UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL Tarsila Chiara Albino da Silva Santana DA HOUSE MUSIC À BAGACEIRA: Uma etnografia sobre música eletrônica, espacialidade e (homo)sexualidade masculina em Recife, PE Natal 2017 Tarsila Chiara Albino da Silva Santana DA HOUSE MUSIC À BAGACEIRA: Uma etnografia sobre música eletrônica, espacialidade e (homo)sexualidade masculina em Recife, PE Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito necessário à obtenção do título de Mestra em Antropologia Social, sob a orientação da Profa. Dra. Lisabete Coradini. Natal 2017 Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA). Santana, Tarsila Chiara Albino da Silva. Da house music à bagaceira: uma etnografia sobre música eletrônica, espacialidade e (homo)sexualidade masculina em Recife, PE / Tarsila Chiara Albino da Silva Santana. – 2017. 230 f. il. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Antropologia 1. Música eletrônica. 2. Sociabilidade urbana (Recife). 3. Homossexualidade masculina. I. Coradini, Lisabete. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. CDU 78(813.4) Tarsila Chiara Albino da Silva Santana DA HOUSE MUSIC À BAGACEIRA: Uma etnografia sobre música eletrônica, espacialidade e (homo)sexualidade masculina em Recife, PE APROVADA COM INDICAÇÃO PARA PUBLICAÇÃO Banca Examinadora __________________________________________ Profa. Dra. Lisabete Coradini (Orientadora/Presidente da Banca - PPGAS/UFRN) __________________________________________ Prof. Dr. Fabiano de Souza Gontijo (Membro Externo Titular - PPGA/UFPA) __________________________________________ Profa. Dra. Angela Mercedes Facundo Navia (Membro Interno Titular - PPGAS/UFRN) __________________________________________ Profa. Dra. Isadora Lins França (Membro Externo Suplente - IFCH/UNICAMP) Dedicatória Aos interlocutores, por me apresentarem uma “nova” Recife, pela confiança, pelos diálogos e pelas belas amizades construídas nesse processo de intenso aprendizado. À Jainara, por me apresentar à antropologia, pelo seu companheirismo e pela sua amizade sincera. AGRADECIMENTOS Aos interlocutores, os momentos agradáveis que compartilhamos juntos. Agradeço ainda a bela amizade que construímos nesses últimos anos, bem como as festas, as aventuras e os cuidados. À minha mãe e ao meu pai, o carinho e apoio em minhas escolhas profissionais, mesmo sem compreender o que elas significavam. Aos meus irmãos, o companheirismo e o carinho. À minha sobrinha, a alegria e a doçura que trouxe para a nossa família. À Jainara Oliveira, a companhia cotidiana, as parcerias acadêmicas, os estímulos e o apoio que foram e são fundamentais em minha trajetória acadêmica. Agradeço ainda os cafés, os almoços e os jantares acompanhados de calorosos debates teóricos, comentários e provocações críticos, sem os quais esta dissertação não teria o formato que tem hoje. À Claudio Costa, a bela amizade, a presença nos momentos em que mais precisei, os maravilhosos passeios, as festas e por fazer parte da minha vida. À Camila Borges, a doce amizade, por sempre me receber de braços abertos, compartilhar momentos tão agradáveis e dividir sua família comigo. Agradeço ainda por me fazer sentir em casa a cada vez que retornava para Recife e por me apresentar ao doce e sempre atencioso Felipe Nata. Ao Eduardo, Joabe, Bob e ao bolinha (meu não-humano favorito), a hospitalidade durante o processo de seleção do PPGAS/UFRN e a mudança para a cidade de Natal. Agradeço ainda por abrirem as portas de suas casas e as amizades construídas ao longo desses últimos cinco anos. À Lisabete Coradini, por transmitir as melhores das energias, por ser uma orientadora tão compreensível com o meu tempo e com os meus projetos, por me fazer enxergar novos caminhos e por tornar esse processo tão agradável e enriquecedor e pela oportunidade de realizar o estágio docência sob a sua supervisão. Agradeço ainda por me apresentar uma Natal que samba e encanta e por me fazer aprender que uma pesquisa é mais prazerosa quando se é feita de forma compartilhada. À minha turma de mestrado 2015, o conhecimento compartilhado, os debates em sala de aula, a parceria nos eventos organizados, as belas amizades que construímos nesses últimos dois anos. Sara, Jardelly, Eduardo, Oriana, Luna, Priscila, Juliara, Iara, Sheila, Florizel, Ademilde, Daniel, Maynara e Josenildo, aprendi muito com cada um de vocês. À Sara García, a espanhola mais brasileira que conheço, a bela amizade, a cumplicidade, o carinho, os livros e os cafés. Agradeço ainda todo o apoio que compartilhamos nos momentos da escrita da dissertação; à Jardelly Lhuana, a rainha mais doce e generosa, a bela amizade, cada ensinamento, os maravilhosos momentos que compartilhamos e as gostosuras gastronômicas do Seridó. Ao Eduardo Neves, o menino Latour, a amizade, por sempre se fazer presente nos momentos que precisei e por me ajudar a enxergar novos horizontes em minha pesquisa. Agradeço também os ensinamentos, os cafés em sala de aula e a parceria na Revista Equatorial. À Joseany Alencar, flor do Cariri, a bela amizade, as parcerias estabelecidas e o apoio na reta final desta dissertação. Ao Grupo de Pesquisa em Sociologia e Antropologia das Emoções (GREM/UFPB), particularmente ao Prof. Dr. Mauro Koury e ao Raoni Borges, todo o apoio e carinho. E à Revista Brasileira de Sociologia da Emoção (RBSE). Ao Grupo de Pesquisa em Etnografias Urbanas (GUETU/UFPB), a oportunidade de diálogos e os projetos estabelecidos. Um agradecimento especial à Daniela Sales, pela sua doce amizade, os cafés, por ser essa “fuleirinha” que tanto admiro e pela alegria sempre contagiante. Ao Grupo de Pesquisa em Antropologia Visual (NAVIS/UFRN), o acolhimento, os diálogos e o aprendizado. Um agradecimento especial à José Duarte, pelos comentários feitos ao meu projeto inicial de mestrado e os diálogos estabelecidos. Ao Grupo de Antropologia da imagem (VISAGEM/UFPA), a parceria estabelecida nesses últimos anos. A Revista Visagem, na figura de Miltinho Ribeiro e Denise Machado, a troca de experiências e o apoio no processo de editoração de uma revista. À Revista Equatorial, a oportunidade que tive nesses últimos dois anos de fazer parte da sua comissão editorial, o aprendizado e o crescimento intelectual. Um agradecimento especial aos pareceristas anônimos e aos autores, sem os quais a publicação da mesma não seria possível. Agradeço ainda à Vivência, na figura da Francisca Miller, por compartilhar seu conhecimento. Às Professoras Doutoras e examinadoras Isadora Lins França e Elisete Schwade, por participarem da minha banca de qualificação. Muito obrigada pelas provocações, pelos elogios e pelas pertinentes contribuições a esta dissertação de mestrado. As leituras atentas e críticas de vocês foram fundamentais para a estruturação desta dissertação. À/ao Professor(a) Doutor(a) e examinador(a) Angela Facundo Navia e Fabiano de Souza Gontijo, por aceitarem compor a minha banca de defesa de dissertação, as ricas e minuciosas leituras. Foi um privilégio tê-los como leitores da minha dissertação! São olhares como o de vocês que fazem a diferença em nossa formação acadêmica. Assim como à Professora Doutora Isadora Lins França, por ter aceitado ser suplente. Às minhas Professoras Doutoras Lisabete Coradini, Eliane Tânia, Elisete Schwade e Rita Neves, e aos meus Professores Doutores Luiz Assunção, Jean Segata e Glebson Vieira, as influências que exerceram em minha trajetória acadêmica. À CAPES, a bolsa de mestrado outorgada durante 24 meses, o que me permitiu dedicação integral ao PPGAS/UFRN e me possibilitou melhores condições de estudo e pesquisa. Aos secretários do PPGAS e do DAN, a atenção. Aos/às coordenadores(as) e debatedores(as) dos diferentes grupos de trabalho, mesas-redondas, fóruns de pesquisa, entre outras atividades, dos eventos acadêmicos em que participei (ALA, REA/ABANNE, RBA, ALAS, ANPOCS, CAAS, Desfazendo Gênero, Enlaçando Sexualidade, Semana de Antropologia da UFRN, entre outros), que direta ou indiretamente exerceram influência em minha formação acadêmica: Luiz Fernando Dias Duarte, Fabiano de Souza Gontijo, Laura Moutinho, Jane Beltrão, Tatiana Bacal, Deise Lucy, Nilton Santos, Gustavo Sagesse, Raphael Bispo, Carlos Eduardo Henning, Isadora Lins França, Maria Elvira Benitez, Roberto Marques, Regina Facchini, Júlio Assis Simões, Michel Agier, Ellen Woortmann, Clarice Peixoto, Milton Ribeiro, Marisol Marini, Marcelo Perilo, Marcio Zamboni, Jainara Oliveira, Denise Machado, Mauro Koury e Raoni Borges. À Jainara Oliveira, Denise Machado e Mariana Melo, as parcerias acadêmicas que tanto me estimulam. À Carol Almeida, Gabi Sagaz e sua filha, Flora, a receptividade em Florianópolis, por me fazerem sentir em casa e por todo o suporte durante a minha passagem pela ilha da magia. Uma definição geral de música deve incluir tanto sons quanto seres humanos. Música é um sistema de comunicação que envolve sons estruturados produzidos por membros de uma comunidade que se comunica com outros membros. Anthony Segger Um antropólogo denomina a situação que ele está estudando como “cultura” antes de mais nada para poder compreendê-la em termos familiares, para saber como lidar com sua experiência e controlá-la. Mas também o faz para verificar em que isso afeta sua compreensão da cultura em geral. Quer ele saiba ou não, quer tenha a intenção ou não, seu ato “seguro” de tornar o estranho familiar sempre torna o familiar um pouco estranho. E, quanto mais familiares torna se o estranho, ainda mais estranho parecerá o familiar. Roy Wagner As bases sobre as quais a familiaridade e a distância se assentam são cambiantes. Marilyn Strathern Aceitar ser afetado supõe, todavia, que se assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois se o projeto de conhecimento for onipresente, não acontece nada. Mas se acontece alguma coisa e se o projeto de conhecimento não se perde em meio a uma aventura, então uma etnografia é possível. Jeanne Favret-Saada Finalmente, [...], uma teoria etnográfica ainda possui, creio, uma vantagem suplementar: ajudar a suspender os julgamentos de valor. Marcio Goldman Resumo A dissertação consiste em uma teoria etnográfica da relação entre a música eletrônica com os espaços de sociabilidade urbana em Recife e os efeitos da música eletrônica na interação de homens com práticas (homo)sexuais nesses espaços. Na confluência desses dois objetivos, intenciono elaborar uma perspectiva etnográfica mais ampla sobre a música eletrônica, de modo que aqui analiso não apenas os seus sons, mas também os sentidos que os interlocutores conferem a esse gênero musical e como a música eletrônica, em seus mais variados estilos, (re)configura os espaços de sociabilidade recortados. Para tanto, primeiro procuro analisar como os interlocutores, a partir das suas experiências geracionais, vivenciam suas experiências (homo)sexuais nos espaços de sociabilidade urbana que frequentam. Deste modo, aspiro apontar para a ampliação do campo de autonomia desses homens em uma sociabilidade dada e como eles negociam as suas experiências (homo)sexuais em um regime de visibilidade circunscrito socioculturalmente. Em seguida, o foco da análise recai sobre o lugar da música eletrônica nos bares e boates GLS e em festas “alternativas”. Faz-se necessário, para tanto, uma descrição etnográfica da dinâmica estrutural e simbólica que caracteriza esses espaços. Descrevo, nesse sentido, tanto a estrutura física quanto a programação lúdica. E, fundamentalmente, procuro ainda descrever as interações mediadas pela música eletrônica dançante entre os interlocutores. No terceiro, e último momento, detenho-me mais sistematicamente a analisar os diferentes estilos musicais que são reproduzidos nesses espaços de sociabilidade. Trata-se, assim, de assinalar como a música eletrônica e os espaços de sociabilidade etnografados se relacionam mutualmente. As experiências etnográficas descritas também procuram apontar como a música eletrônica produz efeitos na interação entre os interlocutores. Esse duplo movimento, a relação de mutualidade e a produção de efeitos, por sua vez, se constata a partir das luzes, das músicas e das danças particularizadas que ambientam esses espaços. Essa ambientação produz uma “sensação de intimidade”, a qual excita diferentes expressões eróticas e propicia as performances interacionais entre as pessoas que ali estão. Por fim, as cenas de expressões erotizadas, mediadas pela música eletrônica dançante que observei em campo, estão relacionadas com a forma como esses homens vivenciam suas experiências (homo)sexuais nesses espaços. Palavras-chave: Música eletrônica; Sociabilidade urbana; (Homo)sexualidade masculina; Antropologia urbana; Antropologia audiovisual Abstract The dissertation consists of an ethnographic theory of the relation between electronic music and the spaces of urban sociability in Recife and the effects of electronic music on the interaction of men with (homo)sexual practices in these spaces. At the confluence of these two aims, I intend to elaborate a broader ethnographic perspective on electronic music, so that here I analyze not only their sounds, but also the meanings that the interlocutors confer on this musical genre and how electronic music, at its most styles, (re) configures spaces of sociability cut out. To do so, I first try to analyze how the interlocutors, from their generational experiences, experience their (homo)sexual experiences in the spaces of urban sociability they attend. In this way, I aspire to point to the extension of the field of autonomy of these men in a given sociability and how they negotiate their (homo)sexual experiences in a regime of visibility circumscribed socioculturally. Then the focus of the review falls on the place of electronic music in GLS bars and nightclubs and at alternative parties. For that, an ethnographic description of the structural and symbolic dynamics that characterizes these spaces is necessary. I describe, in this sense, both the physical structure and the playful programming. And, fundamentally, I try to describe the interactions mediated by the electronic dance music between the interlocutors. In the third, and last moment, I analyze more systematically the different musical styles that are reproduced in these spaces of sociability. It is, therefore, to point out how electronic music and ethnography spaces of sociability are mutually related. The ethnographic experiences described also seek to point out how electronic music produces effects in the interaction between the interlocutors. This double movement, the relationship of mutuality and the production of effects, in turn, can be seen from the lights, the songs and the particularized dances that set these spaces. This ambiance produces a "sense of intimacy," which excites different erotic expressions and fosters interactional performances among the people who are there. Finally, the scenes of erotic expressions, mediated by the electronic dance music I observed in the field, are related to the way these men experience their (homo)sexual experiences in these spaces. Keywords: Electronic music; Urban sociability; Male (homo)sexuality; Urban anthropology; Audiovisual anthropology Abreviaturas e siglas BPM – Batida por minuto CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior DAN – Departamento de Antropologia DJ – Deejay FACIPE – Faculdade Integrada de Pernambuco GLS – Gays, Lésbicas, Simpatizantes IMEPE – Instituto de Música Eletrônica de Pernambuco LED – Light Emitting Diode LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Transgêneros, Travestis MKB – Meu Kaso Bar MPB – Música popular brasileira NAVIS – Núcleo de Antropologia Visual da UFRN PPGAS – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social PPS – Partido Popular Socialista RGB – Sistema de Cores aditivas UFPE – Universidade Federal de Pernambuco UFPB – Universidade Federal da Paraíba UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte Lista de Vídeos Lista de Vídeos Vídeo Descrição Página 1 Um olhar de Otávio para pista Bar Brasil 115 2 Um olhar de Otávio para pista New York 115 3 Bacanal de Herodes – Clube Metrópole 117 4 Um olhar de Iago para Parada Liberté 149 Lista de Figuras Lista de Figuras Figura Descrição Página 1 Estabelecimentos gay friendly em Recife 94 2 Pontos gay friendly na zona Sul de Recife 95 3 Localização das festinhas alternativas 140 4 Localização Red Lounge 143 5 Mapa da estrutura do Brega Naite 155 6 Percursos da Terça do Vinil 158 7 Flyer do Clube Metrópole 179 8 Flyer do Clube Metrópole 179 9 Flyer do Clube Metrópole 179 10 Flyer do Clube Metrópole 179 11 Flyer da Boate San Sebastian 180 12 Flyer da Boate San Sebastian 180 Lista de Fotografias Lista de Fotografias Figura Descrição Página 1 O Santo Bar 97 2 O Santo Bar 97 3 O Santo Bar 97 4 O Santo Bar 97 5 Conchittas Bar 103 6 Conchittas Bar 104 7 Um olhar de Júlio para o Bar Brasil 108 8 Um olhar de Júlio para a pista New York 108 9 Iluminação pista New York 109 10 Apresentação do Bacanal de Herodes na pista New York 118 11 Apresentação do Bacanal de Herodes na pista New York 118 12 Fachada Boate MKB 126 13 Pista brega da Boate MKB 128 14 Pista open air 136 15 Pista principal 136 16 Painel da Parada Liberté 145 17 Pista Parada Liberté 146 18 Pista Parada Liberté 146 19 Estrutura Parada Liberté 150 20 Estrutura Parada Liberté 150 21 Um olhar de Otávio para o Brega Naite 157 22 Um olhar de Otávio para o Brega Naite 157 23 Terça do Vinil no Largo da Santa Cruz. 160 24 Dj 440 na Terça do Vinil 160 25 Um olhar de João para a Terça do Vinil 163 26 Um olhar de João para a Terça do Vinil 163 27 Trio do Clube Metrópole na 15° Parada da diversidade de Recife 167 28 Barraca do Clube Metrópole na 15° Parada da Diversidade de Recife 169 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................. 17 Organização do trabalho de campo ................................................................ 23 Imersão e trabalho de campo ........................................................................... 26 Organização dos capítulos ............................................................................... 37 PARTE I – OS INTERLOCUTORES ............................................................ 39 CAPÍTULO 1 - Curvas de vida, projetos e campos de possibilidades ........ 40 1.1 Identidades Sexuais ..................................................................................... 42 1.2 Visibilidade Sexual ...................................................................................... 47 1.3 Homossexualidade e mudança social ........................................................ 48 1.4 Afetos, moralidade e (homo)sexualidade .................................................. 51 1.5 Negociando visibilidades ............................................................................ 54 1.5.1 Lucas ......................................................................................................... 54 1.5.2 Marcos ....................................................................................................... 58 1.3.3 Júlio ........................................................................................................... 62 1.3.4 Otávio ........................................................................................................ 67 1.5.5 Marcelo ..................................................................................................... 72 1.5.6 Iago ............................................................................................................ 76 1.5.7 João ........................................................................................................... 81 Notas ................................................................................................................... 85 PARTE II – OS ESPAÇOS .............................................................................. 87 CAPÍTULO 2 – Bares e Boates “GLS” .......................................................... 88 2.1 Etnografia urbanas ..................................................................................... 89 2.2 Recife na cena etnográfica ......................................................................... 94 2.2.1 O Santo Bar .............................................................................................. 96 2.2.2 Conchittas Bar ....................................................................................... 102 2.2.3 A Boate Metrópole ................................................................................. 105 2.2.4 A Boate MKB ......................................................................................... 120 2.2.5 A Boate San Sebastian ........................................................................... 135 CAPÍTULO 3 – As festas ............................................................................... 140 3.1 A Boogie Night .......................................................................................... 140 3.2 Parada Liberté ......................................................................................... 143 3.3 Brega Naite ................................................................................................ 151 3.4 Terça do Vinil ............................................................................................ 158 3.5 Parada da Diversidade ............................................................................. 165 Notas ................................................................................................................. 171 PARTE III – A MÚSICA ............................................................................... 174 CAPÍTULO 4 – Da house music à bagaceira ............................................... 175 4.1 Música eletrônica e música eletrônica em Recife ................................... 175 4.2 Música eletrônica dançante e público dissidente ................................... 183 4.2.1 “Essa música é muito gay” .................................................................... 187 4.3 Bagaceira e musicalidade pernambucana ............................................. 194 4.3.1 Ressignificação sonora ........................................................................... 197 4.3.2 A infregatividade nos diferentes espaços de sociabilidade ................. 202 Notas ................................................................................................................. 209 CONSIDERAÇÕES ....................................................................................... 212 REFERÊNCIAS .............................................................................................. 215 APÊNDICE ..................................................................................................... 229 17 INTRODUÇÃO “A tradição do trabalho de campo e um repertório conceitual derivado da imersão profunda nos modos de vida locais têm sido a fonte da força da antropologia” (Keesing e Strathen, 1998, p. 7)1 Os estudos sobre a música constituem um campo de conhecimento variado, mas pouco debatido nos circuitos antropológicos. Como capacidade humana e sistema cultural, a música gera outros tipos de ação social e modos de pensamento, nesse sentido a música é tanto reflexiva quanto gerativa. Nesses estudos, a música figura como um objeto de pesquisa híbrido, ou seja, pertencente à musicologia e à antropologia. Essa natureza híbrida, por sua vez, tem sido apropriada produtivamente pelo campo da etnomusicologia (BLACKING, 2007; SEEGER, 2008). Uma das finalidades dos estudos etnomusicológicos consistiria, pois, em perceber como os sentidos da música são produzidos pelas pessoas. Sentidos estes que estão marcados por uma variedade de situações sociais, e que também são produzidos em diferentes contextos sociais. É importante destacar, assim, que as pessoas têm diferentes percepções da música, bem como da experiência musical. Essas diferentes maneiras pelas quais os símbolos musicais são significados pelas pessoas, por sua vez, assinalam que a música é um fato social. Na antropologia, em particular, entender a música como uma capacidade humana também implica experiencia-la por meio do trabalho de campo. O trabalho do antropólogo começa, pois, por problematizar uma teoria geral da música, porque tal trabalho deve levar em consideração as diferentes maneiras cognitivas e sensoriais pelas quais as pessoas experenciam a música, bem como os sentidos daquilo que elas definem como música. Por isso, como analisa o antropólogo Seeger (2008, p.239), “ uma definição geral de música deve incluir tanto sons quanto seres humanos”, uma vez que a “[m]úsica é um sistema de 1 Tradução livre do original: “The tradition of fieldwork, and a conceptual repertoire derived from deep immersion in local ways of life, has been the source of anthropology's strength”. 18 comunicação que envolve sons estruturados produzidos por membros de uma comunidade que se comunica com outros membros”. Diante disso, um olhar antropológico sobre a música não pode prender-se à produção de análises definitivas da experiência musical. Muito embora tal olhar não desconsidere a importância de se estudar os estilos e os períodos da história da música, por exemplo, tem- se como perspectiva que a música, como sistema cultural e experiência humana, se estende para além de um período particular da história ou das próprias partituras musicais. Há muito tempo a música figura, neste sentido, como objeto do pensamento antropológico. Por não se desvincular da prática antropológica, a música tem sido pensada a partir de diferentes abordagens e passado por variadas reformulações, principalmente nos campos da antropologia/etnografia da música ou sonoridade, pois enquanto recurso conceitual e analítico, a música é um dispositivo central da reflexão antropológica nesses campos de estudo.2 No entanto, ainda permanecem incipientes as pesquisas antropológicas que têm por finalidade o estudo da música eletrônica. São ainda mais incipientes, ou quase inexistentes, os estudos que discutem a relação entre música eletrônica e (homo)sexualidade masculina. Nesse sentido, os poucos estudos que encontrei apenas tangencialmente abordam essa relação (ABREU, 2013; BACAL, 2012; D’ALLEVEDO, 2011; FERREIRA, 2006; FONTANARI, 2013; NEVES, 2010). Ainda assim, esses estudos me forneceram pistas importantes para a elaboração de um projeto de pesquisa sobre música eletrônica que se conecta com os temas da (homo)sexualidade masculina e da espacialidade no contexto de sociabilidade urbana. Ao escolher a música eletrônica como objeto de estudo antropológico, contudo, não possuo a pretensão de discutir os vastos debates que marcam os campos de conhecimento mencionados acima. Nesta dissertação, também não pretendo elaborar uma reconstrução conceitual do conceito de música na antropologia, mas sim descrever a invenção criativa de uma ‘teoria etnográfica da música eletrônica’, a qual, por sua vez, não deve ser confundida com uma ‘teoria nativa’, tampouco com uma ‘teoria científica’. Antes, o objetivo de uma teoria etnográfica consiste em 2 Excertos desta introdução foram originalmente publicados na apresentação do Dossiê “Paisagens sonoras”, organizado por mim e publicado na Revista Equatorial, ver Santana (2016a). 19 elaborar um modelo de compreensão de um objeto social qualquer [...] que, mesmo produzido em e para um contexto particular, seja capaz de funcionar como matriz de inteligibilidade em outros contextos. Nesse sentido, permite superar os conhecidos paradoxos do particular e do geral, mas também os das práticas e normas ou realidades e ideais. Isso porque se trata de deixar de levantar questões abstratas a respeito de estruturas, funções ou mesmo processos, e dirigi-las para os funcionamentos e as práticas [nota suprimida]. [...]. Uma teoria etnográfica procede um pouco à moda do pensamento selvagem: emprega os elementos muito concretos coletados no trabalho de campo e por outros meios a fim de articulá-los em proposições um pouco mais abstratas, capazes de conferir inteligibilidade aos acontecimentos e ao mundo [nota suprimida]. Trata-se, sim, de uma tentativa de elaboração de uma grade de inteligibilidade que permita uma melhor compreensão de nosso próprio sistema político, [cultural e social]. Para isso, recorre-se certamente a acontecimentos muito concretos, mas também a teorias nativas muito perspicazes e a formulações mais abstratas, quando estas podem ser úteis. Finalmente, [...], uma teoria etnográfica ainda possui, creio, uma vantagem suplementar: ajudar a suspender os julgamentos de valor [...]. (GOLDMAN, 2003, p. 460-1). A partir dessa definição, as descrições aqui apresentadas procuram, mais precisamente, discutir os significados particulares que a música adquiriu ao longo do meu trabalho de campo. As experiências etnográficas descritas não se reduzem, portanto, a um problema particular dos campos de conhecimento anteriormente citados. Antes, busco situá- las em um campo mais fluido de produção do conhecimento antropológico. Devo também situar, nesse sentido, que o meu interesse de pesquisar a música eletrônica, inicialmente, foi motivado devido aos primeiros contatos com os estudos antropológicos sobre a relação entre (homo)sexualidade masculina e sociabilidade urbana (HENNING, 2008; GONTIJO, 2009; FRANÇA, 2012; REIS, 2012; RIBEIRO, 2012). Sobre o contexto particular de Recife, os poucos trabalhos que eu conhecia eram realizados, sobretudo, por pesquisadores do campo da psicologia social. Assim, ao tomar contato com o conjunto dessa literatura, percebi que a música eletrônica não era foco de análise. Essa constatação, por sua vez, me provocava uma produtiva inquietação. Foi essa inquietação, pois, que me levou a pensar na possibilidade de desenvolver um projeto de pesquisa sobre a relação entre musicalidade e (homo)sexualidade masculina. Nesse sentido, devido ao fato de ser a sociabilidade homossexual masculina mais marcada em relação à sexualidade, se comparada, por exemplo, a “sociabilidade lésbica”3, o 3 A respeito da sociabilidade urbana entre mulheres “lésbicas”, ver, por exemplo, Oliveira (2014; 2016). 20 circuito comercial de bares e boates GLS4 me pareceria um caminho viável para acionar os meus contatos e localizar o meu trabalho de campo. No que se segue, espero melhor contextualizar o porquê de ter escolhido a música eletrônica como meu objeto de análise. Tratarei, pois, da minha condição situacional e relacional de antropóloga e deejay. Construção do problema de pesquisa Na medida em que busco contextualizar o processo de construção do problema desta pesquisa, eu diria que dois momentos complementares confluíram para a construção deste problema. Trata-se, nesse sentido, de evidenciar a minha condição situacional e relacional de antropóloga e deejay. Condição esta produzida mutuamente. Em 2005 estive pela primeira vez em uma rave5, que aconteceu no interior de São Paulo. Fiquei encantada com a vibração daquela festa, pois, a música era envolvente e parecia, também, contagiar as outras pessoas que ali estavam presentes. Naquela oportunidade, lembro-me de observar cada detalhe: a fila para entrar; a euforia que tomava conta de todos a cada passo que dávamos à entrada do local; os participantes que já estavam concentrados na pista de dança; as performances dos deejays; os funcionários que pareciam se divertir enquanto vendiam fichas, entregavam águas e/ou faziam a segurança do local. Foram mais de 16h de festa. Depois daquela primeira festa, eu participei de muitas outras festas de música eletrônica, que, em sua maioria, eram festas GLS. Além disso, não me identificava com o estilo de música eletrônica presente nas boates voltadas ao público heterossexual, onde o deejay tocava forró e cortava a música de forma brusca, quebrando assim o envolvimento da pista com a música. 4 Trata-se de uma sigla criada nos anos 90 pelo empresário e criador do portal MixBrasil, André Fischer, originalmente cunhada como um objetivo mercadológico de rápida aceitação pelo público do Festival de Filmes sobre Diversidade Sexual MixBrasil. No Brasil, esta sigla designa “gays, lésbicas e simpatizantes”, no entanto, é mais rotineiramente usada para definir espaços, produtos, serviços e locais destinados ao público homossexual. Faço, assim, o uso do termo GLS para me referir ao mercado de consumo, porém esse mercado é consumido pelo público mais amplo que faz parte do movimento LGBT’s (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros), sigla esta reivindicada pelo movimento homossexual, ver França (2007). 5 Sobre raves, ver Abreu (2013). 21 No começo de 2012 fiz o meu primeiro curso de deejay. Já era carnaval em Recife- Olinda. Enquanto as pessoas iam festejar nas ladeiras de Olinda e do Recife Antigo, eu pegava o ônibus em direção ao IMEPE (Instituto de Música Eletrônica de Pernambuco). Era um curso aos sábados e cursei a modalidade escolhida com mais quatro rapazes, pois, o curso individual era três vezes mais caro. Esse curso foi muito importante para mim, uma vez que, além de aprender o básico na arte de remixar6, a vivência musical e os diálogos com os professores e os alunos foram fundamentais para melhor compreender as diferenças entre os diferentes estilos musicais. Assim, fui me identificando ainda mais com o tribal house. Nessa mesma época também me preparava para seleção de mestrado em Turismo7, pois, pretendia estudar o turismo de base local em decorrência de projetos sociais internacionais em que já trabalhava. Porém, não me sentia muito à vontade com essa possibilidade. Ao mesmo tempo, fui me aproximando da antropologia. Assim, no segundo semestre de 2012 tive contato com os textos anteriormente citados. Esses textos, entre outros, foram o ponto de partida para pensar a possibilidade de construir um projeto de pesquisa. Iniciei meus estudos no campo da antropologia interessada em estudar o turismo LGBTs, mais conhecido como turismo gay friendly. Em 2013, já estava cursando aula no mestrado em antropologia da UFPB8 como aluna especial. É importante ressaltar o diálogo que mantive, neste período, com o grupo de pesquisa Guetu - Grupo de Pesquisa em Etnografias Urbanas da UFPB, no qual eu participava semanalmente de suas reuniões e atividades. Durante dois anos fiz várias leituras, participei de congressos e compartilhei troca experiências com pesquisadores de várias redes, que, em sua maioria, atuavam no campo da antropologia urbana e dos estudos sobre gênero e sexualidade. Dando continuidade a experiência precedente, fiz outro curso de deejay em 2013, dessa vez na cidade de São Paulo. Comecei a tocar de forma profissional por São Paulo, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, sempre em festas voltadas ao “mercado GLS”. Nesse sentido, acho oportuno salientar que, para não prejudicar o andamento desta pesquisa, resolvi não tocar em boates da cidade de Recife. Desta forma não me vinculava à imagem 6 Unir duas ou mais músicas no mesmo bpm (batida por minuto). 7 Sou Graduada em Turismo pela FUNEC (2008) e o meu Trabalho de Conclusão de Cursou versa sobre o agronegócio como impulsor para atividade turística no munícipio de Luís Eduardo Magalhães, BA. 8 Neste programa, no segundo semestre de 2013, cursei as disciplinas “Antropologia Urbana” e “Antropologia do Consumo”. 22 de nenhuma boate em específico, o que me possibilitava transitar de maneira mais proveitosa pelas demais boates. Pois, ser deejay de uma boate muitas vezes impede que o mesmo seja visto na boate concorrente, até mesmo enquanto consumidor. No caso de Recife, essa limitação do deejay transitar pelos diferentes espaços de sociabilidade urbana se dá, principalmente, entre a boate Metrópole e a San Sebastian. Já em relação aos bares e as festas privadas essa limitação muitas vezes dilui-se pelas parcerias existentes, sendo comum encontrar um deejay residente da Metrópole tocando no Conchittas Bar ou em festinhas privadas, por exemplo. Diante dessa situação, resolvi continuar minhas atividades de deejay apenas em uma boate, a qual tem filiais em outros estados, como Paraíba e Rio Grande do Norte e em festas privadas. Desta forma, mantinha, mesmo que de modo não muito frequente, o “prestígio” que a profissão poderia me trazer em campo. Se, por um lado, o fato de ser deejay, com inquietações sobre a música eletrônica, me levou a escolher a antropologia e a iniciar uma pesquisa sobre essa temática, por outro lado, a intensificação da pesquisa junto com as obrigações acadêmicas de um mestrado, me fez escolher a dedicação exclusiva à pesquisa, mantendo a profissão de deejay apenas pelos benefícios que esta poderia me proporcionar em campo. O fato de continuar sendo deejay facilitava a constituição das minhas redes de relações, pois, como disse um interlocutor: “ter amiga deejay é um luxo. Entro diva, linda e vip na balada”. Essa relação se estabelecia por meio de trocas: eles contribuíam com minha pesquisa e em troca eu lhes ofereciam regalias a partir do meu trabalho enquanto deejay. Tínhamos assim um contrato moral, em que não tínhamos obrigações legais, mas me sentia na obrigação moral de convidá-los quando eu tocava nas boates. Em datas comemorativas, como aniversários, eu oferecia como presente “ser a deejay da festa” enquanto forma de retribuição à colaboração que recebia em minha pesquisa. No decorrer da pesquisa, fui refinando meu objeto de pesquisa. Assim, ao inter- relacionar música, espacialidade e (homo)sexualidade no contexto de uma sociabilidade urbana, procurei elaborar um recorte que desse conta de articular essas linhas de discussão, pois, tinha a finalidade de analisar como se constituía o circuito de música eletrônica na cidade de Recife entre homens com práticas (homo)sexuais. É importante mencionar que, no processo de construção do recorte dessa pesquisa, devido à maior parte dos estudos que tive acesso ser de contextos como São Paulo e Rio de 23 Janeiro e da minha própria vivência enquanto deejay ter também como pano de fundo a cidade de São Paulo, onde a música eletrônica é fortemente relacionada às grandes influências internacionais (como nas boates: Flexx Club, The Week, Bubu Lounge, Tunnel e Blu Space), e de essas boates terem apenas espaços direcionados ao estilo musical eletrônico de mais influência internacional, busquei inicialmente tratar de música eletrônica focando nesses estilos, a saber, house, tribal, pop music, drag music. Porém, após um ano e meio em contato com interlocutores da cidade de Recife, pude observar que no contexto aqui pesquisado deveria alargar a minha noção de música eletrônica e trabalhar, assim, com as influências locais. Se inicialmente ao selecionar os interlocutores já fazia o recorte de que eles deveriam gostar de música eletrônica, a qual está presente nas principais pistas de boates como Metrópole, San Sebastian e MKB, a partir do momento em que passei a transitar por esses espaços com os interlocutores e a trabalhar de forma mais intensa o meu estranhamento em relação ao tema aqui apresentado, pude perceber as particularidades deste contexto que até então eram invisíveis ao meu olhar já habituado com os espaços de música eletrônica anteriormente citados e por ser uma deejay de um estilo musical com grande influência internacional. Ao ir para a Boate MKB e perceber que a pista de música eletrônica era um lugar de passagem e que a maioria dos frequentadores daquele espaço preferiam o estilo brega, presente em uma das pistas com apresentações de bandas ao vivo, notei que deveria levar em consideração essa cena etnográfica e assim não mais tratar a música eletrônica como atrativo principal ou o atrativo impulsionador para as pessoas frequentarem aqueles espaços. Logo após esse evento, passei a prestar mais atenção nos trânsitos dos interlocutores dentro dos vários ambientes presentes em uma mesma boate, a exemplo dos trânsitos na Boate Metrópole, sendo a pista Bar Brasil bastante apreciada por eles. Assim, ao transitar pelos diferentes espaços de sociabilidade urbana da cidade de Recife, observei que a música eletrônica presente na maioria desses espaços era aquela com grande influência dos estilos musicais como o brega e/ou bagaceiras, como mencionado pelos interlocutores. Organização do trabalho de campo 24 No processo de elaboração da pesquisa a fim de trabalhar com os marcadores sociais da diferença, procurei seguir alguns critérios nas escolhas dos interlocutores a saber: a) homens que se relacionam afetiva e sexualmente com outros homens; b) residentes na cidade de Recife, Pernambuco; c) pertencentes aos diferentes estratos socioeconômicos. Ao estabelecer esses critérios iniciais, buscava diversificar os estilos e identidades acessados. Assim, antes de ingressar no mestrado, já havia iniciado o meu trabalho de campo circulando individualmente pelos diferentes espaços de sociabilidade GLS de Recife, os quais foram previamente mapeados, tais como as boates Metrópole, San Sebastian e MKB; os bares Santo Bar e Nosso Jeito Bar; e as festas privadas organizadas pelo coletivo pernambucano Golarrolê. Para que, assim, com uma rede de relações já consolidada e que atendesse aos critérios de diversidade de estilos a ser acessados, fosse possível circular pelos espaços mapeados, de modo a acompanhar os interlocutores em seus trajetos. O que, por sua vez, daria condições de possibilidade para a viabilização do projeto de pesquisa. Para mapear previamente os espaços acessados, passei a seguir as redes sociais que cada espaço possuía, principalmente o Facebook e o Instagram. O que me permitia acompanhar as suas respectivas programações, bem como a dinâmica que os estruturavam. Assim, ficava sabendo com antecedência sobre as próximas festas e organizava de antemão o trabalho de campo. Saber com antecedência das festas também facilitava que os interlocutores se organizassem financeiramente. Nesse sentido, também usei as redes sociais para manter contato com os interlocutores. Usávamos com regularidade o WhatsApp e o Instagram, principalmente para combinar as nossas idas a esses espaços. Mas não só, pois, também usávamos essas redes para falarmos sobre o nosso cotidiano, ou, ainda, quando eu precisava esclarecer as dúvidas que ficavam sobre os assuntos que havíamos conversado pessoalmente. Isso se dava, sobretudo, quando eu estava escrevendo ou revisando os diários de campo. No entanto, cabe destacar, em todas essas conversas eu explicava sobre as implicações éticas da pesquisa. Assim, muitas daquelas conversas não serão aqui reproduzidas, uma vez que, a pedido dos interlocutores, os comprometeriam. São conversas sobre situações muito pessoais dos interlocutores, as quais foram compartilhadas mais com um “desabafo” do que como um relato para a pesquisa. Com a intenção de descrever o circuito da música eletrônica de forma audiovisual, a partir práticas dos interlocutores e, ao acompanhá-los em seus trajetos-circuitos, solicitei que eles tirassem algumas fotografias e fizessem vídeos, os quais poderiam significar as suas 25 relações com aqueles lugares. Nesse sentido, para Barbosa (2006, p.53) “imagens podem ser utilizadas como meio de acesso a formas de compreensão e interpretação das visões de mundo dos sujeitos e das teias culturais em que eles estão inseridos”. Assim sendo, utilizo o audiovisual em minha pesquisa na mesma perspectiva de Coradini (2014, p.8), na qual “[o] uso da imagem na pesquisa e no ensino em Ciências Humanas, longe de constituir só uma estratégia de captação de dados e ilustração do contexto de pesquisa, tem efeitos na construção conceitual, metodológica e interpretação da realidade social”. Nesse sentido, esta dissertação de mestrado em antropologia consiste em um estudo etnográfico sobre música eletrônica, mas que se conecta com os temas da espacialidade e da (homo)sexualidade masculina. Assim, intenciono descrever as influências mútuas que constituem a relação entre musicalidade, espacialidade e (homo)sexualidade nas experiências de sociabilidade urbana9 de homens com práticas (homo)sexuais que residem na cidade de Recife, capital do estado de Pernambuco, região Nordeste do País. Particularmente situada na confluência entre a antropologia urbana (AGIER, 2011; HANNERZ, 2015) e a antropologia audiovisual (BARBOSA, 2006; CORADINI, 2014), esta dissertação foi estruturada por meio de um denso trabalho de campo que realizei entre 2013 e 2017, o qual se concretizou, por sua vez, a partir de observações participantes em bares, boates GLS e em festas alternativas, bem como de uma rede de contatos pessoais. Antes de adentrar nas discussões de cada capítulo e descrever com detalhes uma variedade de experiências significativas que particularizam o meu trabalho de campo e que circunscrevem o meu objeto de pesquisa, parece-me oportuno, inicialmente, falar sobre como experimentei a natureza do trabalho antropológico. Pois, o modo como construí o meu entendimento do fazer antropológico está marcado pelas minhas experiências em campo. Torna-se demasiadamente difícil, contudo, descrever com precisão a minha caminhada da observação à interpretação, bem como da prática à teoria, cujas nuances intermináveis não são facilmente redutíveis as caracterizações (AGIER, 2015). No entanto, pode, talvez, ser útil, aqui, uma caracterização da minha experiência, ainda que não claramente definida, porque é permeável e difusa. 9 Apesar conhecer as críticas de Marilyn Strathern (1999) sobre o conceito de sociabilidade, que em inglês, como ela ressalta, diz respeito à uma experiência de “comunidade” e de “empatia”, o que, por sua vez, pode ser confundido com uma “sentimentalização” da noção de relacionalidade, acredito que o conceito de sociabilidade permanece válido para a minha pesquisa. Sem reduzir a socialidade à sociabilidade, portanto, me interesso pelo caráter relacional e situacional da sociabilidade. O uso, em particular, de “sociabilidade urbana” procura enfatizar a relação entre sociabilidade, espacialidade e produção de cidade no contexto urbano, ver (FRÚGOLI JR, 2007). 26 Em vários aspectos, como pretendo discutir aqui, o meu trabalho de campo está marcado por um entendimento da prática etnográfica como uma experiência pessoal e um modo muito particular de produção de conhecimento (VELHO, 2013; PEIRANO, 1995). Isso implica dizer que a etnografia também está envolta por uma estrutura narrativa, que, enquanto um estilo etnográfico, expressa à minha maneira de descrever o trabalho de campo (BEATTY, 2010; BRUNER, 1986; MALUF, 1999). Por isso, concentrando-me no meu trabalho de campo, posso dizer, com efeito, que os afetos que experimentei ao longo da pesquisa também constituem o meu objeto de análise (AUGÉ, 2010). É possível, ainda, dizer que a moralidade constitui outro componente claramente demarcável (GEERTZ, 2001). Em virtude disto, não seria possível separar problemas morais e questões éticas (FASSIN, 2015). Mais especificamente, é, pois, a partir dessas três maneiras de experimentar o trabalho de campo, e, naturalmente, com ênfases diferentes, que procuro descrever o que se segue (OLIVEIRA, 2016). Imersão e trabalho de campo Nas minhas primeiras incursões em campo, nos anos de 2013 e 2014, tentava compreender a dinâmica local e o lugar da música eletrônica nas festas voltadas ao público LGBT. Ressalto, aqui, a influência dos estilos house, tribal house e eletro house em minha trajetória enquanto deejay e como isso influenciava em minhas observações etnográficas. Acostumada com a dinâmica presente na cidade de São Paulo, com festas de música eletrônica com mais de 10h de duração, algumas chegando a ter 16h de duração (como em algumas festas que fui na Boate The Week) e com a presença de milhares de pessoas, que se entregavam as batidas envolventes da música eletrônica de influência internacional, tive um certo estranhamento ao tocar pela primeira vez em uma festa no Nordeste e passar a acompanhar os interlocutores nas boates em Recife. A bagaceira sempre esteve presente em meu trabalho de campo, porém, eu não a enxergava como parte de minha pesquisa, pois, minha trajetória individual estava fortemente marcada pela minha experiência em São Paulo. Mas depois de muitas releituras do meu material etnográfico, e isso só foi possível a partir de maio de 2015, quando estava na Boate MKB e notei que a pista principal era um local de passagem, as pessoas se divertiam, dançavam, entretanto, o movimento maior era na pista dedicada ao brega, que contava com apresentações de bandas ao vivo [...]. Pensei comigo: “minha pesquisa não está fluindo, que diferença de São Paulo”, mas, nesse momento, notei que, mesmo sem perceber claramente, 27 toda vez que ia a campo na cidade de Recife sempre comparava esta experiência com o contexto paulistano e era necessário me despir e passar a me entregar aos dados que o contexto pernambucano me apresentava. Só assim passei a entender que, para falar de música eletrônica na cidade de Recife, seria necessário incluir os outros estilos, os quais em um primeiro momento pareceriam não ter nada a ver com minha pesquisa, mas, que em um segundo momento se apresentaram como estilos de uma música eletrônica mais local. Não adiantava falar de house e tribal house apenas, se os interlocutores queriam mesmo era falar da bagaceira. [...]. Assim, passei a compreender melhor o lugar das festas e das pistas voltadas a esse estilo musical em Recife (Diário de campo, Recife, agosto de 2015). Estes excertos do meu diário de campo são bastante elucidativos, pois, as experiências descritas acima me provocaram profundamente, por certo, não na mesma medida daquela pela qual provocou os interlocutores, uma vez que cada um se engaja de maneira diferente no cotidiano da prática etnográfica. Assim, ao conferir valor analítico à música bagaceira, foi possível articulá-la ao meu trabalho de campo. Essa articulação, por sua vez, possibilitou a abertura para uma comunicação involuntária entre mim e eles, no sentido conferido à expressão por Favret-Saada (2005). Somente depois de vivenciar essas experiências descentralizadoras e de estabelecer com os interlocutores essa comunicação involuntária, consegui, de fato, visualizar que a música bagaceira e a house music fazem parte de uma mesma complexidade descritiva. Essas experiências me fizerem visualizar também que foi necessário, portanto, ser afetada pela música bagaceira para passar a escutar a house music de outra forma. Com isso, foi preciso, pois, encarar com seriedade a relação dos interlocutores com a música bagaceira. Mas, o que significava ser capaz de levar a sério essa relação? Posso dizer que, em um sentido, significava encarar o trabalho de campo e a etnografia como uma experiência de ser afetada. Em outro sentido, encarar o pensamento nativo como uma prática de sentido (VIVEIROS DE CASTRO, 2002). A intensidade que atravessa esses dois sentidos pode ser entendida, pois, como uma composição (GOLDMAN, 2003; 2008). Se no início do meu trabalho de campo a house music era o objeto a ser estudado, posso dizer, com efeito, que participar das práticas nativas alargou substancialmente a minha perspectiva sobre a música eletrônica. Ao atravessar a experiência etnográfica e ser modificada por ela, fez-se necessário não apenas observar essas práticas nativas, mas, sobretudo, delas participar. 28 Procurei, nesse sentido, fazer da participação nas práticas nativas um instrumento de privilegiado de conhecimento, o que, por sua vez, implicava entender a necessidade de aceitar ser afetada. Mas, como ressalta Favret-Saada (2005, p. 158), “aceitar “participar” e ser afetad[a]10 não tem nada a ver com uma operação de conhecimento por empatia, qualquer que seja o sentido em que se entende esse termo”. Mais, precisamente, gostaria de sugerir que: quando um etnógrafo aceita ser afetado, isso não implica identificar-se com o ponto de vista nativo, nem aproveitar-se da experiência de campo para exercitar seu narcisismo. Aceitar ser afetado supõe, todavia, que se assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois se o projeto de conhecimento for onipresente, não acontece nada. Mas se acontece alguma coisa e se o projeto de conhecimento não se perde em meio a uma aventura, então uma etnografia é possível (FAVRET-SAADA, 2005, p. 160). Trata-se, pois, de aprender a lidar com a imprevisibilidade das condições iniciais do trabalho de campo, as quais são imprevisíveis, devo ressaltar, apenas para o olhar do pesquisador. Nesse sentido, “fatores que tenham um impacto significativo podem parecer mínimos ou obscuros até que esse impacto se faça conhecer” (STRATHERN, 2014, p.439). Com efeito, aprendi que não poderia conhecer já de início todos os fatores que se tornariam relevantes para a minha descrição final. Também não poderia saber previamente todas as análises que seriam relevantes para o entendimento das minhas notas. Restava-me, portanto, entender que o tempo da análise, bem como a remontagem dos fatores iniciais apenas viriam mais tarde. Ao longo da minha pesquisa, procurei encarar o momento etnográfico como um momento de imersão. Um momento de imersão que, decerto, pode ser entendido como uma atividade totalizadora, mas não a única em que me engajava. Trata-se, mais precisamente, de uma atividade total e parcial. A imersão, nesse sentido, “fornece o que muitas vezes não foi procurado”. Assim, “fornece justamente a facilidade, e portanto um método para 10 Por “afetos”, Jeanne Favret-Saada (2005, p. 159) entende “intensidades específicas” as quais nem sempre são significáveis. Mas, como esclarece Marcio Goldman (2005, p. 150), “[n]não se trata de afeto no sentido da emoção que escapa a razão, mas de afeto no sentido do resultado de um processo de afetar, aquém ou além da representação”. 29 “encontrar” o que não foi procurado” (STRATHERN, 2014, p. 347; grifos no original). Logo, na prática etnográfica, a imersão é, em si, um momento de profunda complexidade. Por isso, em detrimento da explicação e da representação, busco privilegiar a descrição como forma de compreender as práticas cotidianas na vida social dos interlocutores. Para tanto, devo deixar claro, desde o início, que, por descrição entendo “o resultado final daquilo que fazemos, e não o começo” (STRATHERN, 2015, p.9). Nesse sentido, a própria atividade de descrição guarda em si um dinamismo que lhe é característico. A escrita, pois, como uma recriação imaginária dos efeitos experimentados em campo, constitui um dos desafios do trabalho de campo, de modo, inclusive, a criar um segundo campo. Esses dois campos, portanto, estão constituídos por uma relação complexa. Tal complexidade, por sua vez, reside no fato de que, apesar de se tocarem parcialmente, esses dois campos, não se sobrepõem um ao outro, ou seja, “cada um deles cria o outro, mas tem também sua própria dinâmica ou trajetória” (Ibid., 2014, p. 346). Na verdade, cada um dos campos parece girar em sua própria órbita. Cada ponto de envolvimento constitui, assim, um reposicionamento ou reordenação de elementos localizados em um campo totalmente separado de atividade e observação, e o sentido de perda ou de incompletude que acompanha isso, a compreensão de que nenhum deles jamais estará em conformidade com o outro, é uma experiência antropológica comum (STRATHERN, 2014, p. 346). Ao passo em que procurava me deslocar entre esses dois campos, percebi que era necessário aprender a habitá-los ao mesmo tempo. Pois, uma vez que o objeto de pesquisa assumia novos sentidos em campo, novas preocupações teóricas emergiam. Muitas vezes, nesse sentido, me encontrava na situação de “recordar as condições teóricas sob as quais a pesquisa foi proposta, e com isso a razão de estar ali, cedendo ao mesmo tempo ao fluxo de eventos e ideias que se apresenta[vam]” (STRATHERN, 2014, p. 346-7). O que, por sua vez, também me conduzia, ao “retornar do campo”, a mudar a ordem das orientações e a rearranjar a escrita dos eventos, das ideias e das narrativas que significavam a experiência de campo. Neste movimento de reorientação e de rearranjo, eu comecei a entender que ser percebida de uma certa maneira, ou seja, como antropóloga e deejay, produziu um modo muito particular de ser vista e percebida em campo pelos interlocutores. Só a partir de um 30 olhar mais atento para o trabalho de campo, entendi que essa percepção não só enquadrava a maneira como era percebida, mas também me posicionava em campo. Portanto, essa percepção faz parte da situação em que ela emerge no trabalho de campo. Encontrar-me posicionada dessa maneira significa, pois, estar em uma situação. Por isso não posso me retirar da situação sem perder de vista a minha posição, já que quem sou e como me posiciono em campo estão atravessados pela percepção individual dos interlocutores e essa percepção inclui formas de relações (STRATHERN, 2006; 2016). Essas percepções sobre a minha condição em campo me levaram, de fato, a refletir de maneira mais sistemática sobre o meu lugar de antropóloga e deejay em campo: por certo, se “[a]s as bases sobre as quais a familiaridade e a distância se assentam são cambiantes” (STRATHERN, 2014, p.133), em que medida eu poderia dizer que estava realizando o meu trabalho de campo “em casa”? Pois, se “em casa” pode significar um recuo infinito, foi o fato de ser deejay que me tornou familiar para os interlocutores? Ser apenas deejay foi o suficiente? Ou, ainda: o fato de ser deejay de eletro house foi relevante? Aqui, talvez, seja oportuna, uma aproximação com as análises de Roy Wagner, particularmente no que diz respeito à relação entre familiaridade e estranhamento. Nesse sentido, diz Wagner (2012, p. 57; grifos no original): Um antropólogo denomina a situação que ele está estudando como “cultura” antes de mais nada para poder compreendê-la em termos familiares, para saber como lidar com sua experiência e controlá-la. Mas também o faz para verificar em que isso afeta sua compreensão da cultura em geral. Quer ele saiba ou não, quer tenha a intenção ou não, seu ato “seguro” de tornar o estranho familiar sempre torna o familiar um pouco estranho. E, quanto mais familiares torna se o estranho, ainda mais estranho parecerá o familiar. Essas colocações não poderiam ser mais esclarecedoras e, portanto, são particularmente instrutivas. Pois, a minha peculiar situação em campo, inicialmente, me levava a supor que desenvolver a pesquisa em um ambiente familiar, por sua vez, resultaria em um entendimento abrangente e sistemático do objeto estudado. No entanto, ao me deslocar entre a teoria e a prática etnográfica, logo percebi que esse entendimento não poderia ignorar o fato de que: 31 As credenciais pessoais do(a) antropólogo(a) não nos dizem se ele(a) está em casa [...]