UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MESTRADO EM DIREITO HUMBERTO LIMA DE LUCENA FILHO A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DA SOLUÇÃO PACÍFICA DE CONFLITOS NA ORDEM JURÍDICA DE 1988 NATAL 2012 HUMBERTO LIMA DE LUCENA FILHO A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DA SOLUÇÃO PACÍFICA DE CONFLITOS NA ORDEM JURÍDICA DE 1988 Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Direito - PPGD da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Direito (Área de Concentração: Constituição e Garantia de Direitos). Orientador: Prof. Doutor Artur Cortez Bonifácio NATAL 2012 Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA Lucena Filho, Humberto Lima de. A constitucionalização da solução pacífica de conflitos na ordem jurídica de 1988 / Humberto Lima de Lucena Filho. – Natal, RN, 2012. 162 f. Orientador: Prof. Dr. Artur Cortez Bonifácio. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Programa de Pós-graduação em Direito. 1. Direito - Dissertação. 2. Direito constitucional - Dissertação. 3. Conflitos (Direito) - Dissertação. 4. Poder judiciário - Dissertação. I. Bonifácio, Artur Cortez. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/BS/CCSA CDU 342:343.12 HUMBERTO LIMA DE LUCENA FILHO A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DA SOLUÇÃO PACÍFICA DE CONFLITOS NA ORDEM JURÍDICA DE 1988 Dissertação aprovada em ......./......../........, pela banca examinadora formada por: Presidente: ________________________________________________ Prof. Doutor Artur Cortez Bonifácio (Orientador – UFRN) Membro: ________________________________________________ Profª. Doutora Yara Maria Pereira Gurgel (Examinador Externo ao Programa – UFRN) Membro: ________________________________________________ Prof. Doutor Paulo Lopo Saraiva (Examinador Externo à Instituição – UNP) Dedico este trabalho a todos aqueles esperançosos – alcunhados de utópicos - que creem na possibilidade de se resolver as divergências pela adoção de uma postura dialógica e pacifista. AGRADECIMENTOS Àquele que nunca desistiu de mim e me deu forças para caminhar até aqui: Deus, o Mestre da minha frágil existência, que mantém-se inarredável no seu incompreensível e assombroso amor para com seus filhos. Aos meus pais, Humberto Lima de Lucena e Sônia Maria Prata de Lucena, inspiração de vida e modelos de conduta para mim, os quais, de forma sensata e amorosa, sempre me ensinaram o reto caminho da Justiça, compreensão e temor ao Eterno. Às minhas irmãs, Kellyane, Ana Karenyne e Kylze, por confiarem nos meus sonhos e pelas palavras amorosas sempre disponíveis, cuja força me impulsiona a prosseguir. Obrigado por existirem! Aos colegas da turma de Mestrado em Direito do ano de 2010, em particular aos amigos Márcio Ribeiro, Elisângela Moura, Rodrigo Telles, Samuel Gabbay e Karinne Lira por me permitirem usufruir da doce e inteligente convivência. Ao amigo-irmão, Lauro Ericksen, pelo incentivo em trilhar a árdua jornada acadêmica, lealdade a mim dispensada diariamente e humor peculiar, tal qual a Marcela Moreno pela solicitude incondicional e suporte sempre espirituoso. Aos colegas servidores públicos da Vara do Trabalho de Goianinha-RN, nas pessoas dos Diretores de Secretaria Ivan Lira, Andry Valério e João Paulo Pellegrini Saker e aos magistrados trabalhistas Zéu Palmeira Sobrinho, Manoel Medeiros Soares de Souza e Lygia Maria de Godoy pelo apoio irrestrito e entendimento da necessidade de qualificação daqueles que desejam prestar um serviço público de qualidade. Ao Professor Doutor Artur Cortez Bonifácio, meu orientador, pelo apoio, honestidade científica, ensinamentos, liberdade intelectual autorizada a minha pessoa e paciência democrática típica de suas ações. Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Direito que, direta ou indiretamente, permitiram uma construção de bases sólidas no Direito Constitucional e, em particular, à professora Doutora Yara Gurgel, cujo incentivo e inspiração foram decisivos para o desenvolvimento da pesquisa. Ao professor Doutor Paulo Lopo Saraiva, exemplo de dedicação e entusiasmo com a ciência do Direito, pela disponibilidade e contribuições feitas ao trabalho. Ao Programa de Pós-Graduação em Direito, em particular à Professora Maria dos Remédios Fontes Silva, Coordenadora do Programa e docente zelosa pela qualidade do Programa que dirige. Aos funcionários Lígia e Daniel, sempre prestativos na administração das demandas dos discentes. Aos presentes, aos ausentes, aos de perto e aos de longe. Valeu a pena cada minuto dedicado ao sonho que ora se concretiza. MUITO OBRIGADO! Ontem os códigos; hoje a Constituição. Paulo Bonavides Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus. Mateus 5:9 RESUMO No contexto jurídico brasileiro, a solução de conflitos é estudada e analisada sob uma ótica majoritária de judicialidade, razão pela qual se constata uma cultura demandista, cuja esperança resolutiva reside essencialmente nos provimentos jurisdicionais. A repercussão prática de tal realidade é a perda de qualidade no serviço público prestado pela função judicial do Estado, impulsionada, em regra, pelo abarrotamento do Poder Judiciário, morosidade dos procedimentos e relegação de práticas pacíficas de resolução de controvérsias a um plano periférico. Porém, a Constituição Federal de 1988, seguindo o fenômeno constitucionalizador do direito ordinário, prevê orientações específicas no que tange aos valores informadores da solução de litígios. Tem, portanto, o presente trabalho o escopo de abordar a constitucionalização da solução pacífica de conflitos no sentido de identificar, por intermédio da interpretação científico-espiritual em conjunto com o paradigma sistemático, quais são tais valores, bem como a operacionalização e representação jurídico-prática dessas aferições. Nesse sentido, a dissertação tem como ponto de estudo inicial a análise das teorias do conflito e esclarecimentos acerca da cultura da litigância compatibilizados com conceitos de constituição e interpretação, constitucionalização, acesso à justiça e políticas públicas de pacificação social. Utiliza-se, para tal fim, o método lógico-dedutivo com o auxílio da dialética imanente à Ciência Jurídica. Palavras-chave: Constitucionalização. Solução pacífica. Conflitos. ABSTRACT In the Brazilian legal context, conflict resolution is studied and analyzed over a majority jurisdictional view, which is one of the reasons of litigation culture that creates a jurisdictional resolution hopeness. The practical impact of such reality is the loss of quality in the public service of the judicial function, moved, as a rule, by the overcrowdings, slowness of legal procedures and the relegation of peaceful resolution methods to peripheral plan. However, the Federal Constitution of 1988, following the Ordinary Law constitutionalization phenomenon provides specific guidance about the values towards the litigation resolution. The study, therefore, aims to approach the constitutionalization of conflict resolution in order to identify, through scientific and spiritual interpretation in conjunction with the systematic paradigm, what are these values, as well as operation and legal representation and practice of these measurements. In this sense, the thesis is to study the initial point of the analysis of conflict theories and explanations about the culture of litigation matched with concepts of creation and interpretation, constitutionalization, access to justice and social pacification public policies. It is used for this purpose, the logical-deductive method with the aid of the dialectic immanent in Law. Keywords: Constitutionalization. Peaceful solution. Conflict. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................12 2 AS TEORIAS DO CONFLITO: CONTRIBUIÇÕES DOUTRINÁRIAS PARA UMA SOLUÇÃO PACÍFICA DOS LITÍGIOS E PROMOÇÃO DA CULTURA DA CONSENSUALIDADE..........................................................................................................19 2.1 O CONFLITO.....................................................................................................................23 2.1.1 Conceito...........................................................................................................................25 2.2 AS PERSPECTIVAS SOCIOLÓGICAS CLÁSSICAS DO CONFLITO.........................27 2.3 CONCEPÇÕES MODERNAS SOBRE O CONFLITO.....................................................33 2.3.1 A Teoria dos Jogos e sua aplicabilidade como uma teoria do conflito na solução pacífica de litígios....................................................................................................................35 3 A CULTURA DA LITIGÂNCIA E O PODER JUDICIÁRIO: NOÇÕES SOBRE AS PRÁTICAS DEMANDISTAS A PARTIR DA JUSTIÇA BRASILEIRA.........................41 3.1 CULTURA DO CONFLITO VERSUS CULTURA DA LITIGÂNCIA: UMA DISTINÇÃO NECESSÁRIA ..................................................................................................43 3.2 CULTURA DA LITIGIOSIDADE, PODER JUDICIÁRIO E ACESSO À JUSTIÇA.....48 3.2.1 A categorização do acesso à justiça em ondas segundo Mauro Cappelletti e Bryant Garth........................................................................................................................................53 3.2.2 Explosão de litigiosidade: conceito e origem...............................................................55 3.3 LITÍGIO, LITIGANTES E AS PRÁTICAS DEMANDISTAS.........................................63 3.3.1 O litígio............................................................................................................................64 3.3.2 Os litigantes....................................................................................................................65 4 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO: MARCOS TEÓRICOS PARA UMA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL DA SOLUÇÃO DE CONFLITOS...............72 4.1 POLISSEMIA CONSTITUCIONAL E REPRESENTATIVIDADE JURÍDICA.............72 4.2 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO...............................................................75 4.3 CONSTITUIÇÃO E SOLUÇÃO DE CONFLITOS: POR UMA INTERPRETAÇÃO CIENTÍFICO-ESPIRITUAL....................................................................................................89 4.3.1 Interpretação: algumas definições necessárias............................................................89 4.3.2 Neoconstitucionalismo e hermenêutica constitucional...............................................91 4.3.3 A interpretação constitucional....................................................................................97 4.3.4 Solução de conflitos sob o prisma constitucional: o método científico espiritual como paradigma metodológico............................................................................................98 5 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DA SOLUÇÃO PACÍFICA DE CONFLITOS NA ORDEM JURÍDICA DE 1988.............................................................................................106 5.1 O PREÂMBULO CONSTITUCIONAL..........................................................................106 5.1.1 Origem ..........................................................................................................................107 5.1.2 Conceito.........................................................................................................................108 5.1.3 Funções..........................................................................................................................111 5.1.4 O Preâmbulo nas Constituições Brasileiras...............................................................113 5.1.5 O Preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos da América, de 1787...............115 5.1.6 O Preâmbulo da Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948..................116 5.1.7 A Constituição Francesa de 1958 e a excepcionalidade normativa do Preâmbulo..............................................................................................................................116 5.1.8. O Preâmbulo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal............................119 5.2 O CASO DO ART. 4º, INCISO VII, DA CFRFB/88.......................................................122 5.3 A ARBITRAGEM COMO MÉTODO PACÍFICO DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS.....................................................................................................................126 5.3.1 Elementos...................................................................................................................127 5.3.2 Arbitragem Nacional versus Arbitragem Internacional........................................128 5.3.3 Fontes do Direito Arbitral........................................................................................129 5.3.4 A Corte Permanente de Arbitragem e a Corte Internacional de Arbitragem................................................................................................................129 5.3.5 Tendências e obstáculos à implementação da arbitragem....................................130 5.4 OUTROS MÉTODOS PACÍFICOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS.........................131 5.4.1. A conciliação e a mediação.........................................................................................132 5.5 A RESPONSABILIDADE DO ESTADO COMO PROMOTOR DE POLÍTICAS PÚBLICAS PACIFICADORAS ......................................................................................136 6 CONCLUSÃO.................................................................................................................141 7 REFERÊNCIAS..............................................................................................................147 12 1 INTRODUÇÃO O despertar de diversas nações para o fato de que o sistema judiciário assentado no monopólio jurisdicional está ficando cada vez mais sobrecarregado com demandas que poderiam ser facilmente resolvidas extrajudicialmente – ou por intermédio de uma maior proatividade dos agentes envolvidos em solucionar por métodos mais consensuais - tem proporcionado uma reanálise das funções do Estado e sua conduta quanto ao tratamento adequado dos conflitos. Entretanto, o debate em tela proposto vai além de uma mera detecção das implicações numéricas dos relatórios do Conselho Nacional de Justiça, por exemplo. Há uma problemática a ser encarada e que corriqueiramente é relegada a plano inferior. A solução pacífica de controvérsias, recorrentemente encarada como mera opção do Estado-juiz, partes e atores judiciais merece um tratamento mais relevante do que se a ela dispensa. Aliás, a seu bom tempo, demonstrar-se-á que não só merece como deve ser tratada como instituto privilegiado frente aos tradicionais meios de coerção e à ‘cultura da sentença’. A questão deve ser tratada sob uma abordagem constitucional em razão de alguns fundamentos merecedores de comento. Inicialmente, pontue-se que é débil qualquer estudo sobre tema jurídico que olvide de tratar da manifestação constitucional sobre a matéria. Isto porque, nos tempos hodiernos de neoconstitucionalismo, conforme já tão incessantemente lecionado pela doutrina, a Constituição é a norma ápice do sistema jurídico, dotada de supremacia e com natureza normativa e vinculante. É nela onde estão presentes todos os fundamentos e valores que irradiam o direito ordinário e de fato como esse deve ser inspirado, lido e aplicado 1 . Em segundo lugar, é atribuição do Poder Constituinte (originário ou derivado) a consolidação normativa das interações sociais. Aventa-se aqui a possibilidade outorgada aos representantes do povo de jurisdicizar relações privadas, tal qual elevá-las ao mais alto nível de status normativo no ordenamento jurídico, isto é, a constitucionalização. Hoje tida como recorrente nos Estados Constitucionais, a Constitucionalização do Direito pode ser compreendido sob duplo espectro. Na categoria primária, tem-se o ato de dogmatizar ou, ainda, tornar normas e assuntos de âmbitos diversos como de status constitucional, característica típica das constituições analíticas. A isso dá-se o nome de Absorção Constitucional. 1 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 362 13 Noutra vertente, e foco principal deste trabalho, enxerga-se o processo de Filtragem Constitucional 2 . Tal instituto é fortemente marcado pela (re)interpretação de outros pontos específicos do patrimônio jurídico nacional sob a ótica da Constituição. A fundamentação para esta premissa é encontrada em autores que definem a principal manifestação de preeminência normativa da Constituição no fato de que toda a ordem jurídica deve ser lida à luz da Lei Maior, e, por conseguinte, passada por seu crivo 3 . Esse processo só pode ser depreendido quando se tem em mente que a Constituição não pode ser compreendida como um sistema em si 4 , perpassando pela constitucionalização da aplicação dos postulados jurídicos infraconstitucionais como se fosse um modo de olhar e interpretar os demais ramos do Direito. Ao se vislumbrar a possibilidade da constitucionalização da solução pacífica de solução de conflitos, a aplicação de tal modelo interpretativo pode assumir uma feição dicotômica. Assim, poderá ser operada de maneira direta ou indireta para que haja a efetiva compreensão metodológica de tais institutos 5 . A aplicação direta dessa técnica interpretativa subsume-se aos casos em que há a pretensão de fundar os referidos institutos e mecanismos em uma norma do próprio texto constitucional. Embora não caiba diferenciar exatamente o que é enunciado e norma, há de se ter em mente que as normas extraídas dos princípios da celeridade e da razoável duração do processo, tais quais aquelas atinentes à solução pacífica dos conflitos, são a pedra de toque para a constitucionalização direta dos mecanismos resolutivos por ora abordados. Buscar a própria efetivação prática dos princípios e regras supracitados atua como a força jurídica elementar na equação conjuntiva existente entre a necessidade de promoção dos direitos fundamentais e a imposição atual de se poupar da apreciação traumática do Poder Judiciário as demandas que são passíveis de resolução alternativa, ou, ainda que jurisdicionais, operadas pela consensualidade. Imprimir a esses tópicos a constitucionalização dos mecanismos extrajudiciais confere aos próprios princípios fundamentais contornos mais práticos e palpáveis de Justiça, uma vez que a concretização de temas constitucionais é um dos maiores escopos materiais de qualquer Norma Fundamental contemporânea, pois evita seu engessamento e confere maior dinamicidade ao ordenamento jurídico que ela visa dar espeque teórico. 2 Ibidem, p.363. 3 SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem Constitucional. Porto Alegre: Fabris, 1999. p.72. 4 Apesar da utilização de um termo estritamente kantiano, em termos filosóficos, há de se ter em mente que a abordagem do presente trabalho, ao menos no prisma filosófico, prima por uma inserção mais contemporânea do direito, não se prendendo ao estigma do neokantismo jurídico. 5 Ibidem, p.364. 14 Já na aplicação indireta da técnica da constitucionalização de institutos, o seu alvo primordial reside na constância de o intérprete orientar seus esforços no sentido de alcançar a realização dos fins constitucionais a partir das próprias disposições infraconstitucionais existentes sobre o referido tópico. A legitimação e o fundamento da legislação ordinária encontra abrigo nas disposições constitucionais, sendo, então, a orientação, inspiração e o critério interpretativo para toda e qualquer regra e política pública dela decorrente. A pesquisa que se desenvolve, daqui em diante, busca compatibilizar o instituto da constitucionalização do Direito com a função estatal – ou até mesmo extrajudicial, caso as partes envolvidas numa controvérsia assim desejem - de solução de conflitos. O tema goza de relevância em face do momento de transição pelo qual atravessam os órgãos distribuidores de justiça e da necessidade de se criar políticas públicas judiciárias compatíveis com os comandos constitucionais para a matéria. Além disso, o estudo da constitucionalização é fundamental para a aferição valorativa em relação aos direcionamentos que devem ser atendidos por todos aqueles que manejam e conduzem a resolução de contendas, submetidas ou não ao Poder Judiciário. No que diz respeito à justa composição dos conflitos, assim como em relação a qualquer ramo do Direito, a Constituição Federal de 1988 dispõe de uma mensagem específica: o modelo deve ser pautado na busca pela pacificação das relações harmonicamente desequilibradas e não para o fim do conflito de interesses em si. Urge realizar um debate que envolva a ampliação do conceito de acesso à justiça e de mecanismos efetivos capazes de solucionar os conflitos de forma serena. As mudanças necessárias para a consecução de tal objetivo abarcam compreensões sobre uma nova política e administração judiciária e suas respectivas democratizações, inovações e reformas no campo Justiça Estatal ou Comunitária, tal qual a retomada do pluralismo jurídico e as razões que fomentam a cultura de litigância na sociedade brasileira. Dentre as várias alterações estudadas no âmbito da sociologia jurídica quanto à contenciosidade (e sua redução para a atenuação deste quadro) tem sido estimulado o (res)surgimento dos Métodos Alternativos de Solução de Disputas, os quais abrangem a arbitragem, a mediação e a conciliação. A alternatividade se refere à Justiça Convencional, no sentido de que tais mecanismos demonstram-se mais céleres, consensuais e menos onerosos, ainda que existam defensores da jurisdição como via opcional 6 . 6 Importante pontuar que há a aplicabilidade de alguns desses métodos na constituição interna do processo, e.g.: os movimentos e campanhas pela conciliação carreadas pelo Conselho Nacional de Justiça. 15 Destarte, o significado a ser impresso a tais métodos não será unicamente de alternatividade, e sim de pacificação, haja vista exigirem a harmonia e a convergência de vontades das partes que integram o conflito para a real efetividade. Naturalmente, o pensamento inicial gira em torno do alívio da sobrecarga do Poder Judiciário com a quantidade de demandas. Não obstante seja deveras efetivo na solução de litígios, buscar-se-á o estudo o prisma mais de capacidade pacificadora do que o efeito acelerador das resoluções e consequente observância de celeridade e razoável duração do processo, segundo reza o art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal de 1988. Portanto, o cerne da proposta ora em baila é fazer um estudo constitucional sobre a solução pacífica dos litígios como uma das funções, não somente, da jurisdição, mas como uma manifestação do conceito de Acesso à Justiça, ou, ainda, sua ressignificação ontológica, e claro compromisso da República Federativa do Brasil, de acordo com a previsão preambular e do art. 4º, inciso VII e art. 114, §2º, do enunciado constitucional. Partindo dos pressupostos acima aclarados, esse escrito buscará tratar da solução e prevenção dos conflitos sob o olhar da constitucionalização direta e indireta, de modo a estudar um modelo de administração e política judiciária de tratamento de conflitos arrimado no texto constitucional 7 . Analisará, portanto, o fenômeno da constitucionalização do direito aplicado à solução pacífica de conflitos a partir da Constituição de 1988 no intuito de identificar os referenciais normativos que legitimam a valoração constitucional de pacificação propostos pelo Magno Texto Republicano. Visará, também, o exame do papel do Conselho Nacional de Justiça na formulação de um paradigma pacificador e os dados por ele disponibilizados no cenário da litigiosidade brasileira. Isso para se atingir um objetivo particular: a defesa de um modelo cooperativo como objeto de estímulo não apenas no âmbito da atividade jurisdicional, mas como ponto de partida para políticas judiciárias pensadas com o fito preventivo e desjudicializante. Necessárias, para que se proceda à devida compreensão do instituto em apreço, as elucidações das bases teóricas do conflito e suas repercussões nas decisões dos casos concretos. Esse será o escopo a ser atingido na primeira seção. 7 Com efeito, há de se cotejar na análise do tema proposto, seguindo a orientação de Barroso, que a proposta de constitucionalização dos mecanismos extrajudiciais de solução de conflitos em nada se confunde com a existência de normas de direito infraconstitucional na Constituição. Mesmo que, porventura, haja alguma superposição dessas matérias, o escopo do trabalho em tela pode se deixar imiscuir em tal deletéria imprecisão. BARROSO, 2009, p. 361. 16 Em seguida, abordar-se-á a cultura da litigância a partir do cenário brasileiro e as plurissemânticas interpretações sobre o que se entende por Acesso à Justiça e suas repercussões práticas no quadro da Justiça Nacional. Porém, a simples constatação de haver uma grande demanda do Judiciário para resolver as mais diversas querelas não é o ponto de partida para se afirmar constitucionalmente a suficiência dos métodos pacíficos para resolver de plano a questão, notadamente porque a difusão sem critérios desses meios representaria problemas de outras naturezas. Ademais, nem sempre é possível transigir, renunciar ou compor conflitos sem a interferência estatal, principalmente quando interesses públicos sejam objeto de discussão. Daí porque o terceiro capítulo traz como encargo o detalhamento do fenômeno da constitucionalização do direito com a respectiva compatibilização com a interpretação constitucional atinente à resolução das contendas e à identificação, especialmente o método integrativo científico-espiritual. O sistema constitucional hodierno contempla um plexo de possibilidades jurídicas que viabilizam o exercício efetivo de estratégias e instrumentos, cuja essência é impelida pela pacificação na acepção mais fiel do termo. Tal constatação deve ser fruto da aplicação da premissa de que a todos os assuntos encerrados sob o prumo constitucional devem ser utilizados um ou mais métodos de interpretação específicos da Constituição. Priorizar-se-á a técnica cujo substrato defende a sistematicidade e espiritualização da interpretação constitucional, conhecida como método integrativo ou científico-espiritual, projetado pelo alemão Rudolf Smend, em consonância com os princípios e técnicas mais modernas para a interpretação da Constituição. Posteriormente, na quarta seção, utilizar-se-á o regramento constitucional quanto à solução dos conflitos a partir da ordem jurídica de 1988, detalhando cada instituto e hipótese, bem como uma remissão à responsabilidade do Estado para com a formulação de políticas públicas pacificadoras. É com essa perspectiva que se erige a necessidade de se perquirir acerca de elementos consubstanciados dentro do sistema constitucional que proporcionem a garantia efetiva dos direitos fundamentais insertos no artigo 5º da Constituição da República no mesmo compasso da judicialização dos referidos meios pacíficos de acerto. Assim sendo, a justificativa da premência de desenvolver o presente tema reside especificamente na indispensável necessidade de alçar tais mecanismos ao patamar de manifestação dos valores constitucionais. Dito de outra maneira, a proposição mais abrangente do projeto em tela se foca em analisar o fenômeno da constitucionalização aplicado especificamente à solução pacífica de controvérsias no afã de identificar se há uma 17 mensagem constitucional específica no que tangencia a resolução das contendas, a partir do referencial normativo de 1988. Nessa senda, encara-se que tanto métodos oficiais quanto não- judiciais são postos em destaque de fortalecimento e orientados por valores propugnados pela própria Constituição Federal. Visa, ainda, tecer comentários atinentes ao papel do Estado como promotor de uma política pública direcionada para a solução [harmônica] de controvérsias. Diga-se não uma política meramente judiciária, mas de propagação dos fins constitucionais e das vantagens culturais, sociais e jurídicas de se estimular a negociação conciliatória, mediadora e arbitrada. O tema ganha relevo também na seara da aplicabilidade das normas constitucionais, haja vista a essência programática das referências Lei Maior tomadas como espelho no corrente estudo 8 . Lembre-se de que as normas constitucionais de princípio programático têm o caráter de orientação e diretriz voltados ao Estado na gestão dos interesses transindividuais e demandariam não apenas leis, mas políticas de promoção social e intervenções por parte da Administração Pública 9 . Também nessa base de raciocínio, afirma-se que a referida aplicabilidade normativa guarda conexão com a interpretação do próprio Pacto Fundamental. À medida que há consciência dos valores, do espírito constitucional acerca de determinado tema, todas as ações públicas devem ser reorientadas para o atingimento dos fins propostos pela Lei Fundamental. Daí ser imprescindível a utilização da Hermenêutica Constitucional como ferramenta necessária ao descobrimento de tais fins. Logo, feita a contextualização até aqui delineada, o presente trabalho propõe-se a discutir e oferecer respostas para determinados questionamentos, a saber: como a constitucionalização do Direito pode contribuir para a identificação dos meios adequados para solução dos conflitos? Há uma axiologia constitucional voltada aos legisladores e aos responsáveis pela elaboração de políticas públicas judiciárias, assim como aos magistrados, às partes, aos membros do Ministério Público e aos auxiliares da justiça na condução dos processos judiciais? Seriam os métodos pacíficos de solução de conflitos integrantes da densidade conceitual do direito fundamental de Acesso à Justiça? A cultura da litigância é um 8 Uma nota é necessária: o conceito de normas programáticas a ser aplicado nesse trabalho não está somente relacionado com aquelas teses que negam caráter vinculante às normas constitucionais de cunho econômico, social e cultural, mas a todo e qualquer comando de caráter dirigente dotados de vinculatividade. 9 Possuem, portanto, estreita relação com o conceito de Constituição Dirigente (Dirigierende Verfassung), utilizado em 1961 por Peter Lerche e, posteriormente, por Canotilho, em Portugal BERCOVICI, Gilberto. A Constituição Dirigente e a Constitucionalização de Tudo (ou do Nada). In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de, SARMENTO, Daniel. (org.). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 168. 18 entrave à concretização constitucional da proposta de releitura do direito fundamental de acesso à justiça? As respostas para as indagações expostas, bem como os inferimentos conclusivos feitos ao final, serão alcançados mediante a utilização do método lógico-dedutivo com o auxílio da dialeticidade específica do raciocínio jurídico, tendo como procedimento de pesquisa a consulta bibliográfica, em especial a doutrinária e a jurisprudencial, quando cabível. 19 2 AS TEORIAS DO CONFLITO: CONTRIBUIÇÕES DOUTRINÁRIAS PARA UMA SOLUÇÃO PACÍFICA DOS LITÍGIOS E PROMOÇÃO DA CULTURA DA CONSENSUALIDADE Pelo ângulo de uma teorização jusnaturalista, positivista, decisionista ou fundacional, é sabido que os indivíduos, com a cessação do modus vivendi nômade, por razões de autoproteção 10 , de desenvolvimento ou de outra natureza, reuniram-se de maneira organizatória político-institucional, ainda que rudimentar, com o fim de reconhecimento universal de sua identidade social. Eis o sumo de um longo período de teorização e mutabilidade da abstratificação política, modernamente conhecida como Estado Nacional 11 . Significativa a lição de Jorge Miranda ao pontuar que “não se justifica confundir as formas primitivas de sociedade política com as formas desenvolvidas e complexas que tardiamente surgem”12. Segundo o professor português, as sociedades pré-estatais podem ser definidas como “família patriarcal, o clã e a tribo, a gens romana, fratria grega, a gentilidade ibérica e o senhorio feudal”13. Os processos de formação estatal, ainda no escólio do mestre lusitano, vinculam-se às formas pacíficas ou às violentas, seja por movimentos internos ou de influência externa ou, ainda, por ligações com o Direito Internacional ou fora dele. Paralelamente, laços sanguíneos, migrações ou a mera evolução de grupos sociais para sociedades mais complexas foram determinantes no surgimento de um novo modelo de organização política 14 . Assim como o Direito acompanha e amolda-se às transformações históricas, entre fortalecimentos e derrocadas (como na Idade Média), a evolução das tímidas formas de Estado passou por períodos de inserção de elementos como o território, soberania (propalada inicialmente por Jean Bodin 15 ) e Poder Político 16 . Porém, apenas com o Estado 10 Cf. GRIMM, Dieter. A função protetiva do Estado. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de, SARMENTO, Daniel. (org.). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 149-165. 11 Seria leviano afirmar que o fundamento de existência de tão complexo ente, dotado de idiossincrasias, resume- se às razões acima aventadas, sobretudo porque a doutrina mais abalizada faz uma abordagem multidisciplinar nas suas explanações sobre a matéria, com toques das Ciências Sociais, da História Política, da Antropologia Cultural e da Ciência Política Comparada. Porém, adianta-se que não é objetivo ou mérito deste trabalho a dissertação acerca das peculiaridades nos distintos processos de formação estatal. 12 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2011. 13 Idem, p.4. 14 Nesse contexto, emergem distintos modelos de Estado, fundamentados em processos históricos específicos, ora marcados pela interferência do poder religioso (Estado Oriental e Grego), ora pelo político e jurídico (tipologia romana). 15 PAUPÉRIO, Machado. O conceito polémico de soberania.. Rio de Janeiro: 1958, p.65. 16 Nesse ínterim, Miranda faz menção ao Estado Moderno ou Europeu, Estamental (Standenstaat), Absoluto, de Polícia e, por fim, Estado Constitucional, representativo ou de Direito. MIRANDA, 2011, op. cit, p.17-31. 20 Constitucional, Representativo ou de Direito há oficialmente a institucionalização jurídica do Poder Político, de modo que, aliado a outros fatores, têm-se a gênese do que se conhece atualmente como Estado Nacional, seja na sua forma federativa ou unitária. Portanto, a noviça espécie de organização estatal foi concebida com origem na atribuição de poder ao soberano ou mediante a pulverização de forças entre tipologias distintas de representatividade, mas com sua fonte de estruturação criada no lastro da positivação de regras vigentes no seio dos grupos dominantes e juridicamente denominada de Constituição. Desde as antigas civilizações, tem-se que as normas de arranjamento político, consuetudinárias ou dogmáticas, já apontavam para o surgimento da ideia de um documento normativo básico regulador das relações humanas e dessas para com instituições as formais ou não de governança, no período pré-estatais ou nas morfologias primárias de Poder Estatal. As primeiras manifestações constitucionais decorreram, por conseguinte, da imprescindibilidade de institucionalização do ente estatal, não se relevando a limitação de poder ou a concretização de direitos fundamentais, isto é, o advento da Constituição é anterior ao fenômeno constitucionalista. Atribui-se a tal faceta da Carta Política a nomenclatura Constituição Institucional 17 . O Direito não está divorciado de outras ciências sociais. A Constituição enquanto reprodução das ideologias prevalecentes conecta-se aos momentos políticos e de pensamento filosóficos de definição das interações sociais. Nessa esteira, tendo o entendimento do Estado como fenômeno jurídico afirma-se que, em decorrência do Liberalismo, originou-se o Estado Liberal e, por conseguinte, as Constituições Liberais; nas teorias socialistas de Karl Marx e Engels, inspirou-se o Estado Socialista e a Norma Normarum Soviética de 1918, dentre outros casos. Já a moderna concepção (Estado Democrático de Direito) 18 , resultado das transformações ocorridas desde o século XVI até o final do século XIX, está vinculada inegavelmente aos princípios e aos valores esposados pela Revolução Francesa de 1789: limitação do Poder Estatal frente aos direitos individuais e supremacia da lei (Rechtsstaat). Caracteriza-se, essencialmente, pelo fortalecimento da segurança jurídica proporcionado pelas Constituições Escritas, fato esse que serviu como substrato ao posterior movimento 17 Ibidem, p. 13. 18 Alguns doutrinadores têm preferido utilizar a locução Estado Constitucional de Direito ou, ainda, segundo alguns, Estado Principial – ao se referir a uma construção de organização sócio-política na qual os princípios são dotados de força normativa suficiente para orientar o próprio destino das relações jurídico-constitucionais. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2010. 25.ed. p. 293. 21 constitucionalista, cristalizado com a Constituição Norte-Americana de 1787 e a Francesa de 1791 19 . O constitucionalismo, visto como acepção ampla implica a existência de um documento constitucional que limita o superpoder estatal, já a sua ótica estrita significa uma constituição específica - leia-se escrita 20 . A formação dos momentos constitucionais traduz distintos cortes históricos com enfoque na legitimidade do poder e nem sempre implicou a instituição (por outorga ou promulgação) de uma Constituição formal. Entretanto, foi a partir do marco da teorização acerca de um Poder antecessor à Constituição e que representasse a vontade do povo, sendo capaz de instituir normas que aglutinassem valores e aspirações históricas - o Poder Constituinte Originário 2122 – que se fincou o ponto de partida das Constituições dos Estados Nacionais. Tem-se, portanto, que “poder essencialmente soberano, o poder constituinte, ao teorizar-se, marca com toda expressão e força a metamorfose do poder, que por ele alcança a máxima institucionalização ou despersonalização”23. O mais conhecido jusfilósofo que se debruçou sobre a matéria foi o Abade francês Sieyès – capitão da Teoria Racional Ideal - confeccionador da fundamentação acerca do Poder Constituinte segundo as premissas de liberdade, da nação como ente de direito natural. Isso sob a instrumentalização do sistema de representação-imputação necessário como regra procedimental para o exercício daquele e estabelecedor da Constituição 24 . 