida a seguir/incorporar outras orientações teóricas, mormente aquelas derivadas de abordagens cognitivistas, que consideram o texto como resultado de processos mentais (os procedimentos de planejamento, de produção etc.). Em seus desdobramentos, já numa perspectiva sociocognitivo-interacionista, essa concepção amplia-se, ainda mais, passando o texto a ser definido, sob o favorecimento de uma visão interacional (dialógica) da língua, como “[...] o próprio lugar da interação e os interlocutores [como] sujeitos ativos que ─ dialogicamente ─ nele se constroem e por ele são construídos” (KOCH, 2004, p. 32 e 33, grifo da autora). A consideração dos interlocutores como sujeitos ativos no processo de interação em que se constrói o texto revela um perceptível entrelaçamento com a teoria da enunciação, que realça justamente, como já prenunciara Benveniste (1989), a fundamental importância do protagonismo do “eu” e do “tu” na produção do sentido do enunciado. Na perspectiva da enunciação, o texto ultrapassa seus limites internos, suas relações internas, seu contexto linguístico para considerar, também, em sua constituição, as relações estabelecidas com a exterioridade: os interlocutores e o contexto enunciativo de sua geração. Como sublinha Guimarães (1995, p. 77), “[...] o texto não é um objeto empírico reconhecível como texto por si e para todos. [...] a pertinência deste objeto não diz respeito à sequência em si, mas à relação desta sequência com o acontecimento em que ela se dá”. Nada mais enfático para dar sentido à compreensão de que, no plano enunciativo, as relações externas ao texto são tão importantes como as internas, uma vez que são igualmente convocadas no processo de constituição/interpretação desse objeto. Em termos aproximativos, a análise do discurso estuda o texto em sua relação com a exterioridade, mas vai além dos limites do contexto situacional em que se concretiza o ato de enunciação, para, numa ultrapassagem, considerar também o contexto sócio-histórico de sua inserção. Nesse novo enquadramento conceitual (tomando como marco os estudos de PÊCHEUX, 1993), entende-se o texto como uma unidade de análise afetada por suas condições de produção (um dos conceitos fundamentais da análise do discurso), que podem ser definidas como 31 o conjunto dos elementos que cercam a produção de um discurso: o contexto histórico-social, os interlocutores, o lugar de onde falam, a imagem que fazem de si, do outro e do assunto de que estão tratando. “Assim se procura ver o texto em sua discursividade [ou seja]: como em seu funcionamento o texto produz sentido [...]. Pensar o texto em seu funcionamento é pensá-lo em relação às suas condições de produção, é ligá-lo a sua exterioridade” (ORLANDI, 2006, p. 16), podendo-se mesmo considerá-lo “[...] como um espaço discursivo, não fechado em si mesmo, pois ele estabelece relações não só com o contexto, mas também com outros textos e com outros discursos [...]” (INDURSKY, 2006, p. 69, grifos da autora). Fiel a essas especificidades, o discurso não escapa à interdiscursividade para constituir-se; ele se constrói sempre numa rede de outros discursos, no seio de relações interdiscursivas. É ao menos, essencialmente, essa a deriva da seguinte afirmação: um discurso nasce sempre “[...] de um trabalho sobre outros discursos” (MAINGUENEAU, 1997, p. 120, grifo do autor). Esses argumentos, sem dúvida, apresentam-se bastante satisfatórios para sustentar a tese de Indursky (2006, p. 72): “O texto, em análise do discurso, está totalmente atravessado pelo interdiscurso”. Essa formulação parece-nos maximamente inspirada no pensamento bakhtiniano, em que, aliás, se apoiam, epistemologicamente, algumas das principais orientações teóricas dos estudos acerca do discurso/do texto. De suas reflexões sobre o princípio dialógico, Bakhtin derivou matéria suficiente para subsidiar esses estudos. É com base nesse princípio que podemos conceber o texto como “[...] um ‘tecido de muitas vozes’, ou de muitos textos ou discursos, que se entrecruzam, se completam, respondem umas às outras ou polemizam entre si no interior do texto” (BARROS, 2007, p. 31, grifos da autora). Explicitando o fato de que a noção de discurso tem um princípio dialógico que lhe é inerente, Bakhtin orienta-se primeiramente para a estrutura da enunciação, que, segundo seu entendimento, “[...] é uma estrutura puramente social”, sendo essa justamente a referência em que se baseia para sentenciar: “A enunciação como tal só se torna efetiva entre falantes. O ato de fala individual (no sentido estrito do termo ‘individual’) é uma contradictio in adjecto” (BAKHTIN, 1992, p. 127, grifo do autor). Em mais um desdobramento subsequente, o autor volta-se para o enunciado, sobre o qual faz a seguinte afirmação: “Um traço essencial (constitutivo) do enunciado é o 32 seu direcionamento a alguém, o seu endereçamento” (BAKHTIN, 2003, p. 301 grifos do autor). Preanuncia-se, nessa linha de raciocínio, a concepção de destinatário, que, no processo interlocutivo, desempenha não só a função daquele que se coloca no ângulo da recepção mas também a de quem possibilita ao locutor perceber o seu próprio enunciado; bem conforme ao perfil que lhe traça Bakhtin (2003, p. 301) no seguinte pronunciamento: “[...] os outros para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo também para mim mesmo) não são ouvintes passivos mas participantes ativos da comunicação discursiva”. Como nos é possível perceber, enredada, nesse modo de raciocínio, está a ideia de que “[...] a compreensão não é uma mera experienciação psicológica da ação dos outros, mas uma atividade dialógica que diante de um texto gera outro(s) texto(s)” (FARACO, 2001, p. 32). Seguindo essas orientações, não há como compreender o texto senão imergindo-o no “[...] amplo e complexo quadro de relações axiológicas que presidem a atividade de produzi-lo (as condições concretas da vida dos textos, suas interdependências e suas inter-relações)”, conforme nos instrui Faraco (2007, p. 49). Nos termos dessa proposição, elimina-se a possibilidade de uma eventual tentação de se proceder a uma análise meramente linguística desse objeto, considerando-se que sua unidade não é dada primordialmente por sua forma: “[...] a vida do texto está nas relações dialógicas que ele condensa e no diálogo que ele suscita, diálogo que não conhece acabamento” (FARACO, 2007, p. 49). Alinhando-nos a essas reflexões, entendemos que o texto escrito, como “[...] ação com sentido, constitui uma forma de relação dialógica que transcende as meras relações lingüísticas; é uma unidade significativa da comunicação discursiva que tem articulação com outras esferas de valores” (GARCEZ, 1998, p. 63). Esses vários olhares na direção do mesmo ponto de referência − o texto − fecundaram inúmeras obras e ainda ampliaram o ângulo de visão/abordagem, deixando, inclusive, entrever confluências teóricas entre concepções aparentemente díspares. Para reconstituir a linhagem histórica do surgimento dessas obras, limitar- nos-emos (sem desconhecer a filiação destas aos seus respectivos discursos fundantes) tão-somente aos registros de trabalhos mais recentes, e que, de modo mais específico, contemplam as questões concernentes a este projeto investigativo. 33 Para a concretização dessa proposta, reportar-nos-emos aos estudos cuja centralidade da abordagem converge para a produção e a avaliação de textos escritos, num particular (e progressivo) direcionamento para o texto argumentativo, a que devotamos particular atenção neste trabalho. Consideramos esse procedimento pertinente por entendermos que a conjugação desses saberes constituirá, em princípio ─ por sua abrangência teórica ─, o lastro em que se deve assentar nossa investigação. No contexto das pesquisas atuais, os interesses investigativos deslocam-se de uma ênfase no produto para uma curiosa necessidade de compreender o processo, mais especificamente o singular processo de produção do texto escrito na escola. Abrem-se, por essa via, francas possibilidades de investigação, notadamente por ser o ambiente escolar um terreno propício à interação verbal, lugar de diálogo entre sujeitos ─ professor e alunos, em particular ─ portadores de diferentes saberes. Busca-se, em tais circunstâncias, compreender o texto oriundo desse acontecimento interlocutivo, protagonizado por atores sociais estrategicamente situados na representação de uma promissora cena dialógica. A percepção do texto como objeto emergente de uma/de várias situações de interlocução é determinante para entender, à luz do princípio bakhtiniano da compreensão responsiva ativa, o seguinte postulado: “Aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo, privado da palavra, mas ao contrário um ser cheio de palavras interiores” (BAKHTIN, 1992, p. 147). É na esteira dessa reflexão que se cria espaço para a notoriedade do leitor, uma vez que se o considera como sujeito ativo no processo de construção do sentido, que, como admitimos, “[...] não está no texto, mas se constrói a partir dele, no curso de uma interação” (KOCH, 2002, p. 30, grifos da autora). Nesse processo, explica-nos Kleiman (1995, p. 65): “A ação do leitor já foi caracterizada: o leitor constrói, e não apenas recebe, um significado global para o texto; ele procura pistas formais, antecipa essas pistas, formula e reformula hipóteses, aceita ou rejeita conclusões”. Tornando ainda mais legítima essa compreensão, Stierle (2002, p. 145) sentencia: “O processo da recepção encontra seu limite apenas na capacidade do leitor de apreender o texto, clara e distintamente, como um conjunto infinito de relações constitutivas de sentido”. 34 Essas constatações assumem sua real importância nas discussões que se vão apoiar nas teorias literárias, em especial as que contemplam o fenômeno da recepção (JAUSS, 2002; ISER, 1996; ECO, 1986), no intuito de conhecer os diferentes tipos de leitores, sobretudo aqueles que se foram consagrando na busca do leitor ideal, capaz de cobrir todos os percursos de leitura de um texto. É certo que essas teorias, como não nos furtamos em reconhecer, afiançam particularmente a leitura do texto literário; ainda assim, resguardadas as peculiaridades desse nível de abordagem, podem proveitosamente aplicar-se à análise da experiência de leitura vivenciada por professores e alunos investidos de seu papel de interlocutores no processo de leitura e produção de textos no âmbito da escola. Não obstante a difusão desses vários saberes sobre o texto/sobre o leitor, e mesmo a ocorrência, por vezes registrada, de sua subsequente aplicação nas práticas pedagógicas consonantes com as modernas propostas teóricas para o ensino do texto escrito, esbarrava-se ainda numa dificuldade a ser superada: como proceder à leitura/à avaliação das produções escolares de modo mais proficiente? Essa inquietação desencadeou notáveis reflexões e, em decorrência, novos interesses no campo das pesquisas, principalmente quando, em 1978 (pelo Decreto Ministerial n. 79.297, de 24 de fevereiro de 1977), foi incluída, em caráter de obrigatoriedade, a prova de redação nos vestibulares de todo o País. Tal decisão representava uma resposta do Ministério da Educação e Cultura à preocupação da sociedade, e dos educadores, em particular, com as deficiências apresentadas pelos alunos ao produzirem seus textos, especialmente porque, sendo a escrita um dos resultados mais visíveis da educação, o quadro que se vinha delineando era bem insatisfatório. Apresentava-se, assim, mais uma oportunidade para o encaminhamento de pesquisas que viessem subsidiar as novas propostas pedagógicas, norteadas, agora, no sentido da real intenção de ensinar os alunos a escrever e os professores a avaliar, de modo mais eficiente, as produções textuais de seus alunos. Em atendimento a essa demanda, muitos trabalhos orientaram sua abordagem na direção do ensino da produção e da avaliação do texto escrito. São obras que abrangem não só as técnicas de elaboração: planificação, seleção e organização de ideias para bem escrever (SERAFINI, 1987; GARCEZ, 2001) como também a análise dos problemas mais correntes nas redações de vestibulares, a exemplo dos 35 estudos sobre o período (PÉCORA, 1977), sobre a organização do parágrafo (MAMIZUKA, 1977) e sobre as provas de argumentação (OSAKABE, 1977), realizados em decorrência de uma pesquisa financiada pela Fundação Carlos Chagas em parceria com o Instituto de Estudos da Linguagem – Departamento de Teoria Literária (Pós-Graduação) da Unicamp. Os problemas diagnosticados por essa pesquisa da Fundação Carlos Chagas despertaram o interesse para (ou apontaram a necessidade de) novas e reiteradas investigações sobre esse objeto de estudo (as redações produzidas pelos vestibulandos), na tentativa não apenas de desvelar as dificuldades encontradas pelos estudantes no cumprimento da tarefa de escrever mas também de efetuar um levantamento de hipóteses relacionadas às origens dessas dificuldades. Esse é, por exemplo, o conteúdo da dissertação de mestrado defendida por Pécora em 1980 (Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp), e publicada em 1983, sob o título Problemas de Redação. Sem desconhecer a inominável relevância do conjunto dos estudos ora mencionados, não podemos deixar de assinalar a substancial importância ─ para a nossa investigação ─ dos trabalhos desenvolvidos por Osakabe e Mamizuka. Em seu texto, Osakabe, ao tratar das provas da argumentação (as provas lógicas e as provas subjetivas ou morais), constata que um dos principais problemas revelados pelos sujeitos, em suas redações, é justamente a fragilidade do raciocínio; na sua denominação, o problema do raciocínio feito, que “[...] se liga diretamente à simples fixação de modos de abordagem de um tema e à conseqüente ‘imobilidade’ no plano da reflexão” (OSAKABE, 1977, p. 58, grifo do autor). Essa é uma constatação que nos parece não haver perdido sua validade. Isso em se considerando o fato de que também atualmente se registra, com elevada constância, na produção do texto argumentativo escrito em situação escolar, essa mesma tendência: os alunos, em número significativo, mantêm-se no nível da argumentação do óbvio, sem se arriscar a assumir uma atitude mais crítica, mais reflexiva, em que se sobressaia a marca de um sujeito pensante. Evidentemente, eles são dotados dessa capacidade; é preciso, então, desenvolvê-la, mas sem tentar adestrá-los com o repetitivo exercício de modelos improdutivos. Esse mesmo alerta podemos subentender no estudo de Mamizuka (1977) a propósito dos problemas de organização do parágrafo. A autora pondera sobre a 36 necessidade de se modificar o ensino dessa unidade discursiva, refutando-se, de partida, concepções que o definem como uma espécie de minirredação ─ uma unidade de significação completa. Na verdade, embora nos seja custoso admitir, muitas propostas de ensino (e isso também atestou a autora em sua pesquisa) que ainda se orientam por essa perspectiva conceptual continuam insistindo na velha prática de solicitar aos alunos a produção de parágrafos isolados, o que pode, naturalmente, resultar numa transposição (para o interior do texto a ser produzido) das malfadadas minirredações. No caso do texto argumentativo, em particular, a ausência de uma progressão lógico-discursiva instituída entre os parágrafos pode comprometer irremediavelmente todo o projeto argumentativo, uma vez que a consequente atomização destes impede a percepção do texto como uma unidade de sentido na particular situação de interlocução em que é gerado. Percurso de leitura semelhante faz Costa Val quando, na sua dissertação de mestrado (defendida em1990 na Universidade Federal de Minas Gerais−UFMG e publicada, em 1994, sob o título Redação e Textualidade), avalia, respaldando-se nos postulados da Linguística Textual, essencialmente, redações elaboradas por candidatos ao Curso de Letras da UFMG, vestibular de 1983, no intuito de fazer um diagnóstico de seus principais problemas (aliás, bem parecidos com aqueles a que nos referimos nas pesquisas da Fundação Carlos Chagas), os quais são sempre apresentados sob o enfoque das noções mais relevantes da teoria, a exemplo da coerência, da coesão entre outras. Mesmo não se definindo como um modelo a ser seguido ─ considerando-se que cada texto é ímpar em sua construção, portanto requer uma avaliação singular ─, esse estudo oferece orientações para que se possa proceder a uma avaliação mais proficiente, na medida em que não somente comenta os problemas focalizados mas ainda, a partir destes, apresenta algumas sugestões para o ensino da redação escolar. Nessa mesma linha de abordagem ─ uma vez que contempla questões específicas de textos produzidos em situação de exame vestibular ─, merece registro uma publicação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Experiência e Prática de Redação (2008), organizada por Ferraro et al. O livro, que contém estudos relativos aos problemas mais evidenciados nas redações de vestibulandos, é resultado de um trabalho desenvolvido por essa instituição de 37 ensino, visando ao aperfeiçoamento teórico-prático do corpo docente envolvido na avaliação das provas de redação do concurso vestibular da referida universidade. Dentre os textos que compõem essa coletânea, destacamos, em especial, a leitura do artigo escrito por Costa Val, denominado Texto, textualidade e textualização, em que a autora retoma o conceito de texto, reapresentando-o em estreita relação com os conceitos de textualidade (definida não mais como algo que está nos textos, mas como um componente do saber linguístico das pessoas) e textualização (entendida como um modo de interpretação, que difere de pessoa para pessoa, podendo, pois, por esse processo, um mesmo texto ser considerado incompreensível para determinados interlocutores e não para outros). Em suas considerações finais, a pesquisadora justifica a pertinência de sua reflexão, ponderando sobre o fato de que o desconhecimento dessas noções pode implicar consequências reais para o ensino de Língua Portuguesa, principalmente se os professores que lidam com a produção e a avaliação de textos não entenderem a inevitabilidade de uma flexibilização no que se refere à aplicação de determinados modelos preconcebidos, e à imposição de regras linguísticas prévias, pretensamente universais e absolutas. Matêncio (1994) já alcançara essa compreensão ao enunciar (após uma experiência de leitura, compreensão e produção de textos compartilhada com duas alunas, cujas histórias de vida e de vivência escolar apresentavam-se bem distintas) a necessidade de o professor lançar um olhar “menos avaliativo” sobre as produções de seus alunos, não no sentido de desobrigar-se de sua condição de avaliador, mas no sentido de aproveitar as experiências prévias dos educandos para, assim, poder- lhes proporcionar um aprendizado complementar em relação aos conhecimentos que estes já dominam. Um ponto em comum pode ser considerado entre esses dois textos: as autoras, embora indiretamente, aludem à formação docente quando salientam a necessidade de os professores estarem preparados para assumirem, em suas práticas, uma atitude crítico-reflexiva nas situações de ensino-aprendizagem que envolvem a leitura, a produção e avaliação de textos. Na verdade, atribui-se aos professores a responsabilidade de propiciar a seus alunos um ensino de leitura e de escrita que lhes possibilite o desenvolvimento da requerida competência discursiva para uma navegação social mais fluente. Aliás, essa é uma preocupação central, e 38 permanente, de significativa parcela da produção acadêmica. E não estamos fazendo referência apenas aos textos que, nitidamente, se inclinam à discussão dessa temática. Estamos fazendo alusão àquelas obras que, de modo ingênuo, são assimiladas como mera divulgação de um saber teórico sobre a disciplina a ensinar, numa clara demonstração de que ainda não se consolidou a compreensão de que entre a teoria e a prática não há uma relação dicotômica; entre estas, estabelece-se uma perfeita comunhão, admitindo-se, como Antunes (2009), que a teoria inspira e fundamenta a prática e que esta, por sua vez, realimenta e instiga a teoria. Inumeráveis, sem dúvida, são os textos cuja leitura deve ser processada em conformidade com esse nível de compreensão. Dentre tantos, restringimo-nos a mencionar aqueles que, nos limites de nosso entendimento, se revelam pertinentes no âmbito de nossa menção. Antunes (2003) é um desses exemplos. Com sua obra Aula de português: encontro e interação, oferece aos leitores uma instigante reflexão sobre a persistência de práticas escolares tradicionais no ensino da língua, embora ─ como reconhece ─ não falte ao professor o respaldo das instâncias superiores que assumiram o discurso de novas concepções teóricas, das quais podem derivar significativas orientações para o encaminhamento de experiências inovadoras. Partindo dessas constatações, a autora discorre sobre um conjunto de princípios teóricos nos quais se devem ancorar novas práticas pedagógicas voltadas para as verdadeiras necessidades dos educandos; notadamente, uma preocupação que ela mesma assume, no curso dessa abordagem, ao sugerir atividades possíveis de ser desenvolvidas pelos docentes no processo de ensino-aprendizagem. É ainda observando a orientação desses postulados, os quais alicerçam sua reflexão sobre as questões precedentes, que tece considerações acerca da avaliação; em seu modo de compreender, uma atividade que, por um lado, deve proporcionar ao aluno a devida consciência de seu progresso real, concernente à aquisição das competências propostas, e que, por outro lado, deve informar ao professor sobre os alcances atingidos pelo aprendiz, a fim de que lhe seja possível, pela intermediação desse conhecimento, definir ou reorientar novos percursos para o ensino. Investindo novamente nessa área de estudos, Antunes assina mais duas obras dignas de registro: Lutar com palavras – coesão e coerência (2005) e Língua, texto e ensino – outra escola possível (2009). No primeiro texto, reiterando sua preocupação com o ensino-aprendizagem da língua, mormente o ensino do texto 39 escrito, a autora discute, mais particularmente, acerca da propriedade textual da coesão, resgatando sempre a sua relação com as demais propriedades, em especial com a coerência. Mas essa não é uma abordagem meramente teórica ou técnica; insinua-se aí uma ultrapassagem, na medida em que a coesão não mais é apresentada como um simples fenômeno da superfície do texto, contrariando (como também o faz KOCH, 2003), a ideia de que todo texto deve ter elementos coesivos em sua composição linear para, então, poder funcionar. Essa ideia é ainda revogada por um interessante exemplário utilizado pela autora para demonstrar que, no mundo da linguagem, nada opera mecanicamente. A coesão, a propósito, desempenha, no texto, um papel bem mais nobre: auxilia-o em seu funcionamento; mas não é necessária nem suficiente para que ele se torne compreensível. Mesmo assim, representa um conjunto de recursos que, se adequadamente empregados, poderão garantir o sucesso de uma interação, desde que, como arremata a autora, topemos o desafio de “lutar com palavras” sem nos deixarmos vencer nessa “luta mais vã”. No segundo texto, mesmo fazendo uma retomada das proposições teórico- metodológicas, objeto de abordagens anteriores, Antunes (2009) orienta sua reflexão para as práticas de ensino da leitura e da escrita, agora contempladas sob a perspectiva dos gêneros textuais, que toma, inclusive, como parâmetro para propor (ou “arriscar-se a propor” ─ como assume a autora) um programa de estudo da língua a partir destes. Na sua visão, trata-se de uma proposta por que se possa orientar o ensino do texto. Por último, vale retomar, nesse estudo, o capítulo sobre avaliação, em que a autora, revisitando o tema, pondera acerca das relações de interdependência que se estabelecem entre ensino e avaliação, por sua vez, processos dependentes da concepção de língua que a eles subjaz. Essa propensão para conjugar, explícita ou implicitamente, a teoria e a prática no tratamento das questões relativas ao ensino da leitura e da produção de textos (e, por extensão, no tratamento da questão dos gêneros textuais/discursivos, contemplados em substanciais abordagens de natureza teórico-prática) também se revela em obras como A prática de Linguagem em sala de aula: praticando os PCNs (Org. ROJO, 2000); Ler e produzir: discurso, texto e formação do sujeito leitor (Org. ZOZZOLI, 2002); Tecendo textos, construindo experiências (Org. DIONÍSIO; BESERRA, 2003); Reflexões sobre práticas escolares de produção de texto: o sujeito-autor (Org. ROCHA; VAL, 2003); Lingua(gem), texto, discurso: entre a 40 reflexão e a prática – vol. I (Org. LARA, 2006); Lingua(gem), texto, discurso: entre a reflexão e a prática – vol. II (Org. MATTE, 2007) e Leitura, escrita e ensino (Org. ZOZZOLI; OLIVEIRA, 2008). Não parece ser outra a pretensão de Koch e Elias (2009) em seu Ler e escrever: estratégias de produção textual, que, desfazendo a insinuação do título, não corresponde a um manual didático, apesar do didatismo que se imprime à discussão dos temas aí apresentados, sempre enriquecidos por exemplos, cujos comentários têm a finalidade de demonstrar, de forma simples, os conceitos teóricos abordados, facilitando-lhes a compreensão por parte do leitor. O objetivo maior, que transparece no próprio discurso das autoras, é o de estabelecer uma ponte entre teorias sobre texto e escrita e práticas de ensino, o que se confirma pela análise do exemplário, no qual se incluem algumas produções escritas em situação escolar. Modelo similar encontra-se em Marcuschi (2008), uma coletânea de todo o material didático subsidiário à disciplina Linguística III, ministrada por ele no curso de graduação em Letras, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no segundo semestre de 2005. É, certamente, uma obra de referência dado o enfoque geral da abordagem, que, em uma perspectiva sociointeracionista, contempla não só noções de língua, texto e textualidade mas também a análise de gêneros textuais no contínuo fala-escrita, e os processos de compreensão textual e produção de sentido. Interessa, particularmente, no trabalho desse autor, a abordagem sobre os gêneros textuais, um extraordinário suporte para o trabalho do professor em sala de aula. Indubitavelmente, já temos, até o momento, “colheita” suficiente para alimentar a afirmação de que se materializa, em boa parte dessas obras, o que há muito vinha sendo vaticinado por Geraldi (1991, 1997) sobre o ensino da língua materna e que se vem reiterar em seu pronunciamento mais recente: “Não há escapatória: no ensino de língua materna, o texto há que estar presente”. E isso justamente porque ele “[...] abre as portas para o inusitado, para o mundo da vida invadir a sala de aula, para o acontecimento conduzir a reflexão, sem que os sentidos se fechem nas leituras prévias e privilegiadas com que os textos têm sido silenciados quando presentes na sala de aula” (GERALDI, 2006, p. 22 e 27). Do reconhecimento da necessária presença do texto no ensino da língua ─ o que também justifica a nossa preferência por esse objeto de estudo ─, passamos à focalização de estudos que mais particularmente se orientam para a análise de 41 textos escritos em situação escolar e sua consequente avaliação, por ser em tais circunstâncias que se instaura nossa investigação. O trabalho de Garcez (1998) inscreve-se nessa linha de pesquisa. Em seu estudo, a autora também investiga processos escolares de construção de textos, buscando compreender os modos de participação/intervenção dos interlocutores (o redator e o leitor/colega leitor-crítico ou professor pesquisador), sujeitos envolvidos na situação interlocutiva de construção/reconstrução dos textos, baseando-se nos eventos de comentários que estes realizam sobre as produções em processo de elaboração (ainda em fase de rascunho). Nos eventos analisados, segundo revela a pesquisadora, os comentários, decorrentes de participação espontânea ─ sem roteiro prévio ─ dos interlocutores, tendencialmente, incidiram sobre as partes do texto que apresentavam problemas de compreensão para o leitor e exigiam transformações. Essa é uma evidência de que as intervenções do outro/do leitor não se limitaram às questões de superfície textual (ortografia, acentuação...). Foram bem além disso: concretizaram-se sob a forma de sugestões que, por vezes, problematizavam o próprio funcionamento do discurso, a construção dos significados, as inferências, e mesmo a viabilidade da interlocução com um leitor virtual. O benefício de uma interlocução assim estabelecida, reconhecemos, em comunhão com o ponto de vista da autora, reside decerto no fato de que ambos os interlocutores (redator e comentarista) participam intensamente do processo, revezando-se no papel de leitor crítico-reflexivo do texto, numa tácita compreensão da necessidade de assumirem, cada um a seu turno, uma atitude responsiva ativa diante da produção textual em devir. Esse modo de participação/intervenção do outro (colega/professor) sobre o texto em progresso revela-se potencialmente produtivo, na medida em que leva o aluno-escritor a perceber as fragilidades de seu texto e mesmo o alcance de sua intenção comunicativa, criando-lhe uma oportunidade ideal para o exercício de seu papel de sujeito-autor. As constatações em registro induzem-nos à pressuposição de que da ação intervencionista do outro, realizando a transição entre o querer dizer do redator e o seu dizer real, depende o bem-sucedido funcionamento do texto junto ao leitor. 42 A defesa da autonomia do aluno como sujeito-autor é um dos pontos de abordagem da obra de Calkins (1989), A arte de ensinar a escrever. É também nesse estudo que, a partir da interrogação sobre o que é essencial no ensino da escrita, a autora ─ recorrendo ao relato de suas experiências (e em parte às experiências compartilhadas com colegas de docência) ─ reflete sobre a natureza da relação interlocutiva que se estabelece entre professores e alunos envolvidos em situações de ensino-aprendizagem do texto escrito. Nesse processo, considera ser imprescindível a atuação mediadora do professor (numa clara alusão ao conceito de zona de desenvolvimento proximal elaborado por Vygotsky, 1994, para explicar as dimensões do aprendizado escolar), justamente porque dele emanam as sugestões ou comentários que podem ajudar na solução dos problemas apresentados nas produções dos alunos. Mas essas orientações precisam ser levadas a sério, tanto pelo aluno quanto pelo professor. Por isso mesmo, a pesquisadora sugere o recurso às conferências individuais ou minilições coletivas, que são definidas como a oportunidade que se coloca ao aluno para que ele, individualmente, converse com o professor sobre seu texto, a fim de esclarecer dúvidas e poder avançar, após a apreciação crítica do mestre, em seu processo de elaboração. Em sua totalidade, a obra é uma referência quando se trata do ensino- aprendizagem/avaliação do texto escrito, vez que abre espaço para a inscrição de práticas bem-sucedidas, descreve estratégias versáteis de trabalho (destacando, por excelência, os benefícios da oportunidade de reescrita) e oferece sugestões e subsídios àqueles educadores preocupados com o desenvolvimento do discurso escrito de seus alunos. O reconhecimento da necessidade de se desenvolver essa arte de ensinar a escrever revela-se ainda em trabalhos como o de Evangelista et al. (1998), cujo sugestivo título Professor-leitor/Aluno-autor: reflexões sobre avaliação do texto escolar já orienta no sentido da compreensão (num primeiro plano de leitura) do lugar que se reserva ao professor e ao aluno, atores “confrontados” na situação de produção-avaliação de textos. O estudo em questão é resultado de uma pesquisa realizada, em 1994- 1995, pelo Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (CEALE) da Faculdade de Educação−UFMG, incumbido de avaliar redações produzidas por alunos da 5ª série do 1º grau e da 2ª série do 2º grau (hoje correspondentes, respectivamente, ao 6° 43 ano do ensino fundamental e ao 2º ano do ensino médio), em atendimento a uma demanda da Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais (SEE−MG) relacionada ao Programa de Avaliação da Escola Pública Estadual. A importância dessa pesquisa, que visava, a princípio, fazer um diagnóstico sobre a competência textual do aluno da escola pública mineira, consiste certamente nas proveitosas lições advindas desse processo avaliativo. Passo a passo, as autoras vão descobrindo/mostrando as múltiplas faces apresentadas pelo texto que o aluno produz em situação escolar. Também tecem considerações sobre a necessidade de se discutir com o aluno (e de se ensinar) ─ tomando como objeto de aprendizagem seu próprio texto ─ questões relativas ao funcionamento do idioma (num reconhecimento da importância de se refletir com os sujeitos-aprendizes sobre fatos da língua, o que deve ser feito por meio de ações que não sejam meramente “correcionais”), além de procedimentos de seleção, ordenação e organização de informações, tendo em vista os efeitos que queiramos provocar, num tipo especial de leitor, por intermédio de um determinado suporte ou veículo textual. Esse modo de focalização representa, por um lado, como nos é dado perceber, uma tentativa de levar o professor-avaliador a entender que, ao avaliar um texto, não se podem desconsiderar as várias possibilidades de leitura criadas por esse objeto, bem como os diferentes modos de apropriação da língua escrita pelo sujeito-aluno nas mais diversas situações de comunicação em que este se envolve no momento de sua produção. Por outro lado, traduz uma visão que já parece estar em sintonia com a compreensão de que também devemos desenvolver no aluno uma competência genérica, no sentido de orientá-lo quanto à escolha do gênero discursivo adequado a cada situação específica de comunicação. Da intenção de desenvolver a arte de ensinar a escrever, de Calkins (1989), e de tantos outros, às reflexões sobre a avaliação do texto escolar, de Evangelista et al. (1998), passando ainda pela proposta de Therezo (2002), que trata da necessidade de se estabelecerem critérios bem definidos, para que se possa realizar uma avaliação mais transparente no sentido da informação a ser dada ao aluno (sugerindo até mesmo a construção de uma grade por item a ser pontuado), chegamos à inquietante pergunta de Ruiz (2001): “como corrigir redação na escola?” Em seu texto (tese de doutorado em Linguística, defendida em 1998, no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp), publicado sob o título Como se 44 corrige redação na escola, Ruiz discute sobre as estratégias de intervenção escrita mais comumente utilizadas pelo professor quando se coloca no papel de avaliador dos textos produzidos por seus alunos. A exemplificação dos tipos mais recorrentes (a correção indicativa, a correção resolutiva, a correção classificatória e a correção textual-interativa) materializa-se via análise de textos corrigidos em função desses parâmetros. A pretensão da autora, ao fazer a descrição geral das referidas formas de correção (as três primeiras, particularmente, já estudadas por SERAFINI, 1987, conforme sublinha Ruiz), é, partindo desses modos de avaliação assumidos pelo professor, investigar como respondem os alunos ─ em termos das alterações por eles realizadas ao reescreverem seus textos ─ quando submetidos a cada um desses procedimentos avaliativos. As conclusões apontam para as vantagens da intervenção de natureza textual-interativa (realizada por meio de “bilhetes”), já que, como afirma a autora, as reescrituras dela decorrentes mostram-se qualitativamente mais produtivas que aquelas orientadas por qualquer um dos demais tipos de correção mencionados. Seguindo os passos de Ruiz (2001), no que concerne à investigação dos modos de intervenção praticados pelos professores sobre os textos de seus alunos (com especial atenção para a ação intervencionista que se concretiza por meio dos bilhetes-orientadores), apresentam-se os estudos realizados por Penteado e Mesko (2006), Buin (2006) e Nascimento (2009). Esses estudos, embora focalizem gêneros textuais/discursivos distintos (no primeiro caso, relatos reflexivos; no segundo caso, comentários e/ou resumos; no terceiro caso, relatório de experiência), constroem reflexões similares, uma vez que buscam explicitar as consequências advindas da intervenção do leitor-professor que faz uso do bilhete avaliativo para orientar o processo de reescrita de textos escolares. As três pesquisas, observando as especificidades de suas abordagens, alcançam resultados consonantes com aqueles já referendados por Ruiz (2001): a correção textual-interativa, efetivada pelo bilhete- orientador, mostra-se fundamentalmente positiva no processo de ensino- aprendizagem do texto escrito. Semelhante perspectiva intervencionista assume o trabalho de pesquisa realizado por Grillo, correspondente à sua dissertação de mestrado (defendida em 1996, na Unicamp), intitulada Escrever se aprende reescrevendo: um estudo da 45 interação professor e aluno na revisão de texto. Em sua pesquisa, a autora avalia os textos de seus próprios alunos, interagindo com eles (quer sob a forma do discurso oral, quer por meio da escrita/dos bilhetes orientadores) no processo de orientação da revisão/reescritura dessas produções, deixando clara a vantagem (para o progresso dos alunos) de um ensino/avaliação do texto escrito que se viabiliza pela ação mediadora do professor. Investigar os modos de interferência do professor em textos dissertativos escritos/reescritos em situação escolar, e ainda analisar as consequências dessa prática interferente no desenvolvimento textual do escritor-aprendiz é também um dos objetivos do estudo realizado por Lopes (1999) em A interferência do leitor virtual-professor na dissertação escolar (correspondente a sua dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal da Paraíba−UFPB). Nessa pesquisa, a autora concluiu ─ via análise dos textos ─ que as intervenções do professor tornam-se mais eficientes à medida que ele consegue investir-se do papel de leitor virtual, procedendo, nessa condição, como aquele que se encontra distanciado do processo de enunciação em que se gerou o texto. Essa postura do professor, diante do texto a avaliar, pode reverter-se (se processada nos termos propostos), como apontam as conclusões, em favor do escritor-aprendiz, uma vez que este se tornará beneficiário de uma leitura mais isenta, portanto mais qualitativamente crítica, o que certamente implicará consequências positivas no resultado final, no sentido de que se dará ao aluno a oportunidade de também ele se investir do papel de leitor crítico de seu próprio texto. Certamente há ainda muitos dizeres a merecer registro; umas tantas ou quantas lições de que nos poderíamos apropriar em reforço a esse aprendizado; não obstante, já nos sentimos pisando em terra firme, o que nos cria a possibilidade de uma ancoragem passageira enquanto traçamos novo itinerário. Nessa ponderação, em se desfazendo a metáfora, admitimos que o percurso de leitura que se cumpriu até o momento gerou conhecimento suficiente para entender como o texto alcançou seu status de unidade básica de comunicação, em cuja arquitetônica se entrelaçam conhecimentos linguísticos, enciclopédicos e interacionais, um saber imprescindível para subsidiar a compreensão do texto argumentativo, objeto mais particularmente focalizado nesta investigação. 46 Também acreditamos haver atingido o intuito de congregar as diferentes abordagens sobre o texto, em seus vários desdobramentos, mostrando-o em suas muitas metamorfoses conceptuais, sem estabelecer qualquer vinculação mais direta com essa ou aquela configuração tipológica ou genérica específica, muito embora tenhamos referenciado alguns trabalhos que, em seu processo investigativo, contemplaram gêneros singulares (a dissertação escolar, por exemplo). Mas não realizamos esse feito sem uma intencionalidade: visamos, conforme esclarecemos previamente, à conjugação de saberes que nos possibilitassem um acercamento substancial do objeto texto, pré-construto indispensável, porque basilar, para uma compreensão, em deriva, do discurso/do texto argumentativo, de que trataremos a seguir. E para um melhor entendimento de sua peculiar natureza, começamos pelo indispensável retorno às suas origens, o que implica deslindar a intrincada situação de seu nascimento, vez que se faz progênito de uma tríplice fecundação: a retórica, a dialética, e a filosofia 47 3 OS SABERES SOBRE O TEXTO ARGUMENTATIVO COMO PONTO DE CHEGADA Certamente essa conjunção de saberes acerca do objeto texto, focalizado em suas múltiplas concepções, já nos seria bastante para franquear uma bem- sucedida travessia desse ponto de partida – os saberes sobre o texto – ao nosso almejado ponto de chegada: os saberes sobre o texto argumentativo. Não obstante, dada a necessidade de esclarecer a embrionária relação estabelecida entre a argumentação, a retórica antiga (vista como arte de persuadir e convencer), a filosofia (defensora absoluta do primado da razão sobre a opinião razoável) e a dialética (a arte de bem raciocinar para alcançar o ideal argumentativo numa controvérsia), pareceu-nos imprescindível, antes, reconstituir o percurso desse acontecimento. Essa convicção firma-se na ciência de que nenhum enunciado (tal como entendemos o texto argumentativo), embora vivendo o seu presente, esquece o seu passado, no sentido de desvincular-se por inteiro de suas origens. Parece-nos, pois, recomendável proceder à reconstituição da historicidade do discurso argumentativo, o que nos levará a entendê-lo para além de uma visão meramente horizontal. Por esse retorno, decerto, seremos capazes de enxergá-lo, em sua manifestação mais plena, como objeto emergente da fusão de inúmeras tensões, que se instauraram entre sujeitos transitoriamente envolvidos na busca por um centro de valor. Assumindo essa perspectiva, colocamo-nos diante da impossibilidade de abordar o discurso/o texto argumentativo efetuando um recorte sincrônico que o assentasse no agora; e esse impedimento justifica-se no fato de antevermos, nesse processo de construção, a irreparabilidade do apagamento/do obscurecimento de uma memória discursiva, em si mesma, indelével; afinal, não podemos cair no esquecimento de que, em sua feição de enunciado concreto, o objeto em foco não poderá ser entendido, de forma mais completa, senão reatado aos muitos fios da cadeia discursiva de que também se faz elo inseparável. 48 3.1 A ARGUMENTAÇÃO: RECONSTITUINDO PERCURSOS A verdade não nasce nem se encontra na cabeça de um único homem; ela nasce entre os homens, que juntos a procuram no processo de sua comunicação dialógica. Mikhail Bakhtin A arte de argumentar desenvolveu-se ao compasso de três disciplinas humanísticas fundamentais: a retórica, a dialética e a filosofia. À sua maneira, cada uma delas adotou a argumentação em seus processos discursivos, tomando-a por arrimo na condução das muitas querelas em que se envolveram, quase sempre com o propósito de minar a probabilidade de uma ascender sobre a outra na acirrada disputa pela possessão da verdade. Não obstante o caráter argumentativo que lhes subjaz, e as confutações com que se rivalizavam, é importante sublinhar, sem com isso descaracterizar o agir filosófico, que a retórica e a dialética revelam-se mais propensas a enredar-se nas vias de discussão. Mesmo assim, diferentemente da retórica ─ que se comprazia com a verossimilhança dos argumentos apresentados, firmando-se na entusiástica convicção de, por meio destes, obter êxito a qualquer custo ─ e em aproximação com alguns preceitos da filosofia, a dialética consagrou-se como “um poderoso instrumento de educação e ascese intelectual”, justamente pelo fato de permitir ao investigador “escapar do círculo das aparências imediatas e alcançar em toda a discussão o horizonte da universalidade necessária” (CARVALHO, 1997, p. 48), guiando-se pelo intento de revogar as contradições interpostas ao entendimento entre as partes em conflito. Avessa às pretensões da retórica, porque obstinada em sua luta por manter intransigentes os critérios que estabelecem a rígida oposição entre o verdadeiro e o falso, a filosofia ─ que se institui como um discurso mais dirigido à razão ─ isenta-se do real compromisso com aquilo que seja puramente relacionado às emoções a serem despertadas na audiência, o que, aliás, condiz com sua própria determinação de aproximar-se da verdade. 49 Ainda nessa visão de confronto, a dialética e a retórica apresentam-se, na interpretação de Reboul (1998, p. 39), como [...] duas disciplinas diferentes, mas que se cruzam como dois círculos em intersecção. A dialética é um jogo intelectual que, entre suas possíveis aplicações, comporta a retórica. Esta é a técnica do discurso persuasivo que, entre outros meios de convencer, utiliza a dialética como instrumento intelectual. [...] se os dois círculos podem cruzar-se, é porque se situam no mesmo plano, e – indo mais longe – porque pertencem em sentido estrito ao mesmo mundo. Embora assuma tal posicionamento ao referir-se a essas duas disciplinas, o autor preocupa-se em esclarecer que estas não desempenham o mesmo papel. De fato, a dialética é bem mais uma arte da investigação. Não é propriamente uma arte de discutir nem de persuadir. Como diz Carvalho (1997, p. 36), em sua Introdução crítica à dialética de Schopenhauer, é “[...] uma técnica de confrontar argumentos contraditórios oferecidos em resposta a uma questão, para encontrar, [subjacente a estes], os princípios de base que permitam dar à questão uma resposta mais racional.” O próprio Aristóteles admite o estabelecimento de uma certa analogia entre a retórica e a dialética, considerando o fato de que ambas tratam de problemas que, num dado sentido, são da competência de todos os homens. Assim, de alguma forma, estariam todos envolvidos com uma ou com outra, na medida em que, sob determinadas condições, todos se empenhariam em submeter a exame ou defender uma tese, em apresentar uma defesa ou uma acusação. É justamente como instrumento de defesa ou de acusação que surge, no século V a. C., a argumentação sob sua forma mais sistematizada. Evidentemente, não nos é permitido ignorar o fato de que suas raízes estão fincadas em um tempo bem mais remoto. E isso no sentido de uma compreensão de que o homem sempre se valeu da argumentação para demarcar sua presença no mundo, e mesmo emitir pareceres acerca dos acontecimentos que lhe sobrevêm no decorrer de sua existência. Sua aparição nesse período (que se dá concomitantemente ao nascimento histórico da retórica, da qual é indissociável) representa, com certeza, o seu rito de passagem de uma identidade privada para uma identidade pública: com o desabrochar da democracia ateniense, os cidadãos passaram a ter direito à voz, podendo tomar a palavra para manifestar-se em público como participantes ativos das assembleias populares, que deliberavam sobre questões de natureza vária. 50 Essa liberdade de pronunciamento implicou uma nova necessidade para os cidadãos. Era impossível, para estes, assumir uma cidadania responsável (com direito a voto decisório sobre a organização do Estado, a fixação de impostos, a declaração de guerra etc.) sem a necessária competência para intervir em foro público. O exercício desse direito que lhes fora outorgado (dessa função política, digamos assim) colocava-se fundamentalmente na dependência do poder da palavra e de seus meios de expressão. Naturalmente, era preciso recorrer a professores que lhes propiciassem a devida formação política. É, então, em tais circunstâncias, que se projetam os sofistas; e também é em decorrência da marcante atuação destes, originariamente, que se dividem as crenças em torno da verdade. 51 A VERDADE DIVIDIDA A porta da verdade estava aberta mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só conseguia o perfil de meia verdade. E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil. E os meios perfis não coincidiam. Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia os seus fogos. Era dividida em duas metades diferentes uma da outra. Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas era perfeitamente bela. E era preciso optar. Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia. Carlos Drummond de Andrade 3.1.1 Da verdade à verossimilhança A porta da verdade, por menos que pareça, esteve aberta desde sempre. Não obstante, na tentativa de “chegar ao lugar luminoso”, muitas polêmicas foram entretecidas no campo epistemológico. Podemos dizer que a origem mais visível dessas discussões remonta ao próprio nascimento da retórica, por volta de 465 a.C., após a expulsão dos tiranos persas da Sicília grega. Libertados da tirania a que estavam submetidos, os cidadãos proprietários de terras passaram a reclamar a reincorporação de seus bens, o que se converteu em verdadeira peregrinação aos tribunais e gerou inúmeros conflitos judiciários. Como não havia advogados, os litigantes ficavam à mercê dos logógrafos (espécie de escrivães públicos), que escreviam suas queixas para que lessem diante do tribunal. A situação não podia ser mais favorável para que entrassem em cena os retores (entre outros, os mais proeminentes, Córax e Tísias), os quais, explorando sua competência oratória, associada à argúcia publicitária, ofereceram aos litigantes e, consequentemente, aos logógrafos um instrumento de defesa extremamente persuasivo; a tal ponto, conforme garantiam, que seria capaz de convencer qualquer pessoa sobre qual fosse o assunto em causa. Ocorre, assim, a primeira investida 52 contra a instituição da verdade, uma vez que a retórica (tal como a conceberam Córax e Tísias em sua Arte retórica ─ uma coletânea de preceitos práticos que continha exemplos para auxiliar as pessoas que recorressem à justiça) não argumentava a partir do verdadeiro, mas a partir do verossímil. E isso era inevitável, na interpretação de Reboul (1998, p. 2-3), considerando-se que, “se no âmbito judiciário se conhecesse a verdade, não haveria mais âmbito judiciário e os tribunais se reduziriam a câmaras de registro”. Fica, assim, bem evidenciado o fato de que, desde o berço, a retórica está inextricavelmente ligada ao campo judiciário como um artifício para persuadir. Na definição de Córax, a retórica é “criadora de persuasão”. Tamanha convicção fazia com que “os retores [se gabassem] de ganhar as causas menos defensáveis, de ‘transformar o argumento mais fraco no mais forte’, slogan que domina toda essa época” (REBOUL, 1998, p. 3, grifos do autor). Era bem essa a essência dos manuais de retórica, que se limitavam a servir como meros catálogos de receitas, vez que recenseavam os argumentos, os mais frequentes, e lhes associavam as refutações correspondentes. Um trabalho descritivo, de finalidade utilitária; em decorrência disso, fortemente distanciado de uma reflexão sistemática e metódica (DECLERCQ, 1992). Esse comportamento pouco ético da parte dos retores rendeu-lhes muitas censuras e alguns constrangimentos. O conflito da retórica e da filosofia inicia-se, de verdade, a partir das críticas endereçadas a Córax e Tísias. Sócrates, por exemplo, condena-lhes o excesso de partição do discurso; a seu ver, um conjunto de prescrições, sem método e sem ideia estruturante, de pouca serventia, pois que não se fundavam sobre a apreensão global da causa. Era inadmissível, para esse filósofo ─ um amante da verdade ─ fazer uso da verossimilhança com finalidades escusas. A arte dos primeiros retores, considerados por ele os antepassados dos sofistas, era enganadora, porque, sendo fundamentada na verossimilhança, permitia inverter todo e qualquer argumento; isso, para um homem hábil, facilitava adaptar a persuasão a seu estrito interesse. Platão e Aristóteles, por seu lado, formulam suas críticas dedicando especial atenção à recorrência massiva às paixões. Esses filósofos asseveravam que o recurso excessivo ao pathos (modo de persuadir o auditório, fazendo apelo às suas emoções/às suas paixões, a fim de privá-lo de raciocínio lógico) representava 53 manobras moratórias, cuja intenção era tolher o juiz em seu julgamento levando-o a desviar-se de um exame metódico e lúcido da causa para a apreciação de cenas patéticas, como advogar cercado pela família explorada ou representar visualmente todo o horror de um crime. Para Aristóteles, tais práticas visavam não apenas ao alcance de um julgamento justo, que fosse realmente digno; mais que isso, elas também representavam choques emocionais, procedimentos de desestabilização psicológica, cujo objetivo principal era obter ou mesmo “arrancar” um julgamento irracional, por isso pouco afeito à verdade dos fatos, e inclusive impróprio do espírito humano. E, ainda assim, mesmo argumentativamente, não constituíam provas pertinentes para a causa em apreço (DECLERCQ, 1992). Não obstante, foi orientando-se por esses fundamentos ─ em particular, assimilando a concepção de Córax sobre o argumento baseado na verossimilhança ─ que os primeiros retores conseguiram estabelecer uma organização para o discurso judiciário. Além disso, também lhes cabe o crédito de haverem elaborado “os lugares” (topoi) ─ argumentos aos quais se poderia/deveria recorrer, no momento apropriado, em qualquer disputa forense. E como nos tribunais o fato de dizer a verdade pouco importava, uma vez que tão-somente se fazia relevante persuadir, era à persuasão que se precisava apelar, caso se almejasse o mérito de ganhar o pleito. Semelhante culto à verossimilhança destoa do ideal filosófico de busca da verdade. Daí o descrédito radical com que os grandes filósofos tratavam essa prática, por eles considerada bem pouco distanciada da própria mentira. Com base nessa compreensão, admitiam que a diferença possível entre uma e outra era tão simplesmente uma questão de grau: se a verdade não era verossímil, fazia-se necessário sacrificá-la em favor de uma mentira verossímil, isto é, aquilo que poderia parecer verdade para a multidão, a qual, para Sócrates, era o antônimo do sábio. É sob esse ponto de vista que a argumentação funda seu sucesso na confluência da ignorância e da mentira (DECLERCQ, 1992) A rejeição dos filósofos recaía justamente sobre essas manipulações falaciosas e capciosas que os sofistas (como Tísias, entre outros) operavam em seus discursos, tirando proveito da verossimilhança e fazendo da arte de argumentar o fundamento do saber e o instrumento privilegiado do poder. Muito provavelmente, é por essa razão (e também porque as vias de acesso à verdade, para os filósofos, 54 eram outras ─ a contemplação ou a reminiscência) que a filosofia socrática concede à argumentação um estatuto subsidiário. Para Sócrates, o método de busca da verdade era a maiêutica, um procedimento argumentativo que faz emergir a contradição e torna ainda mais saliente a falsa aparência, que é a verossimilhança, tal como explorada no discurso sofístico. Apesar dos protestos e das muitas “pedras” arremessadas na direção dos sofistas em repúdio às suas pregações pouco assentadas na verdade ─ conforme a visão de mundo dos filósofos ─, os embates no âmbito da retórica vão ainda além, especialmente com outros retores, como Górgias e Protágoras. Sobre o primeiro, Reboul (1998, p. 4) emite o seguinte parecer: “Com Górgias, surge uma nova fonte da retórica: estética e literária”. Foi ele um dos fundadores do discurso epidítico (um tipo de discurso de elogio público). Para esse fim, construía uma prosa eloquente, entretecida por figuras de notável efeito poético ─ tão bela quanto a própria poesia. Justamente em função dessa exagerada ornamentação que imprimia à sua prosa, ele angariou a reprovação dos filósofos, que viam nessa grandiloquência uma nova ameaça ao estabelecimento da verdade. Mesmo assim, vale registrar, sua ideia de prosa tão bela quanto a poesia alcançou êxito entre os grandes escritores gregos, a exemplo de Demóstenes, Tucídides, e mesmo Platão, um adversário fervoroso dos sofistas (REBOUL, 1998). Ao dispor a retórica a serviço do belo, Górgias reacende a questão em que se vem enredando a retórica e a sofística: “A serviço do belo quererá dizer a serviço da verdade?” (REBOUL, 1998, p. 6). Com mais essa suspeição, novamente se retorna ao ponto de partida, retomando-se a querela em torno da verdade. Comecemos pela tese de Protágoras (também mestre itinerante, como Górgias, ensinava eloquência e filosofia), para quem “o homem [era] a medida de todas as coisas: as coisas são como aparecem a cada homem; não há outro critério de verdade” (REBOUL, 1998, p. 8). Essa proposição, indubitavelmente, coloca-nos diante do mais completo relativismo, como afirma Reboul (1998), pois que, em Protágoras, a máxima “a cada um a sua verdade” corresponde tanto a um indivíduo quanto a uma cidade inteira; é, portanto, “a cidade que, em nome de seu próprio interesse, decide sobre os valores e a verdade”. Numa visão mais abrangente sobre a pregação doutrinária de Protágoras, Reboul (1998, p. 8) assim arremata: “Relativismo pragmático, tal parece 55 ter sido a doutrina de Protágoras. Não existe verdade em si, mas uma verdade de cada indivíduo, de cada cidade; e o importante é aquilo que lhe permite fazer-se valer e impor-se, que é precisamente a retórica”. E nem há como julgar diferente: ao imaginar em perspectiva a possibilidade de ocorrência de dois discursos opostos a incidirem sobre o mesmo objeto, Protágoras nega a existência de uma verdade única. A réplica é assumida por Platão defensor da tese de que não é o homem a medida de todas as coisas, mas, sim, Deus. Para além dessa objeção, o filósofo, que acredita na existência, em qualquer matéria, de uma verdade, a qual se deverá perseguir, reconhece a função purgativa da dialética, uma vez que se cria por meio desse processo, a oportunidade para evidenciar a contradição do adversário ao refutar-lhe as opiniões. Essa compreensão contradiz mais uma vez a crença de Protágoras, considerando-se o fato de que, se as opiniões se contradizem, não podem ser admitidas simultaneamente; uma delas fatalmente deverá ser relegada em favor da outra, isto é, em nome da verdade. “É desta forma [utilizando a técnica dialética para refutar as opiniões do adversário] que Sócrates prepara o caminho à intuição da verdade” (PERELMAN, 1993, p. 165-166). E somente quando a alcança é que o filósofo poderá tirar proveito da técnica retórica para comunicá-la e levar seu adversário a admiti-la. Certamente pode parecer estranha a afirmação de que os filósofos fizessem uso da técnica retórica para a propagação da verdade, uma vez que, como nos revelam os registros, foram os sofistas que criaram a retórica “como arte do discurso persuasivo, objeto de um ensino sistemático e global que se fundava numa visão de mundo.” Também deles se origina a ideia de que “a verdade nunca passa de acordo entre interlocutores, acordo final que resulta da discussão, acordo inicial também, sem o qual a discussão não seria possível” (REBOUL, 1998, p. 9). Todavia, não podemos desconhecer a contrapartida filosófica: A retórica digna do filósofo é aquela capaz de persuadir os próprios deuses, pois procura a adesão a teses verdadeiras e não a simples opiniões. Uma retórica que, negligenciando a verdade, se contenta com a adesão do auditório – mantendo-a, graças a efeitos de linguagem, sob o encanto da palavra, recorrendo à lisonja – é uma técnica da aparência. [...] A retórica, procurando agradar e não se preocupando senão com as aparências, maquilhando a realidade com “cores”, é a técnica demagógica por excelência que todos aqueles que se preocupam com o triunfo da verdade devem combater. O retórico, como o sofista, é mestre da opinião, logo, da 56 aparência, ao passo que o que importa ao filósofo e ao sábio é o conhecimento da verdade e a prática do bem conforme a esta verdade. A dialética é útil para o filósofo porque permite abalar as opiniões errôneas, mas a apreensão da verdade far-se-á graças a intuições; a retórica servirá para as comunicar e fazer admitir. Neste sentido, ela encontra-se nitidamente subordinada à filosofia (PERELMAN, 1993, p. 166, grifo do autor). Demonstrando considerável aquiescência com essa forma de pensar, particularmente no que concerne ao modo de reação à retórica sofística, coloca-se Isócrates, que, ao contrário de seus predecessores, se abstém de toda sorte de exageros, rejeitando quaisquer que fossem os procedimentos que visassem a uma aprendizagem artificial. Em contraposição aos sofistas, ensinava seus discípulos a refletirem sobre os discursos que produziam, debatendo com eles e corrigindo-os no processo mesmo de geração dessas produções, o que fazia dele um mestre digno de ser admirado. Também admirável foi sua prosa literária, que, diferentemente da de Górgias, era “sóbria, clara, precisa, isenta de termos raros, de neologismos, de metáforas brilhantes, de ritmos marcados, mas sutilmente bela e profundamente harmoniosa” (REBOUL, 1998, p. 11). Atingindo tal grau de satisfação (na medida em que atendia às necessidades de ordem jurídica, literária, filosófica e de ensino), a retórica de Isócrates ─ que só seria aceitável se estivesse a serviço de uma causa honesta e nobre ─ parecia bem mais plausível e mais moral que a dos sofistas. Com essa proposição, Isócrates visava moralizar a retórica libertando-a do domínio sofístico. Platão, no entanto, não lhe reconhece o mérito e reaviva sua crítica no sentido de que a retórica em apreço, mesmo a serviço de uma boa causa, não era arte, mas uma falsa adulação. Na concepção desse filósofo, a retórica coloca-se a serviço da dialética, método da verdadeira filosofia, que capacita a falar e a pensar: “Uma retórica do verdadeiro, que não procura o beneplácito das multidões, mas dos deuses” (REBOUL, 1998, p.19). Aristóteles, por sua vez, opõe-se não só aos sofistas, em função de seu relativismo, mas também a Isócrates, que rejeita a idéia de uma ciência absoluta ─ tal como a concebeu Platão ─ sob o argumento de que esta não passaria de logro, uma vez que o homem jamais a alcançaria, pois apenas poderia chegar a opiniões mais ou menos justas. A oposição de Aristóteles sustenta-se justamente na crença de que existe uma ciência exata. Em consonância com o pensamento platônico, 57 [...] admite uma ciência que, por via demonstrativa, parte do verdadeiro para chegar ao verdadeiro. Mas parece que objeta a Platão que a ciência mais exata é impotente para convencer certos auditórios, aos quais falta instrução. É preciso, portanto, utilizar noções “comuns”, ou seja, acessíveis ao comum dos mortais. [...] O domínio da retórica, o das questões judiciárias e políticas, não é o mesmo da verdade científica, mas do verossímil. [...] A retórica não é, pois, a prova do pobre. É a arte de defender-se argumentando em situações nas quais a demonstração não é possível, o que nos obriga a passar por “noções comuns”, que não são opiniões vulgares, mas aquilo que cada um pode encontrar, por seu bom senso, em domínios nos quais nada seria menos científico do que exigir respostas científicas (REBOUL, 1998, p. 26-27, grifos do autor). Perpassando o discurso aristotélico, o autor revela-nos que, em suas ponderações, como podemos constatar, Aristóteles adverte para as prováveis e desastrosas consequências que podem advir do radicalismo de Platão, no que concerne à rejeição absoluta desse filósofo a determinadas formas de manifestação do discurso retórico, mormente aquelas que visavam a auditórios populares. Mas nem por isso ele confina a arte de argumentar à “versatilidade” das multidões ou à demagogia de certos oradores. E mesmo admitindo ser necessário conhecer os meios para contradizer todo argumento à semelhança dos sofistas, a fim de prever suas refutações para poder combatê-los de maneira eficaz, o filósofo pregava uma retórica ética, enraizada na sua filosofia moral, que rezava a inadmissibilidade de defesa de causas que pudessem contrariar o seu imperativo moralizador: a retórica é útil, porque o verdadeiro e o justo são, por natureza, melhores que seus contrários. Esse imperativo ético, reafirmado na sua Retórica, é baseado no entendimento de que “o justo prima naturalmente sobre o injusto; de modo que o triunfo da injustiça não pode provir senão de uma renúncia, de uma demissão humana” (DECLERCQ, 1992, p. 31, grifo do autor, tradução nossa). Como bem interpreta Reboul (1998, p. 27), Aristóteles “[...] salva a retórica, colocando-a em seu verdadeiro lugar, atribuindo-lhe um papel modesto, mas indispensável num mundo de incertezas e de conflitos”. Em oposição a Platão, por seu extremado descrédito concernente à retórica; aos sofistas, que se compraziam com o inverossímil; e mesmo à condenação socrática, Aristóteles reinstitui o valor e as funções respectivas da verdade e da verossimilhança, imprimindo maturidade ao debate em torno dessas concepções. Para o filósofo, apenas a ciência trata do verdadeiro, ao passo que o verossímil rege os demais domínios da atividade humana em que se implicam todos os temas sujeitos à controvérsia. 