. Mas o que ele(a) afinal escreve diz se há continuidade cultural entre os produtos de seu trabalho e o que as pessoas da sociedade estudada produzem em seus relatos sobre elas mesmas (STRATHERN, 2014, p. 134). Diante disso, à medida que eu usava a noção de house music para melhor definir o meu objeto de pesquisa, essa noção, por sua vez, passou a restringir a minha noção de música eletrônica. Assim, ao trabalhar com um sentido específico de música eletrônica, este tonou- se a “linguagem-comum” através da qual eu falava sobre música eletrônica com os interlocutores e também servia como um norte a partir do qual eu delimitava e orientava os meus trânsitos pelos espaços de sociabilidade circunscritos no circuito comercial de bares e boates GLS. Porém, ao estabelecer uma comunicação involuntária com os interlocutores e me mover entre os campos, passei a entender que: O momento etnográfico é uma relação [...]. [Ele] funciona como exemplo de uma relação que junta o que é entendido (que é analisado no momento da observação) à necessidade de entender (que é observado no momento da análise). [...]. Todo momento etnográfico, que é um momento de conhecimento ou discernimento, denota uma relação entre a imersão e o movimento (STRATHERN, 2014, p. 350). Nesta relação entre a imersão e o movimento, realizar trabalho de campo implica, pois, também estabelecer relações pessoais (AGIER, 2015). Assim, não pode existir conhecimento etnográfico sem relações. A imersão em campo, portanto, também se constitui por relações. Essas relações, por certo, não são desprovidas de intensidades afetivas e muito menos de desconfortos morais. Diferentes situações ao longo do meu trabalho de campo, nesse sentido, colocaram em evidência a importância da moralidade para uma análise mais detida da minha experiência etnográfica. Pois, à medida que os interlocutores explicitavam os seus princípios e as suas práticas avaliativas e justificavam os seus julgamentos sobre o que consideravam apropriado ou inapropriado, eles também me levaram a perceber e a explorar os meus próprios valores morais. Ambos mobilizávamos, desse modo, um sistema de valores. Passei a entender, com isso, que os valores morais devem ser concretizados no encontro entre essas duas maneiras de se posicionar. 32 Nesta linha de argumentação, ao passo em que me tornava reflexivamente consciente de meus próprios valores morais, também procurava refletir sobre o fazer etnográfico que encara com seriedade as práticas morais dos seus interlocutores. Tratava-se de entender, nesse sentido, que, ao explicitar tanto a moralidade dos interlocutores como a minha própria moralidade, os valores morais constituem uma dimensão importante da minha pesquisa, uma vez que, como analisa Didier Fassin (2012, p. 5): Não somos agentes neutros quando lidamos com problemas sociais. Quer reconheçamos ou não, há sempre um posicionamento moral nos objetos que escolhemos, o lugar que ocupamos no campo, a maneira como interpretamos fatos, a forma de escrita que elaboramos11. Por isso, ao analisar as práticas cotidianas dos interlocutores, estou me referindo, nesse sentido, a um conjunto de valores. Estes valores, por um lado, são epistemológicos; por outro, são morais. Trata-se, portanto, de duas categorias de valores heterogêneos. Implícita ou explicitamente, esses valores morais e epistemológicos constituem, simultaneamente, as aspirações teóricas e metodológicas do meu fazer etnográfico. O que não significa, contudo, que esses valores sejam sempre compatíveis e não possam ser contraditórios. Para Fassin, no entanto, existe um desconforto antropológico com a moral. Ele analisa, nesse sentido, que, se por um lado, a moral ainda não figura como um objeto legítimo na antropologia; por outro, as inquietações com a moral na antropologia têm crescido. Ao insistir no valor teórico e metodológico desse desconforto antropológico12, Fassin discute as ambiguidades, semânticas, epistemológicas e históricas, que a moral suscita entre os antropólogos. Devo ressaltar, entretanto, que Fassin não se refere à moral apenas como um 11 Tradução livre do original: “We are not neutral agents when we deal with social problems. Whether we recognize it or not, there is always a moral positioning in the objects we choose, the place we occupy in the field, the way we interpret facts, the form of writing we elaborate”. 12 Esta insistência parte do seguinte pressuposto: “desde Coming of Age de Mead à Race et Histoire de Lévi- Strauss até a antropologia pública recente, a disciplina tem sido constantemente envolvida na produção de avaliações e afirmações que associam conhecimentos teóricos e achados empíricos com preocupações sobre julgar condutas, reformar a sociedade e melhorar a condição humana - mesmo quando essas posturas normativas não estavam explicitamente formuladas” (FASSIN, 2012, p. 2). Tradução livre do original: “since from Mead’s Coming of Age to Lévi-Strauss’s Race et Histoire, to recent public anthropology, the discipline has constantly been involved in producing assessments and assertions which associate theoretical knowledge and empirical findings with concerns about judging conducts, reforming society, and improving the human condition – even when these normative postures were not explicitly formulated”. 33 conjunto de normas e valores, mas, principalmente, como princípios e práticas avaliativas e, sobretudo, como julgamentos entre o bem e o mal. Ao partir desta perspectiva de análise, Fassin (2008, p. 334-5) defende, portanto, [u]ma antropologia que tem a moral para seu objetivo - em outras palavras, que explora como as sociedades encontraram, ideológica e emocionalmente, sua distinção cultural entre o bem e o mal e como os agentes sociais concretizam essa separação em sua vida cotidiana. [...]. [Desta forma], uma antropologia moral não propõe um código de boa conduta ou um guia para uma sociedade melhor. Ajuda a compreender os princípios e práticas avaliativas que operam no mundo social, os debates que suscitam, os processos através dos quais se implementam, as justificativas que se dão para dar conta das discrepâncias observadas entre o que deve ser e o que é realmente13. Esta perspectiva de análise não sugere, contudo, que a antropologia deva fazer o bem e os antropólogos se tornem moralistas14. A proposta de Fassin consiste, mais precisamente, em tornar explícitas e inteligíveis as condições da possibilidade de uma antropologia que evidencie o fator moral como constitutivo do trabalho de campo. Deste modo, na medida em que torno explícitos e inteligíveis os valores morais que são mobilizados em campo, também procuro evidenciar o valor teórico e metodológico da moral para a antropologia, pois, na esteira de Stoczkowski (2008, p. 353) entendo que: Os valores morais estão conosco desde o início de nossa disciplina, quer os aceitemos ou não; mesmo aqueles que se esforçam para uma pesquisa livre de moral estão de fato fazendo uma decisão moral. Assim, não nos é oferecida a escolha entre uma antropologia moralmente carregada e uma 13 Tradução livre do original: “an anthropology which has morals for its object – in other words, which explores how societies ideologically and emotionally found their cultural distinction between good and evil, and how social agents concretely work out this separation in their everyday life. […], a moral anthropology does not propose a code of good conduct or a guide towards a better society. It helps understand the evaluative principles and practices operating in the social world, the debates they arouse, the processes through which they become implemented, the justifications that are given to account for discrepancies observed between what should be and what is actually”. 14 Fassin acrescenta (2008, p. 334-5), nesse sentido, que “[u]ma antropologia médica não cura - está interessada no conhecimento local e na prática sobre a doença. Uma antropologia religiosa não faz proselitismo - mesmo que os pesquisadores às vezes se convertam à doutrina ou à mística que eles estudam. Uma antropologia política não diz para quem votar - embora alguns possam deixar seu público saber qual é sua preferência”. Tradução livre do original: “A medical anthropology does not cure – it is interested in local knowledge and practice about illness. A religious anthropology does not proselytize – even if researchers sometimes get converted to the doctrine or mystique they study. A political anthropology does not tell whom to vote for – although some might let their audience know where their preference lies”. 34 antropologia livre de moral. Ao decidir enfrentar serenamente o inevitável fator moral, para transformá-lo em uma ferramenta heurística, não traímos o propósito epistemológico da investigação antropológica, cuja primeira tarefa é produzir conhecimento. Pelo contrário, só então o assumimos plenamente15. Mas dentro de um contexto particular, ressalta Jarrett Zigon (2010), em diálogo com Fassin e Stoczkowski (2008), não se pode entender nem a moralidade nem a ética como um conceito total e unificado, já que, do ponto de vista antropológico, moralidade ou ética só se caracteriza como um conceito total e unificado a partir da combinação entre os vários aspectos que constituem o mundo social, como, por exemplo, a articulação entre as instituições, os discursos e as pessoas. Nesse sentido, a perspectiva antropológica de Zigon (2010, p. 5) nega o pressuposto científico filosófico e social comum de que uma totalidade moral - em termos universalistas ou relativistas - existe em qualquer lugar do mundo, e antes vê todos os contextos sociais particulares definidos não por uma moralidade e sua ética, mas sim por uma montagem moral e ética local única, constituída [por] vários aspectos (...). Assim, se se pode dizer que há qualquer moralidade e práticas éticas que caracterizam qualquer contexto social particular, então eles são uma combinação aspectual única de vários discursos morais institucionais, públicos e pessoais e práticas éticas16. Com efeito, à medida que encarava os valores morais enquanto um componente analítico central para o entendimento do meu trabalho de campo, logo percebi que também não poderia perder de vista a relação entre moralidade e ética. Para tanto, fez-se necessário tentar não cair na armadilha do reducionismo metodológico e isolar a moralidade e a ética 15 Tradução livre do original: moral values have been with us from the very beginning of our discipline, whether we accept it or not; even those who strive for a moral-free research are in fact making a moral decision. Thus, we are not offered a choice between a moral-laden and a moral-free anthropology. When deciding to serenely face the inescapable moral factor, so as to transform it into a heuristic tool, we do not betray the epistemological purpose of anthropological inquiry, the first task of which is to produce knowledge. On the contrary, only then do we assume it fully. 16 Tradução livre do original: (…) denies the common philosophical and social scientific assumption that a moral totality – in either universalist or relativist terms – exists anywhere in the world, and rather sees all particular social contexts defined not by one morality and its ethics, but rather by a unique local moral and ethical assemblage constituted by the various aspects (…). Thus, if there can be said to be any morality and ethical practices that characterize any particular social context, then they are a unique aspectual combination of various institutional, public, and personal moral discourses and ethical practices. 35 na ação dos interlocutores17. Ao contrário, tornou-se importante perceber que os problemas morais e as questões éticas também interagem com valores, princípios e virtudes. Por isso, seguindo o caminho explorado por Fassin (2015, p. 205), em alguns aspectos, entendo que “os reinos moral e ético não são puros - e só podem ser purificados artificialmente”18. Como disse anteriormente, no decorre do trabalho de campo me deparei com diferentes situações em que me sentia provocada a apresentar um posicionamento moral em relação à fala do interlocutor ou era convidada a fazê-lo. Entre as várias situações, convém destacar os meus contatos iniciais com Richard (40 anos, branco, gerente executivo), um interlocutor em potencial no momento inicial da pesquisa. Já em nossa primeira conversa sobre a possibilidade de sua participação como interlocutor da pesquisa, Richard se mostrava abertamente reticente em participar, pois, em seu modo de ver, ele não se adequava às minhas expectativas, já que ele “fugia dos estereótipos”. Um pouco insatisfeita com sua resposta, no entanto, resolvi perguntar-lhe o porquê de tal declaração. Richard disse que não circulava pelos bares, pelas boates e pelas festas sobre as quais conversávamos. Por ser casado, ele preferia o conforto do lar e se considerava uma pessoa muito reservada. Não fosse o suficiente, Richard disse ainda que não gostava de se “misturar” com as pessoas que circulam pelos lugares mencionados acima. Dessa vez, foi mais preciso em sua resposta: Richard - Eu nunca fui à MKB. Mas sei que lá só dá traveco, garoto de programa e cafuçus, aqueles viados da periferia; a Metrópole também anda muito desvalorizada. Lá tem muita bicha afeminada e periférica. Já foi boa, mas hoje já é não tão bem frequentada. Chiara - E quais os lugares que você frequenta? R - Prefiro a casa de amigos. Mas também saio muito com meu marido para bons restaurantes. Viajamos com frequência também. C- E por que esses lugares pelos quais vocês circulam são bem frequentados? R - Porque não são guetos. Não gostamos de lugares GLS. Somos um casal de gays discretos, então circulamos tranquilamente por qualquer lugar na cidade. Também não trocamos carinhos em público, porque somos 17 Não será meu objetivo, aqui, esgotar a discussão sobre moral/moralidade e ética no campo da antropologia, por isso, sugiro consultar, por exemplo, Didier Fassin (2012) e Michael Lambek et all (2015). 18 Tradução livre do original: “that the moral and ethical realms are not pure—and can only be purified artificially.” 36 reservados e todos os nossos amigos gays também são assim (Diário de campo, Recife, junho de 2015). Ainda pouco convencida da resposta de Richard, resolvi não insistir, já que ele havia deixado explícito o seu posicionamento. A conversa com ele, decerto, me inquietou profundamente. Outra vez, aqui, precisei ser capaz de entender que o tempo da análise viria depois. Com o passar do tempo, depois reler as notas escritas em meus diários de campo, percebi que falas como as de Richard também foram compartilhadas pelos demais interlocutores. O conjunto dessas falas me conduziu a tentar ser capaz de levar a sério as práticas e os discursos nativos. O que não significava, contudo, uma concordância com tais práticas e discursos, mas sim entender os limites e as potencialidade que esses fatores possuíam para a prática etnográfica e o meu modo de pensar. Tratava-se sobretudo de entender que: Os discursos e práticas nativos devem servir, fundamentalmente, para desestabilizar nosso pensamento (e, eventualmente, também nossos sentimentos). Desestabilização que incide sobre nossas formas dominantes de pensar, permitindo, ao mesmo tempo, novas conexões com as forças minoritárias que pululam em nós mesmos (GOLDMAN, 2008, p. 7). Nesse sentido, como analisa Fassin (2008), cada interlocutor deve ser entendido enquanto uma subjetividade moral, assim os valores e os afetos por eles compartilhados dizem muito sobre os dilemas éticos que eles enfrentam no cotidiano de suas vidas. Ao reforçarem, contestarem ou deslocarem o fator moral de uma dada situação, eles elaboram um problema para a análise aqui proposta: a abertura para a palavra nativa. Diante disso, também me parece oportuno colocar em relevo as ressalvas de Marilyn Strathern a respeito da qualidade da relação na prática de produção etnográfica- antropológica. Trata-se, nesse sentido, de entender que devemos fazer mais do que apenas nos preocupar com “vozes” e “falantes”, ou com a cumplicidade com os ditos informantes. São pontos bastante críticos não só até que ponto se permite que os atores falem, a abertura com que os diálogos originais são reproduzidos ou a restituição de sua subjetividade por meio do dispositivo narrativo, mas também de que tipo de atores se trata. Precisamos ter alguma ideia da atividade produtiva que 37 está por trás do que as pessoas dizem, e portanto da própria relação entre elas e o que foi dito. Sem saber como suas próprias palavras lhes “pertencem”, não podemos saber o que fazemos ao nos apropriar delas (STRATHERN, 2014, p. 137). Organização dos capítulos Para melhor situar as descrições que serão dispostas ao longo dos capítulos, optei por dividir a dissertação em três partes complementares, as quais, por sua vez, estão estruturadas por diferentes capítulos. A primeira parte está estruturada por um capítulo no qual eu situo as curvas de vida, os projetos e os campos de possibilidades dos interlocutores. A partir de suas narrativas e experiências geracionais, discuto os limites e a rentabilidade da noção de “armário”, para pensar, mais especificamente, a noção de “regimes de visibilidade”. Trata- se de um esforço analítico importante, pois, permite-me situar as “identidades sexuais” dos interlocutores em condições sociais e históricas específicas. Com isso, tornou-se possível perceber a relação desses indivíduos com os espaços de sociabilidade urbana na cidade de Recife. A segunda parte está estruturada por dois capítulos que se complementam. O capítulo primeiro procura localizar na paisagem urbana de Recife os espaços de sociabilidade pelos quais os interlocutores circulam, particularmente pelos bares e pelas boates. Descrevo, nesse sentido, não apenas os trajetos dos interlocutores, mas também os meus. Assim, busco mostrar as interações entre os interlocutores e a maneira como interagi com eles. Fundamentalmente, sublinho o modo como eles produzem a cidade de Recife. O segundo capítulo, por sua vez, foca na descrição das festas as quais possibilitam outra configuração paisagística da cidade e da sociabilidade dos interlocutores. A terceira parte, por fim, centra sua análise na música eletrônica tanto a house music, e suas diversas vertentes, quanto na música eletrônica bagaceira. Estruturada em um capítulo, esta parte mostra a relação metafórica que se estabelece entre esses dois estilos musicais. Importante para essa análise será descrever a relação que os interlocutores estabelecem com essas músicas e, ao mesmo tempo, como eles produzem seus sentidos. 38 Nas considerações, retomo, portanto, os caminhos sinuosos e por vezes conflitantes do fazer etnográfico, particularmente os efeitos etnográficos que particularizam a minha travessia antropológica. 39 PARTE I – OS INTERLOCUTORES 40 CAPÍTULO 1 - Curvas de vida, projetos e campos de possibilidades “Não se nasce homossexual, aprende a sê-lo”. (Michel Pollak, 1986, p. 58) Neste capítulo19, procuro analisar como os interlocutores20, a partir das suas disposições morais e afetivas, bem como de suas experiências geracionais, vivenciam suas experiências (homo)sexuais em espaços de sociabilidade urbana da cidade de Recife. Para tanto, apresento as trajetórias individuais dos interlocutores, com o intuito de perceber como esses indivíduos conferem significados às suas experiências (homo)sexuais. Com isso, busco ressaltar ainda como essas experiências são organizadas em suas curvas de vida, projetos e campos de possibilidades. Nesse sentido, as noções de projeto e de campo de possibilidades permitem perceber a relação entre agência e estrutura, de modo a evitar um “voluntarismo individualista agnóstico ou um determinismo sociocultural rígido” (VELHO, 2003, p. 40), uma vez que estas noções possibilitam entender as relações entre trajetórias individuais e os processos sócio-históricos sem, contudo, esvaziar essas trajetórias individuais das suas dimensões socioculturais. Pois, entendo que os interlocutores não são produtos de condicionamentos e de determinações sociais, portanto, eles não agem de modo inerte. Pelo contrário, os interlocutores agem por meio de ações sociais e a partir dessas ações reinterpretam contextos variados e os modificam. Contudo, também entendo que essas ações são limitadas por um quadro sócio- histórico, ou seja, por um campo de possibilidade circunscrito a partir do qual os 19 Uma versão inicial deste capítulo foi originalmente escrita como trabalho de conclusão da disciplina “Antropologia das Relações de Gênero e Sexualidade” ministrada pela Profa. Dra. Elisete Schwade no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em 2015. Agradeço as leituras iniciais da referida professora. Em 2016, apresentei a segunda versão deste texto no Grupo de Trabalho “Marcadores sociais em diálogo: gênero, sexualidade, idade/geração e o curso da vida” coordenado por Raphael Bispo (UFJF) e Gustavo Saggese (FCMSCSP) da 30ª Reunião Brasileira de Antropologia (RBA), realizada na cidade de João Pessoa, Paraíba, Brasil, entre os dias 03 e 06 de agosto de 2017. Agradeço as leituras iniciais dos coordenadores do referido GT e do Prof. Carlos Eduardo Henning, que comentou o texto. 20 A fim de preservar a identidade dos interlocutores, optei por utilizar nomes fictícios. 41 interlocutores fazem escolha e formam suas curvas de vidas. Deste modo, a noção de projeto designa uma conduta organizada para alcançar um objetivo e implica um agente que faz escolhas, organiza e projeta caminhos. A noção de campo de possibilidade, por sua vez, institui o espaço no qual o agente pode formular e implementar seus projetos individuais e coletivos. Assim, ao organizar os seus projetos individuais e coletivos os interlocutores conformam suas curvas de vida singulares. Nesse sentido, uma curva de vida se constitui pelas opções, negociações e disputas que são exploradas ou negadas pelos indivíduos a partir do campo de possibilidades em que estes estão situados. Nesta definição, a conformação de uma de curva de vida implica, portanto, um processo tenso e conflitual de definição e negociação da realidade, o qual se institui através dos custos morais e afetivos experimentados pelos indivíduos (KOURY; BARBOSA, 2015; BARBOSA JÚNIOR, 2015; OLIVEIRA, 2016). Neste capítulo, também procuro colocar em relevo as narrativas dos interlocutores. Na esteira de Sônia Maluf (1999, p. 69), tomo a narrativa “como forma de interpretação da experiência individual e coletiva e como veículo de sentido”. Nesse sentido, a narrativa se caracteriza tanto pela dimensão subjetiva e pessoal como pela dimensão da fala da experiência e de seus sentidos sociais. Na confluência entre essas duas dimensões, descrevo as experiências dos interlocutores e os sentidos que eles oferecem a essas experiências. Pois, a forma dos interlocutores falarem sobre as suas trajetórias individuais, bem como de partilhar suas experiências e de encontrar nelas sentido, por um lado, evidenciam a ampliação dos limites dos seus campos de autonomia em uma sociabilidade dada; por outro, assinalam como eles negociam as suas experiências (homo)sexuais em um regime de visibilidade circunscrito socioculturalmente. As experiências geracionais dos interlocutores, por sua vez, serão analisadas a partir do compartilhamento por códigos de significados particulares, de modo que busco entender quais os sentidos que esses indivíduos atribuem ao lugar que a sexualidade possui na conformação das suas trajetórias individuais. Nesse sentido, como sugere Michel Pollak (1990, p. 31): [o] conceito de geração designa uma mesma classe de idade formada nos mesmos acontecimentos, dividindo uma concepção semelhante do mundo e criando-se a partir de atitudes mais ou menos idênticas pelas quais ela se distingue de gerações mais velhas e daquelas que vêm depois dela [nota 42 suprimida]. As diferentes formas de falar da homossexualidade ilustram a passagem de uma geração à outra. Trata-se, assim, de evidenciar a travessia do particular para os processos mais amplos de mudança social, preocupando-me, particularmente, em sublinhar os vínculos entre experiências subjetivas e realidade objetiva. 1.1 Identidades Sexuais Ao analisarem as principais perspectivas teóricas relacionadas à homossexualidade, John Hart e Daine Richardson (1983) sugerem que deve ser estabelecida uma distinção entre atos homossexuais, estilos homossexuais e identidades homossexuais. A necessidade analítica dessa distinção emerge, principalmente, a partir do surgimento dos movimentos homossexuais e movimentos feministas mais recentes, os quais proporcionaram uma ampliação das perspectivas estabelecidas sobre a homossexualidade. Com o surgimento desses movimentos, a homossexualidade deixa de ser definida apenas em termos de atos sexuais e passa a ser encarada também como escolha pessoal de uma identidade e estilos de vida particulares. Além dessa distinção, Richardson (1983) destaca que existe ainda uma predominante confusão na literatura especializada entre a identidade sexual, a orientação no que diz respeito ao papel sexual e à orientação sexual. Há ainda, nas explicações etiológicas da homossexualidade, uma dicotomia frequente entre os modelos biológicos e sociais de homossexualidade21. Em sua análise, contudo, trata-se de uma falsa dicotomia, já que a homossexualidade se caracterizaria por um complexo processo de influência mútua entre fatores biológicos e influências sociais. A autora passeia, nesse sentido, por várias perspectivas teóricas sobre a homossexualidade, indo desde as teorias genéticas, passando pelos modelos psicanalíticos, até chegar a perspectiva social interacionista. Sem essencializar a dicotomia mencionada acima, ao ressaltar o elemento da escolha de identidade, Richardson sugere que temos que 21 Um oportuno debate a respeito dos modelos biológicos e sociais de homossexualidade, a partir de uma leitura antropológica, pode ser encontrado em Fry e Carrara (2016). 43 analisar os sentidos individuais e sociais que os indivíduos atribuem aos seus comportamentos, aos seus atos e às suas identidades homossexuais. Pois, tal proposta de análise ampliaria a síntese das diferentes perspectivas sobre a homossexualidade e ofereceria um modelo alternativo para o entendimento tanto do desenvolvimento quanto da manutenção de uma identidade homossexual. Hart e Richardson (1983) analisam ainda as implicações terapêuticas dos quadros conceituais que caracterizam as várias perspectivas sobre a homossexualidade. Tal análise se faz necessária dado que o modo como essas perspectivas conceituam a homossexualidade orienta a prática terapêutica. Além disso, torna-se importante tanto para a maneira como uma pessoa homossexual vê a si mesma quanto para a maneira como a sociedade encara essa pessoa. Nesse sentido, tais implicações estão fundamentadas no fato de que ainda existe um profundo interesse nas possibilidades de “cura” e “tratamento” de uma pessoa que se sinta aflita por se identificar como homossexual. Mas “curiosamente”, eles destacam, essas estratégias de “tratamento” não costumam ter muito êxito. No entanto, apesar da baixa eficácia, os autores (1983, p. 9) ressaltam que, [u]ma vez que a homossexualidade é tão frequentemente conceituada como patológica num sentido moral ou clínico, talvez não surpreenda que os próprios homossexuais tenham introjetado tais conceitos e que a demanda de tratamento continue a existir. Nesse sentido, ao analisar como os profissionais encaram a homossexualidade, Hart (1983, p. 57-95) assinala o efeito das práticas profissionais sobre a homossexualidade nos indivíduos com práticas (homo)sexuais. Em sua análise, o autor (p. 60) ainda “enfatiza o modo como as explicações/teorias/rótulos podem ser introjetados pelos indivíduos, mesmo quando são intensamente prejudiciais”. Ao insistir no aspecto socialmente produzido da “homossexualidade”, entendo que as “orientações sexuais constituem práticas de desejo, constituídas nos exercícios do sexo e dos afetos” (SOUZA FILHO, 2009, p. 67). Mas esse entendimento pressupõe uma dessubstancialização e uma desnaturalização do significante “orientação sexual”. Nesse 44 sentido, como sugere Alípio de Souza Filho (2009, p. 61), em sua crítica à essencialização do conceito de “orientação sexual22” conceber que há “fatores específicos” na “gênese” da homossexualidade é considerá-la em termos não de uma prática social (do erotismo, da sexualidade), mas como uma substância (psicológica, biológica ou outra) que certos indivíduos seriam portadores. Na tentativa de não sucumbir à ilusão essencialista e naturalizada da “orientação sexual”, muito ao contrário, procuro destacar a necessidade analítica e política de um uso crítico desse conceito. O que, por sua vez, implica entender as orientações sexuais como escolhas do erotismo, da sensualidade, do desejo, sempre subjetivas e singulares, nem estáveis nem absolutas, e, portanto, que podem ser traduzidas como eleições, opções, preferências do desejo individual. A orientação sexual é uma prática no sentido também que cada um, exercitando-se, experienciando, constrói, menos ou mais conscientemente, sua vida erótica, seu regime de prazeres (SOUZA FILHO, 2009, p. 65). Com isso, não procuro encarar a homossexualidade como uma identidade sexual “inata”. Antes, pretendo encará-la como escolhida. Nesse sentido, não tenho a pretensão de explicar o que a homossexualidade é. Pois, como analisam Fry e MacRae (1991, p.7 [1983]), uma suposta explicação conservaria a pressuposição de que a homossexualidade possui um sentido estrito. Diante disso, o problema residiria no fato de que a homossexualidade possui uma infinita variação de sentidos. Neste capítulo, procuro entender, portanto, o processo de construção das identidades sexuais dos interlocutores a partir das suas vidas cotidianas, ou seja, não se trata de entender a homossexualidade como uma “essência” ou uma “natureza”, mas sim como um estilo de vida que implica liberdade individual de escolha e processos de individualidade23. Dito de outro modo, implica 22 Por “orientação sexual”, entendo “o que uma pessoa acabou gostando em matéria de parceiros sexuais. Uns acabam gostando de pessoas do mesmo sexo, outros de pessoas do sexo oposto, outros de ambos, e, quem sabe, outros de ninguém, ou de outras coisas” (FRY apud CÂMARA, 2002, p. 102). 23 Na esteira de Mauro Koury (2014, p. 53-4), a partir de sua leitura de Georg Simmel, entendo que “[a] questão dos estilos de vida está relacionada à questão do processo de individualidade na sociedade. Simmel discute essa questão através do conceito de liberdade individual advinda com o desenvolvimento social na expansão do sistema capitalista a partir do século XIX, e indica, sobretudo, a cidade e a realidade urbana como lócus específico dessa liberdade. 45 assumir – por decidida decisão política – que não somos (héteros, homos ou trans) obras da natureza biofisiopsicológica ou obras da divina providência, mas agentes de escolhas nas quais estamos ética e politicamente implicados e pelo próprio usufruto de nossa liberdade – pela qual, igualmente, podemos nos oferecer um estilo de vida, modos de ser, refundando-nos, recriando-nos (SOUZA FILHO, 2008, p. 75). Nesse sentido, parto do pressuposto analítico de que: Desejos homossexuais são socialmente produzidos como são também produzidos desejos heterossexuais. [...] um, ou outro ou ambos têm o mesmíssimo valor e devem ser vistos com a mesma perplexidade normalmente apenas reservada para a homossexualidade (FRY; MACRAE, 1991 [1983], p. 16). Ao encarar os desejos homossexuais e os desejos heterossexuais como socialmente produzidos, procuro me distanciar analiticamente da noção de “natureza” ou de uma “essência” da homossexualidade, ou seja, de uma cristalização da categoria “homossexual”. No entanto, esta adoção teórica não implica uma recusa da relevância da “identidade homossexual” para a reivindicação de direitos relacionados à sexualidade, mas apenas um alinhamento a uma postura relacional da “identidade homossexual” (FRY, 1982; MACRAE, 1987). Entender a sexualidade como uma construção social que se constitui culturalmente delimitada, no entanto, não significa perceber os processos pelos quais as identidades sexuais A liberdade individual, tão bem tratada por Simmel em seus ensaios, é trabalhada socialmente associada aos vínculos interacionais entre indivíduos. É na interação entre indivíduos sociais que essa liberdade se faz presente, compondo o que ele chamou de cultura subjetiva em uma realidade urbana. Essa cultura subjetiva, formada na troca interacional entre indivíduos possuidores de um quantum de liberdade, permite o aumento da diferenciação entre cada um deles e nos grupos e arranjos sociais por eles organizados, complexificando a relação e a vida na cidade. O conceito de diferenciação, desse modo, em Simmel, está ligado ao conceito de individualidade que, por sua vez, satisfaz a uma complexificação e desenvolvimento da cultura subjetiva no lócus urbano onde se realiza. Esse jogo entre liberdades em relação não se satisfaz em um quadro puramente harmônico, antes pelo contrário, o processo de constituição de uma cultura subjetiva se vale da diferenciação individual predisposta pela liberdade vivenciada pelas pessoas em troca, e se aliança em formatos conflituais mais ou menos estáveis, compondo grupos, classes, instituições, estilos e modos de vida, como cultura objetiva. A cultura objetiva, portanto, se apresenta socialmente como resultado das trocas subjetivas dos indivíduos em um jogo interacional, compondo interesses e divergências, tendências, estilos e modos de viver. O que amplia e complexifica ainda mais o processo de individualidade, produzindo um aumento e um crescimento da cultura subjetiva, e objetivando-se em uma sequência de produção objetiva da cultura e dos modos de viver social. A diferenciação, se, de um lado, produz encontros e novas formas de inserção individual no urbano, de outro, faz brotar focos de divergência e conflito que estimulam uma maior diferenciação e novos olhares sobre si mesmo e os outros”. 46 são elaboradas como marcas sociais estáticas, mas sim como um quadro de negociações cotidianas. Nos rastros de Heilborn (1996, p. 137) entendo que: aos sujeitos na modernidade é dado um campo de possibilidades no qual suas escolhas se limitam e se atualizam sobretudo num universo em que, fruto de sua própria ideologia, aposta-se da ideia da opção, impelindo os sujeitos a assim reagirem. Nesse sentido, ainda que os interlocutores procurem localizar a origem dos seus desejos em uma experiência precoce, na tentativa de justificar a “causa” da sua “homossexualidade”. Na análise aqui elencada, contudo, procuro entender as suas preferências e relações afetivas e eróticas como socialmente construídas no curso da vida24, uma vez que: O uso rotineiro de termos como homossexualidade e homossexual, numa multiplicidade de contextos científicos e leigos, expressa a crença largamente adotada, talvez quase universal, de sabemos o que essas palavras nos instruem estudar e pensar [...] os atos de uso e explicação são atos de controle social, no sentido forte, de que “homossexual” e “homossexualidade” são nomes que foram impostos a algumas pessoas e à conduta delas por outras pessoas, e de que essa imposição trouxe consigo o direito de estas últimas dizerem as primeiras a origem, o significado e a virtude da conduta delas (GAGNON, 2006, p. 168-176). Busco sugerir, portanto, uma análise mais ampla das experiências subjetivas dos interlocutores, na medida em que procuro marcar a complexidade dos processos sociais, culturais e históricos que circunscrevem a construção cotidiana das suas identidades sexuais (PARKER, 1991; 2002). Deste modo, entendo as identidades sexuais desses indivíduos como socialmente atribuídas e circunstancialmente apropriadas, ou seja, como possibilidades de fissuras e não como experiências sexuais imutáveis (PERLONGHER, 2008 [1987]; 2005; GUIMARÃES, 2004). No entanto, analisar como os interlocutores negociam as suas experiências (homo)sexuais, em um regime de visibilidade sexual circunscrito socioculturalmente, não 24 Por “curso da vida”, entendo que “em vez de pressupor as tarefas e questões que todos devemos enfrentar ao longo da existência, numa sequência de desenvolvimento, trata-se de reconhecer que qualquer ponto da trajetória de vida precisa ser analisado de uma perspectiva dinâmica, como consequência de experiências passadas e expectativas futuras, e de uma integração entre os motivos pessoais e os limites do contexto social e cultural correspondente” (SIMÕES, 2004b, p. 90). 47 implica uma delimitação de suas identidades sexuais, mas sim assinala para a forma como esses indivíduos negociam a visibilidade das suas preferências eróticas e afetivas. 1.2 Visibilidade Sexual Na análise do antropólogo Miguel Vale de Almeida (2010, p. 14): O “armário” é a mais conhecida metáfora dos problemas subjetivos, sociais e políticos da homossexualidade enquanto categoria de identidade e de discriminação. “Estar no armário” significa não ter assumido perante os outros a sua orientação sexual; “sair do armário” significa fazê-lo e assim estabelecer um ritual performativo que simultaneamente reinstitui o sujeito enquanto homossexual e obriga o entorno social a reconhecer a existência de (mais) um ou uma homossexual. O “armário”, ou “segredo aberto”, nesse sentido, se constitui como um dispositivo de regulação da vida de indivíduos com práticas (homo)sexuais, uma vez que esse regime de visibilidade, com suas regras morais, institui formas e limites aos modos como os indivíduos podem desejar ter prazer nas suas relações erótico-sexuais, como analisa Sedgwick (2007). Esta definição analítica do “armário” como um dispositivo, por sua vez, tem por alicerce conceitual a análise proposta por Michel Foucault, que define a sexualidade como um dispositivo histórico do poder constituído em modos de regulação da vida social e individual. Como analisa Foucault (1988), a sexualidade se constituiu historicamente como um dispositivo de produção de subjetividades. O dispositivo da sexualidade, nesse sentido, produz prescrição de normas sociais que incisam os processos de constituição de subjetividades e das identidades sexuais. Em sua definição conceitual (FOUCAULT, 2012, p. 364), o dispositivo da sexualidade procura demarcar [...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes termos. 48 O dispositivo da sexualidade possibilita realçar, segundo essa definição conceitual, o processo de construção discursiva da homossexualidade como prática sexual e afetiva desviante. Na mesma medida, a heterossexualidade compulsória se constituiu em experiência sexual privilegiada de sociabilidade. Nesse sentido, o “armário” se configurou, historicamente, como um regime regulatório das sexualidades não normativas, ao mesmo tempo, em que instituiu a heterossexualidade como uma forma privilegiada de visibilidade e valor hegemônico. Na esteira de Sedgwick (2007), o dispositivo do “armário” esclarece que tantos os indivíduos com práticas “homossexuais” quanto os indivíduos com práticas “heterossexuais” estão enredados no interior dos mesmos processos sociais de regulação sexual, uma vez que a “homossexualidade” e a “heterossexualidade” não são naturais, mas sim, construções sociais. No entanto, na medida em que a heterossexualidade compulsória passou a figurar como uma forma privilegiada de sociabilidade, por sua vez, o “armário”, como um ideal regulatório, também se constituiu em uma prática privilegiada de regulação da vida social e individual dos indivíduos com práticas “homossexuais” (ERIBON, 2008). 1.3 Homossexualidade e mudança social Ao analisar a mudança social do significado da homossexualidade nos Estados Unidos, Steven Seidman, Chet Meeks e Francie Traschen (1999) também verificam que, na América do final do século XX, o “armário” se constituiu em uma categoria central para o entendimento da vida social de pessoas com práticas homossexuais. O conceito de “armário” está intimamente vinculado, nesse sentido, a categoria de “saída”. Em articulação, esses dois conceitos procuram assinalar padrões sociais de segredo e autogestão sexual que estruturam a sexualidade em torno de uma norma heterossexual. As categorias do “armário” e da “saída”, portanto, foram fundamentais para entendimento da história e das dinâmicas sociais da vida de “pessoas homossexuais”, bem como deram sustentabilidade para a constituição de relatos da “homossexualidade moderna”. 49 Na análise desses autores, um dos seus efeitos sociais decorrentes das formas pelas quais os conceitos de “armário” e de “sair/saída” moldam as “identidades sexuais” consistiria, pois, no fato de que: a narrativa de sair do armário constrói indivíduos gays como tendo um destino comum em uma sociedade organizada em torno da heterossexualidade normativa. Diz-se que os indivíduos gays compartilham uma experiência de segredo e isolamento social, a provação de remodelar uma identidade estigmatizada e negociar a inclusão social. Esta narrativa molda uma identidade comum e a politiza tornando os homossexuais em vítimas sociais injustas25 (SEIDMAN; MEEKS; TRASCHEN, 1999, p. 9-10). Os autores situam, nesse sentido, a mudança social do significado da homossexualidade em condições históricas específicas. Condições históricas estas que produziram implicações mais amplas, as quais envolvem a identidade, a comunidade e a política homossexual. Ao revisar os limites e as potencialidades analíticas do conceito de “armário”, os autores (1999, p. 10) propõem que este conceito seja entendido “como uma estratégia de acomodação e resistência que tanto reproduz quanto contesta aspectos de uma sociedade organizada em torno da heterossexualidade normativa26”. Pois, para eles, a noção de uma “vida dupla”, que se caracteriza por padrões de ocultação e autogestão sexual, já não consegue mais ser definidora das vidas de indivíduos que se identificam como “homossexuais”. Desse modo, à medida que “normalizavam” e “rotinizavam” suas “identidades homossexuais”, estes indivíduos moldavam suas vidas “além do armário”. Fabiano Gontijo (2004, p. 2), ao também analisar esses processos de mudanças sociais, e, particularmente as “culturas identitárias homossexuais” no Brasil urbano, avalia que a instituição de uma “ortodoxia heteronormativa”, no século XIX, se constituiu em um “projeto político de controle social” da população. Mas apesar de “naturalizada” e apresentada como “norma”, a heterossexualidade não pode ser tomada como uma 25 Tradução livre do original: “the narrative of coming out of the closet constructs gay individuals as suffering a common fate in a society organized around normative heterosexuality. Gay individuals are said to share an experience of secrecy and social isolation, the ordeal of refashioning a stigmatized identity, and negotiating social inclusion. This narrative shapes a common identity and politicizes it by making homosexuals into unjust social victims”. 26 Tradução livre do original: “as a strategy of accommodation and resistance which both reproduces and contests aspects of a society organized around normative heterosexuality”. 50 “identidade sexual” substancializada. Antes, consiste em uma construção ocidental27 e, portanto, não se trata de uma estrutura fixa e imutável. Nesse processo de mudança social ampla, no início do século XXI se institui uma nova ortodoxia: a “heterodoxia homossexual herética”. Para Gontijo esse processo possibilita a vivência de novas “identidades homossexuais” e cria as condições culturais e políticas para a organização do primeiro movimento de visibilidade política das “homossexualidades identitárias” no Brasil. Nesse sentido, como avalia o autor, apesar de “heterodoxas” e “heréticas” no que concerne ao modelo “ortodoxo” heteronormativo”, [as] identidade[s] homossexua[is] e, por conseguinte, as culturas identitárias homossexuais que se forjam a partir do final do século XIX e, sobretudo, na segunda metade do século XX, não podem ser entendidas sem referência à imposição da heteronorma no final do século XIX e à crise do modelo identitário heterossexual a partir da segunda metade do século XX. Até os anos 60 do século passado, os referentes simbólicos das identidades homossexuais eram os do gênero oposto, reproduzindo tanto o “sistema hierárquico de gênero”, que divide o mundo em ativo (princípio masculino) e passivo (princípio feminino), quanto o “sistema médico- científico”, que divide o mundo em heterossexuais, bissexuais e homossexuais (GONTIJO, 2004, p. 3). Nesse sentido, ao partir de uma experiência etnográfica na cidade do Rio de Janeiro, Gontijo assinala que a construção de “identidades homossexuais”, particularmente entre “homossexuais” de camadas médias urbanas, seria caracterizada por “dois modelos”. Tem- se, assim, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, o primeiro modelo (“pré-aids), o qual seria marcado pela reivindicação de “políticas de redistribuição”. Já início dos anos 1990, o segundo modelo (“pós-aids”), por sua vez, seria marcado pela reivindicação de “políticas de reconhecimento”. Mas na confluência entre esses “dois modelos”, Gontijo verifica que a “heterossexualidade ortodoxa” ainda preponderava como um “modelo identitário”. A “orientação heterossexual”, nesse sentido, uma vez introduzida nas instâncias diferenciadas do poder, vigorava como o “modelo” exclusivo de reconhecimento oficial. Muitos “homossexuais identitários” adotaram esse modelo ortodoxo e se enquadraram em seu sistema hierárquico de gêneros. Institui-se, portanto, “homossexualidades ortodoxas”. No 27 Gontijo (2004, p. 1-2) cita, nesse sentido, várias práticas (homo)sexuais que foram institucionalizadas, reconhecidas e aceitas em diferentes sociedades contemporâneas e passadas. 51 entanto, ele avalia que desde os anos 1990 as “homossexualidades” têm passado por profundas mudanças em suas estruturas. Assim, com efeito, [a]presentamo-nos diante de um conflito estrutural entre, de um lado, um modelo social heteronormativo e homogeneizador que essencializa as homossexualidades e, de outro, um modelo social heterogêneo baseado em lógicas identitárias, legalidades e cidadanias múltiplas. Esses modelos seriam “tipos-ideais” fluidos, mais do que configurações estanques. Divergentes, eles estariam convivendo e permeando todas as instituições sociais e formações culturais (GONTIJO, 2004, p.7). 1.4 Afetos, moralidade e (homo)sexualidade No alcance dessas discussões, mas detendo-se na análise sobre afetos, moralidade e homossexualidade, Jainara Oliveira (2016) analisa o “armário” como um regime de visibilidade sexual que exige um processo de negociação cotidiana e que se constitui pelas disposições morais e afetivas dos indivíduos em interação. Trata-se de um processo ambíguo e ambivalente, pois, por um lado, pode ser gerido com descrição e segredo, por outro, com reconhecimento e aceitação, ou, ainda, ser vivenciado destas duas maneiras em contextos diferentes. Essas análises aludem que o modo como cada indivíduo gerencia e avalia o risco da visibilidade da sua sexualidade depende, para tanto, das circunstâncias sociais e culturais nas quais esses indivíduos estão situados. Ou seja, manter experiências (homo)sexuais em segredo ou torná-las socialmente públicas, portanto, não depende apenas das escolhas individuais de cada indivíduo, mas sim das possibilidades que as circunstâncias sociais e culturais lhes oferecem. Nesse sentido, Oliveira (2016, p. 101-103) avalia que: a possibilidade de que os indivíduos escolham ou possam escolher “assumir” projetos e estilos de vida homoeróticos, não depende necessariamente das suas “escolhas” subjetivas, mas sim das possibilidades históricas e culturais, uma vez que a experiência individual de cada sujeito adquire significado particular dentro das regras sociais e culturais. Portanto, “assumir” projetos e estilos de vida homoeróticos não satisfaz apenas uma ordem de fatores individuais, mas aponta para toda uma lógica societária de organização da individualidade em campos de possibilidades bastante concretos. [...] A intrínseca relação entre a singularidade dos sujeitos sociais e os processos sociais de construção identitária, por sua vez, provocam a necessidade de problematizar a “margem relativa da possibilidade de escolha” como desejo 52 individual. Deve-se analisar, para tanto, os aspectos subjetivos e paradigmas culturais existentes que envolvem essas “escolhas”. [...] [É] no interior de um campo de possibilidades, circunscrito histórica e culturalmente, que os projetos individuais e coletivos podem ser elaborados e construídos. Deste modo, a noção de projeto, com todas as suas ambiguidades, implica em possibilidade de mudança individual no interior e a partir de um mapa sociocultural relacional. [...]. [E] vincula-se intimamente com uma realidade objetiva e externa, que implica uma avaliação moral dos custos emocionais para os indivíduos em interação. Ao compartilhar das análises acima citadas, procuro entender um regime de visibilidade sexual como um enquadramento normativo estruturado a partir dos paradigmas culturais existentes, ou seja, de um campo de possibilidades. Nesse sentido, procuro assinalar, por um lado, os regimes de regulação sexual que moldam a vida cotidiana dos interlocutores; por outro, apontar como esses interlocutores negociam esses regimes regulatórios em suas curvas de vida, projetos e campo de possibilidades. A partir das narrativas dos interlocutores, trata-se de entender, portanto, como as suas experiências (homo)sexuais são marcadas por um regime de visibilidade circunscrito historicamente que, produto de um imaginário heterossexista, estrutura a manutenção da heterossexualidade compulsória. Isso significa, por sua vez, interpretar a negociação da visibilidade como um processo histórico e social que possibilita a construção de novos projetos individuais e coletivos. Mas, por outro lado, trata-se também de um momento em que uma pessoa descobre sua sexualidade, mas tem receio de expô-la publicamente, inclusive tendo vergonha de si mesma e se sentido inferior às demais pessoais consideradas normais, por possuírem uma sexualidade dita normal, isto é, dentro da normalidade heteronormativa –, a dor pessoal de se saber diferente, o receio de aproximar-se de outra pessoa e revelar seus sentimentos e desejos [...] A descoberta da diferença, a vivência clandestina da sexualidade dissidente, os medos, os receios, a vergonha, acompanhada pelo estigma, pelo preconceito e pela estigmatização cotidiana, assim, é observado e compreendido como uma ruptura biográfica. Ruptura biográfica esta que levam [o]s entrevistad[o]s [...] a processarem as suas experiências individuais de [negociação da visibilidade] (KOURY, 2016, p. 9-10, grifos no original). Não se trata, no entanto, de situar as experiências (homo)sexuais dos interlocutores em um quadro social dividido, por um lado, pelo sofrimento, a marginalidade/clandestinidade e a vergonha; e por outro, pelo reconhecimento, a visibilidade social e o orgulho (MECCIA, 2011). Muito ao contrário, trata-se de analisar essas 53 experiências a partir de um complexo processo de negociação cotidiana, que, como sugere Oliveira (2015; 2016), está marcado por fronteiras morais, custos afetivos e práticas avaliativas e de justificação. Nesse complexo processo, a vergonha, a dor e o medo, entre outros afetos, produzem efeitos significativos nas curvas de vida de pessoas com práticas (homo)sexuais (KIMMEL, 2016). A experiência da vergonha28 como uma dor social e sofrimento psíquico, nesse sentido, não pode ser entendida como constitutiva de um momento social particular. Antes, como proponho, deve ser encarada como uma experiência constitutiva de toda construção identitária (SCHEFF, 2016). Dito de outro modo, “a vergonha como uma prática social e experiência individual, deriva do medo da perda do reconhecimento, podendo se constituir em uma possibilidade de quebra do vínculo” (OLIVEIRA, 2016, p. 93). A partir dessa proposta analítica, também entendo que o medo29 assume um sentido singular a cada relação, ou seja, o medo muda de acordo com determinada situação. O medo, portanto, funda, estabelece e modifica as formas de organização social. Isto não significa, contudo, que o medo seja o mesmo para todas as pessoas com práticas (homo)sexuais. Nesse sentido, ao assinalar os limites conceituais de uma análise sobre o medo apenas enquanto retraimento e subordinação, Oliveira (2015), ao contrário, sugere que o medo deve ser entendido como um afeto que implica tensão, ambivalências e conflitos de ordem e desordem em uma situação social particular. Em sua análise, o medo pode, portanto, incitar atitudes de recriação de formas de sociabilidade e não apenas de conformação pessoal. Com essa proposta analítica, procuro me distanciar das análises de orientação linear e estrutural da relação entre mudanças sociais e regimes de visibilidade. Antes, busco sugerir uma microanálise do social que coloca em relevo as tensões relacionais entre afetos, moralidade e (homo)sexualidade. 28 Na esteira da proposta conceitual de Thomas Scheff (2016, p. 100) para o estudo sobre o sentimento vergonha, “defino vergonha como uma grande família de emoções que inclui muitos cognatos e variantes, mais notadamente, o constrangimento, a humilhação, a culpa e os sentimentos relacionados, tais como, a timidez, por exemplo, que se originam em forma de ameaças ao vínculo social. Esta definição integra Self (reações emocionais) e Sociedade (o vínculo social) ”. 29 Nos rastros de Mauro Koury (2005, p. 7), entendo que “[a]s relações entre indivíduos ou grupos se encontram sempre permeadas e se configuram e reconfiguram sob a presença direta ou indireta do medo. São, deste modo, as formas que assumem o medo, enquanto processo social geral e específico de cada relação, que administram uma boa parcela dos sentidos e significados atribuídos ou adquiridos na conformação social oriunda ou proveniente de uma ação relacional dada”. 54 1.5 Negociando visibilidades 1.5.1 Lucas Lucas (24 anos, negro), estudante de letras e professor de francês, nasceu em Recife, Pernambuco. Oriundo de uma família muito religiosa e preconceituosa, ele disse que prefere manter suas preferências afetivas e sexuais em segredo: “eu moro com os meus avós e eles são super religiosos e super preconceituosos também, por isso que eu nunca me assumi para eles”. Em casa, ao tratar a sua sexualidade como um “tabu”, eles evitam falar sobre o assunto. Foi apenas para a sua irmã que ele decidiu contar “oficialmente” sobre suas preferências afetivas e sexuais: “os outros, eu acho que sabem, mas eu nunca os contei”. Nesse sentido, ele narra que sua irmã sempre o interrogava sobre a sua suposta (homo)sexualidade, mas ele a negava. Porém, um dia ele resolveu confirmá-la, deixando sua irmã “chocada”: “ela sempre me perguntava se eu queria ser uma menina, porque a gente brincava de boneca e eu tinha todo os trejeitos”. Mas mesmo depois de ter conversado com sua irmã sobre sua (homo)sexualidade, ele disse que o assunto continuava um “tabu”: “não falamos muito sobre o assunto, e como temos idades e gostos diferentes, nós não frequentamos os mesmos espaços”. Lucas tem mais três irmãos por parte de pai. Nesse sentido, ele ressalta que: “eu não tenho muito contato com eles, mas eles sempre me perguntam se eu estou namorando, se eu não vou casar”. No entanto, apesar de não ter uma relação de intimidade com os irmãos paternos, isso não se constitui em um impedimento para possíveis questionamentos em relação à sua vida afetiva. Aos 18 anos de idade, Lucas começou a se relacionar “oficialmente” com meninos, “eu digo oficialmente porque antes eu já tinha me relacionado com primos e com coleguinhas, mas o momento em que eu me reconheci e me vi como homossexual foi apenas aos 18 anos, quando eu estava no ensino médio”. Nesse sentido, narra que suas primeiras descobertas sexuais foram com um primo, que era dois anos mais velho que ele: “a gente 55 tomava banho juntos e a gente se tocava, a gente se descobria”. Ele recorda que, nessa época da infância, era comum “esse tipo de brincadeira”: Eu lembro que na minha infância existiam muitos casos parecidos com esses. Quando eu ia para a casa da minha mãe, quando ela folgava, a cada quinze dias, eu ia para Camaragibe que é onde minha mãe morava. Quando eu chegava lá, tinha muitos meninos e meninas assim, que eram meus amigos. Eu me lembro que eu me relacionava tanto com as meninas quanto com os meninos. Quando digo que me relacionava, estou me referindo às brincadeiras de descobertas. Algumas meninas eram mais velhas. A gente brincava e a gente se descobria; a gente se masturbava juntos e a gente meio que ia se descobrindo assim. Esse meu primo era a pessoa com quem eu mais me relacionava dessa forma (Lucas, Recife, outubro de 2016). Em um desses momentos de brincadeiras, contudo, Lucas recorda que ele foi “pego de surpresa” por um dos vizinhos, o qual contou para a sua mãe sobre o ocorrido: Nós fomos pegos uma vez. Eu estava com esse primo e um coleguinha da gente. A gente estava brincando e marcamos de nos masturbar perto da casa de um amigo, em um terreno que era perto da minha casa. Quando a gente estava lá, nós três fomos pegos pelo vizinho, que falou para as nossas mães e elas deram carão na gente, e por sorte meu pai não estava em casa, porque ele é super machista. Meu pai já lançou várias indiretas para mim dizendo que eu sou afeminado, que eu sou um marica, essas coisas (Lucas, Recife, outubro de 2016). Quando Lucas tinha 18 anos de idade, ele começou a se “descobrir”. Ao mesmo tempo, passou a se relacionar sexualmente com uma amiga: “eu e uma amiga minha começamos a nos relacionarmos sexualmente durante pouco mais de um ano. Era só sexo”. Mas, no momento da pesquisa, ele disse que não fica mais com mulheres e que, portanto, se relaciona apenas com homens. Nesse sentido, Lucas ressalta que se considera “gay”, porém, para ele, essa “nomenclatura” pode gerar incômodos. Eu me considero gay e dependendo de quem fala, eu posso me incomodar ou não, com o termo utilizado. Acho que as nomenclaturas podem segregar grupos e eu não acho isso legal. Quando têm ursos, por exemplo, nos aplicativos destinados a um só tipo de pessoa, acho que isso segrega um pouco e eu não acredito muito nessa coisa de ‘ah, ele não é afeminado; ah, ele é afeminado; ele é muito isso ou aquilo’. Eu prefiro não me definir, eu posso até usar, assim, pela influência da sociedade, mas, dependendo da situação, eu não gosto muito (Lucas, Recife, outubro de 2016). 