19 Da mesma maneira que se fez referência à complexidade de teorizações acerca do surgimento do Estado, poder-se-ia aplicar o mesmo pensamento às Constituições, notadamente em razão das diversas correntes doutrinárias atinentes à natureza e às funções constitucionais. Destacam-se as concepções jusnaturalistas, positivistas (Hans Kelsen, Laband, Jellinek e Carré de Malberg), historicistas (Burke, de Maistre, Gierke), sociológicas (Lassalle, Sismondi), marxistas, institucionalistas (Hariou, Santi Romano, Burdeau, Mortati), decisionista (Schmitt), axiológica (Mauns, Bachof) e estruturalista (Spagna Musso e José Afonso da Silva). MIRANDA, 2011, p.189. 20 COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo) constitucionalismo: un análisis metateórico. In CARBONELL, Miguel (Org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2005. p. 76-77. 21 Digna de comentário é a observação feita por Luís Roberto Barroso ao se referir sobre o constitucionalismo e a democracia. Para o autor, em que pese o referido fenômeno pressupor a existência de uma constituição, tal associação não é necessariamente válida, posto que: “Não basta uma ordem jurídica qualquer. É preciso que ela seja dotada de determinados atributos e que tenha legitimidade, adesão voluntária e espontânea de seus destinatários”. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. p.5. 22 Jorge Miranda, em comentário sobre o poder constituinte material e poder constituinte formal compreende o primeiro como força latente numa comunidade política capaz de emergir e revelar-se a qualquer momento. Daí, dizer-se que é originário, pois, segundo o autor, demonstra-se apenas em tempos de “viragem histórica”. A concretização desse poder primário ocorre com a decretação formal de uma Constituição. Ressalva o mestre ibérico, porém, que “É raro a Constituição formal surgir imediatamente, conexa com a Constituição material. Só assim tem sucedido em Constituições outorgadas pelo monarca (como as Constituições brasileira de 1824 e portuguesa de 1826) ou em situações de total concentração de poder, seja um Presidente que faz golpe de Estado (o Brasil em 1937), seja como movimento revolucionário (Moçambique e Angola em 1975)”. MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. p. 222-223. 23 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2010. 25.ed. p.143 24 SANTOS, Aricê Moacyr Amaral. O Poder Constituinte (a natureza e titularidade do Poder Constituinte Originário). São Paulo: Sugestões Literárias, 1980. p.23. 22 Há tranquila certeza de que o Poder Constituinte, ao menos do ponto de vista do contrato social, representa a vontade predominante dos nacionais e tem legitimidade para instituir uma nova ordem jurídica, sem se prender a limites formais ou, ainda, a valores próprios de uma ordem vigente anterior. Diz-se até tratar-se de um poder extrajurídico, cuja titularidade pertence ao Povo, mas é exercido por representantes especiais designados para tanto, conforme previsão do parágrafo único do art. 1º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 25 . Revela-se como pertinente destacar dois fenômenos observados pelo Poder Constituinte: a instituição de órgãos para a execução das atividades públicas e a construção de normas que demonstrem quais relações são tidas como essenciais para um povo num período específico a ponto de serem constitucionalizadas. Cabe também a ele a organização da divisão política e designação aos órgãos do Estado para que haja a prestação dos serviços públicos e desempenho adequado de suas funções. Com supedâneo na Doutrina da Tripartição dos Poderes e temperada pelo Sistema Norte-Americano de Freios e Contrapesos (Checks and Balances), a Assembleia Nacional Constituinte de 1988 dividiu as funções do Estado Brasileiro em legislativa, executiva e judiciária. Interessa, por ora, a função jurisdicional, na medida em que o Poder Judiciário, nos termos do art. 5º, XXXV, da CFRFB/88, é o órgão responsável por apreciar as demandas que lhe são submetidas, não podendo a lei excluir de sua apreciação lesão ou ameaça a direito. Configura-se, in casu, o Direito Fundamental do Acesso à Justiça, garantido institucionalmente pela previsão de instâncias judiciárias especializadas e mediante a criação de mecanismos normativos materiais e instrumentais viabilizadores dos pleitos 26 . O homem é um indivíduo caracterizado pela sua vocação para a socialidade e singularidade de formação e comportamento. Em razão disso, é natural que as relações intersubjetivas e até mesmo intergrupais sejam marcadas por divergências de ordens diversas (emocionais, sociais, políticas, ideológicas, familiares, profissionais), as quais podem ser definidas como a gênese de um dos fenômenos mais comuns e recorrentes de qualquer sociedade: o conflito. 25 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. 26 Para tanto, foram criados órgãos, competências e agentes públicos previstos nos art.s 92 a 126 da Lei Fundamental de 1988. 23 O papel primeiro do Judiciário é a composição dos conflitos de interesses com a devida aplicação da Constituição e das normas em geral vigentes no ordenamento jurídico brasileiro. Num segundo viés, a função judicial ocupa-se do controle de constitucionalidade das leis, exercido no caso concreto de maneira difusa ou abstrata com competência originária e concentrada do Supremo Tribunal Federal. Enfocar-se-á, primariamente, o aspecto compositivo, com abordagem do direito fundamental de acesso à justiça. Justifica-se o direcionamento pelo plexo de possibilidades que o referido direito e suas implicações práticas podem ocasionar nas diversas formas de solução de controvérsias e nas repercussões concretas no cotidiano daqueles envolvidos num conflito de interesses, qualificado por uma pretensão resistida, ou, também, em sede extrajudicial. Nos termos propostos nas ponderações iniciais, foi pontuado que o objetivo do estudo finca-se na resolução dos conflitos mediante a instrumentação de uma técnica de pacificação em todos os procedimentos, sejam eles judiciais ou não. Porém, uma proposta responsável de manejo resolutivo das divergências humanas não poderia olvidar o estudo, ainda que sintético, do instituto principal ora em enfoque, de modo a trazer à baila fundamentos científicos para a compreensão exata do seu tratamento pela Ciência Jurídica. O Direito cuida de algumas formas de resolução, notadamente com maior ênfase à Jurisdição, mas urge que se desperte para um novo tratamento da matéria, mormente pelo novo grau de importância conferido pelos órgãos promotores de políticas judiciárias aos vetores integrantes do conceito de conflito. Isto porque tanto o magistrado, o mediador, o árbitro e até mesmo as partes, ao conhecerem os suportes teóricos do nascimento e da exteriorização dos conflitos, passam a ser qualificados como sujeitos com maior substrato e técnica das problemáticas que lhes são apresentadas. Portanto, o atual tópico capitular colima tracejar alguns contornos e definições referentes ao conflito e planos das teorias que pretendem sobre ele se debruçar. A confecção destes parâmetros viabilizará uma contextualização sociológica, principalmente para o afastamento do campo de estudo de quaisquer interferências meramente empírica, deveras presente nas discussões travadas sobre o assunto. 2.1 O CONFLITO Antes de realizar incursões conceituais, é imperioso fazer alguns esclarecimentos necessários. 24 Em primeiro lugar, não é função típica da Ciência do Direito debruçar-se sobre o estudo do conflito. Dado ser um fenômeno constatável nas relações humanas desde que se noticia a vida em sociedade, as Ciências Sociais, a Psicologia, a Ciência da Administração, a História, a Etnografia, a Estatística, a Economia e até a Matemática têm buscado sistematizar uma teorização lógica sobre o conflito e justificar sua gênese e manifestação. Logo, há de se ter em mente que a variação de premissas e abordagens é tão complexa quanto a própria sistematização teórica e enquadramento metodológico das correntes confeccionadas. A missão daqueles que militam na seara jurídica, em tese, é de compor as controvérsias expostas. O Direito como ciência não tem por objeto estrito o estudo e averiguação das razões motivadoras da litigância típica de suas rotinas. Para tanto, utiliza-se auxiliarmente da Sociologia do Direito e ciências afins. E assim o faz porque se não o fizer agirá com precária qualidade nas suas decisões e ignorará, como por muito tempo o fez, a necessidade de pôr em prática uma política pública de pacificação dos conflitos. A segunda observação e, talvez, a mais importante é que não se pretende aqui criar uma ideia de possibilidade de desaparecimento ou solução absoluta dos conflitos ou negar- lhes sua função social. Da mesma forma, é por demais utópico cogitar uma sociedade de mera cooperação, desprovida de qualquer conflito. Tentar assumir tal encargo resultaria num descrédito acadêmico sem precedentes e seria uma tentativa vã de negar a realidade de qualquer sociedade e retirar-lhes o direito de evoluir, refletir, adaptar-se às novas realidades e buscar soluções para situações não previstas anteriormente 27 . O conflito não deve ser encarado como a demonização de pessoas (físicas ou jurídicas) ou passível de ser sempre evitado. Afinal, cada um é dotado de características próprias que, em certo momento, são capazes de colidir com interesses, pretensões e direitos do outro, tempo em que surge uma divergência capaz de polarizar uma relação anteriormente estabilizada. Com efeito, ele é fruto de interações sociais das diversas categorias, não sendo, necessariamente, classificado sob uma visão maniqueísta de bom ou mau, normal ou disfuncional. Nada mais senão um fato elementar da própria existência humana, capaz de, em certas circunstâncias, transformar-se numa situação competitiva, de aflição física ou psicológica, cujo resultado pode chegar à destruição do oponente. Nesse viés, pode-se afirmar e advogar por uma dinamicidade negativa de elevação máxima do conflito 28 . 27 DEWEY, John. Human nature and Conduct. Carbondale: Southern Illinois UP, 1988. p. 207. 28 MOORE, Christopher W. O Processo de Mediação: Estratégias Práticas para a Resolução de Conflitos. Trad. Magda França Lopes. 2.ed. Porto Alegre: Artmed, 1998. p.5. 25 Veja-se que o dissenso em si não deve ser tido como um marcador desejável ou repudiável, muito embora as culturas ocidentais tenham perspectivas expressamente negativas acerca de sua existência ou funcionalidade. Ele simplesmente existe como a concretização das diversas fases e facetas de que dispõe a humanidade e aponta como mais um objeto da cultura de determinado povo. A influência midiática, as desigualdades sociais, a luta pelo poder, a necessidade de êxito econômico inconsequente, as deficiências comunicativas entre os atores que o integram, os valores humanos como direitos legítimos, as expectativas insatisfeitas e a escassez de bens da vida para utilização por todos são manifestações hialinas da sociabilidade do homem. A rotulação maniqueísta e meritória do conflito tem a mesma frivolidade que saber o gênero dos anjos e não tem cabimento no presente estudo. 2.1.1. Conceito A primeira noção que se deve ter sobre as interações sociais existentes em qualquer povo pode se suceder por intermédio de duas formas básicas: a cooperação e o conflito. Aquela resulta de modelos ideais de interatividade movidos essencialmente pela não resistência aos interesses ou direitos de determinadas pessoas. Traduz-se, em regra, no adimplemento espontâneo das obrigações e na compreensão exata da legitimidade do outro para exercer seus direitos e atuar sobre os bens da vida a ele correlacionados. O conflito é a negação da cooperação. Conceituá-lo é tarefa hercúlea. Demanda cuidado, responsabilidade e destreza, pois segundo Norberto Bobbio “qualquer grupo social, qualquer sociedade histórica pode ser definida em qualquer momento de acordo com as formas de Conflito e de cooperação entre os diversos atores que nela surgem”29. Maurício Godinho Delgado leciona que o processo de definição de um fenômeno envolve dois elementos fundamentais: a declaração da estrutura essencial com seus respectivos componentes e o vínculo que os une 30 . Dado o caráter polissêmico transdisciplinar do conceito de conflito, para que seja atingido o escopo de sua definição, considerar-se-ão os distintos enfoques. Ainda que grande parte das definições tome por base o elemento da conduta como ponto de partida, é possível vê-lo sob um prisma linguístico, jurídico, sociológico, cultural e 29 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. v.1. p.225. 30 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 10.ed. São Paulo: LTr, 2011. p.49. 26 psicológico ou comportamental. Nesse contexto, o conhecimento das teorias do conflito é indispensável para o entendimento das respectivas definições. Partindo-se da literalidade do termo, com origem na locução latina conflictu, e constata-se que engloba múltiplas definições, por vezes até distantes, as quais poderiam ser resumidas como dissenso, contraposição de ideias. Embora a definição meramente linguística não seja de todo técnica e aplicável à presente pesquisa, dela já é possível extrair o que se considera o primeiro elemento do conflito: a oposição. É essência do instituto a divergência de opiniões e pleitos que, necessariamente, numa primeira leitura são incompatíveis. Contudo, dada a amplitude dos estudos dispensados ao tema, é inegável que a simples discordância não expressa toda a densidade gnoseológica que o conflito requer. Do ponto de vista jurídico, utilizam-se como sinônimos as designações conflito, controvérsia, contenda, em regra, aliadas ao interesse, sendo que esse envolve necessariamente uma insatisfação que, por seu turno, gera uma tensão. Compreendem-se os conflitos de interesses a partir de ideias e desejos contrapostos cujo objeto é um bem da vida, seja porque o indivíduo que poderia satisfazer a pretensão não o faz ou porque o próprio Direito veda a satisfação voluntária31. Posto o processo ser o meio hábil para instrumentalizar um direito material objeto de litígio, coube à Teoria Geral do Processo encarregar-se de delimitar os conceitos tangentes de conflito aplicáveis ao Direito Processual. Constata-se, nesse passo, três institutos diferentes que possuem afinidade com as controvérsias: a insatisfação, a pretensão e a lide. A insatisfação tem uma natureza mais espiritual, dado que surge no interior do indivíduo que é contrariado no(s) seu(s) interesse(s). Trata-se de sentimento latente que pode ser mantido agasalhado apenas no âmbito das emoções do homem e não prosperar, de forma que o insatisfeito nem mesmo demonstra sua contrariedade ou evolui para a pretensão. Esta reflete a insatisfação materializada, ou melhor, a intenção externada de satisfação de um interesse. No comentário de Francesco Carnelutti, a pretensão “é um ato não um poder; é algo que alguém faz, não que alguém tem; uma manifestação, não uma superioridade de tal vontade”32. Por fim, há a resistência, cuja manifestação opera-se pela exteriorização da pretensão do opositor, a qual tem como fim limitar ou eliminar a pretensão de seu adversário. Do extrato da conjugação dos conceitos de conflito, interesse, insatisfação, pretensão e resistência nasce a denominada lide ou litígio, tida como “um conflito (intersubjetivo) de 31 DINARMARCO, CINTRA, GRINOVER, 2011, p. 26. 32 CARNELUTTI, Francesco. Instituições do processo civil. Vol. I. Tradução de Adrián Sotero de Witt Batista. Campinas: Servanda, 1999. p. 80. 27 interesses qualificado por uma pretensão resistida 33”. Daí tem-se que a mera insatisfação não é passível de solução pelo Estado-Juiz porque ele não é dotada de externalidade e, consequentemente, não tornou-se uma pretensão resistida 34 . Por conseguinte, para fins jurídicos, o conflito não é propriamente o que interessa ao Direito tradicional, mas a lide e suas reverberações no Direito Processual. O conflito é integrante do conceito de lide e tem natureza extraprocessual, enquanto a lide pode ter natureza tanto extra como endoprocessual. Ainda que formais e logicamente erigidos, os conceitos clássicos da Teoria Geral do Processo são insuficientes para a devida compreensão da cultura da judicialização e das projeções pacificadoras dos conflitos (e, consequentemente, das lides). Justifica-se, então, a conceituação do conflito com base nas teorias a respeito do tema e, para tanto, abordar-se-ão, no item a seguir, as devidas categorizações, tomando como referência a evolução histórica conceitual das contendas. 2.2 AS PERSPECTIVAS SOCIOLÓGICAS CLÁSSICAS DO CONFLITO A conflitologia enquadra estudos de várias áreas do conhecimento e tem se dedicado ao estudo dos procedimentos preventivos e resolutivos dos conflitos, mas não constitui ramo autônomo de conhecimento. Nasceu na década de 1950 e 1960 e se expandiu, na década seguinte, por intermédio de Mary Parker Follet, Kenneth Building, John Burton, Hebert Kelman, Roger Fischer, William Ury, William Zartman, Adam Curle, Elise Building, dentre outros, e é circundada por várias técnicas de estudo para além de processos de mediação ou arbitragem 35 . Envolve técnicas específicas, desde a Antropologia até a Medicina, que visam lidar de variadas formas com os problemas que lhe são submetidos sem se prender a premissas unidirecionadas, mas abeberando-se das possibilidades trans e multidisciplinares, a depender dos sujeitos e do local onde o conflito se manifesta. Durante grande parte da história da humanidade, a presença de entraves em determinado grupo social era considerada como verdadeira turbação de uma ordem quase 33 Idem, p. 78. 34 Deve-se atentar para uma distinção relevante: lide não é sinônimo de processo. Ela é anterior a esse e condição indispensável para sua formação. 35Eduard Vinyamata cita o seguinte exemplo: “Nos Estados Unidos, recentemente, detectou-se que os delitos e os conflitos violentos, em determinadas cidades, ocorriam entre as 10 horas da noite e as duas da madrugada. A razão mais próxima pareceu ser a falta de atividade e compromisso de uma população jovem com dificuldades para abrir caminho na vida, bem como carente de estímulos sociais. A solução não teve nada a ver com um ato de mediação. Formou-se a Liga da Meia-noite, quer dizer, partidas de basquete em que competiam equipes de jovens dos bairros onde se produzia o maior número de delitos. A partir de então, os delitos descresceram em mais de 60%”. VINYAMATA, Eduard. Aprender a partir do conflito: conflitologia e educação. Tradução de Ernani Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2005, p.29. 28 sacrossanta e que não podia ser perturbada, sendo a disputa entendida como uma patologia social ou uma manifestação dela 36 . Deveria, dessarte, ser banido a qualquer custo, sob pena de se permitir que a sociedade caminhasse para sua própria destruição. Objetivando uniformizar e diferenciar alguns elementos acerca dos conflitos, vários cientistas sociais, tanto no campo da Antropologia, da Sociologia e até mesmo da Ciência Política (que se dedicou primariamente aos conflitos internacionais) envidaram esforços acadêmicos numa tentativa de categorização conceitual, concluindo por seu estudo a partir de sua dimensão, intensidade e objetivos 37 . A dimensão refere-se à quantidade de atores participantes no processo conflituoso em relação ao total da categoria 38 , enquanto a intensidade significa a disponibilidade que os sujeitos possuem de negociar ou de manter inarredáveis suas pretensões 39 . É relevante observar que, sobretudo no campo da Sociologia, a mutação conceitual dos mais diversos teóricos das Ciências Sociais tomou como divisor de águas e a negativação do conflito em determinado grupo social. Pode-se apontar na formação das teorias clássicas sobre os conflitos três períodos distintos de Sociologia Conflitiva e dentro deles fazer alusão a várias Escolas e teorias. O primeiro momento, caracterizado pelas teorizações de Thomas Hobbes na obra O Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de uma Comunidade Eclesiástica e Civil (1651) propugna um modelo de sociedade contratual, oposta à natural, que evitaria a destruição absoluta do homem. Segundo o teórico e filósofo inglês, a ausência de uma figura protecionista – naquela época o Soberano – permitiria que, com base nas tensões, competições e desejos, os homens entrassem num estado de guerra entre si, que findaria na eliminação societária. O conflito, nesse contexto, deveria ser evitado, pois, latente ao estado natural do homem, seria a semente para o fim do seu próprio a(u)tor. A ordem (leia-se instituição de um Poder Exógeno), portanto, é o elemento preventivo do caos. Na mesma trilha, Augusto Comte, em ideia bem próxima a de Hobbes, defende a eliminação das ideias opostas como profilaxia à desordem social. No sistema Comtiano, 36 OLIVEIRA, Lauro Ericksen Cavalcanti. A teoria geral dos conflitos e a sua compreensão como um fenômeno sócio-jurídico: os planos objetivo, comportamental e anímico dos conflitos. Revista da Escola Superior da Magistratura Trabalhista da Paraíba. Ano IV – Número 4. João Pessoa: Outubro de 2011, p.145 37 A visão de determinado conflito tendo como critério o objetivo deve necessariamente levar em conta um estudo minucioso acerca das sociedades nas quais eles se manifestam. Porém, embora BOBBIO et al classifiquem como insuficientes, os objetivos quase sempre dizem respeito às mudanças desejadas de e no sistema sociaL que abriga o conflito. 38 Bobbio, Matteuci e Pasquino mencionam uma greve da qual participam todos os trabalhadores de uma empresa ou apenas parte deles. BOBBIO, MATTEUCI e PASQUINO, 1998, p.236. 39 Alerte-se que a violência não é um indicador válido para a aferição do grau de envolvimento. Ela assinala a inexistência, a inadequação, a ruptura de normas aceitas por ambas as partes e de regras do jogo. 29 prestigia-se a reforma intelecto-moral do homem a fim de se restabelecer uma (re)organização societária, evitando os pensamentos incompatíveis e competições deles decorrentes 40 . Um modelo societário nesses moldes só seria viabilizado pelo progressismo e cientificismo, apartado de qualquer influência teológica ou metafísica. O segundo momento encara o conflito como uma anormalidade ou patologia, na medida que a ausência de harmonia e coesão atenta contra o consenso moral existente no seio social, afetando a estabilidade do sistema. Trata-se da corrente funcionalista, também conhecida como estrutural-funcionalista 41 . Ela parte do pressuposto de que as estruturas sociais são interdependentes e tem arrimo em valores tidos como compartilhados e comuns a todos os membros. O conflito deve ser evitado em razão de sua natureza estranha à coesão social e, em regra, é externo à própria sociedade, devendo ser eliminado, ainda que legitimadas a dominação e a exploração, para a manutenção do status quo de pacificação. O funcionalismo percebe o conflito como uma disfunção social e considera a divisão social do trabalho como fator essencial para a solidariedade da parte para com o todo. Todavia, os postulados funcionalistas pecam pela tentativa de explicar as instituições sociais – incluindo o conflito - pelos seus efeitos (ignorando as causas). Em outras palavras, o conflito representa uma alteração da normalidade do funcionamento de certo sistema social ou de parte dele. Dado o tratamento patológico conferido ao conflito por essa vertente, é impossível compreendê-lo em si, pois o viés é dado ao consenso e não à “perturbação”. Outra corrente busca, em contraposição aos funcionalistas, de fato, dispensar estudos aos conflitos e às suas relações com os grupos sociais de forma mais apurada. Conhecidas como teorias do conflito social 42 , desdobram-se em diversas subcategorias, mas acertam no denominador comum de que não é o consenso social o mantenedor da coesão e das estruturas sociais. Ao contrário. Deve-se à conflitividade as devidas evoluções, dinâmicas e estabilidades necessárias à vida social, focalizando em bases cujo espelho reside no entendimento dos grupos e suas controvérsias tendo suas contradições como referência, as quais são impossíveis de serem eliminadas no âmbito das sociedades históricas e são 40 SILVA, Marcos José Diniz. O conflito social e suas mutações na teoria sociológica. Revista Eletrônica Qualit@s. Campina Grande, v.1. n.2. 2011, p.5. 41 Destacam-se como ícones funcionalistas Augusto Comte, Herbet Spencer, Vilfredo Pareto, Èmile Durkheim, e Talcott Parsons e Robert Merton. Èmile Durkheim introduziu o conceito de coesão social, a partir da solidariedade mecânica, sendo o conflito uma ruptura dessa normalidade. A normatização da coesão seria o mecanismo adequado para a retomada da paz. 42 Karl Marx, Georges Sorel, John Stuart Mill, Georg Simmel, Ralf Dahrendorf, Alain Touraine e Lewis Coser são os expoentes da teoria do conflito. 30 [re]produzidas a todo o tempo 43 . Nessa perspectiva, os teóricos do conflito, tanto no ângulo Marxista 44 quanto no de John Stuart Mill asseveram que a pretensa normalidade nunca foi regra em nenhuma sociedade, legitimando a célebre frase do general chinês Sun Tzu: “o principal objetivo da guerra é a paz”. Os postulados básicos das teorias do conflito fundamentam-se na negação da desigualdade como eixo coesivo. Segundo seus doutrinadores, os grupos mais oprimidos tentarão eliminar a desigualdade (em regra por intermédio do conflito) na tentativa de redução de privilégios de grupos dominantes. Imperioso esclarecer que mesmo entre os adeptos da teoria ao norte citada há aqueles com uma análise de natureza mais intencionalista, a exemplo de Marx Weber e Georg Simmel. O primeiro o vê como fruto de interação social, notadamente na disputa por bens em regime de escassez, e no ato de se (tentar) impor uma vontade específica em contraposição ao desejo do outro 45 . Simmel, por seu turno, influenciado pelas pesquisas de Immanuel Kant e atuante nos estudos microssociológicos, na obra Soziologie, apresentou o conceito de Vergesellschaftung, traduzido como Sociação, segundo o qual o conflito (ao lado da determinação quantitativa do grupo, da dominação e subordinação, pobreza e individualidade) é resultado das interações sociais, possuindo na antagonia de comportamentos e sentimentos sua razão de ser e funcionando como mola propulsora do progresso. Porém, o pensamento de Simmel acerca do Sreit (termo utilizado na obre referida e traduzido como luta, conflito) é muito mais profundo do que se concebe numa leitura superficial. O professor alemão encerra seu conceito de conflito como promotor de formas sociais, sendo virtuoso dado que permite que as partes nele envolvidas sejam postas num mesmo patamar de igualdade. Produz uma tensão dos contrastes, cadencia novas situações e arranjos interacionais, além da sua riqueza de visões e razões psicológicas 46 . A perspectiva ora apresentada destaca os conflitos como detentores de importância social, com o poder de inserir as partes em controvérsia num plano situacional horizontal, nivelando-as e permitindo a superação do dissenso que opera a separação entre os litigantes. Aduza-se também outra 43 Cf. DAHRENDORF, Ralf. As classes e seus conflitos na sociedade industrial. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1982. 44 O olhar Marxista, que enfatiza a luta de classes como elemento central do conflito, de maneira que se superada a divisão entre classes (por intermédio da luta, isto é, conflito) nenhum outro conflito subsistirá. Cf. MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. 45 WEBER, Max. Economia e Sociedade. Tradução Régis Barbosa; Karen Elsabete Barbosa. 3ª edição, Brasília: Editora UnB, v.1, 1994, p.23. 46 SIMMEL elenca diversas referências psicossociológicas como também integrantes dos conflitos, tais como o amor, o ódio, o desejo, a aversão, o egotismo, o sentimento mútuo de estranheza, organizadas sob uma “matriz formal de tensões”. SIMMEL, Georg. Sociologia. Organização de Evaristo de Moraes Filho. São Paulo : Ática, 1983, p.123. 31 característica positiva da querela como a capaz de “superar os hiatos e os limites socialmente estabelecidos pelos intervalos dicotomizados, ou mesmo, as desigualdades sociais produzidas e estruturadas pelos resultados dos entrelaçamentos ocorridos na sociedade”47.O encerramento de um ângulo negativo das lutas decorre, em certa medida, de uma visão construída de mundo que ignora a diferença como componente dos processos civilizatórios e moldador, mantenedor ou aniquilador das estruturas sociais 48 . Compreenda-se aqui a relevância das premissas de Simmel para a discussão em baila no intuito de se desmistificar ou se eliminar de uma vez por todas que uma projeção de pacificação de conflitos irredutivelmente implique o entendimento de que esses sejam desnecessários aos grupos sociais. Essencialmente o oposto: o conflito é um fenômeno cultural. Por interferência dele nasce a possibilidade de inserção dos personagens no mesmo plano de discussão e estar ciente de que dele não é possível fugir, especialmente por funcionar indiretamente como alavanca social. Portanto, quem está na condição de mediador, árbitro, magistrado, promotor de política pública não pode ter a presunção de agir como se o litígio que diante de si se apresenta fosse uma mutação cancerígena social. Deve ter como primeira consideração que ali se evidencia o fruto de uma interação humana que, em algum nível, significará uma mudança num determinado grupo de pessoas ou num indivíduo específico. A expectativa (e aqui se vai para além das raias sociológicas e se tangencia os meandros jurídicos), no entanto, é que esse conflito seja pacificado e que, com isso, haja um estímulo a uma evolução social a ser mensurada em cada caso. À guisa de exemplo, tome-se como situação hipotética o caso de um magistrado que esteja numa audiência judicial e, no momento apropriado para a conciliação, munido dos conceitos ora e por vir apresentados saberá que a condução do litígio baseada no suporte teórico de sua compreensão o habilitará a não apenas encerrar a lide, mas também o conflito 49 . 47 ALCÂNTARA JUNIOR, José Oliveira. Georg Simmel e o conflito social. Caderno Pós Ciências Sociais. V.2..n.3.. jan;jul. São Luis, 2005, p.4. 48 Idem, p.8. 49 Pertinente o ensino de François Ost sobre os três modelos de juiz: Júpiter, Hércules e Hermes. O primeiro, alheio às realidades sociais das partes, de orientação mais normativista e reflexo de um modelo de centralização de poder busca sempre em suas decisões assegurar a logicidade do sistema jurídico que opera, tendo a igualdade formal como um norte no tratamento intersubjetivo dos litigantes. O magistrado Hércules, inspirado pelo pensamento do realismo e da jurisprudência sociológica, privilegia mais o fato do que a norma, de modo que essa deve ser adequada àquele. Conhecido por ser um verdadeiro engenheiro social opõe-se à tipologia jupeteriano por dar azo a arbitrariedades e, igualmente, ter em si depositado todo o poder de construção da decisão jurídica e da estabilidade social. O julgador Hermes, por seu turno, socorre-se da hermenêutica jurídica, argumentação e discurso jurídico para elevar os níveis de interação entre as partes da relação processual. É cônscio da necessidade de promover a cooperação e, por intermédio de um discurso racional e dialógico, integrar os sujeitos em contenda no contexto de pacificação social. Caso contrário, tem-se mera composição da lide jurídica sem a devida pacificação social. Cf. OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: Tres modelos de juez. Trad. Isabel Lifante Vidal. DOXA - Cuadernos de Filosofia, número 14, 1993, p. 169-194. 32 Trata-se de um juiz focado muito mais na gestão do conflito do que na lide em si, notadamente sua função mais proativa e informada pela consciência de que o alvo da relação processual são as partes, não o julgador, concretizando o que se pode designar de democracia processual e pluriprocessualismo 50 . Isso não implica que todos os atos do magistrado acarretem sempre uma solução autocompositiva, dado que, em determinados casos, a heterocomposição jurisdicional será inevitável, mas uma maturidade de saber tanger o conflito de tal maneira que, mesmo numa sentença, haja algum grau de pacificidade na solução do litígio. O juiz, nessa noviça perspectiva, vai além da mera uma função de prolator de sentenças. É um gestor dos conflitos com a sensibilidade de analisar as demandas e reorientá-las para processos autocompositivos ou, a depender do caso, direcioná-las para a “heterocomposição sem perda de legitimidade ou estímulo à perpetuação da litigiosidade mesmo após o trânsito em julgado da decisão”51. Aponte-se também que o referido preparo psicossociológico proporcionará o acesso às razões suprajurídicas motivadoras das partes, tal qual terá sua postura diferenciada na condução do caso, razão pela qual pode fomentar um modelo cooperativo e consensual de processo em contraposição aos tradicionais comportamentos competitivos e adversariais. O interesse em ir além da codificação e dos enunciados prescritivos dissipa a atitude negativista em relação ao conflito e resulta numa compreensão inexata dos seus limites. Por fim, a noção de um caráter psicológico (ventilado pelas teorias adequadas) como sendo contribuidor para a eclosão dos conflitos subsidia o manejo de situações adversas apresentáveis tanto nas peças judiciais como nos interrogatórios das partes e oitiva de testemunhas, razão pela qual a dedicação a estes temas pode ser decisiva no processo decisório que, como se sabe, em tempos de complexidade nas relações humanas exige um preparo suprajurídico. 50O esclarecimento feito por Spenglar ao preferir a locução “tratamento de conflitos” ao invés de “resolução”, baseado na premissa sociológica de que os conflitos sociais e suas causas não podem ser espargidos, eliminados ou elucidados pelo Judiciário e que o termo tratamento indicaria apenas uma resposta satisfativa ou medida terapêutica, não será aqui aplicado por dele se discordar. Ora, o Poder Judiciário não busca, em si, dissipar as causas que originaram o conflito, mas pôr fim a ele mesmo. Isso não implica que, em todo caso, não se possa, juridicamente, encerrar um litígio no caso concreto, especialmente se utilizadas as técnicas adequadas para que as partes saiam satisfeitas com as soluções propostas. Seria até ilógico afirmar que, mesmo após uma atuação de um juiz mediador ou conciliador, e houvesse a concordância plena dos envolvidos no conflito em encerrá-lo, mediante um processo racional de convencimento, que a disputa ainda permaneceria. Ademais, a discussão acerca de exatas terminologias que compatibilizem conceitos jurídicos e sociológicos levaria a uma persecução sem propósitos práticos, fim esse estranho ao presente escrito. Cf. SPENGLER, Fabiana Marion, SPENGLER NETO, Theobaldo. A possibilidade do tratamento de conflitos no âmbito do Judiciário por meio da Teoria dos Jogos. Revista Desenvolvimento em Questão. V.7. N.13. Jan-Jul. Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, 2009, p.63-86. 51 AZEVEDO, André Goma de. Autocomposição e processos construtivos: Uma breve análise de projetos-piloto de mediação forense e alguns de seus resultados. In:_______________ Estudos em Arbitragem, Mediação e Negociação. Vol.3. Brasília: Grupos de Pesquisa, 2004, p.137. 33 2.3 CONCEPÇÕES MODERNAS SOBRE O CONFLITO O século XX, nomeadamente a partir de sua segunda metade, trouxe consigo raciocínios mais modernos sobre as teorias do conflito. Nesse cenário, a análise leva em conta muito mais as controvérsias de ordem microssociológica ou nos quais estejam envolvidos sujeitos determináveis ou determinados em contraposição à análise mais aberta esposada pelos sociólogos clássicos. Diversas teorias e Escolas se distinguiram na condução do tema, podendo-se enquadrá-las em dois grandes grupos: o Condutismo (Behaviorismo ou Culturalismo) e a Teoria Macro (conhecida também como clássica). Os Condutistas, capitaneados por Skinner, John Watson e Jacob R. Kantor, conforme a própria nomenclatura já denuncia, detiveram-se no estudo da psicologia da conduta, isto é, na análise primária do comportamento indivíduo em sobreposição ao conflito. O objeto de estudo dessa corrente, de natureza muito mais de Psicologia Social, reside na aprendizagem por condicionamento e na influência do ambiente no qual o sujeito está inserido. Os comportamentalistas privilegiam a observação do comportamento como fator de análise do indivíduo e defendem a não consideração de elementos de ordem psicanalítica ou hereditária que façam alusão ao consciente, processos mentais ou biológicos, não porque não existam, mas em face de serem pertinentes apenas no campo da individualidade. Para eles, o conflito nada mais é do que um desdobramento do comportamento humano. O behaviorismo valoriza em suas acepções o papel do estímulo em determinada situação. O conjunto das respostas a determinado estímulo numa situação específica é chamado de comportamento. Assim, o cerne desse pensamento não está em questões de ordem propriamente psíquica, mas sim em reforços dados ao indivíduo. Nesse sentido, para uma aplicação da Teoria de Skinner, por exemplo, para que se possa compreender um conflito X desencadeado numa relação social Y, é necessário que se saibam quais os estímulos específicos dispensados aos atores A e B, de modo que diante dos mesmos estímulos se obtenha o mesmo resultado 52 . Assim, pode-se prever e evitar conflitos no futuro, tal qual perscrutar que tipos de estímulos expõem a gradação de intencionalidade dos que divergem com o fito de eleger a melhor técnica para a composição da controvérsia 5354 . 52 SKINNER, B. F. Ciência e comportamento humano. Brasília: Ed. Da Universidade de Brasília/Funbec. 1970, p.21. 53 OLIVEIRA, Lauro Ericksen Cavalcanti. A teoria geral dos conflitos e a sua compreensão como um fenômeno sócio-jurídico: os planos objetivo, comportamental e anímico dos conflitos. Revista da Escola Superior da Magistratura Trabalhista da Paraíba. Ano IV – Número 4. João Pessoa: Outubro de 2011, p.145. 