58 Mas não é nesses termos que se encerra a discussão em torno dessa questão. Isso porque, ao se instalar entre os romanos, a retórica assume novamente a centralidade dos debates, especialmente intermediados pelas ideias de Cícero e Quintiliano. Como advogados eminentes, eles teorizaram, em suas obras, sobre sua prática, abrindo espaço para o florescimento do discurso forense. Cícero, em particular, evidenciava a importância da eloquência no discurso, admitindo sua funcionalidade na arte de convencer. Mas se recusava a aceitá-la em sua feição de discurso artificial, pautado em fórmulas prontas ou meros truques retóricos, que, na sua compreensão, eram totalmente ineficazes. Acreditava piamente no fato de que a eloquência, assim como o estilo, se autênticos, ocorreriam naturalmente no orador, desde que fosse esse um homem culto, versado em todas as áreas essenciais do conhecimento. Em sua concepção, essa não era uma forma de renúncia à retórica, mesmo porque tal ausência, em vez de significar sinceridade (verdade), não equivaleria senão a uma inaptidão ou incapacidade para exprimir-se e convencer. A solução, acreditava, estaria na educação. Era preciso favorecer o homem com uma formação que lhe proporcionasse uma cultura geral, por meio da qual lhe fosse possível alcançar o conhecimento das coisas, sem necessariamente ter de atingir a verdade absoluta, mas se demonstrando capaz de exprimir-se de modo justo e apropriado, de elevar o debate, indo de um caso particular a uma questão geral subjacente (REBOUL, 1998). Em sintonia com as ideias de Cícero, Quintiliano entendia a retórica como arte funcional, revogando-lhe tudo que não fosse absolutamente útil. Era, para ele, a arte de bem falar, o que, em sua compreensão, assumia um sentido não só estético mas também moral. E, em mais uma aproximação com o pensamento ciceroniano, também reconhecia a importância de uma educação modelar desde a infância. Isso implicava, igualmente, conceder ao homem a possibilidade de aquisição de uma cultura geral. De embate em embate, a retórica começa a entrar em declínio. Mas, antes desse ocaso, vive ainda uma controvertida relação no seio da Igreja, que, se, por um lado ─ ancorada na força da verdade das sagradas escrituras ─, abominava os tecnicismos retóricos (tidos como pouco afeitos à verdade), por serem pautados 59 numa cultura pagã, idólatra e imoral, “[...] que só poderia afastar a redenção, única coisa necessária” (REBOUL, 1998, p. 77), por outro lado, não podia prescindir dessa arte para sustentar a sua verdade, e mesmo o seu poder de persuasão diante do auditório de fiéis. Essa parece ser uma prova bem concreta de que não se pode atribuir à Igreja nem, por extensão, ao cristianismo o arrefecimento da retórica; ao contrário, é a Igreja que, de certa forma, a restabelece, mais especialmente em suas pregações, favorecendo, em grande parte, o seu desenvolvimento durante toda a Idade Média. Essa sobrevida, entretanto, tem sua efemeridade decretada pelo projeto cartesiano, que visa subtrair a retórica de sua filosofia, num desejo incontinente de edificar todo o saber em evidências inabaláveis. A ambicionada pretensão de Descartes de “elaborar uma filosofia na qual todas as teses seriam quer evidentes quer demonstráveis, de uma forma constringente, tem por consequência a eliminação de toda a forma de argumentação, de rejeitar a retórica como instrumento da filosofia” (PERELMAN, 1993, p. 167). É óbvio que esse ideal cartesiano de um conhecimento não passível de dúvida, universalmente aplicável, não reserva qualquer lugar à retórica; nem mesmo à dialética, a qual ele repudia justamente por jamais oferecer senão opiniões verossímeis e sujeitas a discussões. Segundo apregoava Descartes, apenas as demonstrações poderiam ser consideradas racionais. O convencimento pela evidência implicava acordo inevitável; o procedimento inverso fatalmente possibilitaria o desacordo. Isso, para ele, era indicação de erro, como atestam suas próprias palavras: Sempre que dois [homens] têm sobre a mesma coisa juízos contrários, é claro que pelo menos um deles se engana; e ainda nenhum, em verdade, parece possuir ciência, pois se as razões de um fossem certas e evidentes, este poderia dizer ao outro, de modo que chegasse a convencer finalmente seu entendimento (DESCARTES, 2006, p. 75). Como é possível constatar, o filósofo somente admitia a verdade no plano da incontestabilidade das ideias. O verossímil prestava-se apenas para nomear aquilo que não se podia considerar como verdadeiro. Essa explícita “condenação” ao primado do verossímil, conforme instituído pela retórica, acentua ainda mais o desprestígio desta, ao ponto de não mais sobrar-lhe espaço senão para fazer frente 60 a duas outras significativas rejeições: a do positivismo, que a recusa em nome da verdade científica; e a do romantismo, que a desaprova em nome da sinceridade. Implodidos os seus pilares, a retórica tem anunciado o seu fim. Segundo Reboul (1998), sua falsa saída de cena, já que ela não morreu, dada sua visível sobrevivência no ensino literário e nos discursos jurídicos e políticos. No campo literário, em especial, ganhou novos contornos, transformando-se (particularmente com os estudos de Jean Cohen, do grupo MU, de Gérard Genette e Roland Barthes) em investigação dos procedimentos da linguagem característicos da literatura, uma retórica, portanto, restrita à elocução, da qual somente contempla as figuras, não sendo outro o seu objetivo fundamental. No julgamento de Perelman (1993, p. 19), essa é uma visão por demais reducionista. Em justificativa a esse posicionamento, ele assim se pronuncia: Examinando as figuras fora de seu contexto, como flores ressequidas num ervanário, perde-se de vista o [seu] papel dinâmico [...]: todas elas se tornam figuras de estilo. [...] Se não estão integradas numa retórica concebida como a arte de persuadir e de convencer, deixam de ser figuras de retórica e tornam-se ornamentos respeitantes apenas à forma do discurso: não é, pois, digno de consideração encarar uma recuperação moderna, mesmo duma retórica das figuras, fora do contexto argumentativo. A “censura” de Perelman (1993), por certo, não diminui o valor desses estudos; alude particularmente à contida finalidade de uma retórica que se limita às figuras de linguagem, de caráter puramente literário, sem relação alguma com a persuasão. Mas essa é uma discussão que não pretendemos levar adiante por estar além de nossos interesses. Os passos que nos guiaram até aqui são registros de passagem; mesmo assim, impossíveis de omitir, considerando-se o fato de que tão- somente realizando essa retrospectiva poderíamos entender o indissolúvel vínculo estabelecido desde sempre entre a argumentação e a retórica e dialética gregas. Reconstituir os vínculos com o passado ─ como ficou patente ─ não se revelou mero volteio histórico; inegavelmente, precisávamos desse conhecimento seminal a fim de, em nosso retorno ao presente, compreender o singular confronto verdade x verossimilhança em toda a sua plenitude e atualidade, para, a partir dessa descoberta, poder assimilar, com maior discernimento, a concludente afirmação de Perelman (1996, p. 1): “O campo da argumentação é o do verossímil, do plausível, do provável, na medida em que este último escapa às certezas do cálculo”. Mas isso 61 não implica, na ótica do autor, ter de renunciar à razão em proveito do irracional ou do indizível. Nesse sentido, a opção prevalente funda-se na imprescindibilidade de se dever alcançar o verossímil sem fugir ao raciocínio lógico nem descambar para a violência. Evidentemente, não será fácil atingir esse nível de aprimoramento; a não ser dominando o saber sobre o modo de funcionamento do discurso argumentativo, uma ciência que faremos vir a lume pelo discurso de alguns (entre tantos) autores, cujas obras se consagraram como basilares no tocante à argumentação. 62 3.2 O TEXTO ARGUMENTATIVO E SEU FUNCIONAMENTO 3.2.1 Os muitos já-ditos para um saber sobre o objeto A argumentação ─ desde suas mais evidenciadas manifestações na cena discursiva ─ vem se tornando cobiçado ponto de pauta de vários estudiosos, cuja disposição principal é chegar a uma sistematização verdadeiramente representativa dos saberes atinentes a essa matéria. Em termos aproximativos, também aspiramos a semelhante alcance ao nos propormos discorrer sobre o modo de funcionamento do texto argumentativo, o que não poderemos fazer a contento senão pelo recurso prévio aos referidos saberes, cabedal indispensável à consecução desse propósito. Estabelecida a necessária ponte, iniciamos a travessia pela via de acesso ao conhecimento da arte de argumentar. Não obstante, tendo em vista o número incontável dos estudos devotados a essa temática, e ainda a nossa pretensão de nos mantermos sempre nos limites do circunscrito a esta investigação, ancoramo- nos apenas naquelas obras que, notadamente, se estabeleceram como marcos da teoria contemporânea acerca da argumentação, sem nos preocuparmos com sua gênese ─ o que já foi devidamente contemplado na seção anterior. Mesmo assim, parece-nos inevitável que, por meio dos trabalhos referenciados, façamos essa retrospectiva, com uma regular constância, uma vez que, direta ou indiretamente, todos esses estudos apresentam-se profundamente enraizados na tradição retórica, mais especialmente aquela de embasamento aristotélico. Considerando o que se propôs para esta abordagem, registramos, com base em sua precessão, o estudo de Perelman e Olbrechts-Tyteca no Tratado da argumentação – a nova retórica (1996). Numa primeira apreciação, a referida obra ─ como os próprios autores a apresentam ─ preocupa-se, essencialmente, com a estrutura da argumentação, sendo esta concebida como “[...] o estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhes apresentam ao assentimento” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 4, grifos dos autores). Assumindo essa concepção como ponto de partida para compreender a dinâmica do processo argumentativo, os autores sugerem duas medidas cautelares imprescindíveis à obtenção do sucesso em qualquer empreendimento discursivo 63 pautado na argumentação. A primeira dessas medidas alinha-se à compreensão de que, “[...] para argumentar, é preciso ter apreço pela adesão do interlocutor, pelo seu consentimento, pela sua participação mental.” A segunda, nesse mesmo tom de advertência, coloca acento no fato de que “[...] querer convencer alguém implica sempre certa modéstia da parte de quem argumenta, o que ele diz não constitui uma ‘palavra do Evangelho’” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p.18, grifo dos autores). De fato, não dispomos dessa autoridade, que torna o nosso ponto de vista incontestável, de tal maneira a alijarmos o outro do espaço discursivo, obrigando-o a mudar sua filosofia, sua ideologia, sua religião ou qualquer outro modo de pensar, com o único propósito de obter-lhe uma “rendição” incondicional. Contraditoriamente, aquele que argumenta deve entender, conforme Maneli (2004, p. 79), que “[...] as pessoas não são robôs ou máquinas, [...] elas são indivíduos que pensam e que [podem mesmo ter] idéias ou convicções diferentes ou até contrárias àquelas do argumentador”. É possível constatar, na linha desses pareceres, que, para esses autores, o auditório assume, indiscutivelmente, um lugar especial, tanto na determinação dos meios por que se deverá conduzir a argumentação quanto no modo como o orador irá comportar-se ao proferir o seu discurso. E essa deferência tem sua justificativa bem consolidada: a argumentação é inteiramente voltada àqueles que procura influenciar. Daí porque se torna indispensável ao orador prefigurar uma imagem bem fidedigna dos interlocutores em função dos quais elabora seu discurso, sendo esse o requisito de primeira ordem para construir uma argumentação eficaz. Na perspectiva de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) ─ que entendem o auditório como sendo uma construção do orador ─, o que modela a persuasão é justamente a maneira como o orador se ajusta à sua audiência, presumindo-lhe uma idealizada representação, em termos das ideias e/ou das reações que lhe atribui previamente. Nessa direção, os autores também advertem: “A argumentação efetiva tem de conceber o auditório presumido tão próximo quanto o possível da realidade. [Isso porque] uma imagem inadequada do auditório [...] pode ter as mais desagradáveis conseqüências” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 22). A grande dificuldade desse ajustar-se à audiência reside exatamente na impossibilidade de determinar, com maior transparência, o tipo de auditório em torno do qual se centra a argumentação, levando-se em conta a quase infinita variedade 64 com que se pode confrontar o orador. Perelman (1993) orienta-nos a melhor saída: “Se se quer definir o auditório de forma útil para o desenvolvimento de uma teoria da argumentação, deve-se concebê-lo como o conjunto daqueles que o orador quer influenciar pela sua argumentação” (PERELMAN, 1993, p. 33, grifos do autor). Mas é necessário não esquecer, como nos alerta o autor, o fato de que esse conjunto tende a se mostrar bem impreciso, na medida em que pode ser representado pelo próprio orador ─ no caso de uma deliberação íntima ─, quando se trata de tomar uma decisão numa situação delicada; pela humanidade inteira (ou pelo menos por todos os homens adultos e normais), que o autor denomina auditório universal; ou pelos diversos auditórios particulares. Ainda em torno dessa questão, parece-nos importante esclarecer que a concepção de um auditório universal deriva essencialmente do entendimento de que uma argumentação não pode visar tão-somente a um auditório particular, sob pena de o orador habituar-se de tal maneira a seu público ouvinte que se contentará em nivelar seu discurso ao modo de ver daqueles a quem se dirige numa dada situação. Convém observar que essa postura “negligente” pode colocar em risco a reputação do orador frente a um auditório não incluído nessa unanimidade, diante do qual suas teses podem até soar estranhas ou pouco convincentes em confronto com as demais crenças estabelecidas. Além do mais, como se coloca plausível o fato de que a instituição dessa unanimidade depende do número e da qualidade dos que a manifestam, somente será possível alcançá-la pelo acordo do auditório universal. Evidentemente, esse ideal de unanimidade/universalidade permanece circunscrito à imaginação do orador, uma vez que o acordo desse auditório universal não é um fato experimentalmente comprovado. Apesar disso, se pretende ser bem- sucedido, o orador deve guiar-se pela expectativa do acordo de um auditório que presume como universal. Só assim se obrigará a levar em consideração, inclusive, aqueles que não participam, efetivamente, de seu auditório particular. Reboul (1998) assimila e rediscute a noção de auditório universal. Em sua reflexão (em que contempla as cinco características essenciais da argumentação ─ incluindo-se, entre outras, a particularidade de dirigir-se a um auditório), tenta responder a alguns questionamentos que o orientam à compreensão de que esse auditório universal não é, como se poderia supor, apenas uma pretensão, ou mesmo um truque retórico. Em sua concepção, prever o auditório universal será o mesmo 65 que buscar o ideal argumentativo, no sentido de que o orador pode sabidamente tratar com um auditório particular, mas, intencionalmente, construir o seu discurso para além das expectativas desse público como se visasse a outros auditórios possíveis aos quais devesse igualmente convencer satisfazendo-lhes as mais exigentes aspirações ou até mesmo se antecipando às mais insuspeitadas objeções. Como é possível constatar, por diferente percurso reflexivo, o autor conclui, em analogia com o pensamento perelmaniano, que, enredada na pressuposição de um auditório universal, pode estar a consistência de uma argumentação. Essa mesma preocupação com o auditório (que se redimensiona ainda na obra de Perelman-Tyteca, criando um novo contexto de recepção para o texto escrito) reflete-se em Breton (1999), que retoma, no interesse de sua abordagem, a ideia de auditório particular. Na concepção desse autor, o auditório, em qualquer de suas representações (seja este representado por uma única pessoa, por um público, por um conjunto de públicos e, em caso extremo, pelo próprio orador, quando ele procura se autoconvencer), deve ser tomado sempre em sua particularidade, em sua especificidade. Na confluência dessas reflexões, encontramos arrazoado suficiente para sustentar a crença de que esses saberes sobre o auditório (particular/universal) revelam-se extremamente apropriados para subsidiar o trabalho com a produção do texto argumentativo escrito em situação escolar. Isso por compreendermos que, em semelhante acontecimento, alunos e professores, envolvidos no processo de ensino- aprendizagem desse tipo de texto, veem-se protagonizando relações de natureza bem parecida, considerando-se o fato de que não se escreve senão visando a um leitor, mesmo se concebendo este fisicamente ausente dando-nos a impressão de uma escrita solitária. Em outras palavras, o texto produzido pelos aprendizes no âmbito da escola − ainda que enquadrado na artificialidade do exercício de escrita que se concretiza nesse espaço − será sempre regulado/condicionado, consciente ou inconscientemente, por uma imagem de leitor a quem se dirige e a quem tenta satisfazer as expectativas. Todavia, não nos parece ser esse o saber que rege a prática docente no que concerne a essa abordagem. Notadamente, os professores demonstram pouca ciência quanto ao modo de funcionamento do texto argumentativo; muito embora reconheçam a real necessidade de se incluir o seu estudo como conteúdo essencial 66 nos programas de ensino. Essa é, certamente, a posição assumida pelos docentes, sujeitos desta pesquisa, que, ao justificarem a escolha desse tipo de texto como objeto de ensino, imprimem, em seu discurso, a bem marcada ressalva de que essa preferência não se deu em função do vestibular (uma preocupação que, nos dias atuais, certamente estaria, também, centrada no ENEM). A fundamental importância desse ensino-aprendizagem, segundo admitem os professores, reside no fato de poderem oferecer aos alunos a oportunidade de se apropriarem de um saber, por meio do qual poderão tornar-se verdadeiramente conscientes de seu estar no mundo: Eu acho que esse ensino-aprendizagem [do discurso argumentativo], principalmente, visa despertar no aluno essa capacidade de saber raciocinar e de saber interpretar o mundo. E aí eu acho que o trabalho com o texto argumentativo, ele vai propiciar isso, no sentido de saber ler o mundo e posicionar-se a respeito dele, ter mais clareza a respeito do que acontece, do que o cerca. Eu acho que a grande contribuição do trabalho com o texto argumentativo seja exatamente essa (PROFESSOR JONAS, sujeito de pesquisa, em entrevista à pesquisadora, junho de 2008, p. 7). É, por certo, a expressão de um saber de limitada abrangência sobre o modo de funcionamento do texto argumentativo. Não obstante, havemos de lembrar que o propósito comunicativo do enunciador era tão-somente justificar o benefício que o aprendizado da argumentação poderia trazer para a vida dos alunos, o que acentua, sob essa ótica, a pertinência da inserção desse tipo de texto no programa do curso. Esse esclarecimento, acreditamos, pode revelar a justa causa de tão concisa manifestação de saber em relação ao objeto focalizado. Entretanto, situando-nos num outro posto de observação, vislumbramos alguma “falência” no ensino-aprendizagem do texto argumentativo. Aludimos, nessa passagem, à natural relevância que se deveria dar ao processo de interlocução em que se assenta integralmente a construção desse texto. O exemplo mais concreto desse involuntário “esquecimento” materializa-se, de maneira mais evidente, na proposta de produção textual que os professores costumam apresentar a seus alunos. Na maioria das situações, não se registra, nesse instrumento orientador (vale fazer uma remissão às duas propostas – anexo 06 − que regem a atividade de produção dos textos argumentativos, objetos de análise desta tese), uma menção à imagem do provável leitor do texto, no sentido de despertar o aprendiz para a 67 compreensão de que se dirige, por seu texto, a um sujeito-leitor com quem deve estabelecer uma interlocução necessária e inevitável. E deveria ser bem diferente; afinal, aquele que escreve precisa saber, por antecipação, que seu texto tem um endereçamento. Como nos ensina Bakhtin (1992, p. 113), “[...] toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém”. Por isso mesmo é que se deve atribuir ao sujeito-locutor a intransferível responsabilidade de construir uma imagem de leitor o mais aproximada possível de sua verdadeira “encarnação”. Recapitular alguns postulados da estética da recepção poderia iluminar a prática docente, no sentido de esclarecer os professores quanto ao fato de que esse leitor é de uma complexidade singular, uma vez que se substancializa ora no papel de audiência imaginária, idealizada ou mesmo empírica, ora como suporte de estratégias de decifração. Sua estampagem genética metamorfoseia-se, a cada vez, para assumir suas várias identidades: pode tomar a forma do leitor implícito de Iser (1996), que, sendo prefigurado pelo texto, subjaz nas suas estruturas; ou comportar- se como o leitor explícito de Jauss (2002), uma entidade real, historicamente determinada, subordinada às condições subjetivas e aos condicionamentos sociais; ou mesmo apresentar-se como “[...] uma espécie de tipo ideal que o texto não só prevê como colaborador, mas ainda procura criar”, o que contemplaria o leitor- modelo de Eco (1994, p. 22). No intuito de esclarecer ainda mais sobre essa entidade, consideramos de fundamental importância recorrer às formulações teóricas de Bakhtin, que nos levam a compreender como, no processamento do texto escrito, o destinatário influencia a construção do discurso: Todo enunciado tem sempre um destinatário (de índole variada, graus variados de proximidade, de concretude, de compreensibilidade, etc.), cuja compreensão responsiva o autor da obra de discurso procura e antecipa. Ele é o segundo (mais uma vez não no sentido aritmético). Contudo, além desse destinatário (segundo), o autor do enunciado propõe, com maior ou menor consciência, um superdestinatário superior (o terceiro), cuja compreensão responsiva absolutamente justa ele pressupõe quer na distância metafísica, quer no distante tempo histórico. “Um destinatário como escapatória.” Em diferentes épocas e sob diferentes concepções de mundo, esse superdestinatário e sua compreensão responsiva idealmente verdadeira ganham diferentes expressões ideológicas concretas (Deus, a verdade absoluta, o julgamento da consciência humana imparcial, o povo, o julgamento da história, etc.) (BAKHTIN, 2003, p. 333, grifo do autor). 68 A concepção de superdestinatário em Bakhtin parece-nos corresponder similarmente à ideia de auditório universal, tal como o conceberam Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996). Nas situações de ensino do texto argumentativo escrito, o domínio desse saber (o superdestinatário/o auditório universal) notabilizaria seu rendimento se utilizado como estratégia para lidar com aqueles leitores que supomos situados para além do destinatário segundo (de quem o autor busca obter a adesão/compreensão, e cuja imagem mais ou menos antecipa em seu texto). Essa instância (digamos) superior, que “[...] transcende o espaço físico e as circunstâncias meramente temporais [...] pode constituir, também, o conjunto de representações ideais de leitor, com as quais o autor gostaria de ser coerente e estar em sintonia” (GARCEZ, 1998, p. 63), ou de se identificar, considerando-se, inclusive, o fato de que, quando escreve, nem sempre tem como meta unicamente um leitor particular ou concreto É justamente visando a essa identificação ─ por meio da qual pretende alcançar a eficácia do discurso ─ que o orador, como aquele sobre quem pesa a difícil incumbência de influenciar opiniões (as quais, oportunamente, deverão, por certo, consubstanciar-se em atos), deve produzir, por seu discurso, uma imagem adequada de sua pessoa, devendo ser esta em quase tudo semelhante àquela representação do orador confiável e competente, que supõe preexistente em seu auditório. “Essa representação desempenha o papel de um fiador que se encarrega da responsabilidade do enunciado” (MAINGUENEAU, 1995, p. 139, grifo do autor), uma situação que se torna ressurgente no texto escrito, cuja “leitura faz emergir uma origem enunciativa, uma instância subjetiva encarnada que [também] exerce o papel de fiador” (MAINGUENEAU, 2005, p. 72). No caso do texto argumentativo escrito em situação escolar, também se configura uma condicionalidade do locutor/escritor (no papel de aluno) ao seu interlocutor/leitor (papel fatalmente atribuído ao professor-avaliador), induzindo-nos à crença de que o poder da persuasão situa-se, em boa medida, nesse jogo especular das imagens que se projetam reflexivamente no processo da enunciação. Ora, se os aprendizes rendem-se à satisfação das supostas expectativas docentes, quando escrevem seus textos, também os professores, investidos do papel de avaliadores, não escapam às “armadilhas do espelho”, no qual, imaginariamente, veem refletido o perfil atitudinal do aluno. Essa projeção imagética pode, não raro, “contaminar” o 69 adequado julgamento, na medida em que induz o avaliador a uma percepção mais (ou menos) distanciada daquilo que, naturalmente, seria considerado um rendimento ideal, uma aprendizagem relevante. Essa contaminação, nos termos de Sacristán (1998, p. 306), esse [...] “efeito halo [...] é inerente às percepções humanas, e delas se nutre a avaliação; por isso, a objetividade é impossível”. Não é sem razão, pois, que os professores tentam isentar-se, o quanto podem, aplicando critérios mais objetivos em suas avaliações a fim de não se deixarem influenciar pelas referências individuais, pelo histórico do sujeito-aprendiz. Submeter-se passivamente a essa influência é arriscar-se a emitir um parecer pouco confiável, considerando-se o fato de que se realiza um julgamento sobre o valor pessoal e não, efetivamente, sobre o objeto produzido pelo aprendiz para a devida apreciação e consequente valoração. Nos fragmentos de discurso seguintes (proferidos por alunos sujeitos da pesquisa), podemos encontrar a prova desse enredamento: “[...] Ah! Porque aquilo vale nota!” (ALUNO BENTO, em entrevista à pesquisadora, dezembro de 2008, p. 25); “Assim, eu tenho muito medo de expressar meus argumentos, pois eu não sei qual é o ponto de vista da professora” (ALUNA EMÍLIA, em entrevista à pesquisadora, dezembro de 2008, p. 27); “Eu faço botando as minhas opiniões, mas de um jeito que possa ser avaliado como um texto legal, bem feito” (ALUNO ERNESTO, em entrevista à pesquisadora, dezembro de 2008, p. 25). Também o discurso docente manifesta essa mesma propensão: Essa é uma situação complicada. [...] acho que saber de quem é a redação pode influenciar nessa indulgência ou nessa severidade, gerando mesmo certa insegurança. Procuro não me deixar influenciar; é preciso ter bastante lucidez na hora de avaliar. Infelizmente, nem sempre conseguimos. [...] não se pode deixar que a falta de afinidade com determinado aluno influencie na avaliação de seu texto ou também a presença da afinidade, na benevolência da avaliação (PROFESSORA MARGARIDA, sujeito de pesquisa, em entrevista à pesquisadora, junho de 2009, p. 7). Essas revelações ilustram muito bem porque Aristóteles admitia o papel persuasivo do ethos (o caráter que o orador deve assumir para inspirar a confiança no auditório) e do pathos (o conjunto de emoções, paixões e sentimentos que o orador deve suscitar no auditório com seu discurso). Embora seja impossível negar que esses “tipos de argumento” imponham sua relevância na construção de um discurso persuasivo, ainda persiste uma notável tendência para afiançar/crer que o 70 verdadeiro “corpo da persuasão” repousa nos argumentos propriamente ditos, no logos. Todavia, convém lembrar que o peso dessas três provas é relativo, uma vez que depende do gênero oratório ou, em uma linguagem mais moderna, do tipo de texto. Assim, Aristóteles sublinha que a qualidade do orador é mais útil no discurso deliberativo enquanto a “sensibilização afetiva” é mais importante para o judiciário. Se a disposição afetiva está ligada ao ouvinte, seria inexato concluir que ele se deixa convencer unicamente pelo pathos – conclusão que seria necessariamente falsa, uma vez que o ouvinte se deixa convencer, por definição, pelas três provas, LOGOS, ETHOS, PATHOS (EGGS, 2005, p. 41, grifos do autor). Em linhas gerais, esse é o pensamento de Reboul (1998) quando julga ser inadmissível, em retórica, separar razão e sentimentos. Na compreensão desse autor, o discurso persuasivo recorre tanto aos meios de competência da razão (os argumentos) quanto aos meios que dizem respeito à afetividade (o ethos e o pathos). E mesmo quando faz a distinção entre os dois aspectos que respondem pelo persuasivo do discurso (aos quais denomina o argumentativo e o oratório), alerta para a dificuldade de determinar essa diferenciação, tomando, a título de ilustração, o caso das figuras de estilo ─ a exemplo da metáfora, da hipérbole, da antítese ─, que são consideradas oratórias por contribuírem para agradar ou comover, mas são também argumentativas no sentido de assumirem a força de um argumento, na medida em que o condensam, tornando-o mais contundente. Não basta, no entanto, o reconhecimento dos meios por que um discurso se torna persuasivo. Também não é suficiente ao orador saber fazer uso da palavra, simplesmente. Cabe-lhe, antes de tudo, saber exercitar a persuasão, tendo por certo o fato de que nunca está sozinho; o seu discurso não é um acontecimento isolado. Coloca-se sempre em confronto com outros discursos “que o precederam ou que lhe sucederão, que podem mesmo estar implícitos [...], mas que contribuem para dar sentido e alcance retórico ao [seu] discurso”. Assim sendo, se realmente visa persuadir/convencer, deve previamente buscar o conhecimento sobre os que lhe fazem face, numa clara percepção da fundamental importância de “compreender o discurso do outro, seja esse discurso manifesto ou latente, detectar suas ciladas, sopesar a força de seus argumentos e sobretudo captar o não-dito” (REBOUL, 1998, p. XVIII-XIX). 71 Aproximando-se desse modo de reflexão, Breton (1999) dedica especial importância às modalidades de recepção do argumento. Mesmo porque, em seu entendimento, nenhuma opinião é lançada em terreno virgem. Cada um dos sujeitos envolvidos num processo argumentativo tem previamente firmado um ponto de vista que pode até ser mais ou menos próximo daquele que lhe é apresentado. Em razão disso, impõe-se ao orador a necessidade de conscientizar-se quanto ao fato de que sua tese deverá provavelmente defrontar-se com um conjunto de representações, de valores, de crenças próprias do auditório a quem se dirige. Essa é, inegavelmente, a evidência de que a argumentação não pode ser reduzida tão-somente a uma técnica. Necessita, para além disso, de pilares éticos: a concessão da liberdade de adesão a uma opinião/tese proposta, a autenticidade dos argumentos usados e a relatividade das ideias que defendemos, as quais não passam de meras opiniões de um único indivíduo. O autor também manifesta alguma reserva quanto à necessidade de se proceder a uma exaustiva classificação dos argumentos por considerar ser pouco provável a existência de “argumentos puros”. Em reforço a essa consideração, apresenta o caso do argumento pelo exemplo, que, a seu ver, implica sempre uma espécie de comparação e é, em si mesmo, um apelo à autoridade do fato exemplar. E ainda, numa largueza de análise, demonstra ser perfeitamente possível encontrar nele uma ponta de analogia e mesmo um raciocínio metafórico. Entretanto, não descarta a possibilidade de se recorrer a dominantes que podem orientar análises menos sujeitas às “contaminações” de fronteira entre os argumentos. Não podemos deixar de assinalar a importância dessa observação para o ensino-aprendizagem do texto argumentativo escrito. Se, de fato, como pondera o autor, dificilmente nos caberá lidar com argumentos puros, essa é uma boa razão para tomarmos como referência primeira a classificação corrente, em função da qual podemos apurar as “tonalidades” possíveis de ser assumidas por um mesmo argumento, a fim de orientar os aprendizes quanto ao potencial persuasivo e às possibilidades de uso deste em determinados contextos argumentativos. Também consideramos bastante producente trabalhar os vários tipos de argumentos, não necessariamente a extensa nomenclatura que cobre essa categoria, mas, pelo menos, uma versão aproximada daquela apresentada em Perelman e Olbrechts- Tyteca (1996), destacando-se, entre tantos, os de uso mais constante, a fim de 72 poder instrumentalizar os alunos para um melhor desempenho quando solicitados a argumentar em situações diversas, quer em ambiente escolar, quer na vida em sociedade. Como se pode constatar, da análise detalhada da dinâmica argumentativa (incluindo-se nesse processo uma revisão cuidadosa dos principais argumentos mais correntemente utilizados), à abordagem de questões mais complexas ou da proposição de critérios simples que permitem distinguir entre as diferentes técnicas de convencimento (tais como a manipulação, a propaganda, a sedução, ou ainda a demonstração e a própria argumentação pelo raciocínio lógico), Breton (1999) realiza um estudo de fundamental importância. E esse crédito, vale sublinhar, não lhe é devido apenas pelo fato de haver construído um saber mais sistematizado acerca da argumentação no campo da comunicação moderna. Além disso, também nos legou um conhecimento mais eclético sobre os procedimentos argumentativos, que podem favorecer amplamente o aprendizado de professores e alunos envolvidos no processo de ensinar-aprender a argumentar. Também marcou sua notável influência no campo da pesquisa sobre argumentação a obra de Toulmin (2006). Seu basilar contributo está associado à apresentação de um modelo básico e flexível de análise da estrutura do argumento, fazendo ancoragem numa lógica informal, aplicada ao discurso ordinário. Conforme postula o autor, o argumento mais simples assume a forma de uma proposição ou de uma conclusão precedida por dados que lhe servem de apoio. Em alguns casos, como ele próprio justifica, testam-se os dados pela exigência de um qualificador, que se faz representar por uma premissa, denominada garantia − um elemento decisivo na determinação da validade do argumento, pois justifica explicitamente os passos que conduziram dos dados à conclusão. Esta, por sua vez, também deve ser garantida no caso de ela mesma vir a ser desafiada. Ou seja: numa argumentação mais complexa, cria-se a necessidade de explicar por que a garantia usada tem poder de convicção. É nessa circunstância que se deve recorrer ao apoio, uma nova premissa por meio da qual se garante a admissibilidade e a legitimidade da justificação que se veicula como garantia. Em contraposição à lógica formal, em que as conclusões derivam necessariamente das premissas ─ sendo a demonstração das relações entre as premissas e a conclusão suficiente para impor uma afirmação como verdadeira ─, a 73 lógica informal, conforme apresentada pelo autor, não pode prescindir do uso de estratégias de convencimento, uma vez que não se processa uma necessária ligação entre as premissas e a conclusão. O modelo de Toulmin (2006) sofreu algumas críticas (conforme GOLDER, 1996), principalmente em razão de ser este demasiadamente simples para a análise de estruturas mais complexas que ocorrem no mundo concreto. Além disso, havemos de considerar o fato de que, estando circunscrito ao estudo do argumento, não se pode tornar apropriado ao ensino-aprendizagem do texto argumentativo. Na verdade, é o desenvolvimento dos argumentos que possibilitará a instituição de uma rede de relações causais, por meio das quais se deverá chegar a uma conclusão. Sob essa ótica, tal esquema tornar-se-ia pouco produtivo: não daria conta desse processo de “dilatação”; tampouco permitiria apreender, numa análise efetiva de produções argumentativas escritas, os diferentes níveis da argumentação, nem mesmo sua extrema complexidade. A despeito das fragilidades em concurso, o referido modelo é retomado por Adam (1992), que tenta revalidá-lo, aplicando-o a textos publicitários e/ou literários. Mas, diferentemente do esquema proposto por seu antecessor, Adam acrescenta- lhe a contra-argumentação como um componente obrigatório, por entender que todo discurso argumentativo (em função do princípio dialógico que lhe subjaz) coloca-se sempre em relação a um contradiscurso efetivo ou virtual. Em sua proposição teórica sobre a composição dos textos (cuja base filia-se às concepções bakhtinianas de gênero como “tipos relativamente estáveis de enunciados”), o autor introduz a noção de sequência (uma noção que precisamos explicitar para melhor compreendermos a sequência argumentativa nos termos em que a concebe o autor), entendida como ponto central da categorização dos textos, um recurso cognitivo indispensável à produção e à compreensão destes. No plano organizacional da textualidade, a sequência é apresentada (em ADAM, 1992) como uma rede relacional hierárquica: grandeza decomponível em partes ligadas entre si e ligadas ao todo que elas constituem; e ainda como uma entidade relativamente autônoma, dotada de uma organização interna que lhe é própria e, portanto, em relação de dependência/independência com o conjunto mais amplo de que ela faz parte. 74 Como estrutura sequencial, um texto, segundo o autor, comporta um número n de sequências completas ou elípticas (n sendo compreendido entre 1 e um número teoricamente ilimitado), do mesmo tipo ou de tipos diferentes. Essa concepção do texto como uma estrutura sequencial facilita a compreensão da heterogeneidade composicional da sequência: unidade constituinte do texto, ela é composta de blocos de proposições, as macroproposições, que, por sua vez, são constituídas de um número n de microproposições. A possibilidade de definir cada uma dessas unidades como sendo constituinte de uma outra unidade de extensão hierárquica superior, podendo esta ser constituída de unidades de extensão inferior, apresenta- se ao autor como a condição primeira para uma abordagem unificada da sequencialidade textual. Nos textos empíricos, os protótipos das sequências (que se definem, não só como modelos abstratos de que os produtores e leitores de textos disporiam mas também pela natureza das macroproposições que comportam e pelas modalidades de articulação dessas macroproposições em uma estrutura autônoma) concretizam- se, nos termos de Bronckart (1999), em tipos linguísticos variados, nos quais se podem atualizar todas as macroproposições que determinam o protótipo, ou tão- somente algumas delas. Na realidade, o que se torna imprescindível é manter preservada a estrutura hierárquica do conjunto da sequência, mesmo que se considere a perspectiva de realização de múltiplas formas de encaixamento dessas macroproposições. Em seus estudos mais recentes sobre as sequências (e já em sua obra de 1992, particularmente direcionada a esse estudo), Adam contempla cinco tipos de sequências: a narrativa, a descritiva, a explicativa, a argumentativa e a dialogal. No interesse particular desta discussão, focalizaremos estritamente a sua abordagem sobre a sequência argumentativa. Ao apresentar seu esquema prototípico da sequência argumentativa, Adam (1992) pondera sobre o fato de que esta não se estrutura numa ordem linear obrigatória ou imutável (tese anterior, dados, apoios, conclusão/nova tese, restrição): a (nova) tese, por exemplo, pode ser formulada de início e retomada, ou não, por uma conclusão que a duplica no final da sequência. Além disso, vale ainda ressalvar que algumas dessas macroproposições podem estar subentendidas, à exceção dos dados, que, necessariamente, precisam estar explícitos. Em síntese, o autor 75 assegura que o esquema de base da argumentação sempre coloca em relação os dados com uma conclusão. E ainda esclarece que, mesmo quando o argumento- dado conduz provavelmente a uma conclusão, sempre será possível uma contra- argumentação, o que se justifica em função do já mencionado princípio dialógico que permeia o discurso argumentativo, e em que se fundamenta Adam na formulação de seu protótipo de sequência argumentativa completa. Apurando ainda mais a leitura do referido esquema, Adam (2008) procede a uma reinterpretação do ponto de vista dos dois níveis de sua composição: o nível justificativo e o nível dialógico ou contra-argumentativo. No primeiro nível, que comporta os dados, o apoio e a conclusão/nova tese, o interlocutor praticamente se anula em função do destaque conferido aos conhecimentos que aí se apresentam. No segundo nível, que comporta a tese anterior e a restrição, como a estratégia argumentativa visa a uma transformação dos conhecimentos das crenças e/ou comportamentos, a argumentação é negociada com um contra-argumentador, representado por um auditório real ou potencial. Nessa proposta de reinterpretação, já se delineia a compreensão de que o alcance da adesão está necessariamente vinculado à consideração da audiência, conforme pressuposto no nível dialógico ou contra-argumentativo. Essa perspectiva justifica a preocupação do autor em instruir o locutor sobre a importância da escolha das premissas de uma argumentação, um procedimento que deve estar associado à construção de uma representação do auditório, não apenas no que concerne aos conhecimentos presumidos mas ainda em relação aos valores a que, supostamente, este deverá aderir. Na linha desses reposicionamentos, faz-se imprescindível registrar uma significativa reparação, já efetuada em Adam (1999) ─ e que favorece especialmente o estudo da sequência argumentativa ─, atinente ao reconhecimento da inevitável inserção do texto no contexto das práticas discursivas, o que implica não mais dissociá-lo de sua historicidade e de suas condições de produção. Esse redirecionamento epistemológico vem se consolidando e alcançando visibilidade em trabalhos concernentes à análise textual dos discursos, particularmente aqueles difundidos em Adam (2008). Não obstante algumas críticas de que foi objeto (conforme GOLDER, 1996; BONINI, 2005), a validade epistêmica da proposição teórica de Adam (1992) e de 76 seus desdobramentos (1999 e 2008) resta consensual. Tampouco se questiona sua pertinência, principalmente se se considera sua aplicação ao ensino da leitura e da produção de textos, aliás uma recomendação inserida na linha do discurso dos Parâmetros Curriculares Nacionais, que reconhecem a importante contribuição desse estudo em atividades de leitura de textos escritos que visam à fundamentação do trabalho com os gêneros na prática de sala de aula. E para imprimir ainda mais relevância à propriedade desse aprendizado, o próprio Adam (2009) admite (em reforço à crença de seus pares) que a não-disponibilidade do conhecimento dos esquemas prototípicos de composição de sequências de base e dos modos de organização das sequências em textos que sejam mais ou menos complexos pode explicar/justificar muitas das dificuldades que os sujeitos [aprendizes] apresentam, especialmente aqueles pouco versados em leitura e em produção escrita. Tomando como referência a proposta teórica de Adam (principalmente a de 1992), a qual considera solidamente sustentada, Bronckart (1999) insere uma pequena alteração de ordem terminológica, ao substituir ─ por comodidade, como ele próprio justifica ─ a noção de macroproposição pela noção de fase, que aplica à análise da estrutura composicional das cinco sequências básicas concebidas por Adam (narrativa, descritiva, argumentativa, explicativa e dialogal). A abordagem da sequência argumentativa em Bronckart (1999) parte da consideração de que o raciocínio argumentativo implica, em primeiro lugar, a existência de uma tese, supostamente admitida sobre um determinado tema. A essa tese anterior, sobrepõem-se dados novos que se fazem objeto de um processo de inferência, que orienta para uma conclusão ou nova tese. Nos entremeios desse processo de inferência, o movimento argumentativo que aí se instaura pode ser apoiado por justificações (ou suportes) ou ainda ter seu curso temporariamente interrompido pelas restrições. A representação desse raciocínio argumentativo em um segmento de texto, conforme esclarece o autor, nem sempre contempla, de modo explícito, a tese anterior (que pode ser pressuposta); já o processo de inferência é concretizado por meio dos diferentes tipos de suportes e de restrições devidamente explicitados. Observando essa disposição, o protótipo da sequência argumentativa concebido pelo autor apresenta-se como uma sucessão de quatro fases: a fase de premissas (ou dados), em que se propõe uma constatação de partida; a fase de 77 apresentação de argumentos, que orientam para uma conclusão provável; a fase de apresentação de contra-argumentos, que operam uma restrição em relação à orientação argumentativa; e a fase de conclusão (ou de nova tese), que integra os efeitos dos argumentos e contra-argumentos. Em termos gerais, tem-se ─ à exceção das sutis modificações operadas pelo autor ─ uma quase-réplica do modelo esquemático traçado por Adam (1992). Semelhante formalização é adotada por Charaudeau (2008) ao definir os elementos de base da lógica argumentativa. Segundo a percepção desse autor, toda relação argumentativa se compõe de pelo menos três elementos: uma asserção de partida (dado, premissa), uma asserção de chegada (conclusão, resultado) e uma (ou várias) asserção de passagem (muito frequentemente implícita, que poderá ser chamada de prova, inferência ou argumento, em conformidade com o quadro de questionamento em que se inscreve). Embora recorra a uma forma visivelmente esquemática para apresentar o modo de organização da lógica argumentativa, Charaudeau (2008) não se propõe tratar a temática da argumentação a partir da noção de sequência ou de esquemas prototípicos, conforme abordagens precedentes. Sua pretensão, como ele mesmo revela, é analisar o modo como funciona a mecânica do discurso argumentativo. Daí porque procede a um estudo mais verticalizado dos componentes e procedimentos desse modo de organização discursivo. Em sua proposição inicial, circunscreve a argumentação numa relação triangular entre uma proposta sobre o mundo (uma proposta que provoque um questionamento em alguém sobre a sua legitimidade), um sujeito argumentante (um sujeito que se engaje em relação a esse questionamento e desenvolva um raciocínio para tentar estabelecer uma verdade quanto a essa proposta) e um sujeito-alvo (um outro sujeito que, relacionado com a mesma proposta, questionamento e verdade, constitua-se no alvo da argumentação). Esses são, para o autor, os pré-requisitos para que se possa desencadear o processo argumentativo. No exercício dessa atividade discursiva, conforme interpreta o autor, o sujeito argumentante participa de uma dupla busca: a busca de racionalidade e a busca da influência, procedimentos que visam ao alcance do ideal argumentativo, somente possível pelo entrelaçamento dessas duas vertentes (o ideal de verdade e o ideal de persuasão). 78 Certamente essa é apenas uma visão geral do modo de funcionamento do discurso argumentativo. Inúmeros outros procedimentos, conforme nos esclarece o autor, estão implicados na construção de uma relação argumentativa. Entre tantos, explicitados em seu estudo, destacam-se os modos de encadeamento (a exemplo da conjunção, da disjunção, da restrição, da oposição, da causa, da consequência, da finalidade), as modalidades, o escopo do valor de verdade e os modos de raciocínio, todos proveitosamente aplicáveis à análise de textos argumentativos, particularmente em sua modalidade escrita. Também Golder (1996) elege como ponto principal de sua abordagem o estudo do funcionamento do discurso argumentativo, que, em sua concepção, se organiza em torno de argumentos em favor da tese defendida e de refutações dos argumentos opostos. Partindo dessa consideração geral, a autora institui uma das condições mínimas necessárias para argumentar: a discutibilidade dos temas. Se o tema é discutível, faz-se necessário justificar o ponto de vista que se adota utilizando formas de discurso negociadas. É justamente em função dessa necessidade que se recorre às operações de justificação e negociação, consideradas pela autora como componentes fundamentais do discurso argumentativo. Essas operações implicam- se no ato de argumentar pela atuação do locutor, que, na tentativa de atingir o seu objetivo (modificar as representações de seu interlocutor sobre um tema dado), se vale fundamentalmente desses dois procedimentos. A justificação, segundo Golder (1996), realiza-se essencialmente por meio de operações de escoramento/apoio (afirma-se uma posição escorando-a em um único argumento). Mas também se pode chegar a uma versão mais elaborada, em que o locutor utiliza-se de vários argumentos interconectados para formar a estrutura de apoio, podendo, inclusive, lançar mão de contra-argumentos. Já as operações que permitem ao locutor apresentar seu discurso de forma negociada são bem mais diversificadas e também mais complexas: expressão de julgamentos, estratégias de distanciação enunciativa, contra-argumentação, restrição etc. E ainda é possível, em uma situação de discurso de maior refinamento (num discurso adulto, por exemplo), registrarem-se procedimentos de negociação mais “maduros”, como a ironia e o subentendido, que, na percepção da autora, cumprem uma função de negociação, na medida em que colocam o interlocutor na impossibilidade de defender um determinado ponto de vista que foi intencionalmente ridicularizado pelo locutor. 79 Embora se mostrem aparentemente distintas (a justificação remete mais ao aspecto racional da argumentação, enquanto a negociação relaciona-se mais ao aspecto da sedução), essas operações entretêm relações muito estreitas. Um só exemplo, o da contra-argumentação, já é suficiente para evidenciar esse fato: recorre-se ao uso de contra-argumentos tanto no processo de justificação quanto na apresentação de um discurso negociado. A contra-argumentação, como afirma a autora, é uma estrutura argumentativa de notável complexidade (normalmente formulada por pelo menos dois argumentos ligados entre si por uma relação de concessão), que vai bem além da simples justificação de uma posição. Mais do que isso, é também uma indicação do reconhecimento da existência de outras posições, que não a do locutor, o que implica a abertura da negociação, passando-se, então, de um discurso meramente justificado a um discurso argumentativo ao mesmo tempo justificado e negociado. Mesmo assim, não se trata, ainda, nesse nível evolutivo, de um discurso totalmente elaborado. É, na verdade, uma menção ao fato de este apresentar-se como “mais argumentativo”: presença de argumentos suscetíveis de ser aceitos porque fazem apelo aos valores de uma cultura partilhada pelo locutor e pelo interlocutor, e de contra-argumentos (ou de alguma outra forma de negociação, indicando que o locutor leva em conta os argumentos que se lhe poderiam opor). Se, por um lado, a autora reconhece esse nível de elaboração como um significativo progresso, por outro lado, também admite que na construção de um discurso argumentativo implicam-se operações bem mais complexas, cujo grau de exigência vai além do simples domínio pelo locutor de um “esquemaRtipo”: tomada de posição−argumento−contra-argumento−conclusão. Com efeito, o locutor não poderá alcançar seu objetivo (modificar as representações de seu interlocutor), se o seu discurso não responder a certas exigências estruturais e a uma organização singular. Visto sob essa perspectiva, o texto argumentativo escrito deve evidenciar uma estrutura particular na qual os argumentos se articulem uns aos outros, de tal modo que o leitor consiga perceber a orientação argumentativa global e, em consequência, o ponto de vista defendido pelo locutor ou, ao menos, considerar como aceitáveis as razões por ele apresentadas para justificar suas posições. Também exige a ativação de um determinado número de ideias (incluindo-se nesse 80 conjunto aquelas supostamente defendidas pelo discurso adversário), que devem ser organizadas de forma coerente a fim de que o interlocutor possa reconstruir o percurso do locutor e atribuir ao discurso o sentido intencionado por este último. Além disso, ainda se coloca ao locutor a responsabilidade de construir um discurso explícito; não no sentido de que tudo deva ser absolutamente dito. O requisito da explicitude remete à clareza do raciocínio, uma vez que se torna extremamente difícil para o interlocutor restabelecer certos elos ausentes numa cadeia de argumentos mal ordenada. Por isso se considera fundamental, nesse arranjo, observar a ordem dos argumentos (a organização das ideias) e a sua coerência, operações cuja realização depende do domínio de um esquema argumentativo; afinal, não se pode organizar ideias sem ter antes estabelecido um plano que defina as grandes linhas argumentativas. Na imagem de Golder (1996), da mesma forma que, numa receita culinária, não se pode misturar os ingredientes de modo aleatório, os argumentos devem ser ordenados dentro de uma certa lógica, em função mesmo de uma dada hierarquia (mas principalmente dos objetivos visados), sob pena de restarem inúteis ou, na metáfora da autora, se tornarem “explosivos”. As reflexões precedentes abrem espaço para a percepção de que se faz inviável (porque infrutífero) um ensino do texto argumentativo escrito baseado unicamente em sua organização formal. Não obstante, constatamos, ainda hoje, no discurso de muitos aprendizes, a reincidente crença de que a construção de um texto argumentativo resume-se ao saber delimitar “matematicamente” (observando, inclusive, o número de linhas, numa escala entre o mínimo e o máximo possível) as partes em que se divide/se formaliza esse tipo de texto, quais sejam: introdução, desenvolvimento e conclusão. E numa demonstração mais expressiva desse saber, muito provavelmente legitimado por um discurso docente, em que se ancoram, os aprendizes ainda predeterminam o número de parágrafos a ser contabilizado numa produção escrita, devendo estes assumir a seguinte disposição: um parágrafo para a introdução, dois (ou três) para o desenvolvimento e um para a conclusão. Não muito diferente é o saber revelado pelos sujeitos de nossa pesquisa, quando emitem seus pareceres sobre o que seria um bom texto argumentativo: Assim, a gente aprende que para o texto ser forte, digamos assim, que ele convença mesmo, ele tem que ter, no mínimo, três argumentos para deixar bem claro seu ponto de vista. E tem outras coisas: uma introdução, que desenvolva bem o tema, que apresente ao leitor o que você quer falar; e a 81 conclusão, que feche o assunto e que tenha a surpresa, a sugestão. Então, que deixe a sua opinião mesmo, a síntese do que você fez. Então, para mim, o texto precisa, deve seguir esses parâmetros (ALUNO EDUARDO, em entrevista à pesquisadora, dezembro de 2008, p. 28-29). Uma compreensão assim superficial parece-nos bem sintomática de um ensino-aprendizagem lacunar quanto ao verdadeiro modo de funcionamento do texto argumentativo. Entretanto, não podemos obscurecer o fato de que se trata de uma empreitada por demais complexa. A identificação/a consideração de um interlocutor que não se apresenta fisicamente constituído é, por certo, um notável exemplo dessa complexidade, na medida em que essa “ausência situacional” impõe uma sobrecarga cognitiva ao sujeito-produtor, que deve não apenas saber antecipar a posição do outro mas ainda apresentar argumentos para defender sua própria tese; refutar os eventuais argumentos que se lhe possam opor; negociar uma posição aceitável e, enfim, imprimir ao seu discurso a requerida dimensão dialógica que lhe é peculiar. Vislumbrando justamente a possibilidade de tornar mais compreensível para os alunos esse modo singular de funcionamento do texto argumentativo é que nos aproximamos do modelo apresentado por Boissinot (1994). Isso porque nos parece ser extremamente produtivo para o ensino-aprendizagem desse tipo de texto proceder a uma comparação antecipada com os modos de organização narrativo e descritivo ─ considerados menos complexos do que o argumentativo ─, uma vez que, a partir de saberes supostamente assimilados, se processará, passo a passo, a construção de um outro conhecimento, evitando-se, assim, os prováveis embaraços normalmente derivados de uma nova solicitação cognitiva. Em seu estudo, o autor contempla o texto argumentativo em confronto com o texto narrativo e o texto descritivo, numa tentativa de desvendar os traços comuns desses modos de organização e, a partir destes, definir a especificidade do modo de funcionamento argumentativo. Assumindo essa perspectiva, explicita que o texto argumentativo – assemelhando-se ao narrativo, que passa de um estado inicial a um estado final por meio de um processo de transformação – passa de um estado de pensamento inicial (tese refutada) a um estado de pensamento final (tese proposta) por meio de um processo de argumentação. Evidentemente, não se trata, nesse caso, de uma sequenciação rigorosa. A ordem em que se colocam essas 82 realizações textuais pode ser bem diferente: uma ou outra tese, por exemplo, pode permanecer implícita, a depender da estratégia escolhida pelo argumentador. Em comum com o texto descritivo, que se organiza, a princípio, por um número não-limitado de elementos a partir do tema inicial, o texto argumentativo se desenvolve, a priori, considerando um número não-definido de argumentos, já que a escolha destes, conforme esclarece o autor, é determinada de modo empírico, em função das circunstâncias, podendo oscilar entre um número mínimo ─ que pode não ser o suficiente para convencer ─ e um número máximo, que pode se tornar bem cansativo para o interlocutor, ou suscitar dúvidas sobre o valor de cada um desses argumentos tomados isoladamente. Assim concebido, o texto argumentativo apresenta-se como sendo o resultado da combinação de um desenvolvimento dinâmico (em que se opera a passagem de uma tese à outra) associado a um desenvolvimento que organiza, em uma espécie de circuito argumentativo, certo número de argumentos. Convém ainda observar ─ como o faz o autor ─ que, apesar da relativa aproximação com os modos de organização narrativo e descritivo, o texto argumentativo, por seu caráter dialógico, assume, em relação àqueles, sua singularidade. De fundamental importância, além das características gerais do texto argumentativo, anteriormente apresentadas, é a proposição do autor de uma “grade de leitura” instituída a partir da observação de três domínios principais: os índices textuais de enunciação, os índices de organização e os índices lexicais. Em relação aos primeiros, Boissinot (1994) justifica que, sendo o texto argumentativo o lugar por excelência da “polifonia”, e pressupondo uma forte implicação do argumentador, a percepção do sistema enunciativo (constituído este pelas marcas de subjetividade: dêiticos, modalizadores, termos afetivos, avaliativos etc.) é prioritariamente requerida no processo de leitura/interpretação desse texto. No tocante ao segundo conjunto, os índices de organização, o autor pondera sobre a necessidade de se estar atento às diversas pistas textuais que norteiam a compreensão do modo como se organiza o texto. O terceiro conjunto, os índices lexicais, denota sua relevância, de acordo com o entendimento do autor, na medida em que estes sinalizam para os campos lexicais contraditórios aos quais o texto faz referência, e ainda possibilitam resgatar, pela observância dos pares ou das séries de termos confrontados, as cadeias semânticas em oposição e até mesmo as teses contrapostas. 83 Processar a leitura do texto argumentativo com base na observação e na interpretação desses índices parece-nos (em comunhão com o pensamento do autor) um passo decisivo para o desvelamento da significação global desse texto, o que somente se fará possível quando convergirem para o mesmo ponto de encontro todas as respostas que se buscam para os instigantes questionamentos formulados por Boissinot (1994) em sua grade de leitura, tal como segue: quais são os polos enunciativos em presença? Há modalizadores valorizando ou desvalorizando um ponto de vista? Quais são as marcas de subjetividade favoráveis ou desfavoráveis a uma tese? A quais campos lexicais o texto faz referência? É possível descobrir, no texto, cadeias semânticas em oposição? Quais são os elementos que esclarecem/ informam sobre a organização do texto (disposição tipográfica, progressão temática, conectores argumentativos, procedimentos retóricos)? Como os diferentes índices são distribuídos no texto? Há evoluções suscetíveis de esclarecer a progressão do texto? Quais são as teses em presença? São elas formuladas explicitamente? Onde? Quais são os diferentes argumentos? A qual tese eles se ligam? Como eles são construídos? Certamente estamos diante de um modelo de análise textual que se pode, muito apropriadamente, aplicar ao texto argumentativo escrito, seja qual for o seu modo de organização (relativamente ao nível de complexidade de sua estrutura composicional), considerando-se o fato de que, por sua versatilidade inquisitorial, se mostra capaz de desvelar muitas das mais intangíveis respostas que se buscam no cumprimento de um roteiro de leitura que se queira verticalizado. Também temos a ciência de que, assim como esta última, as demais abordagens referenciadas já dispensaram um tratamento bem satisfatório à questão dos imprescindíveis saberes por que se deve nortear a leitura e a produção do texto argumentativo. Todavia, não podemos dar por encerrada a discussão sobre esse objeto de estudo, sem antes buscarmos saberes outros capazes de responder, de maneira adequada, alguns dos questionamentos elencados por Boissinot (1994) em sua pertinente proposta de leitura. Com o propósito de efetuar esse reparo, faremos novas e necessárias incursões teóricas para o registro desses mais ainda por dizer. E para mais nos convencer de que, por esses saberes, investigar ainda é preciso, reiteramos o dizer de Hadji (1994, p. 18), no sentido de que nossa insistência na teorização “[...] não é 84 tanto a de apresentar uma teoria apurada, mas antes de favorecer um quadro operatório susceptível de sustentar a prática que é, em última análise, a única coisa importante.” 