56 Sobre os espaços de sociabilidade GLS que frequenta, Lucas disse que se identifica com esses locais: “eu gosto muito do clima descontraído e das pessoas se divertindo. É um ambiente em que eu gosto de conviver com o público que está lá. Eu me sinto em casa, podemos dizer assim”. Porém, para ele, esses espaços de sociabilidade só são interessantes na medida em que não sejam “exclusórios” nem “segregadores”: Se não for uma festa, um evento segregador, eu acho ótimo. Segregador dentro do meio GLS, no caso. Eu nunca fui ao Miami e se tiver uma festa lá, como as festas dos ursos, eu acho um pouco exclusório, mas entendo que têm pessoas que gostam só de se relacionar com esse público, com um perfil específico e festas assim facilitam muito. Mas em geral eu prefiro ir para onde tenham gays e lésbicas e tudo mais junto. Se bem que iria gostar de uma festa só com gays, mas, enfim, eu prefiro um ambiente mais diversificado dentro do meio LGBT (Lucas, Recife, outubro de 2016). Para Lucas, as pessoas que frequentam os espaços com música eletrônica, pop e brega, referindo-se assim às festinhas alternativas, como a Terça do Vinil e o Brega Naite, são mais “abertas” e, por isso, tais festas são espaços que proporcionam uma melhor convivência entre o público homossexual e o público heterossexual. Disse ele: Acho que a gente está tendo uma abertura maior, que as pessoas estão começando a se permitirem mais, principalmente as pessoas mais alternativas. Elas são mais suscetíveis a aceitar, são mais abertas e não se incomodam tanto. Nós estamos integrados, não em todas as festas, nem todas na verdade, mas acho que numa parte da população, numa parte do público. Acho que isso não acontece tanto no sertanejo, por exemplo, talvez porque os homossexuais não gostam tanto de sertanejo, não sei. Talvez isso seja meio que estereotipar, mas acho que nos lugares de música pop, de brega, onde o público é mais alternativo, sim, há uma convivência maior entre gays e héteros (Lucas, Recife, outubro de 2016). Foi na cidade de Recife que Lucas teve o primeiro contato com festas voltadas ao público LGBT, nesse sentido ele disse que o primeiro espaço que frequentou foi um encontro chamado fun fashion, organizado às sextas-feiras na rua Progresso, esta localizada em uma rua por trás do Shopping Boa Vista. Era um evento em que a “comunidade LGBT” fechava a rua e tinha diversas atividades. Recorda que essa rua era vista como um espaço moralmente desvalorizado. Essa desvalorização moral era um dos principais motivos para que Lucas se sentisse com medo de frequentar tal espaço: 57 Eu ia meio que escondido da minha família. Na verdade, não era bem escondido assim, porque eu saía e dizia: ‘ah, eu fui para o cinema’. Mas não dizia que tinha ido para essa rua, porque essa rua, apesar de ninguém da minha casa conhecê-la, tinha uma má reputação, então a gente tinha que ir meio escondido, era tipo ‘ah, ninguém pode me ver, porque se me vê aqui já vão saber’. Era uma tensão. E como a gente era muito jovem, a gente tinha medo que alguém nos visse (Lucas, Recife, outubro de 2016). Nesse sentido, Lucas lembra que o público que frequentava esse evento era em sua maioria composto por jovens, estes eram alunos que estudavam em escolas próximas àquela redondeza, como o próprio Lucas. Assim como ele, esses jovens aproveitavam o momento posterior às aulas para ir ao evento. Para Lucas, foi um importante espaço de sociabilidade e de troca de experiências com outras pessoas que também eram homossexuais. Esse processo foi importante para que ele se reconhecesse como “homossexual”: “foi um momento bem marcante para quem viveu nas redondezas e quem participava daquelas interações. E ele ainda acrescenta que: “acho que muita gente se descobriu ali. Muita gente usou esse espaço para se reconhecer como homossexual”. Após esse evento, Lucas passou a frequentar outros espaços de sociabilidade na cidade, a exemplo das festinhas open bar, como a festa Boogie Night, que era uma festa alternativa organizada pelos estudantes de comunicação da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). Das vezes em que acompanhei Lucas em seus trânsitos pelos diferentes bares e boates, notei que, assim como Júlio, ele dançava mimetizando algumas cantoras que são destaques do pop music. Ao perguntar se ele era fã de alguma cantora em específico e sobre a relação das divas do pop music com o público gay, ele respondeu que: Na verdade, não, eu não sou muito fã de nenhuma diva pop. Tem divas pop que eu escuto, mas não é que eu seja muito fã. Eu gosto de Lady Gaga, eu gosto de Ariana Grande, mas não posso me considerar fã. Não são pessoas que sei de todos os trabalhos, da idade, da data de aniversário, nem quais foram os últimos álbuns lançados. Eu as escuto, mas não me considero fã delas. Suponho que elas façam muito sucesso com o público gay, GLS, porque elas talvez cantem coisas que nos tocam em geral, talvez elas falem sobre aceitação (Lucas, Recife, outubro de 2016). 58 1.5.2 Marcos Nascido em Olinda, Pernambuco, Marcos, pardo, tem 26 anos. Filho caçula, ele tem mais duas irmãs, uma de 28 anos e outra de 34 anos. Seus pais moravam em uma cidade do interior de Pernambuco, local onde Marcos morou de seus 7 anos até os 13 anos de idade. Logo ao nascer, ele ficou sob os cuidados de sua tia, que morava em Recife, já que sua mãe ficou internada no hospital: “porque quando eu nasci, minha mãe teve um problema e teve que fazer uma cirurgia. Minha tia me levou para casa e só me levava ao hospital para ser amamentado. Eu acho que passei três meses assim e depois eu comecei a morar com minha tia”. Ele conta que sua tia não teve filhos e o considera como um filho. Ele recorda que a relação de amizade que hoje mantém tanto com a sua tia quanto com a sua irmã mais velha nem sempre foi de proximidade. Apesar de morar na mesma casa que a sua tia, ele sempre foi muito reservado e só confiava seus segredos para sua mãe: “eu nunca me abria com a minha tia. Ela percebia as coisas e sentia que não poderia ajudar. Eu realmente só me abria com minha mãe e parecia um estranho dentro da casa dela [se referindo à casa da tia]”. Marcos define a relação que tinha com a mãe e a sua tia da seguinte forma: “minha tia era meio que minha mãe e minha mãe era meio que minha amiga. É assim que defino a relação que eu tinha com as duas”. Sobre a relação de reserva em relação à família e sua recente aproximação com a irmã mais velha, Marcos disse que: “nunca fui muito próximo da minha irmã mais velha, principalmente porque nunca convivi com ela. Mas, ao vir morar aqui e depois que ela teve filho, nos aproximamos e hoje somos muito próximos. É uma relação maravilhosa que construímos”. Já sua relação com o pai e a irmã mais nova, Marcos define como relações que sempre foram distantes e que não tem aproximação com ambos. Em relação a sua sexualidade, Marcos disse que sempre foi muito reservado. Até ingressar na universidade, ele só tinha se envolvido com mulheres, as quais eram definidas como grandes amigas. Nesse sentido, ele relatava: Só com os meus 17 ou 18 anos que me soltei mais. Foi a época que perdi minha virgindade. Sim, com uma menina! Não atentava ao fato de ser gay. Claro, nunca me envolvia amorosamente nos relacionamentos que tinha 59 com as meninas. Mas me parecia que não tinha encontrado a pessoa certa. Ao entrar na universidade eu conheci uma menina que compartilhava altas coisas comigo e nos curtíamos. Tive algumas experiências bacanas, cheguei a concretizar um fetiche que a maioria dos boys héteros sonham: eu a beijei com mais outra menina, até ela iniciar um namoro com um cara. Fiquei meio abalado. Eu curtia o fato de ter alguém que era tranquilíssima demais e não me exigia um relacionamento sério. Eu estava numa zona de conforto maravilhosa. Meu único envolvimento passional foi aquele infanto-juvenil. Nesta mesma época eu me vi um pouco perdido, abalado e sendo atraído por um cara que parecia ser bacana. Meio que iniciei uma amizade com ele. Ele era visivelmente gay e eu não me importava. Daí começou a dar altas investidas e eu meio que me afastei. O problema foi sentir falta dele e das investidas nesse período de afastamento. Me vi confuso, me questionei pela primeira vez sobre a minha sexualidade e conversei com muita gente. Eu fiquei mal mesmo, e contei para minha mãe aos prantos. No momento tive mó apoio da parte dela. E, ao conversar com uma amiga sobre tudo o que estava acontecendo, decidi arriscar. Fui lá até ele (pelo Orkut, claro) e soltei tudo o que estava me passando. Marcamos um encontro para a gente se acertar. Fazia mó tempo que não nos encontrávamos... Nossa, o encontro foi muito intenso. Comecei a perceber coisas únicas em estar me envolvendo com um cara. Era tudo novo, mas me comprovava cada vez mais que era daquilo que eu precisava. Eu me identificava com o fato de ser gay! Era meio que uma certeza para mim, sabe? Pela primeira vez eu me vi apaixonado por alguém e tudo era muito forte. Questão do toque, o beijo, etc. A grande merda foi o relacionamento não ter sido dos melhores. Foi válido para a minha descoberta. No entanto, não havia valor algum sentimentalmente. Foi um dos maiores abalos da minha vida. (Marcos, Recife, abril de 2017). Ainda sobre a relação com a sua mãe, ele disse que, ao contar para ela sobre as suas angústias, inicialmente teve grande apoio por parte dela. Mas ele ressaltava que a relação com a mãe mudou quando ele assumiu o relacionamento com Júlio: Ela queria me ver feliz e disse que não se importava com a decisão que eu tomasse. Eu estava mal mesmo. Foi uma época que eu vivi recluso [...]. É... foi lindo e eu pensei que ela tinha me aceitado. Sendo que depois, quando assumi que estava casado com Júlio, ela surtou! Me distanciei bastante dela e mantive o hábito de telefoná-la, mas nossas conversas passaram a ser superficiais. A princípio eu passei uns dois meses sem telefoná-la. Ela me disse coisas horríveis! (Marcos, Recife, abril de 2017). Em umas de nossas conversas em 2016, Marcos mencionou que, quando falou que era homossexual para a sua família e que namorava Júlio, sua mãe, inconformada com a situação, enfatizou que não queria conhecer “nenhum de seus viados”. Marcos se disse 60 indignado com o comentário da sua mãe e retrucou dizendo que ela nunca iria conhecer ninguém. Para Júlio, parceiro de Marcos, o fato de ambos terem sido criados pelas tias foi um dos motivos da aproximação entre eles. Disse ele: A gente teve uma conexão muito rápida. Primeiro porque eu acho que a primeira coisa que a gente se identificou foi porque Marcos foi criado por tia e eu fui criado por tia também. Aí quando a gente começou esse papo de que inicialmente não tínhamos aquela estrutura pai e mãe, que tínhamos sidos criados por tias a vida inteira, a gente meio que foi compartilhando esse tipo de experiência. (Júlio, Recife, março de 2016). Nesse momento da conversa, Marcos ressaltou que, sendo a tia a base de sua relação familiar, ele recorda como foi sua “saída forçada do armário”: quando ele tinha 18 anos, costumava frequentar as festinhas open bar em Recife, principalmente a festa Boogie Night. Habitualmente ele ia e voltava cedo ou esperava a tia dormir e saía escondido, retornando para casa antes de seus tios acordarem. Para ir a uma dessas festas, ele esperou a família dormir e saiu escondido, porém, naquela noite “deu merda e eu não voltei. Acordei no outro dia, no final da tarde, na cama do hospital”. Sobre essa situação, ele disse: Marcos: Foi o seguinte: os seguranças do local, para fechar a boate, me tiraram e me jogaram na rua, aí uma mulher que passou, que ia caminhando pela rua, me viu e passou a mão no meu corpo para ver se eu tinha alguma coisa, e achou meu celular, porque dinheiro, carteira, tudo tinha sido levado e meu celular era desse aqui [mostrando um aparelho básico] e ninguém quer uma coisa dessa. Aí ela pegou e ligou para o primeiro número da agenda que por sorte era minha amiga, uma vizinha que mora perto da casa da minha tia, aí ela foi lá na casa da minha tia e falou para minha tia ir me buscar. Júlio: Aí a tia de Marcos descobriu que ele era gay, que tinha tatuagem ... Marcos: ... foi, tudo de uma vez só ... Júlio: ... e ele lá, tipo drogado no hospital Marcos: Quando eu passei ... Tipo, a festa foi do sábado para o domingo... Não, da sexta para o sábado. Aí eu acordei no sábado por volta das 4:30 Chiara: Isso foi em 2010, aliás 2011? Marcos: Isso, em 2011. Foi no final, foi uma festa em julho mais ou menos Chiara: E você não tem noção de quem fez isso [colocou algo na bebida dele]? Marcos: Rolou tanta desconfiança, tanta coisa, mas eu não sei. Chiara: Depois que sua tia descobriu, como foi? 61 Marcos: Ela ficou sabendo da festa. Aí todo mundo saiu e ficou do lado de fora e eu estendido no chão. Júlio: Era uma festa gay. Chiara: E você não falou com os organizadores? Afinal, foram os seguranças que te colocaram para fora. Marcos: Tinha muita gente de dinheiro que estava ali escondida. E se rolasse de fazer pressão, iria queimar muita gente, e eu tinha medo de prejudicar alguém. Eu não queria acabar prejudicando alguém só porque eu me fodi. (Diário de campo, Recife, março de 2016). Para Marcos, essa foi a pior fase de sua vida, porque sua tia passou a controlar cada passo seu: “ela estava com o receio de que eu estivesse usando drogas e com medo do que as pessoas iriam falar, já que era ela quem me criava”. Ele recorda, nesse sentido, que sua relação com a sua tia só melhorou com o passar do tempo: “minha vida era toda limitada a ir para a faculdade e voltar direto para casa. Só depois de um tempo, ela foi liberando mais e relaxando”. Marcos disse que sempre foi muito caseiro e que só começou a sair para festas quando entrou na universidade, nesse sentido ele afirma que Luci, uma amiga lésbica, já frequentava as boates e sempre o convidava para ir junto. Marcos recorda que tinha 19 anos quando esteve pela primeira vez em uma boate GLS e beijou outro homem: Em 2010 Luci, que já tinha ido para boates GLS e falou “bora amigo”, mas aí ela já sabia que eu já estava indo para as festas open bar. Eu chamava ela, mas ela nunca ia comigo. Aí eu fui com ela para a Metrópole e a gente chegou na noite das gaiolas das loucas, daquelas popuzudas. [...]. Olha, vê só, porque a primeira vez que eu fiquei com um homem foi na boate, foi na Metrópole. Eu já tinha ido para duas festas open bar, mas não tinha ficado com nenhum menino, aí eu fui na Metrópole e fiquei pela primeira vez com um cara. Aí eu conheci um cara e comecei a ficar com ele. [...]. O meu primeiro beijo foi horrível, tipo ele ficou insistindo, mas aí o segundo cara foi muito bom. Aí eu fiquei mais liberal. Eu beijei o segundo porque eu queria ver e o terceiro. Aí tipo eu tinha certeza que era isso que queria (risos). (Marcos, Recife, março de 2016). Marcos conta também que sempre foi fã da cantora Lady Gaga e nas vezes em que o acompanhei nos espaços de sociabilidade, eu notava que ele cantava as canções, mas, 62 diferentemente de Júlio que dançava mimetizando as apresentações de suas divas nos clipes musicais, Marcos, ao menos em minha presença, tanto na sua casa quanto nas boates, sempre dançou de forma “mais tímida”. 1.3.3 Júlio Oriundo de uma família religiosamente conversadora, Júlio, 29 anos, “bicha e preta”, nasceu em uma cidade interiorana de Pernambuco. Mas logo ao nascer foi morar em Maceió, capital de Alagoas, com a família. Seus pais nunca foram casados, enquanto ele morava em Maceió com a mãe, seu pai sempre morou em outro estado. Quando ele perdeu a mãe, aos 8 anos de idade, passou a ser cuidado por uma de suas tias. Ele conta que essa tia que o criou “é muito preconceituosa e nunca contei nada, mas ela deve saber”. Ele disse que também nunca contou nada sobre a sua sexualidade nem para seu pai, nem para a sua avó, porém, acredita que seu pai “suspeite” de suas preferências eróticas e afetivas, “afinal, no fundo todo mundo sabe. Até porque moro com Marcos e todos sabem que moro com ele”. Acreditar que sua sexualidade estava ‘sob suspeita’, no âmbito das suas relações familiares, era um fator relevante para a forma como ele manejava a sua sexualidade. Por isso, levando em consideração a relação de intimidade que ele mantinha com sua irmã mais nova, ele resolveu revelar, para ela, sobre o seu desejo por outros homens. Ele relata que esta sua irmã “sempre gostou de música eletrônica e geralmente as festas com música eletrônica são mais permissíveis”. No seu entender, sua irmã teria uma “mente mais aberta”, o que, por sua vez, sugeria uma maior possibilidade de aceitação, por parte dela, da sua sexualidade. Em uma das vezes que sua irmã foi visitá-lo, ele, por sua vez, a convidou para sair. “Saímos para a boate, no caminho expliquei que ela iria conhecer um rapaz que eu estava ficando e que estava gostando muito”. No entanto, mesmo nutrindo a expectativa de uma possível aceitação, por parte de sua irmã, ele não deixou de cogitar a possibilidade de uma rejeição. Mas o medo da rejeição logo foi ressignificado pela sensação de surpresa que a reação de sua irmã lhe causou: “fiquei surpreso com a reação dela, pois ela só perguntou se eu estava feliz e disse que não se importava se eu ficava com homem ou com mulher”. 63 Foi na cidade de Maceió que Júlio, aos 16 anos de idade, esteve pela primeira vez em uma boate GLS: “estava no meu terceiro ano do ensino médio e tinha mais um colega de turma que era gay e duas amigas que se envolviam com mulheres”. Para ele, o fato de morar em um bairro distante do centro da cidade, local onde estavam situadas as boates GLS, sempre exigia uma nova desculpa30 para justificar o porquê de não dormir em casa. A respeito dessas suas primeiras idas às boates GLS ainda em Maceió, Júlio narra que a sua primeira vez em uma boate aconteceu na companhia de uma outra amiga da escola, a qual estava acompanhada da namorada e de mais um amigo. Ele recorda-se de ter ficado com este amigo: “eu fiquei com ele e permanecemos juntos a noite toda”. Para ele, esta sua amiga “foi quem me mostrou o mundo dos bares e das boates GLS, quem me abriu as portas”. Na sua primeira vez em uma boate GLS, Júlio disse ter ficado em “choque” quando chegou ao local, mas logo se familiarizou com o ambiente, pois, “as boates eram locais cem por cento permissíveis, no sentido de que as pessoas podiam se beijar, andar de mãos dadas, flertar e praticar todo aquele jogo da sedução, além de experimentar coisas ilícitas”. Ele ainda acrescenta: Ir às boates contribuiu muito para me entender, porque foi a primeira vez que tive a experiência de estar em um espaço onde eu podia ser eu mesmo em relação a minha sexualidade e conhecer outras pessoas que compartilhavam da mesma experiência que eu. Eu me senti muito bem, no sentido de um pertencimento com aquele lugar. Me senti muito acolhido por estar dentro da comunidade gay e desde a primeira vez eu me senti muito bem (Júlio, Recife, outubro de 2015). Nas narrativas de Júlio, as redes de amizades foram muito relevantes no seu processo de descoberta das boates e bares GLS, como lugares em que suas práticas (homo)sexuais poderiam ser vivenciadas publicamente, sem o medo constante de retaliações físicas e morais. Para Júlio, o fato de encontrar naqueles espaços de sociabilidade GLS outras pessoas que compartilhavam experiências afetivas e sexuais semelhantes as suas também contribuiu para o processo de construção da sua sexualidade: 30 Sobre a relação entre “desculpa” e regimes de visibilidade sexual, ver a discussão pioneira de Oliveira (2015). 64 A ida a esses espaços contribuiu, eu não digo para saída do armário porque passou muito tempo para isso acontecer, mas contribuiu para eu formar meus argumentos e me informar sobre o assunto. Principalmente contribuiu para fortalecer a minha convicção de que eu era daquele jeito, que eu tinha nascido assim e que existiam pessoas iguais a mim, ou seja, ser gay não era o fim do mundo. Eu ficava com muita vontade de voltar lá porque era um lugar que todo mundo poderia ser quem realmente eram (Júlio, Recife, outubro de 2015). As boates, para Júlio, também envolvem um jogo de sedução particular. Jogo este que define diferentes performances de sedução, as quais possibilitam estabelecer relações mais erotizadas nesses espaços. Na descrição de Júlio: O jogo de sedução na boate é bem direto: você olha a pessoa e flerta com ela. Aquela pessoa chama sua atenção ou você fica a fim daquela pessoa. Muitas vezes era questão de dar o primeiro passo, ir lá falar com a pessoa: “Tudo bem, que tal? Eu gostei de você”. E dar o primeiro beijo. O primeiro beijo era algo assim de termômetro, de saber se iria rolar ou não. [...]. No começo era embaraçoso, não sabia como me comportar, mas aí fui pegando o macete. Uma vez fui pegar a bebida e tinha um coroa, ele passou a mão no meu braço, eu deixei; ele ofereceu um drink, e começamos a ficar. Foi com ele que tirei minha virgindade gay. Tinha 18 anos. Eu fui para casa dele e a gente transou a noite toda (Júlio, Recife, dezembro de 2015). Júlio conta que preferia se relacionar com homens mais velhos: “eles têm uma pegada”. Na sua rede de amizade, ele disse que era o único homem entre os outros cinco amigos que tinha preferência por homens mais velhos. Segundo ele: Eu preferia caras mais velhos e meu grupo preferia pessoas ou da idade da gente ou mais novas. Mas todo mundo respeitava o boy que a outra pegava e pronto. Era tipo tirando onda entre um e outro, tipo: “Ah a senhora pegou um novinho ou a senhora pegou um mais velho, ou, a senhora não pegou ninguém” (Júlio, Recife, dezembro de 2015). Além do interesse pelo jogo de sedução que caracteriza uma das variadas formas de interações nas boates GLS, Júlio também chama atenção para a importância política que esses espaços possuem. Na sua visão, esses espaços possibilitam expandir o sentido de apenas um espaço de lazer, o que, por sua vez, implica reconhecer o pioneirismo do movimento LGBT no processo de mudança social. A esse respeito, disse ele: 65 É político no sentido de se reconhecer e se afirmar naquele espaço como tal. Principalmente para essas pessoas mais jovens. Acho que as boates continuando sendo um espaço de uma transgressão muito grande. Acho que isso tem a ver com a ampliação dos espaços GLS, principalmente agora que a gente tem uma aceitação maior. Acho até legal quando eu vejo casal hétero na balada porque de certa maneira também é uma forma de transgredir essa questão da identidade (Júlio, Recife, dezembro de 2015). Ainda a respeito da presença de pessoas heterossexuais nas boates e bares GLS, Júlio comenta sobre as vezes que saiu com a sua irmã mais nova e como ela era recebida na sua rede de amizade. Ele recorda que: Quando ela ia me visitar íamos juntos à boate. Meus amigos ficavam de cara e falavam: “bicha, sua irmã é linda e pega cada gato”. Eles não a enxergava como uma concorrente, ao contrário, a usava como tática para chegar aos boys. Como naquela época já tinha bastante hétero nas boates, eles chegavam junto e se fosse gay, eles ficavam, mas, se fosse hétero, eles falavam que era para minha irmã conhecer (risos). (Júlio, Recife, dezembro de 2015). Em uma de nossas várias conversas, Júlio também ressalta que, apesar de ainda gostar de boates e bares GLS, hoje ele prefere ficar em casa na companhia do seu parceiro, pois agora ele tem uma casa na qual pode receber seus amigos para uma festa mais íntima. Eu não vou mais com tanta frequência em boate por causa das outras opções que eu tenho. Não é só mais a boate, tem a casa de amigos, tem minha própria casa, que são lugares onde eu posso fazer uma recepção, uma festa, um esquenta com um comes e bebes. Tem ainda as festas open bar que são mais alternativas em Recife, essas festas também dão uma sacolejada na organização das boates, porque elas estavam perdendo frequentadores (Júlio, Recife, dezembro de 2015). Apesar de alargar sua forma de sociabilidade por outros espaços para além do circuito comercial GLS, com o intuito de aproveitar as outras opções que a cidade de Recife lhes oferece, Júlio também disse que possui uma rotina de trabalho muito desgastante: “eu não tenho mais energia para trabalhar o dia todo, depois ir para boate e virar a noite”. Ele ainda ressalta que, o fato de estar em um relacionamento sério também contribui para que ele se interesse menos em ir para as boates, uma vez que: Hoje eu não vou mais para as boates com tanta frequência pela questão da pegação, da paquera e do que isso significa para mim. Acho que isso não combina mais comigo pelo fato de eu estar em um relacionamento 66 sério e a pegação já não ser mais o que eu vou buscar lá. Para mim, principalmente quando eu era mais novo, a boate era um espaço em que eu podia socializar e, nesse sentido, socializar subentendesse ficar, beijar (Júlio, Recife, dezembro de 2015). Muito embora ele já tenha se sentido atraído sexualmente por “caras” mais velhos, Júlio comenta que hoje prefere homens com idades mais próximas a sua. Recordo de uma vez em que estava em uma boate com ele: eu estava observando a pista de dança na qual se encontravam vários homens que aparentavam ser de meia-idade ou mais velhos, quando Júlio percebe que estou observando esse grupo de homens, ele faz o seguinte comentário: “não consigo me ver velho em uma boate, acho que não combina com o espaço. Não consigo entender por que pessoas velhas vem para a boate. Eu não teria pique para isso”. Mas ele acrescenta que se sente bem mais jovem do que sua idade sugere, “tanto fisicamente quanto de espírito”. Ainda a respeito da sua experiência geracional, Júlio se disse muito fã da cantora Britney Spears e lembra que, desde adolescente, escuta suas músicas. Quando era adolescente, ele conta que uma vez foi censurado pelo seu pai porque estava mimetizando a performance da referida cantora. Em sua avaliação, “era complicado gostar de pop enquanto meu irmão mais velho gostava de forró e era considerado o pegador”. Aos 19 anos de idade, durante o seu baile de formatura, Júlio recorda que escolheu a música Toxic31 da mencionada cantora, para sua entrada no salão de festas. O que, segundo recorda, causou uma profunda surpresa entre os seus familiares que lá estavam. Ele disse que escolheu essa música porque “era minha música favorita na época e representava o meu eu como performer”. Em todas as vezes que acompanhei Júlio em espaços de sociabilidades de Recife, pude perceber que ele se animava à medida que eram tocadas as músicas de suas cantoras prediletas, como Britney Spears, Jennifer Lopez, Beyonce, Lady Gaga, entre outras referências do pop music. Ao dançar essas músicas, sua performance sempre remetia a algum passo dos clipes produzidos por essas cantoras: mãos no quadril, corpo ereto, empinando a bunda e fazendo caras e bocas. Como me explica o próprio Júlio, o nome dado a esses passos é stilletto com elementos do vouguing, que é o contraste do corpo masculino fazendo movimentos que são 31 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LOZuxwVk7TU. Acesso em janeiro de 2017. 67 pensados para salientar as formas femininas, dando a feminilidade para os gays, junto com o vougue, que é um tipo de dança dos anos 1980 e 1990, os quais simulam poses de modelo em capas de revistas. Para Júlio, as músicas com vocal de divas do pop music são tidas como “hino de liberdade”. Ele acredita que tais músicas têm letras que dão certa “visibilidade políticas à causa gay”, e, por isso, são tidas como um “modelo a ser seguido”. Assim, para ele, “as bichas são artistas, elas querem ser artistas, se sentirem uma diva”. Ao cantarem e dançarem as músicas dessas cantoras, “as bichas” se sentem libertas de padrões heteronormativos. Júlio cita, nesse sentido, um trecho da música Born This Way32 de Lady Gaga para exemplificar como essas divas pop são importantes na construção de uma “identidade gay”, uma vez que essas músicas valorizariam e dariam voz à “comunidade gay”. Assim, para Júlio, a música eletrônica, e, em especial aquela com vocais de divas do pop music, é importante em seu processo de construção e aceitação de uma “identidade gay”. Portanto, frequentar esses espaços de sociabilidade urbana e dançar esse estilo de música, fazendo performances que remetem à imagem das divas do pop, seria “fortificar-se, empoderar-se e se sentir um artista”. 1.3.4 Otávio Otavio, 34 anos, branco, nascido em uma cidade pequena do Rio Grande do Norte, disse que, sendo filho de pais religiosamente conversadores e vindo de uma família tradicional muito prestigiada na cidade, só conseguiu sair de casa aos 20 anos de idade, “sai de casa aos 20 e acho que já sai tarde, mas eu já frequentava as boates desde os meus 18 anos”. Ele tem uma irmã mais velha, com a qual disse não possuir uma relação de intimidade, porque “ela é muito preconceituosa”. Como ele expôs, ela sabe sobre seus relacionamentos afetivos e sexuais com outros homens. No início eles pararam de manter contato, mas ela logo retomou o contato, pois precisava da ajuda financeira de Otavio. “Ela nunca vem me visitar, mas eu sempre vou visitá-la pelo menos uma vez por mês, faço a feira 32 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wV1FrqwZyKw. Acesso em janeiro de 2017. 68 e ajudo a pagar algumas contas”. Mesmo oferecendo esse suporte financeiro para a sua irmã, ele disse “ter que ficar ouvindo gracinha”. Quando saiu da casa dos seus pais, ele foi morar em Natal, capital do referido estado. Morar na capital lhe possibilitava um relativo anonimato, mesmo “estando sempre com aquele receio de encontrar alguém da minha cidade”. Foi em uma boate GLS, na cidade de Natal, que Otávio deu o seu primeiro beijo em outro homem, no entanto, ele ressaltou que ainda estava namorando uma mulher. Ela morava na mesma cidade interiorana que ele, contudo, Otávio narra que não se sentia realizado com este relacionamento, porque já se percebia desejando outros homens. Disse que se sentia sob constante pressão, pois “os pais dela queriam o casamento, mas vi que não era aquilo que queria para minha vida, então acabei”. Para ele, “não era certo nem comigo, nem com ela, viver um mundo de mentiras”. Já morando em Natal, Otavio passou a circular com maior regularidade pelos espaços de sociabilidade GLS da cidade, principalmente pelos bares e pelas boates. Para ele, esses espaços foram muito relevantes para a construção cotidiana da sua identidade sexual, pois ali ele poderia encontrar outras pessoas que, assim como ele, também se sentiam pertencendo àquela forma de sociabilidade, uma vez que “lá não precisava mentir”. Nesse sentido, ele se recorda que, quando era mais jovem e ainda morava com os pais, gostava de escutar, na casa de um amigo, as músicas de cantoras do pop music, especialmente as músicas da Madonna: “ele [o amigo] tinha todos os cds e ficávamos lá ouvindo as músicas, mas era algo comentado só naquele momento, depois dali não ficava comentando nada na rua, não”. Otavio e o amigo precisavam manter o gosto musical em comum em segredo porque os seus pais, bem como os vizinhos e os familiares próximos, consideravam o pop music como “música de viado”33. Otavio conta que nunca contou para seus pais sobre suas experiências afetivas e sexuais com outros homens, mas sabia que seu pai suspeitava de sua sexualidade, “ele sempre foi muito preconceituoso, era um homem de interior muito machista. Na cabeça do meu pai, se você não é um garanhão é porque é bicha”. Mesmo tendo perdido sua mãe aos 33 Na cidade interiorana onde morava, o pop music era culturalmente associado a homossexualidade, especialmente aos homossexuais afeminados. Assim, ele ressaltou que, a sua experiência com esse estilo de música era muito limitada, pois precisava manter o seu gosto musical em segredo, como forma de se “livrar” das acusações que poderiam ser feitas contra ele, já que isso colocaria em dúvida a sua sexualidade entre os demais. 69 22 anos de idade, e o seu pai aos 30 anos, Otavio ainda disse que se sente controlado, “eu não devo nada a sociedade, mas a sociedade está aí para julgar todos os meus atos”. Ele narra, nesse sentido, que tinha um colega homossexual na cidade, mas sempre procurava manter uma relativa distância dele, pois “ele era a imagem mais próxima que aquelas pessoas tinham de um homossexual e eu não queria ser comparado a ele”. Para Otavio, este colega era “uma bicha muito feminina. Ele era conhecido por todos na cidade, inclusive pelos meus pais. Ele era muito feminino, usava batom, tinha cabelos compridos e se vestia com roupas muito coladas ao corpo”. Por isso, ele narra que não gostava de ser visto na companhia deste seu colega em lugares públicos da cidade, como as praças. Mais adiante na sua narrativa, ele acrescenta: “confesso que eu tenho preconceito com homens afeminados, não gosto de ser visto perto de homens assim”. Recordo-me, nesse sentido, de uma vez em que estava com Otavio em uma boate, na cidade de Recife: Enquanto aguardada na fila do bar, ficava olhando para a pista e observando como Otavio interagia com as pessoas ao seu redor. Enquanto segurava um energético e um copo de whisky, ele dançava de modo muito espontâneo. Ele estava sozinho, quando uma mulher, supostamente travesti, se aproxima dele. De forma muito imediata, ele se distancia dela e vem em minha direção. Neste instante, eu já havia pegado a minha bebida [um energético] e sigo ao encontro de Otavio. Quando me aproximo dele, Otavio, por sua vez, logo relata: “você viu aquela travesti que se aproximou de mim? ”. Respondi: “Sim, vi. O que houve? ”. “Nada, eu só não gosto de ser visto perto de homens assim que querem ser mulher”, responde Otavio. E ele continua: “Eu acho ridículo esse tipo de homem que quer ser mulher. Para mim homem que gosta de homem tem que se comportar feito homem”. (Diário de campo, Recife, janeiro de 2015). Otavio se define como um homem muito reservado em relação a sua sexualidade. Sempre procura manter uma postura discreta. Por isso, também procura gerir a sua sexualidade com discrição até mesmo entre seus amigos. Para tanto, ele disse que não tem amizade com homens afeminados, “afinal eles chamam muita atenção”. Além disso, ele acrescenta: Não gosto desse negócio de chamar o outro de bicha em público, apenas quando estou entre amigos mais íntimos e dependendo do ambiente. Não gostaria de estar na rua e alguém gritar: “bicha, quanto tempo! ”. Vai que 70 alguém do meu trabalho está próximo ou alguém que não tenho liberdade (Otávio, Recife, novembro de 2015). Ele também narra que não gosta de beijar seus parceiros em público, nem mesmo entre seus poucos amigos, “as pessoas sabem, mas eu não preciso ficar comentando. Não quero dar liberdade para ninguém ficar falando dos meus relacionamentos”. Nesse sentido, lembro-me de uma vez em que estávamos em uma boate em Recife: Otavio estava acompanhado de um dos seus parceiros, os dois ficavam próximos um do outro, mas não se beijavam, permaneceram assim até o momento de irmos embora. Pegamos o mesmo táxi, eu fiquei em casa e eles seguiram em direção à casa do parceiro de Otavio. Ainda no táxi eles não se tocavam, porque, segundo Otavio, “não gosto de ser visto demonstrando afeto na frente de estranhos”, referindo-se ao taxista. Otavio que sempre “desconfiou” de uma das suas primas, por isso resolveu levá-la para conhecer um bar GLS, em Recife, “acho que levar ela lá foi interessante porque eu já desconfiava dela, mas ela precisava sentir que não estava sozinha”. Nesta noite, ele estava acompanhado do seu parceiro. Ele apresentou esse seu parceiro a sua primeira, como seu namorado. Mas ele ressalta que: Quando fui contar para minha prima foi difícil. E olha que achava que ela era lésbica. Quem é gay e anda no meio reconhece o outro de longe. Depois ficamos rindo da situação, porque quando eu falei que era diferente, que estava me relacionando com uma pessoa e que era um homem, ela jogou um sorriso e falou que estava namorando uma menina. Daí pensei: ainda bem que não sou o único da família (Otávio, Recife, novembro de 2015). Para Otavio, os espaços de sociabilidade GLS são lugares de fuga, ainda que circunstancialmente, das regras de conduta impostas pela sociedade. Ele não “curte” circular, no entanto, por todos os espaços de sociabilidade GLS em Recife. Pois, segundo ele, por exemplo, “as festas do cais de Santa Rita, como a festa “Kinaada Querida OpenBar”, costuma dar muita molecada”. Ele esteve apenas uma vez nesta festa e não demorou por lá mais do que 15 minutos, “me senti no berçário, um pessoal muito novinho”. Assim, prefere circular pelas boates Metrópole e San Sebastian, uma vez que, nessas boates, ele encontra “caras” da sua idade e discretos como ele, “não sou do tipo que fica se pegando 71 em boate, lá é lugar da conquista, da paquera”. Ele descreve, nesse sentido, o seguinte jogo de sedução: Se você olha e a pessoa olha de volta e fixa o olhar em você é porque você foi correspondido. Ou quando passa e vai pedir licença e toca no outro, mas de forma que a mão desliza pelo corpo e o outro retribui, então já rolou a conquista e às vezes rola de marcar algo mais íntimo fora da boate. Na boate, a paquera é mais fácil porque a maioria das pessoas que estão ali ou são gays ou não tem preconceitos, então não tem problema você chegar, paquerar e ter medo de ser agredido (Otávio, Recife, novembro de 2015) Os parceiros de Otavio não são homens musculosos, ele disse que: “homem musculoso, muito bonito, dá muito trabalho, prefiro os magrinhos discretos”. Para ele, os homens com performances masculinas denominadas “barbie” também não seriam parceiros ideais para uma relação discreta, “dá muito na cara, eles usam aquelas roupas coladas no corpo e coloridas, aquelas regatas que deixam o peitoral em exposição. E quando abrem a boca? É uma bichona”. Ele destaca ainda que os seus parceiros não podem aparentar traços ditos femininos, pois ele gosta de “homem com jeito de homem, se fosse para ficar com alguém afeminado, era melhor ficar com uma mulher”. Otavio também ressalta que nunca assumiu a posição de “passivo” nas relações sexuais com os seus parceiros. Esta recusa da “passividade” sexual deve-se, principalmente, ao fato desta posição está muito vinculada à feminilidade e ele não gostaria de ser visto como um homem afeminado. Nesse sentido, ele narra a seguinte conversa com seu pai: Uma vez meu pai me ligou e a gente acabou discutindo. Ele me chamou de ‘viado’, disse que eu ficava dando o cu por aí e não merecia respeito por isso, porque isso não era coisa de homem. Bom, daí respondi para ele: o senhor até pode me chamar de ‘viado’, mas o meu cu eu nunca dei, fique o senhor sabendo (Otávio, Recife, novembro de 2015). Os parceiros de Otávio precisam ser discretos e devem aparentar uma estética heterossexual, contudo, tal estética não se constitui necessariamente a partir de um corpo musculoso, mas, sim, a partir de um comportamento erótico/sexual que recuse a figura da “bicha”, visto que esta denota o reconhecimento de uma homossexualidade em sua feminilidade. No entanto, os seus parceiros devem assumir a posição de “passivos” nas relações sexuais. 72 1.5.5 Marcelo Criado em um ambiente familiar muito católico e de valores morais muito rígidos, Marcelo, 35 anos, pardo, advogado, disse ter tido a sua primeira “descoberta sexual” quando tinha 7 anos de idade. Essa experiência aconteceu a partir das “trocas de carícias” com um dos seus primos. Como ele mesmo descreve, tratava-se apenas de uma “uma brincadeira de criança”. Porém, no momento que trocavam carícias, os dois foram “pegos de surpresa” pelo tio de Marcelo, pai do seu primo, e ambos levaram uma surra. A violência física sofrida por Marcelo, assim como a desaprovação moral por parte de seu tio, o deixou profundamente traumatizado e muito envergonhado, uma vez que a “brincadeira de criança” também foi desaprovada moralmente pelos demais familiares. Traumatizado com essa experiência, ele narra que procurou “esconder o seu desejo lá no fundo do baú”. Nos anos seguintes, ele passou a se relacionar afetiva e sexualmente apenas com mulheres. Aos 15 anos de idade, Marcelo namorou uma colega de escola. Com esta colega ele teve um filho e se casou. Eles permaneceram casados por 12 anos. Mas segundo Marcelo, “quando os filhos vão para o mundo, a gente começa a olhar mais para si. Foi aí que eu comecei a viver e a perceber que eu não era feliz naquela relação”. Com o filho crescido e as brigas constantes no casamento, Marcelo resolveu se separar de sua esposa. Foi diante da crise no casamento e do crescimento do filho que ele também passou a perceber que “tinha alguma coisa que estava me corroendo e que começou a crescer em mim”. Por isso, apesar de “transar bem com a esposa”, ele relata que não era “tão feliz” e não se sentia “tão realizado sexualmente” como se sente hoje ao se relacionar com homens: “hoje eu não tenho mais dúvida de que eu só me realizo sexualmente com outro homem e não com uma mulher”. Depois da separação no casamento, ainda muito “atordoado” com aquela situação, Marcelo resolve procurar uma terapeuta. No entanto, ao buscar a terapia, ele ressalta que a sua intenção inicial era apenas a de “curar a depressão pós-separação e não para vivenciar uma realidade homossexual”, pois estava interessado em “tentar entender o que estava acontecendo”. Desde o fim da separação, ele passou um ano e seis meses sozinho até se relacionar afetiva e sexualmente pela primeira vez com outro homem. 73 Era mais um dia de trabalho, quando uma de suas amigas o convidou para sair, “ela era amiga de trabalho, mas também era amiga de farra”. Ao final de mais um expediente, como de costume, eles saíram para tomar uma cerveja e, dessa vez, passaram a noite inteira conversando. Foi para essa amiga que, entre uma cerveja e outra, ele contou pela primeira vez sobre seus desejos eróticos por outros homens, pois essa sua amiga era “muito moderna, muito cabeça para a frente, já transou com homem, com mulher, com papagaio”. Ela também estava com Marcelo quando ele decidiu, pela primeira vez, ter uma experiência sexual com um homem. Ele conta que: Nós bebemos até altas horas. E quando eu fui deixar ela em casa, eu disse: “eu vou dar uma volta e vou atrás de me descobrir”. E eu saí e busquei uma pessoa; busquei um cara no meio da rua; um garoto de programa. E a minha primeira experiência com um homem foi com um garoto de programa. Foi uma experiência desastrosa. Primeiro porque eu nem sabia fazer nada; eu tinha medo de tudo. Segundo porque eu estava me sentindo sujo diante daquela situação e só rolou mesmo brincadeiras sexuais; não teve penetração, não teve nada disso (Marcelo, Recife, outubro de 2016). Esta foi a primeira e a única vez que Marcelo se envolveu com um/esse garoto de programa. Depois dessa primeira experiência sexual com outro homem, ele passou a frequentar um barzinho. Em uma de suas idas a esse barzinho, ele descobriu que uma das proprietárias tinha sido sua “primeira namoradinha de colégio”. Ela era lésbica e sua parceira era a outra proprietária do bar. Para Marcelo, esse bar teve uma importância fundamental no seu processo de “descoberta da homossexualidade”. Foi nesse bar que ele iniciou suas primeiras descobertas, libertou-se mais e passou a paquerar e a flertar com mais espontaneidade, mas ressalta que sentia muito medo. Nesse bar ele também se apaixonou perdidamente pela primeira vez por um homem, que era o garçom do bar. Ele frequentava esse bar de quinta-feira a domingo só para ficar com esse garçom, porque ele era casado com uma mulher e só trabalhava neste local nos referidos dias. Durante o dia o garçom trabalhava em outro estabelecimento e eles só podiam se encontrar depois que acabava o expediente do garçom no bar. Ele ia para o bar de quinta-feira a domingo e ficava lá até duas da manhã, que era a hora que fechava o bar, para de lá eles irem para o motel. Este foi o primeiro relacionamento “homossexual” de Marcelo e durou um mês. Em sua avaliação a relação teve fim 74 porque quando eu comecei a sair para outros cantos, eu comecei a ver que o meu mudinho podia ser bem maior do que aquele em que eu estava me relacionando com um cara hétero entre aspas, que se autodefinia hétero, não se assumia homossexual. E eu percebia que aquilo ali não iria para a frente, que era uma relação também baseada em um pouco de interesse financeiro, eu tinha mais condições, ele nem tanto, então acaba que a gente dá presente aqui, dá uma roupinha ali e eu vi que eu não precisava disso. E aí foi quando eu arranjei o segundo namorado e depois um terceiro namorado, os dois de um mês. Fui e emendando uma relação na outra, de forma ainda muito primária (Marcelo, Recife, outubro de 2016). Nesse momento de sua vida, Marcelo também começou a circular pelos bares e pelas boates GLS da cidade. A respeito das suas primeiras idas a esses espaços, ele disse: Eu ia para a boate e ficava me escondendo; eu ia para o bar e ficava lá no escurinho, com medo de que alguém me encontrasse. E eu lembro que os meus amigos diziam assim: “se alguém lhe encontrar aqui vai ser gay igual a você, então não vai poder falar de você, porque ele vai estar na mesma situação que você”. Mas isso não era suficiente para que me sentisse à vontade (Marcelo, Recife, outubro de 2016). Nesse sentido, Marcelo faz a seguinte avaliação sobre a sua experiência de circulação por esses espaços: É nos guetos que a gente frequenta que temos a oportunidade de nos libertar. Eu chamo guetos porque na verdade as boates e os bares para homossexuais ainda são geralmente afastados. Estão localizados em locais não acessíveis facilmente. Eu acho esses espaços importantes porque são, exatamente, locais onde o homossexual pode se permitir a ser quem ele é, que ele se liberte, que ele se revele, que ele dance da forma que quer. As boates GLS, de forma geral, são guetos onde os homossexuais são quem são e podem ser o que eles querem ser na sociedade. Mas na minha opinião, eu acho que as boates têm que ser dentro das cidades, a gente tem que fazer parte da sociedade e não ficar às margens dela, a gente não pode viver marginal, mas, infelizmente, por tudo que a gente já sabe sobre o preconceito social, os homossexuais ainda vivem uma situação de marginalidade; a gente ainda vive às margens de uma sociedade que não quer nos ver dançando e nos libertando fora do meio. Então somos afastados para as margens ou para ao redor (Marcelo, Recife, outubro de 2016). Assim, ainda que Marcelo concordasse com a opinião dos amigos, ele ressalta que se sentia muito angustiado, pois sentia necessidade de contar para a sua família sobre o momento que estava vivendo. No entanto, ele avalia que: “não via que o momento era 75 aquele, até porque eu tinha dúvidas se era aquilo que eu iria vivenciar. Eu ainda tentei me relacionar com mulheres nesse período para ver se não era mesmo aquilo, mas não deu certo”. Alguns meses depois, Marcelo conhece Carlos. Eles se conheceram em uma boate: “Carlos olhou para mim, eu olhei para ele, e a gente se apaixonou”. Marcelo estava acompanhado do seu ex-namorado, o José. Naquela noite, ao conhecer Carlos, Marcelo terminou o namoro com José e ficou com Carlos; os dois ficaram juntos durante um ano e meio. Marcelo ressalta que: “Foi com ele [Carlos] que eu passei a vivenciar uma realidade homossexual mais consolidada. Foi com Carlos que eu tive a necessidade de falar com a minha família”. Marcelo ainda acrescenta que: “naquele momento eu ainda estava tendo o acompanhamento de uma terapeuta. E ela vivenciou a realidade da minha mudança, da minha aceitação”. Para Marcelo, a presença de Carlos em sua vida, bem como o acompanhamento terapêutico foram dois fatores muito importantes para que ele conseguisse elaborar esse momento de sua vida e conseguisse contar para a sua família sobre a experiência que estava vivendo. A esse respeito, disse ele: Quando o meu namoro com Carlos ainda estava no início, eu sentia que ele era o homem da minha vida. Daí eu disse: “não, eu não posso ficar me escondendo. Eu tenho um filho; eu tenho uma ex-mulher para quem eu devo consideração; eu tenho uma família que eu amo, que eu não quero que fique escutando que o filho fez isso e fez aquilo pela boca de terceiros, de forma às vezes equivocada, de forma deturpada. Motivado pela força do meu namoro, desse meu grande amor, eu contei em quatro meses para toda a minha família: eu comecei contando para minha ex- mulher. A conversa foi lá na casa dela e não foi uma conversa fácil. Mas ela aceitou. Eu disse para ela toda a realidade que eu estava vivenciando. E ela sabe que eu não a tinha traído, que a gente sempre teve uma relação muito próxima; depois eu contei para as minhas quatro irmãs; depois eu contei para minha madrasta, que, para mim, é uma mãe. Ela que contou para meu pai numa viagem que eles fizeram; e por fim, eu contei para meu filho, em uma noite de Natal. Essa conversa foi a mais difícil de todas, porque até hoje ele não aceita. Ele me respeita, ele não me rejeitou, mas ele não aceita, ele não quer saber, ele não quer ouvir falar, ele não quer ver minhas fotos com outros caras (Marcelo, Recife, outubro de 2016). Marcelo procura destacar ainda que, Carlos também foi quem o levou para outras boates em outras cidades do Nordeste. Eles gostavam de viajar juntos “para vivenciar as 76 farras gays”. As boates foram muito importantes para a trajetória pessoal de Marcelo e para a sua própria relação com Carlos: “a boate foi tanto o lugar onde eu conheci ele, quanto o lugar onde a gente acabou; e onde eu procurava ir para curar as mágoas, pois, eu fiquei muito mal com o fim do relacionamento”. Apesar de não se sentir bem com o término da relação, Marcelo conta que eles terminaram o relacionamento próximo ao carnaval. Como já estavam com passagens e hospedagens pagas para curtirem o carnaval em Salvador, eles decidiram festejar o carnaval juntos. 1.5.6 Iago Nascido no interior do Rio Grande do Norte, Iago, 37 anos, branco, contador, mudou- se para Recife em 2012. Tem duas filhas, uma de 14 e outra de 7 anos de idade, frutos de um casamento heterossexual que durou dos seus 20 aos 27 anos de idade. Quando ele tinha 14 anos de idade, sentiu-se atraído pela primeira vez por um homem. Seu primeiro beijo, bem como sua primeira relação sexual com um homem só acontecerem aos seus 16 anos de idade. Essa primeira experiência foi vivenciada com um dos seus primos, o qual tinha 20 anos de idade na época. Ele recorda que: “na primeira vez que transei me senti péssimo e sujo”. Sobre essa relação, ele disse que a mesma começou como uma “brincadeira”: “ele [o primo] se esfregou e deixei, mas só depois de algum tempo é que rolou penetração”. Nesse sentido, o fato de ter sido passivo na relação era algo que o fazia se sentir desconfortável: “na minha cabeça o problema era dar a bunda. Quando rolou a primeira vez, eu me senti péssimo porque fui passivo com ele. Doeu para caralho, eu passei dois dias com o rabo dolorido”. Apesar de mencionar o desconforto físico com a relação sexual, Iago ressalta que o seu maior desconforto foi, na verdade, moral: “porque em interior só é gay ou viado quem dá a bunda, ativos não são considerados gays e se não é afeminado, aí é que não é considerado mesmo”. Após essa primeira relação sexual com o “primo mais velho”, Iago manteve durante cinco anos um relacionamento em segredo com um rapaz que era considerado seu “rival”. Publicamente, os dois fingiam que não eram amigos e que possuíam supostas desavenças. Mas, na verdade, tratava-se de uma “estratégia” para manter a relação em segredo, pois, 77 assim, as pessoas não desconfiariam que eles mantinham um “relacionamento homossexual”. Além disso, ressalta Iago que se tratava de um relacionamento “conturbado”, porque esse seu parceiro também ficava com meninas, no entanto, não permitia que Iago fizesse o mesmo. Nesse sentido, ele recorda: Ele era um escroto. Na época eu gostava muito dele e eu era muito novo, imaturo, abestalhado [...] Ele namorava [...] Ele tinha as namoradas dele, mas eu não podia namorar também. Se ele me visse com alguma menina ou namorando, ele partia para cima de mim e não permitia que eu namorasse não, às vezes eu namorava escondido com mulher. Ninguém nunca desconfiou não, porque o povo achava que a gente era rival; que nós éramos inimigos porque não nos falávamos. Ele falava mal de mim e eu falava mal dele, que era para as pessoas não descobrirem. Quem descobriu foi um amigo meu, porque viu uma situação [...]. Teve épocas que eu ia para a mesma festa que ele e se ele me via dançando com alguma menina, ele ia lá e apartava mesmo. Teve uma situação dessa em que esse meu primo, que ficou comigo, viu e queria até bater nele. Depois disso eu comecei a trabalhar em Natal e ele engravidou uma menina. Eu não quis mais saber dele e ele ficou no meu pé. Uma namorada dele veio tirar satisfação comigo. Foi um rolo da molesta. Mas eu me afastei mesmo de vez e não quis mais saber dele (Iago, Recife, novembro de 2016). O seu terceiro relacionamento afetivo-sexual com outro homem durou quase dois anos. Já morando em Natal, ele manteve um relacionamento em segredo com um médico que era casado com uma mulher. Sobre esse relacionamento, em particular, Iago preferiu não comentar detalhes. Disse apenas que se “aborreceu” com o seu parceiro e resolveu terminar a relação. Logo em seguida, conheceu a mulher que viria a ser a mãe das suas duas filhas. Para Iago, o seu casamento com esta sua parceira foi motivado, principalmente, devido às pressões familiares, já que não ele planejava se casar com ela. Pensava apenas em dividir apartamento, pois, naquele momento ela passava por dificuldades financeiras. Nesse sentido, Iago disse: Na época eu fui morar em Natal sozinho e foi quando eu conheci a mãe das meninas e comecei a namorar com ela. Ela estava passando por uma situação muito difícil, isso levou a gente a morar junto. Minha mãe ficou insistindo para a gente se casar, porque ela não queria que a gente vivesse “amancebados”, essas expressões do interior. Hoje ela nega tudo, ela diz que não foi bem assim, que eu fiz minhas escolhas e não sei o quê. No 78 início, eu deixei isso para lá, mas teve um dia em que eu joguei isso na cara dela: que só casei por pressão dela (Iago, Recife, novembro de 2016). Na visão de Iago, essa pressão, feita pela mãe para que ele se casasse, era motivada pelo fato de que ela “desconfiava da sua sexualidade”. Por isso, ela enxergava no casamento uma “solução” para a suposta fase desviante do filho. Nesse sentido, ele ressaltou que sua mãe era muito controladora: Ela queria controlar a vida de todo mundo. O problema era isso. Ela sempre soube [se referindo a sua sexualidade], só que ela achava que eu era na minha e que eu não ligava para isso, que eu tinha tipo deixado isso para lá. Eu casei e tive filhos, e ela tirou a minha suposta homossexualidade da cabeça. Ela achava que isso era da idade e que passava. Como eu me casei com uma mulher, ela achava que isso não iria voltar a acontecer (Iago, Recife, novembro de 2016). Sobre a relação com os pais, Iago relatou que nunca falou diretamente sobre sua sexualidade para família, mas que seus pais sempre fizeram insinuações, além de ficarem controlando sua vida: Eles insinuavam, mas nunca chegaram a apontar ou dizer alguma coisa. Eles faziam insinuações, ficavam revistando minhas coisas, olhavam minhas coisas pessoais. Eu não tinha privacidade alguma. Olhavam meus celulares, cadernos, minha bolsa do trabalho [...]. E, certa vez, ela pegou esse menino, com quem eu namorei durante cinco anos, olhando para mim. Ela chegou para mim e disse que preferia que eu morresse do que ter um filho assim. Era barra pesada a situação (Iago, Recife, novembro de 2016). Pelo fato de ter sido pai aos 23 anos de idade e ter seus pais sempre interferindo em sua vida pessoal, ele acredita que esta situação tenha sido um dos motivos de seu casamento precoce e que se fosse hoje em dia ele não teria se casado. Nesse sentido, ele avalia que: Hoje está muito mais moderno, as coisas estão mais explicitas. Há 18 anos atrás, por exemplo, não era assim. Era tudo muito retraído, era tudo muito confuso. Há tantos e tantos homens hoje em dia que têm a idade da gente e que estão se separando para assumir relacionamentos com homens. Na minha época não se podia fazer isso, como se pode fazer hoje. Hoje em dia as pessoas estão mais escrachadas, estão mais decididas, as pessoas têm mais ... Eu nem sei dizer qual é a palavra certa para falar isso ... Têm mais meios para poder chegar e assumir o que de fato quer. Antigamente não existia isso não. Antigamente era complicado, existia muito, muito 79 preconceito. Existiam muitos problemas para você se assumir, era tudo muito complicado. Hoje em dia está tudo muito fácil. Se eu tivesse vivido nessa época de agora, se eu tivesse meus vinte anos agora, eu nunca teria me casado, eu nunca teria me relacionado com mulher. E minhas escolhas teriam sido outras. Eu não teria trazido tanto problema para mim como eu trouxe por causa disso. [...] Eu fui levado pelas circunstâncias. Talvez se ela não fosse como ela é, eu teria permanecido casado até hoje com ela e teria reprimido com toda essa situação. Mas eu acho que estava fadado mesmo a acabar, porque iria ter uma hora em que eu iria me sufocar. Então eu acho que por mais que ela tivesse sido uma boa companheira, o casamento não teria durado mais do que durou ou não, talvez teria durado sei lá, mas uns quatro, cinco anos, seis, não sei ao certo. Mas sei que iria chegar um momento em que não iria dar mais certo (Iago, Recife, fevereiro de 2017). Iago também recorda que, no começo da relação, ele estava muito focado no trabalho e não tinha tempo para pensar nos seus desejos por homens. Nos dois últimos anos do relacionamento com a sua parceira, eles brigavam muito e o casamento estava muito estressante. Foi nesse momento conturbado do seu casamento que ele conheceu um empresário que também era casado com uma mulher e juntos eles deram início a um relacionamento em segredo. Seus encontros eram restritos a duas vezes por semana em um motel: “era tudo cronometrado, tínhamos só 1h30min, das 18h até as 19:30h”. Fora dois anos de encontros previamente marcados e cronometrados, sempre no mesmo motel, até que a esposa do seu amante começou a receber cartas e o seu parceiro o acusou de ter sido a pessoa que mandava cartas a sua esposa. Iago comentou que se sentiu profundamente magoado com a acusação e que ele não teria motivos para fazer isso, pois, ele também era casado. Assim como o seu parceiro, ele também estava vivendo aquela relação em segredo. Por isso, não poderia ser ele quem estava mandando as cartas, uma vez que isso também o prejudicaria. Mesmo assim, de modo a evitar mais desconfortos com a sua esposa, o seu amante preferiu se afastar e falou que ele era quem o telefonaria. Iago não poderia telefoná-lo, mas apenas esperar o seu telefonema. Iago comentou que, depois do ocorrido, ele esteve por suas semanas consecutivas no motel onde se ele encontrava com seu amante, que não apareceu. Ele disse ter ficado muito triste com a situação e que só teve notícias do parceiro após um mês, quando ele o telefonou e falou que estava bem e que já estava com outra pessoa. Desapontado com aquela situação: “abriu um buraco na minha frente, fiquei totalmente sem chão, porque gostava dele e se tem uma coisa que não suporto é traição”. 