UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CURSO DE MESTRADO EM DIREITO SEALTIEL DUARTE DE OLIVEIRA A OBJETIVAÇÃO DO CONTROLE CONCRETO DE CONSTITUCIONALIDADE NAS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NATAL 2013 SEALTIEL DUARTE DE OLIVEIRA A OBJETIVAÇÃO DO CONTROLE CONCRETO DE CONSTITUCIONALIDADE NAS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito para a obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Doutor Erick Wilson Pereira NATAL 2013 Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA Oliveira, Sealtiel Duarte de. A objetivação do controle concreto de constitucionalidade nas decisões do Supremo Tribunal Federal/ Sealtiel Duarte de Oliveira. - Natal, RN, 2013. 164 f. Orientador: Prof. Dr. Erick Wilson Pereira. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Programa de Pós- graduação em Direito. 1. Constitucionalidade - Controle concreto – Dissertação. 2. Mutação constitucional - Dissertação. 3. Supremo Tribunal Federal – Eficácia geral - Dissertação. I. Pereira, Erick Wilson. III. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/BS/CCSA CDU 342 Aos meus pais, Ulisses Duarte Ferreira (in memoriam) e Maria Leuziete de Oliveira Duarte, que dedicaram a vida para a minha formação e educação; Às minhas filhas, Maria Luísa, Maria Eduarda e Maria Júlia, e minha esposa Flávia Setúbal, pelo apoio, carinho e pela compreensão na minha ausência em determinados momentos; Aos meus irmãos Ulisses, Ulisséa e Lígia, pelo incentivo. AGRADECIMENTOS Agradeço, inicialmente, a Deus, fonte da existência humana, pela presença constante em minha vida; Ao professor Doutor Erick Wilson Pereira, pela orientação e pelas aulas ministradas durante o curso de mestrado, onde deixou plantada a semente da busca pelo saber; À professora Doutora Maria dos Remédios, por ter acreditado e envidado esforços na concretização do Mestrado Interinstitucional entre a Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN e a Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN; A todos os demais professores, que pelas aulas ministradas, colaboraram direta ou indiretamente para o desenvolvimento da presente pesquisa; A todos os colegas do mestrado, pela união, força e apoio para vencer as dificuldades e alcançar o objetivo final, a obtenção do grau de mestre; Aos meus alunos da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, que, no debate acadêmico diário, nos estimulam a buscar o incessante aprimoramento do inesgotável conhecimento jurídico. À Defensoria Pública Geral do Estado do Ceará, que no anseio de aprimorar a sua função institucional de levar o acesso à Justiça, estimula a qualificação de seus membros; Aos colegas defensores públicos, Henrique Amora e Fernanda Rossi, aos magistrados, serventuários da Justiça e estagiários nos fóruns de Limoeiro do Norte, Tabuleiro do Norte e Icapuí, no Estado do Ceará, que na convivência e trocas de experiências, trouxeram valorosas contribuições. RESUMO A independência dos Estados Unidos e as revoluções surgidas na Europa no século XVIII propiciaram o nascimento da Constituição escrita, com a missão de limitar o poder do Estado e assegurar direitos fundamentais aos cidadãos. Assim, a Constituição tornou-se a norma fundante e suprema do Estado. Em razão dessa superioridade sentiu-se a necessidade de protegê-la, surgindo a partir daí a jurisdição constitucional, tendo no controle de constitucionalidade de normas o seu principal instrumento. No Brasil, o controle de constitucionalidade iniciou-se com a Constituição de 1891, quando se importou o modelo americano, que recebeu o nome de modelo difuso incidental de controle de constitucionalidade. Com efeito, permitiu-se que qualquer juiz ou tribunal poderia declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo em um caso concreto. Entretanto, o constituinte brasileiro não trouxe dos Estados Unidos o instituto do stare decisis, através do qual os precedentes dos órgãos judiciais superiores acabam por vincular os inferiores. Em razão dessa ausência, cada juiz ou tribunal brasileiro decidia livremente a respeito da constitucionalidade de norma, de tal maneira que a decisão só produzia efeitos entre as parte do litígio. Isso levou o surgimento de decisões contraditórias entre os órgãos judicantes, o que acabou por abalar a segurança jurídica e a imagem do Judiciário. Como saída para o problema, incorporou-se a partir da Constituição de 1934 a regra segundo a qual o Senado poderia suspender a lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Com a introdução do controle abstrato de constitucionalidade, a partir de 1965, o Supremo Tribunal Federal passou a ter, também, o poder de declarar a invalidade da norma inconstitucional, com eficácia contra todos, sem a necessidade de participação do Senado. Porém, permaneceu a concepção de que na hipótese de o Supremo Tribunal Federal declarar a inconstitucionalidade de lei através do controle difuso o Senado continuaria com a competência de suspender a lei inconstitucional, ficando a decisão do Pretório Excelso restrito às partes. A Constituição de 1988 fortaleceu o controle abstrato ampliando os legitimados da Ação Direta de Inconstitucionalidade e criando novos mecanismos de controle abstrato. Somando-se a isso, a Emenda Constitucional n.º 45/2004 trouxe o requisito da repercussão geral e introduziu o instituto da Súmula Vinculante, ambos para serem aplicados pelo Supremo Tribunal Federal nos julgamentos dos casos concretos, provocando consequentemente uma aproximação entre os controles abstrato e concreto de constitucionalidade. Enxergou-se destarte que o Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição, deveria ter a sua atuação pautada para o julgamento de questões de interesse público. Nesta nova realidade é desnecessária a participação do Senado para que a lei declarada inconstitucional no controle difuso pelo Supremo Tribunal Federal possa alcançar a todos, pois, tal interpretação tornou-se obsoleta. Por conseguinte, para adequá-la a essa realidade, tal regra deve ser lida no sentido de que o Senado dará publicidade à lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, vez que sofreu mutação constitucional. Palavras-chaves: Controle concreto de constitucionalidade; mutação constitucional; eficácia geral ABSTRACT The independence of the United States and the revolutions that emerged in Europe in the eighteenth century led to the birth of the written constitution, with a mission to limit the power of the State and to ensure fundamental rights to citizens. Thus, the Constitution has become the norm and ultimate founding of the State. Because of this superiority felt the need to protect her, emerging from that constitutional jurisdiction, taking control of constitutionality of provisions his main instrument. In Brazil, the constitutionality control began with the Constitution of 1891, when "imported" the American model, which is named after incidental diffuse model of judicial review. Indeed, allowed that any judge or court could declare the unconstitutionality of the law or normative act in a concrete case. However, the Brazilian Constituent did not bring the U.S. Institute of stare decisis, by which the precedents of higher courts eventually link the below. Because of this lack, each tribunal Brazilian freely decide about the constitutionality of a rule, so that the decision took effect only between the parties to the dispute. This prompted the emergence of conflicting decisions between judicantes organs, which ultimately undermine legal certainty and the image of the judiciary. As a solution to the problem, was incorporated from the 1934 Constitution to rule that the Senate would suspend the law declared unconstitutional by the Supreme Court. With the introduction of abstract control of constitutionality, since 1965, the Supreme Court went on to also have the power to declare the invalidity of the provision unconstitutional, effectively against all without the need for the participation of the Senate. However, it remained the view that in case the Supreme Court declared the unconstitutionality of the fuzzy control law by the Senate would continue with the competence to suspend the law unconstitutional, thus the decision of the Praetorium Exalted restricted parties. The 1988 Constitution strengthened the abstract control expanding legitimized the Declaratory Action of Unconstitutionality and creating new mechanisms of abstract control. Adding to this, the Constitutional Amendment. No. 45/2004 brought the requirement of general repercussion and created the Office of Binding Precedent, both to be applied by the Supreme Court judgments in individual cases, thus causing an approximation between the control abstract and concrete constitutional. Saw themselves so that the Supreme Court, to be the guardian of the Constitution, its action should be directed to the trial of issues of public interest. In this new reality, it becomes more necessary the participation of the Senate to the law declared unconstitutional in fuzzy control by the Supreme Court can reach everyone, because such an interpretation has become obsolete. So, to adapt it to this reality, such a rule must be read in the sense that the Senate give publicity to the law declared unconstitutional by the Supreme Court, since mutated constitutional. Keywords: Control of Concrete constitutionality; constitutional mutation; overall effectiveness SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 10 2 DA CONSTITUIÇÃO À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ..................................... 14 2.1 A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA CONSTITUIÇÃO E DO CONSTITUCIONALISMO......................................................................................................14 2.2 A RIGIDEZ, SUPREMACIA, FORÇA NORMATIVA E UNIDADE DA CONSTITUIÇÃO.....................................................................................................................21 2.3 A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E OS PRESSUPOSTOS PARA O SEU EXERCÍCIO ............................................................................................................................. 32 2.4 A LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL................................................................................................................38 3 O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 ............................... 56 3.1 A SUPREMA CORTE E O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL NOS SISTEMAS DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE.......................................................................56 3.2 O EXERCÍCIO DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NO BRASIL PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – SUPREMA CORTE OU CORTE CONSTITUCIONAL? .......................................................................................................... 63 3.3 O CONTROLE PREVENTIVO E REPRESSIVO DE CONSTITUCIONALIDADE ...... 68 3.4 A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO E DO LEGISLATIVO NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE ................................................................................................... 69 3.4.1 O controle de constitucionalidade através do Poder Executivo.................................70 3.4.2 O controle de constitucionalidade através do Poder Legislativo...............................74 3.5 O CONTROLE JUDICIAL DE CONSTITUCIONALIDADE..........................................79 3.5.1 O controle difuso-incidental de constitucionalidade...................................................81 3.5.1.1 Considerações gerais.....................................................................................................81 3.5.1.2 O controle difuso nos tribunais e a reserva de plenário................................................83 3.5.1.3 O procedimento do controle difuso-incidental..............................................................85 3.5.1.4 O controle difuso realizado pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal.......................................................................................................................................87 3.5.1.5 Os efeitos da decisão no controle difuso-incidental......................................................89 3.5.1.6 O controle difuso-incidental e o papel do Senado Federal...........................................93 3.5.2 O controle concentrado de constitucionalidade .........................................................99 3.5.2.1 Considerações gerais.....................................................................................................99 3.5.2.2 A provocação do controle concentrado-principal.......................................................101 3.5.2.3 Os efeitos da decisão no controle concentrado-principal............................................105 4 A EFICÁCIA GERAL E VINCULANTE DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL QUE RECONHECE A INCONSTITUCIONALIDADE DE NORMA NA VIA INCIDENTAL...............................................................................................................116 4.1 O PRESENTE CONTEXTO DO CONTROLE DIFUSO-INCIDENTAL DE CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL: A ABSTRATIVAÇÃO DO CONTROLE CONCRETO..........................................................................................................................116 4.1.1 As mudanças legislativas.............................................................................................118 4.1.2 A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal......................................................124 4.2 A FUNÇÃO ATUAL DO SENADO FEDERAL NO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE ................................................................................................130 4.2.1 O Senado Federal no controle de constitucionalidade..............................................131 4.2.2 A mutação constitucional do inciso X do art. 52 da Constituição Federal............133 4.2.3 O comportamento do Supremo Tribunal Federal sobre a questão: A reclamação constitucional n.º 4.335-5/AC...............................................................................................145 5 CONCLUSÃO .................................................................................................................... 153 REFERÊNCIAS....................................................................................................................159 10 1 INTRODUÇÃO Com o surgimento do constitucionalismo moderno a partir do século XVIII, as principais nações do mundo passaram a elaborar Constituições escritas com a missão primordial de limitar os poderes do Estado e assegurar aos cidadãos uma carta de direitos fundamentais. Esse constitucionalismo foi sofrendo modificação ao longo dos anos, em razão das transformações sociais, políticas e econômicas ocorridas no mundo afora. Assim, vivenciou-se o constitucionalismo do Estado de Direito e do Estado Social de Direito. Atualmente, convive-se com o Constitucionalismo do Estado Democrático de Direito. Com o constitucionalismo, a Constituição torna-se a norma jurídica suprema do Estado e nesse prisma os seus preceitos, mormente de ordem política, econômica e social, devem ser tutelados e concretizados. Nessa senda, o Estado jamais poderia, no exercício de sua função legislativa, criar leis ou atos normativos incompatíveis com a Constituição. Porém, para que a norma suprema não morresse na folha de papel, sentiu-se a necessidade de construir a jurisdição constitucional com o escopo de dar efetividade à Constituição e protegê-la contra qualquer violação. Com efeito, no curso desta pesquisa, trabalha-se com a evolução histórica da Constituição e do Constitucionalismo e com as ideias da supremacia, força normativa e unidade da Constituição, com o desiderato de demonstrar a importância da Carta Magna para a organização do Estado e do ordenamento jurídico. Demonstra-se, também, que nasce nos Estados Unidos, no início do século XIX, a jurisdição constitucional e o controle difuso de constitucionalidade, onde por meio da judicial review franqueou-se a qualquer juiz ou tribunal, no exame de uma situação concreta, a possibilidade de reconhecer a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. Os Estados Unidos, por adotar um sistema jurídico que mescla de um lado o statute law (direito criado pelo legislador) 11 e do outro a common law (direito criado pelo juiz), que faz dos precedentes judiciais uma das principais fontes do Direito, deu origem ao instituto do stare decicis, segundo o qual os precedentes firmados por um tribunal superior são vinculantes para todos os órgãos jurisdicionais inferiores. Ou seja, uma decisão da Suprema Corte tem capacidade de vincular todos os demais juízes e tribunais. No campo do controle de constitucionalidade, o stare decisis 1 ganha maior relevo, vez que a declaração de inconstitucionalidade de lei pela Suprema Corte dos Estados Unidos passa a vincular todas as demais instâncias jurisdicionais. A ideia que norteia o stare decisis no controle de constitucionalidade é a viabilização de segurança jurídica na interpretação e aplicação da Constituição, pois, quanto menos divergentes as decisões entre um e outro juízo relativamente acerca de fatos assemelhados, maior é a segurança jurídica. No Brasil, o controle de constitucionalidade teve início a partir da Constituição de 1891, quando adotou o modelo americano de controle de constitucionalidade, caracterizado como sendo um modelo concreto e difuso de controle, cuja decisão produzia efeitos somente entre as partes envolvidas no litígio, vez que não se trouxe para o Brasil a ideia do stare decisis. Posteriormente, em 1965, por intermédio da Emenda Constitucional nº 16, ao lado do controle difuso de constitucionalidade, introduziu-se, também, no país, o mecanismo de controle abstrato de constitucionalidade, segundo o modelo europeu ou austríaco. A Constituição de 1988 manteve os dois sistemas de controle de constitucionalidade e outorgou ao Supremo Tribunal Federal a missão de guardião da Constituição. Dentro dessa perspectiva, do controle misto de constitucionalidade e de guardião da Constituição, se analisa se o Supremo Tribunal Federal funciona como uma Suprema Corte ou Corte Constitucional. 1 Nos Estados Unidos da América o instituto do stare decisis traduz a ideia de que o entendimento determinado a um conjunto de fatos por um tribunal de hierarquia superior deve ser seguido, em nome da segurança jurídica, por todas as cortes de hierarquia inferior, quando esses fatos forem substancialmente os mesmos. (CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Trad. Aroldo Plínio Gonçalves. 2 ed. – Porto Alegre: Fabris, 1984, reimp. 1999. p. 80) 12 Examinam-se, também, as formas de controle de constitucionalidade no Brasil de uma maneira geral. Nesse contexto, verifica-se o papel e a importância dos Poderes Legislativo e Executivo no controle de constitucionalidade. O passo seguinte adentra-se no exame do controle jurisdicional, que é o principal instrumento de controle de constitucionalidade do país, onde é estudado o controle difuso incidental e o controle concentrado. No controle difuso incidental mostra-se que qualquer juízo ou tribunal brasileiro tem o poder de analisar incidentalmente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo no julgamento de um caso concreto. Em tal espécie de controle, verifica-se a existência de uma concepção tradicional, onde a decisão que declarar a inconstitucionalidade só produz efeitos entre partes envolvidas, mesmo que tenha sido proferida pelo Supremo Tribunal Federal. Nesse último caso, caberia ao Senado Federal, em razão da regra vertida no inciso X do art. 52, da Constituição Federal, suspender a execução no todo ou em parte da lei declarada inconstitucional para só depois produzir efeitos gerais. No controle concentrado de constitucionalidade, o Judiciário atua independentemente de qualquer situação concreta, mediante a instauração de ação judicial que almeja discutir diretamente a constitucionalidade da lei em tese, em face da Constituição Federal, demanda essa que compete ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal, ou, em alguns casos, pelos Tribunais de Justiça dos Estados. Nessa espécie de controle, a decisão proferida pelo Tribunal é vinculante e produz eficácia erga omnes sem qualquer ingerência do Senado Federal. Percebe-se com isso que o Supremo Tribunal Federal poderá apreciar a constitucionalidade de ato normativo tanto na forma difusa incidental como na via concentrada abstrata. Com isso, segundo a ideia tradicional, a declaração de inconstitucionalidade firmada pelo Supremo Tribunal Federal poderá ter consequências distintas, a depender da forma de controle, ou seja, declarações de inconstitucionalidade pronunciadas no controle difuso incidental que se limitam às partes do litígio e declarações de inconstitucionalidades pronunciadas no controle 13 concentrado com eficácia erga omnes e efeito vinculante, evidenciando um contrassenso ou incoerência no sistema de controle de constitucionalidade realizado pelo Pretório Excelso. Portanto, procura-se examinar se essa incoerência ainda persiste na conjuntura atual, ou seja, se dentro da realidade vivenciada as decisões declaratórias de inconstitucionalidade proferidas pelo Supremo Tribunal Federal no controle concreto ou difuso incidental continuam a vincular somente as partes ou passa também a alcançar a todos. Para isso, faz-se uma análise contextualizada das mudanças legislativas ocorridas nos últimos anos, como a criação da repercussão geral no recurso extraordinário e da súmula vinculante, bem como a visão da jurisprudência do Supremo Tribunal no controle concreto de constitucionalidade. Pari passu, procura-se verificar se a regra prevista no inciso X do art. 52 da Constituição Federal de 1988 sofreu mutação constitucional, no sentido de que a participação do Senado Federal não é mais condição necessária para que a declaração de inconstitucionalidade do Supremo Tribunal Federal em controle difuso possa alcançar a todos e ainda qual a interpretação a ser conferida a tal mecanismo. E ainda sobre o tema em alusão, faz-se, ainda, uma incursão nos votos já proferidos pelos ministros do Supremo Tribunal Federal na Reclamação 4.335/AC, onde debatem sobre a interpretação a ser conferida a regra prevista no inciso X do art. 52 da Constituição Federal de 1988 e, consequentemente, se os efeitos do controle concreto de constitucionalidade alcançam a todos ou continuam a se limitar às partes do litígio. 14 2 DA CONSTITUIÇÃO À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL 2.1 A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA CONSTITUIÇÃO E DO CONSTITUCIONALISMO Embora do ponto de vista da ciência jurídica as expressões Constituição e Constitucionalismo sejam recentes, os núcleos de suas ideias não são um privilégio da modernidade, vez que suas concepções deitam raízes em um passado longínquo. Na Antiguidade, por exemplo, já se verificava que entre as leis existiam aquelas que organizavam o próprio poder, especificavam seus órgãos, estabeleciam as suas funções e os seus limites; enfim leis que estabeleciam em sua essência a Constituição 2 . O filósofo grego Platão já preconizava um Estado Constitucional ao estabelecer o primado da lei como garantia dos governados. Essa lei, escrita ou costumeira, ficava soberanamente gravada nos corações de todos os homens. Destarte, para Platão, havia uma lei suprema, que exteriorizava a ideia de constituição e consequentemente o antecedente lógico do constitucionalismo. 3 Aristóteles, por sua vez, já diferenciava a existência de uma categoria de normas que organizavam e fixavam os fundamentos de um Estado e as normas que eram elaboradas e interpretadas em consonância com as primeiras, ou seja, a ideia da existência de uma norma superior que organizava e dava sentido a própria nação é bastante antiga. Ferdinad Lassale 4 , ao defender a sua teoria sociológica da Constituição, já expressava: “Constituição real e efetiva a possuíram e a possuirão todos os países, pois, é um erro julgarmos que a Constituição é uma prerrogativa dos tempos modernos.” 2 FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 3. 3 BULOS, Uadi Lammego. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 10. 4 LASSALE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 4. ed. Rio de Janeiro: Lummen Juris, 1998, p. 39. 15 Portanto, para Lassale, também todos os países, em todos as fases de sua história, sempre tiveram uma Constituição real e verdadeira. Entretanto, para ele a diferença é que na modernidade o homem forjou “Constituições escritas em folhas de papel”5. Efetivamente, até meados do século XVIII, as constituições eram costumeiras, baseadas nas tradições e costumes do povo, e em alguns países, em leis e documentos esparsos, como por exemplo, a Magna Carta inglesa, do Rei João Sem Terra, de 1215, que materializou o acordo entre o rei e o baronato inconformado com os amplos poderes do monarca que geravam iniquidades. Alguns séculos após, em 1689, na mesma Inglaterra, mais uma vez estabeleceu-se limites aos poderes do monarca, quando o Parlamento Inglês editou a famosa declaração de direitos chamada de Bill of Rights. A ideia de Constituição escrita veio a ganhar força quando foi associada às concepções iluministas e ao liberalismo político. O triunfo das ideias liberais dá-se com as revoluções dos séculos XVII, na Inglaterra, e XVIII, nos Estados Unidos e na França, quando se afirmam os direitos fundamentais e a não intervenção arbitrária do Estado. Assim, a partir da segunda metade do século XVIII, inspirado na filosofia sociocontratualista, que preponderou durante os séculos XVI e XVIII, vislumbrou-se a necessidade da elaboração de uma Constituição escrita, baseada no pacto social, no qual o documento significaria uma verdadeira expressão contratual da vontade da sociedade, de modo a representar um princípio de maior proteção contra possíveis e prováveis deformações de caráter autoritário e arbitrário 6 . Esse movimento do fim do século XVIII, voltado à criação de uma norma escrita que pudesse limitar o poder e garantir direitos individuais, baseado no argumento de que havia leis 5 Idem, p. 41. 6 A história do constitucionalismo é tratada por Dalmo de Abreu Dallari com base nas ideias extraídas de Loewenstein e André Hauriou. Assim, para Dallari, o constitucionalismo e a democracia moderna surgiram após o desmoronamento do sistema político medieval de forma paralela e sob as influências dos mesmos princípios, que culminaram, no século XVIII, com o surgimento dos documentos legislativos a que se atribuiu o nome de Constituição (DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 198). 16 que seriam anteriores e superiores, dá-se o nome de constitucionalismo. Surge daí a expressão Constituição, que passou a ser cunhada para designar o corpo de normas que definem a organização fundamental do Estado 7 . A Constituição escrita, quando do seu surgimento no século XVIII, institucionaliza a conquista do Estado pela burguesia emergente, dando feição jurídica ao liberalismo 8 . O Direito Constitucional surge, realmente, como “técnica de proteção da liberdade e da propriedade, limitando o poder monárquico, despersonalizando o direito e regulando o processo representatativo”9. Em síntese, pode-se dizer que o constitucionalismo representa a apreensão do fenômeno político pelo Direito, ou seja, representa a juridicização do fator político. Daí a razão de a Constituição ser chamada, também, de Carta Política do Estado 10 . Nessa fase inicial do constitucionalismo, consolidam-se os direitos humanos de primeira dimensão, que limitam a intervenção do Estado no âmbito individual. Esses direitos dizem respeito à liberdade (liberdade de expressão, liberdade religiosa, liberdade de associação, liberdade de ir e vir, livre iniciativa econômica etc.), que impõe ao Estado um dever de abstenção. Nasce, portanto, com o constitucionalismo o Estado Liberal (Estado Moderno Constitucional), caracterizado como um modelo de Estado mínimo, onde este deveria atuar dentro dos limites descritos em lei. No modelo de Estado Liberal nasce um mito, pois a lei torna-se a grande tônica, por ser uma regra de caráter nacional, racional, geral, impessoal, igualitária e por ser manifestação da vontade do povo por intermédio dos seus representantes. Essa é a ideia de Estado de Direito. 7 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de constitucionalidade teoria e prática. 6. ed. Salvador: Jus Podivm, 2012, p. 28. 8 BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira: Legitimidade democrática e instrumentos de realização. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 4. 9 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. Limites e possibilidade da Constituição brasileira. Rio de Janeiro: Renovar. 2000, p. 70. 10 Na visão de Marcelo Neves, o conceito de Constituição se relaciona originariamente com o constitucionalismo, que se associou aos movimentos revolucionários dos fins do século XVIII. Assim, para ele, o constitucionalismo moderno em sua fase inicial se revestiu de um sentido político-jurídico, mas que evoluiu de forma construtiva para o surgimento das constituições como artefatos possibilitadores e asseguradores da diferença entre o sistema jurídico e político (NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes. 2009, pp. 53-55) 17 Nesse sentido, assinala Paulo Bonavides 11 : A premissa do Estado Moderno é a conversão do Estado Absoluto em Estado Constitucional; o poder já não é de pessoas, mas de leis. São as leis e não as personalidades que governam o ordenamento social e político. A legalidade é a máxima de valor supremo e se traduz com toda energia do texto dos Códigos e das Constituições. O Estado Liberal é, portanto, um modelo de Estado de direito, pois o direito será o fundamento, a instrumentalização na manutenção dos direitos e das garantias individuais. O Direito incorporou a doutrina do jusnaturalismo racionalista 12 , que predominou nos séculos XVII e XVIII. Essa fase marcante da história do constitucionalismo (marco para o surgimento do Direito Constitucional) é chamada de constitucionalismo moderno. Neste sentido, contextualiza Barroso 13 : (...) o constitucionalismo moderno, como é sabido, surgiu no século XVIII, contemporâneo ao advento do Estado liberal. Foi ele um dos principais trunfos da burguesia no acerto de contas com a monarquia absoluta. De fato, naquela fase do desenvolvimento capitalista, o velho regime se tornara um empecilho ao casamento final - e, até aqui, indissolúvel - entre o poder econômico e o poder político, vale dizer, à conquista do Estado pela burguesia. Com o surgimento das constituições escritas, a expressão constitucionalismo passou a possuir dois sentidos: o sentido amplo e o sentido estrito, que é o mais usado pela doutrina jurídica. No primeiro, o constitucionalismo está relacionado ao fenômeno de que em havendo Estado, em qualquer época da humanidade, sempre houve e sempre haverá uma constituição, independentemente dos ideais políticos e jurídicos que se queira estabelecer. No segundo, o constitucionalismo é entendido como um movimento político-jurídico, surgido no fim do século XVIII, influenciado pelas correntes filosóficas iluministas e do liberalismo político, que pregavam 11 BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, pp. 28-29. 12 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição - fundamentos de uma dogmática Constitucional transformadora. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, 2ª tiragem. p. 314. 13 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição - fundamentos de uma dogmática Constitucional transformadora. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, 2ª tiragem. p. 166. 18 a necessidade de elaboração de Constituições escritas com a finalidade de regular o fenômeno político e o exercício do poder com o escopo de garantir aos cidadãos o exercício de seus direitos e garantias fundamentais, sem que o Estado lhes pudesse oprimir pelo uso da força e do arbítrio 14 . Nota-se desse modo que o constitucionalismo em sentido estrito tem seu início com o chamado constitucionalismo moderno, o qual legitimou o surgimento da Constituição moderna, entendida, segundo Gomes Canotilho, como “ordenação sistemática e racional da comunidade política por meio de um documento escrito no qual se declaram liberdades e os direitos e se fixam limites do poder político”15. Com essa nova concepção, a Constituição deixa de ser compreendida como um simples manifesto político para ser entendida como uma verdadeira norma jurídica de caráter supremo e fundamental. A vitória do constitucionalismo trouxe para a maioria dos países do mundo a adoção de regimes constitucionais a partir de Constituições escritas, centradas na ideia dos direitos fundamentais e separação dos poderes. Desta sorte, em nome da liberdade criou-se um modelo de Estado de intervenção mínima na sociedade, responsabilizando-se apenas pela proteção de suas fronteiras, segurança pública, arrecadação dos tributos e o seu poder de polícia. Todas as demais atividades deveriam ser transferidas para a iniciativa privada. Entretanto, o fim da Primeira Guerra Mundial trouxe profundas mudanças no cenário político do mundo, que não se contentava mais com o modelo de Estado abstencionista (Estado Liberal), que se limitava à separação dos poderes e à proteção e garantia das liberdades públicas. Essas novas concepções políticas passaram a impor um novo modelo de Estado de direito, o qual a sua Constituição deveria ter, também, uma preocupação com as questões econômicas e sociais. 14 BULOS, Uadi Lammego. Curso de Direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 10. 15 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 48. 19 Com isso, após o fim da Primeira Guerra Mundial, o Constitucionalismo acena para a instituição de um novo modelo de Estado ao exigir que as constituições tutelassem, também, em seu bojo, direitos de cunho econômico e social, pondo fim, portanto, à antiga aliança entre o movimento constitucionalista e o liberalismo político. Nasce assim o Estado Social de Direito (ou simplesmente Estado Social, ou Estado do Bem-estar Social, ou ainda chamado pela expressão inglesa Welfare State), de caráter intervencionista, que por meio de prestações positivas deverá envidar esforços para executar as tarefas, programas e fins que lhes são conferidos pela Constituição. Destarte, “ a história, portanto, testemunha a passagem do Estado liberal ao Estado social e, consequentemente, a metamorfose da Constituição, de Constituição Garantia, Defensiva ou Liberal, para a Constituição Social, Dirigente, Programática ou Constitutiva”16. O modelo de Estado Social põe em relevo os direitos de segunda dimensão, trazendo a igualdade material como sua matriz axiológica. Para efetivar esse modelo de igualdade, entendia- se que o Estado deveria intervir diretamente sobre os aspectos econômicos, o que implicaria em restrição à liberdade individual e, por consequência, ao direito de propriedade. Dessa forma, a partir do surgimento do Estado Social de Direito, a condução da economia tornava-se ser tarefa do Estado, visando a acabar com as desigualdades sociais e buscando uma integração econômica de toda a população. O Estado Social de Direito recebe essa denominação porque, amparado na Constituição, tem como objetivo o combate às desigualdades sociais, como fome, miséria, desemprego, saúde, educação, entre outras. Entretanto, a forte crise financeira mundial instalada após o fim da Segunda Grande Guerra Mundial revelou que o intervencionismo estatal sem a participação democrática do povo não propiciou condições econômicas capazes de suprir as necessidades da sua população, 16 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de constitucionalidade, teoria e prática. 6. ed. Salvador: Jus Podivm, 2012, p. 31. 20 impondo desta maneira à criação de um novo modelo de Estado que viabilizasse meios que pudessem alcançar os direitos sociais e econômicos. Assim, vivencia-se hodiernamente o Estado Democrático de Direito, que apesar de continuar a busca pelo bem-estar da população, procurando a efetivação dos direitos sociais e econômicos, porém, o faz por meio de um intervencionismo de caráter democrático, no qual se respeitam os direitos e garantias individuais, mormente os das minorias, e busca-se a interação entre o coletivo e o privado. O modelo de Estado Social de Direito é, portanto, diferente do modelo do Estado Democrático de Direito. Isso porque, no modelo Democrático de Direito há uma alternância dos representantes do povo, além da divisão entre os poderes e suas competências; o modelo apenas social, mesmo este sendo de direito, pode ser totalitário ou absoluto e não possuir representantes eleitos pelo povo, mas sim, ser um governo único, sem divisão de poderes ou de competências e que prevalece no tempo indefinidamente. No Estado Democrático de Direito percebe-se a judicialização da política ou a politização do Poder Judiciário, advinda de uma omissão dos poderes Legislativo e Executivo, que obrigam o Judiciário a atuar na forma de dar uma efetividade aos direitos fundamentais, que eram entendidos até então como apenas programáticos ou de eficácia limitada. Luis Roberto Barroso 17 sintetiza o Estado Democrático de Direito: Democracia, direitos fundamentais, desenvolvimento econômico, justiça social e boa administração são algumas das principais promessas da modernidade. Estes fins maiores do constitucionalismo democrático, inspirado pela dignidade da pessoa humana, pela oferta de iguais oportunidades às pessoas, pelo respeito à diversidade e ao pluralismo, e pelo projeto civilizatório de fazer de cada um o melhor que possa ser. Adota-se aqui, portanto, uma visão substancialista, e não procedimentalista da Constituição e da jurisdição constitucional. No ambiente da democracia deliberativa, a Constituição deve conter – e juízes e tribunais devem implementar – direitos fundamentais, princípios e fins públicos que realizem os grandes valores de uma sociedade democrática: justiça, liberdade e igualdade. 17 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3. ed., 3 tir. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 114. 21 Nesse contexto, o princípio da separação dos poderes ressurge na forma em que o Poder Judiciário ganha amplitude em sua participação para a concretização do modelo de Estado Democrático de Direito, agindo de forma a viabilizar a legitimação desse modelo. 2.2 A RIGIDEZ, SUPREMACIA, FORÇA NORMATIVA E UNIDADE DA CONSTITUIÇÃO No tocante ao procedimento de alteração das constituições, estas podem ser classificadas em rígidas ou flexíveis. As constituições dotadas de rigidez são aquelas que para serem modificadas estabelecem um procedimento solene, formal e dificultoso em relação àquele que é usado para modificar as leis comuns. Desta forma, as leis comuns jamais alterarão a constituição dotada de alguma rigidez. Já as constituições flexíveis são aquelas que permitem serem alteradas por leis comuns, não havendo, outrossim, um procedimento próprio e mais rigoroso para a modificação do texto da Constituição. Nesse caso, uma lei comum mais nova e incompatível com a Constituição acaba por alterá-la. A rigidez das constituições pode variar em gradações, podendo ser de grau máximo, médio ou mínimo 18 . As constituições de rigidez máxima são chamadas de constituições super- rígidas; as de média são denominadas de constituições rígidas, e as de grau mínimo nominadas de constituições pouco rígidas 19 . As constituições super-rígidas são aquelas que, além de estabelecerem um procedimento extremamente rigoroso de alteração da Constituição, instituem normas de teor proibitório de revisões ou emendas constitucionais, fazendo com que a alteração da Constituição seja uma 18 BULOS, Uadi Lammego. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 52. 19 Idem, p. 53. 22 medida de extrema excepcionalidade, tendo como exemplo dessa rigidez a Constituição dos Estados Unidos de 1787. As constituições classificadas como rígidas também estabelecem um procedimento rígido de alteração da Constituição, mas procuram conciliar a estabilidade da Constituição com as mudanças sociais advindas do progresso, deixando, assim, mecanismos de segurança, sem, contudo, impedir as reformas, podendo citar como exemplo de Constituição rígida a Constituição brasileira atual, que, ressalvando apenas as cláusulas pétreas (exemplo de válvula segurança), permite uma alteração ampla do seu texto por intermédio de um procedimento rigoroso de emenda constitucional. Já as constituições poucos rígidas, apesar de possuírem um processo de alteração solene, formal, complexo e mais rígido do que o processo de alteração da lei comum, pode ser alterada de forma mais branda do que nos modelos anteriores. Deve-se enfatizar que as constituições classificadas como pouco rígidas não deixam de ser uma Constituição com rigidez, não se confundindo desse modo com as constituições flexíveis, vez que estas podem até ser alteradas por uma lei ordinária, o que não ocorre com as constituições pouco rígidas. Portanto, a rigidez na alteração da Constituição faz com que surja uma hierarquia vertical formal entre as normas constitucionais e as leis comuns, chamadas de infraconstitucionais, enquanto as constituições destituídas de qualquer rigidez ocupam a mesma hierarquia das leis comuns. Com isso, sendo a Constituição a lei fundamental de um país, emanada da superioridade do poder constituinte, mediante o qual se estabelece e limita os poderes do Estado, prescreve direitos, deveres e garantias fundamentais do cidadão (Constituição em sentido material) e aliando-se com a rigidez no seu processo de alteração faz com que ela seja a norma suprema do ordenamento jurídico de um Estado. 23 Ou seja, se a Constituição pudesse ser alterada livremente (constituição flexível), ela não ocuparia o topo do ordenamento jurídico, já que estaria na mesma hierarquia das normas comuns, e consequentemente não haveria o mecanismo de controle de constitucionalidade. Em suma, do ponto de vista estritamente jurídico formal, é da essência da rigidez que decorre a supremacia constitucional. Na linha desse pensamento, pontifica Bonavides 20 : O sistema de Constituições rígidas assenta numa distinção primacial entre poder constituinte e poderes constituídos. Disso resulta a superioridade da lei constitucional, obra do poder constituinte, sobre a lei ordinária, simples ato do poder constituído, um poder inferior, de competência limitada pela Constituição mesma. As constituições rígidas, sendo constituição em sentido formal, demandam um processo especial de revisão. Esse processo lhes confere estabilidade ou rigidez bem superior àquela que as leis ordinárias desfrutam. Daqui procede, pois, a supremacia incontrastável da lei constitucional sobre as demais regras de direito vigente num determinado ordenamento. Compõe-se assim uma hierarquia jurídica, que se estende da norma constitucional às normas inferiores (leis, decretos-leis, regulamentos, etc.), e a que corresponde por igual uma hierarquia de órgãos. A supremacia da Constituição traz a ideia de que ela é a lei soberana de um ordenamento jurídico, e consequentemente todas as leis e atos normativos devem se conformar com ela, isto porque sendo a “Constituição o pacto fundador da organização estatal, posiciona-se com superioridade diante das demais normas jurídicas de determinado sistema positivo”21. Barroso 22 esclarece a supremacia da Constituição com o seguinte pensamento: (...) a supremacia da Constituição é o postulado sobre o qual se assenta o próprio direito constitucional contemporâneo, tendo sua origem na experiência americana. Decorre ela de fundamentos históricos, lógicos, e dogmáticos, que se extraem de diversos elementos, dentre os quais a posição de preeminência do poder constituinte sobre o poder constituído, a rigidez constitucional, o conteúdo material de das normas que contêm e sua vocação de permanência. A Constituição, portanto, é dotada de superioridade jurídica em relação a todas as normas do sistema e, como consequência, nenhum ato jurídico pode subsistir validamente se for com ela incompatível. Para assegurar essa supremacia, a ordem jurídica contempla um conjunto de mecanismos conhecidos como jurisdição constitucional, destinados a, pela via judicial, fazer prevalecer os comandos contidos na Constituição. Parte 20 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito constitucional. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 296. 21 NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. Jurisdição constitucional: aspectos controvertidos. Curitiba: Juruá, 201, p. 13. 22 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3. ed. 3 tir. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 106-107. 24 importante da jurisdição constitucional consiste no controle de constitucionalidade, cuja finalidade é declarar a invalidade e paralisar a eficácia dos atos normativos que sejam incompatíveis com a Constituição. Dessa forma, a Constituição encontra-se no ápice da pirâmide normativa de Kelsen, de onde irradia a própria estrutura e as normas fundamentais do Estado e de onde as demais normas do ordenamento jurídico retiram o seu fundamento e a sua validade. No sistema de Kelsen não se admitem constituições flexíveis, pois, sendo o ordenamento jurídico escalonado, as normas constitucionais encontram-se em nível superior em relação às demais normas jurídicas. E, segundo Kelsen 23 , uma norma jurídica necessita buscar seu fundamento de validade em uma outra norma superior desse sistema escalonado até chegar à norma hipotética fundamental, como se vislumbra do seguinte excerto da Teoria pura do Direito: A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da relação de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por seu turno, é determinada por outra, e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental–pressuposta. A norma fundamental hipotética, nestes termos – é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora. Sendo a Constituição suprema, todas as normas do ordenamento jurídico de um Estado devem se adequar aos preceitos constitucionais, sob pena de resultarem inconstitucionais e não poderem pertencer ao ordenamento jurídico vigente. Essa necessária e imprescindível compatibilidade vertical entre as leis e a Constituição satisfaz o princípio da constitucionalidade, segundo o qual, nas palavras de Silva 24 , significa que “(...) todos atos normativos dos poderes públicos só são válidos e, consequentemente, constitucionais, na medida em que se compatibilizem, formal e materialmente, com o texto supremo.” 23 KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 246. 24 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22ª edição. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 48. 25 Com efeito, nesse caminho de pensamento, a supremacia constitucional implica, no Brasil, a revogação de todas as normas anteriores com ela materialmente contrastantes e a nulidade de todas as normas editadas no curso de sua vigência 25 . Em síntese, a ordem jurídica que se organiza de forma escalonada tendo em seu topo a Constituição deve ser compatível com a mesma, pois, qualquer conflito ou antinomia que agrida a primazia da Constituição malfere justamente o princípio da Supremacia da Constituição, comprometendo a harmonia do ordenamento, que só será restabelecida pela intervenção da jurisdição constitucional, por meio de mecanismos de controle que façam valer as normas emanadas da Constituição. Assim, a compreensão da Constituição como lei fundamental implica o reconhecimento da sua supremacia na ordem jurídica, bem como a existência de instrumentos capazes de protegê- la contra agressões. Para assegurar tal supremacia, necessário se faz um mecanismo de controle sobre os atos normativos infraconstitucionais, o chamado controle de constitucionalidade. Ademais, sendo a Constituição uma norma suprema, os seus preceitos não podem se tornar letra morta, devendo ela ter eficácia normativa 26 e social. Ou seja, a Constituição como norma suprema deve efetivamente condicionar e influenciar o ordenamento jurídico e social de um país, não podendo ficar apenas no documento. Entretanto, essa concepção de Constituição como norma jurídica foi uma conquista somente alcançada ao longo do século XX. Superou-se, portanto, o tradicional modelo, que vigorou até meados do século XX, quando a lei era o centro do ordenamento jurídico, o parlamento era supremo e a Constituição um documento essencialmente político, um simples convite à atuação dos Poderes. 27 25 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição - fundamentos de uma dogmática Constitucional transformadora. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, 2ª tiragem. p. 150. 26 BOBBIO, Noberto. Teoria da norma jurídica. 4. ed. São Paulo: Edipro, 2008, pp. 48-49. 27 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3 ed., 3 tir. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 220. 26 Essa exigência de efetividade ou de eficácia da Constituição é decorrência de seu caráter norma, ou seja, da energia que lhe é vital e imanente chamada de força normativa. Sem essa força normativa a Constituição não passaria de um mero projeto político, o que ratificaria o pensamento de Ferdinand Lassalle de que a Constituição escrita não passaria de uma folha de papel. A força normativa da Constituição refere-se, destarte, à efetividade plena das normas contidas na Constituição de um Estado. Toda norma constitucional deve ser revestida de um mínimo de eficácia, sob pena de ser letra morta. Hesse 28 , ao procurar explicar a essência da força normativa da Constituição, critica o pensamento constitucional e tradicional de outrora, seja o positivismo jurídico da Escola de Paul Laband e Georg Jellinek, seja o “positivismo sociológico” de Carl Smith, em razão do tratamento isolado que deram à realidade (o ser) e à norma (dever ser). Segundo Hesse, tal isolamento entre a norma e a realidade dado pela doutrina constitucional de tempos atrás restou equivocado, pois, a eventual ênfase numa ou noutra direção (realidade/norma) leva ao extremismo, ou seja, poderá levar a uma concepção de norma despida de qualquer elemento da realidade ou de uma realidade esvaziada de qualquer elemento normativo. Assim, para Hesse, a Ciência do Direito Constitucional e a Constituição só podem ser analisadas e compreendidas a partir da relação existente entre a realidade político social e a norma constitucional, pois existe entre ambas um condicionamento recíproco. Isto porque o Direito é reflexo da realidade político-social subjacente, mas também elemento condicionante dessa realidade, podendo desse modo atuar como fator de mudança social 29 . Neste sentido esclarecendo a relação entre a Constituição e a realidade, expressa Nadja Machado Botelho: 28 HESSE, Konrad. A Força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1991, p. 13. 29 ROSA, Felippe Augusto de Miranda. Sociologia do Direito: o fenômeno jurídico como fator social. 13ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1996, pp. 57-59; 91. 27 Se o direito não pode se dissociar dos fenômenos sociais, também pouco se limita a reproduzi-lo acriticamente, devendo promover uma valoração do fato social, por vezes procurando modificá-lo, papel extremamente relevante em se tratando da Constituição, que conforma a sociedade e o Estado e que também está sujeita a forças internas ao sistema jurídico, como as leis e as decisões judiciais, que pressionam por uma interpretação que responda adequadamente às mudanças sociais, políticas, econômicas e culturais. Ainda que guarde relativa autonomia jurídica, o direito não deixa de estar inserido no respectivo contexto cultural 30 . Em sendo a Constituição uma norma, ela é criada visando à produção de efeitos concretos sobre a realidade, e só assim, no confronto com situações concretas, é que a norma revela todo seu conteúdo significativo 31 . Nas palavras Coelho, “a questão constitucional, até mesmo pelas consequências do seu desfecho, exige um acurado cotejo entre a norma e a situação normada, porque sem o exame dos fatos nada nos dizem as formalizações”32. Portanto, a norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade, pois, a situação por ela regulada pretende ser concretizada no mundo dos fatos. E essa pretensão de efetivação da norma constitucional só se realiza quando estiver em consonância com as condições naturais, técnicas, econômicas, culturais, políticas e sociais do país em que está inserida. Entretanto, ressalta Hesse que, apesar da pretensão de eficácia da Constituição, esta não poder se separar das condições históricas (como são as condições naturais, técnicas, econômicas, políticas e sociais de um país). Destarte, segundo Hesse: Constituição não configura apenas expressão do ser, mas também do dever ser; ela significa mais do que o simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças sociais e políticas. Graças à pretensão de eficácia, a Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social. 33 Mesmo que a Constituição não possa, por si mesma, realizar algo, entretanto, pode impor tarefas, transformando-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente concretizadas. 30 BOTELHO, Nadja Machado. Mutação Constitucional: a Constituição viva de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 8. 31 LARENZ, Karl. A metodologia da ciência do Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1989, p. 396. 32 COELHO, Inocêncio Mártires. As ideias de Peter Häberle e a abertura da interpretação constitucional no Direito brasileiro. Revista de Direito Administrativo n.º 211, jan./mar, 1998, pp. 125-134. 33 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1991, p. 19. 28 Podendo-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se se fizerem presentes não só a vontade de poder, mas também a vontade de Constituição 34 . A vontade de Constituição acaba por firmar-se em três quesitos: na compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantável, que proteja o Estado contra o arbítrio desmedido e disforme; na compreensão de que essa ordem constitucional é mais do que uma ordem legítima pelos fatos; e de que essa ordem não consegue ser eficaz sem o concurso da vontade humana. A natureza das coisas conduz, transforma e impulsiona a Constituição em força ativa, decorrendo a partir daí seus limites, e surgindo pressupostos que permitem à Constituição desenvolver de forma excelente sua força normativa. Mas não se deve levar em conta, para que ocorra a eficácia normativa, somente os elementos sociais, políticos e econômicos dominantes, como também tem se que incorporar o estado espiritual de seu tempo. Para preservar sua força normativa em um mundo em processo de permanente mudança político-social, a Constituição não deve ajustar-se em uma estrutura unilateral, mas sim, deve ela aliar parte da estrutura oposta, ou seja, deve ceder, também, para o oposto (ponderação entre direitos fundamentais, federalismo/unitarismo, separação dos poderes/ concentração do poder), e ser sempre contemporânea, para que possa acompanhar as mudanças que ocorrem no mundo. Em suma, verifica-se que a Constituição só terá força normativa se houver vontade de Constituição. Assim, sem o elemento subjetivo da vontade de Constituição, ela não terá a sua força normativa e consequentemente as normas constitucionais, apesar de serem supremas, não terão eficácia. Barroso, no aniversário de 10 anos da Constituição brasileira, já visualizava, naquele momento, esse sentimento constitucional imprescindível para que a Constituição seja dotada de força normativa, in verbis: 34 Idem, p. 19. 29 O surgimento de um sentimento constitucional é algo que merece ser celebrado. Trata-se de um sentimento ainda tímido, mas real e sincero, de maior respeito e até um certo carinho pela Lei Maior, a despeito da volubilidade de seu texto. É um grande progresso. Superamos a crônica da indiferença que, historicamente, se manteve em relação à Constituição. E para os que sabem, é a indiferença, não o ódio, o contrário do amor. 35 Trazendo essa ilação para a realidade brasileira, verifica-se que a Constituição Federal de 1988, com base no raciocínio de Hesse, é dotada de força normativa, ainda que não tenha atingido um nível desejado, vez que se vislumbra uma vontade de Constituição, pois os atores da sociedade brasileira comungam da necessidade da existência de uma ordem normativa suprema dotada de valores inquebrantáveis, que proteja os cidadãos contra o arbítrio e que possa reger e delimitar os poderes do Estado; compreende, ainda, que essa ordem constitucional reflete os anseios econômicos, históricos, políticos e sociais e que tem a ciência de que a ordem constitucional só terá eficácia se todos procurarem realizá-la. Além disso, nesse contexto, não se pode olvidar de falar da unidade da Constituição. Como já dito em linhas transatas, o sistema jurídico, idealizado por Kelsen, é formado por uma pluralidade de normas postadas hierarquicamente em um formato piramidal e que buscam o seu fundamento de validade na norma imediatamente superior, e assim sucessivamente até a chegar à norma fundamental, que é o fundamento de validade e de unidade de todo o ordenamento jurídico. Portanto, apesar da diversidade de normas, o ordenamento jurídico constitui uma unidade, seja porque suas normas nascem de uma mesma fonte (ordenamento simples), seja porque suas normas, ainda que surjam de fontes distintas têm o mesmo fundamento de validade (ordenamento complexo) 36 . 35 BARROSO, Luís Roberto. Dez anos da Constituição (foi bom para você também?). Revista de Direito Administrativo n.º 214, 1998, p. 25. 36 BOBBIO, Noberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10º. ed. Trad. Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. Brasília: Universidade de Brasília, 1999. PP. 48-49 apud CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de constitucionalidade teoria e prática. 6. ed. Salvador: Jus Podivm, 2012, p. 47. 30 Em sendo a Constituição a norma que se situa no topo da pirâmide normativa, é ela o último fundamento de validade das normas jurídicas de um ordenamento jurídico. A Constituição, por ser a norma que estabelece a estrutura fundante do Estado e da sociedade, não pode ter as suas normas interpretadas e compreendidas de forma estanque, isolada ou de forma pontual a partir de um problema. A norma constitucional isolada não tem significado normativo. A interpretação deve sempre levar em conta todo o sistema constitucional, vez que a Constituição forma uma unidade normativa, isto porque é fruto da vontade unitária do povo por meio do Poder Constituinte. A organização sistêmica da Constituição faz com que as normas constitucionais estejam entre si em uma relação de interdependência, impondo ao intérprete que a análise da norma seja realizada com base no conjunto normativo constitucional, e não de forma isolada. A esse respeito, diz Grau 37 : “Não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços”. Assim, em razão dessa unidade normativa, inexiste hierarquia entre as normas da Constituição, de tal maneira que qualquer disposição constitucional não deve ser interpretada isoladamente, devendo-se, destarte, levar em conta todo o conjunto de normas constitucionais, pois forma um sistema unitário, evitando, com isso, a superposição ou prevalência de uma norma constitucional em face de outra. Kelsen 38 já dizia que as normas constitucionais devem ser compreendidas de modo que não exista qualquer tipo de contradição entre si. Isto porque “a Constituição não é um aglomerado de normas constitucionais isoladas, mas, ao contrário disso, forma um sistema orgânico, no qual cada parte tem de ser compreendida à luz das demais”39. Ao falar sobre a unidade da Constituição, lembra Canotilho: 37 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 191. 38 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 103. 39 ZIMMERMANN, Augusto. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2002, p. 138. 31 O princípio da unidade da Constituição ganha relevo autônomo como princípio interpretativo quando com ele se quer significar que o Direito Constitucional deve ser interpretado de forma a evitar contradições (antinomias, antagonismos) entre as suas normas e, sobretudo, entre os princípios jurídico-políticos constitucionalmente estruturantes. Como “ponto de orientação”, “guia de discussão” e “factor hermenêutico de decisão”, o princípio da unidade obriga o intérprete a considerar a Constituição na sua globalidade e procurar harmonizar os espaços de tensão [...] existentes entre as normas constitucionais a concretizar. Daí que o intérprete deva sempre considerar as normas constitucionais, não como normas isoladas e dispersas, mas sim como preceitos integrados num sistema interno unitário de normas e princípios. 40 Barroso também comenta sobre a unidade normativa da Constituição, mostrando a sua importância no estabelecimento de um ponto de equilíbrio entre as eventuais antinomias/tensões que possam surgir na aplicação de normas constitucionais: O princípio da unidade da Constituição tem amplo curso na doutrina e na jurisprudência alemãs. Em julgado que Klaus Stern refere como primeira grande decisão do Tribunal Constitucional Federal, lavrou aquela Corte que “uma disposição constitucional não pode ser considerada de forma isolada nem pode ser interpretada exclusivamente a partir de si mesma. Ela está em uma conexão de sentido com os demais preceitos da Constituição, a qual representa uma unidade interna. Invocando tal acórdão, Konrad Hesse assinalou que a relação e interdependência existentes entre os distintos elementos da Constituição exigem que se tenha sempre em conta o conjunto em que se situa a norma. (...) Em decisão posterior, o Tribunal Constitucional Federal alemão voltou a remarcar o princípio, conferindo-lhe, inclusive, distinção especial e primazia: “o princípio mais importante de interpretação é o da unidade da Constituição enquanto unidade de um conjunto com sentido teleológico, já que a essência da Constituição consiste em ser uma ordem unitária da vida política e social da comunidade estatal”. O fim primário do princípio da unidade é procurar determinar o ponto de equilíbrio diante das discrepâncias que possam surgir na aplicação das normas constitucionais, cuidando de administrar eventuais superposições. 41 Nota-se que o objetivo primário da unidade da Constituição é o de evitar ou equilibrar discrepâncias ou contradições que possam surgir da aplicação das normas constitucionais, ou seja, as normas constitucionais quando estejam entre si em uma situação de tensão devem ser harmonizadas para que um preceito não exclua o outro, fazendo com que todos tenham efetividade. Independentemente da classificação que se atribua, as normas constitucionais têm a mesma hierarquia formal-nomativa e a mesma força normativa. 40 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 5. ed. Coimbra: Almedina, 1991, p. 162. 41 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição - fundamentos de uma dogmática Constitucional transformadora. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, 2ª tiragem. p. 203. 32 A unidade da Constituição ganha relevo na situação em que a norma constitucional é descumprida, pois a violação desta implica na violação do próprio sistema constitucional, vez que a Constituição é uma unidade normativa. Portanto, a proteção de uma norma constitucional implica na proteção da própria unidade normativa da Constituição, enfim, na garantia da própria Constituição. 2.3 A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E OS PRESSUPOSTOS PARA O SEU EXERCÍCIO Na teoria geral do Direito processual, a expressão jurisdição significa a realização do Direito, por meio de um terceiro imparcial, de modo criativo, autorizativo e com aptidão para tornar-se indiscutível 42 . Em nosso país, o terceiro imparcial responsável pelo exercício da jurisdição é o poder Judiciário, o qual detém o seu monopólio. Assim, seguindo essa linha de raciocínio, quando a jurisdição é exercida pautada na análise de um conflito concreto ou abstrato que requer o exame, a interpretação e efetivação de preceitos da Constituição, está-se diante do exercício da jurisdição constitucional. Canotilho define a jurisdição Constitucional como “um complexo de atividades jurídicas desenvolvidas por um ou vários órgãos jurisdicionais, destinadas à fiscalização da observância e do cumprimento das normas e princípios constitucionais vigentes”43. Segundo Kelsen 44 , o exercício da jurisdição constitucional é uma forma de garantia jurisdicional da Constituição, caracterizando-se como sendo um dos elementos do “sistema de medidas técnicas que têm por fim garantir o exercício regular das funções estatais”. Em síntese, a jurisdição constitucional consiste na outorga, pela Constituição, de poderes a órgão jurisdicional 42 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Introdução ao Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. v. I. 14º ed. Salvador: Jus Podvum, 2012, p. 65. 43 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 3 ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 886. 44 KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 123-124. 33 com a função específica de verificar a conformação dos atos normativos ao texto constitucional, ou seja, outorga-se a função de guarda da Constituição. Dependendo do sistema adotado pelo Estado, a jurisdição constitucional pode ser exercida por órgãos do poder Judiciário (como ocorre no Brasil e nos Estados Unidos da América) como também através de tribunais constitucionais (como é o caso dos Tribunais Constitucionais da Europa, com exceção da Alemanha), que não integram a estrutura do Judiciário, mas que mesmo assim exercem uma função jurisdicional específica de guardião da Constituição. Nos Estados em que a jurisdição constitucional é exercida por intermédio do poder Judiciário, como é o caso do Brasil, de regra, não somente o órgão de cúpula do poder Judiciário como também todos os demais órgãos que os integram estão investidos da jurisdição constitucional, pois a eles são atribuídos a competência de afastar a aplicabilidade da norma jurídica que se mostra incompatível com a Constituição, bem como para tutelar os direitos e garantias fundamentais estabelecidos pela Carta Magna. Nesses termos, preceitua Marques: Todos os juízes e Tribunais que compõem o Poder Judiciário estão investidos do controle jurisdicional da constitucionalidade da lei e de ato do Poder Público. Isso significa que se encontra imanente a toda e qualquer atividade jurisdicional da justiça ordinária ou das justiças especiais a jurisdição constitucional, pois que assim deve ser denominada a aplicação de normas constitucionais pelo Judiciário, quando deva compor conflitos litigiosos de interesses. 45 Por conseguinte, na hipótese de uma norma afrontar preceito constitucional, é através da jurisdição constitucional que se exerce o controle de constitucionalidade, fazendo com que a norma incompatível seja invalidada ou afastada do ordenamento jurídico, como meio de se assegurar a supremacia da Constituição. A guisa disso, a supremacia constitucional restaria prejudicada se não existisse órgão dotado de jurisdição constitucional provido de um sistema de controle que pudesse protegê-la e, 45 MARQUES, José Frederico. Manual de Direito Processual Civil. 11. ed - São Paulo: Saraiva, v. I, 1986, p. 73. 34 por conseguinte, manter a superioridade, a unidade e a força normativa da Constituição, afastando toda e qualquer antinomia que venha a malferir os postulados da Constituição. A jurisdição constitucional está a serviço da Constituição para verificar se os atos do Legislativo, Executivo, do próprio Judiciário e até mesmo das relações privadas (eficácia horizontal) são compatíveis com ela. Como diz Bulos 46 , “enquanto a inconstitucionalidade é a doença que contamina o comportamento desconforme à constituição, o controle é o remédio que visa restabelecer o estado de higidez constitucional”. Cappelletti, ao discorrer sobre o controle de constitucionalidade no Direito comparado, comunga desse pensamento, pontificando ser o controle de constitucionalidade, exercido por órgão dotado de jurisdição constitucional, um dos mais fascinantes institutos jurídicos criado pelo homem, senão vejamos: Mas a nossa ambição, longe de toda pretensão de ser perfeito, foi, antes, a de mostrar, através de uma pesquisa comparativa, embora sumária e lacunosa, que já é, universalmente, sentida a grande atualidade, a grande importância prática e o interesse científico deste tema do controle judicial de constitucionalidade das leis. O fenômeno que nos detivemos nestas páginas, um fenômeno que como vimos ser ampliado, de maneira impressionante, no mundo contemporâneo, manifesta-se, de fato, naquele que, certamente, é um dos mais fascinantes entre os institutos jurídicos que foram criados pelo engenho do homem e, com certeza, um dos mais significativos da época em que vivemos. (...) É, exatamente, na garantia de uma superior legalidade, que o controle judicial de constitucionalidade das leis encontra sua razão de ser: e trata-se de uma garantia que, por muitos, já é considerada como um importante, se não necessário, coroamento do Estado de direito e que, contraposta à concepção do Estado absoluto, representa um dos valores mais preciosos do pensamento jurídico e político contemporâneo. 47 Assim, o controle de constitucionalidade é uma atividade inata ao exercício da jurisdição constitucional, voltado precipuamente à proteção da Constituição. Entretanto, deve-se ressaltar que embora o controle de constitucionalidade seja um instrumento de importância ímpar ao exercício da jurisdição da constitucional, por ser ferramenta 46 BULOS, Uadi Lammego. Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p 10. 47 CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Trad. Aroldo Plínio Gonçalves. 2 ed – Porto Alegre: Fabris, 1984, reimp. 1999. p. 129. 35 imprescindível à garantia da supremacia da Constituição e ao equilíbrio do ordenamento jurídico, não é, porém, capaz de garantir a efetividades dos princípios do Estado Democrático de Direito. Portanto, falar em jurisdição constitucional não implica somente na abordagem da questão do controle de constitucionalidade, mas também na atividade jurisdicional voltada à tutela e à efetivação dos direitos e garantias fundamentais constitucionalmente consagrados. E é nesse sentido de proteção aos direitos fundamentais que Streck considera a jurisdição constitucional como “condição de possibilidade do Estado Democrático de Direito”48. Portanto, a jurisdição constitucional provoca debates tanto em matéria relativa ao controle de constitucionalidade como também em relação à tutela dos direitos fundamentais, que se constituem em princípios essenciais do Estado Democrático de Direito. Porém, como o cerne do presente trabalho diz respeito ao controle de constitucionalidade de normas na análise da jurisdição constitucional, enfatiza-se o aspecto da fiscalização de constitucionalidade. A precisa compreensão da Constituição como norma fundamental impõe a existência do mecanismo de controle de constitucionalidade para a garantia dessa qualidade, com o fito de manter a subordinação de todo o sistema normativo aos seus preceitos formais e materiais. É cediço na doutrina jurídica que o exercício da jurisdição constitucional, através do controle de constitucionalidade das normas jurídicas, pressupõe a presença de alguns elementos, como: a) a existência de uma Constituição formal; b) que a Constituição seja a norma fundamental do ordenamento jurídico, e c) a existência de, ao menos, um órgão com a atribuição jurisdicional para o exercício dessa atividade de controle. 49 Assim, para que haja a jurisdição constitucional, pressupõe, destarte, a existência de uma Constituição formalmente escrita, ou seja, de um conjunto normativo composto por princípios e 48 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 27. 49 CLEVE, Clèmerson Merlim. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 28-34. 36 regras escritas em um texto jurídico solene, pensado e inserido no ordenamento jurídico como produto da razão do poder constituinte. Infere-se com isso que as constituições não escritas, ou consuetudinárias, como são criadas gradualmente, por serem obras do costume, práticas jurisprudenciais e textos legislativos esparsos cristalizados ao longo do tempo e da história, não há distinção formal entre norma constitucional e infraconstitucional, não existindo assim entre elas uma hierarquia escalonada de normas, sendo a Inglaterra um exemplo deste sistema. Em países como esse, não há a supremacia da Constituição, e sim, a supremacia Parlamento, que tem ampla liberdade de conformação normativa, não podendo jamais o Judiciário excluir uma norma do ordenamento jurídico, pois não existe a supremacia da Constituição. Além da existência de Constituição escrita, o controle de constitucionalidade tem, também, como pressuposto, a existência de um sistema normativo organizado nos moldes de Kelsen, ou seja, uma estrutura piramidal hierarquizada onde as normas constitucionais estejam no topo desse ordenamento jurídico, subordinando e condicionando todas as demais normas inferiores. Surge com isso a distinção entre normas constitucionais (também chamadas de supremas ou superiores) e normas comuns (chamadas de infraconstitucional). Sobre a necessidade de distinção entre normas constitucionais e comuns, nesse sentido preceitua Ferrari: Cientes da necessidade de uma harmonia normativa em um sistema jurídico, é preciso que, além de termos admitido a diferença existente entre uma lei constitucional e uma lei ordinária, admitamos que, quando essa diferença não mais existir, quando ambas estiverem em posição de igualdade no sistema, não poderemos mais falar em adequação das normas ordinárias às constitucionais, pois foi anulada a superioridade destas em relação àquelas. Faz-se mister esclarecer que isto só é possível acontecer efetivamente em um sistema onde o critério de diferenciação entre as normas constitucionais e ordinárias já não seja o material – que considera como elemento discriminatório apenas a matéria tratada pela norma -, mas sim o formal, que considera o regime jurídico das mesmas, pois, se o tratamento jurídico for igual para duas categorias normativas, estamos frente a duas normas de igual valor, independentemente da matéria a ser tratada. 50 50 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:Revista dos Tribunais, 1999, p. 46. 37 Como já dito em linhas anteriores, ess superioridade da Constituição, que a faz fundante de todo ordenamento jurídico, só é alcançada em razão de sua rigidez, ou seja, da existência de um processo especial de alteração da Constituição que seja mais dificultoso do que aquele que é previsto para a elaboração e alteração das leis infraconstitucionais. Isso porque sem a existência de um processo distinto e rigoroso de alteração da Constituição, esta poderia ser alterada da mesma forma de uma lei ordinária, o que implica a inexistência de hierarquia entre a norma constitucional e a lei comum, pois estariam em situação de horizontalidade. Isso significa dizer que somente as constituições dotadas de alguma rigidez podem ser objeto de controle de constitucionalidade, haja vista que nas constituições flexíveis a incompatibilidade de conteúdo entre a norma constitucional e a norma comum posterior implica a revogação da norma constitucional, vez que inexistindo hierarquia entre elas, a lei posterior revoga a anterior, que é incompatível. Portanto, a rigidez constitui pressuposto indeclinável do controle de constitucionalidade, pois, sem ele não há supremacia da Constituição e consequentemente não haverá necessidade de um mecanismo de averiguação de constitucionalidade. O terceiro pressuposto necessário ao controle de constitucionalidade é a existência de pelo menos um órgão com a competência de analisar se um determinado ato é incompatível ou não com a Constituição. Dependendo do órgão que exerce o controle, este pode ser chamado de controle político, jurisdicional ou misto 51 . O controle é chamado de político quando o órgão que o exerce é político, ou seja, por órgãos integrantes da estrutura do Legislativo (como por exemplo, a Comissão de Constituição e Justiça) ou do Executivo através do veto oposto a projeto de lei que padece de alguma inconstitucionalidade. Já o controle jurisdicional é aquele que é exercido por órgão dotado de 51 MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 1059-1060. 38 jurisdição, podendo ou não integrar a estrutura do Judiciário. Já o controle misto é aquele que, procurando conciliar os pontos positivos e negativos desses dois modelos, adota tanto o controle político como o jurisdicional, como é o caso do Brasil e de Portugal. Entretanto, apesar de termos no Brasil um controle misto, prepondera o controle jurisdicional de constitucionalidade, que desde a sua introdução no ordenamento brasileiro, através da Constituição de 1891, sempre foi exercida pelos órgãos integrantes do poder Judiciário em razão da influência do sistema americano da judicial review, que entendendo ser a Constituição a norma suprema de um país, cabe a qualquer juiz ou tribunal aplicar a Constituição sempre que uma lei for com ela incompatível 52 . Sobre a imprescindibilidade da existência de pelo menos um órgão para realizar a fiscalização de constitucionalidade, esclarece Clève: O principal mecanismo de defesa ou de garantia da Constituição consiste na fiscalização da constitucionalidade. Mas a fiscalização somente ocorrerá se a própria Constituição atribuir, expressa ou implicitamente, a um ou mais órgãos, competência para exercitá-la. Esse órgão tanto pode exercer função jurisdicional, como política; também pode, no primeiro caso, integrar a estrutura do Judiciário, como residir fora dela. Importante é que promova a fiscalização da constitucionalidade dos atos normativos do Poder Público, censurando aqueles violadores de preceitos ou princípios constitucionais. 53 Destarte, têm-se no Brasil todos os pressupostos necessários ao exercício da jurisdição constitucional, pois há uma Constituição escrita, dotada de rigidez e que se encontra no ápice do ordenamento jurídico nacional e que possui no Judiciário o seu principal órgão de controle de constitucionalidade. 2.4 A LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DA JURISIDIÇÃO CONSTITUCIONAL 52 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.66. 53 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no Direito brasileiro. 2ª edição revista, atualizada e ampliada, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 34. 39 A grande expansão da intervenção dos órgãos jurisdicionais na concretização da norma jurídica constitucional ou infraconstitucional, e somando-se a isso o exercício do controle de constitucionalidade das leis, permitindo que a jurisdição constitucional exclua do ordenamento jurídico norma incompatível com a Constituição, mesmo que seja oriunda de órgão de representação do povo, como é o caso do Legislativo e Executivo, fez com que fosse questionado o exercício dessa atividade pelo poder Judiciário, arguindo-se em seu desfavor a falta de legitimidade por déficit democrático. Tal objeção se funda precipuamente nos seguintes argumentos: I) na dificuldade contramajoritária 54 , resultante da ideia de que os juízes, por não serem eleitos pelo povo, não deveriam ter competência para anular as leis estabelecidas pelos representantes do povo; II) na falta de um controle democrático sobre as decisões definitivas tomadas pelos Tribunais Constitucionais; e III) na impossibilidade de demonstrar-se racionalmente, o porquê de considerar que esses juízes protegem melhor os direitos fundamentais do que as legislaturas democráticas. No decorrer deste tópico, será demonstrado que esses questionamentos não são capazes de infirmar a legitimidade do exercício da jurisdição constitucional. Aqueles que são refratários ao exercício da jurisdição constitucional defendem um modelo de democracia de natureza procedimental, no qual a Constituição seria destituída de conteúdo material e que teria apenas o papel instrumental de definir as regras do jogo político, garantir a participação democrática e a regulação do processo de tomada de decisões. Assim, caberia aos representantes do povo definir as suas escolhas e as suas decisões. 54 Segundo Luís Roberto Barroso, a expressão contramajoritário atribui-se a Alexander Bickel, na obra The Least Dangerous Branch, publicada em 1986, onde mostra a sua preocupação com o ativismo judicial da Suprema Corte Americana, cujos membros não são eleitos pelo povo, mas podem invalidar atos do Legislativo, cujos agentes são escolhidos pelo povo e representam a vontade majoritária (BARROSO, Luís Roberto. Gestão de fetos anencefálicos e pesquisas com células-tronco: dois temas acerca da vida e da dignidade na Constituição. In: CAMARGO, Marcelo Novelino. Leituras complementares de Constitucional: direitos fundamentais. 4. ed. Salvador: Juspodivm, 2010. pp. 161-192; 187). Além de Bickel, o argentino Roberto Gargerella sustenta, também, o caráter contramajoritário do Poder Judiciário, pois para ele o controle de constitucionalidade de leis e atos normativos não pode ser submetido a apenas um órgão, pois prejudicaria a vontade popular (apud GARCIA, Emerson. Jurisdição constitucional e legitimidade democrática. Ibid., p. 65. 40 Nesse caso, para os defensores da democracia procedimentalista, a pauta de valores substantivos não estaria na Constituição e esses valores seriam construídos e escolhidos pela sociedade por meio de uma deliberação democrática, ou seja, pelos poderes representativos do povo, quais sejam o poder Executivo e o poder Legislativo. Destarte, para os defensores do procedimentalismo, o poder Judiciário deve apenas intervir como instrumento de garantia do exercício da democracia, não sendo possível, portanto, conferir ao órgão judicante a possibilidade de excluir normas emanadas dos órgãos de representação popular e decidir sobre assuntos de ordem política, o chamado ativismo judicial, visto que a deliberação sobre os valores materiais de uma sociedade por membros do Poder Judiciário não eleitos pelo povo atentaria ao princípio democrático. Essa postura em relação à jurisdição constitucional com base no procedimentalismo da democracia é defendida, por exemplo, por John Hart Ely, Jürgen Habermas, Carlos Santiago Nino 55 , entre outros. Esses filósofos defendem que os valores da sociedade só podem ser delineados através de um debate democrático realizado pela própria sociedade, e não pelo poder Judiciário, que não teria legitimidade, pois seus membros não teriam sido escolhidos pelo povo. Entretanto, o pensamento puramente procedimentalista não tem como vingar, pois a Constituição, além de estabelecer as regras e os princípios do sistema político e servir de instrumento de garantia das instituições democráticas do Estado, também é dotada de conteúdo de material mínimo, estabelecendo direitos e valores que direcionam o caminho a ser percorrido pelo Estado e que deverão ser concretizados pelos poderes constituídos. Com efeito, apesar de a tese da legitimidade democrática no exercício da jurisdição constitucional ser amplamente dominante na doutrina e jurisprudência mundial, tal discussão está longe de ser superada, pois o debate sobre a interpretação e os contornos do alcance da norma constitucional sempre colocará em evidência a tensão dialética entre a jurisdição constitucional, 55 Apud KOSICKI, Katya e BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Jurisdição constitucional brasileira: entre constitucionalismo e democracia. Florianópolis: Revista Sequência, n.º 56, jun. 2008, pp. 151-176; 154. 41 com a sua função de assegurar a supremacia, a unidade e a realização da Constituição, e o Executivo e o Legislativo que, por serem compostos por pessoas escolhidas pelo povo, representam a vontade da maioria e possuem certa discricionariedade na conformação da Constituição. A problemática sobre o enfrentamento de casos com implicâncias de ordem políticas pela jurisdição constitucional já fora percebida à época do surgimento do controle de constitucionalidade com a judicial review nos Estados Unidos, no século XIX, e isso não foi empecilho suficiente para o seu sucesso e expansão pelo mundo. Já advertia Tocqueville que, com o surgimento da jurisdição constitucional o grande poder político centrava-se nas mãos dos juízes. Tocqueville 56 descrevia que “quase não há questão política nos Estados Unidos que não se transforme, mais cedo ou mais tarde, em uma questão judicial”. Isso porque, nos Estados Unidos e em boa parte dos países do mundo, as divergências surgidas entre os órgãos político-constitucionais ou a respeito de suas condutas ficam submetidas ao juízo daqueles órgãos incumbidos pela exercício da jurisdição constitucional. Os órgãos da jurisdição constitucional exercem, desse modo, uma função de juiz dos demais órgãos estatais, de árbitro supremo dos conflitos entre os poderes 57 . Rui Barbosa já descrevia essa característica do Judiciário dos Estados Unidos, que “ele é o derradeiro árbitro, em todos os assuntos concernentes aos poderes distribuídos na Constituição, o juiz irrecorrível de seus próprios direitos, assim como dos do Congresso e do Executivo”58. Essa intervenção jurisdicional na análise da conduta dos órgãos políticos faz com que surjam decisões que se revestem de caráter político. Entretanto, não há dúvida de que a intervenção demasiada e sem critérios da jurisdição constitucional nas opções políticas afetas ao Legislativo e ao Executivo, sob o argumento de se 56 TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 113. 57 LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. 2. ed. Barcelona: Ariel, 1970, p. 312. 58 BARBOSA, Rui. Os atos institucionais do Congresso e do Executivo. In Obras seletas de Rui Barbosa: trabalhos jurídicos. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1962, p. 94. 42 realizar os primados fundamentais do Estado Democrático de Direito, pode prejudicar o exercício da democracia, transformando o Estado em “governo dos juízes”. Esse “risco democrático” é apontado de forma enfática pelo alemão Dieter Grimm, ao criticar o ativismo judicial da Suprema Corte dos Estados Unidos, cujo pensamento é sintetizado por Gilmar Mendes, nos seguintes termos: As decisões da Corte Constitucional estão inevitavelmente imunes a qualquer controle democrático. Essas decisões podem anular, sob a invocação de um direito superior que, em parte, apenas é explicitado no processo decisório, a produção de um órgão direta e democraticamente legitimado. Embora não se negue que as Cortes ordinárias são dotadas de um poder de conformação bastante amplo, é certo que elas podem ter a sua atuação reprogramada a partir de uma simples decisão do legislador ordinário. Ao revés, eventual correção na jurisprudência de uma Corte Constitucional somente há de se fazer, quando possível, mediante emenda. 59 Nota-se desse modo que o controle de constitucionalidade que fora criado pela Constituição para servir como seu guardião e consequentemente como instrumento de preservação da própria democracia pode o seu intervencionismo desmedido em determinados assuntos prejudicar o desenvolvimento do próprio Estado Constitucional. Entretanto, essa ameaça não pode ser solucionada com a eliminação do controle de constitucionalidade e com o fim da concretização das normas constitucionais, devendo assim a jurisdição constitucional exercer a sua função dentro de balizas, demonstradas abaixo, que possam preservar o equilíbrio do sistema. Contudo, não se pode olvidar das razões que levaram a expansão da jurisdição constitucional e, consequentemente, a intensificação do debate sobre a legitimidade de sua atuação. Nesse diapasão, “é possível afirmar que a Justiça, longe de ser concebida como uma força exógena ao sistema democrático, nela está ínsita, atuando como elemento de recomposição 59 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: hermenêutica constitucional e revisão de fatos e prognoses legislativas pelo órgão jurisdicional, In: Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. São Paulo: Cels o Bastos Editor, 1998, p. 463. 