54 Suponha-se uma lide entre o autor A e o réu B que tenha por objeto a discussão acerca da demarcação de um imóvel rural com 10 hectares, adquirido mediante herança do genitor de A. O réu B alega que adquiriu dois 34 Em outra direção, os autores da Teoria Macro atraem para si como centro de análise o relacionamento entre os indivíduos e as influências dele na eclosão conflituosa e sua consequente resolução, aliado aos mais diversos fatores exógenos ou endógenos do conflito, não meramente de cunho comportamental – como defendiam os condutistas. Portanto, variáveis sociais e outras que envolvam a aplicação da ideia do ator racional são estudadas pelos clássicos, envolvendo não apenas inflexões comportamentais, e sim, numa acepção mais recente, conceitos de negociação e oportunidades para a tomada de decisões. É de relevo mencionar que um dos principais fundamentos modernos para os clássicos é a Teoria dos Jogos. Com sua gênese fincada nos ramos da matemática, tendo surgido após a Primeira Guerra Mundial (1944), e concepção voltada para análises econômicas, a Teoria dos Jogos é aplicada de forma abundante no campo da Administração, da Economia, da Matemática, da Ciência Política, do Jornalismo e da Filosofia. Tem como criadores Joh Von Neumann e Oskar Morgenstern e busca subsidiar a tomada de decisões numa situação de conflito 55 . Para a referida teoria, a definição de conflito complementa a proposta por Detusch 56 (segundo o qual a chave do conflito era a incompatibilidade entre atividades) e foge às perspectivas tradicionais de abordagem, como disputa por Poder e Riqueza. Esses, tidos como recursos escassos, autorizariam a existência das disputas entre os atores sociais de forma que “quando alcançado, impede aos outros de conseguirem o resultado favorável a eles, produzindo, com isto, hostilidade”57. O conflito, nesse contexto, é entendido como “a situação na qual duas pessoas têm que desenvolver estratégias para maximizar seus ganhos, de acordo com certas regras pré-estabelecidas”. Em razão de sua importância e da contribuição teórica que oferece ao tema, o citado ensinamento será abordado adiante autonomamente. hectares do bem quando seu proprietário, ainda vivo, o vendeu mediante compra e venda sem contrato formal, mas operacionalizada mediante a posse. Sabe-se que A pertence a uma família nos moldes “tradicionais” com origem ortodoxa, religiosa e adepta da defesa da “entidade e nome familiar”. Com a deflagração do conflito e até o momento da audiência judicial de conciliação B insiste em inserir um estímulo a A no sentido de que sua família “não tem palavra”. Nos termos da teoria comportamentalista, como A está inserido num meio cujo condicionamento é de que aqueles ali presentes são influenciados a manterem uma posição defensiva em relação aos membros da família, é natural que um estímulo de agressão a esse valor repercuta negativamente e induza A a um conjunto de reações comportamentais que o façam resistir a B. Esse comportamento pode incluir a dificuldade em praticar uma postura dialógica de composição do conflito. Cabe ao magistrado identificar esse elemento e expurgá-lo, na medida do possível, objetivando remover os obstáculos para a pacificação do conflito. 55 Antes das formulações de Neumann e Morgenstern, o matemático francês Félix Édouard Justin Émile Borel, em 1921, já havia desenvolvido um estudo científico acerca do blefe aplicado ao pôquer, isto é, das suposições que um jogador realiza em relação a seu oponente e que fazem aquele decidir qual estratégia adotar. 56 DEUTSCH, Morton. The Resolution of Conflict: Constructive and Destructive Processes. New Haven and London: Yale University, 1973, p. 10. 57 LIKERT, R. LIKERT, J.G. Administração de conflitos: novas abordagens. São Paulo: MacGraw-Hill, 1980, p.8. 35 2.3.1. A Teoria dos Jogos e sua aplicabilidade como uma teoria do conflito na solução pacífica de litígios O pensamento colunar da Teoria dos Jogos foca-se em especulações de como o oponente atuará para que se trace uma estratégia num determinado jogo. Na formulação original de Neumann, a obtenção do melhor resultado por um competidor implicar a derrota de seu oponente, ou seja, um jogo de soma zero (Teorema Minimax). Essa teorização foi aperfeiçoada por John Nash, que introduziu o conceito de Equilíbrio (conhecido na literatura como o Equilíbrio de Nash), segundo o qual é possível que os jogadores em disputa obtenham ambos vitórias sem que, para tanto, haja a anulação das pretensões de um pelo outro 58 . Como isto poderia ser viável, dado que os interesses num conflito por definição são antagônicos? Com a adoção de uma prática cooperativa no jogo. A inovação de Nash deu-se com a introdução do elemento cooperativo na teoria dos jogos, sem a exclusão necessária do ganho individual (haja vista a possibilidade de se maximizar vitórias com a cooperação do adversário e com ele corroborando). A estratégia formula-se no sentido de um ganho individual e outro coletivo, isto é, fazer o melhor para si e para os outros 59 , possibilitando às partes envolvidas numa disputa poderem lucrar mutuamente (a isso se designa utilidade 60 ). Projetado para jogos não cooperativos, o Equilíbrio de Nash 61 pode ser otimizado se aplicado em jogos cooperativos. Para ilustrar essa afirmação, criou-se um problema chamado Dilema do Prisioneiro, segundo o qual numa situação hipotética dois prisioneiros (A e B), sem provas que os possam condenar, são interrogados pelas autoridades competentes e lhes são propostas algumas opções individualmente: a) se A testemunha contra B e vice-versa, aquele que testemunha é livre e o outro é condenado a 3 anos; b) se A e B aceitam o acordo e testemunham um contra o outro , ambos são condenados a dois anos; c) se ambos rejeitam o acordo, a pena é de 1 ano para cada. Almeida ilustra o problema de forma matricial 62 : 58 As proposições de Nash foram tão revolucionárias para a Teoria dos Jogos e sua aplicação, principalmente no campo das negociações que, em 1994, ao lado de Reinhard Selten e John Harsanyi recebeu o Prêmio de Nobel das Ciências Econômicas. 59 ALMEIDA, Fábio Portela Lopes de. A teoria dos jogos: uma fundamentação teórica dos métodos de resolução de disputa. In: AZEVEDO, André Gomma de (Org.). Estudos em arbitragem, mediação e negociação. Brasília:Ed. Grupos de Pesquisa, 2003. v. 2, p.179. 60 NEUMANN, John von; MOGENSTEIN, Oskar. Theory of games and economic behavior. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1953, p.15. 61 Sobre o Equilíbrio de Nash, Baird e Getner exemplificam que esse se refere ao fato de que a estratégia de cada jogador é a resposta mais adequada a do oponente e isso é verdade para todos os jogadores, pois os ganhos quando considerados amplamente são maiores do que se analisados a partir de interesses individuais. Cf. BAIRD, Douglas; GERTNER, Robert H.; e PICKER, Randal C. Game Theory and the Law. Harvard University Press, 1994. 62 ALMEIDA, 2003, p.182. 36 B rejeita o acordo B incrimina A A rejeita o acordo 1 ano; 1 ano 03 anos; livre A incrimina B Livre; 3 anos 2 anos; 2 anos Ora, sabendo-se que os prisioneiros não tiveram contato prévio e que as decisões serão simultâneas, caso cada um deles aja racionalmente 63 , para obterem o melhor resultado, deverão rejeitar o acordo com base na inferência do que o outro fará. Do ponto de vista lógico e tomando por conta que cada prisioneiro é egoísta, a incriminação do outro seria a melhor saída se o resultado de tal ato também fosse independente da ação confessional do incriminado. Embora não haja solução para o Dilema do Prisioneiro Iterato, deve-se levar em conta que uma decisão baseada meramente pelo interesse próprio pode levar os prisioneiros a receberem as penas mais altas, de modo que, num jogo não cooperativo, uma atitude cooperativa pode implicar benefícios para todos 64 . De bom alvitre ressaltar que a Teoria dos Jogos envolve uma série de conceitos e axiomas, quase sempre traduzíveis em equações e em matrizes matemáticas. Todavia, serão extraídas aqui apenas algumas definições, visto que uma análise aprofundada de tão rico estudo demandaria trabalho próprio. Além dos já apontados conceitos de racionalidade e utilidade, a Teoria dos Jogos é informada por outros seis conceitos básicos comentados por Almeida: a) Jogos de Estratégia Pura e Estratégia Mista; b) Jogos de Estratégia Dominante e Dominada; c) Jogos de Forma Extensiva e Forma Normal; d) Jogos de Soma Zero e não zero; e) Jogos de Informação Perfeita, de informação imperfeita e assimetria de informação; e) Princípio Minimax e Equilibrium de Nash. Os jogos de estratégia pura caracterizam-se pelo fato dos jogadores não formularem suas jogadas baseadas em aleatoriedade, enquanto nos de estratégia mista, em razão do conhecimento das probabilidades pelo jogador, levam em conta a álea 65 . Quanto à classificação de estratégia dominante e dominada, tem-se que é dominante quando “é a melhor escolha para um jogador, quando se leva em conta todas as escolhas possíveis do outro jogador” e dominada quando “nunca é melhor que outra disponível”66. 63 O conceito de racionalidade para Nash é relativamente simples se comparado com o da Psicologia ou da Filosofia. Para o professor americano, a simples tentativa de obter os melhores resultados numa disputa já aponta uma atitude racional. 64 O dilema prova que, quando se age unicamente por um interesse próprio, o resultado pode ser muito mais danoso do que aquele obtido a partir da ação pensada também a partir do outro. 65 ALMEIDA, p.184. 66 Ibidem. 37 Os jogos de forma normal são utilizados “para jogos de jogadas simultâneas e únicas, em que o jogador participa sem saber qual a jogada 67”, enquanto nos de forma extensiva há a possibilidade de se ter conhecimento da jogada do oponente para que se decida por uma estratégia. Nos jogos de informação perfeita, há amplo conhecimento da informação por todos os jogadores, das regras, tal qual das motivações e informações que os participantes detêm. Em caminho diverso, nos jogos de informação imperfeita, determinado jogador detém informações privilegiadas 68 . A última definição necessária diz respeito ao princípio Minimax e o Equilibrium de Nash. Em jogos que obedecem o binômio vencedor/perdedor e de informação ampla, há um ponto Minimax, segundo o qual pode-se afirmar que o jogador “nunca ganhará menos que um valor X, isto é, garante que seu mínimo máximo seja aquele valor, e o outro jogador garante que o seu ganho nunca será menor que um valor Y, ou seja, seu máximo mínimo”69. Tendo em conta o Minimax, atinge-se o Equilíbrio se cada jogador ponderar sua estratégia em relação ao outro. Do exposto até aqui vê-se, portanto, as raízes do fundamento da aplicação da Teoria dos Jogos aos métodos pacíficos de solução de conflitos. Os mecanismos mais conhecidos de solução de controvérsias são a Jurisdição, a Arbitragem, a Mediação, a Conciliação e a Negociação. Os postulados da Teoria dos Jogos podem ser utilizados em cada um dos mecanismos, pois em todos os casos há atores-jogadores, com interesses inicialmente contrapostos, isto é, os jogos prima facie são orientados pelo princípio ganhador-perdedor, podendo, entretanto, ser transformados em jogos cooperativos. De início, cabe fazer considerações acerca do processo judicial contencioso. Empiricamente, sabe-se que a intencionalidade de grande parte dos litigantes, ao provocar o Poder Judiciário, objetiva um provimento jurisdicional que ponha fim a um conflito. Aliás, um dos fins do Direito Processual Civil é a eliminação de crises “de segurança, de satisfação e, em particular, as de índole precipuamente jurídica, que levam à judicialização de conflitos em ordem à eliminação da incerteza”70. Tais convulsões acabam por criar tensões internas no tecido social. Assim, uma disputa judicial revela que o processo é, por essência, um jogo não cooperativo e de soma zero, em especial pela definição de pretensão resistida componente de 67 Ibidem, p.184-185. 68 ALMEIDA, p.187. 69 Idem.p.187. 70 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A Resolução dos Conflitos e a Função Judicial no Contemporâneo Estado de Direito. São Paulo: Revista Editora dos Tribunais, 2009, p.66. 38 seu conceito e pela expectativa de que um dos polos saia vencedor em detrimento do outro e pela estabilização da lide. Ainda nesse sentido, o financiamento quase total do processo por parte do Estado das despesas processuais, aliado ao fato de que as partes não têm como garantir resultados mínimos (pois quem, de fato e de direito, decide é terceiro – o juiz) são fatores que desmotivam as partes a utilizarem uma estratégia cooperativa. Ademais, o magistrado está jungido por um conjunto de normas que determinam o julgamento baseado no Direito posto e não nos interesses das partes, de forma que nem sempre ambos são absolutamente compatíveis. Logo, a decisão judicial necessariamente implica em perdedores e vencedores em relação a cada ponto objeto de discussão. De certa forma, há uma frustração, ao menos parcial, de um dos polos da lide em relação ao Poder Judiciário, que, se analisada amplamente, toma proporções maiores. 71 . A informação perfeita também é típica do processo judicial, pois é informado por princípios como a publicidade, o livre convencimento do juiz e o atendimento às regras previamente estabelecidas e, em tese, de conhecimento pelas partes. Além disso, a assimetria de informação é reduzida ou eliminada pelo amplo poder de direção processual conferida ao magistrado 72 . De igual forma, a Teoria dos Jogos é aplicável à Arbitragem, Mediação e Negociação com a adequação dos conceitos de cada instituto aos seus correspondentes 73 . Embora se tenha defendido até aqui a aplicabilidade do presente referencial teórico aos métodos de solução de conflitos, há de se fazer algumas ressalvas. A Teoria dos Jogos não pode ser encarada como único fundamento para a pacificação de conflitos. Isso porque o conhecimento de outras bases de cunho sociológico, psicológico e jurídico também promove e complementa o papel do julgador na gestão do conflito. Não se propõe aqui eleger uma ou 71 Deborah Rhode, em estudo acerca dos efeitos da participação do jurisdicionado na escolha/seleção dos processos de resolução de conflitos, concluiu que a percepção de justiça e o grau de satisfação foi mais intenso na proporção que tal democracia processual era mais intensa. Cf. RHODE, Deborah L., In the Interest of Justice: Reforming the Legal Profession, Nova Iorque: Oxford University Press, 2000. 72 Cf. art. 125 CPC - Art. 125. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, competindo-lhe: I-assegurar às partes igualdade de tratamento; III - prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da Justiça; art. 765, CLT - - Os Juízos e Tribunais do Trabalho terão ampla liberdade na direção do processo e velarão pelo andamento rápido das causas, podendo determinar qualquer diligência necessária ao esclarecimento delas; art. 156, CPP - A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante. 73 Para as definições correspondentes recomenda-se a leitura integral de ALMEIDA, Fábio Portela Lopes de. A teoria dos jogos: uma fundamentação teórica dos métodos de resolução de disputa. In: AZEVEDO, André Gomma de (Org.). Estudos em arbitragem, mediação e negociação. Brasília: Ed. Grupos de Pesquisa, 2003. v. 2. p.175-200. 39 outra como a correta, senão demonstrar que as tentativas de explicar a origem e os efeitos dos conflitos provém diversas, mas não excludentes. O bom julgador deve estar ciente de que cada caso concreto demonstra problemáticas distintas com partes dotadas de sentimentos, motivações, valores e conhecimento diversos. Outra observação implica a crítica feita pela doutrina à Teoria dos Jogos quando aplicada aos conflitos e reside no caráter reducionista binário por ela propalado. Motivações como altruísmo, afetividade, respeito ao outro e ideais de uma composição justa são ignorados pela lógica de Nash. Só são considerados como instrumentos para o alcance de interesses individuais (ainda que se leve em conta a decisão do outro e se persiga uma estratégia capaz de ser enquadrada no binômio ganhador-ganhador). Enquadrar todas as situações conflituosas numa equação matemática cuja constante é a satisfação individual (mesmo que indiretamente o bem comum também possa ser alcançado) demonstra-se incompatível com a complexidade de um conflito juridificado. Nem mesmo a divisão dos comportamentos entre indiferentes e comprometidos 74 - tido como um avanço em relação às premissas da Teoria dos Jogos - pode ser aplicável, principalmente por existirem casuísticas que fogem a essa regra e a conduta nem sempre ser enquadrável numa categoria pelas razões que fomentaram sua criação metodológica 75 . Isso leva ao raciocínio de que uma única teoria não é suficiente para prever condutas, comportamentos e reações das partes, especialmente porque a diversidade de elementos envolvidos num conflito transcende a capacidade de se prever o número de probabilidades de ações. O resultado prático do impasse de se ter um único modelo como satisfatório é o engessamento dos métodos de solução de controvérsias, problema recorrente nas tradicionais formas de resolução (jurisdição, in casu). Sugere-se, como alternativa, a diversificação prática 74 Costa expõe a possibilidade da existência de um agir comprometido com a satisfação do interesse do outro. Para o autor, há um comprometimento positivo e outro negativo, voltado à satisfação da parte contrária como um objetivo autônomo. Nesse cenário não há adversários, de forma que a vitória parcial de um agente, num contexto autocompositivo, não é considerada necessariamente como derrota para o outro. O comprometimento negativo, por sua vez, o qual consiste na obstinação da parte em dificultar a satisfação do outro ou mesmo provocar-lhe dor. COSTA, Alexandre Araújo. Cartografia dos métodos de solução de conflitos. In: AZEVEDO, André Gomma de (Org.). Estudos em arbitragem, mediação e negociação. Brasília: Ed. Grupos de Pesquisa, 2004. v. 3, p. 166-168. 75 Atinente ao reducionismo dual das relações humanas provocado pela crítica à Teoria dos Jogos Costa (p. 161) explica: As relações humanas, contudo, não podem ser divididas binariamente em comportamentos indiferentes e comprometidos, pois raramente alguém é abnegado o suficiente para não pensar no seu próprio bem-estar nem é individualista a ponto de não ter qualquer compromisso com os sentimentos das outras pessoas. Há vários graus de comprometimento, ou seja, as pessoas estão dispostas a abrir mão de alguns de seus interesses pessoais perante determinados interesses das partes, mas apenas até certo nível, que varia de acordo com as partes em conflito, os interesses contrapostos, os valores éticos e ideológicos envolvidos, etc. 40 dos métodos de tratamento do conflito, técnicas (pelas partes, mediador, árbitro, conciliador ou juiz) e fundamentos existentes em outras teorias 76 . Feitas as pontuações teóricas conceituais necessárias, apropriado que se trate como os conflitos têm se manifestado na sociedade brasileira, em especial nas relações judicializadas e a respectiva cultura da sentença, os desdobramentos desses fenômenos na Administração da Justiça e suas repercussões na qualidade das decisões. 76 A riqueza de entendimentos quanto à solução pacífica de conflitos é demonstrada até na existência de correntes que defendem o elemento intuitivo como relevante nos processos de composição pacífica. Cf. WARAT, Luis Alberto. Em nome do acordo: a mediação no Direito. Almedina, 1998; WARAT, Luiz Alberto. O Ofício do Mediador. Florianópolis: Habitus, 2001. 41 3 A CULTURA DA LITIGÂNCIA E O PODER JUDICIÁRIO: NOÇÕES SOBRE AS PRÁTICAS DEMANDISTAS A PARTIR DA JUSTIÇA BRASILEIRA Justificadas pela inegável existência de interesses contrapostos no tecido social e necessidade de proteção contra a própria barbaridade humana, convencionou-se a criação de normas de convivência capazes de regulamentar as relações humanas e aplicar sanções aos violadores do seu conteúdo em face de um descumprimento, qual seja o Direito 77 . Extrai-se daí, portanto, o famoso brocardo de que não há sociedade sem direito (ubi societas ibi jus). Independente das forças influenciadoras do conteúdo normativo e da nítida reprodução do modelo impositivo dos valores e interesses dos grupos dominantes em várias vertentes sociais, há consenso doutrinário quanto à missão do Direito: promover a paz social. Sendo detentor da função de ordenador dos interesses difusos, deve perseguir, ainda, a cooperação entre os indivíduos e “harmonizar as relações sociais intersubjetivas, a fim de ensejar a máxima realização dos valores humanos com o mínimo de sacrifício e desgaste”78. Todavia, a simples existência de uma ordem jurídica é insuficiente para materializar o ideal de justiça, afinal, o Direito é operado pelos homens e, se a esses não couber ação promotora dos ideais eleitos como importantes e reconhecidos pelo tecido coletivo inútil será o catálogo de normas existentes. O mecanismo de resolução desse impasse foi o surgimento evolutivo de técnicas de solução de conflitos, desde a autotutela 79 , a autocomposição 80 , a arbitragem 81 e a jurisdição 82 . Com o fortalecimento do Estado e o reconhecimento de proteções jurídicas aos seus nacionais, sucedeu-se um incremento do seu poder na disciplina das relações privadas e, por consequência, a importância da participação da jurisdição como meio de solução das divergências daí decorrentes. Ademais, com o desenvolvimento dos meios tecnológicos e a 77 Imperioso destacar que tais normas podem ser escritas ou meramente consuetudinárias. 78 DINAMARCO, Cândido Rangel ; CINTRA, Antonio Carlos de Araújo ; GRINOVER, Ada Pellegrini . Teoria geral do processo. 27. ed. São Paulo: Malheiros,, 2011, p. 25. 79“Trata-se de solução do conflito de interesses que se dá pela imposição da vontade de um deles, com o sacrifício do interesse do outro DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. V.1 10.ed. Salvador: Editora Juspodim, 2008, p.74. 80“É a forma de solução de conflito pelo consentimento espontâneo de um dos contendores em sacrificar o interesse próprio, no todo ou em parte, em desfavor do interesse alheio. Ibidem, p. 75. 81“Prática alternativa, extrajudiciária, de pacificação de conflitos de interesses envolvendo direitos patrimoniais e disponíveis, fundada no consenso [...], através da atuação de terceiro, ou de terceiros, estranhos ao conflito, mas de confiança e escolha das partes em divergência, por isso denominado árbitros [...]”. LIMA, Cláudio Vianna. A arbitragem no tempo: o tempo na arbitragem. In: GARCEZ, José Maria( org.). A arbitragem na era da globalização. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p.5. 82“É uma das funções do Estado, mediante a qual este se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar a pacificação do conflito que os envolve, com justiça”. DINARMARCO, CINTRA, GRINOVER, 2011, p. 147. 42 dinamicidade sócio-econômico-científica, constatou-se a necessidade de se ter órgãos consolidados, dotados de independência e imparcialidade com o fito de solucionar lides cada vez mais complexas. Na atualidade, a jurisdição - monopólio estatal na distribuição de justiça - tem sido praticamente o único meio utilizado pelos indivíduos na solução de suas contendas e funcionado como um poderoso instrumento de garantia e de concretização dos direitos encartados nas Constituições. Vê-se uma supervalorização dos métodos oficiais heterocompositivos, fato esse que se concretiza com o depósito de esperanças individuais e coletivas no Poder Judiciário, visto como um verdadeiro superórgão capaz de resolver todas as diferenças existentes entre os indivíduos. No descrito contexto edifica-se a crise do sistema judicial brasileiro, especialmente pela sua incapacidade de atender aos anseios dos jurisdicionados e à explosão de litigiosidade eclodida historicamente 83 . Ocorre que os instrumentos de viabilidade da jurisdição – o direito de ação e o processo – têm servido, por vezes, de vinganças personalíssimas, tornando o Poder Judiciário, além de aplicador de lei abstrata e impessoal, palco de rixas pessoais, íntimas e odiosas, quando não verdadeira loteria jurídica. Em agravo a esta realidade, o processo globalizador reclama respostas rápidas, acessíveis e, preferencialmente, não violentas daqueles responsáveis pela gestão e execução judiciárias. O quadro delineado revela que empresas, trabalhadores, consumidores e Estados interagem entre si num ritmo assaz célere, potencializando o surgimento de lides. Os tribunais encontram-se afogados em milhares de processos e esses, por sua vez, baseados em legislações processualistas truncadas e de cunho protelatório 84 . Tem-se também uma quantidade de magistrados, servidores e bens insuficientes para atender ao tratamento constitucional dado aos processos judiciais e administrativos. 83 O relatório sintético do Conselho Nacional de Justiça do ano de 2010 apontou 24.227.727 novos processos (11.536 novos processos a cada 100.000 habitantes) aliados a 59.166.724 pendentes de resolução. O mesmo relatório trouxe como dado que a taxa de congestionamento média (busca mensurar se a Justiça consegue decidir com presteza as demandas da sociedade, ou seja, se as novas demandas e os casos pendentes do período anterior são finalizadas ao longo do ano) da Justiça Federal, Estadual e do Trabalho, no mesmo, ano foi de 61%, isto é, de cada cem processos em tramitação, apenas 39 foram finalizados até o final do ano. 84 O incremento das interações humanas naturalmente promoveu a potencialidade dos litígios. Os últimos cento e cinquenta anos têm sido marcados por um acentuado intercâmbio entre os povos - regido sob os auspícios da revolução científica e tecnológica -, o que proporcionou o avanço das práticas mercantis e a expansão dos mercados consumidores. Ao mesmo tempo, os sistemas de informações, devido à massificação da mídia e da cibernética especialmente, crescem numa velocidade nunca antes experimentada. Diante de todo esse processo de dinamicidade socioeconômica e científica, é comum que as relações humanas também sejam exponencializadas, ora pela difusão mais profícua da informação e consequente esclarecimento dos direitos subjetivos de que cada cidadão ou pessoa jurídica é detentor ou, ainda, pelo incentivo à cultura da judicialidade. O resultado concreto da combinação desses fatores é um Poder Judiciário em crise e incapaz de atender satisfatoriamente as demandas que lhe são submetidas em virtude da qualidade da prestação jurisdicional, em especial quanto ao aspecto duração do processo e grau de satisfação das partes com a sentença proferida. 43 Abstraídas questões de ordem estrutural e técnica, bem como procedendo a uma análise inicial, é possível se afirmar que, embora a jurisdição tenha como alvo magno a pacificação social e a solução do caso concreto submetido ao Estado-juiz, há uma distorção de valores no manejo dos conflitos tanto por parte dos sujeitos ativos e passivos da relação processual quanto dos próprios membros do aparato estatal. Insta relembrar que a jurisdição tem um escopo social, além do jurídico (realização do direito material), qual seja o interesse social por intermédio da preservação da autoridade do patrimônio jurídico, da ordem e da paz 85 . É duplo o fim perquirido da jurisdição: pacificação social e composição justa do caso concreto. A problemática surge quando há um desvirtuamento da atividade jurisdicional para atender apenas o segundo objetivo. Eventualmente, olvida-se a aplicabilidade das funções referidas em cada ato processual. Manuseia-se o processo como um meio afiado que serve como algoz dos fins originariamente propostos, e apartado de seu caráter meramente instrumental. Ele não é um fim em si mesmo, cabe lembrar, mas viabilizador de uma dialética de interesses, as quais demandam uma resposta compositiva da controvérsia, seja numa perspectiva harmoniosa ou condenatória, constitutiva ou declaratória. Em outras palavras, os conflitos submetidos ao Judiciário ao invés de serem encerrados da maneira mais pacífica possível, tornam-se ainda mais agravados pela má utilização dos instrumentos processuais disponíveis. Diante desse cenário, o presente capítulo ocupa-se em analisar certas distorções da garantia constitucional do acesso à justiça a partir do cenário brasileiro, com ênfase na cultura da litigância e suas repercussões na gestão judiciária dos conflitos. Tal estudo fundamenta-se na necessidade de estabelecer um paradigma de compreensão do contexto de litigiosidade nacional e da imperiosa urgência em se rever os rumos das políticas judiciárias praticadas pelos órgãos de cúpula do Poder Judiciário. 3.1 CULTURA DO CONFLITO VERSUS CULTURA DA LITIGÂNCIA: UMA DISTINÇÃO NECESSÁRIA Dentre os elementos integrantes da cultura de um povo está sua capacidade e forma de lidar com o conflito. Aduzido a essa afirmação, o conjunto de normas, práticas, institutos e instituições específicas de uma sociedade acerca da conflituosidade compõem a denominada 85 Ibidem, p. 149-150. 44 cultura do conflito 86 . O conjunto de regras – especialmente as de índole processual - referentes ao manuseio dos conflitos na esfera jurídica, em harmonia com institutos psicológicos e sociais, integra uma arena própria no âmbito cultural, que reconhece seus mecanismos peculiares na condução do fenômeno do dissenso, imanente às relações humanas. A exata acepção de cultura, portanto, não envolve um conjunto de hábitos repetidos dotados de um tom negativo. Pelo contrário. Traduz uma ideia de sociologia judiciária ou, ainda, como determinada sociedade enxerga o papel do conflito, tal qual os respectivos meios de tratamento. Seu estudo e difusão devem ser estimulados por representarem parcela de identidade cultural de um povo e vetor de interpretação e conhecimento da evolução de condutas e percepções da realidade. Afora essas razões, a cultura do conflito fornece um lastro teórico para o preparo adequado de magistrados, mediadores, sujeitos em litígio, conciliadores ou quaisquer outros agentes (neutros ou não) inseridos num contexto de controvérsia. Em contrapartida, a cultura da litigância reflete a distorção da tipologia supra retratada. Repercute uma anormalidade funcional do conflito, de forma que a ideia geral inserida no (in)consciente coletivo é a de que todo e qualquer conflito necessita ser judicializado e resolvido sob a forma de uma solução adjudicada, dotada de força imperativa e coercitiva, fundada na lógica vencedor-perdedor 87 . É nela que se encontra a resistência em se implementar uma práxis pacificadora, dada sua repercussão não somente nos meandros dos cidadãos jurisdicionados, mas também na proliferação da necessidade de imposição de uma decisão (ainda que não seja a mais adequada sob o aspecto da justa composição do conflito) judicial. A significação prática disso é que a alimentação de tendências judicializadoras de disputas não é fruto de um pseudosentimento de cidadania provocado, conforme se verá adiante, por uma exegese do conceito de acesso à justiça destoado mensagem constitucional acerca do tratamento dos litígios. Possui igualmente a contribuição de um temor propalado por quem exerce a titularidade do poder jurisdicional de ver diminuída a sua capacidade de influenciar e de construir decisões com o auxílio de uma desconfiança semi-institucional nos 86 A definição de cultura é objeto de acaloradas discussões no âmbito da Antropologia. Utilizar-se-á aqui, para efeitos de cultura do conflito, a conceituação de Kroeber e Kluckhohn, segundo a qual a cultura consiste “em padrões, explícitos e implícitos, de e para comportamentos adquiridos e transmitidos por símbolos, constituindo a realização distintiva dos grupos humanos, incluindo a sua incorporação em artefatos; o núcleo essencial da cultura consiste em ideias tradicionais (ou seja, historicamente derivado e selecionado) e especialmente os seus valores anexados. Sistemas de cultura podem, por um lado, ser considerados como produtos de ação e por outro como elementos de condicionamento de ação”. [Tradução livre]. KROEBER, Alfred. KLUCKHOLM, Clyde. Culture: a critical review of concepts and definitions. Cambridge, Mass.: Harvard University, 1952, p.357. 87 SALLES, Carlos Alberto. Mecanismos alternativos de solução de controvérsias e acesso à justiça: inafastabilidade da tutela jurisdicional recolocada. In: FUX, Luiz et al. (coord.). Processo e Constituição: estudos em homenagem ao professor José Carlos Moreira. São Paulo: 2006, p.786. 45 métodos extrajudiciais ou ainda em decisões de cunho consensual como motrizes de um modelo de paz. Entretanto, seria por demasiado reducionista atribuir ao Poder Judiciário a raiz da litigiosidade acentuada. A problemática congrega fatores múltiplos que possuem motivações de origens variadas e traz consigo elementos familiares, religiosos, políticos, históricos e éticos. É preciso levar em conta todos esses elementos no processo de estudo da expansão da judicialização máxima dos conflitos. A sociedade moderna desenvolve-se numa velocidade frenética e vivencia relações jurídicas fundamentadas em postulados antigos. A ausência de uma massiva e contundente política pública estatal dos três Poderes da República quanto à consensualidade e à resolução pacífica das disputas robustece tais pensamentos. De igual forma, o agigantamento da função jurisdicional como a salvação de um povo mergulhado em níveis educacionais rudimentares e incapaz de dialogar com o próximo na solução das suas diferenças contribui com a manutenção desta realidade. O demandismo deve ser entendido como expressão cultural de um determinado período histórico. Tal afirmação também se justifica pelas tentativas reformas tanto do próprio Poder Judiciário quanto dos procedimentos normativos aplicáveis à jurisdição. Percebe-se que, em sua maioria, não visam reduzir a prática da litigância como única saída ou promover uma revisão cultural quanto ao entendimento dos conflitos, tornando a matéria objeto de política pública não somente judiciária, mas do Poder Executivo e da função legiferante. Por outro lado, envidam esforços cujos resultados dizem respeito às consequências da litigiosidade, ad exemplum o incremento e alteração estrutural dos órgãos que compõem o Poder Judiciário, expansão do aparato judicial, reforma de normas processuais que repercutem no direito recursal, criação do Conselho Nacional de Justiça e, por fim, adoção de campanhas que buscam a composição dos conflitos, tais como o Projeto Conciliar é Legal 88 . A linha de atuação consolidada por essas iniciativas não tem demonstrado a concretização de uma Justiça Qualitativa ou de Co-gestão, nomenclatura utilizada para o incentivo da consensualidade no âmbito judicial. O foco, conforme se observa a partir dos relatórios do Conselho Nacional de Justiça, dispensa uma análise sob uma visão de natureza mais quantitativa. A campanha proposta pelo CNJ e Tribunais do país acerca da conciliação persegue a redução do número de processos - sem atentar detalhadamente para a qualidade 88 As menções topificadas foram sistematizadas por Sadek e Arantes (1994) como uma crise com três raízes: institucional, estrutural e de procedimentos. No entender dos autores, o árduo momento da Jurisdição como titular do monopólio estatal de solução de conflitos, notadamente quanto à gestão desses, não pode ser compreendido como de uma natureza única, dado que a crise é fruto de elementos multifatoriais. Cf. SADEK, Maria Teresa; ARANTES, José Bastos. A crise do Judiciário e a visão dos juízes. Revista USP, n.21, mar.-maio, 1994, p.35-45. 46 das conciliações, dado o enfoque unicamente no número de conciliações e nos valores arrecadados nessas, elementos sempre destacados nos relatórios e resultados atinentes às referidas iniciativas 89 . Os números, as estatísticas, a quantidade de processos solucionados – ainda que para uma das partes o acordo homologado não seja aceitável e a sensação de justa decisão não seja abraçada pelos sujeitos ativo e passivo da contenda (originando uma litigiosidade remanescente, embora finalizada a ação judicial) 90 – não expressam a qualidade dessas decisões e podem esconder graves violações a direitos proporcionadas em nome de uma suposta celeridade decorrente dos meios pacíficos de solução de conflitos 91 . A preocupação em promover conciliações, mediações a todo custo deve (ou deveria) ser presente no monitoramento estatístico dos dados. No entanto, não tem sido uma realidade presente nos relatórios descritivos e, tampouco, nas Campanhas tangidas pelo CNJ 92 . 89 O Departamento de Pesquisas Judiciárias elabora anualmente os relatórios das chamadas Semanas da Conciliação. Em 2011, de acordo com o Relatório disponível no sítio eletrônico do CNJ, o conjunto de tribunais contabilizou 434.479 audiências marcadas, 349.613 audiências realizadas e 168.841 acordos realizados, com um total de R$ 1.072.098.404 em valores homologados. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte foi o 7º tribunal com maior número de acordos homologados (considerados proporcionalmente), atingido uma taxa de 66% de conciliações obtidas. Em números absolutos, na Semana Nacional de Conciliação de 2011 o TJ-RN posicionou-se como a 10ª Corte com maior quantitativo de acordos celebrados (4398 homologações). Em relação ao número de acordos por caso novo semanal, o TJ-RN classificou-se em 8º lugar com um índice de 1,08 e o Tribunal Regional do Trabalho da 21ª Região em 10º, com 1,05. Ressalte-se, todavia, que nem o TJ-RN ou o TRT 21 possuem os Núcleos específicos de Conciliação, nos termos da Resolução N. 125 do CNJ. 90 Entende-se, para efeitos do presente, que o cerne em se ter um acordo justo é quando há a constatação dos pontos em comum entre o conflito processado e o conflito real, isto é, a expressão jurídica do conflito social, ao ser composta, sob o ângulo da pacificação deve encerrar também o conflito real. Nesse sentido, Santos, ao se debruçar sobre a retórica da decisão, afirma que em razão da estrutura do processo se condensar na conclusão a decisão tende a se revestir de mediação e a relação conflituosa tende a criar um peso estrutural a ser balanceado pela mediação. Afirma, ainda, o professor lusitano que somente a mediação pode “subverter o conflito processado e o conflito real, separação que domina a estrutura processual do direito do estado capitalista e que é a principal responsável pela superficialização da conflituosidade social na sua expressão jurídica”. SANTOS, Boaventura de Souza. O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Sérgio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 1988, p.21-23. 91 Em atenção à preocupação de reduzir a litigiosidade contida (conceito a ser explanado mais adiante), Azevedo, em escólio sobre Mediação, afirma que a processualística atual volta-se para a resolução de conflitos por métodos interdisciplinares. Tais métodos visam, além da redução da demanda reprimida, abarcar a litigiosidade remanescente, cuja definição é “aquela que, em regra, persiste entre as partes após o término de um processo heterocompositivo em razão da existência de conflitos de interesses que não foram tratados no processo judicial - seja por não se tratar de matéria juridicamente tutelada (e.g. a mágoa que se sente em razão de um término de um relacionamento estável) seja por não se ter aventado certa matéria juridicamente tutelada perante o Estado.” AZEVEDO, André Gomma de. Perspectivas metodológicas do processo de mediação: apontamentos sobre a autocomposição no Direito Processual. In: _______________ (Org.). Estudos em arbitragem, mediação e negociação. Brasília: Ed. Grupos de Pesquisa, 2003. v. 2, p.168. 