80 Nesta época, Iago já estava se separando da esposa e comentou que ficou com tanta raiva que resolveu entrar no bate-papo de um site de paquera e conversar com o primeiro garoto de programa que viu na sala. A esse respeito, ele disse: Estava com tanta raiva que queria me vingar dele de alguma forma, mas na hora que encontrei com o cara não consegui fazer nada. A vontade era pagar e mandar ele embora, mas fiquei com pena do rapaz e fizemos sexo. Mesmo não gostando de toda a situação, paguei e fui deixá-lo em casa. (Iago, Recife, março de 2016). Comentou que se sentia muito sozinho: estava se separando da mulher, a melhor amiga estava namorando e quando não estava sumida, estava sempre ocupada para ele. Por causa disso, acredita ele, acabou se aproximando desse seu parceiro, que era garoto de programa. Essa aproximação deve-se ao fato de que: “tanto ele quanto eu éramos sozinhos e começamos a sair e fui me afeiçoando a ele. Na época estava vivendo muito bem financeiramente e sempre estava viajando a trabalho e levava ele comigo”. Eles permaneceram juntos por quatro anos, até que Iago faliu financeiramente: “eu preferir pagar todas as dívidas e ficar com nome limpo. Fiquei sem nada. Foi quando ele falou que iria visitar a família no interior e sumiu”. Apenas ao se mudar para Recife, Iago começou a frequentar os espaços de sociabilidade voltados para o público homossexual masculino. Nesse sentido, ele disse que circular por esses espaços “abriu mais a mente”. A respeito de não frequentar espaços como esses em Natal, ele explica que: Eu até tinha interesse [de frequentar a Vogue Natal], mas eu não queria me misturar não. Eu achava que aquilo não era ambiente pra mim e eu nunca tive interesse de me misturar. Uma vez eu até passei em frente a Vogue, num sábado. Estava com meu pai no carro, quando passamos pela Vogue, eu vi um povo feio, estranho. Por isso eu nunca me interessei. Eu só me interessei de conhecer esses lugares quando eu vim morar em Recife. Eu fui à Metrópole e eu gostei mais do ambiente lá (Iago, Recife, novembro de 2016). Desde que começou a frequentar esses lugares, ele disse ter percebido uma mudança no público que os frequenta: 81 O público mudou muito. O público que frequenta esses espaços já não são mais os mesmos. Hoje em dia tem muito essas bichinhas gótica, que são muito passivinhas, muito afeminadas. É isso que eu vejo de principal diferença. E eu não vejo isso como liberdade, eu acho que estão se vulgarizando. Eu acho que pra ser livre não precisa se vulgarizar tanto. Eu acho muito vulgar essas caricaturas que fazem, esses estereótipos novos que eles estão usando [se referindo aos homens mais afeminados que usam batom, salto alto, roupas consideradas femininas]. Eu mesmo não sinto nenhum tipo de atração por isso, não (Iago, Recife, fevereiro de 2017). 1.5.7 João João, 44 anos, pardo, executivo, nasceu em Natal, no Rio Grande do Norte. Mora em Recife desde 2014. Mas devido às exigências da sua profissão, ele também já morou em Aracaju (Sergipe) e em Salvador (Bahia). Perdeu a mãe aos 13 anos de idade e o seu pai aos 17 anos, morou com a madrasta e os irmãos até os seus 20 anos de idade. Depois que passou a trabalhar e conseguir sua independência financeira, ele foi morar sozinho. Caçula da família, ele tem um irmão de 45 anos e uma irmã de 48 anos. A respeito da sua relação com os seus irmãos, ele disse que: “minha irmã sabe naturalmente e me aceita da forma como eu sou; meu irmão sabe, mas ele faz que não sabe, nunca chegamos a tocar no assunto”, nesse sentido, o assunto fica nas “entrelinhas”. Já no caso da sua irmã, João contou que foi sua amiga quem falou para ela sobre a sua sexualidade. Isso fez com que a irmã tivesse a iniciativa de ter uma conversa com ele: “ela chegou e disse que já sabia, que me aceitava do jeito que eu era, que o que valia era o meu caráter, era a minha personalidade e que para ela nada mudava na nossa relação”. Essa conversa com a irmã, assim, foi um momento muito importante: “me senti feliz, aliviado. Foi como se tivesse tirado um peso das minhas costas”. João ressalta que procura gerir com cuidado e muita descrição a sua sexualidade, principalmente devido ao medo e ao preconceito que a uma pessoa homossexual está propensa a sofrer. Disse ele: Sempre sinto medo de como as pessoas vão reagir. Quer queira, quer não, ainda existe o preconceito. Mas como ela [se referindo a irmã] me conhece, sabe do meu comportamento, do meu caráter, da minha personalidade e não seria por esse motivo que eu iria mudar, ser outra 82 pessoa. A pessoa permanece a mesma, apenas é que eu hoje ao invés de eu ter um sentimento por mulher, eu tenho um sentimento por homem. E o que ela disse, é que quer me ver feliz ... Então se eu tiver com um namorado e tiver feliz, ela vai ficar feliz (João, Recife, setembro de 2016). A revelação do segredo sobre a sexualidade, para a sua irmã, foi um momento que o marcou profundamente, já que os aproximou ainda mais, tornando-os bons amigos. A respeito do seu último relacionamento (que durou quase cinco anos) João disse que “ela sabia e gostava muito dele, sempre tratou ele com muito carinho, com muito respeito, inclusive o meu cunhado também. Nós sempre fomos muito bem recebidos na casa deles”. O desejo por homens surgiu ao longo dos seus os 20 anos de idade. Foi quando ingressou na faculdade. Antes disso, ele sempre se relacionou com mulheres. Entre os vários relacionamentos heterossexuais, ele destacou dois deles, os quais foram os mais longos (um que durou quase dois anos e outro de um ano). Eu sempre namorei com várias mulheres, tive vários namoros, mas quando eu entrei na faculdade, por volta dos 20 anos, eu comecei a sentir uma atração diferente por homens. Comecei a olhar para os homens de uma forma diferente e isso começou a mexer comigo e aconteceu com um amigo do meu irmão, que estava na minha casa. Foi a partir desse momento que eu passei a me descobrir, a sentir realmente interesse, mas continuei tendo namoradas também (João, Recife, setembro de 2016). Para João, essa “descoberta sexual” era uma experiência muito confusa, já que inicialmente ele não se aceitava. Esta falta de aceitação era motivada por sentimentos de vergonha e medo. Sua primeira relação (homo)sexual aconteceu com um amigo do seu irmão durante um churrasco em sua casa: Ele foi dormir lá em casa e a gente ficou meio bêbado. Fomos dormir no mesmo colchão e aconteceu. Mas eu acho que foi mais da minha parte e ele apenas retribuiu. E depois disso ficamos algumas vezes as escondidas, ele tinha uma namorada. Hoje ele é casado com mulher e meu irmão nunca soube. Na época, pra mim, ainda no início, era muito confuso, eu não me aceitava. Logo no início, quando eu ficava com alguém no outro dia batia o arrependimento. Mas com a questão de tempo, de mudança de fase e de amadurecendo. Eu vi que era realmente isso o que eu queria e depois passou a ser tranquilo. Mas no início era bem complicado. Se aceitar é confuso (João, Recife, outubro de 2016). 83 A relação em segredo com o amigo do seu irmão durou aproximadamente um ano. Essa turma de amigos, da qual eles faziam parte, era formada apenas por pessoas heterossexuais. Elas se encontravam aos finais de semana na casa de praia para fazer churrascos. Nesses encontros, ele e o amigo do seu irmão aproveitavam para terem relações sexuais quando iam dormir. A relação precisava ser mantida em segredo tanto pelo fato do seu parceiro ter namorada, quanto pelo preconceito em relação à homossexualidade que circulava na turma e, principalmente, pelo fato de que João não se aceitava: “eu não me aceitava e não aceitava aquele tipo de relação”. No dia a dia a gente nem comentava o assunto, mas geralmente no final de semana a turma se encontrava e ia para a casa de praia, marcava algum churrasco. E como ele morava longe e era muito amigo do meu irmão, ele sempre arrumava um jeito de dormir lá em casa para passar o final de semana, era quando a gente ficava e dava umas escapulidas. Era tudo bem sigiloso. No dia a dia era normal, a gente não comentava nada. Geralmente nós só nos encontrávamos à noite, quando íamos dormir, depois que tomava uma [bebida]. Naquela época, depois que estava meio bêbado, a bebida dava mais coragem. Acho que essas ficadas duraram mais ou menos um ano (João, Recife, outubro de 2016). João tinha 23 anos quando foi pela primeira vez a um estabelecimento GLS. Na ocasião, ele foi acompanhado de um amigo para a boate Galpão, que ficava localizada no centro da cidade de Natal, cidade onde residia. Essa experiência, no entanto, foi um momento desconfortável: A primeira boate que eu fui, ela se chamava Galpão, depois eu conheci o Avesso. Foi o meu amigo que me levou. E nas primeiras vezes que eu fui, eu ficava muito por fora, ficava com muita vergonha. Eu não conseguia encarar, paquerar ninguém. Se eu estava sendo paquerado, eu também não estava vendo. No início foi bem complicado, eu realmente não me sentia à vontade, não me sentia muito bem nos locais, principalmente em Natal, que era um local onde eu morava. Mas foi a partir do momento que passei a conhecer a noite e as boates em Recife que eu comecei a paquerar, comecei a ficar e eu procurava aproveitar mais do que quando eu saía em Natal. Em Natal, eu ficava meio receoso, meio com medo de encontrar com alguém conhecido, sei lá. No início era muito confuso. Eu ficava muito perturbado com isso, mas, com o passar do tempo, quando eu saí de Natal e fui morar em Salvador, foi aí que eu me liberei (João, Recife, outubro de 2016). A possibilidade de um anonimato, ainda que relativo, em uma cidade diferente daquela em que morava foi para João muito importante no seu processo de aceitação. Com 84 o passar do tempo, principalmente depois conhecer e frequentar os bares e boates nas cidades de Recife, Salvador e Aracaju, ele foi perdendo a vergonha e o medo que eram tão presentes no começo de sua descoberta sexual: “era nesses espaços onde eu conseguia realmente me libertar, conhecer pessoas, conversar e com o passar do tempo a vontade de ficar com mulheres foi diminuindo e hoje eu não tenho envolvimento nenhum com mulheres”. As primeiras boates que ele frequentou na cidade de Recife foram as boates que hoje já estão extintas, a saber: Butterfly (que ficava no bairro de Boa Viagem), Cats Night Club (que ficava no Recife Antigo) e a Seven (que ficava no bairro da Torre). Ao descrever o seu trânsito entre esses espaços, ele disse que: A Seven ficava, eu acho, que na Torre, lá era bem legal, o público era bem legal; a Butterfly ficava em Boa Viagem e a Cats, ficava no Recife antigo, lá dava bem misturado, dava povão, era mais misturado. Hoje realmente essas boates não existem mais. Na época, eu acho que tinha uns 25 anos, mais ou menos. Se comprado aos dias de hoje, eu acho que era um pessoal mais maduro, mas cabeça. Hoje nas boates é uma galera muito nova. Naquela época o pessoal saía mesmo para se divertir, para paquerar, para namorar. Hoje o pessoal sai muito para caçar, para se drogar. Eu faço comparação essa relação há 17 anos atrás (João, Recife, fevereiro de 2017). João conta que gosta de conhecer os mais variados espaços, sejam aqueles mais incorporados a um “mercado GLS”, sejam aqueles eventos e projetos considerados mais “alternativos”34. Essa multiplicidade de estabelecimentos se constitui, assim, em uma importante oportunidade para fazer diferentes contatos, “com pessoas diferentes e de estilos diferentes”. Além disso, a música é um elemento muito valorizado por ele no momento da paquera, em que a sedução é embalada pelos diferentes estilos musicais. Nesse sentido, ele destaca a influência do estilo bagaceira. Os locais aqui em Recife para os quais eu costumo ir são as boates, principalmente a Metrópole. Hoje eu gosto de todos os estilos de músicas, mas vai depender do ambiente. Só não gosto de rock pauleira. Mas gosto de um barzinho para curtir MPB; gosto de uma música de boate; gosto do pagode; gosto do brega daqui de Recife. Eu tenho curiosidade em conhecer todos os lugares. Aqui em recife, eu já tive oportunidade de ir em todos os lugares. A Metrópole é para onde vai a galera mais 34 O termo alternativo está relacionado aos lugares e/ou eventos que não estão diretamente direcionados ao “mercado GLS”. Em sua maioria, são lugares e/ou eventos planejados para o público em geral. Assim, constituem-se em “uma alternativa para fugir do estereótipo presente no “mercado GLS” ”, de acordo com João. 85 mauricinho, mais patricinha. Já à MKB vai uma galera mais do povão e são pessoas diferentes, estilos diferentes, mas que vale a pena conhecer e eu gosto. Eu acho que nesses locais a gente se sente mais à vontade para paquerar, para namorar, para ficar. Dependendo do local, a música ajuda também, se for um brega, um forrozinho ... O estilo bagaceira é bom para chamar para dançar e ali já conhece, já se envolve (João, Recife, fevereiro de 2017). Notas Os dilemas e os conflitos afetivos, éticos e morais experienciados pelos interlocutores são mais complexos do que a descrição ordinária seria capaz de evidenciar. Pois, trata-se de dilemas e de conflitos que, sensivelmente, lembram-nos da complexidade que caracteriza as formas de viver desses indivíduos e, ao mesmo tempo, como eles são corporificados no campo das práticas avaliativas. Nesse sentido, pretendi descrever o processo de construção das identidades sexuais dos interlocutores. Procurei me distanciar, para tanto, da noção de “essência” ou de uma “natureza” da sexualidade, para, assim, entender a “homossexualidade” como um estilo de vida legítimo. Com isso, tentei perceber, a partir das experiências geracionais dos interlocutores, como esses indivíduos conferem significados às suas práticas (homo)sexuais em uma sociabilidade urbana. Para tanto, fez-se necessário perceber como os interlocutores negociam as suas experiências (homo)sexuais em um regime de visibilidade sexual circunscrito por um campo de possibilidades. Deste modo, pretendi situar essas suas experiências (homo)sexuais em um processo cultural mais amplo de construção da identidade sexual. Com efeito, as curvas de vida analisadas à luz das narrativas compartilhadas assinalam para a complexidade cotidiana na qual esses indivíduos elaboram as suas identidades sexuais. O circuito comercial de bares e boates GLS, bem como as festas alternativas, nesse sentido, constituem-se em espaços de sociabilidade privilegiados no curso da vida dos interlocutores, uma vez que tais espaços aparecem, em suas narrativas, como um campo de possibilidade a partir do qual eles criam laços de solidariedade e performatizam as suas relações de afetos publicamente. Trata-se, assim, de um processo produzido por um quadro de negociações cotidianas e, portanto, marcado por possibilidades de fissuras e divergências. Processo este a partir do qual esses indivíduos podem negociar a visibilidade de suas preferências eróticas e afetivas 86 nas redes familiares, de amizades e de trabalho. Tal processo também se constitui por regimes de regulação da sexualidade, o que, por sua vez, aponta para a dimensão mais ampla da cultura. 87 PARTE II – OS ESPAÇOS 88 CAPÍTULO 2 – Bares e Boates “GLS” Neste capítulo35, procuro assinalar as relações dos interlocutores com a cidade e os espaços de sociabilidade em que eles circulam e transitam. Trata-se, assim, de não encarar a cidade “como um fato dado e mais ou menos como um sistema fechado” (HANNERZ, 2015, p. 262). Muito ao contrário, estou preocupada em descrever a cidade sem me prender a qualquer definição normativa. Por isso, a partir da ideia de uma construção/desconstrução da cidade, interesso-me por entender, sobretudo, como os interlocutores fazem e desfazem a cidade permanentemente. Pois, entendo que são “a descrição e a compreensão do movimento permanente de transformação urbana no tempo e no espaço que podem constituir a contribuição do olhar antropológico sobre a cidade”, uma vez que “a cidade é feita essencialmente de movimento” (AGIER, 2015b, p. 484). Nesta busca por uma precisão analítica, com a finalidade de não construir generalizações sobre a cidade de Recife, nem tampouco sobre as relações sociais urbanas, pois, generalizações necessitam de controle (HANNERZ, 2015), entendo que “é a relação de construção e desconstrução entre o campo de pesquisa e o objeto de pesquisa que torna possível um olhar antropológico sobre a cidade” (AGIER, 2015b, p. 485). Assim, intenciono descrever a cidade de Recife a partir das práticas, das relações e das palavras dos interlocutores. Nesse sentido, Recife emerge como uma cidade múltipla, apesar das delimitações e das caracterizações que as minhas observações, diretas e situacionais, possam sugerir. 35 Versões iniciais deste capítulo foram originalmente escritas como trabalhos de conclusão das disciplinas “Antropologia Urbana” ministrada pelo Prof. Dr. Jean Segata e “Teoria Antropológica Contemporânea” ministrada pelo Prof. Dr. Glebson Vieira, ambas cursadas no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em 2015. Agradeço as leituras iniciais dos referidos professores. Neste mesmo ano, excertos deste capítulo também foram apresentados como comunicação oral do Grupo de Trabalho “Sexualidade, Moralidades e Direitos” coordenado pelo Prof. Dr. Fabiano Gontijo (PPGA/UFPA) e pela Profa. Dra. Laura Moutinho (PPGAS/USP) e comentado pela Profa. Dra. Jane Beltrão (PPGA/UFPA), durante a V Reunião Equatorial de Antropologia (REA) e XIV Reunião de Antropólogos Norte e Nordeste (ABANNE), realizado no período de 19 a 22 de julho de 2015, em Maceió, AL, Brasil. Em 2017, excertos deste capítulo também foram publicados em formato de artigo na Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia do GREM/UFPB, ver Santana (2017). Agradeço às/aos pareceristas anônimas/os desta revista as leituras criteriosas. 89 A cidade pode ser feita de múltiplas maneiras, mas, aqui, interesso-me por descrever a cidade a partir dos trânsitos e das circulações realizadas pelos interlocutores entre os variados espaços de sociabilidade de Recife. 2.1 Etnografia urbanas A cidade, inevitavelmente, se constitui em um dos desafios principais para pesquisas sobre a sociabilidade urbana, principalmente a partir da segunda metade do século XIX, quando se verifica um significativo interesse das ciências humanas pela complexidade da cidade moderno-contemporânea, sobretudo pelas grandes metrópoles. No entanto, será apenas nos primeiros anos do século XX que cientistas sociais se dedicam, de forma mais sistemática, à pesquisa sobre as grandes cidades (VELHO, 1999; 2009). Os trabalhos de Georg Simmel, Robert Park, ou, ainda, de Max Weber, entre outros, são exemplos de textos fundadores dos estudos sobre os grandes centros urbanos. Em larga medida, a primeira geração desses trabalhos foi produzida, entre 1892 e 1929, no Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade de Chicago. Nesse momento, a cidade de Chicago servia como um laboratório urbano privilegiado para um conjunto de pesquisadores que se dedicavam ao estudo do urbanismo como modo de vida. No âmbito da Escola de Chicago, a emergência da cidade, especialmente das grandes cidades, se consolidava como o primeiro plano de trabalho. A Escola de Chicago, nesse sentido, não se constitui necessariamente em uma “escola teórica”, mas sim em um laboratório de atividades de pesquisa (BECKER, 1996), uma vez que a Escola de Chicago apresentava uma diversidade de orientações teóricas. Por outro lado, verifica-se no programa de pesquisas da Escola de Chicago sobre o urbano, entre os diferentes pesquisadores, um interesse comum pelo trabalho de campo e pela observação participante, apesar da separação formal das disciplinas antropologia e sociologia em dois departamentos (FRÚGOLI JR, 2007). Nesse sentido, como analisa Gayle Rubin (2011), as pesquisas sobre o urbano desenvolvidas pela Escola de Chicago foram de larga importância para o campo dos estudos das subculturas sexuais. Assim, ao analisar os principais estudos sobre subculturas sexuais, particularmente as etnografias urbanas de comunidades homossexuais na América do Norte 90 urbana, Rubin destaca a relevância que a antropologia possui para os estudos sobre comunidades sexuais e das populações eróticas. Uma das mais importantes contribuições da antropologia para as teorias contemporânea consistiu, pois, em desnaturalizar o gênero e a heterossexualidade como pressupostos universais. Com isso, a antropologia pôde, de fato, expandir substancialmente a emergente literatura sobre a homossexualidade, especialmente no campo das ciências sociais. No entanto, como analisa a autora, ainda na segunda metade do século XX, a antropologia permaneceu resistente aos estudos sobre sexualidade e, em particular, às pesquisas que eram realizadas em contextos urbanos ocidentais. Nesse sentido, até o início da década de 1970, mais precisamente, a antropologia se encontrava relativamente distante da extensa história que marcava a relação entre ciências sociais e os estudos sobre sexualidade. Trata-se de uma história que, para Rubin, possuía uma distinta e longa linhagem. Ao escavar parte dessa história, a autora resgata analiticamente algumas etnografias de comunidades homossexuais que estavam situadas nas áreas metropolitanas da América do Norte urbana. Na análise de Rubin, essas etnografias são relevantes porque fornecem significativas contribuições à elaboração de novas teorias, bem como de novos paradigmas da sexualidade. O que, por sua vez, marcadamente a partir de meados da década de 1970, possibilitava uma contestação mais eficaz dos discursos hegemônicos da sexualidade, tais como as literaturas médicas e psiquiátricas. Além disso, essas etnografias também proporcionaram um deslocamento dos modelos que estavam fundamentados na noção de “perversão” da variação sexual. Assim, ao deslocar esses modelos a antropologia propôs um relativismo etnográfico da variação cultural nas práticas sexuais. No início da década de 1970, ao procurar estudos sobre a antropologia da sexualidade, Rubin teve contato com variados dados sobre práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo em sociedades não ocidentais. No entanto, os dados sobre comunidades sexuais contemporâneas e, em particular, no contexto urbano, permaneceram escassos. Mas apesar do pouco interesse da antropologia em estudar essas comunidades, Rubin encontrou dois importantes compêndios sobre a antropologia da sexualidade, a saber: Patterns of Sexual Behavior (1951) de Ford e Beach e Human Sexual Behavior (1971) de Marshall e Suggs. Ao analisar Patterns of Sexual Behavior, Rubin sublinha que, muito embora os autores tenham fornecido importantes contribuições à ampliação da variação cultural das 91 práticas sexuais, principalmente porque trouxeram o relativismo cultural para o campo dos estudos sobre homossexualidade, estes, contudo, não forneceram um reconhecimento significativo da complexidade social que marcava as populações sexuais urbanas. Isso se deve, segundo Rubin (2011, p. 313), “a ausência de qualquer consciência de comunidades organizadas de homossexuais nos Estados Unidos”36. Em sua análise, tal ausência deve ser destacada “[d]ado que os grupos sociais são as unidades mais usais de interesses antropológicos”37 (Ibidem, p. 313). Publicado duas décadas depois, Human Sexual Behavior (1971) de Marshall e Suggs, por sua vez, muito embora também tenha abordado a variação cultural das práticas sexuais, ainda discutia a homossexualidade como uma patologia social. Por isso, apesar de terem conhecimento da vida social dos homossexuais urbanos, os autores mantiveram uma postura consideravelmente pouco relativizante. Assim, na medida em que analisa tais compêndios, Rubin ressalta a ironia que reside no fato de que, entre os anos de 1951 e 1971, marcados pela publicação dessas duas pesquisas antropológicas, o trabalho de estabelecer uma abordagem de ciência social para o sexo, de produzir estudos etnográficos de populações sexuais contemporâneas e de desafiar o papel privilegiado da psiquiatria no estudo da sexualidade humana foi realizado em sua maioria por sociólogos38 (RUBIN, 2011, p. 314). Foi, pois, marcadamente no interior da sociologia do desvio que a sexualidade figurou como objeto legítimo de pesquisa das ciências sociais, especialmente durante as décadas de 1950 e 1960. A pequena, mas impactante, literatura existente, ao redefinir a sexualidade e ressituar o desvio sexual como um problema social e não médico, deslocava o interesse nas etiologias dos distúrbios individuais e passava a estudar as estruturas institucionais e os mecanismos de socialização que caracterizavam as subculturas desviantes naquelas décadas. Os estudos das subculturas homossexuais, nesse sentido, não estavam 36 Tradução do original: “the absence of any awareness of organized communities of homosexuals in the United States.” 37 Tradução do original: “Given that social groups are the more customary units of anthropological interest.” 38 Tradução do original: “It is ironic that during the two decades bracketed by these two anthropological texts the work of establishing a social-science approach to sex, of producing ethnographic studies of contemporary sexual populations, and of challenging the privileged role of psychiatry in the study of human sexuality was mostly accomplished by sociologists.” 92 centrados nos indivíduos, mas sim nas comunidades. Assim, a ideia de que a sexualidade era social, bem como a descoberta dos diferentes mundos sociais homossexuais, para Jeffrey Escoffier (2006), foram fundamentais para que a homossexualidade fosse reclassificada. No Brasil, os estudos oriundos da Escola de Chicago ofereceram relevantes instrumentos metodológicos e teóricos para a constituição de um campo de conhecimento inovador para o entendimento do crescimento das grandes cidades. Nesse sentido, os estudos sobre a cidade abriram espaços privilegiados para as discussões que perpassam as complexidades características das metrópoles. Nos últimos anos, a produção de trabalhos relativos à cidade tem sido largamente ampliada, verifica-se assim uma acentuada variedade de objetos e contextos etnográficos. Esses estudos, particularmente os de caráter antropológico, sobre a complexidade dos grandes centros urbanos são relevantes para a presente pesquisa porque, ao ampliar o campo de análise sobre o meio urbano, criaram condições de possibilidade para a emergência de novas articulações analíticas que envolvam as diferentes escalas do urbano (PERLONGHER, 1993; SIMMEL, 2006; FRÚGOLI JUNIOR, 2007; MAGNANI, 1996; 2012; VELHO, 1999; 2002; 2008). Nesse sentido, a constituição do campo dos estudos de gênero e sexualidade e sua relação com a antropologia urbana, no Brasil, tem início pioneiramente nos anos 1970/1980. Deste período emerge os primeiros trabalhos de Carmen Dora Guimarães (2004 [1974]), Edward MacRae (2005 [1983]; 1987), Peter Fry (1982) e Nestor Perlongher (2008 [1987]), particularmente sobre a homossexualidade masculina. Nos anos 1990/2000, verifica-se uma acelerada expansão dos estudos sobre a identidade homossexual na antropologia brasileira. Para Sérgio Carrara e Júlio Simões (2007), trata-se de um período marcado pelos trabalhos pioneiros de Maria Luiza Heilborn (1996), Peter Fry e Edward MacRae (1991), Richard Parker (1991; 2002), entre outros. No campo de estudos mais recentes sobre a homossexualidade masculina, Júlio Simões e Sérgio Carrara (2014) destacam que este período tem se configurado por uma crescente polarização em relação à identidade homossexual como uma categoria identitária e classificatória. Para Regina Facchini, Isadora Lins França e Camilo Braz (2014), por sua vez, o contemporâneo campo dos estudos antropológicos sobre diversidade sexual e de gênero no Brasil também tem sido marcado por uma crescente e diversificada produção sobre sexualidade, sociabilidade e mercado. As autoras sublinham, nesse sentido, os 93 trabalhos pioneiros de Ronaldo Trindade (2004), Isadora Lins França (2012), Camilo Braz (2012), entre outros. Essas etnografias urbanas servem aqui como inspirações. Pois esses trabalhos nos possibilitam visualizar como, no Brasil, a partir do processo de abertura política e de militância homossexual, verifica-se uma crescente visibilidade pública da identidade homossexual. Com a ampliação e a diversificação de locais/espaços físicos de sociabilidade homossexual, também se constatou um crescimento expressivo de formas culturais e políticas de se performatizar a homossexualidade publicamente. Esses espaços urbanos públicos ou comerciais, por sua vez, passaram a ser localizados simbolicamente como um “gueto homossexual” (GREEN; TRINDADE, 2005), o qual era circunstancialmente apropriado por pessoas com práticas homossexuais para encontros com outras pessoas que compartilhavam uma vivência homossexual. Trata-se de um período marcado pelo final do regime autoritário, e, portanto, ainda sensivelmente marcado pela experiência pelas contradições históricas que caracterizam este momento, bem como pelos efeitos da ditadura no cotidiano de pessoas com práticas homossexuais (GREEN; QUINALHA, 2014; OLIVEIRA; SANTANA, 2016). Neste processo significativo de mudança social, os estudos sobre homossexualidade masculina e sua relação com práticas de consumo, estilos de vida e individualidade no espaço urbano têm demonstrado que a segmentação de consumo vem promovendo uma maior diversidade de estabelecimentos destinados ao público “GLS” (FRANÇA, 2006; 2006a; 2007; 2012; 2013; HENNING, 2008; TRINDADE, 2004; RIBEIRO, 2012; REIS, 2012). Essa segmentação de mercado, nos estudos referidos, tem promovido uma ressignificação das práticas de consumo dos espaços de sociabilidade urbana destinados ao público mencionado. Intensificando, assim, as diferenças e hierarquias internas como, por exemplo, o aumento de bares e boates com propostas específicas para públicos diferenciados dentro do universo LGBT. Esses estudos ressaltam, ainda, que, as práticas de consumo dos e/ou nos lugares direcionados para o público LGBT devem ser analiticamente articuladas com os marcadores sociais e identitários da diferença, uma vez que as práticas de consumo desses lugares atuam na constituição dos processos de subjetivação, individualização e diferenciação dos indivíduos no urbano, pois, “a articulação entre os marcadores sociais de diferença, 94 produzem não só posições de sujeito diversas, mas também sentidos diversos de lugar” (FRANÇA, 2012, p.27). 2.2 Recife na cena etnográfica Em Recife, os espaços circunscritos pelo “mercado GLS” encontram-se próximos à avenida Conde da Boa Vista, principal avenida comercial da cidade, conforme podemos observar na 4ª edição do guia gay de Recife39. Nas proximidades desta avenida, encontra-se a maioria dos estabelecimentos GLS da cidade. Para Júlio, trata-se de uma região considerada mais permissível, nesse sentido, ele comenta “essa avenida é muito gay, é tipo uma Avenida Paulista Recifense”. Figura 1: Estabelecimentos gay friendly em Recife Fonte: Guia Gay Recife/ Reprodução40 39 É importante ressaltar que Recife foi a primeira capital do Nordeste a fazer parte do guia gay, um projeto da Guiya Editora. “No guia, o turista encontra as informações elencadas por bairro. Além dos pontos turísticos, o folder apresenta dicas culturais para os meses subsequentes. Antes do Recife, outras capitais já foram retratadas no guia, como Belo Horizonte, Brasília, Florianópolis, Rio de Janeiro e São Paulo”. Disponível em: hp://www.diariodepernambuco.com.br/app/nocia/turismo/2013/08/30/interna_turismo,459442/guia-de- turismo-voltado-ao-publico-gay-comeca-a-ser-distribuido-nestesabado.shtml. Acesso em 16 de março de 2017. 40 Fonte: Guia Gay Recife 4ª edição (jul–out/16). Disponível em: https://issuu.com/guiya- editora/docs/guia_gay_2016_1_guide/1?ff=true&e=8101099/37013859.Acesso em 16 de março de 2017. 95 Já na região litorânea da cidade de Recife (figura 2), encontra-se uma menor expressividade dos espaços voltados para o “mercado GLS”. Nesse sentido, podemos citar a Boate San Sebastian e o Parque Dona Lindu, ambos localizados no bairro de Boa Viagem. Na região que circunscreve esses espaços, situa-se também a concentração da Parada da Diversidade de Recife41. Figura 2: Pontos “gay friendly” na Zona Sul de Recife Fonte: Google My Maps A minha pesquisa concentrou-se prioritariamente na região do centro da cidade, tendo em vista o fácil acesso à essa região, além de ser este o local com a maior concentração de estabelecimentos voltados para o “mercado GLS”. Nas proximidades desta região, também ocorre a maior parte das festinhas “alternativas”42. 41 Sobre a Parada da Diversidade em Recife, ver Corrêa (2012). 42 Dedico o capítulo 3 desta dissertação para analisar algumas dessas festas alternativas (Terça do Vinil, Brega Naite e Boogie Night). 96 2.2.1 O Santo Bar Inaugurado no final de 2012, o Santo Bar43 fica localizado na rua das Ninfas, número 84, no centro da cidade de Recife. Este espaço conta com dois ambientes. O ambiente aberto possui telões que exibem clipes de divas do pop e um bar. Já o ambiente fechado tem a “pistinha” na qual se toca música eletrônica dançante em seus variados estilos. Este possui, ainda, duas salinhas, além de um bar e dois banheiros. O espaço fica ao lado da Boate Metrópole e serve como “esquenta” nas noites de sextas-feiras e sábados. De acordo com alguns interlocutores: “o Santo Bar é uma galera mais intelectual”, “ali é cheio de ursinhos moderninhos, barbudos, bem vestidos e usando aqueles óculos de gente intelectual”. 43 “O ditado popular diz: “o primeiro gole vai para o santo”. Essa foi a deixa para transformarmos o casarão construído em 1920 no Santo Bar. O Santo Bar tem no cardápio couvert, entradas, saladas, panelinhas e sanduiches. Na carta de bebidas, um quesito a parte, ganhou cervejas artesanais dos rótulos Baden Baden, Eisenbahn e chopp Devassa. Já nas bebidas quentes o forte são as caipifrutas e drinks preparados pelos “barmen”. Com especial destaque para caipifrutas de manga e tangerina com toque de pimenta. A decoração do Santo Bar chama a atenção pela sua modernidade assinada pelo arquiteto Pedro Paschoal, que valorizou as cores laranja e verde em todo espaço interno da casa, ganhou uma moderna iluminação de Led RGB que alternam cores. Na pista de dança encontramos as imagens da Santa Griffe, Cristo Silva e Bastião Pernambucano e outros ícones do artista paulista Ozi Duarte (conhecido internacionalmente por sua arte). Nos dois lounges privês: do Rei e da Rainha temos as telas do artista plástico Carlos Pompeu onde retrata a imigração africana no Brasil na época da escravatura e placas de azulejo dos artistas Bonassi. Pelo corredor encontramos imagens de fachadas de igrejas e da religiosidade dos brasileiros pelo fotógrafo capixaba Canário Caliari em sua caminhada remapeando o Brasil. No bar interno a marchetaria pernambucana dos anos 20 ganha destaque no balcão, em forma geométrica, onde é possível ao mesmo tempo beber e paquerar. A casa tem ainda uma área externa com varanda e um pátio ao ar livre arborizado e com área coberta onde é possível desfrutar o clima local. Este ambiente foi decorado com iluminação indireta, bancos de madeira de demolição e mesas, faça a sua reserva! Com um ambiente cool, o Santo Bar é um lugar onde comidas, bebidas, amigos, turistas e boa conversa. O bar é para cutir um happy hour (De quarta a sábado a partir das 19H) ou uma noitada regada com melhores DJ`s. Aos domingos temos temporadas de samba”. Disponível em: https://pt- br.facebook.com/osantobar/info/?section=hours&tab=page_info. Acesso em 19 de julho de 2016. 97 Foto 1, 2, 3 e 4: O Santo Bar Fonte: Arquivo pessoal (Recife, agosto de 2016). Ampliando a rede Ao longo da semana, Júlio e Marcos me ligaram, convidando-me para acompanhá- los em um aniversário de uma amiga que seria no Santo Bar: “ vamos, assim você aproveita para conhecer novos amigos”, enfatizava Júlio. 98 Eles preferem frequentar as festas mais “alternativas”, como a Kinada Querida, pelo fato de ser uma festa open bar e não ter a necessidade de se preocupar com questões financeiras. Assim, essa festa era considerada, por eles, como “uma festa ideal para os universitários”. No momento da pesquisa, porém, já presenciávamos a diminuição da realização dessas festas em Recife. Nesse sentido, Marcos mencionou que essa situação estava ocorrendo em função da nova lei municipal44, a qual proibia a realização de festas open bar. Na avaliação de Júlio, “agora essas festas, que antes eram open bar, como a festa Kinada Querida, provavelmente não terão mais graça, porque essas festas são conhecidas justamente por serem festas open bar, onde o pessoal vai com intuito de beber e não se preocupar com valores”. Estava hospedada na casa de Júlio e Marcos. Estávamos na sala, conversando sobre festas, quando o celular de Júlio tocou: era Diego avisando que naquela noite a entrada no Santo Bar era free até às 21h. “Mas já são 19:30h. Não vai dar tempo, ainda temos que nos arrumar”, comentou Marcos. Júlio imediatamente olhou os valores no Instagram e comentou: “mas é 10 reais, se não der tempo entrar free não tem problemas”. Fomos nos arrumar, sem a pretensão de chegar antes das 21h ao local. Comentei que nem sabia a roupa que usaria. Júlio comentou para ir com “algo mais tranquilo”. Então, lhe perguntei se estava bom eu me vestir com um vestido e calçar um scarpin. Ele respondeu: “Vamos de ônibus, bonita, então é melhor deixar o scarpin para outra oportunidade e vá com algo mais tranquilo. E hoje é quinta-feira, as pessoas estão mais básicas”. Ao ver o meu scarpin amarelo mostarda com seus 5cm de salto alto, Marcos comentou: “Não. Vá com sua sapatilha, algo básico, bem melhor”. Falei que deixaria para usar o scarpin na minha ida à MKB. Marcos imediatamente falou: “Não! Pra MKB devemos ir simples, o mais básico possível, não podemos chamar tanta atenção. As pessoas já vão saber que não pertencemos àquele mundo. E você normalmente já chama atenção, imagina com esse scarpin amarelo! ”. Sou apaixonada por scarpin, porém, ao acompanhar os interlocutores mais jovens, que, em sua maioria vão de ônibus até os espaços, sou convidada a deixar o scarpin de lado e usar uma sapatilha, pois era “algo mais confortável”. Além disso, como comentou Júlio, na ocasião de um possível assalto, eu poderia correr com mais facilidade. Era 21h quando saímos caminhando até à parada de ônibus, que ficava a 10 minutos dali. Quando chegávamos próximo à parada de ônibus, 44 A nota publicada no site da Prefeitura de Recife diz que: “O vereador Luiz Eustáquio (PT) usou a tribuna na tarde desta terça-feira, 10, para destacar o Projeto de Lei 16/2015, de sua autoria, que proíbe a venda de ingressos denominados de “open bar” ou assemelhados em eventos de apresentações artísticas e culturais no Recife. “O projeto tem o objetivo proibir esse tipo de venda que prejudica a vida das pessoas que participam desses tipos de eventos”. Disponível em: http://www.recife.pe.leg.br/noticias/luiz-eustaquio-comenta-projeto- de-lei-que-proibe-festas-open-bar. Acesso em 09 de agosto de 2016. 99 avistamos o ônibus, corremos um pouco e pegamos a linha UR7 Várzea. (Diário de campo, Recife, maio de 2015). A cena descrita acima ocorreu em uma quinta-feira. Nesse sentido, trata-se de um percurso que produz uma dinâmica diferente na construção daquela paisagem urbana, quando comparado às noites de sextas e de sábados, nas quais a Boate Metrópole funciona. Naquela noite, as ruas estavam mais desertas e precisávamos apressar os passos para chegar ao Santo Bar. O Santo Bar é um casarão adaptado que tem uma área externa bastante ampla, com mesas, cadeiras e alguns telões. A música na área externa geralmente é ambiente, o que possibilita manter um diálogo agradável sem a necessidade de gritar ou falar ao ouvido. Em sua maioria, as músicas tocadas eram de divas do pop music, assim nos telões espalhados pelo bar, era possível conferir os clipes musicais de divas como Beyonce, Rihanna, Britney, entre outras. Após mais ou menos trinta minutos conversando sobre vida acadêmica, Júlio me convida para irmos ao caixa comprar o real pink, a moeda própria da Boate Metrópole e do Santo Bar, um real pink equivale a 2 reais. Júlio seguiu na frente e esquecendo que já tínhamos indo ao espaço, mesmo que de forma rápido em 2013, foi me mostrando o local. “Vamos Chiara, o caixa fica na casinha”. Entrando no casarão, pela porta lateral, havia um caixa onde compramos a moeda real pink. Logo após o caixa, havia um balcão onde se vendia as bebidas na área interna. A entrada principal, nas palavras de Júlio, “era a entrada para a salinha que é a pistinha, essa porta da frente é fechada quando o deejay começa a tocar”. A “pistinha” tinha uma decoração bem moderna, com grafite de santos e deuses, por isso o nome do local ser Santo Bar. Havia duas caixas de som na parte superior e um jogo de luz, uma ambientação básica quando comparado à estrutura de uma boate. Havia algumas folhas secas no chão que faziam parte da decoração. Do lado direito da pistinha, havia um corredor e duas salinhas, com sofás e poltronas. Seguindo pelo corredor, ao final, havia o banheiro. Era cedo, não havia ninguém na área interna. Seguimos para a área externa, onde Marcos, Diego, Arthur, Lucas e Jéssica nos aguardavam (Diário de campo, Recife, maio de 2015). A ida ao Santo Bar serve, aqui, como um importante momento para estreitar relações com Diego, Lucas e Arthur. Na ocasião falávamos sobre o “mercado GLS” da cidade. Foi nesse momento que Júlio comentou para o resto da turma que iríamos para a Boate MKB no sábado. Enquanto na mesa, os rapazes ficaram em silêncio e aparentavam semblantes de surpresa, Júlio ressaltou que seria uma oportunidade para eles conheceram a boate. Nessa 100 rede de contato, apenas Júlio já havia frequentado a Boate MKB, os outros evitavam esse espaço devido à sua fama de local marginalizado entre sua rede de amigos. A Boate MKB fazia parte do trânsito de uma outra rede de interlocutores, porém alguns não estavam em Recife naquele final de semana ou não poderiam ir em função de compromissos anteriormente agendados. Como eu estava decidida a ir para a MKB e conhecer a sua dinâmica interna, bem como conseguir novos interlocutores, esta decisão pareceu também interessar a Júlio e Marcos, que se colocaram à disposição para me acompanhar. Ao final do convite e algumas explicações minhas sobre a importância de inserir a MKB em minha pesquisa, todos os presentes falaram que iriam em contribuição à minha pesquisa. “Vamos sim, em grupo será mais interessante, Chiara. Vamos, mas tudo por sua pesquisa”, disse Lucas sorrindo. Agradeci o interesse, mas deixei claro que não deveriam se sentir obrigados a me acompanharem, tendo em vista que a MKB não fazia parte dos locais por eles frequentados. Neste momento, Diego ressaltou que: “Na verdade, era a desculpa que precisávamos pra ir à MKB”. Minha pesquisa, assim, se tornava uma possibilidade para essa rede conhecer a MKB e a “fama” que este espaço possuía entre os seus amigos, “que se aventuraram a ir à boate algum dia”. “Vamos tentar juntar mais gente”, comentou Marcos. Estávamos sentados à mesa próxima ao telão o qual exibia os clipes musicais de divas do pop music. Lucas, que estava sentado de frente para o telão, sempre interagia com as músicas que estavam sendo tocadas: cantando-as e repetindo os movimentos corporais feitos pelas cantoras nos clipes. Era aproximadamente 22:30h quando resolvemos ir para a pistinha, que não estava lotada. O telão ainda estava ligado, o que fazia com que Lucas e Júlio prestassem atenção nos clipes que estavam passando na tela. As pessoas ainda estavam mais conversando do que dançando, era um ambiente de lounge. À medida que a pista foi lotando, as luzes foram diminuindo e os monitores desligados. Tocava-se uma música house, composta pelos hits de divas do pop music como Britney, Cristina Aguilera e Beyonce. Fui com Júlio comprar bebida no bar externo. Era 23:30h e a parte externa já estava vazia, já que todas as pessoas estavam concentradas na pistinha, que estava “bombando”. Fizemos uma rodinha, eu ficava encostada na parede, assim teria uma visão mais privilegiada de toda a pista. À medida que os copos eram esvaziados e as músicas conhecidas eram remixadas pelo deejay, os presentes ficavam mais animados. O 101 deejay tocou a música Work Bitch45 da cantora Britney e Júlio imediatamente, como um super fã da cantora, começou a mimetizar de maneira semelhante a cantora. Em seguida, o deejay remixou a música Run The World46 da cantora Beyonce. Agora foi a vez de Lucas mimetizar de maneira semelhante a cantora. Suas performances eram ritmadas de acordo com as batidas musicais. Nesse sentido, Arthur comentou: “Júlio está ganhando de você viu Lucas”. Este comentário de Arthur fez com que os rapazes desse início a uma “competição” (Diário de campo, Recife, maio de 2015). A dinâmica da pista de dança presente na “pistinha” do Santo Bar aparece, assim, como um importante dado para essa pesquisa, na medida em que os bares, com estruturas e dinâmicas diferenciadas das boates, chamam atenção para as diferentes formas de produção e consumo da música eletrônica em seus mais variados estilos. Notei que, naquela noite, a “pistinha” do Santo Bar apresentava mais músicas pop; o público em geral dançava da mesma forma que o grupinho com quem estava, no qual os meninos sempre faziam performances de suas divas. As “barbies”47 que ali estavam não tiraram a camisa, nem ficaram no centro da pista, como geralmente ocorre nas boates onde a música de estilo tribal house costuma ser mais pesada e com menos vocal. Já era 1h da madrugada e Júlio trabalharia cedo. Comentei com Marcos que estava junto com eles e que quando eles quisessem ir embora era só avisar. Voltamos ao grupo e Lucas e Arthur saíram para comprar bebida. Ficamos dançando e aguardando o pessoal voltar. Quando os rapazes voltaram, ficamos mais 10 minutos dançando. Depois disso, Marcos comentou com Lucas que iríamos embora. “Aguarda mais um pouco, acabei de pedir para o deejay tocar Mia”, comentou Lucas. Em seguida, o deejay remixou outra música que não era Mia, Marcos insistiu que iríamos embora, e Lucas comentou sorrindo: “ você não pode ir agora, você está comprometendo a pesquisa de Chiara”. Marcos me olha com cara de cansado e eu comentei que estava ali acompanhando-os e que o momento deles era o meu momento também. “ O Lucas sabe, ele só está usando isso como desculpa”, comentou Júlio. Lucas já estava suado de tanto dançar, ele não parou um segundo. As vezes em que foi comprar bebida, ele saiu de lá dançando e cantando. Já era quase 2 hs da madrugada quando Marcos bateu o pé e resolveu ir embora. Nos despedimos de Lucas, Arthur e Jéssica, que ficaram mais uma hora por lá. No táxi, Diego comentava o quanto estava ansioso para o próximo 45 Música disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pt8VYOfr8To. Acesso em janeiro de 2017. 46 Música disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VBmMU_iwe6U. Acesso em janeiro de 2017. 47 A categoria “barbie” é tida como o estereótipo do gay voltado ao “mercado GLS”. Geralmente são homens brancos, depilados, tatuados e com o corpo musculoso (fruto de longas horas de academia), usam roupas de marcas famosas que modelam o corpo e frequentam as boates mais caras da cidade, sendo em sua maioria homens de classe média e alta. 102 sábado porque iríamos à MKB: “o pessoal já estava querendo ir mesmo, só faltava a desculpa para frequentar àquele espaço”. Descemos na casa de Júlio e Marcos, e Diego seguiu no táxi (Diário de campo, Recife, maio de 2015). 2.2.2 Conchittas Bar O Conchittas Bar fica localizado na avenida Manoel Borba, no centro da cidade, ao lado do Miami Pub e do Clube Metrópole. Em sua página do facebook, o local era definido como “o melhor point alternativo do centro da cidade do Recife”48. É um local bastante frequentado por alguns interlocutores que fazem parte da “rede mais madura”, a exemplo de João, Pedro e Marcelo, frequentadores mais assíduos desse estabelecimento. A variedade musical é um dos quesitos destacados pelos interlocutores. Nas apresentações dos deejays, os estilos musicais transitam entre brasilidades e o house music. Como explica Marcelo: No Conchittas é de tudo um pouco: toca funk; toca música de atualidades, essas músicas que estão fazendo sucesso hoje em dia; toca brega; até frevo pernambucano toca [...]. Eu gosto desse estilo diversificado. Como eu disse, eu sou muito eclético, então se eu vou para um ambiente que toca todo tipo de música já me agrada, porque em um único ambiente eu vou ouvir todos os estilos musicais que eu gosto. Eu frequento bastante os locais que têm esse tipo de música, onde são tocados vários ritmos diferentes, vários estilos musicais diferentes, vários tipos musicais diferentes numa noite só (Marcelo, Recife, outubro de 2016). O bar ficava ao lado do Place Bar49, mas em abril de 2016 “atravessou a rua e foi para o atual endereço”. Lá no Conchittas tem deejays durante a semana toda com programações já fixas, além de bandas ao vivo: Às terças-feiras têm as “Tuas Terças”, geralmente com a deejay Juliana Vieira; já às quartas-feiras têm as “Quartas com Estilo”, com o deejay Luciano Barreto; às quintas têm as “Quintas dos Alternas”, com a deejay Juliana Vieira; às sextas-feiras e aos sábados geralmente é com o deejay River; e aos domingos tem banda 48 Disponível em: https://www.facebook.com/pg/conchittasbar/about/?ref=page_internal. Acesso em 20 de janeiro de 2017. 49 O Place Bar fica na avenida Manoel Borba, esquina com a rua das ninfas. Sua programação conta com apresentações de deejays e possui uma pistinha na área interna. As pessoas, em sua grande maioria ficam em frente ao bar observando a movimentação entre os diferentes estabelecimentos que fazem parte daquela paisagem (Clube Metrópole, Miami Pub, Conchittas Bar, Santo Bar e ambulantes). 103 e deejay. É um espaço bem agradável com decoração bem interessante, mas lá não tem pista de dança e é muito quente [...]. Mas ficamos na parte externa, indo e vindo para o Place [bar que fica no outro lado da rua] (João, Recife, agosto de 2016). Para João, a única desvantagem seria que o bar tem muitas mesas e cadeiras e não existe uma pista de dança, preferindo assim ficar na parte externa onde pode transitar entre um estabelecimento e outro. Sobre essa dinâmica, João disse que: “bebemos uma cervejinha no Conchittas, depois bebemos outra no Place e ficamos nesse vai e vem”. Ressalta, também, que, o fato de o Conchittas não cobrar entrada torna-se um componente favorável para esse trânsito entre os bares. Destaco aqui a relação estabelecida dos interlocutores com o Conchittas Bar, o Place Bar e a ocupação do espaço público, seja enquanto um ponto de esquenta nas noites de sextas-feiras e sábados, antes de entramos nas boates Metrópole ou Miami Pub, seja como um único destino em dias de semana. A movimentação entre os bares é vista como componente interessante para pensar na relação de ocupar as ruas. Saindo do anonimato que encontrariam dentro das boates, os interlocutores destacaram a importância de ocupar outros espaços da cidade como uma forma política. Foto 5: Conchittas Bar Fonte: Facebook Conchittas Bar/Reprodução 104 Foto 6: Conchittas Bar Fonte: Facebook Conchittas Bar/Reprodução Para alguns interlocutores, a exemplo de Otávio e Iago, o Conchittas Bar, assim como a Terça do Vinil, por serem locais considerados mais “alternativos” e por atraírem uma clientela “mais alternativa”, seriam espaços desvalorizados por eles, preferindo, portanto, o Santo Bar, “um espaço mais moderninho”. Diferentemente de João, Pedro e Marcelo relataram preferir o Conchittas por ser justamente este um espaço mais alternativo, onde existe a presença de pessoas consideradas, por eles, como “mais maduras e experientes”. De acordo com a pesquisa feito por Luiz Henrique Souza (2016, p.84) tem-se que: O Conchittas Bar foi fundado no ano de 2011, por um casal heterossexual. Segundo nosso interlocutor, foi pensado como a oportunidade de serem proprietários de um comércio e não mais prestar serviços à terceiros. Idealizado inicialmente para ser uma lanchonete, com opções variadas de hambúrgueres, (por acreditarem na escassez desse tipo de comércio na região), o espaço, localizado na Av. Manoel Borba, nº 654, no bairro da Boa Vista, em frente à Boate Metrópole, passou, com o avançar dos anos, a se reconfigurar como bar, pelos proprietários terem percebido que o público frequentador estava bem mais interessado nesse tipo de estabelecimento, fator muito influenciado pelos comércios em funcionamento ao redor do espaço. Ele afirma que reconhece o espaço como alternativo, configurando-se uma estratégia de acolher os gays, lésbicas, simpatizantes e heterossexuais que o frequentam. Argumenta que, por estar em frente a uma das maiores boates GLS da cidade, o bar passou a ser muito frequentado pela população LGBT e reconhecido como um espaço destinado a esse público, que o 105 adotou como local de encontro e/ou esquenta antes de ir as boates e/ou, simplesmente, curtir o fim de semana. Em agosto de 2016, a primeira vez que estive no Conchittas, eu estava acompanhada de João e Pedro. Era um domingo e aproveitamos o ambiente mais calmo para conversamos a respeito de seus trajetos-circuitos pelos diferentes espaços de sociabilidade da cidade. Nesse sentido, era comum encontrar com pessoas com as quais já tínhamos nos esbarrado na Terça do Vinil. Pois, os espaços possuem uma dinâmica muito parecida, principalmente quando vista a partir dos interlocutores aqui apresentados. São, portanto, locais onde a música “acompanhava um bom papo” e a rua era ocupada, dando vida à Recife e tornando- a mais democrática. 2.2.3 A Boate Metrópole A Boate Metrópole fica localizada na Rua das Ninfas, 125, no centro da cidade de Recife. Próximo à boate é possível encontrar prédios residenciais e outros estabelecimentos voltado ao público LGBT. A boate conta com seis ambientes, a saber: pista New York, pista Brasil, Recife night, Escape, Au Au e camarote ostentação. Por ser considerado um espaço bem localizado, com uma estrutura diferenciada e moderna, a boate atrai um público diversificado: “bichas metidas a fina”; “ah, na metrópole é um concurso de beleza”. É uma boate que investe na música eletrônica, em seus mais variados estilos. Todos os espaços oferecem música eletrônica dançante, apesar de alguns dias contarem com a presença de bandas e cantoras divas do pop music. “A queridinha de Recife” A Boate Metrópole completou 15 anos de atividades em maio de 2017. Em conversa com Júlio sobre a permanência de boates na capital pernambucana, mencionei o quanto era importante esses 15 anos e que por isso a boate era tão apreciada entre o público pernambucano. Nesses 15 anos, a boate já passou por diversas transformações, Júlio acompanhou os últimos 10 anos e para ele, “a Metro já foi a boate gay ‘quero ser rica e ostentadora’, mas logo a Metro se adaptou para ser mais classe média e hoje é bem mista”. 106 Já acompanhei Júlio e Marcos em vários momentos marcantes que tiveram a Boate Metrópole como local escolhido para suas comemorações de aniversários, encontros com amigos, idas a shows de artistas famosos, participação em concursos de talentos, nos quais Júlio se apresentou como cantor, entre outros. Frequentar esse espaço significa, para Júlio, mais do que uma simples ida a uma festa, “com o passar do tempo foi se tornando algo mais político mesmo, assim, no sentido de se reconhecer e se afirmar naquele espaço como tal”. A Boate Metrópole, assim como o Santo Bar e o Miami Pub são estabelecimentos pertencentes ao Grupo Metrópole, que tem a empresária Maria do Céu como responsável. Ligada às causas LGBT, a empresária é conhecida como “madrinha da comunidade LGBT de Pernambuco”50, título este dado pelo colunista Orismar Rodrigues. O Grupo Metrópole também é o responsável pelo Instituto Boa Vista.51 Desde 2015, a empresária Maria do Céu assumiu a coordenação da diversidade pelo PPS, partido ao qual ela está vinculada há mais de 12 anos52. Em 2016, foi candidata à vereadora da cidade de Recife pelo PPS53, sendo seus estabelecimentos sede para rodas de conversa do movimento #Recifelivre. Trata-se de um movimento que tem como proposta “fortalecer o combate ao preconceito e semear uma cultura de paz e tolerância em nossa cidade, somando esforços para a garantia de direitos e o respeito à diversidade”54. Ir a esses estabelecimentos de sociabilidade é assim ressaltado, por Júlio, como um ato político, pois não se pode negar a relação da boate com a memória LGBT local. “As bichas são artistas, elas querem ser artistas, se sentir uma diva” Para Júlio, a relação da música nesses/desses espaços de sociabilidade urbana é elemento fundamental na formação de sua identidade sexual: “as boates foram os primeiros 50 Disponível em: https://ppdiversidade.wordpress.com/2008/11/20/entrevista-maria-do-ceu/. Acesso em 26 de julho de 2016. 51 O Instituto Boa Vista “surgiu com o Clube Metrópole como expressão de um compromisso social diante da necessidade de fornecer à Comunidade LGTB um amplo apoio e orientação às dificuldades encontradas no âmbito social, familiar e profissional, em razão da orientação sexual do indivíduo”. Disponível em: http://www.institutoboavista.org.br/sobre-o-instituto-boa-vista/. Acesso em 26 de julho de 2016. 52 Disponível em: http://blogs.ne10.uol.com.br/jamildo/2015/10/09/maria-do-ceu-assume-pps-diversidade-e- pr mete-trabalhar-contra-estatuto-da-familia/. Acesso em 26 de julho de 2016. 53 Ver: http://blogs.ne10.uol.com.br/jamildo/2016/05/02/propaganda-do-pps-vai-ao-ar-com-foco-em-maria- do-ceu/. Acesso em 26 de julho de 2016. 54 Disponível em: http://www.recifelivre.org/#!quem-somos/q1shl. Acesso em 26 de julho de 2016. 107 espaços onde eu podia ser eu mesmo, sem preocupação”, disse ele. O que se observa, nesse sentido, é que esses espaços de sociabilidade urbana voltados ao “mercado GLS” são tidos também como espaços de liberdade, da diversidade e de “saída do armário”. As músicas com vocal de divas do pop music são tidas como “hino de liberdade”. Para Júlio, essas músicas têm letras que dão certo engajamento político. Ele acredita que essas divas, que cantam canções em que as letras “defendem o público LGBT”, são tidas como um modelo a ser seguido. Nas palavras de Júlio, “as bichas são artistas, elas querem ser artistas, se sentir uma diva”, assim, ao cantarem e dançarem as músicas dessas cantoras, esses homens se sentem libertos de padrões heteronormativos. Era uma noite de sábado, do inverno de 2014, quando fui com Júlio e Marcos para a Boate Metrópole. Na ocasião chamou a minha atenção a dinâmica presente no Bar Brasil: No palco, seis rapazes dançavam de forma sincronizada músicas de divas do pop music, como Rihanna, Britney, Lady Gaga e Beyonce. Uma vez que eles não usavam roupas padronizadas, disse a Júlio que estava na dúvida: se era atração da boate ou se as pessoas que ali se apresentavam estavam apenas dançando sem necessariamente se conhecerem. Ele comentou que: “São pessoas normais, quem quiser é só subir e dançar”. Estava muito perfeito, havia uma sincronia naquele grupo, não dava para imaginar que não tinham ensaiados juntos. “As bichas já sabem de todos os passos das músicas, por isso é tão sincronizado”, comentou Júlio. Fiquei dez minutos hipnotizada [...]