85 3.2.2 Outros tantos dizeres para tantos outros saberes Embora consideremos a absoluta relevância dos muitos já-ditos acerca do funcionamento do texto argumentativo, julgamos imprescindível aditar outros tantos dizeres fundamentais ao aprimoramento desse saber. Já aprendemos, por exemplo, com esses muitos já-ditos, que “[...] não se pode olhar o texto como um artefato, como uma coisa em si”; também nos foi revelado que “não se produzem textos ex- nihilo ou por mera atualização de potencialidades linguísticas e/ou textuais” (FARACO, 2007, p. 48-49). Todavia, há, ainda, muito por saber. Nesse novo investimento, retornamos mais uma vez à seara bakhtiniana, da qual colhemos a fecundante lição sobre a verdadeira essência do texto, que, na concepção do autor, assim se revela: “O acontecimento da vida do texto, isto é, a sua verdadeira essência, sempre se desenvolve na fronteira de duas consciências, de dois sujeitos” (BAKHTIN, 2003, p. 311, grifos do autor). Junte-se a esse registro a não menos reveladora interpretação do enunciado ─ uma referência indispensável para os destinos da abordagem em curso ─ elaborada nos seguintes termos: Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra “resposta” no sentido mais amplo): ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-os como conhecidos, de certo modo os leva em conta. Porque o enunciado ocupa uma posição definida em uma dada esfera da comunicação, em uma dada questão, em um dado assunto, etc. É impossível alguém definir sua posição sem correlacioná-la com outras posições (BAKHTIN, 2003, p. 297, grifos do autor). Sob esse mesmo ângulo de visão, concebe-se o texto argumentativo escrito. Assemelhando-se ao enunciado bakhtiniano, ele se constrói como resposta a enunciados precedentes, com os quais trava diálogos de natureza similar. E é justamente na tentativa de melhor compreender esse “engajamento” dialógico que se sobreleva a necessidade de mais um saber: “O objeto do discurso do falante, seja esse objeto qual for, não se torna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado, e um dado falante não é o primeiro a falar sobre ele” (BAKHTIN, 2003, p. 299-300). Mesmo porque aquele que enuncia 86 [...] não é um Adão, e por isso o próprio objeto do seu discurso se torna inevitavelmente um palco de encontro com opiniões de interlocutores imediatos (na conversa ou na discussão sobre algum acontecimento do dia- a-dia) ou com pontos de vista, visões de mundo, correntes, teorias, etc. (no campo da comunicação cultural). Uma visão de mundo, uma corrente, um ponto de vista, uma opinião sempre têm uma expressão verbalizada. Tudo isso é discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal), e este não pode deixar de refletir-se no enunciado. O enunciado está voltado não só para o seu objeto mas também para os discursos do outro sobre [este mesmo objeto] (BAKHTIN, 2003, p. 300). Em seu modo de funcionamento, o texto argumentativo escrito também se torna o ponto de encontro das opiniões de interlocutores, ensejando a representação de semelhante trama dialógica. No curso da interlocução que nele se instaura, o sujeito-locutor inscreve a presença do outro em seu discurso atribuindo-lhe a incumbência da responsividade, ou seja: espera dele uma compreensão responsiva ativa. “É como se todo o enunciado se construísse [para ir ao] encontro dessa resposta” (BAKHTIN, 2003, p. 301). Esta, notadamente, convém advertir, pode apresentar-se sob infinitas formas, desde a simples assimilação a uma absoluta refutação. Afinal, não podemos esquecer que “[...] o discurso escrito é, de certa maneira, parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio, etc.” (BAKHTIN, 1992, p. 123). Nessa situação de enfrentamento, institui-se uma espécie de ressonância dialógica na relação intersubjetiva, levando-se em consideração o fato de que todos os nossos enunciados [estão plenos] de palavras dos outros, de um grau vário de alteridade ou de assimilabilidade, de um grau vário de aperceptibilidade e de relevância. Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos, reelaboramos e reacentuamos (BAKHTIN, 2003, p. 294-295). À semelhança do que ocorre com o texto argumentativo escrito, que enreda, em seu plano discursivo, o discurso do outro, absorvendo-o literalmente ou, ao contrário, repelindo-o ─ explícita ou implicitamente ─ por meio de manobras refutativas, consubstanciando, assim, a sua índole polêmica. É, justamente, dessa sua propensão natural à polêmica que se derivam as motivações possíveis de levar um interlocutor a agir sobre o outro, despertando neste novas e diferentes motivações para uma reação-resposta, criando-se, assim, 87 pela sucessividade dessas ações, o necessário confronto de ideias que alimenta e intensifica o embate. Todavia, vale ressalvar, que, no interior do texto argumentativo escrito, a polêmica pode assumir tonalidades diversas, visando sempre à intencionalidade do locutor, cuja orientação discursiva está, inevitavelmente, centrada no discurso do outro. Para melhor esclarecer esse processo, julgamos pertinente (por sua visível aproximação com a reflexão que estamos construindo) recorrer à interpretação de Bakhtin (2002) sobre os tipos de discurso na prosa, uma análise em que contempla, particularmente, a manifestação dos discursos em Dostoiévski. Nessa concepção bakhtiniana, em princípio apropriada à leitura do texto literário, são duas as formas de realização polêmica ─ a polêmica velada e a polêmica aberta ─, não exatamente excludentes, entendendo-se, como reconhece o próprio Bakhtin, que, numa situação de ocorrência, se torna difícil divisar uma e/ou outra; ainda assim, o autor apresenta- as sob o enfoque de diferenças significativas: A polêmica aberta está simplesmente orientada para o discurso refutável do outro, que é o seu objeto. Já a polêmica velada está orientada para o objeto habitual, nomeando-o, representando-o, enunciando-o, e só indiretamente ataca o discurso do outro, entrando em conflito com ele como que no próprio objeto. Graças a isto, o discurso do outro começa a influenciar de dentro para fora o discurso do autor. É por isso que o discurso polêmico oculto é bivocal, embora, neste caso, seja especial a relação recíproca entre as duas vozes. A idéia do outro não entra “pessoalmente” no discurso, apenas se reflete neste, determinando-lhe o tom e a significação. O discurso sente tensamente ao seu lado o discurso do outro falando sobre o mesmo objeto e a sensação da presença deste discurso lhe determina a estrutura (BAKHTIN, 2002, p.196, grifo do autor). Parece-nos flagrante a estreita relação que se estabelece entre essas possibilidades de atualização do discurso polêmico nos textos literários e aquelas que se implicam no processo de organização/funcionamento do texto argumentativo escrito, considerando-se o fato de que, nesse tipo de texto, a orientação para o discurso do outro assume contornos parecidos: sob a forma de polêmica aberta, orienta-se diretamente para o potencial discurso refutável de seu “adversário”, procurando, por antecipação, silenciá-lo; sob a forma de polêmica velada, busca atingir indiretamente o discurso do outro, que sequer se manifesta, explicitamente, no campo discursivo. 88 Nas duas situações, ainda que seja variável o seu grau de intensidade, a pretensão é a mesma: influenciar o destinatário/leitor virtual no sentido de não levar a sério o discurso do outro, que, assim enredado, se destinará, já em sua própria gênese, a ser desacreditado; tal como se delineia na imagem de Maingueneau (2005, p. 113): “A polêmica aparece exatamente como uma espécie de homeopatia pervertida: ela introduz o outro em seu recinto para melhor conjurar sua ameaça [...].” A intenção, nesse caso, não pode ser mais profilática: lançando mão desse artifício, tenta-se evitar que a intromissão discursiva do outro chegue a afetar “[...] radicalmente o narcisismo do discurso [do locutor]” (MAINGUENEAU, 2005, p. 123). Não obstante, nem sempre se alcança, com essa medida preventiva, o efeito desejado, uma vez que, como antes nos alertou Bakhtin (2002, p. 196), “[...] o discurso sente tensamente ao seu lado o discurso do outro falando do mesmo objeto e a sensação da presença deste discurso lhe determina a estrutura”. Em qualquer dessas perspectivas, o outro será sempre o referencial privilegiado. É ele que termina por “regular” o discurso, imiscuindo-se em todo o processo argumentativo, quer sendo convocado para imprimir (por seu discurso) credibilidade ao pronunciamento do locutor, quer, ao contrário, para ser por este desqualificado. Nessas circunstâncias, como fica patente, não escapa à sua fatalidade: favorecer o discurso do locutor, que se torna beneficiário de ambas as estratégias (a refutação ou a assimilação), por meio das quais busca sedimentar sua posição. Nesse modo de arranjar o discurso é que se desvela justamente a face contraditória da argumentação: [...] ao mesmo tempo em que está voltada para o outro, em que o discurso se modela com as imagens e presunções que o locutor tem do outro, em que o discurso se constrói também vinculado à formação ideológica desse outro, o percurso argumentativo está marcado paradoxalmente por uma anulação do discurso do outro, visando à afirmação do mesmo e do único (BRANDÃO, 1998, p. 90). Tomando essa configuração, o discurso argumentativo do locutor vivencia o conflituoso impasse entre o acolhimento e a rejeição do discurso do outro ─ que o interpela incessantemente ─, mas procurando sempre, ao se arriscar numa direção ou noutra, manter o monopólio enunciativo, uma manobra necessária para mascarar sua invulnerabilidade. Mesmo porque sua abertura à manifestação da alteridade já esboça a perspectiva de um desdobramento polêmico, uma vez que esse inevitável 89 engajamento do discurso adversário cria a possibilidade de emergência de uma “interincompreensão” recíproca (na definição de MAINGUENEAU, 2005), derivada de um possível entrecruzamento das diversas posições enunciativas no espaço discursivo. Em outras palavras: Cada discurso interpreta, traduz os enunciados de seu Outro a partir de sua posição, de seu lugar discursivo, no interior do fechamento semântico de seu sistema. Ele vê essa tradução do Outro como a construção de um simulacro na medida em que, por exemplo, numa citação, ao incorporar o Outro, o corpo verbal desse Outro rompe a continuidade do mesmo que acaba por expulsá-lo pela incompatibilidade de seus universos semânticos [...] É um processo de admissão-expulsão do Outro que revela uma “interincompreensão” radical e que está na base de toda relação polêmica. (BRANDÃO, 1998, p. 94, grifo da autora). Numa moldura assim delineada, encaixa-se o texto argumentativo escrito, que se organiza em torno de duas teses afrontadas, colocando em oposição diferentes polos enunciativos: o do defensor da tese proposta e o do defensor/defensores da tese refutada. Nesse processo de “afrontamento” ─ faz-se necessário sublinhar ─, uma ou outra dessas teses pode permanecer implícita, ou menos evidenciada, ou mesmo estrategicamente reduzida ao silêncio, por artimanha do argumentador, mas, ainda assim, virtualmente inscrita no debate, porque potencialmente responsiva. Também, por razões estratégicas, a ordem em que se apresentam essas teses pode ser bastante variável, a depender dos critérios definidos pelo sujeito argumentante, que, visando sempre a uma melhor adaptação ao seu interlocutor e à situação de interlocução em que está inserido, tanto pode anunciar, primeiramente, a tese proposta sobrepondo-a, por força dos argumentos, à tese refutada, quanto, em igual linha de preferência, conceder um significativo espaço à manifestação da tese adversária, fingindo, inclusive, orientar-se em sua direção para, a posteriori ─ mais contundentemente ─, desalojá-la de seu discurso, atingindo-a em suas fragilidades, no intuito de enaltecer ainda mais a legitimidade de sua própria tese. No tratamento dessa questão, Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996, p. 564) assim ponderam: 90 A tese orienta o discurso, mas é também uma tomada de posição, um envolvimento do orador. Seu enunciado imediato tem a vantagem de esclarecer os ouvintes; é uma ocupação do terreno. Mas outra tática, para o orador, consiste em retardar o envolvimento e em formular sua tese em função do desenvolvimento da discussão, de forma que ele leve em conta objeções e se apresente então com uma proposição que terá todas as possibilidades de ser admitida. Idêntico procedimento aplica-se também à disposição dos argumentos no discurso, seja esse oral ou escrito, justamente porque, em princípio, não há uma ordem particular a ser observada. No caso específico do texto argumentativo escrito ─ tal como ocorre com a alocação das teses in praesentia (a tese proposta e a tese refutada) ─, a ordem em que se dispõem os argumentos obedece às determinações do locutor, que costuma orientar-se pelo critério da força dos argumentos, tendo por certo ser esse o melhor procedimento para obter a convicção de seu interlocutor. E já que os argumentos não têm a mesma veemência, para atingir o seu propósito, o locutor poderá decidir-se por uma das três modalidades, conforme sua necessidade de convencimento: a ordem de força decrescente, a ordem de força crescente e a ordem homérica ou nestoriana (esta última é uma remissão a Nestor, rei de Pilos ─ símbolo clássico da sabedoria e da justiça entre os gregos ─, que costumava organizar suas tropas para os combates, colocando, no início e no final, os mais fortes guerreiros e, no meio, os mais fracos). Na verdade, a opção de organizar o discurso seguindo uma ou outra dessas ordens, embora se coloque livremente sob o encargo do locutor, não se deve processar de modo indiferente, conforme advertem alguns estudiosos. Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), por exemplo, julgam pouco apropriadas a ordem crescente e a ordem decrescente. Em relação à primeira, alegam que a decisão de iniciar com argumentos mais frágeis pode levar o interlocutor a indispor-se, tornando-se mais resistente à aceitação da tese proposta. Em relação à segunda, sublinham o inconveniente de deixar o interlocutor com uma última impressão bastante desfavorável à pretensão de consolidar a tese em vias de defesa. Por isso mesmo, preconizam “[...] a ordem nestoriana, destinada a valorizar, oferecendo-os logo de início ou em último lugar, os argumentos mais sólidos, sendo todos os outros agrupados no meio da argumentação” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 565). 91 Reiterando esse pensamento, Plebe e Emanuele (1992) admitem: De um ponto de vista psicológico, a ordem “nestoriana” é indubitavelmente útil pois impede dois perigos opostos: de um lado, se se procede das partes mais fracas com força crescente, o leitor pode ser dissuadido pela fraqueza do início; de outro lado, se se procede das partes mais fortes com força decrescente, o leitor no fim sentir-se-á decepcionado. Já se se reforçam sobretudo o exórdio e a conclusão, resultará uma obra ao mesmo tempo atraente na primeira parte e não decepcionante na conclusão (PLEBE; EMANUELE, 1992, p. 71, grifo dos autores). Parece consistentemente firmada a ideia de que a definição do locutor por uma dessas estratégias não se circunscreve ao âmbito de seu poder decisório; não lhe compete tão-somente eleger esse ou aquele modo de organização. Sua escolha, embora não seja feita a contragosto, subordina-se a uma necessidade premente de exercer forte influência sobre o interlocutor com a finalidade de modificar-lhe as representações. Mas isso exige uma contrapartida, vez que a adaptação do discurso argumentativo escrito às características do outro a quem se dirige requer do sujeito argumentante, antes de tudo, um conhecimento do status e das posições do virtual interlocutor para, em função desse referencial, poder decidir-se pela produção de certos argumentos ─ considerando quais sejam os mais aceitáveis ─, por seu modo de ordenação e, ainda, pela forma mais adequada de antecipar as respostas do discurso oponente, em termos de suas presumíveis objeções. A viabilidade dessa perspectiva reacentua a compreensão de que, de maneira recíproca, a influência do interlocutor também se manifesta no discurso do locutor, obrigando-o, não raras vezes ─ em defesa de seu projeto argumentativo ─, a seguir determinados percursos somente para evitar colisões discursivas, cuja deriva seria, inevitavelmente, o retardamento da adesão, o que é perfeitamente admissível numa situação de argumentação. Todavia, não se pode desconsiderar a possibilidade de que esse pequeno embaraço possa vir a reverter-se em frustração para o argumentador ─ particularmente aquele menos experiente ─, que concebe a capitulação do outro como o objetivo supremo do processo de argumentação. Obviamente, essa é uma contingência de pouca monta. Mesmo assim, entendemos que, para construir uma argumentação ideal, o locutor não se pode contentar em afirmar seu ponto de vista e, tão simplesmente, justificá-lo. Para além dessa operação primária, deve abastecer seu discurso com argumentos pertinentes à defesa de sua tese (incluindo, particularmente, aqueles que supõe pertencerem ao 92 universo discursivo de seu adversário); preestabelecer os limites/o alcance destes, no intuito de torná-los admissíveis pelo interlocutor ─ que, muito provavelmente, se colocará na expectativa de ver aí traduzidos valores/crenças por ele partilhados ─; e ainda organizá-los de modo a apresentarem uma coerência tal que seu interlocutor tenha condições de, por um trabalho interpretativo, reconstituir/resgatar a orientação argumentativa do texto. Esse preciso reconhecimento da orientação argumentativa revela-se por demais proveitoso para o interlocutor, considerando-se que esta “[...] permite, senão antecipar sobre a natureza da conclusão, ao menos situá-la num espaço conclusivo possível, e avaliar desde então a pertinência da relação argumentativa assim estabelecida” (VIGNER, 1990, p. 43, grifo do autor. Tradução nossa). É ainda em decorrência da orientação argumentativa (e para dar maior visibilidade a esta) que se processa a escolha dos conectores argumentativos (também denominados de articuladores lógicos, uma vez que exprimem, em geral, relações de tipo lógico: indução/dedução; inclusão/exclusão; causa/consequência; aproximação/oposição...), cuja fundamental importância não se restringe ao fato de marcar uma conexão entre duas unidades semânticas. Em acréscimo a essa função, podem assumir um papel determinante na indicação da responsabilidade enunciativa (ponto de vista) e/ou da orientação argumentativa (ADAM, 2008). Também cabe aos elementos conectores assinalar entre os argumentos e a conclusão as relações de necessidade lógica, por meio das quais se mantém a coerência argumentativa em sua globalidade, quer procedendo à enumeração e à hierarquização dos argumentos que concorrem para a definição da conclusão ─ argumentos coorientados ─, quer procedendo à determinação de uma contradição entre dois argumentos ─ argumentos antiorientados (VIGNER, 1990). Além disso, como nos esclarece Adam (2008, p. 189), é por meio dos conectores que podemos proceder “à reutilização de um conteúdo proposicional seja como um argumento, seja como uma conclusão, seja, ainda, como um argumento encarregado de sustentar ou de reforçar uma inferência, ou como um contra-argumento”. Tamanha variedade de atribuições associadas ao uso dos conectores é suficiente arrazoado para não considerá-los ─ tampouco ensiná-los ─ como meros recursos de ligação. Mesmo porque se os desviaria, por esse procedimento, de sua primordial função na arquitetura do texto argumentativo escrito, qual seja, numa 93 menção generalíssima, a de se prestarem ao entretecimento das mais diversificadas relações semânticas, contribuindo, de modo bem específico, para a manutenção da progressão discursiva ou ainda, como já adiantamos, operando na indicação da orientação argumentativa. Essa percepção alinha-se com a visão de Golder (1996), para quem o exercício de uma boa argumentação não se pode limitar à vigilante preocupação de construir um texto efetuando dogmaticamente as conexões entre seus segmentos ou articulando com mestria suas proposições; implica, muito além disso, um meticuloso trabalho de construção de um todo coesivo, o que, em consequência, impõe àquele que argumenta a aquisição e o domínio de um saber (não apenas referencial) sobre a natureza e a funcionalidade dos elementos linguísticos bem mais diretamente envolvidos no processamento da coesão textual. Somente abastecido desse saber, o sujeito argumentante estará em condições de organizar seu texto de tal modo a imprimir-lhe uma progressão argumentativa, em tudo avessa às eventuais rupturas de percurso. As ponderações precedentes deixam antever as potenciais dificuldades a serem enfrentadas no processo de escrita do texto argumentativo, sobretudo no que concerne à gestão das relações estabelecidas entre os constituintes textuais. Uma medida contraposta a esses entraves poderia centrar-se, a princípio, na assimilação dos conectores argumentativos, segundo sua virtualidade semântica, para, então, já numa perspectiva discursiva, situá-los na trama do texto, considerando, como critério indispensável, a particular função argumentativa que lhes compete desempenhar relativamente ao conjunto dos elementos em seu entorno e ao objetivo visado pela argumentação em curso. Em Adam (2008), encontra-se matéria deveras substantiva para fomentar essa instrução específica. Numa abordagem simplificada, o autor apresenta os conectores argumentativos organizando-os em quatro categorias, bem abrangentes e bastante apropriadas para uma apreensão globalizante desses elementos. Em outras palavras, esse modo de organização por categorias mais amplas propicia uma visão em série dos conectores possíveis de ser utilizados na instauração de relações semânticas de natureza análoga. Nos termos em que se formaliza a proposta desse autor ─ que nos parece de extrema conveniência, se a vislumbrarmos numa situação de aplicabilidade ─, na primeira categoria, registram- 94 se os conectores argumentativos marcadores do argumento (porque, já [uma vez] que, pois, com efeito, como, mesmo, aliás, por sinal etc.); na segunda categoria, incluem-se os conectores argumentativos marcadores da conclusão (portanto, então, em consequência etc.); na terceira categoria, contemplam-se os conectores contra- argumentativos marcadores de um argumento forte (mas, porém, todavia, contudo, no entanto, entretanto etc.); e na quarta categoria, divisam-se os conectores contra- argumentativos marcadores de argumentos fracos (certamente, embora, apesar de que, ainda que etc.). Mas é necessário sublinhar que, embora se disponham por categorias de função, esses conectores nem sempre devem, indiferentemente, ser substituídos, em uma determinada posição, por um seu correlato tão-somente pelo fato de estar este alocado na mesma categoria de pertencimento. Essa advertência assenta-se na compreensão de que, não raramente, se registram imperícias no emprego desses elementos, notadamente quando não se atenta para as muitas nuanças que podem apresentar sob condições específicas de uso. A expressão de uma contradição, por exemplo, assumirá diferente orientação argumentativa se mediada pelos conectores mas ou embora, uma vez que estes ─ apesar de se prestarem igualmente ao estabelecimento de relações de contrajunção ─ encaminham linhas de raciocínio com efeitos de sentido singulares. Especial atenção também deve ser dispensada ao sistema enunciativo do texto argumentativo, que, segundo Boissinot (1994), em sua totalidade, aglutina os índices de enunciação, os índices de organização e os índices lexicais. Em se tratando de suas particularidades de emprego, coloca-se em evidência o fato de que os índices enunciativos contribuem para o estabelecimento da coerência pragmática (ou interativa) do texto, seja explicitando os posicionamentos enunciativos (as instâncias às quais se atribui o que é enunciado no texto, as vozes que aí se inscrevem), seja revelando, por meio das modalizações, as variadas avaliações (julgamentos, opiniões, sentimentos) formuladas a respeito de algum aspecto do conteúdo temático. Certamente, não podemos deixar de ressaltar o fato de que, na condição de responsável pela realização dessas ações, o sujeito argumentante assume uma desafiadora empreitada: ele deve garantir a coerência argumentativa do conjunto, gerenciando, de modo eficiente, todo o processo de enunciação, o que implica ser 95 de sua competência responder não somente por aquilo que é enunciado mas ainda delegar essa responsabilidade a terceiros ─ outros enunciadores ─, dispensando sua particular atenção à emergente heterogeneidade discursiva propiciada pelo entrecruzamento das vozes que se podem fazer presentes na tessitura do texto. Nesse processo de gerenciamento das diferentes vozes, em decorrência de escolhas táticas, o argumentador pode inscrever a voz do outro em seu texto sob a forma de um discurso relatado (o discurso direto, a modalização em discurso segundo, por exemplo), no intuito de realçar a heterogeneidade discursiva em pleno afloramento; ou, ao contrário, incorporar essa voz alheia, enredando-a em seu próprio discurso (recorrendo ao discurso indireto livre, à imitação ou à ironia, opções prováveis nessa mencionada circunstância), numa tentativa de escamotear-lhe o caráter heterogêneo, o que, em consequência, lhe demandará certa habilidade para contornar os efeitos desses inevitáveis revezamentos enunciativos. E essa é uma empresa bem arriscada, como adverte Charolles: A gestão das diferentes vozes da argumentação é um dos aspectos mais difíceis na produção [de um texto argumentativo escrito]. O domínio dessa dimensão do discurso passa por aquelas formas de expressão específicas (marcas de atribuição do discurso relatado, marcas de distanciação...) cujo conteúdo não é sempre fácil de explicitar (CHAROLLES, 1990, p.15. Tradução nossa). Subjacente a esse pronunciamento, está a compreensão de que, em seu funcionamento discursivo, o texto argumentativo é bem mais movediço do que se poderia depreender numa simples contemplação de fachada. Melhor definindo, diríamos (colocando-nos em sintonia com a perspectiva bakhtiniana a partir da qual se define o enunciado) que se trata de “[...] um organismo muito mais complexo e dinâmico do que parece, se não se considerar apenas sua orientação objetal e sua expressividade unívoca direta” (BAKHTIN, 1998, p. 153). Levar a bom termo o contradito dessa consideração é ignorar todas as possibilidades transformadoras a que se expõe o enunciado “[...] ─ desde as finas nuanças de significado e de acento [de que se impregnam os discursos de outrem que o afetam] até as distorções aparentes e grosseiras da composição verbal e literária” (BAKHTIN, 1998, p. 141). E, para mais depurar essa compreensão, ancoramo-nos ainda em Bakhtin (1998, p. 153), que nos abre novas sendas com a seguinte constatação: “No campo de quase todo enunciado [o que também contempla o texto argumentativo escrito] ocorre uma 96 interação tensa e um conflito entre sua palavra e a de outrem, um processo de delimitação ou de esclarecimento dialógico mútuo”. Essa maneira de compreender o enunciado acentua a necessidade de os professores trabalharem com os alunos, no processo de ensino-aprendizagem do texto argumentativo escrito, as diversas formas de inserção do discurso alheio em seu próprio discurso, ativando-lhes, assim, a competência para orquestrar as muitas vozes que se confrontam ou se harmonizam com seu dizer. Faz-se necessário, no entanto, ressalvar que não será fácil para o aluno conduzir, com a devida destreza, o debate de ideias em curso no seu texto, se antes não houver desenvolvido sua versatilidade em expor opiniões, o que, novamente, o coloca sob a mira do trabalho docente, de que depende, consequentemente, seu desempenho em todo o processo de produção. Resta, pois, ao professor, em benefício do aluno, viabilizar-lhe a emergência das condições favoráveis ao desenvolvimento dessa [...] capacidade de descentração em relação a si mesmo, à sua própria experiência e ao seu próprio pensamento, o que passa pela tomada de consciência de que todo pensamento individual não é jamais produto de um Cogito solipsiste ou de uma auto-reflexão, mas resulta sempre de interações discursivas [...] (GRATALOUP, 1990, p. 101, grifo da autora. Tradução nossa). Lamentavelmente, muitos professores sequer se predispõem a abordar essa questão. E se o fazem, atêm-se a uma advertência bastante simplista, que visa orientar o aluno no sentido de evitar o uso do “eu” em favor de uma preferência de emprego da 1ª pessoa do plural ─ tornando-se essa a opção prevalente ─, sem que se lhe explicite as reais implicações dessa escolha no funcionamento discursivo do texto. Não menos irrefletida é a insistente recomendação para que os alunos usem suas próprias palavras na produção de seus textos, uma exigência sustentada na crença de que, assim procedendo, estarão expressando suas verdadeiras opiniões. Sem o perceber, os professores que assim procedem acabam reforçando, em seus alunos, a convicção de que constroem, em seu texto, um discurso pessoal, original, visto que todas as opiniões são deles. Em sendo assim assimiladas, essas orientações podem vir a reverter-se em consequências, até certo ponto, por demais comprometedoras para a aprendizagem do texto argumentativo escrito, em especial porque, em si, ocultam a dimensão social do discurso, uma noção imprescindível na orientação da leitura e da produção desse tipo de texto. 97 Entendemos, no entanto, que não deva ser menos complicado para os professores conduzir seus alunos à compreensão de que [...] aquilo que o sujeito diz ou escreve pode ser construído por seu pensamento, mas não é somente a expressão de seu pensamento pessoal, ou mais exatamente não é construído só por seu pensamento. Uma idéia, qualquer que ela seja, é evidentemente o fruto de uma reflexão de um sujeito, mas esta reflexão mesma se inscreve num campo social que ultrapassa o sujeito (DARRAS et al., 1994, p. 269. Tradução nossa). Evidentemente, se o aluno conseguir atingir tal nível de desenvoltura, não lhe será tão difícil perceber que a maioria das informações e/ou opiniões que convoca para o seu texto, ainda que versadas na forma direta do “Eu acho”, “Eu penso”, não são derivadas de seu discurso em estado puro e imaculado (ele não é o “Adão bíblico!”), porque não afetado ou atravessado por outras vozes. Da mesma forma que não lhe passará despercebido o fato de que, [...] por maior que seja a precisão com que é transmitido, o discurso de outrem incluído no contexto sempre está submetido a notáveis transformações de significado. O contexto que avoluma a palavra de outrem origina um fundo dialógico cuja influência pode ser muito grande. Recorrendo a procedimentos de enquadramento apropriados, pode-se conseguir transformações notáveis de um enunciado alheio, citado de maneira exata. O polemista inescrupuloso e hábil sabe perfeitamente que fundo dialógico convém dar às palavras de seu adversário, citadas com fidelidade, a fim de lhes alterar o significado. É particularmente fácil, manipulando-se o contexto, elevar o grau de objetividade da palavra de outrem, provocando reações dialógicas ligadas à objetividade: assim, é muito fácil tornar cômica a mais séria das declarações. A palavra alheia introduzida no contexto do discurso estabelece com o discurso que a enquadra não um contexto mecânico, mas uma amálgama química (no plano do sentido e da expressão); o grau de influência mútua do diálogo pode ser imenso. Por isso, ao se estudar as diversas formas de transmissão do discurso de outrem, não se pode separar os procedimentos de elaboração deste discurso dos procedimentos de seu enquadramento contextual (dialógico): um se relaciona indissoluvelmente ao outro (BAKHTIN, 1998, p. 141). Assim deveriam estar instruídos os professores a fim de poder construir para seus alunos semelhante percurso epistemológico acerca dessa questão. Mas esse é um saber de limitada circulação. Consideremos, para o fortalecimento dessa afirmação, o fato de que, na maioria das situações de ensino, esse aprendizado não alcança tamanho grau de apuramento. Em algumas delas, sequer se mencionam as formas de transmissão do discurso alheio; por vezes, nem mesmo vão além de um 98 trabalho de mera formalização sintática dos discursos direto e indireto, mais particularmente, que só se prestam a um exercício artificial e mecânico em que, inapropriadamente, um pode se transformar no outro (como se o conteúdo desse ensinamento se esgotasse no rudimento desses modelos gramaticais), sem maiores preocupações com as suas finalidades discursivas. Essa “insensibilidade” para perceber que a recorrência ao discurso de outrem não implica uma simples reprodução de um dito redunda em alguns desacertos da parte de quem ensina e em inegáveis prejuízos para aqueles que aprendem, uma vez que a palavra do outro pode nos dizer muito mais do que aquilo que literalmente expressa, especialmente porque a tomamos em um novo contexto e sob novas condições. Para ser ainda mais preciso, “[...] nós a colocamos numa nova posição, a fim de obter dela novas respostas, novos esclarecimentos sobre o seu sentido e novas palavras ‘para nós’ (uma vez que a palavra produtiva do outro engendra dialogicamente em resposta uma nova palavra nossa)” (BAKHTIN, 1998, p.146, grifo do autor). Justamente por ser um organismo assim tão complexo é que o texto argumentativo “[...] supõe forte implicação do argumentador ─ mesmo se este pode, segundo a estratégia argumentativa escolhida, estar mais ou menos manifesto” (BOISSINOT, 1994, p. 51. Tradução nossa). E essa presença, que se pode revelar, segundo o autor, nos diferentes índices da enunciação, manifesta-se, ainda mais pronunciadamente, nos denominados traços de subjetividade. Os dêiticos (termos por meio dos quais se ancora/se articula o enunciado à sua situação de enunciação) constituem uma dessas categorias. Em sua materialidade linguística, representam- se, como dêiticos pessoais, pelos pronomes pessoais de 1ª e de 2ª pessoas e por seus demais correspondentes da classe dos pronomes possessivos; como dêiticos espaciais, pelos pronomes demonstrativos, advérbios ou expressões adverbiais; e, como dêiticos temporais, por advérbios ou expressões adverbiais. Embora possa parecer desnecessária a ressalva, não podemos deixar de assinalar o fato de que esses elementos produzem determinados efeitos de sentido no texto argumentativo escrito. Não é indiferente, por exemplo, a utilização de um eu ou de um nós na construção desse discurso, na medida em que a preferência por uma dessas duas formas representa uma tentativa de marcar um maior ou menor grau de proximidade/distanciamento enunciativo. Se, por exemplo, preponderar a 99 intenção de “[...] atenuar a subjetividade da primeira pessoa, sem adotar a neutralidade absoluta” (GARCEZ, 2001, p. 128), o sujeito argumentante tende a optar pela forma nós (virtualmente ampliada em um eu e mais outros), uma estratégia por meio da qual experimenta a sensação de não estar sozinho com a sua verdade: ele é afiançado por outros eus com quem supõe dividir a responsabilidade do dizer. E isso inclui principalmente o leitor, que, na condição de interagente conclamado, poderá ser impelido, por esse processo de inclusão supostamente estabelecido, a solidarizar-se com o ponto de vista que lhe é apresentado. Além de ancorar-se em uma dêixis, o texto argumentativo também recorre a certas formas de dizer, que se traduzem por comentários ou avaliações, a partir dos quais se orienta positiva ou negativamente a compreensão de alguns pontos em discussão, sempre em consonância com a perspectiva do argumentador. Os modalizadores destinam-se ao cumprimento dessa tarefa. Abrangem as palavras e os procedimentos gramaticais que assinalam a força da adesão do sujeito da enunciação ─ nesta referência, o sujeito argumentante ─ aos conteúdos enunciados. Como índices enunciativos, respondem por um modo específico de dizer, que assinala a atitude daquele que argumenta em relação a algum aspecto do conteúdo temático, podendo ser esta explicitada por diversas maneiras, entre as quais: o emprego de certos advérbios denotadores de afirmação categórica (evidentemente, incontestavelmente, sempre, certamente etc.), ou de perífrases equivalentes (sem nenhuma dúvida.../ é certo que...); o emprego do condicional, para demarcar uma possível distância do sujeito argumentante em relação a seu enunciado (teria dito), ou ainda de determinadas formas de hesitação que visam ao não-constrangimento do interlocutor (talvez, é possível que...). Em função dessas convenções de uso efetivo, podemos interpretar esses indicadores modais como “[...] traços da projeção que [o sujeito argumentante] faz da reação-resposta ativa do leitor”. Nesse sentido, torna-se bem apropriada a advertência quanto ao fato de que “[...] (a modalização não incide sobre o dito do autor, mas sobre uma possível reação-resposta do interlocutor)” (RODRIGUES, 2005, p. 179, grifo da autora). E nem se requer muito para provar tal feito: a modalização aparece na construção do movimento dialógico de refutação (do discurso do outro) e de interpelação (estratégia que visa impor determinado ponto de vista/opinião como verdade ou norma a ser seguida). 100 Compete-nos ainda esclarecer ─ seguindo as orientações de Bronckart (1999) ─, que as modalizações, à diferença dos mecanismos de textualização (os quais marcam a progressão e a coerência temáticas), apresentam-se relativamente independentes da linearidade e da progressão do texto, uma vez que “[...] as avaliações que traduzem são, ao mesmo tempo, locais e discretas [...] e podem também insinuar-se em qualquer nível da arquitetura textual”. Nesse sentido, arremata o autor: “[...] as modalizações pertencem à dimensão configuracional do texto, contribuindo para o estabelecimento de sua coerência pragmática ou interativa e orientando o destinatário [o leitor] na interpretação de seu conteúdo temático” (BRONCKART, 1999, p. 330, grifos do autor). Papel similar desempenham os termos subjetivos (que podem emanar de qualquer classe gramatical: adjetivos, substantivos, verbos e advérbios). É por seu intermédio que o argumentador evidencia sua reação concernente ao que está sendo questionado (termos afetivos) ou avalia, qualitativa ou quantitativamente, o que está sendo questionado (termos avaliativos). Em função dessa deriva, os termos mencionados criam para o leitor ─ à semelhança dos conectores argumentativos e dos modalizadores ─ um dado horizonte de expectativa, na medida em que também possibilitam a confirmação das hipóteses iniciais de interpretação (BOISSINOT, 1994). Não menos importantes são os índices de organização, que informam ou esclarecem sobre a organização do texto e podem ajudar a identificar as teses em vias de apresentação e o agenciamento dos argumentos (o modo como estes são arranjados no texto). Sobressaem-se, nesse conjunto, a progressão temática; os conectores argumentativos ─ ou expressões de valor equivalente ─, que evocam orientações argumentativas; a disposição tipográfica e, em um nível mais retórico, ao menos nos textos mais clássicos, conforme assinala Boissinot (1994), as fórmulas de introdução, de transição ou de conclusão. Tratamento singular merecem ainda os índices lexicais, uma vez que, nos textos argumentativos, o embate das teses em presença é passível de manifestar-se também no nível do léxico. Realmente, conforme nos esclarece Boissinot, “[...] muitas vezes, as oposições de termos, isolados ou em série, correspondem às teses em conflito” (BOISSINOT, 1994, p. 56. Tradução nossa). Para caracterizar essa situação, o sujeito argumentante apresenta as teses associando-as a sistemas de 101 valores opostos (valorizado x desvalorizado), o que justamente se define em função do recurso a termos de campos lexicais contraditórios. Na aplicação dessa estratégia, busca-se naturalmente o respaldo das dicotomias fundamentais (verdadeiro/falso, bem/mal, belo/disforme, justo/injusto) para, assim, poder nutrir as ideias fazendo corresponder à tese proposta um léxico denotativamente positivo, mas procedendo de maneira inversa no tocante à tese refutada, para cuja alusão convocam-se termos de desprestigiado invólucro semântico, por se colocarem muito próximos de noções potencialmente negativas, como as que induzem a crer no ilusório, na falsa aparência, no erro etc. De tal modo aproveitados, os índices lexicais podem ajudar a fortalecer a tese a ser defendida colocando o sujeito argumentante na condição de, “[...] ao fim do texto, reivindicar para si a verdade contra o erro (do outro)” (BOISSINOT, 1994, p. 56. Tradução nossa). É também (mas não especificamente) pelo léxico que se pode identificar o movimento argumentativo que assinala a transição de um estado de pensamento a outro estado de pensamento (E1 a E2). No entanto, como já se insinuou, não é de sua competência exclusiva instruir esse processo de transformação de julgamento. Nessa empreitada, os conectores são precipuamente requeridos, como nos afiança o seguinte pronunciamento: Para que haja transformação de julgamento [no texto argumentativo], é preciso que se organize do estado 1 ao estado 2 um movimento argumentativo global, isto é, uma seleção e uma colocação em relação dos argumentos por meio de conectores específicos que lhes definem a orientação e a força (VIGNER, 1990, p. 41, grifos do autor. Tradução nossa). Reconhecer o movimento argumentativo global (ou ainda os movimentos localizados) por que se conduz o processo de argumentação ─ seja recorrendo aos índices lexicais, seja apelando aos conectores ─ é extremamente importante para especificar a natureza da relação que se estabelece entre as teses em presença, o que se poderá viabilizar pela observação atenta do modo como se vai consolidando a passagem de um estado de pensamento (E1) a outro estado de pensamento (E2). Nessa passagem, de acordo com Vigner (1990), três são os movimentos in transitu, possíveis de se realizar: o movimento de aprovação, o movimento de refutação e o movimento de concessão. No primeiro caso, o estado de pensamento 102 2 apresenta-se idêntico ao estado de pensamento 1, induzindo à crença de que, numa tal situação, nem sequer se faz necessário argumentar, uma vez que as teses se alinham na mesma direção. No entanto, conforme nos esclarece o autor, “[...] esse acordo pode não depender da evidência imediata, daí a utilidade de reunir e colocar na devida forma os argumentos que visam reforçar o estado E1” (VIGNER, 1990, p. 41. Tradução nossa). No segundo caso, tem-se acentuada a intenção de opor exclusivamente contra-argumentos, numa tentativa de mostrar o caráter errôneo do julgamento inicial. No processo de refutação, constrói-se um movimento em que E2 apresenta-se diferente de E1 em sua totalidade: nega-se veementemente a tese anterior. No terceiro caso, tem-se um E2 que se apresenta diferente de E1 apenas parcialmente. Esse é um movimento mais complexo, uma vez que a posição contra-argumentativa não é inteiramente anulada; ela é partilhada, pensada também pelo sujeito argumentante, que vai, todavia, orientar-se em direção a uma outra conclusão. Parece perfeitamente compreensível, em se reconstituindo os passos desta reflexão, que nos inclinemos a concordar com Boissinot (1994), no sentido de que somente pela observação e pela interpretação dos índices textuais é possível realizar uma leitura mais precisa do texto argumentativo. Orientando-nos por essa perspectiva, pressentimos a impossibilidade de nos contentarmos apenas com um levantamento estático desses índices na leitura/na interpretação de um texto de natureza dinâmica ─ o que contempla particularmente o texto argumentativo ─, da mesma maneira que constatamos quão imprescindível se faz compreender que o modo como eles se distribuem no texto ─ ou ainda suas eventuais transformações ─ constitui um conhecimento indispensável no processamento da leitura e da produção desse tipo de texto. Em última instância, seguindo novamente os ensinamentos de Boissinot (1994), precisamos estar atentos para o fato de que um ou outro índice poderá ser requerido mais insistentemente, dependendo do modelo de texto argumentativo dominante. Nesse sentido, o estudo do sistema enunciativo, por exemplo, seria um bom começo (teria maior importância) para a leitura de um texto polêmico, em que o caráter dialógico é bastante acentuado; mas seria bem pouco rentável para um texto que simulasse a neutralidade da exposição (como aquele de natureza meramente explicativa). 103 Por certo há ainda muitos ditos sobre a temática em curso. Mesmo assim, não nos parece ousadia admitir, esta abordagem, por sua notória abrangência, permitiu-nos avançar muito além em nossa pretensão de compreender o modo de funcionamento do texto argumentativo. Na próxima seção, retomaremos, ainda uma vez, esse objeto para, então, contemplá-lo em sua feição genérica de artigo de opinião, justamente o gênero do discurso que se toma como alvo desta investigação. 104 3.2.3 Dos saberes sobre os gêneros aos saberes sobre o artigo de opinião Se os gêneros do discurso não existissem e nós não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo do discurso, de construir livremente e pela primeira vez cada enunciado, a comunicação discursiva seria quase impossível. Mikhail Bakhtin A simples constatação de que somente nos comunicamos pelo recurso a determinados gêneros do discurso (BAKHTIN, 2003) já nos parece suficiente para atestar a indizível importância desse conhecimento em nossa vida. Nesta tese, em particular, a inserção desse saber assegura sua pertinência justamente por tomar como objeto focal o artigo de opinião, um dos gêneros em que se pode configurar o discurso argumentativo, ponto nuclear desta abordagem. E para melhor compreender essa fundamental relevância de um saber sobre os gêneros, alertamos para o fato de que tão necessários eles se fazem à nossa existência que nossa vontade discursiva de falante não alcança sua plena realização senão antes submetida à escolha de um dado gênero, o que se revela em absoluta sintonia com a concepção de que “[...] todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estáveis e típicas de construção do todo” (BAKHTIN, 2003, p. 282, grifo do autor). No cerne desse postulado, aloja-se a compreensão dos gêneros do discurso como tipos relativamente estáveis de enunciados que se elaboram no interior de cada uma das esferas da atividade humana. Como bem interpreta Faraco, quando Bakhtin assume que “[...] os tipos são relativamente estáveis, [...] está dando relevo, de um lado, à historicidade dos gêneros; e, de outro, à necessária imprecisão de suas características e fronteiras” (FARACO, 2006, p. 112, grifo do autor). Essa ideia de estabilidade relativa em que se assentam os fundamentos da teoria bakhtiniana acerca dos gêneros do discurso associa, numa combinatória quase inimaginável, os processos de mudança e de permanência. Em sua lúcida percepção, Bakhtin reconhece, nesse aparente contradito, a verdadeira essência dos gêneros traduzida, “harmonicamente”, na sua impossibilidade de resistir ao novo e na sua tendência à reiteração. Essa é uma evidência de que os gêneros não são definidos/determinados de uma vez para sempre. “Eles não são apenas agregados de propriedades sincrônicas fixas, mas comportam contínuas transformações, são 105 maleáveis e plásticos, precisamente porque as atividades humanas são dinâmicas, e estão em contínua mutação” (FARACO, 2006, p. 112). Melhor dizendo: O gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo. [...] Nisso consiste a vida do gênero. Por isso, não é morta nem a archaica que se conserva no gênero; ela é eternamente viva, ou seja, é uma archaica com capacidade de renovar-se. O gênero vive do presente mas sempre recorda seu passado, o seu começo. [...] É precisamente por isso que tem a capacidade de assegurar a unidade e a continuidade de seu desenvolvimento (BAKHTIN, 2002, p. 106, grifos do autor). Compreender o gênero sob o regime dessa impermanência é condição sine qua non para não defini-lo ─ como ainda, por vezes, sucede no âmbito do ensino ─ em função de suas características específicas, quase sempre derivadas da aplicação de critérios puramente formais. Essa recomendação alcançará sua verdadeira acolhida se for interpretada com base na tese de que não se pode “estabelecer limites claros para aquilo que é necessariamente impreciso”; tampouco fixar o que se apresenta em perceptível mobilidade. E nem poderia ser diferente: por serem “intrinsecamente vinculados à contingência das atividades humanas” (FARACO, 2006, p. 114), os gêneros do discurso ─ seguindo pari passu o ritmo dessas atividades ─ jamais se nos apresentam totalmente previsíveis. Fundamenta-se, nessa concepção, a crença de que os gêneros do discurso ─ como os concebe Bakhtin ─ não alcançam sua atualização fora do agir humano, um postulado que se alicerça na convicção de serem estes e as atividades humanas mutuamente constitutivos, ou seja: o agir não se dá independentemente da interação; nem o dizer, alheio ao agir. Essa predição deriva matéria subsidiária para sustentar a afirmação de que os gêneros do discurso marcam presença em todas as situações da vida que se inscrevem, pela mediação da atividade discursiva, nos mais variados processos interacionais. Em sendo, pois, tão naturalmente presentes em nosso cotidiano, passamos a empregá-los “de forma segura e habilidosa”, ainda que possamos, “[...] em termos teóricos, desconhecer inteiramente sua existência. Como o Jourdain de Molière, que falava em prosa sem que disso suspeitasse, nós falamos por diversos gêneros sem suspeitar da sua existência” (BAKHTIN, 2003, p. 282, grifo do autor). Todavia, como nos orienta o próprio Bakhtin, não somente aprendemos a moldar nosso discurso em formas de gênero; também nos tornamos capacitados, 106 pelo exercício da competência genérica, para fazer antecipações apreciativas sobre o projeto discursivo de nossos interlocutores; tanto que, [...] quando ouvimos o discurso alheio, já adivinhamos o seu gênero pelas primeiras palavras, adivinhamos um determinado volume (isto é, uma extensão aproximada do conjunto do discurso), uma determinada construção composicional, prevemos o fim, isto é, desde o início temos a sensação do conjunto do discurso que em seguida apenas se diferencia no processo da fala (BAKHTIN, 2003, p. 283). Certamente não nos seria possível chegar a esse nível de previsibilidade da intenção discursiva de nosso interlocutor sem o recurso às similaridades e às analogias (situadas, por exemplo, no plano do conteúdo temático, da organização composicional ou do estilo). É por elas que orientamos, desde o início, nossa percepção do todo do enunciado em desdobramento; de tal modo a podermos delinear, com relativa precisão, a forma do gênero em que se irá configurar esse enunciado para estar em consonância com a situação de comunicação discursiva específica de sua emergência. Essa dinâmica torna ainda mais evidente a compreensão de que os gêneros “orientam nossa participação em determinada esfera de atividade (eles balizam nosso entendimento das ações dos outros, assim como são referência para nossas próprias ações)” (FARACO, 2006, p. 115). Com muita propriedade, pois, acreditamos que a “filiação” a uma determinada esfera da atividade implica, também, o compromisso de capacitar-se para, com desenvoltura, fazer uso dos gêneros que circulam nessa esfera. E isso por uma razão bastante simples: Quanto melhor dominarmos os gêneros tanto mais livremente os empregamos, tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso é possível e necessário), refletimos de modo mais flexível e sutil a situação singular da comunicação; em suma, realizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso (BAKHTIN, 2003, p. 285). Em contrapartida, não podemos deixar de ressalvar ─ em favor de uma compreensão inequívoca do parecer em apreço ─ que o domínio desse saber não se efetiva na mesma proporção em que se adquire o domínio da língua. “As formas de gênero, nas quais moldamos o nosso discurso, diferem substancialmente, é claro, das formas da língua no sentido da sua estabilidade e da sua coerção 107 (normatividade) para o falante” (BAKHTIN, 2003, p. 283). Isso justifica o fato de algumas pessoas, embora dominando bem a língua, e até os modos de dizer numa dada esfera da comunicação cultural (sabem expor magnificamente um tema, por exemplo, elaborar um tratado filosófico, escrever um poema...), não se mostrarem desenvoltas em práticas discursivas menos refinadas, justamente por não saberem como operar com as peculiaridades enredadas na forma de gênero requerida na “inusitada” situação discursiva da nova esfera. Indubitavelmente, nesse caso, [...] não se trata de pobreza vocabular nem de estilo tomado de maneira abstrata; tudo se resume a uma inabilidade para dominar o repertório de gênero da conversa mundana, a uma falta de acervo suficiente de noções sobre todo um enunciado que ajudem a moldar de forma rápida e descontraída o seu discurso nas formas estilístico-composicionais definidas, a uma inabilidade de tomar a palavra a tempo, de começar corretamente e terminar corretamente (nesses gêneros, a composição é muito simples) (BAKHTIN, 2003, p. 285). Todos esses embaraços, inclinamo-nos a acreditar, restariam bem menos constrangedores se não tivéssemos de conviver, permanentemente, com a extrema heterogeneidade dos gêneros discursivos, um conhecimento a ser assimilado por todos os usuários da língua que almejam uma bem-sucedida atuação nas mais diversificadas situações de comunicação de que são convocados a participar, quer por necessidades de caráter individual, quer por conveniências de ordem social. No processo de ensino-aprendizagem, o enfrentamento dessa dificuldade em lidar com a infinita variedade de gêneros do discurso pode até arrefecer o entusiasmo dos mais vocacionados mestres, que, sem melhores opções para o tratamento desse tema, atêm-se a determinadas instruções livrescas, na certeza de que, por meio destas, estarão fomentando esse conhecimento. Parece-nos um procedimento um tanto equivocado. Mesmo porque a disponibilização desse saber não está subordinada, em caráter definitivo, aos manuais didáticos (ou a outras configurações semelhantes); os gêneros do discurso “[...] nos são dados quase da mesma forma que nos é dada a língua materna, a qual dominamos livremente até começarmos o estudo teórico da gramática” (BAKHTIN, 2003, p. 282). Esse esclarecimento (dentre muitos outros que precisamos fazer aos aprendizes), se dimensionado em sua devida importância, deveria efetivar-se antes de nos confrontarmos com as angústias dos alunos, decorrentes do fato (segundo pensam eles) de não disporem de um “livro-guia” que lhes destrince as especificidades de 108 cada gênero a fim de poderem reconhecer sua configuração nos textos em estudo. Nesse modo de percepção, bastaria detectar as pressupostas características de determinado gênero do discurso para imprimir-lhe uma identidade. Evidentemente essa é uma crença improcedente; e cabe aos professores revogá-la, aproveitando as situações de ensino-aprendizagem acerca dessa matéria para esclarecer aos alunos que, no processo de apropriação de um saber sobre os gêneros, é fundamental que eles comecem por observar, de modo mais atento, as multifacetadas manifestações discursivas em derredor, tanto no plano da oralidade quanto no plano da escrita. E para melhor afiançar esse parecer, tornar-se-ia oportuno retomar Bakhtin (2003, p. 283), reproduzindo o seguinte pronunciamento: A língua materna – sua composição vocabular e sua estrutura gramatical – não chega ao nosso conhecimento a partir de dicionários e gramáticas mas de enunciações concretas que nós mesmos ouvimos e nós mesmos reproduzimos na comunicação discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam. Nós assimilamos as formas da língua somente nas formas das enunciações e justamente com essas formas. As formas da língua e as formas típicas dos enunciados, isto é, os gêneros do discurso, chegam à nossa experiência e à nossa consciência em conjunto e estreitamente vinculadas. [...] Os gêneros do discurso organizam nosso discurso quase da mesma forma que o organizam as formas gramaticais (sintáticas). No curso dessa revelação, vislumbramos a adequabilidade da instituição escolar para a difusão/assimilação do imensurável repertório de gêneros. Por ser um ambiente bastante favorável às práticas discursivas em sua profusa diversidade, a escola torna-se uma representação viva da verdadeira heterogeneidade genérica. Nesse contexto, em tempo e espaço reais, os alunos podem não apenas observar mas também protagonizar os vários eventos interlocutivos que aí se desenvolvem. É justamente sua efetiva participação nesse acontecimento que os tornará aptos a agenciar seu próprio aprendizado, minimizando, assim, muitos dos dilemas advindos do desconhecimento da peculiar configuração que assumem os gêneros em sua heterogênea concretização. Mas vale lembrar que o domínio desse saber implica uma nova deriva: a diferenciação entre os gêneros primários (aqueles da comunicação verbal mais espontânea do cotidiano) e os gêneros secundários (os da comunicação produzida a partir de códigos culturais elaborados, como a escrita), que, na visão bakhtiniana, não se consagra como uma diferença funcional. É muito mais, como interpreta 109 Machado (2005), uma distinção que dimensiona as esferas de uso da linguagem em processo dialógico-interativo. Com sua bem fundamentada decisão de não assumir uma perspectiva dicotômica na contemplação dos gêneros primários e secundários, Bakhtin (2003) inibe a tendência natural de uma classificação destes em categorias estanques. E a fim de refrear esse previsível desvio interpretativo, o autor chama a atenção para as inomináveis possibilidades combinatórias desses gêneros, alegando, em acréscimo, o fato de que estes, como formas discursivas, são suscetíveis de modificações: os gêneros secundários (tais como romances, gêneros jornalísticos, ensaios filosóficos) ─ formações mais complexas, provenientes de esferas como a ciência, a arte, a política ─ absorvem e assimilam os gêneros primários (formações mais simples), que se constituíram fora de uma comunicação cultural organizada; os gêneros primários, em contato com uma forma complexa (a réplica do diálogo cotidiano, por exemplo, que, numa dada situação, entra para um romance) perdem seu vínculo com o contexto da comunicação ordinária de que se originam adquirindo os matizes desse novo contexto a que se integram. Aproximando-se dessa concepção bakhtiniana, Schneuwly e Dolz (2004) formalizam uma proposta de agrupamento de gêneros (que, segundo acreditam, diferentemente de tantas outras tipologias, marca sua originalidade por definir as capacidades de linguagem necessárias para dominar cada gênero) circunscrevendo- os em cinco domínios sociais de comunicação: narrar, relatar, argumentar, expor e descrever ações. O fundamental, na execução dessa proposta, conforme assinalam os autores, é que cada agrupamento desses seja trabalhado em todos os níveis de escolaridade por meio de um ou outro dos gêneros que o constituem. A intenção precípua é oferecer aos alunos diferentes vias de acesso à escrita, o que demanda o envolvimento destes na construção de instrumentos de ensino que propiciem o desenvolvimento das capacidades indispensáveis para a assimilação dos gêneros agrupados. Semelhante direção toma Bazerman (2005) ao propor, como préstimo ao estudo dos gêneros, uma aprendizagem mais centrada nas noções de conjunto de gêneros (coleção de tipos de textos que uma pessoa, no desempenho de um determinado papel, tende a produzir) e sistemas de gêneros (os diversos conjuntos de gêneros utilizados por pessoas que trabalham juntas de forma organizada). Um 110 dos pontos positivos de sua proposição em favor do ensino, explicita o autor, é o fato de que a escola, ao trabalhar as habilidades de escrita do aluno para produzir conjuntos de gêneros, relacionados às mais diversas atividades das esferas sociais, estará desenvolvendo nesse sujeito-aprendiz não só uma competência textual mas também profissional. Em termos ilustrativos, registra o exemplo do engenheiro civil, que, no exercício de sua profissão, necessita escrever determinados documentos, o que vai requerer dele (ou de qualquer outro profissional frente a semelhante demanda) conhecimentos específicos. A ilustração dá conta de justificar o fato de que o saber sobre as variadas formas de escrita com as quais se poderá lidar é de grande valia na identificação do que se tem de aprender para produzir, com competência, os textos que, fatalmente, serão solicitados em função do trabalho que se venha a desempenhar. Se, nos termos dessa proposta, cabe implicar a escola, atribuindo-lhe tal responsabilidade, também se compreende que lhe seria impossível abarcar toda uma inominável variedade de gêneros para satisfazer cada uma das necessidades individuais de seus educandos. Como bem sublinha o autor, é impossível antecipar todas as formas de escrita de que os alunos poderiam vir a precisar. Enxergando por esse viés, já seria o bastante se a escola pudesse proporcionar-lhes as condições imprescindíveis ao desenvolvimento de habilidades e da flexibilidade suficiente para se adaptar às situações de vária natureza em que sejam solicitados a escrever. Esse modo de ver coloca o ensino e a aprendizagem da escrita para além das formas gerais de correção, ao mesmo tempo em que promove a aproximação da variedade de enunciados/gêneros. Tão importantes quanto essas proposições, para uma abordagem mais verticalizada sobre os gêneros, são algumas derivações conceituais de significativa aplicação nos processos de identificação das incontáveis configurações genéricas. O conceito de propósito comunicativo de Swales (2009) ganha a precedência dessa menção por ser considerado (pelo menos em sua versão original) como o critério privilegiado na definição de um determinado gênero. Mas essa convicção não tarda a abalar-se, uma vez que, em estudo posterior (em coautoria com Askehave, 2009), o próprio Swales reconhece ser essa uma categoria de aplicabilidade um tanto complexa, dada a perceptível dificuldade de identificar, com a necessária precisão, o propósito de qualquer gênero. Para além 111 dessa percepção, os citados autores ainda constatam que o propósito comunicativo manifesta-se mais tardiamente ao analista do que mesmo a forma e o conteúdo, o que acentua a impossibilidade de tomá-lo como critério primordial para a nomeação de um ou outro exemplar. Embora assumam essa posição cautelosa relativamente à prestabilidade do propósito comunicativo como método precípuo de classificação dos discursos em categorias genéricas, os autores transigem quanto ao fato de que o analista pode (e deve) mantê-lo como um critério privilegiado de análise. Essa transigência, contudo, implica um reposicionamento funcional para o propósito comunicativo: não poderá mais ser considerado como um critério fundamental por sua centralidade, mas por se constituir em um elemento determinante entre os procedimentos empregados para reconhecer e definir o gênero discursivo no momento em que os analistas chegam a completar o círculo hermenêutico. Em termos aproximados, Bhatia (2009) manifesta-se favorável à ideia de que os gêneros sejam identificados, essencialmente, em função dos propósitos comunicativos aos quais tendem a servir. Todavia, não deixa de alertar para o fato de que a aplicação desse critério pode, por vezes, acarretar algumas dificuldades em razão da possibilidade de emergir, em um mesmo evento discursivo, tanto um único propósito comunicativo quanto um bem detalhado conjunto destes. Na tentativa de melhor esclarecer suas pressuposições, o autor recorre ao exemplo dos gêneros promocionais (quais sejam: anúncios, cartas promocionais, panfletos turísticos e tantos outros cabíveis nessa menção), apresentando-os como parte daquilo que denomina uma colônia discursiva intimamente relacionada, na medida em que todos eles servem ao mesmo propósito comunicativo predominante: promover algo (empresa, produto etc.). Não obstante, reconhece, em cada caso, a probabilidade de aparecerem diferenças sutis no uso de estratégias para descrever, avaliar ou ainda particularizar o produto, o que redundaria, por certo, em exploração específica dos recursos linguísticos. Ainda assim, considera possível que essas variações perceptíveis somente configuram gêneros diferentes no momento em que começam a indicar uma dessemelhança substancial no propósito comunicativo. Certamente, essas arrazoadas ponderações (todas elas bem pertinentes) precisam ser levadas em consideração, especialmente nas situações de ensino- aprendizagem em que se elege o propósito comunicativo como critério orientador 112 central no processo de identificação dos gêneros. Ao fazer essa ressalva, não assumimos a pretensão de desabonar o mencionado procedimento; mesmo porque admitimos o recurso ao desvendamento do propósito comunicativo como um critério bastante funcional na determinação da identidade de um gênero. Cabe, no entanto, sublinhar o fato de que a recorrência a esse critério implica uma nova demanda: que seja este válido para o propósito comunicativo predominante no texto focalizado. Visando também à “rentável” serventia de determinados saberes acerca dos gêneros do discurso no processo de ensino-aprendizagem, Marcuschi (2008) enfatiza a necessidade primeira de se distinguir, com mais precisão, conceituações recorrentes, nessa área de estudo, como tipo textual, gênero textual (denominação preferida pelo autor, no tratamento dessa questão) e domínio discursivo. Em sua concepção, os gêneros são entidades empíricas em situações comunicativas e se expressam em designações diversas, constituindo, em princípio, listagens abertas. Os tipos, por sua vez, nomeiam uma espécie de construção teórica, definida pela natureza linguística de sua composição, e não chegam a ultrapassar o máximo de seis categorias possíveis de elencar, variando tão-somente segundo a orientação teórica a que se filiam. Já o domínio discursivo define-se, em nível de aproximação semântica, como uma “esfera da atividade humana” (no sentido bakhtiniano, como admite o próprio Marcuschi, 2008), não devendo, por essa razão, ser confundido com um princípio de classificação de textos; ao contrário disso, indica instâncias discursivas (a exemplo do discurso jurídico, do discurso jornalístico, do discurso religioso etc.). Não obstante assinale diferenças bem significativas entre tipos e gêneros textuais, o autor formaliza uma ressalva quanto ao fato de que não se deve enxergar essa distinção do ponto de vista de uma dicotomia, vez que estes não subsistem de modo isolado nem alheios um ao outro; são, na verdade, formas constitutivas do texto em funcionamento. Numa releitura de sua proposição, Marcuschi (2008) esclarece que as definições por ele apresentadas para nomear gênero, tipo e domínio discursivo são muito mais operacionais do que formais. Consoante essa perspectiva, predomina como critério definidor da noção de tipo textual a identificação de sequências linguísticas, enquanto que, para a noção de gênero textual, predominam os critérios de padrões comunicativos, ações, propósitos e inserção sócio-histórica. No tocante 113 ao domínio discursivo, reconhece que os critérios ainda não se mostram com muita clareza, dado o fato de que, nesse caso, não se lida com textos propriamente, mas com formações históricas e sociais de que se originam discursos. Apesar disso, aventa a possibilidade de vir a ser essa definição consolidada com base em critérios etnográficos, antropológicos e sociológicos e históricos. Também recomenda prudência no processo de nomeação dos gêneros. Mesmo porque, embora julgue conveniente, nesse processo, o recurso a critérios específicos, admite a insuficiência desse procedimento nos casos em que se faz necessário identificar determinadas representações genéricas que burlam o cânon: uma referência àqueles gêneros que se imbricam, interpenetram-se dando origem a novas configurações. Esse fenômeno de intergenericidade, como singularmente o designa Marcuschi (2008), difere, evidentemente, da heterogeneidade tipológica do gênero, que, segundo o autor, se associa ao fato de, em uma determinada forma genérica, realizarem-se sequências de vários tipos textuais (um artigo de opinião, por exemplo, poderá compreender sequências narrativas, explicativas, além das propriamente argumentativas). Ainda, no interesse desta abordagem, entendemos como sendo bastante pertinente a remissão ao conceito de suporte de gênero, que, na definição do autor, corresponde ao “[...] locus físico ou virtual com formato específico que serve de base ou ambiente de fixação do gênero materializado como texto” (MARCUSCHI, 2008, p. 174, grifo do autor). Esse esclarecimento pode ser o ponto de partida para acentuar a distinção entre suporte e gênero, um saber em torno do qual se criam algumas polêmicas, dada a dificuldade de se lidar com certas configurações discursivas, que, já em sua própria gênese, assumem sua ambivalência, deixando-nos à mercê de um tardio reconhecimento de sua identidade como suporte ou como gênero (caso do outdoor, a princípio, identificado como gênero e, posteriormente, reconhecido pelo mesmo autor – MARCUSCHI, 2008 – como sendo, indubitavelmente, um suporte). Esse contexto de descoberta não poderia ser mais favorável para que o autor chegasse à concludente percepção de que o suporte não é neutro, e o gênero não fica indiferente a ele. Assim como este último postulado, todos os demais, referenciados neste percurso, muito embora filiados a distintas assinaturas teóricas, convergem, nesta perspectiva analítica, para um mesmo objetivo: possibilitar uma melhor compreensão 114 do processo de constituição e de funcionamento dos gêneros; particularmente do artigo de opinião ─ feição genérica que toma o objeto de estudo desta investigação ─, de que passamos a tratar em sua especificidade epistemológica. O artigo de opinião é um gênero nascido no âmbito jornalístico, sendo sua existência marcadamente associada ao jornalismo impresso (em tempos de hoje, também invade os espaços da multimídia ─ é veiculado pela Internet, por exemplo). Dada a função que lhe cumpre desempenhar, assume, no meio jornalístico, o status de gênero opinativo (mesma categoria em que se colocam o editorial, a resenha crítica, a carta do leitor etc.). Sob essa condição, ocupa, nos jornais, um lugar de destaque, situando-se costumeiramente na circunvizinhança desses outros gêneros de semelhante configuração (em primeira instância, localiza-se junto a editoriais). Na visão de Rodrigues (2005, p. 171), essa prevalente “topografia” aloca o artigo de opinião “[...] entre os gêneros que historicamente têm seu horizonte temático e axiológico orientado para a manifestação da expressão valorativa a respeito de acontecimentos sociais que são notícia jornalística”. Subentendemos, por essa menção, que sua finalidade discursiva não se restringe tão simplesmente à mera apresentação desses acontecimentos em si (função que se reserva à notícia); orienta-se, essencialmente, para a sua apreciação. Nessa perspectiva, “[...] se [constitui] como um fundo discursivo dialogizador, considerado de domínio do leitor, a partir do qual o articulista constrói o seu acento de valor, que o leitor precisa reconstruir na sua reação-resposta” (RODRIGUES, 2005, p. 173). Na instauração desse processo de interlocução, como ficou evidenciado, o leitor, de quem se espera uma compreensão responsiva ativa, não se apresenta como um interlocutor indefinido; o próprio gênero (nesse caso, o artigo de opinião), parece traçar-lhe um perfil condizente com as suas necessidades interpretativas, o que já elimina a possibilidade de ser a sua leitura processada por pessoas inexperientes. Em observância a essa ressalva, prefigura-se, para o artigo de opinião, um leitor de considerável competência sociodiscursiva, qualificado, portanto, para responder, de forma adequada, aos apelos do gênero. Enquadra-se, nesse nível de exigência, por assim dizer, aquele leitor pertencente, em geral, às classes A e B, tendo-se em vista a suposta condição que se lhe atribui por estar assim socioculturalmente posicionado. 