92Em 2008, o título da campanha foi “conciliar é legal e faz bem a si mesmo”; no ano de 2009, “Ganha o cidadão. Ganha a Justiça. Ganha o País"; em 2010, “Conciliando a gente se entende”; em 2011 “Conciliar é a forma mais rápida de resolver conflitos”. Em todas as edições, a principal justificativa do CNJ era a celeridade, o ganho de tempo na resolução das controvérsias e as vantagens para o Poder Judiciário e cidadãos na conciliação. Deve-se fazer uma alerta, nesse ponto, no sentido de não se fomentar uma cultura distorcida por outra, isto é, a prática da litigiosidade desordenada pela cultura da celeridade desmedida. Quando se trata de Poder Judiciário, por óbvio que interesses estão em discussão e devem ser tratados adequadamente tanto sob o prisma temporal como qualitativo. Afinal, “nada pior do que a injustiça célere”. 47 Em que pese a Resolução N. 125, de 29 de Novembro de 2010, do Conselho Nacional de Justiça 93 , representar um passo largo no tratamento dos conflitos com o devido fomento a consensualidade, formula-se uma crítica. A prioridade do Conselho tem se instrumentalizado mediante um enfoque quase que exclusivamente judicial dado à Conciliação e à Mediação e ausência de uma tônica de estímulo de autocomposição, dialogicidade e consenso com fins de prevenir o conflito ou encerrá-lo em sede extrajudicial, ainda que haja algumas iniciativas pontuais nesse sentido. O conteúdo normativo da Resolução, pelo que se depreende de sua leitura e interpretação, não visa uma Política Judiciária Nacional de tratamento de conflitos em si (embora esse exatamente o termo utilizado pelo texto resolutório), mas uma política de gestão no âmbito judicial. O próprio artigo 2º da Resolução preconiza que, na implementação da Política Judiciária Nacional, com vistas à boa qualidade dos serviços e à disseminação da cultura de pacificação social, serão observados os critérios de centralização das estruturas judiciárias, a adequada formação e treinamento de servidores, conciliadores e mediadores, bem como o acompanhamento estatístico específico. Foi deficitária a previsão do referido artigo. A atuação do Conselho, ao que aparenta, fundamenta-se em reorganização administrativa, qualificação de pessoal e criação de relatórios estatísticos específicos. Não seria o caso de se pensar numa política mais abrangente, capaz de tratar os conflitos antes mesmo de se tornarem litígio, ou, ainda, numa efetiva participação do Poder Judiciário no processo de revisão cultural atinente às práticas de litigância demasiada? Decerto, no entanto vê-se a preferência pela eleição de elementos até mesmo de ordem relatorial, em detrimento de uma política massiva baseada nas vantagens da consensualidade. Advirta-se que a crítica ora proferida não tem o condão de desqualificar as iniciativas provenientes do CNJ, desnaturar os meios alternativos de solução de disputas (até porque seria um contrassenso para esse trabalho fazê-lo), tampouco desprestigiar os princípios da celeridade e razoável duração do processo 94 . A ressalva alude única e exclusivamente ao modus operandi de tais campanhas, bem como às razões pelas quais foram concebidas e alertar para o fato de que os ditos princípios constitucionais devem ser considerados em 93 Dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. 94 A preocupação esposada no presente trabalho foca-se no fato de inexistirem garantias de que o instituto da conciliação tem sido instrumento realmente de solução do conflito. Entenda-se essa resolução como um encerramento que possibilite às partes se sentirem como se a controvérsia nunca tivesse acontecido e que não haja efeitos futuros de um dissenso mal resolvido, dentre os quais o ressentimento ou o rompimento da relação com o adversário. Ao prestigiar uma vertente quantitativa é natural que não se assegure a atenção devida ao conflito e se perca essa noção de real pacificação. LEVINE, Stewart. Rumo à solução: como transformar o conflito em colaboração. São Paulo: Cultrix, 2007.10.ed., p.21. 48 conjunto com outras normas e valores reguladores do Poder Judiciário e de sua competência jurisdicional. Em outro dizer, significa que o projeto é apropriado para as razões equivocadas. A distinção entre a cultura da litigância e a do conflito é necessária para que não se procedam confusões terminológicas que acabam por induzir a desígnios precipitados sobre cada espécie. Embora semelhantes nas locuções, a diferença é de proporção considerável e deve estar bem delineada para a investigação jurídica em curso. A litigiosidade crescente não se confunde com a conflituosidade típica das sociedades democráticas e pluralistas. Esta é resultado de diferenças que perpassam o multiculturalismo e o contato diário com o outro num contexto globalizador e típica de convivências não-hierarquizadas, onde há efetiva relação entre os diferentes segmentos. Nesses casos, a presença de conflitos é comum e indispensável “para a definição mais concreta e casuística, bem como para a materialização e sedimentação de ideários abstratamente corporificados em princípios abraçados como nortes gerais contratados politicamente para um viver gregário 95”. Feita a distinção necessária, é de bom alvitre que se debruce sobre a litigiosidade específica da cultura da litigância e suas manifestações práticas, especialmente no campo da processualização das relações sociais. É fundamental ter a noção histórica e semântica do direito fundamental de acesso à justiça, da origem do fenômeno da explosão de litigância, de suas razões e as repercussões diretas na política de gestão de conflitos para um entendimento mais adequado do problema. Além disso, é imprescindível que se aborde como o Poder Judiciário tem se posicionado no cenário de litigiosidade, quais as ações tomadas no âmbito do Conselho Nacional de Justiça e a crise de credibilidade que enfrenta o referido Poder em face da opinião pública. Abordar-se-á acerca do perfil do litígio, dos litigantes e da banalização do conflito para, ao fim dessa seção, propor-se uma revisão do conceito de Acesso à Justiça como lastro teórico para a reformulação do que se entende como Acesso (ou saída) e Justiça. 3.2 CULTURA DA LITIGIOSIDADE, PODER JUDICIÁRIO E ACESSO À JUSTIÇA Uma das garantias constitucionais mais sólidas de um Estado de Direito é o acesso à justiça, insculpido no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1988. Por intermédio de uma das acepções desse instrumento, é assegurada a apreciação de lesão ou ameaça a Direito por parte do Poder Judiciário. O acesso ao Poder Estatal se dá pela concretização 95 OLIVEIRA JÚNIOR, José Alcebíades, BAGGIO, Moacir Camargo. Jurisdição: da litigiosidade à mediação. Revista Direitos Culturais. Santo Ângelo V.3.. n.5. Dez.2008, p.113. 49 jurídico-processual de um conflito travestido de lide, de modo que é assegurado a qualquer pessoa física ou jurídica que se sinta violada em seus direitos recorrer ao Estado-juiz para que solucione o litígio. Tem-se verificado, todavia, nas sociedades modernas, uma superjuridificação dos conflitos com a submissão de controvérsias de toda sorte, numa demonstração de suposta esperança de que a Jurisdição seja capaz de oferecer respostas justas, rápidas e adequadas para os dissensos objetos de resolução. Maximizada por razões policêntricas, tal prática reflete direta e indiretamente nas relações sociais, no modo como as disputas são tratadas e, consequentemente, no funcionamento do Poder Judiciário. Como contraponto à cultura da paz é forçoso que se façam algumas ponderações sobre a denominada explosão de litigiosidade, origens, repercussões práticas e consequências para o desempenho da função judicial. Um Estado Constitucional de Direito só sobrevive com um catálogo democrático de direitos fundamentais e órgãos jurisdicionais dotados de um Poder que possa, para ser tautológico, mas não menos verdadeiro. A Ordem de 1988 assegurou o acesso ao Poder Judiciário como instrumento de apreciação de lesão ou ameaça de lesão a Direito, conhecido como garantia de acesso à justiça ou princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, informados pelo devido processo legal (art. 5º, inciso LIV, CF/88), princípio do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, inciso LV, CF/88), princípio do Juiz Natural (inc. XXXVII e LIII do art. 5º da CF/88), a assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (art. 5º, inciso LXXIV), dentre outros, que têm o objetivo primário de assegurar aos cidadãos a possibilidade de se ter um julgamento justo. A atuação jurisdicional deve ser compreendida na acepção mais ampla, convincente e completa possível em razão da própria nobreza e importância dessa garantia na manutenção da higidez democrática, sobretudo quando se discutem bens jurídicos que, para sofrerem intervenção estatal, necessitam de explícita fundamentação, conforme já manifestou o Supremo Tribunal Federal 96 . O objetivo dessa proteção é propagar a mensagem de que todo homem, independentemente de raça, credo, condição econômica, posição política ou social, tem o direito de ser ouvido por um tribunal independente e imparcial, na defesa de seu patrimônio ou liberdade. Entretanto, assim como outros direitos e garantias fundamentais, 96 “A ordem jurídico-constitucional assegura aos cidadãos o acesso ao Judiciário em concepção maior. Engloba a entrega da prestação jurisdicional da forma mais completa e convincente possível. Omisso o provimento judicial e, em que pese a interposição de embargos declaratórios, persistindo o vício na arte de proceder, forçoso é assentar a configuração da nulidade.” (RE 158.655, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 20-8-1996, Segunda Turma, DJ de 2-5-1997.) Também nesse sentido: “A garantia constitucional alusiva ao acesso ao Judiciário engloba a entrega da prestação jurisdicional de forma completa, emitindo o Estado-juiz entendimento explícito sobre as matérias de defesa veiculadas pelas partes.” (RE 172.084, Rel.Min. Marco Aurélio, julgamento em 29-11-1994, Segunda Turma, DJ de 3-3-1995). 50 sofre restrições e é temperado por outros que com ele – o acesso à justiça – se relaciona, seja pela observância das normas adjetivas 97 , seja pelo livre convencimento do julgador 98 . Considerando-se o quadro atual de conflitos judicializados, propõe-se uma ressignificação ou, ainda, interpretação mais adequada do conceito de acesso à justiça. Para tornar a matéria mais palatável e não se cair nas mesmices epistemológicas que o assunto tem tomado na doutrina especializada quatro questionamentos são plausíveis. Indaga-se: acesso à justiça representa, nos termos constitucionais, necessariamente acesso ao Judiciário? Obtida a resposta para tal dúvida nascem a segunda e a terceira pergunta: a que, de fato, se busca dar acesso? Que Justiça é essa que tanto se busca colimar e onde ela está? Criada sob uma cultura de proteção estatal e envolvida pelo véu da necessidade de dependência de um líder como orientador do futuro a sociedade latinoamericana, em particular a brasileira, deposita expectativas agigantadas nos pronunciamentos jurisdicionais como resolvedores dos complexos (e simples) problemas existentes. Consagrado como um dos Poderes da República e (re)erguido sob o lastro de um processo de redemocratização e reconstitucionalização do País, no qual ocorreram mudanças significativas, como por exemplo, a tentativa clara de efetivar a Constituição sob a horda da prevalência do princípio da força normativa, e por consequência, o aperfeiçoamento da interpretação constitucional, a função jurisdicional ganhou papel de relevo no atual sistema constitucional 99 . A expansão de órgãos judiciais e o apoderamento de suas estruturas tangentes ao Judiciário despertou uma consciência coletiva de que é no Estado-Juiz – e praticamente só nele - que se encontra a resposta heterocompositiva para situações de tensionamento de interesse contrapostos. O juiz não mais é o agente público encarregado de julgar, e sim o alvo de anseios frustrados das partes, encarado como verdadeira tábua da salvação. 97“Os princípios constitucionais que garantem o livre acesso ao Poder Judiciário, o contraditório e a ampla defesa, não são absolutos e hão de ser exercidos, pelos jurisdicionados, por meio das normas processuais que regem a matéria, não se constituindo negativa de prestação jurisdicional e cerceamento de defesa a inadmissão de recursos quando não observados os procedimentos estatuídos nas normas instrumentais.” (AI 152.676-AgR, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em15-9-1995, Primeira Turma, DJ de 3-11-1995.) 98“Não há confundir negativa de prestação jurisdicional com decisão jurisdicional contrária à pretensão da parte." (AI 135.850-AgR, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 23-4-1991, Segunda Turma, DJ de 24-5-1991.) No mesmo sentido: AI 811.144-AgR, Rel. Min. Rosa Weber, julgamento em 28-2-2012, Primeira Turma, DJE de 15-3-2012; AI 791.441-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 3-8-2010, Segunda Turma, DJE de 20-8- 2010; RE 547.022- AgR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 16-10-2007, Segunda Turma, DJE de1º-2- 2008; HC 70.600, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 19-4-1994, Primeira Turma, DJE de 21-8-2009. 99 BULOS, Uadi Lammêgos. Curso de Direito Constitucional. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.23. 51 É inegável que a Justiça não habita somente nas decisões dos Tribunais 100 . Afinal, é notório é o número de litígios resolvidos sem que haja recurso aos tribunais, seja porque o interessado prefere a resignação ou imprime ao conflito um valor menor do que ele representa diante da relação social em disputa. Os tribunais resolvem apenas parte dos conflitos que lhes são submetidos, cujos percentuais são demasiadamente pequenos se comparados àqueles que se produzem em determinada sociedade 101 . O real significado do acesso à justiça traduz-se no esforço de introduzir justiça nas relações em que estão envolvidos os indivíduos 102 . Dessa feita, o direito visto pelas lentes das resoluções de origem privada, rechaçadas e desprezadas pelos aguerridos defensores de centralismo jurídico e da estatização de todas as coisas, corresponde a um direito espontâneo e pluralista, por vezes tão ou mais eficiente que o sistema estatal de solução de controvérsias 103 . O direito estadual não é excluído pelo espontâneo, tampouco esse não pretende eliminar o primeiro. Ambos desenvolvem-se peculiarmente no seio social com os avanços que cada Estado promove. A densidade conceitual do acesso à justiça sobrepõe-se à inafastabilidade do controle jurisdicional, devendo a garantia ser lida sistematicamente em conjunto com os outros dispositivos. O sentimento constitucional foi de promover uma solução justa do litígio que, posta diante do Poder Judiciário, deve ser isenta de qualquer impedimento processual capaz de prejudicar a apreciação do direito material. Todavia, não há como se propor uma interpretação de Acesso à Justiça apenas como sujeição ao controle judicial. Se assim fosse, qualquer documento legal ordinário cujo objeto fosse método extrajudicial de solução de controvérsia seria declarado como inconstitucional 104 . 100 GALANTER, Marc. A justiça não se encontra apenas nas decisões dos Tribunais. In: HESPANHA, Antonio Manuel (org.). Justiça e litigiosidade: história e prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p.59-118. 101 Idem, p.67. 102 Numa comparação metafórica, Galanter afirma que não se deve buscar saúde principalmente nos hospitais, ciências nas escolas e justiça nos organismos públicos destinados à fazê-la. Em outras palavras, a essência de uma resolução justa pode ser interpretada como uma busca mais preventiva e diária do que concentrada e unilocalizada, p.77. 103 Idem, p.79-80. 104 Nesse sentido já se posicionou, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal pela constitucionalidade da Lei 9.307/1996. Veja-se: "Lei de Arbitragem (Lei 9.307/1996): constitucionalidade, em tese, do juízo arbitral; discussão incidental da constitucionalidade de vários dos tópicos da nova lei, especialmente acerca da compatibilidade, ou não, entre a execução judicial específica para a solução de futuros conflitos da cláusula compromissória e a garantia constitucional da universalidade da jurisdição do Poder Judiciário (CF, art. 5º, XXXV). Constitucionalidade declarada pelo Plenário, considerando o Tribunal, por maioria de votos, que a manifestação de vontade da parte na cláusula compromissória, quando da celebração do contrato, e a permissão legal dada ao juiz para que substitua a vontade da parte recalcitrante em firmar o compromisso não ofendem o art. 5º, XXXV, da CF." (SE 5.206-AgR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 12-12-2001, Plenário, DJ de 30-4-2004). 52 A designação do Poder Judiciário como sinônimo de ‘Justiça’ (ainda que o termo sirva para designar o conjunto de órgãos dotados de uma investidura jurisdicional, como, inclusive, se utiliza no presente item) atrai uma confusão conceitual que deve ser evitada. A Justiça é tema que interessa à Filosofia, porém, também ao Direito. Os fundamentos filosóficos da Justiça realizam incursões na Ciência Jurídica como um claro instrumento reflexivo das injustiças materializadas diariamente nas relações humanas. As distintas interpretações e reorganizações metodológicas anseiam por traçar uma base comum a todas as definições, capaz de indicar o norte a se seguir na interpretação e na aplicação do Direito. De cada demarcação conceitual há de se extrair elementos relevantes e que servirão para justificar que é possível realizá-la fora do Judiciário, isto é, sem a intervenção da força institucionalizada. A propósito, Platão compreendia a força como uma afirmação da injustiça, devendo-se entender aquela como instrumento de imposição sob as mais variadas percepções (econômica, jurídica, militar, etc.). Essa constatação ocasionou a dedicação dos estudos platônicos ao tema Justiça, como problema, como princípio universal, com caráter dialético. Dentre as deduções platônicas, uma é suficiente: a Justiça é fluida e se desenvolve sutilmente nas constantes construções sociais, devendo ser buscada tanto no “diálogo no qual se estabelece uma relação interativa do pensamento do eu com o pensamento do outro”, como no modo reflexivo “pelo qual esta relação do eu com o outro se torna efetiva nas relações pessoais”105. O fim último do Direito é a Justiça, sendo essa considerada como uma das dimensões daquele, ainda que não se consiga um consenso sobre sua conceituação 106 . A mera cogitação de se dissociar os dois elementos repercutiria numa incoerência sistêmica, em razão de se considerar aqui a Justiça como um valor intrínseco do Direito, bem como o fundamento do fim dele 107 . Os contornos éticos e ontológicos desse valor têm um transparente aspecto cultural, abraçado por uma sociedade e sua ordem constitucional, mas que reúne valores fundamentais que, analisados integradamente, conferem um modelo singular de direito e de justiça 108 . 105 MATHEUS, Carlos Eduardo Meirelles. A noção de justiça em Platão. In: PISSARA, Maria Constança Peres; FABBRINI, Ricardo Nascimento (org.). Direito e Filosofia. São Paulo: Atlas, 2007, p.23. 106 O professor potiguar agregou à teoria tridimensional do Direito, formulada por Miguel Reale (fato, valor, norma), o conceito de justiça, a partir da teoria estruturante de Friedrich Muller, como uma dimensão teleológica do Direito sob o arquétipo de que o Direito (norma-texto, input) aplica-se aos fatos (norma-âmbito), os quais são valorados (norma-programa) juntamente com a norma (norma-jurídica), objetivando uma norma de decisão (a Justiça). SARAIVA, Paulo Lopo. A tetradimensionalidade do Direito. Revista de Informação Legislativa. v. 38, n. 153, jan./mar. de 2002, p.67-77. 107 BONIFÁCIO, Artur Cortez. O Direito Constitucional Internacional e a proteção dos direitos fundamentais. São Paulo: Método, 2008, p.54 108 Idem, p.53. 53 Atinente aos fundamentos histórico-evolutivos do instituto, numa acepção mais moderna, o acesso à justiça transmite uma dupla significação: um sistema jurídico que oferece condições de reivindicação dos direitos e a possibilidade material de resolução dos litígios sob a ordem estatal 109 . Entretanto, o conceito foi objeto de mutações ao longo da história que variaram de acordo com o modelo de Estado adotado. Mauro Cappelletti e Bryant Garth, ao abordarem a evolução do instituto, expuseram que nos “Estados liberais burgueses dos séculos dezoito e dezenove, os procedimentos para solução de litígios civis refletiam a filosofia essencialmente individualista então vigorante”110. A proteção judicial, no período relacionado, resumia-se à possibilidade formal de se acionar o Judiciário, de maneira que os custos do processo não eram encarados como entrave ao acesso efetivo à Justiça. Com a virada paradigmática para o Estado Social e o alargamento de direitos aos indivíduos, fomentado pela coletivização das ações e pelo abandono do antigo modelo individualista, o acesso à justiça tornou-se referência para a concretização desses direitos. Na nova formulação estatal, é imprescindível seja assegurado mais do que o mero formalismo de acessibilidade; há de se buscar também outras formas, de maneira que toda a ritualística processual de distribuição da justiça repercuta diretamente sobre a substantividade dos direitos. 3.2.1 A categorização do acesso à justiça em ondas segundo Mauro Cappelletti e Bryant Garth No terceiro capítulo da obra Acesso à Justiça, Cappelletti e Garth, foram apresentadas soluções práticas para os problemas existentes entre os cidadãos e a Justiça. Para tanto, levaram-se em conta as realidades dos países ocidentais, assim como tomaram por base e ponto de partida o ano de 1965. Cada tentativa de resolver os obstáculos ao acesso efetivo à Justiça designou-se de onda e se dividiu historicamente em três fases. O foco da primeira onda é o aprimoramento da assistência judiciária aos pobres, em razão da necessidade de patrocínio advocatício para as causas. Tido como caro e necessário ao ajuizamento de ações judiciais, atentou-se para a necessidade de reformas concretas no sentido de proporcionar serviços jurídicos àqueles desapossados. A mudança mais relevante se deu com a remuneração de advogados particulares pelo Estado (sistema judicare) sempre 109 CAPPELLETTI, Mauro, GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Traduzido por Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, p.8. 110 Idem, p.9. 54 que procurados pelos desafortunados. Os advogados remunerados pelos cofres públicos (escritórios de vizinhança) se distinguem da tipologia anterior por se configurarem como defensa organizacional dos pobres enquanto classe e, finalmente, dos modelos combinados (a escolha entre os advogados públicos e os particulares custeados pela Fazenda Pública). Com o transcorrer do tempo o relacionamento entre os indivíduos e as ações foi assumindo caráter mais abrangente. Passou-se a buscar a defesa dos interesses coletivos lato sensu, ultrapassando a visão individualista. Nesse diapasão, Cappelletti e Garth identificam o segundo movimento no esforço de aperfeiçoar e concretizar o acesso à justiça. O problema da representação dos interesses difusos, assim denominados os interesses coletivos ou grupais, foi identificado e encarado como algo relevante. A clássica concepção do direito processual civil movida pelo individualismo procedimental não estimulava um espaço para a proteção dos direitos de titularidade indeterminada. O processo era visto apenas como um assunto inter partes com interesses que não tangenciavam outros atores alheios à relação processual. Portanto, o engrandecimento das ações coletivas com efeitos erga omnes veio para ocupar essa deficiência existente, principalmente pela possibilidade de se concretizar direitos de um número indeterminado de pessoas com um instrumento de natureza coletiva. A terceira onda de acesso à justiça manteve os avanços obtidos com as duas anteriores e ampliou a concepção do tema, englobando uma advocacia mais modernizada – a extrajudicial – e um conjunto de instituições, de procedimentos e de pessoas capazes de processar e de prevenir litígios. Um dos sustentáculos dessa fase, dentre outros (como a criação de Juizados Especiais para pequenas causas e reformas dos procedimentos judiciais em geral), é a valorização da negociação como meio para a solução dos conflitos. Nessa perspectiva, busca-se a preservação de métodos informais, capazes de promover a manutenção das relações sociais, tais como a mediação, a conciliação ou a arbitragem. Sua funcionalidade não reside na exclusão das duas anteriores. Visa, outrossim, articular uma reflexão profunda sobre o tipo de acesso que se deseja promover e suprir uma lacuna que, desde tempos imemoriais, está presente nos litígios judiciais, ou seja o atendimento das reais necessidades dos cidadãos e a permissão para que o direito substantivo seja, ipso facto, alvo de usufruto. Busca-se compreender que o fim mediato do Direito é a consecução da Justiça e que basta uma análise mais cuidadosa para se deduzir que todas as reformas e obstáculos combatidos como empecilho ao jurisdicionado têm como finalidade clara a satisfação do anseio dos atores envolvidos no conflito: sua disputa resolvida com o mínimo de danos e traumas possíveis. 55 Sob a ótica sociológica, o Estado Contemporâneo não é o monopolizador da produção e da distribuição do Direito em razão da diversidade de articulação moderna entre os agentes sociais 111 . Daí as recentes reformas no âmbito interior da Justiça e as alternativas a ela 112 , caracterizadas como uma nova política judiciária, vista sob o aspecto do acesso à justiça e da sua democratização, que, por sua vez, tem uma feição dúplice. Uma vertente contempla reformas na constituição interna dos processos com “maior envolvimento e participação dos cidadãos, individualmente ou em grupos organizados, na administração da justiça; a simplificação dos atos processuais e o incentivo à conciliação das partes”113. Noutro giro, mira a criação de um Serviço Nacional de Justiça hábil para, além de eliminar obstáculos econômicos, dissipar impedimentos culturais e sociais, como a ignorância dos cidadãos acerca dos seus direitos. Expostas as ondas do acesso à justiça, cabe agora aferir quais razões foram suficientes para causar a má-utilização desta garantia encartada nos textos constitucionais, sob o prisma da explosão da litigiosidade. 3.2.2 Explosão de litigiosidade: conceito e origem “Vou processar você” é uma expressão recorrente no vocabulário daqueles que estão envolvidos em algum tipo de conflito, seja familiar, consumerista, trabalhista ou oriundo de uma relação de direito contratual. Utilizada algumas vezes de forma mais eufemística com o disfarce de uma busca de direitos, outras com tom mais ameaçador, a verdade é que no seio desse comportamento reside uma forma sistemática de pensar/agir fomentada pela dificuldade de se lidar com os problemas de forma racional e propositiva, salvo casos específicos. Pode-se definir a explosão de litigiosidade como uma preferência social em resolver os conflitos mediante a atuação de um terceiro (Estado), titular do poder coercitivo e da violência legal. A razão para o crescimento exponencial do número de demandas tem sido objeto de estudos por sociólogos do direito, juristas e até mesmo economistas. A doutrina busca expor razões das mais variadas para a fundamentação da tradição judiciarista. Os raciocínios são enquadrados em dois flancos principais: aqueles que enxergam a crescente 111 SANTOS, Boaventura Souza. Pela Mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 2006. 11.ed., p.175-176. 112 Para Santos, “as reformas que visam a criação de alternativas constituem hoje uma das áreas de maior inovação de política judiciária. Elas visam criar, em paralelo à administração da justiça convencional, novos mecanismos de resolução de litígios cujos traços constitutivos tem grandes semelhanças com os originalmente estudados pela antropologia e pela sociologia do direito [...]”., p.176. 113 Idem, p.177. 56 litigiosidade como reflexo da Democratização do Estado, do alargamento do rol de direitos e da concretização da garantia de Acesso à Justiça 114 e há quem defenda o fundamento histórico da cultura da litigiosidade. O nível de desenvolvimento econômico e social é apontado como condicionante do cerne da propensão à litigância, do tipo de conflito, da natureza das divergências e do desempenho dos tribunais diante dos pleitos que lhe são submetidos. Entretanto, o avanço socioeconômico não implica, em automático, o aumento da litigância na sua generalidade. É possível que o incremento em setores específicos ou em tipologias de litigância repercuta na redução de outras espécies 115 . Daí asseverar-se que “por essa tripla interação, a análise das relações entre o desempenho dos tribunais e o nível de desenvolvimento socioeconômico é central a toda a sociologia judiciária”116. No entanto, os referidos autores apontam que somente estes fatores são insuficientes para tracejar um padrão de desempenho dos tribunais e, por conseguinte, das implicações nas manifestações de litigiosidade, sobretudo pelos modelos de Sistema de Justiça e de Judiciário distintos em países de mesmo nível econômico 117 . Como solução para a análise, propõe-se a inserção do conceito de cultura jurídica como indispensável para a compreensão do tema. Aquela significa o “conjunto de orientações a valores e interesses que configuram um padrão de atitudes diante do direito e dos direitos e diante das instituições do Estado que produzem, aplicam, garantem ou violam o direito e os direitos”118 e deve ser analisada num âmbito mais geral de cultura política e de cidadania. Diferencia-se da cultura jurídico-profissional, em razão dessa dizer respeito apenas aos profissionais que militam nos fóruns. 114 Este é o discurso adotado até pelo Conselho Nacional de Justiça no Relatório Anual do Judiciário de 2011, in verbis: “O súbito aumento na demanda por serviços judiciais até 2009, em função dos fenômenos da democratização e garantias de direitos no Brasil, não contou com adequado aparelhamento da estrutura para sua oferta. Gerou-se uma situação de significativo congestionamento e de elevada morosidade na prestação dos serviços judiciais. Em razão dessa realidade, faz-se necessário não somente analisar os aspectos relativos à estrutura dos órgãos judiciários e de como processam os litígios e os administram, mas também questionar como as demandas judiciais se formam e se desenvolvem até se consolidarem, sobretudo as demandas massivas.”. CNJ. Relatório Anual de 2011, 2012, p.50. Disponível em: < http://www.cnj.jus.br/images/relatorios- anuais/atividades/revista_relatorio_anual2011_web.pdf>. Acesso em 21 de março de 2012. 115 SANTOS, Boaventura; LEITÃO, Maria Manuel; PEDROSO, João. Os tribunais nas sociedades contemporâneas. Centro de Estudos Sociais; Coimbra, 1996, p.39. 116 Ibidem, p.39 117 Sadek ratifica a relação entre grau socioeconômico e litigância ao informar que “segundo dados de 2006, colhidos pelo Supremo Tribunal Federal, há uma média nacional de 1 processo para cada 10,20 habitantes. Essa média esconde expressiva variações entre unidades da Federação, verificando-se uma forte correlação entre procura pelo Judiciário e grau de desenvolvimento socioeconômico. Com efeito, o exame dos extremos indica que enquanto ela é de 6,62 em São Paulo, o estado mais rico da Federação, atinge a média de 62,38 – dez vezes mais -, em Alagoas, o estado mais pobre”. SADEK, Maria Tereza Aina. Acesso à Justiça: visão da sociedade. Revista Justitia, São Paulo, v.65, n. 198, jun. 2008, p.271-279. 118 Idem, p.39. 57 O estudo da cultura jurídica foi fortalecido desde a explosão de litigiosidade, concretizada – ou ao menos aferida –, inicialmente, na Itália e nos Estados Unidos, por volta da década de 60 119 . A primeira constatação dos estudos dizia respeito à propensão natural (decorrente de uma influência nitidamente de índole cultural) de algumas sociedades serem mais contendedoras do que outras e a não relação direta entre o nível de litigância e o poderio econômico das sociedades. Já nos anos 80, a busca de explicações plausíveis para os acréscimos de litigância abeberou-se de razões diversas que vão do crescente aumento do número advogados até o “enfraquecimento dos laços comunitários e dos compromissos de honra na gestão da vida coletiva”120. Dada a complexidade cultural, os diversos perfis de Justiça e as políticas de baixa conflitividade, é demasiado simplista atribuir a explosão de litigiosidade – ou sua redução – a alguns fatores. A tradição sentencial surge tanto nas demonstrações de comportamento social quanto nas ações governamentais no que se refere à gestão de conflitos. Assim, reformas nos sistemas de Justiça e na legislação, por exemplo, enquanto ingerências do Estado, podem repercutir diretamente nos índices de litigância, sem demonstrar, exatamente, uma postura de espontaneidade social. Em que pese o argumento acima esposado, determinadas mudanças devem ser consideradas como paradigmáticas para a mudança de cenário em relação aos conflitos. A primeira tem um fundamento histórico e se relaciona com a efetividade, as funções e o nível de credibilidade de que gozam ou gozaram os tribunais nos distintos períodos, sendo os modelos estatais a referência para a análise 121 . Durante o período Liberal, deu-se a “explosão de conflitualidade social”122. Erigida sobre modelo de manutenção de realidade normativa pré-constituída, a legalidade reinante à época – e mantida até os dias atuais – só permitia aos tribunais uma atuação por intermédio da devida provocação. A consequência direta desse modelo é a indiferença da função judicial quanto aos tipos de litígios diariamente eclodidos e a respectiva necessidade de tratá-los adequadamente. As decisões proferidas, nesse período, foram de cunho estritamente individual, sem a aplicação dos efeitos coletivos – típicos dos conflitos de massa. Em adição a essas razões, verificou-se um frágil peso político dos tribunais frente aos outros Poderes do 119 Idem, p.40. 120 Idem, p.41. 121 Não se fará um corte mais antigo em razão das relações das sociedades antigas (nômades, principalmente) serem informadas por um modelo mais horizontalizado, com um direito que se confundia com a religião e com relações humanas menos complexas. Ademais, praticamente não existia divisão em classes sociais e a concepção de autoridade não se baseava na figura de um Estado. VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de Conflitos e Práticas Restaurativas. São Paulo, Método, 2008, p.21-22. 122 SANTOS, LEITÃO, PEDROSO, p.9. 58 Estado e a visível dificuldade dos órgãos e estruturas judiciárias de acompanhar o célere desenvolvimento econômico do sistema capitalista e as naturais desigualdades sociais imanentes ao modelo em foco. A antiga engrenagem, individualista e desprovida de um acompanhamento das razões das controvérsias, já não era mais suficiente para dar cabo das lides. Com a crise do Liberalismo, nasceu o Estado-Providência, que, com a prevalência do Poder Executivo, trouxe consigo a utilização da legislação como promoção dos Direitos Sociais ou dos denominados direitos prestacionais, de segunda dimensão 123 . A regulamentação de tais direitos operacionalizou-se mediante a expansão da legislação e, por conseguinte, a tutela e a exigibilidade de tais intitulamentos (os direitos sociais ao trabalho, à educação, à saúde, à previdência, à habitação e aos bens de consumo) ocorreriam, em caso de descumprimento, por meio do direito de ação judicial contra o Estado. Menciona-se que a integração da mulher ao mercado de trabalho incrementou os rendimentos familiares e acabou por influenciar até mesmo as relações conjugais e entre pais e filhos, consolidando, assim, uma base de conflituosidade familiar e contribuindo para o aumento dos litígios judiciais 124 . O reconhecimento de direito definidos como de bem-estar social suscitou, concomitantemente, litígios de ordem coletiva e um aumento considerável da busca pela demanda judiciária, dada a integração das classes trabalhadoras em contextos de consumo e obtenção de direitos antes fora de sua atuação. A juridificação de áreas antes periféricas e à margem das proteções estatais no campo do direito trabalhista, civil, administrativo e previdenciário originou um aumento significativo da procura pela tutela jurisdicional. O efeito prático e imediato – a eclosão da litigância – exigiu mudanças rápidas nos sistemas nacionais que variaram de país a país, mas envolveram basicamente a informalização da justiça, a consolidação dos tribunais no tocante aos recursos humanos e a infraestrutura, a criação de tribunais especiais para causas de menor complexidade, a reprodução dos métodos alternativos de solução de litígios e reformas processuais diversas. Tudo com um único fim: atender aos requisitos de eficácia e de acessibilidade irrestrita aos sistemas judiciais 125 . A crise do Estado-Providência não eliminou a crescente busca pela tutela judicial. A desregulação econômica aliada a um inchamento legislativo decorrente de um Direito Transnacional, materializado na Lex Mercatoria, possibilitou o aparecimento de litígios de 123 Os direitos de segunda dimensão estão intrinsecamente conectados com o princípio da igualdade e se manifestam como os direitos sociais, culturais e econômicos, direitos coletivos ou de coletividade. 124 SANTOS, Boaventura de Souza. Pela Mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 11. ed. São Paulo: Cortez, 2006, p.166. 125 SANTOS, LEITÃO, PEDROSO, p.14. 