. Aumentava ainda mais o desejo de escrever algo sobre o que estava observando, sobre a relação da música nesses espaços e as interações sociais que eram ali promovidas. Fascinava-me o poder que a música exercia entre os dançantes (Diário de campo, Recife, junho de 2014). É com a Boate Metrópole que a maioria dos interlocutores mais jovem se identificam. “Não vamos muito, mas indo nela sabemos o que vamos encontrar”, comenta Júlio. Encontrar algo que lhes seja familiar é assim uma característica de pertencimento com o espaço. Em uma das vezes que fui com Júlio para a Metrópole, ele, completamente envolvido pelo estilo de música eletrônica classificado como bagaceira, comentava o quanto gostava do espaço, o Bar Brasil, e o quanto aquela noite estava sendo maravilhosa. Estava tirando algumas fotografias do espaço e aproveitei para fazer um pedido a Júlio: solicitei que ele tirasse fotografias que, para ele, representassem a Boate Metrópole. Disse-lhe: ‘Júlio, eu quero fotografias que representem sua visão, o que você sente quando vem ao Bar Brasil ou a pista New York, quando circula pelos diferentes espaços da Boate Metrópole’. Júlio imediatamente tirou o celular do bolso, deu um giro observando o espaço do Bar Brasil e pensativo ficou alguns segundos até sair em busca do click perfeito (Diário de campo, Recife, março de 2016). 108 Foto 7: Um olhar de Júlio para o Bar Brasil Fonte: Arquivo pessoal Júlio (Recife, março de 2016) Foto 8: Um olhar de Júlio para a pista New York Fonte: Arquivo pessoal Júlio (Recife, março de 2016) A imagem intitulada “um olhar de Júlio para o Bar Brasil” é, para Júlio, “uma imagem bem marcante, pois mostra minhas impressões mais fortes imageticamente falando quando penso em boate gay. Iluminação viva, cores que remetem ao amor, à pegação e à sensualidade. Muita gente reunida, buscando diversão e algo mais”. O Bar Brasil é um espaço direcionado às músicas mais ecléticas, sendo o estilo intitulado de bagaceira um dos 109 mais apreciados. A foto de Júlio é interessante para pensar a relação entre este estilo musical, o brega e o clima de sensualidade presente entre os dançantes, a iluminação mais intimista que remete às imagens dos cabarés, onde as luzes são vermelhas e a palavra de ordem é a sedução. Ao fundo é possível observar seis jovens dançando no palco, nesse sentido, disse Júlio: “cada um quer o seu momento artista da noite”. Já a imagem intitulada “um olhar de Júlio para a pista New York” possui os seguintes sentidos para Júlio: Essa do globo eu realmente acho que tem algo metafórico em relação ao globo de luz. Traz um quê de narcisismo por ser formado por espelhos. Gays adoram espelhos e de brincar com suas imagens refletidas. Aí vem a luz, que não só evidencia a imagem do espelho como irradia por todo o espaço (Júlio, Recife, julho de 2016). A pista New York é a pista principal da Boate Metrópole, tendo quatro painéis de LED RGB distribuídos pelo ambiente: um painel superior à entrada principal (ver foto 9), dois na parede do lado esquerdo, um superior ao palco e outro destacando a cabine do deejay. São luzes controladas por software, assim há uma harmonia entre a música e a iluminação. Completando o ambiente moderno, logo após a entrada principal há uma parede toda espelhada do lado direito (ver foto 9). O som presente nesse espaço é mais pesado, a exemplo do tribal house e o eletro house, estilos musicais de grande influência internacional. Estilos estes bastante apreciados pelas “barbies”, “os sem camisas da balada”. Considerados narcisistas ao extremo pelos interlocutores, esses homens geralmente ficam dançando de frente para essas paredes espelhadas. Foto 9: Iluminação pista New York Fonte: arquivo pessoal (Recife, março de 2016) 110 Percursos compartilhados: Um encontro de redes no Clube Metrópole Estava hospedada na casa de Júlio e na ocasião estava acompanhada de uma amiga. Eu havia combinado com Otávio e Iago de irmos juntos à Metrópole. Aproveitei a ocasião para convidar Júlio para ir conosco, ele imediatamente ficou interessado no convite, estendendo-o a Lucas, já que Marcos, seu companheiro, tinha combinado de passar o final de semana com a sua família no interior de Pernambuco para comemorar o aniversário de sua mãe. Era o início do feriado da Semana Santa e naquele dia teria a festa Bacanal de Herodes na Boate Metrópole. Tínhamos combinado com Lucas de passarmos no Posto Select para comermos e de lá seguirmos para a Boate Metrópole, porém, Júlio demorou muito para se arrumar e perdemos a hora, o que fez com que mudássemos os planos e fossemos direto para a Boate Metrópole. Otávio e Iago tinham chegado cedo, já que não compraram os ingressos antes e queriam comprar o de R$ 50,00, que era revertido em consumo. A rua em que a boate se situa estava bastante movimentada devido ao fluxo de taxistas e de vendedores ambulantes com seus carrinhos de comida, além da movimentação advinda dos bares próximos. Ficamos na fila da boate por aproximadamente 30 minutos, tempo suficiente para Lucas chegar e se juntar ao grupo. “Venha para cá”, comentou Júlio, fazendo Lucas “furar a fila”. Tanto eu quanto a amiga que me acompanhava, bem como Lucas, compramos os nossos ingressos pela internet, na categoria de estudantes, ao custo de R$15,00 cada. Já Júlio pretendia beber e por isso queria comprar o ingresso de R$50,00 que seria revertido em consumo, porém, já era mais de 23h e essa opção estava esgotada, restando-lhe apenas as opções open bar ou estudante. Júlio se decidiu pela opção estudante, já que ele não tinha dinheiro para open bar. A entrada da boate dava para a pista principal New York, que naquele momento não tinha nenhum deejay tocando e a pista era apenas um local de passagem para aquelas pessoas que chegavam ou transitavam entre um ambiente e outro. Otávio e Iago estavam na primeira mesa da pista Night, uma pista mais longe, toda espelhada, com som ambiente e mesas e cadeiras. Apresentei os rapazes uns aos outros e aproveitamos aquele momento para conversar. A princípio estava com receio de como seria o encontro entre os rapazes, já que 111 se tratava de duas redes distintas e com gostos diferenciados: Júlio e Lucas gostavam de música de divas do pop music, diferentemente de Otávio e Iago, que preferiam Ivete Sangalo e Claudia Leite, por exemplo. Otávio e Iago aproveitaram que o ambiente estava mais tranquilo e falaram a respeito da quinta-feira anterior, dia em que foram para o Santo Bar e para a Boate Metrópole. Para Iago: “a Boate Metrópole estava parecendo a MKB, daí na sexta achei melhor sair com um carinha do Grindr55”. Conversamos um pouco mais e seguimos para a área da piscina, que ficava na outra saída da pista Night. O ambiente da piscina é um espaço aberto, com um bar ao fundo e algumas mesas e bancos espalhados pelo local. Otávio aproveitou para mostrar a área reservada para o camarote, que é exclusivo para aquelas pessoas que pagaram pelo ingresso open bar. Na frente da escada tinha um segurança que conferia a pulseira. O espaço reservado para o camarote open bar ficava no andar superior do Miami Pub, outra boate do Grupo Metrópole. Para Otávio, não tinha vantagem comprar open bar e ter que ir para o camarote pegar bebida, já que as pistas eram na Boate Metrópole e o camarote open bar tinha vista para área da piscina apenas. Como era do interesse da maioria, seguimos para a pista do Bar Brasil, pista esta reservada para os estilos de música eletrônica dançante mais diversificados e que fogem do tradicional house music. “Aqui passou por uma reforma, essa entrada mesmo não tinha [se referindo a uma escadaria que ligava a área da piscina à pista do Bar Brasil]”, comentou Júlio. Nesse sentido, ele me situava sobre as mudanças feitas pela Boate Metrópole após a abertura da casa San Sebastian em Recife. A sensação que tive é que, depois da reforma, o espaço da pista do Bar Brasil ficou maior do que a pista New York, tendo em vista que a pista New York tem mais contornos, com bares, queijos, cabine de deejay, palco e escada, deixando a pista de dança menor do que a pista do Bar Brasil. Na pista do New York há um investimento maior na iluminação com placas de led e no som, que é mais potente quando comparado à pista do Bar Brasil. 55 “O mais conhecido de todos os apps de relacionamento é exclusivamente gay e o mais usado no País. Por meio da localização do usuário via GPS, ele mostra o perfil dos caras que estão mais perto de você. O Grindr é o app mais indicado para quem busca por um encontro mais casual - já que grande parte dos usuários não procura por relacionamentos sérios”. Disponível em: http://igay.ig.com.br/2015-09-17/cansado-da-solteirice- veja-8-aplicativos-de-relacionamentos-para-gays.html. Acesso em janeiro de 2017. 112 Era mais de 23h e a pista do Bar Brasil estava lotada, enquanto isso na pista New York, o deejay nem tinha começado a sua apresentação. Na pista do Bar Brasil, o deejay tocava brega e as pessoas acompanhavam as letras, cantando-as juntos. Os rapazes compraram bebidas e começaram a dançar no embalo da música eletrônica bagaceira. Júlio pegou nossa amiga para dançar e falou que iria embebedá-la para que, assim, ela se soltasse mais naquela noite, já que, ao contrário de mim, ela não estava pesquisando e que por isso poderia beber. Alguns casais se formavam e a infregatividade rolava solta, o que fazia o calor aumentar a cada música. Era grande a presença de mulheres e tinha uma diversidade geracional. Iago começou a balançar o quadril, Lucas ficou mais observando e Otávio filmou o ambiente. Ficamos 30 minutos, tempo suficiente para Otávio começar a reclamar do calor e seguimos para a pista New York. Ao chegarmos à pista New York, o deejay ainda não tinha começado a tocar, este organizava os últimos detalhes para iniciar sua apresentação. O deejay era classificado pelos rapazes como pertencente ao grupo dos ursinhos, “homens barbudos, gordinhos e peludos”, segundo Otávio. Já se passava de 1h da manhã e o deejay ainda não tinha começado a tocar na pista New York, que naquele momento era apenas passagem obrigatória para aqueles que acabavam de chegar à boate e entre aqueles que circulavam entre as diferentes pistas da boate. Para Iago, a Metrópole já tinha sido “melhor” e o público que agora a frequentava era outro: “daqui a pouco isso vira a MKB, na quinta tinha muito cafuçu”. Estávamos conversando quando fomos interrompidos pela batida do tribal house que ecoava das potentes caixas de som da boate. O deejay abriu sua apresentação com uma música da Madona, fazendo algumas pessoas vibrarem: “Arrasouuuuu”, gritou alguém ao fundo. Após 10 minutos de set, as músicas, que aliadas a um excelente sistema de som e iluminação, fizeram a pista se transformar de um local de passagem para um local onde as pessoas interagiam, flertavam e dançavam ao som do tribal house. A primeira música do set de um deejay é algo de grande relevância, pois é a primeira interação da pista com o deejay e, quando a pista já responde de forma afirmativa aos primeiros compassos musicais, há uma relação de mais afinidade que pode se manter ao longo de toda a sua apresentação. Já presenciei a apresentação de um deejay na qual a primeira música não agradou ao público e foi seguida de uma falha no 113 sistema, que o deixou ansioso e comprometeu toda a sua apresentação, chegando ao ponto de a pista gritar o nome da deejay que tinha se apresentado anteriormente. A interação entre as duas redes se deu apenas quando fizemos uma rodinha e dançamos todos juntos. Neste momento, os rapazes se comunicavam por meio de gestos corporais e dos olhares. A música conduzia a interação entre o grupo, que era transformada a cada compasso musical, fazendo com que os rapazes se soltassem entre eles e quebrando todo a formalidade presente no início daquela interação. Ao nosso lado direito, um grupo com cinco rapazes musculosos estavam vestidos de forma similar: regatas coladas ao corpo, deixando o peitoral visível; bermudas que marcavam as bundas e as coxas; e óculos escuros. Eles dançavam de frente à parede espelhada, sempre atentos para a movimentação da pista. Lucas comentava com Júlio sobre a movimentação do referido grupo e Júlio imediatamente os enquadrou como garotos de programa: “eles são garotos de programa, Lucas. Você não achou eles diferente dos demais? ”. O comentário, por sua vez, deixou Lucas surpreso: “não sabia que na Metrópole dava garoto de programa, na MKB sim, porque ela é famosa por isso”. O que chama atenção nesse enquadramento feito por Júlio do referido grupo é a relação estabelecida entre o grupo e a prostituição. O grupo poderia ser facilmente associado ao grupo das barbies por causa da estética corporal e pelo estilo de roupa, porém, por ser um grupo composto por homens negros e com a “aparência de pobre”, como disse Júlio, eram associados ao grupo dos cafuçus com maior facilidade. Assim, esses homens são classificados como garotos de programa, principalmente pelo recorte de cor e de classe. Depois de algumas bebidas, os interlocutores se sentiam mais espontâneos. Notei que Lucas, ao observar Otávio dançando, soltava alguns sorrisos. Comentei com Otávio o possível interesse de Lucas por ele, ao passo que ele me respondeu: “ainda está cedo, vamos deixar mais para o final da festa”, dando a entender que existia possibilidade de eles ficarem juntos aquela noite. Para Otávio, sua forma de dançar era muito atraente, o que fazia com que os rapazes se interessassem por ele: “Eu acho que tenho mel pelo meu corpo, porque é só começar a dançar e os homens piram, ficam chegando em mim”. O estilo de dançar de Otávio era diferente dos demais, ele dançava no mesmo ritmo as vertentes da house music e os demais estilos de música eletrônica dançante, a exemplo da bagaceira. Todo o grupo notou o interesse de Lucas por Otávio. Nesse sentido, o grupo aproveitou a ausência de Lucas e 114 reorganizou a roda, deixando apenas um espaço ao lado de Otávio. Lucas, ao perceber o “arrumadinho” feito pelos colegas, sorriu e baixou a cabeça. Após alguns minutos na pista New York, os interlocutores estavam mais soltos e conversavam mais abertamente entre eles. Outra vez comentei com Otávio sobre o interesse de Lucas, mas ele ressaltou que Lucas era “muito novinho”. A música, como em todo início de set, estava muito tranquila, mas alguns momentos a música dava uma desacelerada, o que fez Júlio comentar: “Eu preferia que fosse Chiara, ela já tinha soltado uma música bem gay, daquelas bate cabelo”. Geralmente os deejays começam o set de forma mais tranquila e, à medida que as pessoas vão chegando e animando a pista, toca-se uma música mais pesada e acelerada. Porém, naquela noite, a pista New York foi aberta um pouco mais tarde do que o horário habitual, assim, em 10 minutos já estava lotada, não tendo necessariamente que seguir a lógica da temporalidade presente nas apresentações. Era do interesse da maioria voltar para a pista do Bar Brasil, pois lá estava tocando “um breginha gostoso e envolvente”, como disse de Júlio. Os rapazes logo se animaram e Júlio começou a dançar com Iago, já Otávio pegou uma mulher para dançar. Otávio relatou que não gostava de dançar com homens em locais públicos, mesmo sendo uma boate GLS, preferindo assim dançar com uma mulher desconhecida. Os estilos de música eletrônica dançante transitavam entre brasilidades e bagaceiras. Na pista do Bar Brasil a infregatividade “rolava solta” entre os casais que se formavam. No palco, um grupo de rapazes dançavam de forma individual mimetizando as coreografias das músicas que eram remixadas pelo deejay; na pista, as pessoas cantavam essas músicas, a exemplo de “Água na Boca”, da cantora Tati Zaqui. 115 Vídeo 01: “Um olhar de Otávio para pista Bar Brasil” Fonte: arquivo pessoal de Otávio (Recife, março de 2016)56 Na pista New York, o ar estava mais forte e não estava tão quente quanto na pista do Bar Brasil. Nesta pista, as pessoas se animavam ao som da música “Summertime Sadness” da cantora Lana Del Rey, em uma versão house. Esta versão valorizava os loops e os refrães e fazia a música crescer e envolver os dançantes com suas batidas mais fortes. Vídeo 02: “Um olhar de Otávio para pista New York” Fonte: arquivo pessoal de Otávio (Recife, março de 2016)57 Ficamos dançando aproximadamente por 30 minutos até a apresentação do Bacanal de Herodes começar. Nesse tempo, Iago me mostrou um casal de ursinhos de cabelos grisalhos e comentou que o casal não o agradava, tanto pelo fato de serem ursinhos que usavam suspensórios e roupas de couro, quanto pelo fato de serem mais velhos. Já Otávio, 56 Vídeo disponível em: https://drive.google.com/drive/folders/0BzJg3Ly3RegaSHY1TVQ4TlRFTXM 57 Vídeo disponível em: https://drive.google.com/file/d/0BzJg3Ly3RegaYnFLZzBpNWhGM3c. 116 mostrava um rapaz afeminado e gordo que dançava ao seu lado e comentava, de forma irônica, para Iago: “achei uma paquera para você, olha que gracinha ao seu lado”. A questão geracional só era vista como marcador pejorativo, para Iago, quando associada ao grupo classificado por ele como “ursinhos”. Sua reação foi diferente, porém, ao observar um homem branco, alto, corpo malhado, com cabelo grisalho e corte bem moderno que passava no meio de nossa roda. Otávio, como um bom leonino, segundo Iago, subiu na escada e ficou dançando ao lado de um rapaz negro e outro branco. Os três dançavam um atrás do outro, mas de forma isolada. Iago comentou: “A bicha é leonina mesmo, olha onde ele foi dançar. Não tinha um lugar mais discreto para ele ficar dançando, não?” Após algumas músicas, Otávio desceu e comentou com o grupo: “Vocês viram? Os homens ficam loucos quando eu danço”. Nesse momento vejo o deejay trocando sinais com o assistente de palco, então comentei com os rapazes que o show estava próximo de começar. Acende-se uma luz no palco e a música que estava tocando tem seu volume reduzido, inicia-se a execução da apresentação do Bacanal de Herodes. É nas apresentações que as pessoas se concentram próximo ao palco. Naquele momento a roda que tínhamos feito se desfez. O espaço ficou um pouco apertado e só conseguia observar que minha e Otávio estavam ao meu lado. Os outros rapazes sumiram do meu campo de visão. Peguei o celular e comecei a registrar a apresentação. Só se ouvia a música e em alguns momentos a excitação da plateia a cada movimento ondulatório que a dançarina fazia em seu abdômen. “Olha que ela parece uma mulher de verdade”58, comentava Otávio se referindo à apresentação da dançarina. A dançarina se apresentava segurando uma espada e ao final de sua apresentação alguns rapazes gritavam “arrasou viadoooo! ” Depois os gogo-boys subiram ao palco, trajando roupas de soldados romanos, o que levou alguns homens à excitação. A música tocada nesse momento era de estilo house music e enquanto o rei ficava ao centro acompanhado de duas dançarinas, os dois soldados se posicionavam nas extremidades do palco e começavam a dançar sensualizando. Dois soldados negros entram e se posicionam atrás deles, tirando suas capas e a parte de baixo das roupas dos soldados, levando a plateia 58 Ao dizer que a dançarina parecia uma “mulher de verdade”, ele esclarece que a conhecia de Natal e que ela era travesti. Nesse sentido, apesar de a dançarina ser passar por uma mulher, ela, contudo, não poderia ser considerada uma “mulher de verdade”, uma vez que, para Otávio, ela era apenas “um homem que se vestia de mulher”. 117 à loucura. Apenas de sunga os dois dançarinos começaram a dançar acariciando os seus pênis e insinuando diversas vezes que iriam tirar a sunga. Ao som de um remix da música “This Is My Life”, de Edward Maya,59 os gogo-boys dançavam sensualizando para a plateia. A dança era basicamente para dar destaque ao abdômen e aos braços musculosos. A música mudou para a música “Everybody needs a man”60 e o gogo-boy, que estava agachado no centro do palco, levantou e fez o mesmo ritual seguido anteriormente pelos outros dois. Sendo coroado por um dos soldados, ele dançava se dirigindo às extremidades do palco e segurava nas mãos de algumas pessoas que estavam assistindo-o e passava as mãos dessas pessoas pelo seu corpo, levando algumas pessoas à excitação. Quando a música acabou, o rapaz sentou no meio do palco e tirou a sunga, mostrando-a para a plateia, enquanto a outra mão cobria sua genitália. A música foi alterada e com ela entrou uma travesti com os seios aparecendo, que tirava a sunga dos demais soldados. Depois, deu-se início a uma “verdadeira suruba”, segundo Otávio, “onde todo mundo pegava todo mundo, se esfregando um no outro”. Vídeo 03: Bacanal de Herodes – Clube Metrópole Fonte: arquivo pessoal (Recife, março de 2016)61 59 Ouvir música em: https://soundcloud.com/user973374078/18-this-is-my-life-edward-maya. Acesso em 07 de maio de 2017. 60 Ouvir música em: https://soundcloud.com/dj-aron-blessed/offer-nissim-everybody-needs-a-man-dj-aron- edit. Acesso em 07 de maio de 2017. 61 Vídeo disponível em: https://drive.google.com/file/d/0BzJg3Ly3RegaNDVoRU1zZUFGUkk. 118 A música eletrônica na vertente house music conduzia àquela apresentação, que durou em média 20 minutos. Ao final, gritos de “arrasou viadooooooo!” e “babadoooooo!” eram entoados da plateia que demostrava bastante excitação e interesse na apresentação. Diferentemente de Iago que comentou: “eu não gosto, acho muito nojento isso tudo, por isso saí logo dali e fui para o Bar Brasil”. Foto 10 e 11: Apresentação do Bacanal de Herodes na pista New York Fonte: arquivo pessoal Chiara (Recife, março de 2016) 119 Para Iago, essas fotografias poderiam ter como descrições as palavras “vulgar”, “podre” e “promíscuo”, pois ele considerava ser desnecessário esse tipo de apresentação nas boates. Nesse sentido, ele ressaltava que: Eu acho que eles fazem isso nas festas para chamar público, porque quem gosta dessas coisas, a maioria que fica nessas coisas, é aquelas bichas feias, que não pega ninguém, aí ficam olhando pra aquilo ali e desejando. Porque quem se garante mesmo não fica assistindo aquilo não, sai de perto e vai procurar fazer outra coisa, como dançar e se divertir ou beber. Vai ficar olhando aquele negócio pra quê? Aquilo é um negócio sem futuro [...]. Preste atenção: as pessoas que ficam assistindo a esses shows, olhando aquilo é porque é bicha feia, bicha véia, que paga os boys pra sair com elas. Aquelas bichas velhas, magricelas, ridículas, que gostam de assistir isso. (Iago, Recife, outubro de 2016). Já para Lucas, essas apresentações apresentam uma outra concepção na qual estas não precisam ter necessariamente uma relação com algo “vulgar”. Ao contrário, podem ser vistas como uma forma de expressão artística. Nesse sentido, ele disse: Já presenciei algumas performances nos dois estabelecimentos e essas performances reiteraram a minha ideia de que as pessoas utilizam o espaço a fim de se expressarem e poderem ser elas mesmas. Onde a nudez, o sexo e o erotismo são vistos como coisas naturais e não necessariamente vulgares. (Lucas, Recife, outubro de 2016). Na pista do Bar Brasil estava Júlio, Lucas e Iago, nenhum dos três ficaram para a apresentação. Já se aproximava das 4 da manhã e a pista estava lotada, os interlocuotores dançavam nos embalos da bagaceira. Iago dançava com um rapaz na “maior infregatividade”. Nesse momento, Otávio sumiu e permaneceu assim por aproximadamente 30 minutos. Para Iago, ele estava ficando com alguém e não queria que a gente o visse, por isso, estava escondido em algum lugar. Já passava das 5 horas, quando Júlio e Lucas convidou o resto do pessoal para ir ao posto Selecta e comer algo antes de voltar para casa. Otávio e Iago preferiram ficar mais um pouco na boate e comer em alguma padaria em Boa Viagem. Nesse sentido, o Posto Selecta serve como ponto de encontro para algumas pessoas, antes e depois da balada. 120 2.2.4 A Boate MKB A Boate MKB iniciou suas atividades na cidade de Recife no ano de 2000 em uma casa localizada na Av. Oliveira Lima, nº 733, no centro de Recife. Após dois anos de atividades a boate foi transferida para o atual endereço, um casarão localizado na rua corredor do Bpo.6, Soledade, também no centro da cidade. O nome da Boate Meu Kaso Bar “faz referência aos termos usados na época por gays e lésbicas para se referir às(os) parceiras(os)/companheiras(os) de relação afetiva e sexual: as mulheres diziam “meu caso!” , e os homens “minha figura!” ” (SOUZA, 2016, p.79) 62. A boate conta com quatro ambientes musicais, a saber: eletrônico, pagode/samba, brega e mpb/rock/flash black. Possui uma lanchonete e uma área para fumantes. Próximo à boate é possível encontrar saunas e cabarés, o que leva a essa região de lazer se tornar conhecida como “mancha do sexo”. A MKB é um espaço estigmatizado por muitas pessoas, principalmente por aquelas que frequentam as boates Metrópole e a San Sebastian. Por ser frequentado por um público mais popular, esse espaço é moralmente desvalorizado, uma vez que é um “local que cheira a sexo”, “cheio de garotos de programas”, “povo feio e que se veste muito mal”. Mas se por um lado, a MKB é um espaço estigmatizado pelo público que o evita, por outro é valorizado pelo público que o frequenta, como se pode perceber na fala dos interlocutores: “aqui eu me sinto em casa, ninguém presta atenção no que estou vestindo”, “nos outros espaços eu sou desvalorizado porque não tenho um corpinho em forma”, “bicha, aqui é o paraíso, eu me sinto uma diva”. “Acompanhando uma pesquisadora na Boate MKB” Naquela noite, tinha combinado com alguns interlocutores de acompanhá-los à MKB. Fiquei hospedada na casa de Júlio e Marcos, assim poderíamos conversar mais e 62 Em sua dissertação de mestrado, Luiz Henrique Souza (2016) apresenta brevemente as histórias de alguns espaços direcionados para o público LGBT na cidade de Recife, a partir das memórias e dos discursos em torno do “Mercado GLS”. 121 irmos todos juntos para a boate. Quando cheguei ao apartamento, só encontrei Marcos. Júlio ainda estava no trabalho e só retornaria ao final do dia. “Ah, os meninos estão ansiosos para ir a MKB, mas parece que na San Sebastian será festa open bar e na Metrópole terá festa top, a In The Dark, eles ficaram balançados, mas acho que vamos à MKB mesmo”. [...]. Marcos imediatamente comentou: “Mas se formos à MKB será um estilo menos chamativo, um pouco mais informal. Afinal, temos que ser discretos, já nas outras, não”. Marcos se referia aqui às diferenças que existem entre os espaços e, em particular, a diferença nos modos de se vestir. Sendo assim, para irmos à MKB deveríamos ser o “mais discreto possível”, ou seja, nos vestirmos com roupas básicas63 (Diário de campo, Recife, maio de 2015). Ao chegar do trabalho, Júlio juntou-se à conversa e reforçou a opinião anteriormente expressa por Marcos: deveríamos saber antes qual a boate que iríamos frequentar, tendo em vista que cada espaço necessitava de uma produção estética diferente. Júlio ressaltou que “para à MKB eu vou o mais básico possível”. Em seguida, perguntou-me: “E você, Chiara, já sabe qual roupa vai usar? ”. Ao ser perguntada sobre a minha vestimenta, por Júlio, sou levada a perceber o meu lugar naquele trajeto e de que a minha subjetividade, assim como as subjetividades dos interlocutores fazem parte do trajeto escolhido. Deste modo, ao responder que provavelmente usaria alguma saia, body e scarpin, Júlio e Marcos se olham com espanto e perguntam: “De salto? ”. Marcos reforçou: “mas seus saltos são todos altos e na MKB teremos que ser discretos para não chamar tanta atenção”. Júlio, por fim, complementou: Queridinha, vamos de ônibus e vamos à MKB, acho melhor você colocar uma sapatilha mesmo, se não quiser chamar atenção. Vamos de ônibus porque Diego quer ir conosco, assim, quando estivermos prontas aviso a ele, daí ele vai pegar o ônibus e avisar para pegamos o mesmo ônibus. (Júlio, Recife, maio de 2016). No final de semana anterior havia os acompanhados ao Santo Bar, onde foram comemorar o aniversário de Jéssica, uma amiga. Na ocasião combinamos de ir à MKB, mas 63 O que se observa é que, a relação com alguns interlocutores já extrapola as fronteiras muitas vezes impostas pela pesquisa. Sou convidada a dormir na casa de alguns, a ir a seus aniversários e comemorações em família, é assim estabelecida uma relação de confiança. 122 como nem todos estavam dispostos, pois classificavam a boate em frases como: “ah, lá é muita baixaria”, “me disseram que lá cheira a sexo”. Ficamos de combinar o local até o sábado seguinte, dia em que sairíamos. Nesse sentindo, é interessante ressaltar a importância da rede de amizade para expandir minha rede de relação. Uma vez que foi através de Júlio e Marcos que conheci Diego, na comemoração do aniversário de Jéssica, da mesma forma, que conheci Hélio através de Diego, seu namorado. Fazer o trajeto a partir dessas redes de relações, assim, torna a pesquisa mais dinâmica. Desta forma, corroboro as ideias de Agier de uma “sociabilidade alargada”, integrada pela descrição das práticas situacionais e das interações urbanas. Ou seja, a cidade é “produzida pelo antropólogo a partir do ponto de vista das práticas, relações e representações dos citadinos que ele próprio observa diretamente e em situação” (AGIER, 2011, p.32). Às 21h30 estávamos prontos, eu sem meu scarpin para a alegria dos rapazes. A rua estava deserta. Apressamos o passo em direção à parada que ficava a dez minutos dali. Como iríamos pegar o mesmo ônibus que Diego, precisávamos andar mais um pouco. Chegando ao ponto tinha um casal de evangélicos duas crianças, que deviam ter algo em torno de seis a oito anos e olhavam em nossa direção. Os pais, ao ouvirem Júlio comentar com Marcos “meu amor, você pegou o cartão?”, lançaram um olhar de desaprovação. Alguns minutos se passaram e Diego ligou dizendo que o ônibus já estava chegando na parada. Era sábado à noite e, assim como na parada, o ônibus apresentava uma diversidade de estilos entre seus passageiros. Havia casais heterossexuais se beijando, evangélicos voltando do culto, duas senhoras falando da missa e que o padre tinha feito um belo sermão, alguns jovens ao fundo, entre eles dois casais de lésbicas que estavam de mãos dadas. Trago esse relato para apontar o processo de interação social do grupo em questão com os outros grupos. Uma das características mais marcante das sociedades complexas é, pois, a coexistência de diferentes estilos e visões de mundo. Para Becker (2008), assim como para Goffman (2010), é na interação social e simbólica que as tensões se fazem presentes no processo de julgamento moral das condutas alheias. Como também aponta Becker (2008, p.27), “ à medida que as regras de vários grupos se entrechocam e contradizem haverá desacordo quanto ao tipo de comportamento apropriado em qualquer situação dada”. Nesse sentido, Júlio e Marcos comentavam sobre as tantas vezes em que precisaram “largar as mãos” quando estavam caminhando nas ruas da cidade de Recife, pois sentiam medo de serem agredidos fisicamente. 123 O que observo em campo, ao acompanhar os interlocutores, é que os seus trajetos de lazer e sociabilidade são desenhados, na maioria das vezes, pela sensação de acolhimento com o local. Não há obrigação de sentimento de pertencimento, porém é crucial que o local escolhido não repreenda nenhuma manifestação de carinho entre seus frequentadores. Nesse sentido, como analisa Marques (2009, p.195; gripo meu): Os caminhos possíveis podem compor um trajeto-circuito que depende dos interesses que estiverem em questão. Nesse sentido, trajeto-circuito implica em escolha no nível de uma caminhada que unifica estabelecimentos, locais, e equipamentos não contínuos espacialmente, mas caracterizados pela oferta de certos serviços ou realização de certas práticas. Compartilhando das ideias de Marques (2009) e Magnani (1996) em que o ponto de partida em um trajeto-circuito pode apresentar diversas possibilidades, as quais dependem do interesse em questão. Na ocasião, Diego havia combinado de nos encontrar com Hélio no posto Select, assim ele não chegaria sozinho à Boate MKB. O posto Select tem uma loja de conveniência que oferece lanches, além de bebidas. Ao lado do posto tem uma temakeria. Ali, portanto, é um ponto de encontro, “um esquenta” da noite. Hélio já estava no posto quando chegamos. Fomos apresentados e entramos na loja para comer e beber algo. O posto Selecta fica na Avenida Conde da Boa Vista, principal avenida do centro comercial de Recife, a qual serve como ponto de encontro, principalmente para aqueles que vão de ônibus para a balada. De acordo com o horário e o dia da semana esse posto apresenta uma dinâmica diferente, como por exemplo, nos finais de semana antes e após a balada, nos quais o espaço é reapropriado e ressignificado de modo diverso pelo público que frequenta as boates Metrópole e Miami Pub e o Santo Bar e demais bares da proximidade. Já durante a semana, no horário noturno, o movimento é dos alunos que saem das universidades da redondeza, como Católica e FACIPE. Nos rastros das análises de Coradini (1992), percebo que os diferentes fluxos no tempo e no espaço presentes no posto Select leva a diferentes maneiras de apropriação daquele estabelecimento. Nesse sentido, sobre a dinâmica da praça XV na cidade de Florianópolis, Santa Catarina, Coradini (1992, p.22-23) afirma que: 124 No espaço/tempo a vida urbana imprime suas marcas. A praça XV é como um coração da cidade. A partir dele ou nele se interatuam diferentes grupos sociais, atividades e interesses. Toda a vida urbana desenrola-se ali. Todos os caminhos partem e chegam ali, tal como veias e artérias. O entrecruzamento de todas ela é a praça, pois nada lhe escapa. A soma ou seu conjunto e a interação entre elas vão ao longo do tempo imprimindo diferentes usos e significados a cidade e consequentemente à praça. É importante ressaltar que o posto Select fez parte do trajeto e do “esquenta” daquela noite, em função desse grupo não ser frequentador assíduo da MKB, apenas Júlio já tinha frequentado a MKB. Assim, não tendo familiaridade com aquela região, o grupo preferiu marcar um encontro com Hélio em um espaço mais familiarizado. Observando a dinâmica de alguns grupos que venho acompanhando desde 2013, notei que o posto Select geralmente é o “esquenta” para pessoas que frequentam as boates e bares daquela proximidade, como o Santo Bar, Metrópole, Miami Pub. Sendo o “esquenta” das pessoas que frequentam a MKB, os bares próximos a esta boate64. O posto select se faz assim como espaço de sociabilidade, o qual naquela noite serviu como um “esquenta” para o grupo que eu acompanhava, em contrapartida para outros grupos ali presentes ir ao posto era o único ponto de seu trajeto, a exemplo de Bia, que teve como trajeto os seguintes pontos: casa-posto Select-casa. Pegamos algo para comer e beber, sentamos à mesa enquanto Júlio conversava com Bia, sua amiga. Aproveitei para conversar com Hélio e explicar melhor minha pesquisa. O ambiente estava um pouco barulhento e com muita dificuldade compreendia o que Hélio falava. Ficamos vinte minutos lá dentro, foi só o tempo de os rapazes comerem, já que na parte interna não era permitido beber nada alcoólico. Provavelmente por isso o fluxo maior se dava na parte externa, onde se encontrava diversos grupinhos bebendo, conversando e ouvindo música que vinha dos carros estacionados ao lado do posto. Júlio aproveitou para apresentar sua amiga, Bia, a todos e na minha vez comentou “essa é chiara, ela é deejay”. Bia sorrindo perguntou se eu iria tocar na Metrópole. Falei que não, que ultimamente estava tocando em Natal e que em Recife tocava apenas em festas privadas. Ao sermos questionados se iríamos para Metrópole, Júlio comentou: “Não. Hoje vamos nos aventurar na MKB”. Bia, com um olhar de surpresa, perguntou o que iríamos fazer lá. Expliquei que fazia mestrado em antropologia e que ir às boates fazia parte da minha pesquisa. Bia meio 64 A Boate San Sebastian, que fica no bairro de boa viagem, nos seus primeiros meses de funcionamento, utilizava como estratégia de marketing o serviço de transfer gratuito do posto Select até a boate. 125 que repreendendo Júlio, por não ter me levado a outros espaços “melhores”, como o cais de santa Rita ou Boate Metrópole, ressaltou: “fui uma vez e achei o ambiente meio barra pesada, não fiquei nem dez minutos”. Nesse momento, Hélio, um pouco espantado com o que acabou de escutar, comentou: “bom, o máximo que pode acontecer é a gente ficar apenas dez minutos e ir embora”. Bia nos desejou “boa sorte! ” e foi embora. Era próximo das 22 horas quando resolvermos ir caminhando até à MKB, que ficava há 1km dali. Os rapazes acharam melhor ir pela Avenida Conde da Boa Vista, como era uma avenida principal, lá tinha mais movimento de carros, o que dava mais segurança a todos os presentes. Hélio e Diego foram a minha frente, andavam de mãos dadas. Eu estava um pouco atrás, ao lado de Júlio e Marcos, que também estavam de mãos dadas. Diego, que tinha olhado na internet a programação da boate, comentou que viu o vídeo de propaganda da MKB, no qual falava “nem melhor, nem pior, apenas diferente”. É nas proximidades da Avenida Conde da Boa Vista que fica situada a maioria dos estabelecimentos GLS da cidade de Recife, sendo assim, a mesma é considerada uma região mais permissível. Para Júlio, nesse sentido, “essa avenida é muito gay, é tipo uma Avenida Paulista Recifense”. O shopping Boa Vista, por sua vez, é conhecido como o “ shopping boa bicha” entre os interlocutores. A Boate MKB fica em uma região onde é possível encontrar saunas e cinemas direcionados ao público homossexual masculino e alguns cabarés. Por situar-se na região “mais libidinosa” da cidade e por ser frequentada por pessoas de camadas mais populares, a MKB65 é tida por alguns que transitam por outros espaços como “local que cheira a sexo”, “muita putaria”, “lá só tem travestir e cafuçu que faz programa”, “um povo feio e fedorento”. Diversos são os insultos direcionados aos seus frequentadores. Ao frequentar esses espaços observo, no entanto, que, para aquelas pessoas que nutrem um sentimento de pertencimento, é comum o reconhecimento de “estranhos”. Desta forma, à medida que íamos nos aproximando da MKB chamávamos a atenção de algumas pessoas. Para Júlio, era necessário sermos discretos, no sentido de não estranhar o ambiente e as pessoas que por ali circulavam. Na frente da boate havia uma rotatória cuja ao seu redor eram oferecidos serviços de vendedores ambulantes, que vendiam churrasco e bebidas. 65 Ver Isadora Lins França (2013), artigo no qual a autora aponta a desvalorização da MKB em relação aos gays de classe média. Sendo muitas vezes advertida de que não fosse a essa boate e recebendo assim indicações de outras boates nas quais deveria pesquisar. 126 Havia também um ponto de táxi em frente a porta da boate e na rua paralela tinha alguns bares, entre eles o Confraria dos ursos e o Nosso Jeito Bar. Foto 12: Fachada Boate MKB Fonte: Facebook Boate MKB/Reprodução Diferente do posto Select, onde havia um maior fluxo de pessoas jovens e brancas, observei que naquele lugar havia um fluxo mais diversificado quanto à presença de pessoas negras, “coroas” e travestis das mais diversas gerações. Quanto à vestimenta, era comum homens de bermuda, sandália de dedo e boné. Era notável o estranhamento de Marcos que, ao perceber a aproximação de um menino descalço, com roupas rasgadas e que pedia dinheiro, comentou baixinho: “olha Júlio, tem um menino se aproximando, é melhor dar algum dinheiro se tiver fácil e guarda esse celular”. Após vinte minutos Diego comentou “gente, vamos entrar, porque depois fica mais caro”. A fila na parte externa não estava grande, mas, ao nos aproximarmos da entrada, vimos certo tumulto. Primeiro passamos por uma revista, tanto homens quanto mulheres. Era um corredor estreito, o que apesar de não ter tanta gente, ficava um pouco apertado. Do lado direito do corredor havia três “buraquinhos” que eram os caixas, e um funcionário tentava manter a ordem, avisando quando o próximo deviria dirigir-se ao caixa. Ao entrar e virar à direita (única entrada), chegamos ao espaço da pista de música eletrônica. Era um espaço grande, com um palco na frente; no canto direito tinha uma escada 127 que dava para uma parte superior, como uma varandinha (que ficava de frente para o palco); do lado esquerdo, tinha um bar; depois, mais próximo ao palco, na parte superior, tinha a cabine do deejay. A decoração era cheia de pichações com nomes de travestis. O espaço era simples e tinha pouca gente na pista de música eletrônica. Ao fundo, do lado direito, tinha uma porta que dava para o outro ambiente, o pagode. Era um espaço aberto e com uma elevação, que era o palco. Ao lado do palco tinha outra passagem que dava para o ambiente da música brega. O brega era um espaço tão grande quanto a pista do eletrônico. Tocava um brega que contagiava todos os presentes, que dançavam agarradinhos ou sozinhos. O público se reunia próximo ao palco. Cruzando a pista do brega tinha uma parte aberta. Mais adiante tinha uma área coberta com um longo banco de cimento. Do lado direito, havia os banheiros principais, e um bar. Do lado esquerdo, tinha uma lanchonete, onde havia umas mesas e uns banquinhos de cimento. Na frente da lanchonete tinha um quadrado aberto, onde era a área de fumantes. Seguindo reto tinha o ambiente (pop/mpb/música eletrônica dos anos 80). Quando chegamos tinha um deejay tocando os grandes sucessos dos anos 80. Adiante tinha um cantinho onde estava escrito na parede “sala de vídeo”, a porta era uma cortina velha escura, Hélio abriu a cortina e entrou, na volta comentou: “ah, deve ser o cantinho da pegação, porque estava tão escuro que não enxerguei foi nada”. E Júlio comentou: “bicha, a senhora gostou da sala de vídeo né? Nem chegou e já queria se pegar”. Seguimos reto, era um corredor que dava para a pista eletrônica. Como era do interesse da maioria dos interlocutores ficar na pista de música eletrônica, então ficamos dançando a maior parte do tempo por lá. Notei que era um espaço de passagem, as pessoas chegavam, ficavam observando ou passavam direto para outros ambientes. Estávamos dançando quando Hélio deu um grito, acenou para o deejay e comentou conosco “ah, já estou me sentindo em casa, já conheço o deejay”. A pista não estava cheia, diferente das outras boates, onde o ambiente principal é o da música eletrônica. Na MKB, ao menos naquela noite, era o brega a pista mais disputada. 128 Foto 13: Pista brega da Boate MKB Fonte: Facebook Boate MKB/Reprodução A MKB é conhecida pela quantidade de cafuçus, garotos de programas e travestis que a frequentam. Na pista de música eletrônica, chamou minha atenção três homens, em pontos diferentes da boate. Um à minha frente, outro à direita e outro à esquerda, todos dançando sozinhos e observando o ambiente. Júlio comentou: Está vendo Chiara, aquele rapaz é garoto de programa. Se você o encarar e sair de fininho ele vai atrás de você. Eu já fiz isso uma vez e ele foi atrás, mas aí quando ele chegou perto eu dei uma de doido e falei que não tinha feito sinal nenhum (Júlio, Recife, maio de 2015). Um desses rapazes chamou mais atenção, porque notei, ao observá-lo, que ele também me observava constantemente. Sempre dançando de forma a seduzir quem admirava aquele corpo performático, unindo sua performance às batidas do tribal house, sensualizando em cada gesto, mas de forma sempre discreta. Os rapazes já estavam se soltando após algumas bebidas e com suas músicas preferidas sendo remixadas pelo deejay. Chamou minha atenção as performances de Hélio, que antes de entrar na boate estava ansioso com o que iria encontrar. Afinal, ele só conhecia a MKB pelos relatos, não muito positivos, de seus amigos. Hélio dançava de forma performática imitando tanto os gogo-boys quanto as drags. Hélio comentou: “se eu soubesse 129 teria me montado e trazia um leque e fazia vráaaaa”. Perguntei se ele se montava, ele sorriu e falou que estava brincando. À medida que o deejay ia tocando as músicas de divas do pop music, tanto Júlio quanto Hélio se soltavam, dançando passos de suas divas preferidas. Diego e Marcos estavam mais tranquilos, mas se soltavam ao passo que bebiam e as músicas, remixadas pelo deejay, iam ficando mais familiares. Na categoria sociabilidade de Simmel encontramos um jogo do “faz de conta”, “faz de conta que todos são iguais, e, ao mesmo tempo, faz de conta que cada um é especialmente honrado” (SIMMEL, 2006, p.71). Apropriando-me da categoria sociabilidade como “forma lúdica de sociação” as boates são espaços de sociabilidade, onde o público GLS encontra seus iguais, “os chegados”, produzindo outras formas de subjetividades. À medida que os interlocutores se identificavam com as músicas, eles começavam a interagir entre si. Marcos comentou que, para quem não queria ter ido à boate, Hélio estava bem soltinho, “familiarizado com a quebrada”. O movimento ia aumentando e o calor também. Júlio me puxou, com cara de espanto e disse “Chiara, troca de lugar comigo. Tem um casal se pegando atrás de você. Vem ver isso”. Ela estava de shortinho, de frente para o rapaz, que encostado na parede, colocou a mão em direção ao zíper da calça, abriu, pegou a mão da acompanhante e a colocou dentro de sua calça. Marcos, Hélio e Diego ficaram boquiabertos, Júlio comentou que já tinha visto casal “se pegando” em boate, mas ali nem estava tão escuro assim e eles pareciam que estavam em casa. Até o momento que fomos embora, o casal continuava no mesmo lugar, às vezes reversando quem ficava encostado na parede. Na pista era possível observar uma diversidade entre os dançantes, pessoas consideradas “fora do padrão”, em outras boates, seja por serem negros, gordos, velhos, corpos considerados “não desejáveis” em outros espaços, compartilhavam da mesma música, onde aparentemente era formada uma sintonia entre os dançantes, que excluía momentaneamente suas diferenças. Despertava minha atenção o grande número de travestis que transitava pela pista de música eletrônica, eram travestis que aparentavam diferentes idades. Havia um sentimento de pertencimento com o local, no sentido de se identificarem com os nomes pichados na parede, tais com “amapô, quero foto com meu nome”. Nas palavras de Júlio, “a MKB é uma boate que você vai para se divertir, as pessoas não estão nem aí para sua roupa, se você é bonito ou feio, gordo ou magro, diferente da Metrópole que mais parece um concurso de beleza”. Notei que, entre os homens que tiravam 130 a camisa, alguns não possuíam músculos definidos e aparentavam não estarem preocupados com o que os outros iriam pensar dos seus corpos. Diferentemente do que observei em outras boates, onde quem tira a camisa geralmente são as “barbies”. Já era mais de 2 horas da manhã e Júlio trabalhava no outro dia. Marcos estava com fome e seguimos até a lanchonete para comer algo, mas chegando lá Marcos não gostou das opções. Passamos pelo ambiente do brega, que estava cada vez mais lotado. Dessa vez tivemos até dificuldade em passar. Corpos suados, embalados pelo som do brega, faziam as mais diversas coreografias. Resolvemos ir embora, quando passávamos pela pista eletrônica para sair da boate, estava começado as apresentações das drags. Hélio disse entusiasmado: “vamos ficar só mais um pouquinho, quero ver as apresentações, são as melhores”. Era o proprietário da boate quem apresentava as atrações. Ele era magro, de cabelo um pouco amarelado, vestia uma camisa de manga listrada e um sapatênis. A primeira apresentação foi calma, era uma música com mais vocal e um pouco lenta, deixando a plateia sem muita empolgação. A segunda apresentação foi um pouco mais animada, já a terceira fez um “bate cabelo”, fazendo a pista vibrar. A pista não estava muito cheia, geralmente nas boates as apresentações são momentos em que a pista fica lotada, mas naquela boate aquele momento não era tão disputado. Ao menos naquela noite, o ambiente do brega era o mais disputado. Após as drags, o apresentador chamou o zorro, um gogo-boy que já entrou sensualizando, dançando e fazendo movimentos circulares com a capa. Vestia uma calça super colada ao corpo. Júlio atento a cada detalhe, comentou: “Nossa, gente! Olha só o volume da serpente desse boy, será que é isso tudo mesmo?” Hélio entusiasmado complementa: “Nossa! É mentira que é desse tamanho, vou lá confirmar”, e em seguida foi correndo para perto do palco. Diego só fazia sorrir e Marcos não parava de olhar. O gogo- boy começando a sensualizar tirou a máscara, depois a calça, ficando só de sunga. Hélio voltou toda animado e comentou: “Ah, eu conheço esse boy, ele participou do concurso da espiga da metrópole, mas ficou em segundo lugar. As pessoas até comentaram que foi marmelada, quem ganhou foi um cara de SP, mas a espiga desse era bem maior”. Neste momento, vejo o gogo-boy ficar de costas e colocar seu pênis para fora da sunga. Comentei: “Gente olha para o palco, ele está ficando peladinho”. Hélio, olhou concentrado e disse: “Ai gente, eu quero ver é de perto” e voltou correndo para frente do palco. Alguns homens começaram a se aproximar do palco, provavelmente com a mesma intenção de Hélio: 131 comprovar de perto os dotes do dançarino. De repente, o gogo-boy virou para frente sensualizando e tirou a sunga, ficando totalmente pelado. “Passada! Que pirocão”, Diego comentou. Júlio com a mão na boca, em sinal de surpresa, completou: “estou bege, ele ficou pelado”. Marcos não parava de dar risadas e Hélio com os olhos arregalados voltou para o grupo e comentou: “nunca tinha visto um gogo-boy totalmente pelado. Eu ficava de ponta de pé, tentando enxergar aquela performance em sua plenitude”. A última atração foi uma drag que interagia com o público. Ao perguntar quem estava na boate pela primeira vez, Hélio gritou e levantou os braços, correu para frente, mas ninguém o chamou. Enquanto isso, Marcos e Diego praticamente se escondiam atrás de Júlio, para não serem convidados a subir no palco. Subiram três pessoas, a drag perguntava de onde eram e “tirava onda” com suas respostas. Depois tocaram algumas músicas e os três dançaram de forma individual, logo após teve um samba, e os três dançaram novamente. Mas o apresentador não satisfeito falou “vamos chamar quem é bicha de verdade, porque precisamos de bicha para sambar de verdade e mostrar para eles como é que se samba”. Neste momento Hélio correu para frente levantando os braços e gritou “eu, eu...”, mas o apresentador acabou chamando outros dois rapazes. Quando o primeiro começou a dançar, Hélio comentou: “Arrasou! Se eu tivesse subido era assim que eu iria fazer”. A performance bem estilo rainha da bateria: o corpo acompanhando a batida da música, abrindo os braços para dizer que chegou, fazendo carão e sambando lindamente. Hélio lamentou mais uma vez: “Ah! Era pra ter ido, era pra ter ficado lá na frente, mas quando cheguei já tinha escolhido”. Júlio comentou: “Pra quem não queria vir à MKB você está muito animadinho”. Perguntei a Hélio se ele tinha gostado e se voltaria ao local. Ele olhou para mim sorrindo e falou que não. Apesar de ter gostado da noite, ali não era um espaço para ele, pois, “era tudo muito escancarado”. Fazer observação participante é estar presente no processo interacional, sentindo, vibrando, compartilhando, interagindo, com os interlocutores. Com a diferença de que devo observar cuidadosamente a dinâmica apresentada. Não que os interlocutores não observem também, ao contrário, eles observam. Trabalhar em boates, ambientes escuros, fez-me abrir mão do diário de campo de papel, em contrapartida, ao utilizar de aplicativos de celulares, como bloco de notas e gravador, isso me possibilitou registrar ali mesmo algumas notas e áudios no meu diário de 132 campo eletrônico. Por exemplo, várias foram as vezes em que fui ao banheiro e gravei áudios detalhando as cenas do campo. Com o fim das apresentações, resolvemos ir embora. Quando virei para o lado, em direção ao bar, encontrei João, outro interlocutor. Aproveitei para ir cumprimentá-lo e todo empolgado e surpreso comentou “Chiara, você está em recife? Por que não avisou para sairmos juntos? ”. Falei que estava acompanhando alguns amigos, mas que voltaria em breve para marcar algo com ele e Pedro. Ele estava com dois amigos de Natal e me apresentou como uma amiga, que morava em Natal e tocava na boate Vogue. João perguntou quando iria voltar para Natal, falei que antes do almoço, no domingo mesmo. Ele falou que iria para Natal a trabalho, pois teria uma reunião na segunda-feira de manhã e que eu poderia ir com ele. Fiquei de mandar mensagem para ele e combinar a volta. Despedi-me reforçando que da próxima vez sairia com ele e Pedro. Ele reforçou o convite de que quando estivesse em Recife, era para eu ligar e que ele poderia me hospedar na casa dele. Despedi-me dos amigos de João e fomos embora. Ressalto a importância de seguir a rede de relações dos interlocutores, para uma maior mobilidade da pesquisa. Conheci João através de outro interlocutor, e João, por sua vez, apresentou-me Pedro, seu amigo. João tem uma rede de amizade composta por homens de mais idade. Sendo assim, as dinâmicas presentes tanto na rede de Júlio e Marcos, quanto na rede de João e Pedro são diferentes. João e Pedro, por exemplo, não costumam ir ao posto Select, preferindo ir às saunas ou bares com música ao vivo, como o Nosso Jeito Bar, bar direcionado ao público homossexual feminino. Assim sendo, os trajetos são compostos por lugares diversos, particulares a cada interlocutor e das interações que esses mantêm com outros atores sociais. Fatores como o dia da semana, o horário do dia, as redes de relações, as motivações, as disponibilidades financeiras, as distâncias, entre outros, irão influenciar no trajeto percorrido. Estávamos em cinco e tentávamos negociar com o taxista se ele levaria todos nós no carro. O taxista falou que levaria, porém, cobrava 60 reais. Júlio espantado com o valor comentou: “Eita! Que absurdo. Sessenta eu vou e volto”. Perguntamos a outro taxista e ele falou que não levaria os cinco. Estávamos decididos a pegar táxis separados, quando Diego lembrou-se que iria passar um corujão e que daria tempo pegá-lo se a gente corresse. Saímos a passos apressados em direção à avenida Conde da Boa Vista, para não perder o ônibus, e também, para “não dar 133 bobeira”, já que era de madrugada e aquela região era famosa pelos assaltos. Após cinco minutos, nosso ônibus chegou e, por sinal, tinha bastante gente. Entramos, Diego sentou no colo de Hélio, na cadeira reservada para deficiente, onde tem o espaço da cadeira de roda e eu e os rapazes ficamos nesse espaço, em pé, ao lado deles. Após três paradas, Diego fez sinal de espanto e comentou:“Eita Júlio, esse ônibus não passa na tua casa, o corujão faz outro percurso. É melhor vocês descerem na praça do derby e pegar um táxi. Toma! [deu 12 reais] É para ajudar a pagar o táxi e desculpa, é que não lembrava”. Corremos para descer, já que estava passando pelo ponto. Descemos na praça e a passos apresados seguimos até a parada de táxi. Marcos comentou: “espero que tenha um táxi, porque ficar aqui é perigoso”. Avistamos uma fileira de táxi para nossa alegria. Ao chegarmos à parada, o primeiro taxista estava dormindo, perguntamos ao segundo se podia ser ele. O taxista, em sinal de negativo, disse que tinha que seguir a ordem. Júlio acordou o taxista e entramos no carro. Após alguns minutos dentro do táxi, eu olhei para o retrovisor e percebi que o taxista estava cochilando. Preocupada com a situação, escrevi uma mensagem no celular dizendo que o motorista estava cochilando e que era para começar a puxar assunto no carro, para ele não dormir de vez. Ao mostrar a mensagem para Marcos, ele ficou pálido e começou a falar alto. Explicamos para Júlio [que estava sentado na frente] a situação. Não podíamos descer, porque a rua estava deserta e não tínhamos para onde ir, corríamos o risco de sermos assaltados. O clima foi ficando tenso e eu não tirava o olho do retrovisor, quando o taxista percebeu que eu tinha visto que ele estava cochilando, ficou sem graça e começou a se movimentar, alongando os braços. Eu estava morrendo de medo que acontecesse algum acidente. Marcos e Júlio, que estavam um pouco “alegres por causa da bebida”, ficaram espertos na hora. Seguimos apreensivos e torcendo para que nada acontecesse. Após quinze longos e intermináveis minutos, chegamos. Foi descendo do carro e a sensação de alívio, de ter chegado e nenhum acidente ter acontecido (Diário de campo, Recife, maio de 2015). Ao descrever o trajeto desse grupo e contrapor as descrições do trajeto de João e Pedro, pretendi demonstrar a dinâmica do circuito GLS na cidade de Recife. Sendo esses trajetos parte do circuito GLS e não visto aqui como um circuito generalizado. Busco ressaltar ainda que, por mais que esses homens transitem por diferentes espaços, não significa que haja um sentimento de pertencimento presente em todos os espaços percorridos. Assim, o fato de Júlio ter ido a MKB não deve ser entendido, contudo, como uma identificação com aquele local, pois para Júlio: Eu gosto de ir a MKB, porque as pessoas não estão nem aí para a roupa que estou vestindo, ou se sou ou não uma barbie musculosa e bonita. As pessoas são simples e querem mais é dançar, curtir a noite. Apesar de me 134 sentir um pouco deslocado, por não me sentir parte daquele lugar, às vezes eu gosto de ir lá (Júlio, Recife, maio de 2015). O trajeto é construído, assim, para o reencontro com amigos ou para conhecer algo novo, “modificar um pouco a rotina”. Para Marcos, que nunca tinha ido a MKB “eu sempre tive curiosidade, mas meus amigos nunca quiseram ir”. É um espaço estigmatizado e, portanto, proibido ao grupo de transitar por lá, a não ser que fosse para contribuir com a minha pesquisa, sendo assim, permissível ao grupo: “boba, na verdade estamos loucas para ir, sua pesquisa é apenas uma desculpa”. Chiara, quando será a próxima vez? [Risos]. Eu achei bem diferente. Lá tem mais essa coisa de festa de bairro né?! A metrópole e o Santo Bar eu tenho a impressão de que as pessoas fazem mais carão, são metidas mesmo. Já na MKB, apesar de ser exótico e da tensão toda em torno dela, é até um lugar que dar para ir, mas em algumas exceções e não para ficar frequentando o tempo todo (Marcos, Recife, maio de 2015). Assim, a inclusão da Boate MKB no trajeto do grupo que acompanhei seria visto como algo esporádico, mais “uma aventura”, “mudar a rotina”. Não necessariamente por se identificar com o lugar. Porém, no caso de João a Boate MKB é um espaço no qual ele se sente pertencido. Apesar de morar próximo à San Sebastian, que fica em Boa Viagem, ele prefere ir à MKB, por vários motivos, sendo um deles a maior variedade nos estilos musicais: Eu gosto de música eletrônica, mas ir à MKB é ótimo porque posso dançar um brega e tomar minha cervejinha em paz. Feito ontem, quando levei meus amigos de Natal para conhecer a MKB, porque lá é um dos poucos lugares gays que não é tão gay no sentido de mercado mesmo (João, Recife, maio de 2015). João se referia aos outros espaços, em especial às boates Metrópole e a San Sebastian, como espaços onde se vende a imagem de um gay, branco, musculoso, depilado e seminu. Não se identificando com essa imagem de gay, ele prefere estabelecimentos que fogem desse padrão, a exemplo da Boate MKB e do Nosso Jeito Bar. 135 2.2.5 A Boate San Sebastian A Boate San Sebastian foi inaugurada em outubro de 2014, localizada na rua dez de julho, na zona sul da cidade de Recife. A boate conta com duas pistas: pista principal, localizada na parte interna e a pista open air. Trata-se de uma filial da boate de Salvador, Bahia, assim, frequentemente esta tem como atrações cantores baianos, que juntos com os deejays completam a line up da noite. Por ter a entrada mais cara e ser localizada em Boa Viagem, esta boate é tida por alguns como a boate mais elitizada da cidade. Atualmente a boate está fechada, sua última festa foi dia 02 de janeiro de 2016. No dia 05 de janeiro a boate colocou uma nota em sua página do facebook alegando reformas e que a boate estaria fechada durante o carnaval. Até a finalização desta dissertação, a boate não foi reaberta e nem deu satisfação aos seus clientes. Entrei no site do grupo San Sebastian e não existia mais o link de sua filial em Recife, como de costume. Sua última postagem, em sua página do facebook, foi em abril de 2016, na qual a boate comunicou: “o fervo vai continuar”. Algumas pessoas mostravam indignação quanto ao fato de a boate ter sumido e não “ter respeito com seus clientes”; outras demonstraram ansiedade e ressaltavam que aguardavam ansiosas esse retorno; outras ressaltavam que a boate não deveria ir para o centro da cidade, tendo em vista que o público é melhor onde era antes [se referindo à zona sul da cidade]; outras, por fim, são contrárias a essa posição, alegando que no centro é “mais central, por isso, “tem que ser mais perto, no aeroporto é muito longe”. 