43 da normalidade (almejada), o que permite serem contornadas as deficiências estatais”60. E esse papel do Judiciário é sentido ainda mais no Estado Democrático de Direito, tendo em vista que nesse modelo o Direito exerce função transformadora, vez que as normas da Constituição necessitam ser concretizadas. Nesse contexto, a Constituição deixa de ser mero programa e passa a estabelecer direitos e valores que necessitam ser efetivados em razão de sua força normativa. Streck explica a evolução histórica da função transformadora das Constituições no Estado Democrático de Direito nos seguintes termos: A democratização social, fruto das políticas do Welfare State, o advento da democracia no segundo pós-guerra e a redemocratização de países que saíram de regimes autoritários/ditatoriais, trazem à luz Constituições cujos textos positivam os direitos fundamentais e sociais. Esse conjunto de fatores redefine a relação entre os Poderes do Estado, passando o Judiciário (ou os tribunais constitucionais) a fazer parte da arena política, isto porque o Welfare State lhe facultou o acesso à administração do futuro, e o constitucionalismo moderno, a partir da experiência negativa de legitimação do nazifascismo pela vontade da maioria, confiou à justiça constitucional a guarda da vontade geral, encerrada de modo permanente nos princípios fundamentais positivados na ordem jurídica. Tais fatores provocam um redimensionamento na clássica relação entre os Poderes do Estado, surgindo o Judiciário (e suas variantes de justiça constitucional, nos países que adotaram a fórmula dos tribunais ad hoc) como uma alternativa para o resgate das promessas da modernidade, onde o acesso à justiça assume um papel de fundamental importância, através do deslocamento da esfera de tensão, até então calcada nos procedimentos políticos, para os procedimentos judiciais. 61 Com isso, as constituições democráticas impõem à edição de leis voltadas à operacionalização de seus comandos, viabilizando a sua eficácia normativa, não existindo mais, assim, uma liberdade política irrestrita e imune a toda e qualquer forma de controle, prova disso que temos no Brasil, por exemplo, as figuras do Mandado de Injunção e a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por Omissão. E nos países em que a ideologia participativa do povo não se encontra ainda sedimentada, como é o caso do Brasil e de tantos outros países, em que parcela significativa dos direitos 60 GARCIA, Emerson. Jurisdição constitucional e legitimidade democrática: tensão dialética no controle de constitucionalidade. In: NOVELINO, Marcelo. Leituras complementares de constitucional: controle de constitucionalidade. 3. ed. Salvador: Juspodvm, 2010, p. 62. 61 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do Direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 148. 44 fundamentais não são efetivados pelos poderes públicos, principalmente aqueles cujos representantes são escolhidos pelo povo, o poder Judiciário assume uma importância ímpar no equilíbrio institucional e na manutenção da atuação do Estado de maneira compatível com as opções políticas fundamentais estabelecidas na Constituição. À guisa disso, quando os preceitos das constituições não são postos em prática pelo Estado através de suas estruturas democráticas, diante dessa falência não resta ao cidadão senão recorrer ao Judiciário, para que possa fazer valer o preceito constitucional, cuja atuação é direcionada pela norma jurídica, e não diretamente por um ideário político, ou seja, como sustenta Enterria, não é intento da justiça constitucional substituir-se à política 62 . A efetivação da Constituição através da atuação do poder Judiciário coloca em evidência a intensa interação entre o sistema político e o sistema jurídico. No sistema político, de uma sociedade pluralista e igualitária, não há mais espaço para prestigiar a concepção restritiva e tradicional de democracia, como sendo simplesmente o governo da vontade da maioria. A democracia contemporânea deve ser mais do que isso, pois, além de ser o governo da maioria do povo (e não das elites, dos grupos econômicos, corporações etc.) deve estender, também, proteção à minoria, impedindo que esta seja oprimida pela maioria ou excluída do processo político. Se no campo político a democracia não for pensada dessa forma, a maioria poderia proibir a existência de uma determinada religião; distinguir etnias, culturas ou tendências políticas; proibir as minorias de continuar exprimindo a sua dissenção de pensamento contra a maioria. Se fosse assim, não se estaria diante de uma verdadeira democracia, e sim, de um despotismo da maioria contra a minoria. Dworkin visualizou esse papel primordial da Constituição, que para ele não seria apenas um instrumento de proteção dos indivíduos, mas também dos grupos minoritários, contra decisões 62 ENTERRIA, Eduardo Garcia de. La Constitucion como norma y el Tribunal Constitucional. 3. ed. Madrid: Civitas, 2001, p. 188. 45 da maioria, mesmo que essa maioria estivesse convencida de que sua decisão estaria promovendo o bem-estar geral. Assim, segundo Dworkin: A teoria constitucional em que se baseia nosso governo não é uma simples teoria da supremacia das maiorias. A Constituição, e particularmente a Bill of Rights (Declaração de Direitos e Garantias), destina-se a proteger os cidadãos (ou grupos de cidadãos) contra certas decisões que a maioria pode querer tomar, mesmo quando essa maioria age visando o que considera ser o interesse geral ou comum. 63 Por isso, apesar de o voto ser considerado imprescindível ao sistema de democracia representativa, ele não é capaz, de por si só, garantir escolhas e decisões justas, uma vez que o princípio majoritário não assegura a igualdade política, ou seja, o resultado do voto majoritário representa apenas vontade da ideologia política vencedora, pode representar o desejo de uma maioria ocasional, e não necessariamente o bem comum ou o interesse de todos. Por tudo isso, o poder da maioria na democracia não pode ser considerado absoluto, devendo a sua atuação ser pautada nos limites fixados pela própria Constituição. Não se pode esquecer que a mesma Constituição que estabelece a forma democrática do Estado tem em sua essência, como pedra de toque, a ideia de limitação e contenção do poder estatal pela consagração dos direitos fundamentais e separação das funções estatais. E a jurisdição constitucional, na qualidade de guardiã da Constituição, está investida de poderes, outorgados pelo povo através do poder constituinte originário, para combater o abuso das maiorias, podendo, portanto, limitar a liberdade de deliberação dos representantes eleitos pelo povo toda vez que editarem normas que desprestigiem direitos fundamentais previstos na Constituição ou se recusarem a pôr em prática os preceitos constitucionais, e em casos assim, a decisão do Tribunal tem caráter político. 63 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011, pp. 208-209. 46 Por isso que Zagrebelsky diz que duas são as condições da justiça constitucional: uma, de caráter jurídico-formal, outra, de caráter político-substancial, cifrada no pluralismo das forças constitucionais; a primeira, teórica; a segunda, pragmática. 64 Nota-se, assim, que no Estado Democrático de Direito a soberania do Poder Legislativo perdeu seu espaço para a soberania e supremacia da Constituição, em face da qual o Legislativo, por ser um poder constituído, é vinculado pelas normas constitucionais, e o princípio da separação dos poderes é mitigado pela prevalência dos direitos fundamentais ante o Estado 65 . Desse modo, a Constituição, por possuir um conteúdo material, veicula consensos mínimos e fundamentais para a dignidade das pessoas e para o funcionamento democrático, impedindo que as maiorias possam excluir as minorias do cenário político e social, comprometendo o próprio pluralismo democrático do atual Estado de Direito. Portanto, a Constituição estabelece uma situação de equilíbrio, onde o governo da maioria deve conviver com os direitos das minorias, geralmente alçados à categoria de direitos fundamentais (como, por exemplo, o direito de liberdade, de igualdade e de não discriminação), já que em uma sociedade pluralista, todos, sem qualquer distinção, devem ser protegidos, e não apenas a maioria de ocasião. Cunha Júnior mostra a importância da jurisdição constitucional ante as deficiências vivenciadas no sistema representativo de democracia e na proteção das minorias contra as maiorias: Destarte, o constitucionalismo contemporâneo encarece um Estado Democrático de Direito construído sobre os pilares do regime democrático e dos direitos fundamentais, de tal modo que as Constituições contemporâneas imunizam-se contra as próprias maiorias, quando estas não estão a serviço da realização dos direitos fundamentais ou tendem a sufocar as minorias. Nesse particular, vale o registro da “crise” pela qual passa o sistema representativo, onde a maioria parlamentar, em regra, não corresponde com a vontade popular, uma vez que a representação política não mais se presta como efetivo instrumento de representação dos interesses da população, circunstância que vem fortalecendo a descoberta de novos instrumentos 64 ZAGREBELSKY, Gustavo. La giustizia constituzionale. Bologna: II Mulino, 1989, p.14. 65 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de constitucionalidade, teoria e prática. 6. ed. Salvador: Jus Podivm, 2012, p 47. 47 de representação popular. Neste cenário de crise do sistema representativo, ainda mais agravado pela busca incessante, por outros caminhos legítimos, de pressão ao governo, torna-se cada vez mais necessário o reconhecimento da jurisdição constitucional como remédio eficiente contra as maiorias. 66 E para que a Constituição possa manter esse equilíbrio entre a maioria e a minoria, ela deve ser efetivada com sucesso, e para que isso seja garantido, é imprescindível a presença de mecanismos para a sua proteção, o que se faz através da atuação da jurisdição constitucional. Sobre essa concepção de democracia, pontifica Barroso: A democracia não mais se assenta no princípio majoritário, mas, também, na realização de valores substantivos, na concretização dos direitos fundamentais e na observância de procedimentos que assegurem a participação livre e igualitária de todas as pessoas nos processos decisórios. A tutela desses valores, direitos e procedimentos é o fundamento de legitimidade da jurisdição constitucional. 67 Essa efetivação da Constituição por meio do poder Judiciário faz com que a política passe a ser vista através das lentes do Direito, fenômeno este chamado de “judicialização da política”, pelo francês Antoine Garapon 68 . Nesse passo, o crescimento da jurisdição constitucional é acompanhado pelo desenvolvimento da atividade hermenêutica dos juízes, que deixa de ser vista como uma atividade meramente subsuntiva, mecânica, desprovida de qualquer participação criativa do intérprete e voltada precipuamente ao conhecimento e à declaração do sentido unívoco da norma, ou seja, o juiz deixa de ser meramente a boca que pronunciava a vontade da lei. Isso porque a Constituição, por conter normas principiológicas e esquemáticas, de textura aberta e de maior grau de abstração, não possui um sentido unívoco, permitindo assim um conjunto de possibilidades interpretativas 69 . 66 CUNHA JÚNIOR, Dirley da Cunha. Controle de constitucionalidade, teoria e prática. 6. ed. Salvador: Jus Podivm, 2012, p 48. 67 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.81. 68 GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Trad. Maria Luíza de Carvalho. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 25. 69 Ideia esta que se compatibiliza com a concepção de Canaris de sistema jurídico aberto (CANARIS, Claus- Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na Ciência do Direito. Trad. A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1996, p. 66). 48 Esclarece Pereira que a Constituição deve ser compreendida sempre em caráter inacabado, facilitando a movimentação hermenêutica e proporcionando a atualidade da Constituição: Assim, antes de a Constituição ser individual e concreta, ela é atual. Ademais, o conceito de Constituição no Direito Constitucional não deve se consolidar, porque é necessária uma constante discussão referente ao seu objeto e fundamento. As novas problemáticas que vão surgindo não permitem a consolidação de um único conceito, porque não seria suficiente para fundamentar os diversos institutos constitucionais. Pode ser obtido, apenas, um consenso para uma momentânea “opinião dominante”.70 Essa amplitude na interpretação da norma constitucional é corroborada pelo pensamento de Kelsen 71 , de que a interpretação da lei não deve conduzir a uma única solução correta ao caso, vez que a norma estabelece uma moldura da qual existem várias possibilidades de interpretação, cabendo ao intérprete e ao aplicador da norma decidirem sobre a escolha de uma dessas possibilidades. Isso faz com que o exercício da atividade hermenêutica na jurisdição constitucional, por levar o intérprete a participar da escolha de uma das possibilidades interpretativas decorrentes do programa da norma, através de um juízo de valoração, seja considerado também como um ato de criação e de vontade por parte do juiz. Em sua clássica obra, escrita em 1908, Jean Cruet já ressaltava a impossibilidade de separação do magistrado da criatividade jurídica: O juiz, esse “ente inanimado”, de que falava Montesquieu, tem sido na realidade a alma do progresso jurídico, o artífice laborioso do direito novo contra as fórmulas caducas do direito tradicional. Esta participação do juiz na renovação do direito é, em certo grau, um fenômeno constante, podia dizer-se uma lei natural da evolução jurídica: nascido da jurisprudência, o direito vive pela jurisprudência, e é pela jurisprudência que vemos muitas vezes o direito de evoluir sob a legislação imóvel 72 . Essa conclusão também é compartilhada por Binenboj, que expressa: Deste modo, tanto o legislador como o juiz criam o Direito, embora o primeiro disponha de maior margem de conformação que o segundo. A atividade jurisdicional 70 PEREIRA, Erick Wilson. Direito eleitoral: interpretação e aplicação das normas constitucionais-eleitorais. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 188. 71 KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 366. 72 CRUET, Jean. A vida do Direito e a inutilidade das leis. Salvador: Livraria Progresso, 1956, p. 24. 49 não se reduz, portanto, à mera aplicação de uma vontade preexistente do legislador. É ela constituída, simultaneamente, por um ato cognitivo (de definição das possibilidades abertas pela moldura da norma) e por um ato volitivo (de escolha de uma dessas possibilidades). 73 Esse fenômeno da jurisdição constitucional, que decide com base em escolhas realizadas pelo intérprete e possibilitadas pelo programa da norma constitucional, semelhantemente ao que acontece com as atividades de escolhas políticas do Legislativo e do Executivo (que praticam, também atos de criação e de vontade), chama-se de “politização da justiça”74. No entanto, essa “politização da justiça constitucional” não significa dizer que os juízes assumiram as atividades exclusivas dos poderes políticos, e sim, traduz em instrumento para superação da ineficácia das estruturas políticos tradicionais 75 . Assim, quando as estruturas políticas editam normas incompatíveis com a Constituição ou quando se mostrarem incapazes de pôr em prática os preceitos da mesma, caberá à jurisdição constitucional instituir meios de efetivá- los. Não obstante a importância da jurisdição constitucional, entretanto, por lidar com assuntos políticos, deve a sua atuação ser pautada por balizas, para não invadir de forma indevida as competências políticas dos poderes de representação popular. O primeiro dessas balizas é que o pronunciamento da jurisdição constitucional aconteça no âmbito de um processo judicial, mediante provocação de algum legitimado e delimitado em um contexto para a sua análise, para evitar a atuação de ofício e de forma parcial e na prolação de decisões genéricas 76 . Destarte, a jurisdição constitucional, da mesma forma que acontece no 73 BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira: legitimidade democrática e instrumentos de realização.3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 66. 74 GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Trad. Maria Luíza de Carvalho. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 25. 75 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema judicial e decisão judicial. São Paulo: Max Limonad, 2002, pp. 57-63. 76 GARCIA, Emerson. Jurisdição constitucional e legitimidade democrática: tensão dialética no controle de constitucionalidade. In NOVELINO, Marcelo. Leituras complementares de constitucional: controle de constitucionalidade. 3. ed. Salvador: Juspodvm, 2010, p. 69. 50 exercício da jurisdição comum, é inerte, e sua atuação pressupõe o exercício do direito de ação por algum legitimado e a instauração do devido processo legal. Outra baliza gravita em torno da interpretação e aplicação da norma constitucional, que, como já dito acima, lida com conceitos abertos e indeterminados, cuja densificação sujeita-se à pré-compreensão e à ideologia dos juízes encarregados do exercício da jurisdição constitucional 77 . Desse modo, deve ser utilizado um método de interpretação que possa conter, dentro de limites razoáveis, a discricionariedade judicial (haja vista que, como dito em linhas pretéritas, a jurisdição constitucional pratica ato de vontade ao realizar a escolha da interpretação a partir da moldura norma), impedindo que esta se torne uma instância autoritária de poder, invadindo desse modo a seara das decisões políticas conferidas aos poderes representativos. Assim, a interpretação constitucional deve conduzir a uma decisão judicial que possa se situar no limbo entre a autocontenção (que não permite, em hipótese alguma, a intervenção em temas que adentrem em questões de ordem política) e o ativismo (que implica na intervenção judicial nas questões de ordem política). Esse ponto de equilíbrio deverá ser buscado a partir de uma interpretação que privilegie a aproximação da norma aos contornos da realidade 78 , pois quanto maior a aproximação entre o texto e a realidade da sociedade, menor será a probabilidade de que a decisão invadiu a esfera política alheia ou que não se efetivou o direito assegurado pela norma constitucional por omissão do poder público, pois nesse caso a interpretação 79 e a aplicação da norma constitucional traduzirão a expressão da vontade popular 80 . 77 COELHO, Inocêncio Mártires. Constitucionalidade/inconstitucionalidade: uma questão política? Revista Jurídica Virtual, Brasília, v. 2, n.º 13, junho, 2000. Artigo disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_13/ques_politica.htm. Acesso em 8 de abr. de 2013. 78 Preocupado com a falta de segurança jurídica em razão de interpretações distintas em casos semelhantes, Friedrich Müller cria uma teoria pós-positivista de hermenêutica constitucional, na qual elabora uma metódica de concretização da norma constitucional, a partir de elementos como âmbito normativo (que são os fatos político- sociais que irão influenciar ou serão influenciados pelo programa normativo) e o programa normativo (que são todos os elementos que gravitam em torno do texto normativo), até chegar à norma decisão.Nessa teoria Müller reconhece a importância social e política da sociedade, devendo assim integrar o conteúdo da norma, o que permite a atualidade do direito (MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do Direito. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2011, p. 249). 79 Segundo Eros Grau, a atividade interpretativa visa a compreensão dos textos normativos e dos fatos. Para ele, texto normativo e norma jurídica não se confundem, vez que a norma jurídica é o resultado da interpretação do texto normativo e dos fatos. Daí que para Eros Grau não se interpretam normas jurídicas, vez que estas resultam 51 Essa aproximação da atividade interpretativa da jurisdição constitucional junto à realidade da sociedade em que está inserida a Constituição faz com que a justiça constitucional se revista de legitimidade, sendo esta entendida como um relacionamento racional entre o comando emitido pela norma e um padrão de aceitação, como consenso da coletividade 81 . E essa forma de aproximação da interpretação da norma aos referenciais de aceitação da sociedade é alcançada se os intérpretes da Constituição não se limitarem aos juízes e às partes formais do processo, mas também alcançar todos os cidadãos e grupos sociais de uma sociedade pluralista. Ou seja, uma interpretação constitucional revestida do caráter democrático-participativo fomentada na ideia da “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição”, de Peter Häberle, segundo o qual: Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indireta ou até mesmo diretamente, intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico. Como não são apenas os intérpretes jurídicos da Constituição que vivem a norma, não detêm eles o monopólio da interpretação da constituição. 82 Assim, se a interpretação da norma deve representar a vontade popular, os seus intérpretes não podem ser reduzidos aos juízes e aos participantes do processo judicial constitucional, sob pena de a jurisdição constitucional se converter em uma instância autoritária de poder, devendo, também, alcançar todos os cidadãos, por vivenciarem e serem destinatários da norma constitucional. Portanto, embora as Cortes e Tribunais Constitucionais tenham importância significativa por serem as instâncias finais na definição da interpretação das constituições, suas decisões devem da interpretação (GRAU, Eros. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. 5. ed. São Paulo: Malheiros. 2009, pp. 26-27). 80 Adverte França que a recusa por parte do aplicador em usar a metodologia inerente às ciências filosóficas e sociológicas no direito poderá originar, equivocadamente, enunciados descritivos de uma realidade distante da sociedade e de seus problemas (FRANÇA, Vladimir da Rocha. O problema da delimitação do objeto da ciência do direito. Revista da FARN. Natal. v. I. 2002, pp. 173-194. p. 191. 81 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5. ed. São Paulo: Malheiros. 2003, p. 85. 82 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional – a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: Contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris editor, 1997, p. 15. 52 ser fundamentadas e expostas ao debate público perante a sociedade, para que possa referendar a sua legitimação. No Brasil, essa necessidade de participação democrática do povo na definição da interpretação a ser realizada pela jurisdição constitucional como requisitos de sua legitimidade é sentida por Bonavides: Nessa direção, a democracia participativa nos países periféricos, designadamente o Brasil, tem um papel de destaque se puder abrir a porta para o futuro com a proposta de um novo modelo de legitimidade. Quanto mais perto do povo estiver o juiz constitucional mais elevado há de ser o grau de sua legitimidade. E com base nesse imperativo, devemos inferir que a legitimidade da justiça constitucional repousa também em grande parte na acuidade do juiz em orientar-se nas suas sentenças e nas suas diligências hermenêuticas, pela adesão do corpo político aos valores representados e incorporados na Constituição. Não havendo tal adesão ou aprovação, exaure-se com certeza o manancial donde fluem os elementos morais, éticos, cívicos e patrióticos do dever de fidelidade que garante a causa pública e a ordem constitucional e traça-lhe a linha de continuidade e estabilidade que é a pauta de solidez do regime e das instituições. 83 Como diz Enterria, a fonte última de legitimação da jurisdição constitucional se encontra no “plebiscito diário” a que estão sujeitas e na capacidade de gerar consenso, de forma que sejam aceitas como justas e extraídas de valores constitucionais básicos 84 . Nessa mesma linha de pensamento, Alexy 85 sustenta que o Tribunal Constitucional se legitima quando a coletividade o aceita como instância de reflexão racional do processo político. Se um processo de reflexão entre coletividade, legislador e Tribunal Constitucional se estabiliza duradouramente – isto é, quando a Corte Constitucional adquire credibilidade política e social – pode-se afirmar que a institucionalização dos direitos do homem deu certo, no âmbito do Estado Democrático de Direito. 83 BONAVIDES, Paulo. Jurisdição constitucional e legitimidade (algumas observações sobre o Brasil). São Paulo, v. 18, n. 51, 2004. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ea/v18n51/a07v1851.pdf. Acesso em 24 abr. de 2013. 84 ENTERRIA, Eduardo Garcia de. La Constitucion como norma y el Tribunal Constitucional. 3. ed. Madrid: Civitas, 2001, p. 203. 85 ALEXY, Robert. Direitos fundamentais no Estado constitucional democrático. Para a relação entre direitos do homem, direitos fundamentais, democracia e jurisdição constitucional. Revista do Direito Administrativo n.º 217, jul./set. 1999, p. 66. 53 Com isso, a “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição” adota um modelo hermenêutico aberto que põe fim ao monopólio dos juízes na interpretação das normas constitucionais, que viabiliza um diálogo com os atores sociais para que estes possam contribuir de forma democrática com o significado a ser conferido da sua Constituição, permitindo destarte o tão sonhado sentimento constitucional e a legitimidade perante a sociedade da jurisdição constitucional. Portanto, em uma sociedade pluralista como a do Brasil, fundada em uma Constituição densificada por valores, muitos deles oriundos do campo ético-moral, com conteúdo aberto e que necessitam ser concretizados, se faz necessária a “a democratização do acesso e da participação social nos processos de interpretação e aplicação da Constituição como condição imperiosa de legitimidade das decisões proferidas pelo Tribunal Constitucional”86. Em suma, a atuação da jurisdição constitucional, seja realizando o controle de constitucionalidade, seja transformando em realidade os valores expressos na Constituição, dentro das balizas de contenção especificadas acima, é uma atividade legitimada de forma democrática. E isso se justifica, pois a jurisdição constitucional está amparada na vontade soberana do povo, traduzida por intermédio do Poder Constituinte que, ao instituir a Constituição, delegou à jurisdição constitucional a tarefa de garantir a sua supremacia, sua força normativa, a efetivação dos direitos fundamentais assegurados e a participação das minorias no processo democrático. Não se pode olvidar que a democracia não pode ser vista apenas de forma unilateral como manifestação do povo através do parlamento. Ao contrário, a democracia constitucional, como defende Rawls 87 , deve ser analisada de forma dualista: o Poder Constituinte se distingue do Poder Ordinário, do mesmo modo que a lei suprema do povo, a Constituição, se diferencia da lei ordinária dos órgãos legislativos. 86 BINENBOJM, Gustavo. A democratização da jurisdição constitucional e o contributo da lei n.º 9.868/99. In: NOVELINO, Marcelo. Leituras complementares de constitucional: controle de constitucionalidade. 3. ed. Salvador: Juspodvm, 2010, p. 93. 87 RAWS, Jonh. O liberalismo político. Trad. de Dinah de Abreu Azevedo. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000, p. 284. 54 Sendo assim, se a Justiça constitucional desempenha o papel de defesa da Constituição, combatendo os atos do parlamento e as omissões do poder público incompatíveis com a norma constitucional, não se pode chamá-lo de antidemocrático, pois a autoridade superior do povo, através do poder constituinte originário, lhe dá sustentação. Com isso, a jurisdição constitucional quando atua, por exemplo, como legislador negativo, afastando do ordenamento jurídico norma incompatível com a Constituição, estará praticando, sem dúvida, uma decisão contramajoritária em relação à lei ordinária do parlamento, entretanto, tal decisão não é antidemocrática, uma vez que é assegurada pela vontade suprema do povo, que a instituiu para controlar não só o funcionamento adequado do processo político em defesa das minorias como também para velar pelo respeito aos valores materiais consagrados pela Constituição do Estado Democrático de Direito. Portanto, a Constituição, por ser instrumento essencial à definição e limitação dos poderes do Estado e para a proteção dos direitos e garantias fundamentais, impõe a existência da jurisdição constitucional para garantir a sua supremacia, o exercício da democracia, o respeito às minorias e a eficácia dos direitos fundamentais, ainda que suas decisões possam atingir as atribuições dos Poderes Legislativo e Executivo. Desse modo, o exercício da jurisdição constitucional pelo Poder Judiciário dentro de limites estabelecidos pela própria Constituição e adotando uma postura de interpretação que aproxime a norma da realidade, buscando um diálogo com os atores sociais e políticos, produzindo na comunidade o sentimento constitucional, faz com que a sua atividade se revista de legitimidade democrática. Pôr em dúvida a própria legitimidade da jurisdição constitucional é pôr em dúvida a própria legitimidade do Poder Constituinte, pois a jurisdição constitucional é produto da vontade desse poder. Eliminar a jurisdição constitucional, sob o argumento da falta de legitimidade democrática, significa tornar a Constituição mera folha de papel, principalmente àqueles países 55 que não conseguiram ainda chegar a um estágio de desenvolvimento de garantir ao seu povo, ao menos, os direitos fundamentais imprescindíveis à dignidade da pessoa humana. Entrementes, em que pese o significado do debate sobre a legitimidade democrática da jurisdição constitucional, que continuará sendo realimentado por teses e antíteses amparadas nos mais diversos argumentos filosóficos e jurídicos, isto não suprime, contudo, a importância vivenciada pela jurisdição constitucional, mormente no Estado Democrático de Direito, na concretização dos valores supremos e na fixação dos contornos da interpretação da norma constitucional, pois, como preconiza Cappelletti, “a justiça constitucional expressa, em síntese, a própria vida, a realidade dinâmica, o vir a ser das Leis Fundamentais”88. 88 CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Trad. Aroldo Plínio Gonçalves. 2 ed – Porto Alegre: Fabris, 1984, reimp. 1999, p. 131. 56 3 O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 3.1 A SUPREMA CORTE E O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL NOS SISTEMAS DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE Cada país do mundo que adota algum mecanismo de fiscalização de constitucionalidade tem seu próprio modelo de controle, como por exemplo, Brasil, Japão, Alemanha, França, Portugal, Espanha etc. Entretanto, os sistemas de controle de constitucionalidade das leis, que são as matrizes das quais derivam os diversos modelos de jurisdição constitucional adotado pelo mundo afora, só existem dois, quais sejam o sistema americano (ou sistema da judicial review) e o austríaco, este último também chamado de sistema europeu continental de controle de constitucionalidade 89 . Essa duplicidade de sistemas de controle de constitucionalidade faz com que existam, também, dois grandes modelos de cortes supremas ou de cortes constitucionais no mundo 90 . Assim, no sistema americano tem-se a figura da Suprema Corte, enquanto no sistema austríaco tem-se o Tribunal ou Corte Constitucional. O sistema americano foi institucionalizado nos Estados Unidos em 1803 pela Suprema Corte a partir do julgamento do caso William Marbury versus James Madison, realizado Chief Justice Jonh Marshall 91 . Entretanto, deve-se atentar para o fato de que o raciocínio traçado por 89 BULOS, Uadi Lammego. Curso de Direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p 113. 90 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 69-70. 91 A história do caso Marbury versus Madison é contada por Uadi Lammêgo Bulos, que expressa: “Em 1801, William Marbury foi nomeado para o cargo de juiz de paz no Distrito de Columbia. O presidente John Adams, do Partido Federalista, foi quem o nomeou, nos precisos termos da lei. Como o presidente Adams estava terminando o seu mandato, não houve tempo hábil para empossar Marbury no cargo. Então o republicano Thomas Jefferson, ao assumir a Presidência dos Estados Unidos, mandou que o seu secretário de Estado, James Madison, negasse posse a Marbury. Este, inconformado com tal arbitrariedade, recorreu à Suprema Corte a fim de que o secretário Madison fosse obrigado a lhe dar posse. A problemática era muito mais política do que jurídica. Enquanto a Corte Suprema era composta, em sua maioria, por federalistas, o Congresso e o Executivo 57 Marshall em seu voto é fruto de um debate doutrinário bem anterior, como por exemplo, os escritos de Alexander Hamilton, bem como os de alguns precedentes julgados perante cortes estaduais, tais como Holmes contra Walton (decidido pela Corte Suprema de Nova Jersey em 1780) e o caso Commonwealth contra Caton (decidido pela Corte da Virgínia em 1782) 92 . Infere-se, portanto, que o controle de constitucionalidade nos Estados Unidos não surgira de modo expresso da Carta Constitucional norte-americana, e sim fruto de uma interpretação da Constituição realizada pela Suprema Corte a partir do caso Marbury versus Madison. No sistema em que existe a figura da Suprema Corte, o controle de constitucionalidade é atividade atribuída ao Poder Judiciário (judicial review), entretanto, não é exercido apenas por seu órgão de cúpula (Suprema Corte), mas também, por todos os demais juízes e tribunais integrantes do Poder Judiciário. Sendo assim, não existe apenas um único órgão responsável pela fiscalização de constitucionalidade, pois, todos os órgãos integrantes do judiciário, superiores e inferiores, federais ou estaduais, têm o poder e o dever de não aplicar as leis inconstitucionais nos casos concretos levados a julgamento 93 , daí a razão do sistema americano de controle de constitucionalidade ser chamado também de controle difuso. Isto porque sendo o Poder Judiciário o órgão responsável, na divisão dos poderes, pela aplicação norma jurídica tem ele o dever de zelar pela guarda da Constituição, norma maior do ordenamento jurídico, não permitindo com isso que outras normas possam afrontá-la. Essa ideia já era defendida por Hamilton no final do século XVIII, onde ao considerar a Constituição como eram controlados pelos republicanos, que nunca admitiram qualquer interferência direta do Judiciário nas deliberações do Executivo. Marshall, com argúcia, foi pelo ângulo da competência constitucional da Suprema Corte americana. Concluiu que a Lei Judiciária de 1789, que permitia ao Tribunal expedir mandados para sanar atos ilegais do Executivo, violava a Carta estadunidense, cujo art. III, seção 2, disciplinava a competência originária da Suprema Corte. Como as atribuições da Suprema Corte estavam, taxativamente, disciplinadas no Texto Magno dos americanos, o Congresso não poderia, por meio da Lei Judiciária de 1789, ampliá-las. (BULOS, Uadi Lammego. Curso de Direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 113). 92 CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Trad. Aroldo Plínio Gonçalves. 2 ed – Porto Alegre: Fabris, 1984, reimp. 1999, pp. 62-63. 93 Ibidem, p. 77. 58 lei fundamental concluiu que cabe aos juízes o papel de dar-lhe significado, tal como fazem com as demais leis, pois “a interpretação das leis é a própria e peculiar província dos tribunais”94. No sistema americano de controle de constitucionalidade, em especial nos países que seguem a tradição da common law, o papel importante assumido pela Suprema Corte reside na circunstância de que as suas decisões, por serem emanadas de um órgão superior, acabam por vincular todos os demais órgãos judiciais inferiores. Assim, a decisão da Suprema Corte, apesar de referir-se a um litígio específico, na hipótese de reconhecer a inconstitucionalidade de norma tal decisão produz um autêntico efeito erga omnes. Isso é viabilizado em razão do princípio da stare decisis, no qual os precedentes 95 das instâncias judiciais superiores ganham força vinculante, vez que o direito no sistema da common law 96 se constrói a partir dos mesmos. Com efeito, em razão do stare decisis, as decisões emanadas das cortes superiores passam a vincular as decisões dos juízos inferiores, fazendo com que decidam da mesma forma. Com isso, o princípio do stare decisis acaba por emprestar às decisões de um órgão de cúpula, como a Suprema Corte, a eficácia erga omnes. No sistema americano, o controle de constitucionalidade da norma em face da Constituição se dá durante o exame de um caso concreto, não havendo desse modo mecanismo algum de análise em abstrato da norma. Como aponta Cappelletti 97 , tradicionalmente “as questões de constitucionalidade das leis não podem ser submetidas ao julgamento dos órgãos judiciários „em via principal‟, ou seja, em um adequado e autônomo processo constitucional instaurado ad 94 HAMILTON, Alexander; JAY, Jonh; MADISON, James. Os artigos federalistas: 1787-1788. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 506. 95 Toda decisão judicial proferida por autoridade judiciária constitui o que se chama de precedente judicial. O precedente, por sua vez, não se confunde com a jurisprudência, pois esta pressupõe uma reiteração de decisões judiciais em um mesmo sentido. Assim, de certa forma, pode-se dizer que um conjunto de precedentes judiciais, em um mesmo sentido é chamado de jurisprudência. Esse pensamento é seguindo por Cruz e Tucci (TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2004, p. 12). 96 A distinção entre a civil law e a common law é apontada por Guido Fernando Silva Soares, segundo o qual no primeiro sistema, a civil law, a primeira leitura do advogado e do juiz é a lei e, subsidiariamente, a jurisprudência; no segundo, a common law, o caminho é inverso, pois primeiro é os cases e, a partir da constatação de uma lacuna é que vem a lei escrita (SOARES, Guido Fernando Silva. Common law – introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 5). 97 CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no Direito comparado. Trad. Aroldo Plínio Gonçalves. 2 ed – Porto Alegre: Fabris, 1984, reimp. 1999, p. 102. 59 hoc, com adequada ação”, sendo apenas possível a arguição de inconstitucionalidade nos incidentes surgidos no seio dos processos comuns. No entanto, vários fatores impediram a implantação do sistema de controle de constitucionalidade americano, a judicial review, na Europa. Primeiro, que a defesa da monarquia na Europa e a difusão das ideias de Lassale, de que a Constituição escrita não correspondia à Constituição real, produziram uma grande contestação sobre o valor da Constituição escrita como norma de hierarquia superior 98 ; o segundo fator é que os países da Europa continental, durante todo o século XIX e meados do século XX, viveram a sacralização da lei, vez que esta era concebida, naquele período, como fruto da razão e produto da vontade geral, por influência do positivismo jurídico 99 , sendo incontestável a soberania do parlamento na edição das leis. Com isso, não se visualizava a possibilidade e a importância de uma possível violação da Constituição por uma lei oriunda do parlamento. Assim, a existência do império da lei neste período constituiu óbice à implementação de mecanismos de controle de constitucionalidade na Europa; o terceiro fator é que nos sistemas de raiz romano-germânica, a ausência do princípio da stare decisis dificulta a adoção de um modelo difuso de controle de constitucionalidade, haja vista a possibilidade de decisões contraditórias a respeito de uma mesma lei, o que geraria uma forte insegurança jurídica; e o quarto fator foi a fidelidade ao princípio da separação dos poderes, tendo em vista que a ideia de que o Judiciário poderia julgar a constitucionalidade das leis editadas pelo parlamento, excluindo-as do ordenamento jurídico, subvertia a teoria da separação dos poderes, surgindo o receio do governo dos juízes 100 . 98 Neste sentido ZAGREBELSKY, Gustavo. La giustizia constituzionale. Bologna: II Mulino, 1989, p. 19 e ENTERRIA, Eduardo Garcia de. La Constitucion como norma y el Tribunal Constitucional. 3. ed. Madrid: Civitas, 1991. p. 55 e 130 apud LEAL, Roger Stielmann. O efeito vinculante na jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 44. 99 Segundo Bobbio, o positivismo jurídico surge juntamente com o Estado Moderno após a dissolução da sociedade medieval durante todo o século XIX e boa parte do século XX. Com o positivismo jurídico não se aceita mais a divisão do direito em direito natural e positivo, pois, para tal doutrina, não existe outro direito senão o positivo (BOBBIO, Noberto. O positivismo jurídico – lições de filosofia do Direito. Trad. Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone. 2006, p. 25-27). 100 LEAL, Roger Stielmann. O efeito vinculante na jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 46. 60 Com efeito, na Europa durante todo o século XIX e início do século XX a ausência de mecanismo de controle de constitucionalidade impediu que o caráter normativo pretensamente atribuído a Constituição saísse do texto normativo, fazendo com que ela fosse descumprida reiteradamente pelos próprios poderes públicos constituídos. Destarte, somente no século XX, ou seja, um século depois do surgimento da judicial review, é que surge na Europa o controle de constitucionalidade, o que ocorre a partir da Constituição da Áustria de 1920, quando vem pela primeira vez a figura do Tribunal ou Corte Constitucional. Esse sistema foi construído com base, principalmente, nas concepções e proposições teóricas de Kelsen 101 , sendo totalmente distinto do sistema americano. No sistema de Corte ou Tribunal Constitucional, o controle de constitucionalidade é exercido exclusivamente por um único órgão ou por um número limitado de órgãos, criados especificamente para esse fim ou tendo nessa atividade a sua função principal 102 , sendo essa a razão de o controle austríaco ser chamado também de controle concentrado de constitucionalidade. Isso significa dizer que, diferentemente do sistema americano de controle de constitucionalidade, onde há uma diversidade de órgãos jurisdicionais aptos ao exercício do controle constitucionalidade, no sistema austríaco há um monopólio no exercício da jurisdição constitucional, ficando assim os demais órgãos do Judiciário e de outros poderes impedidos de declarar a inconstitucionalidade de qualquer ato normativo, sob pena de estar invadindo a atribuição conferida ao Tribunal Constitucional. Os Tribunais Constitucionais têm como principal atribuição o de declarar, em regime de monopólio, a partir de uma análise abstrata, a incompatibilidade de uma norma em face da Constituição, excluindo-a do ordenamento jurídico, o que significa dizer que tal decisão tem 101 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 3 ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 869. 102 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 70. 61 eficácia genérica ou erga omnes. Quando isso acontece, segundo Kelsen 103 , a Corte Constitucional se comporta tanto como um legislador (um verdadeiro legislador negativo), pois, ao anular um ato normativo de caráter geral, está produzindo uma nova norma geral em sentido contrário, como também se reveste dos contornos de uma atividade jurisdicional, pois tem a função de interpretação e de aplicação das normas. Contudo, a característica de que o Tribunal Constitucional só poderia realizar o controle abstrato da norma em face da Constituição foi sendo temperado no decorrer dos tempos. Assim, por exemplo, na Alemanha, a partir da Constituição de 1956, e na Itália, na Constituição de 1949, passou-se a admitir que quando surgissem dúvidas em um processo judicial a respeito da constitucionalidade da norma em um caso concreto, seria possível provocar a respectiva Corte Constitucional para analisar uma suposta inconstitucionalidade de norma, quando então ficaria suspenso o julgamento do caso concreto até o deslinde da questão pela Corte Constitucional 104 . Nesse caso, apesar de a Corte Constitucional continuar com o monopólio do controle de constitucionalidade, permite, todavia, nas palavras de Cappelletti, que todos os “juízes são legitimados a requerer tal controle à Corte Constitucional, por ocasião dos casos concretos que eles estejam obrigados a julgar”105. Outra característica marcante do Tribunal Constitucional é a sua autonomia em face dos demais poderes, ou seja, se coloca como uma estrutura organicamente independente do poder Judiciário, do poder Executivo e do poder Legislativo, se comportando em tal grau como uma espécie de um novo poder do Estado com o monopólio de exercer, precipuamente, a guarda da Constituição. 