115 Numa contraversão dessa realidade, encontrar-se-ia a razão por que os jornais destinados exclusivamente aos leitores das classes populares não priorizam a publicação do gênero artigo de opinião. Probabilisticamente, aumentariam suas chances de não poder contar com um público leitor capaz de reconstruir os sentidos intencionados. “Nessa diferenciação, percebe-se como o trabalho da ideologia e os índices sociais de valor se manifestam não só nos ‘contextos’ dos enunciados, mas nos gêneros e na sua circulação social diferenciada [...]” (RODRIGUES, 2005, p. 171, grifo da autora). Essa visível submissão aos mencionados índices sociais de valor também condiciona a definição da autoria do artigo de opinião, uma vez que esta sempre se processa sob o peso das conveniências que orientam a escolha autoral. Dentre as demais condições estipuladas, destacam-se, como precedentes, a posição social e o respeito profissional de que goza o autor no cenário sociopolítico e cultural, o que já garante seu livre trânsito em sociedade e, por extensão, sua credibilidade, como formador de opinião, junto ao público leitor. Normalmente, essa responsabilidade discursiva é conferida a um sujeito, que, pertencendo ou não ao quadro funcional da empresa jornalística, se dispõe a assumir, sob o manto da autoria, um ponto de vista compatível com os interesses daqueles que se propõe representar. Em contrapartida, vale referenciar a inversão desse acontecimento, considerando-se o fato de que, nem sempre, o articulista se permite colocar a “máscara de autor”, justamente porque se descobre interlocutor de questões à espera de sua competente arbitragem. Sob esse ângulo, vê-se inscrito num diálogo “[...] que pode passar à ação, pode tornar-se força empírica” (BAKHTIN, 2003, p. 389), o que lhe serve de estímulo para expressar, por sua “palavra própria”, seu verdadeiro modo de pensamento. Assumindo uma ou outra dessas perspectivas de agenciamento de seu discurso, o autor do artigo de opinião investe-se do papel de articulador de um ponto de vista autorizado, quer por seu desempenho como porta-voz do discurso da empresa jornalística que representa (sabemos que o jornal, como autor interposto, já se constitui em um argumento de autoridade), quer por seu mérito particular, uma outorga decorrente de uma conjuntura de fatores que cercam o ato de produção de que se faz agente: seu credenciamento social, sua competência profissional, seu 116 notório saber sobre o assunto em voga e, inclusive, sua orientação apreciativa ante os acontecimentos sociais. O concurso dessas credenciais certamente confere autoridade ao dizer do autor no artigo de opinião. Não obstante, faz-se oportuno observar o fato de que sua orientação apreciativa diante dos acontecimentos sociais “[...] não se constrói de modo solitário, mas se encontra entrelaçada com outras posições discursivas, ou seja, o autor mantém relações dialógicas com os enunciados já-ditos”. Essa é mais uma estratégia discursivo-argumentativa de que se vale o articulista no intuito de fortalecer o seu ponto de vista, que se vai “[...] construindo pelo modo diferenciado de incorporação e tratamento que dá às diferentes vozes (outros acentos de valor) arregimentadas no seu enunciado [...]” (RODRIGUES, 2005, p. 174). E nem poderia proceder de modo avesso. O próprio conteúdo temático do gênero artigo de opinião (acontecimentos que ensejam confrontação de ideias), por estar, naturalmente, vinculado a questões polêmicas, já predetermina, para o seu autor, um dado modus faciendi: deverá posicionar-se diante da questão em debate, esteando-se em outras posições discursivas com as quais poderá entreter diálogos intencionalmente construídos ao compasso de dois movimentos dialógicos, que se constituem a base desse processo de interlocução. Nessa referência, registram-se o movimento dialógico de assimilação ─ em que se convocam as vozes avaliadas positivamente para dar sustentação e credibilidade ao ponto de vista do autor ─ e o movimento dialógico de distanciamento ─ em que se convocam as vozes avaliadas negativamente, porque representam, em potencial, uma posição de confronto ao discurso autoral, sendo, por isso mesmo, alvo de manobras/estratégias discursivas, que visam renegá-las ou desqualificá-las, de modo a perderem sua confiabilidade e, assim, reforçarem ainda mais o posicionamento assumido pelo autor. Na execução desses movimentos, sobressaem-se diferentes maneiras de “acolhimento” do discurso do outro. No movimento dialógico de assimilação não há, segundo Rodrigues (2005), uma pluralidade de formas com que se possa assinalar (no plano estilístico-composicional do artigo) a inter-relação do discurso do autor com os muitos já-ditos. Atemo-nos, portanto, à menção de algumas dessas marcas, destacadas entre os recursos mais consagrados, como a escolha de determinados verbos ou grupos proposicionais introdutórios do discurso citado e o emprego de certas palavras e expressões de caráter avaliativo. 117 Numa proporção inversa, o movimento dialógico de distanciamento conta com um bem diversificado conjunto de estratégias, em que se incluem o recurso a palavras e expressões avaliativas, os operadores argumentativos, a ironia, as aspas, a negação, a convocação do discurso de um outro (muitas vezes com o objetivo de desautorizar determinado ponto de vista, sendo, nesse caso, o discurso convocado que emite o parecer desqualificativo, não o articulista), os pronomes demonstrativos etc. Parece-nos interessante acrescentar o fato de que algumas dessas estratégias de enquadramento “[...] funcionam simultaneamente também como meios de introdução e citação do outro discurso, como a negação, a ironia, as aspas e os operadores argumentativos” (RODRIGUES, 2005, p. 176). Em todo esse processo, importa salientar, as escolhas do autor orientam-se, particularmente, para a reação-resposta ativa do interlocutor-alvo mais próximo, o seu leitor virtual. É sempre levando em consideração esse provável leitor que ele constrói um determinado projeto de discurso; isso justifica sua preocupação com os modos por que busca aproximar-se do leitor a fim de tê-lo sob sua influência. É, pois, visando ao estabelecimento de uma relação dialógica, assim planejada, com seu interlocutor que o autor inclina-se a realizar, em seu discurso, três movimentos dialógicos essenciais: o movimento de engajamento, o movimento de refutação e o movimento de interpelação. A construção do movimento de engajamento requer do sujeito articulista uma certa habilidade para dirigir-se ao leitor de modo a fazê-lo sentir-se como um seu aliado; como se estivesse de pleno acordo no que concerne à expressão do ponto de vista prevalente; como se assumisse a mesma posição valorativa. E para suscitar-lhe uma impressão ainda mais realística de seu envolvimento na elaboração do discurso, o articulista lança mão, preferencialmente, de determinados recursos: o emprego do verbo e do pronome na 1ª pessoa do plural, o uso bem mais frequente do pronome todos e das perguntas retóricas, as quais apresenta como se fossem questionamentos possíveis emanados do leitor. O movimento de refutação constrói-se em contraponto ao movimento de engajamento, considerando-se que, nesse processo, o articulista busca antecipar-se à eventual contrapalavra do leitor, que poderá, em sua reação-resposta, opor-se à orientação de seu ponto de vista. Pressentindo essa possibilidade, e já tencionando dissuadir, previamente, o leitor desse propósito, o articulista manobra no sentido de 118 refrear essa investida, encarando mais explicitamente o pressuposto contradito ou criando um bem simulado engajamento: finge aceitar a presumida objeção do interlocutor, incorporando-a, intencionalmente e temporariamente, em seu discurso para, logo em seguida, desautorizá-la. Com esse artifício, visa tornar ainda mais aparente sua refutação, que se pode manifestar linguisticamente, tanto por meio de operadores do tipo mas, no entanto, todavia (e outros de mesmo valor semântico) quanto pela negação, recursos capazes de provocar equivalente efeito de sentido ao demarcarem, muito claramente, o distanciamento entre as duas posições ─ a do leitor e a do articulista. Na concepção de Darras et al. (1994), com quem sintonizamos melhor nossa compreensão (no que concerne, especificamente, a esse ponto), revelam-se, nessa circunstância, dois movimentos distintos, embora essencialmente contra- argumentativos: no primeiro caso, consubstancializa-se um movimento de refutação, entendido pelos autores como o momento em que se passa da formulação de uma contra-argumentação para a afirmação de uma argumentação; no segundo caso, realiza-se um movimento de concessão, definido este como sendo bem mais complexo que o anterior, uma vez que a posição contra-argumentativa não é inteiramente anulada; ela é partilhada, pensada também pelo sujeito-autor, que vai, todavia, orientar-se em direção a uma outra conclusão. Feitio diferente assume a relação dialógica estabelecida entre articulista e leitor no movimento de interpelação. No processo de construção desse movimento, o sujeito-autor dirige-se ao leitor de forma mais contundente, deixando transparecer, em seu ponto de vista, uma entonação típica de um imperativo categórico (afinal, é a opinião de um sujeito “autorizado”), dada a aparência de verdade incontestável de que se reveste, para, assim, poder impressionar o leitor e aproximá-lo de seu campo de observação, não lhe deixando outra alternativa senão conferir plausibilidade e credibilidade a seu discurso. Sob essa configuração, o modo de relacionamento entre os interlocutores (autor e leitor) adquire um novo contorno: o leitor é compelido a concordar com a opinião do autor, que, em tom impositivo (assinalado em seu discurso pela presença de alguns indicadores modais do tipo é preciso, deve ser, é fundamental, é condição sine qua non etc.), o induz a enxergar por seu ângulo de visão. 119 Como acabamos de constatar, no artigo de opinião, o discurso do outro pode-se fazer perceptível sob os mais variados arranjos, indo desde a evocação de enunciados já-ditos (que se vão incorporar ao discurso do autor), a citações de mais acentuada visibilidade (tendo-se por exemplo o discurso relatado direto e indireto), e até mesmo a formas bem mais diluídas, implícitas, particularmente avessas “[...] às formalizações linguísticas de inter-relação com o discurso do outro, como no discurso bivocal” (RODRIGUES, 2005, p. 177). E toda essa orquestração de vozes à mercê de um único regente: o discurso do autor, que [...] representa e enquadra o discurso de outrem, cria uma perspectiva para ele, distribui suas sombras e suas luzes, cria uma situação e todas as condições para sua ressonância, enfim, penetra nele de dentro, introduz nele seus acentos e suas expressões, cria para ele um fundo dialógico (BAKHTIN, 1998, p. 156). E está claro que o autor não se impõe todo esse trabalho sobre o discurso do outro por simples diletantismo. Imprime-lhe marcas, mais explícitas ou mais veladas, das intenções semânticas e axiológicas por que vai orientar seu próprio discurso, já em vias de inter-relação com o(s) outro(s) discurso(s), concedendo, assim, mais “eco” à sua voz, no sentido de fazer sobressair sua opinião como se essa emanasse de uma única origem enunciativa. Não é, pois, sem razão que os alunos tardam a compreender esse modo de composição (aliás, não muito diferente de outros tantos modos de composição dos demais enunciados do sujeito social), em que não se lhes apresenta, com mais nitidez, senão a palavra do próprio autor. Especialmente porque, numa visão de conjunto (considerando-se, nessa referência, uma percepção superficial e ingênua), é natural (e mesmo fatal) deixar-se enlevar pela totalidade do enunciado do autor, esquecendo que este é resultante da incorporação/do enquadramento de muitos outros enunciados. Por esse involuntário “esquecimento”, quase se anula o discurso do outro, que o autor toma em particular benefício, enredando-o na sua teia discursiva, de maneira a realçar, cada vez mais, a audição de sua voz autoral na construção do horizonte axiológico vislumbrado. Uma dessas ocorrências típicas pode encontrar sua concretização no discurso bivocal, em que se fundem dois enunciados, “[...] duas perspectivas axiológicas (assimiláveis ou não)”. Bem à 120 semelhança do que também sucede no artigo de opinião: “As palavras pertencem formalmente ao articulista, mas nelas outra voz ressoa” (RODRIGUES, 2005, p.177). É justamente por não atingirem esse nível de percepção que os alunos enfrentam dificuldades no processamento textual; nessa situação, especialmente, referimo-nos à produção do artigo de opinião, que, como qualquer outro gênero retórico, acolhe “[...] as formas mais variadas de transmissão do discurso de outrem, e, na maioria dos casos, fortemente dialogizadas” (BAKHTIN, 1998, p. 152). Essa compreensão reacentua a já pressentida necessidade de se orientar os aprendizes no processo de deslindamento das vozes, que, de modo consciente, ou não, inserem em seu discurso, instruindo-os quanto à acomodação/ao alojamento dessas múltiplas manifestações discursivas, oriundas das mais diversas enunciações. Decerto, essa é uma preocupação a ser assumida pelos docentes em sua prática pedagógica. Todavia, se querem mesmo que os alunos alcancem o domínio do gênero artigo de opinião (ou de qualquer outro gênero), precisam ir bem mais além desse saber, começando por entender que, ao ser introduzido na escola, o gênero transfigura-se: “[...] não é mais instrumento de comunicação somente, mas é, ao mesmo tempo, objeto de ensino-aprendizagem” (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004, p. 76). Nessa nova dinâmica de construção, assumindo a condição de gênero escolar (deslocado, então, do lugar social de sua origem), deverá conformar-se a um distinto modo de funcionamento, que, embora o particularize, não o desvinculará de sua gênese: será sempre uma variação do gênero de referência. Por isso mesmo, torna-se imprescindível que os professores dominem os saberes sobre o gênero a ser ensinado/aprendido, tal como se apresenta (e como funciona) nas práticas de linguagem de referência, para, então, mostrarem-se em condições de criar, no processo de ensino-aprendizagem, situações que possam reproduzir, da maneira mais aproximada possível (uma vez que sofrerá as devidas readaptações de “transplante”), o gênero em que se espelham. Assim procedendo, estarão levando os aprendizes a se apropriarem desse conhecimento pela vivência de uma situação de comunicação “autêntica”, no sentido de ser esta configurada de modo assemelhado àquela em que se dá a emergência do gênero-protótipo. Esse modo de percepção coloca-nos em sintonia com o ponto de vista de Verret (apud BROCKART; GIGER, 1998), traduzido na compreensão de que o objeto a ser ensinado necessita ser tratado, verdadeiramente, como objeto de 121 ensino. Assim dimensionado, não lhe restará escapatória: fatalmente se submeterá ao constrangimento das inevitáveis transformações por que deverá passar. Concomitante com essa compreensão, alinha-se a ressalva de que a transposição didática ─ como nomeia Chevallard (1991) o procedimento por que se transforma um objeto de saber a ensinar em um objeto de ensino ─ não se deve processar tão inconsequentemente, vez que não se trata da simples aplicação de uma teoria científica qualquer ao ensino. Essa advertência revela-se-nos ainda mais pertinente se a interpretarmos à luz do seguinte postulado: “Um conteúdo de saber que tenha sido definido como saber a ensinar [deve sofrer], desde então, um conjunto de transformações adaptativas que irão torná-lo apto a ocupar um lugar entre os objetos de ensino” (CHEVALLARD, 1991, p. 39, grifo do autor. Tradução nossa). Se condicionado a essa perspectiva, o artigo de opinião, sob o foco dessa análise, deverá conformar-se a algumas exigências para, de fato, poder ser alçado à condição de objeto de ensino. A assunção dessa peculiar identidade impõe outras tantas incumbências ao professor, a quem cabe, por natural competência de seu ofício, realizar, em segunda instância, essa complexa transposição didática. Certamente, esse processo de transição não se realizará sem potenciais enfrentamentos. Isso porque não podemos descartar a tangível possibilidade de se vir a colocar essa tarefa sob a responsabilidade de professores pouco preparados para lidar com situações de ensino que requerem, além de um saber efetivo sobre o objeto de seu ensino, uma regência particularmente apropriada à transposição de um conteúdo específico (por vezes sequer contemplado em sua formação), que, em deriva, implica um encaminhamento pedagógico singular. Nesse ritual de passagem, como se vislumbra o alcance da idealidade do ensino-aprendizagem de um conteúdo de caráter idiossincrático (no caso, o artigo de opinião), torna-se inevitável proceder a determinados arranjos didáticos. Entre outras medidas a serem tomadas em favor de uma bem-sucedida atuação docente, antepõe-se a necessidade de realizar uma espécie de anamnese do objeto de ensino, em que se deve especular acerca da natureza do saber a ser mobilizado. Isso implica deitar um olhar perscrutador sobre esse objeto, focalizando-o a partir de sua complexidade intrínseca, do tipo de relação que estabelece com as práticas discursivas das quais se deriva, e do modo como tem sido apresentado (o modelo 122 arquitetônico em que se tem configurado quando de sua materialização em texto) nas referidas práticas. Numa outra linha de ação − em se tratando ainda da prática de exposição didática, em que se implica a exploração de um determinado saber − deve-se atentar, em particular, para o perfil dos destinatários da transposição, uma vez que os saberes a ensinar precisam ser sempre adaptados à maturidade intelectual dos aprendizes − por extensão, ao estado e às formas de seus conhecimentos prévios; e para o próprio processo de aprendizagem, que contempla, necessariamente, o modo de assimilação/interiorização dos saberes. Complementando esse circuito, faz-se, por fim, imprescindível considerar o contexto institucional em que essas práticas de transposição ocorrem, incluindo-se também, nessa consideração, outros elementos em concurso no espaço escolar: a competência dos professores para atuar no processo da transposição, sua postura pedagógica; os programas em execução, sua progressão, sua continuidade etc. (VERRET, 1975 apud BRONCKART; GIGER, 1998). Esses arranjos didáticos, segundo Chevallard (1991), embora se façam decisivos e convenientes à transposição, se não forem proficientemente executados, podem redundar em alguns desacertos no processo de ensino-aprendizagem. E isso por um motivo bem real: os saberes didatizados, conforme já havia anunciado Verret (1975), por que submetidos ao processo de dessincretização, ou seja, isolados do contexto de sua produção e de sua apresentação no campo científico, podem, em sua versão didática, ser mais facilmente naturalizados (banalizados?) em práticas de aprendizagens específicas, como as escolares. Além disso, ao sofrerem o efeito da despersonalização, isto é, em sendo dissociados do discurso pessoal/da origem enunciativa, de que emanam, podem simular um apagamento da subjetividade, que, assim descentrada, abre espaço à emergência de um discurso pretensamente neutro, porque, apenas em aparência, se impessoaliza. Como vimos, muitas são as transformações por que passam os saberes em seu processo de transposição didática. No ensino-aprendizagem do gênero artigo de opinião não é diferente. Nesse contexto de produção, além das tantas outras operações de linguagem que o aprendiz deve efetuar para construir seu texto, ele precisa ainda responder, de modo competente, às exigências do próprio gênero, quais sejam: assumir discursivamente a posição de autor; construir uma imagem – 123 do modo mais aproximado possível – de seus prováveis leitores; atentar para o contexto institucional e social no qual está inserida sua produção escrita; eleger o objeto de seu discurso; posicionar-se diante desse objeto e de outros discursos sobre esse mesmo objeto. A observância a essas prescrições orienta para um precípuo objetivo: o domínio, quase absoluto, “do gênero correspondente à prática de linguagem para que, assim instrumentado, o aluno possa responder às exigências comunicativas com as quais ele é confrontado” (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004, p. 79). E como saber se, de fato, o gênero ensinado atingiu o nível de assimilação desejável? Certamente, assumindo o controle sobre a aprendizagem. No caso específico do gênero artigo de opinião (ou mesmo de qualquer outro gênero), materializado sempre sob a forma escrita, não há maneira viável de possibilitar seu aprendizado senão envolvendo os alunos em situações que lhes favoreçam o exercício da modalidade escrita. É justamente esse o pensamento de Schneuwly e Dolz (2004, p. 78) quando afirmam categoricamente: “Aprende-se a escrever, escrevendo [...]”. Evidentemente, trata-se de uma afirmação incontestável. Não obstante, para entendê-la em seu sentido pleno, faz-se necessário considerá-la à luz de seus “debordamentos” semânticos. Isso implica reinterpretar o dito a fim de desvelar-lhe mais um querer dizer, que antevemos subjacente à tese dos autores: é certo que se aprende a escrever, escrevendo, mas os aprendizes jamais alcançarão essa tão ambicionada performance se não lhes for concedida a oportunidade de ter seus textos submetidos a uma avaliação criteriosa, que os faça realmente beneficiários de orientações promissoras, porque consequentes. É justamente com o intuito de notabilizar a fundamental importância da avaliação em todo esse processo – ainda mais se a realizarmos à semelhança do modelo ora perspectivado − que nos orientamos para a abordagem seguinte, em que trataremos dos saberes que regem a ação avaliativa e dos saberes requeridos para avaliar o artigo de opinião. 124 3.2.4 Dos saberes sobre a avaliação aos saberes para avaliar o artigo de opinião [...] e se o frenesim avaliativo se apoderar dos espíritos, absorver e destruir as práticas, paralisar a imaginação, desencorajar o desejo da descoberta, então a patologia espreita-nos e a falta de perspectivas também. Philippe Meirieu Na era da compulsividade ideológica da qualidade total, em que os olhos do coletivo estão amplamente voltados para o desempenho individual de cada um e de toda a gente, o frisson avaliativo encontra espaço propício à sua instauração. Avaliar tudo, avaliar todos assumiu o tom da voz de comando. Mas quem disse que “[...] a obsessão pelo termômetro [já] fez baixar a temperatura?” (MEIRIEU, 1994, p. 13). Se assim fosse, bastaria o uso incessante desse instrumento de medida para ter sob controle uma febre em seu mais graduado pico. Transmutado para o universo das práticas pedagógicas, esse raciocínio presuntivo alerta para a absoluta necessidade de os professores absterem-se do “frenesim avaliativo” de que se podem acometer, no seu incontido desejo de fazer os aprendizes devolverem, em moeda de valor, o conteúdo de seu ensino. A justeza dessa ponderação torna-se ainda mais prevalente quando, voltando-nos para a realidade circundante, constatamos que não será, definitivamente, pelo recurso a uma profusão de instrumentos avaliativos que o professor poderá, de forma segura, atestar o nível de aprendizagem alcançado por seus alunos. Mesmo porque todos esses variados diagnósticos restarão inúteis “[...] se não derem lugar a uma ação apropriada” (PERRENOUD, 1999, p. 15). É com esse direcionamento que nos propomos tratar do tema avaliação do texto argumentativo, configurado no gênero artigo de opinião, escrito em situação escolar. Fazer incursões por esse território é (dando vazão à metáfora) caminhar por sobre areias movediças; afinal, contemplamos a parte mais dilemática de todo o processo de ensino-aprendizagem. E não vemos qualquer exagero na linha desse parecer. Quando se faz referência à avaliação de textos, os professores são quase unânimes em afirmar que essa incumbência redunda em um dos inevitáveis 125 constrangimentos que se veem obrigados a vivenciar na dinâmica do trabalho pedagógico. As justificativas para essa manifestação de perceptível desagrado, relativamente ao desempenho de seu papel de avaliador, fundamentam-se, tanto no reconhecimento de não serem possuidores de uma formação adequada para a realização dessa atividade quanto na reiterada alegação da dificuldade de avaliar atribuindo um justo valor. O próprio discurso docente testemunha em favor dessas afirmações: Às vezes, eu sinto desconforto mesmo, entendeu? Às vezes, eu sinto que eu precisava ser mais bem capacitada. De fazer um curso que ensinasse a avaliar. Eu andei até comprando uns livros sobre como avaliar, sobre avaliação de texto. Mas não ajudaram muito. Eu sinto que eu tenho essa dificuldade [...] Eu tenho dificuldade. Muita dificuldade. E aí, eu termino pecando pela benevolência [...] (PROFESSORA MARGARIDA, sujeito de pesquisa, em entrevista à pesquisadora, junho de 2008, p. 19). Em seu pronunciamento, como se pode constatar, a professora confessa-se ainda pouco preparada para assumir sua função de avaliadora, razão por que lhe sobrevêm inúmeras dificuldades, as quais tenta superar buscando nos livros um saber de que não se apropriou em seu processo de formação. Decerto os livros podem ser um bom começo; mas serão de menor valia (o que foi atestado pela docente: “[...] não ajudaram muito.”) se não se construir uma sólida ponte entre a teoria e a prática. É justamente essa capacidade de “transitar” entre essas duas vias por que se acessa e consolida o conhecimento que o professor precisa desenvolver para, ao compasso de seu saber-fazer, imprimir a devida consistência ao ensino- aprendizagem do texto argumentativo escrito, dispensando atenção especial, nesse processo, para o exercício da avaliação. Evidentemente, para alcançar essa idealidade em sua atuação docente, tendo em causa o texto escrito pelo aprendiz como objeto a ser apreciado num processo de avaliação, o professor não pode senão concebê-lo e avaliá-lo “[...] como produto de um sujeito que, a seu modo, através das diversas possibilidades e formas de linguagem, busca estabelecer um determinado tipo de relação com seu interlocutor” (LEAL, 2003, p. 54). Isso nos orienta para a compreensão de que, mesmo quando, por sua produção textual, o aluno apresenta ao professor o resultado de sua reflexão esteada, quase sempre, em saberes que visam, mais particularmente, satisfazer as expectativas da atividade que lhe foi proposta, não está apenas exercitando uma responsividade passiva; ele também espera que se 126 proceda a uma leitura deveras proficiente de seu texto, para que, em função desse procedimento, se faça beneficiário de uma compreensão responsiva ativa. Essa atitude, a ser tomada pelo professor, mostra-se, aliás, bem condizente com a ideia de que “[...] a avaliação é, antes de tudo, uma atividade de leitura e, como tal, exige uma postura de diálogo frente ao texto” (EVANGELISTA et al., 1998, p. 17). Mas é preciso entender que assumir essa “postura de diálogo frente ao texto” não significa deitar um olhar inquisitivo sobre o produto finito, inerte em seu (presumível) acabamento, pois que, sendo o texto uma unidade da comunicação discursiva, definido, sob essa condição, como um enunciado pleno, na concepção bakhtiniana, coloca-se inevitavelmente refém de “[...] uma compreensão responsiva que inclui em si o juízo de valor” (BAKHTIN, 2003, p. 332, grifo do autor). Logicamente, o texto produzido pelo aprendiz visa a essa responsividade, que se deve concretizar em termos de um retorno consequente, cujo sentido se traduz não apenas na ação de orientar o sujeito-aprendiz sobre os saberes até então consolidados mas ainda na assunção do compromisso de propiciar-lhe as condições necessárias ao enfrentamento consciente de suas dificuldades de aprendizagem, levando-o, assim, a uma percepção aproximada de seu desempenho (PIVOVAR, 2011). Esse modo de resposta cria, em deriva, um espaço favorável à prática da autoavaliação, “[...] deixando [ao aprendiz] lugar para o tateio, para um confronto com o fracasso ou com o êxito da ação a fim de compreender suas causas” (CAMPANALE et al., 2012, p. 203) e se tornar capaz de, pelo exercício dessa atividade metacognitiva, regular seus próprios processos de aprendizagem. Sob essas condições, [...] redefine-se o papel do professor. Ele não é mais produtor do conhecimento, nem repassador de conteúdo, nem simulacro de interlocutor. É um interlocutor legítimo, cuja legitimidade é garantida pela imersão do aluno num processo que lhe exige agir sobre o outro ou sobre o mundo por meio da palavra (falando, lendo ou escrevendo). O aluno elege o professor como interlocutor na busca de auxílio para ajustar o resultado de sua atuação às intenções do processo (PIVOVAR, 2011, p. 68). Na avaliação do texto argumentativo configurado em artigo de opinião, o professor precisa, mais do que no exercício de qualquer outra atividade, colocar-se como interlocutor preferencial do aprendiz. No desempenho desse papel, assume a responsabilidade de orientar a construção de um texto gestado em um processo de 127 interlocução permeado, quase sempre, por uma multiplicidade de vozes, que se devem “singularizar”, tecnicamente, na voz do sujeito-aprendiz, muito raramente possuidor do necessário saber para conduzir com mestria essa orquestração. E nem nos parece exagerada a crença de que esse despreparo deva-se ao fato de não se contemplar, de modo mais sistematizado, nas situações de ensino, o conhecimento relativo à heterogeneidade enunciativa. Na realidade, se tomarmos, a título de ilustração, alguns textos analisados nesta pesquisa, constataremos que a revelação desse saber não vai além da representatividade dos discursos relatados (a exemplo do discurso direto e indireto, em particular), mais facilmente identificáveis na linha do texto. Essa limitação cognitiva deixa o aluno carente de um aprendizado que se faria por demais produtivo em seu desenvolvimento como sujeito-escritor- aprendiz do gênero artigo de opinião, que, pela peculiaridade de sua arquitetônica textual, se mostra propenso à inserção de formas mais complexas de discursos, não manifestos por marcas linguísticas específicas; por isso mesmo possíveis de ser inferidos tão-somente no processamento da leitura do texto (a exemplo da ironia, do discurso indireto livre, do discurso social...). Também consideramos admissível o fato de que muitos professores não atentam para a aludida inabilidade de seus alunos, no tocante ao gerenciamento das diversas vozes que se entrecruzam em seus textos, na instauração dos diferentes posicionamentos enunciativos, porque nem se dão conta do complexo processo de interlocução em que se constrói o gênero artigo de opinião. Se não têm essa ciência, como, então, poderão orientar seus alunos na construção de saberes de que ainda não se apropriaram? Não seria mesmo preferível permanecer no silêncio das ações a correr o risco de ser flagrado em suas fragilidades cognitivas, sendo ele, o mestre, supostamente, aquele que não pode errar? Situações como essa jamais se poderão transformar em dilemas para o professor. São, ao contrário, extremamente compensatórias, uma vez que lhe abrem espaço para testar seus saberes e, principalmente, aprender com as suas dúvidas. Aceitar o fato de não ser um sábio pode levá-lo à busca pelo saber, para não mais silenciar com medo de enganar-se, de enfrentar os questionamentos, de perder sua posição superior, de não poder mediar. Reconhecer-se falível, em sua autenticidade humana significa não se apresentar jamais totalmente certo de seus valores, mas estar sempre a questioná-los; não se querer titular de uma posição superior vitalícia, 128 considerando-se apenas mais avançado e melhor que o aluno em sua área de competência; e não se proclamar, em nenhuma circunstância, senhor onisciente, mas passar-se por um aprendiz sempre em processo de aperfeiçoamento (HADJI, 2001). Certamente, não se haverá de definir como frustrante a constatação de que não se apresentam em grande número os professores que pautam sua docência por essa largueza de princípios. E justificadamente isso ocorre porque não lhes será possível proceder dessa maneira se não puderem “beneficiar-se de espaços de distanciamento que [lhes] permitam refletir sobre sua prática e apropriar-se de novos elementos de conhecimento a se integrarem progressivamente em sua ação pedagógica” (FAINGOLD, 2001, p.132). Numa perspectiva bakhtiniana, remete-se ao exercício da exotopia (tal como a concebe Bakhtin, 2003). A retomada desse conceito marca sua pertinência no processo de avaliação justamente porque, estando este associado à ideia de acabamento, possibilita, por seu recurso, compreender, em sua realização plena, a relação de tensão estabelecida entre dois sujeitos postados diante de um objeto (o texto) a ser avaliado: o aluno, que produz seu texto e o olha de seu lugar de sujeito- autor-aprendiz; o professor, que, estando de fora da experiência vivenciada pelo aluno em seu processo de produção, tenta reconstituir, por seu olhar extraposto – respaldado, logicamente, por seus saberes, por seus valores −, aquilo que o aprendiz precisa que lhe seja revelado, uma vez que ele mesmo não consegue perceber. Esse “olhar extraposto”, que permite ao professor enxergar o texto de seu aluno para além do dito, podendo, em função disso, interferir em seu acabamento, visto ser de sua competência, em tal situação, assumir a responsabilidade pela resposta, também rende benefícios à própria formação docente. Nesse sentido, considere-se o fato de que, ao se envolver no processo de avaliação de textos, em que, fatalmente, será compelido à responsividade, o professor coloca-se numa situação bastante favorável para analisar sua própria prática, uma vez que, de forma direta ou indireta, o rendimento do aluno em sua produção pode espelhar o seu aprendizado, dando ao professor, em retorno, uma informação sobre ações futuras a serem desenvolvidas em prol da melhoria do desempenho discente. Sob esse ponto de vista, é possível conceber a avaliação como um importante procedimento para 129 aperfeiçoar todo o processo de ensino-aprendizagem. Por extensão, certamente, aperfeiçoar-se-á “a competência dos professores/as para realizar apreciações [mais] acertadas sobre [os textos de] seus alunos/as, a partir das capacidades e esquemas de percepção, atribuição e interpretação que [se desenvolvem] nas condições naturais de trabalho” (SACRISTÁN, 1998, p. 341). Vale salientar, no entanto, que essa utilidade pedagógica da avaliação somente alcança sua visibilidade quando o processo avaliativo é orientado por uma metodologia apropriada para realizar a averiguação do conhecimento assimilado e expressar os resultados dessa assimilação. “Se a avaliação fica integrada no processo de ensino-aprendizagem, os dados mais ricos, quanto à informação que podem dar ao professor/a, não são os de caráter quantitativo ou as classificações numéricas” (SACRISTÁN, 1998, p. 341). Essa afirmação ganha ainda mais força se se colocar em referência à avaliação de textos. É certo que precisamos atribuir um valor, sob a forma de uma nota, ao texto do aluno, sendo esta, inclusive, entendida como reguladora da aprendizagem no âmbito das instituições de ensino. Não obstante, esse é um registro que somente se presta, como nos esclarece Sacristán (1998, p. 341-342), “para classificar e para apontar níveis, mas não informa de seu significado, exceto que se explicite o processo pelo qual passamos desde a leitura e apreciação de um trabalho até a qualificação”. É justamente com a pretensão de realçar a idealidade de o professor proceder, em sua prática avaliativa, de modo a priorizar o caráter qualitativo do objeto avaliado (mesmo sendo o resultado expresso em número) que o autor arremata seu raciocínio com a seguinte ponderação: “Um julgamento qualitativo permite comunicar o que significa o trabalho do aluno/a” (SACRISTÁN, 1998, p. 342). Todas essas considerações reforçam a hipótese de que, pautando-se por tal compreensão, o professor-avaliador estará em melhores condições de analisar mais refletidamente as presumíveis consequências de suas ações, entendendo, inclusive, no próprio curso de sua reflexão, que, na dependência de sua atuação competente, se coloca a alternativa de solução às indagações emergentes dos textos. Se, numa ocorrência inversa, as orientações propostas não atingirem o nível de expectativa almejado, isto é, se não atenderem aos reais apelos do texto produzido pelo aluno, é um sinal flagrante de que não se revelam promissoras ao aprendizado, pois, muito provavelmente, passam à margem dos problemas sobre os quais deveriam intervir. 130 E nem podemos dizer que essa omissão resulte sempre de uma ação inconsciente; muitas vezes, decorre de um não saber-fazer que, irremediavelmente, pode levar o professor-avaliador a adotar “estratégias de proteção” (PERRENOUD, 2012) contra o medo de expor sua incapacidade para justificar, ao abrigo de uma argumentação consistente, a aplicação de tal ou qual critério em função do que ele julga e valora o texto do aluno; ou ainda contra o medo de descobrir-se incapaz de enfrentar as possíveis problematizações do aprendiz, sem incorrer no risco de fazer pronunciamentos levianos, o que poderia, em consequência, predestiná-lo a um potencial fracasso em seu percurso de aprendizagem. Para desviar-se dessa situação de temeridade, o professor-avaliador deve vencer alguns obstáculos, sendo o maior deles a carência dos saberes necessários à interpretação das informações convocadas para a construção dos sentidos, os quais se colocam à mercê de uma compreensão que dê conta de fusionar, em um mesmo contexto avaliativo, o modo de funcionamento do objeto a ensinar – no caso, o texto argumentativo em sua feição genérica de artigo de opinião – e o modo de “funcionamento do aluno” – numa menção a seu agir intelectual na relação com o objeto de aprendizagem (HADJI, 2001). O domínio desses dois modos de funcionamento, por parte do professor, é condição sine qua non para conduzir as situações de ensino-aprendizagem; em particular, a avaliação do texto escrito, uma vez que, somente por essa via, lhe será possível construir diagnósticos mais confiáveis, porque baseados em referenciais menos vulneráveis à contestação de seus postulados. É ainda fazendo ancoragem nesses saberes que o professor poderá empreender, com a devida ciência, sua ação intervencionista buscando as remediações apropriadas à reconstituição dos sentidos intencionados, mas, por vezes, não consolidados no texto do aluno. No curso desse processo de mediação/remediação, convém alertar para a necessidade de o professor-avaliador estabelecer, com o aprendiz, uma relação de confiança tal que o predisponha a “confidenciar” suas dificuldades e, sem maiores constrangimentos, buscar informações sobre seus desacertos. Nesse acontecimento interlocutivo, não compete ao professor senão investir-se do papel de “amigo crítico” (CAMPANALE et al., 2012), postando-se ao lado do aprendiz, dispondo-se a ouvi-lo, sem, no entanto, ser irresponsavelmente complacente: “O avaliador não pode ser neutro ou ausente. Ele toma partido (sobre a satisfação de suas expectativas)” 131 (HADJI, 2001, p. 114). Em contrapartida, deve ajudar o aluno a “descobrir e explicitar a pertinência de suas escolhas, de suas ações e de seus efeitos” (DE KETELE et al., 2012, p. 69). Agindo numa situação ou noutra, o professor, no exercício de sua função de avaliador, estará contribuindo para o percurso de crescimento do aluno se, na emissão de seu julgamento, não se deixar influenciar por outras informações, isto é, por outras “[...] dimensões do sujeito ou objeto avaliado que não entram na valorização mas condicionam o julgamento emitido” (SACRISTÁN, 1998, p. 306). Esse efeito halo, como o nomeia Sacristán, que consiste “na ‘interferência’ que produz a opinião que se tem sobre determinados aspectos de uma pessoa ao apreciar qualidades concretas [desta]” (SACRISTÁN, 1998, p. 306, grifo do autor), pode induzir o professor a realizar uma avaliação eminentemente atitudinal. Não é incomum que se dê essa “transferência de valores” (confundindo-se as qualidades do objeto avaliado com as que se atribui ao sujeito-produtor) no processo de avaliação, fazendo com que “um julgamento de avaliação num tema ou disciplina, expressado da forma que for – uma nota, por exemplo −, [adquira] o significado de um julgamento sobre o valor pessoal” (SACRISTÁN, 1998, p. 306). A comprovação desse fenômeno de “contaminação” exemplifica-se muito bem no discurso do professor Jonas, sujeito desta pesquisa, quando, no processo de reavaliação dos textos de seus alunos − o que acontece na presença do pesquisador −, reitera a justeza da nota 9,0 (nove), atribuída ao texto do aluno Rogério, sob a alegação de que se tratava de um sujeito estudioso, muito educado, comprometido, merecedor, portanto, de ter seu texto assim valorizado. Além disso, preocupa-se em esclarecer que a mínima perda conceitual (diminuição de um ponto na soma total), devia-se ao registro de alguns “probleminhas” de infração à norma, que, na realidade, não comprometeram a coerência global. O contraposto a essa visão “impressionista” é o próprio texto do aluno (ver análise das produções discentes, 5.3.1.1), avaliado do ponto de vista de um sujeito (a pesquisadora) não envolvido afetivamente, por isso mesmo menos propenso a julgar pelo viés de uma transigência mais extremada. Nesse mesmo contexto, também registramos, no discurso da professora Margarida, sujeito desta pesquisa, semelhante constatação: ao reavaliar as produções de seus alunos, a docente reconhece haver sido muito benevolente na 132 atribuição das notas. E justifica esse exagero pelo fato de sentir-se enredada por um sentimento de afetividade que se foi estreitando com toda a turma no decorrer do curso. Esse confronto, a posteriori, com os textos avaliados propiciou-lhe a compreensão, conforme revelou à pesquisadora, de que, justamente por estar emocionalmente comprometida, seu julgamento fora afetado, resultando numa avaliação bastante complacente, visto que deixara de realizar uma apreciação mais crítica, mais exigente. É certo que a professora admite ter-se mostrado bem mais tolerante do que realmente deveria, mas não considera seu modo de avaliar infundado: “Não é que eu queira ser boazinha. É que eu fico tentando ver o esforço deles, entendeu? [...] Porque a gente vai conhecendo, vai vendo aqueles que fazem aquela força. É um esforço muito grande” (PROFESSORA MARGARIDA, sujeito de pesquisa, em entrevista à pesquisadora, junho de 2008, p. 15). Nas duas situações apresentadas, é possível constatar que os docentes referenciados “não têm, necessariamente, uma consciência objectiva do seu grau de indulgência ou de severidade.” E isso nem nos deve parecer absurdo “se pensarmos na multiplicidade das causas possíveis de tais enviesamentos” (HADJI, 1994, p. 99 e 98). O que se nos revela preocupante, na verdade, são as consequências prováveis daí decorrentes. Uma delas é justamente a não-fiabilidade das notas, a princípio atribuída às motivações subjetivas do professor-avaliador, que, despercebidamente, se deixa enlevar pelas informações preconcebidas sobre o aprendiz. Fala-se então do efeito de origem: uma mesma produção é julgada de forma diferente segundo a qualidade atribuída ao produtor; ou de efeitos de assimilação: assimilação de uma avaliação àquelas que foram atribuídas, anteriormente, ao mesmo aluno. Em qualquer caso, o estudante com uma auréola de bom aluno é mais bem classificado; e, inversamente, os progressos do aluno considerado fraco terão dificuldade em serem notados [...]. O efeito de origem está próximo do efeito de halo [de que já falamos], quando há contaminação de aspectos diferentes: influência exercida, por exemplo, por índices de ordem “afectiva” (comportamento do candidato) ou formal (apresentação do exercício), sobre a apreensão dos aspectos técnicos (que exprimem a competência pretendida) (HADJI, 1994, p. 100, grifos do autor). Todos esses enredamentos interpostos ao professor no desempenho de seu papel de avaliador, particularmente no exercício de sua função de avaliador de textos escritos, reforçam a convicção de que, nesse processo de avaliação – assim como em outras práticas sujeitas à intervenção humana −, é quase impossível 133 alcançar a racionalidade pretendida. “Em contrapartida, os seres humanos também podem ser intuitivos, imaginativos, inventar soluções inéditas ou encontrar espontaneamente as palavras ou gestos mais judiciosos”. Em sendo assim, precisamos, então, “[...] compreender melhor por que o professor nem sempre coleta informações pertinentes, nem sempre as interpreta judiciosamente, nem sempre intervém com discernimento” (PERRENOUD, 1999, p. 81, grifo do autor). Na tentativa de entender essa pressuposta imperícia do agir docente, até podemos acatar o alegado de seu despreparo profissional: sua formação não lhe proporcionou o necessário aprendizado para o desenvolvimento de uma prática mais voltada para a regulação das aprendizagens, o que lhe exigiria uma competência para fazer intervenções fundamentadas em uma apreciação deveras realista do objeto sob julgamento. Entretanto, por mais que essa alegação mantenha-se nos termos do “globalmente aceitável”, vale ressalvar o fato de que a formação docente é um processo contínuo, ad infinitum; não atinge sua completude com a simples aquisição de um diploma universitário. Este representa apenas uma certificação profissional; não é bem exatamente uma garantia de competência ao seu portador. Mesmo assim, pode, por sua ação interveniente – uma vez que promove, por direito institucionalmente conferido, a inserção do sujeito formado-professor no universo das práticas de ensino −, funcionar como um vale-ingresso para iniciar um percurso de aperfeiçoamento, que se deverá pautar pela própria docência, percebida como o principal instrumento heurístico de uma formação contínua. Isso nos orienta para a compreensão de que a interferência de índices de natureza afetiva − expressão de uma subjetividade em vias de afloramento − não é o obstáculo, por excelência, a ser superado pelo professor-avaliador. Na verdade, é manifestação de transigência consentida deixar-se conduzir, no ato avaliativo, por quaisquer que sejam as preferências; no entanto, bem mais importante, nesse processo, é ter o domínio dos saberes em circulação e uma expertise para agir. Esse saber-fazer pode não somente refrear a ocorrência de ações inopinadas mas também remediar algumas consequências imprevistas. O professor que demonstra haver alcançado esse estado de consciência em sua prática pedagógica tende a despertar, nos sujeitos avaliados, um sentimento de confiança, que se vai fortalecendo pela percepção de um sentido de justiça no julgamento, e pela constatação da qualidade das informações transmitidas. E o que 134 significa, em termos mais precisos, uma informação de qualidade no processo de avaliação de textos escritos? Referimo-nos, em particular, àquelas orientações que, de fato, são pertinentes para o aluno, na medida em que o esclarecem quanto aos problemas referenciados em sua produção e apontam as possíveis soluções em concurso. Essa pode vir a ser a melhor estratégia para conscientizar o aluno sobre sua real situação, fazendo-o entender o porquê de suas falhas e confrontando-o com suas dificuldades. É provável até que, num primeiro momento, sentindo-se afligido sob tal circunstância, ele se coloque na defensiva diante da constatação “de suas lacunas e de seus limites”, o que devemos interpretar como uma demonstração de que não está “indiferente ao julgamento de seus conhecimentos ou competências” (PERRENOUD, 1999, p. 165). E isso já é, certamente, uma excelente razão para inscrevê-lo na experiência de sua autoavaliação. Contar com a predisposição do aprendiz para atuar numa interação pró-leitura crítica de seu texto, em regime cooperativo (ainda que um tanto reticente), é, mesmo, uma grande conquista no sentido de seu engajamento num processo, a avaliação do texto, que, por natural decorrência, o obrigará a assumir o papel de avaliador, cuja incumbência principal será a de avaliar, sem indulgência, seu próprio desempenho. Antunes (2006, p. 164) é ainda mais categórica em seu parecer: Nada pode dispensar o olhar do aprendiz sobre seu próprio processo de aprendizagem. Ninguém poderá dispensá-lo de, ele próprio, voltar-se para a atividade ou para a produção apresentadas, a fim de ponderar sobre as condições de sua qualidade ou de sua consistência. A esse olhar do aprendiz virá juntar-se o outro do professor, para completar, para fazer transparecer o que não foi percebido, para propor novas formas de dizer, ou certos ajustes que o contexto da atividade sugere, se se tratar de atividades de linguagem. Assim parecem estar instruídos os professores, sujeitos desta pesquisa, que, agindo nessa mesma linha de conduta, não dispensam os alunos da tarefa de revisar, sob sua orientação, os textos produzidos e já devidamente avaliados. Esse procedimento, esclarecem os professores, tem por finalidade discutir com o aprendiz sobre os problemas apresentados em sua produção e orientar os caminhos a seguir no processo de reescritura, uma oportunidade que, a princípio, é oferecida somente àqueles alunos que obtiveram nota inferior a 6,0 (seis). 135 Na visão da professora Margarida, o interesse dos alunos, numa primeira impressão, atém-se à nota, simplesmente: “Eles só se interessam porque dá nota, infelizmente.” Em resposta a esse presumível descaso com o texto, por parte dos aprendizes, a docente tomou a iniciativa de usar a nota como moeda de negociação: “Acho que isso surte efeito, mesmo com a barganha da nota, de fazer com que eles reflitam sobre sua própria produção. [...] Provoco, mando reler, refazer. Eu provoco para que ele reflita sobre a produção dele” (PROFESSORA MARGARIDA, sujeito de pesquisa, em entrevista à pesquisadora, junho de 2008, p. 16 e 17). Com esse procedimento, a professora, sem que haja premeditado tal finalidade, logra o mérito de “[...] começar a deslocar a importância da ‘verdade’ de uma nota para o da sua significação” (HADJI, 1994, p. 101, grifo do autor). Ainda mais fundamental, nesse processo (mesmo que, a princípio, a nota seja uma preocupação central), é o fato de os aprendizes não ficarem impassíveis diante do que concerne à avaliação de seu texto. Essa constatação está no discurso dos próprios professores, que assim se pronunciam: “Questionam qualquer tipo de observação de que eles discordam [...] Questionam a nota [...] Questionam demais” (PROFESSORA MARGARIDA, sujeito de pesquisa, em entrevista à pesquisadora, junho de 2008, p. 15). Eles ficam numa expectativa enorme: ‘Professor, o senhor vai entregar quando?’ ‘Você entrega quando?’ Então, ficam numa ansiedade enorme quanto à entrega do texto e da nota; e leem os comentários, sim. Alguns chegam e querem que eu explique o comentário ali, pessoalmente, a ele. Sem contar aqueles que sempre questionam a nota: ‘Por que o senhor considerou isso?’ E, às vezes, eles comparam com o texto de outro aluno e tal. Essa questão da avaliação do aluno é um trabalho muito complicado mesmo, não é? (PROFESSOR JONAS, sujeito de pesquisa, em entrevista à pesquisadora, junho de 2008, p. 15). O testemunho discente, por sua vez, não apenas corrobora o dizer dos professores mas também evidencia um notável interesse, por parte dos alunos, de acompanhar o seu progresso, e mesmo de intervir na avaliação do professor no sentido de obter o necessário esclarecimento, tanto para as falhas assinaladas em seu texto quanto para as discordâncias sobre o julgamento: “[...] Claro que a nota é muito importante; mas eu vejo muito, assim, os meus erros para não errar de novo, sabe?” (ALUNO LEVI, sujeito de pesquisa, em entrevista à pesquisadora, dezembro de 2008, p. 30). “Se eu achar que, realmente, estou certo, e ela cometeu algum equívoco na correção, eu vou atrás. Vou argumentar se eu tiver certeza que eu 136 estou certo. Ela pode dizer quantas vezes quiser que eu estou errado, que eu nunca vou admitir” (ALUNO RONALDO, sujeito de pesquisa, em entrevista à pesquisadora, dezembro de 2008, p. 30). Eu me interesso para saber onde que eu estou errando para que eu possa consertar. E, assim, é claro que a nota também, ela vai influenciar, porque quando a gente vê a nota, aí a gente vê, realmente, como é que está nossa situação. Muitas vezes, a gente fica... Eu prefiro muito mais ir ver se... Saber de minha nota. Se eu tirei nota ruim, eu gosto de olhar o meu texto e de argumentar porque foi que eu errei. Então, eu acho de extrema importância saber por que a gente está errando. Muitas vezes, a gente não concorda. Então, devemos argumentar com o professor, e saber o porquê desse erro. (ALUNA ELIANA, sujeito de pesquisa, em entrevista à pesquisadora, dezembro de 2008, p. 30). Bem, no meu caso, quando eu realmente não concordo, mas é aquele negócio, eu fico, assim, por fora. Aí eu procuro ver o dos outros. Geralmente, por exemplo, no texto de Ernesto, ele [o professor] considerou um erro, que era igual ao meu. Aí, eu vou lá, no professor, e digo: ‘Professor, isso está errado por quê?’ E ele: ‘Não, por causa disso’. ‘Então, por que o senhor considerou no texto do outro? Porque eu dava nos dois, ou em nenhum’. Aí, fica aquele negócio chato... Eu sempre refaço meu texto, mas não entendo. [...] Ele não dá argumento nenhum que me satisfaça; de jeito nenhum! [...] Aí eu tento tirar aquele meu erro... Tirar uma coisa e botar outra, que agrade ele. E não me agrada... Como é ele que vai avaliar... (ALUNO BENTO, sujeito de pesquisa, em entrevista à pesquisadora, dezembro de 2008, p. 31). Como fica patente, nos discursos desses alunos, nem sempre o professor consegue transmitir ao aprendiz explicações que lhe sejam compreensíveis e, por extensão, reconhecidas como sendo fundamentais para seu aprendizado, ou mesmo dignas de confiança por emanarem de um sujeito institucional e socialmente autorizado para o desempenho de sua função de avaliador. Aliás, é atuando como avaliador de textos escritos que o professor arrisca-se a expor suas fragilidades menos aparentes, mas, por certo, possíveis de ser reveladas no processo avaliativo; em especial, quando deixa transparecer qualquer insegurança ao ser “posto à prova” em atendimento a uma solicitação do sujeito-aprendiz, que o incumbe de assumir a gestão do erro apontado em sua produção, para ter satisfeitas suas necessidades cognitivas. É por demais provável que o envolvimento do professor numa situação de similar natureza possa afetá-lo em seu agir docente, na medida em que o questiona em seu saber-fazer. Não obstante, também podemos considerar o fato de que é, particularmente, a vivência da prática pedagógica que pode contribuir para o seu 137 desenvolvimento profissional, vez que se pressupõe ser esta uma oportunidade ímpar, da qual se podem derivar informações deveras essenciais ao permanente aperfeiçoamento dos saberes em que ancora sua docência. Afinal, “[...] trata-se, fundamentalmente, do processo do indivíduo que aprende pelo trabalho para o seu trabalho!” (PAQUAY et al., 2012, p.14). Que não se entenda, por essa referência, nem sequer a mais leve pretensão de restabelecer a já superada dicotomia teoria/prática. Mesmo porque o saber profissional não se assenta na abstração de uma dessas dimensões do conhecimento. Ao contrário, constrói-se pela busca de superação “[...] da dificuldade do arranjo entre o saber científico, particularmente em sua dimensão aplicada, e o saber prático, fazendo intervir o princípio organizador dessa formação” (CARBONNEAU; HÉTU, 2001, p. 68), que se pode traduzir como sendo a interação entre os saberes práticos e teóricos, estreitamente associados em qualquer intervenção. Todavia, ampliando-se a linha do não-explícito, podemos orientar nossa compreensão no sentido de que se torna impossível ao professor investir-se do papel de avaliador de textos escritos sem o domínio de um referencial teórico que o conduza, em sua prática, a uma lúcida percepção da verdadeira essência do “ser texto”, de como se dá o processamento de um texto e de como proceder à sua avaliação. Pensamos, então, numa teoria que não pode cingir-se a uma concepção de linguagem e de língua restrita aos aspectos estruturantes, aquela que entende a língua como autônoma de seus sujeitos, e que vem orientando o ensino da produção textual das redações, avaliadas em conformidade com a norma. Necessitamos, sim, de uma outra âncora, de outros conteúdos que subsidiem os processos formativos docentes, aqueles que considerem, por exemplo, que os elementos que constituem e organizam a língua não são abstrações, e sim recursos para expressar o ‘querer dizer’ dos autores. Um arcabouço teórico, no qual os atos concretos da produção textual escrita na escola tenham como pressupostos que as atividades de escrever são atividades sociais, significativas, expressivas de pontos de vista dos sujeitos sobre fatos, acontecimentos e não apenas relatos, cujo significado máximo é ser avaliado em termos normativos e estruturais (OLIVEIRA, 2007, p. 153, grifo da autora). Na perspectiva desta investigação, em que se focaliza, como principal objeto de estudo, o texto argumentativo configurado no gênero artigo de opinião, que apresentamos aos professores para o cumprimento de uma dupla tarefa, qual seja a de produzir, assumindo-se como sujeito-produtor – nas mesmas condições em que 138 se colocam seus alunos na produção de um texto −, e a de avaliar, no desempenho de sua função de professor-avaliador, faz-se indispensável que esses sujeitos dominem saberes teórico-práticos congruentes com os fins a que se aplicam: a produção e a avaliação de textos; em particular, do gênero artigo de opinião. Quando tratamos do artigo de opinião, não podemos esquecer que esse é um gênero do discurso em que não basta tão-somente construir uma argumentação; além disso, precisamos evidenciar o papel que esta exerce nesse gênero do domínio jornalístico, que, em sendo didaticamente transposto para a esfera social-escolar, assume diferente funcionalidade junto a seus leitores. Contemplada essa realidade, torna-se indispensável, no processo de escritura desse gênero, incumbir-se o seu produtor de levar em conta os fatores enunciativo-pragmáticos associados à sua construção; de assumir discursivamente a posição de autor; de ter sempre sob sua mira os possíveis leitores; de considerar o contexto institucional e social em que se insere sua produção; de eleger o tema sobre o qual irá tratar, não se descuidando de examinar a propensão deste à discutibilidade; e de posicionar-se acerca do tema e de outras opiniões contrapostas à sua. “É, portanto, condição indispensável para a produção de um artigo de opinião, que se tenha uma questão controversa a ser debatida, uma questão referente a um tema específico que suscite uma polêmica em determinados círculos sociais” (BRÄKLING, 2000, p. 227). Sob o aparato dessas condições de produção, não há como disfarçar a dialogicidade e a alteridade, que, à satisfação da natureza mesma desse gênero, se manifestam em todo o processo de sua construção. Não é possível, pois, produzir um texto sob a feição genérica de artigo de opinião “se não se conseguir colocar-se no lugar do outro, antecipando suas posições para poder refutá-las – negociando ou não com ele −, na direção de influenciá-lo e de transformar sua opinião, seus valores” (BRÄKLING, 2000, p. 227). Esse “enfrentamento” da palavra do outro, tão inerente ao gênero artigo de opinião, exige do sujeito-aprendiz (como também exige de qualquer outro sujeito que esteja enredado numa produção de texto da ordem do argumentar) a assunção de uma “atitude argumentativa”, o que implica “[...] um envolvimento ativo de nossas capacidades lingüísticas e intelectuais [...]” (TARDIF; GAUTHIER, 2001, p.196). Essa exigência encontra sua justificação no entendimento de que, nesse processo de produção, o sujeito-aprendiz participa de uma operação complexa, em 139 que se faz necessário mobilizar, de modo competente, saberes bem específicos sobre o uso dos elementos linguísticos (no plano da seleção, saber fazer escolhas lexicais apropriadas à expressão do sentido pretendido; no plano da combinação, saber as normas gramaticais que regulam os processos combinatórios entre as palavras a fim de evitar incoerências decorrentes do estabelecimento de relações sintático-semânticas inaceitáveis); sobre o uso dos elementos de textualização (que dizem respeito às propriedades mesmas desse gênero do discurso, a exemplo dos saberes relativos à progressão discursiva – o encadeamento lógico das ideias, a ordem de apresentação da(s) tese(s): tese adversária e tese defendida − em se tratando de uma sequência prototípica complexa −, à ordem de apresentação dos argumentos, considerando-se sempre a maior ou a menor força locucional destes −, à utilização apropriada dos operadores argumentativos quando do estabelecimento das articulações coesivas, e aos modos de citação do discurso de outrem); sobre o uso dos elementos pragmáticos (que remetem, mais particularmente, ao propósito/a intenção comunicativo/a: o gênero artigo de opinião visa ao convencimento de seu interlocutor; à configuração genérica: o gênero artigo de opinião apresenta uma macroestrutura constituída por uma tese e argumentos consistentes que lhe dão sustentação; e a um público alvo: escreve-se um artigo de opinião para expor um ponto de vista, tendo por intuito o convencimento do outro sobre uma determinada ideia, podendo essa intenção estar associada à refutação de um ponto de vista já antes expresso). Esses mesmos saberes devem fazer parte do cabedal a ser acionado pelo professor-avaliador, que, assim orientado, estará em condições de enxergar o texto comme il faut, o que se traduz no interesse de ir além da simples busca por “erros” de natureza puramente gramatical. Mas isso não significa querer dizer que se deve passar à margem desses desvios de norma, numa demonstração de descaso no que concerne à gramática. Ainda assim, vale ponderar no sentido de que, no processo de escrita, o conhecimento da gramática é, certamente, um requisito “necessário, mas insuficiente, pois não dispensa o conhecimento das muitas regularidades textuais e sociais que governam a produção e a recepção de textos” (ANTUNES, 2006, p. 174). Os próprios alunos reconhecem a necessidade de os professores serem mais exigentes em relação ao apontamento de problemas em seus textos, inclusive 140 os que respondem pelas infrações no trato da gramática da língua, que julgam ter a devida importância, sem, no entanto, precisar transformar-se em “arma letal” para o texto, no sentido de virem a ser considerados como seus atributos essenciais. É, pelo menos, nessa linha de raciocínio que se pautam seus discursos: “[...] Poderia ter algum professor que não levasse em consideração, tanto assim, a ortografia, mas existem mesmo aqueles professores que são bem metódicos, bem exigentes [...] Que somente se voltam mais para a gramática” (ALUNO EDUARDO, sujeito de pesquisa, em entrevista à pesquisadora, dezembro de 2008, p. 29). Eu discordo dessa posição dele em relação aos erros gramaticais, porque, é como alguns dos nossos professores falam, é porque a gente costuma hierarquizar alguns conteúdos. Por exemplo: é uma produção de texto, então um errinho, dois errinhos não vão fazer diferença. Se isso acontecer, se o professor não analisar, não tirar ponto disso, o aluno fica desleixado. Então, ele não vai prestar atenção em relação a isso. É a mesma coisa em Matemática, em Física... Eu nunca coloco as unidades... Então, até hoje, se me perguntarem as unidades de matemática, muitas eu não sei por causa disso. Então, eu acho que se os professores não analisarem a parte gramatical, os alunos vão acabar se desleixando e vão aumentar ainda mais os erros. Já se eles analisarem, os alunos vão começar a se policiar (ALUNA ELIANA, sujeito de pesquisa, em entrevista à pesquisadora, dezembro de 2008, p. 29-30). Do texto argumentativo, o pessoal muito falou da questão da gramática e tal. Eu acho que é importante, sim. Teve até um texto, de um colega da gente, que ele [o professor] tinha botado dez, mas só que ele botou corretivo e baixou para nove, porque tinha uns errinhos lá, umas vírgulas e uns acentos [...] Eu passaria para dez e, lá embaixo, eu colocaria como melhorar isso, já que o texto foi muito bom, muito bem argumentado e tal, e organizado. Não vai ser por causa de um acento aqui que eu vou deixar de dar nota máxima para o texto e tal. Eu acho que ele poderia ter dado um dez. Mas colocou: “Tomar cuidado com o acento; estudar mais isso; você falhou nisso”. Eu acho que deve colocar solução para os erros e tal, mas a questão, eu acredito que seja o argumento. Se o argumento foi bom... (ALUNO ROGÉRIO, sujeito de pesquisa, em entrevista à pesquisadora, dezembro de 2008, p. 29). Concordo muito com o Rogério, porque assim: no caso de um texto, não é obrigado a ser certinho de gramática, não. Por exemplo, eu acho que se for mais grave, realmente tem que ser punido. No caso, um errinho simples, que não iria interferir em nada, e o argumento dele está totalmente dentro do assunto, não fugindo do tema, ficou dentro da questão o tempo inteiro [...] Tudo assim. Argumentou perfeito. Eu acho, assim, que merecia dez, porque não é um simples acento que você esqueça que vai comprometer todo o texto. No caso, é um erro, assim, muito simples, mas não que possa ser fatal. Na minha opinião, pode até colocar uma observação e tudo mais (ALUNO BENTO, sujeito de pesquisa, em entrevista à pesquisadora, dezembro de 2008, p. 29). 141 Como é possível inferir de seus pronunciamentos, esses aprendizes não se mostram alheios à aplicação dos critérios pelos quais seus textos são julgados. Por isso mesmo, ousam intervir na avaliação docente, por vezes até contestando as decisões tomadas pelo avaliador quanto à valoração/não-valoração de algumas ocorrências. Mesmo assim, entendem a imprescindibilidade do uso de critérios em que se possa ancorar a avaliação, desde que sejam justamente aplicados. Também admitem que não deva haver complacência com determinados “erros”; em caráter particular, referem-se àquelas falhas que não devem ser abrandadas, nem sequer passar, “convenientemente”, despercebidas, vez que podem implicar determinadas consequências desagradáveis em situações do porvir, que podem ser vivenciadas por qualquer um deles. Não obstante se revelem bem esclarecidos ao emitir pareceres sobre a avaliação docente, os alunos acatam (é bem verdade que com alguma relutância) as exigências prescritas na proposta de produção, por entenderem que o sucesso de seu texto está irremediavelmente vinculado ao cumprimento das ditas prescrições; e até justificam, com conhecimento de causa, por que lhes convém construir seus textos observando, nos mínimos detalhes, o que lhes solicitam a fim de que possam ter sua tarefa de produção considerada como bem-sucedida: “Ele usa isso como critério, né? Aí tem que seguir” (ALUNO NÃO-IDENTIFICADO, turma do professor Jonas, em entrevista à pesquisadora, dezembro de 2008, p. 24). Bem, assim, para produzir o texto é importante, até para a questão da avaliação do aluno, seguir sempre o comando, porque eu acho que isso vai ser um dos critérios que vão ser avaliados: você seguir o comando da questão. [...] Assim, há um enunciado; há um comando da questão. Então, eu acho que um texto que deve ser nota 10 (dez) tem que começar por isso; tem que ser desde o que se pede. Se eu estou pedindo para você se posicionar sobre o aborto, por exemplo, você não pode sair por aí falando sobre o problema da gravidez, de uma outra coisa que fuja muito. Gravidez não, porque gravidez está relacionado! Mas, uma coisa que fuja muito, porque se o tema é aborto, você não pode sair falando de outra coisa. Então, eu acho que se fixar no tema é muito importante. Outro ponto, já que é um texto argumentativo, é desenvolver bem seus argumentos. Assim, a gente aprende que para o texto ser forte, digamos assim, que ele convença mesmo, ele tem que ter, no mínimo, três argumentos para deixar bem claro seu ponto de vista. E tem outras coisas: uma introdução, que desenvolva bem o tema, que apresente ao leitor o que você quer falar; e a conclusão, que feche o assunto e que tenha a surpresa, a sugestão. Então, que deixe a sua opinião mesmo, a síntese do que você fez. Então, para mim, o texto precisa, deve seguir esses parâmetros (ALUNO EDUARDO, sujeito de pesquisa, em entrevista à pesquisadora, dezembro de 2008, p. 26, 28 e 29). 142 Inegavelmente, a proposta de produção é o ponto de ancoragem em todo o processo de construção de um texto. E os aprendizes percebem (como subjaz em seus pronunciamentos) ser inevitável seguir os ditames aí expressos, porque sabem que o não-cumprimento de qualquer das exigências constantes nesse protocolo implicará uma ação punitiva por parte do professor-avaliador, que poderá, muito provavelmente, interpretar esse desvio como uma demonstração de incompetência do sujeito-aprendiz para responder, de modo proficiente, ao que se lhe solicita. E já que esse instrumento especifica todos os passos do percurso textual a ser observado pelos aprendizes, consideramos a probabilidade de estabelecer-se uma relação direta entre alguns dos problemas situados nos textos desses sujeitos e a sua extremada preocupação em sintonizar-se com as determinações do comando, o que corresponde à tentativa de atender in totum todos os seus preceitos. Configurada essa perspectiva, devem redobrar-se as precauções a serem tomadas pelos professores quando da elaboração de suas propostas de produção. Esse alerta coloca-se no sentido de não poderem, por exemplo, esquecer que seus alunos (especialmente os inexperientes) costumam seguir, à risca, tudo o que se lhes impõe cumprir no processamento textual; e a depender do modo como se enunciam essas orientações propositivas, o improvável pode acontecer: em vez de nortear o processo de produção, a proposta pode tolher o aluno em seu querer-dizer, na expressão de sua competência autoral. Análoga preocupação sobreveio à análise da proposta de produção textual (anexo 06) apresentada aos alunos, sujeitos desta pesquisa, para orientar o processo de escritura de um artigo de opinião (texto n.1), versando, prioritariamente, sobre o filme “tropa de elite 1”, em que se deveriam inspirar esses aprendizes para produzir seu texto, em sintonia com uma das seguintes proposições temáticas: as drogas devem ser liberadas para pôr fim à violência urbana? O filme exalta a violência policial? O consumidor de drogas é tão culpado quanto o traficante? Decerto, não há como se contrapor ao fato de serem essas proposições temáticas potencialmente incitadoras de polêmica; portanto, apropriadas à produção do gênero artigo de opinião. Além disso, todas elas se mostram congruentes com as possibilidades de abordagem suscitadas pelo referido filme, ponto de convergência para o qual se voltam todos os temas em discussão. Em contrapartida, não podemos 143 deixar de fazer algumas ressalvas, começando pela proposição inicial, que assim se apresenta: A partir da leitura dos textos sobre o filme e a polêmica que o enredo e as fortes cenas desencadearam, escolha um dos temas acima mencionados para escrever o seu artigo de opinião. Não se esqueça de dar um título ao seu texto, caprichar na letra, respeitar as margens, evitar rasuras e seguir a norma culta da língua. Seguem algumas dicas para ajudar na elaboração de um texto claro e coerente. EVITE 1. Usar expressões vagas como: Eu acho que o governo Lula é ruim. Dê preferência a construções mais precisas e justificadas como: O governo Lula não se mostrou competente, uma vez que o desemprego no país se manteve alto. 2. Gírias: A legalização das drogas não seria uma boa. 3. O gerúndio vicioso: Vou estar torcendo por um futuro melhor. O gerúndio deve ser usado para dar ideia de uma ação que está acontecendo, apenas; portanto, prefira: Vou torcer por um futuro melhor. 4. Clichês, pois empobrecem o texto: O Brasil é um país tropical abençoado por Deus, aqui tudo que se planta dá. As solicitações/orientações em pauta, nessa proposta, à exceção das que direcionam a produção para a preferência temática (escolher um dos temas) e para a configuração genérica (escrever um artigo de opinião), podem, conforme observou a professora Margarida (ao tentar esclarecer à pesquisadora sobre a pertinência de todas as recomendações), funcionar como uma verdadeira “camisa de força” para os aprendizes. Especialmente, segundo acreditamos, se nos dirigimos àqueles alunos mais inexperientes no que diz respeito aos trâmites da escrita. Mas não é exatamente o que pensa a referida professora. Sob sua apreciação − embora admita a sujeição dos alunos às diversas restrições impostas −, essas injunções podem ser de grande valia, justamente para os menos versados na produção de textos, porque, apegados às instruções, não se vão afligir por não saber como produzir seu texto. Parece-nos pouco provável que essa ação derive benefícios favoráveis ao aprendizado, mesmo porque, diferentemente do que presume a professora, revela- 144 se-nos bem admissível o fato de que algumas solicitações associadas à proposta de produção (tais como: caprichar na letra, respeitar as margens, evitar rasuras, seguir a norma culta da língua, ou ainda: evite usar expressões vagas, evite gírias, evite o gerúndio vicioso, evite o uso de clichês) podem induzir o aprendiz à crença de que, para ser bem-sucedido em seu texto, precisa tão-somente abster-se de cometer qualquer uma dessas infrações e mostrar-se atento às prescrições do “receituário”. E também não julgamos totalmente descabida a suspeição de que, insistentemente alertado por recomendações de igual natureza, o aprendiz torne-se intransigente ao ponto de rejeitar determinadas construções, que, sob sua apreciação, desviam-se do padrão por ele internalizado. Essa dificuldade de discernimento pode também, em deriva, impedi-lo de apropriar-se de saberes que lhe favoreçam uma compreensão mais ampliada dos fatos da língua, o que, para além, lhe renderia uma maior liberdade de expressão no processamento textual. Considerando as alegações precedentes, assumimos a convicção de que, somente se alargando o horizonte discursivo dos aprendizes, podemos levá-los ao entendimento de que, em um texto, todas as inúmeras possibilidades que a língua disponibiliza aos seus usuários têm seu potencial de aproveitamento; basta que saibamos dar-lhes a destinação mais adequada à satisfação da necessidade de uma dada situação comunicativa. Uma gíria, por exemplo, pode tornar-se extremamente pertinente, se a empregarmos com a intenção de enfatizar uma marca estilística de um sujeito, emprestando maior fidedignidade ao seu modo de falar; com a intenção de depreciar (ou até enaltecer) uma pessoa, uma situação; para dar mais leveza ao discurso ou ainda para imprimir-lhe um tom de ironia. Sob essa mesma perspectiva, avaliamos o uso do clichê, que pode ter o seu dito renovado, produzindo, inclusive, um novo rendimento estilístico, a depender das manobras efetuadas no processo da transmutação semântica que o alocará em um novo contexto, a que deverá servir sua nova indumentária. Todas essas ressalvas somente se prestam para nos lembrar de que, no âmbito da língua em uso, não podemos impor formas-padrão; nem sequer tentar reprimir a verve de um sujeito de linguagem, especialmente estando este na condição de aprendiz. Além disso, não nos é dado ignorar o fato de que, em sua feição de discurso, o texto abre-se a vários e inusitados “experimentos linguísticos”, 145 desde que redundem em construções aceitáveis do ponto de vista de sua pertinência numa situação comunicativa específica. Ainda relativamente a essa proposta de produção, julgamos inapropriado orientar os aprendizes no sentido de acomodar o texto em um número determinado de parágrafos, associando-os às suas respectivas funções, conforme se registra na seção das sugestões de organização do artigo de opinião, nos seguintes termos: 1º parágrafo (introdução): apresentação do tema e, possivelmente, do seu posicionamento. Parágrafos do corpo do texto (desenvolvimento): para cada argumento que você tiver, use um parágrafo, onde o argumento deve ser apresentado e os dados e informações que o justificam. Não enrole, não discorra desnecessariamente, escreva da forma mais direta e clara possível. O ideal, para ser convincente, são, no mínimo, três argumentos. Último parágrafo (conclusão): deve conter o fechamento das ideias, a conclusão e reafirmação do ponto de vista defendido. Ora, em se tratando da produção do gênero artigo de opinião (ou mesmo de qualquer outro gênero), não se faz producente enclausurar o texto numa estrutura assim tão determinista, dado o seu recorte em parágrafos impositivamente definidos: 1º parágrafo (introdução), 2º, 3º e 4º parágrafos (desenvolvimento), último parágrafo (conclusão). A proposição desse arranjo impossibilita o sujeito-aprendiz de avançar além dessas fronteiras, terminando por conformar-se ao “aprisionamento discursivo” que se lhe impõe, mesmo porque lhe parecerá mais prudente seguir a “cartilha do mestre”, que, supostamente, domina esse saber. O dano emergente traduz-se na defectível aprendizagem do sujeito-aprendiz, que despertará, por certo, bem mais tardiamente, para a compreensão de que o texto que escreve é resultado de sua reflexão; portanto, de seu querer dizer, que, embora, de certa forma, refreado pelos objetivos pretendidos (numa referência à proposta textual a que responde), não se pode converter numa mera devolução do que lhe foi solicitado/prescrito. Afinal, ele está irremediavelmente implicado no discurso que produz; como sujeito-autor, assume, sem a requerida prerrogativa de um álibi, a responsabilidade por seu pronunciamento-resposta a outros discursos. Havemos de concordar com o fato de que, para o sujeito-aprendiz, é bem custoso alcançar tamanha maturidade como produtor de textos; também não é nada 146 fácil para o professor desvestir-se de sua função professor-avaliador-credor, que visa colher o fruto de seus ensinamentos na medida exata do que semeou. Essa constatação final reitera a convicção de que produzir e avaliar textos são práticas de extrema complexidade. Na visão do aluno, assumindo a perspectiva daquele que se coloca como sujeito produtor, “escrever textos é uma operação de alto risco”; essa é a tese defendida por Everton Dantas Beserra (no cumprimento de uma atividade de escrita, em sala de aula, cuja finalidade era a reutilização do título “Uma operação de alto risco”, extraído de uma reportagem), na produção de seu texto, que poderia versar sobre qualquer temática. A versão assim intitulada apresenta-se tal qual se transcreve abaixo: Escrever textos é uma operação de alto risco. Quem escreve o sabe muito bem. É necessário cuidado com toda e qualquer palavra. É necessário saber quais palavras “funcionam” dentro de um texto. E tudo isso tem que ser pensado para que se alcance o objetivo maior de um texto: conseguir passar uma mensagem. Conseguir, por completo, transmitir o objetivo do autor, sua idéia. Contanto, deve-se sempre lembrar que um texto não é um objeto sólido, quadrado, concreto. Um texto é líquido. Deve fluir pelos olhos, pelo entendimento, como flui um bom gole d’água pela garganta. Não sendo assim, o texto fica “duro”. Truncado, difícil. Chato. O leitor vai interrompendo sua leitura de instante em instante. Quando pensa que o texto vai deslanchar, engana-se, ele pára. Isso o incomoda. E não o deixa sorver o texto com prazer. Releia este texto. Você perceberá o que eu estou tentando dizer. Ao menos eu acho. Tentei elaborá-lo, o texto, de forma a provar o que digo. E provando isso a você ou não, estarei certo ao afirmar que escrever é uma operação difícil. Entenda: se você entendeu, estou certo, pois o convenci. Do contrário, se você não entendeu, estou certo da mesma forma, pois não consegui escrever um simples texto, um simples trabalho escolar, o que torna escrever textos uma missão difícil, ao menos para mim (BESERRA, 1998, Curso de Comunicação Social−UFRN). Semelhante situação de “alto risco” também vivencia o professor ao investir- se de seu papel de avaliador. É pelo menos essa a impressão que nos causa o depoimento do professor Jonas (sujeito de pesquisa), assumindo a perspectiva daquele que se coloca como sujeito avaliador: [...] Avaliar é sempre difícil; ainda mais, por exemplo, avaliar texto. Por mais que a gente tenha parâmetros, critérios... Os critérios estão cada vez melhores, mais precisos, ainda mais com a contribuição das teorias que estão disponíveis. Mas, mesmo assim, avaliar é sempre muito difícil [...] (PROFESSOR JONAS, sujeito de pesquisa, em entrevista à pesquisadora, junho de 2008, p. 18). É justamente por reconhecer a incontestabilidade dessas revelações e por não dispor de um paliativo intelectual para amenizar “as dores” de tão dificultosas 147 travessias, que buscamos em Montaigne (2002, p. 224-226) a lição magistral sobre como devem agir o professor e o aluno no processo de ensino-aprendizagem, a fim de alcançarem um bem-sucedido desempenho no processo de produção/avaliação de que se possam tornar sujeitos no curso de suas vidas de eterno aprendizado: Não quero que ele [o professor] invente ou fale sozinho, quero que escute o discípulo falar por sua vez. [...] Aquilo que tiver acabado de ensinar, faça a criança colocá-lo em cem facetas e adaptar a tantos outros diversos assuntos, para ver se ela realmente o captou e incorporou, tirando dos pedagogismos de Platão a instrução sobre seu progresso. É prova de crueza e de indigestão regurgitar o alimento como foi engolido. O estômago não realizou sua operação, se não fez mudar a característica e a forma do que lhe deram para digerir. [...] Que ele [o aluno] faça passar tudo pelo crivo e nada aloje em sua cabeça por simples autoridade e confiança; que os princípios de Aristóteles não lhe sejam princípios, não mais que os dos estóicos e epicuristas. Que lhe proponham essa diversidade de opiniões; ele escolherá se puder; se não, permanecerá em dúvida. Seguros e convictos há apenas os loucos. 148 4 A PESQUISA EMPÍRICA EM SUA TRAJETÓRIA METODOLÓGICA: REGISTROS DE UM CASO DE ENSINO-APRENDIZAGEM DO TEXTO ARGUMENTATIVO ESCRITO Está na incompletude a energia geradora da busca da completude eternamente inconclusa. E como incompletude e inconclusão andam juntas, nossas identidades não se revelam pela repetição do mesmo, do idêntico, mas resultam de uma dádiva da criação do outro que, dando-nos um acabamento por certo sempre provisório, nos permite olharmos a nós mesmos com seus olhos. João Wanderley Geraldi Os termos da citação em epígrafe reportam-nos ao conceito de excedente de visão postulado por Bakhtin (2003) ao analisar a criação artística. Essa visão exotópica, segundo o autor, permite ver no outro algo que se coloca inacessível à sua capacidade de ver a si próprio em sua completude. No plano da pesquisa, a prática da exotopia parece-nos o exercício mais adequado ao pesquisador, considerando-se que essa possibilidade de lançar o seu olhar a partir de um lugar exterior favorece-lhe a construção de uma leitura de maior alcance, no sentido do que seu olho expande sobre a nova realidade que se lhe apresenta. Em estreita sintonia com o pensamento bakhtiniano, acreditamos que o pesquisador, como mediador do processo de construção de novos conhecimentos, não se pode furtar à assunção desse posicionamento exotópico, admitindo-o, inclusive, como constitutivo da própria pesquisa. É imbuído desse espírito alteritário que ele deve inserir-se no campo em que se circunscreve a sua investigação (seja este o espaço da escola, do hospital, da rua etc.), concebido, sempre, “[...] como uma esfera social de circulação de discursos e os textos que dela emergem como um lugar específico de produção do conhecimento que se estrutura em torno do eixo da alteridade” (FREITAS, 2007, p. 32). Souza (2007, p. 84) interpreta com muita clareza esse processo: “Essa dimensão alteritária vivida pelo sujeito no âmbito das interações sociais serve como um espelho daquilo que em mim se esconde, e que só se revela a mim na relação com o outro. [...] o outro ocupa o lugar da revelação daquilo que desconheço em mim”. Justamente em busca dessa revelação é que o pesquisador desloca-se: 149 estabelece novos vínculos, segue o curso de variadas interações, vivencia tempos e espaços outros, mergulha, enfim, em uma nova cronotopia ─ a do campo da pesquisa. As reflexões precedentes, todas elas extraídas da obra de Bakhtin (ainda que versadas nos discursos de outrem), revelam-se deveras apropriadas para analisarmos a experiência vivenciada por professores e alunos envolvidos no processo de produção/avaliação do texto argumentativo escrito em situação escolar. Todavia, vale ressalvar que, para atingir esse nível de aproveitamento, deslocamo- nos − em termos do campo de abordagem em que se coloca o autor − do mundo da criação estética para o mundo da vida, habitado por sujeitos histórico-sociais, sempre expostos (dada a sua incompletude) à “benemerência” do outro, visto como a única possibilidade de completude (de um eu) jamais possível. Nesta pesquisa, em particular, analisam-se textos que solicitam de seu interlocutor uma compreensão responsiva ativa, nos termos de Bakhtin (1992), o que já nos alerta para o fato de que esses textos não representam um objeto qualquer, coisa morta; são textos-signos em busca de uma interpretação/de um leitor capaz de resgatar seus muitos sentidos possíveis. Como bem explicita Sartre (2006, p. 39), “[...] para o leitor tudo está por fazer e tudo já está feito; a obra só existe na exata medida das suas capacidades; enquanto lê e cria, sabe que poderia ir sempre mais adiante em sua leitura, criar mais profundamente; [...] a obra lhe parece inesgotável [...]”. Orientando-nos por semelhante linha de raciocínio, consideramos indispensável que, tanto o sujeito pesquisador quanto os sujeitos (professores) pesquisados, ao avaliarem as produções escritas, assumam uma atitude responsiva ativa, uma vez que lhes compete (cada um em sua função específica) responder ao apelo interpretativo destas. Essa é uma ponderação que se inspira, também, no pensamento sartriano, notadamente no que concerne ao seguinte pronunciamento: Uma vez que a criação [o texto escrito] só pode encontrar sua realização final na leitura, uma vez que o artista [o escritor] deve confiar a outrem a tarefa de completar aquilo que iniciou, uma vez que é só através da consciência do leitor que ele pode perceber-se como essencial à sua obra, toda obra literária é um apelo. Escrever é apelar ao leitor para que este faça passar à existência objetiva o desvendamento que empreendi por meio da linguagem (SARTRE, 2006, p. 39). 150 Definida, sob o patrocínio desses postulados, a natureza dialógica da relação do pesquisador com os sujeitos pesquisados e/ou com os textos produzidos por estes, e, nesse mesmo patamar, a relação dos sujeitos-professores com os textos de seus alunos, delinearemos, então, o perfil da pesquisa relativamente a seu contexto e a seu embasamento teórico-metodológico. Circunscrevendo-se às suas características/aos seus procedimentos singulares, esta pesquisa consolida-se, essencialmente, como uma abordagem qualitativa (BOGDAN; BIKLEN, 1994), uma vez que seu objetivo fundamental orienta-se para a compreensão de um fenômeno social − um caso de ensino-aprendizagem de textos argumentativos escritos na escola − observado em seu acontecimento. Partindo da concepção de que o texto escrito em situação escolar é, em última instância, produto da interação que se estabelece entre professor e aluno no processo de ensino-aprendizagem desse objeto; e admitindo que, nesse processo, a ação intervencionista (mediadora) do professor é condição sine qua non para o progresso do aluno como sujeito escritor-aprendiz, empreendemos nossa busca na tentativa de desvendar os verdadeiros saberes mobilizados pelo professor ao investir-se do papel de leitor-avaliador dos textos produzidos por seus alunos. Parece-nos oportuno observar que, embora tenhamos restringido nossa menção aos saberes da ação docente remissivos à avaliação dos textos escritos, reconhecemos, advertidos por Tardif (2007), a impossibilidade de separar esses saberes das outras dimensões do ensino, bem como de todo o restante do trabalho realizado, de maneira mais específica, pelos professores em seu cotidiano. Em consonância com o pensamento do autor, entendemos que [...] o saber dos professores é o saber deles e está relacionado com a pessoa e a identidade deles, com a sua experiência de vida e com a sua história profissional, com as suas relações com os alunos em sala de aula e com os outros atores escolares na escola, etc. Por isso, é necessário estudá-lo relacionando-o com esses elementos constitutivos do trabalho docente (TARDIF, 2007, p. 11, grifo do autor). Assim presumindo, definimos as primeiras demandas da pesquisa: o lócus, os sujeitos a serem pesquisados e as estratégias de abordagem a serem empregadas no momento da aproximação destes. O concurso dessas necessidades e a compreensão do fato de ser esta uma pesquisa que condiciona o processo de 151 obtenção dos dados ao contato direto do pesquisador com os sujeitos pesquisados, estando estes situados em seu ambiente natural, traçaram o roteiro da caminhada. O primeiro passo é dado em direção aos sujeitos (os professores de uma escola pública de Natal−RN), de quem solicitamos a concordância para, em um encontro informal, dar-lhes a conhecer as linhas mestras do nosso projeto de pesquisa. Contar com a anuência dos professores era imprescindível; mesmo porque deles emanaria a voz reveladora para a construção do conhecimento sobre o objeto de nossa investigação. Além disso, numa compreensão mais verticalizada, julgamos procedente o fato de que qualquer pesquisa sobre o ensino “[...] deve-se basear num diálogo fecundo com os professores, considerados não como objetos de pesquisa, mas como sujeitos competentes que detêm saberes específicos ao seu trabalho” (TARDIF, 2007, p. 230). Obtido o consentimento coletivo (quatro professores, inicialmente), e ainda em fase de negociação para poder ter acesso ao campo, agendamos uma audiência com a direção da escola, ocasião em que, observando os procedimentos ético- formais para a inserção de um pesquisador externo no âmbito da instituição, revelamos nossa pretensão investigativa, respaldada por uma carta de intenções (anexo 01), passada às mãos dos dirigentes da escola, em que assumimos o compromisso de não interferir na rotina dos sujeitos envolvidos na pesquisa − uma forma de garantir a normalidade das ações institucionais −, bem como de manter sob a proteção do sigilo a identidade da instituição e dos professores e alunos alvos da investigação. Após o cumprimento das exigências protocolares, e de posse da carta de aceite (anexo 02), válida como autorização expressamente concedida pela direção da escola para ingressar no campo, reativamos o contato com os docentes a fim de (já em termos formais) definirmos as estratégias e os procedimentos adequados à condução do processo investigativo. Logo no primeiro encontro, preocupamo-nos em esclarecer-lhes quanto à necessidade de legitimar sua participação voluntária, o que foi feito mediante a assinatura de termo de consentimento (anexo 03) contendo a descrição do estudo e a destinação dos resultados, uma prova de que a adesão dos professores assumiu a feição do “consentimento informado”, segundo interpretação de Bogdan e Biklen (1994). Em contrapartida, asseguramos-lhes, lavrando termo de compromisso (anexo 04), que manteríamos absolutamente resguardadas, sob o 152 benefício do anonimato, suas identidades. Estabelecidas essas formalidades, passamos aos esclarecimentos relativos ao propósito de nossa investigação e ao modo como deveríamos proceder no tocante à coleta dos dados. Também procuramos conscientizá-los sobre as consequências que lhes poderiam sobrevir, por sua participação, uma vez que a concordância em desempenhar o papel de sujeitos efetivos de pesquisa demandar-lhes-ia a assunção de uma atitude de corresponsabilidade: nessa nova condição, estariam, definitivamente, implicados em nosso projeto de pesquisa, sendo, portanto, intimados a responder às demandas de seu porvir. Caracterizada, segundo o que preceituamos para o seu desenvolvimento (e conforme define o paradigma qualitativo a que se filia), como um estudo de caso (BOGDAN; BIKLEN, 1994; ANDRÉ, 2005; YIN, 2005), esta pesquisa definiu como instrumentos metodológicos − a serem utilizados com o objetivo de obter os dados informacionais, além daqueles emergentes dos textos produzidos por professores e alunos pesquisados − a entrevista semiestruturada e a observação livre (não- estruturada). Em se tratando de um estudo de caso, a investigação (que focaliza um caso de ensino-aprendizagem do texto argumentativo escrito), toma como unidade básica de análise as produções textuais de alunos, associadas às produções de seus respectivos professores, realizadas em situação escolar. Em favor da opção por essa modalidade de pesquisa, apresentamos a justificativa de que, por sua utilização, o pesquisador tem a possibilidade de realizar um exame em profundidade relativamente àqueles aspectos de acentuada relevância, posto que “[...] os recursos se vêem concentrados no caso visado, não estando o estudo submetido às restrições ligadas à comparação do caso com outros casos” (LAVILLE; DIONNE, 1999, p. 156). E ainda justificamos, para melhor legitimar essa escolha, que as conclusões de uma investigação assim processada não valem somente para o caso particularmente considerado, podendo, a priori, serem extensivas a outros casos. Consideramos, além disso, que a recorrência aos instrumentos metodológicos anteriormente mencionados pode auxiliar o pesquisador a extrair da singularidade do caso focalizado (mesmo estudando uma manifestação particular) conclusões amplas, possíveis de ser aplicadas a outras situações (ou mesmo utilizadas para o entendimento dessas, sendo seus contextos suficientemente congruentes), na 153 medida em que se trata de caso exemplar de avaliação, representativo de universos similares. Também em atendimento às demandas do estudo de caso em apreço, fez- se necessário, “[...] para uma compreensão mais completa do objeto, [...] levar em conta o contexto em que ele se situa” (LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p.18), o que, em consequência, implicou um conhecimento ampliado do espaço e dos sujeitos aí circunscritos. Embora admitamos a necessidade dessa revelação, limitamo-nos (em função do compromisso ético anteriormente assumido, no sentido de silenciar qualquer informação que pudesse levar à identificação dos sujeitos ou da instituição lócus), a uma sumarização de suas características mais aparentes, ou seja, menos “reveladoras”. Na linha dessas ponderações, consideramos ser mais apropriado, antes mesmo de nos movermos em direção às pessoas, situar/descrever o lugar em que se desenvolveu a pesquisa, fazendo sobressair, em sua aspectualização, os traços mais relevantes para o conhecimento de sua identidade: trata-se de uma escola pública da cidade de Natal−RN (conforme já havíamos mencionado), de localização privilegiada, em termos de sua ocupação no desenho urbano, e adequadamente configurada em uma estrutura física, que responde, de modo satisfatório, às necessidades decorrentes de sua atuação como instituição de ensino. No desempenho desse papel, apresenta-se − referenciada por muitos − como uma instituição séria, comprometida com a formação integral de seus alunos, um perfil que ainda hoje se mantém, segundo a crença estabelecida, graças ao ensino de qualidade ministrado por um corpo docente devidamente qualificado. Essa “impressão” pode consubstanciar-se em uma realidade incontestável quando se repara, por exemplo, a formação de seus profissionais de ensino: a maioria dos professores possui títulos de pós-graduação; à exceção de alguns que se encontram em processo de qualificação ou de outros que compõem a população flutuante dos contratados temporariamente. No interesse desta pesquisa, selecionamos essa escola em razão de reconhecermos em seu currículo, particularmente no tocante ao ensino de Língua Portuguesa, o compromisso com o desenvolvimento da competência textual dos alunos, dispensando especial atenção ao trabalho com o texto escrito, que se inicia no primeiro ano do ensino médio e se vai consolidando ao longo dos três anos em 154 que se processa esse ensino, sendo contemplado de modo substantivo (em mais de uma unidade) no programa de curso do 3º ano (anexo 05). Atendo-nos tão-somente à nossa pretensão investigativa, focalizamos, em especial, o ensino do texto argumentativo escrito, materializado no gênero do discurso artigo de opinião. Como, na referida escola, o trabalho com a argumentação apresenta-se bem mais sistematizado nas turmas de 3° ano, propomo-nos realizar a pesquisa com os professores de Língua Portuguesa que atuam nesse nível de ensino. Em relação aos docentes, julgamos necessário informar que, embora, a princípio, contássemos com quatro professores envolvidos na pesquisa, apenas dois conseguiram atender in totum às exigências protocolares do processo investigativo, o que não deve ser entendido como recusa ou descompromisso daqueles que se desvincularam. Na realidade, essas desistências deveram-se a problemas de ordem pessoal que lhes sobrevieram, afetando o andamento das atividades regulares da investigação. Feita a imprescindível ressalva, procedemos à descrição dos sujeitos de pesquisa, remanescentes, a quem, doravante, faremos referência por meio de nominação fictícia, para mantê-los sob a proteção do anonimato batismal. Jonas tem 48 anos de idade. Há 20 (vinte) anos atua no magistério, período em que lecionou no ensino fundamental e no ensino médio. No final de 2008, defendeu sua tese de doutorado na área de Estudos da Linguagem (área de concentração: Literatura Comparada), na Universidade Federal do Rio Grande do Norte−UFRN. Atualmente, ministra aulas no ensino médio, na instituição lócus da pesquisa, em que contabiliza 15 anos de tempo de serviço, dedicando-se, especialmente, ao trabalho com a leitura e a produção de textos. Margarida tem 52 anos de idade. Há 22 (vinte e dois) anos atua no magistério, período em que lecionou no ensino fundamental e no ensino médio, além de ter vivenciado uma experiência de assessoria junto ao Ministério de Educação e Cultura−MEC, como membro da Coordenação Geral do Ensino Médio, exercendo, mais especificamente, a função de instrutora nos cursos de capacitação sobre os PCNs. Em 1998, defendeu sua dissertação de mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte−UFRN, na área de Estudos da Linguagem (área de concentração: Literatura Comparada). Atualmente, ministra aulas no ensino médio, na instituição lócus da pesquisa, em que contabiliza 14 anos 155 de tempo de serviço, dedicando-se, particularmente, ao trabalho com a leitura e a produção de textos. Desvelados, em linhas gerais, os perfis dos docentes envolvidos nesta pesquisa, passamos aos esclarecimentos concernentes ao processo de definição das turmas/dos alunos. Em atendimento aos interesses da investigação, cada um dos docentes consentiu na indicação de uma de suas turmas para participar da experiência. Os alunos selecionados correspondem a um total de 06 (seis) sujeitos, contabilizando 03 (três) alunos por turma. Vale explicitar, quanto à seleção desses alunos, que, tendo em vista o risco de “mortalidade” dos sujeitos (na forma de transferência, desistência etc.) − o que é perfeitamente possível de acontecer numa situação de pesquisa com seres humanos, falíveis por natureza −, mantivemos uma reserva, em torno de 05 (cinco) alunos por turma (além da contabilidade final) para esses supostos imprevistos. Em se tratando da representatividade dos sujeitos-alunos, esclarecemos que esta resulta de uma escolha feita ao acaso, num processo em que todos os envolvidos, como candidatos potenciais, tiveram, probabilisticamente, chances reais de ser selecionados. A opção por essa técnica ampara-se na crença de que a sua aplicação oferece “[...] melhores garantias de objetividade, sendo o acaso, e não as preferências ou os caprichos do pesquisador, o fator determinante na escolha das pessoas” (LAVILLE; DIONNE, 1999, p. 171). Faz-se ainda necessário esclarecer que, em decorrência de haver sido a seleção processada nas condições descritas, não se consideraram as variáveis de gênero, idade e aproveitamento escolar. Procedimento diverso foi adotado para a determinação das turmas. Essa incumbência reservou-se aos professores, que solicitaram a concessão do direito de escolha, respaldados no argumento de que um deles só tinha uma turma de 3° ano, o que lhe dava ciência de ser esta o alvo da experiência. Julgamos procedente a solicitação, mesmo porque, por esse meio, se igualariam os critérios de seleção: os dois estariam cientes sobre a turma a ser pesquisada. Em compensação, como parte do acordo, somente ao pesquisador caberia selecionar os alunos por turma, sendo as suas identidades reveladas aos docentes apenas ao final da pesquisa, quando todo o material (os textos produzidos) já houvesse sido coletado. Os textos argumentativos escritos (artigos de opinião) que compõem o corpus (perfazendo um total de dezesseis textos) correspondem à produção dos 156 alunos (doze textos) e dos professores (um total de quatro textos). No processo de produção textual, os sujeitos referenciados (os alunos e os professores) foram submetidos a condições de produção semelhantes, atendendo às especificidades da própria situação de pesquisa: os docentes deveriam produzir seus textos a partir do mesmo tema solicitado aos discentes, sendo também subordinados às mesmas exigências que impunham aos alunos no cumprimento dessa atividade, inclusive no que concerne à regulamentação do tempo para a execução da tarefa. Não obstante, constatamos que os professores não podiam escrever seus textos no exato momento em que os seus alunos o faziam, considerando-se o fato de que, nessa circunstância, eram eles (os professores) que mediavam o processo, orientando, dirimindo dúvidas etc. Admitindo essa impossibilidade, ajustamos as regras em função das disponibilidades destes. Por esse novo arranjo, os professores optaram por utilizar os dois horários reservados à sua reunião pedagógica (o que corresponde a aproximadamente duas horas) para elaborarem seus textos, em momento subsequente à realização da produção escrita de seus alunos. As produções dos alunos foram subsidiadas por propostas elaboradas pelos próprios docentes (anexo 06), que tomavam como referente um texto-base, além de uma coletânea de textos (anexo 07), também selecionados por estes, tratando de tema atual emergido dos postos de debate socialmente instituídos. Numa etapa precedente, os alunos eram orientados a realizar outras leituras de caráter suplementar a fim de estarem mais bem preparados para discutir, em sala de aula, sobre a temática preestabelecida. Essas discussões prévias visavam, segundo os docentes, levar os alunos a assumirem uma postura crítico-reflexiva acerca da questão que lhes caberia problematizar em seu texto. Nessa passagem, convém registrar o fato de que não houve, em todo o processo, notáveis interferências do pesquisador; à exceção da proposta feita aos docentes para a produção de mais um artigo de opinião (além do que já estava previsto em seu programa de curso), uma rogativa que visava tão-somente à observância ao desenho de pesquisa, em que se prescrevia a escrita de um mesmo gênero, em dois momentos distintos (neste caso, o artigo de opinião; não nos interessavam os demais gêneros com os quais trabalhavam), tanto pelos sujeitos discentes quanto pelos sujeitos docentes. Foi também para nos mantermos nos 157 limites desse desenho que não nos fizemos presente às sessões de produção em que os alunos eram solicitados a escrever seus textos. Em contrapartida, acompanhamos todo o ritual de preparação desse evento, quando, na condição de observador não-intrusivo, assistimos às reuniões pedagógicas (um total de cinco encontros) especificamente destinadas à elaboração e discussão do material didático (incluindo-se particularmente, nessas sessões, a discussão/definição das propostas de produção textual) concernente ao ensino- aprendizagem de textos argumentativos escritos. Todos os passos desse trabalho, consideramos necessário esclarecer, estavam previamente definidos. Constituíam- se, nesse sentido, rotina na prática pedagógica desses professores. Fora desse script, os docentes vivenciaram a experiência, com certeza inédita, de escreverem textos em condições análogas às que se colocaram para os alunos, em atendimento ao estabelecido na pesquisa. Em relação às tantas outras atividades, adaptamo-nos ao programado, sem querer dizer com isso que tenhamos assumido uma posição de consentida neutralidade. Apenas nos mantivemos mais discretos, procurando agir de forma não invasiva (mesmo nos colocando em contato direto e prolongado com o campo ─ lugar onde se dá o fortalecimento das relações intersubjetivas) “[...] para poder captar [em sua verdadeira essência] os significados dos comportamentos observados” (ALVES-MAZZOTTI; GEWANDSZNAJDER, 1999, p. 132). Visando justamente à concretização desse objetivo, ou seja, construir uma versão interpretativa adequada para o que insinuavam os comportamentos focalizados, recorremos também (além da observação não-estruturada) à entrevista semiestruturada, realizada individualmente com os professores e coletivamente com cada turma de alunos. A preferência pela observação não-estruturada ou livre, em particular, ampara-se na percepção de que “[...] os comportamentos a serem observados não estão predeterminados, eles [devem ser] observados e relatados da forma como ocorrem, visando descrever e compreender o que está ocorrendo numa dada situação” (ALVES-MAZZOTTI; GEWANDSZNAJDER, 1999, p. 166), mas nunca de maneira desinteressada. Nesse sentido, realmente não se tratava de “[...] uma contemplação beata e passiva”, como interpretam Laville e Dionne (1999, p. 176). Na esteira dessas considerações, entendemos ainda que a observação é o modo privilegiado de contato com a realidade: observando, colocamos olhos e 158 ouvidos atentos às manifestações particulares, detendo-nos em um ou outro aspecto de maior interesse; decidimos quanto aos nossos deslocamentos de foco; e podemos fazer avaliações menos superficiais sobre os sujeitos pesquisados, já que não nos situamos no plano de uma busca ocasional. Ao contrário, trata-se de uma busca em favor de um objeto de pesquisa colocado sob a mira de um pesquisador que assume uma intencionalidade. Foi, na verdade, essa compreensão que nos moveu em direção aos sujeitos envolvidos nesta investigação; de modo especial, quando participamos, na condição de audiência silenciosa, de algumas reuniões pedagógicas na instituição lócus. Nesses encontros, pressupúnhamos, dever-se-ia instaurar uma oportunidade por demais apropriada para que pudéssemos desvelar, no curso das interações que ali se consolidavam, os saberes subjacentes à ação docente. A apropriação desse conhecimento poderia servir de suporte para construir (em confronto ou em consonância com as informações emergentes das demais fontes, particularmente aquelas derivadas dos textos escritos) uma representação mais aproximada do conjunto de saberes, fossem estes teóricos − os saberes a serem ensinados e os saberes para ensinar −, ou práticos − os saberes sobre a prática e os saberes da prática, conforme definição de Altet (2001), por que se orienta o professor produtor- avaliador do texto argumentativo escrito, no exato momento em que lhe sucede desempenhar essas atividades. No que se circunscreve ao ângulo de nossa observação, as reuniões pedagógicas transcorreram num clima de tranquilidade e aparente descontração. Os docentes (o grupo como um todo) pareciam não se sentir afetados pela presença de um observador externo. Em certas ocasiões, esqueciam até mesmo que, naquela circunstância, estávamos investidos do papel de pesquisador e nos dirigiam a palavra, deixando subentendido que a nossa participação estaria favorecida no sentido de podermos auxiliá-los a esclarecer dúvidas emergentes da discussão desencadeada a propósito do objeto de ensino em foco. À exceção desses raros momentos em que éramos solicitados/impelidos a interagir, efetivamente, no processo discursivo, confinávamo-nos em nosso lugar de observador não- participante, numa tentativa intencional de manter o imprescindível distanciamento, mas permanecendo alerta à discussão corrente. Vez ou outra, fazíamos anotações (com a permissão do grupo) relativas a determinados comentários insinuadores da 159 manifestação de um saber ou de um querer saber, que julgávamos pudessem vir a se tornar relevantes para esclarecer certos aspectos de embaraçosa compreensão em análises posteriores. Tal qual eram registradas as anotações, repassávamos para o grupo em reunião subsequente, normalmente antecedendo o cumprimento da pauta definida para aquele encontro. Em sua feição primária, esse informe apresentava-se como um texto tipologicamente descritivo, isento de traços de subjetividade (apreciações de caráter avaliativo ou julgamentos conclusivos, por exemplo) que denunciassem a interferência do pesquisador. Mas não porque, deliberadamente, tivéssemos o propósito de abolir a subjetividade das nossas observações, ou mesmo da pesquisa; ao contrário disso, compreendemos que esse traço de subjetividade deve ser admitido “[...] como parte da construção de significados [como algo] inerente às relações sociais que se estabelecem no campo pesquisado” (ALVES-MAZZOTTI; GEWANDSZNAJDER, 1999, p. 140). Se evitávamos tecer considerações em relação aos acontecimentos observados, era tão-somente com o objetivo de não comprometer a validade do julgamento, fazendo interpretações precipitadas sobre o registro de fatos ainda não beneficiados por uma leitura mais verticalizada. No momento da observação, o que nos parecia ter maior importância era acompanhar, silenciosa e atentamente, o curso das interações, procedendo aos apontamentos, que, posteriormente a esse evento, converteríamos em uma unidade textual, passando por um aprimoramento em nível formal e conteudístico, mas preservando sempre o teor da discussão em seu registro original. Decerto, não nos enganávamos nós, nem os sujeitos pesquisados, quanto ao fato de que essas anotações − os relatos das reuniões pedagógicas – (anexo 12), embora se apresentassem sob a forma de um texto pouco afetado por marcas enunciativas de subjetividade (o que lhe conferia a possibilidade de ocultamento das inferências a serem processadas) pudessem, mais tarde, facilitar a interpretação de um ou outro dado, na medida em que, por sua mediação, fosse possível pontuar alguma conclusão não-hipotetizada. Tanto isso se constituiu consenso entre pesquisador e sujeitos que, rompendo o acordo tácito, supostamente estabelecido em favor dessa compreensão, um dos docentes, em certo dia, ao final da reunião, perguntou-nos (em tom jocoso), apontando para o caderno de anotações: “Já falou 160 mal da gente?” No mesmo tom brincalhão, mas mantendo a pressuposição sublinhada, respondemos: “Ainda não”. Consideramos indispensável fazer o registro dessa interlocução para demonstrar que, se, por um lado, todos parecem deveras conscientes de que a investigação (pelo recurso à observação) pode ir muito além das simples veredas que se abrem a limitadas ultrapassagens, por outro lado, permanece (ainda que latente − e improcedente) a crença de que o pesquisador é aquele indivíduo, sempre à espreita, cuja meta principal não é outra senão apontar falhas ao término (ou no decurso) de sua investigação. Parece-nos oportuno salientar que essa situação não se reverteu em constrangimento para nenhuma das partes, uma vez que já havíamos estabelecido uma convivência bem harmônica com o grupo, antes mesmo de iniciarmos as observações; de tal modo que o fato em destaque não deve ser interpretado como um sinal de resistência. Em nossa compreensão, significa tão-somente (o que julgamos perfeitamente aceitável) uma possível sensibilidade à observação − ainda que disfarçadamente revelada. Legitima-se, sob tal enfoque, a compreensão de que o pesquisador jamais conseguirá açambarcar tudo que se coloca no entorno de seu posto de observação. Nem se lhe exige tal feito. Mesmo porque, no limite do que seu ângulo de visão pode alcançar (dado o seu foco), sempre ocorre algo que não lhe sucedeu considerar. Às vezes até acreditamos haver atingido o ideal de uma situação (imaginamos, por exemplo, que era pouco constrangedora nossa presença nas reuniões pedagógicas...); entretanto, o de que precisamos é aprender com Calvino (1994, p. 8 e 10) que, assim como “[...] não se pode observar uma onda sem levar em conta os aspectos complexos que concorrem para formá-la e aqueles também complexos a que essa dá ensejo”, também não podemos desconsiderar, em nossas pesquisas, aqueles detalhes de entremeio, tão-somente entremostrados, bem semelhantes àquela “[...] onda que sobrevém em direção perpendicular ao quebra-mar e paralela à costa, fazendo escorrer uma crista contínua e apenas aflorante”. Se nos atribuímos a pretensão de considerar os dados no sentido de sua amplitude interpretativa, assumindo, por tal propósito, a mesma perspectiva de observação que nos propõe Calvino (1994) para contemplar uma onda, devemos ser ainda mais precavidos no que concerne à aplicação dos instrumentos de 161 pesquisa, predeterminando, para cada uma das situações em que somos solicitados a atuar, objetivos bastante precisos. Assim procedemos no tocante às sessões de observação. Não nos colocamos em estado contemplativo; participamos desses encontros com um objetivo: o de não visarmos às reuniões em particular (sua estrutura, seu tempo de duração etc.). O intuito era poder divisar, no curso desse acontecimento, uma ou outra manifestação dos saberes desses docentes, justamente no momento em que partilhavam suas experiências dividindo/somando conhecimentos (seus e de outros). Contando com o respaldo de semelhante orientação, e perseguindo o mesmo objetivo, organizamos as entrevistas com os docentes, a serem aplicadas em duas etapas. A primeira entrevista (anexo 09) foi realizada nos meses de junho e julho do ano letivo de 2008, período em que se reconstituiu a equipe docente − dada a desistência, por alegados motivos de ordem pessoal (conforme já mencionamos), de membros do primeiro grupo de sujeitos com os quais havíamos iniciado (sem chegar a termo) a pesquisa em 2007. Parece-nos necessário observar que essa primeira audiência aconteceu quase ao final do 1º bimestre, quando os professores estavam concluindo a abordagem teórica sobre o texto argumentativo, tratando em especial acerca dos gêneros ensaio e artigo de opinião, este último já com a produção escrita agendada ou até mesmo concretizada na maioria das turmas. Entendemos que, sob tais condições, os docentes se sentiriam mais à vontade (exatamente por estarem em plena sintonia com os saberes sobre o objeto a ensinar) para emitir pareceres sobre essa experiência de ensino-aprendizagem por eles vivenciada. Era uma situação ideal, assim acreditávamos, na medida em que propiciaria a emergência de saberes não somente de natureza disciplinar (relativos ao domínio dos conteúdos de ensino) mas também aqueles decorrentes de sua experiência pedagógica. A segunda entrevista (anexo 11) ocorreu no primeiro semestre do ano letivo de 2009, via correio eletrônico, conforme já acordado com os docentes. Consideramos ser este o momento apropriado para a realização dessa última fase (entrevista final), porque especialmente nesse período já teríamos todo o corpus disponível para análise, podendo, assim, a posteriori, solucionar dúvidas tardiamente emergentes, ou mesmo resgatar informações que julgássemos imprescindíveis à interpretação de dados cambiantes. Essa última abordagem, a que denominamos 162 entrevista de natureza explicativa suplementar, ou de explicitação − denominação adotada por Faingold (2001) −, permite ao professor uma reapropriação mais reflexiva da vivência de suas ações. Obviamente, não desconhecemos o fato de que o caráter explicativo permeia toda e qualquer entrevista, mas, no caso dessa audiência final, a ênfase que se coloca na explicitação relaciona-se ao resgate das revelações escamoteadas nos discursos anteriores, a partir das quais construímos os questionamentos de busca de informações fundamentais ao deslindamento de situações-incógnitas. Essa verificação, em segunda instância, adquire ainda mais pertinência ao se perceber que, por seu intermédio, emergem detalhes esquecidos, recuperam-se conotações difusas, estabelecem-se determinadas ligações entre sentidos possíveis; enfim, o que era pressuposição pode transformar-se em realidade. Ainda nos é devido esclarecer que decidimos realizar essas entrevistas individualmente, vislumbrando a possibilidade de que a aplicação desse instrumento com os dois professores pudesse favorecer, por um lado, o surgimento de conflitos discursivos (em si constrangedores) a propósito de opiniões e/ou procedimentos díspares em relação ao agir docente, ou ainda, por outro lado, a ocorrência de acordos tácitos que, convertidos em anuência silenciosa, impedissem o afloramento de uma ou outra revelação de fundamental importância ao processo investigativo. Como demos preferência à entrevista semiestruturada, elaboramos, para a sessão presencial − primeira entrevista −, um roteiro com uma série de perguntas abertas (anexo 08), observando uma ordem prevista (a fim de assegurar o mínimo de uniformidade em torno do conteúdo nuclear), mas possível de evoluir para a devida flexibilidade que possibilitasse ao pesquisador não somente acrescentar perguntas de esclarecimento, para reorientar percursos responsivos no decorrer do processo, mas também reformulá-las, com a intenção de torná-las mais acessíveis à compreensão do entrevistado, satisfazendo, assim, as necessidades/os interesses dos sujeitos envolvidos (entrevistador e entrevistado). A aplicação dessa técnica das subperguntas (um recurso de que nos valemos reiteradas vezes) mostrou-se extremamente favorável, na medida em que nos possibilitou, no momento mesmo da entrevista, o preenchimento de alguns hiatos semânticos que poderiam, numa análise posterior, tornar inescrutável o discurso do outro. Ainda consideramos importante sublinhar que esse tipo de 163 entrevista (conforme constatamos) também “[...] possibilita um contato mais íntimo entre o entrevistador e o entrevistado, favorecendo assim a exploração em profundidade de seus saberes, bem como de suas representações, de suas crenças e valores [...]” (LAVILLE; DIONNE, 1999, p. 189). A fim de não desperdiçar essa valiosa oportunidade, procuramos agir com moderação ao nos aproximarmos do sujeito a entrevistar. De uma ação habilidosa, tínhamos por certo, dependeria o êxito que se pretendia obter nessa empreitada, principalmente porque, em situação de entrevista (e sendo esta uma entrevista semiestruturada), é normalmente o entrevistador quem mantém o controle das direções a serem tomadas na interação, o que, involuntariamente, pode levá-lo a interceptar o discurso do outro, quebrando uma sequência responsiva que, se concluída, permitiria a seu interlocutor revelar-lhe o essencial. Antevendo a possibilidade de ocorrência dessa ação interveniente, pouco propícia aos alcances visados em semelhante interlocução, procuramos atenuá-la, se não frustrá-la, antes mesmo de procedermos à aplicação desse instrumento metodológico: já no processo de elaboração das questões norteadoras da entrevista, reconhecemos o outro (nessa circunstância, investido do papel de entrevistado) como um ser dotado de uma compreensão responsiva ativa. E nem poderíamos pensar diferente, tendo em vista o fato de que [...] o enunciado se constrói levando em conta as atitudes responsivas, em prol das quais ele, em essência, é criado. O papel dos outros, para quem se constrói o enunciado, é excepcionalmente grande como já sabemos. [...] esses outros, para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real [...], não são ouvintes passivos mas participantes ativos da comunicação discursiva (BAKHTIN, 2003, p. 301, grifo do autor). Fazendo ancoragem nessa orientação teórica, definimos as questões norteadoras, considerando que, na entrevista, as perguntas, mesmo as de natureza aberta (como as que compõem esse instrumento de pesquisa), constroem-se já prevendo uma resposta provável, que, por sua vez, também se antecipa à questão proposta, visto que influencia seu modo geral de construção. Nesse sentido, o outro torna-se a medida por que pautamos nossos discursos. Não é sem motivação, portanto, que, ao tomarmos a palavra, sempre nos preocupamos com o fundo aperceptível da recepção de nossos discursos pelo destinatário (BAKHTIN, 2003). 