136 Foto 14: pista open air Fonte: Facebook San Sebastian/Reprodução Foto 15: pista principal Fonte: Facebook San Sebastian/Reprodução “Mudando a rotina” 137 A boate não faz parte do trajeto-circuito habitual da rede de Júlio, a sua localização é um dos fatores mencionados, sendo o acesso mais restrito àqueles que possuem carro próprio ou dinheiro para custear um táxi. Apesar de estar situada ao lado do aeroporto e em frente à estação de metrô, esse espaço é tido como algo mais reservado, sendo mais vantagem frequentar as boates situadas na área central da cidade, além de ser mais servida pelo serviço público de transporte. Era sexta-feira, estava hospedada na casa de Júlio e Marcos, tínhamos combinado de ir à San Sebastian, onde a festa era open bar. A entrada que era R$30,00, poderia custar R$20,00 se entrássemos até meia-noite. Júlio estava trabalhando e Marcos na universidade, chegaram tarde em casa, por volta das 20h, de longe dava para avistar aqueles semblantes cansados. “Ainda nem me recuperei da noite passada, acho que vou cochilar um pouco”, comentou Marcos, “Chiara, vou tentar dormir um pouco também. Me acorde daqui a 2h”, completou Júlio. Olhei da janela do quarto andar, a árvore do prédio balançava derrubando as folhas secas no chão, senti um vento gelado entrando pela janela da cozinha e quando olhei para o céu que estava escuro e cheio de nuvens carregadas, pensei comigo: “vai chover”. Minutos depois cai uma forte chuva na capital pernambucana. Fui para o quarto, resolvi mandar mensagem para João, outro interlocutor, que morava em Boa Viagem e frequentava a San Sebastian. Ele respondeu: “Chiara estou em Natal, vim fazer negócios, mas volto domingo e podemos marcar algo”. Alguns minutos se passaram e Júlio bateu na parte, ele mal conseguia abrir os olhos de tão cansado: “Chiara, vamos só eu e você, Marcos falou que não vai mais, ele está muito cansado, mas como também estou cansado e trabalho amanhã cedo, teremos que voltar por volta de 1h”. Por mais que estivesse ali para ir com eles à boate e acompanhá-los em seus percursos, não era minha intenção fazer com que eles se sentissem na obrigação de sair só porque ali estava. Falei que também estava cansada e que aquela chuva estava pedindo uma cama, e que não teria problemas, de irmos outro dia à boate, pois oportunidades não iriam nos faltar (Diário de campo, Recife, maio de 2015). Acompanhar esses homens em seus trânsitos pela cidade requer um intenso jogo de negociação e exercício de paciência. Várias foram as vezes que marquei encontros com os interlocutores e não pude acompanhá-los, seja porque eles cancelaram em cima da hora, seja porque eu estava doente e não poderia ir. Nesse sentido, aprendi que a etnografia não se faz da noite para o dia, mas da análise minuciosa de todos os momentos compartilhados. Se nos primeiros dias de convivência, determinado interlocutor me diz algo e com o passar do tempo diz um dado completamente diferente e contraditório com o primeiro, é com o exercício da etnografia que se é possível perceber essas nuances do campo. Não quer dizer que ele havia mentindo, talvez com o passar do tempo ele tenha mudado de opinião, ou, a relação 138 estabelecida tenha o deixado mais à vontade para relevar certos segredos, até então reservados à sua rede de amigos mais íntimos. Era noite de sábado, estava em Natal fazendo as leituras para as disciplinas do mestrado. Meu celular toca, era Júlio que me mandava mensagem pelo WhatsApp, “Chiara estou na San Sebastian, depois te conto como foi”. Fiquei surpresa e comentei: “que milagre você na San Sebastian, alguma ocasião em especial?”, após alguns minutos Júlio me respondeu: “ Ah um amigo chamou e viemos... mudar um pouco a rotina né. Gostei do ambiente, é bem moderno. Beijos, depois te conto tudinho” (Diário de campo, Natal, novembro de 2015). O uso de aplicativos como WhatsApp ou de redes sociais como Facebook e Instagram foram essenciais para manter o diálogo com os interlocutores, mesmo morando em Natal. Se em alguns momentos não podia acompanhá-los presencialmente em seus trânsitos pela cidade, eles me mantinham informada de seus trânsitos, “Chiara, ontem fui para Metrópole, fui levar um amigo que veio me visitar”, “olha estou no Santo Bar com Marcos e Lucas”, mensagens estas muitas vezes acompanhadas de imagens ou vídeos. Estava hospedada no apartamento de Júlio e Marcos, assim, aproveitei a oportunidade para saber como havia sido a noite em que foram à San Sebastian. “Eu não tenho o que falar, acho melhor você perguntar a Júlio”, comentou Marcos sorrindo. Júlio explicou o que havia acontecido: “Um amigo nos chamou, a gente nunca tinha ido lá, a gente acabou decidindo ir. A gente passou mais tempo na fila do que na boate. Essa criatura ficou muito bêbado, muito bêbado mesmo”. Perguntei sobre a estrutura da boate, se havia gostado. Ele me respondeu: “era uma festa open bar no espaço todo, eu achei pequeno [se referindo ao espaço da boate]. Eu não achei tipo...é assim, um lado é o bar e o outro é o deejay e tem aquele centro só como pista, aí fica misturado”. Para os rapazes, a festa, como era open bar, tinha muita gente e a pista interna estava muito apertada o que tornava desconfortável, apesar de ser um ambiente climatizado. Já na parte externa, que era a área de fumantes, foi o espaço em que Marcos mais gostou. Para Júlio, os estilos musicais se assemelhavam àqueles tocados na pista do Bar Brasil, do clube Metrópole. Para Marcos, o espaço era uma mistura do Bar Brasil com a laje (cobertura da boate Metrópole, onde tem mesas e cadeiras espalhadas e área de fumante) “Foi bem divertido, assim, com música legal. Apesar que lá fora, que era ao ar livre, era mais aconchegante do que lá dentro, que tinha ar condicionado e tal”. Para Júlio, era um ambiente diferente, pois as pessoas que frequentavam eram diferentes das pessoas que frequentavam a boate Metrópole. “Eu achei o sistema de som muito bom, mas estava muito alto, tipo, você não se ouvia. Mas o espaço era bem diferente a iluminação era top”, “eu gostei da entrada, era muito bonita”, ressaltou Marcos (Diário de campo, Recife, março de 2016). 139 Se para alguns interlocutores o fato de não frequentarem esse espaço se dava pela combinação de vários fatores, entre eles a distância, o financeiro, a falta de tempo, as afinidades, a falta de oportunidade, “teve uma festa com o tema de Harry Potter. Eu até queria ir, mas não tive condições financeira, porque era final de mês e porque trabalharia no outro dia”, comentou Júlio, mencionando que apenas um amigo de sua rede é que gostava de frequentar esse espaço, devido ao fator de seu namorado se identificar com o local. Para outros, a Boate San Sebastian era interessante por ter um ambiente mais sofisticado, ser localizada na zona sul da cidade e ter valores mais elevados, se comparados a outros espaços localizados no centro da cidade, possibilitando encontrar homens mais maduros e experientes. “A San Sebastian tem dois tipos de público: tem o público de quando a festa não é open bar e tem o público de quando a festa é open bar. Na festa open bar há uma presença maior de heterossexuais e de pessoas que geralmente não frequentam a boate”, comentou João, interlocutor mais velho da rede. A ida ou não a Boate San Sebastian é interessante para pensar no recorte geracional e de classe, já que, para os interlocutores mais jovens, em sua maioria estudantes de graduação que dependem de uma bolsa para sobreviver, ir para a San Sebastian é uma exceção, levando em consideração os altos custos com transportes, entradas e bebidas, “em festas que não são open bar, pois a boate apresenta um elevado custo, não é todo mundo que pode frequentar”. Já para a minha outra rede de interlocutores, composta por homens acima dos 35 anos, que em sua maioria ocupam posições de prestígio no mercado de trabalho, ir para a San Sebastian é algo mais rotineiro “Eu vou na San Sebastian por dois motivos, porque meus amigos gostam de lá e porque é perto de casa, não porque seja vista como a boate elitizada, até porque prefiro frequentar a MKB, onde tenho que ir de táxi, já que bebo”, comentou João. 140 CAPÍTULO 3 – As festas 3.1 A Boogie Night As festinhas alternativas são as preferidas da rede de amigos de Júlio e Marcos, com destaque especial para Kinada Querida e Boogie Night66, as quais já não acontecem mais. Porém, ainda fazem parte da memória e narrativas dos interlocutores. A festa Kinada Querida teve sua última edição em novembro de 2015 e a Boogie Night em junho de 2012. Essas festinhas alternativas surgem, assim, como novas possibilidades de diversão para além das boates da capital. A maioria dessas festas ocorre no vapor 48, no Estelita bar, que fica no Catamaran e no Marco Pernambucano da Moda, no Recife Antigo (figura 3), locais próximos aos principais estabelecimentos GLS da cidade. Figura 3: Localização das festinhas alternativas Fonte: Google Maps A festa Boogie Night era organizada pelos alunos do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), por isso o slogan “Boogie Night é cinema, 66 Ver: http://noiteboogie.tumblr.com/ 141 música e open bar”. Realizada durante dois anos, a festa teve 14 edições com temáticas diferentes, passando por diferentes locais, entre eles o vapor 48, a Red Lounge (Casa Forte) e Club Pigalle (Boa Viagem). Aos poucos, a festa foi atraindo um público cada vez mais diversificado e ganhando espaço na noite recifense67. Para Marcos, as festas organizadas por esse grupo eram as suas preferidas, sobretudo porque tinham uma proposta diferente das boates: “por ser organizada pelos alunos de cinema as festas tinham uma vibe diferente. Tinha música, visual e eram open bar”. Essa “vibe diferente” se dava, principalmente, pelo fato dessas festas não terem o apelo sexual tão presente nas boates, onde a figura do gogo-boy com trajes minúsculos e colado ao corpo prevalece. Além disso, as músicas eram mais diversificadas, com destaque para o pop, brasilidades e bagaceiras. As narrativas compartilhadas por Marcos são importantes porque resgatam parte das memorias dessa festa e me ajudaram a entender um pouco da história do circuito de música eletrônica em Recife. Foi em uma dessas festas que Marcos vivenciou as suas primeiras experiências em festinhas com público mais diversificado e livre de preconceitos68. Também foi em uma dessas festas que Marcos conheceu Júlio, seu companheiro no momento da pesquisa. Nesse sentido, cito um trecho do meu diário de campo, no qual Marcos me relata essa experiência: Marcos: Eu sempre fui muito caseiro, só depois que entrei na universidade é que comecei a sair. Comecei a ir para boates GLS com 19 anos, foi na Metrópole, mas nessa época eu já tinha ido para várias festinhas open bar. Eu gostava mesmo era das festinhas da Boogie. Chiara: Elas aconteciam no Antigo? Marcos: Não tinha local fixo, eles marcavam... porque dependia de os organizadores conseguirem um local para certa quantidade de pessoas, aí era festa open bar. Júlio: Aquela Boogie que a gente se conheceu foi a sua primeira? Marcos: Claro que não! (risos) Júlio: Porque a gente se conheceu nessa festa, numa dessas festas. Chiara: Quem organizava? 67 Disponível em: http://noiteboogie.tumblr.com/, acesso em 27 de julho de 2016. 68 Na página da festa não achei nenhuma identificação desta como sendo uma festa GLS, porém, os interlocutores a identificavam como sendo uma festa GLS. 142 Marcos: Era o povo do cinema que fazia, a primeira turma de cinema daqui da federal que fazia. Eles criaram a história de acordo com um filme, aí eles passavam umas cenas... que era meio que começou com um projeto de uma cadeira que eles pagavam no cinema e eles faziam tipo uma festa temática e cada festa era relacionada a algum filme que eles estavam trabalhando. Aí foi crescendo e eles mantiveram, porque era uma festa, assim, muito foda, diferente da boate, com outra proposta. Júlio: Foi uma das primeiras festinhas gay, né? Marcos: Foi, eu acho que foi a primeira festa. Chiara: Isso foi em que ano? Marcos: Foi em 2010 ou 2011 Chiara: Qual era a frequência dessas festas? Marcos: Oxê! Tinha época que todo mês tinha uma, tinha mês que tinham duas porque o pessoal pedia. Criaram um grupo no facebook e era lotado, aí foi quando meio que a festa desandou. Chiara: Elas aconteciam em vários locais, mas geralmente eram em que locais? Júlio: Mais espaços alternativo Marcos: Era no Antigo, vapor 48, depois eles ficaram, tipo, no espaço que era ... no local que eles fizeram parceria com o buffer que era lá em Casa Forte, a Red Lounge. O pessoal gostava porque era um pessoal que morava lá perto, daí era mais fácil de ir para lá (Diário de campo, Recife, março de 2016). Como mostram as narrativas de Júlio e Marcos, as festas da Boogie Night tinham o diferencial por fugir de um viés mercadológico, sendo, mais precisamente, uma festa feita por estudantes e para estudantes e por isso, “era assunto comentado pelos corredores da UFPE”. Sendo sua organização mais voltada à questão lúdica e relacionada às produções de trabalhos acadêmicos, as festas da Boogie, diferentemente daquelas festas promovidas pelas boates que possuíam um viés mais mercadológico, foram crescendo e ganhando mais público e assim se apropriando de diferentes locais da cidade. Nesse sentido, o grupo, em sua carta de agradecimento ao público pelos dois anos de existência, destacou a passagem pelos diferentes espaços da cidade: Foram dois anos e um monte de mudanças. A cidade mudou muito. Open Bar ficou pop e morgou, mas a Boogie Night seguiu firme e forte. A gente passou pelos locais mais inimagináveis para aquela calourada que só ia acontecer uma vez. Passamos por lugares amados e outros lendários (Não é mesmo, Vermelho Almodóvar?). A gente se divertiu muito, se estressou 143 muitas vezes e, no fim, a gente chorou de alegria e de saudades antecipadas (XAVIER, et.al, 2012)69. Outro aspecto relevante que se destaca nas narrativas de Marcos diz respeito às festas da Red Lounge, que aconteciam no bairro de Casa Forte70. Trata-se de um bairro que possui uma localização de fácil acesso, uma vez que a maioria das pessoas que as frequentavam moravam nos bairros vizinhos, a exemplo do próprio Marcos que morava no bairro das Graças, próximo ao Parque da Jaqueira. Figura 4: Localização Red Lounge Fonte: Google Maps 3.2 Parada Liberté A 15ª Parada da Diversidade se aproximava e junto com ela os estabelecimentos da capital pernambucana se organizavam para a preparação de diversas festas que tinham o objetivo de animar o pré-evento e pós-evento. 69 Disponível em: http://noiteboogie.tumblr.com/. Acesso em 28 de julho de 2016. 70 Casa Forte é um bairro residencial de grande prestigio na capital. Abrigando diversas mansões da época dos engenhos e prédios de luxo, o bairro é considerado reduto de classe média e alta da cidade. 144 No Catamaran tinha a Parada Liberté, uma festa open bar ao custo de R$ 80,00 por pessoa. Na programação dessa festa, havia muita música eletrônica, com as vertentes da house music, tocadas pelos seis deejays que comandaram as pick-ups, dos quais dois eram do grupo The Week, a deejay Grá Ferreira e o deejay Fábio Marx. Já o Clube Metrópole contou com o show de Pablo Vittar e a presença do grupo Põe na Roda, com ingressos que variavam de R$ 20,00 para estudantes a R$ 70,00, para parte open bar no camarote. A Boate MKB, por usa vez, divulgava seus dois ambientes, o da música eletrônica com a presença de quatro deejays locais; e o do espaço do brega, com a presença da banda Espartilho. Os ingressos custavam R$10,00 até às 23h e após esse horário custavam R$20,00. Na ocasião havia combinado de acompanhar Iago e Otávio na festa Parada Liberté. Era uma festa com o custo relativamente alto, fazendo com que outros interlocutores, a exemplo de Júlio e Marcos se sentissem desestimulados a ir, “é final de mês e não temos dinheiro”. Outro ponto destacado por alguns interlocutores foi em relação à programação cultural que contava apenas com as vertentes da house music: “se fosse Brega Naite até iria, mas só música eletrônica não rola”. Já se passava da meia noite quando chamamos um carro da Uber e seguimos para o local da festa. Iago resolveu deixar o carro em casa, já que ele iria beber. Ao chegar no local da festa, Otávio comentou: “Acho que não vai dar muita gente. Não tem muitos carros no estacionamento”. Eu comentei que: “Vai ver como é festa open bar as pessoas vieram de táxi, mas acho que não será lotada como as festas do Golarrolê, já que só tem música eletrônica e na metrópole tem Pablo Vittar”. Iago surpreso, por sua vez, perguntou: “Não tem outro ambiente? Mas Otávio lembrou: “Menino, mandei várias vezes a programação da festa”. Na entrada não havia outras pessoas além dos seguranças e organizadores da festa. Entregamos-lhes os convites, fomos revistados e, ao entrar no local, notamos que de fato a festa não estava tão movimentada. Logo na entrada tinha um painel que simulava duas asas coloridas, no qual as pessoas tiravam fotos ao centro, dando a sensação de que tinham dado “asas à liberdade”, segundo Otávio. Do lado direito, havia um cantinho com sofás e pufs e do lado esquerdo, havia dois carrinhos de food truck com sanduíches e churrascos. 145 Foto 16: Painel da Parada Liberté Fonte: arquivo pessoal de Iago (Recife, setembro de 2016) Para Iago, essa foto poderia ser intitulada de “viadagem! ”, pois ele achava desnecessário tirar fotos no painel, dando a impressão de que teria “asas coloridas”, “eu jamais tiraria alguma foto ali, acho muita exposição. É algo desnecessário”. Estava acostumada a presenciar o Catamaran sempre lotado, nas festas do Coletivo Golarollê, onde os estilos musicais transitam entre brasilidades e bagaceira. Na Parada Liberté, o espaço não estava lotado e conseguimos andar livremente sem esbarrar nas pessoas. Para Otávio, a vantagem de ir a uma festa assim seria pelo fato de não enfrentar filas na hora de pegar bebidas, além da cerveja está sempre gelada. A paisagem era deslumbrante: todo o lado esquerdo tinha uma vista linda para o rio Capibaribe, com barcos ancorados; do lado direito ficavam os bares para pegar as bebidas; no fundo ficava o palco e do lado direito ficavam os banheiros. O banheiro feminino ficava na metade do percurso entre um bar e outro e estava super limpo, já que quase não tinha mulheres na festa. Dava para contar no dedo o número de mulheres que lá estavam e, por sinal, era maior o número de mulheres que trabalhavam no evento em relação ao número de mulheres que tinham ido ao evento. Na área que não era coberta, havia algumas mesinhas redondas espalhadas pelo ambiente, onde o pessoal colocava as bebidas e dançavam ou conversavam em volta da mesinha. Encontrei alguns conhecidos na festa, dos quais dois eram deejays que já tinham tocado comigo na Vogue Natal. Ambos já tinham se apresentado naquela noite, foram os primeiros e já estávamos no terceiro deejay, o Fábio Marx da The Week. O seu som 146 transitava entre as vertentes da house music71, onde as músicas valorizam as batidas e os loops crescentes, com refrães encurtados e repetitivos, dando a impressão de que a música era infinita. Para alguns interlocutores esse estilo de música que vai crescendo e tendo mais elementos adicionados ao compasso, provocando uma sensação de sufocamento. As músicas que tinham letras, eram em sua maioria de divas do pop music. No decorrer de sua apresentação, as pessoas foram se aproximando da área coberta e algumas levavam juntos as mesinhas que estavam espalhadas pela área que não era coberta. Foto 17 e 18: Pista Parada Liberté Fonte: arquivo pessoal (Recife, setembro de 2016) Otávio e Iago davam uma breve olhada no ambiente para observar os rapazes que ali estavam: “Tem muita gente bonita. Vamos beber que hoje é por minha conta”, comentava Otávio brincando, já que se tratava de uma festa open bar. Estávamos observando as pessoas que ali estavam quando bruscamente Otavio puxou-me para trás. Era o fotógrafo da festa pedindo para tirar uma foto nossa. Ao olhar para o lado, na esperança de me apoiar em Iago, para tirarmos a foto, noto que o mesmo foi 71 A exemplo das músicas de seu setmix summer night 3, disponível em: https://soundcloud.com/dj-fabio- marx/dj-fabio-marx-summer-night-3-podcast2k16. Acesso em 12 de dezembro de 2016. 147 saindo de fininho para o canto esquerdo, se afastando de mim e de Otávio, e só se aproximou novamente após o fotografo tirar duas fotos e ir embora. “A bonita fugiu, né! ”, comentou Otávio. Iago comentou que não queria aparecer em site nenhum, por isso se distanciou. O ambiente era agradável. Havia bastante funcionários fazendo a segurança, atendendo aos clientes ou fazendo a limpeza do local. A iluminação se concentrava no palco e um pouco na área coberta, assim, para Otávio, “eles deveriam ter colocado uns globos de luzes aqui” [se referindo à área coberta]. Os estilos musicais transitavam entre o house, tribal house e eletro house. Nada de variações de brasilidades nem bagaceira. O público presente era, em sua maioria, homens que aparentavam idade superior aos 30 anos, com roupas muito semelhantes, calça jeans colada ao corpo e camisa apertada que realçava os músculos. No decorrer da festa, alguns rapazes tiravam as camisas, outros dançavam com seus parceiros, enquanto se abraçavam e se beijavam. Já estava no terceiro deejay e as pessoas mais transitavam, conversavam e observavam do que necessariamente dançavam, dando para Otávio a impressão de que a festa não tinha vingado: “acho que vão ter prejuízo aqui, quero ficar bêbado. Vamos pegar mais bebidas”, comentava Otávio nos conduzindo para o bar. “Faz duas doses de vodka e metade de uma dose para essa menina, que ela é fraca e só quer tomar água”, ele falava para o barman. Já passava das 2h da manhã e as pessoas começavam a se aproximar do palco. Na hora que a deejay Gra Ferreira da The Week subiu ao palco, as pessoas estavam mais animadas, o ambiente estava mais cheio, ou ao menos era essa a impressão de que nos passava, levando em consideração que as pessoas que estavam espalhadas pelos vários ambientes (área coberta, área livre e sofás) se aglomeravam na área coberta. Otávio e Iago já havia misturado caipirinha, vodka e cerveja, “eu sou pobre mesmo prefiro uma cervejinha” comentou Iago. À medida que bebia mais cerveja, Iago ficava mais soltinho: “Vou tirar a camisa”, ele insinuou. “Vai pra lá, quero nem ficar perto” comentou Otávio ao se afastar de Iago quando ele insinuava que iria tirar a camisa. Otávio comentou que não gostava de quem tirava a camisa em festas, reprovando o amigo pela atitude. “Ele está com inveja porque não pode mostrar o corpinho”, comentou Iago, tirando a camisa. A festa não apresentou aquele momento de êxtase grupal, ao menos não nos momentos por mim observados, no qual o deejay comanda uma multidão fazendo as pessoas 148 dançarem a mesma música de maneira sincronizada, seja fazendo o mesmo passo ou juntos balançando os braços. Essa união se dava de forma subdividida em que cada grupo mantinha o seu ritmo. À nossa frente havia um grupo de cinco amigos que dançavam juntos, fazendo trenzinho, arrochando um ao outro; do meu lado direito, um pouco atrás, uma mulher aparentava ter bebido mais do que seu corpo suportava e com muita dificuldade dançava com seu amigo; à esquerda, outro grupo que dançava de forma individual olhava para frente, para o deejay que tocava; atrás, dois rapazes e uma menina faziam parte de outro grupo, que dançavam balançando a cabeça e batendo os pés. Otávio, dançava com o braço esquerdo em sinal de defesa, enquanto deixava o braço direito solto e girava em círculo, balançando o quadril; já Iago dançava sem camisa, pulando a cada compasso musical. Ao tocar um remix do deejay Aron, a música “voulez vous”72 da cantora Beth Sacks, a deejay fez a pista vibrar. Notei que enquanto Otávio dançava, ele observava um rapaz que estava ao seu lado direito, a alguns metros de onde estávamos. Enquanto Otávio dançava, notei ainda que ele encarava o rapaz, que também o correspondia. Após alguns segundos o rapaz passou por trás dele e foi para o seu lado esquerdo e se encostou próximo às grades que davam para o rio Capibaribe. Otávio continuou dançando e observando o rapaz, logo depois ele comentou: “Ele correspondeu, vou lá falar com ele. Você acha ele bonito?” Respondi que não o achava bonito, mas tínhamos gostos diferenciados e, assim, ele poderia se interessar pelo rapaz, além disso estava escuro e não dava para enxergar bem o rosto do rapaz. Otávio deu um gole na cerveja que segurava e foi lá falar com o rapaz. Observei de longe que ele chegou a cumprimentá-lo, porém, segundo depois, se afastou do rapaz. Perguntei o que havia acontecido, “Não [fazendo sinal de desaprovação]! Ele era feio, na hora que fui me apresentar a luz bateu nele e vi que era feio, sai foi correndo. E me perguntou: “Chiara, por que você deixou eu ir até lá?” Os ambientes dessas festas são geralmente escuros, combinados com um jogo de luz, fazendo com que muitas vezes seja possível observar apenas as sombras dos dançantes, sem conseguir identificar as pessoas que lá estão. Iago estava super animado, dançando a cada música que a deejay tocava, disse:“Até que tem um pessoal bonito, mas ou está acompanhado ou não olha pra pessoa. Vou beber e me divertir porque nessa festa não vou ficar com ninguém”. Otávio, por sua vez, comentou: 72 Disponível em: https://soundcloud.com/search?q=voulez%20vous%20beth%20sacks. Acesso em 12 de dezembro de 2016. 149 “Se fosse o Brega Naite isso aqui estaria lotado”73. Naquela noite comprovava mais um dos resultados que nesses últimos três anos de pesquisa foi apontado em minha pesquisa: a música eletrônica com uma vertente mais internacional relacionada ao house, tribal house e eletro house, quando oferecida de forma isolada, a exemplo da festa Parada Liberté, perdia espaço para aquelas festas onde há uma maior diversidade nos estilos musicais, incorporando as vertentes musicais brasilidades e bagaceiras, por exemplo. A comparação de Otávio da festa Parada Liberté com a festa Brega Naite ressaltava ainda mais esses resultados iniciais. Devo ressaltar que não busco generalizar essa afirmativa, essa dinâmica se deu entre os interlocutores os quais não demostravam interesse e nem eram frequentadores assíduos de raves, por exemplo. Ao fazer a escolha dos interlocutores, apesar de fazer inicialmente o recorte da música eletrônica, procurei me afastar do estereótipo de gay “branco e malhado” encontrado nesses espaços voltados ao público LGBT, buscando diversificar ao máximo e assim encontrar novas relações. Vídeo 04: Um olhar de Iago para Parada Liberté Fonte: arquivo pessoal de Iago (Recife, setembro de 2016) Para Iago, “faltava algo” na festa da Parada Liberté para se tornar uma festa mais estimulante: faltavam pessoas. E, para ele, isso se dava devido ao estilo musical. “Se tivessem colocado uma banda ao vivo ou um deejay que tocasse outros estilos, talvez tivesse 73 Dois meses após essa festa, Otávio retornou ao Catamaran, dessa vez para a festa Brega Naite e encontrou um local “abarrotado de pessoas”. A festa apresentava uma maior diversidade entre os presentes “festinha alternativa”. O estilo musical era outro, a festa voltada ao brega era “especial” por ser o dia da gravação da banda sedutora, com participação de outras bandas e deejays, que comandavam a pista entre uma banda e outra. Mesmo local, Catamaran, mesmo horário, noite de sábado e madrugada de domingo, porém, um público bastante diversificado e análises completamente diferenciadas. 150 mais gente”. O fato de a festa apresentar apenas uma pista e apenas um estilo musical foi para Iago o motivo da mesma não ter “bombado”. O quesito financeiro também foi outro fator mencionado por Iago e Otávio, pois, “é uma festa open bar, mas 80 reais é pesado e só teve essa opção. E as pessoas que não bebem, como Chiara? ”. A relação de participar de uma festa open bar e ter que beber foi bastante presente neste dia, “preciso tomar tantas cervejas para fazer valer a pena o dinheiro que gastei no ingresso”, e a presença de pessoas que não bebiam nada alcoólico numa festa open bar era visto como algo desviante. Foto 19 e 20: Estrutura Parada Liberté Fonte: arquivo pessoal (Recife, setembro de 2016) Para Iago, por sua vez, estava mais preocupado em “aproveitar para dançar e curtir a festa”, o fato de não ver na festa uma possibilidade para “ficar” com alguém, o que levou a aproveitar a noite e curti-la sem a pretensão de ficar com ninguém: “Eu não vim com a 151 intenção de ficar com ninguém, mas de curtir. Ficar seria consequência, mas pelo que vi não vai rolar”. Já para Otávio ali até que tinha possíveis “ficantes” em potencial, sendo assim, investiu no jogo de sedução em alguns momentos. Presenciei dois desses momentos, o primeiro rapaz já mencionado, no qual Otávio após alguns minutos de demonstração de interesse foi até o rapaz, porém ao comprovar mais de perto notou que o rapaz não correspondia suas expectativas, deixando-o e “partindo para outra”. Na segunda investida, Otávio refez o jogo de sedução, entre dançar e encarar o rapaz, demonstrando o interesse indo para determinado ponto da festa. Neste caso a grade que dava para o mar, e sendo seu interesse reciprocamente correspondido. O rapaz que estava com amigos dançando ao redor de uma mesinha, um pouco atrás de onde estávamos, ficou ao lado de Otávio, na grade, olhando para frente e dançando. Após alguns minutos dançando lado a lado, eles conversaram e se beijaram. “Chiara, cadê Otávio? ”, perguntou Iago. Logo em seguir disse: “Eitaaaaa, olha ele ali beijando um boy. Eita, mas ele é feio”. Lá ficaram por mais de duas horas até o rapaz ir embora. Neste momento, eu estava com Iago dançando no meio da pista. Das vezes que observava Otávio, ele estava abraçado com o rapaz, ou gravando vídeos, ou ainda tirando fotos. “Estão até tirando fotos juntinhos”, comentou Iago. Passava-se das 5h, a bela paisagem atraia as pessoas para as grades, onde se podia tirar ótimas fotos. “Vem Chiara, tira uma foto minha aqui”, comentou Iago. Já se passava das 6:30, ventilava cada vez mais e os rapazes que, tiraram as camisas, começavam a vesti- las. Iago vestiu a camisa dele e comentou: “vamos embora, já deu”. Otávio “enrolou” por mais uma hora, até Iago perder a paciência e sair do espaço. Otávio ao perceber que o amigo já não estava com paciência de esperar por ele, correu e chamou o Uber. O Uber vinha do aeroporto e iria demorar em torno de 15 minutos. “Estou com fome, vai demorar”, comentou Iago. Otávio falava que éramos fracos e que queria ter ficado até o final, “mas já deu Otavio, não tinha mais ninguém. Só o povo bêbado e abusado”, retrucou Iago. Nesses quinzes minutos, as últimas pessoas começavam a ir embora. “Até o povo da organização está indo embora e a gente aqui”, comentou Iago impaciente com a situação. 3.3 Brega Naite 152 A festa Brega Naite é organizada pelo coletivo pernambucano Golarrolê. Em abril de 2017, o coletivo Golarrolê completou 10 anos de existência lançando um vídeo de comemoração no qual os organizadores falaram um pouco do projeto e dos diferentes selos criados pelo grupo74. No vídeo, Allana Marques (sócia, deejay e produção executiva do Gollarolê) ressalta a importância da festa Brega Naite para o crescimento do grupo, nesse sentido, ela diz: “ O Brega Naite foi um bum pra gente. A gente fazia festa pra quinhentas e fazer pra mil, mil e quinhentas pessoas foi um susto pra gente”. O Brega Naite é uma festa interessante para analisar as diferentes interações promovidas pela musicalidade mais regional da música eletrônica dançante. Esta festa conta com apresentações de bandas do brega e brega funk, além de deejays que investem nos estilos bagaceira e brasilidades. Ocorre mensalmente no Catamaran, região turística da cidade, no cais de santa Rita, próximo ao Recife Antigo, ambos são locais onde geralmente ocorrem as festinhas alternativas da cidade, a exemplo das festas organizada pelo Coletivo Golarrolê e da festa Parada Liberté. Otávio, Iago, Pedro, João e Marcelo são os interlocutores mais assíduos nas festas organizadas pelo coletivo Golarrolê. A diversidade sonora é algo destacado pelos interlocutores nesses tipos de festas. Para João, “é interessante porque foge do tradicional eletrônico das boates. Nessas festas há uma maior diversidade musical”. Já Pedro destaca as formas de interações promovidas pela música e sua relação com o jogo de sedução: “um brega é gostoso pra dançar juntinho, coxa colada com coxa e ficar naquela malicinha do brega”. Para Marcelo, por sua vez, essas festas alternativas são interessantes porque ocupam os espaços mais centrais da cidade. Ainda segundo Marcelo: O grupo do Golarrolê é um grupo que promove mensalmente a festa que vai hétero, que vai gay, mas é principalmente gay. Então, assim, também vai hétero que curte uma música tropical, brasileira, uma MPB dançante, um axé. Essa festa é super bombada, mas ela é feita no Catamaran, em um espaço legal dentro da cidade. Ela foge um pouco do padrão boate, escuro, obscuro, gueto, entendeu?! (Marcelo, Recife, outubro de 2016). 74 Vídeo disponível em: https://vimeo.com/215361916. Acesso em 24 de maio de 2017. 153 Nesta dissertação, tomarei como análise apenas a festa Brega Naite75, deixando as outras festas organizadas pelo mesmo coletivo, como Odara Ôdesce76 e Maledita77, para um outro momento. A escolha da festa Brega Naite se deu devido à importância da mesma para analisar melhor o estilo de música eletrônica dançante classificado como bagaceira pelos interlocutores. Outra festa bastante frequentada pelos interlocutores é a Reveião, onde há uma mistura de todas as festas do coletivo, tanto no Catamaran quanto no Vapor 48. Sobre essa festa e a música, Marcelo ressalta: Eu acho que a música no cenário gay é fundamental. A música é um condutor de energia. É na música que você se liberta pra dançar da forma que você quiser. Eu sou muito eclético, eu odeio essa palavra, mas é verdade. Eu tanto vou pro Odara, porque eu adoro mpb, tropicalismo, axé baiano, quanto eu gosto de música eletrônica e, por exemplo, no réveillon agora teve o Reveião do Golarrolê, que é desse grupo que promove essas festas mensais e no final eles fazem o grande réveillon deles, que se chama Reveião Golarrolê. No Reveião Golarrolê toca do brega de Recife ao axé, aí tem outro espaço ao lado que se chama vapor 48, que é dentro desse espaço do Reveião, que toca música eletrônica. Há uma tenda de música eletrônica. Então eu fiquei a noite todinha indo pra lá e pra cá. Na tenda você vê aquele pessoal que gosta de música eletrônica, que geralmente acompanha nessas festas de música eletrônica, umas drogas específicas, a gente não pode fechar os olhos pra isso, no caso, bala, doce, que é ecstasy, essas coisas aí, mas eu ficava de lá pra cá, porque eu gosto tanto de música eletrônica, quanto de brega e axé, que estava tocando. Então no mesmo ambiente eles fizeram dois cenários musicais bem distintos. (Marcelo, Recife, janeiro de 2017). “Recife é Brega meu amor” Era dia de mais um Brega Naite e os interlocutores estavam animados para a festa que prometia bastante animação. “Recife é Brega meu amor” comentava Pedro sobre o sucesso que era sempre garantido nas edições do Brega Naite. Importante ressaltar a forte relação do estilo brega com a cidade de Recife, nesse sentido, em abril de 2017, o jornal local, Diário de Pernambuco, lançou uma matéria na qual informava a possibilidade do brega 75 Ver vídeo https://vimeo.com/168849999 76 Ver vídeo https://vimeo.com/167679021 77 Ver vídeo https://vimeo.com/144775840 154 ser reconhecido por lei como expressão musical e cultural de Pernambuco juntamente com o frevo, o maracatu, o coco, a ciranda, o cavalo-marinho e o manguebeat78. Na programação a festa divulgava a gravação do dvd da banda Sedutora e o Brega Naite trazia a participação de diversos artistas da cena do brega, como a banda Conde só Brega, Torpedo, Edu Luppa e Banda Lapada, além de deejays, Allana & Original e deejay Copy. Havia combinado de acompanhar João, Pedro e Marcelo no evento, porém, Otávio também iria com seu namorado, já Iago havia desistido devido a alguns compromissos de trabalho em outro Estado. Conheci João através de outro interlocutor, na época eles eram namorados, porém, em 2014, com a separação do casal, a rede se dividiu em duas: aquela composta pelos amigos de João e aquela composta pela rede de seu ex-namorado. Assim, muitas vezes tinha que fazer escolhas prévias sobre qual rede iria acompanhar. Na ocasião, fiquei hospedada na casa de João e Marcelo. João sempre que possível me convidava para ficar em sua casa e não era a primeira vez que me hospedava por lá, assim seria mais fácil acompanhá-lo em seus trajetos-circuitos e conhecer melhor suas narrativas, dispensando a formalidade de uma entrevista. Foi através de João que fiquei conhecendo Marcelo, seu amigo com quem divide apartamento: “Olha Chiara, falei de sua pesquisa para meu amigo que tá morando comigo e acho que ele tem uma história bem interessante para sua pesquisa”, enfatizava João da importância de incluir Marcelo. Fomos de Uber, já que os rapazes iriam beber. Na entrada do Catamaran, era grande a movimentação de ambulantes com seus carrinhos de comidas, que disponibilizam mesas e banquinhos para seus clientes. As pessoas não paravam de chegar ao local através de diferentes transportes. Os ingressos antecipados custavam R$ 120 (open bar) e 40 (pista). Na entrada da festa, foram vendidos a R$ 150 (open bar) e R$ 50 (pista). Outro interlocutor 78 “A proposta foi aprovada por unanimidade nas comissões de Constituição e Legislação, Finanças, Administração pública, Educação e Cultura. Ainda haverá uma nova votação no plenário para a aprovação final da PL, para então ser sancionada pelo governador. Segundo o Edilson, é importante incluir o brega no rol de expressões musicais protegidas pelo estado de Pernambuco e fortalecer ainda mais o movimento. "No último carnaval tivemos o ritmo colocado ao lado de expressões vetadas pela Fundarpe. Gêneros como a suingueira e a música sertaneja, estranhos ao povo e que não são produzidos aqui. Mas não é o caso do brega. Isso é muito ruim para os artistas que fazem parte desse movimento". No dia 14 de fevereiro uma solenidade na Alepe deu início ao projeto. A data é marcada como o Dia Estadual da Música Brega, em homenagem ao nascimento de Reginaldo Rossi”. Dsponivel em: http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/viver/2017/04/25/internas_viver,700943/brega-sera- reconhecido-por-lei-como-expressao-cultural-de-pernambuco.shtml. Acesso em 24 de abril de 2017. 155 me comunicou que compraria o ingresso comum, já que seu namorado não bebia e que ele tinha bebido muito durante o dia, ficando, assim, em outra área reservada a pista comum. Figura 5: Mapa da estrutura do Brega Naite Fonte: Instagram Golarrolê/Reprodução Ficamos próximo ao lado direito do palco e cada vez era possível compreender melhor a fala de Pedro, quando afirmou que “Recife era brega”. As pessoas cantarolavam as músicas juntas com as vocalistas da banda. A “infregatividade rolava solta”79 e o clima de animação tomava conta do grupo. Os rapazes bebiam cerveja e eu os acompanhava com água ou refrigerante. Diferentemente das boates, onde é raro a presença do público feminino, ali era grande a presença de mulheres e havia também, uma mistura no quesito geracional. Por ser uma festa alternativa, era expressivo a presença de casais heterossexuais. Mas, para os interlocutores, a maioria era “ composta principalmente pelo público gay”, como ressaltava João. 79 Reservo o capítulo quatro para uma análise mais detalhada sobre a musicalidade da bagaceira e infregatividade. 156 A combinação deejays e banda ao vivo era para os interlocutores superinteressante, “a festa não para. Entre uma banda e outra, o deejay continua animando a multidão”, ressaltava João. Estávamos em cinco, eu, João, Pedro, Marcelo e Basílio. João e Marcelo eram mais tímidos, já Pedro e Basílio eram mais extrovertidos e dançavam de forma mais solta. Próximo ao grupo dois rapazes faziam coreografias “imitando as dançarinas do grupo, que dançavam jogando os seus cabelos para os lados”, ressaltava João. A letra estava na boca do pessoal “Ah oh oh chara lalala [...] / Chega não dá mais, arrume um novo amor / Minha vida não te pertence pra você já acabou / Você me deixou só me fez sofrer, me fez chorar / Por mim tô decidida, já não quero mais te amar”80. Ser a única mulher do grupo resultava muitas vezes em investidas de pessoas externas ao grupo, seja de homens ou de mulheres. Mas naquela festa, boa parte destas investidas foi feita por mulheres que me abordavam, principalmente na hora que ia pegar bebidas ou ao banheiro, ou, me encaravam durante a festa. Em sua maioria, eram meninas mais jovens “as novinhas são assanhadas”, ressaltava João sobre a insistência de uma. Eu conversava com Marcelo e João, quando Pedro pegou um rapaz para dançar na “maior malicinha”, cheirando o cangote do rapaz. Nesse momento, meu celular começou a tocar, era meu outro interlocutor. Ele me enviou uma mensagem pelo WhatsApp na qual avisava que já estava por lá. Aproveitei que iria ao banheiro e fui falar com ele, que estava na parte da pista, próximo à entrada que dava acesso à parte reservada do open bar. Fiquei dez minutos com ele e voltei para a roda de João, que ao notar minha grande ausência comentou: “se rendeu aos encantos da gatinha? ” Todos caíram na risada. Disse-lhe apenas que havia encontrado com um amigo. A Banda Sedutora se apresentava e os primeiros raios de sol começavam a aparecer. Ficamos por lá até as seis horas. Na volta para casa, paramos em uma padaria em Boa Viagem. Depois, seguimos para a casa de João e Marcelo. Pedro voltou conosco, já que no domingo tínhamos combinado um almoço na casa dos rapazes. 80 Música disponível em: https://www.letras.mus.br/banda-lapada/1664216/. Acesso em 24 de maio de 2017. 157 Foto 21 e 22: Um olhar de Otávio para o Brega Naite Fonte: arquivo pessoal de Otávio (Recife, novembro de 2016) 158 3.4 Terça do Vinil A Terça do Vinil é um projeto de Juniani Marzani, mais conhecido como deejay 440. Com o slogan “música brasileira imperecível e de rua”, este projeto busca valorizar as produções musicais brasileiras e ressignificar os espaços públicos da cidade. No ano de 2017, o projeto completou uma década transformando os espaços urbanos a partir de uma combinação que valoriza o disco do vinil, a música eletrônica e ocupação dos espaços públicos, tanto na cidade de Olinda, quanto na cidade de Recife. Em entrevista à Revista Avianca, o deejay 440 contou um pouco da história do projeto da Terça do Vinil e comentou que a festa começou com uma “vitrolinha velha” usada, em uma comemoração entre amigos, na janela do bar Xinxim da Baiana, na cidade de Olinda. Depois a festa passou a ser realizada na bodega do Véio e na Praça do Fortim, na mesma cidade. Em seu sexto ano, a festa passou a ser realizada na cidade de Recife, incialmente ocorria na rua da Moeda, no Recife Antigo, e agora ocupa o Largo da Santa Cruz, no bairro de Boa Vista em Recife81. Figura 6: Percursos da Terça do Vinil Fonte: Google Maps 81 Disponível em: https://issuu.com/avianca/docs/avianca_giovanna_ewbank__43. Acesso em 15 de janeiro de 2017. 159 Em sua página do facebook, o projeto destaca a importância da musicalidade na relação com a cidade e como a Terça do Vinil tornou parte de Recife em uma festa democrática, Ano de 2007. Uma vitrolinha antiga, pouco mais de 30 discos, papo furado com os amigos e umas cervejas num conhecido bar de Olinda. O que oito anos atrás começou como uma brincadeira, hoje é o projeto TERÇA DO VINIL, que aos poucos se tornou parte da cidade, programa tradicional de notívagos locais e turistas das mais diversas localidades e nacionalidades. Tendo início em Olinda e atualmente ancorado em Recife, todas às noites de Terça do ano, clássicos da Música Brasileira, Raridades e Novidades no meio Fonográfico movimentam as noites da Veneza Brasileira. Além de levar Música de alta qualidade aos ouvintes, a Terça do Vinil busca promover o acesso por parte dos públicos tradicionais e não- tradicionais à Cultura do Vinil, difundindo ritmos como samba, samba- rock, chorinho, guitarradas, carimbó, frevo, forró entre outros ritmos brasileiros. Hoje contando com um acervo de mais de 3.000 mil discos, entre eles títulos raros de Cartola, Nelson Cavaquinho, Chico Buarque, Tropicalistas (Caetano Veloso, Gal Costa, Tom Zé e Gil), Tim Maia, Noriel Vilela, Jackson do Pandeiro e também lançamentos da cena musical Pernambucana como Chico Science e Nação Zumbi, Ave Sangria, Orquestra Contemporânea de Olinda, Eddie, Luiz Gonzaga, Nelson Ferreira, Claudionor Germano e Capiba. O público das Terças reúne faixas etárias das mais variadas, entre 18 e 60 anos. Boa parte do público de Músicos, Artistas, Jornalistas, Designers, Colecionadores de discos e universitários. Em 2013 foi o projeto foi eleito e premiado pela revista VEJA como melhor festa durante a semana no Recife (Melhores da Cidade 2013/2014). A TERÇA DO VINIL foi idealizada e é executada pelo DJ e Produtor Juniani Marzani, mais conhecido como DJ 440. Considerado um dos Djs mais atuantes do Estado de Pernambuco, sendo reconhecido por suas performances e inúmeros Projetos de Resgate da Música Popular Brasileira e difusão de novos artistas da cena local e nacional. O mesmo já percorreu diversos Eventos e Festivais de Música em cidades do Brasil como São Paulo, Brasília, Goiás, Amazonas, Bahia, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba.O projeto possibilita ainda, o intercâmbio musical, recebendo regularmente variados convidados, entre DJs locais, nacionais e internacionais, colecionadores e artistas amantes das bolachas preta, o que faz cada noite do projeto ser única. (Facebook Terça do Vinil, Disponível em: https://www.facebook.com/pg/tercadovinil/about/?ref=page_internal. Acesso em 15 de janeiro de 2017). 160 Foto 23: Terça do Vinil no Largo da Santa Cruz. Foto: Iggor Gomes (Instagram Terça do Vinil/Reprodução) Foto 24: Deejay 440. Foto: Terça do Vinil (Instagram Terça do Vinil/Reprodução) O projeto da Terça do Vinil ocorre toda às terças das 19:30 às 23:30 e faz parte dos trajetos de alguns dos interlocutores, principalmente daqueles de mais idade que relataram preferir a combinação “de uma boa música ambiente, uma cervejinha e um bom papo”. O estilo de música eletrônica classificado como brasilidades é propício para os interlocutores, “para reunir os amigos, ouvir uma boa música, tomar uma cervejinha e ter um papo cabeça”, com um ambiente mais claro (quando comparado às boates), com mesas e cadeiras espalhadas pela praça ao som de uma música ambiente (ambiente mais lounge), o que permite uma conversa agradável. Estes foram pontos destacados pelos interlocutores como aspectos que fazem da Terça do Vinil um evento que vem conquistando o público. 161 João, Pedro e Marcelo são os interlocutores mais assíduos, sempre que possível vão à Terça do Vinil, mas “o bom é chegar cedo, porque depois você não encontra mais mesas e tem que ficar em pé”, ressaltou Pedro. De acordo com Marcelo, “lá é mais música das antigas, Djavan, Reginaldo Rossi, Roberto Carlos, Gonzaga, Caetano, Carlinhos Brow, Gal, Tim Maia, Maria Bethânia, e vários outros artistas de peso. Ele lembra também que “não só é pra gente velha, não, tem um público bem jovem, principalmente o pessoal das artes, comunicação, humanas. É um pessoal mais alternativo”. Foi através dessa rede que a Terça do Vinil entrou em meus percursos. Marcelo enfatiza que o projeto já faz parte do seu roteiro semanal e que todas as suas terças são reservadas para ir ao largo de Santa Cruz. A Terça do Vinil é um movimento muito parecido com essa festa que tem no Odara: é um deejay que toca numa praça e ele toca vinil, ele faz mixagem com vinil [...]. É bem interessante, pois são músicas tocadas em vinis bem antigos; e ele toca Cartola, ele toca Pixinguinha, ele toca também Fagner, ele toca Djavan, são músicas que vão da MPB para o breguinha [...]. Acontece numa praça [...], vai uma galera mais alternativa e [...] vai também uma galera de mauricinhos que senta também nos restaurantes da praça, porque a praça tem uns restaurantes e tem também a parte aberta, então a Terça do Vinil é no espaço do Largo da Santa Cruz, ali na Boa Vista, no centro de Recife [...]. [...] Lá é uma galera mais alternativa, mais intelectual, uma coisa mais de conversa, uma coisa mais de papo. A música acompanha um bom papo [...] (Marcelo, Recife, outubro de 2016). “Música brasileira imperecível e de rua” Era uma terça-feira do mês de julho, na ocasião tinha combinado com João e Pedro para irmos à Terça do Vinil. Na semana anterior, havia combinado de acompanhá-los, porém, devido às fortes chuvas na capital pernambucana, o evento foi cancelado. Dessa vez, o tempo estava agradável não tinha sinal de que iria chover. Eu estava hospedada na casa de Júlio, e João se ofereceu para ir me encontrar lá. Já se aproximava das 19h quando João me ligou falando que já estava estacionado na frente do prédio, desci ao encontro dos rapazes. Chegamos por volta das 19:20h e o Largo de Santa Cruz já estava bastante movimentado. O deejay organizava os últimos detalhes enquanto as pessoas não paravam de chegar. As mesas estavam todas lotadas e ficamos em pé consumindo os produtos dos ambulantes. 162 A Terça do Vinil é uma festa em que a musicalidade se une a sonoridade da cidade. Por ser uma festa na rua, os sons se misturavam aos compassos musicais da música que ecoava pelas duas caixas de som que estavam posicionadas ao lado da mesa do deejay. Os sons das motos, dos carros e dos ônibus que passavam na rua uniam-se aos latidos de um cachorro ao fundo, aos ambulantes que anunciavam os seus produtos, aos garçons que atendiam os seus clientes e às pessoas que conversavam entre si. Dava-se corpo a uma orquestra ao ar livre em que cada som desempenhava o seu papel de forma harmoniosa e o que a princípio parecia uma confusão de sons logo se transformou em uma linda orquestra para os meus ouvidos, na qual todas as batidas sonoras acompanhavam o único som, aquele mixado pelo deejay 440. O estilo de música eletrônica classificado como brasilidade ganhava destaque nas vozes de Elis Regina, Gal Costa, Gilberto Gil, entre tantas outras referências da MPB. O deejay sempre deixava em destaque a capa de vinil que estava sendo tocada, assim as pessoas podiam ir lá apreciar a capa dos vinis, conferir as listas de músicas e falar com o deejay. A ambientação da Terça do Vinil é completamente diferente da ambientação que encontrei nas boates e nos bares. Na Terça do Vinil, a iluminação limita-se a mesa do deejay, deixando o espaço bem claro. O volume da caixa de som é mais suave quando comparado às boates, nas quais a conversa é algo praticamente impossível. Assim, dava-se corpo a um ambiente mais lounge onde não se tem uma limitação espacial de uma pista de dança. A pista, neste caso, é criada aos poucos no decorrer da festa pelas pessoas que seguem a música enquanto estão sentadas e conversando com os amigos, ou em pé balançando o corpo, ou, ainda, aquelas mais animadas que dançavam de forma mais espontânea em seus respectivos espaços, sozinhas ou acompanhadas. João tomava uma cerveja e balançava o corpo de forma tímida. Pedro fazia o mesmo, mas de forma mais espontânea. Falávamos sobre as pessoas que lá estavam. Chamávamo- nos atenção a diversidade de classe e geracional que costumava frequentar a Terça do Vinil. Para João, aquele era um espaço interessante por conseguir aglutinar pessoas da sua faixa etária e pela música ser agradável. Já Pedro mencionava que até acontecia paquera, porém era uma performance mais sutil. Ele gostava mesmo era de ir a este local para reencontrar os amigos e bater um bom papo durante a semana. A Terça do Vinil se apresentava, assim, como um importante evento para ocupar as ruas da cidade. Nesse sentido, lembrei-me das diversas vezes que passei no Largo da Santa 163 Cruz e tive que apressar o passo com medo de ser assaltada, mas naquela terça-feira a paisagem estava completamente transformada com as pessoas ocupando a cidade. O Largo da Santa Cruz estava lotado e as pessoas pareciam bastante animadas, o deejay interagia com a pista, colocando músicas bastante conhecidas, e o público entoava um belo e vibrante coral ao cantar “ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais...”, na voz de Elis Regina. João mencionou que apesar de não ser uma festa inserida em um “mercado GLS”, a Terça do Vinil era uma festa bastante frequentada pelo público LGBT, “ as festas alternativas têm essa característica, por ser frequentada por pessoas ligadas as artes”. Por isto, esta festa fazia parte de seu roteiro semanal. Mas ele ressalta que “outro lugar bem interessante é o Conchittas, lá também tem essa vibe, a diferença é que é um espaço fechado”. Foto: 25 e 26: Um olhar de João para a Terça do Vinil Fonte: Arquivo pessoal João (Recife, janeiro de 2017) O projeto da Terça do Vinil completou 10 anos de existência. Para comemorar essa data, o projeto firmou parceria com o Haus Bar na galeria Joana Darc em Boa Viagem e 164 realizou a comemoração de 10 anos nos dias 9, 16 e 23 de maio. Falava com João sobre o fato de que há um mês esta festa não era mais realizada no Largo da Santa Cruz, sendo cancelada em função das chuvas de abril ou sendo realizada em Olinda, onde ocorria o projeto Tropicasa do mesmo deejay, com música eletrônica dançante na vertente brasilidades. Pedro passou em frete ao Lisbela e falou que estava com placa de venda. É uma pena porque era um projeto [ Se referindo a Terça do Vinil] interessante. Era bom porque o pessoal já ia direto do trabalho ou saía mais cedo da faculdade, além disso dava um público bem bacana, Porém nos últimos dias tiveram alguns arrastões devido a uma praça q era ponto de droga e um bar que dava um público meio barra pesada. [...] Mas tem um lugar interessante que é a Mercearia do Bras e lá rola quinta cubana, é um novo projeto desse deejay 440. Eu adorei, porque lá é um pessoal mais maduro e é bem interessante (João, Recife, maio de 2017). Em meio a finalização desta dissertação, recebo uma mensagem de João informando que o projeto da Terça do Vinil lançou em sua página do Instagram uma nota confirmando que o projeto havia sido cancelado no Largo de Santa Cruz, sendo a falta de segurança e o abandono do poder público local os principais motivos deste cancelamento . Gente, apenas lembrando aos desavisados que ainda estão indo na Boa Vista atrás da gente: Por conta da falta de segurança e abandono do poder público no Largo da Santa Cruz, lugar que adoramos e o qual com muito amor e trabalho demos vida através da cultura, encerramos nosso ciclo por lá. É pra sempre? Não sabemos. É claro que pra gente é triste plantar algo e por motivos que vão além do nosso poder, ter que deixar de lado. Mas é a vida. Aguardamos vocês semana que vem na última noite da comemoração dos 10 anos de projeto na @galeriajoanadarc @haus.bar, que por sinal tem nos acolhido nesse mês e já tivemos duas noites lindas. Xero no coração. #terçadovinil #recife #ocuperecife #terçadovinil10anos #dj440 #músicabrasileira #vinyl (Nota da Terça do Vinil em sua página do Instagram, Recife, maio de 2017).82 82 Disponível em: https://www.instagram.com/p/BUMtVkLlm3U/?taken-by=tercadovinil. Acesso em 23 de maio de 2017. 