103 KELSEN, Hans. La garanzia giurisdizionale della Constituzione: la giustizia consticuzionale. Milano: Giuffrè, 1981, p. 173 apud LEAL, Roger Stielmann. O efeito vinculante na jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 50. 104 CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no Direito comparado. Trad. Aroldo Plínio Gonçalves. 2 ed. Porto Alegre: Fabris, 1984, reimp. 1999, p. 109. 105 Ibidem, p. 110. 62 Assim, por exemplo, o Tribunal Constitucional alemão, apesar de constar formalmente na Constituição alemã como órgão integrante da estrutura do poder Judiciário, mantém, contudo, a sua independência orgânica das demais instâncias jurisdicionais. Desse modo, a Corte Constitucional alemã não se coloca como parte das instâncias jurisdicionais ordinárias e não é hierarquicamente superior aos demais tribunais 106 . A última característica do Tribunal Constitucional diz respeito à escolha dos seus membros. Parcela significativa dos teóricos defende que em razão do Tribunal Constitucional lidar com temas complexos, graves e de grande proximidade com os fatos políticos, exige-se de seus membros uma profunda sensibilidade político-institucional, características essas que não são encontradas em magistrados de carreira, isto porque, em sua tarefa diária, o seu trabalho é voltado à exegese da lei (já que a jurisdição constitucional é monopolizada pela Corte Constitucional) e pelo fato de terem acesso à carreira sem serem aferidos sobre a sensibilidade político institucional 107 . Portanto, em razão da aproximação do Direito com a política, na maioria das Cortes Constitucionais existentes na Europa, a escolha de seus membros é realizada pelo Parlamento e por chefes de Estado, que geralmente assumem mandato por prazo determinado. Em suma, verifica-se que os países que adotam o sistema de Suprema Corte se comportam como a instância mais elevada do poder Judiciário e exercem o controle de constitucionalidade juntamente com os demais juízes e tribunais, diferenciando destes no aspecto de que suas decisões, onde há a stare decisis, vinculam todos os demais órgãos inferiores do Judiciário. Já nos países que adotam o sistema de Tribunal ou Corte Constitucional, este detém o monopólio sobre o controle de constitucionalidade 108 , e de regra, se constitui como um poder autônomo em relação aos demais poderes do Estado. 106 FAVOREU, Louis. As cortes constitucionais. Tradução: Dunia Marinho Silva. São Paulo: Landy, 2004, p. 28. 107 LEAL, Roger Stielmann. O efeito vinculante na jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 67. 108 Alguns países da Europa que aderiram à figura do Tribunal Constitucional mesclaram o modelo de controle concentrado com instrumentos e institutos da judicial review. Assim, por exemplo, Portugal é um dos países pioneiros dessa mistura e um dos mais característicos exemplos da coabitação entre o “sistema americano” e o 63 3.2 O EXERCÍCIO DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NO BRASIL PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – SUPREMA CORTE OU CORTE CONSTITUCIONAL? Influenciado pelo modelo de controle de constitucionalidade dos Estados Unidos, o Brasil, a partir da Constituição de 1891 (com previsão expressa nos arts. 59 e 60) 109 , passou a permitir a qualquer juiz ou tribunal a possibilidade de poder declarar a inconstitucionalidade de uma lei questionada frente à Constituição, em um caso concreto, adotando assim o controle difuso de constitucionalidade. Na história dessa modalidade de controle, a norma declarada inconstitucional não é excluída do ordenamento jurídico e o seu efeito prático no caso concreto é a simples recusa de sua aplicação. Como a norma declarada inconstitucional permanecia no ordenamento jurídico, mesmo que fosse reconhecida como incompatível com a Constituição pelo próprio Supremo Tribunal Federal 110 , vez que no Brasil não existe o princípio da stare decisis, isso acarretou o surgimento de decisões contraditórias entre os órgãos da Justiça, trazendo a sensação de insegurança jurídica e abalando a certeza sobre o Direito e a credibilidade do Judiciário. Neste sentido, esclarece Rothemburg: Nos ordenamentos jurídicos de filiação romano-germânica, as decisões proferidas em fiscalização incidental e concreta de constitucionalidade não vinculam, em princípio, senão em relação ao caso resolvido. Mas a matriz do sistema difuso, incidental e concreto do controle de constitucionalidade – os Estados Unidos – “sistema austríaco” de Justiça constitucional (MOREIRA, Vital. O Tribunal Constitucional português: “A fiscalização concreta” no quadro de um sistema misto de justiça constitucional. Direito Público. Porto Alegre, ano 1, n.3, jan./mar.2004, pp. 62-88). 109 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.85. 110 A razão maior disso reside no fato de que o Brasil embora tivesse importado o sistema americano de controle de constitucionalidade, continuou a adotar o modelo do sistema jurídico da civil law (também chamado de sistema romano-germano), onde a principal fonte do direito é a lei, de tal maneira que os precedentes judiciais no Brasil não têm a mesma força do stare decisis dos Estados Unidos, vez que neste país (EUA) prevalece o sistema jurídico da comom law (também chamado de anglo-saxão), onde as normas gerais são inferidas a partir dos costumes e das decisões judiciais proferidas. 64 conhece a força vinculante conferida aos precedentes (stare decisis), sobretudo das cortes superiores, com o que se verifica na prática uma certa vinculação dos demais órgãos judiciários. 111 Com isso, através da Constituição de 1934, o constituinte inovou e resolveu introduzir o instituto da suspensão da execução da lei ou ato normativo pelo Senado Federal 112 , na hipótese de o Supremo Tribunal Federal declarar a inconstitucionalidade de lei em sede de controle difuso, emprestando assim eficácia genérica ou erga omnes à decisão daquele Tribunal. Destarte, a norma declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal só seria suspensa do ordenamento jurídico brasileiro mediante uma decisão política do Senado Federal neste sentido. Com exceção da Constituição de 1937, todas as constituições brasileiras que se sucederam mantiveram o instituto da suspensão da lei pelo Senado Federal 113 , estando tal previsão na atual Constituição no art. 52, X. Em 1965, através da Emenda Constitucional nº 16, ao lado do controle difuso de constitucionalidade introduziu-se no Brasil 114 o modelo de controle concentrado de constitucionalidade de leis e atos normativos federais e estaduais em face da Constituição Federal, com a criação da ação de representação de inconstitucionalidade, manejada pelo procurador geral da República e tendo o Supremo Tribunal Federal como o único órgão do Judiciário competente para seu julgamento. Incorporava-se de tal sorte, também, no Brasil, algumas das características do sistema austríaco de controle de constitucionalidade. A Constituição atual procura mesclar os mecanismos próprios do sistema americano de controle de constitucionalidade com os do modelo austríaco, instituindo desse modo um modelo misto de controle de constitucionalidade, que permite o exercício da jurisdição constitucional 111 ROTHENBURG, Walter Claudius. Inconstitucionalidade por omissão e troca de sujeito: a perda de competência como sanção à inconstitucionalidade por omissão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 196. 112 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no Direito brasileiro. 2. ed. rev., atual. e ampl., 2.tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 66. 113 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 5º. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 21. 114 MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 1094. 65 tanto de forma difusa, por qualquer órgão do poder Judiciário, como pela via concentrada, através do Supremo Tribunal Federal. A Constituição em vigor asseverou claramente ser o Supremo Tribunal Federal o seu maior guardião, pois no artigo 102, caput, expressa que “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição...”. E esse guardião da Constituição está inserido em nosso ordenamento jurídico tanto como uma instância máxima do poder Judiciário (se comportando como uma Suprema Corte), com competência para analisar questões de ordem constitucional nos casos concretos, como se comportando como Corte Constitucional ao analisar, com exclusividade, o controle em abstrato de constitucionalidade de normas, tendo como somatório dessas duas atribuições a importante tarefa de dizer a palavra final sobre a interpretação e aplicação da norma constitucional. Além disso, a Constituição de 1988 e as Emendas Constitucionais que se sucederam deram ênfase ao controle concentrado de constitucionalidade ao ampliar sensivelmente os mecanismos de controle 115 e o rol de legitimados para a propositura das respectivas ações, deixando assim o procurador geral da República de ser o único legitimado para o manejo das respectivas ações. Some-se a isso que a Emenda Constitucional nº 45/2004, criou a súmula vinculante e o instituto da repercussão geral, mostrando claramente a intenção do constituinte de ampliar o alcance das decisões do Supremo Tribunal Federal no exercício da jurisdição constitucional. Não obstante o Supremo Tribunal Federal ser a última instância do Judiciário brasileiro, não detém ele, na Constituição de 1988, todas as características de uma Corte Suprema como nos Estados Unidos da América, pois na função de guardião da Constituição não atém apenas ao controle de constitucionalidade de uma norma a partir do exame de um caso concreto, mas também exerce o controle em abstrato da norma em face da Constituição, o que não é uma 115 Ao lado da ação de direita de inconstitucionalidade foram criadas a ação declaratória de constitucionalidade, ação de descumprimento de preceito fundamental e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão. 66 atividade típica do poder Judiciário, que fora idealizado para solucionar conflitos concretos. Nessa linha de pensamento, expressa Nery Junior, afirmando que: (...) como órgão do poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal só teria legitimidade para interpretar a Constituição em casos concretos que lhe chegassem pelas vias normais de competência originária e recursal, a exemplo do que ocorre no sistema norte-americano, do qual o brasileiro foi cópia fiel, como demonstra a organização do sistema de poder na CF republicana de 1891. Decidir, em abstrato, dizendo a última palavra sobre a constitucionalidade ou não de atos típicos dos outros dois poderes, Executivo e Legislativo, é irregularidade que salta aos olhos. Portanto, as ações declaratórias de constitucionalidade e direta de inconstitucionalidade são institutos absolutamente irregulares dentro do ordenamento constitucional brasileiro. São importações incorretas do direito estrangeiro, que não servem, com correção, ao modelo constitucional brasileiro. 116 Da mesma forma, o Supremo Tribunal Federal não tem todas as características das Cortes Constitucionais da Europa, como por exemplo, de ser um Tribunal organicamente independente do Judiciário e dos demais poderes do Estado, de exercer o monopólio da jurisdição constitucional e de ter seus membros escolhidos, também, proporcionalmente pelo parlamento. Porém, ainda assim é considerado por parcela significativa da doutrina brasileira como uma verdadeira Corte Constitucional, em razão de o Supremo Tribunal Federal exercer o controle abstrato de norma de forma exclusiva (concentrada). Neste sentido, expressa Temer: (...) essa competência é privativa do STF, verdadeira Corte Constitucional, dado que o artigo 102, I, estabelece competir-lhe processar e julgar originariamente tais representações. Tanto em face da atividade dos órgãos do poder, geradora de atos normativos tidos por inconstitucionais, como também pela inatividade dos mesmos órgãos, geradora da inefetividade da norma constitucional. 117 Da mesma forma é o pensamento de Nery Júnior, em que pese não concordar ter o constituinte escolhido o Supremo Tribunal Federal, órgão do poder Judiciário, para o exercício do papel de Corte Constitucional: 116 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 8ª ed., São Paulo: Revista do Tribunais, 2004, p. 33. 117 TEMER, Michel. Elementos de Direito constitucional. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 45. 67 (...) no atual sistema constitucional brasileiro, temos realmente uma Corte Constitucional Federal, consubstanciada no STF, conclusão que se extrai da competência que o legislador constituinte conferiu àquela corte de justiça. (...) (...) verificamos, entretanto, que o perfil constitucional do nosso Tribunal Federal Constitucional não se nos afigura o melhor, porquanto não nos parece que um órgão do poder Judiciário possa apreciar, em último e definitivo grau, as questões constitucionais que lhe são submetidas de forma abstrata, cujos membros são nomeados pelo Presidente da República sem critério de proporcionalidade ou representatividade dos demais poderes. 118 Outra parte da doutrina argumenta que o Supremo Tribunal Federal não pode ser considerado uma Corte Constitucional segundo os parâmetros clássicos do modelo austríaco, seja pelo fato de ter uma competência ampla, não se limitando apenas ao controle de constitucionalidade e aos conflitos entre órgãos estatais, bem como, pelo fato de não deter a exclusividade do controle de constitucionalidade e fazer parte do Poder Judiciário atuando como um Tribunal de Apelação, onde se constitui em uma última instância, e ainda em razão de seus ministros serem indicados exclusivamente pelo Poder Executivo para mandatos vitalícios, não possibilitando aos outros poderes a escolha de seus membros. Neste sentido é o pensamento de José Afonso da Silva: A outra novidade está em ter reduzida a competência do Supremo Tribunal Federal à matéria constitucional. Isso não o converte em Corte Constitucional. Primeiro porque não é o único órgão jurisdicional competente para o exercício da jurisdição constitucional, já que o sistema perdura fundado no critério difuso, que autoriza qualquer tribunal e juiz a conhecer da prejudicial de inconstitucionalidade, por via de exceção. Segundo, porque a forma de recrutamento de seus membros denuncia que continuará a ser um Tribunal que examinará a questão constitucional com critérios puramente técnico-jurídicos, mormente porque, como Tribunal, que ainda será, do recurso extraordinário, o modo de se levar a seu conhecimento e julgamento as questões constitucionais nos casos concretos, sua preocupação, como é regra no sistema difuso, se dará primazia à solução do caso e, se possível, sem declarar inconstitucionalidade. 119 No entanto, em razão do que foi exposto nesse tópico, infere-se que em razão de o Supremo Tribunal Federal ter a possibilidade de exercer tanto o controle difuso de constitucionalidade como o controle concentrado, concebeu o constituinte brasileiro, em seus 118 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 8ª ed., São Paulo: Revista do Tribunais, 2004, pp. 29-30; 35. 119 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22ª edição. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 555. 68 moldes, um tribunal híbrido, não podendo ser considerado uma autêntica Corte Suprema nem muito menos um Tribunal Constitucional. Porém, por exercer a jurisdição constitucional, tanto na via concentrada como difusa, e ter sido escolhido, pelo Poder Constituinte Originário, como o guardião da Constituição, cabe a ele dizer a última palavra sobre o que é constitucional ou não, sem perder de vista que tal interpretação deverá ser buscada a partir da realidade político-social brasileira. 3.3 O CONTROLE PREVENTIVO E REPRESSIVO DE CONSTITUCIONALIDADE Uma das classificações utilizadas no controle de constitucionalidade de normas diz respeito ao momento de sua realização, podendo assim o controle ser classificado como preventivo (ou prévio) ou repressivo (sucessivo ou a posteriori) 120 . O controle preventivo é realizado no intuito de se evitar o surgimento de normas jurídicas maculadas com a nódoa da inconstitucionalidade, sendo, portanto, realizado no momento da elaboração do texto normativo, quando se tem então um projeto de lei que não fora ainda promulgado. O controle preventivo pode ser realizado pelo Legislativo, Executivo e, excepcionalmente, pelo poder Judiciário. Quando é realizado pelos poderes Legislativo e Executivo, esse controle preventivo é chamado também de político 121 . Ele será melhor detalhado no tópico seguinte. O controle preventivo realizado pelo Judiciário só é admissível na forma concreta, por meio de ajuizamento de Mandado de Segurança, por parte de parlamentar nos casos de vício formal no processo legislativo ou na hipótese de Emenda Constitucional que afronta cláusula pétrea. Dessa maneira, jamais o Judiciário poderá fazer o exame em abstrato da constitucionalidade do projeto 120 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 3 ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 967. 121 MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 1059. 69 de lei 122 , pois, além de inexistir previsão normativa neste sentido, a adoção dessa forma de controle acabaria por violar o princípio da separação dos poderes. Entretanto, há quem defenda que esse controle realizado pelo Judiciário no exame de um caso concreto na fase de elaboração de norma não é preventivo, e sim, um verdadeiro controle repressivo, pois visa a expurgar atos inconstitucionais, sustentando com isso a inexistência de controle preventivo por parte do Judiciário 123 . No controle repressivo, a norma já se encontra inserida no ordenamento jurídico e o controle é realizado no intuito de impedir a eficácia da norma inconstitucional, seja através da não aplicação da norma em um caso concreto, seja afastando a própria norma inconstitucional do estuário normativo. No Brasil, em regra, o controle repressivo é realizado pelo poder Judiciário, entretanto, há situações de controle repressivo realizado pelo poder Legislativo 124 como também pelo poder Executivo 125 . 3.4 A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO E DO LEGISLATIVO NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE O controle de constitucionalidade no Brasil é realizado, de regra, pelo poder Judiciário, tendo em vista que se concentrou neste poder o exercício da jurisdição constitucional. Com isso, foi atribuído ao Judiciário o poder que possibilita a retirada da norma inconstitucional do 122 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de constitucionalidade, teoria e prática. 6. ed. Salvador: Jus Podivm, 2012, p 111. 123 BULOS, Uadi Lammego. Curso de Direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 2137. 124 Como exemplo de controle repressivo realizado pelo poder Legislativo tem-se a disposição prevista no artigo 49, V da CF/88, que estabelece ser de competência exclusiva do Congresso Nacional sustar os atos normativos do poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa. Assim, na hipótese de o presidente da República criar uma lei delegada que ultrapasse os limites da resolução, ou, ainda, editar um decreto regulamentar que extrapole os limites estabelecidos pela lei, poderá o Congresso Nacional, mediante Decreto Legislativo, sustar a eficácia da lei delegada ou do decreto que exorbitou seus limites. 125 A recusa por parte do chefe do poder Executivo de cumprir a lei, por entender ser ela incompatível com a Constituição, é um exemplo de controle repressivo realizado pelo Executivo. Neste sentido, assevera BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 69. 70 ordenamento jurídico, atuando como um verdadeiro legislador negativo, bem como permite ao seu órgão de cúpula, o Supremo Tribunal Federal, a competência pela última palavra em matéria de interpretação constitucional. Entretanto, não foi reservado ao poder Judiciário o monopólio sob o controle de constitucionalidade, e como descrito anteriormente, o sistema constitucional brasileiro viabiliza, também, a fiscalização de constitucionalidade pelos Poderes Executivo e Legislativo, embora não ocorra na mesma intensidade e abrangência do controle judicial de constitucionalidade. Isso vem a reforçar a ideia de sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, onde às autoridades públicas deve ser franqueado um amplo espaço de expressão e participação na revelação e definição dos significados constitucionais prevalecentes, não podendo assim a interpretação constitucional ser aferida exclusivamente no processo judicial de controle de constitucionalidade 126 . Desse modo, nos tópicos seguintes, demonstram-se como os poderes Executivo e Legislativo podem participar do mecanismo de fiscalização de constitucionalidade, contribuindo para a atividade de interpretação da norma constitucional e para o surgimento de normas compatíveis com a Constituição. 3.4.1 O controle de constitucionalidade através do Poder Executivo O controle de constitucionalidade pelo Poder Executivo pode ser realizado de forma preventiva, através do poder de veto conferido ao seu chefe do Executivo, ou de forma repressiva, através do não cumprimento da lei que se compreender ser inconstitucional. No processo legislativo, uma de suas fases consiste na remessa do projeto de lei aprovado pela casa legislativa ao chefe do Executivo (presidente da República, governador do Estado ou 126 BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira: legitimidade democrática e instrumentos de realização. 3. Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 258. 71 prefeito) para que este realize a sanção ou o veto. Com efeito, poderá o chefe do Executivo entender que o projeto merece ser aprovado e assim o sanciona, transformando-o em lei. Por outro lado, pode também vetá-lo, total ou parcialmente, e nesse caso o veto poderá ter como causa a ausência de interesse público ou a sua inconstitucionalidade 127 . Na hipótese de o veto ter sido realizado por entender o chefe do Executivo que o projeto de lei é contrário ao interesse público, por não atender ao juízo de conveniência e oportunidade, tem-se o chamado veto político, e quando considerar que o projeto de lei é inconstitucional, o veto é denominado de jurídico. Destarte, somente na hipótese do veto jurídico é que, de fato, haverá a realização do controle de constitucionalidade de natureza preventiva pelo chefe do Executivo, vez que no veto político não se suscita vício de violação à Constituição. Neste sentido, expressa Filho: Enquanto o veto por inconveniência apresenta o presidente como defensor do interesse público, o veto por inconstitucionalidade o revela como guardião da ordem jurídica. Esse poder, na verdade, o coloca na posição de defensor da Constituição e numa posição privilegiada, visto que pode exercer um controle preventivo para defendê-la de qualquer arranhão resultante da entrada em vigor de lei inconstitucional. 128 Contudo, o veto, quer seja jurídico ou político, voltará a ser apreciado pela casa legislativa, que mediante votação secreta poderá rejeitá-lo pela maioria absoluta de seus membros. Obtida essa maioria, o veto restará derrubado e a lei segue para promulgação, enquanto que, se não for obtida a maioria absoluta, a lei vetada segue para o arquivo 129 , podendo com isso prejudicar, por uma decisão política do Legislativo, o controle preventivo de constitucionalidade realizado pelo chefe do Executivo. 127 A Constituição Federal autoriza o veto pelo chefe do Poder Executivo quando o projeto de lei for inconstitucional ou quando contrário ao interesse público. Neste sentido preceitua a Constituição de 1988: Art. 66.(...)§ 1º. Se o presidente da República considerar o projeto, no todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao interesse público, vetá-lo-á total ou parcialmente, no prazo de quinze dias úteis, contados da data do recebimento, e comunicará, dentro de quarenta e oito horas, ao presidente do Senado Federal os motivos do veto. 128 FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Do processo legislativo. 7º. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.185. 129 Neste sentido, dispõe o §4º do art. 166 da Constituição Federal: (...) “§ 4º. O veto será apreciado em sessão conjunta, dentro de trinta dias a contar de seu recebimento, só podendo ser rejeitado pelo voto da maioria absoluta dos deputados e senadores, em escrutínio secreto.” 72 Além do veto ao projeto de lei inconstitucional, existe ainda a possibilidade do poder Executivo de recusar o cumprimento de lei inconstitucional (controle repressivo), vez que na qualidade de poder e de intérprete da Constituição tem o dever de zelar pelo seu cumprimento. Esse entendimento já era advogado pela doutrina e jurisprudência do próprio Supremo Tribunal Federal antes da Constituição de 1988 130 . Nessa época, o poder Executivo não tinha, ainda, a legitimidade para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade, e sendo ele órgão executor da legislação a partir da Constituição, poderia deparar-se com o problema de ter que aplicar a lei inconstitucional, em uma suposta obediência ao princípio da separação dos poderes, ou deixar de aplicá-la, em reverência à supremacia da Constituição. Assim, prevaleceu o entendimento de que a supremacia da Constituição exigia o seu respeito, inclusive, pelo próprio Executivo. Após o advento da Constituição de 1988, que eliminou o monopólio do procurador geral da República para a propositura de ação direta de controle de inconstitucionalidade, passando a conferir legitimidade ao presidente da República e aos governadores dos Estados no manejo de tal ação junto ao Supremo Tribunal Federal, muito se questionou sobre essa possibilidade do Executivo de deixar de aplicar a lei por entendê-la inconstitucional. Argumentou-se, por exemplo, que o poder Executivo não poderia mais deixar de aplicar a lei sob a alegação de ser inconstitucional, pois a Constituição Federal de 1988 conferiu ao Judiciário o monopólio da retirada das normas inconstitucionais do ordenamento jurídico, tendo apenas o presidente da República e os governadores do Estado a legitimidade para promover ação direta de inconstitucionalidade, podendo inclusive requestar medida liminar para suspender a lei 131 . 130 “A jurisprudência tem admitido que o Poder Executivo, também interessado no cumprimento da Constituição, goza da faculdade de não executá-la, submetendo-a aos riscos daí decorrentes” (STF, MS 14.136, Rel. Min. Aliomar Baleeiro, DJ de 30. 11.1964, p. 4189” apud BULOS, Uadi Lammego. Curso de Direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 96). 131 VELOSO, Zeno. Controle jurisdicional de constitucionalidade. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 317-320. 73 Apesar de não se ter ainda um posicionamento do Supremo Tribunal Federal após a Constituição Federal de 1988, entretanto, o entendimento que ainda prevalece na doutrina e jurisprudência 132 até então existente é que o poder Executivo pode deixar de aplicar no âmbito da administração leis ou atos normativos que considere inconstitucionais. Um dos argumentos lembrados pela corrente dominante é que, se prevalecesse a tese de que os governadores e o presidente da República não poderiam se recusar a cumprir a lei inconstitucional, pois teriam que ir ao Judiciário para ver reconhecida a inconstitucionalidade, já que têm legitimidade para a Ação Direta de Inconstitucionalidade e Ação Declaratória de Constitucionalidade, os prefeitos, por não possuírem legitimidade para provocar o controle concentrado de constitucionalidade junto ao Judiciário, continuariam com o poder de deixar de aplicar a norma tida por inconstitucional, e assim teriam mais poderes que o presidente da República e os governadores de Estado 133 . Porém, o principal argumento da corrente dominante continua a ser o da supremacia da Constituição, pois o cumprimento de uma lei inconstitucional é negar aplicação à própria Constituição. Nesse sentido, defendendo que o poder Executivo pode se recusar a dar cumprimento à norma inconstitucional, destaca Binenbojm: O raciocínio desenvolvido pelos que sustentam que a Constituição de 1988 teria inviabilizado o descumprimento auto-executório de lei considerada inconstitucional pelo poder Executivo não se afigura correto, com a devida vênia, por uma série de razões. A uma, porque o poder-dever do chefe do Executivo de negar cumprimento à lei inconstitucional não tinha como fundamento ontológico o fato de não ser ele legitimado para a propositura da então chamada representação de inconstitucionalidade. O descumprimento da lei reputada inconstitucional era – e é – uma decorrência, ou antes, uma exigência do princípio da supremacia da Constituição. Em última análise, o pressuposto para que o poder Executivo, em determinada situação, cumpra a Constituição, é que deixe de cumprir uma lei que lhe contrarie o sentido. Por outro lado, o que pretendem os partidários da tese contrária é que o poder Executivo pratique atos reconhecidamente inconstitucionais sob o especioso argumento de que está cumprindo a lei. 134 132 “O Poder Executivo deve negar execução a ato normativo que lhe pareça inconstitucional” (REsp 23.121- 92/GO, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJU 08.11.1993, p. 23.521 apud BULOS, Uadi Lammego. Curso de Direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 97). 133 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no Direito brasileiro. 2. ed. rev., atual. e ampl., 2.tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, pp. 247-248. 134 BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira: legitimidade democrática e instrumentos de realização. 3. Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p.271. 74 Logicamente que o descumprimento da lei inconstitucional pelo chefe do poder Executivo deve ser justificado por escrito com uma argumentação coerente com a lógica do ordenamento jurídico. Isso porque, na qualidade de um dos intérpretes da Constituição, a aplicação da lei exige atividade hermenêutica, cabendo desse modo ao poder Executivo dar a máxima eficácia às normas constitucionais para bem poder interpretar e aplicar a lei infraconstitucional. Assim, a recusa de aplicar uma lei sob a alegação de ser inconstitucional, sem uma motivação sólida, baseada em argumentos técnicos, é um ato nulo. Além disso, apenas o titular do poder Executivo é quem tem a legitimidade de recusar, motivadamente, o cumprimento da lei que considerar inconstitucional, e os seus agentes, no exercício de suas funções, se detectarem que a norma é inconstitucional, poderão apenas comunicar o fato ao seu superior e nada mais 135 . Por outro lado, a decisão do chefe do poder Executivo de recusar dar cumprimento à lei inconstitucional, estará sujeita ao reexame pelo poder Judiciário, o que poderá ser feito tanto no controle realizado através do exame de um caso concreto, mediante a exceção de inconstitucionalidade, como através do controle abstrato de constitucionalidade, via ação direta. Na hipótese de o poder Judiciário confirmar ser a lei inconstitucional, a conduta do poder Executivo será considerada válida. Caso o Judiciário entenda que a norma é constitucional, deverá a administração pública dar cumprimento à lei, sem se falar da possibilidade de o chefe do Poder Executivo ser responsabilizado político-administrativamente por se recusar a dar cumprimento à lei. 3.4.2 O controle de constitucionalidade através do poder Legislativo 135 BULOS, Uadi Lammego. Curso de Direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 99. 75 O controle de constitucionalidade pelo poder Legislativo pode ser efetivado de algumas maneiras, como: a) Ato da Mesa Diretora ou da Comissão de Constituição e Justiça; b) rejeição do veto imposto pelo chefe do Executivo; c) sustação do ato normativo do Executivo; d) apreciação prévia das medidas provisórias, e e) possibilidade de revogação da lei inconstitucional. O Legislativo exerce o controle de constitucionalidade no processo legislativo através de seus órgãos internos, sendo, preliminarmente, desenvolvido pela sua Mesa Diretora, que através de seu presidente tem poderes de rejeitar toda e qualquer proposição a ser submetida à deliberação do plenário, por considerar flagrante ou manifestamente inconstitucional. Essa decisão pode ser revista se houver recurso, o qual será apreciado pelo plenário da casa legislativa, após parecer da Comissão de Constituição e Justiça 136 . Além da Mesa Diretora, a Constituição Federal, em seu art. 58, possibilitou o controle preventivo de constitucionalidade realizado através das comissões permanentes criadas no âmbito de cada casa legislativa, cujas atribuições vêm previstas no regimento interno ou no ato de sua criação 137 . Por simetria, esse modelo preventivo realizado por comissões permanentes, se estende, também, no âmbito dos poderes Legislativos estaduais e municipais. De regra, as casas legislativas, através de seus regimentos internos, atribuem à Comissão de Constituição e Justiça a tarefa de manifestar-se através de parecer sobre a constitucionalidade das propostas de emenda constitucional e dos projetos de lei apresentados. Assim, no âmbito 136 Neste sentido, dispõe o regimento interno da Câmara dos Deputados: “Art. 137. Toda proposição recebida pela Mesa será numerada, datada, despachada às Comissões competentes e publicada no Diário da Câmara dos Deputados e em avulsos, para serem distribuídos aos Deputados, às Lideranças e Comissões. § 1 o Além do que estabelece o art. 125, a Presidência devolverá ao Autor qualquer proposição que: I - não estiver devidamente formalizada e em termos; II - versar matéria: a) alheia à competência da Câmara; b) evidentemente inconstitucional; (...)”. No Senado Federal o regimento interno confere também ao Presidente da Mesa diretora o poder de afastar preliminarmente o projeto inconstitucional, senão vejamos: “Art. 48. Ao Presidente compete: (...) XI – impugnar as proposições que lhe pareçam contrárias à Constituição, às leis, ou a este Regimento, ressalvado ao autor recurso para o Plenário, que decidirá após audiência da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania;”. 137 Segundo a Constituição: “Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação.§§ (...)” 76 federal, por ser o legislativo bicameral, a Câmara dos Deputados 138 e o Senado Federal 139 possuem a sua própria Comissão de Constituição Justiça. Vale salientar que o parecer apresentado pela Comissão de Constituição e Justiça não é vinculante, pois é passível de revisão pelo plenário da casa legislativa. Portanto, as Mesas Diretoras e as Comissões Permanentes de Constituição e Justiça das casas legislativas, ao analisarem a compatibilidade dos projetos normativos com a Constituição, impedindo que normas inconstitucionais ingressem no ordenamento jurídico, realizam um verdadeiro controle preventivo de constitucionalidade. Da mesma forma, o poder Legislativo poderá derrubar o veto imposto pelo chefe do poder Executivo, quer o mesmo tenha sido de natureza política ou jurídica. Em caso de veto, cabe ao Congresso Nacional, em sessão conjunta, apreciar o veto e, se for o caso, rejeitá-lo através da maioria absoluta dos deputados e senadores, em votação secreta, conforme preceitua o art. 66, §4º da Constituição Federal. A derrubada do veto jurídico consiste em um verdadeiro exercício de controle de constitucionalidade preventivo pelo poder Legislativo, pois examinará se a alegação de inconstitucionalidade aduzida pelo chefe do Executivo nas razões do seu veto deve ser chancelada ou não. Com isso, o juízo de constitucionalidade realizado pelo Legislativo com a derrubada do veto prevalece sobre a alegação de inconstitucionalidade arguida pelo Executivo, nos termos previstos na Constituição Federal, convertendo, destarte, o projeto de lei em lei. 138 No regimento Interno da Câmara dos Deputados está previsto: “Art. 32. São as seguintes as Comissões Permanentes e respectivos campos temáticos ou áreas de atividade: (...) IV - Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania: a) aspectos constitucional, legal, jurídico, regimental e de técnica legislativa de projetos, emendas ou substitutivos sujeitos à apreciação da Câmara ou de suas Comissões; b) admissibilidade de proposta de emenda à Constituição; c) assunto de natureza jurídica ou constitucional que lhe seja submetido, em consulta, pelo Presidente da Câmara, pelo Plenário ou por outra Comissão, ou em razão de recurso previsto neste Regimento; d) assuntos atinentes aos direitos e garantias fundamentais, à organização do Estado, à organização dos Poderes e às funções essenciais da Justiça; e) matérias relativas a direito constitucional, eleitoral, civil, penal, penitenciário, processual, notarial; (...) 139 Já no regimento interno do Senado Federal está previsto o seguinte: “Art. 101. À Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania compete: I – opinar sobre a constitucionalidade, juridicidade e regimentalidade das matérias que lhe forem submetidas por deliberação do Plenário, por despacho da Presidência, por consulta de qualquer comissão, ou quando em virtude desses aspectos houver recurso de decisão terminativa de comissão para o Plenário; (...)” 77 Pode ainda o Legislativo, com base no art. 49, inciso V da Constituição Federal 140 , sustar os atos do Executivo que ultrapassem o poder regulamentar ou os limites da delegação legislativa. Tal competência conferida ao Congresso Nacional, de sustar os atos normativos do Executivo, se constitui um verdadeiro exercício do controle de constitucionalidade repressivo por parte do Legislativo, tendo em vista que o poder regulamentar e a lei delegada são conferidos dentro de limites estabelecidos pela própria Constituição Federal, nos arts. 84, inciso IV e 68 141 , de maneira que a extrapolação desses caracteriza uma conduta inconstitucional. Com isso, o Congresso Nacional, ao sustar os atos normativos do Executivo, não só garante obediência à Constituição como também procura assegurar o princípio da legalidade, vez que o Executivo não pode extrapolar os limites da lei e da delegação que lhe fora concedida. Vale salientar ainda que a sustação do ato normativo pelo Congresso nacional é realizado mediante decreto legislativo e produz apenas eficácia ex nunc, isso porque a sustação não se confunde com a declaração de nulidade, que produz efeitos ex tunc, mas apenas um simples paralisação de seus efeitos 142 . Por outro lado, o fato de se possibilitar ao Congresso Nacional a prerrogativa de sustar os atos normativos do Executivo não impede, contudo, a realização do controle de constitucionalidade por parte do Judiciário 143 , vez que a Jurisdição Constitucional é conferida a esse poder, bem como ser considerada inafastável. Nesse caso, concluindo o Judiciário que o 140 A Constituição Federal dispõe: “Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: (...) V - sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa; 141 A Constituição Federal dispõe: “Art. 68. As leis delegadas serão elaboradas pelo Presidente da República, que deverá solicitar a delegação ao Congresso Nacional. § 1º. Não serão objetos de delegação os atos de competência exclusiva do Congresso Nacional, os de competência privativa da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, a matéria reservada à lei complementar, nem a legislação sobre: I - organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros; II - nacionalidade, cidadania, direitos individuais, políticos e eleitorais; III - planos plurianuais, diretrizes orçamentárias e orçamentos. § 2º. A delegação ao Presidente da República terá a forma de resolução do Congresso Nacional, que especificará seu conteúdo e os termos de seu exercício. § 3º. Se a resolução determinar a apreciação do projeto pelo Congresso Nacional, este a fará em votação única, vedada qualquer emenda. Art. 84. Compete privativamente ao presidente da República: (...) IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;” 142 BULOS, Uadi Lammego. Curso de Direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 279. 143 Idem, p. 279. 78 Executivo extrapolou os limites da regulamentação ou da delegação, a decisão do Judiciário poderá ter efeitos ex tunc, vez que ela pode declarar a nulidade do ato inconstitucional. Da mesma forma, o Congresso Nacional poderá rejeitar medida provisória por entender que está maculada pelo vício da inconstitucionalidade. Esse controle de constitucionalidade é realizado a partir da análise dos pressupostos de cabimento da medida provisória e as suas limitações materiais (as famosas cláusulas pétreas), previstas no art. 62, caput, §§ 1º e 2º e 5º da Constituição Federal 144 . A rejeição da medida provisória impede que a mesma seja convertida em lei, caracterizando assim essa contenção na atuação do poder Executivo um autêntico exercício de controle repressivo de constitucionalidade por parte do Legislativo em relação àquele poder. Ademais, o poder Legislativo pode ainda exercer o controle de constitucionalidade através da revogação da lei inconstitucional. Com efeito, da mesma forma que o Legislativo tem a liberdade de criar normas, tem também a de excluí-las do ordenamento jurídico através do instituto da revogação de lei, o qual é realizado mediante um juízo político de conveniência e oportunidade. Nesse caso, a lei revogada produz seus efeitos até sua retirada do ordenamento, o que significa dizer que a revogação produz efeito ex nunc. Por exemplo, se o poder Legislativo entender que uma norma em vigor contraria à Constituição poderá fazer uso do instituto da revogação e elimina-la do ordenamento jurídico. Portanto, o poder Legislativo, por ter apenas a possibilidade de revogar a lei, não tem como anulá-la ou decretar a sua nulidade por entender 144 A Constituição Federal dispõe: “Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. § 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria: I - relativa a: a) nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral; b) direito penal, processual penal e processual civil; c) organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros; d) planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares, ressalvado o previsto no art. 167, § 3º; II - que vise a detenção ou seqüestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro; III- reservada a lei complementar; IV - já disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do Presidente da República. § 2º Medida provisória que implique instituição ou majoração de impostos, exceto os previstos nos arts. 153, I, II, IV, V, e 154, II, só produzirá efeitos no exercício financeiro seguinte se houver sido convertida em lei até o último dia daquele em que foi editada. (...)§ 5º A deliberação de cada uma das Casas do Congresso Nacional sobre o mérito das medidas provisórias dependerá de juízo prévio sobre o atendimento de seus pressupostos constitucionais. 79 inconstitucional, atribuindo efeito retroativo, vez que tal função, como já dito alhures, é própria do poder Judiciário 145 . 3.5. O CONTROLE JUDICIAL DE CONSTITUCIONALIDADE Como já dito no anteriormente, a Constituição de 1988 adotou um modelo de controle judicial de constitucionalidade de natureza mista ou eclética, vez que conjugou as características do sistema americano (controle por via incidental e difuso), que já vinha sendo adotado no Brasil desde a primeira Constituição da República, em 1891, com o do sistema europeu ou austríaco (controle por via principal e concentrado), introduzido no país desde a Emenda Constitucional nº 16, de 1965. Todavia, apesar de a Constituição atual ter mantido um modelo híbrido de controle judicial de constitucionalidade, cujas origens estavam presentes nas constituições anteriores, trouxe a mesma, juntamente com as emendas constitucionais posteriores, significativas inovações que provocaram a densificação 146 do controle de constitucionalidade, aumentando a importância da jurisdição constitucional no Brasil, podendo citar como exemplo as seguintes inovações 147 : a) ampliação dos legitimados ativos para propositura da ação direta de inconstitucionalidade; b) criação de mecanismo para combater a inconstitucionalidade por omissão, com introdução da ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, §2º) e do mandado de injunção (art. 5º, LXXI); c) restabelecimento da ação direta de inconstitucionalidade em âmbito estadual; d) criação de um mecanismo de arguição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, §1º); e) criação da ação declaratória de constitucionalidade, através da Emenda Constitucional nº 3/1993, e ampliação de seus legitimados ativos através da Emenda Constitucional nº 45/2004; f) limitação 145 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p.95-98. 