59 alta complexidade em contraposição a um Poder Judiciário não especializado e incompatível tecnicamente. A frágil eficácia social normativa, in casu, do ordenamento jurídico nacional, autorizadas pela também prática legiferante desordenada 126 , embora não seja uma unanimidade entre os estudiosos, funcionou como vetor motriz na construção da explosão de litigiosidade. A lei, no Estado Brasileiro, deixou de ser a representação da vontade popular em razão das pressões de grupos com interesses não coincidentes com o interesse público. Em adição a isso, a técnica legislativa e a baixa qualidade na produção das leis contribuem para a confecção de documentos legais confusos, complexos e em larga escala 127 . O resultado: existem, atualmente, no Brasil, 68 emendas constitucionais, 12.596 leis ordinárias produzidas, 2.792 Medidas Provisórias (1988-2012) e 7.703 Decretos 128 . A implicação jurídica do exercício desorientado da função legislatória é vista na quantidade de ações constitucionais cujo objeto é o controle concentrado de constitucionalidade. O Supremo Tribunal Federal, no seu sítio eletrônico, informa que, de 1988 a fevereiro de 2012, foram distribuídas 4.665 Ações Diretas de Inconstitucionalidade, das quais 1.157 aguardam julgamento; de 1993 a 2012 foram distribuídas 240 Arguições por Descumprimento de Preceito Fundamental 129 . No que se conecta à litigância, a dificuldade de compreensão de tantas normas e a deficiência no conhecimento do seu conteúdo por parte da população induz a uma baixa efetividade desses comandos normativos e à decorrente violação lógica dos seus enunciados. A resposta, seja por via de ação judicial, que tem como autor o próprio Estado (em nome do interesse público), ou pelo enfrentamento dos próprios agentes privados, a essa realidade traduz-se em demandas que visam a repressão das condutas ilícitas ou o adimplemento das obrigações. O assunto é tratado, igualmente, como uma crise do legalismo e indica seus sintomas como uma “a) generalizada desobediência à lei, por parte dos simples cidadãos; b) a não aplicação [...] da lei, por parte dos órgãos do poder 130 ; c) a ineficiência dos mecanismos de aplicação coercitiva da lei (crise de justiça, crise de ordem)”131. A adoção do parâmetro da 126 A intensa atividade legiferante está intimamente conexa à cultura jurídica pátria. Exemplo notório disto é o caráter analítico da Constituição Federal (CF) de 1988. 127 MANCUSO, 2009, p.44-66. 128 Fonte: Presidência da República. Sítio eletrônico do Planalto. Disponível em: . Acesso em 20 de março de 2012. 129 STF, Sítio eletrônico: . Acesso em 20 de março de 2012. 130 Ou aplicação seletiva dos dispositivos legais. 131 HESPANHA, Antonio Manuel. Lei e justiça: História e prospectiva de um paradigma. In:_________________(org.). Justiça e litigiosidade: história e prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p.9. 60 legalidade – e redução do pluralismo – pode ser vista como instrumento de controle social e paradigma de regulamentação básica das relações sociais, na medida em que toda a atividade social deve, necessariamente, ser avalizada pelas regras postas. A negação de uma dessas regras repercute como gênese conflitiva entre Estado e cidadãos ou mesmo entre particulares. Esta hipótese foi refutada sob a alegação de que uma mera violação ou um desconhecimento do Direito não deve ser sempre compreendido como promotor de um litígio. Assim, a violação normativa não é suficiente para desencadear um litígio, sobretudo porque, na maioria das situações, não se tem em mente de forma suficientemente clara o dano causado pela demanda, a transgressão normativa ocorrida de norma e qual o regramento alvo da contrariedade 132 . Portanto, dadas as diferentes percepções da realidade que cada sujeito ou grupo possui, as definições de tolerância diante de situações adversas são variáveis de forma que baixos níveis de litigiosidade não devem ser lidos como “baixa incidência de comportamentos injustamente lesivos”133. Ainda que se concorde aqui com o professor Mancuso no sentido dos efeitos negativos da atividade legislativa, não se pode atribuir absolutamente a essa situação o posto de pilar da litigiosidade. É bem verdade que uma norma de baixa qualidade técnica e jurídica e desprovida de fiscalização dá azo a uma inefetividade social e a transgressões recorrentes, porém a constatação disso não implica que a judicialização em demasia seja alimentada pela conversão automática da transgressão em litígio. Justifica-se. Para que o litígio seja caracterizado não basta a constatação de uma violação, é imprescindível a presença da pretensão resistida, a demonstração expressa ou tácita de que o interesse das partes é contraposto e incompatível. A negativa da composição é que configura o litígio. Não se pode partir do pressuposto de que todos ou grande parte dos indivíduos têm a capacidade de aferir uma violação normativa, notadamente pelo desconhecimento do plexo de leis e pela deficiência educacional do povo. 132 No que tange às distintas percepções sobre acerca da avaliação dos danos, Santos, Mancuso e Pedroso esclarecem que “São enormes os problemas conceituais e metodológicos do estudo das percepções e avaliações de danos. Pessoas diferentes com percepções semelhantes de uma dada situação fazem dela avaliações diferentes e, vice-versa, fazem avaliações semelhantes de situações diferentemente percebidas. Muitos trabalhadores têm dificuldade em saber se estão doentes, se a causa da doença está relacionada com o trabalho, se o trabalho causador da doença viola alguma norma, se é possível alguma reação contra isso. Do mesmo modo, só uma inspeção dos documentos do empréstimo tornaria possível saber se o devedor foi vítima de usura no caso de ele próprio não se ter apercebido disso. As pessoas expõem-se a danos e são injustamente lesadas em muito mais situações do que aquelas de que têm consciência. Certos grupos sociais têm uma capacidade muito maior que outros para identificar os danos, avaliar a sua injustiça e reagir contra ela. Quanto mais baixa é a capacidade de identificação, mais difícil se torna avaliar o significado sociológico da base da pirâmide. Subjacente às situações identificadas como geradoras de litígio pode estar um conjunto maior ou menor de condutas injustamente lesivas, um conjunto em grande medida indeterminável”. SANTOS, MANCUSO, PEDROSO, p.46. 133 Ibidem, p.45. 61 Por ensejos de ordem socioculturais, o resultado é o mesmo: uma ebulição social que comina numa enxurrada de demandas de toda ordem. O Relatório “Justiça em Números” do ano de 2010 134 , no quesito litigiosidade, indicou um total de 24.227.727 novos processos juntamente com os 59.166.274 ainda pendentes 135 . Em termos comparativos, poder-se-ia afirmar que no ano-referência a cada 9 brasileiros 1 já havia ajuizado alguma ação. Caso fosse feita a devida soma com as ações em curso, 1 em cada 3 possuía algum tipo de controvérsia judicial. A situação ainda é agravada pela existência da litigiosidade contida ou reprimida 136 . Trata-se daqueles conflitos que não foram transformados em lides por um acesso à justiça deficitário, pelo descrédito nas instituições ou por resignação das partes, mas nem por isso deixam de existir e demandar uma solução 137 . São situações decididas pela renúncia do direito por uma das partes ou pela prevalência da autotutela e podem desembocar numa onda de violência à margem do Poder Estatal. O quadro delineado ainda se anacroniza quando se visualiza a satisfação do Poder Judiciário pelos destinatários dos serviços públicos que presta. Entre 1º e 30 de setembro de 2011 foi realizada uma Pesquisa de Clima Organizacional e Satisfação com o objetivo de mapear os desafios da Justiça Brasileira identificados pelos agentes e usuários da Justiça, contribuindo para a elaboração das diretrizes do planejamento anual que norteia o trabalho do CNJ. A enquete contou com a participação de 26.750 pessoas, sendo 803 magistrados, 7.259 servidores e 18.688 usuários do Poder Judiciário. Os resultados indicam uma percepção de serviços inadequadamente prestados: 42% dos usuários informaram que poucas vezes o atendimento é rápido, sem filas ou espera excessiva; 48,4% declararam que raramente há interesse em atender o utente; 62,7% declararam que as audiências não são realizadas no horário previsto; 56,7% disseram que os processos nunca são concluídos no prazo previsto pela legislação e 64,8% confirmaram que, ao usar um canal de contato, as respostas não são dadas em tempo hábil 138 . Em 2010 e 2011, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA divulgou estudo acerca da credibilidade dos órgãos que compõem os setores responsáveis pela Justiça. 134 CNJ, 2010, p.187. 135 O total de casos julgados no mesmo ano foi da ordem de 22.152.378. 136 WATANABE, Kazuo. Filosofia e características básicas do Juizado Especial de Pequenas Causas. In: ___________(Coord.). Juizados Especial de pequenas causas. São Paul: Revista dos Tribunais, 1985, p. 2. 137 Estima-se que apenas em torno de 33%, em média, das pessoas que estão inseridas numa situação conflituosa busquem o Poder Judiciário. Os 67% restantes, em razão de não serem monitorados por órgãos oficiais, estão excluídos da solução jurisdicional e não se sabe dimensionar quais tipologias foram aplicadas para a resolução dos conflitos. 138 CNJ. Disponível em: . Acesso em 21 de março de 2012. 62 Os números são preocupantes. Numa escala de 0 a 10, a nota média atribuída pelas mais de duas mil pessoas ouvidas nas diversas regiões do país foi de 4,55. O estudo ainda menciona que a “relativa fragilidade na imagem pública da Justiça é generalizada na população e tende a ser mais negativa entre os que buscaram ativamente a Justiça para a resolução de conflitos ou a realização de direitos”. As piores avaliações dos entrevistados dizem respeito à rapidez, à imparcialidade e à honestidade. Numa escala de 0 a 4, os resultados foram os seguintes: a) rapidez teve o pior conceito (1,19); b) imparcialidade e honestidade receberam 1,18, notas correspondentes à legenda “mal” na escala de conceitos da pesquisa. Em nenhum dos itens o conceito regular foi alcançado 139 . A interpretação das informações prestadas permite aferir, que além de haver uma litigância descomedida, nem mesmo os resultados práticos desse contexto são satisfatórios. Para corroborar essa conclusão, o Relatório Anual do ano de 2011 do Conselho Nacional de Justiça apontou que a taxa de congestionamento na fase de execução de primeiro grau da Justiça Estadual chega a 89,8%, ou seja, de cada 100 processos sentenciados apenas 10 foram garantidos ou quitados 140 . O quadro desenhado denota uma crise que assola não somente o Poder Judiciário, obviamente, como expressão do Poder Público. O agravamento se dá em razão de uma Administração da Justiça que não deveria ser afligida pelos três males endêmicos que afetam a Justiça: a incerteza do Direito, a morosidade processual e os elevados custos de um processo judicial 141 . A crise de confiabilidade enfrentada pela Justiça sustenta-se na relegação da eficiência como princípio informador da Administração Pública (art. 37, caput, da CFRFB/1988) a um segundo plano. A eficiência, tida como a necessidade de se ter o melhor resultado com o mínimo dispêndio de tempo e energia 142 , não foi cogitada para figurar como valor programático, razão pela qual figura como uma obrigação do Estado na prestação de seus serviços, nos termos do art. 22 do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078, de 11 de Setembro de 1990) 143 . O serviço judiciário inclui-se no modelo de Administração gerencial, 139 IPEA, Disponível em: . Acesso em 21 de março de 2012. 140 CNJ. Relatório Anual 2011. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/relatorios- anuais/atividades/revista_relatorio_anual2011_web.pdf>. Acesso em 21 de março de 2012, p.43. 141 SORIANO, Ramón. Sociologia Del derecho. Barcelona: Ariel, 1997, p.423. 142 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Notas sobre o problema da efetividade do processo. Temas de Direito Processual. 3ªsérie. São Paulo: Saraiva, 1984, p.28. 143 Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos. 63 que encara os processos como um fim em si mesmo, mas leva em consideração os resultados e níveis de satisfação de seus clientes. Compromisso social implica uma prestação jurisdicional de qualidade, de modo que o exercício da jurisdição, na gestão mais moderna, deve ir além dos limites da Justiça Retributiva e dos devidos institutos de Direito Material. Subentende a busca pela real efetividade e pela abertura participativa aos agentes participantes. 3.3 LITÍGIO, LITIGANTES E AS PRÁTICAS DEMANDISTAS Ainda que haja vozes que militem pela impossibilidade de se detectar a real origem dos conflitos 144 , a razão pela qual as pessoas findam em litigar encontra-se em raízes das mais distintas, explicáveis e resolúveis por teorias sociológicas, psicológicas e até mesmo matemáticas. A tentativa de solucionar as controvérsias pela via judicial é legítima. Afinal, é uma das funções do Poder Judiciário compor os conflitos. Nada obstante, o que se destaca é a utilização desproporcional do direito de ação como instrumento único e salvador de todas as pendências existentes entre os inserido em cenários conflituosos. Questões que poderiam ser solucionadas com o mínimo de disposição das partes ocupam o Judiciário, causando lesões ao interesse público e retardando a apreciação de questões com relevo coletivo e importância para a sociedade. Tribunais que foram concebidos para se debruçar sobre questões que envolvam interpretação do Direito, julgar recursos que envolvam matéria constitucional ou que possuam repercussão geral ainda recebem casos que atrasam o desempenho de suas funções mais relevantes. De tal modo, recursos públicos, tempo e desgaste emocional são despendidos por questões de cunho excessivamente ínfimo, que poderiam ser finalizadas facilmente por métodos extrajudiciais ou, ainda, pelas vias conciliatórias adequadas, em sede judicial (caso a formação do magistrado nessa área fosse mais incisiva). A banalização do conflito, qualificado pelo excesso de litigância, autoriza o estudo do perfil destas ações, dos litigantes e das desvantagens de se insistir numa cultura judiciarista a todo custo. Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código. 144 EDELMAN, Joel, CRAIN, Mary Beth. O Tao da negociação. Rio de Janeiro: Record, 1996, p.42. 64 3.3.1 O litígio As teorias dos conflitos visam propor explicações sociológicas, culturais e psicológicas para os litígios. Contudo, poucas delas dedicam-se a estudar as percepções mais intrínsecas do conflito como elemento básico para sua resolução. O litígio abrolha pela combinação de fatores ou ação de alguns deles isoladamente. Edward de Bono defende que as discordâncias entre pessoas nascem de quatro pontos: a) elas veem situações de maneira diferente; b) elas querem coisas diferentes; c) porque a forma de pensar das pessoas as encoraja para isso; d) porque se espera que elas litiguem 145 . A inadequação da língua traduzida pela deficiência comunicativa, bem como o encorajamento (incentivo) para que ele se perpetue contribui para a construção de cenários favoráveis ao dissenso. A dificuldade em dialogar e a interpretação equivocada das palavras ou mesmo do tom com as quais essas são proferidas desembocam em impressões inexatas acerca de uma realidade. O cuidado com os termos utilizados é um instrumento eficaz no processo de eclosão e composição das divergências. Outros reduzem a causa-raiz dos conflitos à mudança, real, percebida, ou à mera perspectiva de que ela venha a ocorrer. É na transformação de uma realidade que reside a causa de todos os conflitos, seja no momento em que “[..] o empregado percebe que o chefe passou a ignorá-lo; a esposa percebe o marido menos carinhoso; o aluno sente que o professor o persegue com perguntas mais difíceis”146. Tais percepções podem corresponder à realidade, mas, mesmo que não seja o caso, arrisca ocasionarem contendas reais, constituindo a conhecida realidade psíquica 147 . No entanto, o entendimento só procede parcialmente, posto os elementos considerados nessa perspectiva serem aplicáveis a conflitos de natureza meramente intersubjetiva ou que envolvam algum elemento emocional, aparentemente. Conforme se verá adiante, grande parte das ações que transitam tem a Administração Pública como parte, sobretudo autora. O processo é desprovido desse senso de percepção de realidade e convivência, notadamente pelo princípio da impessoalidade que governa e informa as ações administrativas (art. 337, caput, CFRFB/1988). A utilização do contencioso judicial tem sido um meio de exigibilidade de uma obrigação que deveria ser cumprida naturalmente 145 DE BONO, Edward. Conflicts: a better way to resolve them. Harmondsworth: Penguin Books, 1991, p.47- 78. 146 FIORELLI, José Osmir, FIORELLI, Maria Rosa, MALHADAS JUNIOR, Marcos Julio Olivé. Mediação e solução de conflitos: teoria e prática. São Paulo: Atlas, 2008, p.6. 147 Ibidem, p.6. 65 pelo demandado e que possui entes públicos como réus. Quando autores, a Administração desprivilegia instâncias administrativas e a comunicação entre órgãos públicos dificulta a resolução de problemas que poder-se-iam encerrar facilmente nas instâncias extrajudiciais. Algumas iniciativas são dignas de comentário e elogiáveis. Um exemplo é o Comitê Interinstitucional de Resolução Administrativa de Demandas da Saúde – CIRADS, cujo funcionamento indica um novo horizonte, embora ainda incipiente se comparado ao cenário geral, na condução da matéria 148 . O CIRADS tem sido uma referência na atuação do setor público para a não judicialização dos conflitos. A solução administrativa é viabilizada e analisa os casos em que o assistido não tenha recebido o acesso adequado ao Sistema Único de Saúde (SUS), resolvendo as controvérsias no âmbito administrativo, quando possível, bem como conciliando as ocorrências já transformadas em ações judiciais, nas hipóteses em que o tratamento de saúde (fornecimento de medicamentos, de insumos, de materiais e de serviços de saúde) “esteja previsto no âmbito do SUS e não tenha sido prestado, bem como naquelas hipóteses em que, por algum motivo, o médico tenha indicado tratamento diverso dos que são oferecidos pelo SUS” 149. O CIRADS configura-se como um modelo a ser seguido por toda a Administração Pública nas mais distintas instâncias, que, certamente, repercute numa atuação prevencionista e cooperativa dos conflitos. 3.3.2 Os litigantes Há classificação doutrinária acerca dos tipos de litigantes em quatro grupos: a) litigantes de boa-fé; b) litigantes por necessidade financeira; c) litigante de má-fé; d) litigante amante do litígio 150 . 148 O CIRADS foi constituído por meio do Acordo de Cooperação Técnica celebrado entre a Procuradoria da União no Estado do Rio Grande do Norte - PU/RN, a Defensoria Pública da União no Estado do Rio Grande do Norte - DPU/RN, a Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Norte - PGE/RN, a Procuradoria Geral do Município do Natal - PGMN/RN, a Secretaria de Estado da Saúde Pública - SESAP/RN e a Secretaria Municipal de Saúde do Natal - SMS/Natal, cuja assinatura ocorreu em solenidade realizada na sede da PU/RN, no dia 22 de julho de 2009. Posteriormente, no dia 26 de julho de 2010, foi assinado o Primeiro Termo Aditivo ao referido Acordo de Cooperação Técnica, para incluir a Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Norte no comitê. Em 2010, o CIRADS recebeu menção honrosa, na VII Edição do Prêmio Innovare, evento que premia as melhores práticas jurídicas do País. Fonte: Sítio eletrônico da Advocacia-Geral da União. Disponível em: . Acesso em 01 de abril de 2012. 149 Idem. 150 SOUZA NETO, João Baptista de Mello. Mediação em Juízo: abordagem prática para a obtenção de um acordo justo. São Paulo: Atlas, 2000, p.33-40. 66 O primeiro perfil diz respeito àqueles que buscam uma solução para o conflito, ainda que não seja a adjudicada, e somente acionaram o aparato estatal por crer em seu íntimo que seu pleito é justo. Dizem a verdade a respeito daquilo que creem, embora sejam passíveis de erro. É um tipo de contendedor que está sujeito a considerar argumentos que sejam razoáveis e lógicos, disposta a “eliminar o ‘problema’ que para ela é o processo, desde quem claro, não seja ao custo de subverter suas crenças (...)”151. O litigante de boa-fé se socorre do processo contencioso como um instrumento legítimo de reparação de uma situação gerada pela instauração de um conflito e que, ao seu entender, é inviável ou impossível que ele e seu adversário encerrem a disputa sem a intervenção de um terceiro. Aqueles que litigam por necessidade financeira, em regra, estão no polo passivo da demanda e assim se encontram por não poderem, na maioria dos casos, adimplir com suas obrigações por razões financeiras 152 . Soluções consensuais podem ser aplicáveis a depender da intencionalidade do credor e do devedor de compor a lide. Situações como alterações econômicas, desequilíbrios nas receitas são indícios de um perfil de devedor dessa categoria. O contendedor de má-fé, por seu turno, é cônscio da morosidade e inefetividade de que padece o processo judicial e disso se utiliza para postergar seu status de devedor, por exemplo. Conta, ainda, com a incerteza da sentença, isto é, por manobras processuais, inabilidade do advogado da outra parte ou induzimento a erro do magistrado é possível que obtenha decisão favorável. Quando propostas soluções alternativas para a resolução do litígio, o litigante de má-fé demonstra-se inflexível, pois conta com a difícil situação do sistema judiciário a seu favor. Por último, o demandante que tem “amor” ao litígio é movido pela premente necessidade de se manter ligado ao adversário, ainda que por intermédio de um processo judicial. Trata-se de um elo emocional, relação afetiva existente previamente (ou de mera fidúcia) que foi violada, gerando angústia, frustração, ciúmes. A saída para esse tipo de autor é protelar, ao máximo, o processo para que o vínculo se perpetue, como, por exemplo, nas lides que tenham como objeto o Direito de Família 153 . 151 Idem, p.36. 152 Idem, p.36-37. 153 Marc Galanter faz uma diferenciação em somente duas categorias de litigantes: os eventuais e os habituais. Os habituais, segundo o professor de Wisconsin, possuem pelo menos cinco vantagens, quais sejam: a) possuem maior experiência com o manejo do Direito, o que permite melhor planejamento dos litígios; b) estão inseridos em vários casos, razão pela qual podem dissolver os riscos da demandas pelos números de casos e testar maior número de estratégias em hipóteses determinadas, obtendo sucesso em futuras demandas semelhantes; c) estão mais habituados com o ambiente judicial, dado à própria convivência proporcionada pela litigância e em razão disso, desenvolvem maior intimidade com os membros das instâncias decisórias. GALANTER, Marc. Why the 67 Acrescenta-se aqui uma quinta categoria, cuja denominação será a do “litigante por opção de política de solução de conflitos”. O Conselho Nacional de Justiça, em março de 2011, divulgou a lista dos 100 maiores litigantes. Dos dez maiores litigantes, seis integram a Administração Pública, quais sejam: INSS - INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL (22,33%), CEF - CAIXA ECONÔMICA FEDERAL (8,50%), FAZENDA NACIONAL (7,45%), UNIÃO (6,97%), BANCO DO BRASIL S/A. (4,24%), ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (4,24%). Em dados mais concretos, de todos os processos em curso no Judiciário nacional, a Administração Pública é parte em 53,73%, seja como autora ou como ré 154 . No campo privado, o setor Bancário e o de Telefonia disparam com a quantidade de ações ajuizadas ou em que figuram como réus: em 7º, 8º, 9º e 10º lugar da pesquisa estão, respectivamente, o BANCO BRADESCO S/A (3,84%), o BANCO ITAÚ S/A (3,43%), a BRASIL TELECOM CELULAR S/A (3,28%) e o BANCO FINASA S/A (2,19%). Juntos, Bancos, Telefonia e Setor Público (Federal, Estadual e Municipal) representam 95% do total de processos dos 100 maiores litigantes nacionais 155 . Ainda de acordo com a pesquisa, conclui-se que “do total de processos dos 100 maiores litigantes nacionais, 59% referem-se ao polo passivo, sendo o comportamento do Setor Público Municipal diferente dos demais, uma vez que 97% dos processos desse setor referem-se ao polo ativo”156. Ao se deparar com esses dados, o CNJ, em louvável iniciativa e comprometido com a qualidade da Justiça brasileira – feitas as ressalvas já apontadas anteriormente -, sob a presidência do Ministro e Conselheiro Cezar Peluso, convocou representantes dos cem maiores litigantes e promoveu dois dias de seminários para debater os resultados da pesquisa e discutir propostas e ações capazes de reduzir o número de processos em tramitação e prevenir novos litígios. Há de se esperar os próximos relatórios para aferir os resultados práticos nas políticas de litigância desses órgãos. Para além de questões quantitativas, deve-se atentar para um aspecto recorrentemente ignorado pelos juristas acerca do tema, qual seja a análise econômica da litigância. Embora ‘haves’ come out ahead: speculations on the limits of legal change. Law and Society Review. Wisconsin: 1974, v.9, n.1. p.95-160; GALANTER, Marc. Afterword: explaining litigation. Law and Society Review. New York, v. 9, p. 347, 360, 1975. 154 CNJ, 2011, 100 maiores litigantes. Disponível em: < http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas- judiciarias/pesquisa_100_maiores_litigantes.pdf>. Acesso em 01 de abril de 2012. p.5. 155Nítido o enquadramento dos referidos litigantes na categoria dos chamados “habituais”. Em razão das vantagens detectadas por Marc Galanter - descritas anteriormente –, os litigantes organizacionais possuem maior eficiência do que os individuais e é possível tirar maior vantagem de seus direitos em contraposição aos últimos. CAPPELLETTI, Mauro, GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Traduzido por Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, p.25-26. 156 CNJ, 2011, p.15. 68 seja uma intersecção entre Direito e Economia, essa área de conhecimento tem como escopo expor as repercussões e razões econômicas capazes de alavancar a judicialização das relações sociais. Em tempos nos quais o Direito Orçamentário se robustece e a busca pela Administração Pública gerencial – impulsionada pelo princípio constitucional da eficiência - caminha a passos largos, a otimização dos recursos públicos ganha espaço no cenário da gestão judiciária. Notadamente quanto ao aspecto ora tratado, a litigância envolve uma série de fatores que exigem o alocamento de verbas, seja no campo estrutural, seja no aspecto de recursos humanos. Com efeito, uma demanda judicial repercute na utilização dos serviços dos funcionários públicos, na ampliação do quadro de carreira desses e no dos respectivos magistrados, bem como na manutenção e criação de novas Comarcas e Varas, como a criação recente de Varas Federais, justificada pela chamada interiorização da Justiça Federal. Embora tais elementos sejam relevantes, o foco de uma breve ventilação econômica da litigância reside não somente no aspecto orçamentário ou de investimento público, mas nas repercussões da litigância no perfil econômico da Justiça. Nesse sentido, Miguel Carlos Teixeira Patrício, após estudo acerca da análise econômica da litigância, sobretudo no contexto português (contudo com uma proposta próxima ao modelo de Justiça e litigância brasileira), expôs dez conclusões entre as quais se tem quatro como pertinentes às discussões ora trazidas 157 . O primeiro resultado do mestre português advoga pela constatação que a Justiça Cível faz mais com a celebração de transações entre as partes que com o recurso às vias jurisdicionais, entendimento que coaduna com o argumento já esposado nesse trabalho sobre a solução pacífica do conflito, principalmente quando proporcionado o entendimento direto entre as partes, mediante um incentivo dialógico. Uma segunda pontuação assinala para o papel dos litigantes frívolos, designados anteriormente como aqueles que litigam por amor ou por mero deleite, danoso ao bom funcionamento da justiça, na medida em que sugere e implica custos desnecessários para os participantes das relações processuais, seja por intermédio da busca de uma solução justa ou simplesmente pela consecução de um acordo favorável. Em terceiro lugar, o autor defende que o comportamento do mercado de advogados reverbera diretamente no campo da litigância dispensável, posto que tais profissionais, tendo conhecimento dos baixos custos de proposição de ações, coadunam com o ajuizamento de 157 PATRÍCIO, Miguel Carlos Teixeira. Análise econômica da litigância. Coimbra: Almedina, 2005, p.171-174. 69 ações judiciais sem sustentação técnico-jurídica e não atuam numa diretriz orientadora (devendo ser remunerados para tanto), aventurando-se em demandas desnecessárias para autor, réu e Estado. Quanto às três assertivas acima há de se concordar. Porém, um ponto específico trazido à baila pelo autor não pode deixar de ser criticado - a quarta conclusão. Para Teixeira, a melhoria em recursos materiais e humanos do Poder Judiciário só é válida caso milite em favor da libertação dos cidadãos do conceito de Justiça apenas nos tribunais judiciais. O autor propõe que, se assim não for, a melhor saída é forçar a chamada litigância criteriosa com a uma resposta escassa dos tribunais aos novos processos como forma de estabilização automática de demanda. Soa inviável tal recomendação. Sugerir que a resposta das instâncias jurisdicionais, como mecanismo de estabilização, seja movida por um backlog e o respectivo atraso nas decisões é atentar contra o fundamento de qualquer serviço público: a eficiência e a confiabilidade da prestação. Cite-se, na mesma senda, que tal proposta é incabível no quadro nacional, em face das sucessivas tentativas e esforços que o Conselho Nacional de Justiça tem envidado para o melhoramento dos serviços judiciários tanto sob o olhar do fortalecimento do dos órgãos correcionais e ouvidorias como implementação de metas aos tribunais judiciais brasileiros, acobertado pelo manto da eficiência. Vencidas essas considerações, deve-se também ponderar acerca dos outros atores que participam da ação. Com nitidez o processo judicial é conduzido pelo magistrado, com o auxílio dos servidores da Justiça e atuação dos advogados e do Ministério Público. A transformação de uma cultura de litigância para o modelo pacificador demanda a mutação de perfil desses profissionais. A figura do juiz descomprometido com os interesses das partes e indiferente às repercussões que suas decisões e modo de conduzir o processo terão na vida social já não é mais suficiente 158 . A atuação do julgador goza de nobreza singular e deve se pautar por duas vertentes: a pedagógica e a repressiva. Pela ótica pedagógica, o magistrado há de se responsabilizar socialmente no sentido de que o conflito deve resultar, por um lado, numa 158 Ressalte-se que o conceito de descomprometimento e indiferença utilizados aqui não são os mesmos defendidos por Niklas Luhmann na sua teoria dos sistemas. Com efeito, o professor alemão, ao entender a Constituição como elo entre o Direito e a Política, vê no juiz, denominado por ele de observador de segunda ordem (ou observador dos observadores), o terceiro desconhecido que promove a estabilização da relação social e o não envolvimento no fato, sua não influência por ele, é elemento indispensável à solução do conflito. LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Universidad Autônoma de México, 2007, p.470. 70 decisão que promova efeitos sociais de aprendizagem e, noutro ângulo, atente ao que Cappelletti designa como modelo de responsabilidade concebido pelos consumidores 159 . O julgador tem a capacidade de conduzir o processo e compete a ele observar a solução rápida do litígio, prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça, nos termos do art. 125, II e III, do Código de Processo Civil. Assim, o juiz tem por função também de combate à litigância desmedida, desarrazoada, que quase sempre é expressada na modalidade de má-fé e, para tanto, o ordenamento processual lhe disponibiliza meios adequados (art. 16, 17, 18, 35 e 129 do CPC). Papel por demais relevante desempenha o advogado no processo de solução de conflitos. Constituído como defensor da parte, o procurador tem qualificação constitucional como indispensável à administração da justiça (art. 133, CFRFB/1988), na senda da Lei n. 8.906, de 4 de julho de 1994, no seu art. 2º, §2º, prestando serviço público e exercendo função social 160 . É de se destacar a relação de confiança entre advogado e parte, materializada no mandato para a defesa ou exercício do direito de ação. Assim, como o orientador oficial e detentor do conhecimento jurídico, este profissional deve exercer o papel de pacificador na justa composição do litígio. A legislação aplicável aos causídicos é expressa e demonstra a preocupação do legislador em inserir o advogado no sistema democrático e pluralista da solução dos litígios. O compromisso com uma ordem jurídica justa implica uma atitude pacificadora do advogado, seja propondo um diálogo com as devidas técnicas de negociação com a outra parte e seu respectivo procurador, seja orientando seu cliente a não se aventurar judicialmente, exercendo uma postura de conciliador constante. A bem da verdade, o advogado é o mediador por excelência. O primeiro contato da parte é com ele e, em última instância, é quem faz o primeiro julgamento do litígio. O poder de convencimento desse profissional é uma grande arma a favor de uma nova cultura de politização judiciária. Infelizmente, há uma resistência a esse novo papel do profissional. O 159 Esta responsabilidade deve atender sensivelmente aos anseios que os consumidores possuem em relação aos serviços judiciários. Implica um maior compromisso do juiz com as questões sociais relacionadas com o conflito que busca solucionar. CAPPELLETI, Mauro. Juízes irresponsáveis? Trad. e revisão de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1989, p.90-91. 160 O Código de Ética Profissional dos Advogados, no seu art. 2º, prevê que “O advogado, indispensável à administração da Justiça, é defensor do estado democrático de direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social, subordinando a atividade do seu Ministério Privado à elevada função pública que exerce”. Ademais, no parágrafo único do mesmo artigo, há a enunciação de DEVER do advogado, nos incisos: VI - estimular a conciliação entre os litigantes, prevenindo, sempre que possível, a instauração de litígios; VII - aconselhar o cliente a não ingressar em aventura judicial. Por fim, o art. 3º prevê que “O advogado deve ter consciência de que o Direito é um meio de mitigar as desigualdades para o encontro de soluções justas e que a lei é um instrumento para garantir a igualdade de todos”. 71 problema tem raízes tanto na cultura da litigância como na própria formação dos profissionais pelas faculdades de Direito. O modelo atual das academias funda-se essencialmente na disputa adjudicada, na dialética conflitiva e na preparação do aluno para o combate no mercado de trabalho. Não há um enfoque na consensualidade, as disciplinas propedêuticas são encaradas como mera perfumaria jurídica e a dialogicidade aparenta ser uma fraqueza para o profissional do Direito 161 . Logo, a ausência de um ensino específico e voltado para as formas conciliatórias indica que não são tão valorizadas, além do pouco conhecimento teórico e técnico referendado pela literatura acerca dos institutos 162 . A reformulação da grade curricular, com o devido suporte pela Ordem dos Advogados do Brasil, é de grande valia para a efetiva mudança desse cenário. Percebe-se, todavia, um temor com relação a mutação da mentalidade, cujo fundamento reside na diminuição do trabalho do profissional da advocacia, na redução dos honorários e na subvalorização do exercício da atividade contenciosa. Não deve prosperar o receio. O advogado é imprescindível ao mundo do Direito. É a representação da ponte entre o ordenamento jurídico e seus destinatários, de modo que sua atuação é de importância, cuja grandeza não pode ser mensurada. A ação do defensor, na cultura da paz, é ainda mais prestigiado. No novo cenário, o patrono continua a desempenhar suas atividades no âmbito do contencioso, mas a especialização em técnicas de soluções consensuais e autocompositivas promove um novo nicho de atuação para os profissionais. A solução negociada em sede de consultoria ou como meio de interlocução entre as partes, se devidamente explorada pelos advogados, com preparação adequada, pode repercutir positivamente nos ativos financeiros e contribuir para uma Justiça mais célere e efetiva. 161 Desde a segunda metade do Século XX, o ensino jurídico brasileiro já recebia críticas. Dantas chegou a afirmar que “só se consideraria, pois, em crise, no mundo de hoje, uma Faculdade em que o saber jurídico houvesse assumido a forma de um precipitado insolúvel, resistente a todas as reações. Seria ela um museu de princípios e praxes, mas não seria um centro de estudos. Para uma escola de Direito viva, o mundo de hoje oferece um panorama de cujo esplendor raras gerações de juristas se beneficiam”. DANTAS, San Tiago. Renovação do Direito. Universidade de Brasília. Encontros da UnB. Ensino Jurídico. Brasília: UnB, 1978 – 1979, p.44. 162 MEDINA, Eduardo Borges de Mattos. Meios Alternativos de Solução de Conflitos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2004, p.34. 72 4 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO: MARCOS TEÓRICOS PARA UMA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL DA SOLUÇÃO DE CONFLITOS A corrente seção capitular preocupa-se em firmar os marcos do fenômeno da constitucionalização do direito e sua ligação com a interpretação constitucional na solução de conflitos. O objetivo, para ser efetivado, necessita do estudo da Constituição e sua representatividade jurídica ao lado da origem e significado da constitucionalização do Direito e hermenêutica constitucional. 4.1 POLISSEMIA CONSTITUCIONAL E REPRESENTATIVIDADE JURÍDICA A Constituição não é uma lei, tampouco uma lista positiva de intenções. Ainda que soe tautológico (e, de fato, tal constatação lógica é inarredável em uma leitura imediata da construção frasal que se segue), a Constituição é a Constituição... Do Estado, do sistema jurídico-normativo, dos direitos fundamentais. Ela é uma tipologia singular, pois dotada de características próprias, de modo que se sobrepõe à ditadura das leis e dos regulamentos na medida em que detém supremacia formal e material, sem perder a capacidade de se acoplar, para usar uma locução mais Luhmanniana. Trilhando essa perspectiva, indica-se que é inadequado o conceito proposto por Ferdinand Lassale que a Constituição Jurídica nada mais seria do que folha de papel, estando completamente submetida à Constituição Sociológica, materializada pelas forças reais de poder 163 . Compreender a Lei Magna analisando sua subserviência aos episódicos desejos sociais seria negar normatividade ao mais jurídico dos Direitos e relegar à Ciência da Constituição jurídica a “função senão a de constatar e comentar os fatos criados pela Realpolitik”164. Esse entendimento de uma supervalorização do social sobre a própria construção do ordenamento jurídico consiste em dizer que o Direito não existe e, se ele sequer existe, é uma mera construção teórica despida de qualquer fundamentação científica minimamente profícua, como se as suas estruturas mais elementares fossem apenas reflexo ou detritos marginais de toda a pujança sociológica mais espontânea do “mundo sensível”. Ainda assim, paira a dúvida: a quem interessaria esvaziar a Constituição de sua capacidade de transformar realidades? É possivelmente lógico observar que há uma vasta compreensão de 163 Cf. LASSALE, Ferdinand. A Essência da Constituição. Tradução de Walter Stonnes. Rio de Janeiro: Líber Juris, 1985. 