165 3.5 Parada da Diversidade A Parada da Diversidade da cidade de Recife tem sua concentração no Parque Dona Lindu e em 2016 ocorreu sua 15 ª edição. Para alguns dos interlocutores, é um momento em que as reivindicações por direitos se unem ao momento de festa. Assim, na visão de Júlio, trata-se de “ um momento de unir forças para lutar pelos nossos direitos”. E, ainda, ressalta que “ vem bastante gente do interior e de outros estados também”. Nas edições anteriores da Parada da Diversidade, tive a oportunidade de chegar cedo e acompanhar melhor a preparação do evento. Era possível encontrar diferentes movimentos sociais e grupos de pesquisas, como o Instituto Papai, além da Secretaria de Turismo, que estavam reunidos para organizar os últimos detalhes antes de iniciar as suas pesquisas sobre o perfil das pessoas que participavam deste evento. Os funcionários do apoio técnico testavam o som e faziam os últimos retoques na decoração. Os ambulantes ofereciam os seus produtos. As pessoas chegavam ao local através de diferentes meios de transportes e se juntavam à multidão. Em sua 15ª edição, a Parada da Diversidade de Recife tinha como tema “Democracia Fora do Armário”. Havia combinado com Júlio, Marcos, Otávio e Iago de chegarmos cedo ao evento, porém, no dia anterior, como eu, Otávio e Iago tínhamos ido para a festa da Parada Liberté, acabamos perdendo a hora e nos atrasamos em relação ao horário combinado com os demais. Já se passava das 13h quando saímos do apartamento de Júlio. No carro, Otávio ligou sua caixinha de som, que tocava música eletrônica dançante nas vertentes da house music. Júlio perguntou se ele era “ aquelas bichas pão com ovo que escutam o som alto no ônibus”. Ao passo que Otávio lhe respondeu, “ eu fecho com essa caixinha quando chego nos lugares”. Estava quente, estávamos com fome e o som da caixinha de Otávio, que estava distorcido, passou a incomodar a todos. Pedimos para Otávio diminuir o volume, já que estava muito alto. Resolvemos passar antes no Shopping Recife para almoçarmos e deixar o carro no estacionamento, já que Iago estava com medo de deixar o carro na rua e alguém arranhá-lo. Era a primeira vez que Marcos saía com Iago e Otávio, mas Júlio já os conhecia desde um encontro anterior em Natal. Enquanto aguardávamos o almoço, Otavio e Iago aproveitavam para olhar o aplicativo Grindr: “deixa só observar se tem algum boy interessante aqui próximo”, comentou Otávio. Almoçamos e seguimos caminhando durante uns 15 minutos 166 pela rua Bruno Veloso até a Avenida Boa Viagem. Otávio estava segurando o seu Iphone 6 Plus, quando Júlio o alertou: “bicha, se a senhora não quiser ser roubada, guarde esse celular”. Os rapazes falavam da “onda de arrastões” que costumava ocorrer na Parada da Diversidade, por isso, era melhor não deixar o celular visível e guardar aquele dia apenas em nossas memorias. “Nada de fotos, bichas, a não ser que vocês queiram ser assaltadas”, ressaltou Júlio. À medida que nos aproximávamos da rua na qual passava os trios, o colorido tomava conta da paisagem e Otávio ficava mais elétrico. Na hora em que chegamos à Avenida Boa Viagem, o trio da Boate Metrópole83 se aproximava levando uma intensa pulsação dos agudos do tribal house que ecoava das caixas de som do trio elétrico. Para Marcos, o trio da Metrópole foi o que arrastou um número maior de participantes em seu entorno, motivo que para ele seria a cantora Pablo Vittar. Ficamos na calçada em frente ao prédio observando a passagem dos trios elétricos. A cada passagem de um trio elétrico, com o “empurra, empurra” os rapazes ficavam apreensivos e de olho nos bolsos para não serem furtados. Estava cheio e muita gente passava entre as pessoas que estavam na calçada. Nesse momento, Júlio me olhou e comentou: “nem vira tirar as fotos que você pediu, não quero ficar sem celular”. O trio da Boate Metrópole estava tocando tribal house e as vertentes da house music, os gogo-boys dançavam de sunga e a participação de Pablo Vittar levava a multidão à loucura. As pessoas que acompanhavam o trio da Boate Metrópole não estavam fora do padrão estético daquelas pessoas que frequentavam a boate. Nesse sentido, Marcos ressaltou:“notei que após o trio da Boate Metrópole o perfil das pessoas ia mudando também”. O marcador racial também se relaciona ao recorte de classe, já que o trio da Boate Metrópole era seguido por um público “mais descolado, melhor vestido”, enquanto os trios seguintes, a exemplo do trio do Nosso Jeito Bar, era acompanhado por pessoas “mais populares”, assim, o tênis “descolado” dava lugar a sandália de dedo. 83 Ver vídeo do Põe na Roda sobre a 15° Parada da Diversidade de Recife, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dugnjt91g1I. Acesso em 24 de setembro de 2016. 167 Foto 27: Trio do Clube Metrópole na 15° Parada da diversidade de Recife Foto: Fernando Cysneiros (Facebook Clube Metrópole/Reprodução) Entre um trio e outro, presenciávamos um verdadeiro desfile, “aquela ali está se sentido na passarela”, comentava Otávio sobre uma Malévola que surgiu da multidão. Quando o trio da Uber se aproximava, o forró tomava conta da paisagem sonora e a música Frevo Mulher, de Zé Ramalho, ressoava pelas caixas de som e pelas vozes das pessoas que seguiam o trio elétrico, “É quando o tempo sacode /A cabeleira, /A trança toda vermelha /Um olho cego vagueia /Procurando por um...”84. A música possibilitava que alguns casais dançassem juntos, acompanhando o trio enquanto dançavam forró pela avenida. A combinação do forró com pessoas que usavam chapéu de couro e bandeira LGBT fazia Júlio se arrepiar. “ Olha Chiara, merecia uma foto”, comentava Júlio ao me mostrar dois vaqueiros montados em seus cavalos e segurando uma bandeira LGBT. O trio do Nosso Jeito Bar tocava brega e as pessoas cantavam “é infiel eu quero ver você morar num Motel...”85 junto com a cantora, que se apresentava naquele momento. Alguns casais acompanhavam o trio dançando “aquele breguinha gostoso na maior infregatividade”. Para Otávio, a paisagem estava ficando mais feia, se referindo às pessoas 84 Ver https://www.youtube.com/watch?v=dJ7ysapYc3M. 85 Ver https://www.youtube.com/watch?v=aQCOldniWeE 168 que acompanhavam o trio as quais, em sua maioria, eram mulheres “caminhoneiras” e homens “cafuçus”. Comentei com os rapazes da diversidade musical presente na Parada da Diversidade, alguns trios tocavam música eletrônica mais internacional, outros tinham bandas ao vivo de brega, forró e axé. “Tem para todos os gostos”, comentava Marcos. A diversidade musical nesta paisagem era acompanhada pelas diferenças de classe e raça/etnia, “as pessoas brancas praticamente sumiram nesses últimos trios”, comentou Marcos. “Um pessoal mais feio”, complementou Otavio. Enquanto o último trio se afastava, discutíamos qual trajeto iriamos percorrer. Otávio queria ir atrás dos trios na expectativa de encontrar alguém interessante para ficar, já Júlio e Marcos queriam ficar parados por ali mesmo ou ir embora. “Acho que já deu, por mim já podemos ir embora”, reforçava Marcos que não fazia questão de ficar por ali, já que estava com receio de possíveis arrastões. Como estávamos todos com Iago, Júlio propôs que os rapazes acompanhassem o trio, enquanto ele e Marcos esperariam no Shopping. Eu me vi no meio de duas redes com gostos diferenciados. Se por um lado Júlio e Marcos, que são comprometidos, não tinham mais o que fazer ali, pois os trios já tinham passado e as pessoas já estavam indo embora; por outro, Otávio queria “caçar e ver gente bonita. Nesse sentido, ele ressaltava que “o bom seria ter vindo mais cedo”. Júlio, por sua vez, comentou “menino, olha aí um monte de gente”. Porém, para Otávio, “ali só tinha coisa feia”. Júlio, por fim, disse “mas é final de festa, o pessoal mais arrumadinho foi pra casa se arrumar para mais tarde ir para balada”. Passava-se das 17h e algumas pessoas se aglomeravam na barraca da Metrópole, onde um deejay remixava as diferentes vertentes da house music. Chamava atenção de todos do grupo um rapaz que dançava “loucamente” ao lado da barraca em que estava o deejay, “sem ritmo algum”, nas palavras de Júlio. “Feliz é esse que não está nem aí para a opinião dos outros”, comentou Marcos. Tocava house e o rapaz que já aparentava ter bebido bastante, dançava uma mistura de lambada, forró e boneco de Olinda, dançava tão empolgadamente que tropeçou e caiu junto com uma menina na areia. Aos tropeços, com o corpo coberto de areia, ele tentava se levantar e pedir desculpa à menina, que saiu enfurecida com ele. Os compassos musicais se uniam ao cambalear do rapaz, resultando em dança única e peculiar que chamava a atenção de todos ao seu redor. Alguns filmavam, outros tiravam fotos, outros riam da situação e o rapaz só queria saber de dançar. Enquanto isso, Otávio mostrava um grupo de “sapatão caminhoneira”: “Olha pra lá, mas macho que a gente 169 junto”. As meninas vestiam bermudas, camisas folgadas e boné, “parece o Juninho Play”, comentou Iago. Aproveitei o momento para tirar uma foto, já que os rapazes estavam com receio de serem assaltados. Os últimos raios de sol iam embora e com eles algumas pessoas começavam a ir embora, “Vamos embora, já deu”, comentou Marcos. Otávio queria permanecer por lá um pouco mais de tempo, no entanto, Iago insistia: “menino, agora não tem mais nada de interessante, vamos embora”. Foto 28: Barraca do Clube Metrópole na 15° Parada da Diversidade de Recife Foto: Arquivo pessoal (Recife, setembro de 2017) Para Marcos, a foto do momento em que estávamos próximo à barraca da Metrópole o fez recordar de um momento importante em sua vida. Nesse sentido, ele disse: Eu morava em Olinda com minha irmã e foi na época que tinha me descoberto totalmente (digo que tinha me aceitado e já havia me assumido pros meus pais). Então eu vivia aquele êxtase de "putz, eu sou gay mesmo e tô amando tudo isso". Era noite de réveillon e eu fui pra orla de Boa Viagem sozinho e fiquei no local em que havia uns deejays tocando na praia. A foto é exatamente igual a visão que ainda tenho do momento! A diferença é que ali é ainda o entardecer e o momento que vivi era completamente noturno. Enfim, eu fiquei num local mais reservado olhando as pessoas que estavam lá por muito tempo. Tudo foi interrompido por um arrastão e eu fui pra pracinha esperar o PE-15 pra voltar pra casa[...]Foi maravilhoso! Eu realmente precisava passar por aquilo. (Marcos, Recife, outubro de 2016). 170 Combinamos de passar no Conchittas e olhar a movimentação da rua das Ninfas, local onde fica a Metrópole, Santo Bar e o Conchittas. Seguimos caminhando para o Shopping Boa Vista, as paradas de ônibus estavam lotadas e Júlio lembrou-se de outros momentos em que voltava de ônibus para casa e de como esta volta era complicada. Por isso, ele desistiu de participar de outras edições da Parada da Diversidade, pois, ele sempre avaliava a precariedade que era a volta para casa. Otávio ainda inconformado porque estávamos indo embora, continuava reclamando “vocês são muitos fracos”. Quando avistou um rapaz bonito, ele comentou “Eitaaaa! Que delicinha”. Para Júlio, Otávio parecia que estava em sua primeira Parada, que nunca tinha visto homem. E completou: “Ele não é nada discreto”. No carro, o assunto sobre “discretos e fora do meio” continuava em debate. Quando Otávio afirmou ser “discreto e fora do meio”, Júlio e Marcos imediatamente deram uma risada, deixando Otávio sem graça. “Só se for fora do meio heterossexual”, retrucou Júlio. “ Eu não gosto de frescura no meio do povo, mas quando estou entre amigos não tem nada”, explicou Otávio. No caminho passamos próximo à Boate MKB. Quando Iago viu um rapaz encostado no muro, ele comentou “esse é garoto de programa”. Perguntei como ele sabia, e ele me respondeu que: “Uma vez fiquei hospedado nessa pousada [ se referindo à pousada na rua da MKB] e a dona comentou que dava muito garoto de programa aqui e alguns assaltavam os caras também”. O rapaz que estava encostado no muro era negro, estava de bermuda jeans, boné, corrente no pescoço, regata e tênis. Otávio comentou: “esse aqui parece um marginal, eu nunca que iria pagar pra sair com ele”. Naquele momento, o perfil classificado como “cafuçu” era imediatamente associado ao “marginal”. Quando passamos pelo Largo da Santa Cruz, Marcos comentou “aqui é onde ocorre a Terça do Vinil”. Para Marcos, era uma festa bastante frequentada pelo público classificado por ele como “gays alternativos”. Nossa intenção era ficar um pouco no Conchittas Bar, porém, ao passar em frente ao estabelecimento, Iago o classificou como “um lugar cheio de pessoas alternativas”, o que para ele não era interessante, já que não gostava de locais “alternativos”. Júlio e Marcos, que já estavam cansados e queriam voltar para casa, comentaram que era melhor irmos embora. Iago deixou a gente no apartamento de Júlio e seguiu para a sauna com Otávio e por lá ficaram até a sauna fechar. 171 Notas Partindo dos pressupostos teóricos e metodológicos de uma etnografia urbana, nesta segunda parte da dissertação, tentei descrever o mapeamento que fiz do circuito comercial de bares e boates GLS, bem como das festas “alternativas” direcionados para homossexuais masculinos, na cidade de Recife. Procurei perceber, nesse sentido, as semelhanças e dessemelhanças que emergem na produção de uma lógica de pertencimento a uma dinâmica de identificação entre homens com práticas (homo)sexuais. Lógica de pertencimento esta que, como apontam as narrativas dos interlocutores, se estabelecem na relação entre os estilos de vida e as imersões destes indivíduos nas formas de sociabilidade urbana que os bares, as boates e as festas lhes oferecem como um campo de possibilidades. O trabalho de campo me possibilitou perceber, assim, os sentidos de pertencer a uma dada identidade sexual e a constituição de significados sobre si mesmos e em relação aos outros. Trata-se de uma dinâmica de identificação que se organiza a partir das redes de conflito e de solidariedade, as disputas morais e as categorias de acusações que perpassam as formas de circular por esses espaços entre estes indivíduos (VELHO, 1985; 1997; 2003). Circular pelos diversos espaços de sociabilidade mapeados permitiu, igualmente, perceber as diferentes formas de sociabilidade e de possiblidades de articulações entre os marcadores sociais e identitários da diferença. Deste modo, os estilos de vida e as identidades sexuais acessadas, assim como os vínculos e os conflitos que orientam a constituição das redes de relações destes indivíduos, apontam para o complexo processo por meio do qual estes indivíduos estabelecem os vínculos de pertencimento ao mesmo tempo em que delimitam fronteiras morais e simbólicas. 172 Nesse sentido, as categorias nativas identitárias como “barbeis86, cafuçus87, ursos88 e pintosas89 ”, entre outras, aparecem rotineiramente, nas narrativas dos interlocutores, ora como categorias de pertencimento em relação a si, ora como categorias de acusações para com o outro. A tensão da possibilidade de conflito e de acionamento de categorias de acusações, deste modo, precisa ser permanentemente administrada e negociada pelos diferentes indivíduos em interação imediata, na constituição de redes de relações (GOFFMAN, 2012b; 2013). As categorias identitárias e de pertencimento aparecem, nas narrativas dos interlocutores, como visões de mundo que demarcam suas escolhas pelos espaços de sociabilidade nos quais circulam e os estilos musicais que preferem escutar nesses espaços. Escolhas estas que se organizam como “fronteiras” porosas, ou seja, como formas de demarcar linhas simbólicas, construir suas redes de sociabilidade e elaborar suas identidades sexuais (VELHO, 1985; 1997). Os interlocutores não partilham das mesmas categorias identitárias e dos seus respectivos sentidos de pertencimento, ao contrário, eles produzem várias categorias identitárias tanto para si quanto para os outros (BECKER, 2008), as quais também possuem diferentes sentidos. Esta variedade de categorias identitárias, deste modo, os conduzem a performatizar comportamentos variados, que podem ser apropriados ou inapropriados em uma boate (GOFFMAN, 2010; 2013). Dependendo das regras morais impostas, em cada boate, assim, um mesmo indivíduo com práticas (homo)sexuais pode ser, na mesma medida, um “empreendedor moral” e um “desviante” (BECKER, 2008), o que definirá esta ou aquela “posição” será a natureza particular da interação. Deste modo, ser uma “bicha pintosa” na Boate MKB não constitui uma violação das regras morais que orientam as formas de sociabilidades naquele espaço, mas ser uma “barbie” sim. O contrário, por sua vez, pode ser visualizado na Boate San Sebastian, na qual 86 A categoria “barbie” é tida como o estereótipo do gay voltado ao “mercado GLS”. Geralmente são homens brancos, depilados, tatuados, com o corpo musculoso (fruto de longas horas de academia), que usam roupas de marcas famosas que modelam o corpo e que frequentam as boates mais caras da cidade, sendo geralmente de classe média e alta. 87 De acordo com os interlocutores, o “cafuçu” geralmente é associado a homens de camadas populares: “é aquele negro/moreno que tem aquele jeitão de homem e possui um corpo naturalmente esculpido pela rotina de trabalho árduo”. 88 Os “ursinhos” são homens que se assemelham à figura do lenhador, de aparência forte (não necessariamente musculosos, alguns são “fofinhos”) e barbudos. Costumam gostar de usar roupa xadrez. No meu campo, no Santo Bar, tive contato com uma nova categoria, a do “ursinho moderninho”: “ali é cheio de ursinhos moderninhos, barbudos, bem vestidos e usando aqueles óculos de gente intelectual”. 89 “Pintosas” geralmente são aqueles homens com traços mais delicados e associados à feminilidade: “homens que desmunhecam, ou veste roupa de mulher, tem até umas que vão de salto e usam maquiagem na balada”. 173 a categoria “bicha pintosa” constitui uma categoria identitária desprestigiada, enquanto a categoria “barbie” constitui um símbolo de prestígio. Assim, ser “bicha” em uma boate, ou, ser “barbie” em outra, pode ser ou não uma violação das regras morais de condutas, a acusação desta ou daquela conduta como “desviante” vai depender das disposições morais dos indivíduos entre interação. No meu trabalho de campo, o jogo de interação simbólica e de relações de poder90 (GOFFMAN, 2012a; ORTNER, 2007a; 2007b) que visualizo nas boates e nos bares GLS, bem como nas festas “alternativas”, assim, aponta que quando os indivíduos pertencem ou se sentem pertencendo a uma identidade sexual se apresentam como diferença aos outros em relação e, a partir desta diferença, estes elaboram regras de compartilhamento que orientam suas práticas e trocas simbólicas nos bares e nas boates GLS, bem como nas festas. O sentido de pertencer implica, deste modo, nos rastros de análises citadas, um processo de proximidade e procura de semelhança, esta, por sua vez, provoca a busca da assimilação a um estilo de vida, a uma ethos e a uma visão de mundo. Assim, o sentido de pertencer a um código de conduta moral produz, entre os indivíduos em interação simbólica, um sentimento de familiaridade e uma rede de sociabilidade que possibilitam estes indivíduos a se relacionarem entre si e com os outros. Trata-se, portanto, de um jogo permanente de semelhança e dessemelhança, organizado a partir de disputas morais, práticas de desculpas e acusações. Neste jogo, o sentimento de pertença a uma identidade sexual parece assinalar para o processo de individualização e diferenciação que perfazem os ethos, as visões de mundo e as fronteiras simbólicas de uma rede de sociabilidade. 90 Uma versão mais extensa desse debate foi publicada na Revista Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, ver Santana (2017). 174 PARTE III – A MÚSICA 175 CAPÍTULO 4 – Da house music à bagaceira91 4.1 Música eletrônica e música eletrônica em Recife A bagaceira aqui [se referindo à cidade de Recife] é tipo forró, brega, funk. Aqui o brega é muito forte, muito forte mesmo e por incrível que pareça toca nas boates e bomba nas festas! Tanto é que tem o Brega Naite, que é uma festa só de brega que ocorre lá no Catamaran (Júlio, Recife, abril de 2016). Este relato de Júlio é interessante porque estabelece uma importante relação entre as boates recifenses e o estilo musical brega. Quando ressalta que “por incrível que pareça” a música brega também toca nas boates, ele procura chamar atenção para o lugar pouco comum que esse estilo musical possui na programação dos espaços de sociabilidade GLS. No entanto, apesar de este estilo ser considerado sonoramente inapropriado em outros contextos, a exemplo de algumas das boates de São Paulo, Rio de Janeiro e Florianópolis, onde há uma predominância do estilo eletrônico de mais influência internacional, como o house, eletro house e o tribal house, nas boates de Recife o estilo classificado como bagaceira faz parte da programação. 91 Em 2015, versões iniciais deste capítulo foram apresentadas no Fórum de Jovens Pesquisadores “Corpo, Gênero e Sexualidade” coordenado por Milton Ribeiro (PPGSA/UFPA) e Marcio Zamboni (PPGAS/USP) durante o IV Enlaçando Sexualidades, realizado em Salvador, BA, Brasil, no período de 27 a 29 de maio de 2015. Agradeço aos coordenadores o profícuo debate. Neste mesmo ano, excertos deste capítulo também foram apresentados como comunicação oral no Fórum Temático “Gênero e sexualidade: perspectivas transregionais e transdisciplinares” coordenado por Milton Ribeiro (PPGSA/UFPA), Marcelo Perilo (PPGCS/Unicamp) e Marisol Marini (PPGAS/USP) e debatido por Jainara Oliveira (PPGAS/UFSC) durante a V Reunião Equatorial de Antropologia (REA) e XIV Reunião de Antropólogos Norte e Nordeste (ABANNE), realizado no período de 19 a 22 de julho de 2015, em Maceió, AL, Brasil. Agradeço aos/à coordenadores/a e a debatedora as leituras iniciais. Ainda em 2015, excertos deste capítulo foram apresentados como comunicação oral no Simpósio “Perspectivas Antropológicas de la Música, Performance e Identidade” coordenado pelas Profas. Dras. Tatiana Bacal e Deise Lucy e pelo Prof. Dr. Nilton Santos, durante o IV Congreso de la Asociación Latinoamericana de Antropología (ALA), realizado no período de 7 a 10 de outubro, na Cidade do México, México. Agradeço ao/às coordenador/as e o/à debatedor/a as leituras iniciais. Em 2016, uma versão mais substancial deste capítulo, por sua vez, foi publicada no Dossiê “Paisagens sonoras” da Revista Equatorial, ver Santana (2016b). Agradeço às/aos pareceristas anônimas/os da Equatorial as leituras criteriosas. 176 Nesse sentido, recordo-me de uma das várias conversas que tive com outros deejays na cidade de São Paulo e do estranhamento que eles relataram a respeito das suas experiências em boates do Nordeste. Um dos deejays disse: “Era eu tocando e ouvindo o forró no outro espaço”. Na ocasião dessa conversa, o colega deejay comentava sobre quando esteve em uma boate GLS em Natal. Ele disse ter ficado impressionado com o fato de a boate ter dois espaços bastantes diversificados: um que era reservado para apresentações de deejays que tocam música eletrônica dançante, e o outro espaço, por sua vez, era reservado para apresentações de bandas locais que tocam brega e forró. Esse estranhamento se deu também quando um amigo paulistano visitou a cidade de Recife pela primeira vez e foi comigo para a Boate Metrópole. Para ele, o fato de a boate ter espaços direcionados a estilos mais regionais era uma experiência diferente do contexto no qual ele estava acostumado: “Em São Paulo a boate tem várias pistas, mas é tudo eletrônico [se referindo às vertentes da house music]: tem uma pista com o som mais pesado e outra pista com o som mais calmo, por exemplo. Aqui o deejay toca Calypso, Xuxa e É o Tchan. É muito diferente!” Esse amigo comentou, ainda, que a única festa que ele conhecia que “tocava de tudo” era a festa Gambiarra92. Segundo ele, essa festa “dá um público bem diferente das festas da The Week e só acontece esporadicamente na The Week, mas é um público bem diferente e não tem nada a ver com o grupo The Week, eles alugam o espaço”. O grupo The Week93, mencionado por esse amigo, está presente no Brasil nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Florianópolis e é classificado por alguns dos interlocutores, a exemplo de Carlos94, como um local que apresenta uma “música eletrônica mais 92 “Gambiarra – A Festa é uma das maiores festas de música brasileira do País. Criada em São Paulo, por um grupo de atores, realiza edições semanais em várias casas noturnas da capital paulista”. Disponível em: http://www.gambiarraafesta.com.br/index.php?option=com_lyftenbloggie&view=entry&year=2016&month= 02&day=21&id=1255:eu-sou-brasileira&Itemid=55. Acesso em outubro de 2016. 93 “Criada a partir do sucesso da festa itinerante “Toy”, a The Week uniu talentos do entretenimento e revolucionou o conceito da noite paulistana: uma casa que já nasceu grande onde cada noite tomava porte de grande festival. A festa Babylon, evento inaugural, tornou-se então o selo semanal da The Week, o ponto de encontro de várias tribos e estilos cuja qualidade tecnológica e sonora projetou o Brasil no cenário da noite internacional e a casa desde então foi palco para grandes nomes da música eletrônica mundial”. Disponível em: http://www.theweek.com.br/#sobre-nos. Acesso em outubro de 2016. 94 Carlos tem 30 anos, é paulistano, deejay, classe média e autodenomina-se como branco e gay. Cito este relato de Carlos porque inicialmente pretendia fazer um estudo comparativo entre Recife e São Paulo, sendo assim, me inserir em campo nessas duas cidades (ainda enquanto aluna especial no PPGA/UFPB e pesquisadora do Guetu) e passei a acompanhar alguns dos interlocutores paulistanos nas festas voltada ao público LGBT. Ao iniciar o meu mestrado no PPGAS/UFRN passei a frequentar com mais assiduidade os espaços voltados ao público LGBT na cidade de Recife e resolvi focar minha atual pesquisa apenas nesta cidade, principalmente devido à necessidade primária de se ter um trabalho na área da antropologia nesse contexto. 177 refinada”. Esse “refinamento musical”, de acordo com seus relatos, exclui qualquer possibilidade de estranhamentos sonoros, como, por exemplo, uma música que apareça em sua composição elementos considerados mais populares, como um vocal que fale da estação sé95, ou uma batida que se aproxime da batida do funk96. Isso acontece devido à imagem a qual boate se associa, como ao moderno e ao descolado, porque se trata de uma marca bastante presente em festas da Europa97, tais como a maior pool party da Europa, o Circuit Festival, que ocorre anualmente em Barcelona, na Espanha98. Na pesquisa que estou desenvolvendo distancio-me de uma perspectiva restrita de uma música eletrônica de influência internacional, para me alinhar a um olhar etnográfico mais detido da experiência musical vivenciada pelos interlocutores na cidade de Recife. Com esta proposta, classifico como música eletrônica toda a música produzida com auxílio de aparelhos eletrônicos e que seja reproduzida por um deejay, dependendo exclusivamente dos equipamentos eletrônicos para que o som seja sintetizado ou construído99. Ressalto, aqui, a importância do deejay na execução desse estilo de música e consequentemente no lugar que essa música promove entre os dançantes. Estilo musical este que se diferencia de um outro estilo de música eletrônica: aquele classificado por Bacal (2012) como uma música eletrônica erudita. Nesse sentido, acho oportuno lançar mão da diferenciação analítica descrita por Severo (2015) sobre esses dois estilos musicais, destacando como principal diferença a função de ambos: Talvez a diferença marcante entre música eletroacústica e a música eletroacústica dançante esteja também no modo como são organizadas as repetições dos sons ao longo da peça/música, além, é claro, do propósito, em termos de performance, que cada uma sugere: uma é para escutar, concentradamente e em um ambiente propício, silencioso e escuro; a outra é para dançar, em um ambiente com outros tipos de ruídos interferindo, como, por exemplo, a fala de pessoas conversando, somando ainda uma 95 A exemplo do seguinte remix: https://soundcloud.com/erikmarcelolives/erik-marcelo-vmc-vs-sick- individuals-se-main-mix 96 A exemplo do seguinte remix: https://soundcloud.com/lucas-canniello-uber/beijinho-no-ombro-valesca. 97 Ver França (2012), a autora apresenta um importante estudo sobre a homossexualidade masculina e o consumo na cidade de São Paulo, dedicando um capítulo de seu livro para analisar as relações entre o consumo e os diferentes marcadores sociais da diferença na Boate The Week. 98 Ver França (2015), neste artigo a autora busca entender como é produzido o sentido de lugar na relação com a sexualidade a partir de uma observação participante realizada no Circuit Festival, em Barcelona, Espanha. 99 O debate sobre a música eletrônica é bem mais complexo, o qual também abriga uma discussão sobre a estética musical e as práticas composicionais específicas presentes em cada gênero, ver Cilli (2015). 178 diversidade de luzes coloridas que também contribuem para o ambiente da performance (Ibidem, p. 184-185). Deste modo, ao se trabalhar analiticamente com a música eletrônica dançante, também se faz necessário destacar a relação corporal estabelecida entre os dançantes. Experiência esta apontada por Neves (2016) da seguinte forma: A música é especificamente registrada por todo o corpo, não se trata apenas de cognição mental, este aspecto da experiência musical é vívido nas festas de música eletrônica, o dançante recebe a música, é afetado por ela através do corpo e expressa a ação da música em cada ato de sua dança. As vibrações de todas as músicas são capazes de serem comunicadas pelo corpo, a interação ocorrida entre sons e corpos será sempre parte de um resultado de respostas apreendidas, de disposições individual ou cultural (Ibidem, 2016, p.9). Outro aspecto interessante, ao se trabalhar com a música eletrônica dançante, é a relação estabelecida com a tecnologia e os diferentes usos que os deejays fazem dela. Deste modo, um deejay pode se utilizar de diferentes equipamentos para mixar (misturar) uma ou mais músicas (notebooks, controladoras ou pick-ups, que variam de tamanho e funções de acordo com o modelo100). O deejay é uma peça chave nas festas de música eletrônica dançante, é ele o responsável pelo repertório musical e pela animação da festa. A comunicação entre a pista e o deejay se dá por meio das músicas e dos efeitos corporais que esta provoca entre os dançantes. Assim como o uso das mídias, o deejay também é um importante meio para divulgação das músicas, pois, ele é ainda o responsável por fazer a música circular pelos diferentes espaços, recebendo muitas vezes a posição de artista no cenário musical (BACAL, 2012)101. O universo da música eletrônica voltado ao público LGBT também está envolto por um mercado altamente erotizado. Trata-se de um mercado no qual existe uma forte valorização da erotização dos corpos sarados e muitas vezes nus. Nesse mercado, a figura do deejay é quase sempre representada pela imagem de um homem branco e musculoso: 100 Sobre a mixagem e os equipamentos utilizado pelos deejays, ver Tatiana Bacal (2012) e Ivan Fontanari (2013). 101 Ver Tatiana Bacal (2012), a autora faz um rico debate sobre música eletrônica, particularmente das mudanças a respeito da figura do deejay, que saiu de um certo anonimato nas festas para assumir a posição de artista no cenário musical. 179 símbolo de desejo e de modelo padrão a ser seguido e explorado pelos estabelecimentos direcionados, principalmente, para o homossexual masculino. Na visão de Iago: Hoje em dia a boate não quer mostrar apenas que os gogo-dancers são sarados, os deejays também estão atendendo a esses requisitos. É só você prestar atenção nas propagandas das boates, onde na maior parte das vezes as características físicas se sobressaem em relação às características profissionais (Iago, Recife, março de 2016). Na ocasião, conversávamos a respeito do “mercado GLS” e de como esse mercado vem “mercantilizando a erotização dos corpos”, sendo comum encontrar flyers que valorizam a erotização do corpo masculino e a “glamourização do corpo feminino”. Figura 7,8,9 e 10: Flyers do Clube Metrópole Fonte: Facebook Clube Metrópole/Reprodução 180 Figura 11 e 12: Flyers da Boate San Sebastian Fonte: Facebook Boate San Sebastian/Reprodução Na mesma ocasião, ele também me questionava a respeito de como era ser uma deejay neste cenário. Este questionamento foi extremamente produtivo, pois, a partir desse momento comecei a olhar mais atentamente para o meu lugar de mulher e deejay. Um dos interlocutores, nesse sentido, fez o seguinte comentário: “Chiara, daqui a pouco você vai ter que fazer ensaio pelada com o fone cobrindo a sua preciosa ou tocar só de lingerie para atrair o público”, pois, em sua opinião as boates supervalorizam a exposição dos corpos. Por outro lado, no mercado voltado ao público LGBT existe uma relação muito forte com as divas do pop music. Por sempre gostar de tocar de vestido e salto alto, em alguns momentos, eu era colocada nessa posição: “Minha diva! Eu e meu namorado lhe amamos muito. Nos conhecemos em um show seu aqui em Natal, no Galpão 29, tiramos fotos com você e fizemos um porta-retrato e o colocamos na nossa cômoda. Temos um carinho por você”, comentou um apreciador do meu trabalho. Um outro interlocutor disse: “Seu som é pesado, nem parece mulher tocando, enquanto o outro deejay parecia uma mulherzinha tocando”. Além desses comentários, escutei outro bastante interesse para a análise, aqui, proposta. Na ocasião, tocava em uma festa dividindo a pick-ups com quatro homens, o “som pesado” não era visto como algo negativo, ao contrário, ele “contagiou a pista toda, as travestis estavam tudo dançando e o deejay, que iria tocar depois, ficou com a feição de inveja”. O “som pesado” foi descrito 181 com um ar de surpresa, pois, ao observar uma mulher “delicadazinha” e que em suas apresentações valorizava as batidas mais pesadas do tribal house, o interlocutor me percebeu de uma outra forma e me reposicionou em campo. Naquela noite, o outro deejay, anterior a minha apresentação, valorizava um som mais house, “mais suave”. Os nossos estilos de tocar demonstravam que tanto os homens quanto as mulheres poderiam tocar qualquer estilo, independentemente de seu gênero, que homem poderia tocar uma música mais “calma” ou que uma mulher poderia tocar uma música mais “pesada”, desfazendo deste modo os estereótipos que atribuem ao gênero feminino um estilo musical mais “suave” e ao gênero masculino, um estilo musical mais “pesado”. Nesse sentido, importante destacar que a música eletrônica dançante apresenta uma variedade de estilos. Trata-se de estilos que se diferenciam pela velocidade de batidas por minutos (bpm) e pelas suas características sonoras específicas que, por sua vez, irão se diferenciar pelo uso ou não uso de determinado elemento sonoro. Podendo, assim, a música eletrônica dançante ser classificada entre diversos estilos, a exemplo do tecnho102, house 102 “Estilo de música eletrônica essencialmente dançante, de ritmo acelerado e melodia monótona. Surgiu na década de 1980 e se assemelha ao estilo house. O nome “techno”, identificava todas as músicas que eram feitas exclusivamente por computador, e assim, sem fazer uso de instrumentos musicais tradicionais, imenso espectro de sons artificias”. Disponível em: http://musiartes.com.br/2015/11/os-principais-tipos-de-musica-eletronica/. Acesso em: 09 de junho de 2016. 182 music103, drum and bass104, trance105, minimal106, brasilidades107, bagaceira108, pernambucolismo109, entre outros. Cada estilo apresenta características específicas que o distingue internamente de outros, por exemplo, o house apresenta diversas vertentes, entre 103 “É um estilo musical surgido em Chicago, nos Estados Unidos, na primeira metade da década de 1980. Possui batidas bem rápidas variando entre 118 e 135bpm, apesar de apresentar batidas mais lentas no seu surgimento. A batida 4/4 é um dos elementos mais comuns no house, que geralmente é gerado por uma caixa de ritmos ou um sampler. Diversas fontes de som são utilizadas, normalmente contínuos que se repetem eletronicamente com linhas de sequência geradas por um sintetizador”. Disponível em: http://musiartes.com.br/2015/11/osprincipais-tipos-de-musica-eletronica/. Acesso em: 09 de junho de 2016. 104 “É um estilo de música eletrônica que se originou a partir do jungle. Surgiu na metade dos anos 90 na Inglaterra. O gênero é caracterizado por batidas rápidas, próximas a 170 BPM. Incorporou elementos de culturas musicais como o dancehall, electro, funk, Hip-Hop, house, jazz, metal, pop, reggae, rock, techno e trance”. Disponível em: http://musiartes.com.br/2015/11/osprincipais-tipos-de-musica-eletronica/. Acesso em: 09 de junho de 2016. 105 “Uma das principais vertentes da música eletrônica, que emergiu no início da década de 1990. O gênero é caracterizado pelo tempo entre 130 e 190 bpm, com partes melódicas de sintetizador e uma forma musical progressiva durante a composição (de forma crescente ou apresentando quebras). Algumas vezes vocais também são utilizados. Estilo é derivado do house e do techno, com seus sons industriais, parecerem menos melódicos”. Disponível em: http://musiartes.com.br/2015/11/os-principais-tipos-de-musica-eletronica/. Acesso em: 09 de junho de 2016. 106 “É uma vertente minimalista que segue aquele ditado “less is more” (menos é mais). Este estilo também está lig ado ao movimento e a arte minimalista”. Disponível em: http://musiartes.com.br/2015/11/os-principais- tipos-de-musica-eletronica/. Acesso em: 09 de junho de 2016. 107 É um estilo de música eletrônica que valoriza a mixagem de gêneros musicais como a MPB, o samba e a bossa nova. Em recife esse estilo de música eletrônica classificado como brasilidades é muito forte no projeto da Terça do Vinil, que apresenta o seguinte slogan “música brasileira imperecível e de rua”. Ouvir música em: hps://soundcloud.com/dj440/o-som-muitoincrementado-da-terca-do-vinil-vol02. Para Fontanari (2013, p.256-7), “ A 'música brasileira' que pode ser mixada é a reconhecida pública e oficialmente como símbolos da música popular brasileira no Brasil e fora dele, produzida por músicos de prestígio nacional e internacional amplamente reconhecidos como parte da história da música popular brasileira, compondo, deste modo, uma elite”. Tatiana Bacal (2012), por sua vez, utiliza-se dos termos música eletrônica brasileira ou música eletrônica no Brasil para se referir ao estilo brasilidades. Em seu livro, a autora faz um rico debate em torno da música eletrônica no Brasil x música eletrônica brasileira a partir dos posicionamentos de seus interlocutores (djs e produtores da música eletrônica, a exemplo do DJ Dolores). 108 Estilo musical a ser analisado neste capítulo. Em meu trabalho de campo, a principal diferença entre os estilos brasilidades e bagaceira estaria relacionada ao reconhecimento do primeiro enquanto algo associado ao cult (“acompanha um bom papo”), enquanto o segundo estilo estaria mais relacionado às interações dançantes valorizadas na sedução. 109 Tomei conhecimento deste estilo musical na festa intitulada Babalithy do Santo Bar. Para os interlocutores, este seria um estilo que valoriza a musicalidade pernambucana. Poderia entrar aqui os estilos considerados como brasilidades e bagaceira, desde que originados de Pernambuco. Mas, a priori, destaco a nomenclatura deste estilo seguindo um debate levantado por Bacal (2012) no qual o espaço onde essa música é tocada ou criada dá lugar para novas nomenclaturas. Uma experiência semelhante ao Chicago house que remete ao estilo de house tocado em Chicago, nesse sentido, um “ponto que influenciou o desenvolvimento da música eletrônica foi o espaço. Por combinarem trabalho, lazer e informação e estética, os espaços onde se criam e se tocam as músicas dançantes estão em constante transformações, pois vão se revestindo de diversos modos, alterando seus nomes, suas localidades e sua estética, à medida que novos modismos são criados” (Ibidem, p.63). 183 elas a eletro house, tribal house, progressive house, big room house, techno house, deep house, ou seja, um único estilo apresenta diversas variações internas que os distinguem entre si. O house é conhecido pela sua batida com um compasso 4x4, o que o torna um ritmo bastante dançante, sendo, portanto, divulgado popularmente como música eletrônica dançante. Os vocais constituem outro destaque no house, pois, eles comumente são apresentados em evidência, criando muitas vezes uma atmosfera festiva entre os dançantes, na qual todos cantam a mesma canção, assim, são vocais que dão realce para os refrães encurtados e repetitivos. Se em contextos mais gerais associo o house music e suas diversas vertentes às pistas de danças das principais boates brasileiras direcionadas ao público LGBT, no contexto aqui apresentado, a capital pernambucana, procuro analisar os estilos de música eletrônica dançante mais presente nos espaços por mim frequentados, desta forma incluo também o estilo musical denominado de bagaceira. 4.2 Música eletrônica dançante e público dissidente A proposta de análise aqui apresentada procura abordar uma forma especifica de música, a saber, a música eletrônica dançante produzida para um público particular: homens com práticas (homo)sexuais que frequentam boates GLS. A música eletrônica dançante, neste caso, é produto indispensável nas festas voltadas ao público LGBT, e, em específico para o público homossexual masculino, que é a maioria nesses espaços. Espaços de sociabilidade estes que são fundamentais para entender o processo de negociação e performatização da vida íntima e afetiva desses homens, ou seja, o reconhecimento e a construção cotidiana das suas identidades sexuais. Nas Paradas da Diversidade sempre tem música eletrônica dançante, em seus mais variados estilos, mas com destaque para as vertentes da house music. Em Recife, em sua 13ª edição (2014) a Parada da Diversidade, intitulada “onde houver ódio que eu levo o amor”, contou com 12 trios elétricos. Os espaços de sociabilidade urbana voltados ao público LGBT também oferecem a música eletrônica dançante, porém é importante notar que esses espaços são dominados pelo público masculino. O perfil de consumidor de música eletrônica dançante nesses/desses espaços de sociabilidade urbana é, em sua maioria, composto por 184 homens com práticas (homo)sexuais e, em menor número, por travestis e drag queens, as quais sempre têm suas performances embaladas pela drag music. Para Bacal (2012) a cultura rave/club teve grande influência, nos anos 1990, dos estilos musicais considerados mais undergroud, a exemplo do estilo punk rock. Outro importante ponto destacado pela autora é em relação aos “modos de sociabilidade” proporcionados por esse estilo musical “feito para dançar”, sendo a música eletrônica dançante, em seus mais variados estilos, um estilo pulsante e envolvente das pistas de danças de espaços de sociabilidade urbana, como o clube Shoom (1987) em Londres e a Boate Hell’s (1999), em São Paulo. É importante ressaltar que, os estilos acid house e tecno na Europa eram associados a um público heterossexual, enquanto no Brasil foram primeiramente associados a um público GLS. Assim, os espaços de sociabilidade urbana relacionados à música eletrônica dançante são marcantes para a criação de um estilo de vida específico. Sendo a espacialidade um aspecto relevante para analisar a música eletrônica dançante, Bacal (2012, p.64-65; grifos no original) destaca que: Nesses espaços também são criados estilos de vida específicos de frequentadores. Nos anos 1960, quando proliferaram as discotecas, foram sendo criadas atmosferas específicas com regulamento nas entradas que definiam quem era permitido ou não entrar naquele espaço, trazendo pessoas que se “encaixavam” de alguma maneira com a estética particular do ambiente. Apesar de não ter a intenção em sua pesquisa de aprofundar a relação da sociabilidade nos espaços de dança com uma “cultura gay”, a autora, de acordo com os seus dados etnográficos assinala que, a disco music nasceu nesse ambiente, sendo a cultura da música eletrônica dançante no Brasil bastante associada ao público gay. Deste modo, “o house ficou mais associado a um público gay e o tecno a um público mais “hétero”. Ainda assim, em todos os espaços club há, pelo menos, uma aceitabilidade, se não chega a ser uma exaltação de um comportamento “GLS” ” (Ibidem, p.67; grifos no original). Essa relação entre a música eletrônica dançante e o público GLS aparece também na pesquisa de Fontanari, que menciona as possibilidades que as pessoas tinham de serem diferentes nas festas de música eletrônica dançante da periferia da zona leste de São Paulo, assim para este autor (2013, p.275): 185 A divulgação de identidades musicais “exóticas”, aliada à construção de trajetórias individuais de diferenciação inspiradas em referências globalizadas, protagonizada pelos Djs, tinha como resultado a criação de lugares para a vivência de estilos de vida diferenciados na periferia. A estética exótica do tecnho e do drum ‘n’ bass, associada a um ethos cosmopolita, abria espaços para a presença de casais gays e um pequeno número de drag queens e transgêneros nas festas da Zona Leste. Assim, para o autor, as festas de música eletrônica dançante da zona leste da cidade de São Paulo permitiam uma maior liberdade em relação às festas com outros estilos musicais mais populares, a exemplo do samba, pagode, axé-music, sertanejo e forró. Festas essas onde o “ethos patriarcal” predominava e assim eram “marcadas pela dominação masculina explícita: intolerância não apenas para a diversidade de gênero, mas para qualquer tipo de prática “desviante”” (Ibidem, p. 275). A pesquisa de Fontanari é interessante para pensar a música eletrônica dançante como um campo de possibilidade que proporciona a visibilidade de práticas dissidentes. Assim, as festas de música eletrônica dançante apesar de não serem festas ditas “GLS”, naquele contexto, a periferia da zona leste paulistana, onde os estilos mais populares predominavam e com ele a heteronormatividade, promoviam uma aceitação de um público mais diferenciado. Sendo, portanto, um espaço apropriado também pelo público considerado dissidente. Uma outra pesquisa a partir da qual é possível pensar na relação da música eletrônica com o público homossexual, é a pesquisa sobre o carnaval no Rio de Janeiro de Fabiano Gontijo, onde, na década de 1990, as festas intituladas como “alternativas” ou “off” fugiam do tradicional samba para investir na música eletrônica. Como analisa este autor (2008, p.152): A partir da 1994, com a divulgação da “cultura GLS”, o sucesso da música eletrônica, e-music ( O Disc-Jockey, o Dj, ao “fabricar” suas músicas tornava-se mais importante que o cantor); o surgimento de grandes festas em lugares insólitos – as rave parties – realizadas por jovens promoters; a moda ditada por clubbers norte-americanos, australianos e europeus; a difusão das imagens identitárias das barbies e drag queens e a exaltação da “geração saúde”, apareceu uma nova concepção de diversão durante o carnaval. 186 Levando em consideração meus dados etnográficos, os espaços de sociabilidade voltado ao público LGBT, em especial aqueles voltados para o público homossexual masculino, apresentam uma forte relação com a música eletrônica dançante, a exemplo de bares e boates que fazem parte dos trânsitos dos interlocutores. Se inicialmente centrava minhas atenções nesses espaços, com o desenrolar da pesquisa de campo e os diálogos com interlocutores, fui ampliando esses espaços, a exemplo da inclusão da sauna gay e festas privadas. Sobre essa minha aproximação com a existência desses outros espaços, trago abaixo um trecho do meu diário de campo: Era um domingo de sol, Otávio tinha me convidado para ir à praia com ele e seu amigo. Cheguei ao local combinado no final da tarde e Otávio já estava animadinho após cinco horas de muita conversa e várias bebidas com Iago. Fui apresentada a Iago como a deejay Chiara e a amiga de Otávio. Iago me encantou à primeira vista, com seu sorriso cativante e em menos de uma hora parecíamos amigos de longas datas. Eu falei um pouco sobre minha pesquisa e ele sobre sua vida profissional, social e amorosa, chegando, inclusive, a me pedir conselhos sobre o seu atual relacionamento. [...]. Sobre a questão da música eletrônica, Iago comentou: “lá no chá tem uma pistinha com música eletrônica. Ah, mas lá você não pode entrar. Se bem que você é deejay vai que consegue tocar lá”. Falei que dificilmente conseguiria, porque nos espaços de sociabilidade específicos para o público masculino há uma valorização pela figura do deejay musculoso. Otávio imediatamente comentou “ah, vai sim, deixa comigo. Eu faço uma maquiagem bem barra pesada e a senhora entra como travesti110”. Fiquei surpresa com o fato de travesti poder entrar nesses espaços e o questionei mais sobre o assunto, Otávio comentou: “nas duas vezes em que estive lá vi travesti, mas não é qualquer travesti que frequenta. Lá só as ricas, belas e finas que faz programa na Espanha” (Diário de campo, Recife, maio de 2015). A inclusão das “idas ao chá”, como os interlocutores chamam suas idas às saunas gays, é interessante para pensar a questão de gênero. O fato de ser mulher e pesquisar homens com práticas (homo)sexuais não é um impedimento para a realização da pesquisa. Porém, não poder pesquisar em espaços como este, uma sauna direcionada ao público masculino, onde a presença de mulheres111 não é permitida, é um dado importante para pensar os limites 110 É importante destacar que, Otávio se refere, aqui, às “mulheres cisgêneras”, ou seja, àquelas cujo gênero é o mesmo que o designado em seu nascimento. Mais precisamente, ele se refere às “mulheres com vagina”. Nesse sentido, por ser uma pesquisadora mulher cisgênera, eu não poderia entrar na sauna. Mas, como sugere Otávio, eu poderia me “passar por” uma travestir. 111 A proibição diz respeito às “mulheres cisgêneras”. 187 impostos pelo gênero da pesquisadora e dos interlocutores. Se, por um lado, ser mulher torna totalmente inacessível minha entrada nesses espaços, o fato de ser uma deejay, por outro, poderia assinalar outras formas de incursões em campo. Apesar de ser um espaço com uma “pistinha” que tocava música eletrônica dançante, para Iago, era um espaço diferente se comparado a outros espaços, como as boates e os bares. “Mas é interessante porque a sauna não é só pegação. Tem gente que vai para conversar porque não tem ninguém para isso e a pistinha serve como algo a mais”. Nas palavras de Otávio, “é engraçado as bichas tudo dançando só de toalha”. O famoso “chá”, como é conhecida a sauna entre os interlocutores, conta com as apresentações de drags e deejays nas sextas-feiras, sábados e domingo. Se para alguns a musicalidade na sauna proporciona uma possibilidade para interação entre seus frequentadores, para outros, a musicalidade naquele espaço é um elemento que foge do “normal”. Assim, Otávio disse se sentir “obrigado a ver as bichinhas dançando na pista apenas de toalha”. 4.2.1 “Essa música é muito gay” Falar de música eletrônica dançante é algo bem amplo, pois, trata-se de uma música que apresenta diversos estilos e cada estilo faz parte de características de grupos diversos. Os estilos house, eletro house, tribal house, pop music, progressive house são os mais presentes nos espaços de sociabilidade urbana direcionada ao público LGBT. Se o público intitulado de “mais afeminado” gosta de música que valoriza o vocal, possibilitando uma performance que remeta à ideia de “divas do pop”, o público “mais bombadinho”, os “sem camisas da balada”, as famosas “barbies”, as quais deixam seus músculos visíveis e os valoriza em cada performance, preferem as músicas com menos vocal e mais batida. Se o público mais jovem valoriza cantoras pop como Taylor Swift, Ariana Grande, o público mais velho valoriza cantoras como Madonna. Nesse sentido, as vertentes da house music são mais associadas, nos relatos dos interlocutores, ao público dissidente. Desta maneira, busco apresentar, através de relatos etnográficos, o que, na visão dos interlocutores, pode ser entendido como uma música house music, ou, mais precisamente, uma música “muito gay”. 188 Estava em São Paulo fazendo meu segundo curso de deejay. Meu professor, Alexx Berrios, solicitou que fizesse uma pesquisa com sete a doze músicas com as quais me identificasse. Selecionei umas vinte. A maioria dessas músicas era de cantoras nacionais e internacionais, consideradas as divas do pop music. Dessas vinte músicas, escolhi sete para fazer parte do meu primeiro setmix. No estúdio Mumix, Berrios me deu alguns conselhos, entre eles sobre a seleção de músicas para construir um set: “a primeira música tem que chamar atenção do público, você deve escolher algo que seja atrativo”. Escolhi a música de Wanessa Camargo112 “Shine It On” (Altar Tribal Remix)113. Ao postar meu setmix no soundcloud,114 um interlocutor [Júlio] me ligou e comentou: “bicha, a senhora arrasa! Já começou o set bem gay. Parabéns! Ficou bem gay, bem envolvente esse seu set”. Esses comentários de Júlio me inquietaram bastante. Assim comecei a me questionar sobre o que seria uma “música bem gay” (Diário de campo, São Paulo, julho de 2013). O que seria uma “música gay”? Trata-se de uma música que tem sua introdução composta por 4 compassos (4 x 4), em torno de um minuto inicial, com uma melodia instrumental que se assemelha a uma batida de marcha de soldados. O vocal aparece após o primeiro minuto, recheado de ecos e repetições. A música vai crescendo e tendo mais elementos sonoros incluídos ao compasso, que se assemelham às batidas de palmas, tambores, entre outros elementos, sempre destacando o refrão e valorizando o vocal de quem a canta. Assim, o fato de iniciar o meu setmix com uma música da Wanessa Camargo, para Júlio, é o que identificaria este setmix como “muito gay”. Para Marcos, a música eletrônica dançante é identificada como uma “música gay” pelo ambiente em que esta é executada, mas, também a identificamos fora desses ambientes pelo uso de um falsete, por exemplo. Nesse sentido, Marcos e Júlio comentam que: Marcos: Eu acho que na boate gay tem mais frescura e na hétero não tem. Me refiro àquelas frescalhadas, àquelas buzinas que ficam buuuuu! Esse tipo de coisa que na boate hétero não tem. Tipo aquelas músicas religiosas, que acho bem gay. Hétero não gosta disso. Júlio: Música religiosa? Marcos: Tipo, quando vai cantar ave maria. Eu já te mostrei um grupo que tocava naquela novela um anjo caiu do céu, é um grupo bem foda. 112 A cantora Wanessa Camargo ficou conhecida como diva pelo público gay, sendo muitas vezes a atração principal de Paradas da Diversidade, a exemplo das que estive em Recife (2011) e em João Pessoa (2012). 113 Música disponível em: https://soundcloud.com/altar/wanessa-shine-it-on-altar-remix 114 Ver: https://soundcloud.com/deejaychiara 189 Chiara: Com um falsete? Júlio: É, essas coisas assim. Aí, eu acho muito, muito gay. Em boate hétero não se vê isso. Não tem a preocupação com a música (Diário de campo, Recife, março de 2016). O uso excessivo de um vocal “babadeira, bem drag”, combinado com uma composição musical que valoriza os loops, buzinas e refrães repetitivos, é uma das características que fazem com que os interlocutores identifiquem uma música como sendo “muito gay”. Assim, poderíamos classificar uma música como sendo “muito gay” quando ela apresenta uma combinação maior de elementos, conforme mencionado por Júlio: “a batida gay tem mais frescura”. Júlio: a balada gay é para você chegar lá e dar pinta, já a balada hétero é pra você chegar lá beber, socializar, xavecar, pegar e pronto. Mas aí é uma noção mais de vibe do que necessariamente de música. Eu acho que a diferença é justamente isso: a batida gay tem mais frescura, a balada gay tem mais frescura, como Marcos fala, por causa do tribal em si, que é justamente a grande diferença. O tribal, que é aquela batida mais sequenciada, é o que vai possibilitar você de dançar, de fechar, de arrasar, de fazer acontecer. A balada hétero não, se você prestar mais atenção é aquela coisa mais... a batida em si é aquela coisa mais direta, não tem muita variação, não tem muitas figuras, digamos assim (Diário de campo, Recife, março de 2016). O “fazer acontecer”, mencionado por Júlio, é interessante para pensar na relação da música eletrônica dançante com as drags, fazendo com o que os interlocutores identifiquem uma música como sendo “muito gay”. As drags transformistas, que têm suas performances embaladas pela drag music, contribuem assim para compor esse conjunto de aspectos que caracterizam o “universo gay”. Recentemente o número de drags cantoras vem aumentando e assim novas referências musicais surgiram, a exemplo de Pablo Vittar115. Pablo Vittar, drag brasileira, ficou famosa com o clipe da música “Open bar”116, uma versão da drag para a música “Lean on117”. “O clipe da música teve mais de 1 milhão de 115 Músicas disponíveis em: https://soundcloud.com/pabllovittar e vídeos em: https://www.youtube.com/channel/UCugD1HAP3INAiXo70S_sAFQ. Acesso em 2016. 116 Clip disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lYuepseCRGY 117 Música disponível em: https://soundcloud.com/majorlazer/major-lazer-dj-snake-lean-on-feat-mo 190 visualizações no Youtube. Foi a vitrine que levou Pablo a virar a cantora fixa do “Amor & sexo”, programa de televisão apresentado por Fernanda Lima”118. A drag ficou famosa por reler grandes sucessos internacionais a partir de sonoridades locais. A música de Pablo Vittar é interessante para pensar as discussões entre local e global na “música eletrônica brasileira” ou “música eletrônica no brasil”, como alguns preferem chamar, debate este citado por Bacal (2012). Sobre o sucesso de Pablo Vittar no cenário musical brasileiro, Júlio avalia que: Chiara: O fato de ser uma drag cantando, você acha que valoriza a música? Júlio: Não sei se é o que valoriza, mas é o que destaca. Até porque, na verdade, eu acho que a musicalidade de Pablo Vittar vem muito com o que está acontecendo nos EUA, que é a figura da drag, enquanto drag music está ganhando muito espaço, porque assim muitas dessas drags que entraram para o programa.... É um programa em que há uma competição entre drags. Assim, muitas drags que estão bombando lá fora, eles vêm desse programa, elas são drags que depois que viraram cantoras e vêm trazendo várias propostas: tipo, uma drag barbuda. [...]. Tem uma que Marcos gosta muito, que é Alaska Thunderfuck119, o estilo de música dela é muito diferente, é ela falando, mas acompanhada daquela batida bem drag music. E tem, por exemplo, a drag Adore Delano que é bem visada, foi a primeira drag a ter o álbum no primeiro lugar no site da Billboard120, que contabiliza a parte musical americana. E eu acho que Pablo Vittar vem muito dessa onda, porque como a gente no Brasil tem uma certa carência de referência muitas dessas drags fazem muito sucesso em seguida aqui. Então Pablo foi a primeira drag cantora que chamou atenção, tanto é que hoje ela está na Globo, no programa Amor&Sexo (Diário de campo, Recife, março de 2016). Assim, para os interlocutores, a figura da drag apresenta uma forte relação com elementos considerados mais característicos do “universo gay” e com a música eletrônica dançante no Brasil. Para Júlio, no Brasil, a música eletrônica dançante ficou bastante associada ao público gay devido este público ter a difundido. 118 Disponível em: http://extra.globo.com/famosos/aos-21-anos-pabllo-vittar-estrela-segunda-campanha-diz- que-ainda-alvo-de-ataques-nao-estou-blindada-19372443.html. Acesso em: 16 de junho de 2016. 119 Ver vídeo: http://www.alaskathunderfuck.com/videos.php 120 Ver: http://www.superpride.com.br/2016/03/adore-delano-e-a-primeira-drag-queen-a-por-um-album-em- 1-na-billboard.html 191 É porque, na verdade, a música eletrônica do Brasil, o que a gente aprendeu a perceber como música eletrônica no Brasil, na minha opinião, veio muito por causa das baladas gays, que são geralmente as que tocam predominantemente isso, e todo mundo associa a música eletrônica a isso [ se referindo ao público gay]. Então, David Gueta121, por exemplo, como Calvin Harris122, como deejays artistas no caso, eles têm essa aceitação de ambos, porque a música deles é feita pra esses dois tipos de público. Ou talvez, porque o hétero que goste de eletrônica, escute muito jovem pan123, mix124 e transamérica125, que são rádios que tocam os estilos de música eletrônica mais presentes nas boates GLS. [...]