146 O termo densificação do controle de constitucionalidade é usado por Walter de Moura Agra (AGRA, Walter de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Forense. 2005. p. 10). 147 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p.87/88. 80 do recurso extraordinário às questões constitucionais e a necessidade de demonstração de sua repercussão geral (esta última criação da Emenda Constitucional nº 45/2004). Desse modo, na égide da Constituição em vigor, o controle judicial de constitucionalidade no Brasil pode ser realizado na forma difusa (via incidente no exame de um caso concreto) ou na forma concentrada (via ação). O controle difuso continuou a ser previsto de forma expressa na Constituição de 1988, porém de forma indireta, podendo ser inferido do contexto dos arts. 97 e 102, inciso III 148 , de onde se extrai a inequívoca possibilidade de declaração de inconstitucionalidade por todos os juízes e tribunais brasileiros. No tocante ao controle concentrado, via ação, este pode ser realizado tanto pelo Supremo Tribunal Federal como também pelos Tribunais de Justiça dos Estados. O Supremo Tribunal Federal, por ser guardião da Constituição Federal, é o principal órgão que exerce controle concentrado, tendo competência para a ação que vise ao reconhecimento da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual em face da Constituição Federal como também a ação que busque a declaração de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal em face da Constituição Federal. Já os Tribunais de Justiça do Estado têm apenas competência para exercer o controle concentrado de constitucionalidade apenas no que diz respeito à representação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo estadual ou municipal em face da Constituição estadual, de acordo com o preceito estatuído no art. 125, § 2º da Constituição Federal 149 . 148 A Constituição Federal preceitua o seguinte: “Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.”; e “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição; d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal.” (Alínea acrescentada pela Emenda Constitucional nº 45, de 08.12.2004, DOU 31.12.2004). 149 Constituição Federal de 1988: “Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição. (...) § 2º. Cabe aos Estados a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual, vedada a atribuição da legitimação para agir a um único órgão.” 81 No tocante aos mecanismos de controle concentrado que visam à proteção da Constituição Federal, têm-se as seguintes ações, todas de competência do Supremo Tribunal Federal: a) ação direta de inconstitucionalidade (art. 102, I, a); ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º); c) ação declaratória de constitucionalidade (art. 102, I, a); d) ação direta interventiva (art. 36, III); e) arguição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, § 1º). Portanto, no Brasil, o controle judicial de constitucionalidade é exercido tanto de modo difuso por todos os juízes e tribunais pátrios como de forma concentrada pelos Tribunais de Justiça e, principalmente, pelo Supremo Tribunal Federal, que detém a competência exclusiva para o exame de todas as ações diretas que visem à fiscalização de constitucionalidade de ato normativo em face da Constituição Federal. 3.5.1 O controle difuso incidental de constitucionalidade 3.5.1.1 Considerações gerais O controle difuso de constitucionalidade, como narrado em linhas pretéritas, teve origem nos Estados Unidos da América a partir do célebre caso Willian Marbury versus James Madison, julgado pela Suprema Corte Americana, em 1803, quando o juiz Jonh Marshall concluiu que a Constituição é a norma suprema e fundamental de uma nação, que a lei que a contrarie é nula e que caberá a qualquer órgão do Judiciário garantir essa superioridade, vez que tem a competência para dizer o direito e o sentido das leis 150 . O sistema americano de controle de constitucionalidade (o modelo da judicial review) exerceu influência no Brasil, que o consagrou com o advento da Constituição da República de 150 Neste sentido BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.30. 82 1891 e que foi repetido na história das constituições brasileiras que se seguiram. Na Constituição de 1988, o controle difuso de constitucionalidade encontra seu fundamento nos arts. 97 e 102, inciso III, de onde se extrai a ideia de que é possível a declaração de inconstitucionalidade de uma lei por todos os juízes e tribunais brasileiros. O controle difuso no Brasil é realizado no curso de qualquer demanda judicial em que haja um conflito de interesses, o que significa dizer que a arguição de inconstitucionalidade se dá durante o exame de um caso concreto. Esse controle só ocorre na defesa de um pretenso direito subjetivo da parte interessada, e com isso o objeto do pedido não é a declaração de inconstitucionalidade de um ato normativo, mas a proteção de um direito que seria afetado por ele 151 . Assim, como a arguição de inconstitucionalidade não é objeto da causa (não é questão principal), ela é realizada de forma incidental (incidenter tantum), ou seja, a inconstitucionalidade de lei ou ato é aduzida no curso do processo pelas partes (autor ou réu), por terceiros intervenientes, pelo Ministério Público 152 e até mesmo conhecido ex ofício pelo juiz 153 . Como a declaração incidental da inconstitucionalidade influenciará no resultado do mérito, isto é, na procedência ou improcedência do pedido, a mesma é uma questão de natureza prejudicial examinada previamente. A arguição da inconstitucionalidade pode ser utilizada como fundamento do pedido do autor (se situando na causa de pedir no processo civil), como matéria de defesa formulada pelo réu, como fundamento da decisão proferida pelo Judiciário e ainda ser suscitado em nível de recurso ou parecer do Ministério Público. O incidente de inconstitucionalidade pode ser levantado 151 Ibidem, p.115. 152 O Ministério Público pode arguir a inconstitucionalidade tanto quando atua como custus legis ou na qualidade de parte. Neste sentido, assevera THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. v. I. 50º ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 690. 153 Neste sentido, MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 1133. 83 em processos judiciais de qualquer natureza, quer seja cível ou criminal, ou de rito comum ou especial. Portanto, no controle difuso, o questionamento sobre a inconstitucionalidade de lei jamais poderá ser veiculado em sede de pedido e ser apreciado em dispositivo de decisão judicial, pois a declaração de inconstitucionalidade de lei em tese só pode ser requerida em caráter principal através das ações de controle abstrato de constitucionalidade, cujo de rol de legitimados é limitado, e cujo exame compete, exclusivamente, ao Supremo Tribunal Federal 154 no exercício do controle concentrado de constitucionalidade. Assim, a declaração incidental de inconstitucionalidade não é alcançada pela coisa julgada 155 . 3.5.1.2 O controle difuso nos tribunais e a reserva de plenário Como dito acima, o controle difuso de constitucionalidade pode ser exercido por qualquer juiz ou tribunal, o que significa dizer que tanto os órgãos judiciais de primeiro grau como os de segundo grau e os tribunais superiores podem exercer essa forma de controle. A possibilidade de o juiz singular de primeiro grau negar a aplicação de norma por reputar inconstitucional é exercida de forma mais ampla e singela do que os tribunais para o exercício dessa mesma competência. Isso ocorre em razão de que a declaração incidental de inconstitucionalidade nos tribunais se sujeitar ao requisito da reserva do plenário, imposto pelo art. 97 da Constituição Federal 156 . Pelo princípio da reserva de plenário, a declaração de inconstitucionalidade de uma lei por um tribunal só pode ser realizada pela maioria absoluta de seus membros (tribunal pleno) ou de 154 Pode também os Tribunais de Justiça exercer o controle de constitucionalidade pela via principal na hipótese de lei estadual ou municipal violar Constituição Estadual. 155 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Introdução ao Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. v. I. 14º ed. Salvador: Jus Podvum, 2012. p. 311. 156 Nestes termos dispõe a Constituição Federal: “Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”. 84 seu órgão especial, caso exista 157 . Essa regra foi introduzida no Brasil a partir da Constituição de 1934 158 , e se repetiu nas constituições seguintes. Como o controle de constitucionalidade via ação só surgiu em 1965, até essa época o princípio da reserva de plenário só se aplicava ao controle difuso e incidental de constitucionalidade. Assim, com a criação do controle concentrado de constitucionalidade, o princípio da reserva de plenário passou a alcançá-lo também, não havendo hoje qualquer distinção na aplicação da norma prevista no art. 97 da Constituição Federal, quer o tribunal tenha declarado a inconstitucionalidade de norma via ação direta, quer por via incidental. Contudo, apesar de a regra do art. 97 da Constituição Federal ser de uma clareza inquestionável, constantemente vinha sendo descumprida pelos órgãos fracionários dos tribunais, que reconheciam implicitamente a inconstitucionalidade de lei, afastando a sua aplicação, sem contudo, declarar expressamente a sua inconstitucionalidade, e desse modo não submetiam tal discussão ao exame do pleno ou ao órgão especial do tribunal. Isso fez com que o Supremo Tribunal Federal combatesse essa postura declarando a invalidade de diversas decisões proferidas por órgãos fracionários, por violação à regra vertida no art. 97 da Constituição. Em razão dessa reiteração, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante nº 10 159 sobre assunto. Segundo Cunha Júnior, a reserva de plenário é uma “condição de eficácia da decisão declaratória de inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo do poder público, que se justifica em face do princípio da presunção de constitucionalidade da lei e atos estatais”160. Em razão dessa 157 A Constituição Federal regulamenta também a criação de órgão especial nos tribunais desde que observadas as condições previstas no art. 93, inciso XI que assim expressa: “XI - nos tribunais com número superior a vinte e cinco julgadores, poderá ser constituído órgão especial, com o mínimo de onze e o máximo de vinte e cinco membros, para o exercício das atribuições administrativas e jurisdicionais delegadas da competência do tribunal pleno, provendo-se metade das vagas por antiguidade e a outra metade por eleição pelo tribunal pleno; (Redação dada ao inciso pela Emenda Constitucional nº 45, de 08.12.2004, DOU 31.12.2004)”. 158 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 120. 159 Nestes termos dispõe a Súmula Vinculante nº 10: “Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de Tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte”. 160 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de constitucionalidade, teoria e prática. 6. ed. Salvador: Jus Podivm, 2012, p. 164. 85 presunção de constitucionalidade é que, a contrário sensu, não se exige a reserva de plenário para a hipótese de se declarar a constitucionalidade de ato normativo, o que significa dizer que a constitucionalidade de norma pode ser pronunciada por qualquer órgão fracionário do tribunal. Por outro lado, a regra de reserva de plenário comporta exceção, pois, seguindo a orientação 161 da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o legislador acrescentou o parágrafo único 162 ao art. 481 do Código de Processo Civil, no qual reconheceu que a arguição de inconstitucionalidade de lei não será submetida ao plenário do tribunal ou ao seu órgão especial, quando estes ou o plenário do Supremo Tribunal Federal já houverem pronunciado a sua inconstitucionalidade. Assim, os órgãos fracionários dos tribunais não possuem competência para declarar a inconstitucionalidade de uma lei, exceto se essa inconstitucionalidade já houver sido pronunciada anteriormente pelo pleno ou órgão especial do próprio tribunal ou pelo plenário do Supremo Tribunal Federal. 3.5.1.3 O procedimento do controle difuso-incidental O controle incidental de constitucionalidade, quando é realizado por um órgão singular, não há um procedimento específico a ser seguido para que o juiz possa apreciar e declarar a inconstitucionalidade de lei. Desse modo, como tem natureza de questão prejudicial, a inconstitucionalidade deve ser suscitada e apreciada como todas as demais questões prejudiciais que podem surgir no curso de um processo, isto é, pode ser arguida a qualquer momento, por qualquer das partes, pelo interveniente ou pelo Ministério Público e conhecido e apreciado pelo juiz na fundamentação de sentença de mérito que proferir. 161 Ibidem. 162 Assim, dispõe o parágrafo único do art. 481 do CPC: “Parágrafo único. Os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a arguição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão.” (Parágrafo acrescentado pela Lei nº 9.756, de 17.12.1998, DOU 18.12.1998) 86 Porém, quando a inconstitucionalidade é arguida perante um tribunal, há um procedimento específico a ser seguido, regido pelos arts. 480 a 482 do Código de Processo Civil CPC, com a finalidade de se obedecer à cláusula de reserva de plenário prevista no art. 97 da Constituição Federal e que deve ser aplicado independentemente de o tribunal atuar como instância originária ou recursal. De acordo com essas regras, se a inconstitucionalidade for suscitada, o relator do processo ouvirá o Ministério Público e em seguida submeterá a questão à apreciação do órgão fracionário (turma, câmara etc.) que tocar o conhecimento da causa 163 . Nesse caso, se o órgão fracionário entender que a arguição de inconstitucionalidade não prospera e a rejeita, prossegue regularmente no julgamento da causa, podendo continuar, inclusive, a aplicar a norma impugnada, vez que não fora considerada inválida. Porém, se acolher 164 a inconstitucionalidade será lavrado acórdão e a questão será encaminhada para ser examinada pelo pleno do tribunal ou pelo órgão especial, se existir. Assim, o processo no qual se analisa o caso concreto ficará sobrestado até o pronunciamento do tribunal sobre a questão da constitucionalidade. Antes do exame da questão pelo tribunal, o Ministério Público, as pessoas jurídicas de direito público responsáveis pela edição do ato questionado e os legitimados referidos no art. 103 da Constituição Federal poderão manifestar no incidente de inconstitucionalidade em curso perante os tribunais, no prazo fixado no regimento interno, de acordo com o que preceitua os §§ 1º e 2º do art. 482 do CPC 165 . Além disso, o relator, considerando a relevância da matéria e a 163 Neste sentido expressa o art. 480 do CPC: “Arguida a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do poder público, o relator, ouvido o Ministério Público, submeterá a questão à turma ou câmara, a que tocar o conhecimento do processo”. 164 Neste sentido, dispõe o art. Art. 481, caput: “Se a alegação for rejeitada, prosseguirá o julgamento; se for acolhida, será lavrado o acórdão, a fim de ser submetida a questão ao tribunal pleno”. 165 Dispõe o art. 482, em seus §§ 2º e 2º: “§ 1º O Ministério Público e as pessoas jurídicas de direito público responsáveis pela edição do ato questionado, se assim o requererem, poderão manifestar-se no incidente de inconstitucionalidade, observados os prazos e condições fixados no Regimento Interno do Tribunal. (Parágrafo acrescentado pela Lei nº 9.868, de 10.11.1999, DOU 11.11.1999) § 2º Os titulares do direito de propositura referidos no artigo 103 da Constituição poderão manifestar- se, por escrito, sobre a questão constitucional objeto de apreciação pelo órgão especial ou pelo Pleno do Tribunal, no prazo fixado em Regimento, sendo-lhes assegurado o direito de apresentar memoriais ou de pedir a juntada de documentos. (Parágrafo acrescentado pela Lei nº 9.868, de 10.11.1999, DOU 11.11.1999) 87 representatividade dos postulantes, poderá admitir a manifestação de outros órgãos ou entidades 166 . Essas regras, por possibilitar que órgãos e instituições participem do debate sobre a constitucionalidade de lei, confere um caráter democrático e pluralista ao processo incidental de controle de constitucionalidade. Após todo esse trâmite, o tribunal, através do pleno ou de seu órgão especial, deliberará sobre o assunto e a norma será considerada inconstitucional se declarada pela maioria absoluta de seus membros. Declarada ou não a inconstitucionalidade, o julgamento do caso concreto será retomado pelo órgão fracionário, que obedecerá à decisão do tribunal a respeito da questão da constitucionalidade, ou seja, não aplicará a norma questionada se tiver sido declarada inconstitucional e levará a mesma a cabo se confirmada a sua constitucionalidade. 3.5.1.4 O controle difuso realizado pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal Como o controle difuso pode ser realizado pelo Judiciário através de qualquer juiz ou tribunal, logo o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, por serem órgãos judicantes, estão autorizados a desempenhar o controle difuso de constitucionalidade, podendo assim deixar de aplicarem as leis e atos normativos que compreenderem serem incompatíveis com a Constituição. A Constituição Federal atribuiu ao Superior Tribunal de Justiça competência originária (art. 105, inciso I) e recursal (art. 105, incisos II e III), sendo que esta última é realizada mediante recurso ordinário (art. 105, inciso II) ou mediante recurso especial (art. 105, inciso III). De regra, o controle difuso de constitucionalidade pelo Superior Tribunal de Justiça é exercido nas causas 166 Neste sentido dispõe o §3º do art. 482: “O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá admitir, por despacho irrecorrível, a manifestação de outros órgãos ou entidades. (Parágrafo acrescentado pela Lei nº 9.868, de 10.11.1999, DOU 11.11.1999)”. 88 de sua competência originária e naquelas que lhe caiba julgar através do recurso ordinário, vez que a cognição exercida pelo tribunal nesses casos ser ampla. Assim, dessas decisões, se o Superior Tribunal de Justiça tiver pronunciado sobre alguma questão constitucional caberá recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal 167 . No recurso especial, normalmente, não haverá discussão em torno de matéria constitucional, pois o seu objeto gira em torno de questões infraconstitucionais e se a decisão atacada fundar, também, em alguma questão constitucional, nessa parte não cabe recurso especial, e sim, recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal, que deverá ser interposto juntamente com aquele. Portanto, se questão constitucional estiver presente na decisão recorrida, não poderá ser conhecida através do recurso especial, pois, do contrário, estaria se usurpando competência do Supremo Tribunal Federal no exame de recurso extraordinário, exceto se a questão constitucional tiver surgido posteriormente ao julgamento pelo tribunal recorrido 168 . Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal realiza o controle difuso de constitucionalidade, seja nos processos de sua competência originária (art. 102, inciso I da CF), no julgamento de recursos ordinários (art. 102, inciso II da CF) e, principalmente, em sede de recursos extraordinários (art. 102, inciso III da CF). Em capítulo adiante será analisado com maior ênfase o controle difuso realizado pelo Supremo Tribunal Federal. 167 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 126. 168 Neste sentido já manifestou o Supremo Tribunal Federal no AgRg no AI 145.589-RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence: “Recurso extraordinário: interposição de decisão do STJ em recurso especial: inadmissibilidade, se a questão constitucional de que se ocupou o acórdão recorrido já fora suscitada e resolvida na decisão de segundo grau e ademais, constitui fundamento suficiente da decisão da causa. 1. Do sistema constitucional vigente, que prevê o cabimento simultâneo de recurso extraordinário de recurso especial contra o mesmo acórdão dos tribunais de segundo grau, decorre que da decisão do STJ, no recurso especial, só se admitirá recurso extraordinário se a questão constitucional objeto do último for diversa da que já tiver sido resolvida pela instância ordinária. 2. Não se contesta que, no sistema difuso de controle de constitucionalidade, o STJ, a exemplo de todos os demais órgãos jurisdicionais de qualquer instância, tenha o poder de declarar incidentemente a inconstitucionalidade da lei, mesmo de ofício; o que não é dado àquela Corte, em recurso especial, é rever a decisão da mesma questão constitucional do tribunal inferior; se o faz, de duas uma: ou usurpa a competência do STF, se interposto paralelamente ao recurso extraordinário ou, caso contrário, ressuscita matéria preclusa”. Apud in CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de constitucionalidade, teoria e prática. 6. ed. Salvador: Jus Podivm, 2012, p. 163. 89 3.5.1.5 Os efeitos da decisão no controle difuso-incidental A natureza jurídica do ato declarado inconstitucional sempre foi tema de muito debate doutrinário no mundo, havendo correntes que entendem que o ato seria considerado inexistente, outros que seria nulo e outros que seria anulável. Entretanto, a corrente amplamente dominante e que sempre prevaleceu na tradição do Direito brasileiro é que a lei inconstitucional se situa no campo da nulidade 169 , sendo essa teoria baseada na doutrina norte-americana do controle difuso de constitucionalidade, que desde o caso Marbury versus Madison, em 1803, considera nulo o ato que contrarie a Constituição 170 . Portanto, tendo sido abraçado no Brasil o dogma da nulidade da lei inconstitucional, significa dizer que a decisão que pronuncia a inconstitucionalidade é de natureza declaratória, pois se reconhece que a norma é incompatível com a Constituição, que padece de um vício pré- existente. Isso significa dizer que pronunciada a inconstitucionalidade da norma, ela é considerada nula desde a sua origem, ou seja, a eficácia temporal da declaração de inconstitucionalidade retroage ao passado, são assim ex tunc 171 . Contudo, deve-se ressaltar que nos Estados Unidos a teoria da nulidade da norma inconstitucional passou a comportar temperamentos, tendo a Suprema Corte americana admitido que em determinadas situações o Judiciário pode limitar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, podendo destarte ser conferido à decisão apenas efeito ex nunc ou prospectivo. Nos Estados Unidos, o precedente que passou a permitir a possibilidade de se atribuir 169 MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 1059-1060. 170 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de constitucionalidade, teoria e prática. 6. ed. Salvador: Jus Podivm, 2012, p. 168. 171 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.126. 90 efeitos futuros à pronúncia de inconstitucionalidade teve origem no caso Likletter x Walker 172 , julgado pela Suprema Corte americana, em 1965. E essa limitação aos efeitos retroativos da declaração de inconstitucionalidade passou a ser adotada por uma série expressiva de Cortes Constitucionais e Cortes Supremas espalhadas pelo mundo 173 . Assim, apesar de a regra dos efeitos retroativos predominar nas declarações de inconstitucionalidade, passou-se a admitir no modelo de controle difuso que é possível a limitação desses efeitos, podendo ser conferido também efeito ex nunc. No Brasil, apesar de existir apenas norma (art. 27 da lei nº 9.868/99) autorizando a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade no controle concentrado, todavia, vem-se admitindo que também é possível, em algumas situações, atribuir efeito prospectivo à declaração de inconstitucionalidade no controle difuso incidental. Vale lembrar que a ausência de lei não é barreira para impedir a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade no controle difuso incidental, vez que antes de existir a previsão legal vertida no art. 27 174 da lei nº 9.868/99, que autorizou a limitação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade no controle concentrado, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já interpretava, sem previsão em lei, que em algumas situações era possível a flexibilização da regra da retroatividade da decisão 175 . Destarte, por analogia, pode-se aplicar o art. 27 da lei 9.868/99 ao controle difuso incidental, sempre que se verificar que por razões de segurança jurídica ou por excepcional interesse social não é viável se atribuir efeito retroativo à declaração de inconstitucionalidade. Nesse sentido, também defende Mendes: 172 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de constitucionalidade, teoria e prática. 6. ed. Salvador: Jus Podivm, 2012, p. 169. 173 MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 1174. 174 Neste sentido expressa o art. 27 da Lei n.º 9.868/99: “Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”. 175 BULOS, Uadi Lammego. Curso de Direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p 257. 91 Não parece haver dúvida de que, tal como já exposto, a limitação de efeito é decorrência do controle judicial de constitucionalidade, podendo ser aplicado tanto no controle direto quanto no controle incidental. O Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de discutir a aplicação do art. 27 da Lei n. 9.868/99 em alguns casos. No primeiro, controvertia-se sobre a constitucionalidade do parágrafo único do art. 6° da Lei Orgânica n. 222, de 31-3-1990, do Município de Mira Estrela (SP), que teria fixado seu número de vereadores em afronta ao disposto no art. 29, IV, da Constituição. E que tal disposição prevê que o número de vereadores seja fixado proporcionalmente à população local, observando-se, nos municípios de até um milhão de habitantes, a relação de um mínimo de nove e um máximo de vinte e um. Acolhendo proposta formulada em voto vista por nós proferido, o Tribunal consagrou que a decisão de inconstitucionalidade seria dotada de efeito pro futuro. 176 Além da eficácia temporal, a decisão que declara a inconstitucionalidade no controle difuso incidental produz efeitos subjetivos, ou seja, é necessário perquirir quem são pessoas atingidas pela decisão que em sede de controle difuso declara a inconstitucionalidade de norma. Como dito anteriormente no controle difuso de constitucionalidade, o órgão judicante pronuncia a inconstitucionalidade de um ato durante o exame de um caso concreto, sendo tal declaração manifesta nos fundamentos da decisão. Além disso, é cediço também que a decisão judicial em processo de natureza subjetiva só produz efeitos entre as partes envolvidas no litígio como preceitua o art. 472 do CPC 177 , não atingindo assim terceiros estranhos ao processo. Isso significa dizer que uma vez pronunciada a declaração de inconstitucionalidade, somente as partes do processo sofrerão os efeitos dessa declaração. Ou seja, a norma declarada inconstitucional durante a análise do caso concreto não é excluída do ordenamento jurídico, apenas não será aplicada às partes envolvidas no litígio. Desse modo, a pronúncia da inconstitucionalidade de ato normativo no controle difuso incidental só produz efeitos entre as partes envolvidas (inter partes), não gerando dessa forma efeitos erga omnes, mesmo que a declaração de inconstitucionalidade tenha sido pronunciada pelo 176 MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 1176. 177 Preceitua o art. 472 do CPC: “A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados, a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros”. 92 Supremo Tribunal Federal, segundo defende a doutrina tradicional. Nesse caso, a inconstitucionalidade de lei declarada incidentalmente pelo Supremo Tribunal Federal só alcançaria a todos se o Senado Federal determinasse a suspensão de sua execução 178 . Entretanto, em capítulo seguinte procura-se demonstrar de forma minudente que, quando a inconstitucionalidade de lei é reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (guardião maior da Constituição Federal) em sede de controle difuso, os fundamentos da decisão devem transcender os limites do caso concreto e alcançar a todos (efeitos erga omnes). No Supremo Tribunal Federal essa ideia é defendida pelo ministro Gilmar Mendes 179 . Além disso, como a declaração de inconstitucionalidade é suscitada como questão incidental (vez que só pode ser formulada como pedido em sede de controle concentrado, sob pena de usurpar a competência do STF), a mesma é enfrentada na fundamentação da decisão e assim não é objeto de julgamento, mas apenas objeto de conhecimento 180 . Por essa razão, como não faz parte do dispositivo da decisão prolatada, local onde se julga a questão principal, a declaração de inconstitucionalidade no controle difuso não é alcançada pela coisa julgada, como rezam os arts. 468 e 469 do Código de Processo Civil 181 . Portanto, em síntese, são efeitos da decisão declaratória de inconstitucionalidade realizada em controle difuso: a) eficácia temporal de natureza retroativa (ex tunc), ressalvada a aplicação por analogia do art. 27 da lei nº 9.868/99, onde se admite a fixação de efeitos prospectivos; b) 178 Sobre essa doutrina tradicional descreve: BULOS, Uadi Lammego. Curso de Direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 253; BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.155; MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 1155; entre outros. 179 MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 1158-1159. 180 Neste sentido, DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Introdução ao Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. v. I. 14º ed. Salvador: Jus Podvum, 2012, p. 320 181 Neste sentido preceituam os arts. 468 e 469 do CPC: “Art. 468. A sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas; Art. 469. Não fazem coisa julgada: I - os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença; II - a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença; III - a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo. 93 efeito subjetivo que, de regra, somente alcança as partes do processo e c) a declaração de inconstitucionalidade não é alcançada pela coisa julgada. 3.5.1.6 O controle difuso-incidental e o papel do Senado Federal O Supremo Tribunal Federal, apesar de ser o órgão exclusivo na realização do controle abstrato de constitucionalidade, também, como já mencionado anteriormente, pode em controle difuso incidental declarar a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo, desde que obedecida a regra da maioria absoluta e da reserva de plenário prevista no art. 97 da CF/88. E isso é possível tanto no exame de um caso concreto no exercício de sua competência originária (como por exemplo, habeas corpus, que tem como autoridade de coatora Ministro do Superior Tribunal de Justiça – art. 102, I, “i” da CF/88), como também no julgamento de um recurso ordinário (exemplo, recurso ordinário interposto contra decisão negatória de habeas corpus, decidida em única instância pelo Superior Tribunal de Justiça – art. 102, II, “a”) e, principalmente, na apreciação de recurso extraordinário (exemplo, recurso extraordinário interposto contra decisão proferida em última instância por Tribunal de Justiça de Estado, que afronta dispositivo da Constituição - art. 102, III, “a”). Em qualquer uma dessas situações em que o Supremo Tribunal Federal declarar, por decisão definitiva, a inconstitucionalidade de ato normativo, a tradição brasileira, iniciada com a Constituição de 1934 182 , faculta ao Senado Federal a suspensão, no todo ou em parte, 182 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.155. 94 da lei declarada inconstitucional, regra essa que na atual Constituição encontra-se prevista no inciso X do art. 52 183 . O instituto da suspensão pelo Senado Federal do ato normativo declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal foi introduzido na Constituição de 1934 por iniciativa do deputado José Eduardo do Prado Kelly, que anos depois, ao se tornar ministro do Supremo Tribunal Federal, explicou os razões que levaram à criação do referido instituto, nos seguintes termos: A jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal negava a extensão a outros interessados dos efeitos das suas decisões. O julgado estava, como é de communis opinio, adstrito à questão focalizada pela Corte. Só em habeas corpus (impetrado o primeiro deles pelo conselheiro Rui Barbosa, para assegurar a liberdade de reunião em praça pública) se admitiu a extensão da medida erga omnes. Então, acudia naturalmente aos estudiosos dos fatos jurídicos a conveniência de instituir-se meio adequado à pronta suspensão dos efeitos, para terceiros, das leis e regulamentos declarados inconstitucionais pela Suprema Corte. Foi uma inspiração de ordem prática. Mas a fórmula adotada pela Constituinte de 1934 obedecia ainda a razões de ordem técnica. O regulamento, a lei, podiam provir da União, dos Estados Membros ou dos Municípios. Se se guardasse a revogação, para alcance geral, de norma eivada de inconstitucionalidade, escaparia ao Legislador Federal o ensejo, em muitos casos, de corrigir os defeitos estranhos a sua competência, como, por exemplo, os de órbita estadual ou municipal 184 . Nota-se assim que a razão histórica dessa regra deve-se ao fato de que na época de sua origem não existia ainda no Brasil o controle abstrato de constitucionalidade que possibilitasse ao Supremo Tribunal Federal, como ocorre hoje, o afastamento direto da norma declarada inconstitucional do ordenamento jurídico (onde se comporta como um verdadeiro legislador negativo), mas tão somente o controle incidental pela via difusa diante da análise de um caso concreto, onde o efeito da decisão que reconhecia a inconstitucionalidade se circunscrevia às partes do litígio. 183 Nestes termos, dispõe a Constituição Federal no inciso X do art. 52: “Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal: (...) X - suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal.” 184 Voto proferido no MS 16.512, Relator Ministro Oswaldo Trigueiro. Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=84410. Acesso em 21 de mai. de 2013. 95 E sendo o Brasil adepto do sistema romano-germano da civil law, no qual a fonte primordial do Direito se deflui da lei, a “importação” dos Estados Unidos do sistema de controle difuso de constitucionalidade não trouxe consigo o princípio do stare decisis 185 , próprio do sistema anglo-saxão (commom law), o que significa dizer que os precedentes das cortes brasileiras superiores não vinculavam as inferiores e que, por isso, cada juiz ou tribunal poderia decidir livremente, sem se preocupar com as decisões anteriores sobre o tema, levando ao surgimento de decisões conflitantes que provocavam o enfraquecimento da segurança jurídica. Dessa forma, desde o surgimento do controle de constitucionalidade no Brasil, com a Constituição de 1891, até meados da década de 60, o Supremo Tribunal Federal não tinha o poder de excluir do ordenamento jurídico a norma que reconhecesse ser inconstitucional. Portanto, ao se permitir que o Senado Federal possa suspender por resolução a lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, a intenção visada pelo Constituinte era corrigir a deficiência do sistema difuso-incidental no Brasil, gerada pela ausência do stare decisis, possibilitando assim a expansão e generalização dos efeitos da decisão do Pretório Excelso, que passaria a alcançar a todos, e não somente as partes do processo, como acontece comumente. Nestes termos, esclarece Barroso: A razão histórica – e técnica – da intervenção do Senado é singelamente identificável. No direito norte-americano, de onde se transplantara o modelo incidental e difuso, as decisões dos tribunais são vinculantes para os demais órgãos judiciais sujeitos à sua competência revisional. Isso é válido inclusive, e especialmente, para os julgados da Suprema Corte. Desse modo, o juízo de inconstitucionalidade por ela formulado, embora relativo a um caso concreto, produz efeitos gerais. Não assim, porém, no caso brasileiro, onde a tradição romano- germânica vigorante não atribui eficácia vinculante às decisões judiciais, nem 185 O princípio americano do stare decisis, ou doutrina dos precedentes, é da essência do sistema da commom law, e que, segundo Cappelletti, traduz o significado de que “uma decisão proferida por uma corte de maior hierarquia de uma jurisdição será vinculante para todas as cortes de hierarquia inferior pertencentes a mesma jurisdição” (CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no Direito comparado. Trad. Aroldo Plínio Gonçalves. 2 ed – Porto Alegre: Fabris, 1984, reimp. 1999, p. 80). 96 mesmo às do Supremo Tribunal Federal. Desse modo, a outorga ao Senado Federal de competência para suspender a execução da lei inconstitucional teve por motivação atribuir eficácia geral, em face de todos, erga omnes, à decisão proferida no caso concreto, cujos efeitos se irradiam, ordinariamente, apenas em relação às partes do processo 186 . Insta lembrar que, quando o Senado Federal, ao deliberar sobre a suspensão ou não da lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, pratica um ato político, pois decide de forma discricionária, de acordo com seu juízo de conveniência e oportunidade, sobre a suspensão da lei. Assim, o Senado Federal não decreta nenhuma inconstitucionalidade, mas tão somente permite, ao reconhecer a suspensão do ato normativo declarado inconstitucional, que a decisão do Supremo Tribunal Federal produza efeitos erga omnes 187 . Portanto, sendo discricionária sua atuação, o Senado não tem prazo para decidir sobre a suspensão do ato normativo e ainda tem a liberdade de suspender, total ou parcialmente, o ato normativo ou de não suspendê-lo 188 . Além disso, a regra prevista no inciso X do art. 52 da Constituição Federal somente é aplicável na hipótese de declaração incidental de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, não se aplicando à inconstitucionalidade reconhecida em ação direta, pois, nesse caso, é conferida ao próprio Supremo Tribunal a competência de atuar como um verdadeiro legislador negativo, vez que as decisões nessa sede têm efeito erga omnes 189 . A doutrina aponta ainda que a atribuição conferida ao Senado Federal, de suspender ato normativo declarado inconstitucional, não se limita apenas aos atos normativos federais, mas também alcança os estaduais, distritais e municipais, sejam elaborados diretamente pelo poder Legislativo (como leis, emendas constitucionais etc.) ou por outros poderes (como por 186 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.155. 187 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de constitucionalidade, teoria e prática. 6. ed. Salvador: Jus Podivm, 2012, p. 171. 188 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.156. 189 Ibidem, p. 172. 97 exemplo, medidas provisórias, decretos presidenciais, tratados internacionais, regimento interno dos tribunais etc.) 190 . No tocante aos efeitos temporais da decisão do Senado Federal, que suspende a norma declarada inconstitucional, a doutrina diverge sobre o tema, pois alguns, como Gilmar Mendes e Clèmerson Merlin Cleve, em corrente minoritária, apontam que a decisão tem efeito retroativo, ex tunc, enquanto outros, como Themístocles Brandão Cavalcante, Osvaldo Aranha Bandeira de Melo, José Afonso da Silva, Regina Maria Macedo de Ferrari, Lênio Luis Streck e outros, defendem, de forma majoritária, que os efeitos são futuros, ex nunc 191 . Entretanto, se essa competência atribuída ao Senado Federal foi necessária à época de sua criação, em razão do perigo de decisões contraditórias, por não haver no Brasil o instituto análogo ao stare decisis dos Estados Unidos e por não existir naquele momento ainda o controle abstrato de constitucionalidade, não tem mais hoje razão de existir. Isso porque, com a Emenda Constitucional nº 16/1965, que criou a representação direta de inconstitucionalidade no Brasil, incorporando também o sistema austríaco de controle de constitucionalidade, e com a ampliação substancial desse sistema pela Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal foi dotado da atribuição de poder decretar a inconstitucionalidade de norma com eficácia erga omnes e vinculante sem qualquer ingerência do Senado Federal. Assim, atualmente, se o Supremo Tribunal está investido da função de guarda da Constituição, e se através do seu órgão pleno, por maioria absoluta, pode se decretar a inconstitucionalidade de uma norma, seja por controle difuso ou por ação direta, tal decisão deve produzir, indistintamente, efeitos vinculantes contra todos. Em outras palavras, se o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle abstrato de constitucionalidade, pode excluir do ordenamento jurídico, em caráter irrecorrível e vinculante, uma norma inconstitucional, devem esses mesmos efeitos ser aplicados, quando esse mesmo Tribunal com a mesma 190 BULOS, Uadi Lammego. Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 45. 191 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de constitucionalidade teoria e prática. 6. ed. Salvador: Jus Podivm, 2012. p. 174. 98 composição, declarar a inconstitucionalidade da mesma norma como última instância do controle difuso de constitucionalidade. E isto se justifica porque é inadmissível que instancias inferiores possam continuar aplicando a norma declarada inconstitucional pela Corte Constitucional no controle difuso de constitucionalidade. No Brasil, o ministro Gilmar Mendes é o principal defensor dessa ideia, a qual expressa que: A exigência de que a eficácia geral da declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal em casos concretos dependa de decisão do Senado Federal, introduzida entre nós com a Constituição de 1934 e preservada na Constituição de 1988 (art. 52, X), perdeu parte de seu significado com a ampliação do controle abstrato de normas, sofrendo o mesmo processo de obsolescência. A amplitude conferida ao controle abstrato de normas e a possibilidade de que se suspenda, liminarmente, a eficácia de leis ou atos normativos, com eficácia geral, contribuíram, certamente, para que se mitigasse a crença na própria justificativa desse instituto, que se inspirava diretamente numa concepção de separação dos Poderes – hoje necessária e inevitavelmente ultrapassada. Se o Supremo pode, em ação direta de inconstitucionalidade, suspender, liminarmente, a eficácia de uma lei, até mesmo de emenda constitucional, por que haveria a declaração de inconstitucionalidade proferida no controle incidental, valer tão somente para as partes? 192 No Supremo Tribunal Federal, os ministros Gilmar Ferreira Mendes, na qualidade de relator, e Eros Roberto Grau manifestaram-se nos autos da Reclamação Constitucional nº 4.335-5/AC, que ainda se encontra pendente de julgamento, onde defendem o argumento de que a inconstitucionalidade reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle difuso incidental produz efeitos erga omnes independentemente da suspensão da eficácia da norma pelo Senado Federal 193 . 192 MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 1159. 193 A Reclamação Constitucional n.º4.335-5/AC foi interposta em 2006 pela Defensoria Pública Geral do Estado do Acre questionando decisão proferida pelo juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco, no Estado do Acre, que negou o pedido de progressão de regime aos réus condenados por crimes hediondos em regime integralmente fechado. Em tal reclamação aduz-se que a referida decisão do juiz das Execuções Penais afronta decisão proferida anteriormente pelo Supremo Tribunal no HC 82.959, quando se afastou a vedação de progressão de regime aos condenados pela prática de crime hediondo, ao considerar inconstitucional, em controle difuso-incidental, o § 1º do art. 2º da lei n.