164 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p.11. 73 sentidos que são extraíveis do texto constitucional, sem que as premissas mais imediatas de sua realização concreta sejam depostas de uma clara concatenação axiológica. Konrad Hesse utilizou como substrato o conceito de Lei Fundamental esboçado por Jellinek para propor o estudo de outros sentidos e significados de Constituição, a saber: função organizativa, integradora e diretriz jurídica 165 . A função organizadora materializa uma das premissas do constitucionalismo – o princípio da legalidade e limitação dos poderes estatais –, ao tempo em que a Constituição prevê a criação de órgãos com especificidades e papéis limitados, objetivando a cooperação e responsabilidade estatal. Pelo ângulo integrador, teria a função de conjugar os cidadãos ao Estado por meio da colaboração e da conciliação. A diretriz jurídica outorga à Constituição a responsabilidade de irradiar seus valores (direitos fundamentais, em especial) no processo de normatização ordinário e de reforma constitucional, de modo a “garantir a existência de um ordenamento jurídico moralmente reto”166. Em última instância, Hesse ao tentar formular uma definição normativa de Constituição, prima por delinear a concepção de uma ordem jurídica fundamental da Comunidade 167 em que ela se insere, a qual finda por consagrar as linhas básicas do Estado, estabelece diretrizes para as tarefas e limites ao conteúdo da legislação vindoura, através de meios dispositivos condizentes ao exercício do poder, à organização do Estado e aos direitos e garantias fundamentais, os quais não podem ser extirpados dessa configuração normativa. Indiscutível acrescentar às funções trazidas por Hesse, segundo nosso entendimento, outro papel constitucional, qual seja a materialização dos direitos fundamentais, otimizada no campo da normatividade dos princípios, da hermenêutica concretizadora e na teoria material da constituição. As ditas relações estão associadas ao que se denomina de Neoconstitucionalismo, momento subsequente ao positivismo estrito, que se destaca pela proximidade entre Direito e Moral, constitucionalização do Direito, ascensão da jurisdição constitucional, rigidez da Constituição e suas nas relações políticas 168 . Nesse ponto, destaca- se que, mesmo estabelecendo as linhas essenciais e básicas das diretrizes de atuação estatal, a 165 JELLINEK apud HESSE, 1991, p. 2-4. 166 HESSE, p.5. 167 A Comunidade deve ser compreendida como a realidade unitária do Estado-sociedade, através da qual se deve olhar atentamente para a sua história e perceber o núcleo essencial de direitos de que é, em si mesma, destinatária, não bastando, portanto, estudar a Constituição de um país de forma abstraída dessa concepção evidente. BETTINI, Lúcia Helena Poletti. O Direito Constitucional comparado: Breve análise das sociedades tribais e suas instituições. In: GARCÍA, María; AMORÍM, José Roberto Neve (org.). Estudos de Direito Constitucional Comparado. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p.35. 168 BARBERIS, Mauro. Neoconstitucionalismo, Democracia e Imperialismo de la Moral. In CARBONELL, Miguel (Org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2005, p.262. 74 Constituição não é capaz de esvaziar totalmente a disciplina da vida social que ela regula e normatiza, permanecendo, em certo sentido, aberta, incompleta e inacabada 169 . Ou seja, por mais que ela seja suscetível a sofrer influências e influxos políticos em suas delimitações e imposições de conteúdo, ela não será capaz de esgotar os assuntos possíveis de transcrição em termos normativos e cogentes. As múltiplas funções descritas são consistentes, porquanto, no contemporâneo Direito Constitucional e no estudo dos direitos fundamentais, não se concebe a Constituição como documento exclusivamente político, mas também normativo. Todas as experiências mundiais que rebaixaram textos constitucionais a orientações estritamente positivistas - olvidando dos valores neles implícitos -, sociológicas ou de poder, resultaram na aceitação do mal e da barbaridade como fenômenos inerentes aos seres humanos, e.g., o nazismo e fascismo. Logo, é límpido que a Constituição não se restringe apenas a organizar o Estado ou delimitar seu poder. Ela é polissêmica, mas sem se perder nas suas próprias definições, nem se contradizer nos valores propalados. Justamente por causa dessa multissignificação, a abundância de representações decorrentes dos direitos fundamentais na condição de elementos da ordem objetiva corre o risco de ser subestimada (e, possivelmente, malbaratada), caso tal miríade de compreensão interpretativa constitucional seja reduzida a uma dimensão simplista de inclinação meramente valorativa 170 . Não se pode negar a influência de determinações de ordem axiológica nas disposições constitucionais, mas é indispensável o cuidado para não se autorizar a redução da polissemia interpretativa constitucional à Teoria de Valores, sob pena de se vilipendiar a objetividade do próprio ordenamento jurídico como um todo esquemático. Diante dessa constatação, a doutrina constitucionalista tem-na atribuído, conforme já se viu, de acordo com os ensinamentos de Hesse, outros sentidos. Jorge Miranda, por exemplo, classifica a Constituição tendo como origem perspectivas que adotam como critério o significado constitucional 171172 . 169 BONTEMPO, Alessandra Gotti. Direitos sociais: Eficácia e acionabilidade à luz da Constituição de 1988. Curitiba: Juruá, 2005, p.27. 170 SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e proporcionalidade: Notas a respeito dos limites e possibilidades da aplicação das categorias da proibição de excesso e de insuficiência em matéria penal. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.). Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008, p.214. 171 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo II. 4ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p.8-36. 172 O publicista lusitano procede à classificação em foco sob as alcunhas de Constituição formal, material, instrumental institucional, normativa, semântica, nominal, capitalista, socialista, do mundo periférico, estatutária e orgânica. Arrola, ainda, na já referenciada obra, o jurista as definições positivistas (Laband, Jellinek, Kelsen), 75 Sabe-se que o Direito – e a Constituição nesse contexto está inserida – é resultado da prevalência das forças de poder superiores. O Texto Maior não é uma benesse divina, muito menos fruto de uma liberalidade das estruturas de governo. É assentado sobre poder, riqueza e entendimento, mas se preocupa, fundamentalmente, em organizar as relações entre o poder político e o cidadão 173 . Por óbvio, não é uma Carta de Flores no sentido mais romântico da locução. Todavia, a Constituição é a representação dos valores considerados como mais relevantes pela Nação – na concepção de Constituição promulgada e de origem legítima – e nela estão dispostas as influências de diversos setores da composição social: economia, saúde, trabalhadores, burocratas e minorias. O fato da Constituição nascer sobre forças econômicas não implica que nela não existam catálogos de direitos fundamentais conquistados e aplicáveis aos homens. Ela é formal e materialmente superior às outras normas e disso se deduz seu tratamento diferenciado. É dizer que, do ponto de vista do Direito, a Constituição é tanto o elemento de ligação entre o mundo do dever-ser com o mundo do ser, como a instância mais ampla do arcabouço jurídico, validada por elementos temporais, pessoais, territoriais e que “perpassa transversalmente todo o sistema jurídico, dando-lhe consistência”174, de maneira a autofundamentar todo o Direito. Na contemporaneidade, em que pese o recente robustecimento da difusão de uma leitura constitucional do direito ordinário, têm sido prestigiados a acepção material da Constituição, o entendimento de que as prescrições normativo-constitucionais geram direitos subjetivos para os cidadãos, bem como a constatação de que sua força e relevância serão sempre tão intensas quanto o Poder Constituinte lhe atribua representatividade jurídica. Daí se afirmar que o movimento constitucionalista, com arrimo nos postulados do jusnaturalismo, preza por agasalhar a ideia da superioridade material e hierárquica da Constituição, capaz de proteger os homens contra o arbítrio estatal 175 . 4.2 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO Ao se falar sobre constitucionalização do direito, deve-se ter o cuidado científico- metodológico de esclarecer as possíveis implicações do termo. Há, na doutrina, pelo menos históricas (Burke, Gierke, De Maistre), sociológicas (Lassale, Sismondi, Lorenz Von Stein), socialista (Karl Marx), institucionalista (Hariou, Renard, Burdeaum Santi Romano, Mortati), decisionista (Carl Schmitt) e estruturalista (Spagna, Musso, José Afonso da Silva) (Ibidem, p. 52-54). 173 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2.ed. Coimbra: Almedina, 2008, p.21-22. 174 NEVES, Marcelo da Costa Pinto. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p.59. 175 GURGEL, Yara Maria Pereira. Direitos humanos, princípio da igualdade e não discriminação. São Paulo: LTr, 2010, p.36. 76 três sentidos nítidos e aplicáveis aos métodos de implementação de tal instituto jurídico. Pode-se compreendê-la, numa primeira toada, como “qualquer ordenamento jurídico no qual vigorasse uma Constituição dotada de supremacia”176. Noutra exegese, significa o processo de incorporação formal de temas relevantes para o tecido social ao texto da Constituição e a ideia de “efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sistema jurídico”177. Para efeitos de delimitação do estudo, utilizar-se-á a segunda acepção. A elevação de matérias infraconstitucionais ao status de norma constitucional, no atual sistema jurídico brasileiro, pode ocorrer de duas formas: positivação, mediante uma nova Assembleia Constituinte e exercício do Poder Constituinte Derivado, por intermédio das Emendas Constitucionais. Observar a constitucionalização do direito é saber que determinado valor tem tomado corpo nas discussões acadêmicas, jurisprudenciais, mas, em essência, nas relações intersubjetivas que originam o fato social e remetem em última instância às fontes materiais do Direito. Na mesma esteira, são cristalinas as demonstrações históricas no intuito de pacificar a premissa de transição de um Estado de Legalidade Estrita para um Estado Constitucional de Bem-Estar Social, sobretudo na Europa Continental, o que, em termos práticos, remete à constitucionalização do pensamento de metalegalidade presente na nova ordem mundial. A referida mudança deveu-se à substituição do civilismo – baseado na ideologia liberal de não-intervenção estatal nas relações privadas - e do penalismo como centros gravitacionais do Direito para um modelo de organização em que os valores básicos civilizatórios integram a estrutura do Documento Maior do Estado. A esperança na legitimidade parlamentar para a criação do Direito e a força do laissez-fair foram abaladas pelo capitalismo frenético, o qual agravou a situação de desigualdade social e autorizou um câmbio do modelo teórico de Estado 178 . O paradigma de socialidade proporcionou um excesso legiferante e a consequente desvalorização das leis. Portanto, com a concomitante difusão do movimento Neopositivista, a constitucionalização de direitos foi um dos marcos do novo período, que se assentou nos princípios de valorização do homem como instrumento hábil para retomar a moral racionalista, já defendida por jusnaturalistas. Assevera-se que “(...) nos países dotados de 176 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p.351. 177 Ibidem, p. 351-352. 178 SARMENTO, Daniel. Ubiquidade Constitucional: os dois lados da Moeda. In SOUZA NETO, Cláudio Pereira de, SARMENTO, Daniel. (org.). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p.117. 77 constituições normativas que protegem os direitos humanos, a moral racional foi trazida para o interior do Direito Positivo e posta no seu patamar hierárquico mais elevado”179. Em outras palavras, constitucionalizar é assegurar direitos e garantias num nível jurídico superior, com mecanismos mais rígidos de alteração e, principalmente, com uma força normativa orientada para a sociedade (efeito horizontal dos direitos fundamentais) e para o próprio Estado Legislador (efeitos verticais e irradiantes). É estar cônscio que em razão do novo sentimento constitucional não há mais área da vida humana isenta de regulação pelo Direito Maior, de maneira que a Constituição passa a ser “invasiva” a todas os setores onde há atividade social: família, trabalho, meio-ambiente, jurisdição, cultura, esporte, educação, saúde e seguridade social. Competência merecedora de destaque foi aquela outorgada às Cortes Constitucionais. A supremacia constitucional, o reconhecimento de juridicidade à Constituição e o controle de constitucionalidade dos atos governamentais (comissivos ou omissivos), só puderam ser garantidos com o fortalecimento da jurisdição constitucional, no campo difuso ou no concentrado. Dado que todos os campos do Direito estão abrigados, de alguma forma, no texto constitucional, é evidente que dele parte o fundamento e a orientação para interpretação, integração e aplicação das normas. A hermenêutica, obrigatoriamente, deve observar os princípios de incidência constitucional e de compatibilização do direito ordinário com o espírito da Constituição. No Brasil, um país de história democrática recente, as Constituições, em sua maioria, não foram levadas a sério quanto à força e à materialização. Foram expressão de uma ideologia estruturalista do Estado, dotadas sempre com direitos fundamentais, sem, todavia, uma significativa representatividade material e, tampouco, instrumentos de aplicabilidade; pelo contrário, em nome de conceitos vagos, como interesse nacional, ordem pública, bons costumes, sempre houve limitação e mitigação dos efeitos das proteções públicas. Apenas na década de 80 e 90, o fenômeno constitucionalizador encontrou, na atmosfera brasileira de democracia e liberdade, um ambiente propício para se desenvolver nos termos em que nasceu no Velho Continente. Esse cenário foi observado com a Constituição Federal de 1988 e a positivação de uma série de direitos fundamentais conectados com distintos cortes de existência individual e coletiva. A Carta Cidadã consagrou uma extensa lista de liberdades públicas e direitos sociais, classificados pela melhor doutrina com o codinome “direitos de primeira, segunda, terceira e quarta geração”, bem como se preocupou 179 Ibidem, p. 118. 78 em assegurar eficácia e aplicabilidade para as normas protetoras, mediante a disponibilização de remédios constitucionais, formas de controle social da Administração Pública e responsabilização do legislador ordinário na regulamentação de dispositivos. Ademais, a instauração dos Poderes da República com funções bem definidas e a positivação de uma Jurisdição Constitucional foram conquistas relevantes para a consecução dos deveres do Estado. O exame doutrinário desfechado contra a Constituição de 1988 refere-se ao seu caráter analítico (quando detalha em excesso matérias que seriam, sem nenhuma lesividade, perfeitamente atribuíveis ao legislador ordinário) e à elencação de normas que não são de natureza propriamente constitucional, por exemplo, o art. 242, §2º 180 . Há, também, a presença de interesses corporativos, mas isso não é nenhuma novidade em termos de matéria constitucional, conforme já se argumentou acerca do tripé presente em (quase) todas as Leis Fundamentais. Embora seja plausível a crítica, não é sobre absurdos que se erige a essência de uma Constituição. Decerto, deve-se evitar o exagerado e tão presente revisionismo constitucional, mas não há razão consistente para negar a constitucionalização de direitos – das relações privadas in casu – no seio constitucional. O Direito não é uma ciência estanque e deve sempre acompanhar as alterações de valores presentes no âmbito dos seus jurisdicionados. Na seara das interações jurídico-privadas cominadas com o exercício do princípio da autonomia da vontade, é claro que a criatividade humana para o nascimento de novas formas de direito é indecifrável. A sociedade pós-moderna avança a passos largos e é impulsionada pela rapidez da informação, celeridade das trocas comerciais, acirramento das disputas transnacionais. Como resultados dessas realidades, surgem formas ainda não positivadas, mas não menos importantes, de relações jurídicas, seus respectivos direitos subjetivos e intervenções estatais protetivas. Diversas são as demonstrações de constitucionalização do direito nas relações privadas. Desde normas de cunho moral oriundas da multiplicação dos costumes nas relações intersubjetivas até direitos implicitamente nascidos da função diretiva das normas constitucionais, são exemplos do fenômeno. À guisa de ilustração, cita-se a Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004, que introduziu profundas mudanças na estrutura do Poder Judiciário e inseriu, no contexto dos direitos e garantias fundamentais, o inciso LXXVIII, o qual assegura a todos, no âmbito judicial e administrativo, a razoável 180 Art. 242 §2º, CF/88 - O Colégio Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro será mantido na órbita federal. 79 duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Trata-se de elevação ao topo da pirâmide normativa de um antigo anseio social tangente à crônica situação de arrastamento dos processos judiciais, nas instâncias ordinárias e recursais do país: o valor prestação jurisdicional em tempo razoável e célere, já presente no pensamento coletivo e recorrentemente violado com a burocracia e ineficiência do Poder Judiciário diante das demandas propostas 181 . Porém, apenas constitucionalizar não é suficiente. Se assim o fosse, cairíamos no doce encanto de que a Constituição per si pode transformar realidades. Aqui, cria-se o debate acerca da aplicabilidade e dirigismo das normas constitucionais: uma vez constitucionalizado determinado direito das relações privadas, qual a eficácia dessa norma do ponto de vista material? Seria norma apenas programática? E quais os limites da atuação do Estado na concretização do direito recém-incorporado ao texto constitucional? Diante dessas indagações, tendo em mente que um dos principais atores nesse processo de constitucionalização do direito é o próprio legislador, vê-se que, em um primeiro plano, a sua atuação típica é a promoção da adaptação da legislação ordinária aos preceitos constitucionais (tanto os implícitos quanto os explícitos, diga-se de passagem) e, no caso das constituições dirigentes, a realização da constitucionalização se dá por meio da própria legislação. Todavia, há de se ressaltar que, nem toda atuação de cunho legislativo (seja no âmbito constitucional, seja no ordinário), conduz a uma efetiva constitucionalização do direito propriamente dito, aliás, nem mesmo as intervenções (em sua totalidade) que primam por um sopesamento dos direitos fundamentais se circunscrevem na inserção constitucionalizante do direito. Se o ato da constitucionalização do direito fosse tão simples, haveria de se pressupor que o próprio legislador seria capaz de identificar, prever e irradiar as soluções para os problemas sociais, as quais já estariam pré-definidas na própria Constituição, cabendo, portanto, apenas disseminar a solução que ele já encontraria moldada e lapidada no seio constitucional. Contudo, não é assim que o processo de constitucionalização funciona. Primeiramente, porque as soluções não se encontram escondidas no próprio texto 181 Como outros exemplos de constitucionalização de direitos das relações privadas, cita-se: a alteração do art. 7º, inciso XIX, da Constituição Federal que, sob influência diretiva do princípio da igualdade, promoveu ao nível constitucional o clamor existente na doutrina e jurisprudência trabalhista no sentido de conceder os mesmos direitos ao trabalhador urbano e rural; o direito social à alimentação, constitucionalizado pela Emenda Constitucional Nº 64, de 04 de fevereiro de 2010, resultado de uma série de programas sociais de distribuição de renda e alimentos desempenhado pelo Governo Federal e da discussão desse direito no plano constitucional, como direção para o legislador no sentido de confeccionar legislações orientadas e concretizadoras do mencionado direito e para o Poder Executivo como desenvolvedor de políticas públicas (programas) que tornem a Constituição verdade no cotidiano dos brasileiros famintos ou não. 80 constitucional, como se o legislador fosse um mero perquiridor de tais elementos substanciais e o direito pudesse ser desvendado ao intérprete, de maneira mágica e precipuamente metafísica. Ao contrário, a constitucionalização do direito parte do pressuposto de que o substrato básico da atuação do constitucionalizar depende de uma construção humana com bases sociais. Outrossim, é um ato, um processo que envolve diversas variáveis, jurídicas, sociais e políticas, e não simplesmente uma revelação de elementos interpretativos já dispostos. Se assim o fosse, a própria exegese realizada supriria, em si mesma, a necessidade da constitucionalização, já bastando para que todos os direitos existentes ocupassem o seu devido lugar. Nesse sentido, estreita-se o entendimento de como deve ser operada a constitucionalização de direitos que ainda não se encontram expressamente postos e positivados no texto constitucional. Metodologicamente, a estruturação mais escorreitamente consolidada pela doutrina é a fornecida por Gunnar Folke Schuppert e Christian Bumke 182 . Esses autores dispensam a qualidade de legislação constitucionalizadora apenas àquelas leis que direcionam para a aniquilação de situações legais dotadas de inconstitucionalidade ou àquelas que, por demanda expressa e específica do próprio Diploma, possuem um sentido complementar à eficácia de alguma norma constitucional. No primeiro caso, a inconstitucionalidade da norma infraconstitucional deve ser patente, e não simplesmente ventilada como uma de suas possibilidades interpretativas. Afinal, caso se vise constitucionalizar a correção de uma norma que não é evidentemente merecedora de atenção, apenas se estará a alargar o rol dos direitos assegurados pela Constituição, sem que haja um fundamento de validade para o procedimento. A segunda hipótese içada serve (e continuará a servir) de norte para o que se argumenta no estudo em baila. Aliás, esse juízo pode ser identificado como aquele que legitima a própria vinculação constitucionalizante para uma cultura pacificadora dos conflitos, o que será visto mais detidamente em tópicos vindouros. A necessidade desse processo visa, precipuamente, possibilitar uma maior eficácia impositiva às práticas jurídicas (sejam elas extra ou puramente judiciais) que diminua a litigiosidade e o caráter conflitivo das demandas existentes no país. O caráter de complementação exigido é algo não específico das possibilidades do legislador em promover a constitucionalização 183 , mas tal identificação com o texto constitucional é 182 SCHUPPERT, Gunnar Folke; BUMKE, Christian. Die Konstitutionalisierung der Rechtsordnung: Überlegungen zum Verhältnis von Verfassungsrechtlicher Außtrahlungswirkung und Eigenständisgket des “Einfachen” Rechts. Baden Baden: Nomos, 2000, p.47. 183 Muito embora, autores como Virgílio Afonso da Silva, colocarem que outros atores poderiam intervir nesse processo de constitucionalização, como a própria doutrina e o Poder Judiciário. SILVA, Virgílio Afonso da. A 81 imprescindível para que tal instrumento jurídico de sobre-elevação da importância normativa não seja banalizada e difundida de maneira incoerente para outros diplomas legais. Em síntese, visualiza-se que a constitucionalização, segundo o modelo referenciado, se subsume, em seu enfoque conceitual, ao caso das normas de princípio institutivo 184 , que são, resumidamente, aquelas por meio das quais o próprio legislador constituinte delineia estruturas esquemáticas genéricas de designação e de atribuições de órgãos, entidades ou institutos, para que o legislador ordinário os configure em caráter derradeiro, mediante lei. Assim sendo, a constitucionalização tem como fim atingir normas para que possam ter uma influência prática bastante efetiva na conjuntura do ordenamento jurídico que ela escrutina, dando uma pujança bem maior aos seus institutos, conferindo-lhes, portanto, a devida importância na estrutura normativa constitucional ordenadora. Não obstante, ainda que o maior ator nesse processo de constitucionalização seja mesmo o legislador, existem outros dois agentes que podem influenciar na constitucionalização de um direito: o Poder Judiciário e os intérpretes (a doutrina, em sua feição interpretativa mais ampla – a qual, embora não seja um corpus juris único, contribui de maneira bastante singular para a constitucionalização). A atuação do Poder Judiciário como ator no processo de constitucionalização é uma ideia que perpassa toda a construção lógico-jurídica ora abordada, afinal, qualquer proposição de política pública ou de aplicação concreta do direito que venha a suscitar uma ponderação mais elevada de uma norma ordinária, dotando-a dessa faceta constitucionalizada já é, em última instância, uma das reverberações da constitucionalização do direito. Portanto, compreende-se que essa forma de implementação constitucional, quando operada pelo Poder Judiciário, se foca precipuamente na sua atividade, particularmente na aplicação, interpretação e no controle dos atos entre particulares que envolvam direitos fundamentais 185 . Outrossim, é nessa seara, bastante singular e complexa, que todas as peculiaridades e vicissitudes da constitucionalização do direito emergem com clareza e distinção. Ao se falar sobre os intérpretes, delimita-se que o embate ocorre de maneira mais profícua entre os diversos ramos de estudo do próprio direito, quando se trata da forma como a constitucionalização pode ser implementada na prática. Ainda assim, não há nenhum resquício de unidade (ou uniformidade) no tratamento ou na evolução da constitucionalização Constitucionalização do Direito: Os Direitos Fundamentais nas Relações Entre Particulares. São Paulo: Malheiros, 2008, p.44. 184 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p.121. 185 SILVA, 2008, p.44. 82 entre a miríade de campos de estudo jurídico existentes e (por vezes) conflitantes. Na experiência alemã, a tendência da constitucionalização do direito foi algo fortemente debatido pelo Tribunal Constitucional e entre os detratores dessa ideia destacavam-se, precipuamente, os intérpretes civilistas 186 . Eles eram contra a ideia da constitucionalização do direito civil, basicamente, porque temiam que, com esse fenômeno jurídico em franca expansão, houvesse a aniquilação da autonomia disciplinar como ramo do direito. A explicação mais aprofundada evidencia que, quanto mais vetusta e significativa forem as tradições positivistas de certa seção do Direito, proporcionalmente menor será a disposição para modificar as suas estruturas já consolidadas dogmaticamente. Dessa forma, quanto maior for a influência daquele ramo jurídico, inversamente proporcional será a tendência de se aceitar uma transformação estrutural em sua interpretação ou em sua orientação de aplicação concreta. É como se, para esses ramos do direito, a constitucionalização soasse como uma revolução cultural de seus valores, cujo alvo fosse a destituição desses do ponto de culminância que ocupam (ou ocupavam, até então). Por isso mesmo que, no caso alemão, a doutrina civilista, em contraposição à constitucionalista – mais equilibrada e tendente a aceitar as mudanças ocasionadas pela constitucionalização –, defendia fortemente a desvinculação do direito civil das Normas Maiores. Impende destacar que a constitucionalização, por si só, não tende apenas a deixar ameaçado um ramo do direito tão tradicional como o ramo civilista, haja vista que ela pode não propor apenas mudanças paradigmáticas ou de viés transformador em sua racionalidade própria 187 . Ela pode vir a instituir uma verdadeira submissão metodológica de um ramo do direito ao outro. No caso alemão, esse é o motivo mais evidente pelo qual os civilistas eram refratários a qualquer interpretação constitucional das normas civis. Assim, ainda que em um contexto mais amplo e genérico, a constitucionalização proposta pelos estudiosos constitucionalista viessem a dar novas concepções, mais efetivas e mais adequadas para as normas civilistas, os doutrinadores dessa seara não estavam minimamente agradados com essa possibilidade de terem o seu influxo teórico-interpretativo subjugado por uma outra área da ciência do direito. Mesmo sendo, historicamente, o exemplo alemão de grande relevância para se compreender como funciona a sistemática da constitucionalização na doutrina, cogente salientar que, no Brasil, aconteceu justamente o contrário. O ramo da ciência jurídica que possui uma maior valorização e, até mesmo, uma evolução bem mais consistente e sólida em 186 SCHUPPERT, BUMKE, 2000, p.57. 187 SICHES, Luís Recásens. Tratado General de Filosofía Del Derecho. 5.ed. México: Porrua, 1975, p.140. 83 termos de constitucionalização é a corrente civilista. O fenômeno se deu quando o Código Civil deixou de ser concebido como um Estatuto de Direito Privado e regulador único, monopolizador das relações entre particulares 188 .. Assim sendo, o maior Diploma Civil passou a ser analisado segundo os influxos teóricos e interpretativos da Constituição da República, especificamente a de 1988, a qual, por conglobar uma variedade de direitos fundamentais de grande caráter expressivo, possibilitou de maneira mais factível a própria leitura Direito Civil Brasileiro com as lentes da Norma Fundamental Republicana. Os pressupostos básicos da constitucionalização do direito civil primam pela interdisciplinaridade, expressa pela necessária comunicação ou interligação entre as diversas áreas em que se expandiu o próprio direito, diante da especialização ocorrida nos mais variados ramos jurídicos. Assim, a premissa elementar consiste em considerar que o Direito Civil não se subjaz, ou pelo menos, em uma interpretação constitucionalizadora, não deve estar simplesmente adstrito à concepção restritiva de uma acepção unicamente focada no Código Civil 189 . Isso ocorre, basicamente, porque a constitucionalização do direito civil finda por abrir outros caminhos, diálogos com diferentes fontes e, finalmente, acaba por implementar a própria concepção estruturante e axiológica do diploma maior brasileiro. A questão de se retirar o foco de um único diploma – Código Civil, que, por sinal, ainda é mais recente que a própria Constituição Brasileira – e transportar a análise para uma estrutura macro-jurídica mais alargada é o que dá a entender que a busca pela constitucionalização, ao menos na seara doutrinária, exige uma interconexão com outros ramos do direito e, também, com do próprio conhecimento, haja vista ser necessário dialogar com elementos históricos, culturais, filosóficos e antropológicos para que se possa compreender o fenômeno em estima na sua inteireza e em sua máxima dinamicidade. Essa retirada de foco é denominada de descodificação do Direito 190 e pode ser compreendida como um dos elementos mais imediatos da constitucionalização (do direito civil) no âmbito jurídico nacional. Assim sendo, espraia-se a ótica constitucional, ao sempre submeter um texto normativo ao crivo da norma fundamental, para que, com essa perspectiva analítica, possa-se extrair o entendimento adequado de qualquer instituto jurídico. Diante de todo esse escorço histórico-sistemático, é importante compreender que o papel assumido pela doutrina, nesse cenário, não é apenas o de um instrumento teorizador do 188 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar. 1999, p.3. 189 ADIERS, Moacir. Constitucionalização do Direito Civil: Um Antigo Tema Novo. In: TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski; LONGO, Luís Antônio (Orgs.). A Constitucionalização do Direito. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, p.56. 190 BARROSO, 2009, p.357. 84 Direito, isso porque também está envolvido nessa dinâmica o embate entre suas espécies para sua afirmação como força social, determinadora de uma corrente jurídico-filosófica. A questão da submissão metodológica, levantada anteriormente, elucida essa problemática mascarada pelos estudiosos como representante da constitucionalização de direitos. Destarte, num segundo plano, os valores envolvidos na constitucionalização (e na defesa de cada ramo contrastante do Direito) são importantes e determinantes na compreensão de como a sistemática da sobre-elevação constitucional entrelaça as mais diversas vertentes da ciência do direito (ou na possibilidade de se rechaçá-la). Para que se possa ter uma noção minimamente satisfatória sobre o fenômeno da constitucionalização, é necessário o estudo de dois pontos de grande importância: seus tipos e efeitos advindos da atuação concretizadora 191 . Ainda que se argumente possibilidade de aplicação e validade (ao menos em sua totalidade) unicamente no sistema constitucional francês (bastante diverso do brasileiro, diga-se), a constitucionalização não carece de um modelo pré-definido para que possa se desenvolver e atuar. É bem verdade que algumas peculiaridades da realidade francesa influenciam no aceitar da constitucionalização pelos atores que dela participam, mas não impedem a análise ora proposta. Alguns elementos de progressão são tidos como critérios básicos para a categorização da constitucionalização em três linhas, a saber: juridicização, elevação e transformação. Há quem argumente que as duas primeiras classes possuem um caráter proeminentemente histórico 192 , devendo ser compreendidas em sua especificidade com o próprio sistema francês, fazendo pouco sentido análise dispersa da comparatividade sempre presente. No entanto, ao se partir do pressuposto da progressividade em cada um dos tipos de constitucionalização, chegar-se-á ao entendimento de que há alguma espécie de condição para que haja o salto progressivo de um tipo para o outro, de modo que, por mais que o terceiro tipo seja aquele que busca ter maior consideração (por ter abrangência mais alargada), não é possível desprezar a importância dos tipos precedentes. A primeira tipologia consiste mais no criar de condições para a iniciação do processo de constitucionalização do direito que propriamente – algo mais próximo de uma impregnação dos elementos constitucionais ou de uma leitura à luz da constituição de um direito que deva assim ser concebido – uma constitucionalização real193. A técnica teve seu início com a mais comezinha juridicização da Constituição. Na evolução histórica do direito 191 FAVOREU, Louis. La constitutionnalisation du droit. In: MATHIEU, Bertrend; VERPEAUX, Michel (Org.). La constitutionnalisation des branches du droit. Paris: 1998, p.190-192. 192 SILVA, 2008, p.46. 193 SAMPAIO, José Adércio Leite. Constituição e crise política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p.191. 85 francês, isso ocorreu quando o Conselho Constitucional passou, ainda que lentamente, a considerar que os dispositivos constitucionais poderiam produzir, plenamente, seus efeitos em outras searas jurídicas, além da própria estreiteza da interpretação respectiva, como até então era feito. O entendimento de que as normas constitucionais são conectadas, por seus princípios e regras, aos demais ramos do direito, é o primeiro passo para que se dê a devida atenção aos instrumentos a ela atrelados que possibilitam uma absorção mais ampla e adequada do ordenamento jurídico e todo seu esquemático. Na constitucionalização-elevação, há um movimento ascendente no tratar das matérias, de acordo com a sua importância, dentro do sistema jurídico de cada ordenamento, sendo o seu ápice o manejo dispensado a tais matérias pela corte constitucional 194 . No constitucionalismo francês, a repartição material das competências entre a Constituição, a lei e o regulamento começou a ser alterada por essa razão. Matérias que eram de competência regulamentar passaram a ser tratadas por meio de lei, e, consequentemente, as que eram originalmente abordadas em leis passaram a ser disciplinadas pela Carta Maior. Isso é chamado movimento ascendente de repartição material. Nesse, os temas mais caros e determinados, em seu bojo axiológico, findam por deslizar em um espiral de ascendência (na verdade, um espiral virtuoso, já que tendem a ser prestigiados por normas superiores) 195 . Nessa toada, o legislador ordinário perde grande parte de sua autonomia e de sua liberdade 196 , sobretudo porque é o atuante, em um nível superior ao legislador ordinário, assumindo a tarefa de disciplinar uma novel diversidade de matérias, o que faz com que as atribuições e as competências legislativas ordinárias sejam esvaziadas. Assim, a modalidade em cunho se encaixa, perfeitamente, com as proposições do tipo de constitucionalização precedente, haja vista que, além de as questões constitucionais serem postas no foco da juridicização, complementarmente, os temas, outrora debatidos, em uma instância inferior, agora, passam a ser discutidos, noutra mais elevada, o que promove, ainda mais, a proteção e a adequação de desses direitos à estrutura constitucional dominante. Já a constitucionalização-transformação possui um caráter bem mais universal e desvinculado do desenvolvimento histórico do constitucionalismo francês. Por isso, pode ser tida como forma de constitucionalização por excelência que se enquadra, teoricamente, em qualquer ordenamento jurídico hodierno, sem que seja necessário que se operem “ginásticas 194 JACKSON, Vicki C.; GREENE, Jamal. Constitutional Interpretation in Comparative Perspective: Comparing Judges or Courts. In: GINSBURG, Tom, DIXON Rosalind (Orgs.). Comparative Constitutional Law. Northampton: Edward Elgar, 2011, p.621. 195 FAVOREU, Louis. Rapport Introdutif. In: ____________ et al. Le Domaine de la Loi et du Règlement. 2.ed. Paris: Economica, 1981, p. 37. 196 SILVA, 2008, p.47. 