164 Essa preocupação com o outro revelou-se uma constante na execução desse procedimento: não apenas nos momentos precedentes à realização das entrevistas (no próprio processo composicional do roteiro) mas também, e até de forma bem acentuada, durante a aplicação desse instrumento. Embora reconheçamos ser essa uma peculiaridade da dinâmica dos discursos interativos, atentamos para o fato de que, neste caso específico, a apreensão ante a imagem do interlocutor intensificou-se ainda mais; decerto em virtude do grau de proximidade pessoal dos sujeitos entrevistados em relação ao entrevistador: não nos estávamos dirigindo a um ser desconhecido, indiferente; interagíamos com colegas, com nossos próprios pares; portanto, somente nos competia atuar fora do âmbito das hierarquias, quer de classes, quer de discursos. Numa relação assim instituída, pesquisador e pesquisado tornam-se parceiros de uma situação comunicativa, em que trocam experiências de variadas naturezas, exercitando a sua capacidade de se “[...] transportarem da linguagem interna de sua percepção para a sua expressividade externa, entrelaçando-se por inteiro num processo de mútua compreensão” (FREITAS, 2007, p. 36). No conteúdo dessas considerações, assenta-se a justa a razão por que, nas entrevistas com os docentes, embora roteirizadas, procuramos preservar a espontaneidade de suas respostas, intermediando, algumas vezes, apenas para ir ao encontro dos efeitos de completude semântica que se deviam manifestar em determinadas sequências discursivas. Sob essa perspectiva, amplia-se a compreensão de que a entrevista − como um processo de interlocução em que se produzem sentidos − não pode ser considerada senão como um momento especial de revelação. E dado o fato de que nenhum sentido se constrói à revelia da reflexão (por natureza, silenciosa), buscamos, para a realização dos encontros com cada professor, um ambiente não- vulnerável a intromissões de terceiros, isento, o mais possível, de ruídos externos e preferencialmente climatizado, de modo que os sujeitos se sentissem confortáveis, apesar da artificialidade da situação e da inconveniência do gravador. Vale ressalvar que, por indisponibilidade de espaço físico, as entrevistas ocorreram em salas diversas, mas sob as mesmas condições de idealidade previstas. Em situação análoga, relativamente à adequação do ambiente, ocorreram as entrevistas com os alunos (anexo 14), que, diferentemente dos professores, 165 somente tomaram conhecimento de seu envolvimento definitivo na pesquisa praticamente ao final da coleta dos textos (o que se deu em concomitância com o término do ano letivo). Essa foi uma decisão que julgamos procedente, uma vez que, assim, não estando eles preocupados com a sua participação no processo investigativo, desempenhariam com maior naturalidade o seu papel de sujeitos- escritores do texto argumentativo que lhes seria solicitado produzir em sala de aula. Nessa audiência com os alunos, explicitamos-lhes o propósito de nosso estudo e solicitamos seu consentimento para inscrevê-los como sujeitos efetivos da pesquisa, o que, em consequência, estaria legitimando sua autorização para que pudéssemos utilizar e publicar, no interesse estrito desta investigação científica, os textos por eles produzidos no decorrer da experiência que haviam vivenciado em sala de aula como sujeitos-aprendizes de textos argumentativos escritos. Firmados os acordos prévios − com a devida assinatura de um termo de consentimento por parte dos alunos − (anexo 15), passamos, então, à realização das entrevistas com esses novos componentes, a partir de então (em decorrência de sua concordância) regularmente vinculados ao processo investigativo. Como eram alunos oriundos de duas turmas, que se achavam sob a regência de diferentes professores, adotamos o critério do pertencimento a uma determinada turma para a constituição dos grupos de sujeitos a serem entrevistados. Atentando para a questão da representatividade de sujeitos, definimos um total de 10 (dez) alunos por turma, entre os quais deveríamos selecionar aqueles cujos textos seriam efetivamente analisados como material de pesquisa. O roteiro traçado para a entrevista com os discentes (anexo 13) retomou as mesmas proposições temáticas constantes do instrumento metodológico aplicado aos docentes. Entretanto, consideramos importante registrar o fato de que, embora tenhamos mantido, intencionalmente, o mesmo conteúdo proposicional nas duas situações (entrevista com os professores e com os alunos), as questões formuladas aos alunos apresentaram-se diferentemente elaboradas no sentido do grau de complexidade em que as enunciamos, tendo em vista as especificidades do público configurado como nosso auditório particular: jovens estudantes, supostamente menos versados nos referenciais teóricos em que se ancoravam os professores a fim de auferirem o devido respaldo a seus ensinamentos. 166 A entrevista coletiva aplicada aos alunos apresentou-se-nos como um instrumento preferencial por favorecer a emergência de processos de consenso e divergência entre os pares, que, por sua peculiar espontaneidade juvenil, não se mostrariam constrangidos para concordar (com) ou refutar os dizeres de uns ou de outros, o que resultaria em discursos mais transparentes no sentido da aproximação da verdade dos fatos relatados. Essa perspectiva colocou-nos diante da viabilidade de abstrairmos, no entrecruzamento desses variados pontos de vista, informações fundamentalmente relevantes sobre os reais desdobramentos do ensino e da aprendizagem do texto argumentativo no âmbito da sala de aula, com a qual não havíamos estabelecido qualquer conexão, em termos presenciais, mesmo porque não era nosso objetivo focalizar a sala de aula e as suas intercorrências. Ademais, o conhecimento dos processos interativos aí transcorridos estaria, mais ou menos, devidamente registrado nos discursos dos professores (nas entrevistas e nas reuniões pedagógicas) e nos depoimentos dos alunos, os quais procuramos analisar (os depoimentos) à margem dos exageros e/ou das afetações emocionais que porventura pudessem vir a comprometer suas revelações. Na tentativa de desvestir os alunos do papel de meros respondentes e alçá- los ao status de verdadeiros informantes (YIN, 2005), conduzimos a entrevista de forma espontânea, fazendo-a assemelhar-se ao protótipo de uma conversa informal. O recurso a essa estratégia fez-se providencial na medida em que nos possibilitou vivenciar uma real aproximação com os entrevistados, e assim incentivá-los a participar da interlocução instaurada a partir das indagações que lhes dirigíamos, todas elas já sinalizando no sentido de uma compreensão responsiva ativa; portanto, já atravessadas por uma expectativa de resposta inadiável. Mas não só nos preocupamos em observar, sequencialmente, o que estava prescrito no guia de questões; também tentamos abrir espaço para interlocuções paralelas, deixando favorecidas as intromissões nos discursos de uns ou de outros para que pudessem emitir pareceres sobre os comentários ou as avaliações que se iam tecendo acerca dos eventos focalizados. Como o nosso contato direto com os alunos restringiu-se a um único encontro, o da entrevista, procuramos, por meio desse instrumento, extrair o máximo de informações, deixando fluírem os discursos em sua integralidade, no intuito de realçar determinadas evidências de validade tão-somente presumível, na medida em 167 que, mal aflorando à superfície, tornavam a escamotear-se nas entrelinhas que se abriam ao acolhimento dos muitos não-ditos. Também nos colocamos em alerta no sentido de represar, sempre que necessário, a afluência de digressões que se revelassem absolutamente esvaziadas de qualquer conteúdo relacionado (ainda que de modo tangencial) à linha de investigação. Num último arranjo, já finalizando a entrevista, facultamos a palavra aos alunos a fim de possibilitar a emergência de outras informações, que, por assumirem o caráter da novidade em relação aos temas abordados no decorrer desse processo de interlocução, pudessem, circunstancialmente, ser consideradas imprescindíveis à interpretação de sentidos latentes ou de imprecisões semânticas em seus discursos anteriores. Já dispondo das gravações das entrevistas, procedemos à transcrição destas, firmando o propósito de registrar, verbum ad verbum, todas as falas dos sujeitos envolvidos nessa situação comunicativa; não que isso significasse uma pretensão de confinarmos a análise aos limites da mera “enformação” linguística dos textos. Ao contrário, a preferência por esse procedimento visava preservar tudo aquilo que se enredasse na arquitetura dessa comunicação verbal, fossem os conteúdos de legibilidade constitutiva, fossem os potencialmente nebulosos; uns e outros carecidos de acabamento, isto é, de uma leitura que enxergasse muito além da decodificação de superfície, que ultrapassasse a margem das incompletudes, as quais, naturalmente, podem afetar os discursos. Tratamento semelhante, no que se refere diretamente ao processamento das transcrições, dispensamos às entrevistas realizadas com os professores. Em contrapartida − diferentemente do planejado para os alunos −, não nos podendo furtar à observância de um compromisso ético antecipadamente estabelecido com esses profissionais (considerando, nessa circunstância, a inevitável visibilidade a que se destinavam os seus discursos no plano desta investigação), repassamos-lhes os textos em que se registraram os conteúdos de suas entrevistas, submetendo-os à apreciação de cada um em particular, e lhes concedendo o direito de efetuarem os reparos julgados necessários, tanto no que se circunscrevia aos ditos quanto no que se fazia pertinente a seus modos de dizer. Segundo Szymanski, Almeida e Brandini (2004), esse modelo de entrevista, a que denominam de reflexiva, poderá não só auxiliar na tentativa de contornar algumas dificuldades peculiares a uma situação de interação face a face mas ainda no aprimoramento da fidedignidade das respostas. 168 Vale ressalvar que todas essas informações, decorrentes das entrevistas e das sessões de observação, reservaram-se como material de reconhecida importância, a que se deveria recorrer, no momento da confrontação dos dados, para confirmar ou refutar prognósticos sobre a natureza dos saberes docentes inferidos a partir de pistas emergentes da análise dos textos produzidos pelos sujeitos pesquisados (alunos e professores). Certamente, os textos argumentativos escritos por ambos os grupos são, dado o enfoque da pesquisa, a fonte privilegiada neste processo investigativo. Acreditamos, mesmo, que, de sua análise, devem provir as evidências mais concludentes, no sentido da revelação dos saberes que nominaremos de “conexos”: aqueles saberes que, sinalizadores (ou não) de proficiência nos textos produzidos pelos docentes, se fazem reincidentes no processo de avaliação do texto do aluno pela ação do professor-leitor-avaliador. É justamente essa crença que potencializa a formulação da hipótese de que parece haver certa conexão entre o saber escrever do professor e o seu saber ler/avaliar o texto do aluno, uma pressuposição que se vai consubstanciar na seguinte questão de pesquisa: os saberes revelados no texto que o professor produz (que, provavelmente, correspondem àqueles saberes que detém sobre o objeto a ensinar, e que transmite a seus alunos no processo de ensino-aprendizagem), de fato, norteiam a avaliação que ele realiza sobre o texto de seu aluno? Nessa questão-núcleo, implicam-se outras questões norteadoras, quais sejam: que saberes sobre o texto argumentativo escrito (e sua configuração no gênero artigo de opinião) se apresentam consolidados nos textos produzidos pelos alunos conforme veredicto dos professores em sua avaliação? Que saberes sobre o texto argumentativo escrito (e sua configuração no gênero artigo de opinião), de fato, se revelam consolidados nos textos produzidos pelos alunos/pelos professores à luz da análise efetuada pelo pesquisador com base nas categorias e subcategorias subsidiárias dessa análise? No que concerne à coleta dos referidos textos, informamos que esta não se fez observando os mesmos procedimentos, dadas as especificidades dos dois grupos. A produção docente era recolhida logo que os professores davam por finalizado o processo de escritura de seu texto, a que presenciamos postando-nos a distância (tal como fizemos em relação aos alunos) a fim de não constrangê-los na execução dessa atividade. Já os textos produzidos pelos alunos eram, em primeira mão, recolhidos pelos professores, que, após avaliá-los, e antes mesmo de retorná- 169 los a seus discentes, nos convocavam para que pudéssemos fotocopiá-los, e, enfim, tê-los sob nossa guarda. Passada essa etapa, os professores devolviam os textos a seus alunos, o que ocorria numa aula reservada para esse fim, considerando que, nesse momento, se colocavam à disposição da turma para os necessários esclarecimentos sobre a avaliação anteriormente efetuada. O atendimento, quase sempre processado sob forma individualizada, destinava-se àqueles alunos que apresentassem problemas de merecida reparação em suas produções. Muito embora a possibilidade de uma orientação/de um esclarecimento fosse extensiva a todos que assim o desejassem. Evidenciando-se a inconveniência de uma participação presencial do pesquisador nesse acontecimento (o que certamente descaracterizaria a atividade), conformamo-nos, a princípio, a um mero registro dessa ocorrência. Não obstante, constatando, posteriormente, a necessidade de elucidar certas marcações nos textos avaliados pelos docentes (do tipo: sublinhas, x, interrogações etc.) relativas aos procedimentos de correção por eles adotados, e que, como nos foi informado, eram de amplo conhecimento dos alunos, mas pouco legíveis a um examinador externo, retornamos ao campo em busca dessa legibilidade. Em mais esse investimento, solicitamos aos professores que repassassem conosco os textos, como haviam feito com seus alunos, para que, de modo semelhante, fôssemos esclarecidos sobre os significados subjacentes às marcas assinaladoras de uma orientação para a possibilidade de reescritura. A reconstituição desses percursos avaliativos, convenhamos, deveria viabilizar a construção de uma análise menos afetada pelas pressuposições, que, a depender dos indícios por que se orientaria o pesquisador, estariam na base de todo o processo analítico. Essa mesma reflexão levou-nos a repensar a produção docente. Os textos produzidos pelos professores também deveriam ser beneficiados com uma releitura por parte destes, como uma forma de possibilitar-lhes a experiência da autoavaliação, não só no que concerne à sua própria produção mas até em relação a seu desempenho como avaliador. E mais que isso: essa reaproximação do texto também beneficiaria a análise do pesquisador, na medida em que, com base nessa nova leitura, estaria este menos propenso às inúmeras pressuposições. A pretensão parecia-nos justa, uma vez que se proporcionaria aos professores uma oportunidade bem semelhante àquela que fora oferecida a seus alunos. Julgamos pertinente que, 170 assim como os alunos, os professores também tivessem a chance de revisar seus textos, no sentido mesmo de uma avaliação efetiva, sinalizando os procedimentos por que orientariam uma necessária reescritura em se tornando essa uma possibilidade real. Contemplada a necessidade, retornamos ao campo para mais esse reparo. O reencontro com os docentes aconteceu em um momento bem tardio em relação à escritura da primeira versão; e isso o fizemos propositadamente. Afinal, quanto mais nos distanciamos de nossas produções escritas, mais as resgatamos em sua real feição, porque melhor as enxergamos. A avaliação dos textos foi processada em nossa presença; mas não nos permitimos fazer qualquer tipo de comentário que pudesse influenciar suas percepções ou distorcer suas propostas de recomposição da arquitetura textual. Procuramos manter o devido distanciamento sem, no entanto, deixarmos de ouvir e registrar as suas justificativas a propósito de possíveis encaminhamentos numa nova produção. Nos entremeios de suas falas, tentamos perceber os diferentes saberes evocados, considerando, particularmente, o fato de que em busca dessa revelação é que nos propusemos esse retorno. O corpus derivado dessas sistemáticas de recomposição subordinou-se a duas modalidades de análise: em um primeiro momento, subdividimos os textos em dois conjuntos (as produções dos alunos e as produções dos professores) para serem avaliados em separado, numa tentativa de preservar-lhes as características genéticas, definidoras das propriedades que os singularizam em meio ao todo focalizado. Nessa primeira investida, propusemo-nos analisar os textos (de alunos e de professores) a partir de categorias e subcategorias, que visavam parametrizar a análise nos seguintes termos: coerência com a proposta de produção textual (adequação do texto à cena enunciativa predeterminada: focalização do tema, predomínio/exclusividade da sequência argumentativa, configuração do gênero e projeção da imagem do leitor); apresentação de macroestrutura argumentativa desenvolvida (tese, explícita ou facilmente recuperável, e argumentos, no mínimo dois, que sejam coerentes com a tese e convincentes); manutenção da orientação argumentativa do texto (disposição das informações de modo a sustentar a posição assumida/tese, preservando a progressão discursiva e a coerência); presença de refutação antecipada de prováveis contra-argumentos em relação à tese defendida; existência de elementos configuradores do gênero discursivo solicitado (temática, 171 traços estilísticos, estrutura composicional e propósito comunicativo); utilização de estratégias argumentativas (tais como perguntas retóricas, modalizadores e figuras de linguagem). Em um segundo momento, buscamos estabelecer um confronto entre as produções dos alunos e as de seus respectivos professores, com o propósito de investigar, numa e noutra fonte, o que se poderia converter em indícios (a serem referendados − pelas pistas textuais − como evidências nomeadamente plausíveis) de que o desempenho do professor como leitor-avaliador do texto argumentativo escrito (seja este desempenho satisfatório ou não do ponto de vista dos saberes revelados sobre esse objeto de ensino) estaria, de fato, diretamente relacionado com o seu desempenho como produtor de textos. Por fim, antes de darmos por concluída essa travessia, relançamos ainda um olhar sobre todos os dados obtidos no curso de nossas interlocuções para, assim, nos certificarmos de que realmente processamos uma compreensão ativa sobre os enunciados dos sujeitos − aqueles oriundos das entrevistas, das reuniões pedagógicas, do próprio material didático (anexo 16) e, mais insistentemente, os derivados dos textos −, todos eles, por certo, “prenhes de respostas” (BAKHTIN, 1992), as quais precisávamos reanalisar. Essa era uma volta indispensável, uma vez que, se assim não procedêssemos, estaríamos fadados a nos prender, em nossa análise, a detalhes de somenos importância, porque restritos à mera identificação de superfície. Lançar esse olhar de volta, já devidamente situada em nosso lugar de pesquisadora, era condição determinante para que pudéssemos, por nosso excedente de visão, dar forma e acabamento às respostas que emergiram dos dados, construindo, a partir destas, as nossas próprias réplicas. Esse modo de proceder coloca-nos novamente em sintonia com os ensinamentos de Bakhtin (1992), de quem assimilamos mais uma lição: A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica. Quanto mais numerosas e substanciais forem [essas nossas réplicas], mais profunda e real é a nossa compreensão (BAKHTIN, 1992, p. 132). 172 Orientando-nos pela perspectiva bakhtiniana, entendemos, no interesse de nossa pesquisa, que quanto mais ativamente respondermos ao que enunciam os dados, mais teremos fortalecida a prova de que compreendemos as respostas que deles germinaram, bem como, em decorrência, os sentidos construídos em todo o percurso investigativo. 173 5 PRODUÇÃO E AVALIAÇÃO DE TEXTOS ARGUMENTATIVOS ESCRITOS EM SITUAÇÃO ESCOLAR: SABERES DOCENTES EM AÇÃO 5.1 PARA ENTENDER A ANÁLISE DAS PRODUÇÕES TEXTUAIS Conforme proposta metodológica, a apreciação dos textos será efetuada em duas etapas: em um primeiro momento, analisam-se, mais verticalizadamente, e em separado, os textos escritos pelos alunos e pelos professores − correspondentes à primeira produção −, tendo por fim verificar que saberes sobre o objeto (o texto argumentativo escrito, configurado genericamente em artigo de opinião) esses sujeitos demonstram haver assimilado. Em um segundo momento, entrecruzam-se os saberes docentes (evidenciados na atividade de produção e de avaliação dos professores) com os saberes discentes (manifestos na atividade de produção dos alunos) comparando-se os dois conjuntos (os textos de cada professor com os textos de seus respectivos alunos) para, então, podermos determinar, com base nas pistas textuais oriundas da segunda produção (que devem servir para ilustrar/validar determinadas afirmações enunciadas nas análises realizadas sobre as primeiras produções, assumindo-se o pressuposto de que, nessa segunda parte do corpus, deverão apresentar-se reincidências dos registros anteriormente efetuados), por que saberes se orienta o professor ao se investir do papel de avaliador de textos. A pretensão é, tão-somente, investigar, por esse procedimento, a existência (ou não) de uma conexão entre os saberes subjacentes à produção textual docente e aqueles saberes que se sobressaem em sua prática avaliativa. Decerto, reconhecemos que, sendo caracterizada como uma verificação/ identificação dos saberes docentes implicados nos processos de escrever e avaliar textos, esta análise não se poderá circunscrever às informações abstraídas das produções textuais, vez que estas, em dadas circunstâncias, não se farão suficientes para justificar a manifestação de determinados saberes, nem mesmo para solucionar o impasse diante de saberes cambiantes ou ainda explicitar a insurgência de uma ou outra de suas especificidades. Prenunciada essa impossibilidade, e visando a uma interpretação mais verossímil, recorreremos também aos dados oriundos das entrevistas realizadas com alunos e professores, aos registros das observações de algumas reuniões 174 pedagógicas a que assistimos e ao material didático utilizado pelos professores em suas aulas. Neste percurso analítico, embora tenhamos definido as categorias de análise (conforme descritas no capítulo 4) e procedamos segundo o estabelecido, buscando contemplá-las em sua totalidade, não observaremos uma ordem rígida de aplicação desses parâmetros: cada texto será submetido a uma avaliação global, sem a pretensão (o que, aliás, é impossível) de esgotar todas as possibilidades de análise. Restringir-nos-emos a abordar os pontos mais significativos para o alcance do objetivo da discussão em pauta. E mesmo que se façam apreciações sobre um ou outro aspecto/categoria em particular, será sempre em função do todo que se processará esse recorte. Por último, cabe ainda fazer um esclarecimento quanto aos textos que compõem este corpus: todos eles foram reproduzidos (de acordo com o original) e desidentificados (inclusive caligraficamente), tendo sido os nomes de seus reais autores substituídos por pseudônimos, a fim de mantermos o compromisso ético, previamente estabelecido com os sujeitos desta pesquisa, no sentido de não revelar, sob qualquer forma, as suas identidades. 5.2 ANÁLISE DAS PRODUÇÕES DOCENTES 175 5.2.1 Texto n. 1 (Professor Jonas) 176 177 5.2.2 Texto n. 2 (Professor Jonas) 178 179 180 Produção docente: texto n. 1 (professor Jonas) Título: A importância de “Tropa de Elite” Autor: Jonas de Souza Numa visão global, o texto apresenta-se tangencialmente sintonizado com a proposta de produção, uma vez que não contempla, em sua especificidade, nenhum de seus recortes temáticos: as drogas devem ser liberadas para pôr fim à violência? O filme exalta a violência policial? O consumidor de drogas é tão culpado quanto o traficante? Também, em sua configuração genérica como artigo de opinião, se revela pouco propenso à polêmica: o autor, apesar de ter-se envolvido, por seu texto, com o acontecimento social (debate em torno do filme Tropa de elite), limita-se basicamente a resenhar as cenas (a seu ver, parece-nos) mais marcantes da fita (primeiro, segundo e terceiro parágrafos especialmente), numa análise que se vai alternando entre o digesto e a crítica, mas sem uma visível intenção de responder a um já-dito ou de provocar uma reação-resposta a outros enunciados, com os quais poderia “confrontar-se”, estabelecendo, dessa forma, o ritual de negociação peculiar a essa manifestação discursiva. É preciso assinalar, no entanto, que, embora não assumindo uma postura tão mais polemizadora, o autor demonstra ciência do modo particular de funcionamento desse gênero, conforme denota seu pronunciamento em entrevista on-line concedida à pesquisadora: [...] esse gênero é marcado pela argumentação. [...] Trata-se de um gênero que possibilita o debate, a troca de ideias, a intervenção. O produtor desse gênero necessita de conhecimento de mundo, ter um repertório de leitura amplo, diversificado, para poder posicionar-se diante de questões importantes (PROFESSOR JONAS, em entrevista à pesquisadora, junho de 2009, p. 2). Apesar dessa demonstração de um saber sobre o gênero em questão, mantém-se em sua abordagem o não-afrontamento polêmico, já aludido, que se reflete também no modo como o sujeito-autor age discursivamente na defesa de seu posicionamento: “Tropa de Elite gerou um debate importante para a sociedade brasileira”. Em essência, a argumentação construída em favor dessa proposição não avança além do uso da estratégia de justificação, tornando-se esta, por tão reiterado emprego, o procedimento sistemático de sustentação do ponto de vista. O recurso a 181 essa estratégia argumentativa instaura-se com mais nitidez (embora se entremostre em algumas outras passagens) a partir do quarto parágrafo, quando são nomeadas as prováveis/possíveis contribuições derivadas desse filme: “desfazer a sensação de impotência diante da violência” (l. 35-36); “pensar melhor e analisar a violenta realidade brasileira” (l. 38-39); “intervir na discussão da praga da cultura da violência” (l. 47-48). Não obstante a manifestada intencionalidade do autor, no sentido de “pôr-se em uma relação valorativa (posicionamento) diante do objeto do enunciado” (RODRGUES, 2000, p. 217), constatamos a presença reincidente de modalizadores em seu discurso (provavelmente, l. 17; pode ser, l. 34; é provável, l. 37; talvez, l. 46), o que parece sinalizar uma notável preocupação em assumir, incondicionalmente, o papel de fiador (MAINGUENEAU, 2005) de seus pareceres avaliativos, uma vez que o recurso a essas formas modalizadoras torna menos absoluta a convicção de seu dizer. Muito embora não nos seja possível afirmar ser essa uma escolha consciente, é justamente por esse artifício que o autor alcança as condições ideais para atenuar o grau de sua responsabilidade enunciativa (ADAM, 2008), num esforço (decerto) de proteger-se contra uma provável reação-resposta do discurso oponente, para o qual, nessa circunstância, parece orientar-se, ainda que indiretamente. Mas também se observa a manifestação de um posicionamento menos afetado por essa “cuidadosa” busca de isenção de responsabilidade enunciativa. Para não permanecer apenas na afirmação, recorremos às ilustrações factuais: nas passagens em que se observam remissões ao filme, num tom mais avaliativo, sobressai-se, em meio aos comentários, uma voz que se expressa com mais autonomia. É o que transparece, por exemplo, em: “Na verdade, o filme tem como foco a relação estreita que há entre a força policial e o tráfico de drogas” (l. 9-11). Ou ainda em: “[...] Essa garotada bacana contribui para movimentar, cruelmente, essa guerra horrenda, na qual se debatem forças desiguais. Uma delas, a polícia – o BOPE, representa diretamente os interesses da classe média e do Estado” (l. 24- 28). E numa entoação bem mais acentuada em: “Isso produz uma situação perversa, uma vez que agir de maneira desigual, em que os miseráveis são colocados sempre na condição de culpados pelos horrores, constitui um fato social lamentável aos olhos da sociedade brasileira” (l. 29-34). 182 Para além dessas passagens (e das demais cabíveis nessa menção), em que o autor emite julgamentos/opiniões por meio dos quais tenta caucionar a sua tese, não observamos a presença de outras manobras argumentativas (à exceção da já mencionada operação de justificação), como a refutação ou a concessão, por exemplo, que renderiam maior mobilidade discursiva ao autor: o recurso a essas estratégias favoreceria a emergência de novos procedimentos argumentativos, em particular a contra-argumentação, indubitavelmente o mais requisitado em processos discursivos que envolvem a negociação. O autor, no entanto, como não se implica, por seu discurso, em situações controversas – desconsiderando a possibilidade de instituir discursivamente um interlocutor virtual (recomendação, aliás, ausente da própria proposta de produção n. 1, anexo 06) −, parece encontrar dificuldade para o necessário engajamento dialógico, em função do que se colocaria em condições de prever um posicionamento diferente do seu e uma consequente atitude responsiva (BAKHTIN, 2003) desse presumido interlocutor. Não investindo nessa linha de conduta bem mais polêmica, termina por construir um discurso alicerçado em argumentos de limitado poder de persuasão e sensivelmente afetado em sua dinâmica argumentativa, dada sua tendência à reiteração da ideia de contribuição do filme, que se localiza, de modo mais explícito, nos três últimos parágrafos. Esse movimento circular em torno de uma mesma ideia inviabilizou a busca por uma renovação semântica em nível das informações, o que, em consequência, se refletiu na progressão textual como um todo. Nesse quesito, o texto focalizado apresenta-se relativamente vulnerável por uma razão bem simples: não se instaura, a rigor, em nível de sua organização macroestrutural (especialmente na forma como se encadeiam os parágrafos), um equilíbrio variável entre as duas exigências fundamentais – progressão/retroação – referenciadas por Koch (2004), para quem a progressão textual estabelece-se em função do modo como o autor do texto mobiliza, no processo de produção, as estratégias de continuidade e as estratégias de mudança. Essa alternância entre o que foi dito e o que está por dizer responde efetivamente pelo entretecimento dos fios do discurso, garantindo, por esse constante movimento, a continuidade de sentidos. O diagnóstico é reforçado quando constatamos, ao cumprir o percurso de leitura, parágrafo a parágrafo, que, em determinadas situações, também não se 183 estabelecem as condições de continuidade e suficiência, ditadas por Mamizuka (1977) como relação necessária entre uma unidade e outra. A título de ilustração, vejamos: o autor inicia o texto tratando do debate provocado pelo filme “Tropa de Elite”, que tem sua importância para a sociedade brasileira, segundo ele, justamente por “enfocar a violência policial e a corrupção nela implicada”. Na transição para o parágrafo seguinte, faz uso de um marcador de reformulação (ADAM, 2008), a expressão “na verdade”, que serve para assinalar a intenção de reformular, por metaenunciação, o ponto de vista antes enunciado. Nessa nova perspectiva, “o filme tem como foco a relação estreita que há entre a força policial e o tráfico de drogas” (l. 9-11), ideia que se fortalece nas justificativas que lhe sucedem. Essa reformulação saneadora, nos termos de Koch (2004), por meio da qual se reprocessa a informação antecedente, imprimindo-lhe uma nova tonalidade valorativa, funciona retroativamente como um recurso mantenedor da progressão discursiva. Não é exatamente o que acontece com o terceiro parágrafo, que se mostra visivelmente desarticulado em relação aos anteriores. Nesse segmento, nem se procede a uma retomada mais explícita, nem se avança no sentido de novos acréscimos semânticos. A proposição de leitura que aí se apresenta para o filme, justamente por ser um diferente modo de focalização desse objeto, exigiria, no mínimo, o recurso a determinadas formas de referenciação, por meio das quais se pudesse estreitar o vínculo com o parágrafo antecedente (expressões do tipo: uma outra leitura proposta pelo filme é [...], por exemplo), no intuito de instaurar essa possibilidade interpretativa. E nem nos inclinamos a pensar que essa formulação possa ser inferida a partir de sua estrutura proposicional. Mesmo porque a afirmação inicial, com que se abre o parágrafo, parece eleger, em definitivo, uma única interpretação: “A leitura proposta pelo filme é a de que a garotada da classe média da zona sul carioca constitui-se responsável pela guerra que se dá, principalmente, nos morros, na barra pesada das favelas [...]” (l. 20-24). Esse modo de irrompimento parece-nos inaugurar um novo percurso discursivo, em que se apagam os demais enfoques sob os quais já se havia avaliado o filme, tanto no primeiro quanto no segundo parágrafo, o que responde por uma ruptura no nível da progressão/continuidade tópica, ainda que se considere, nessa circunstância, apenas um transitório “desalojamento” do tópico discursivo em desenvolvimento. 184 O quarto parágrafo formaliza, por retomada anafórica (uso do pronome demonstrativo Isso, l. 29), sua implicação semântica com o segmento que o precede. Pelo recurso a esse elemento coesivo anaforizante, o autor realiza uma espécie de condensação/sumarização das informações antepostas, procedimento interpretado por Conte (2003) e Koch (2005) como encapsulamento anafórico. Nesse caso em particular, o autor “abriga” todo o conjunto de proposições constituintes do terceiro parágrafo, transformando essa porção de texto (encapsulada pelo anafórico isso) em objeto-de-discurso e redefinindo a progressão referencial. Mas é justamente nesse processo de transformação do já-dito (informação velha) em novo objeto-de-discurso que se manifesta o problema de interpretabilidade (KOCH, 1999). Está claro que o anafórico Isso (l. 29) retoma, de modo sintético, o parágrafo anterior. Está claro que o fragmento de discurso “Isso produz uma situação perversa [...]” (l. 29) remete ao fato de a garotada de classe média estar implicada (e ser até responsável por) nessa guerra em função do tráfico, favorecendo a sua permanência. Mas não se oferece pistas mais orientadoras para recuperar o referente de “miseráveis” (l. 31) Se retornarmos ao segundo parágrafo, identificaremos, por exemplo, a outra força – os traficantes − oponente do BOPE. No terceiro parágrafo, mais uma vez, menciona-se um confronto: “[...] essa guerra horrenda, na qual se debatem (?) forças desiguais. Uma delas, a polícia – o BOPE, representa diretamente os interesses da classe média e do Estado” (l. 25-28). Só não se revela qual seria a outra força a tomar parte nesse embate. Seriam os traficantes? Então, por que situá-los na condição de miseráveis, no sentido de coitadinhos, vítimas de sua própria condição de impotência para agir? Não estaríamos diante de uma incoerência? Parece impossível seguir as pistas textuais em busca de esclarecimento para esse impasse. O referente não se encontra na materialidade linguística. Passa despercebido ao autor o fato de que nem sempre o que lhe parece evidente é acessível ao interlocutor. Especialmente quando se trata de um texto escrito, cujo destino interpretativo coloca-se à mercê de um leitor que pode não dispor das condições necessárias/ideais para atualizar determinados conteúdos. Se lhe é dado visar à cooperação do leitor, o autor deve procurar “acercar” de conteúdo as expressões que usa. Só assim, poderá, conforme nos adverte Eco (1986, p. 39), contar com “um leitor-modelo capaz de cooperar para a atualização textual como 185 ele, o autor, pensava, e de movimentar-se interpretativamente conforme ele se movimentou gerativamente”. Decerto, o autor fiou-se na certeza da conivência/cooperação de seu leitor imediato – o pesquisador (?) – para quem não precisava ser tão explícito, porque este havia tido acesso a todo o material subsidiário (o filme, os textos de leitura suplementar...) que serviu de suporte à produção. E é justamente nas cenas do filme que se vai buscar a adequada interpretação para a palavra “miseráveis”: referência aos favelados envolvidos (por sua condição miserável ou por submissão imposta) no tráfico, intermediando o comércio e a distribuição das drogas, a fim de escudar a face dos verdadeiros traficantes. Examinada a ocorrência sob esse ângulo, consideramos admissível que essas implicações residuais (decorrentes da não co(n)textualização do item lexical em questão) somente se tornaram procedentes em função da não observância a determinadas “leis do discurso” (nos termos de MAINGUENEAU, 2001) ou máximas conversacionais (tal como foram concebidas por GRICE, 1982), que desempenham um papel de fundamental importância na interpretação dos enunciados. O autor deste texto, inadvertidamente, deixou de cumprir a máxima da quantidade: seja tão informativo quanto for necessário na situação específica. E, nesse caso, havemos de convir, transferir ao leitor a responsabilidade de calcular o sentido foi, no mínimo, confiar-lhe uma missão arriscada, na medida em que não se deu a este a matéria- prima suficiente para processar uma leitura capaz de resgatar com fidelidade o não- dito. Nesse mesmo parágrafo, em que se recrimina a ocorrência desse “fato lamentável”, já se toma uma outra orientação argumentativa, por que se norteiam, aliás, os parágrafos subsequentes: a defesa da ideia de que o filme contribui para a discussão, “[...] desfazendo um pouco a sensação de impotência, a que ficam relegados os cidadãos comuns” (l. 35-37); de que tem uma contribuição a dar: “[...] pensar melhor e analisar a realidade brasileira, que tem se tornado tão violenta nessas últimas décadas” (l. 38-40); de que deixa o seu legado: “[...] intervir na discussão sobre a praga da cultura da violência que, em nosso país, já chegou ao paroxismo” (l. 47-49). Em síntese, reprisa-se, sob diferentes formas de dizer, a ideia de contribuição do filme, no sentido de oportunizar o debate sobre a violência em nosso país. Esse “desdobramento” dos parágrafos finais em visíveis movimentos 186 concêntricos, retornando insistentemente ao mesmo ponto de partida − a ideia de contribuição − não só refreia a progressão discursiva (não se permitindo avançar em termos de novas predicações sobre o tema) como também arrefece a possibilidade de “abrir uma nova frente argumentativa”. Orientando a análise para outros níveis da organização textual, em busca de completar o processo de textualização, consideramos pertinente, em função desse propósito, dar visibilidade a algumas questões, que, embora pontuais, afetam o percurso de leitura. No segundo parágrafo, por exemplo, merece registro a intrusão de um comentário [“É claro que o contexto escolhido para o desenvolvimento dessa cena é a cidade do Rio de Janeiro”], que, embora intencionalmente possa ser percebido como um inciso explicativo (uma observação do enunciador sobre a própria enunciação), se mostra visivelmente deslocado entre duas estruturas frasais, em relação às quais parece autonomizar-se. Do ponto de vista sintático-semântico, deveria integrar-se à frase anterior, requerendo, para tanto, um ajuste estrutural, de tal modo a devolver-lhe a função de “quase parêntese” que lhe é devida nessa ocorrência. Também se constitui ponto de especulação a ausência das aspas em bacana (na remissão à garotada bacana, linha 24 do terceiro parágrafo). Como se trata de uma palavra que exprime inúmeras ideias apreciativas, o seu emprego pode, a depender do contexto, impregnar-se de uma tonalidade avaliatória nem sempre condizente com o julgamento de valor atribuído pelo usuário ao objeto ou à pessoa sob menção. Na situação em apreço, por exemplo, cria-se a expectativa em relação ao uso das aspas, porque se percebe uma diferente acentuação valorativa, incidindo sobre a palavra (diferente, no que concerne à sua definição em estado de dicionário: palavra-ônibus que qualifica pessoas ou coisas com atributos positivos). E isso fica ainda mais evidente se considerarmos a retomada anafórica em que se implica o termo bacana, visto que a ancoragem nos índices contextuais favorece a interpretação desse item lexical em uma acepção pejorativa, conforme podemos depreender numa apreciação do seguinte trecho: essa garotada bacana (de classe média da zona sul carioca, os grã-finos, os denominados “filhinhos de papai” – uma leitura subjacente, perfeitamente plausível) contribui para movimentar, cruelmente, essa guerra horrenda, na qual se debatem forças desiguais (l. 24-26). 187 Parece-nos que, nessa singular ocorrência, o autor prefere não se eximir de sua responsabilidade enunciativa, ao assumir uma posição axiológica em tudo coincidente com sua maneira de dizer, a qual, segundo Maingueneau (2005, p. 73), também “remete a uma maneira de ser, à participação imaginária em um vivido”. Em mais uma sondagem, deparamo-nos com um problema bem pontual – a impropriedade vocabular/inadequação vocabular que, por sua notável reincidência (esse é um problema ressurgente na maioria dos textos, especialmente os da modalidade escrita), merece um comentário particular. Essa imprecisão no uso de determinados vocábulos acontece devido a uma incompatibilidade registrada no processo de combinação dos traços semânticos das palavras entre as quais se estabelece uma relação no plano sintagmático. No texto focalizado, situamos a primeira ocorrência logo no parágrafo de abertura. A relação estranha resulta da redefinição do termo debate como sendo um evento na seguinte proposição: O debate em torno do filme “Tropa de Elite”, do diretor José Padilha, tem sido um evento bastante saudável para a sociedade brasileira (l. 3-5). Assim contextualizado, esse constituinte oracional torna-se semanticamente equivalente à palavra discussão, que, nessa referência específica (uma polêmica geral, de que participa toda a sociedade), não nos parece adequado redefinir como evento. Decerto que, numa outra circunstância, o termo debate pode, bem mais apropriadamente, ser reinterpretado como um evento. Suponhamos uma situação de enunciação diferenciada, em que se anunciasse um debate sobre um tema de interesse público, a ser realizado, num auditório x, entre pessoas de notório saber. Trata-se, realmente, no suposto exemplo, de um evento, ou seja, um acontecimento de especial interesse (espetáculo, exposição, competição etc.), capaz de atrair público e de mobilizar os meios de comunicação (segundo definição conceitual referendada pelo dicionário AURÉLIO, 1999, versão eletrônica). Semelhante estranhamento é também provocado pelo emprego da forma verbal se debatem no terceiro parágrafo, mais particularmente localizada no trecho seguinte: “Essa garotada bacana contribui para movimentar, cruelmente, essa guerra horrenda, na qual se debatem forças desiguais” (l. 24-26). Na verdade, tem- se, nesse caso, tamanha sutileza semântica que pode, numa leitura mais apressada, inibir a percepção dessa impropriedade vocabular: debater-se (agitar-se muito, resistindo ou procurando libertar-se, ou tentando fugir de situação penosa) em vez 188 de bater-se (estabelecer conflito ou combate, enfrentar, lutar − bater-se com o inimigo). Inscreve-se ainda, na linha dessa análise, uma perceptível impropriedade de uso da expressão um fato social, no quarto parágrafo (l. 32), para fazer uma remissão à sequência: “Isso produz uma situação perversa, uma vez que agir de maneira desigual, em que os miseráveis são colocados sempre na condição de culpados pelos horrores, constitui um fato social lamentável aos olhos da sociedade brasileira” (l. 29-34). Tal como nos parece, a palavra nuclear nessa remitência é agir. Assim sendo, não consideramos procedente a suposta relação que se visa estabelecer entre agir de maneira desigual [...] e constitui um fato social lamentável aos olhos da sociedade. A justificativa para essa discordância respalda-se no próprio invólucro semântico em que se resguarda essa palavra, ou seja: no contexto em que ocorre, esta assume uma acepção equivalente a proceder de determinado modo; conduzir-se, comportar-se (conforme dicionário HOUAISS, da Língua Portuguesa, 2001), o que, portanto, evidencia a inadequada seleção lexical, com consequente implicação no plano semântico, efetivada nesse processo remissivo. E, por fim, uma observação concernente ao estabelecimento das relações coesivas que, sob condições idênticas, se manifestam nos dois últimos parágrafos. Trata-se, nas situações referidas, de um processo catafórico – o termo que retoma precede o termo retomado. Seguindo a interpretação de Maingueneau (2001, p. 197), correspondem, mais precisamente, a catáforas redutivas, dado o fato de condensarem “um fragmento de nível pelo menos igual à frase”. É o que se verifica na sequência “É provável que o filme de Padilha tenha essa contribuição a dar: pensar melhor e analisar a realidade brasileira, que tem se tornado tão violenta nessa última década” (l. 37-40), em que se condensa todo o trecho sublinhado. O mesmo se repete em “Talvez seja esse o seu legado – intervir na discussão sobre a praga da cultura da violência que, em nosso país, já chegou ao paroxismo. Definidas tais relações como sendo de natureza catafórica (condensa-se o trecho a ser mencionado), torna-se menos recomendado o emprego dos pronomes demonstrativos essa/esse, a que se deve naturalmente recorrer em caso de retomada anafórica (quando se faz referência a algo que já foi mencionado). O mais indicado, nos dois casos, em razão da revelada precedência do termo cataforizante, 189 seria proceder a uma substituição correlativa esta/este, respectivamente, conforme orientam Koch e Vilela (2001). Certamente, nessa circunstância de uso, essa observação pode parecer de somenos importância – reconhecemos −, em se tratando dos prováveis prejuízos semânticos que pudessem decorrer da oscilação de emprego essa/esse ou esta/este, quer em posição anafórica, quer em posição catafórica. Mesmo assim, julgamos procedente fazer tal registro, dado o fato de que, nos textos dos alunos, esse é um dos pontos bem visados na avaliação do professor; portanto, pelo que supomos, um saber por ele valorizado. Uma última consideração merece ainda ser feita ao comentário escrito pelo professor, na condição de revisor de seu próprio texto, em um derradeiro encontro com a pesquisadora: “Penso que, no tocante à situação comunicativa, a qual exige um tempo determinado para a discussão, visando à produção de um artigo de opinião, o resultado, particularmente, soa razoável.” À parte, admitiu, em conivência com o parecer de sua colega, a professora Margarida, que teve tempo suficiente para se preparar. Mas, em contrapartida, alegou que “a situação de produção, muitas vezes interfere de forma não satisfatória”, fazendo com que “a redação se torne um entrave e o texto não consiga ter uma certa fluência” (pronunciamento de sua entrevista final). Isso soa verdadeiro; mesmo assim, não se pode tornar um pretexto para avaliar as produções dos aprendizes elevando exageradamente o nível de transigência, a ponto de ultrapassar a tolerância necessária. 5.2.3 Texto n. 1 (professora Margarida) 190 191 192 5.2.4 Texto n. 2 (professora Margarida) 193 194 195 Produção docente: texto n. 1 (professora Margarida) Título: Liberar ou reprimir? Autora: Margarida Fragoso A partir do título (“Liberar ou reprimir?”), a produtora deste texto já anuncia um conflituoso posicionamento, que, aliás, se vai redimensionando no curso de sua reflexão, chegando, por vezes, a abeirar-se do ponto de vista favorável à liberação das drogas. Mesmo assim, não assume o confronto decisivo com nenhum de seus virtuais oponentes, mantendo-se cautelosa desde as primeiras remissões ao tema de sua preferência: as drogas devem ser liberadas para pôr fim à violência urbana? E nem mesmo esconde a extrema dificuldade de opinar em favor de sua convicção. Razão por que se debate no dilema: “Liberar ou continuar reprimindo? Essa é uma questão difícil de responder” (l. 6-8). Não obstante seu enredamento nessa dilemática situação, constrói seu texto à satisfação das diretrizes da proposta de produção: remete ao tema gerador, o filme “tropa de elite”, e discorre sobre uma das temáticas alternativas, assumindo, ainda que de maneira pouco explícita, um ponto de vista (sempre mais tendente à liberação) sobre o tema, confirmando a predominância da sequência argumentativa no processamento textual. É, pelo menos, o que deixa transparecer no início do segundo parágrafo ao afirmar que “a opção pela liberação não é confortável” (l. 9). Com essa assertiva, também abre espaço para a interlocução, dando a entender que o outro (o seu virtual leitor) tem razão em não julgar conveniente o fato de as drogas ilícitas passarem a ser vendidas livremente em balcões de farmácias ou de bares (l. 10-11). É bem na passagem dessa proposição para a sequência que se lhe pospõe que se fará mais perceptível o movimento contra-argumentativo de concessão (DARRAS et al., 1994), em que o sujeito locutor se revela prudente ao tomar ciência do ponto de vista adversário, com o qual até se mostra, a princípio, um tanto cordato (na medida em que não o anula inteiramente), para, em seguida, se orientar em direção a uma outra conclusão; tal como ocorre no caso em apreço: anuncia-se a condescendência para, logo em seguida, encetar-se o movimento concessivo pelo recurso à expressão contrajuntiva “Por outro lado” (l. 12). Não há dúvida de que essa é uma estratégia interessante e bastante funcional, em se tratando de um texto da ordem do argumentar, como o artigo de 196 opinião. Entretanto, precisamos estar atentos para não abrir brechas no processo refutatório dando margem à insurreição de um novo contra-argumento ou qualquer outra forma de “censura” que possa fragilizar a defesa. É, em termos aproximados, o que se verifica no texto em análise. A autora, ao tentar justificar sua posição, mais tendente a uma liberação, nem se apercebe do desvio semântico que se instaura nessa passagem do texto. Quando introduz o argumento de que “[...] a situação caótica em que se encontra esse comércio ilegal não pode mais se sustentar” (l. 12- 13), pode colocar o leitor, ainda incipiente, em uma embaraçosa situação de interpretação: defende o comércio ilegal? Decerto, isso não sucederia com um leitor mais maduro, que, provavelmente, buscaria saídas em nível contextual/co-textual para resolver esse impasse. À razão de nossa inferência, subjacente ao dito está o “querer dizer” que esse comércio ilegal provoca uma situação caótica, que não pode mais se sustentar; por isso a solução estaria, mesmo, na legalização das drogas. E mais uma vez retorna-se ao conflito: “O que fazer então?” (l. 14). Só que, nesse caso, parece-nos ser possível registrar uma real diferença na instauração dessa pendência. Como o questionamento põe-se em arremate à argumentação antes construída para sustentar o movimento de concessão, passa a impressão de estar aí, intencionalmente posto, para reforçar a defesa, dividindo com o interlocutor uma preocupação com a gravidade da situação e a necessidade de se ponderar, de um modo mais consciente, sopesando os dois lados, para, quem sabe, vislumbrar a certeza de que liberar é preciso, ou, em permanecendo a dúvida, que se acalente essa tendência. Um outro reparo deve ser efetuado no quarto parágrafo, sobre o qual a produtora, numa oportunidade de revisão, efetua alguns ajustes visando sanar falhas em nível da pontuação e da concordância. Sua preocupação em “corrigir esses descuidos”, só percebidos numa segunda leitura (o que sabemos ser perfeitamente legítimo no processo de produção), embota-lhe o senso crítico deixando passar despercebido um eventual descompasso no âmbito da referenciação interfrástica. Na sequência anterior (3º parágrafo), o sujeito-escritor discorre sobre o processo de produção das drogas, a exemplo da maconha e da coca, o qual descreve, mais detalhadamente, no quarto parágrafo, em que constrói o passo a passo dessa ação. É justamente nesse ponto da abordagem que se flagra uma impropriedade de uso de um pronome relativo (os quais) em uma ocorrência de substituição anafórica, cujo 197 referente textual (pressupostamente, os grandes produtores, l. 23-24) tem sua interpretação mais retardada devido à presença circunstancial de outros elementos (policiais e políticos desonestos) com o mesmo potencial para desempenhar essa função. Em situações como essa, faz-se necessário avaliar bem o efeito causado pela substituição que se efetua por meio de pronomes, considerando-se o fato de que, em razão desse procedimento, o texto, tanto pode apresentar-se mais claro quanto pode tender a interpretações ambivalentes (ANTUNES, 2005). Em se concretizando esta última possibilidade, deve-se aplicar a regra de distância mínima (ou princípio de distância mínima), fundamentada numa concepção perceptual, que determina, para o caso de haver “mais de um possível antecedente de um pronome, [que] aquele mais próximo será interpretado como o antecedente”. E para favorecer ainda mais a compreensão, pode-se recorrer a um princípio mais geral – o princípio da coerência, “que diz que quando há interpretações conflitantes devemos escolher aquela que torne o texto coerente” (KLEIMAN, 1995, p. 53). No que concerne a este texto, se aplicados os referidos critérios, bem mais rapidamente se processará sua interpretabilidade, tornando-se o parágrafo mais inteligível, mesmo que se deixe de reparar a ausência de duas vírgulas (uma, na l. 21, após uma oração adverbial final deslocada; outra, na l. 23, após uma série enumerativa, interposta entre o sujeito − deslocado de sua posição convencional − e o predicado da oração principal), ambas demarcadoras de unidades sintático-semânticas. Nos parágrafos subsequentes (em especial, o quinto, o sexto e o sétimo), atentamos para a inserção de alguns organizadores textuais (ADAM, 2008), que, situados em posições sentenciais estratégicas, no início da sentença de abertura de cada um desses parágrafos (desse modo (l. 29), para o 5º parágrafo; assim (l. 36), para o 6º parágrafo; diante desse contexto (l. 41), para o 7º parágrafo), visam, decerto, ao estabelecimento de uma condizente relação semântica entre essas partes. E mesmo não se instaurando, nas supracitadas condições, uma rigorosa progressão discursiva, tendo em conta a falta de explicitude da relação de causa e consequência estabelecida (apenas de maneira subjacente) na transição efetuada entre o quarto e o quinto parágrafo − e ainda reiterada na passagem deste para o seu sucessor −, não podemos deixar de reconhecer que essas conexões auxiliam na 198 recuperação da progressão temática. Basta considerarmos o fato de que, no quarto parágrafo, se trata da engrenagem que sustenta a cadeia de produção das drogas, procedendo-se, na transição para o quinto parágrafo, a uma retomada (ainda que de maneira menos direta) dessa abordagem, numa busca de manutenção da unidade temática, presumindo-se que “a sobrevivência do tráfico ilegal encontra, nas favelas e periferias dos grandes centros urbanos, terreno fértil para a produção do pequeno traficante” (l. 29-32), graças à “habilidosa” atuação da intrincada rede de corrupção (contemplada no parágrafo anterior), que favorece o livre curso de todo o processo. Merece rever ainda, com alguma cautela, no segmento em destaque, o aparecimento de uma impropriedade vocabular em [...] para a produção do pequeno traficante. Logo que se processa a leitura, estranha-se a associação entre a palavra produção e o grupo nominal pequeno traficante, que possuem traços semânticos incompatíveis, o que os torna avessos ao estabelecimento de uma aliança no plano sintagmático do texto. Não obstante, se nos orientarmos para o efeito de sentido decorrente dessa escolha vocabular, podemos justificar sua propriedade de uso, considerando o fato de que ela se “ajusta” semanticamente à expressão “terreno fértil”. Seguindo essa pauta analítica, podemos, inclusive, pressupor que tenha sido esse o percurso generativo cumprido pelo sujeito produtor. Diferentemente, julgamos o processo combinatório operado na sequência: “[...] os males que o uso das drogas causa ao ser humano é potencializado pelas amargas questões sociais que esse comércio ilegal ajuda a disseminar” (l. 41-44). É certo que o comércio ilegal pode gerar e propagar problemas sociais, sendo esta, acreditamos, a escolha lexical adequada à construção do sentido pretendido. Mas não ajuda a disseminar questões sociais. A impropriedade registrada, nesse processo de amalgamação, deriva da “instabilidade semântica” provocada pela infração às restrições impostas pelo verbo disseminar no concernente à possibilidade de combinação entre esses elementos linguísticos. Em contrapartida, vale mencionar o notável efeito de sentido produzido no último período do quinto parágrafo: “O jovem sem assistência do Estado (educação, lazer etc.) acaba encontrando no crime o seu porto (in)seguro” (l. 33-35). Nessa formulação, amplia-se o sentido da palavra, que se desdobra em dois contextos semânticos, na medida em que serve ao discurso do locutor, que, numa primeira versão, faz uso do prefixo de negação (-in) para revelar quão ilusória é a perspectiva 199 de vida alimentada pelos jovens; e, numa segunda versão, tenta mostrar que, em se orientando por uma visão distorcida dos fatos, os jovens ingressam no submundo do tráfico, acreditando ser este um porto seguro, vez que, em submissão às condições do “trabalho” que lhes cabe executar, têm garantida a sua sobrevivência (em sentido amplo e dúbio). No parágrafo seguinte, construindo uma proposição reiterativa, a autora retorna à relação de causa e consequência, antes estabelecida, mas não avança muito além do já-dito, tornando-se até um tanto redundante em sua ânsia de dar a necessária visibilidade aos malefícios decorrentes do tráfico de drogas. Ainda “reprisando” essa ideia, desfocaliza a centralidade da abordagem, até então bem mais voltada para a questão do tráfico, passando a tratar, especificamente, sobre o uso/o consumo das drogas e sobre suas consequências nocivas ao ser humano. É nesse ponto de sua exposição que se evidencia um desvio no nível da concordância. Em os males que o uso das drogas causa ao ser humano é potencializado pelas amargas questões sociais que esse comércio ilegal ajuda a disseminar (l. 41-44), a produtora, inadvertidamente, por certo, deixa de realizar a concordância do verbo ser (flexionado na forma é) com o sujeito da oração principal (os males), que exigia uma flexão de plural (são). Certamente, esta é uma infração censurável; mas possível de acontecer, principalmente se estivermos envolvidos numa situação de produção em que nos sentimos premidos pelo tempo, sem que se nos ofereça a oportunidade de revisar, intencionalmente, em favor de um melhor acabamento. A própria autora reconhece o quanto é difícil escrever, na urgência, em cumprimento às condições de produção: “Produzir um texto sob pressão [...] termina por ser uma situação que pode não mostrar do que realmente somos capazes de elaborar” (PROFESSORA MARGARIDA, em entrevista à pesquisadora, junho de 2009, p. 5). Indubitavelmente, trata-se de uma justa alegação. E embora podendo, em contrapartida, rebater a argumentação apresentada, sob a justificativa de que foi dada aos sujeitos de pesquisa (o que contempla esta autora) a oportunidade de revisar, e mesmo de interferir no escrito, operando as modificações que julgassem necessárias, negamo-nos a tomar essa via refutatória. Isso porque acreditamos que, muito provavelmente, também no processamento dessa segunda leitura, tenha-se repetido semelhante comportamento. 200 Essa reflexão encontra amparo nas seguintes palavras de Smith (1991, p. 34): “O cérebro necessita de tempo para tomar suas decisões sobre o que os olhos estão olhando e o tempo necessário depende do número de alternativas apresentadas.” E, então, culpamos o tempo? O número de alternativas? Vejamos: o tempo era o tempo deles. As alternativas estavam no texto deles. Mas eles eram (são) os professores de língua portuguesa, que estavam sendo avaliados por um sujeito pesquisador, tido como eventual “olheiro” e potencial delator! Não podiam estar tranquilos numa situação assim inconveniente. Segundo nos pareceu, foi investindo-se do papel comumente atribuído ao professor de português (o de corretor universal, caçador de erros) que a autora arbitrou sobre seu texto: reparou problemas de pontuação e concordância (no 4º parágrafo), justificou o emprego da expressão “a preço de banana”, e agradeceu a concessão de uma oportunidade para revisar sua produção, pois estava bastante preocupada com o registro da palavra cidadã, que julgava haver flexionado, no plural, erradamente. Concluídas todas as alterações que, de acordo com a sua percepção, eram requeridas, emitiu o seguinte parecer: “Mas está tão bonzinho o meu texto!” A impressão que nos fica é a de que a necessidade de zelar pela imagem, social e institucionalmente constituída, do professor de português, consagrado como depositário de um saber maior sobre a língua, a quem não é concedido o humano direito de errar, afetou o sujeito-escritor ao ponto de enredá-lo numa frenética busca pelas falhas mais aparentes; afinal, o professor de português é aquele que, por força mesmo da instituição dessa identidade, “[...] sente-se intimado a ser conforme à sua definição, [tendo] de se comportar em função de tal identidade” (BOURDIEU, 2008, p. 100-101). Essa acentuada preocupação com os problemas mais superficiais serve justamente para confirmar o que já dizia Smith (1991, p. 26): “Geralmente, a pessoa somente vê aquilo que está procurando, permanecendo bastante desatenta a outras possibilidades.” Muito embora estejamos convictos de que não são acontecimentos anormais (é consensual que assim se comporte o professor de língua portuguesa), consideramos importante pôr em relevo o fato de que, no processo de avaliação de textos, precisamos ter olhos (e ouvidos) mais atentos para não nos prendermos a uma questão meramente pontual (avaliar apenas do ponto de vista do conhecimento 201 linguístico, por exemplo), passando à margem de ocorrências mais embaraçosas em nível semântico. É mais ou menos o que, novamente, se sobressai no texto da autora. Apreciemos a seguinte passagem: “A realidade é complexa, pois envolve aspectos sociais que exigem mudanças profundas, nas quais espera-se que a educação e as oportunidades cheguem para todos, para que não mais se precise dos homens de preto do BOPE” (l. 62-66). Não é fácil interpretar essa sequência. Em primeiro lugar, deparamo-nos com uma combinação meio estranha: [...] aspectos sociais que exigem mudanças profundas [...]. Como promover mudanças profundas em aspectos sociais? Não seria o caso de tratar das desigualdades sociais que precisam ser superadas, para, assim, a educação e as oportunidades poderem colocar-se ao alcance de todos? Em segundo lugar, nessa mesma sequência, mais uma vez, assinalamos o emprego de um pronome relativo (nas quais) no estabelecimento de uma relação anafórica não exatamente consolidada na linearidade textual, vez que não é possível resgatar, de imediato, o antecedente com que se possa interpretar o processo de correferência. Em sendo a expressão mudanças profundas o referente textual desse pronome, não é possível anteceder-lhe a preposição em (nas quais), visto que a assunção desse procedimento instauraria uma regência impertinente. Em substituição a essa escolha, seria apropriado, observando, inclusive, a máxima de antecedência, nos termos de Kleiman (1995), o recurso à preposição por, compondo a expressão por meio de, para, então, retomar o referente mudanças profundas ([...] exigem mudanças profundas, por meio das quais se espera – e não: espera-se – [...]). A última menção remete aos “homens de preto do BOPE”, a quem não se fez uma referência mais direta (menciona-se apenas os policiais desonestos) em todo o percurso textual, criando um hiato interpretativo, dado que somente poderão compartilhar esse conhecimento aqueles leitores que, por suposto, assistiram ao filme ou sejam suficientemente capazes de construir inferências plausíveis. Para um leitor não contemplado nesse conjunto, essa remissão parecerá sem cabimento, não solidária às demais informações. E não podemos esquecer que um texto se constitui em uma unidade semântica. “Essa unidade funciona como um fio, um eixo, que faz cada parte, cada segmento, convergir para um centro” (ANTUNES, 2010, p. 67, 202 grifos da autora). Por isso é fundamental cuidar para que esta se faça consistente, até para facilitar o reconhecimento do ponto de vista assumido pelo autor. Nesta produção, embora a autora tenha-se devotado ao tratamento do tema sobre o qual se propôs refletir, não demonstrou a mesma firmeza de propósito no que concerne à assunção de seu posicionamento, prudentemente manifesto a meio- termo, mas sempre propenso à liberação, ainda que sob condições, como se revela na seguinte passagem: “Liberar o comércio talvez seja uma solução, pois essa rede impiedosa poderá ser neutralizada. É claro que a simples liberação não será suficiente, serão necessárias ações políticas efetivas de combate ao consumo mesmo que legalizado” (l. 45-50). Na sequência focalizada, evidenciam-se duas “manobras” de relativização do grau de comprometimento da autora com um ponto de vista em definitivo: a modalização expressa por talvez (Liberar o comércio talvez seja uma solução), numa tentativa de disfarçar a certeza absoluta de que a liberação seja, de fato, a melhor saída; e o movimento de concessão encetado em: “É claro que a simples liberação não será suficiente, serão necessárias ações políticas efetivas de combate ao consumo mesmo que legalizado”. Não podemos deixar de reparar, nessa mesma proposição, a ocorrência de mais uma impropriedade vocabular, com notável potencial para provocar uma desestabilização na unidade de sentido em que se organiza o texto. A viabilidade dessa previsão ancora-se na linha do dito, ao se defender a necessidade de ações políticas de combate ao consumo de drogas mesmo que legalizado. Como combater (ir de encontro a?) alguma coisa que passou pelo crivo da censura, que se instituiu como sendo legal? Provavelmente, a intenção era ponderar sobre a necessidade de se exercer um controle em relação ao consumo. Colocando essa intercorrência à parte, vale considerar o fato de que, ao construir o movimento de concessão, a autora visa, sobretudo, quebrantar a “verdade” de seu posicionamento, no intuito de não se mostrar intransigente com o ponto de vista adversário, diante do qual demonstra condescendência, mesmo tentando, no parágrafo seguinte (l. 51-61), desengravecer seu assentimento à liberação, pela ancoragem em um argumento pragmático, cuja finalidade é levar à apreciação de qualquer fato, “consoante suas consequências presentes ou futuras” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 303). Nos dois casos, o recurso ao 203 modalizador e à concessão antecipa possíveis refutações, que seriam factíveis se o ponto de vista se enunciasse de forma mais categórica. Mas essa não é a intenção da autora, como se pode confirmar numa última constatação: “Enfim, é difícil encontrar a resposta certa [...]” (l. 67). Sua relutância em posicionar-se, de modo mais explicito, é assumida muito claramente em outros pronunciamentos seus, que dizem bem melhor do que nossa pretensão de dizer: A minha dificuldade está justamente em ser clara e precisa na defesa de um ponto de vista, ou seja, em colocar no papel as ideias que explodem cheias de significado e que acabam esbarrando na busca das palavras e da melhor organização dos períodos que possam dar conta daquelas ideias. Essa é a minha maior dificuldade, pois o artigo de opinião exige muito do redator, que deve organizar argumentos em defesa de um ponto de vista, de forma lógica, coerente, orgânica (PROFESSORA MARGARIDA, em entrevista, on line, à pesquisadora, junho de 2009, p. 5). 