º 8.072/90 (Lei de Crimes Hediondos), ao determinar que a pena em tais delitos fosse cumprida em regime integralmente fechado. O julgamento de tal reclamação não foi concluído até o término desta dissertação, porém, já houve o pronunciamento dos ministros 99 No capítulo seguinte, é analisado de forma mais detalhada como deve ser interpretada a participação do Senado Federal no controle difuso incidental realizado pelo Supremo Tribunal Federal. Porém, do que foi exposto até aqui, percebe-se que a norma descrita no inciso X do art. 52 da Constituição Federal de 1988 não tem mais, no contexto atual, a utilidade e a importância de outrora, podendo tal regra ser suprimida do corpo da Constituição Federal de 1988, sem que isso provoque qualquer abalo ao sistema constitucional e ao equilíbrio dos poderes constituídos. 3.5.2 O controle concentrado de constitucionalidade 3.5.2.1 Considerações gerais O controle concentrado de constitucionalidade no Brasil teve como embrião a representação interventiva 194 , criada pela Constituição de 1934, com legitimidade confiada ao procurador geral da República e sujeita à competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal. Tal representação, por visar o exame de uma lei que dispunha sobre a intervenção federal frente a um caso concreto, nada mais é que uma variante do controle difuso de constitucionalidade, porém, por ser exercida por ação direta perante o Supremo Tribunal Gilmar Mendes, Eros Grau, Sepúlveda Pertence, Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski. Os ministros Gilmar Mendes e Eros Grau votaram pela procedência da reclamação e reconheceram que o disposto no inciso X do art. 52 da Constituição Federal, não impede que a inconstitucionalidade reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal em controle difuso-incidental produza efeitos erga omnes. O ministro Sepúlveda Pertence julgou improcedente a reclamação, porém concedeu o habeas corpus de ofício. Os ministros Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski não conheceram da reclamação, mas também concederam o habeas corpus de ofício. O processo no momento encontra-se com vista do Ministro Teori Zavascki. Tais informações podem ser obtidas no sítio do Supremo Tribunal Federal em: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=4335&classe=Rcl&codigoClasse=0& origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M. 194 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 64. 100 Federal é classificada didaticamente pela doutrina brasileira como sendo uma espécie de mecanismo de controle abstrato 195 . Porém, o marco oficial do início do controle concentrado de constitucionalidade no Brasil somente ocorreu com a Emenda Constitucional nº 16, de 26 de novembro de 1965, quando se implantou a representação genérica de inconstitucionalidade (que corresponde atualmente à ação direta de inconstitucionalidade por ação), através da qual o procurador geral da República poderia questionar no Supremo Tribunal Federal, via ação judicial, a inconstitucionalidade em tese de ato normativo federal ou estadual em face da Constituição Federal, trazendo assim para o Brasil, ao lado do controle difuso-incidental, já existente desde 1891, e da ação interventiva, o modelo austríaco de controle abstrato de constitucionalidade 196 . Com a Constituição de 1988 e através de mudanças implementadas por Emenda Constitucional, houve no sistema constitucional vigente uma sensível ampliação do controle abstrato de normas, o que aconteceu através do aumento significativo dos legitimados para promover ações voltadas ao controle abstrato de normas perante o Supremo Tribunal Federal, bem como através da criação de novos mecanismos de controle abstrato, tais como a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, a ação declaratória de constitucionalidade e a ação por descumprimento de preceito fundamental, e ainda pela possibilidade de adoção de efeitos vinculantes às decisões proferidas em sede de ações próprias do controle concentrado 197 . Nesse modelo de controle, o Supremo Tribunal Federal é chamado a intervir através de ação direta para dizer se uma determinada lei ou ato normativo em tese do poder público está em conformidade ou não com a Constituição. Assim, a fiscalização abstrata de 195 BULOS, Uadi Lammego. Curso de Direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 153. 196 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de constitucionalidade, teoria e prática. 6. ed. Salvador: Jus Podivm, 2012, p. 183. 197 Idem, p. 183. 101 constitucionalidade realizada pelo Supremo Tribunal Federal não se dá de forma incidental, como uma questão prejudicial, e nem diante do exame de um caso concreto, mas sim, o próprio ato normativo em abstrato é analisado em confronto com a Constituição como uma questão principal, pois é decorrente de um pedido específico formulado através de ação na qual se objetiva a própria declaração direta de inconstitucionalidade ou constitucionalidade do ato normativo do poder público. Nesse sentido, esclarece Cunha Júnior: Por isso, o controle concentrado - à exceção do que ocorre na ADPF incidental – é provocado por via principal, com a propositura de ação direta, através da qual se leva ao Supremo Tribunal Federal a resolução, em tese, de uma antinomia entre uma norma infraconstitucional e uma norma constitucional, sem qualquer análise ou exame do caso concreto. O Supremo se limita a examinar abstratamente o confronto entre as normas em tela, como medida de assegurar, objetivamente, a supremacia da Constituição 198 . Ademais, como é de curial de sabença, a função jurisdicional é uma atividade estatal exercida pelo poder Judiciário, precipuamente com a finalidade de solucionar os conflitos de interesse surgidos na sociedade pela aplicação da lei aos casos concretos 199 . Porém, no controle concentrado de constitucionalidade, apesar de não haver partes e consequentemente conflitos de interesses, porque não há uma situação concreta a ser solucionada, o exercício dessa atividade, por parte do Supremo Tribunal Federal, não deixa de ser jurisdicional, apesar de ser atípica, pois há um pronunciamento acerca da própria lei 200 . 3.5.2.2 A provocação do controle concentrado-principal 198 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de constitucionalidade teoria e prática. 6. ed. Salvador: Jus Podivm, 2012. p. 184. 199 Neste sentido: THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. V. I. 50º ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 38/39. 200 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.180. 102 Como já dito acima, o controle concentrado de constitucionalidade foi inspirado nas ideias de Kelsen e adotado pela primeira vez na Áustria, através da Constituição de 1920, e daí em diante se espraiou pela Europa e por diversos países do mundo, como o Brasil. Nesse modelo de controle, a atribuição da guarda da Constituição é conferida a um Tribunal Constitucional, ou a um grupo limitado deles, diferenciando assim do modelo americano de fiscalização de constitucionalidade, o qual é exercido por todos os órgãos jurisdicionais. No caso específico do Brasil, a Constituição prevê que o controle concentrado de constitucionalidade, pela via principal, pode ser desempenhado tanto pelo Supremo Tribunal Federal, que tem como paradigma a Constituição Federal, como também pelos Tribunais de Justiça dos Estados, que têm como parâmetro as Constituições Estaduais de cada Estado membro da federação, conforme prevê o art. 125, §2º da CF/88 201 . No caso do Supremo Tribunal Federal, sua competência para o exercício do controle concentrado de constitucionalidade abrange as leis federais e estaduais em descompasso com a Constituição Federal e pode ser provocado por meio das seguintes ações diretas: a) ação direta de inconstitucionalidade por ação (ADIN por ação); b) ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADIN por omissão); c) ação direta de inconstitucionalidade interventiva (ADIN interventiva); d) ação declaratória de constitucionalidade (ADC) e e) arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 202 . Já os Tribunais de Justiças dos Estados têm competência para o controle concentrado de constitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais incompatíveis com 201 Nestes, prescreve o Art. 125, §2º da Constituição Federal: “Art. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição. (...) § 2º. Cabe aos Estados a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual, vedada a atribuição da legitimação para agir a um único órgão. 202 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de constitucionalidade, teoria e prática. 6. ed. Salvador: Jus Podivm, 2012, p. 192. 103 as Constituições Estaduais. Nesse caso, o controle de constitucionalidade pode ser exercido por: a) ação direta de inconstitucionalidade por ação; b) ação direta de inconstitucionalidade por omissão e c) ação direta de inconstitucionalidade interventiva. Nessas ações não se resolvem litígios envolvendo partes definidas em um caso concreto, ou seja, não se pronuncia direito subjetivo de alguém especificamente, vez que a sua finalidade é a defesa direta da Constituição contra algum ato normativo, de tal maneira que a tutela de relações jurídicas concretas e individuais constitui matéria estranha aos seus domínios 203 . Sendo assim, não há partes no sentido estritamente processual, ou seja, no controle abstrato não temos um autor e um réu litigando, mas sim, um processo em que se tem entes legitimados a atuar institucionalmente em defesa da supremacia e da unidade da Constituição. Por essa razão que se diz que no controle concentrado de constitucionalidade o processo é de natureza objetiva. Segundo Mendes, o processo objetivo “é um processo sem sujeitos, destinado, pura e simplesmente, à defesa da Constituição. Não se cogita, propriamente, da defesa de interesse do requerente, que pressupõe a defesa de situações subjetivas”204. Com efeito, por ser um processo voltado exclusivamente à defesa da Constituição, uma vez proposta a ação direta de inconstitucionalidade, não se admitirá a sua desistência 205 . Além disso, por não envolver litígios concretos, não há, em regra, de se cogitar em suspeição ou impedimento do julgador 206 e não é cabível a intervenção de terceiros, salvo a intervenção do amicus curiae 207 , e não comporta ação rescisória 208 . 203 ZAVASKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 43. 204 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade – Aspectos jurídicos e políticos. São Paulo: Saraiva, 1990, pp. 250-251 apud BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira – legitimidade democrática e instrumentos de realização. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 143. 205 A lei 9.868/99 em seu art. 5º trata do assunto: “Art. 5º Proposta a ação direta, não se admitirá desistência”. 206 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de constitucionalidade, teoria e prática. 6. ed. Salvador: Jus Podivm, 2012, pp. 193-194. 207 A lei 9.868/99 veda a intervenção de terceiro, permitindo apenas o ingresso do amicus curiae: “Art. 7º Não se admitirá intervenção de terceiros no processo de ação direta de inconstitucionalidade.§ 2º O relator, 104 É de se mencionar ainda que, em que pese o Supremo Tribunal Federal, durante o controle concentrado de constitucionalidade, ficar vinculado ao pedido não está, contudo, vinculado à causa de pedir aduzida pelo órgão legitimado na propositura da ação, podendo assim o Tribunal se valer de outro fundamento não descrito na petição inicial para reconhecer a inconstitucionalidade do ato normativo. Por essa razão é que se diz que a causa de pedir nas ações diretas é de natureza aberta. Neste sentido, expressa Neves: Registre-se que no processo objetivo, que veicula o controle concentrado de constitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal entende aplicável a tese da causa de pedir aberta, o que significa liberdade àquele tribunal na análise de qualquer causa de pedir no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade/constitucionalidade, ainda que não alegada pelo autor. É natural que, admitida tal liberdade ao órgão julgador, inexiste sentença extra causa petendi no controle abstrato de constitucionalidade de normas. 209 Da mesma forma, o próprio Supremo Tribunal Federal se manifestou neste sentido: É certo que o Supremo Tribunal Federal não está condicionado, no desempenho de sua atividade jurisdicional, pelas razões de ordem jurídica invocadas como suporte da pretensão de inconstitucionalidade deduzida pelo autor na ação direta. Tal circunstância, no entanto, não suprime o dever processual de motivar o pedido e de identificar, na Constituição, em obséquio ao princípio da especificação das normas, os dispositivos alegadamente violados pelo ato normativo que pretende impugnar. Impõe-se ao autor, no processo de controle concentrado de constitucionalidade, indicar as normas de referência – que são aquelas inerentes ao ordenamento constitucional e que se revestem, por isso mesmo, de parametricidade – em ordem a viabilizar a aferição da conformidade vertical dos atos normativos infraconstitucionais. 210 Sendo assim, o Supremo Tribunal Federal pode examinar a constitucionalidade da norma impugnada em relação a toda a Constituição Federal, o que significa dizer que embora considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades.”. 208 A lei 9.868/99 em seu art. 26 dispõe neste sentido: “Art. 26. A decisão que declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo em ação direta ou em ação declaratória é irrecorrível, ressalvada a interposição de embargos declaratórios, não podendo, igualmente, ser objeto de ação rescisória.”. 209 NEVES, Daniel de Amorim Assumpção. Manual de Direito processual civil. 3º ed. São Paulo: Gen, 2011, p. 519. 210 ADI-MC 561, Rel. Min. Celso de Melo, DJ 23/03/2001. Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=346465. Acesso em 28 de mai. de 2013. 105 o legitimado ativo continue com a obrigação de declinar os fundamentos jurídicos de seu pedido e apontar o preceito constitucional violado, o tribunal tem a liberdade de acolher ou não a causa de pedir aduzida, de tal modo que pode desconsiderá-la ou substituí-la por outra 211 . Para finalizar, vale ressaltar que cada uma das espécies de ações voltadas à instauração do controle concentrado de constitucionalidade tem a sua importância específica na defesa da Constituição. Com isso, em linhas gerais, a ação direta de inconstitucionalidade por ação tem por objeto a exclusão do sistema jurídico da lei ou ato normativo incompatível com a Constituição, atuando o Supremo Tribunal Federal como legislador negativo, enquanto na ação declaratória de constitucionalidade o seu objetivo é a confirmação da presunção de constitucionalidade do ato normativo federal, cuja constitucionalidade é suscitada na via difusa de controle de constitucionalidade. No tocante à ação direta de inconstitucionalidade por omissão, o seu desiderato é a supressão da omissão lesiva à Constituição, com a finalidade de tornar efetiva a norma constitucional. Por sua vez, a ação direta de inconstitucionalidade interventiva visa a sancionar o Estado membro ou o Distrito Federal com a intervenção federal caso restem violados os princípios constitucionais sensíveis. Por fim, ação de descumprimento de preceito fundamental é uma ação subsidiária às demais ações diretas e se limita à defesa das normas constitucionais qualificadas como preceitos fundamentais. 3.5.2.3 Os efeitos da decisão no controle concentrado-principal 211 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de constitucionalidade, teoria e prática. 6. ed. Salvador: Jus Podivm, 2012, p. 195. 106 Os efeitos da decisão no exercício do controle concentrado de constitucionalidade podem sofrer variações de acordo com a espécie de ação direta proposta. Assim, passa-se à análise dos efeitos da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em cada ação direta. Na ação direta de inconstitucionalidade por ação, a decisão do Supremo Tribunal Federal que declara a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo impugnado tem, no tocante aos efeitos subjetivos, eficácia contra todos (erga omnes) e efeito vinculante em relação aos órgãos do poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal 212 . No entanto, tal decisão não produz efeito vinculante no tocante ao órgão legislativo. Isso significa dizer que apesar de a norma declarada inconstitucional não fazer mais parte do ordenamento jurídico (eficácia contra todos), o poder Legislativo, por não poder ser privado de sua função, tem a liberdade de editar novo ato normativo de conteúdo idêntico ao anterior, o qual poderá ser atacado novamente por ação direta 213 . Outra peculiaridade no tocante aos efeitos da decisão proferida em sede de ação direta de inconstitucionalidade por ação diz respeito à teoria da transcendência dos motivos determinantes. Por essa teoria significa dizer que os efeitos de um julgado não se limitam somente à parte dispositiva, alcançando outrossim os próprios fundamentos que embasaram a decisão, ou seja, a ratio decidendi. Desse modo, os fundamentos de uma interpretação da Constituição, quando realizada pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle abstrato, devem ser observados por todos os tribunais e autoridades. 212 Neste sentido preceitua o parágrafo segundo do art. 102 da C.F/88 e o parágrafo único do art. 28 da lei 9.868/99: Art. 102, § 2º da Constituição Federal: “As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. (Redação dada ao parágrafo pela Emenda Constitucional nº 45, de 08.12.2004, DOU 31.12.2004)”; Art. 28, Parágrafo único da Lei 9.868/99: “A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, tem eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.” 213 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 233. 107 Segundo Barroso, a aplicação da teoria da transcendência dos motivos determinantes traria como consequência a possibilidade de “reclamação contra qualquer ato, administrativo ou judicial, que contrarie a interpretação constitucional consagrada pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado de constitucionalidade, ainda que a ofensa se dê de forma oblíqua”214. O Supremo Tribunal Federal, em algumas decisões, acolheu a teoria da transcendência dos motivos determinantes 215 . Porém, atualmente, o Supremo Tribunal Federal passou a rejeitá- la 216 . No Brasil, por influência do sistema norte- americano de controle de constitucionalidade, a questão da constitucionalidade de um ato normativo situa-se no plano da validade 217 do ato jurídico, ou seja, a lei incompatível com a Constituição não é válida e assim é nula de pleno direito. Neste sentido, esclarece Mendes: O dogma da nulidade da lei inconstitucional pertence à tradição do Direito brasileiro. A teoria da nulidade tem sido sustentada por praticamente todos os nossos importantes constitucionalistas. Fundada na antiga doutrina americana, segundo a qual “the inconstitutional statute is not law at ali”, significativa parcela da doutrina brasileira posicionou-se em favor da equiparação entre inconstitucionalidade e nulidade 218 . 214 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 233. 215 Foi o que decidiu o Supremo Tribunal Federal na Rcl. n.º 2.363-PA, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 01/04/2005, disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=365588, acesso em 28 de mai. De 2013 e na QO na Rcl 1.880-SP, Rel. Min. Maurício Correa, disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=348409, acesso em 28 de mai. de 2013. 216 Segundo Dirley da Cunha Júnior, o Supremo Tribunal Federal nos julgamentos da Rcl. 2.475-AgR, Rel. Min. Carlos Veloso, j. 02/08/07; Rcl 2.990-AgR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 16/08/07 e na Rcl 10.604, Rel. Min. Ayres Brito, j. 08/06/2010 rejeitou a tese da teoria da transcendência dos motivos determinantes. In CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de constitucionalidade, teoria e prática. 6. ed. Salvador: Jus Podivm, 2012, p. 239. 217 Alexy, por defender uma concepção de direito onde existe uma relação necessária entre direito e moral no seu aspecto conceitual (o seu pensamento afasta-se da visão positivista), assevera que a validade do fenômeno jurídico não é apenas composta pela validade social e jurídica, pois, o aspecto moral (validade moral) também a compõe (ALEXY, Robert. Conceito e validade do Direito. Trad. Gercelia Batista de Oliveira Mendes. São Paulo: Martins Fontes. 2011, p. 24-33). 218 MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 1359. 108 Assim, um dos efeitos objetivos da declaração de inconstitucionalidade é a nulidade da lei inconstitucional, a qual não deverá mais produzir efeitos jurídicos por não ter validade. Apesar de não existir um ato formal retirando a norma inconstitucional do ordenamento jurídico, a mesma, no entanto, não tem mais vigência, pois esta é a soma da existência da norma com a sua eficácia. Portanto, a lei declarada inconstitucional não está mais vigente 219 . Outro efeito objetivo da declaração de inconstitucionalidade diz respeito à repercussão sobre a legislação que foi revogada pela lei reconhecida como inconstitucional. Nesse caso, a declaração de inconstitucionalidade restaura a lei anterior afetada pela lei inconstitucional, entretanto, o Supremo Tribunal poderá excepcionar essa regra, manifestando-se expressamente em sentido contrário, modulando o efeito da decisão, conforme prevê o § 1º do art. 11 e art. 27 da Lei nº 9.868/99. A nulidade da lei inconstitucional traz 2 (duas) consequências: a primeira é que a decisão que reconhece a inconstitucionalidade, por confirmar um vício preexistente, é de natureza declaratória; a segunda, é que sendo a lei inconstitucional desde a sua origem, os efeitos da decisão que declara a inconstitucionalidade retroagem à data de seu surgimento no mundo jurídico, o que significa dizer que o efeito temporal é ex tunc 220 . Entretanto, no decorrer do tempo, verificou-se que a adoção absoluta da regra da teoria da nulidade trazia, em determinadas situações, consequências nefastas e constituía um fator de incerteza e insegurança jurídica, violando outros interesses protegidos constitucionalmente. Atento a isso, o Supremo Tribunal Federal passou a admitir que em algumas hipóteses a decisão deveria ter seus efeitos modulados, pois em algumas situações, em nome da segurança jurídica, não se poderia produzir efeitos retroativos. Acompanhando a boa orientação do Supremo Tribunal Federal, de modular os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, o legislador resolveu regulamentar o assunto. E o fez através 219 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 229. 220 BULOS, Uadi Lammego. Curso de Direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 89. 109 do art. 27 221 da Lei nº 9.868/99, que permite ao Supremo Tribunal Federal, mediante quórum qualificado de 2/3 dos seus membros, restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou fixar outro momento a partir do qual a decisão produzirá seus efeitos, sempre tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social. Contudo, não se pode pensar que essa atenuação dos efeitos retroativos da declaração de inconstitucionalidade é um juízo de ponderação entre a supremacia da Constituição e a segurança jurídica ou excepcional interesse social, e sim, uma ponderação entre a norma constitucional violada e as normas constitucionais que protegem os efeitos produzidos pela lei inconstitucional, como por exemplo, a boa-fé, moralidade, coisa julgada, irredutibilidade de vencimentos, razoabilidade 222 . Vale ressaltar que, de regra, a decisão que julga a ação direta de inconstitucionalidade faz a coisa julgada, o que significa dizer que produz eficácia preclusiva, ou seja, não será mais possível o ajuizamento de outra ação direta acerca da inconstitucionalidade do mesmo dispositivo. Desse modo, no caso de a ação direta de inconstitucionalidade ser julgada procedente à lei é fulminada do ordenamento jurídico e, assim, levando em conta os efeitos da coisa julgada, não haveria qualquer interesse de agir na hipótese de se propor uma nova ação direta de inconstitucionalidade por ação com o mesmo objeto, bem como seria inviável o ajuizamento de uma ação declaratória de constitucionalidade, vez que é impossível declarar a (in)constitucionalidade de uma norma que não tem mais validade alguma. Portanto, na hipótese de o Supremo Tribunal Federal julgar procedente o pedido de formulado na ação direta de 221 A lei 9.868/99, em seu art. 27, estabelece o seguinte: “Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.” 222 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 241. 110 inconstitucionalidade, a coisa julgada impede qualquer rediscussão futura em torno da norma declarada inconstitucional 223 . Porém, na hipótese de improcedência do pedido, a coisa julgada é vista com certa ressalva. Isso porque, sendo julgado improcedente o pedido formulado na ação direta de inconstitucionalidade por ação significa dizer que a lei impugnada é considerada constitucional. Assim, sendo a lei constitucional, nada ocorre com ela, pois ratifica apenas a sua condição de lei constitucional, caráter esse que possui desde a sua origem. E essa ideia é abraçada pela jurisprudência 224 e doutrina 225 brasileira que vêm entendendo que o Supremo Tribunal Federal não pode ser impedido de reexaminar no futuro uma lei declarada anteriormente constitucional (seja em razão da improcedência de uma ação direta de inconstitucionalidade por ação, ou procedência de uma ação declaratória de constitucionalidade), na hipótese de surgimento de novos argumentos, de novos fatos, de mudanças formais ou informais da Constituição ou de transformações na realidade que modificam o cenário da lei. Em suma, na hipótese de declaração de constitucionalidade não há formação de coisa julgada. No que toca à ação direta de inconstitucionalidade por omissão, o §2º do art. 103 da Constituição Federal estabelece que a decisão que declarar a inconstitucionalidade por omissão dará ciência ao poder competente, para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para suprir a omissão no prazo de 30 (trinta) dias. Porém, a doutrina defende que tal dispositivo constitucional não pode ser interpretado de forma literal, ou seja, a declaração de inconstitucionalidade não pode se limitar à simples comunicação da omissão ao poder competente ou ao órgão administrativo, tendo em vista que a 223 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 226. 224 Exemplo de jurisprudência neste sentido foi o no RE 147.776-SP, onde se reconheceu a inconstitucionalidade progressiva do art. 68 do Código de Processo Penal, que autoriza o Ministério Público a propor ação de ressarcimento de danos em favor da vítima hipossuficiente, tendo o Supremo Tribunal Federal aduzido que o dispositivo do art. 68 seria constitucional enquanto a carreira da Defensoria Pública não fosse implantada, nos termos do art. 134 da Constituição Federal, pela União ou pelo Estado membro. 225 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 227. 111 Constituição, por ser normativa, deve ser efetivada, de tal modo que pode o Judiciário, em algumas situações em que o atraso na regulamentação persistir, dispor normativamente sobre a matéria constante da norma constitucional não regulamentada pelo poder ou órgão competente. Nesse caso, se o Supremo Tribunal Federal proferir uma decisão de caráter normativo esta será provisória e produzirá efeitos contra todos (erga omnes), bem como prevalecerá enquanto o poder público não editar o respectivo ato concretizador da norma constitucional 226 . Continuando, porém, a ação direta de inconstitucionalidade por omissão com a simples missão de comunicar ao poder público a sua omissão inconstitucional, em termos objetivos, não produz qualquer efeito no ordenamento jurídico em vigor. Assim, somente haverá alguma modificação no direito posto se o poder ou órgão administrativo vier a editar o ato normativo faltante, após notificados da omissão. No aspecto subjetivo, a declaração da inconstitucionalidade por omissão produz efeitos contra todos e com caráter vinculante, o que significa dizer que outro órgão do Judiciário não poderá trabalhar com premissa diversa 227 . Igualmente ao que acontece com a ação direta de inconstitucionalidade por ação, a ação declaratória de constitucionalidade produz os mesmos efeitos, ou seja, sendo o seu pedido julgado procedente (confirmando a constitucionalidade da lei) ou improcedente (reconhecendo ser a lei inconstitucional), produz, no ponto de vista subjetivo, eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do poder Judiciário e da administração pública federal, estadual e municipal, como preceituam o parágrafo único do art.28 da Lei nº 9.868/99 e o §2º do art. 102 da Constituição Federal. Não se pode esquecer que a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade são ações de natureza declaratória, o que significa dizer que têm caráter dúplice, ou seja, ações em que a discussão judicial possibilitará o bem de vida a um dos litigantes, 226 Neste sentido, CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de constitucionalidade, teoria e prática. 6. ed. Salvador: Jus Podivm, 2012, p. 278. 227 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 303. 112 independentemente da posição processual que ocupe no processo (de autor ou de réu), sendo desnecessária, por parte do figurante do polo passivo, a apresentação de reconvenção ou pedido contraposto 228 . Desse modo, por exemplo, na ação declaratória de constitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o pedido, pode declarar a constitucionalidade da lei federal impugnada (pedido procedente) como também poderá declarar a sua inconstitucionalidade (pedido improcedente) sem que a parte adversa tenha que propor reconvenção ou pedido contraposto para ver declarada a inconstitucionalidade da mesma. O mesmo acontece com a ação direta de inconstitucionalidade. É por essa razão que Mendes aduz que a ação declaratória de constitucionalidade é uma ação direta de inconstitucionalidade com sinal trocado, senão vejamos: “Assim, não parece subsistir dúvida de que a ação declaratória de constitucionalidade tem a mesma natureza da ação direta de inconstitucionalidade, podendo-se afirmar até que aquela nada mais é do que uma ADI com sinal trocado”229. A norma declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal não produz qualquer efeito objetivo, vez que ela confirma seu ciclo normal de vida, ou seja, confirma a sua validade e vigência 230 , permanecendo a norma no ordenamento jurídico. No que diz respeito ao efeito temporal, o reconhecimento da constitucionalidade da lei (pedido procedente) produz a eficácia ex tunc ou retroativa, vez que se limita a confirmar a presunção de constitucionalidade da lei, já existente desde o seu surgimento para o mundo jurídico. Entretanto, na hipótese de o Supremo Tribunal Federal julgar improcedente o pedido, declarando a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo federal, o efeito natural também é 228 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Introdução ao Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. v. I. 14º ed. Salvador: Jus Podvum, 2012, p. 239. 229 MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 1437-1438. 230 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 270. 113 retroativo (ex tunc), entretanto poderá o Supremo Tribunal Federal modular esse efeito, desde que por maioria de dois terços de seus membros, estabelecendo destarte que a decisão produzirá efeito a partir de seu trânsito em julgado ou em outro momento que venha fixar 231 , conforme estabelece o art. 27 da Lei nº 9.868/99. Deve-se ressaltar, por fim, que apesar de o instituto da modulação dos efeitos da decisão ser específico à declaração de inconstitucionalidade (art. 27 da Lei nº 9.868/99), há precedentes do Supremo Tribunal Federal, o qual entende ser possível, mediante um juízo ponderativo, a modulação do efeito da decisão que declarar a constitucionalidade da norma, na hipótese de haver ocorrido ampla controvérsia judicial acerca da constitucionalidade de determinado dispositivo, que foi inaplicado em larga escala, podendo nesse caso limitar o efeito retroativo e estabelecer uma eficácia prospectiva 232 . A ação direta de inconstitucionalidade interventiva (ou representação interventiva) é uma ação que leva à instauração da jurisdição constitucional do Supremo Tribunal Federal voltada à resolução de grave conflito de ordem federativa envolvendo a União e Estado membro (ou Distrito Federal), e caso o pedido seja julgado procedente resultará na intervenção federal. À guisa disso, embora corresponda a uma ação de controle concentrado de constitucionalidade, não se presta à realização de fiscalização abstrata de lei ou ato normativo. Na ação interventiva, julgado procedente o pedido, o Supremo Tribunal Federal requisitará a intervenção ao presidente da República, que ao tomar ciência deverá decretar a intervenção federal da União no Estado membro (ou Distrito Federal), cujo decreto deverá ser submetido à apreciação do Congresso Federal (art. 36, §§ 1º e 2º). 231 Neste sentido, também CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de constitucionalidade, teoria e prática. 6. ed. Salvador: Jus Podivm, 2012, p. 305. 232 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 272. 114 A decisão que julgar procedente ou improcedente o pedido formulado na representação interventiva é irrecorrível e não se sujeita à ação rescisória, como preceitua o art. 12 da Lei nº 12.562/11 233 . Portanto, os efeitos da representação interventiva em nada se assemelham com os efeitos inatos ao controle concentrado de lei ou ato normativo analisados até aqui. No que diz respeito à ação de descumprimento de preceito fundamental, a Lei nº 9.882/99, que regula o seu processo e julgamento, estabelece que a decisão proferida em tal tipo de ação terá, no tocante aos efeitos subjetivos, eficácia contra todos (erga omnes) e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do poder público (art. 10, § 3º). Isso porque a ação de descumprimento de preceito fundamental leva ao exercício da jurisdição constitucional em processo objetivo e concentrado. Esses efeitos ocorrem tanto na ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental autônoma como na arguição incidental. Ao comentar sobre o efeito vinculante da arguição de descumprimento de preceito fundamental, Cunha Júnior esclarece que esse efeito é mais amplo do que o produzido na ação direta de inconstitucionalidade e na ação declaratória de constitucionalidade, nos seguintes termos: Os efeitos vinculantes na arguição, segundo entendemos, têm uma amplitude muito maior do que os previsto na ação direta de inconstitucionalidade e na ação declaratória de constitucionalidade. De fato, enquanto na Adin e na Adecon os efeitos só alcançam os órgãos do Poder Judiciário e os órgãos da Administração Pública, na arguição, os efeitos atingem todos os órgãos do poder público, inclusive o legislador, que ficam submetidos às condições e ao modo de interpretação e aplicação fixados pelo Supremo Tribunal Federal a respeito de preceito fundamental 234 . 233 Neste dispõe a Lei n.º 12.562/11 em seu art. 27: “Art. 12. A decisão que julgar procedente ou improcedente o pedido da representação interventiva é irrecorrível, sendo insuscetível de impugnação por ação rescisória.” 234 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de constitucionalidade teoria e prática. 6. ed. Salvador: Jus Podivm, 2012. p. 350. 115 No que diz respeito aos efeitos objetivos, eles poderão variar de acordo com o objeto da ação. Assim, se a ação visa ao reconhecimento de violação a preceito fundamental ocasionada por um ato normativo, os efeitos serão análogos à declaração de inconstitucionalidade (nulidade) ou constitucionalidade (sem efeitos objetivos). Se o objeto for um ato administrativo - disposição de edital de licitação ou de concurso público, por exemplo -, se acolhido o pedido deverá ser retirado do regime jurídico da licitação ou do concurso público, ou, se já tiver ocorrido, poderá ser declarado nulo. Na hipótese de decisão judicial, se a afirmação da tese jurídica não for capaz de produzir consequência apta a evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, uma decisão específica deverá ser proferida pelo juiz natural, levando em conta a premissa estabelecida pela decisão do Supremo Tribunal Federal 235 . Quanto aos efeitos temporais da decisão proferida em ação de descumprimento de preceito fundamental, os mesmos ocorrem em caráter retroativo. E na hipótese de haver declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, o efeito retroativo poderá ser modulado, de maneira que o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços dos seus membros, poderá restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha fixar, como prevê a Lei nº 9.882/99. 236 235 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.272. 236 Nestes termos dispõe a Lei nº 9.882/99 em seu art. 11: “Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de arguição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.” 116 4 A EFICÁCIA GERAL E VINCULANTE DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL QUE RECONHECE A INCONSTITUCIONALIDADE DE NORMA NA VIA INCIDENTAL 4.1 O PRESENTE CONTEXTO DO CONTROLE DIFUSO-INCIDENTAL DE CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL: A ABSTRATIVAÇÃO DO CONTROLE CONCRETO Conforme mencionado em tópico anterior, a decisão que declara a inconstitucionalidade de ato normativo em sede de controle concreto de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, ainda que por maioria absoluta dos seus membros (art. 97 da Constituição Federal de 1988), produz, somente, efeitos entre as partes, sendo necessária assim, para alcançar a todos, a manifestação do Senado Federal, através de resolução, determinando a suspensão, total ou parcial, da lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (art. 52, inciso X da Constituição Federal de 1988). Por outro lado, no controle abstrato de constitucionalidade, o pronunciamento do mesmo Supremo Tribunal Federal é condição suficiente para, por si só, conferir eficácia erga omnes e vinculante à decisão 237 , ou seja, o decisum que declara inconstitucional uma lei em tese alcança a todos (efeito erga omnes) e vincula os demais órgãos do Judiciário e da Administração Pública 237 Vale salientar que no início da implantação do controle concentrado de constitucionalidade no Brasil, quando ainda vigia a Emenda Constitucional nº 1/69, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a representação de constitucionalidade produzia os mesmos efeitos do controle difuso de constitucionalidade, ou seja, a declaração de inconstitucionalidade deveria ser submetida ao crivo do Senado Federal para produzir efeitos erga omnes, como decidido no Rp 943/GO, Rel. Ministro Bilac Pinto, DJU de 05/11/1976. Esse entendimento só foi modificado quase três anos depois, quando o Supremo Tribunal entendeu que a decisão proferida em controle abstrato de constitucionalidade tem eficácia erga omnes, sendo dispensada nesta hipótese a participação do Senado Federal. Esse novo entendimento foi defendido pelo ministro Moreira Alves e seguido pelos demais ministros no julgamento do Rp. 1.016-3/SP, DJU 26/10/1979. Essa solução foi mantida pela Constituição Federal de 1988 (LEAL, Roger Stielmann. O efeito vinculante na jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 146). 117 federal, estadual e municipal sem a necessidade de qualquer participação do Senado Federal nesse processo. Em que pese essa tradicional e injustificável diferença entre o alcance das decisões do Supremo Tribunal Federal no exercício do controle concreto e abstrato de constitucionalidade de normas, nos últimos anos vem se verificando uma aproximação entre os efeitos da decisão proferida em controle difuso concreto e aquela prolatada na fiscalização de constitucionalidade por via concentrada e abstrata. Isso porque alterações legislativas e jurisprudências nos últimos anos têm chamado a atenção pela adoção de traços característicos do processo objetivo no controle concreto de constitucionalidade. Essas mudanças têm provocado no controle de constitucionalidade brasileiro uma aproximação cada vez mais evidente entre os modelos concreto e abstrato de fiscalização de constitucionalidade. Provavelmente, a experiência brasileira com a convivência simultânea dos sistemas americano e europeu de controle de constitucionalidade, consagradas no direito internacional, tenha convergido para um estágio evolutivo de aperfeiçoamento em que se procura privilegiar as vantagens que cada sistema tem a ofertar. Assim, têm sido frequentes as manifestações de influência do controle abstrato no controle concreto de constitucionalidade. Essa aproximação vem sendo chamada pela doutrina de “objetivação”238, dessubjetivização 239 ou de abstrativização 240 do controle difuso de constitucionalidade, e significa a atribuição dos mesmos efeitos do controle abstrato – erga omnes e vinculante – ao controle concreto de constitucionalidade realizado pelo Supremo Tribunal Federal ao reconhecer a inconstitucionalidade de norma. 238 Terminologia empregada por Fredie Didier Junior (JUNIOR, Fredie Didier e CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito processual civil. V. III. 10. ed. Salvador: Juspodivm, 2012, p. 356) e ainda TAVARES, André Ramos. Curso de Direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 272. 239 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gonet. Curso de Direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 1177. 240 Essa terminologia é usada, por exemplo, por Luiz Flávio Gomes (GOMES, Luiz Flávio. STF admite progressão de regime nos crimes hediondos (II). JurisSíntese/Iob nº 59, 2009. 118 O surgimento de leis infraconstitucionais, a reforma constitucional realizada pela Emenda Constitucional nº 45 e a inovação na jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal foram as principais molas propulsoras para o surgimento do fenômeno de abstrativização ou objetivação do controle concreto de constitucionalidade. Mendes comenta essa aproximação do controle concreto de constitucionalidade com o controle abstrato, onde aponta várias evidências desse fenômeno no controle de constitucionalidade brasileiro, nos seguintes termos: A convivência do modelo incidental difuso tradicional com um sistema de múltiplas ações diretas - ADI, ADC, ADIo, ADPF e representação interventiva - operou significativa mudança no controle de constitucionalidade brasileiro. Uma observação trivial revela tendência de dessubjetivização das formas processuais, especialmente daquelas aplicáveis ao modelo de controle incidental, antes dotadas de ampla feição subjetiva, com simples eficácia inter partes. A adoção de estrutura procedimental aberta para o processo de controle difuso (participação de amicus curiae e outros interessados), a concepção de recurso extraordinário de feição especial para os juizados especiais, o reconhecimento de efeito transcendente para a declaração de inconstitucionalidade incidental, a lenta e gradual superação da fórmula do Senado (art. 52, X), a incorporação do instituto da repercussão geral no âmbito do recurso extraordinário e a desformalização do recurso extraordinário com o reconhecimento de uma possível causa petendi aberta são demonstrações das mudanças verificadas a partir desse diálogo e intercâmbio entre os modelos de controle de constitucionalidade positivados no direito brasileiro. Pode-se apontar, entre as diversas transformações detectadas, inequívoca tendência para ampliar a feição objetiva do processo de controle incidental entre nós. 241 4.1.1. As mudanças legislativas A Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, trouxe, por exemplo, ao arcabouço jurídico constitucional brasileiro, os institutos da repercussão geral (§3º do art. 102 da CF/88) 242 para o recurso extraordinário, e a súmula vinculante (art. 103-A) 243 . Um dos objetivos 241 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gonet. Curso de Direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 1177. 242 Nestes termos, dispõe o §3º do art. 102 da CF/88: “No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros. (NR) (Parágrafo acrescentado pela Emenda Constitucional nº 45, de 08.12.2004, DOU 31.12.2004)”. 