86 jurídicas” como metodologia interpretativa de inserção de suas conceituações e de seus preceitos mais elementares. Nesse caso, ocorre “a constitucionalização de direitos e liberdades, a qual se encaminha para uma integração entre os diversos ramos do direito, e ao mesmo tempo, sua transformação” 197. Todavia, essa reforma não se dá, apenas, no campo específico da norma jurídica pura e simples, isto é, não é algo afeito apenas à literalidade positivada da norma, nem mesmo às repercussões interpretativas mais estritas, aquelas feitas simplesmente em conformidade com o espírito da lei. Na verdade, a transformação perpassa a simplicidade interpretativa do conteúdo normativo mais imediato e se lança, também, para todas as instituições afeitas ao direito (a ser constitucionalizado), principalmente para as instituições administrativas e jurisdicionais. Das transformações advindas da constitucionalização, particularmente a última espécie abordada, ocorreram mudanças conceituais provocadas pela leitura constitucional de suas diretrizes e, assim, os ramos do Direito passaram por uma profunda alteração em seu âmago, surgindo, então, o Direito Constitucional Civil, o Direito Constitucional Penal, o Direito Constitucional do Trabalho, dentre outras nomenclaturas específicas a cada segmento jurídico. Essas alterações não são meramente etimológicas, até porque não há transformação alguma em se trocar o nome de um segmento jurídico por outro que acrescente o agnome constitucional em sua denominação completa. A constitucionalização vai além, tratando propriamente dos conteúdos insertos no bojo de cada um dos segmentos jurídicos constitucionalizados e operando uma transformação em sua leitura, em sua visão, e, principalmente, na sua aplicação nas estruturas sociais existentes. Após essa breve explanação acerca das espécies de constitucionalização, imprescindível por o foco nas decorrências advindas desse fenômeno jurídico. Dentre os efeitos apontados, duas grandes categorias podem ser mencionadas: a unificação da ordem jurídica e a questão da simplificação do ordenamento. Ademais, deve-se salientar que a primeira categoria se subdivide em mais dois efeitos subtópicos: a fundamentação unitária da constituição para as várias ramificações jurídicas e a relativização entre direito público e privado. Inicialmente, impende destacar que os efeitos da constitucionalização ora tratados são tidos como indiretos, uma vez que os efeitos diretos (ou próprios) seriam as espécies de constitucionalização já abordadas. Concorda-se com o argumento de que a denominação objeto de análise é um tanto quanto confusa e possui uma certa imprecisão epistemológica, 197 FAVOREU, 1998, p.191. 87 haja vista confundir o efeito com o próprio fenômeno jurídico, não dando azo a nenhum desenvolvimento posterior do instituto em análise, isso porque efeito e causa se confundem mutuamente – e, consequentemente, seus conteúdos se entrelaçam de uma forma que não é possível indicar começo e fim desse fenômeno jurídico. Portanto, seus desdobramentos não são efetivamente uma continuação de sua explanação mais consubstanciada, de modo que, a sua própria conceituação serve para apontar seus efeitos 198 . Dessa feita, ainda que o escopo maior do trabalho não seja inferir críticas à estruturação da constitucionalização, como proposto pelo doutrinador francês, essa breve explicitação deve ser feita para que os efeitos sejam compreendidos como verdadeiros consectários lógicos da constitucionalização. Com relação à primeira categoria dos efeitos extraídos da constitucionalização, é de grande valia explanar que a unificação da ordem jurídica é uma das consequências mais facilmente perceptíveis no estudo da matéria. A constitucionalização-elevação já denota, em grande parte, essa tendência à unidade, que se dá em dois sentidos bastante singulares. O primeiro é a busca de uma mesma fundamentação para todos os ramos do direito constitucionalizado. Como há de se supor, o fundamento por eles compartilhado é a sua progressiva incorporação de normas constitucionais. Na análise desse tema, há um entendimento deveras peculiar e um tanto quanto polêmico: a assimilação contínua das normas constitucionais pelo direito infraconstitucional ultima por esvaziar de sentido os princípios gerais do direito. Nesse sentido, emerge uma nova proposição paradigmática do direito, não posta efusivamente sobre os princípios gerais, e sim sobre as normas constitucionais que assentam qualquer possibilidade de constitucionalização. Essa interpretação não significa que a própria constituição possa ter sido fomentada por princípios gerais do direito, nem que tenha efetivamente, em suas disposições, tais preceitos positivados. O que ela sinaliza é uma maior objetividade na interpretação constitucional e no seu efeito constitucionalizante 199 . A segunda vertente diz respeito à relativização da distinção entre o direito público e o direito privado e envolve a passagem de uma interpretação baseada em princípios gerais do direito para uma com foco nas normas constitucionais. Como efeito constitucionalizador, pode-se dizer que não há mais uma diferença clara e evidente entre esses dois grandes polos do direito. Nota-se, a bem da verdade, uma verdadeira superação da dualidade público e 198 SILVA, 2008, p.48. 199 A concepção de distanciamento dos princípios gerais do direito, em prol de uma interpretação baseada unicamente em normas constitucionais basilares, ainda não é aceita unanimemente pela doutrina e pela jurisprudência, sendo uma tendência de Louis Favoreu. 88 privado, como se essas duas esferas fossem apenas uma mera faceta da norma jurídica constitucional. Isso ocorre, basicamente, porque a interpretação principiológica clássica é calcada na dualidade clássica do público em contraposição ao privado, inadequada à constitucionalização hodierna. O último efeito em relevo, o da simplificação da ordem jurídica, não passa, portanto, de uma dos cortes já aludidas do processo de constitucionalização, estando inserto nas demais premissas tratadas, mas que mesmo assim, merece um destaque individualizado para uma melhor compreensão diante do contexto mais amplo da análise. A simplificação do ordenamento jurídico exerce uma função essencial dentro das especificidades da constitucionalização do direito por estar entre os diretamente responsáveis pela recolocação da Constituição como “norma inegável de referência a todo ordenamento jurídico” 200. Desse modo, o arcabouço normativo deixa de ter seu cerne interpretativo na lei e passa a ter a Carta Maior como elemento nuclear mais elevado e substancial de interpretação e de construção do direito em todos os seus matizes. Esse é um efeito também facilmente percebido em função da própria superação da dualidade da antiga interpretação jurídica. Afinal, se com a constitucionalização há apenas um vetor interpretativo constitucional, é uma conclusão lógica que tal premissa vem a simplificar a ordem jurídica de excessos de compreensão que sejam desvinculados da ideia que serve de eixo central de colocação dos preceitos constitucionais mais caros ao sistema jurídico por ele engendrado. Por último, e como meio de encerramento do tópico corrente, deve-se fazer a ressalva que todos os preceitos e os elementos básicos levantados centram esforços na construção do sistema legal francês, o qual, certamente, apresenta algumas diferenciações estruturais e culturais quando comparado às contemporâneas estruturas brasileiras. Ainda assim, a tentativa exposta objetivou superar tais disparidades e extrair o elemento mais universal aplicável a qualquer sistema constitucional democrático hodierno, para que a constitucionalização seja compreendida em toda a sua escala de aplicação e de normalização unitária da ordem jurídica fundamental com o fim de construção dos seus elementos sociais. 200 SILVA, 2008, p.49. 89 4.3 CONSTITUIÇÃO E SOLUÇÃO DE CONFLITOS: POR UMA INTERPRETAÇÃO CIENTÍFICO-ESPIRITUAL Antes de se adentrar no mérito da seção atual, é de grande valia fazer uma breve intervenção metodológica para explanação dos pressupostos elementares dessa empreitada. Não há como se falar, de maneira minimamente satisfatória e adequada de qualquer tópico condizente com o status constitucional, sem que haja uma parte de seu conteúdo que se destine a lecionar acerca dos elementos interpretativos intervenientes neste processo hermenêutico de constitucionalização do direito, que é, em última instância, o escopo máximo e primordial de toda a articulação lógico-argumentativa até aqui desenvolvida e que almeja também, em sua máxima expressão, introduzir a discussão que circunda essa seara jurídica. Para que se possa chegar ao intento final, conseguindo fornecer uma maneira interpretativa que se coadune tanto com a perspectiva de uma resolução de conflitos de forma pacífica quanto com a novel interpretação constitucional no ordenamento como um todo, deve-se partir de elementos mais básicos, aglutinando termos da interpretação clássica para que, somente depois de analisada a hermenêutica constitucional, possa-se ter um panorama mais abrangente acerca do tema. 4.3.1 Interpretação: algumas definições necessárias Já que o objeto de estudo se propõe a defender uma compreensão constitucional do conflito na busca por uma cultura pacificadora, é indispensável que se traga à baila alguns aportes teóricos sobre a interpretação para que se delineie um raciocínio dedutivo responsável numa matéria de responsabilidade ímpar – a interpretação constitucional. Inicie-se pela distinção entre interpretação e hermenêutica. Embora constantemente sejam utilizadas como sinônimos, tratam-se de institutos diversos, pois a interpretação é objeto e finalidade da Ciência da Hermenêutica, a quem cabe “sistematizar os processos interpretativos do direito” 201202. Não há consenso doutrinário em relação ao conceito de interpretação jurídica, havendo variação quanto à época de estruturação desse e à Escola 201 BONIFÁCIO, Artur Cortez. Direito de Petição – Garantia Constitucional. São Paulo: Editora Método, 2004, p.55. 202 Interessante o apontamento de Ferreira Pinto ao esclarecer que a locução interpretação procede do latim interpres, “que significa adivinho, pessoa que descobria e desvendava o futuro pelas entranhas dos animais imolados em oferendas aos deuses”. Pondera o juspublicista que, em sentido restrito, “interpretação é sinônimo de Hermenêutica, do grego hermeneutès (interpretar), daí a forma interpretatio” e, no sentido amplo, corresponde à parte da ciência do Direito responsável pela sistematização dos processos interpretativos. FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição Brasileira. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 2. 90 influenciadora do doutrinador. Como definição elementar tem-se que consiste na revelação, na atribuição de sentidos a textos ou outros elementos normativos com o fim de solucionar casos concretos 203204 . Veja-se que a interpretação, segundo o autor, consiste em atribuir um sentido – sendo possível a plurissignificação - a determinado enunciado textual, terminando por construir o que se denomina de norma de decisão, a qual será aplicada a determinada situação. Numa versão mais atualizada do conceito, é adequado afirmar que, além da atividade atributiva, modernamente a interpretação é, antes de tudo, concretização da norma jurídica. Porém, o enunciado – ponto de partida, na maioria dos casos - não é uma abstratificação suspensa no sistema jurídico, amorfa e sem elementos que o integrem. Possui o sentido, o valor e a linguagem como pontos-chaves da Hermenêutica. O sentido, tomado na acepção subjetiva, compreende uma explicação sensorial, ou seja, a possibilidade de captar de forma imediata ou intuitiva os fenômenos naturais, psicológica existencial e de bom senso. Por outro lado, sua vertente objetiva “é o significado de uma coisa em si mesma, mas que não se faz nela, porém no espírito do sujeito cognoscente” 205 e nela ocorre a interpretação. O valor, por seu turno, não obstante nasça no espírito humano “é apto a acionar nesse mesmo espírito, como que de revés e quase simultaneamente, os mecanismos admiráveis da adesão, do aplauso, da aceitação ou do afeiçoamento [...] 206”. Tem-se, então, que disseminado num enunciado textual ou num sistema jurídico, há valores, que o alimentam e lhe dão sustentáculo. Interpretar sem observá-los é esvaziar a própria norma do que deveria ser a sua essência 207 . Afinal, a positivação dos valores, mediante princípios ou regras, é apenas o meio de atribuir-lhes normatividade. Por último, a linguagem revela-se ligada à tradução que se dá aos signos, de modo que não há direito sem aquela 208 . A comunicação entre o Direito e o intérprete operacionaliza- se através dos símbolos e signos, que podem ser analisados sob um plano sintático, semântico 203 BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 7.ed.rev. São Paulo: Saraiva, 2009, p.269. 204 Interessante a tese de Erick Wilson Pereira acerca da interpretação como decisão da vontade para o bem ou para o mal; para o legal ou o ilícito; para o justo ou injusto”. PEREIRA, Erick Wilson. Direito eleitoral – interpretação e aplicação das normas constitucionais-eleitorais. São Paulo: Saraiva, 2010, p.135. 205 FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 29. 206 Ibidem, p.20 207 Falcão ainda classifica os valores quanto à amplitude (universais, sociais, nacionais e particulares), ao tempo (permanentes, duradouros e efêmeros), à legitimidade (positivos ou negativos) e quanto à matéria (morais, políticos e econômicos). 208 PAGLIARINI, Alexandre Coutinho. Constituição e Direito Internacional: cedências possíveis e no mundo globalizado, 2004, p .63. 91 ou pragmático 209210 . É dizer que não se pode desprezar a linguagem utilizada pelo ordenamento, pois, conforme já é tranquilo entre os estudiosos da interpretação, não há palavra desnecessária na lei, em especial na Constituição. Os conceitos elencados são aplicáveis na interpretação legal dos textos em geral. Porém, já que se busca uma interpretação constitucional para o conflito, deve-se, além dos pressupostos explanados, aclarar outros peculiares do processo de interpretação da Constituição. A assimilação das modernas técnicas de interpretação constitucional prescinde de uma contextualização de como a ciência da Hermenêutica foi moldada e sofreu alterações, no atual cenário neoconstitucionalista. 4.3.2 Neoconstitucionalismo e hermenêutica constitucional As regras sempre foram passíveis de algum tipo de interpretação, ainda que literal, visto que onde está o homem há sua presença. Com o advento do neoconstitucionalismo, a hermenêutica adquiriu novo significado perante o quadro sociopolítico desenhado, principalmente pela ideia jusnaturalista retomada pelas Constituições, vinculando Direito e Moral almejando a concretização de direitos, mediante a força normativa das Constituições. Embora haja diversas Escolas Interpretativas com as devidas especificidades, utilizar-se-á três principais categorias para fins de comparação de paradigmas interpretativos: o formalismo jurídico, o positivismo e a interpretação neoconstitucionalista. A Escola Formalista, pujante nos séculos XVIII e XIX, encarava a interpretação como instrumento “(...) da decisão como subsunção ao caso sob a égide do direito positivo”211, revelando um verdadeiro culto à lógica jurídica em detrimento de uma atuação criadora e verdadeiramente jurisprudencial dos magistrados. As marcas desse pensamento teórico são a reverência religiosa à lei, a desconfiança do Judiciário e o apego à literalidade. 209 PEREIRA, 2010, p.120. 210 O autor potiguar, para justificar sua escolha, faz referência ao ensinamento de Paulo de Barros Carvalho, que segue: “Verificaremos, desde logo, que a interação ocorre num contexto extremamente complexo, pois há múltiplas possibilidades de utilização das palavras, individualmente consideradas, assim como numerosos são os usos das construções frásicas que a gramática de cada língua permite compor, sem que as regras sintáticas venham a ter caráter decisivo para o esclarecimento da específica função em que a linguagem está sendo empregada. [...] Ora, se os objetivos daquele que expede o comunicado são tão importantes, é de convir que a decodificação da mensagem se dá, em grande parte, no plano pragmática da linguagem” CARVALHO apud PEREIRA, p. 120-121. 211 QUEIROZ, Cristina. Interpretação constitucional e o Poder Judiciário: sobre a epistemologia da construção constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 123. 92 Indica-se como exemplos do formalismo jurídico a Escola da Exegese, na Franca, e a Jurisprudência dos Conceitos, na Alemanha 212 . O positivismo, capitaneado por Hans Kelsen e Herbert Lionel Adolphus Hart, ainda que tenha adotado algumas premissas do formalismo, afastou-se do modelo mecânico de interpretação. Criaram os doutrinadores dessa corrente, uma separação nítida entre Direito e Moral, além de terem negado subordinação da legislação para com uma lei natural, na tentativa de criar uma Ciência do Direito neutra. Seria a interpretação constitucional um ato volitivo de natureza política, isto é, uma escolha das várias possibilidades permitidas pela norma. Tratando-se, ainda, de processo e não de resultado, alheio a tudo que não lhe fosse pertinente 213 . Nessa seara, faz-se mister fazer uma breve digressão na distinção acerca da conceituação de princípios e regras (tal como proposto pioneiramente por Robert Alexy), e suas ponderações no traçado histórico constitucional brasileiro. No contexto brasileiro, as primeiras inflexões sobre o tema se deram com a promulgação da Constituição da República de 1988. Todavia, essas análises eram apenas focadas no elemento classificatório atrelado aos princípios, isto é, buscava-se somente elencá- los segundo uma ordem tipológica, delineando-os segundo a importância, a especialidade e a estruturação material dentro do novo sistema constitucional. Tendo como base esse empreendimento classificatório de natureza tipológica, sempre houve a distinção principiológica fundada em princípios mais ou menos fundamentais ou gerais, de modo que a sua qualificação era medida em função da classificação a ele dada dentro da própria ordem constitucional em que está inserto. Com o passar do tempo, essa análise material dos princípios passou a ser confrontada com a discrepância delineada entre princípios e regras 214 . Há quem aponte que houve, desde então, uma convivência harmônica entre essas duas vertentes interpretativas no sistema constitucional, podendo os princípios serem observados segundo duas óticas diversas: a material (de fundamentação clássica) e a estrutural. O entendimento mais adequado é no sentido de que as propostas de diferenciação vieram a superar o método distintivo material do caráter fundamental dos princípios, adotando, não somente uma nova terminologia, e sim uma 212 BARROSO, 2009, Interpretação e Aplicação da Constituição, p.274-275. 213 Mesmo que se possa vociferar contra esse modelo de silogismo da justiça, deve-se alertar que qualquer concepção de Estado, Direito, Constituição e, por consequência, métodos de interpretação está intrinsecamente ligado ao contexto histórico e político vivido. Não foi diferente na construção Kelseniana. Em meio à crise do parlamentarismo e da Constituição, com ataques sucessivos e violentos a esta, o método proposto, à época, significando muito mais uma defesa e garantia constitucional do que outra finalidade que se pretenda mais importante. 214 ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. 2. ed. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1994, p.55. 93 nova estrutura 215 . Isso ocorre porque, ao não levar em consideração os critérios de generalidade, de abstração e de imposição dos princípios, finda-se por desconsiderar muitos desses antigos dogmas (como, por exemplo, o “princípio da anterioridade da lei penal), elencando-os apenas como regras do sistema jurídico. Ainda que essa discussão seja algo deveras abrangente e complexa, por inserir em seu bojo teórico muitas variantes e muitas correntes e delineamentos filosóficos e jurídicos, não se pode perder o foco que a presente digressão se atém a um objetivo bastante singelo: apenas tem o escopo de apresentar a distinção estrutural e indicar como ela pode ser útil dentro do contexto interpretativo apresentado. Existem três subdivisões nas teorias que distinguem os princípios das regras: uma propõe distinção forte, outra distinção fraca (ou débil) e a terceira rejeita a possibilidade de distinção. A primeira corrente é defendida por grandes nomes 216 e argumenta que princípios e regras possuem estruturas lógicas e ontológicas diferentes, não podendo, apenas, ter distinção de gradação entre uns e outros. A diferenciação precária acastela o entendimento de que não há um elemento que marque fortemente um abismo estrutural entre os princípios e as regras, havendo entre eles somente uma desigualdade de grau em sua pujança 217 , de modo que o princípio não possui uma natureza jurídica diferente da regra, ele apenas denota uma maior generalidade na sua exposição normativa dentro do ordenamento jurídico. Essa teoria não é essencialmente inovadora e, embora admita alguma possibilidade de distinção, não satisfaz alguns dos problemas interpretativos hodiernos, assim como se propõe a resolver a teoria da distinção forte, uma vez que, distinguindo debilmente princípios e regras, não há espaço de normatividade suficiente para esclarecer certos pormenores axiológicos próprios de uma diferenciação estrutural mais profunda. Já o último posicionamento argumenta que não há qualquer elemento lógico- deôntico, nos princípios, que seja diferente da organização estrutural e normativa das regras. Sendo assim, seriam, ontologicamente, iguais. Na verdade, eles podem ser estritamente idênticos, quando não há como se perfazer uma distinção mínima ou têm um grau de semelhança tão elevado que sua divergência é meramente linguística, ou seja, desprovida de qualquer substrato jurídico de maior relevância. Não há nenhum critério propriamente axiológico que sirva de elemento separador ou de diferenciação entre princípios e regras, dado que, interpretativamente, estão todos abrangidos por uma mesma concatenação normativa 215 SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais. Belo Horizonte: Del Rey, n. 1, p. 607-630, jan./jun. 2003, p.625. 216 DWORKIN, Ronald. A Matter of Principle. Ofxord: Ofxord University Press, 1985, p.17. 217 RAZ, Joseph. Practical Reason and Norms. Ofxord: Ofxord University Press, 1975, p.49. 94 indutora de condutas, assim, nem a teoria forte, nem a teoria débil, afiguram-se corretas para os que assim esposam seu pensamento 218 . Pondere-se que esse posicionamento, por desconsiderar frontalmente qualquer componente axiológico, não serve para a construção de uma ordem constitucional que busque dar maior efetividade à resolução dos conflitos gerados de suas disciplinas normativas. Qualquer empreitada interpretativa, ainda que não tenha uma filiação estrita com qualquer uma das duas outras correntes, deverá, ao menos, prestigiar as ponderações de valor atinentes à evolução jurídica dos princípios e das regras. No campo estritamente interpretativo, a essência da interpretação tradicional reside no predomínio sujeito-objeto, isto é, na fundamentação prevalecendo sobre a compreensão. A linguagem, embora presente intensamente como matéria objeto de trabalho do profissional do Direito, tem uma função meramente instrumental, relegada a segundo plano e justificadora da crítica feita ao processo interpretativo tradicional: compreensão, interpretação e aplicação 219 . Os métodos e os conceitos clássicos aplicados à interpretação constitucional são o gramatical, o sistemático, o histórico e o teleológico. A última tipologia decorre da crise moral do positivismo e da incapacidade das técnicas clássicas de enfrentarem barbaridades institucionalizadas, em especial na Europa Continental. É robusto, nessa fase, o retorno aos valores e à orientação dos sistemas jurídicos ao longo de orientações axiológicas básicas, como a dignidade da pessoa humana e a atribuição de uma força vinculante e normativa às normas constitucionais nunca antes experimentada: nasce o Neoconstitucionalismo 220 . Dentre as diversas mudanças proporcionadas pelo novo Estado Constitucional Democrático de Direito e sua relação com a superação do positivismo estrito, o campo interpretativo e hermenêutico também recebeu influências dos novos parâmetros. Conhecer tais mudanças é essencial para realizar uma interpretação adequada e contextualizada não apenas da Constituição Federal de 1988 e, por conseguinte, ter acesso fiel aos seus ditames relacionados à abordagem dos conflitos, mas de qualquer ato normativo ou administrativo infraconstitucional tangente à matéria em foco, sob a iluminação valorativa da Constituição. Compreender as diversas modificações patrocinadas pela mudança paradigmática do ordenamento jurídico e as relações dele decorrentes demanda o estabelecimento de algumas premissas necessárias para a adequada situação do intérprete na era pós-moderna. Convém, de 218 GÜNTHER, Klaus. Der Sinn für Angemessemeit: Anwendungsdiskurse in Moral und Recht. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1988, p.273. 219 STRECK, Lenio Luiz. A hermenêutica jurídica nos vinte anos da Constituição. In: MOURA, Lenice S. Moreira de (org.). O novo constitucionalismo na Era Pós-Positivista – Homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Saraiva, p. 64-65. 220 A título de exemplificação, Luis Roberto Barroso cita como expoentes dessa nova fase doutrinadores como Konrad Hesse, John Rawls, Ronald Dworkin, Luigi Ferrajoli e Robert Alexy. 95 estabelecer a premissa de que a interpretação, no movimento neoconstitucionalista, adota, necessariamente, a Constituição como elemento gravitacional do sistema jurídico e essencialmente multivalorativa 221 . Por outro lado, retomando o tema da linguagem como elemento participante do processo de interpretação e de aplicação do Direito, tem-se as palavras e os conceitos como instrumentos disponíveis apenas ao intérprete. Ciente da incapacidade do legislador de prever todas as situações possíveis para a vida cotidiana, a substantivação do Direito remete a uma tarefa eminentemente hermenêutica, na qual a linguagem em vez de instrumento transforma-se em condição de possibilidade 222 . Outra observação consiste na premissa da Constituição situar-se como ponto de partida e de chegada, em razão de sua supremacia material e formal ou, caso se prefira, “o reconhecimento da ‘superlegalidade constitucional’, que faz da Constituição a Lex Legum, ou seja, a mais alta expressão jurídica da soberania”223. A garantia e a defesa da referida supremacia são operadas pela denominada Justiça Constitucional 224 , tendo essa um papel fundamental na preservação necessária de sua superioridade. A consequência da defesa é de suma importância para a manutenção da unidade e coerência do sistema jurídico e adoção irradiante dos valores por ela eleitos, justificando a crescente constitucionalização do Direito – realidade presente no século XX225. Da superioridade constitucional, procede o quarto e mais importante fundamento neopositivista para o campo da interpretação constitucional: o reconhecimento da força normativa dos princípios constitucionais. A mudança principiológica se dá, desde o momento de saída dos princípios de um campo meramente valorativo para a categoria de norma jurídica, com a sua devida eficácia. Logo, os princípios, para efeitos neoconstitucionais, diferenciam-se dos valores, enquadrando-se no campo das normas, ao lado das regras 226 , e 221 FERREIRA, Carlos Wagner Dias. Interpretação constitucional e argumentação juridica. In: MOURA, Lenice S. Moreira de (org.). O novo constitucionalismo na Era Pós-Positivista – Homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Saraiva, 2009, p.229. 222 STRECK, Lenio Luiz. A hermenêutica jurídica nos vinte anos da Constituição. In: O novo constitucionalismo na Era Pós-Positivista – Homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 70. 223 BONAVIDES, 2010, p. 296. 224 Ibidem. 225 Entenda-se a força irradiante aqui como “projeção para dentro do sistema jurídico, revisando o seu sistema de fonts e reestruturando continuamente seus pilares deontológicos, sobretudo por meio da subtração da autonomia e privilégio concretizante do legislador ordinário (…).SAMPAIO, José Adércio Leite. Mito e História da Constituição: Prenúncios sobre a Constitucionalização do Direito. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de, SARMENTO, Daniel. (org.). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.200. 226 Segundo Luis Roberto Barroso, “as regras são proposições normativas aplicáveis sob a forma de tudo ou nada (all or nothing). Se os fatos nela previstos ocorrerem, a regra deve incidir, de modo direto e automático, produzindo seus efeitos. Por exemplo: a cláusula constitucional que estabelece a aposentadoria compulsória por idade é uma regra. Quando o servidor complete setenta anos, deve passer à inatividade, sem que a aplicação do 96 podem ser avaliados como norma jurídica, vistos como determinantes de outras subordinadas “que as pressupõem, desenvolvendo e especificando ulteriormente o preceito em direções mais particulares” 227228. A supracitada normatividade dos princípios reverberou no que Luis Roberto Barroso denomina de nova interpretação constitucional, esclarecendo que uma nova mentalidade interpretativa demanda dar respostas constitucionais à luz do caso concreto, visto sob uma ótica tópica, bem como o juiz assumir um novo papel de complementariedade ao legislador, posto que não mais se resume a mero reprodutor de conhecimento técnico, outrossim faz adequação das cláusulas abertas e indeterminadas das normas constitucionais através de valorações de sentido 229 . Isso não implica em abandono completo dos tradicionais métodos interpretativos, até mesmo porque o atual estágio de interpretação tomou como referência básico a interpretação tradicional e seus postulados. Proclama-se uma evolução, atualização e compatibilidade da Hermenêutica com as atuais formulações do binômio intrínseco Estado versus Constituição. Portanto, a reaproximação entre Direito e Ética conduziu a uma Hermenêutica Filosófica, não mais abrigada nas antigas técnicas de interpretação já apontadas, mas calcada em promover materialmente os postulados básicos aclamados como relevantes para determinada sociedade. Isso só foi possível graças à conquista do status de normas jurídicas pelos princípios e pela sua aplicação mediante o critério de ponderação de interesses quando na ocorrência de conflitos entre eles, isto é, não se decide um caso escolhendo um ou outro princípio, mas fazendo sacrifícios recíprocos no intuito de preservação máxima da eficácia e dos valores neles implícitos ou explícitos. A Nova Interpretação, fundada no poder vinculante e na compulsoriedade de observação dos princípios, deu origem a uma hermenêutica moderna, com instrumentos capazes de pôr em prática a teoria material da Constituição e difundir seus valores em todas as relações desenvolvidas no seio social. Sob esse aspecto, o preceito comporte maior especulação”. Por outro lado, os princípios são dotados de maior carga valorativa com uma diretriz a seguir. BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição, p.330. 227 CRISAFULLI apud BONAVIDES, Paulo. Idem, p.257. 228 Os valores constitucionais, em obediência ao ensinamento de Antonio Enrique Perez Luño, consistem nas preferências expressadas pelo Poder Constituinte como prioritárias e fundamentais para a convivência coletiva. Possuem uma tripla dimensão: fundamentadora, orientadora e crítica e, Segundo o professor espanhol distinguem-se dos princípios em razão de sua (in)determinação, haja vista não serem aplicados em situações específicas, informando todo o texto constitucional. LUÑO, Antonio Enrique Perez. Derechos humanos, Estado de Derecho y Constitucion. Madrid/Espanha: Tecnos, 2003, p.288. 229 BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil). In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de, SARMENTO, Daniel. (org.). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 212-216. 97 Direito é considerado um sistema aberto de valores – de natureza suprapositiva -, sendo a Constituição “um conjunto de princípios e regras destinados a realizá-los” 230. De tudo já exposto, extrai-se algum substrato teórico acerca dos conceitos atinentes à interpretação constitucional, sua relação com o neoconstitucionalismo, sendo possível arrolar alguns pressupostos necessários ao alcance dos objetivos propugnados no introito. A leitura da linguagem esboçada pela Constituição no tocante ao temário conflitos é necessária, especialmente em razão da superação da instrumentalidade da linguagem e de sua colocação como possibilidade para a concretização da Constituição material. Também é pertinente aferir se há valores ou princípios adotados pelo Constituinte de 1988 informadores e aplicáveis aos litígios e de que forma esses vinculam o legislador ordinário na criação de leis e de atos normativos genéricos incidentes sobre os mecanismos estatais e extrajurisdicionais pacíficos de resolução de contendas. 4.3.3 A interpretação constitucional Ainda que seja composta de normas jurídicas e a interpretação de seus comandos faça remissão à teoria geral da interpretação, a Constituição tem a peculiaridade de necessariamente promover os valores nela esposados e concretizar os direitos fundamentais consagrados de maneira positiva. A atividade de interpretar a norma de maior hierarquia do sistema jurídico refletirá na compreensão e na aplicação de todos os outros ramos do Direito, dada a adoção da Teoria do Direito por Degraus, construída por Hans Kelsen, pelos sistemas jurídicos modernos. A força normativa dos princípios foi o grande diferencial patrocinado pelo movimento neoconstitucionalista aos processos interpretativos. Daí, afirmar-se categoricamente que a origem do intérprete da Constituição deva ser sempre os princípios. A referência a uma nova forma de apreensão da Constituição e dos ramos do Direito nela fundamentados permitiu à doutrina e à jurisprudência detectar os princípios explícitos e implícitos nos textos constitucionais. Em solo nacional, os ensinamentos mais abalizados têm sistematizado princípios específicos de interpretação constitucional, a saber, o: da supremacia da Constituição, da presunção de constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público, da interpretação conforme a Constituição, da unidade da Constituição, da razoabilidade, da proporcionalidade e da efetividade 231 . Todos eles devem, na medida do possível, ser aplicados 230 BARROSO, Interpretação e aplicação da Constituição, p. 334. 231 Ibidem, p. 155-280. 98 em conjunto, evitando-se, ao máximo, suas colisões, sendo essas decididas pela técnica de ponderação de bens. O tema em destaque pode e deve ser encarado à luz dos princípios constitucionais, em especial o da unidade e o da efetividade constitucional, tratados conexamente com o assunto abordado no próximo item. Todo o raciocínio, as constatações e as premissas apontadas até aqui funcionarão como suporte para a aplicação de um método de interpretação constitucional específico, qual seja o científico-espiritual, arquitetado pelo jurista alemão Rudolf Smend. Ciente de que a Carta Magna é norma jurídica, dotada de uma linguagem e que não dispensa interpretação - essencialmente principiológica –, resta, por último, integrar esses conceitos para constatar qual o espírito da Constituição Federal de 1988 e quais os seus valores no que tange à solução dos conflitos. 4.3.4 Solução de conflitos sob o prisma constitucional: o método científico-espiritual como paradigma metodológico Para se obter resultados na Ciência, necessita-se de um objeto, e, obrigatoriamente, de um método. A atividade interpretativa inclui-se nessa premissa e, ao longo do tempo, foi avaliada sob diferentes aspectos de acordo com os métodos incidentes sobre sua concretização. Utilizar um método implica filiar-se a um conjunto de procedimentos lógicos que levem ao resultado desejado. Em sede jurídica, trata-se de uma filiação a uma corrente doutrinária consolidada e baseada em raciocínios aceitos pela ciência, em face de sua plausibilidade e sua aplicabilidade quanto ao objeto, o que não afasta a cientificidade e o respeito por outros existentes. Cabe ao jurista posicionar-se e, como em todo processo de interpretação e de aplicação do Direito, fundamentar suas conclusões. No campo da Hermenêutica Jurídica, diversas são as metodologias existentes para interpretação, sendo os principais o método hermenêutico clássico (e o apego à literalidade e a utilização dos elementos literais, gramaticais e textuais), sistemático, histórico, teleológico e genético 232 ; o método tópico, defendido por Viehweg, suportado pela técnica de pensar o problema, tendo como alicerce pontos de vista, raciocínio e argumentação; o método hermenêutico-concretizador, de Konrad Hesse, com a defesa da interpretação como concretizadora da norma jurídica, sendo o intérprete um mediador entre o enunciado e a 232 Os tradicionais entendem a interpretação da Constituição como uma mera interpretação legal. Logo, as técnicas clássicas aplicáveis às leis seriam suficientes à interpretação constitucional. 99 norma resultado; e o método jurídico normativo-estruturante, de Friedrich Muller 233 . Tem-se, também, o método científico-espiritual ou valorativo, preconizado por Rudolf Smend, durante a década de 50, no século XX, na Alemanha. A base da espiritualidade constitucional de Smend 234 - a qual ele faz desde um pressuposto calcado na origem da interpretação das leis religiosas judaicas – também denominada de método integrativo, parte de alguns comentários em apartado. Essa teoria da integração foi apresentada como uma alternativa ao positivismo jurídico reinante à época, sendo uma teoria da constituição que toma o próprio texto constitucional como ponto primordial de referência, em substituição ao lugar tradicionalmente ocupado pela teoria geral do Estado, o arquétipo interpretativo fundante nos demais modelos constitucionais 235 . Assim, o mais relevante não é a normatividade em si mesma, e sim o indelével e contínuo processo de sua realização integradora entre diversas facetas de pacificação social. O primeiro pressuposto, de origem sistêmica, tem na Constituição “um conjunto de distintos fatores integrativos com distintos graus de legitimidade” 236que contribuem para a representação do todo constitucional - a compreensão do sentido global da Constituição. O paradigma integrativo serve para congregar a sociedade dentro do próprio sistema político que a rege, dando-lhe um sentido de unidade normativo-social 237 . O poder do método integrativo reside na necessidade do intérprete dever observar a realidade que se manifesta diariamente de forma latente na sociedade. Isso implica uma obrigatoriedade de analisar qualquer instituto em harmonia com o espírito da Constituição 238 . A integração constitucional também remete à compreensão dos valores subjacentes a Lex Fundamentalis e é de importância singular enlaçá-los, pois qualquer interpretação que 233O método estruturante tem como centralidade “investigar as diversas modalidades de realização dos textos constitucionais na legislação, administração e jurisdição. Pretende em segundo lugar captar a transformação de normas em decisões práticas. Além disso, a metódica deve preocupar-se com a estrutura da norma e do texto, com o sentido da normatividade e os processos de concretização, com funções jurídico-práticas. Ademais, a interpretação deve partir da não-identidade entre norma e texto normativo, pois o texto de um preceito jurídico é somente a parte descoberta do iceberg normativo (Normprogram)”. FERREIRA, 1989, p 66. 