5.3 ANÁLISE DAS PRODUÇÕES DISCENTES 5.3.1 Textos dos alunos do professor Jonas 204 5.3.1.1 Texto n. 1 (aluno Rogério) 205 206 2075.3.1.2 Texto n. 2 (aluno Rogério) 208 209 Produção discente: texto n. 1 (aluno do professor Jonas) Título: “A inutilidade do combate” Autor: Rogério Dantas Considerando o fato de que o texto ora analisado apresenta-se como a manifestação de uma expressão valorativa (o que já é possível antecipar a partir da leitura do próprio título − “A inutilidade do combate”) sobre um acontecimento social: o combate às drogas, podemos configurá-lo, por essa pretensão à polêmica (institui uma espécie de contrarresposta a uma plausível tese anterior que defende posição contrária), como uma representação do gênero artigo de opinião. O posicionamento (de que é inútil combater o tráfico de drogas) já se vai explicitando logo no primeiro parágrafo, quando o autor, em concordância com o ponto de vista de um oficial reformado do BOPE − o capitão Guimarães −, assegura que a forma atual (treinamento intensivo de mais policiais visando aos confrontos armados) de combater o tráfico de drogas gera mais problemas, conforme segue enumerando: o envolvimento cada vez maior de crianças que passam a atuar nesse comércio ilegal, servindo especialmente de “escudo” aos traficantes; o desestímulo de policiais que, cansados de uma luta desigual, e principalmente em função dos baixos salários que recebem (em nada compensatórios relativamente aos riscos a que se expõem), terminam por ser corrompidos; ou ainda o recrudescimento de atitudes violentas por parte dos policiais que se colocam refratários à corrupção. Focalizado nos termos dessa perspectiva de leitura, o texto apresenta-se modelado em uma macroestrutura argumentativa de aparência indefectível (com tese explícita e argumentos de sustentação in praesentia). Essa parece haver sido a impressão que marcou substancialmente a avaliação docente expressa no seguinte veredicto: “O texto está bom. O ponto de vista é defendido claramente com um bom trabalho de argumentação”. Enredado nesse modo de julgamento mais afeito a uma leitura, provavelmente, ainda pouco verticalizada, dado o tom generalizante de seu parecer avaliativo, o professor deixa de perceber determinados problemas que, na singularidade de seu acontecimento, estão a merecer uma ação reparadora. Procedendo a uma análise mais abrangente, observamos uma “quebra” na progressão discursiva, dada a notável desarticulação entre os parágrafos, que se justapõem de forma atomizada, constituindo-se em estruturas distintas (verdadeiras 210 minirredações, conforme denominação de MAMIZUKA, 1977), desconectadas entre si e, consequentemente, em relação ao tecido textual como um todo, um problema somente atenuado pela persistência na ideia da “inutilidade do combate ao tráfico” que, de forma direta ou indireta, perpassa o fio discursivo de um ou mais parágrafos. No entanto, mesmo essa estratégia de “reinserção temática” resta inútil para configurar esses parágrafos como unidades funcionais, considerando-se, como Mamizuka (1977), que estes não se apresentam como instauradores de progressão de uma unidade discursiva a outra. Também nos chama a atenção um problema de incongruência semântica localizado no quinto parágrafo, e supostamente despercebido na avaliação docente, considerando-se o fato de que não se registra, nessa passagem, outra observação além de um apontamento do uso inadequado de uma vírgula, que, segundo o modo como se processa sua indicação no texto, deverá ser subtraída. Deixando à parte esse pormenor, o que move nosso interesse na direção desse recorte textual é o deslindamento do complexo raciocínio que aí se desenvolve. Numa reconstituição desse raciocínio (até o ponto em que julgamos estar ao nosso alcance uma compreensão do que aí se enuncia), verificamos que o aprendiz começa por uma referência às muitas mortes ocorridas no Brasil, tendo por causa o consumo de tabaco, considerado uma droga de efeito letal. Em contraposição a essa ocorrência (o que se efetiva pelo uso de um conector de oposição: entretanto, l. 40), apresenta a alegação de que a guerra do tráfico provoca bem mais óbitos, em sendo estes comparados com aqueles decorrentes de doenças relacionadas ao consumo do cigarro. Não há como contestar, pois, a evidência de que a guerra do tráfico, por fazer mais vítimas, não deveria ser tolerada. Mas é justamente na transição para esse esclarecimento que se frustra a expectativa do leitor com uma impertinente evolução do pensamento, assim processada: recorrendo-se ao emprego de um conector de contrajunção (mas, l. 42), seguido por um conector de concessão (mesmo assim, l. 42), o qual, nessa situação de uso, reforça o estabelecimento da relação contrajuntiva, orienta-se para uma conclusão contrária ao propósito argumentativo, que, necessariamente, se traduziria numa posição mais condenatória às drogas, como a maconha e a cocaína. Todavia, não é essa a orientação argumentativa que se delineia, gerando dificuldades para a recuperação da coerência local (ou microestrutural), impossível 211 de ser alcançada simplesmente buscando “pelas possíveis ligações entre os fatos denotados pelas proposições”, como nos ensina van Dijk (2004, p. 28), justamente porque não se consegue divisar, no nível das relações que se estabelecem entre as proposições, senão em termos pressuposicionais, o que, de fato, pretende dizer o autor. Ao declarar, por exemplo, que “no Brasil, morrem mais pessoas vítimas da guerra do tráfico do que de doenças relacionadas ao consumo, mas, mesmo assim, o cigarro é aceitável e drogas, como maconha e cocaína, são condenadas” (l. 40- 44), o escritor-aprendiz coloca o leitor numa “sinuca” interpretativa. E ainda reforça o impasse quando tenta explicar o porquê da situação por ele delineada: “Talvez seja porque as drogas podem oferecer um risco à economia nacional. Tendo em vista isso, o governo prefere que a violência urbana continue ao verem (?) seus cofres vazios” (l. 44-47). Que ideias subjazem nessas proposições? O autor estará assumindo uma posição favorável à condenação do cigarro e à liberação das demais drogas? Ou admite que, tal como o cigarro, as outras drogas devem ser liberadas? Se tomarmos o último parágrafo como orientação de leitura, podemos considerar essa possibilidade interpretativa, uma vez que se cogita aí a legalização das drogas como uma solução possível (apesar de radical). Resta ainda esclarecer por que razão as drogas podem oferecer um risco à economia nacional, se liberadas. O governo não sairia lucrando com o recolhimento de impostos? Ou se pretende insinuar que o governo lucra com o tráfico? Pelo menos é o subentendido que se depreende da afirmação de que este prefere que a violência urbana continue a ver seus cofres vazios. Tantas dúvidas emergentes tornam ainda mais acentuada a considerável instabilidade semântica que se observa nesse parágrafo, como consequência das já enunciadas possibilidades de interpretação que se podem liberar por sua leitura. E, no entanto, não se registra (como constatamos anteriormente) qualquer menção a essa passagem quando da avaliação docente. Esse “passe livre” tira do aluno a oportunidade de progredir em seu aprendizado, uma vez que não lhe é concedido perceber os muitos impedimentos que se podem criar para o processamento da leitura quando ele não consegue transmitir, com clareza, aquele sentido que pretensamente julga haver atribuído a seu texto. O professor, por sua vez, em não alcançando essa percepção, malogra a chance de orientar o aluno quanto às 212 diferentes acomodações por que podem passar as unidades linguísticas no quadro de seu uso efetivo. Além disso, quando afiança, por sua avaliação, que o texto apresenta “problemas de norma linguística que não o comprometem” (a exemplo dos que foram assinalados sob a menção: erro de ortografia, concordância inadequada, uso inadequado da vírgula etc.), o professor pode persuadir o aprendiz, ainda que não seja sua pretensão, à crença de que seus problemas de escrita resumem-se a pequenos desvios de superfície. Certamente, não estamos a insinuar que esses “deslizes” não devam ser designados, e até mesmo relativizados, da forma como aconteceu. Em contrapartida, julgamos sem procedência que se deva transigir a ponto de passar à margem de um desvio tão visível quanto a flexão da forma verem (l. 47) em: “Tendo em vista isso, o governo prefere que a violência urbana continue ao verem [a ver?] seus cofres vazios.” Cria-se aí, inclusive, uma ambivalência em nível resolutivo: decide-se por restaurar a regência do verbo preferir, ou se busca, no nível estrutural (e então se precisará, em deriva, realizar ajustes semânticos) uma outra forma para ocupar a posição de sujeito, mantendo-se a consonância com a flexão sugerida. Esse desvio mereceria uma contemplação particular. Como vemos, é contraproducente, no âmbito da avaliação de textos, não somente ater-se a um simplista apontamento de pormenores de discutível relevância mas também descurar-se de determinadas falhas que possam gerar implicações várias para o processamento de uma leitura deveras compreensiva. Visualizando essas possíveis decorrências, não nos resta senão manter uma atitude vigilante a fim de não induzirmos o aprendiz a assimilar de modo viesado determinadas lições, como parece haver sucedido com esse aprendiz: O que eu queria ressaltar aqui é que, no último texto que eu fiz, ele marcou umas vírgulas e tal, e depois colocou: “O texto foi muito bem elaborado, muito bem isso, muito bem aquilo...” Mas não deu dez. Aí, eu fiquei pensando que é aquele caso da gente: só por causa de uma vírgula aqui, pois o texto foi bom [...] Eu aceitei, mas, assim, não aceitei (ALUNO ROGÉRIO, em entrevista à pesquisadora, dezembro de 2008, p. 32). Bem mais eficiente, nesse caso, em acréscimo às demais orientações de percurso, seria discutir com o aluno a conclusão de seu texto, focalizando-a do ponto de vista de suas fragilidades argumentativas. Numa abordagem inicial, ele trata 213 sobre a legalização das drogas definindo-a como uma solução radical, mesmo considerando a eficácia dessa medida na Holanda, onde a droga tem livre trânsito. No entanto, não lhe ocorre justificar/argumentar por que assim se posiciona. Em seguida, num movimento controverso, defende outra solução que entende ser mais viável: investimentos de grande porte na educação e nas oportunidades de emprego (por parte do governo) e campanhas enfatizando os danos das drogas (por parte dos meios de comunicação). Isso “em vez de fazerem proibições” (l. 55), conforme finaliza seu discurso. Ora, se não é justo proibir, como se pode subentender de suas palavras finais, então podemos admitir que esse autor se manifesta francamente favorável à legalização. Em sendo assim, não se faz apropriada a relação semântica de contrajunção estabelecida pelo uso do conector porém (l. 50). Parece-nos mais plausível apostar na pressuposição de que o aprendiz tão-somente pretendia adicionar possibilidades para viabilizar melhor a legalização. Sendo essa hipótese procedente, caberia a esse aprendiz, sob a orientação do professor, reconstruir uma nova trajetória de leitura compatível com a proposta interpretativa aventada. Ainda em relação a esse parágrafo conclusivo, não nos podemos abster de sublinhar a forma recorrente, no que concerne ao seu conteúdo quase-clichê, a partir da qual o aluno constrói seu pronunciamento: “[...] que houvesse investimentos de grande porte na educação e nas oportunidades de emprego; ou ainda: [...] campanhas enfatizando os danos das drogas” (l. 51-54). Decerto, não pretendemos, com esse apontamento, proclamar a interdição definitiva de construções assim estereotipadas. Tão-somente pensamos na possibilidade de orientar o aluno no sentido de promover uma atualização/uma renovação dessas referências para que não se venham reproduzir, em sua mesmice, como ideias “consagradas”, imunes à controvérsia, pois que encerram verdades estabelecidas por um discurso fórmula- pronta, disponível para ser transplantado por qualquer um que o desejar, para qualquer texto, como uma espécie de “estratégia de preenchimento” (LEMOS, 1977). E para alcançar um maior refinamento desse processo de avaliação, seria extremamente proveitoso retomar com o aprendiz determinados trechos, nos quais se registram problemas que merecem ser mais bem trabalhados. Nessa menção, resgatamos o exemplo do emprego da partícula “se” (l. 50), que surge como uma excrescência em: “A legalização das drogas é uma solução muito radical, mas que já provou ser super eficaz na Holanda, onde se é permitido fazer uso de drogas” (l. 48- 214 50), sinalizando uma provável transposição de recursos da modalidade oral em que se “naturaliza” esse tipo de inserção. Esse pequeno detalhe, imperceptível para alguns, de somenos importância para outros, pode-se transformar em aprendizado para o aluno, desde que se mostre para ele que, nessa circunstância, haveria duas possibilidades de estruturação. No caso de uma preferência por manter a locução, a partícula se poderia ser facilmente suprimida, uma vez que não cumpre qualquer função em nível frasal. Por outro lado, em se preferindo o não apagamento dessa partícula, optando por tomá-la como índice de indeterminação do sujeito, bastaria proceder à flexão do verbo, tal como segue: “A legalização das drogas [...] na Holanda, onde se permite fazer uso de drogas”. Nessa mesma frase, vislumbramos, ainda, uma oportunidade singular de discutir aspectos relacionados à coesão lexical, aproveitando a reiteração do termo drogas para exercitar com o aprendiz formas possíveis de reescrita que possam favorecer a substituição/supressão do referido termo em sua retomada por repetição, um recurso legítimo, admitimos, mas pouco recomendável nessa situação em particular, justamente por se presumirem latentes outras possibilidades de formalizar esse dizer. Seguindo essa mesma linha de revisão, convém esclarecer, no quarto parágrafo, o seguinte fragmento: “Sabendo que acabar com a corrupção da maneira que estão sendo submetidos é impossível, alguns policiais acabam aderindo à corrupção também [...]” (l. 25-26). Não nos parece clara a questão de os policiais estarem sendo submetidos. São eles obrigados a cumprir a tarefa inglória de acabar com a corrupção? Trabalham em condições precárias, em termos do efetivo policial ou do arsenal de que dispõem para enfrentar os traficantes? Ou o aprendiz está se referindo ao modo como os policiais vêm agindo, arriscando suas vidas sem sequer serem recompensados financeiramente? Também, nesse parágrafo, julgamos procedente atentar para a ocorrência de uma impropriedade vocabular, sublinhada na seguinte passagem: “Já os que não se corrompem, terminam adquirindo a mentalidade de que todas as pessoas que moram nos morros são bandidas” (l. 29- 30). Soa-nos estranha a relação estabelecida entre esses vocábulos, no plano sintagmático, justamente por não apresentarem a devida compatibilidade quando da combinação de seus traços semânticos. E isso facilmente se comprova estabelecendo um confronto, com base no dicionário HOUAISS da Língua Portuguesa (2001), entre as acepções em que se 215 pode empregar o verbo adquirir (entrar na posse de algum bem através de contrato legal ou não; obter, conseguir – bem material; passar a ter ou apresentar novas características, feições etc.; vir a ter, contrair – doença, moléstia etc.) e aquelas que se reservam ao emprego do substantivo mentalidade (conjunto de manifestações de ordem mental: crenças, maneira de pensar, disposições psíquicas e morais, que caracterizam uma coletividade, uma classe de pessoas, um indivíduo). É certo que o escritor-aprendiz não operou essa combinação aleatoriamente. Ele teve uma intencionalidade. Muito provavelmente quisesse dizer: eles terminam desenvolvendo a compreensão/uma nova maneira de pensar ou mesmo, eles terminam chegando à conclusão [...] Ou ainda, numa tentativa de aproximação com o sentido, de fato, intencionado: eles terminam desenvolvendo uma mentalidade. Essa é uma averiguação que pode render uma boa aula sobre o uso do dicionário, sobre os processos de seleção e combinação e seus desdobramentos, podendo mesmo culminar na compreensão de que “quando selecionamos palavras, estruturas sintáticas, recursos coesivos, não o fazemos tendo como referência o ‘estoque’ da língua, mas os valores que saturam estes elementos linguísticos no contexto (na atividade) em que estamos” (FARACO, 2007, p. 48, grifo do autor). Não obstante os “reparos” sugeridos, reconhecemos essa produção como o trabalho de um sujeito que se revela potencialmente capaz, considerando-se o modo por que tenta responder à proposta textual que se lhe apresenta. E isso a começar pelo título escolhido, que, em uma formulação sintética, condensa o essencial de sua abordagem temática, mesmo escamoteando, à primeira vista, o real percurso do texto. Mas é particularmente esse impasse entre o dito e o por dizer que aguça o interesse do leitor instigando-o ao desvelamento, somente possível consumando-se a leitura. Também consideramos meritório o seu empenho em defender o ponto de vista assumido, fazendo ancoragem em argumentos de natureza vária, a exemplo do argumento de autoridade que faz sobressair no seu texto ao citar a opinião de um oficial reformado do BOPE, de cujo discurso se apropria para realçar/reforçar o seu posicionamento e instituir a base em que se apoia, direta ou indiretamente, toda a sua argumentação. Não se estranha, pois, que, diante de um texto assim gerado, o professor possa impressionar-se. Ainda mais se considerarmos o fato de que é praticamente 216 impossível àquele que avalia controlar a dimensão subjetiva de sua reação frente ao texto a ser avaliado, em especial porque não se trata da produção de um sujeito sem rosto, sem nome, sem referencial, sem história. Nesse caso particular, o professor está convicto de seu julgamento. Numa segunda revisão, que realiza na presença do pesquisador, o professor confirma seu veredicto e ainda acrescenta a seguinte apreciação: “Esse é um aluno nota dez: estudioso, comprometido, educado...” Não é diferente a imagem que o aluno projeta em seu discurso durante a entrevista nas várias ocasiões em que se pronuncia. Para exemplificar, recordamos um trecho de seu discurso, em que tece um comentário sobre a provável influência exercida pelo professor no momento da produção do texto: “[...] eu sempre quando vou fazer um texto, eu nunca penso que ele vai ler e tal... Eu sempre faço vendo o que é melhor para mim. Sempre tento ir melhorando. [...] Eu sempre faço o texto para mim; não fico me preocupando se ele vai achar bom ou ruim” (ALUNO ROGÉRIO, em entrevista à pesquisadora, dezembro de 2008, p. 24-25). É, de fato, um aluno consciente de sua capacidade de aprender. Busca seu progresso (sempre tento ir melhorando), independente de se colocar à mercê da benevolência do professor, a quem não se preocupa em agradar (não fico preocupado se ele vai achar bom ou ruim). Uma interlocução proficiente pode operar grandes mudanças no percurso desse aprendiz. Que não se desperdice seu potencial! 5.3.1.3 Texto n. 1 (aluno Ernesto) 217 218 5.3.1.4 Texto n. 2 (aluno Ernesto) 219 220 221 Produção discente: texto n. 1 (aluno do professor Jonas) Título: “O objetivo do BOPE” Autor: Ernesto Muito embora não retome mais diretamente qualquer uma das temáticas sugeridas, podemos situar esta produção textual em consonância com a proposição que encaminha o questionamento no sentido de o filme exaltar (ou não) a violência policial. O título, por exemplo, inclina-se nessa direção quando deixa subjazer, em sua formulação de cariz indiciário, uma presumida intencionalidade de desvelar para o leitor o verdadeiro objetivo do BOPE (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar). Investindo nesse propósito, o autor tenta construir uma argumentação no sentido de provar que as ações desse batalhão (tais quais se mostram no filme) estão equivocadas. Esse posicionamento, que se tornará um pouco mais aparente a partir do 2º parágrafo, parece insinuar-se na própria introdução, enleado nos dois questionamentos finais: “será que a favela inteira deve ser incluída nesse conflito?” “Será que os policiais não estão exagerando nessa punição?” (l. 7-8). Certamente, são questões para as quais não se preveem respostas imediatas, mesmo porque estas se encontram fatalmente implicadas nas próprias indagações, não admitindo muitas outras alternativas senão aquela prefigurada. Nesta produção, o recurso à estratégia das perguntas retóricas teve sua pertinência assegurada, apesar da “imperícia” com que se realiza esse encaixe. O sujeito-escritor faz a inserção dos questionamentos numa unidade sintático-semântica de caráter terminal, a ser consolidada por um ponto, que daria a deixa para a formulação das questões, as quais, por sua reconhecida natureza provocativa, possibilitariam o desencadeamento de todo um processo de responsividade, em cujo transcurso poderiam forjar-se os argumentos que dariam sustentação ao ponto de vista assumido. É também em função desses questionamentos que se abre espaço para a dialogicidade, um dos traços configuradores do gênero artigo de opinião. O autor deste texto não parece ignorar in totum esse saber. E isso se confirma em mais uma tentativa de lidar com a alteridade, recorrendo, nessa circunstância, à estratégia da contra-argumentação, sobressaída de um movimento de concessão (DARRAS et al., 1994), que se instaura no segundo parágrafo, mais precisamente, em destaque, na 222 seguinte passagem: “Uma parte do hino do BOPE diz que a missão dos policiais é ‘entrar na favela e deixar corpo no chão’”. “O tráfico é mais comum nas favelas, mas isso não significa que um favelado, por ter melhor acesso, deve ser considerado um consumidor de drogas” (l. 9-13). Se os policiais admitem que sua missão, conforme enaltece, de maneira ufanista, o refrão de seu “hino de guerra” (e conforme reiteram as cenas principais do filme), é entrar na favela e deixar corpo no chão, também não lhes será condenável colocar sob suspeição todos os moradores da favela, chegando mesmo ao exagero do extermínio indiscriminado. Em contraposição a esse ponto de vista é que se constrói o movimento de concessão, processo por meio do qual não se anula inteiramente a posição contrária; esta é, em termos, partilhada pelo locutor, que, ainda assim, se orienta na direção de uma outra conclusão. No caso em apreço, reconhece-se que o tráfico seja bem mais comum nas favelas; no entanto, discorda-se do pensamento generalizante que estigmatiza os favelados nivelando-os aos traficantes/aos consumidores tão-somente porque, sem outra opção de moradia, dividem o espaço com uns e outros, mantendo-se sempre em silêncio por natural instinto de sobrevivência. Segundo avalia o autor, esse lado não é exibido no filme, uma vez que neste as vítimas sempre estão envolvidas com drogas, seja no tráfico ou no consumo, numa insinuação de que toda a favela participa do esquema. As imagens reproduzidas na fita, em sua percepção, distorcem a realidade: “naquele local também existem pessoas de bem” (l. 16-17). É ainda orientado por essa compreensão que dirige sua crítica mais especificamente ao BOPE, questionando, inclusive, o objetivo maior dessa corporação, que, de acordo com o filme, é formar policiais honestos: “Mais importante que isso, [ressalva o autor], seria formar policiais mais justos, que soubessem distinguir a camada criminosa da camada inocente da população” (l. 23-25). Essa é justamente a ideia que vai fundamentar seu questionamento final: “Se o papel da polícia é proteger a população, como poderemos explicar as invasões à favela e outros casos em que vidas de pessoas inocentes são desperdiçadas?” (l. 26-28) A avaliação do professor incide notadamente sobre essa parte, que, em termos de sua estrutura formal, representa a conclusão, e cujas ideias, segundo o parecer docente, poderiam ter sido mais bem desenvolvidas. Ainda em relação a esse mesmo fragmento textual, o avaliador tece a seguinte consideração: “já que a introdução foi feita com base em questionamentos, a conclusão do texto deveria 223 responder, com propostas, às perguntas formuladas no início”. Num ponto, o professor tem razão: o aluno poderia, realmente, ter desenvolvido mais suas ideias conclusivas, fazendo um ajuste na própria paragrafação, de modo a agregar seu último pronunciamento ao parágrafo anterior, mesmo porque aí se encontra a matriz da ideia que ele condensa na pergunta final. Entretanto, não nos parece procedente a observação no sentido de o aluno estar, necessariamente, compelido a responder com propostas às perguntas formuladas no início. Essa não é uma condição sine qua non, nem uma prescrição de caráter impositivo; tampouco é uma especificidade do gênero artigo de opinião. Além disso, como sabemos, as questões a que se refere o avaliador, em si mesmas, já contêm a sua réplica, que, aliás, foi referendada pelo aluno em sua argumentação; não precisariam, portanto, ser novamente respondidas, a título de propostas, em atendimento à sugestão docente. A observação docente parece-nos bem conformada às “instruções” em registro no material didático (anexo 16), no que concerne ao ensino sobre as partes em que se “decompõe” o texto dissertativo-argumentativo; mais particularmente no tópico que contempla os tipos de introdução – o tipo construído por interrogação, em que se fornece a seguinte orientação: Neste tipo de introdução, o autor formula uma ou mais perguntas sobre o tema e ele próprio deve dar respostas a elas ao longo do texto. Nenhuma pergunta deve ficar sem resposta. Apreciação semelhante é feita pelo avaliador quando solicitado a revisar, junto ao pesquisador, a produção ora focalizada. Em reforço ao parecer anterior, retoma a justificativa de que “a conclusão não alcançou o propósito do texto, contribuindo para enfraquecer o processo argumentativo”. Dessa vez, porém, não mais menciona sobre a necessidade de o aluno apresentar soluções possíveis para os problemas evocados na esteira dos questionamentos iniciais. Havemos de convir, no entanto, que esse é, provavelmente, um modo de dizer que a conclusão não alcançou o seu propósito, no concernente ao fechamento/coroamento da discussão. Quanto ao propósito do enunciador do texto, dentro das limitadas possibilidades demonstradas pelo aprendiz, este foi alcançado. E não é outro o ajuizamento que faz o professor na emissão de seu primeiro veredicto: “O texto enfoca bem o problema, há coerência no tocante à argumentação. O ponto de vista está claro”. Com base na análise precedente, somos induzidos a reconhecer que o escritor-aprendiz demonstra até uma razoável compreensão sobre o modo de 224 funcionamento do discurso argumentativo escrito. Parece-nos, inclusive, mostrar-se consciente da presença do outro e de sua determinante influência em relação ao discurso que constrói, tanto que não se nega a “negociar” com seu interlocutor uma posição menos radical, optando por estratégias de refutação mais moderadas, a exemplo do movimento localizado de concessão e das perguntas retóricas, aludidos anteriormente. Também se constitui em uma prova dessa revelada sintonia que tenta estabelecer com o outro o recurso às aspas no uso particular que faz ao registrar a palavra guerra (l. 4-5). Tal como nos ensina Maingueneau (1997, p. 91), “as aspas constituem antes de mais nada um sinal construído para ser decifrado por um destinatário.” É supostamente contando com a conivência interpretativa de seu leitor que lança mão desse recurso para destacar o referido termo. Ao enunciar que o filme representa a “guerra” entre polícia e favela na tentativa de deter o tráfico de drogas [...] (l.4-8), o aluno emprega as aspas, intencionalmente, numa possível indicação de que, nesse contexto, a palavra utilizada apenas se aproxima do sentido almejado. Na verdade, em se desfazendo o implícito, cria-se a possibilidade de uma diferente atualização semântica: não se trata de um combate armado entre forças inimigas ou nações rivais; é certamente um conflito, que envolve, tanto quanto uma guerra, enfrentamentos, armas e morte, mas em situação e proporção diferenciadas. Por isso mesmo é que se justifica a utilização das aspas pelo autor, que, segundo parece, nesse caso específico, visa não só “proteger-se antecipadamente de uma crítica do leitor [...]” (MAINGUENEAU, 1997, p. 91) mas ainda instruí-lo no sentido de uma interpretação compatível com a sua perspectiva. Vale ainda ressalvar que essa presumida “maturidade” do aluno para manejar determinadas estratégias textuais, tendo por fim último agir sobre seu virtual leitor, não se respalda apenas nas pistas indiciárias assinaladas em seu texto. Manifesta-se ainda mais concretamente em sua própria fala, quando trata, por exemplo, durante a realização da entrevista, sobre a questão da influência exercida pelo avaliador, e do modo como procede para contornar essa ação interferente sem que isso venha a prejudicar sua produção: 225 [...] eu acho assim: eu acho que no momento que você se liga só no jeito que ele [o professor] vai avaliar, aí você se esquece das suas opiniões. Então, é bom sempre seguir suas opiniões... Só que não de qualquer jeito; não é só você seguir suas opiniões. Até numa atividade de classe, mesmo, acho que, no meu ponto de vista, assim... Eu faço botando as minhas opiniões, mas de um jeito que possa ser avaliado como um texto legal, bem feito (ALUNO ERNESTO, em entrevista à pesquisadora, dezembro de 2008, p. 25). Não obstante se façam perceptíveis alguns alcances a que chegou esse aprendiz, seu texto ainda se mostra repreensível no tocante à progressão discursiva: os parágrafos apresentam-se praticamente atomizados, impossibilitando o leitor de estabelecer, a princípio, inter-relações mais legíveis. Assim como estão construídos − não deixando perceber mais claramente os nexos −, afiguram-se como unidades de significação completa, podendo ser “facilmente destacáveis do contexto (corpo da redação), sem que o leitor se dê conta [de imediato] do processo de amputação” (MAMIZUKA, 1977, p. 42); a não ser que exercite seu raciocínio no sentido de estabelecer um vínculo com as perguntas retóricas do primeiro parágrafo, que recuperam, embora de uma maneira indireta, sua responsividade nos parágrafos sequenciais. Essa atomização, no entanto, passa despercebida na avaliação docente, numa indicação de que o esquema textual apresentado parece satisfatório ao professor. Pelo menos não lhe sucede desaprovar a maneira como o aprendiz processa a transição entre um parágrafo e outro, não formalizando as conexões necessárias à instauração da progressão discursiva, quer pela retomada de dados referenciais do parágrafo anterior, quer pela inserção de novos elementos em acréscimo ao dito. Mas vale ressalvar, numa outra direção, que essa falha não se manifesta no interior dos parágrafos. Para uma comprovação, basta revermos as relações anafóricas regularmente estabelecidas no segundo parágrafo, por exemplo, nas linhas 11 e 18. No tocante ainda à avaliação docente, julgamos interessante rever a notação sobre o “uso de clichê”, referente à expressão pessoas de bem (l.17). Nesse caso, não há dúvida de que seja essa uma expressão banalizada, de tanto que se repete em situações dessa natureza, em que se faz referência àquelas pessoas cuja conduta é irretocável. Não obstante a pertinência dessa observação, consideramos ainda prudente discutir com o aluno não só as razões da banalização do uso de formas assim cristalizadas mas também as virtualidades que a língua oferece para evitá-las, ou mesmo tornar o seu uso mais eficiente. Na situação em particular, não 226 nos parece desabonador o recurso à referida expressão, levando-se em conta o fato de que o próprio contexto temático quase que impõe essa chamada ao colocar o autor ante a inevitabilidade de ter de assumir uma visão maniqueísta entre o bem (os favelados inocentes) e o mal (os traficantes culpados). Sob essa perspectiva, julgamos prudente que o avaliador pondere sempre sobre a viabilidade de se mostrar mais (ou menos) transigente, a depender da circunstância. Nesta produção, teria sido bem mais proveitoso para o aprendiz discutir sobre a fragilidade da argumentação, que basicamente se constrói em torno de uma mesma ideia, que se vai redimensionando em tom redundante, sempre em volteios circulares; sobre a funcionalidade da paragrafação, em termos da importância de se operar uma transição apropriada entre os parágrafos, estabelecendo o equilíbrio necessário entre o dito e o por dizer, o que viabilizaria a possibilidade de instaurar uma progressão discursiva, que franqueasse a recuperação da unidade de sentido. Acreditamos que esses esclarecimentos dotariam o aprendiz de uma percepção mais apurada em relação àquilo que, realmente, se faz imprescindível à produção de um bom texto, apagando as noções meio confusas e pouco pertinentes, que revela haver assimilado sobre essa questão, como deixa transparecer em seu discurso: Eu acho que ele também cobra muito de gramática, porque quando eu fiz esse texto, agora, sobre a Lei seca, que todo mundo aqui fez, ele, pelo menos, não reclamou do texto, das opiniões, não. Só que eu errei muito na gramática. As minhas notas foram lá pra baixo [...]. Porque, por exemplo, teve um dos alunos, lá da sala, que ele fez um texto, que ficou legal e tudo; mas, por um erro de gramática, um mísero erro assim, ele ficou com 9,0. Aí eu penso, assim, por exemplo: mesmo que você faça um texto bom, por um erro besta, às vezes, você pode ter a nota comprometida [...] (ALUNO ERNESTO, em entrevista à pesquisadora, dezembro de 2008, p. 26). 5.3.1.5 Texto n. 1 (aluno Bento) 227 228 5.3.1.6 Texto n. 2 (aluno Bento) 229 230 231 Produção discente texto n. 1 (aluno do professor Jonas Título (?) Autor: Bento Fernandes da Silva Em observância à proposta de produção, o aluno encaminha sua escolha na direção da primeira alternativa: as drogas devem ser liberadas para pôr fim à violência urbana? E isso fica bem evidente já nas primeiras linhas do texto, em que esse questionamento, reproduzido quase na íntegra, não só afiança sua preferência temática mas ainda concorre para a emergência do posicionamento assumido pelo sujeito-aprendiz, que, de modo peremptório, nega a viabilidade de serem as drogas liberadas, inclusive representando a voz do coletivo, ao afirmar que essa pergunta “ecôa [sic] na mente do cidadão brasileiro” e que não há outra possibilidade de respondê-la: “A resposta desta pergunta é não!” (l. 1-2 e 4-5) Certamente, não se verifica, nessa produção, uma absoluta sintonia com as solicitações em pauta na proposta, considerando-se, a princípio, o fato de o aluno haver imergido, de imediato, na discussão sobre as drogas, sem fazer qualquer remissão ao ponto de origem das temáticas em concurso (o filme “tropa de elite”), e também haver desconsiderado a recomendação: Não se esqueça de dar um título ao seu texto, diretamente relacionada com a estrutura composicional do artigo de opinião, gênero em que se deveria configurar o texto a ser produzido. Embora isso pareça caracterizar um eventual “descuido” por parte do produtor, no que diz respeito ao devotamento de uma atenção especial à proposta de produção a fim de não incorrer num desvio de percurso que pudesse, indevidamente, ser tomado como incompetência para responder consoante as expectativas, não se constitui em uma falha tão desabonadora. Afinal, o aluno opta por um dos temas e tenta discorrer sobre ele. É bem verdade que apresenta uma argumentação pouco consistente para sustentar seu ponto de vista de que as drogas não devem ser liberadas. No entanto, não podemos afirmar, de maneira mais incisiva, como o faz seu professor, que “a argumentação não é condizente com o ponto de vista”, pois este, a nosso ver, se expressa de forma clara; e o aluno até constrói um processo argumentativo pela convocação do argumento de que a legalização, contra a qual se posiciona, caso, de fato, se torne definitiva, só irá fortalecer a ação dos traficantes, os quais, tendo sua 232 atividade legalizada, poderão lucrar ainda mais. A insistência nessa ideia (pouco comum, e até avessa à tese dos defensores da legalização, que se baseiam na crença de que basta legalizar as drogas e, consequentemente, o mercado de drogas para termos a desmobilização do crime organizado e da rede associada ao tráfico), que, em termos parafrásticos, reitera-se, essencialmente, no segundo e terceiro parágrafos do texto, termina por enfraquecer sua argumentação, quase reduzida à fragilidade de um mesmo argumento, nutrido por uma ideia um tanto redundante. Na devida proporção, isso, por certo, também contribui para que se infirme a progressão discursiva, acentuando a atomização dos parágrafos, um problema não contemplado na avaliação docente. Na perspectiva da defesa assumida pelo aluno, entendemos que sua argumentação é bem condizente; todavia, pouco convincente, e mesmo infundada aos olhos dos adversários. É provável que o professor, inclinado à aceitação da tese dos defensores da legalização das drogas, tenha-se mostrado vulnerável ante essa “inconsistência argumentativa” (sob seu ponto de vista), tendo, por essa razão, julgado o texto como sendo globalmente incoerente. A probabilidade a que aludimos ganha força quando constatamos que é justamente no segundo parágrafo que o professor chama a atenção para o problema de incoerência (l. 12 a 21). Tal como assinalado, nesse ponto do texto, pareceu-nos que o avaliador fazia remissão a uma incoerência localizada, bem pontual. Mas essa impressão é contrariada por uma observação feita por ele em sua apreciação final: “A incoerência, no seu artigo, é global”. Essa é uma sentença bem perturbatória para um aprendiz. Pode, mesmo, levá-lo a uma desmotivação por sentir-se incompetente para expressar suas ideias de modo compreensível; afinal, seu texto está totalmente incoerente. É lógico que o professor não se deve constranger por ser obrigado a fazer apreciações pouco lisonjeiras ao aluno; em contrapartida, deve acautelar-se para não emitir julgamentos assim contundentes sem a real certeza de que dispõe de argumentos apropriados (e de provas concretas) para elucidar todas as constatações efetuadas. Também não pode esquecer que os discursos mostram-se, em princípio, “caracterizados por um significado global ou [macroestrutural], que formaliza o tema ou tópico do discurso como um todo” (DIJK, 2004, p. 69-70). Nesse sentido, para que se possa julgar um texto como sendo globalmente incoerente, é preciso que não se faça perceptível 233 neste uma macroestrutura semântica, ainda que fragmentária, como nos esclarece Dijk (2004). Sob essa orientação, somos induzidos a acreditar que, impressionado com a visão da macroestrutura semântica fragmentária em que se apresenta o texto deste aluno, o professor emite seu parecer avaliativo. A restrição imposta ao veredicto docente (“A incoerência, no seu artigo, é global”) tem sua justa causa no entendimento de que “a avaliação deve acolher o aluno em seu desenvolvimento (AMARILHA, 2011, p. 193, grifo da autora). É com o aval desse pensamento que não podemos conceber outra forma de avaliar senão envolvendo o aluno nesse processo, e se implicando o professor como cúmplice do seu [do aluno] sucesso e também do seu fracasso, a fim de não pôr em risco uma futura e, quiçá, promissora interlocução. Entendemos, em deriva, que a solução mais viável a fim de predispor o sujeito-aprendiz a envolver-se no processo de sua autoavaliação, é favorecer o diálogo, que o professor deve tentar abrir, antes “[...] mostrando o lado positivo [sempre há algo], pois uma pessoa não se envolve em uma mudança se estiver fragilizada por retornos negativos” (CAMPANALE et al., 2012, p. 211, grifo da autora), como parece suceder, quase frequentemente, com esse aprendiz, segundo ele próprio revela: Eu sempre refaço, mas não entendo [...] É assim... Mesmo que eu não concorde com uma coisa, assim, tipo... Ele está variando, certo? Aí, mesmo que... Geralmente, eu faço o texto do meu ponto de vista. Agora, quando corrige e tem aquele erro, aí eu pergunto, mesmo que eu não concorde com aquilo. Ele não dá argumento nenhum que me satisfaça; de jeito nenhum! [...] Aí, eu tenho que, querendo ou não, me submeter. Não é sempre, mas em alguns momentos... No mínimo... Isso para poder aumentar a nota. No caso, isso acontece comigo (ALUNO BENTO, em entrevista à pesquisadora, dezembro de 2008, p. 31). “Eu sempre refaço, mas não entendo”. “Aí, eu tenho que, querendo ou não me submeter”. “Isso para poder aumentar minha nota”. Em todas essas falas, o aprendiz deixa transparecer seu desânimo no que diz respeito à aprendizagem sobre o texto escrito. Essa atitude negligente (?) pode estar relacionada a uma resistência à metodologia em curso, que, sob seu ponto de vista, deixa as aulas bem monótonas: “Chega, pega uma folha para ler, resolver e acabou... É um negócio muito rápido! É um negócio que não chama sua atenção para fazer aquilo. Até 234 agora, nenhuma atividade me dá satisfação de fazer” (ALUNO BENTO, em entrevista à pesquisadora, dezembro de 2008, p. 15). Entendemos a dificuldade que deverá enfrentar o professor para lidar com uma situação assim desafiadora no âmbito do ensino-aprendizagem do texto escrito; ainda mais quando o aluno revela-se avesso ao gosto pela leitura: “Eu não gosto de ler. Só leio quando estou sendo obrigado; quando é um trabalho. Quando passam um livro... Eu só leio se for assim. [...] E olhe lá!” (ALUNO BENTO, em entrevista à pesquisadora, dezembro de 2008, p. 4). É, presumidamente, uma boa razão para justificar a abordagem pouco reflexiva construída em seu texto, numa demonstração de que desconhece (certamente, por falta de leitura), a proposta de legalização das drogas em sua fundamentação argumentativa e até os argumentos adversários para contrariar a defesa dos proponentes. Não é diferente a impressão que tem o professor sobre esse aluno. Isso se confirma na sessão de revisão das avaliações, em que se fazem os necessários esclarecimentos à pesquisadora acerca das interferências praticadas sobre os textos já devidamente julgados. Para o professor, esse aprendiz poderia ter obtido melhor êxito se houvesse tirado proveito do material de leitura suplementar, que, com toda certeza, daria o suporte requerido para construir sua argumentação. Além disso, explicita que a incoerência apontada em seu texto verifica-se em nível da relação de causa e consequência, o que, a seu ver, foi o problema que mais comprometeu a defesa do ponto de vista, uma vez que suas justificativas não se fizeram pertinentes. Nessa mesma linha de “recriminação” das falhas, trata da ausência do título e dos deslizes gramaticais. No concernente “aos problemas de norma gramatical”, a que o professor faz referência, e até destaca no texto no intuito de chamar a atenção do aluno para evitar a reincidência do erro assinalado, interrogamo-nos quanto ao fato de ele, nessa mesma sequência textual (l. 5-10), corrigir a falha na flexão da forma verbal poderam (em vez de poderão) e deixar passar despercebidos outros problemas de aproximada natureza: iria em vez de irá (l. 7), também em nível da coerência temporal; e der em vez de derem, em nível da concordância verbal. Sem o benefício dessas “correções”, provavelmente o texto retornará tal qual numa segunda versão. O que não se repetirá, com certeza, em relação aos referentes textuais desta (l. 5); destas (l. 15); disto (l. 21) e isto (l. 23 e l. 33), sobre os quais o professor fez questão 235 de arbitrar, sobrescrevendo suas respectivas formas convencionais de retomada anafórica: dessa, dessas, disso, isso. Nada contra esses apontamentos, que devem ter o seu registro; mas seria bem mais interessante, e, por que não dizer, bem mais produtivo haver orientado o aprendiz quanto ao emprego do anafórico eles (l. 10), que poderá, numa leitura mais perspicaz, derivar gracejos dos mais espertos, no sentido de enxergarem viabilidade na interpretação de que os bandidos é que iriam proteger o cidadão; não, ao contrário, a polícia e o governo, conforme proposta de leitura autorizada pelo texto. Essa é uma boa oportunidade para um trabalho esclarecedor sobre as muitas possibilidades de dizer que a língua oferece a seus usuários a fim de livrá-los de tais embaraços e evitar o provável esforço cognitivo que se obrigará o leitor a fazer para interpretar a informação de maneira coerente. Consideramos ainda pouco procedentes dois registros reparatórios feitos pelo professor: uma reprimenda às marcas da oralidade na escrita, o que, sob sua ótica, emprestou à linguagem usada pelo aluno um caráter muito informal. Como a observação coloca-se de modo abrangente, fica difícil saber exatamente a que registro de linguagem essa reparação se aplica; mesmo porque não conseguimos detectar tais ocorrências em qualquer parte do texto. Igual estranheza causa-nos a indicação do uso de clichê referente ao emprego da expressão cidadão de bem (l. 26). Não concebemos, nos limites do que alcança nossa compreensão sobre esse modo de dizer, a referida expressão no rol das estereotipias vulgarizadas e decrépitas pela ação do tempo/do uso. Além disso, entendemos que, no contexto em que se insere, contribui positivamente para a construção do sentido pretendido. Em contrapartida, vale a pena atentar, nesse mesmo parágrafo, para a ausência de um sinal de interrogação, fundamental para caracterizar a formulação de uma pergunta retórica implicada na seguinte sequência: “[...] e como ele poderia dar segurança ao cidadão de bem, se já está mais do que provado que as armas usadas pelos bandidos superam e muito o armamento da polícia [?]” (l. 25-29). Seria conveniente, nesse caso, orientar o aluno sobre o funcionamento dessa estratégia argumentativa, cuja força de convencimento está justamente no fato de carregar em sua estrutura composicional a responsividade, que simula buscar no outro, o virtual leitor. No último parágrafo, merece reparo a alegação inicial: “Temos todos os motivos possíveis para ser contra a liberação das drogas” (l. 31-32), considerando- 236 se o perceptível exagero dessa afirmação em confronto com uma argumentação sustentada por justificativas bem escassas. Também não nos passa despercebida a ocorrência de uma incongruência semântica na sequência: “O que deve ser feito é combater este acontecimento de duas formas [...]” (l. 33-35). A impropriedade registra-se no emprego do verbo combater relacionado a acontecimento. Não se trata, efetivamente, de uma combinação lógica. Como é possível combater um acontecimento? Decerto, o propósito do aprendiz era referir-se ao tráfico. Entretanto, não alcança tal intento; e se não contar com uma ressalva do professor, num caso desses, continuará sem desenvolver essa percepção; assim como não aprenderá que, depois de dois pontos, não se usa letra maiúscula, um deslize cometido numa das sequências do primeiro parágrafo (l. 3) e do último (l. 35), não assinalado pelo professor-avaliador. Diante do posto e do pressuposto, não nos resta senão renovar o alerta aos professores-avaliadores no sentido de se absterem de ler/avaliar os textos de seus alunos como um produto acabado, derivado “de uma codificação realizada pelo escritor a ser decodificado pelo leitor”, de quem não se exige, nesse processo, muito além do conhecimento desse código. “Nessa concepção de texto, [evidentemente], não há espaço para implicitudes, uma vez que o uso do código é determinado pelo princípio da transparência: tudo está dito no dito [...]” (KOCH; ELIAS, 2009, p. 33). Um pensamento assim equivocado, alimentado pela compreensão de que vale o que está escrito, do modo como se o apresenta, pode-se reverter em sérios prejuízos aos aprendizes, considerando-se o fato de que estarão sujeitos a uma avaliação pouco promissora, pois que orientada por “uma visão situada não além nem aquém da linearidade, mas centrada na linearidade” (KOCH; ELIAS, 2009, p. 33). Sob essa perspectiva, acreditamos que os aprendizes (entre os quais se inclui este aluno) têm ainda um longo caminho a percorrer em favor de uma proficiente aprendizagem sobre como produzir um texto escrito. Que não se percam nessa caminhada! 5.3.2 Textos dos alunos da professora Margarida 237 5.3.2.1 Texto n. 1 (aluno Eduardo) 238 239 5.3.2.2 Texto n. 2 (aluno Eduardo) 240 241 242 243 Produção discente texto n. 1 (aluno da professora Margarida) Título: Financiadores do crime Autor: Eduardo Braga Numa demonstração de que compreendeu bem a proposta de produção, o sujeito-escritor começa seu texto cumprindo as primeiras diretrizes: situa a fonte polemizadora: o filme tropa de elite; seleciona uma das temáticas alternativas e principia a discussão, encabeçada por um título que já direciona a assunção de um posicionamento, na medida em que se propõe “denunciar” quem, de fato, responde pelo financiamento do crime abominável do tráfico de drogas. Nessa perspectiva, o título funciona, mesmo, como um dispositivo de entrada para o texto, já que “projeta expectativas a respeito do seu conteúdo” (TRAVASSOS, 2003, p. 57). É bem o germe de uma resposta afirmativa à questão com a qual se enuncia a temática selecionada: o consumidor de drogas é tão culpado quanto o traficante? Para esse questionamento, apresenta uma pronta resposta: “As opiniões oscilam entre o ‘sim’ enfático e o ‘não’ protetor” (l. 6). Ao abrir o parágrafo com esse enunciado, o aprendiz estabelece a relação semântica com o parágrafo anterior, em que se formula a questão temática desencadeadora da discussão. A proposição, que então se constrói, já anuncia um sujeito produtor com uma visível capacidade para mover-se no campo lexical e semântico da língua, tomando a decisão mais acertada, tanto no plano da seleção quanto no plano da combinação: oscilar entre o sim enfático e o não protetor. Em contrapartida, é também nesse segundo parágrafo que o autor revela sua inabilidade no gerenciamento das vozes convocadas para compor o processo de interlocução que se instaura em seu texto. Visando imprimir uma maior credibilidade a seu dizer, ele abre espaço para acolher outros discursos. Numa primeira investida, recorre à opinião do personagem-protagonista do filme − o Capitão Nascimento, cuja fala é assim reproduzida: “Ele diz em uma das cenas do filme que, segundo as palavras da revista Veja, ‘o playboy que fuma m cigarro de maconha é responsável por um traficante abatido pelo Bope’” (l. 8-11). O fragmento em apreço só reforça a convicção de que esse sujeito-autor não consegue ser bem-sucedido em seu intento, porque, certamente, não detém o necessário conhecimento sobre os modos de citar o discurso alheio. Essa lacuna em 244 seu aprendizado torna-se perceptível em sua tentativa de inserção da voz do personagem (o capitão Nascimento), que é relatada de uma forma um tanto híbrida, na medida em que se transmuda, no processo de formalização, insinuando-se, a princípio, como um discurso indireto, que se deixa atravessar por uma modalização em discurso segundo (segundo as palavras da revista veja), e se orienta para uma proposição em discurso direto, que, em se recuperando o querer dizer desse autor, se constitui, efetivamente, na parte nuclear do discurso indireto antes iniciado. Esse visível emaranhado de vozes − em que se confunde, inclusive, a origem enunciativa – cria uma dificuldade para o leitor porque lhe exigirá (dado o nível de complexidade dessa construção) um maior esforço cognitivo no processamento da leitura. Ainda no âmbito dessa questão, registramos mais uma ocorrência de similar natureza: no início do terceiro parágrafo (“Afirmar que um consumidor de drogas não tem culpa no tráfico porque é um viciado e não tem como mudar isso é, no mínimo, ridículo” – l. 16-18), atesta-se a manifestação de uma voz, cuja opinião se mostra claramente adversa à do sujeito-autor, mas não é enfrentada com a devida propriedade, à falta de um organizador textual que cumpra a função de encetar o movimento refutatório, introduzindo essa voz, ou mesmo se preste a realizar a passagem desta, devolvendo ao autor o poder de reinstituir a orientação argumentativa por ele determinada. Reconstituindo o percurso argumentativo, consideramos pertinente pôr reparo em algumas situações. Numa primeira visada, destacamos, no conjunto das vozes em concurso, a ocorrência de um argumento de autoridade (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996) em: “Se a voz do povo for mesmo a voz de Deus, então atrevo-me a dizer que Deus diz que ele tem razão” (l. 11-12). Escudando-se na autoridade divina, o autor acredita estar protegido de eventuais contestações à ideia, por ele defendida, de que os consumidores são também culpados pela manutenção do tráfico de drogas. É sob o patrocínio dessa autoridade suprema que completa seu “circuito argumentativo”, fazendo ancoragem em dados estatísticos, com que tenta validar seu ponto de vista. Em uma nova consideração sobre a questão em causa, faz-se necessário esclarecer a problemática construção do argumento: “85% dos expectadores [sic] do filme concordam com o capitão, segundo dados do Vox Populi, encomendados pela Veja.” (l. 12-14). Mais uma vez, transfere-se ao leitor o trabalho de deslindamento do 245 processo citatório, constatando-se que (embora de forma menos intricada que a ocorrência registrada entre as linhas 8 e 11), também nessa citação, se necessita construir um particular percurso de leitura para entender que os dados a que se faz menção resultam de uma pesquisa encomendada por Veja ao Instituto Vox Populi. Para alcançar esse nível de compreensão, o leitor precisará, por certo, recorrer a seu conhecimento enciclopédico, por que se deverá orientar a fim de obter a certeza de que é realmente dessa forma que esse processo funciona. Além disso, seria interessante explicitar, em acréscimo à informação de que 85% dos espectadores do filme concordam com o capitão, que esse percentual de espectadores remete tão- somente aos que foram entrevistados. É certo que um leitor bem mais proficiente não processaria de modo inverso essa informação; mas, como se sabe, o texto não deve sobrecarregar a mente dos leitores menos experientes com as sutilezas do não dito. Nessa mesma linha de ponderações, cabe a cobrança de uma referência mais completa à fonte geradora dos dados. O leitor deve ser informado sobre essa origem, até para poder imprimir-lhe a devida credibilidade. Vale esclarecer, quanto a esse pormenor, que os referidos registros nem mesmo constam em qualquer dos textos da coletânea a que tivemos acesso, e de que nos apropriamos para eventuais consultas. Todas as menções feitas por este sujeito-aprendiz estão contempladas numa das edições de Veja (2030 – ano 40 – nº 41, de 17 de outubro de 2007), objeto de nossa pesquisa on-line, a fim de descobrir a fonte subsidiária a que recorreu o aprendiz no trato dessa questão. Esse aparte revela sua real importância quando recordamos uma das falas proferidas por esse sujeito no decurso da entrevista concedida à pesquisadora: A gente tem que estudar por conta própria também; não é só seguir o que tá ali. Os exercícios, eu acho que também são bem produzidos, que instigam a gente a fazer, a desenvolver outras características que o tema propõe que a gente desenvolva, que a gente aprenda. Mas eu acho que é importante que a gente vá em outras fontes, até porque o material não fornece tudo sobre aquele determinado assunto. Se a gente quer saber, abranger um pouco de tudo do assunto, a gente tem que ir lá fora buscar outras fontes (ALUNO EDUARDO, em entrevista à pesquisadora, dezembro de 2008, p. 20, grifos nossos). Como vemos, trata-se de um aprendiz que não se conforma apenas com o “básico”. Sua busca não termina naquilo que lhe oferecem. Sua arguta percepção responde pelo bom desempenho demonstrado em sua produção, se formos bem 246 comparar com seus compreensíveis desacertos. Essa “boa impressão” causada pelo texto, numa leitura menos crítica, parece haver influenciado por demais o julgamento docente. É, pelo menos, a constatação que se deriva da atribuição da nota (9,5) e do próprio pronunciamento da professora (na sessão de revisão, que se realizou em presença da pesquisadora), que se declara insatisfeita por não haver dado dez à produção desse aluno, como merecia. Também reprova seu comentário final [“Muito bem! Acho que faltou apenas direcionar, com mais clareza, a condição do consumidor de poder aquisitivo mais alto”], porque entende haver exagerado na cobrança, uma vez que, nessa revisão, percebe que o aluno contempla essa abordagem e apresenta uma justificativa. Por último, ainda acrescenta, em favor de seu “novo parecer”, que este aluno é excelente. Podemos dizer que se apresenta, nesse caso, um típico exemplo do que Hadji (1994) denominou efeito de origem. Nessa concepção, “[...] as notas podem flutuar consoante as informações que o avaliador possui sobre o produtor. [...] uma mesma produção é julgada de forma diferente segundo a qualidade atribuída ao produtor [...]” (HADJI, 1994, p. 100). Acreditamos que uma das formas de atenuar esse efeito de origem é a adoção, por parte do professor-avaliador, de uma postura de amigo-crítico (DE KETELE et al. , 2012). Na verdade, consideramos ser essa a melhor maneira de olhar para o texto do aprendiz, porque, assim procedendo, o professor pode não somente levá-lo a uma conscientização de sua expertise mas também a uma compreensão do que ainda se lhe exige para alcançar patamares mais elevados em sua aprendizagem. Decerto, esta produção passou pela apreciação de um amigo crítico bem mais complacente; senão teria sofrido tantos outros reparos. O terceiro parágrafo, por exemplo, carece de alguma censura no que concerne à visível inconsistência da argumentação que aí se constrói. Comecemos por observar o trecho localizado entre a linha 18 e 22: “Claro que existe a questão do vício, mas não faltam centros de reabilitação para dependentes químicos. Falta de dinheiro para manter-se neles também não deve ser visto como um grande problema. Qual mãe, ao ver seu filho sofrer por causa das drogas, não faria o impossível para livrá-lo disso?” Temos, nessa passagem, uma análise bem simplificada, para não dizer ingênua. Enxergar o problema dessa forma é quase distorcer a realidade; podemos mesmo dizer que o mundo representado pelo texto chega a contradizer o mundo real, numa notável 247 discordância entre o que se diz no texto e o conhecimento estabelecido das coisas (KOCH; TRAVAGLIA, 1999). Mais simplista ainda é a análise que faz sobre os viciados e as soluções que oferece para que se possam livrar das drogas, como mostra o seguinte extrato: “Além do mais, se um usuário vende tudo o que possui para comprar a droga, por que ele não usa esse dinheiro para se tratar? Se [sic] libertar do vício depende diretamente da força de vontade do próprio viciado, antes de tudo. Mesmo sendo difícil abandonar o consumo, só contribui com essa guerra quem quer” (l. 26-31). Vê- se, novamente, quão ingênua é essa perspectiva analítica. Ora, como um sujeito que não tem força para recusar a droga, vai ter autonomia suficiente para “desviar” o dinheiro com que alimenta seu vício e investi-lo em um tratamento que o leve a abandoná-lo? É, sem dúvida, uma proposição revogável, em se aplicando ao mundo real. Assim ponderando, o autor, parece acreditar que já apresentou um bom arrazoado para fortalecer a tese de que os consumidores são tão culpados quanto os traficantes. É com essa convicção que ensaia os primeiros passos em direção à sua conclusão [“Por isso, é possível declarar que os consumidores da droga também têm culpa no cartório”] (l. 33-34), que culmina na repetição desse dizer: “Diante de tudo isso, não deve haver dúvida: consumidores de drogas são também culpados, sim. Tão firme e reiterada defesa não pode realmente deixar dúvida de qual seja o ponto de vista assumido por esse sujeito, que também se mostra bem ciente de sua responsabilidade enunciativa, nos termos de Adam (2008), a exemplo da expressão de uma subjetividade manifesta em: “Se a voz do povo for mesmo a voz de Deus, então atrevo-me a dizer que Deus diz que ele tem razão”, bem como do uso de estratégias que possam livrá-lo desse comprometimento, a exemplo do emprego da aspas protetoras em: “E ainda existem inúmeras ONG’s ‘boas’, as que não contribuem com o tráfico [...]” (l. 22-24); ou ainda no destaque à palavra “playboy” (l. 38), que, usada em tom pejorativo, é atribuída a um outro enunciador e a uma outra fonte de saber. Realmente, trata-se de um sujeito-aprendiz com potencial para alcançar muito além do que a competência textual que demonstrou: um bom repertório vocabular, um bom domínio do padrão frasal do português, um conhecimento sobre 248 o gênero solicitado, um visível conhecimento enciclopédico e um bom conhecimento linguístico, registrando, nesse quesito, mínimos deslizes: um erro de grafia em expectadores (l. 12); um problema de transição em nível da estrutura frasal no trecho compreendido entre a linha 23 e 24; um problema de colocação pronominal, na linha 28; e um desacerto entre o referente droga e o elemento de retomada anafórica -las em comprá-las (l. 34). Todos eles passaram despercebidos na avaliação docente, o que nos parece até bem aceitável se olharmos para esta produção, como supostamente deve ter olhado o professor ─ com “olhos de promessa”: este aluno promete! 