119 da referida emenda constitucional era criar instrumentos capazes de colimar uma maior celeridade no trâmite processual e racionalizar a atividade do Supremo Tribunal Federal. A repercussão geral da questão constitucional discutida passou a ser um dos requisitos de admissibilidade 244 do recurso extraordinário, o qual foi disciplinado pela lei 11.418/2006, que introduziu alguns dispositivos no Código de Processo Civil sobre o tema. De acordo com o §1º do art. 543-A 245 do Código de Processo Civil, a repercussão geral impõe que o recurso extraordinário só pode ser conhecido pelo Supremo Tribunal Federal se a questão controvertida não se limitar apenas aos interesses das partes, mas, principalmente, que tenha repercussão para fora do processo, envolvendo desse modo questão de maior abrangência e relevância no ponto de vista econômico, político, social e jurídico. Com essa inovação, o Supremo Tribunal Federal deixa de ser mero órgão revisor de terceira ou quarta instância recursal de litígios pessoais, onde não há qualquer relevância no âmbito do interesse público, passando assim a sua atuação ao julgamento dos recursos extraordinários que envolvem questão de alta relevância econômica, política, social ou jurídica. Tal mecanismo se constitui um verdadeiro filtro para a atuação do Supremo Tribunal Federal, reduzindo o número de demandas, aumentando a celeridade processual, promovendo a concentração de esforços nos temas fundamentais e transformando o Supremo Tribunal Federal em uma legítima Corte Constitucional. Assim, sobre o fim almejado pela repercussão geral, esclarece Barroso: 243 Nestes termos, prescreve o art. 103-A da CF/88: “O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei”. 244 Neste sentido MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Repercussão geral no recurso extraordinário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 32. 245 A redação do § 1º do art. 543-A do Código de Processo Civil: “Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa.” 120 No direito comparado existe forte tendência de restringir a atuação das cortes constitucionais a um número reduzido de causas de relevância transcendente. Uma das formas mais comuns para atingir este propósito é permitir que exerçam algum grau de controle sobre as causas que irão apreciar. A principal justificativa para tal discricionariedade é promover a concentração de esforços nos temais fundamentais, evitando que a capacidade de trabalho do Tribunal seja consumida por uma infinidade de questões menores, muitas vezes repetidas a exaustão. O resultado esperado é a produção de julgamentos mais elaborados e dotados de maior visibilidade, fomentando o debate democrático em torno das decisões e do próprio papel desempenhado pela corte. 246 Essa tendência, como já dito por Barroso na citação acima, vem sendo seguida por muitas Cortes Constitucionais que têm buscado limitadores de causas repetitivas e meios de racionalização qualitativa dos seus recursos, ou seja, uma escolha prévia das causas que podem ser apreciadas pelas Cortes Supremas ou Tribunais Constitucionais de cada país. Nesse sentido, noticia Barbosa Moreira 247 que nos Estados Unidos o acesso à Suprema Corte norte-americana foi drasticamente mitigada em 1988, com a criação do Supreme Court Case Selections, por meio do qual se restringiu o manuseio da appeal (recurso, que quando cabível, era de conhecimento obrigatório pela Corte) e se vinculou preponderantemente o acesso àquele órgão através da certiorari, recurso cujo conhecimento pela Corte era facultativo. Com a implantação da repercussão geral no Brasil, o Supremo Tribunal Federal só deve conhecer dos recursos extraordinários cuja controvérsia transcenda o interesse das partes envolvidas no litígio, caracterizando uma espécie de mecanismo de objetivação do controle concreto de constitucionalidade. Ora, se o Supremo Tribunal Federal só deve analisar os recursos extraordinários cuja questão constitucional debatida transborde os interesses subjetivos das partes do processo é porque suas decisões têm a pretensão de servir de paradigma a todos e vincular os demais órgãos do Judiciário e da Administração Pública. E isso pode ser comprovado ainda através da interpretação dos dispositivos legais da lei nº 11.418/2006, que regulamentou a repercussão geral introduzindo dispositivos sobre a matéria no 246 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 135-136. 247 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao código de processo civil. Rio de Janeiro: Forense, v. V, 1999, p. 564. 121 Código de Processo Civil. Assim, por exemplo, no §5º 248 do art. 543-A do CPC, infere-se que quando inexistir repercussão geral, o recurso extraordinário não será admitido, empregando-se essa decisão a todos os recursos extraordinários que versem sobre matéria idêntica. Da mesma forma, quando houver uma multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a apreciação da repercussão geral será analisada em apenas um ou mais recursos. Desse modo, nos termos do §2º 249 , do artigo 543-B, do Código de Processo Civil, negada a existência de repercussão, os outros serão automaticamente inadmitidos. E na hipótese de ser apreciado o mérito do recurso extraordinário, os Tribunais e Turmas poderão declará-los prejudicados ou retratar-se nos termos do §3º 250 do art. 543-B, ou, sendo mantida a decisão do Tribunal de origem, o Supremo Tribunal Federal poderá cassar ou reformar, liminarmente, o pronunciamento contrário à orientação firmada, conforme assevera o §4º 251 do art. 543-B, evidenciando assim que a decisão da Corte Suprema brasileira, mesmo sendo produzida em processo de natureza subjetiva, se aproxime do modelo abstrato, por ser vinculante e produzir eficácia geral. Confirmando, também, a objetivação do controle concreto de constitucionalidade através do instituto da repercussão geral no recurso extraordinário, expressa Didier Júnior: É possível concluir, sem receio, que o incidente para a apuração da repercussão geral por amostragem é um procedimento de caráter objetivo, semelhante ao procedimento da ADIN, ADC e ADPF, e de profundo interesse público, pois se trata de exame de uma questão que diz respeito a um sem-número de pessoas, resultando na criação de uma norma jurídica de caráter geral pelo STF. É mais uma demonstração do fenômeno de “objetivação” do controle difuso de constitucionalidade das leis, que tentamos demonstrar em outros trabalhos. O 248 Nestes termos, prescreve o §5º do art. 543-A do CPC: “Negada a existência da repercussão geral, a decisão valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmente, salvo revisão da tese, tudo nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.” 249 Assim, expressa o §2º do art. 543-B: “Negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão automaticamente não admitidos.” 250 Este é o teor do §3º do art. 543-B do CPC: “Julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos Tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se”. 251 O §4º do art. 543-B do CPC possui a seguinte redação: “Mantida a decisão e admitido o recurso, poderá o Supremo Tribunal Federal, nos termos do Regimento Interno, cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada.” 122 controle difuso no direito brasileiro está adquirindo feições típicas do controle concentrado, notadamente a sua eficácia vinculativa. 252 Convém lembrar que essa ideia de objetivação do julgamento do recurso extraordinário é reconhecido pelo ministro Gilmar Ferreira Mendes, no Processo Administrativo nº 318.715/STF, que culminou na edição da Emenda n.º 12 ao RISTF (Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal), publicada no DJ de 17.12.2003, onde assim se expressou: O recurso extraordinário deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesses das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva. Trata-se de orientação que os modernos sistemas de Corte Constitucional vem conferindo ao recurso de amparo e ao recurso constitucional. ( ...) A função do Supremo nos recursos extraordinários - ao menos de modo imediato - não é a de resolver litígios de fulano ou beltrano, nem a de revisar todos os pronunciamentos das Cortes inferiores. O processo entre as partes, trazido a Corte via recurso extraordinário, deve ser visto apenas como pressuposto para uma atividade jurisdicional que transcende os interesses subjetivos 253 . Além da repercussão geral, a Emenda Constitucional nº 45/2004 implantou, também, o instituto da súmula vinculante, o que fez através da introdução do art. 103-A 254 da Constituição Federal. Com o novo instituto, os precedentes 255 do Supremo Tribunal Federal ganham uma força maior, isso porque mediante decisão de dois terços de seus membros, após reiteradas decisões 252 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Tópicos sobre a última reforma processual (dezembro de 2006) – parte I. Artigo disponível em: . . Acesso em 12 de jun. de 2013. 253 O excerto foi retirado de JUNIOR, Fredie Didier e CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito processual civil. v. III. 10º ed. Salvador: Juspodivm, 2012, p. 362. 254 A Constituição Federal trata da Súmula Vinculante da seguinte forma: “Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. § 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. § 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso. (Artigo acrescentado pela Emenda Constitucional nº 45, de 08.12.2004, DOU 31.12.2004). 123 sobre matéria constitucional, pode aprovar súmula que terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do poder Judiciário e da Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. Se a súmula vinculante é produto dos precedentes jurisprudenciais firmados pelo Supremo Tribunal Federal na análise dos diversos casos concretos submetidos à sua jurisdição constitucional, significa dizer que está umbilicalmente ligada ao controle concreto de constitucionalidade e com isso pode imprimir às decisões decorrentes dessa modalidade de controle o mesmo efeito vinculante das decisões proferidas em sede de controle abstrato. E o que é mais interessante é que esse efeito previsto no art. 103-A da Constituição Federal é atribuído sem a necessidade de qualquer participação do Senado Federal, o que revela a atual inutilidade da literalidade do disposto no inciso X do art. 52 da Constituição Federal. Sendo assim, é inquestionável que a súmula vinculante é também mais um mecanismo de aproximação entre o controle concreto e abstrato de constitucionalidade de lei, pois, como já ressaltado, a sua edição nos moldes do art. 103-A da Constituição poderá tornar obrigatório o respeito ao entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal em controle concreto de constitucionalidade. Destarte, o efeito vinculante, que era uma característica própria do controle concentrado, agora também pode ser observado em relação a decisões proferidas em controle difuso. De acordo com Tavares 256 , a discussão acerca da súmula vinculante pressupõe a consideração dos dois grandes modelos de sistemas jurídicos: o da Common Law (modelo jurídico construído com base na jurisprudência) e o da Civil Law (modelo codificado). E segundo ele, essa diferença inicial entre os dois modelos tem diminuído no Brasil com a chegada de 255 REIS, Antônio Carlos Palhares Moreira. A súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal. Brasília: Editora Consulex, 2008, p. 39. 256 TAVARES, André Ramos. Perplexidades do novo instituto da súmula vinculante no Direito brasileiro. Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 11, julho/agosto/setembro, 2007. Disponível em:< http://www.direitodoestado.com/revista/REDE-11-JULHO-2007- ANDRE%20RAMOS.pdf>. Acesso em: 13 de jun. de 2013. 124 mecanismos como a súmula vinculante, que surge das reiteradas decisões idênticas sobre um mesmo assunto, o que se assemelha ao instituto americano do stare decisis, característico da Common Law. Em última análise, a súmula vinculante acaba por inserir no modelo codificado, baseado essencialmente na lei, um mecanismo ligado ao caso concreto e que privilegia a decisão judicial. Ao refletir sobre os efeitos que podem decorrer da súmula vinculante, Mendes enfatiza que tal mudança só vem a enfraquecer ainda mais o instituto da suspensão da execução da lei inconstitucional pelo Senado. Nestes termos, argumenta Mendes: Não resta dúvida de que a adoção de súmula vinculante em situação que envolva a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo enfraquecerá ainda mais o já debilitado instituto da suspensão de execução pelo Senado. É que essa súmula conferirá interpretação vinculante à decisão que declara a inconstitucionalidade sem que a lei declarada inconstitucional tenha sido eliminada formalmente do ordenamento jurídico (falta de eficácia geral da decisão declaratória de inconstitucionalidade). Tem-se efeito vinculante da súmula, que obrigará a Administração a não mais aplicar a lei objeto da declaração de inconstitucionalidade (nem a orientação que dela se dessume), sem eficácia erga omnes da declaração de inconstitucionalidade. 257 Assim, embora a súmula vinculante seja despida da eficácia erga omnes, a mesma cumprirá, no entanto, o efeito de obrigar o Judiciário e a Administração Pública a seguir a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, pois tem o caráter vinculante. 4.1.2. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Além dessas mudanças legislativas que aproximaram o controle concreto de constitucionalidade do controle abstrato, a jurisprudência, também, do Supremo Tribunal Federal evoluiu neste sentido. Isso porque, na análise de diversos casos concretos, a inconstitucionalidade de lei reconhecida passou a produzir efeitos além das partes envolvidas no litígio. Nesse sentido, 257 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 1166/1167. 125 destacam-se os precedentes envolvendo o número de vereadores no município de Mira Estrela, São Paulo (SP), o habeas corpus relativo à progressão de regime na Lei dos Crimes Hediondos e a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 5º do Decreto-Lei nº 1.569/1977 e dos arts. 45 e 46 da Lei nº 8.212/90, que tratam da prescrição e da decadência do crédito tributário previdenciário através de lei ordinária. O caso Mira Estrela 258 foi objeto do Recurso Extraordinário nº 197.917 259 , no qual se controvertia sobre a constitucionalidade do parágrafo único do art. 6° da Lei Orgânica nº 222/90, do município de Mira Estrela/SP que fixava o número de vereadores. Na análise do referido caso concreto, o Supremo Tribunal Federal, acompanhando o voto do relator, ministro Maurício Correa, entendeu que o número de vereadores daquele município era excessivamente desproporcional ao número de habitantes e assim restava violada a antiga redação do inciso IV do art. 29 260 da Constituição Federal. O Supremo Tribunal Federal, sabedor de que sua decisão produziria efeitos além das partes envolvidas no litígio, preocupou-se logo em modular os efeitos temporais da inconstitucionalidade reconhecida via incidental na referida decisão, pois a aplicação do tradicional efeito ex tunc poderia prejudicar e comprometer toda a segurança jurídica do sistema legislativo vigorante no país. Assim, a declaração de inconstitucionalidade no caso Mira Estrela foi modulada com efeito pro futuro. Logo após a decisão do STF no caso Mira Estrela, o Tribunal Superior Eleitoral criou a Resolução nº 21.702/2004, através da qual disciplinou o número de vereadores a serem adotados 258 O caso Mira Estrela também é comentado por Gilmar Mendes em: MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 1176. 259 Recurso Extraordinário n.º 197.917. Consulta realizada no site www.stf.jus.br, em 18 de jun. de 2013. 260 O inciso IV do art. 29 da Constituição Federal teve a sua redação alterada pela Emenda Constitucional n.º 58/2009. A sua antiga redação expressava: “IV - número de Vereadores proporcional à população do Município, observados os seguintes limites: a) mínimo de nove e máximo de vinte e um nos Municípios de até um milhão de habitantes; b) mínimo de trinta e três e máximo de quarenta e um nos Municípios de mais de um milhão e menos de cinco milhões de habitantes; c) mínimo de quarenta e dois e máximo de cinquenta e cinco nos Municípios de mais de cinco milhões de habitantes.” 126 pelas Câmaras Municipais de todos os municípios do Brasil, emprestando destarte eficácia erga omnes à decisão do Supremo Tribunal Federal, sem qualquer participação do Senado Federal. A mencionada resolução do Tribunal Superior Eleitoral foi atacada por 2 (duas) ADIs (nº 3.345 261 e 3.365), as quais foram julgadas improcedentes, sob o argumento de que o Tribunal Superior Eleitoral simplesmente explicitou a anterior interpretação constitucional do Supremo Tribunal Federal no exame do caso Mira Estrela, consagrando os princípios da força normativa da Constituição e da segurança jurídica. Com as rejeições das referidas ações diretas de inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que a resolução do Tribunal Superior Eleitoral apenas aplicou os efeitos transcendentes dos fundamentos da decisão proferida no caso de Mira Estrela, conferindo interpretação definitiva à cláusula de proporcionalidade prevista na antiga redação do inciso IV do art. 29 da Constituição Federal. Outro caso concreto em que o efeito da declaração de inconstitucionalidade não se limitou à parte do processo diz respeito ao habeas corpus de nº 82.959, julgado em 2006, no qual o próprio paciente, Oseas de Campos, impetrou no Supremo Tribunal Federal writ contra decisão do Superior Tribunal de Justiça que lhe negara o direito de progredir de regime, pois a lei de crimes hediondos vedava tal benefício, vez que a pena deveria ser cumprida em regime integralmente fechado. No mencionado habeas corpus de nº 82.959 262 , o Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos (6x5), reconheceu, incidentalmente, que a vedação a progressão de regime nos crimes 261 A ADI de nº 3.345 foi julgada improcedente pelo Supremo Tribunal Federal, conforme decisão disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=613536. Acesso em 18 de jun. de 2013. 262 Decisão disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=79206. Consulta realizada em 18 de jun. de 2013. 127 hediondos, prevista na redação anterior do §1º do art. 2º da Lei de Crimes Hediondos 263 , é inconstitucional por violar os princípios da dignidade humana e da individualização da pena. Nesse caso, o Supremo Tribunal Federal não discutiu o tema, preocupando-se exclusivamente com o caso concreto, objeto da demanda, mas com a própria análise da constitucionalidade da lei em tese, a fim de dar a todos uma resposta correta e definitiva sobre a questão da progressão de regime aos condenados por crimes hediondos, isto é efeito erga omnes e a força vinculante. Prova disso que nesse julgamento o Supremo Tribunal Federal achou necessário, também, em nome da segurança jurídica, modular os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, aplicando por analogia o disposto no art. 27 da lei nº 9.868/99 (lei que regulamenta os procedimentos da ADI e da ADC), no qual ressaltou que a declaração incidental não gerará consequências jurídicas com relação às penas já extintas até a data do julgamento do HC 82.959, estabelecendo assim eficácia ex nunc e evitando com isso a enxurrada de ações indenizatórias contra o Estado por manutenção indevida no cárcere. Em suma, o Supremo Tribunal Federal fez uso do instrumento da modulação, próprio do controle abstrato de constitucionalidade, no exame de um caso concreto, em razão do alcance geral que teria a sua decisão. Portanto, ao modular os efeitos da declaração incidental de inconstitucionalidade no HC 82.959, o Supremo Tribunal Federal transmite a ideia de que a inconstitucionalidade do §1º do art. 2º da lei n.º 8.072/90 deve ser seguida pelos órgãos do Judiciário, ressaltando apenas que caberá a estes a apreciação, caso a caso, dos demais requisitos pertinentes ao reconhecimento da progressão do regime 264 . 263 A redação do §1º do art. 2º da Lei de Crimes Hediondos foi alterada pela lei n.º 11.464/07, adaptando tal preceito legal a orientação do Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 82.959. A antiga redação expressava o seguinte teor: “§ 1º. A pena por crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em regime fechado.” 264 Neste sentido, ressalta Gilmar Mendes (MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 1177). 128 Em razão desse caráter geral da declaração de inconstitucionalidade no controle concreto é que a Defensoria Pública da União promoveu Reclamação Constitucional perante o Supremo Tribunal Federal (tombada sob o nº 4.335/AC) em face de decisão do juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco/AC, que negara a progressão de regime a apenados condenados por crimes hediondos. Alegou a Defensoria Pública da União a existência de violação à decisão proferida pelo Pleno do STF durante o julgamento do HC 82.959/SP, pois, o juiz da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco entendeu que a decisão emanada do controle concreto de constitucionalidade possui efeitos inter partes, ficando a eficácia erga omnes condicionada à resolução do Senado Federal. Na mencionada Reclamação 4.335/AC 265 , a respectiva liminar foi deferida em 21 de agosto de 2006 pelo relator, ministro Gilmar Mendes, quando ficou determinado o afastamento da aplicação da determinação legal contida no §1º do art. 2º da lei 8.072/90 (que veda a progressão de regime) até o seu julgamento final. O julgamento da reclamação não fora concluído até o momento, tendo sido proferidos 5 (cinco) votos 266 . Os ministros Gilmar Mendes e Eros Grau julgaram procedente o pedido formulado na reclamação, e em seus votos argumentaram que a declaração incidental de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal produz eficácia erga omnes e vinculante, sendo desnecessária a participação do Senado Federal para a outorga de tais efeitos, vez que a norma prevista no inciso X do art. 52 da Constituição Federal sofrera mutação constitucional e que atualmente deve ser lida como meio de dar publicidade à decisão do Supremo Tribunal Federal. Já os ministros Sepúlveda Pertence, Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski divergiram desse entendimento e entenderam que a reclamação deve ser julgada improcedente, pois a declaração de inconstitucionalidade no controle concreto só adquire eficácia geral após o 265 Decisão disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2381551. Consulta realizada em: 18 de jun. de 2013. 266 Notícia disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=238713. Consulta realizada em: 18 de jun. de 2013. 129 cumprimento do preceito previsto no art. 52, X da Constituição Federal. Tal tema é enfrentado com maior intensidade em tópico seguinte. Entretanto, apesar de o Supremo Tribunal Federal não ter terminado o julgamento da Reclamação 4.335/AC, a referida Corte editou a Súmula Vinculante de nº 26, publicada no Diário da Justiça de 23 de dezembro de 2009, sobre a inconstitucionalidade da vedação da progressão de regime nos crimes hediondos 267 . Por fim, outro exemplo de objetivação do controle concreto de constitucionalidade diz respeito ao reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal, da inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 5º do Decreto-Lei nº 1.569/1977 e dos arts. 45 e 46 da Lei nº 8.212/90 que tratam da prescrição e da decadência do crédito tributário previdenciário. A inconstitucionalidade dos mencionados dispositivos foi reconhecida no julgamento em conjunto, realizado em junho de 2008, dos Recursos Extraordinários nº 560.626 268 , 556.664, 559.882, ambos de relatoria do ministro Gilmar Mendes, bem como no julgamento do Recurso Extraordinário nº 559.943, da relatoria da ministra Carmen Lúcia, por violação à previsão vertida no art. 143, III, b, da Constituição Federal, vez que a prescrição e a decadência tributária são matérias reservadas à lei complementar, não podendo ser regulada por lei ordinária. Na ocasião, o Supremo Tribunal Federal, diante da repercussão da matéria e da segurança jurídica, modulou os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, ressaltando que os recolhimentos realizados pelos contribuintes nos prazos previstos nos arts. 45 e 46 da lei nº 8.212/90 e não questionados até o aludido julgamento presumem-se legítimos, afastando assim a 267 A súmula vinculante nº 26 está desse modo redigida: “Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico”. Disponível em: . Consulta realizada em: 18 de jun. de 2013. 268 Decisão disponível em: . Consulta realizada em: 18 de jun. de 2013. 130 possibilidade de repetição do indébito dos valores já recolhidos, o que significa dizer que a declaração de inconstitucionalidade só produz eficácia efeito ex nunc. Esse mesmo assunto foi objeto da Súmula Vinculante de nº 8 269 , publicada no Diário da Justiça de 20 de junho de 2008, que reconheceu ser inconstitucional o parágrafo único do art. 5º do Decreto-Lei nº 1.569/1977 e os arts. 45 e 46 da Lei nº 8.212/1991, que tratam de prescrição e decadência de crédito tributário. Portanto, da análise dos três precedentes judiciais, se o Supremo Tribunal Federal modulou os efeitos da declaração incidental de inconstitucionalidade, o qual só é possível quando em risco a segurança jurídica ou o excepcional interesse social, é porque tacitamente reconhece que os motivos determinantes do julgado transcendem as partes do processo e alcança a todos, protegendo, desse modo, a autoridade das decisões plenárias do Supremo Tribunal Federal sem a necessidade de participação do Senado Federal. 4.2 A FUNÇÃO ATUAL DO SENADO FEDERAL NO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE Como já dito em linha anteriores, o Supremo Tribunal Federal, no fim da década de 70, a respeito da representação de inconstitucionalidade 270 , equivalente à atual Ação Direta de Inconstitucionalidade, consolidou o entendimento no sentido de que o papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade só seria cabível quando a inconstitucionalidade fosse declarada em sede de controle difuso, no julgamento de um caso concreto. Isso porque, no controle concentrado, as decisões do Supremo Tribunal Federal já teriam o condão de suspender a eficácia da norma impugnada. Esse entendimento jurisprudencial foi ratificado posteriormente com a edição da Lei nº 9.868/99, que no parágrafo único do art. 28, passou a conferir eficácia contra 269 Súmula Vinculante nº 8. Consulta realizada no site www.stf.jus.br, em 18 de jun. de 2013. 270 A representação de inconstitucionalidade foi a primeira ação, por excelência, de controle abstrato de constitucionalidade. 131 todos e efeito vinculante às declarações de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade em controle abstrato, e em seguida pela Emenda Constitucional nº 45/2004. Assim, em que pese a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ter limitado o papel do Senado Federal apenas às declarações de inconstitucionalidade em sede de controle concreto, é importante observar que essa regra de competência constitucional não foi desenvolvida apenas para um modelo de controle de constitucionalidade. Ou seja, a função outorgada ao Senado Federal foi a de suspender a execução da lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, independentemente de essa declaração ter origem em controle concreto ou abstrato de constitucionalidade. Deste modo, é impossível não questionar o papel atribuído ao Senado Federal no controle de constitucionalidade, ainda mais após as mudanças introduzidas a partir da Constituição Federal de 1988. Destarte, se por uma construção interpretativa o Supremo Tribunal Federal evoluiu no sentido de conferir efeitos gerais às declarações de inconstitucionalidade em controle abstrato, sem a necessidade de participação do Senado Federal, nada impediria, também, a utilização desse mesmo entendimento nas decisões proferidas em controle concreto. 4.2.1 O Senado Federal no controle de constitucionalidade Tradicionalmente, para que a norma declarada inconstitucional no controle concreto de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal possa alcançar a todos (efeito erga omnes) é imprescindível a sua suspensão pelo Senado Federal, consoante dispõe o inciso X do art. 52 da Constituição Federal de 1988. Por isso, sem a intervenção desse órgão legiferante, a norma declarada inconstitucional pela Corte Suprema no controle difuso incidental não é afastada do ordenamento jurídico brasileiro, porém a referida norma contaminada pela eiva da inconstitucionalidade não será aplicada às partes envolvidas no litígio. Daí a razão de se afirmar que a declaração de inconstitucionalidade só produz efeitos entre as partes. 132 Entretanto, deve-se mencionar que, quando existia apenas a forma difusa de controle de constitucionalidade no Brasil, a doutrina pátria, sem qualquer amparo expresso no ordenamento jurídico nacional, mas influenciado pela doutrina americana da stare decisis e da judicial review, reconhecia que a norma declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal era inexistente juridicamente ou de ampla ineficácia 271 . Embora esse fosse o posicionamento dominante na doutrina, porém, na prática a realidade era diferente, pois cada juiz ou tribunal decidia livremente, sem dar a menor importância aos precedentes do Supremo Tribunal Federal, o que acarretou no surgimento de decisões contraditórias 272 entre os órgãos do Judiciário, trazendo assim a sensação de insegurança jurídica e abalando a certeza sobre o direito e a credibilidade dos órgãos judicantes 273 . Com efeito, em razão de tal vácuo legislativo a respeito do alcance da decisão do Supremo Tribunal Federal que reconhecia a inconstitucionalidade da norma, foi introduzido no ordenamento pátrio, com a Constituição Federal de 1934, o instituto da suspensão pelo Senado Federal da norma declarada inconstitucional como mecanismo destinado a outorgar o efeito da generalidade àquela decisão. Vale lembrar, como já mencionado alhures, nessa época ainda não existia no Brasil mecanismo de controle abstrato de constitucionalidade. Em 1968, Bittencourt já sustentava que a decisão do Supremo Tribunal Federal que reconhecesse a inconstitucionalidade de norma já teria força normativa suficiente para suspender a lei inconstitucional, vez que a suspensão da lei pelo Senado Federal é apenas compreendida no sentido de se tornar pública a decisão do Supremo Tribunal Federal, levando ao conhecimento de 271 BITTENCOURT, Carlos Alberto Lúcio. O controle jurisdicional das leis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 141 apud MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gonet. Curso de Direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 1155. 272 André Ramos Tavares chama atenção para a problemática dos efeitos inter partes, pois, tal sistema provoca graves riscos de incerteza jurídica, pois, permite discrepâncias entre as decisões judiciais (TAVARES, André Ramos. Teoria da Justiça Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 109). 273 Neste sentido CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de constitucionalidade, teoria e prática. 6. ed. Salvador: Jus Podivm, 2012, p. 171. 133 todos os cidadãos 274 . Contudo, outros pensadores entendiam que a decisão do Senado Federal é um ato político que confere efeito geral a uma decisão que se limitava apenas às partes do processo 275 . Essa última tese, como se infere do que já foi escrito até aqui, veio a dominar no próprio Supremo Tribunal Federal, segundo o qual cabe ao Senado Federal a outorga de eficácia genérica à decisão definitiva daquela Corte, que em sede difusa reconhecesse a inconstitucionalidade de ato normativo. Assim, de acordo com essa corrente de pensamento, mesmo que o Supremo Tribunal Federal reconhecesse a inconstitucionalidade de uma norma pela via do controle concreto, a decisão só produziria eficácia entre as partes, a não ser que o Senado Federal suspendesse a execução da lei declarada inconstitucional. Entretanto, a exigência da suspensão do ato declarado inconstitucional pelo Senado Federal como condição de eficácia geral à declaração de inconstitucionalidade firmada incidentalmente no caso concreto pelo Supremo Tribunal Federal, no contexto atual, não há mais razão de existir, devendo o inciso X do art. 52 da Constituição Federal ser relido sob uma nova perspectiva, para pôr fim ao tratamento díspar e injustificável entre os controles concreto e abstrato de constitucionalidade realizado pela Corte Suprema do país. 4.2.2. A mutação constitucional do inciso X do art. 52 da Constituição Federal A Constituição Federal, por ser o estatuto jurídico supremo e fundamental do país, possui uma estabilidade em decorrência de sua rigidez, exigência esta que se faz necessária em razão da segurança jurídica, da manutenção das instituições e ao respeito aos direitos e garantias fundamentais. 274 BITTENCOURT, Carlos Alberto Lúcio. O controle jurisdicional das leis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 141 apud MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gonet. Curso de Direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 1155. 275 BROSSARD, Paulo. O Senado e as leis inconstitucionais. Revista da informação legislativa 13, p. 50/61 apud MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gonet. Curso de Direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 1156. 134 Entrementes, apesar de ter estabilidade, a Constituição Federal não é sinônimo de imutabilidade, pois ela é um sistema aberto composto de regras e princípios jurídicos e que na visão concretista de Hesse 276 é dotada de força normativa, e na sua interpretação há um condicionamento recíproco entre a Constituição jurídica e os fatores reais de poder, que são as forças sociais, políticas, econômicas, morais e religiosas atuantes na comunidade (essas forças são chamadas por Lassale 277 de Constituição Real), ou seja, tanto a sociedade como um todo influencia na compreensão da Constituição, assim como a Constituição, por ser dotada de força normativa, influencia a sociedade. Como é impossível ao constituinte criar uma Constituição capaz de prever todo o desenvolvimento futuro, esse condicionamento recíproco entre a realidade cambiante e a Constituição faz com que esta evolua e se mantenha sempre atual. Para isso, as constituições devem possuir formulação elástica e válvula de escape que lhes permitam responder à dinâmica da sociedade 278 . Portanto, mesmo diante da rigidez constitucional, as constituições estão sujeitas a modificações necessárias à adaptação das exigências sociais, e isso pode ser realizado não somente através de mecanismos institucionais formais, previstos nas próprias constituições, como é caso das emendas constitucionais, como também através da hermenêutica constitucional que visualiza as mutações constitucionais que ocorrem gradualmente e de forma difusa ao longo do tempo. Maior exemplo disso é a Constituição dos Estados Unidos da América, que promulgada em 1787, vem transpassando a barreira do tempo com pouquíssimas alterações em seu texto graças às interpretações 279 que lhe são conferidas ao longo de quase três séculos de existência. 276 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1991, p. 13. 277 LASSALE, Ferdinand. A essência da Constituição. 4 ed. Rio de Janeiro: Lummen Juris, 1998, p 32. 278 LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. 2. ed. Barcelona: Ariel, 1970, p. 164. 279 BOTELHO, Nadja Machado. Mutação constitucional: a constituição viva de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 14. 135 Infere-se com isso que a ordem jurídica constitucional é dinâmica, o que propicia o redimensionamento da realidade normativa da Constituição, muitas vezes sem a necessidade de se recorrer ao demorado processo legislativo de reforma constitucional. Isso porque os impactos da evolução jurídica, política e social não atuam sobre as constituições apenas mediante os processos formais de alteração do texto, mas também, e em grande escala, por meio de mudanças que atingem o significado do texto sem modificar a sua letra expressa. A isso se chama de processos informais de mudança da Constituição, e quanto mais rígida é a Constituição, maior é a relevância desses processos informais. Essas alterações informais do sentido do texto constitucional, segundo a lição de Georges Burdeau 280 , citado por Ferraz, em sua tradicional obra sobre a mutação constitucional, são: operadas fora das modalidades organizadas de exercício do poder constituinte instituído ou derivado, justificam-se e têm fundamento jurídico: são, em realidade, obra ou manifestação de uma espécie inorganizada do Poder Constituinte, o chamado poder constituinte difuso... O poder constituinte difuso é um desdobramento natural da Constituição, à medida que objetiva a sua complementação, dando prosseguimento à atividade do constituinte originário. Entretanto, esse poder se constrói difusamente sofre limitação da própria Constituição, pois não pode ir de encontro às normas decorrentes da mesma. E é desse poder difuso que emerge o fenômeno chamado de mutação constitucional. O português Canotilho 281 descreve esse fenômeno da mutação constitucional como sendo “a revisão informal do compromisso político formalmente plasmado na Constituição 280 FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos informais de mudança da constituição: mutações constitucionais e mutações inconstitucionais. São Paulo: Max Limonad, 1986, p. 10. 281 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 3 ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 1101. 136 sem alteração do texto constitucional. Em termos incisivos: muda o sentido sem mudar o texto”. Já o constitucionalista Bulos 282 entende por mutação constitucional: o processo informal de mudança da Constituição, por meio do qual são atribuídos novos sentidos, conteúdos até então não ressaltados à letra da Lex Legum, quer através da interpretação, em suas diversas modalidades e métodos, quer por intermédio da construção (construction), bem como dos usos e costumes constitucionais. Na visão de Ferraz, a expressão “mutação constitucional” só é adequadamente utilizada quando presentes os seguintes requisitos: a) houver alteração de sentido, do significado ou do alcance da norma constitucional; b) a mutação for compatível com a letra e com o espírito da Constituição; e c) a alteração da Constituição se processar por modo ou meio diferentes das formas organizadas de poder constituinte instituído ou derivado 283 . Associando-se as definições acima, chega-se à ilação que a mutação constitucional é, em síntese, uma modificação no sentido do texto constitucional em razão de sua dinamicidade e adaptação à realidade, sem provocar alteração na redação do texto constitucional. Nesse sentido, como decorrência da necessidade de adequação das normas constitucionais à realidade, o processo de mutação constitucional dá-se de forma lenta, gradual, espontânea e imprevisível, segundo o ritmo de evolução da sociedade, exigindo-se, para tanto, em regra, um interstício mais ou menos longo de tempo. As mutações constitucionais, como um mecanismo difuso e informal de alteração da Constituição, manifestam-se das mais diversas formas. E a doutrina, contudo, é vacilante sobre a classificação das mutações constitucionais. 282 BULLOS, Uadi Lammêgo. Mutação constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 57. 283 FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos informais de mudança da constituição: mutações constitucionais e mutações inconstitucionais. São Paulo: Max Limonad, 1986, p. 11. 137 Segundo Paolo Biscaretti di Ruffia, citado por Bullos 284 , as mutações constitucionais podem ser divididas em dois grupos. No primeiro, estão inseridas as alterações que ocorrem por força dos atos estatais, os quais podem possuir caráter normativo ou jurisdicional. No segundo grupo, por sua vez, estão incluídas as mudanças surgidas em virtude de fatos, os quais podem ter caráter jurídico ou político-social, assim como as mutações derivadas de práticas constitucionais. Ferraz tece uma classificação própria, entretanto, se inspira em Paolo Biscaretti di Ruffia, segundo a qual são espécies de mutação a interpretação constitucional, os usos e costumes constitucionais 285 . Já Bulos 286 , por sua vez, cria a seguinte classificação de mutação constitucional: “a) as mutações constitucionais operadas em virtude da interpretação constitucional, nas suas diversas modalidades e métodos; b) as mutações decorrentes das práticas constitucionais; c) as mutações através da construção constitucional; d) as mutações constitucionais que contrariam a Constituição, chamadas de mutações inconstitucionais.” Em razão da diversidade de classificações a respeito da mutação constitucional e tendo em vista o caráter amplo, difuso e informal da mutação, é possível perceber que o fenômeno é desencadeado de diversas formas, nas várias esferas da sociedade, seja por meio de órgãos estatais, dos usos e costumes ou da atividade hermenêutica, esta última realizada em ampla escala, na concepção preconizada por Peter Häberle 287 , para quem “(...) a interpretação é, todavia, uma „atividade‟ que, potencialmente, diz respeito a todos”, frisando não ser “(...) possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição”. 284 BULLOS, Uadi Lammêgo. Mutação constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 63. 285 FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Ob. cit. p. 13. 286 BULLOS, Uadi Lammêgo. Op. cit. p. 71. 287 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional – a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris editor, 1997, p. 24. 138 Em razão da especificidade do tema, a análise da mutação, se restringe no presente trabalho à sua decorrência da atividade interpretativa. Como a Constituição não pode transformar-se em um fóssil, a interpretação visa a manter a funcionalidade dos preceitos constitucionais que, sozinhos, não são eficazes. Vence- se, assim, a antiga concepção do sentido fixo das normas constitucionais, chegando-se à concepção dinâmica segundo a qual é necessária a adaptação das normas à realidade social, política e jurídica. Sobre a mutação constitucional, também comenta Coelho: Assentadas essas premissas, as mutações constitucionais nada mais são que as alterações semânticas dos preceitos da Constituição, em decorrência de modificações no prisma histórico-social ou fático-axiológico em que se concretiza a sua aplicação. (...) Vistas a essa luz, portanto, as mutações constitucionais são decortentes - nisto residiria a sua especificidade - da conjugação da peculiaridade da linguagem constitucional, polissêmica e indeterminada, com os fatores externos, de ordem econômica, social e cultural, que a Constituição - pluralista por antonomásia -, intenta regular e que, dialeticamente, interagem com ela, produzindo leituras sempre renovadas das mensagens enviadas pelo constituinte 288 . Nessa senda, vale destacar que a Constituição deve ser compreendida durante todo o processo interpretativo. Sobretudo no Estado Democrático de Direito, onde o exegeta tem por função primordial descobrir os valores democráticos com o escopo de consubstanciá-los na realidade. Desse modo, deve o intérprete constitucional buscar os objetivos de sua ação, os valores essenciais para sua atividade hermenêutica, indicar o ponto de partida que guiará sua liberdade interpretativa. Portanto, a atividade do intérprete constitucional visa à concretização de valores como “justiça, equidade, equilíbrio de interesses, resultados satisfatórios, 288 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 152. 