. O drum n bass é um estilo de música que, a meu ver que pesquiso sobre música, daria muito certo na balada gay, porque dá n possibilidades de dançar, mas por alguma razão não é muito tocado na boate. E por alguma razão, se você prestar atenção, o tipo de batida é muito hétero, é muito balada hétero [...]. Eu acho que a música eletrônica foi difundida mais no brasil devido à comunidade gay, a cultura gay, e é uma coisa de estigma bem forte, que você associa logo, tipo: você é deejay, então toca em uma balada gay (Júlio, Recife, março de 2016). Destaco aqui a relação que Júlio faz com o drum n bass, sendo para ele um estilo de música que daria várias possibilidades de dançar, “mas por alguma razão não é muito tocado na boate”. A pesquisa de Fontanari (2013), nesse sentido, é interessante para pensar este estilo, considerado um estilo estigmatizado pela relação que este tem com a periferia. O estigma associado à música drum ‘n’ bass, no entanto, não se restringia ao contexto paulistano. Embora em menores proporções, teria sido importado de Londres com os discos, sendo inclusive evocado como uma razão pelas quais os jovens da periferia teriam se identificado com ele. O próprio nome “drum ‘n’ bass” seria o segundo nome dado a uma mesma identidade musical como estratégia mercadológica, devido ao forte estigma dos personagens sociais aos quais era publicamente associada – conforme a história da cena londrina que Cláudio narrava para os outros Djs. [...] o estigma da música drum ‘n’ bass em Londres teria eco em São Paulo por ser uma música criada por “pretos, pobres, da periferia inglesa”, que lá viviam numa condição de exclusão e marginalidade muito semelhante à enfrentada pelos “pretos pobres” da periferia de São Paulo (FONTANARI, 2013, p. 212). 121 Ver: https://www.davidguetta.com/listen.html 122 Ver: http://calvinharris.com/videos/ 123 http://joinville.jovempanfm.uol.com.br/page/sobre-jovem-pan/ 124 http://mixfm.com.br/ 125 http://www.radiotransamerica.com.br/ 192 Nesta pesquisa, exploro a música direcionada ao público homossexual, a qual está presente nos espaços de sociabilidade direcionado ao “mercado GLS”. Ou seja, refiro-me aqui a uma música comercial, nesse sentido, os espaços que transitei, em sua maioria, possui uma maior frequência do público de classe média e alta. Assim, trata-se de um mercado lucrativo, diferente das festas promovidas pelos “projetos” de deejays de drum ‘n’ bass, na periferia de São Paulo. Essas festas na periferia, como assinala Fontanari (2013), tinham um caráter mais lúdico e de valorização da “cena” e da música. Muitas vezes tais festas davam prejuízo para os seus organizadores, os quais ficavam felizes com a realização das mesmas, não por questão de geração de renda, e sim por possibilitar que os jovens da periferia tivessem oportunidade de conhecer melhor este estilo de música e experimentar outras formas de sociabilidade. Aproximando o comentário de Júlio sobre a ausência de drum ‘n’ bass nas boates gays à pesquisa de Fontanari, podemos levar em consideração a seguinte análise: O público da periferia, [...], frequentava os bailes black, por estar familiarizado com o repertório de rap e samba, teria aceitado o drum ‘n’ bass com mais facilidade, pois todos fariam parte da mesma “família étnica”, gêneros de “batidas quebradas”. Por esta razão, o mesmo não teria ocorrido com o disco, estilo de “batidas retas”, dançado nas boates dos “Jardins” pelas camadas médias brancas paulistanas. O lado negativo desta identificação da “periferia” com as “batidas quebradas”, e por outro lado da “elite” com as “batidas retas, 4 por 4”, era que, se garotos de camadas médias começassem a se interessar por drum ‘n’ bass, eram, de certo modo, bem-vindos; mas a recíproca não ocorria, pois, os Djs de drum ‘n’ bass não tinham a mesma abertura nas casas noturnas de camadas médias. Explicava Claudio que os “donos de clube, desde a década de 1970, sempre priorizaram o 4/4, que é disco, que é house, que é techno, que [...] é uma música muito mais viável, porque é uma música feita para pista de branco” – o público de música eletrônica mais numeroso e com maior poder aquisitivo (FONTANARI, 2013, p.213). O drum ‘n’ bass, estilo mencionado por Júlio e descrito acima, é interessante para pensar a relação deste estilo musical com o público LGBT. Na pesquisa de Fontanari, realizada na periferia da zona leste paulistana, esse estilo geralmente é estigmatizado por ser algo dissidente em relação aos estilos tocados na periferia, sendo assim, considerado como algo “exótico”. O autor faz uma importante descrição da presença desse estilo na periferia e do seu público, que seria mais diversificado. Nesse sentido, ele ainda destaca as formas como público da periferia e público da parte mais central de São Paulo se relacionam com este estilo musical. Mostrando, assim, que de acordo com o local em que esse estilo é tocado, o 193 público reage de formas diversas, a exemplo da presença de rodas na periferia e de como essas rodas são estigmatizadas nas festas do centro. Se na periferia as pessoas dão mais importância à música, nas festas do centro, a música fica em segundo plano, as pessoas bebem mais e, em alguns casos, há também o consumo de drogas ilícitas. Essa relação da espacialidade com a música é interessante para compreender o lugar da musicalidade nesta pesquisa. Lugar este modificado, transformado e adaptado de acordo com o espaço em que a música é executada. Lançando mão dessas questões para pensar as diferenças da música eletrônica direcionada ao público LGBT e ao público hétero, interesso- me por entender quais o lugar da espacialidade nas definições dos interlocutores sobre música eletrônica. Bacal (2012), ao falar sobre a música eletrônica dançante, chama atenção para a questão do lugar da música eletrônica dançante nos espaços de sociabilidade urbana. A autora levanta, nesse sentido, importantes questões a respeito da espacialidade e de como os lugares onde essas músicas são tocadas são fatores relevantes para a análise, a exemplo da musicalidade das raves que são diferentes da musicalidade dos clubes. Ressalto, nesse sentido, que trato da música eletrônica dançante voltada ao público homossexual masculino, ou seja, o tipo de música eletrônica consumida pelos interlocutores desta pesquisa nos espaços de sociabilidade urbana da cidade de Recife. Assim, ao afirmar que “a balada gay é para você chegar lá e dar pinta”, Júlio tratou da música eletrônica dançante a partir desses espaços e de como uma balada considerada “gay” se diferenciava de uma balada considerada “hétero”, por exemplo. Sendo a musicalidade de uma balada gay mais “apurada”, Júlio e Marcos destacam a singularidade de uma musicalidade presente nas boates GLS. Marcos: Na boate gay, a música é mais valorizada do que em boate hétero. Na hétero é mais pegação ou qualquer outra coisa que não a música. Júlio: Exatamente! Marcos: E pode tocar o que for. Eu já fui para boate hétero e tocava a música pela metade, eu achava isso o fim. Todo tipo de música que tocava o povo achava massa e não era. Já na gay não era assim. Júlio: Tem tanta artisticidade em si na gay, que eu acho que o deejay de boate gay tem uma proposta mais apurada, porque o público também é mais exigente. Por exemplo, numa boate GLS, uma pessoa que só vai lá botar lista de música não tem muito valor, já um deejay que tem o mínimo 194 de cuidado em remixar suas próprias músicas de acordo com a noite tem um outro tipo de aceitação, e em boate hétero não. Você vai lá e as pessoas não estão nem aí para o deejay que está tocando. [...]. Eu acho que é a estrutura em si, sabe. Há realmente uma maior preocupação com a estrutura da boate gay e a degustação do quesito estrutural. Tanto é que, por exemplo, quando você vai para boate gay a maior preocupação, pelo menos das que eu percebi, dos donos e os organizadores, é o sistema de som. Já na boate hétero é qualquer zuada. Qualquer coisa que vai tá tocando, todo mundo vai tá gostando (Diário de campo, Recife, março de 2016). Estas narrativas chamam a atenção para a importância de analisar aqui uma música eletrônica direcionada ao público LGBT no espaço em que esta é produzida e consumida. Isto é o que tentarei fazer na seção seguinte ao analisar as particularidades da música bagaceira no contexto da musicalidade pernambucana. 4.3 Bagaceira e musicalidade pernambucana O estilo musical classificado como bagaceira na cidade de Recife, representado pelo brega e o brega-funk pernambucano, tem como principal característica a valorização dos aspectos da sonoridade local. Esse estilo musical, originado nas periferias da cidade, vem sendo disseminado em outros espaços da cidade, entre eles as festas em ambientes privados, a exemplo das festas Ixxfrega da paixão do Santo Bar, da pista do Bar Brasil na Boate Metrópole e das festas do coletivo pernambucano Golarrolê; o Brega Naite que ocorre mensalmente no Catamaran, no bairro de São José; ou, ainda, as festas em locais públicos da cidade, como a Terça do Vinil e do Som da Rural126. Busco aqui descrever, então, o que seria uma música bagaceira para os interlocutores e entender como esse estilo musical foi sendo inserido nos diferentes contextos apresentados. Inicialmente parto de definição compartilhada por um dos interlocutores, a saber: 126 Som da Rural trata-se um projeto de Roger Renor para levar arte as ruas da cidade. “Vamos para a rua e apresento as bandas. Quem quer, declara poesias. O nosso propósito é ocupar a rua, um espaço que, normalmente, não tem mais esse tipo de função e tornou-se uma opção desaconselhável. Muita gente acredita que está protegida assistindo a um show num lugar fechado, no frontstage ou nos camarotes. É mentira! Seguro é estar na rua, com a multidão cantando e dançando. Quem oferece segurança nas ruas são as pessoas. Usamos a música como plataforma para reocupação desses espaços como cultura”. Disponível em: http://www.oimparcial.com.br/_conteudo/2015/05/impar/divirta_se/419-embaixador-de-pernambuco-roger- de-renor-fala-do-cenario-cultural-brasileiro.html. Acesso em 10 de agosto de 2016. 195 Bagaceira eu defino como um estilo comum (mais popular e regional) a todos que vivem aqui [ se referindo à cidade de Recife]. São diversos os gêneros, mas todos provenientes do brega. Contém letras que retratam o que acontece na vida da maioria e, sobretudo, nas favelas daqui (neste ponto se assemelha ao funk), mas sonoramente é parecido com o calypso, o arrocha, mas bem mais misto (Marcos, Recife, outubro de 2016). Nesta importante definição de Marcos, a música eletrônica dançante bagaceira, em Recife, possui uma relativa aproximação sonora com o estilo do brega originado no Pará. Esta aproximação é interessante, pois, nas minhas observações também pude notar que, nas apresentações dos deejays, em Recife, o brega pernambucano dividia espaço com o brega paraense, e ambos produziam efervescência entre os dançantes, fazendo a pista vibrar. Nesse sentido, como analisa Alves (2014, p.379): No Recife, o brega funde-se com outras manifestações musicais, tornando- se complicado estabelecer as “fronteiras” entre cada uma delas. Outro aspecto importante é que Pernambuco e o Recife têm uma tradição na produção de um brega hoje chamado “original”, caracterizado por canções românticas e cafonas, remetendo-se a figuras respeitadas entre os produtores, críticos e músicos das mais diferentes formações e orientações, tal como é o caso do cantor Reginaldo Rossi. (...) em Recife o brega teria como peculiaridade a proximidade e a fusão com outros gêneros e estilos como o forró, o funk carioca, o pagode baiano, o tecnobrega do Pará ou a suingueira (mistura de samba-reggae e pagode), entre outros (aspas do autor e grifos meus) Conforme apontado por Alves, o brega pernambucano é caracterizado pela fusão com outros estilos musicais127. Esta fusão e aproximação também aparece nos relatos etnográficos dos interlocutores, nos quais a definição do estilo bagaceira ora é apresentada com características do forró, ora com características do funk, ora, ainda, com características do tecnobrega do Pará.128 127 Sobre a fusão de diferentes gêneros musicais e criação do estilo brega-funk ver https://www.youtube.com/watch?v=rNwGPTOTPdQ 128 Neste capítulo, não tenho a pretensão de conceituar os diferentes gêneros musicais que influenciam a construção do estilo de música eletrônica dançante classificado como bagaceira. No entanto, faço menções recorrentes ao brega porque este é o estilo musical mais usado pelos interlocutores para exemplificar de maneira comparada o que é a música bagaceira. Muito embora Recife se localize no Nordeste, região fortemente marcado pelo forró, é o brega que, segundo os interlocutores, predomina na cidade. A respeito dos demais 196 A funcionalidade de promover a dança apresentada pela bagaceira analisada na capital pernambucana, aproxima-se da definição feita por Chada e Filho (2013) sobre o tecnobrega presente na cidade de Belém do Para, local de destaque no cenário musical e onde o brega, em suas mais diversas vertentes, a exemplo do brega pop e do tecnobrega, é um estilo musical bastante presente nos espaços de sociabilidade urbana, tendo como função principal promover a dança129. Nas palavras destes autores (p. 122): O repertório musical do tecnobrega é funcional. Sua função principal é a dança. A ênfase é percussiva, os elementos rítmicos guiando os movimentos corporais. Utiliza principalmente instrumentos eletrônicos, como a bateria, o baixo e o teclado (sons sintetizados), algumas vezes em conjunto com instrumentos acústicos, e voz feminina e/ou masculina, priorizando o uso de tecnologias computacionais na manipulação de timbres, melodias e ritmos. As músicas apresentam pulso rápido (cerca de 160 a 200 batidas por minuto) e compasso quaternário, É perceptível a apropriação de timbres e fragmentos sampleados de diversas músicas, a mistura de múltiplas sonoridades, a incorporação no repertório musical de diferentes gêneros, de lugares e épocas distintas, assim enriquecendo a produção musical. Na experiência de Recife, a infregatividade produzida no ato de dançar uma música bagaceira está relacionada ao ato de sedução do parceiro. Para Marcos, ao dançar um brega, a sedução é um elemento que não pode faltar: “com brega tem sempre sedução e a ixxfregação rola solta”. Por isso, segundo sua definição, o brega é um “ritmo quente pra você dançar, pra se apaixonar. Pronto, falou tudo. Brega é isso aí!” Assim, ao analisar o estilo bagaceira presente nas pistas de danças das festas pelas quais circulei, também se fez necessário analisar a bagaceira a partir dos seus aspectos sonoros (a música em si), bem como os sentidos da bagaceira que resultam da interação gêneros citados por Alves (2014), ver Viana (1988) sobre o funk, ver Marques (2015) sobre o forró eletrônico e ver Costa e Chada (2013) sobre o tecnobrega. 129 Ainda que este capítulo, sucintamente, aproxime o brega pernambucano e o brega paraense é preciso ressaltar, porém, que tanto Recife quanto Belém não podem ser reduzidas a localizações estanques, mas, sim, como localizações simbolicamente circunscritas. Nesse sentido, o brega pernambucano e o brega paraense não podem ser reduzidos a um mesmo estilo musical, ao contrário, as particularidades locais são extremamente significantes para que esses estilos sejam entendidos em suas diversas vertentes. 197 entre os dançantes (a infregatividade/ixxfregação130). Nesse sentido, a partir de uma conversa com os interlocutores, tem-se que: João: Se a gente pegar o brega ele é uma bagaceira, nesse sentido da palavra [se referindo a uma coisa de baixo nível]. Pedro: Mas aí, assim, é em parte. Vai ser bagaceira de acordo como a pessoa vai se comportar na dança. Marcelo: É isso que pensei, na musicalidade. Pedro: Exatamente, porque às vezes a música é boa, mas da forma como ela está sendo dançada ela se torna bagaceira. Porque às vezes você está dançando o brega normal, mas tem gente que extrapola. João: É uma safadeza danada. Pedro: É uma safadeza tão grande que se torna uma bagaceira João: É uma putaria tão grande. Por isso que trato a swingueira como uma bagaceira, é por causa disso, mas lógico que não são todas. Pesquisadora: Envolve uma erotização dos corpos? João: Eu acho Pedro: A swingueira pode ser por causa das letras da música João: Mas é a forma de dançar totosa, tem a safadezinha amor, que é ótima. Eu adoro, não vou mentir (Diário de campo, Recife, agosto de 2016). A musicalidade presente nestes espaços, em sua articulação com a ambientação, promove diferentes formas de interação e sedução entre os dançantes. Pensar nesses diferentes estilos de música eletrônica dançante, que encontrei nos espaços de sociabilidade frequentados pelos interlocutores desta pesquisa, é relevante para pensar na singularidade que a música produz nas interações erotizadas. 4.3.1 Ressignificação sonora Em Pernambuco, o brega é um estilo musical bastante apreciado. Considerado o Rei do Brega, o cantor Reginaldo Rossi foi um dos ícones musicais deste estilo. No momento da pesquisa, nomes como Kelvis Duran, o príncipe do Brega, Michele Mello, mais conhecida 130 O termo infregatividade é mais usado pelos interlocutores e pela festa Brega Naite, já o termo ixxfregração é mais usado para divulgação das festas do Santo Bar. Os dois termos possuem o mesmo sentido. 198 como a rainha do brega ou a Madonna de Pernambuco e as Bandas Sedutora e Kitara, entre outras, destacam-se na noite dedicada ao brega pernambucano. Com uma melodia envolvente e letras que evidenciam a sofrência, a dor de cotovelo, os diferentes amores, a sedução, a conquista, entre outros temas, este estilo musical tem ganhado público e espaços cada vez maiores. Ressalto que classifico o brega e o brega-funk como um estilo de música eletrônica dançante denominado de bagaceira, tendo em vista que são estilos musicais que fazem parte do repertório musical nas apresentações dos deejays, portanto, analiso-os aqui como estilos musicais mais locais. A aproximação entre o brega pernambucano e a música eletrônica dançante de influência internacional aparece nas versões locais inspiradas em músicas de cantoras do pop music internacional, como Lady Gaga, Beyoncé, Miley Cyrus e Katy Perry. Em maio de 2015, um dos jornais locais, o Diário de Pernambuco, publicou uma matéria sobre algumas versões bregas de hits internacionais, destacando essa prática como uma tendência no brega pernambucano: “Quando uma música faz sucesso sem o povo nem entender, imagina com uma letra boa, em português”131, diz trecho da reportagem publicada pelo referido jornal. Trago duas músicas bastante presentes nas pistas dos espaços por mim frequentados, a música Wrecking Ball132, da cantora norte-americana Miley Cyrus, e a sua versão brasileira no estilo brega pernambucano, a música Bateu a Química133 da Banda Sedutora. A versão pernambucana não se trata de uma tradução literal da letra, mas uma versão adaptada ao contexto local134, incluindo elementos da sonoridade e linguagem pernambucana ao ritmo. Expressões como “paquerou”, “bateu a química” e “gamei” são mencionadas na canção e os elementos bases no arranjo musical são compostos pela bateria, pelo baixo e pela guitarra. Nesse sentido, apresentam timbragens e mixagens semelhantes ao forró eletrônico. A conjunção desses elementos resulta no “swingado” muito presente na bagaceira. O clipe da música Bateu a Química teve muitos acessos no youtube, seja de pessoas apreciando o trabalho, seja de pessoas criticando a “falta de talento e senso artístico” da banda. A canção 131 Disponível em: http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/viver/2015/05/19/internas_viver,577049/reconhece-10- versoes-do-brega-para-hits-internacionais.shtml. Acesso em 20 de novembro de 2016. 132 Clipe disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=My2FRPA3Gf8. Acesso em 20 de novembro de 2016. 133 Clipe disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=udZQ6aHsKbM. Acesso em 20 de novembro de 2016. 134 Dinâmica semelhante foi explorada pela Banda Uó, Ver Gibran Teixeira (2015). 199 destaca a sofrência e o amor, temas comuns nas músicas brega. A baixo segue a letra da música Bateu a Química: Me olhou, te olhei Paquerou, paquerei, daí então bateu a química Me beijou, gamei Me entreguei em teus braços, já estava perdida Mas, no começo tudo é flores, aí veio o ciúmes e a gente brigou Você me pediu um tempo, mas nem o tempo acaba uma história de amor Estou sofrendo por amor Estou com raiva desse amor, estou chorando por amor Mas, é esse amor que eu quero aqui, é você que eu quero pra mim Mas, no começo tudo é flores, aí vem o ciúmes e a gente brigou Você me pediu um tempo mas, nem o tempo acaba uma história de amor (Música Bateu a Química, Banda Sedutora) Neste capítulo, não pretendo analisar as letras das músicas, no entanto, cito-as para melhor contextualizar o argumento. Pois, não se pode desprezar o fato de as músicas da Banda Sedutora serem reproduzidas em todos os espaços por mim frequentados, a exemplo das apresentações dos deejays na festa Ixfrega da Paixão do Santo Bar, na Pista Bar Brasil da Boate Metrópole ou da própria banda quando se trata de boates ou festas que dispõem de apresentações de bandas ao vivo, como a Pista New York do Clube Metrópole, a Boate MKB, a Festa Brega Naite, entre outros. Também não tenho a pretensão de fazer uma análise das letras de ambas as versões, mas sim pensar na composição musical e nas peculiaridades sonoras apresentadas pela versão Bateu a Química, como uma forma de melhor apresentar os elementos característicos do estilo musical bagaceira em Recife135. 135 Nesse sentido, ressalto ainda a importância de o leitor acessar os links disponibilizados para, que, assim, também possa entender sonoramente as diferenças rítmicas entre as versões. 200 Transcrevo baixo uma das conversas que tive com o produtor musical, Bruno Esteves136. Muito embora seja um olhar mais técnico sobre algumas das características sonoras de ambas as versões, os destaques apontados por Bruno nos ajudam a entender um pouco mais as peculiaridades que marcam as duas canções. Em uma de nossas conversas sobre as versões acima citadas, Bruno procura destacar os aspectos que fazem da bagaceira uma versão mais dançante. Em sua análise sonora, ele destacou o fato de a música original Wrecking Ball apresentar como base emoções tristes, por isso o uso de elementos clássicos como o piano e os instrumentos de cordas em sua composição. Outro aspecto destacado por ele diz respeito aos efeitos apresentados pela música, seguindo a tendência da música pop e da música eletrônica, com a presença de sintetizadores e sampleados. Já a versão pernambucana, a música Bateu a Química, o bpm (batida por minuto) tem como nota a colcheia [símb.: ♪], o que caracteriza a música como mais dançante e mais swingada. Mais um detalhe destacado por Bruno é o último acorde da música que apresenta muito semitons, sendo algo bem adissonante, o que é uma característica da música nordestina. Segundo Bruno, a diferença entre as duas versões se dá da seguinte forma: A música original Wrecking Ball tem como base a emoção, então o produtor musical usou timbres muito clássicos como base na música, no caso o piano, que dar uma sensação de emoção e cordas (violino, orquestras e strings) que dão essa sensação de coisa clássica. Geralmente quando se quer passar emoção em produções musicais se usa bastante elementos clássicos. Em contrapartida essa música tem muito sintetizador, o seu elemento principal que tem arpegiator, aí no começo ela tem muito sintetizador. Falando da parte dos graves e da parte rítmica o baixo e a bateria, ambos são sintetizadores também, e a bateria é sampleada, o que vai remeter aos elementos de música eletrônica. Então como uma tendência da música pop e eletrônica essa música tem essas características, porém para causar uma emoção ela tem esses elementos clássicos. A parte das vozes apresenta vozes com dobras de escala oitavadas, que dão a sensação de sofrimento ao cantar e as aberturas de vozes também são bem altas em relação a melodia principal, isso causa a sensação de sofrimento. A parte de efeito no geral ela tem totalmente a tendência da música pop e da música eletrônica. Já a Bateu a Química ela tem uma forma um pouco “exagerada” de impor o “pop” e a forma de cantar, na introdução da música eles quiseram fazer como se fosse o original, mas de cara já rola o “exagero”, tanto no timbre, quanto na forma de cantar, não tem aquela coisa minimalista, intimista, a música já vem na pressão total. Os bpms da música eles são bem 136 Bruno Esteves é formado em teoria musical pela Fundação das Artes em São Caetano do Sul, Técnico em bateria pela ULM (Universidade Livre de Música Tom Jobim) e trabalha como produtor musical na PParalelo Produções. 201 parecidos, porém enquanto a música original tem como a base do bpm a semínima [símb.: ♩] a música da bagaceira ela tem como base do bpm a nota a colcheia [símb.: ♪], deixando a música mais dançante, mais animada. A original é desdobrada só que a bagaceira o tempo é dobrado, aí dar a sensação de ser algo mais dançante, com mais swingado. Quanto aos elementos bases que é dos graves e a parte rítmica que é o baixo e a bateria e agora inclui a guitarra que não tinha na música original. Os elementos eles são totalmente orgânicos, gravados assim de maneira clássica em estúdio, e a bateria, a guitarra e o baixo, eles têm timbragens e mixagens bem características desse forró atual (Diário de campo, Recife, novembro de 2016). Para os interlocutores, por sua vez, o ritmo presente na versão brega é mais atrativo ritmicamente falando: “Prefiro Bateu a Química, com certeza! Wrecking Ball não tem ritmo. Tanto em casa, quanto na balada, só dá para dançar com alguém com a versão brega da música”, diz Marcos. Na pista de dança, o que entra em jogo é a sonoridade da música e o quanto de contágios ela é capaz de proporcionar, pois “a música brega não é experimentada por sua audiência de maneira distanciada, mas principalmente através de uma sensibilidade corporal que está na dança” (FONTANELLA, 2005, p.12-13). Para Iago, a letra não é o principal elemento, até porque muitas dessas músicas estão em inglês e não são todos que entendem o idioma, talvez por isso as versões bregas façam tanto sucesso. No estilo de música eletrônica dançante classificado de bagaceira pelos interlocutores, o destaque é dado às interações produzidas pelo ritmo, o qual produz contágios e afetos entre os dançantes. Segundo Rafael, a versão brega pernambucana poderia ser definida, ainda, como uma sátira: é uma sátira que é interessante, por analisar o cotidiano das pessoas, por fazer parte da vida da gente. Quem nunca sofreu por amor?! Mas eu prefiro o estilo bagaceira pra dançar juntinho. Às vezes nem presto atenção nas letras quando estou dançando com alguém, nesses momentos é mais o ritmo mesmo (Rafael, Recife, agosto de 2016). Análises semelhantes foram ressaltadas por Júlio. Ao oferecer sua opinião sobre as duas versões da música, ele disse: Num contexto pop, eu deveria escolher Wrecking Ball, pois é a música original e como cantor eu nunca gostei muito dessa ideia de fazer versão de música gringa. Mas tem algo mais subjetivo, mais instantâneo e mágico 202 em Bateu a Química, que é o como e o quanto as pessoas daqui se entregam quando está tocando essa música. As pessoas entram no clima da música. É como se se identificassem de tal forma que se torna autobiográfica e essa reação, que pode ser uma reação bem local e característica de Recife, me faz escolher a versão pernambucana (Júlio, Recife, outubro de 2016). Neste relato Júlio, como se vê, destaca-se a identificação subjetiva das pessoas com a música. Assim, por retratar o cotidiano da maioria das pessoas, a letra acaba produzindo uma identificação autobiográfica. O se entregar ao ritmo pernambucano aparece, nesse sentido, como uma característica bem local. A esse respeito, também como comentou Júlio, “ pernambucano adora um brega, não importa classe social. O ritmo acaba envolvendo a gente de mansinho e quando menos notamos estamos dançando agarradinho”. A relação estabelecida entre a música e o dançar junto, com uma malícia, é destacada nas falas de todos os interlocutores, malícia esta que só é possível ao dançar a bagaceira. Na avaliação de Iago, tem-se que: Na Boate Metrópole, eu prefiro a pista de cima [se referindo à pista do Bar Brasil], lá os estilos musicais são mais diversificados e dá para dançar junto. Já na pista de baixo [se referindo à pista New York] é só aquele eletrônico bum, bum, bum... A dança nesse local geralmente é mais solta (Iago, Recife, abril de 2016). Em uma das vezes que acompanhei Iago na Boate Metrópole, notei que ele utilizava a dança embalada pelo ritmo da bagaceira como estratégia de sedução: ele convidou um rapaz para dançar e assim começou a investir seu charme durante aquela cena de erotização. Sobre essa noite, disse Iago: “Ele queria ficar comigo. Enquanto dançávamos, ele me beliscava e ficava achochando, me provocando”. Para ele, o ato de beliscar e ser acochado pelo seu parceiro de dança era entendido como parte de um jogo de sedução, “era um sinal de que ele era queria ficar comigo”, avalia. 4.3.2 A infregatividade nos diferentes espaços de sociabilidade Tem as festas open bar, mais alternativas de Recife, que também é uma outra opção que você vai e essas festas também dão uma sacolejada na 203 organização das boates, porque elas estavam perdendo frequentadores. Acho que é uma questão mesmo de ampliação dos locais que eu possa ir, não é só boate, nos espaços GLS, principalmente agora que gente tem uma aceitação maior e então não é só as boates, tem outros espaços (Júlio, Recife, abril de 2015). Trago este relato compartilhado por Júlio porque a dinâmica apresentada por ele é interessante para pensarmos como o brega foi ganhando espaço nas festas que compõem o “mercado GLS” em Recife. As festas alternativas, principalmente aquelas que ocorrem no Catamaran, a exemplo da festa Brega Naite, ao trazer bandas e cantores de referência do brega pernambucano e deejays que investiam em estilos musicais mais diversificados, como os estilos bagaceira e brasilidades, fugindo do tradicional house music, tão presente nas festas voltadas ao público LGBT, foi atraindo um novo público e as boates consideradas mais elitizadas, como o Clube Metrópole, começaram a dedicar algumas festas ao brega, como a festa Bailão Brega. Esse movimento musical da periferia para áreas consideradas mais nobres, na capital Pernambucana, também foi apontado por Alves (2014, p.395): No caso recifense, ao contrário do observado por R. Lemos & O. Castro (2008) a respeito do circuito brega de Belém-PA, não existem as aparelhagens: grandes sistemas de som e luz de alta densidade técnica embutida, utilizados nas apresentações dos grupos no Pará. Por outro lado, observa-se que no Recife o brega antes restrito a apresentações nas periferias da cidade, se insere na programação dos grandes clubes, muitos deles considerados de elite como o Internacional (Madalena), Gigante do Samba (Arruda), o Chevrolet Hall (Salgadinho), o Português (Graças) ou ainda de clubes médios como o Dona Carolina (Boa Viagem): “Clubes elitistas são hoje todos clubes de pagode e brega”, sentencia o jornalista José Teles*. Boates conhecidas por abrigarem as novidades do circuito de bandas da Região como o Uk PUB, hoje abrigam eventos de brega como a “Noite das Novinhas”. No Recife Antigo, outro tipo de brega, por vezes estilizado, mais ligado às raízes do gênero, anima bailes em casas noturnas com grande presença de jovens universitários (aspas do autor). Nesse sentido, para Rafael, “o espaço da pista do Bar Brasil sempre tocou esse estilo, mas eu não via atrações tão forte na cena brega, fazendo shows na boate, que por acaso acontecem no palco principal”. Segundo ele, o palco principal da pista New York, esta reservada para o estilo house music com apresentações de gogo-boys e cantores ou interpretes do pop music, como Lorena Simpson e Wanessa Camargo, passou, assim, a ser ocupado por bandas como Sedutora, Michelle Melo, Mc Troia, Kelvis Duran, entre outros 204 ícones do brega e do brega-funk pernambucano. O fato de a boate começar a investir nesse estilo musical teve por objetivo atrair um público maior, pois, segundo os relatos de Júlio, o espaço precisava dar uma “repaginada para não perder público”. Outro exemplo é o Santo Bar, que no momento da pesquisa, contava com a festa Bregosão e Ixxfrega, nas quais os deejays tocavam os estilos bagaceira e brasilidade. Essa situação é diferente, por sua vez, da Boate MKB, local onde sempre existiu a presença do estilo brega e brega-funk, o que faz com que a boate seja conhecida como “o paraíso do brega e dos cafuçus”. Por esta razão, disse Marcelo: Quando eu quero pegar um cafuçu, que é aquele gay que é mais carinha de heterozinho, mais descoladinho, descolado não... que é meio... é meio pedreiro, meio baixa renda, aí eu já sei que as músicas que eles gostam é o breguinha lá da MKB. Tanto pelo espaço quanto pela música que é tocada, a gente já sabe o público que vai ser atingido, então, quando eu quero paquerar com esse tipo específico dessa tribo, aí eu já vou pra MKB (Marcelo, Recife, outubro de 2016). Portanto, a Boate MKB, apesar de oferecer as mesmas atrações da Boate Metrópole e do Brega Naite, não vivenciou essa adaptação musical para concorrer com as festinhas alternativas. O público que geralmente frequenta essa boate é diferente dos outros espaços, os quais são considerados mais elitistas. Esta particularidade permite que a MKB conquiste uma clientela mais popular. O espaço do brega sempre contou com apresentações de bandas ao vivo e é o espaço mais disputado pelos frequentadores. “Sempre gostei de ir à MKB pela diversidade musical, o brega sempre fez parte da MKB, lá não tem essa de noite dedicada ao brega, não. Lá as noites são reservadas ao brega”, ressaltava João. A infregatividade ou a ixxfregação ganha destaque na hora das interações dançantes entre os homens que fazem parte desta pesquisa, nesse sentido, a “ malicinha gostosa” presente na dança produz contágios e afetos entre os dançantes. Na definição de Lucas, tem- se que: Essa interação, essa ação de se esfregar com alguém dançando é algo pra mim que é muito comum, não só no contexto erótico, de paquera, no contexto sexual, mas em geral, assim, dançando. Eu acho que esse tipo de dança leva muito pra uma pegada mais sexual e não é diferente quando a gente está paquerando alguém na balada, no show, em uma festa. Esse tipo de música é muito propício pra você aproveitar, e eu acho que serve um pouco como a dança do acasalamento. O esfrega, esfrega, é algo que 205 ... não sei ... que esquenta muito o pré-coito talvez, eu acho que já fiz muito, já dancei bastante com meninos que eu queria pegar e me excitei na hora e eu acho que isso é um sinal de que algo vai rolar, de que você quer algo sério, de que você quer algo com a pessoa. No Brega Naite, eu estava com amigos e um amigo meu, muito próximo, a gente nunca tinha ficado e a gente estava dançando e a gente começou a dançar colado e de repente a gente estava se beijando. Geralmente esse tipo de coisa acontece com pessoas que já conheço, ou pessoas que estão inseridas no grupo onde eu conheço outras pessoas, porque eu sou meio tímido, então eu tenho um pouco de dificuldade de utilizar isso como uma técnica pra paquerar com pessoas que eu não conheço. Então, para eu olhar pra pessoa e chamar pra dançar é algo que eu tenho um pouco de dificuldade e quando a pessoa já está no grupo, ou é conhecido de alguma forma já é um pouco mais fácil de me relacionar com ela através da dança (Lucas, Recife, outubro de 2016). Cenas semelhantes às descritas por Lucas também foram observadas por mim durante o trabalho de campo. Para Rafael, por sua vez, a música Estando Com Ela, Pensando em Ti, de Kelvis Duran, apresenta um ritmo “muito contagiante e propício para a infregatividade”, que é combinada com o momento de agitação grupal proporcionada“ pela bebida, pela música envolvente, pelos boys cheirosos e por uma iluminação provocante”. Por isso, ele avalia que, “não teria como resistir ao momento de sedução”. Assim, o instante da dança seria considerado um momento perfeito para a paquera e a sedução. Nesse sentido, vale destacar o que Fontanella diz sobre a erotização da dança: Nas suas formas, o brega pop diferem da música cafona tradicional de diversas maneiras. Em primeiro lugar, está o papel central da dança, essencialmente para ser executada por casais, em que ele se aproxima mais das modas efêmeras como a lambada. Para criar o efeito desejado de uma música dançante e sensual os músicos brega abusam em seus arranjos de formas provenientes de ritmos caribenhos e do forró mas utilizam batidas mais aceleradas da guitarrada, influenciados principalmente por referencias do rock internacional (FONTANELLA, 2005, p.23). Trago abaixo três trechos dos meus diários de campo que se referem a três diferentes momentos etnográficos. Com isso, pretendo apresentar as dinâmicas produzidas pelos demais interlocutores em relação às interações dançantes classificadas por eles como 206 infregatividade ou ixxfregação. Com o propósito de tornar esses relatos etnográficos mais completos137. Cena 1: Clube Metrópole Já se passava das 23h e a pista do Bar Brasil estava lotada, enquanto isso, na pista New York, o deejay nem tinha começado a sua apresentação. Ficamos um pouco na parte ao fundo da pista do Bar Brasil, próximos ao caixa e ao banheiro, por ser uma parte um pouco mais elevada tínhamos uma visão geral da pista. O deejay tocava brega e as pessoas acompanhavam as letras, cantando-as juntas. As músicas que tocavam no Bar Brasil transitam entre pop music, brasilidades e bagaceira. Na pista o público era bastante diversificado, tanto no recorte geracional, quanto de gênero. Os rapazes compraram bebidas e começavam a dançar nos embalos da bagaceira. Rafael comentou que eu também deveria dançar, que deejay e pesquisadora também deveria dançar. Falei que não sabia dançar juntinho, que corria o risco de pisar no pé de alguém, imediatamente ele me pegou pela cintura e foi explicando o básico da dança: “é basicamente você acochar e requebrar o quadril, um passo para lá e outro para cá”. Dancei uma música e depois Rafael pegou um conhecido para dançar. Estava tocando Estando Com Ela, Pensando em Ti138, de Kelvis Duran, e Rafael dançava juntinho, encaixando suas pernas na coxa do rapaz, com os rostos colados “cheirando o cangote”, balançavam os quadris, no “gingado da malícia pernambucana”. Enquanto dançavam conversavam algo entre si no pé do ouvido e lançavam pequenos sorrisos provocantes. Rafael, olhava para mim e demonstrava interesse no rapaz e com um sorriso sedutor mordia os lábios e pressionava o seu corpo ao do rapaz, acochando-o. Muitas pessoas faziam o mesmo movimento, o que fazia o calor aumentar e o suor escorrer pelos rostos e corpos de alguns. O deejay colocou mais três músicas bregas na sequência e Rafael só parou de dançar agarradinho quando o deejay colocou a música Dança do Ventre139 da Banda é o Tchan. O casal se desfez e imediatamente começaram a dançar fazendo as coreografias da banda. O calor aumentava e alguns rapazes tiravam a camisa, incluindo o parceiro de dança de Rafael, que tirava a camisa aos poucos enquanto dançava “requebrando o quadril”. Rafael olhou para mim e comentou baixinho: “pegava bonito, ele é muito gostoso”. Quando a música acabou o rapaz saiu para o banheiro com uma amiga. O calor estava insuportável e seguimos um pouco para parte da piscina, “preciso beber algo, ficou muito quente de uma hora pra outra” comentou Rafael, se referindo ao flerte com o seu parceiro de dança. Ao voltarmos para a 137 Ressalto, no entanto, a importância de o leitor ouvir as músicas aqui mencionadas, tendo em vista que, por mais que eu descreva as cenas em detalhes, se faz necessário apreciar sonoramente o ritmo que embala essas cenas. 138 Ouvir música, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=oUCMa-5lljk. 139 Ouvir música, disponível em : https://www.youtube.com/watch?v=zQ_1Ozg7NsU. 207 pista do Bar Brasil, estava tocando o brega-funk, Mete o Fio Dental140, do Mc Sheldon, Rafael reencontrou o rapaz, que dessa vez estava sem camisa, e voltaram a dançar juntos. Rafael aproveitava o ritmo para “tirar uma casquinha”, e segundos depois os dois estavam trocando beijos e “amassos” enquanto dançavam (Diário de campo, Recife, março de 2016). Cena 2: Brega Naite Era noite de Brega Naite e como em todas as festas organizadas pelo coletivo Golarrolê a noite prometia bastante animação. Era quase meia noite quando cheguei com Elton e Rafael no Catamaran, no cais de Santa Rita. Os rapazes encontraram três amigas por lá, que se juntaram ao nosso grupo. A festa tinha duas modalidades de ingressos (comum R$ 30 – R$ 40 e open bar R$ 80 -R$ 100). Pagamos a modalidade open bar, apesar de não beber nada alcoólico, paguei essa modalidade para acompanhar os rapazes no espaço reservado para esse tipo de ingresso. Os rapazes vestiam bermudas jeans um pouco abaixo do joelho e camisa florida, não fugiam, portanto, da maioria que ali estava. Para animar a noite, a festa contava com deejays (Allana Marques e Original deejay Copy), Banda Sedutora e Banda Espartilho. Os deejays tocavam principalmente os sucessos do brega-funk pernambucano nos intervalos entre uma banda e outra (...). Já se passava das 3 da manhã, os mais tímidos já estavam se soltando após algumas doses de whisky misturadas com as cervejas que eles tinham tomado. Rafael avistou um rapaz e comentou comigo “olha que bonitinho e não para de me olhar. Acho que vou convidá-lo para dançar”, comentou. Sua amiga que também estava de olho no rapaz comentou “eu vi primeiro viado, vai pra lá”, “bicha ele é viado, não está vendo? ” “Ele não para de olhar pra Rafael desde que chegamos aqui”, comentou Elton dando força ao amigo pra chegar junto. “Mas antes vou no banheiro, conferir o look”, comentou Rafael se afastando do grupo. Quando ele voltou estava tocando Bateu a Química, ele imediatamente começa a dança sozinho e foi se aproximando do rapaz que estava paquerando. Segundos depois estavam os dois dançavam juntos. “Não falei que ele era viado”, comentou Elton. Segundo o relato de seus amigos, ele “estava tirando uma casquinha na dança”, devido ao fato de dançarem “arroxadinhos”. Ficaram dançando juntos o resto do show, distribuindo beijos e carinhos. “Eita que a esfregação está grande aí”, comentou Elton. Na volta para casa, Rafael comentou que o rapaz era muito cheiroso e que beijava muito bem: “imagina o sexo como deve ser”, disse ele, ressaltando que havia trocado o contato com o rapaz (Diário de Campo, Recife, março de 2016). Cena 3: Boate MKB 140 Ouvir música, disponível em : https://www.youtube.com/watch?v=1ZKL_nmasA4. 208 Acompanhava Elton na Boate MKB, na ocasião ele estava mostrando a boate aos amigos que foram visitá-lo em Recife. Era interesse da maioria ficar na pista do brega “afinal essa boate é famosa pelo brega, quero ficar lá um pouco”, comentou um dos rapazes. O ambiente estava lotado, não conseguíamos nem passar para o outro lado de tão apertado que estava. Eu era a única mulher do grupo, o que me rendia olhares e cantadas de homens e mulheres externos ao grupo: “Olha Chiara tem uma sapatão te encarando. Eitaaaa! Ela é bem caminhoneira, mas macho do que eu”; “acho que aquele cafuçu está te paquerando, vai que bateu a química”, comentava Rafael, lembrando da canção da Banda Sedutora. Comentei que estava muito cheio e que estava muito quente também, “aqui sempre é lotado, mas hoje como tem Banda Sedutora aí é que lota mesmo”, disse Elton. Os casais se esbarravam uns nos outros, mas isso não era motivo para desestimular a dança e impedir a formação de possíveis parcerias. Como estava muito apertado, alguns casais dançavam abraçadinhos, “o de trás encaixando o da frente”, segundo Elton, balançando o quadril para um lado e outro, sem necessariamente tirar o pé do chão. Rafael me chama e fala ao meu ouvido, “olha aquele casal, o da frente chega está revirando os olhos de tão gostosinho que está o xumbrego”, na hora tocava No Dia Do Seu Casamento141, a letra estava na boca do público, que cantava todas as músicas junto com as cantoras. Algumas pessoas próximas ao palco pediam as cantoras para tirarem selfies, as cantoras atendiam aos pedidos, porém algumas se atrapalhavam e esqueciam de cantar, deixando um vazio que era rapidamente preenchido pelas vozes da plateia: “se o nosso amor se acabar/ eu de você não quero nada ...”. Perguntei para Rafael se ele havia se interessado por alguém, ele imediatamente me olhou com aquele olhar de desaprovação e comentou “eu só vim aqui porque meus amigos queriam. Não tenho a pretensão de ficar com ninguém. Aqui só tem povo feio e garoto de programa”. A Boate MKB é bastante estigmatizada, principalmente pela classe média, alguns nem se aventuram a ir para a boate devido à má fama que ela possui entre o público que se considera mais moderninho (Diário de Campo, Recife, agosto de 2016). Apesar de extensos, estes excertos assinalam como se estabelece a relação entre música e espaços de sociabilidade nas cenas etnográficas recortadas. Nesse sentido, o recorte de classe, destacado pelos interlocutores, aparece ora como produtor de fronteiras, ora como diluidor de fronteiras, nunca se dando de forma estática. Para Rafael, a música bagaceira não é apreciada da mesma forma nesses diferentes espaços, criando assim fronteiras de classe entre os dançantes: “acho que não é a mesma forma. A música pode até ser a mesma, mas muda de espaço para espaço. Na MKB, vejo como ralé. O público lá é bem barra pesada e eu não gosto. Já a Metrópole é meio termo, lá é bastante diversificado e o Brega Naite é 141 Ouvir música, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6E5I4ypgvks. 209 mais top”. Ainda segundo Rafael, o recorte de classe é bastante significativo para entender a relação entre o brega e a infregatividade nesses diferentes espaços. Mas se, por um lado, na Boate MKB o público, em sua maioria, seria classificado como “barra pesada”, devido à localização da boate e seus aspectos estruturais, tais como “malcuidada, com parede pintadas de cal e cheia de buracos na pista”, além de ser frequentada por garotos de programas, aspectos estes que, para Rafael, impossibilitaria qualquer investida na hora da sedução, tornando inapropriado a interação com membros externos ao grupo. Por outro lado, na Boate Metrópole e na festa Brega Naite essas interações seriam estendidas para membros externos ao grupo, levando em consideração que são espaços mais valorizados. Portanto, a infregatividade, para Rafael, seria possível apenas entre aqueles que circulam pela sua rede de amigos. Na festa Brega Naite, considerada uma festa “mais top” de acordo com Rafael, o contato com um parceiro em potencial poderia facilmente se estender para outros espaços, como a troca de contatos telefônicos e redes sociais. Para Marcos, por sua vez, a música não apresenta diferença nesses diferentes espaços: “não na minha opinião, principalmente porque ela é a única que é comum a todos daqui. Não importa o nível social das pessoas, elas vão se soltar do mesmo jeito, a bagaceira é a mesma”. Diferentemente de Rafael, que vê a música como uma possibilidade de aproximação na paquera nos espaços onde ele compartilha dos mesmos estratos socioeconômicos dos demais, para Marcos, no entanto, independente dos espaços essa aproximação não seria apropriada em uma interação externa ao seu grupo de amigos: “digo que não dançaria com um desconhecido, mas isso é pessoal. Eu não me sentiria à vontade em nenhum dos espaços para dançar com um desconhecido”. Notas Neste capítulo, procurei discutir os sentidos erótico-dançantes da música eletrônica dançante denominada de bagaceira entre os interlocutores, particularmente as expressões erotizadas da infregatividade. Para tanto, fez-se necessário levar em consideração a musicalidade e as interações dançantes produzidas nos diferentes contextos aqui apresentados. O estilo de música eletrônica dançante classificado pelos interlocutores como 210 bagaceira torna-se relevante, nesse sentido, para pensarmos a relação entre a música eletrônica, de influência internacional, e as diferentes ressignificações sonoras apresentadas no contexto pesquisado. Uma vez que a valorização dos elementos mais regionais proporciona uma identificação do público ouvinte com a música reproduzida. Pois, essas músicas tratam de temas que fazem parte do cotidiano dos seus ouvintes. Neste capítulo, não foi meu objetivo realizar uma reconstrução conceitual dos debates e das disputas de significados que caracterizam os estudos antropológicos contemporâneos sobre o conceito de música eletrônica e nem dos respectivos usos que os antropólogos fazem deste conceito. Antes, o meu propósito foi enunciar os modos de expressão da música eletrônica dançante denominada pelos interlocutores de bagaceira. Também procurei refletir, nesse sentido, sobre a contribuição que a noção de bagaceira, proposta por eles, pode oferecer para pensarmos um conceito mais fluído de música eletrônica dançante, de modo a não me prender a uma análise puramente técnica. Procurei destacar o modo de significação convencional que emergiu no contexto etnográfico de minha pesquisa a partir da extensão de significados oferecidos pelos interlocutores. Ao introduzir a noção de bagaceira como um novo referente para o entendimento da música eletrônica dançante em Recife, não se trata, contudo, de sugerir uma distinção essencializada da música eletrônica dançante convencionalizada em outros contextos de pesquisa. Ao contrário, busquei assinalar que existe uma relação de interdependência entre estes diferentes estilos musicais. Pois, um estilo musical está relacionado com outros. Em uma combinação infinita, os significados da música bagaceira só podem ser pensados em relação aos outros estilos musicais citados pelos interlocutores. Em seu contexto recifense, a música bagaceira produz a extensão de significados quando percebida a partir de um fluxo contínuo de invenções, uma vez que as convenções dão consistências às invenções. Por não impedir as invenções, mas incitá-las, a convencionalização também permite o compartilhamento de significados entre os agentes. Ao observar as interações erótico-dançantes entre os interlocutores, percebi que a ambientação, o jogo de luzes e as danças particularizadas ressignificam os espaços de sociabilidade etnografados. Assim, foi possível entender que um mesmo estilo musical pode ser apropriado de diferentes formas e o que muda nessa apropriação depende do espaço pelos quais essa musicalidade circula. Por fim, como procurei mostrar, os sentidos erótico- dançantes da infregatividade, esta entendida aqui a partir de seus modos de expressão e 211 mediada pela música eletrônica dançante bagaceira, incorporam ainda a noção de malícia. Estas duas noções são fundamentais, pois, para que se possa entender a noção de bagaceira atribuída à música eletrônica dançante, porque ambas tecem relações profundas entre si: uma produz mutuamente a outra. Nesta dinâmica, infregatividade e malícia também conferem sentidos eróticos às danças particularizadas. 212 CONSIDERAÇÕES Nesta dissertação, a minha finalidade foi descrever uma teoria etnográfica da música eletrônica no contexto de Recife. Não foi o meu objetivo, contudo, elaborar uma teoria geral da música eletrônica. Antes, o que pretendi foi experienciar a música por meio do trabalho de campo. Tratei de entender a música como um objeto de pesquisa híbrido, o que me conduziu, por sua vez, a procurar encontrar os sentidos de música que são produzidos pelos interlocutores com os quais constitui relações. A experiência musical de cada interlocutor foi bastante reveladora nesse sentido, pois, as diferentes maneiras pelas quais os símbolos musicais são significados por eles me levaram a entender como os sentidos de música são produzidos a partir de uma variedade de situações sociais. Contudo, foi somente depois de uma imersão profunda nas práticas nativas que entendi os sentidos daquilo que eles definem como música eletrônica. Um dos desafios do trabalho de campo consistiu, com efeito, em não me prender à produção de análises definitivas da experiência musical. Não desvincular a música da prática antropológica implicou, neste sentido, evidenciar a invenção criativa das práticas nativas. Tratava-se, assim, de extrair os efeitos dessas práticas e conectá-las a outros contextos, ainda que parcialmente, já que tais práticas poderiam ser capazes de produzir uma matriz de inteligibilidade. Ao conectar as práticas mais concretas advindas do trabalho de campo às proposições mais abstratas que circulam no campo antropológico, de modo a articulá-las à minha descrição final, procurei entender a música para além do seu modo de significação convencional. Ao iniciar o meu trabalho de campo, pretendia trabalhar analiticamente com a categoria house music. Participar das práticas nativas, no entanto, me conduziu a ampliar a minha noção de música eletrônica. Imersa nessas práticas, “encontrei” o que não estava procurando: a música bagaceira. Quando conferi valor analítico à música bagaceira, por sua vez, entendi a complexidade que essas duas categorias guardam em si. Uma não poderia ser entendida, portanto, sem a outra, ao menos não no contexto aqui descrito. Só “encontrei” o que não estava procurando, contudo, quando me abri para a palavra nativa e fui capaz de levar a sério o que os interlocutores me diziam. Uma comunicação involuntária, pois, se estabeleceu entre nós. Foi necessário, nesse sentido, aceitar ser afetada, já que uma força intensiva atravessou a minha experiência etnográfica. 213 Participar das práticas nativas me levou a ter de lidar com a imprevisibilidade das condições iniciais da pesquisa. Imprevisibilidade essa que só fazia sentido para mim, uma vez que me conduzia a rever o meu projeto de pesquisa inicial e a aprender que o tempo da análise viria depois. Encarar o momento etnográfico como um momento de imersão foi, portanto, fundamental para “encontrar” o que não estava procurando. Assim me deslocava entre a escrita e o trabalho de campo. Os efeitos experimentados em campo, por vezes, conduziam-me a rever e a reorganizar a escrita; outras tantas vezes, a escrita me levava a retornar ao campo de outra forma: um reposicionava o outro, mas cada um guardava em si sua dinâmica interna. O desafio estava justamente em ter de habitá-los ao mesmo tempo, sem, no entanto, entendê-los em conformidade um com o outro. Nesta relação entre imersão e movimento, procurei elaborar uma etnografia que conseguisse abrigar a continuidade cultural que reside entre os produtos do meu trabalho de campo e o que os interlocutores produziam em suas narrativas sobre eles mesmo. À medida que me envolvia com as suas narrativas para melhor entender o meu objeto de pesquisa, percebi que não poderia entender os sentidos que eles produzem sobre música eletrônica sem, no entanto, conhecer suas curvas de vida, seus projetos individuais e seus campos de possibilidades. Com isso, também foi possível visualizar como eles negociam a visibilidade pública das suas preferências erótico-afetivas. Pois, não se pode produzir conhecimento etnográfico sem estabelecer relações pessoais. No contexto da minha pesquisa, as relações que estabeleci com os interlocutores não são esvaziadas de afetos, valores e moralidades. Afinal, uma etnografia da música eletrônica, como procuro sugerir, não inclui apenas sons, mas também pessoas. Diante disso, as narrativas dos interlocutores são bastante elucidativas dos modos como eles entendem os princípios e as práticas avaliativas que dão sustentação às suas formas de sociabilidade. Também elucidam os processos por meios dos quais eles julgam o valor de uma música em detrimento de outra e a justificativa que eles dão para escutar esta e não aquela música. De minha parte não cabia, no entanto, julgar as avaliações dos interlocutores. Antes, tratava-se de entender as práticas e os discursos nativos como narrativas dotadas de sentido. Somente quando estive aberta às suas narrativas, consegui, de fato, entender o modo como eles se relacionam com os espaços pelos quais circulavam. Isto não teria sido viável, contudo, se eu tivesse me prendido a uma definição normativa de música eletrônica. 214 Gostaria de sugerir, portanto, que uma teoria etnográfica sobre música eletrônica não deve prender-se a uma definição normativa. Ao mesmo tempo, não deve guardar em si apenas uma análise dos sons. Antes, como proponho, deve procurar encontrar as extensões de significados que são simbolizadas pelas práticas nativas. Diria, nesse sentido, que devemos ser capazes de levar a sério a natureza exata da equação entre sons e pessoas. Mais ainda. Para “encontrar” o que não estamos procurando, devemos produzir uma simetrização entre o que as pessoas fazem da música, o que a música faz delas e o que a música as fazem fazer. Pois, na relação entre como a música simboliza as pessoas e as pessoas simbolizam a música habita a potência inventiva e criativa das conexões entre sons e pessoas. Para concluir, acredito que esta dissertação “pode ser lida como uma partitura que produz muitas possíveis músicas e musicalidades” (MALUF, 2010, p. 44). 215 REFERÊNCIAS ABREU, Carolina Camargo: Festa eletrônica pelos jardins do mundo: raves em terras brasileiras. In: Antropologia e Performance: ensaios napedra. São Paulo: Terceiro nome, 2013. ALVES, Cristiano Nunes. Os circuitos e as cenas da música na cidade do Recife: O lugar e a errância sonora. Tese (Doutorado - Programa de Pós-Graduação em Geografia) Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 2014. AGIER, Michel. Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2011. AGIER, Michel. Encontros etnográficos: interação, contexto, comparação. São Paulo: Editora Unesp; Alagoas: Edufal, 2015a. AGIER, Michel. 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Acesso em 12 de dezembro de 2016. 229 APÊNDICE 230 Tabela 01: Quadro geral dos interlocutores*142 NOME IDADE PROFISSÃO COR (autodenominação) IDENTIDADE SEXUAL (autodenominação) Lucas 24 anos Estudante universitário Negro Gay Arthur 25 anos Estudante universitário Branco Gay Diego 26 anos Estudante universitário Branco Gay Marcos 26 anos Estudante universitário Pardo Gay Hélio 29 anos Designer gráfico Negro Gay Júlio 29 anos Administrador Preta Bicha Otávio 34 anos Administrador Branco Homem que gosta de outro homem Marcelo 35 anos Advogado Pardo Gay Iago 37 anos Contador Branco Gay Rafael 38 anos Executivo Branco Gay João 42 anos Executivo Pardo Gay Basílio 43 anos Executivo Branco Homossexual Pedro 44 anos Administrador Negro Gay Fonte: Trabalho de campo realizado em Recife, PE. * A fim de preservar a identidade dos interlocutores, optei por utilizar nomes fictícios.