5.3.2.3 Texto n. 1 (aluna Renata) 249 250 5.3.2.4 Texto n. 2 (aluna Renata) 251 252 253 Produção discente texto n. 1 (aluna da professora Margarida) Título: Males inseparáveis Autora: Renata Partindo da escolha de um dos recortes temáticos – o consumidor de drogas é tão culpado quanto o traficante? −, a autora constrói seu artigo de opinião atribuindo-lhe um título bem pertinente, se analisado à luz da compreensão de que os dois polos envolvidos, os consumidores e os traficantes, são culpados, na medida em que a sobrevivência de um coloca-se à mercê do outro, não havendo, nessa relação, uma representação do mal por uma via de mão única. Iniciando o processamento da leitura, deparamo-nos, logo no primeiro parágrafo, com uma construção frasal um tanto problemática. Em seu discurso, a autora afirma: “No Brasil as drogas são um problema que em sua maioria atinge as famílias mais desfavorecidas socioeconomicamente, porém não deixam [sic] de atingir as mais bem colocadas na sociedade. Consumidores e traficantes são responsáveis, não só, pelo aumento do consumo e do tráfico, mas também pelo aumento da violência” (l. 2-7). Na avaliação docente, assinala-se a existência de uma contradição entre as linhas 3 e 5. Se bem entendemos, na sequência visada, não se registra exatamente uma contradição; nem no plano interno nem na relação deste com a sua exterioridade. O mundo textual criado não contradiz o mundo real. Essa ressalva assenta-se em duas ponderações: em primeiro lugar, julgamos que esse visível deslocamento da expressão em sua maioria, a qual, assim posicionada, redunda em um desvio no nível da colocação, não implicará maiores consequências, quando do processamento da leitura, vez que, muito facilmente, se poderá recuperar o sentido latente; em segundo lugar, admitimos, como sendo legítima, a afirmação de que o problema das drogas atinge, em sua maioria, as famílias carentes, sem, no entanto, deixar isentas, dessa maléfica experiência, as famílias mais abastadas. Vê-se, nos termos dessa menção, que o sujeito-aprendiz mostra-se em sintonia com a verdadeira situação vivida pela sociedade: os mais desafortunados envolvem-se com as drogas, tanto atuando no tráfico (sendo vítimas dos verdadeiros traficantes) quanto assumindo o papel de consumidores. Enredada na crença dessa suposta contradição, a professora despercebe um problema no plano da organização sequencial, o que implica uma quebra da 254 unidade semântica no nível do parágrafo. Na sequência anterior (l. 2-5), trata do problema das drogas como uma epidemia social. Em uma linha de sucessão, faz um encaixamento não-progressivo a esse enfoque temático, na medida em que orienta o discurso para uma nova direção, sem estabelecer uma relação perceptível com a sequência antecedente. Isso se observa na posposição do seguinte fragmento, a ser, presumidamente, amalgamado à já mencionada sequência compreendida entre as linhas 2 e 5: “Consumidores e traficantes são responsáveis, não só pelo aumento do consumo e do tráfico, mas também pelo aumento da violência” (l. 5-7). E não vemos como justificar, nesse caso, a ocorrência de um processo de encadeamento por justaposição (KOCH, 2002), porque nem mesmo percebemos a possibilidade de realizar uma transição, intermediada por articuladores interfrásticos, entre os já aludidos segmentos textuais. “A percepção de uma sucessão (estrutura que chamaremos seqüencial, no sentido amplo do termo) é inseparável de uma compreensão sintética das partes e do conjunto que elas formam” (ADAM, 2008, p. 254, grifos do autor). Assim sendo, não há outra maneira de analisar essa “porção” de texto senão como uma colagem de discurso, visivelmente desarticulado de seu arcabouço semântico. Nesse mesmo parágrafo, também passaram despercebidas, na avaliação docente, mais duas ocorrências carentes de um exame mais atento: a flexão errônea da forma verbal deixam (l. 4), um descuido, por suposto, devido ao fato de se confundir sua concordância com a palavra drogas, em vez de ajustá-la à flexão da palavra problema, com a qual se relaciona em nível da sintaxe frasal; e também o emprego despropositado de duas vírgulas, sendo uma após a palavra responsáveis (l. 6) e outra após a palavra tráfico (l. 6-7); neste último caso, quebrando a relação semântica de adição estabelecida por um conector de natureza continuativa (não só ... mas também). Avançando a leitura em direção aos demais segmentos textuais, vemos surgir a possibilidade de uma reformulação saneadora, pelo estabelecimento de uma aliança entre as partes que representam, formalmente, o segundo e o terceiro parágrafo e a parte “refugada”, no primeiro parágrafo (por impertinência ao conjunto sequencial a que foi associada), considerando-se, para esse feito, a existência de uma efetiva aproximação temática a servir de motivo para a instauração dessa nova 255 unidade semântica. Teríamos, então, como resultado desse processo de amálgama, a formalização do segundo parágrafo, sobre o qual ainda restaria fazer ajustes. No rol dessas reformas, a primeira providência seria a instauração de laços temático-coesivos entre as duas seções descontínuas: o segundo parágrafo, reformulado por meio da reestruturação sugerida, e o primeiro parágrafo, que, nessa nova arrumação, vai permanecer ainda desarticulado ao segmento que ora se lhe pospõe. O recurso a esse procedimento coloca-nos em sintonia com a concepção de que uma sequência (parágrafo ou sequência) deve ser percebida, antes de tudo, como uma sequência de temas. Essa ideia adquire ainda mais vitalidade se enunciada nos seguintes termos: “Todo texto é entendido em uma tensão entre coesão (ligada à estrutura temática, à conexão e à concatenação dos temas sucessivos) e progressão” (ADAM, 2008, p. 97, grifos do autor). Em retorno aos parágrafos formalizados como segundo e terceiro, na ordem linear do texto, flagramos mais uma observação docente. Dessa vez, alerta-se para a inserção de uma sequência, que, à visão do avaliador, apresenta-se “solta” em relação às demais com que deveria articular-se. Esse apontamento corresponde, conforme deduzimos (já que estão assinaladas as linhas 10 e 11), ao extrato [...] Porém temos que avaliar os dois lados da moeda [...], com que o sujeito-aprendiz encerra a sequência: “Os usuários são os maiores patrocinadores do tráfico, tanto de drogas quanto de outros produtos como, por exemplo, CD’s e DVD’s piratas. Porém temos que avaliar os dois lados da moeda” (l. 8-11). É, certamente, uma observação pertinente. Assim posta, parece, de fato, desarticulada. No processo de reformulação sugerido, no entanto, poderia ganhar um sentido substantivo se passasse a encerrar o parágrafo em seu todo, uma vez que, nesse caso, já teria contemplado os usuários e os traficantes, culpabilizando-os igualmente, e então abriria a concessão para acolher o ponto de vista adversário, numa indicação de que sua opinião admite controvérsia. Nesse ponto da avaliação, teria sido proveitoso esclarecer a esse aprendiz a impropriedade de se associarem drogas, CDs e DVDs sob uma mesma âncora lexical: tráfico. É bem verdade que se trata, em ambos os casos, de um comércio ilícito: pirataria, em relação aos DVDs e tráfico, no que concerne às drogas. Acreditamos que houve, por parte da autora, um descuido no processo de leitura de uma opinião expressa por Isabela Boscov, numa reportagem da Veja (de 17 de outubro de 2007), a que ela deve ter tido acesso 256 (como material subsidiário da produção textual), em que, na página 86, Boscov, após haver tratado do episódio de apreensão dos DVDs piratas de Tropa de Elite, assim enuncia: “Pirataria é crime organizado, tanto quanto o tráfico de drogas”. Ainda na esteira das intervenções que julgamos necessárias na avaliação deste texto, convém uma reparação (de menor monta) de dois casos de regência: um referente ao uso de um mesmo complemento associado a verbos de regências diferentes, como se pode observar na sequência: “Os traficantes são culpados por contribuírem e buscarem o aumento do consumo [...]” (l. 12-13); e outro, no parágrafo seguinte, envolvendo a ocorrência de uma crase, não assinalada, em: “Com o tempo, quando certos consumidores tornam-se traficantes facilitando o acesso as drogas [...]” (l. 16-17). Quanto a essa chamada, havemos de esclarecer que o “erro” focalizado no primeiro caso, à satisfação do rigor gramatical, segundo nos alerta Bechara (2001), deverá ser objeto de correção, considerando-se o fato de termos, na sequência em pauta, verbos sob o regime de transitividade diversa, o que demanda o recurso (ou não) ao uso da preposição necessária para o devido encaixe do objeto/do complemento. Ainda assim, inclinamo-nos a seguir a orientação do autor, em sua última ponderação: não se verificando “uma situação de ênfase ou de encarecimento semântico de cada preposição [...], a língua dá preferência às construções abreviadas que a gramática insiste em condenar [...]” (BECHARA, 2001, p. 570). Considerações à parte, o mais viável a fazer é colocar o aprendiz a par dessa versão, esclarecendo-lhe, entretanto, que, na escrita, não devemos abusar da transigência. Essa última consideração vale especialmente para casos como os que se registram no quarto e no sexto parágrafos. Analisemos o seguinte trecho, extraído do quarto parágrafo: “Com o tempo, quando certos consumidores tornam-se traficantes facilitando o acesso as drogas para novos consumidores, podendo levá- las até mesmo para dentro das escolas” (l. 16-19). Nesse período, instaura-se uma incompletude semântica. O autor parece haver esquecido o que ia dizer, ou mesmo acredita já haver dito o que pretendia. Esse, sim, é um problema de maior gravidade, pois o período se torna incompreensível. Numa tal circunstância, seria suficiente o professor solicitar ao aluno para que ele relesse o que havia escrito. Ele próprio chegaria à descoberta de que não disse o que pensou, deixando o sentido de sua comunicação bem comprometido por conta dessa falta de percepção. 257 Provavelmente, esse alegado problema de incompletude semântica tenha contribuído para que o avaliador tomasse o período subsequente como “solto”, do resto do conjunto, que, formalmente, compõe o parágrafo em revisão. Realmente, há uma desarticulação bem visível entre os segmentos dessa composição. Até mesmo o comentário final parece despropositado (“Pode até parecer um fato engraçado, pitoresco, mas é a realidade presente no nosso país” – l. 20-22), considerando-se ser essa informação de amplo conhecimento público. No sexto parágrafo (remetendo à chamada prévia), o avaliador realiza uma correção, sugerindo a inserção − em próclise − do pronome se, mas esquece de rever a flexão da forma verbal tornasse (l. 27), provocando uma incoerência de caráter temporal, como podemos verificar analisando a sequência por inteiro (na qual também se registra um problema de ortografia na palavra impregnado (l. 29): “Com base nisso, é difícil culpar somente um, porém, quando o usuário [se] tornasse também traficante, vejo que este é o maior culpado por esse problema que está empreguinado nas entranhas da sociedade brasileira” (l. 26-30). Conforme constatamos, a avaliação da professora deixou ainda muitas reparações a serem feitas. Apesar disso, não podemos afirmar que sua percepção não tenha alcançado além das marcações (por vezes pouco procedentes) deixadas no texto. Isso ponderamos tendo em vista o comentário avaliativo expresso por ela quando solicitada a revisar sua avaliação na presença da pesquisadora. Segundo seu parecer, o texto ora focalizado apresenta um ponto de vista explícito; todavia, as justificativas dadas em favor desse ponto de vista não se fizeram consistentes. Reconheceu também que não se verifica, nesse texto, uma verdadeira progressão discursiva, uma vez que sua unidade de sentido foi bastante afetada pela reiterada fragmentação das ideias. Sem dúvida, trata-se de uma apreciação bem mais reveladora do que a observação registrada ao final da produção desta aluna: “Foi uma pena não ter desenvolvido adequadamente os argumentos: como se dá a interdependência entre traficante e usuário? Seu texto também finda bruscamente. O leitor tem a impressão de que falta a conclusão. Releia-o e avalie-o” (PROFESSORA MARGARIDA). Na realidade, a conclusão existe; e até além da mera formalização em parágrafo. O que, pressupostamente, orientou para essa interpretação pode ter sido o fato de se reproduzir aí uma quase-réplica da ideia já apresentada no quarto parágrafo. 258 Apesar de tudo, não recriminamos a professora por haver emitido um parecer tão mais ameno, considerando, principalmente, o fato de que esta era a primeira produção “verdadeira” desta aluna, vez que, como chegou a confessar, na escola em que estudou, “não havia nenhum incentivo, nem à leitura e nem à escrita” (ALUNA RENATA, em entrevista à pesquisadora, dezembro de 2008, p. 12). E mais ainda assumimos essa tendência não recriminatória, quando constatamos que esse acolhimento (não indo ao exagero da reprimenda que visa apenas desqualificar), pode, certamente, funcionar como um incentivo para esta aluna, que se declara afeita ao ato de escrever: “Eu gosto muito de escrever. Apesar de não ter o hábito da leitura, eu gosto muito de escrever. Às vezes, nem assim, não vou tão a fundo no que eu estou escrevendo, mas aquilo vai fluindo e eu vou escrevendo” (ALUNA RENATA, em entrevista à pesquisadora, dezembro de 2008, p. 16). Já se tem, então, um bom começo: uma bem disposta escritora-aprendiz. Resta ajudá-la a atravessar, com segurança, querendo dizer, com a devida sabedoria, esse terreno tão movediço da produção escrita. Pode ter sido esta a intenção da professora: auxiliar, de modo acolhedor, a aluna nesta travessia. 5.3.2.5 Texto n. 1 (aluno Ronaldo) 259 260 5.3.2.6 Texto n. 2 (aluno Ronaldo) 261 262 263 Produção discente texto n. 1 (aluno da professora Margarida) Título: Realidade fantasiosa Autor: Ronaldo Esta produção, a partir do próprio título, desafia o leitor à escolha de caminhos interpretativos. O primeiro impasse é provocado, logo de início, justamente na tentativa de decifração do título, que resta malsucedida ao confrontar-se com tão enigmática construção: Realidade fantasiosa. O parágrafo de abertura, por sua vez, representa uma visível sucessão de problemas: confunde-se o lema do BOPE – “Missão dada é missão cumprida” – com um subtema do filme Tropa de Elite; confunde-se o uniforme do BOPE (farda preta) com a identidade desse batalhão de operações especiais (em: BOPE, homens de preto); emprega-se, indevidamente, os pronomes isto (numa retomada anafórica), onde (numa ocorrência em que não se faz remissão a lugar) e se, desalojado de sua posição convencional pelas normas de colocação; por fim, define-se a violência urbana como uma realidade fantasiosa abordada no filme. Por que é uma realidade fantasiosa, se o próprio autor, no parágrafo seguinte, diz que “a violência é algo presente na vida de todos nós”? (l. 6). Só nos cabe pressupor que, em seu julgamento, o filme mostra uma realidade apenas ficcional, mesmo! Também nos parece cabível a suposição de que essa ideia encontra seu veio numa das leituras prévias à produção. Nossa suspeição transmuda-se em certeza ao verificarmos que, em um dos textos da coletânea, de autoria de Vito Giannotti (anexo 07), se faz alusão à ideia de que o filme não condiz com a realidade. Acreditamos, tomando por suporte o ponto de vista assumido pelo sujeito-aprendiz no tratamento dessa questão, que este, espelhando-se no artigo de Giannotti, tentou reproduzir o mesmo pensamento desse autor, que, em seu texto, assim se expressa: “[...] não venham me dizer que o filme refletiu a realidade. Não. Refletiu a parte da realidade que queria ver. A outra foi deixada no escuro e não vai ser vista por quem o assistir”. Vale ressalvar que não é somente esse o ponto de aproximação que assinalamos entre os referidos textos. Apurando melhor o confronto, constatamos que, em sua produção, o aprendiz não apenas se inspira no texto desse autor para criar o título (Realidade fantasiosa) mas ainda busca imitá-lo (sem grandes alcances, 264 é certo) assumindo algumas de suas ideias e o seu próprio estilo composicional. Os exemplos a seguir são o melhor atestado: Giannotti começa seu texto reproduzindo o refrão cantado pelo Bope em seus treinamentos: “Homens de preto, qual é sua missão? É entrar na favela e deixar corpo no chão”. De igual modo, o aprendiz inicia sua produção: “Missão dada é missão cumprida” (l. 2), um lema repetido por essa corporação ao enfrentar situações de risco. Na sequência, Giannotti afirma: “É nele [no refrão], que está a linha geral do filme que, independente das intenções do produtor e dos atores, é um hino ao BOPE (Batalhão de Operações Especiais que atua nas favelas do Rio). Neste refrão, está a mensagem central do filme”. O aprendiz, em sua proposição, bem similar a essa, assim se pronuncia: “Missão dada é missão cumprida, isto é o que está estampado como subtema do filme Tropa de Elite, onde conta-[se] a história do BOPE, homens de preto, cuja missão é lutar contra a violência urbana, realidade fantasiosa abordada no filme” (l. 2-5). E para além, de maneira um tanto desatenta, vai retomando uma ou outra passagem; em particular, as “frases de efeito” atribuídas aos “homens do BOPE”. Essa imersão na fonte em que se inspirou o aprendiz resultou em proveito efetivo para o processamento da leitura desta produção, na medida em que serviu para elucidar sequências textuais de dificultosa compreensão, ou ainda para conferir fundamento a certas presunções suscitadas no curso desta análise. Já no terceiro parágrafo, por exemplo, novamente recorremos a essa fonte em busca de respostas favoráveis ao entendimento da súbita intromissão de um novo recorte temático, sem que se evidenciasse o menor sinal de ligação possível com a abordagem antes encetada, o que, bem a propósito, é assinalado na avaliação docente sob o crivo: “falta de progressão discursiva”, uma observação, que, aliás, contempla o texto em sua quase totalidade. À exceção do que se registra entre os dois primeiros parágrafos, em que, tropegamente, se opera uma transição em prol da progressão temática linear (pelo recurso à reiteração de um mesmo item lexical (“Violência urbana é algo presente na vida de todos nós [...]”), não conseguimos vislumbrar, neste texto, senão uma notável desarticulação entre as demais partes, aleatoriamente justapostas, no intuito de compor uma unidade de sentido, que não se estabelece. Falta a esse aprendiz (e, certamente, se pode dizer isso em relação a uma significativa maioria dos 265 estudantes, assim envolvidos numa situação de produção) tomar ciência de que “todo enunciador encontra-se confrontado, a cada vez, com a questão do tema a escolher, como base do enunciado seguinte” (DANES, 1978 apud ADAM, 2008, p. 97). E não é apenas no processo de transição entre os parágrafos que se atesta essa ruptura da dinâmica discursiva. Também os encadeamentos frasais, no interior dos parágrafos, não se consolidam a contento. Analisemos, como exemplo, o terceiro parágrafo: “Hoje é muito discutida a questão da favelização, pois, para aqueles da elite, ‘basta ser pobre, de preferência negro, para ser, no mínimo, suspeito’, como mesmo gritou o capitão Nascimento: ‘homens de preto qual é sua missão?’, sendo respondido, com ignorância e falta de escrúpulos dos demais: ‘É entrar na favela e deixar morto no chão’. Será que isso, realmente, resolveria? A violência está presente, tão [-] somente, em cima dos morros? Os ‘favelados’ são os protagonistas de toda essa história? Ou será que existem, inescrupulosos policiais, inflassores [sic] das leis, que agravam tal situação?” A compreensão dessa sequência textual demanda um esforço cognitivo semelhante àquele que se impõe à decifração de uma charada. Colocamo-nos diante das informações, mas não conseguimos estabelecer as devidas conexões, dado o “desconjuntamento” das partes. E o mais embaraçoso, nessa busca pelo sentido, é o fato de, às vezes, termos frustradas nossas previsões ante pistas pouco funcionais, porque tão-somente assumem uma representatividade em nível formal, a exemplo do conector pois (l. 10), que não exerce qualquer função em termos da relação semântica que, pretensamente, deveria instituir, considerando-se que o prometido não se cumpre: o segmento posterior não é a justificativa que convém ao segmento que se lhe antepõe. Perde-se, aí, a noção de que os enunciados precisam estar articulados uns aos outros para fazer o texto funcionar. Não menos irrefletido é o procedimento de inserção do discurso alheio. Nesse quesito, constatamos que o aprendiz mostra-se inábil para gerenciar as diversas vozes que convoca a integrar o seu discurso, o que se revela, bem nitidamente, no trecho compreendido entre as linhas 10 e 15. Já finalizando esse parágrafo, como podemos observar na transcrição anterior, o aprendiz tenta valer-se da estratégia da pergunta retórica, numa sucessão de questionamentos, que tornariam bem substantiva a argumentação se servissem 266 estes à sustentação de um ponto de vista aí explicitado. Mas isso não ocorre, uma vez que o aprendiz assume (quando isso se dá) um posicionamento cambiante (embora, supostamente, tendente à afirmação de que a violência está presente na vida de todos sob variadas nuances), porque sempre à mercê do recorte temático em que, a cada vez, se enreda seu discurso, como bem reconhece a professora Margarida em sua última apreciação sobre este texto: “O seu posicionamento não ficou claro. As idéias também não foram desenvolvidas. Ex.: quais são os princípios fundamentais, citados no último parágrafo?”. Um parecer até mais ameno do que o comentário que fez durante a sessão de revisão na presença da pesquisadora, em que admite ser esta uma produção bastante problemática, porque seu enunciador não apresenta um posicionamento explícito; as ideias não se solidarizam; ao contrário, são colocadas aleatoriamente, como se o aluno não soubesse o que pretendia defender. A seu ver, ele “fala de tudo e não fala de nada. É tudo muito solto, não há o estabelecimento de relações semânticas entre os segmentos, de modo a instaurar uma progressão discursiva”. E muito mais há por dizer. Os dois últimos parágrafos, até onde pode alcançar nossa compreensão, contemplam uma profusão de recortes temáticos, considerando-se a desarticulação entre seus segmentos. O penúltimo parágrafo, que a professora Margarida sinaliza como sendo confuso, apresenta, além da visível “confusão” de ideias já sublinhada, uma incongruência semântica por demais inusitada (o que também não escapa à avaliação docente) no seguinte trecho: “Mas e os consumidores? São pessoas dotadas de um desprovimento de raciocínio, e que fazem deles próprios, a hipocresia [sic] em pessoa” (l. 22-24). Como é possível dotar alguém de desprovimento? Também nos soa estranha a referência a uma falta de investimento nos princípios fundamentais à qualidade de vida. É bem provável que nem mesmo um leitor bastante cooperativo possa encontrar uma via interpretativa que conduza ao entendimento dessa sequência; menos ainda ao estabelecimento de uma conexão possível entre os enunciados iniciais desse parágrafo, que se mostram visivelmente desarticulados entre si: “Policiais corruptos existem! As drogas estão aí, saciando a sede de seus escravos! A falta de investimento nos princípios fundamentais à qualidade de vida é algo real!” (l. 25-27). Mais complicado ainda é entender o questionamento derradeiro: “Enfim, de quem é a culpa?” (l. 28). Qual a orientação argumentativa aí velada? Pretende-se 267 culpabilizar quem? A resposta parece embaraçosa, vez que são vários os envolvidos nessa condenação, conforme pressupõe esse sujeito-autor em seu discurso: os policiais, os escravos da droga ou, como também alega, a falta de investimento nos princípios fundamentais à qualidade de vida. Talvez essa menção restrinja-se aos principais implicados, os alvos mais visados: os traficantes e os políticos. A estes últimos (os políticos), cabe, por certo, a responsabilidade maior e mais definitiva, em se tomando como veredicto a contundente insinuação de suas palavras finais: “o traficante comanda a favela, mas os políticos [,] governam o país” (l. 30-31). Cabe- lhes, pois, responder pelos desmandos na administração dos graves problemas (em especial, o do tráfico de drogas e o da violência) que afligem o povo brasileiro. Não resta dúvida de que esse sujeito-aprendiz precisa de orientações que o levem a descobrir-se em suas potencialidades, sempre alimentado pela crença de que é possível desenvolver uma melhor performance no processo do aprender a escrever, desde que se disponha à prática rotineira de exercícios de reescritura de seus textos, por meio dos quais se lhe apresentarão as muitas possibilidades discursivas de que, como sujeito de linguagem, poderá dispor para alcançar seu propósito comunicativo nas mais diversas situações de comunicação em que se lhe exija uma proficiente intervenção. Quanto a essa percepção, concedemo-nos razão para acreditar que até já se tenha desenvolvido nesse aprendiz uma certa consciência de que a reescritura é realmente o melhor caminho para aprender a escrever com proficiência (mesmo constatando o fato de que ele ainda considere, nesse processo de reescrita, uma validade pouco louvável de melhoria da nota), conforme deixa transparecer em seu pronunciamento: [...] com certeza é muito importante; até tirando pela primeira produção, porque depois que foi corrigido os erros, você vai tentar melhorar. No meu caso particular, no primeiro bimestre, ela deu a chance de refazer a redação depois que ela tinha corrigido, e minha nota melhorou, e as dos outros também (ALUNO RONALDO, em entrevista à pesquisadora, dezembro de 2008, p. 22). 268 5.4 ENTRECRUZANDO SABERES DOCENTES E DISCENTES Podemos começar este “confronto” com questionamentos básicos que, por si mesmos, já ensejam o rumo desta discussão: o que sabem (ou demonstraram saber) os professores? O que sabem (ou demonstraram saber) os alunos? E nesse jogo do ensinar-aprender, o que, presumidamente, os professores ensinaram, e o que, notadamente, os alunos aprenderam? Essa especulação, decerto, não busca os alcances do absoluto. Tamanha ambição seria até descabida aos olhos dos que lidam com as verdades estabelecidas no campo da argumentação, uma vez que se mostram estas, em sua própria essência, tão-somente verossímeis − e também tão provisórias quanto as verdades da ciência −, ainda que se apóiem em indícios bem reveladores, como os que, ao longo do processo analítico, fomos colhendo nas produções escritas pelos sujeitos da pesquisa. Neste percurso investigativo, professores e alunos escreveram, leram e avaliaram textos, podendo beneficiar-se da oportunidade de intercambiar saberes num fecundo processo de compreensão ativa e responsiva. Mas, como sabemos, nesse intercâmbio, as trocas nem sempre acontecem em regime paritário; mesmo porque a relação que se estabelece entre esses sujeitos, na situação de avaliação textual, funda-se numa crença “fiduciária, porque supõe no locutor [professor] um conhecimento e uma autoridade suficientes para tratar do objeto sob mira e no interlocutor [aprendiz] uma confiança no locutor para que a adesão se processe” (GERALDI, 1991, p. 200). Enxergando-se por esse ângulo, a responsabilidade do professor que se investe do papel de avaliador parece-nos imensurável. O sujeito-aprendiz “entrega- se”, por seu texto, ao poder de um árbitro, o professor-avaliador, em quem ele deposita toda sua confiança, acreditando estar, de fato, sendo julgado por alguém predestinadamente competente para avaliar sua produção. E isso não apenas porque vislumbra ser avaliado ao regalo de uma apreciação que, em tudo, lhe seja favorável mas, principalmente, porque alimenta a esperança de ver seu texto valorado à luz de critérios imparciais. Adotando-se essa perspectiva, não se abre espaços para enganos ou conivências; ao contrário, fortalece-se a confiança, que justamente se funda na explicitude das ações e na mediação consequente. 269 E nem é preciso ressalvar o fato de que, numa situação de avaliação do texto escrito, não será possível agir de modo diferente, sob pena de se incorrer em falso julgamento, o que não seria nada ético da parte de um educador. Se se pretende mesmo desenvolver a competência da escrita nos aprendizes, não se poderá negar-lhes a verdade; e essa deve ser dita com tanta clareza “que nenhuma finta, nenhum rodeio, nenhum jogo de cena ou artifício de palavras possa prevalecer contra ela” (CARVALHO, 1997, p. 18). Em outras palavras, mas se mantendo, em essência, nessa mesma linha de raciocínio, Geraldi (1991) constrói sua reflexão, com que também nos sintonizamos: Se o texto escrito pelo aluno [é] para ser lido, e se a leitura é mais do que simples ‘informação’ que se extrai do texto, mas efetivamente envolve o leitor, não [vemos] como um professor, leitor dos textos de seus alunos, possa ignorar tantas perguntas que as informações dadas pelo texto fazem surgir (GERALDI, 1991, p. 179, grifo do autor). É também esse o questionamento que nos colocamos, e que nos orientará nesse retorno aos textos dos professores e alunos, envolvidos nesta investigação, para, procedendo a um cotejamento entre os saberes revelados por esses sujeitos (em particular, aqueles saberes manifestos em suas produções escritas), podermos confirmar, esteando-nos na prova material, quais demandas emergidas dos textos dos aprendizes deixaram de ser, satisfatoriamente, contempladas pelos docentes em sua prática avaliativa; e quais dessas demandas, da mesma maneira, não se resolveram nas produções docentes. Considerando que, nas análises realizadas, já explicitamos, quase em sua totalidade, os problemas apresentados nas produções docentes e discentes, não nos repetiremos retomando, nesta abordagem, todas as observações, objetos dessa pauta que até então cumprimos. Nosso propósito de agora é tentar imprimir maior visibilidade à existência de uma real conexão entre o saber escrever do professor e o seu saber ler/avaliar o texto de seu aluno. Nesse empreendimento, levaremos em conta uma determinada categorização de problemas, revelados nos textos dos alunos, que não foram focalizados na avaliação docente, por serem estes, mais propensamente, passíveis de ocorrer também no próprio texto do professor. Pelas razões em causa, limitar-nos-emos a um exemplário menos exaustivo, porém significativamente substancioso como instrumento de demonstração. 270 Em cumprimento ao que nos propusemos com a realização deste confronto, procederemos, em um primeiro momento, a uma aproximação do texto do professor Jonas, com o qual serão comparados os textos de seus respectivos alunos, por ele avaliados. Essa mesma operação será realizada, em um segundo momento, com o texto da professora Margarida em confronto com os textos de seus alunos. Entre outros registros possíveis − em relação ao primeiro conjunto de textos ora contemplados −, sobressaem-se alguns que, em nossa percepção, merecem um novo aparte nesse confronto. Sob essa mira, colocamos o título, uma das partes de notada importância na estrutura composicional do artigo de opinião. Nos dois textos do professor Jonas, os títulos (texto 1: A importância de “Tropa de Elite”; texto 2: Os efeitos da Lei Seca), embora não deixem de nomear adequadamente o conteúdo de suas exposições, e até mesmo “avançar uma perspectiva de interpretação possível” (TRAVASSOS, 2003, p. 56), não vão muito além de uma proposição do óbvio, sem qualquer inventividade que pudesse despertar no leitor um maior interesse pela leitura. Essa mesma sensação é causada pelos títulos dos textos de seu aluno Ernesto (n. 1: O objetivo do BOPE; n. 2: Lei Seca Boa ou Ruim?), sobre os quais o professor não faz qualquer comentário. Também nos chama a atenção o fato de os dois textos do aluno Bento não serem nomeados pelo título. Mesmo porque, no texto n. 1, o professor registra essa ausência numa chamada intransigente: “Título?” A despeito disso, o aluno reincide na mesma falha ao produzir o texto n. 2. Será que foi devidamente instruído quanto à relevância desse componente textual, e de sua requisitada presença na produção do gênero artigo de opinião? Se subentendermos essas respostas a partir das duas apreciações feitas pelo professor ao final dessas produções, não há como negar a probabilidade de que esse aprendiz possa ter sido alertado tão-somente para o esquecimento do título, pois não consta, nessas observações, nenhuma remissão a esse recorte. Tampouco se verifica, no material didático (anexo 16), um estudo mais direcionado a essa temática, à exceção de uma referência ou outra em questões de estudo dirigido, que se propõem para o ensino-aprendizagem do texto dissertativo- argumentativo (como se nomeia, no material didático, o texto argumentativo) e do gênero artigo de opinião. Por suposto, acreditamos que essa visão mais apurada sobre como escolher o título fica mesmo à mercê da perspicácia do aprendiz, que deverá descobrir, por 271 seu próprio esforço intelectual, que não se compõe um título de maneira aleatória, só para cumprir o protocolo de nomear o texto, mas porque se entende ser ele “um [importante elemento] organizador do texto, que projeta expectativas a respeito do seu conteúdo” (TRAVASSOS, 2003, p. 57). Parece-nos ser esse o modo como o aluno Rogério compreende a função de um título. Pelo menos, é o que se pode depreender de suas escolhas: para o texto n. 1, A inutilidade do combate; para o texto n. 2, Uma benevolente intervenção. Considerando o segundo conjunto de textos, observamos que a professora Margarida elabora, para seus textos, títulos bem mais inventivos, a exemplo, particularmente, da segunda produção, cujo título, numa ultrapassagem do impasse que se gera com a nominação de seu texto n.1 (Liberar ou reprimir?), constrói um interessante jogo de opostos: Lei Seca: mais vida, que lhe rende um notável efeito de sentido. Nesse quesito, vale reconhecer, seus alunos também se mostraram um tanto mais imaginativos. Eduardo Braga, para o seu texto n. 1, escolhe o título: Financiadores do crime; Renata trata de Males inseparáveis, enquanto Ronaldo coloca em perspectiva uma imprevisível Realidade Fantasiosa, fazendo alusão, por certo, à violência, da forma como é apresentada no filme Tropa de Elite. Na segunda produção, o rendimento das escolhas dos títulos já não foi assim tão considerável: Eduardo, por exemplo, não consegue ir além do óbvio ao optar pelo título: A Lei Seca e os direitos do cidadão, enquanto Renata enreda-se na composição de um sintagma nominal, de expressividade pouco apurada: Lei Seca − intolerância, rigor e eficácia. Ronaldo, por sua vez, consegue ser um tanto mais engenhoso em sua escolha: Imprudência? Não mais. Um balanço dessas constatações deixa-nos a impressão de que a escolha do título não ocupa, nesse processo de produção do gênero artigo de opinião, um lugar de destaque. Não se lhe concede a devida importância de que se deve revestir em se tratando de um dos elementos de textualização. Escolher um título, tendo por objetivo o mero cumprimento de uma exigência derivada de um determinado gênero, sem compreender sua funcionalidade é arriscar-se a uma nomeação estéril, porque nada comunica sobre o objeto do discurso em foco. E se somos nós, professores, que ensinamos os alunos a produzir textos funcionais, comecemos, então, por discutir com eles sobre os títulos: para que servem? 272 O segundo ponto a merecer registro diz respeito às escolhas lexicais; por ordem de importância, ao processo de adequação vocabular. Como sabemos, “[...] a seleção lexical de um texto concorre para o estabelecimento de sua coerência, para a definição de sua unidade semântica” (ANTUNES, 2010, p. 178). Nos textos em análise, ocorre justamente o inverso em alguns casos. Estes são representativos de inadequação vocabular. O exemplário de tais ocorrências é até considerável. Na primeira produção do professor Jonas, encontramos dois exemplos. Um desses registros corresponde a uma associação semântica estabelecida entre as palavras debate e evento na seguinte proposição: “O debate em torno do filme ‘Tropa de Elite’, do diretor José Padilha, tem sido um evento bastante saudável para a sociedade brasileira” (l. 3-5). Vale ressalvar, quanto a essa menção, o que já nos coube sublinhar na avaliação particular dessa produção, no sentido de que não se concebe, como sendo semanticamente legítima, a substituição da palavra debate por evento nessa situação de uso em específico. Nessa mesma produção, mais uma notável impropriedade emerge em decorrência do estabelecimento de uma relação adversa entre o verbo agir e a expressão fato social, tal como se pode verificar na sequência: “Isso produz uma situação perversa, uma vez que agir de maneira desigual, em que os miseráveis são colocados sempre na condição de culpados pelos horrores, constitui um fato social lamentável aos olhos da sociedade brasileira” (l. 29-34). De modo bem semelhante, no texto n. 2, ao tentar substituir (no processo de revisão) a palavra suficientemente pela expressão com eficiência (l. 18) termina cometendo mais uma imperícia no nível do léxico, comprometendo também o plano semântico. Não muito diferente do que ainda flagramos, nesse mesmo texto, nas sequências: “Os possíveis equívocos na abordagem das pessoas, no tocante à ingestão de bebida alcoólica ao volante, devem ser evitados [...]” (l. 30-32); “Assim, somos de acordo com a política de proibição de bebida no trânsito [...]” (l. 35-36). Esse problema, para o qual não oferece uma solução (mesmo no momento em que revisou seu texto), também lhe passa despercebido no texto de seus alunos. Em sua produção n. 1, Rogério comete uma dessas impropriedades quando assim enuncia: “Já os que não se corrompem, terminam adquirindo a mentalidade de que todas as pessoas que moram nos morros são bandidas [...]” (l. 29-31). Ernesto também incorre em igual imprecisão, logo no início de seu texto n. 2, ao fazer a seguinte afirmação: “Um dos assuntos que mais vêm sendo discutidos atualmente é 273 sobre a concretização da ‘Lei Seca’, que entrou em vigor no dia 1º de julho de 2008” (l. 3-5). E Bento, nessa mesma linha de estranhas associações, registra, em seu texto n. 1: “O que deve ser feito é combater este acontecimento de duas formas [...]” (l. 33-35); e também em seu texto n. 2: “A lei seca foi uma forma de dar um basta nesse problema que nossa sociedade está enfrentando contra o álcool junto com a direção, já que tem uma punição adequada e justa, além de muito severa para aqueles motoristas que forem pegos dirigindo com o teor de álcool acima do permitido [...]” (l. 9-14). A contemplação dessa amostra já nos alerta no sentido de que não há como pôr em relação determinados conceitos a não ser movendo-nos “[...] pelos sentidos próximos a esses conceitos, sejam esses sentidos equivalentes, apenas próximos, contíguos ou até mesmo opostos” (ANTUNES, 2010, p. 189). Em não se observando esse procedimento, afrouxa-se demais o discurso, deixando-o bastante vulnerável a impertinências lexicais. É exatamente o que acontece no texto n. 1, da professora Margarida, em que registramos a ocorrência de uma instabilidade semântica na seguinte passagem: “Diante desse contexto, os males que o uso das drogas causa ao ser humano é [?] potencializado pelas amargas questões sociais que esse comércio ilegal ajuda a disseminar” (l. 41-44). E ainda em: “A realidade é complexa, pois envolve aspectos sociais que exigem mudanças profundas, nas quais [?] espera- se que a educação e as oportunidades cheguem para todos, para que não mais se precise dos homens de preto do BOPE” (l. 62-66). Em semelhante perspectiva, podemos colocar uma associação inusitada, já referida na análise do texto n. 1, de seu aluno Ronaldo, no seguinte trecho: “Mas e os consumidores? São pessoas dotadas de um desprovimento de raciocínio, e que fazem deles próprios, a hipocresia [sic] em pessoa” (l. 22-24). Vale ressalvar, quanto a essa ocorrência, que a professora não se mostrou nada transigente; e até mesmo sublinhou a impropriedade da combinação envolvendo a sequência dotadas de um desprovimento. Não obstante, despercebeu uma nova impropriedade em: “A falta de investimento nos princípios fundamentais à qualidade de vida é algo real!” (l. 26-27). Sobre essa proposição, ocorreu-lhe apenas questionar o fato de as ideias não terem sido desenvolvidas; é pelo menos essa a preocupação que orienta o questionamento registrado em seu comentário final: “quais são os princípios fundamentais, citados no último parágrafo?” 274 Procedendo a mais uma investida, nesse processo analítico, deparamo-nos com os problemas de pontuação, um registro que consideramos importante nesta abordagem. Afinal, não podemos esquecer que a pontuação de um texto, se não cumpre sua precípua função de demarcar apropriadamente as unidades sintático- semânticas que o compõem, pode constituir-se em um obstáculo à instauração da coerência. Nos textos analisados, constataram-se infrações de variada natureza no que diz respeito ao emprego dos sinais de pontuação. No texto n. 2, do professor Jonas, assinalamos o uso indevido de uma vírgula desarticulando uma relação semântica de adição em: “O importante, para nós, é que a quantidade de acidentes não só diminua [,] mas deixe de ocorrer [...]” (l. 39-41). Essa mesma impropriedade aparece no texto n. 2, de seu aluno Ernesto, na sequência em destaque: “É importante perceber também que a Lei Seca não tem apenas o objetivo de deter motoristas alcoolizados [,] mas também de intimidar esses motoristas a não beberem [...]” (l. 16-18). Já no texto n. 1, desse mesmo sujeito, verifica-se o emprego de uma vírgula em uma situação, na qual, nitidamente, se deveria encerrar a sequência com um ponto final, visto que aí se conclui o raciocínio em curso e se abre o espaço para a inserção de uma pergunta retórica: “O filme representa a ‘guerra’ entre polícia e favela na tentativa de deter o tráfico de drogas [,] mas será que a favela inteira deve ser incluída nesse conflito?”. (l. 4-7). Ainda nesse mesmo texto, mais uma ocorrência indevida desse sinal de pontuação: “Ao ouvir o hino, entende-se que, no momento [,] em que os policiais do BOPE entram na favela, a missão principal é ‘derrubar’ o maior número de favelados possível [...]” (l. 13-16). Nesse caso, o avaliador pareceu preocupado em assinalar a reincidência do que (sublinhou as duas formas, que não se duplicam em suas respectivas funções, vale salientar) e esqueceu de observar a colocação da vírgula separando uma expressão adverbial de tempo. No texto do aluno Bento, o problema a exigir reparo diz respeito ao emprego dos dois pontos. Na primeira situação de uso, entendemos a possibilidade de um olhar mais transigente, dado o fato de se presumir que o aluno sinalizava, nessa circunstância, a inserção de uma das temáticas da proposta de produção textual: “As drogas devem ser liberadas para pôr fim à violência urbana?” (l. 3-4). Mas constatamos que, mesmo nesse registro, a proposição em foco deveria ser iniciada com letra minúscula. Além disso, no último parágrafo, do referido texto, encontramos 275 uma reincidência: “O que deve ser feito é combater este acontecimento de duas formas: Física e mental” (l. 33-35). Novamente, o aluno grafa letra maiúscula após o emprego de dois pontos, sem que isso tenha sido objeto de comentário do avaliador, que nem mesmo o adverte quanto à singularidade do recurso a esse sinal no que concerne ao requisito das maiúsculas e minúsculas. Essa orientação poderia alargar-se em mais alguns esclarecimentos sobre as particularidades de uso dos sinais de pontuação e suas restrições ao emprego de letras maiúsculas e minúsculas, considerando-se que esses sinais devem ser ensinados sempre em sua relação direta com a escrita. Caso similar, tendo em vista o fato de que também se refere ao emprego dos dois pontos, flagramos no texto de Rogério. Na situação anunciada, o aluno deixa de usar (obrigatoriamente) os dois pontos ao fazer a inserção de um discurso relatado em: “Já os que não se corrompem, terminam adquirindo a mentalidade de que todas as pessoas que moram nos morros são bandidos, [;] sendo assim, todos devem morrer, confirmando o refrão cantado pelo BOPE nos seus treinamentos [,] ‘Homens de preto, qual é sua missão? É entrar na favela e deixar corpos no chão’” (l. 29-35). Apreciando o outro conjunto de textos, consideramos interessante fazer um registro sobre a produção n. 2, da professora Margarida, relativamente ao uso da vírgula no seguinte trecho: “É claro que a simples liberação não será suficiente [,] serão necessárias ações políticas efetivas de combate ao consumo mesmo que legalizado” (l. 47-50). Trata-se, nesse caso, de unidades sintático-semânticas, que poderiam ser interpretadas como complementares (considerando-se o sentido por elas veiculado), formalizando uma proposição de nível hierárquico superior. Nesse modo interpretativo, seriam separadas por um ponto-e-vírgula. Numa outra visão, em se tornando mais independentes, poderiam vir a ser separadas pelo ponto. Não por uma vírgula. Entre outras tantas ocorrências de considerável importância, selecionamos uma, no texto n. 1, de sua aluna Renata, sobre a qual não podemos silenciar, por julgarmos ser exatamente esta que se deve colocar na “linha de frente” do ensino- aprendizagem do texto escrito, que tem na pontuação o recurso último a ser usado na demarcação de suas unidades composicionais. Observemos o seguinte trecho: “Com o tempo, quando certos consumidores tornam-se traficantes facilitando o acesso as [às] drogas para novos consumidores, podendo levá-los até mesmo para 276 dentro das escolas [.]” (l. 16-19). O que pretendia dizer a aluna? A sequência não se completou. Há, nesse recorte, uma “incompletude semântica”. Infelizmente, esse problema, que pode redundar em tantos embaraços para o cálculo do sentido de um texto, passou bem além da percepção da professora. Terá ela compreendido o real propósito comunicativo implicado nessa sequência em sua incompletude? Os casos, que ora focalizamos, entre muitos outros, sinalizam a necessidade de se proceder a um estudo da pontuação sob uma perspectiva textual-discursiva, começando pelo entendimento de que os sinais de pontuação assinalam o ritmo da escrita, demarcando, e mesmo tornando mais precisos, os sentidos construídos, a fim de orientar o leitor quanto ao percurso de leitura possível. Logicamente, não se implica, nesse modo de compreensão, a crença de que esses sinais respondem, de modo soberano, pelo sentido que se imprime ao texto, posto que, na verdade, eles tão-só contribuem para a construção deste, uma vez que são, necessariamente, requisitados na delimitação/demarcação de suas unidades composicionais. E já que colocamos sob mira as unidades composicionais do texto, parece- nos oportuno direcionar o enfoque para determinadas unidades de composição que, ultrapassando o domínio frasal, respondem pela dimensão textual propriamente dita. No desempenho dessa função, inscrevem-se os parágrafos, encadeamentos de um nível superior, que, por constituírem verdadeiros blocos de coerência semântica, promovem “o equilíbrio de todo o texto entre segmentação (segmentação do texto em unidades de níveis diferentes de complexidade) e articulação (construção de sentido no interior de cada uma dessas unidades e entre elas)” (ADAM, 2008, p. 85, grifos do autor). É justamente a recuperação desse equilíbrio entre o dito e o por dizer que parece constituir-se a maior dificuldade daqueles que se aventuram no âmbito da escrita. E é, decerto, a quebra da articulação entre os parágrafos que desestabiliza a progressão discursiva, derivando implicações para a percepção da coerência. Nas produções em análise, as ocorrências de “atomização de parágrafos” registram-se em, praticamente, todas elas, totalizando um número bem significativo. No texto n. 1, do professor Jonas, por exemplo, não se verifica uma efetiva progressão entre essas unidades textuais, que mais se justapõem umas às outras (à exceção do parágrafo que se inicia na linha 29, fazendo uso do encapsulador anafórico Isso) do que se solidarizam entre si para formar um todo semântico. Esse 277 “emperramento” discursivo também se justifica na circularidade do raciocínio, que se constrói em torno de uma mesma ideia, desativando o processo de renovação semântica, tão requisitado na construção de qualquer texto, mais particularmente nos da ordem do argumentar, como é o caso do artigo de opinião. Esse mesmo problema faz-se perceptível nos textos do aluno Rogério, embora não tenha sido mencionado, sob qualquer forma, na avaliação docente. Muito provavelmente, essa “transigência” deve-se ao fato de as produções desse aprendiz destacarem-se por um certo diferencial: o sujeito-autor não só demonstra o domínio de um bom repertório vocabular mas também se revela possuidor de um razoável conhecimento linguístico e mesmo enciclopédico. Essa “impressionante competência” (que o singulariza entre os medianos) pode perfeitamente justificar o despercebimento de algumas falhas camufladas em suas duas produções. No texto n. 1, por exemplo, registramos uma evidenciada atomização entre os parágrafos, que se “precipitam” em saltos temáticos, passando de um recorte a outro sem que se opere a necessária conexão entre estes. No texto n. 2, esse problema tende a amenizar-se, uma vez que somente na transição para o último parágrafo é que se verifica o irrefletido uso de um elemento de conexão (Portanto, l. 33), que não serve ao propósito de um raciocínio conclusivo. Da mesma forma, no interior desse parágrafo, o conector porém (l. 34) não faz jus à sua natureza contrajuntiva, porque não há relação de oposição entre os segmentos relacionados. Reparação ainda mais indispensável deverá ser efetuada no plano da argumentação. E isso relativamente aos dois textos. No texto n. 1, evidencia-se uma inconsistência argumentativa gerada numa confluência de ideias bem “tumultuadas” no que concerne à linha de raciocínio em que se fundam. Essa particular ocorrência tem seu registro entre as linhas 36 e 47 da referida produção. No texto n. 2, dá-se um caso semelhante. Reincide-se na construção de argumentos inconsistentes, porque extremamente ingênuos e até despropositados se confrontados à realidade. Observemos o seguinte trecho: “Felizmente, as vantagens da Lei nº 11.705 não abrangem apenas as questões das mortes e acidentes, ela garante mais empregos para os policiais e para os taxistas, que estão cada vez mais solicitados pelos alcoólicos. Entretanto, a lei deixa muito a desejar o [quanto ao] valor da multa, porque com o valor de R$ 957,20, só atinge o motorista de baixo poder aquisitivo. Já nos casos de prisão, a fiança que deve ser paga vai de R$ 300 à [a] R$1.200, valores 278 esses que não afetam a classe rica” (l. 23-32). E também ponderemos sobre o extrato: “Lei essa que ainda precisa ter aprimorado certos aspectos [...] e modificar os valores das multas e das finanças de forma proporcional ao salário que o motorista ganha” (l. 35-41). Por essa lógica, seria uma espécie de imposto de renda? E a infração à Lei não é a mesma? Esse deveria ser o questionamento feito ao aprendiz. Isso o levaria a refletir sobre o raciocínio construído. Na avaliação docente, essa produção é assim apreciada: “Bom texto. Bem estruturado, com ponto de vista e argumentos bem desenvolvidos e pertinentes.” Na produção n. 1, da professora Margarida, verificamos apenas discretas desarticulações quando da transição entre um ou outro parágrafo. Dizemos que não se mostram tão incisivas porque é possível perceber, na linha do discurso, ainda que de modo aparente, uma relativa conexão entre as partes. O exemplo de uma quebra, mais pronunciada, na progressão discursiva desse texto, pode ser registrado na passagem do 8º para o 9º parágrafo (l. 50-51). Sobre o texto n. 2, a própria autora emite um parecer bem exigente: “O texto ficou medíocre; ideias são lançadas e pouco desenvolvidas”. Nos textos dos alunos Ronaldo e Eduardo Braga, detectamos alguns dos problemas ora focalizados. Na produção n. 1, de Ronaldo, à exceção de uma aparente relação estabelecida entre os dois primeiros parágrafos, registra-se uma visível desarticulação entre essas unidades textuais. Na produção n. 2, o problema se coloca, mais particularmente, em nível da argumentação. Os argumentos que aí se apresentam revelam-se inconsistentes em seu teor argumentativo, e ingênuos ou incoerentes com a estrutura do real, como nos é possível comprovar nos seguintes excertos: “Pensando no bem-estar e na segurança de toda a população, foi aprovada a lei de número 11.705/08, Lei Seca, pela qual motoristas com teor alcoólico a partir de 0,3mg são considerados criminosos” (l. 8-11). Vale ressalvar, no concernente a essa proposição, que consta, como advertência da avaliação docente, uma interrogação bem à margem dessa sequência. Se analisarmos a dimensão do sinal de interrogação [?] e sua localização no texto, o questionamento parece estar bem mais direcionado à menção 0,3mg. Se, numa diferente percepção, não se fizer plausível essa via interpretativa, então nos cabe admitir que esse desvirtuamento da informação aí veiculada foi percebido e questionado na avaliação da professora. Numa outra sequência, registramos mais um argumento de rara inconsistência e 279 ingenuidade: “[...] Sendo eu pertencente ao primeiro grupo, sou defensor da Lei Seca por dois motivos: primeiro é que devemos garantir a nossa segurança, pois o álcool afeta o psicológico de quem o ingere, o que deixa evidente que ‘bêbado no volante é perigoso no trânsito’. O segundo motivo é que eu não bebo, então não quero correr o risco de morrer vítima de um acidente automobilístico, ocasionado por um motorista alcoolizado” (l. 23-30). Na apreciação final da professora, um lacônico, mas significativo parecer: “Bom texto!” Eduardo Braga, embora não tenha incorrido em notáveis falhas ao efetuar a progressão discursiva de suas produções, constrói, em seu texto n. 1, uma argumentação tão ingênua que quase chega a “atritar-se” com o mundo real. O trecho compreendido entre as linhas 16 e 31 é um exemplo representativo desse registro. Em seu texto n. 2, ao encerrar um processo argumentativo com uma pergunta retórica: “E então, como fica?”, provoca uma quebra do efeito de sentido, da força argumentativa que pretendeu imprimir a esse questionamento, ao propor-se responder e descumprir sua promessa, colocando, quase à deriva o curso de sua argumentação. À exceção dessa pequena intercorrência, que julgamos de fácil resolução, não fazemos ressalvas ao julgamento da professora, que, em seu parecer final, limita-se a aplaudir: “Muito bem!” Para além desses pontos contemplados à satisfação de nosso propósito, há, certamente, na linha (ou na sublinha) dos discursos confrontados, ditos e não-ditos que também poderiam endossar esta abordagem; afinal, há tantos caminhos no processo de textualização! De nossa parte, tentamos cumprir apenas um percurso possível. Que se abram novas veredas, e que se tirem desse confronto as devidas conclusões. 280 6 ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES À luz das evidências que se foram recolhendo em todo o percurso de nossa “viagem de descobrimento”, firmamos a convicção de que, agora, voltando à nossa indagação de partida, já estamos em condições de responder, com discernimento, à questão que nos instigou a esta caminhada. Entre outros tantos descobrimentos, isto é, constatações, Constatamos que o ensino-aprendizagem de qualquer conteúdo deve estar espelhado em um referencial teórico e em uma metodologia apropriados. Não nos pareceu adequado o material didático à disposição dos docentes, sujeitos desta investigação. Não há como ensinar a escrever o texto argumentativo (ou quaisquer outros tipos de texto), que é (que são) uma unidade semântica global, partindo de uma abordagem fracionada de seu todo, recortado em introdução, desenvolvimento e conclusão, sendo cada um desses recortes levado à apreciação dos aprendizes, em separado, e sequencialmente distribuídos, para um aprendizado sobre as variadas formas por que se pode construir, em particular, uma a uma dessas partes. Isso pode levar a uma fatalidade (como, aliás, ocorreu): os aprendizes são induzidos a construir textos notadamente desarticulados em termos das relações a serem estabelecidas entre as suas unidades discursivas, que são hierarquicamente superiores na composição da macroestrutura textual, como é o caso dos parágrafos. Está, pois, justificada, no uso desse procedimento, a reiterada ocorrência de atomização entre essas unidades semânticas nos textos escritos pelos sujeitos desta pesquisa. Inclinamo-nos a crer que os aprendizes, buscando apoiar-se nesse esquema-padrão, estruturaram seus textos em parágrafos, mas o fizeram, de modo um tanto aleatório, sem despertar para a funcionalidade destes no processo de manutenção do sentido, na medida em que respondem pelo equilíbrio da articulação entre o dito e o por dizer; constatamos que o ensino-aprendizagem do texto argumentativo, em sua feição de artigo de opinião pressupõe, da parte dos professores, o domínio efetivo de saberes sobre esse objeto, em vias de transposição didática, a ser visto, portanto, como objeto de ensino. E isso deve alertar-nos, também, para entendermos, por extensão, que não é possível ensinar a produzir textos se não nos tornamos ainda produtores proficientes, o que responde pelo fato de pouco sabermos sobre o seu 281 modo de funcionamento. O prejuízo dessa irreflexão recai sobre os alunos, uma vez que, nesse processo, alargam-se mais ainda as possibilidades de provocar “atrofias” no desenvolvimento da competência discursiva desses aprendizes, se não forem eles beneficiados por uma orientação competente; constatamos que o alcance do rendimento de um aprendizado sobre o artigo de opinião não se pode restringir à mera compreensão de ser este um gênero em que se opina sobre um determinado tema da atualidade com o fito de defender um ponto de vista. É uma visão bem simplista sobre esse objeto; não contempla, em quase nada, o seu modo de funcionamento, um saber de fundamental importância para a construção desse (ou de qualquer outro) gênero discursivo. Registramos, por exemplo, a dificuldade que os alunos demonstraram em lidar com as situações de interlocução que (de maneira consciente?) se instauraram em suas produções. Esse é, certamente, um dos pontos a merecer a atenção do professor. Ele precisa instruir os aprendizes quanto à acomodação de todas as vozes oriundas do(s) discurso(s) outro(s), bem como os modos de enquadramento destas no discurso do sujeito- aprendiz. Afinal, não podemos esquecer o fato de que é ele, o sujeito-autor-aprendiz que assinala, por sua atuação sobre o discurso do outro, as intenções semânticas e axiológicas com que reveste seu próprio discurso em interpelação com o discurso de outrem. E tudo isso com a preocupação principal de fazer ressoar, em particular, e sobretudo, sua opinião. Nessa mesma chamada, também vale referenciar os casos relativos às dificuldades contempladas, tanto em nível da construção de movimentos de concessão e refutação (uma falibilidade atribuída ao provável desconhecimento da função dos conectores no processo de estabelecimento de relações semânticas pertinentes entre segmentos maiores na arquitetura textual) quanto no processo de encaixamento das perguntas retóricas. Sobre estas últimas (as perguntas retóricas), cabe-nos fazer uma observação: trata-se de um recurso argumentativo, de natureza bem contundente, dada a sua propriedade mais aparente de provocar/desencadear a reflexão do interlocutor, uma vez que coloca acento sobre um ponto importante da discussão. Na maioria dos textos analisados, esse recurso foi utilizado. Mas, em alguns deles, tal estratégia não cumpriu a função a que se destina. Pareceu-nos que somente serviu de “enfeite”, não se entendendo sua força na construção do efeito de sentido. Pareceu-nos, ainda, que somente serviu para justificar a crença de que “é legal construir umas perguntas”; 282 constatamos que se faz necessário imprimir todo o cuidado ao construir uma proposta de produção textual. Isso tomando em consideração o fato de que esta pode induzir a muitos desacertos. No caso em foco, podemos atribuir à proposta de produção, com boa probabilidade de acerto, algumas “privações” a que se renderam alguns textos. Convenhamos que a proposta em questão ditou, basicamente, todos os passos a serem seguidos no ato da produção: estipulou o modelo composicional, seccionando-o em partes e até definindo o número de argumentos convenientes a cada uma das partes (introdução, desenvolvimento e conclusão), colocando o aluno num impasse discursivo. Como agir? Como pensar? Sem contar com o peso das muitas interdições: não usar gíria, evitar clichê... É certo que os aprendizes, fazendo jus a esse papel, procuram seguir à risca todos os ditames, tal como fazem muitos pacientes leigos com as prescrições médicas. Por isso, é preciso ser mais prudente com tudo que diz respeito ao ensino-aprendizagem do texto escrito. Trata-se de uma ação bem mais consequente que as demais. Além disso, o aprendiz deve usufruir de um pouco mais de liberdade para experimentar-se em seu querer dizer; e não esqueçamos que nenhum texto diz apenas aquilo que desejava dizer: traz sempre uma comunicação suplementar e não prevista; constatamos que nem todos os temas representam uma escolha apropriada, no que concerne à produção do gênero artigo de opinião. Considerando-se o fato de ser este um gênero predominantemente argumentativo, não há como orientar sua produção a partir de temas que não se prestem à discutibilidade, que não propiciem a instauração de um necessário “afrontamento” entre os diversos posicionamentos em concurso. Quando, por exemplo, um determinado tema não se apresenta como socialmente discutível, ou seja, quando já se consolidou uma posição “uniorientada” socialmente, não há o que discutir, uma vez que, dificilmente, se dará a insurgência de uma tese contrária ao já estabelecido pelo consenso; e nem há espaço para acolher qualquer argumento – nem mesmo se construído sob forma de negociação – que se mostre em desacordo com as posições coletivas instituídas em princípios éticos, moralizantes/definidores de comportamentos proscritos. É bem assim que enxergamos a escolha do tema versando sobre a aplicabilidade da Lei Seca. É um tema, parece-nos, de mínima discutibilidade; quem iria contestar os benefícios decorrentes da aplicação dessa lei? 283 E quais seriam os inconvenientes ou mesmo as injustiças que poderiam derivar de sua aplicação? E quais seriam os inconvenientes ou mesmo as injustiças que poderiam derivar de sua aplicação? As possibilidades de validar argumentos em favor de uma tese contrária praticamente inexistem. Isso, talvez, explique o fato de os textos produzidos, sob o comando dessa temática, mostrarem-se, argumentativamente, menos consistentes; afinal, os sujeitos-autores não tinham muito a dizer. Seria até antiético contrapor-se a algo que se coloca em prol do bem comum. constatamos que não podemos olhar para o texto do aluno como um produto acabado, mas sim como um objeto de ensino-aprendizagem; portanto, sempre em processo de transformação. Quando avaliamos um texto, não podemos esquecer que temos em nossas mãos o trabalho de um sujeito que espera de nós um justo julgamento, seja este direcionado ao mérito ou ao demérito. Se é desconfortável lidar com resultados pouco lisonjeiros para o aluno, bem mais desconfortável (e também mais lesivo ao aprendizado) é não assumir uma atitude ética, prestando um “falso testemunho” ao emitir um parecer abonador de uma aprendizagem que ainda não chegou a se consolidar. A assunção de um posicionamento assim equivocado, certamente se reverterá em mais perdas e danos para o aluno do que o pronunciamento de um diagnóstico real, que não somente aponte os problemas que se abatem sobre o texto mas ainda indique os caminhos possíveis para alcançar sua melhor performance. De descoberta em descoberta, de constatação em constatação, depois de todas as andanças, chegamos ao final desta viagem pelo mundo dos saberes docentes e discentes. A confirmação de nossa tese, no entanto, não nos conduz ao absolutismo das verdades incontestes. Mesmo porque àquele que acredita estar de posse de evidências propícias à defesa de sua tese, não cabe ser egolátrico: ninguém possui a última palavra quando se defende pela via da argumentação. Por isso mesmo admitimos que esta discussão não se encerra aqui. Há ainda muito por dizer, e por fazer. Assumimos essa convicção tendo por certo o pensamento de que os resultados alcançados em uma pesquisa não sobrevivem ao tempo. E dada a sua provisoriedade, devem ser recebidos/encarados com prudência. É bem verdade que não desconsideramos o fato de havermos respondido, um tanto satisfatoriamente, à nossa questão de pesquisa, no sentido de havermos 284 encontrado conexões reais entre o saber escrever do professor e o seu saber ler/avaliar o texto de seu aluno. Ainda assim, não fazemos alarde dessa descoberta. Que as constatações em registro possam auxiliar os professores a refletirem sobre sua prática docente, em especial a que contempla o ensino-aprendizagem do texto escrito. Mas, para que se vejam bem-sucedidos nessa missão, não se podem quedar, ensimesmados, em suas certezas ou mesmo em seu medos. Quem sabe, devam começar por ouvir a voz dos aprendizes, com quem devem construir saberes. Afinal, são eles os melhores timoneiros de todas as rotas do ensinar- aprender. 285 REFERÊNCIAS ADAM, J. M. Quadro teórico de uma tipologia sequencial. In: BEZERRA, B. G.; BIASI-RODRIGUES, B.; CAVALCANTE, M. M. (Org.). Gêneros e sequências textuais. Trad. Benedito Gomes Bezerra et al. Recife: Edupe, 2009. p. 115-132. ______. A linguística textual: introdução à análise textual dos discursos. Trad. Maria das Graças Soares Rodrigues et al.; revisão científica Luis Passeggi e João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2008. ______. Linguistique textuelle: des genres de discours aux textes. Paris: Nathan, 1999. ______. Les textes: types et prototypes. Lausanne: Nathan, 1992. ALTET, M. 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