139 razoabilidade”289, possibilitando com isso a estabilização, a renovação e a atualização da ordem jurídica, traduzindo assim a interpretação constitucional não só como a busca do sentido da norma, mas também de atualização e de adequação ao contexto social. Sobre a importância da interpretação constitucional, elucida Pereira: “(...) a construção interpretativa é ilimitada quando da exata concreção do direito que só deve subordinação à consciência constitucional do aplicador, nada obstante existirem restrições básicas que o intérprete precisa compreender.”290 Nesse sentido, também acrescenta Hesse: O ato da interpretação é o de achar o resultado constitucionalmente correto através de um procedimento racional e controlável, e fundamentar este resultado, de modo igualmente racional e controlável, criando, deste modo certeza e previsibilidade jurídicas, e no caso, o da simples decisão pela decisão 291 . O mecanismo de interpretação constitucional pode conduzir, pois, ao processo de mutação constitucional. Percebe-se, à evidência, que por meio da construção de sentidos, viabilizada pelo emprego dos métodos hermenêuticos, são conferidos novos significados aos comandos normativos originários do texto constitucional. A interpretação que redunda na mutação constitucional é chamada por Barroso de interpretação evolutiva, nos seguintes termos: Já se expôs, um pouco mais atrás, a prevalência, na moderna doutrina, da concepção objetiva da interpretação, pela qual se deve buscar, não a vontade do legislador histórico (a mens legislatoris), mas a vontade autônoma que emana da lei. O que é mais relevante não é a occasio legis, a conjuntura em que editada a norma, mas a ratio legis, o fundamento racional que a acompanha ao longo de toda a sua vigência. Este é o fundamento da chamada interpretação evolutiva. As normas, ensina Miguel Reale, valem em razão da realidade de que participam, adquirindo novos sentidos ou significados, mesmo quando mantidas inalteradas as suas estruturas formais. (...) A interpretação evolutiva é um processo informal de reforma do texto da Constituição. Consiste ela na atribuição de novos conteúdos à norma constitucional, 289 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional – a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: Contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris editor, 1997, p. 11. 290 PEREIRA, Erick Wilson. Direito eleitoral: interpretação e aplicação das normas constitucionais-eleitorais. São Paulo: Saraiva, 2010, p.183. 291 HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional. Trad. Pedro Cruz Lillalon. 2. ed. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1992, p. 35 apud PEREIRA, Erick Wilson. Direito eleitoral: interpretação e aplicação das normas constitucionais-eleitorais. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 183. 140 sem modificação do seu teor literal, em razão de mudanças históricas ou de fatores políticos e sociais que não estavam presentes na mente dos constituintes 292 . Dentro desse contexto da interpretação, atualmente não se pode mais compreender que a eficácia geral da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal que reconheceu a inconstitucionalidade de ato normativo de forma incidental, via controle concreto, continue a depender de decisão do Senado Federal. Assim, fazendo-se uma interpretação do texto constitucional na sua conjuntura atual, denota-se que a regra inserta atualmente no inciso X do art. 52 da Constituição Federal, introduzida no Brasil a partir da Constituição de 1934, não pode mais ser compreendida no sentido que lhe fora outorgado durante anos pela doutrina tradicional e até mesmo pelo próprio Supremo Tribunal Federal, vez que sofreu mutação constitucional. Por outro lado, fazendo-se uma breve digressão, não se desconhece a corrente doutrinária em sentido oposto, como por exemplo, a do professor Lênio Luiz Streck, segundo o qual a competência do Senado Federal para suspender a execução da lei ou ato normativo continua em plena vigência, vez que não foi retirado, por emenda constitucional, do texto da Constituição. Assim, segundo Streck, o Supremo Tribunal Federal só pode dá eficácia erga omnes às decisões do controle difuso de constitucionalidade por meio da edição da súmula ou por resolução expedida pelo Senado Federal. Vejamos suas críticas: Como se não bastasse reduzir a competência do Senado Federal à de um órgão de imprensa, há também uma consequência grave para o sistema de direitos e de garantias fundamentais. Dito de outro modo, atribuir eficácia erga onmes e efeito vinculante às decisões do STF em sede de controle difuso de constitucionalidade é ferir os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório (art. 5.º, LIV e LV, da Constituição da República), pois assim se pretende atingir aqueles que não tiveram garantido o seu direito constitucional de participação nos processos de tomada da decisão que os afetará. Não estamos em sede de controle concentrado! Tal decisão aqui terá, na verdade, efeitos avocatórios. Afinal, não é à toa que se construiu ao longo do século que os efeitos da retirada pelo Senado Federal do quadro das leis aquela definitivamente declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal são efeitos ex nunc e não ex tunc. Eis, portanto, um problema central: a lesão a direitos fundamentais. (...) 292 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição - fundamentos de uma dogmática Constitucional transformadora. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, 2ª tiragem. p. 151. 141 Já no caso de controle difuso de constitucionalidade – peculiaridade nossa e de Portugal - o próprio Supremo Tribunal sempre teve ciência (isto é, esteve concorde) de que não há a possibilidade de dar efeito erga omnes às decisões proferidas nessa modalidade, necessitando da intervenção do Senado Federal (afinal, embora o próprio Supremo Tribunal não estar cumprindo, de há muito, a determinação constante no art. 52, X, da CF). E, por fim, se se trata de súmula vinculante sabe-se que é despicienda qualquer participação do Senado Federal. Qual a razão de tais conclusões? A resposta parece simples: isto é assim em face das determinações que integram a Constituição Federal por decisão do poder constituinte originário e derivado. 293 Contudo, data vênia, as críticas do professor Lênio Streck não merecem guarida, e todo o seu pensamento gira em torno da impossibilidade de a Constituição ser alterada por procedimento informal, como é o caso da mutação constitucional. Abraçar essa tese é negar a força normativa, a abertura das normas constitucionais e seu o caráter evolutivo, a unidade da Constituição, a coerência no sistema constitucional e a moderna hermenêutica constitucional. Em síntese, na visão de Streck, a Constituição só evolui se for alterada por emenda constitucional como decorrência do processo democrático. Como já mencionado anteriormente, na ordem constitucional em vigor houve uma significativa expansão dos instrumentos de controle concentrado de normas, e como consequência, o controle abstrato superou o controle realizado pela via difusa. Prova disso que diversos mecanismos próprios do controle abstrato estão sendo incorporados ao controle concreto, provocando a objetivação dessa forma de controle. Nessa nova realidade do controle concentrado no Brasil, verifica-se, por exemplo, que o Supremo Tribunal Federal em sede de medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade pode suspender a eficácia de um ato normativo com eficácia erga omnes, sem precisar da intervenção do Senado Federal para produzir o referido efeito 294 . 293 STRECK, Lenio Luiz; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de; LIMA, Martonio Mont ‟Alverne Barreto. A Nova perspectiva do Supremo Tribunal Federal sobre o controle. Disponível em: http://www.leniostreck.com.br/site/wp-content/uploads/2011/10/4.pdf. Consulta realizada em 22 de jun. de 2013. 294 Neste sentido, é redação do art. 10, caput e § 3º da Lei 9.868/99: “Art. 10. Salvo no período de recesso, a medida cautelar na ação direta será concedida por decisão da maioria absoluta dos membros do Tribunal, observado o disposto no artigo 22, após a audiência dos órgãos ou autoridades dos quais emanou a lei ou ato normativo impugnado, que deverão pronunciar-se no prazo de cinco dias. (...)§ 3º Em caso de excepcional 142 Assim, se o Supremo Tribunal Federal fora escolhido como guardião 295 da Constituição, outorgando-lhe a competência de dar a última palavra a respeito da constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, não tem mais sentido o tratamento diferenciado entre a eficácia da declaração de inconstitucionalidade proveniente do controle concreto em relação à do controle abstrato. Em outras palavras, não se compreende mais que a declaração de inconstitucionalidade proveniente do maior intérprete da Constituição continue a produzir efeitos distintos a depender da forma do controle, ou seja, produza efeitos contra todos e de caráter vinculante, se proveniente do controle abstrato, enquanto se a mesma inconstitucionalidade for reconhecida em sede de controle concreto só possa produzir efeitos entre as partes, dependendo da sua eficácia geral de decisão política do Senado Federal. Não se pode esquecer, como já comentado anteriormente, que a regra da suspensão da lei inconstitucional pelo Senado Federal não fora criada como um mecanismo voltado para a contenção da atuação do Supremo Tribunal Federal, ou seja, não fora instituída pela Constituição de 1934 para funcionar propriamente como instrumento de peso e contrapeso (teoria do checks and balances). Ao contrário, como não existia o controle abstrato de constitucionalidade e nem a figura do stare decisis no controle concreto brasileiro, a declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal só alcançava as partes, sendo outorgada, à época, essa nova competência de suspensão ao Senado Federal para que o efeito da declaração de inconstitucionalidade alcançasse a todos. Desse modo, ao invés de se limitar os poderes do Supremo Tribunal Federal, ampliavam-se, com a suspensão do ato normativo pelo Senado, os efeitos de sua decisão. urgência, o Tribunal poderá deferir a medida cautelar sem a audiência dos órgãos ou das autoridades das quais emanou a lei ou o ato normativo impugnado.” 295 Essa qualidade de guardião é outorgada pelo art. 102 da Constituição Federal: “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição.” 143 Além disso, na Constituição de 1934, outorgou-se ao Senado Federal atribuição que não possui no momento atual. Assim, segundo Rocha, na Constituição de 1934 o Senado Federal foi concebido para exercer o papel “de um coordenador da harmonia entre os três poderes. A ideia era colocá-lo acima dos três poderes como órgão independente, um verdadeiro Conselho Federal que mantivesse cada qual segundo suas atribuições originais”296. Porém, a partir do momento em que se possibilitou ao Supremo Tribunal Federal, através do controle abstrato de constitucionalidade, atuar como um verdadeiro legislador negativo, afastando diretamente a norma inconstitucional, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, deixou de existir o motivo para a atribuição de competência ao Senado Federal de suspender a eficácia de uma norma declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Neste sentido, também expressa Tavares: Subsiste, no Direito brasileiro, a esdrúxula regra do art. 52, inc. X, da CB, que determina caber ao Senado Federal a atribuição de suspender os efeitos da lei declarada inconstitucional pelo STF em controle difuso-concreto (esdrúxula porque, como se sabe, desde a EC 16/1965 o STF passou a proferir decisões com efeitos erga omnes, tornando desnecessário o mecanismo criado em 1934 e repetido neste art. 52, inc. X) 297 . Portanto, se o Supremo Tribunal Federal, no controle abstrato de constitucionalidade, pode afastar diretamente a lei inconstitucional prescindindo da participação do Senado sem que isso considere quebra da separação dos poderes e do sistema de pesos e contrapesos, também não configurará violação a esses primados se for estendido ao controle concreto os mesmos efeitos do controle concentrado, ainda mais quando a regra do inciso X do art. 52 da Constituição Federal não tem mais a utilidade de outrora. Logicamente, que admitindo a possibilidade de se conferir o efeito erga omnes e eficácia vinculante ao controle difuso incidental realizado pelo Supremo Tribunal Federal deve-se, em nome da democracia e por 296 ROCHA, Luiz Alberto G. S. Da resolução suspensiva de leis declaradas inconstitucionais pelo Senado Federal. Revista Trimestral de Direito Público. São Paulo, v. 26, 1999, p. 248. 297 TAVARES, André Ramos. Nova lei da súmula vinculante. Estudos e Comentários à Lei 11.417, de 19.12.2006. São Paulo: Método, 2007, p. 103. 144 analogia ao controle concentrado, permitir a intervenção de terceiros interessados, como é o caso do amicus curiae. Tal pensamento encontra, também, apoio nos institutos da repercussão geral e da súmula vinculante, onde decisões provenientes de casos concretos analisados pelo Supremo Tribunal Federal alcançam a todos. Invocando esse entendimento de que a decisão do Senado Federal não pode ser mais compreendida como condição de eficácia geral no controle concreto, por ter se tornado obsoleto, assim pontifica Mendes: A exigência de que a eficácia geral da declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal em casos concretos dependa de decisão do Senado Federal, introduzida entre nós com a Constituição de 1934 e preservada na Constituição de 1988 (art. 52, X), perdeu parte de seu significado com a ampliação do controle abstrato de normas, sofrendo o mesmo processo de obsolescência. A amplitude conferida ao controle abstrato de normas e a possibilidade de que se suspenda, liminarmente, a eficácia de leis ou atos normativos, com eficácia geral, contribuíram, certamente, para que se mitigasse a crença na própria justificativa desse instituto, que se inspirava diretamente numa concepção de separação dos Poderes – hoje necessária e inevitavelmente ultrapassada. Se o Supremo pode, em ação direta de inconstitucionalidade, suspender, liminarmente, a eficácia de uma lei, até mesmo de emenda constitucional, por que haveria a declaração de inconstitucionalidade proferida no controle incidental, valer tão somente para as partes? 298 Ademais, se a doutrina pátria abraçou a teoria da nulidade da lei inconstitucional (lei nula é lei destituída de qualquer validade), logo a participação do Senado Federal como requisito necessário para suspender a lei do ordenamento jurídico caracteriza-se uma negação à própria teoria da nulidade, isso porque, se a norma é nula no ponto de vista jurídico, não há nenhuma lógica condicionar essa nulidade à decisão de cunho político. Daí porque para manter a coerência de que norma inconstitucional é nula, o ato do Senado Federal não poderia jamais ter sido compreendido como ato condicionador para a suspensão da lei do ordenamento jurídico, e sim, como meio de conferir publicidade à decisão do Supremo 298 MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 1158-1159. 145 Tribunal Federal, como pensado por Carlos Alberto Lúcio Bittencourt há vários anos, como já citado acima. Assim, neste sentido, expõe-se novamente o pensamento de Mendes: Ainda que se aceite, em princípio, que a suspensão da execução da lei pelo Senado retira a lei do ordenamento jurídico com eficácia ex tunc, esse instituto, tal como foi interpretado e praticado, entre nós, configura antes a negação do que a afirmação da teoria da nulidade da lei inconstitucional. A não aplicação geral da lei depende exclusivamente da vontade de um órgão eminentemente político e não dos órgãos judiciais incumbidos da aplicação cotidiana do direito. Tal fato reforça a ideia de que, embora tecêssemos loas à teoria da nulidade da lei inconstitucional, consolidávamos institutos que iam de encontro a sua implementação. Assinale-se que se a doutrina e a jurisprudência entendiam que lei inconstitucional era ipso jure nula, deveriam ter defendido, de forma coerente, que o ato de suspensão a ser praticado pelo Senado destinava-se exclusivamente a conferir publicidade à decisão do STF 299 . Outro argumento que pode ser apontado é que se a decisão do Senado Federal continuar sendo considerada como imprescindível para a produção de efeitos gerais, significa dizer que mesmo tendo o Supremo Tribunal Federal reconhecido a inconstitucionalidade, os litígios continuarão surgindo em torno da matéria já definida, congestionando ainda mais o já tão moroso poder Judiciário. 4.2.3. O comportamento do Supremo Tribunal Federal sobre a questão: a reclamação constitucional nº 4.335-5/AC O tema em alusão, como já mencionado acima, está sendo objeto de apreciação do próprio Supremo Tribunal Federal no julgamento da Reclamação oriunda do Estado do Acre, no caso a Rcl 4.335/AC, e cujo julgamento não fora concluído até o momento. Na reclamação sustenta-se que o juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco/AC estaria descumprindo a decisão do Supremo Tribunal Federal 299 ibidem, p. 1163. 146 proferida no HC 82.959/SP, da relatoria do ministro Marco Aurélio, quando a Corte reconheceu a inconstitucionalidade da vedação de progressão de regime aos condenados pela prática de crimes hediondos, prevista no § 1º do art.2º da Lei n. 8.072/1990 (Lei dos Crimes Hediondos). Para o juiz da Vara de Execuções Criminais da Comarca de Rio Branco, a inconstitucionalidade reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal durante o julgamento do HC 82.959/SP não tem eficácia geral enquanto o § 1º do art.2º da Lei n. 8.072/1990 não for suspenso pelo Senado Federal, vez que ocorreu em controle concreto de constitucionalidade, cujos efeitos se limitam às partes do processo. Na referida reclamação, cinco ministros do Supremo Tribunal Federal já proferiram seus votos. Os ministros Gilmar Ferreira Mendes 300 (relator) e Eros Roberto Grau 301 (já aposentado) entenderam que a regra constitucional, prevista no inciso X do art. 52 da Constituição Federal, sofrera mutação constitucional e tem atualmente o sentido de dar publicidade, uma vez que as decisões do Supremo Tribunal Federal sobre a inconstitucionalidade de leis têm eficácia normativa, mesmo que tomadas em ações de controle concreto, não precisando destarte da intervenção do Senado para alcançar a todos. Assim, na visão desses dois ministros do Supremo Tribunal, o pedido formulado na reclamação deveria ser julgado procedente. Em seu voto, o ministro Gilmar Mendes demonstra que em várias situações o disposto no inciso X do art. 52 da Constituição Federal não tem praticamente utilidade alguma e que hoje, em razão da mutação constitucional, deve ser compreendido no sentido de publicizar as decisões do Supremo Tribunal Federal que reconhecer a inconstitucionalidade de ato normativo: 300 O voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes na Reclamação 4.335/AC está disponível em: http://www.stf.jus.br/imprensa/pdf/rcl4335gm.pdf. Acesso em 22 de jun. de 2013. 301 O voto-vista proferido pelo Ministro Eros Grau na Reclamação 4.335/AC está disponível em: http://www.stf.jus.br/imprensa/pdf/rcl4335eg.pdf. Acesso em 22 de jun. de 2013. 147 A aceitação das ações coletivas como instrumento de controle de constitucionalidade relativiza enormemente a diferença entre os processos de índole objetiva e os processos de caráter estritamente subjetivo. É que a decisão proferida na ação civil pública, no mandado de segurança coletivo e em outras ações de caráter coletivo não mais poderá ser considerada uma decisão inter partes. De qualquer sorte, a natureza idêntica do controle de constitucionalidade, quanto às suas finalidades e aos procedimentos comuns dominantes para os modelos difuso e concentrado, não mais parece legitimar a distinção quanto aos efeitos das decisões proferidas no controle direto e no controle incidental. (...) É possível, sem qualquer exagero, falar-se aqui de uma autêntica mutação constitucional em razão da completa reformulação do sistema jurídico e, por conseguinte, da nova compreensão que se conferiu à regra do art. 52, X, da Constituição de 1988. (...) Assim, parece legítimo entender que, hodiernamente, a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado Federal há de ter simples efeito de publicidade. Desta forma, se o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle incidental, chegar à conclusão, de modo definitivo, de que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação ao Senado Federal para que este publique a decisão no Diário do Congresso. Tal como assente, não é (mais) a decisão do Senado que confere eficácia geral ao julgamento do Supremo. A própria decisão da Corte contém essa força normativa.(...) 302 Por sua vez, entre os argumentos lançados pelo ex-ministro Eros Grau, está exatamente a questão da economia processual, onde esclarece: O crescimento do número de litígios e a multiplicação de processos idênticos no âmbito do sistema de controle difuso são expressivos da precariedade da paz construída no interior da sociedade civil. Uma paz dotada de caráter temporário, na medida em que o dissenso entre particularismos antagônicos é apenas mediado, superado pela conveniência o que, no direito, não consubstancia, a rigor, nenhuma mediação efetiva, nem suprassunção, mas justaposição conflitante 303 . E sobre o instituto da mutação constitucional, destaca, também, o ex-ministro Eros Grau, em seu voto-vista: A mutação constitucional é transformação de sentido do enunciado da Constituição sem que o próprio texto seja alterado em sua redação, vale dizer, na sua dimensão constitucional textual. Quando ela se dá, o intérprete extrai do texto norma diversa daquelas que nele se encontravam originariamente involucradas, em estado de potência. Há, então, mais do que interpretação, esta concebida como processo que opera a transformação de texto em norma. Na mutação constitucional caminhamos não de um texto a uma norma, porém de um texto a outro texto, que substitui o primeiro. 302 O voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes na Reclamação 4.335/AC está disponível em: http://www.stf.jus.br/imprensa/pdf/rcl4335gm.pdf. Acesso em 22 de jun. de 2013. 303 O voto-vista proferido pelo Ministro Eros Grau na Reclamação 4.335/AC está disponível em: http://www.stf.jus.br/imprensa/pdf/rcl4335eg.pdf. Acesso em 22 de jun. de 2013. 148 Daí que a mutação constitucional não se dá simplesmente pelo fato de um intérprete extrair de um mesmo texto norma diversa da produzida por um outro intérprete. Isso se verifica diuturnamente, a cada instante, em razão de ser, a interpretação, uma prudência. Na mutação constitucional há mais. Nela não apenas a norma é outra, mas o próprio enunciado normativo é alterado 304 . O ex-ministro Eros Grau preconiza que a modificação do texto Constitucional pela mutação constitucional é considerada legítima, desde que sua “tradição” seja mantida e o novo texto seja coerente com o todo em seu contexto, pois “é certo que a unidade do contexto repousa em uma tradição que cumpre preservar”305. Daí, conclui que o novo sentido atribuído ao art. 52, X, da CF, além de não ser “inusitado”, já que fora sustentado anos atrás por Carlos Alberto Lúcio Bittencourt, mantém-se adequado à tradição (= à coerência) do contexto, reproduzindo-a, de modo a ele se amoldar com exatidão. Ressalta Eros Grau que o inciso X do art. 52 da Constituição Federal é obsoleto e que sofrera um processo de mutação constitucional, devendo ser lido que nele compete ao Senado Federal dar publicidade à suspensão da execução de lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, através de decisão definitiva. Reconhece, porém, Eros Grau, que a doutrina pátria relutará em reconhecer tal mutação. Entretanto, ressalta que a doutrina deverá seguir os passos do Supremo Tribunal Federal, vez que cabe a esse órgão produzir o direito e reproduzir o ordenamento, desde que o Supremo Tribunal Federal se mantenha fiel ao compromisso de guardar a Constituição. Nesses termos vaticina: Quem não se recusar a compreender perceberá que o texto do inciso X do artigo 52 da Constituição é - valho-me da dicção de HSÜ DAU-LIN – obsoleto. A esta altura a doutrina dirá que não, que entre nós coexistem a modalidade de controle concentrado e a de controle difuso de constitucionalidade e que a nossa tradição é a do controle difuso, atribuído à competência do Poder Judiciário desde a Constituição de 1.891. Que o Senado Federal participa desse controle a partir de 1.934, a ele competindo suspender, por meio de resolução, a execução de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF. Que o controle concentrado de constitucionalidade veio bem depois, inicialmente quando alterada a redação do artigo 101 da Constituição de 1.946 pela Emenda Constitucional n. 304 Idem. 305 Idem. 149 16/65, após em 1.988, com a incorporação ao nosso direito da Ação Direta de Inconstitucionalidade. (...) Sucede que estamos aqui não para caminhar seguindo os passos da doutrina, mas para produzir o direito e reproduzir o ordenamento. Ela nos acompanhará, a doutrina. Prontamente ou com alguma relutância. Mas sempre nos acompanhará, se nos mantivermos fiéis ao compromisso de que se nutre a nossa legitimidade, o compromisso de guardarmos a Constituição. O discurso da doutrina [= discurso sobre o direito] é caudatário do nosso discurso, o discurso do direito. Ele nos seguirá; não o inverso. Os ministros Sepúlveda Pertence (também já aposentado), Joaquim Barbosa e, em decisão recente, Ricardo Lewandowski, divergiram dos votos de Gilmar Mendes e de Eros Grau. Mesmo afirmando o caráter da superioridade do controle abstrato de constitucionalidade, que torna obsoleta a regra da suspensão da norma inconstitucional pelo Senado Federal, o ministro Sepúlveda Pertence 306 , à época, ressaltou que não se faria necessária a aplicação do “projeto de decreto de mutação constitucional” sustentado pelo relator de reclamação, vez que o efeito erga omnes e vinculante pode ser alcançado pelo Supremo Tribunal Federal sem a necessidade de reduzir o Senado Federal a um órgão de publicidade das decisões daquele tribunal. Por sua vez, o ministro Joaquim Barbosa 307 ressaltou também que a súmula vinculante é capaz de alcançar o efeito erga omnes sustentado e que não há mutação constitucional, pois não estão presentes os requisitos para a sua admissibilidade e que assim deve ser mantida a leitura tradicional do X do art. 52 da Constituição Federal de 1988. O ministro Ricardo Lewandowski 308 , em voto-vista proferido na sessão ocorrida em 16 de maio de 2013, também divergiu do relator, sustentando que reduzir o papel do Senado Federal a mero órgão de divulgação das decisões do Supremo Tribunal Federal vulneraria o 306 O entendimento sustentado pelo ministro Sepúlveda Pertence consta do informativo do Supremo Tribunal Federal de n.º 463, de abril de 2007 e está disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em 22 de jun. de 2013. 307 O entendimento sustentado pelo ministro Joaquim Barbosa consta do informativo do Supremo Tribunal Federal de n.º 463, de abril de 2007 e está disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em 22 de jun. de 2013. 308 Reclamação 4.335/AC, voto-vista do ministro Ricardo Lewandowski. Consulta realizada no site www.stf.jus.br, em 22 de jun. de 2013. 150 sistema de separação entre os poderes. Ressaltou, ainda, que a Constituição Federal de 1988 fortaleceu o Supremo, mas não ocorreu em detrimento das competências dos demais poderes, e por isso não há como cogitar-se de mutação constitucional, na espécie, diante dos limites formais e materiais que a própria Lei Maior estabelece, sendo a separação dos poderes cláusula pétrea que se quer, pode ser alterada por emenda constitucional. Além disso, ressaltou, também, que se se deseja emprestar maior alcance às decisões do Supremo nessa sede, basta lançar mão das súmulas vinculantes. Assim, os ministros Sepúlveda Pertence, Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski não conheceram da reclamação, mas concederam habeas corpus de ofício para afastar o óbice legal à progressão de regime aos condenados por crimes hediondos, competindo, porém, ao juiz da execução penal examinar os requisitos objetivos e subjetivos para a concessão ou não da progressão. Na visão dos ministros Sepúlveda Pertence, Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski, a súmula vinculante seria um grande empecilho às ideias sustentadas pelos ministros Gilmar Mendes e Eros Grau, pois na compreensão daqueles eminentes ministros, a súmula vinculante é o único meio previsto na Constituição Federal de dar eficácia geral às decisões do Supremo Tribunal Federal, em controle concreto, sem a participação do Senado Federal. Entretanto, data vênia, entender-se de tal modo é uma medida que evidencia uma postura conservadora que só admite mudanças constitucionais através dos processos formais de alteração da Constituição. Contudo, embora seja possível a utilização da súmula vinculante para resolver o caso especificamente analisado na Reclamação Constitucional nº 4.335/AC (progressão de regime nos crimes hediondos, que inclusive deu origem à Súmula Vinculante nº 26), esta não se faz necessária, pois a súmula vinculante é um instrumento abrangente, voltada para uniformizar todas as interpretações constitucionais reiteradas pelo Supremo Tribunal Federal, enquanto a 151 ideia da mutação constitucional do inciso X do art. 52 da Constituição Federal de 1988 diz respeito, única e exclusivamente, à interpretação daquela Corte que declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. Adotando-se a ideia da mutação, toda vez que o Supremo Tribunal Federal declarar a inconstitucionalidade, em controle concreto, produzirá os mesmos efeitos gerais do controle abstrato, sem ter que se valer do procedimento formal e burocrático da súmula vinculante. Assim, acolhendo-se a ideia defendida na presente pesquisa, não precisará o Supremo Tribunal Federal, toda vez que, em controle concreto declarar a inconstitucionalidade de ato normativo, ter que editar uma súmula vinculante ou ter que um dos legitimados ingressar com alguma ADI para pronunciar novamente uma inconstitucionalidade reconhecida em controle concreto pelo próprio Tribunal Supremo para que possa produzir o efeito de alcançar a todos. Portanto, a adoção da mutação constitucional do inciso X do art. 52 da Constituição Federal traduz um mecanismo de coerência ao controle de constitucionalidade realizado pelo Supremo Tribunal Federal, bem como de segurança jurídica 309 , economia processual, efetividade da supremacia e da força da norma constitucional. Além disso, adotar a mutação constitucional do inciso X do art. 52 da Constituição Federal não significa também querer sepultar ou implodir o instituto da súmula vinculante, vez que esta, excetuando-se a declaração de inconstitucionalidade em controle concreto, continuará com a missão de pacificar e uniformizar a interpretação constitucional realizada pelo Supremo Tribunal Federal. É de se consignar ainda que a mutação constitucional serviria ao propósito de permitir, através de um processo de cunho subjetivo, que o Supremo Tribunal Federal, como órgão constitucionalmente legitimado, exerça o seu papel de guardião efetivo da Constituição Federal, decidindo igualmente para todos que estiverem em situação idêntica. 309 Evita que o Supremo Tribunal Federal profira decisões contraditórias em torno da constitucionalidade ou inconstitucionalidade de ato normativo. 152 Destarte, apesar de os ministros Sepúlveda Pertence, Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski sustentarem que o disposto no inciso X do art. 52 da Constituição Federal de 1988 não fora suplantado e que continua sendo necessário para alcançar a todos na declaração de inconstitucionalidade pronunciada pelo Supremo Tribunal Federal, em controle concreto de constitucionalidade, acredita-se, por todos os motivos já expostos até aqui, que tal entendimento não prevalecerá ao final do julgamento da Reclamação 4.335/AC, que poderá ser analisada por mais 6 310 (seis) ministros do Supremo Tribunal Federal, vez que até o momento, dos 11 (onze) ministros que compõem a Corte, apenas 5 (cinco) votaram. Assim, em face da realidade vivenciada, é de se reconhecer que o inciso X do art. 52 da CF sofreu mutação constitucional, pois a sua interpretação no contexto atual da Constituição não permite mais ser compreendida como condição de eficácia geral da decisão do Supremo Tribunal Federal, mas como um ato de publicação da decisão daquela Corte Constitucional. Portanto, para finalizar, a declaração de inconstitucionalidade no controle concreto realizado pelo Supremo Tribunal Federal, embora ocorra em caráter incidental, ou seja, como fundamento determinante da decisão (ratio decidendi), a mesma alcança a todos, sem a necessidade da suspensão do ato normativo através de resolução do Senado Federal, vez que a inconstitucionalidade de ato normativo é assunto cujo interesse transcende as partes envolvidas no caso concreto e que a última interpretação, em matéria constitucional, é firmada por aquela Corte Suprema. 310 Os ministros Luís Roberto Barroso e Teori Albino Zavascki, que ainda não votaram na Reclamação 4.335/AC, em seus trabalhos acadêmicos advogam a ideia sufragada na presente pesquisa. Para Barroso (BARROSO, Luiz Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito brasileiro. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 157.), a regra prevista no inciso X do art. 52 da CF/88 é um anacronismo constitucional. Já Teori Zavascki defende a projeção expansiva dos efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal para além dos limites do caso concreto, pois, segundo ele respostas diversas a idênticos problemas lesariam os princípios da isonomia e da segurança jurídica, bem como se já houve decisão sobre determinada questão constitucional, não há sentido a interposição de inúmeras outras demandas com semelhante questionamento, já que também o resultado seria o mesmo (ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 28). 153 5 CONCLUSÃO A necessidade de se garantir proteção e efetividade à Constituição serviu de força motriz para o surgimento da jurisdição constitucional. O constante surgimento de leis e atos normativos editados pelo próprio Estado em descompasso com a Constituição fez com que o controle de constitucionalidade se erigisse como o principal meio de atuação da jurisdição constitucional, e no mundo afora se construiu os mais diversos e variados modelos de controle. Entretanto, no mundo, predominam 2 (dois) sistemas de controle de constitucionalidade, no caso o modelo no qual o controle de constitucionalidade de lei ou ato normativo é exercido através dos vários órgãos que integram a estrutura do poder Judiciário, e fiscalização da constitucionalidade da lei ocorre durante o exame de um caso concreto, chamado de sistema americano de controle, ou é exercido por órgão autônomo e específico, na maioria da vezes não integrante da estrutura do Poder Judiciário e nem do Executivo e Legislativo, que analisa diretamente a compatibilidade da lei em tese frente à Constituição, denominado de sistema europeu ou austríaco de controle de constitucionalidade. O Brasil adotou um sistema híbrido de controle de controle de constitucionalidade, vez que miscigenou algumas características do sistema americano com o do sistema europeu, permitindo assim que qualquer órgão do Judiciário possa declarar incidentalmente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo no exame do caso concreto, bem como permitindo ao Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Judiciário, analisar diretamente a conformidade da lei ou ato normativo federal ou estadual em tese em face da Constituição Federal. Ao estabelecer a estrutura do Judiciário Brasileiro, a Constituição da República de 1988 criou os Tribunais Superiores com a finalidade precípua de uniformizar o entendimento 154 de determinadas matérias. Na esteira desse objetivo, outorgou-se ao Supremo Tribunal Federal a missão de Guardião da Constituição, tornando-se o órgão máximo na consolidação e uniformização de sua interpretação. Assim, o Supremo Tribunal Federal, por ser um órgão de natureza jurisdicional, tem a possibilidade de analisar a adequação ou não de uma lei ou ato normativo com a Constituição Federal, seja durante o exame de um caso concreto (controle difuso incidental), seja no exame direto em abstrato (concentrado principal). No controle difuso incidental, a demanda judicial que chega ao Supremo Tribunal Federal não almeja a análise direta e em abstrato da constitucionalidade da norma, e sim, uma pretensão totalmente diversa desta, mas que, no entanto, para o seu acolhimento ou não, é necessário enfrentar incidentalmente uma questão prejudicial que diz respeito à constitucionalidade de uma lei ou ato normativo. Nesse caso, a doutrina e jurisprudência que se consolidaram ao longo dos anos entendem que a declaração de inconstitucionalidade por não ter sido objeto de controle concentrado, e por ser, no caso de controle difuso, o Senado Federal (inciso X do art. 52 da Constituição Federal de 1988) o órgão responsável por suspender a eficácia da lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, os seus efeitos só alcançam exclusivamente as partes envolvidas no litígio. Entretanto, essa ideia tradicional só teria coerência para o controle concreto de constitucionalidade quando realizado por órgãos do Judiciário diversos do Supremo Tribunal Federal, pois, ao contrário deste, não são instâncias máximas na interpretação da Constituição Federal, e com isso é perfeitamente admissível que a manifestação da constitucionalidade ficasse circunscrita às partes da lide judicial. No entanto, esse pensamento resta superado na concepção atual do constitucionalismo e da jurisdição constitucional brasileira, pois, se o Supremo Tribunal Federal não é mais um mero órgão recursal de terceira ou quarta instância, como fora encarado outrora, e sim, um 155 tribunal com atribuições de uma verdadeira Corte Constitucional, que decide conflitos que tenham repercussão geral sobre a sociedade, e sendo ele o órgão máximo na interpretação da Constituição, os efeitos da declaração de inconstitucionalidade no controle difuso deve ter a mesma amplitude do controle concentrado, ou seja, eficácia erga omnes e força vinculante. Portanto, na conjuntura atual, é absolutamente incompreensível a explicação de que, no controle difuso, o Supremo decide inter partes, enquanto no controle concentrado aquele mesmo órgão que fora alçado à categoria de Corte e Tribunal Constitucional, decide erga omnes. E tudo isso só porque o Supremo Tribunal Federal, no controle difuso de constitucionalidade, declara a inconstitucionalidade resolvendo uma questão prejudicial de forma incidental e, na segunda, declara a mesma inconstitucionalidade solucionando a própria questão de forma principal. Com efeito, não há nenhuma coerência em tal pensamento, já que o órgão prolator da decisão é o mesmo, sem se falar que é o maior intérprete em matéria constitucional. Assim sendo, resta claro que se agrega uma maior coerência ao sistema jurídico de controle de constitucionalidade à vinculação erga omnes da decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concreto de constitucionalidade. Não se pode falar em coerência, nem mesmo em segurança jurídica, se qualquer magistrado ou tribunal, diante da declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal de determinada lei ou ato normativo no bojo do controle difuso, continuar declarando constitucional, naquelas mesmas condições, a mesma lei ou ato normativo. Portanto, a transcendentalização dos efeitos da decisão no controle concreto de constitucionalidade faz com que o Supremo Tribunal Federal imprima uma maior racionalidade em sua atuação, pronunciando-se uma única vez sobre a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, da forma como ocorre no controle abstrato de constitucionalidade. Destarte, se uma determinada lei for declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal 156 Federal no julgamento, por exemplo, de um recurso extraordinário, habeas corpus, mandado de segurança, etc., o mesmo entendimento deverá ser adotado por todos os juízes e tribunais nos litígios que envolvam a interpretação e aplicação da referida regra declarada inconstitucional. A adoção dessa concepção traz uma maior proteção à segurança e estabilidade das relações jurídicas ameaçadas pela indefinição acerca da legitimidade de uma norma infraconstitucional, vez que a partir do julgamento de um caso concreto não se precisará aguardar o manejo de alguns dos instrumentos de controle abstrato de constitucionalidade por algum de seus legitimados, o que certamente levaria alguns anos para que a interpretação sobre a constitucionalidade de norma restasse consolidada. Com isso, permite-se uma definição mais célere sobre temas constitucionais controvertidos e cuja perpetuação é extremamente prejudicial à sociedade como um todo, bem como, acaba por diminuir o inconveniente surgimento de decisões judiciais contraditórias e, ainda, por evitar a multiplicação de litígios sobre as mesmas questões constitucionais que acabam sobrecarregando o judiciário. Deste modo, se a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, em meados da década de 70, evoluiu rumo a uma interpretação que concluiu pela desnecessidade da intervenção do Senado Federal para que a declaração de inconstitucionalidade proferida em controle concentrado tivesse alcance geral e vinculante, essa mesma premissa, no contexto atual, deve, também, ser aplicada a declaração de inconstitucionalidade proferida por aquele mesmo Tribunal no controle difuso-incidental, vez que esta modalidade de controle sofreu um processo de objetivação. Nota-se assim que a interpretação literal do disposto no inciso X do art. 52 da Constituição Federal sofreu um processo de obsolescência, pois não tem mais a utilidade de outrora, e com isso, tal regra deve ser reinterpretada no sentido de que a função do Senado 157 Federal estaria voltada a dar publicidade à decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou a inconstitucionalidade de norma, haja vista, que tal preceito normativo sofreu mutação constitucional. Não se defende com essa ideia a supressão da liberdade de julgar conforme as convicções do magistrado e nem muito menos a abolição da forma incidenter tantum da tutela de constitucionalidade ser realizada por qualquer juiz ou tribunal, porém, não se pode deixar ao oblívio que a última decisão sobre a harmonia da norma à Constituição é do Supremo Tribunal Federal, de modo que a sua decisão, ao declarar a inconstitucionalidade de norma, deve, sim, vincular todos os magistrados e tribunais diante das mesmas condições. A manutenção do entendimento tradicional permite que o Supremo Tribunal Federal só garanta a supremacia constitucional de forma parcial, através do controle concentrado de constitucionalidade, vez que não sendo vinculante a decisão proferida em controle difuso os demais órgãos do Judiciário pátrio poderão continuar proferindo decisões inconstitucionais na ótica do Supremo Tribunal Federal, chancelando assim uma afronta à Carta Magna e frustrando os objetivos de Guardião da Constituição. A objetivação das decisões do Supremo Tribunal Federal que declarar, incidentalmente, a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo no controle difuso de constitucionalidade, além de eliminar a incoerência de tratamento entre o controle concreto e abstrato de constitucionalidade, tem importância significativa para a sociedade. Isto porque privilegia o princípio democrático, pois, possibilita a participação direta de qualquer pessoa do povo, que através de ideias, argumentos e discursos racionais, pode arguir, no Supremo Tribunal Federal e a partir de um caso real, a inconstitucionalidade de algum texto normativo, cuja decisão poderá influenciar nos rumos do próprio país. Portanto, dentro da tessitura constitucional contemporânea, não é mais admissível que a declaração de inconstitucionalidade firmada pelo Supremo Tribunal Federal, Guardião da 158 Constituição, continue, injustificadamente, sendo tratada de forma distinta e incoerente. Destarte, a interpretação a ser extraída da Constituição, quer seja ela produto de Emenda Constitucional que altere o disposto no texto do inciso X do art. 52 da Constituição Federal ou do fenômeno da mutação constitucional, deve conduzir ao sentido segundo o qual a declaração de inconstitucionalidade de ato normativo pelo Supremo Tribunal Federal produz efeito erga omnes e eficácia vinculante, independentemente de sua origem ter sido por via incidental ou principal. Ou seja, a declaração de inconstitucionalidade de norma pelo Supremo Tribunal Federal, que tem cunho jurídico, não pode sua eficácia ficar subordinada a uma decisão de um órgão, de natureza política, como é o Senado Federal. 159 REFERÊNCIAS AGRA, Walter de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Forense. 2005. ALEXY, Robert. Conceito e validade do Direito. Trad. Gercelia Batista de Oliveira Mendes. São Paulo: Martins Fontes, 2011. ______. 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