234 SMEND, Rudolf. Lehrbuch der alttestamentlichen Religionsgeschichte. Berlin: Nabu, 2011, p.298. 235 SMEND, Rudolf. Verfassung und Verfassungsrecht in Staatsrechtliche Abhandklungen und andere Aufsätze. 3.ed. Berlin: Duncker & Humblot, 1994, p. 274. 236 BONAVIDES, 2010, p. 478. 237 CALDWELL, Peter C. Popular Sovereignty and the Crisis of German Constitutional Law: The Theory and Practice of Weimar Constitutionalism. Durham: Duke University Press, 1997, p.6. 238 Boa parte desse conceito foi assimilado dos ensinamentos de Karl Schmitt. No entanto, as premissas básicas da integração nos dois autores são diversas. Em Smend, o elemento é mais amplo, espiritualmente atrelado ao texto constitucional, já, em Schmitt, o pressuposto político assume o viés mais impositivo e menos comunitário em sua vivência prática. LÜTGENS, Lars. Das Demokratieprinzip als Auslegungsgrundsatz und Norm im Integrationskontext: Zugleich ein Beitrag zum Europäischen Polizeiamt (Europol) und der Problematik Ministerialfreier Räume. Berlin: Tenea, 2004, p.117-118. 100 tenha a Constituição como parâmetro de constitucionalidade precisa estar sintonizada com o espírito daquela 239 . Nesses momentos interpretativos de investigação metódica, há utilização da dialética fenomenológica e compreensão da exigência de humanidades (abraçadas, nessa argumentação, como verdadeiros valores e pressupostos axiológicos) 240 . A persecução recentemente mencionada figura como resistente ao autocontrole da própria análise constitucional e, consequentemente, a coerência desse sistema normativo se torna eficaz quando o próprio espírito constitucional se vê respeitado na implementação ou na retirada de leis que o suportem e o estruturem. O autocontrole promove a mediação entre a colocação e a extirpação de uma determinada diretriz normativa e a sistematicidade do próprio elemento estrutural constitucional. Denota-se imperiosa a correlação entre a passagem de direito constitucional para ciência política. Em compasso com o federalismo de sua época, a teoria integrativa afirma a importância da dualidade social-política do campo jurídico constitucional para uma concepção estrutural e espiritual da própria sociedade. É também relatada a existência de um paradoxo subjacente de permanência normativa do próprio sistema, que resulta na retirada da lei 241 e na completude do ordenamento jurídico, a depender das inter-relações políticas e normativas que incidem sistematicamente sobre a própria estrutura social visam regulamentar. As bases teóricas do espiritualismo descortinam um ângulo político do direito constitucional, como uma interação entre a realidade constitucional e a política. Isso foi, em forte oposição aos positivistas legais, a rejeição indireta ao sistema de Schmitt (indireta por ainda abebeirar-se de alguns de seus elementos descritivo-sistemáticos 242 ) e a integração de realidades (política e jurídica), em duas instâncias, comumente trabalhadas de forma distintas que necessitam unir-se ao redor de uma interpretação que favoreça o espírito constitucional em toda a sua potência comunitária. As normas, no método em debate, têm natureza mais elástica e possibilitam ao intérprete extrair dos enunciados, ou, até mesmo, do conjunto dos valores implícitos e explícitos da Constituição (pela abertura dos conceitos nela presentes), fazendo constante atualização e adequação da interpretação ao momento atual. Em última instância, o 239 SMEND, 1994, p. 270. 240 PÖSCHEL, Jürgen. Anthropologische Voraussetzungen der Staatstheorie Rudolf Smend. Berlin: Duncker und Humblot, 1978, p.44. 241 MÖLLERS, Christoph. Staat als Argument. Tübingen: Mohr Siebeck, 2001, p.108. 242 KORIOTH, Stefan; VON BOGDANDY, Armin. Leitsätze des Berichterstatters. In: HERDEGEN, Mathias; MORLOCK, Martin; KORIOTH, Stefan et al (org.). Leistungsgrenzen des Verfassungsrechts: Öffentliche Gemeinwohlverantwortung im Wandel. Berlin: De Gruyter, 2002, p.123. 101 formalismo se vê superado e as técnicas de atribuição de sentido retomam sempre a Constituição como sistema valorativo a ser preservado. O método científico-espiritual resulta numa interpretação sistemática, fundamentada no pensamento de que “interpretar uma norma é interpretar o sistema inteiro”, bem como “qualquer exegese comete, direta ou indiretamente, uma aplicação de princípios gerais, de normas e valores constituintes da totalidade do sistema jurídico” 243. Há quem assegure a interpretação jurídica só ser válida sendo sistemática, tendo a hermenêutica sistematizante a capacidade de transformar realidades e promover os valores da Constituição ao considerar o conjunto dos princípios, normas e precedentes jurídicos 244 . Mas qual a grande contribuição da metodologia científico-integradora-sistemática para a Hermenêutica Constitucional? Ela retoma as forças valorativas inseridas na Constituição pelo Poder Constituinte (Originário ou Derivado), respondendo coletivamente aos destinatários das normas – que, em última ratio, foram seus legitimadores –, servindo de afirmação dos bens morais definidos como relevantes para o povo. A promoção axiológica movimenta a essência da Constituição. Afinal, de que serviriam as regras, os princípios e os atos normativos se não se destinassem à concretizar e à afirmar o que os impulsiona? Com os já suficientes requisitos conceituais, renascem os questionamentos: quais os valores constitucionais que se relacionam com a solução dos conflitos? Já que a apologia é por uma constitucionalização dos litígios e sua respectiva interpretação, por esse filtro, qual o espírito que a Norma Fundamental imbui disso? As respostas para as indagações devem ser dadas sob um critério lógico. Há uma questão de justiça e esse é um dos valores fundamentais da Constituição de 1988. Não se divagará aqui acerca das variadas concepções de justiça existentes na Filosofia do Direito, até porque tarefa fácil essa não é, por ser definição fluida e variável. Talvez mais simples fosse identificar o que seria uma injustiça, que se caracteriza pela decorrência de um fato/ato que ataca o senso de existência tranquila e moralmente correta existente no turvo conceito do homem médio, ou, quiçá, defini-la, em termos kelsenianos - e não menos abertos -, como a felicidade social 245 . Razoável destacar a configuração da justiça como a primeira virtude das instituições sociais, assim como a verdade o é para o pensamento 246 . É nela que se 243 Juarez Távora apud Alexandre Pasqualini. Hermenêutica e sistema jurídico: uma introdução à interpretação sistemática do Direito, p. 89. 244 Ibidem, p. 90-101 245 KELSEN, Hans. O que é justiça? A justiça, o direito e a política no espelho da ciência. Tradução Luiz Carlos Borges. 3º ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.5. 246 RAWLS. John. A theory of Justice. Cambridge: Harvard University Press, 1995, p.3. 102 assenta o Direito, funcionando como força motriz das esperanças da sociedade, no tocante ao alcance de outro valor: a igualdade. Inegável constatar que a justiça equivale a um dos eixos centrais do ordenamento jurídico nacional, tendo sido prevista, por exemplo, no prefácio da Constituição, como o valor supremo de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Mais adiante, no artigo 3º, III, vê-se um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, uma sociedade justa. Ademais, o termo Justiça e seus derivados são recorrentes, de forma implícita ou explícita na Lei Maior Brasileira. Em especial, o seu acesso é assegurado, no art. 5º, inciso XXXV, como forma de institucionalização dos conflitos – transmutando-os à condição de lide - e composição por uma autoridade estatal, e, como meio para garanti-lo, há a previsão de uma série de órgãos jurisdicionais com competência para apreciar casos concretos. Verifica-se, a respeito desse aspecto, um déficit, no Brasil, de justiça substantiva. Se a justiça é valor e, assim sendo, de acordo com a definição já proposta, deve haver reconhecimento público e sentimento de admiração social quando manifestada, a testificação tem sido escassa em solo nacional, pelo menos na, por assim dizer, justiça judiciária 247 . O valor da justiça em relação à solução dos conflitos há tempos é ignorado pelos seus promitentes, pela visível deficiência na prestação jurisdicional ou pelo trauma causado pelas decisões impostas, por vezes decorrentes de produções probatórias raquíticas, verdadeiras injustiças institucionalizadas. Numa análise primeira, conclui-se que a aplicação do valor justiça aos conflitos não impede suas soluções em tempo razoável e célere, em obediência, inclusive, à garantia constitucional verbalizada no art. 5º, LXXVIII 248 . Essa não é uma constatação meramente abstrata e conceitual. Aplicar a justiça (ainda que seu conceito não seja algo presumivelmente consensual) equivale a tê-la concretamente em atuação, principalmente quando se tem artigo específico visando assegurá-la no corpo normativo constitucional. A segunda ponderação a ser feita diz respeito ao espírito da Constituição relativo ao grau de trauma gerado das decisões terminativas dos litígios. O acesso à justiça e, por consequência, à jurisdição tem como efeito resultante uma decisão imposta pelo Estado que, 247 No ano de 2009, a Fundação Getúlio Vargas, em parceria com o Instituto Brasileiro de Economia ouviu 1.636 pessoas de diferentes classes sociais em sete capitais (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Brasília e Porto Alegre e constatou que, por amostragem, Metade dos brasileiros tem percepção negativa do Poder Judiciário. Notícia disponível em: . Acesso em 02 de dezembro de 2011. 248 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação 103 via de regra, agradará a uma das partes da relação processual, mas que deixará a outra insatisfeita. Natural a irresignação da parte vencida numa relação processual e o arcabouço normativo prevê um sistema recursal aplicável aos casos, mas o ponto central do trauma aqui tratado revela-se no sentido de que, ainda que no exercício da jurisdição, a Constituição preconiza um princípio e um valor para a solução dos conflitos e ambos devem ser considerados na condução do caso concreto: a solução pacífica das controvérsias e a paz social. Para fins sistemáticos, estas serão abordadas sob o aspecto da jurisdição estatal e de mecanismos extrajudiciais de solução de conflitos. O art. 4º, inciso VII, aponta a solução pacífica dos conflitos como um dos princípios regentes da República Federativa do Brasil nas suas relações internacionais. Uma interpretação estritamente positivista defenderia ser específico das relações internacionais, nas quais o Brasil tivesse parte, mas o método científico-espiritual integrativo nos ensina a imprescindibilidade de consideração dos valores intrínsecos da Constituição ao fazer tamanha análise. Nessa esteira, o próprio prólogo constitucional de 1988 prevê que a República Federativa do Brasil é comprometida, na ordem interna e externa, com a solução pacífica das controvérsias 249 . Se o corpo textual da Carta Maior prevê sua aplicação aos litígios de ordem internacional, e há dogmas (paz social) insculpidos no preâmbulo, e conforme já esclarecido um princípio abriga normativamente também um valor, não resta outra interpretação senão a de se posicionar no sentido de que a pacificação dos conflitos deve ser observada em todos os âmbitos. Ademais, não há palavras supérfluas na Constituição, de maneira que existe uma linguagem constitucional clara para o tema – cuja direção aponta para a busca da superação da litigância em favor de um ideal de pacificação – que, se utilizada adequadamente no plano pragmático, tem a capacidade de inspirar uma nova ótica no tratar da matéria. Portanto, considerados esses fatores e aliados ao método sistêmico de valores, o qual aponta para a formação de um espírito que tenda a manter a unidade constitucional, é dedutível que toda a atividade jurisdicional, resguardada as devidas proporções, possibilidades e casos concretos, na medida em que integra o núcleo das formas de solução dos conflitos, deve prezar pela sua pacificação. 249 Ainda que o preâmbulo não seja necessariamente norma constitucional e, não integrando, portanto, o bloco de constitucionalidade, segundo a melhor doutrina, ele funciona como elemento integrativo e interpretativo, sinalizando o conjunto de valores básicos que informam o Poder Constituinte Originário e são diretrizes para o presente e o futuro do Estado Brasileiro. Há precedente do Pretório Excelso nesse sentido. Cf. ADI nº 2.076/AC – Rel. Min. Carlos Veloso. Decisão em 15 de agosto de 2002. Publicação no Diário da Justiça em 08 de agosto de 2003. Cf. também BASTOS, Celso; GANDRA, Ives. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1988. V.1, p. 409-410. 104 Como pacificar dentro de um contexto essencialmente litigioso? Deve-se tentar apontar diretrizes e não soluções específicas, pois o esforço demanda articulação própria. Visualiza-se, no âmbito jurisdicional, a tomada das fases de conciliação, nos processos judiciais civis e trabalhistas, não somente como parte de um conjunto de procedimentos, todavia como formato concretizador de valores constitucionais. Isso implica essencialidade de qualificação dos membros do Judiciário e de seus servidores, capacitação substancial, no intuito nascedouro do sentimento de constitucionalidade, notadamente, quanto à pacificação das controvérsias 250 . Representa, igualmente, uma compatibilização do princípio da proporcionalidade quanto às determinações judiciais, em especial, na adequação e na necessidade das medidas tomadas e, por fim, a formação de uma parceria institucional entre a Ordem dos Advogados do Brasil, o Poder Judiciário, o Ministério Público, os sindicatos, as associações, as organizações não-governamentais, as igrejas, dentre outros setores da sociedade civil organizada, para fins de incentivo de atuações extrajudiciais sólidas e fundamentadas na consciência das instituições do valor constitucional paz. Por outro lado, na seara extrajudicial, em razão do princípio da solução pacífica dos conflitos, que, no cenário neoconstitucional, tem natureza normativa e vinculante para o legislador, Administradores do Estado e particulares, sugere-se uma ampla política pública de pacificação, sobretudo de fortalecimento dos mecanismos não-jurisdicionais de solução de litígios (arbitragem, mediação, comissões de conciliação porventura criadas fora do seio estatal). As obrigações prestacionais e programáticas estatais não podem nem devem ser extraídas meramente de prescrições textuais, inclusive por terem por objeto a materialização de direitos e garantias fundamentais e, assim sendo, a CF/88, nos termos do art. 5º, § 2º da CF/88, dispõe que os direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. No Brasil, por se ter uma cultura de litigiosidade exacerbada, há uma descrença, além de desconhecimento desses mecanismos. O investimento numa política educacional, propagandística, encampada pelas três esferas do Governo e Poderes da União, sem prejuízo da participação dos atores sociais acima citados, configuraria, sem dúvidas, um avanço sem precedentes, na história brasileira, proporcionando efeitos transcendentes às relações permeadas pela divergência de interesses e redução dos gastos públicos com o aparato jurisdicional. 250 Cf. VERDÚ, Pablo Lucas. O Sentimento Constitucional. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1ª Edição, 2004. 105 Ante todo o exposto, reafirma-se a existência de paradigmas carentes de concretização na Constituição Federal de 1988, em especial a paz social, e a coletivização de sua existência nas relações intersubjetivas. A Pós-modernidade denota uma crise de valores e, no campo jurídico, um déficit de constitucionalidade. Há princípios e prerrogativas que ainda estão por se tornar realidades perceptíveis e significantes no cotidiano de cada um dos brasileiros e a constitucionalização – em crescente ascensão – do direito, e via de consequência, das relações privadas também é irrigada pela leitura de todos os ramos e atos da vida jurídica pela ótica da filtragem constitucional. Controvérsias sempre existirão, pois são fenômenos corriqueiros na história da humanidade. A violação de direitos deve, sim, ser reparada. A defesa de uma interpretação constitucional dos litígios não representa a anulação dos direitos subjetivos, nem tampouco da jurisdição. Mesmo havendo o conflito, a Constituição dispensa a intenção de sua resolução. Discorda-se, portanto, parcialmente do pensamento de Rudolf Von Ihering ao afirmar que “o fim do direito é a paz, o meio de que se serve para consegui-lo é a luta. [...] A vida do direito é a luta: luta dos povos, dos governos, das classes sociais, dos indivíduos” 251. No cenário hodierno, considerar a luta e seus instrumentos impositivos como a única ferramenta no alcance da paz é ignorar os valores e os princípios da Constituição e relegar a cultura, por ela prevista, a segundo plano. 251 IHERING, Rudolf von. A luta pelo direito. São Paulo: Martin Claret, 2002, p.27 106 5 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DA SOLUÇÃO PACÍFICA DE CONFLITOS NA ORDEM JURÍDICA DE 1988 A corrente seção dedica-se, prioritariamente, ao estudo dos fundamentos da resolução pacífica dos conflitos na Constituição Federal de 1988, de modo a fornecer subsídios para uma compreensão sistemática dos valores constitucionais acerca da cultura de paz. Serão estudados três itens específicos, a saber, o Preâmbulo Constitucional, o princípio da solução pacífica das controvérsias como informador da República Federativa do Brasil nas relações internacionais (art. 4º, inciso VII, DA CFRFB/88) e o instituto da arbitragem. Posteriormente, far-se-ão breves considerações acerca da Conciliação e da Neduação como signos normativos da constitucionalização de métodos pacíficos de solução de controvérsias no direito ordinário. 5.1 O PREÃMBULO CONSTITUCIONAL A Constituição é vista como fruto das aspirações de um determinado povo em certa época. Resta cristalino o entendimento de que todas as partes do seu corpo devem estar em harmonia e guardar coerência entre si. Da mesma forma, é possível afirmar que todos os elementos integrantes devem ser estudados cuidadosamente, pois cada setor do texto constitucional contribui com significativo papel e relevância para o sentido científico- espiritual da Constituição. Em razão disso, busca essa partícula do escrito analisar um campo específico do texto constitucional de 1988: o Preâmbulo. Justifica-se a escolha do tema em razão da quase generalizada indiferença dos doutrinadores quanto à representatividade jurídica desse no contexto da interpretação constitucional e, a depender do caso, como integrante do bloco de constitucionalidade. Destaca-se também a alta carga valorativa e principiológica depositada na declaração pré-textual da Assembleia Nacional Constituinte, que deve necessariamente ser objeto do estudioso do Direito Constitucional. De igual forma, o Prelúdio Constitucional é o ponto de partida para uma nova ordem jurídica, que rompe com a antecessora, e se configura pelo estabelecimento de marcos para o sistema de constitucionalidade que se inicia. A ideologia, os valores, os anseios e os fundamentos da nova ordem são expostos no texto preambular e é indubitável a indispensabilidade de esclarecimento das repercussões no campo do Direito. 107 5.1.1 Origem Uma das remissões mais antigas à locução preâmbulo data da civilização grega, quando Platão, ao enunciar suas Leis, tentou elucidar a missão educativa do legislador. Assim, pode-se concluir ser a legislação um instrumento de atuação da instituição educativa Republicana que é o Estado. Esse objetivo somente poderia ser alcançado mediante a elaboração de prólogos, “a cujas determinações conceituais e a cuja elaboração pormenorizada dedica uma atenção muito especial” 252. Segundo o pensamento platônico, os textos propriamente normativos constituiriam normas imperativas e o prefácio seria integrante das expressões persuasivas, tendo como interesse o estabelecimento da formulação e da fundamentação das boas ações tanto dos juízes quanto dos cidadãos 253 . Ainda nas civilizações antigas, o Código de Hamurábi 254 e o Decálogo 255 eram dotados de um proêmio, mas sob a forma ainda de revelação divina da norma ou de veneração da autoridade monárquica, sem que guardassem relação direta com a eficácia jurídica do texto posteriormente apresentado em cada caso 256 . Em Roma, a Constituição de Caracala (212 d.C.) e o Código Teodosiano (438 d.C.) fizeram menções introdutórias, remetendo-se ao Imperador, criador da norma, e confirmando os escritos dos jurisconsultos, “estabelecendo a hierarquia entre as várias disposições” 257. Na Idade Média, os exórdios eram dotados de apelo escatológico com pouca ou nenhuma vinculação com os textos que lhes sucediam. Porém, a Magna Charta Libertatum, de 15 de junho de 1215, diferiu, ao prever a retomada da louvação monárquica, a descrição daqueles que participaram de sua elaboração e uma espécie de espiritualidade. Com o advento da Modernidade e da Pós-Modernidade, o constitucionalismo foi o modelo adotado pelos Estados em suas organizações sociopolíticas. As Constituições escritas, de forte ascendência hierárquica, são precedidas por um preâmbulo, tendo sido a Constituição norte-americana de 1787 a primeira, nos moldes da normatividade moderna, a ser por ele 252 JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p.1300-1301. 253 Ibidem. 254“Quando o alto réu Anu, Rei de Anunaki e Bel, Senhor da Terra e dos céus, determinador dos destinos do mundo, (...) Quando ele a fez (a Babilônia) famosa no mundo e nela estabeleceu um duradouro reino cujos alicerces tinham firmeza do céu e da terra (...), por esse tempo, Anu e Bel me chamaram, a mim, o excelso príncipe!” 255 Então falou Deus todas estas palavras, dizendo: Eu sou o senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão. 256 BORGES, Alexandre Walmott. Preâmbulo da Constituição & a Ordem Econômica. Curitiba: Juruá, 2008, p. 34-35. 257 Idem, p.36. 108 antecedida. Com a práxis da técnica legislativa constitucional se enraizou a inserção dos preâmbulos como textos de abertura dos enunciados prescritivos, tanto dos textos constitucionais, como das declarações de direitos e dos tratados internacionais. São verdadeiros termômetros do momento e do estágio de desenvolvimento vivenciado pelas sociedades e encorpam as ideologias, as teorias, os objetivos tracejados pelo Poder Constituinte Originário, fincando marcos conexos com o meio de organização social. Em alguns casos, como na Constituição Francesa, têm função essencialmente normativa e remissiva a outros documentos legislativos. A prática consagrada para a redação das Constituições codificadas é a existência de: a) preâmbulo, parte introdutória com as definições fundamentais do regime político; b) forma de governo e organização do Estado; c) declarações de direitos, constituindo a parte dogmática; d) parte orgânica com a definição de órgãos e de competência; e) disposições finais ou gerais 258 . O introito tem sido classificado como elemento formal de aplicabilidade 259 ou como conteúdo da Constituição formal, mas de natureza não-normativa, de caráter restritamente ideológico 260 . 5.1.2 Conceito A raiz etimológica do preâmbulo abriga-se na expressão latina praembulus, a qual designa o que vai adiante ou o que precede. Há significações também no sentido das palavras ou dos atos que antecedem coisas definitivas, como prefácio, antelóquio, que precedem qualquer diploma legislativo ou executivo, dentre outros 261 . De um prisma notadamente jurídico, entende-se o preâmbulo como uma afirmação principiológica, o resumo do pensamento que permeou a Assembleia Constituinte no trabalho de elaboração constitucional. Ele enuncia “por quem, em virtude de que a autoridade e para que fim foi estabelecida a Constituição” 262 . Entretanto, percebe-se, na doutrina constitucionalista, definições mais abstratas, como o texto inaugural ser a Constituição das Constituições, funcionando como verdadeira ponte no tempo, ao evocar ou ao abandonar o 258 BONAVIDES, 2010, p. 87-88. 259 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 183. 260 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo, Martins Fontes; Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1990, p.380-382. 261 MARÇAL, Patrícia Fonte. Estudo comparado do preâmbulo da Constituição Federal do Brasil. Rio de Janeiro: Forense 2001, p.10-11. 262 SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição de 1988. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p.21. 109 passado, falar sobre o presente e fincar objetivos futuros aos povos 263 . Seria, assim, o apontador da compreensão que determinado povo tem de si no tocante à história, à cultura, à individualidade e ao papel na construção das nações 264 . Distingue-se o Preâmbulo da Exposição de motivos. Enquanto esta implica a oportunidade e a justificativa da criação de um ato normativo ordinário, mediante a inserção de tais razões no Projeto de Lei e diz respeito às razões pelas quais se deve regular uma determinada matéria, o Preâmbulo nada mais é que uma introdução dos documentos legislativos já aprovados. A exposição de motivos é voltada ao legislador, enquanto que o preâmbulo é por ele elaborado 265 . Uma relevante discussão doutrinária tem por objeto definir a natureza jurídica normativa do preâmbulo constitucional. O tópico ganha relevância por estabelecer se o elemento em comento integra ou não o corpo Constitucional e se tem eficácia normativa e, consequentemente, agrega o bloco de constitucionalidade, de forma que seja dotado caráter deôntico. Há três correntes sobre o tema da eficácia normativa preambular. A primeira, denominada tese da irrelevância jurídica, entende que o prelúdio não está situado no mundo jurídico, sendo próprio da História ou da Política (J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira) . Outro entendimento o enquadra no mesmo campo das disposições constitucionais (G. Bidart, Georges Burdeau, Hans Nawiasky e F. Gieses). E o terceiro, por fim, advoga pela tese da relevância jurídica específica ou indireta, defendendo a participação específica do preâmbulo nas características específicas da Constituição, mas sem se confundir com o articulado 266 . Quanto à controvérsia acerca de seu caráter legal propriamente dito, também há duas vertentes. Uns, como Giese, Lauro Nogueira e Jorge Miranda, defendem que é parte integrante da Constituição e é lei no sentido jurídico 267 . Por outro lado, existe quem negue seu aspecto de legalidade, conferindo-lhe mera tipologia introdutória e definindo-lhe função meramente de sentido e de finalidade, a exemplo de Harvey Walker, J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira 268 . 263 HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Tradução de Héctor Fix-Fierro. México: UNAM, 2001, p. 276. 264 HÄBERLE apud MENDES, COELHO, BRANCO. MENDES, Gilmar, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.30. 265 TEJADA, Javier Tajadura. El preámbulo Constitucional. Granada: Editorial Comares, 1997, p.11-13. 266 Cf. MENDES, COELHO, BRANCO. Idem. p.33.; MARÇAL, Patrícia, p.12. 267 FERREIRA, 1989, p .71. 268 Cf. MENDES, COELHO, BRANCO. Idem. p.33.; MARÇAL, Patrícia, p.12. 110 Partilha-se aqui do entendimento que critica o descaso dispensado ao estudo do preâmbulo, em especial no Brasil 269 . Caso não tivessem uma importância peculiar de natureza inspiradora, interpretativa e até mesmo normativa, não comporiam ou tampouco estariam no mesmo contexto da maior expressão de soberania e de legitimidade popular: as Constituições. Além disso, percebe-se uma escassez de argumentos e de insuficiência teórica daqueles que defendem a ineficácia normativa, por exemplo. Para os positivistas clássicos, o exórdio constitucional é mera inspiração programática, sob a forma de linguagem emocional, funcionando como, no máximo, um selo moral e ideológico das Constituições. Uma vertente mais moderna afirma ser o patamar mais alto da materialidade normativa dos princípios, possuindo a função precípua de orientação constitucional e de juridicidade última dos conteúdos da Norma Fundamental 270 . A representatividade do prólogo – esquecido, por vezes – é tamanha que se chega a afirmar que, em caso de dúvida interpretativa, a ideia emanada pela letra prolegomenal dará a interpretação verdadeira, pois a Constituição forma um corpo único, cuja unidade de pensamento deve ser preservada 271 . Por conseguinte, viável ilustrar nossa frontal discordância com o entendimento de que o preâmbulo não tem “merecido estudos mais aprofundados por parte da doutrina constitucional” 272. Acatar o raciocínio de que seja um mero enunciado constitucional seria pensar de forma reducionista, relegando a natureza ético-normativa do preâmbulo a um plano inferior e o destituindo da posição que ocupa de condutor inicial da Constituição. A teoria da visão preambular como apêndice da Constituição defenestra o sentimento social que moveu a Assembleia Nacional de 1988 e impele a memória popular ao abismo do tecnicismo e do bel- prazer dos legisladores e dos poderes públicos. A justaposição do prólogo constitucional não se ajusta ao entendimento doutrinário que lhe dispensa uma natureza eminentemente decorativa ou retórica. Em tempos de crise de identidade dos Estados Constitucionais, o resgate dos valores fundamentais revela-se uma alternativa para o reencontro do caminho que se perdeu. 269 BORGES, Alexandre Walmott. Preâmbulo da Constituição & a Ordem Econômica. Curitiba: Juruá, 2008, p.52-53. 270 BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa: por um direito constitucional de luta e resistência. Por uma Nova Hermenêutica. Por uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p.40. 271 NOGUEIRA, Lauro. O preâmbulo das Constituições. Fortaleza: Imprensa Oficial, 1946, p.40. 272 MENDES, COELHO, BRANCO, p.28. 111 5.1.3 Funções Se o preâmbulo existe e precede o texto constitucional é porque possui alguma utilidade, consubstanciada aqui sob a alcunha de funções. Ele possui três funções principais: normativa indireta, interpretativa e política. A normatividade indireta consiste na possibilidade que o intérprete tem de “obter a norma valendo-se – ou combinando – tanto das disposições dos artigos como das do preâmbulo” 273. Funciona como um suporte às fontes formais constitucionais diretas, dado que, por si, não são capazes de gerar direitos subjetivos. Decorrem determinados efeitos dessa função: a) em caso de discrepância entre disposições preambulares e regras constitucionais, prevalecem as últimas; b) não é possível obter produtos normativos tendo como fonte única o prefácio constitucional; c) o prólogo não integra o parâmetro de constitucionalidade utilizado pela Justiça Constitucional 274 . Pela função interpretativa, tem-se que, no preâmbulo, está gravada a vontade do autor – voluntas legislatoris –, de forma que é possível o intérprete se valer de três ações interpretativas diversas: a) compreender o preâmbulo como um padrão hermenêutico vinculante e principal, só podendo as disposições realmente normativas serem lidas como objetivadoras dos fins inseridos no preâmbulo; b) recorrer à teleologia e à psicologia do texto constitucional, com base no preâmbulo, ou seja, tracejar os fins a serem alcançados pela Constituição e a vontade dos constituintes ao redigirem o texto, respectivamente; c) fornecer substrato à interpretação histórica, ao mesmo tempo em que provê antecedentes históricos, no intuito de dirimir dúvidas interpretativas, elegendo o significado mais compatível com aquele dado pelos legisladores ao tema objeto de discussão no decorrer da história 275 . A faceta política da função preambular é estudada sob enfoque tríplice: decisão política fundamental de um povo, teto ideológico da fórmula política da Constituição, bem como fator de integração nacional. Visto que Carl Schmitt, em sua teoria decisionista, encarou a Constituição como ato de decisão política fundamental e não como ato normativo ou de vontade, o preâmbulo assumiu o papel de aplicação dos preceitos constitucionais. Explica-se. Se o texto constitucional, na visão em tela representa a decisão unitarista de um povo, a função do Prefácio Fundamental é sintetizar a declaração e a vontade popular na decisão 273 TEJADA, 1997, p.26-27. 274 Tejada esclarece que o Tribunal Constitucional Espanhol ratificou a tese do valor normativo indireto na sentença 36/1981 de 12 de novembro. Ressalta também que a exceção conhecida quanto ao item c é o preâmbulo da Constituição Francesa de 1958, que foi reconhecido pelo Conselho Constitucional como detentor de normatividade em decisão do ano de 1971. 275 Ibidem, p.33-48. 112 tomada. Assim, seriam os enunciados normativos apenas o reconhecimento de uma unidade nacional previamente descrita no preâmbulo. As identidades ideológicas de um determinado Estado e a síntese de sua Constituição material e formal são previstas em seu preâmbulo, qual seja demoliberal, fascista, socialista, comunista, irradiando no ordenamento jurídico infraconstitucional, inclusive. Como resultado, as políticas de Estado para os cidadãos são firmadas, com base em um compromisso público constituinte num determinado sentido. É o preâmbulo a residência primeira da manifestação do corpo político do povo e de como esse será conduzido, seja mediante perspectiva mais social, de valorização do Estado e de sua economia centralizada ou por critérios mistos. Como fator de integração nacional, o Estado existe unicamente em razão das manifestações e das expressões sociais, uma espécie de plebiscito que se renova a cada dia 276 . A Constituição tem o papel de integração nacional, nas seguintes espécies: pessoal, funcional e material. É sobre a integração material que atua o prefácio constitucional. A tipologia integrativa referenda a existência de valores substantivos de uma comunidade na participação estatal, os quais estão, em regra, contidos no texto do preâmbulo constitucional, entabulados sob a forma de objetivos a serem alcançados pelo Estado e como fins de sua própria existência. Por fim, exerce o preâmbulo a tarefa árdua de disseminar no seio social o sentimento de constitucionalidade, compreendido como a sensação coletiva de que há uma correspondência entre normas e realidade ou, ainda, que se opera na conduta de massa e individual de aderência às normas constitucionais de um país. O ensino do Direito Constitucional nas escolas revela-se como elemento fundamental nesse processo, visto que o inscrição preambular clarifica a própria finalidade da Carta Maior e hospeda os princípios ideológicos do regime político. É bem verdade que, no momento atual do constitucionalismo brasileiro, há um ambiente cético quanto à efetividade dos direitos fundamentais e ao respeito dos conteúdos mínimos de moralidade, de dignidade humana e de concretização do patamar básico civilizatório. Mas a proposta aqui delineada seria bem-vinda em solo nacional, tão deficiente em termos de educação cívica, pois configuraria um primeiro passo no conhecimento do telos da Carta de 1988 e de seu catálogo de direitos. No que diz respeito ao temário da seção que ora se encerra, tem-se que o Preâmbulo aponta a solução pacífica das controvérsias como um norte a ser seguido, tanto na ordem interna como na externa. Sob o viés interpretativo do texto, a orientação deixada àqueles que 276 RENAN, E. ¿Que és uma nación? Madrid: IEP, 1957, p.62-63. 113 governarão e legislarão nas décadas futuras é de seguir a direção constitucional. Ademais, todo o direito ordinário e cada ato procedimental processual deve levar em conta este o valor propugnado pela Constituição Federal. A eleição das formas mais pacíficas de solução de litígios – ainda que em sede jurisdicional – configura-se como um atendimento direto aos anseios do Constituinte Originário e, por via reflexa, aos do próprio povo brasileiro. A materialidade preambular pode se manifestar sob duas formas: a utilização diária da tentativa de pacificação dos conflitos nos atos processuais e a formulação de políticas públicas referentes à gestão das controvérsias, ambas com arrimo nos valores emanados pelo prólogo constitucional. 5.1.4 O Preâmbulo nas Constituições Brasileiras Todas as constituições brasileiras foram precedidas de um preâmbulo, sendo o mais extenso o inscrito no texto de 1937 e o mais breve o da Norma Básica de 1967. À exceção das Constituições de 1891 e de 1937, sempre houve alusão à figura de Deus no texto introdutório, ainda que a separação entre Igreja e Estado fosse prevista desde 1891, apontando para a existência de influência do humanismo cristão na sociedade brasileira 277 .. Assim, a laicidade deve ser lida “como distinção dos poderes político e religioso e não mais a exclusão da religião do campo social” 278, razão pela qual não se deve confundir laicidade com ateísmo “ [...] para reconhecer a crença espiritual como um dado sociológico, apenas sem a proclamação de uma religião oficial” 279. Cada preâmbulo representou o momento histórico-político vivido pelo Brasil. Tanto o é que todas as Constituições que tiveram como marco a dissolução do Congresso ou golpes a direitos fundamentais não tiveram introduções com ênfase libertária 280 . A Constituição de 1824 teve como Preâmbulo apenas “em nome da Santíssima Trindade”, mas guardou uma série de movimentos revolucionários antes de sua vigência. A referência religiosa constante no preâmbulo tem suporte na adoção do catolicismo como religião oficial do Império. A mesma alusão não foi repetida no preâmbulo de 1891, mas foi retomado no texto de 1934. Em 1937, o preâmbulo foi um verdadeiro discurso de autoritarismo Varguista, sendo resultado da isenção de participação legislativa e popular e de uma Constituição outorgada com o apoio das forças militares. Viu-se um abandono 277 MARÇAL, 2001, p.54. 278 ANATRELLA, T. Revista Paris Match. Paris: 1997, p.63. 279 NÓBREGA, Francisco Adalberto. Deus e Constituição: a tradição brasileira. Petrópolis: Vozes, 1998, p.62. 280 MENDES, COELHO, BRANCO, p.37. 114 generalizado das instituições democráticas, com a concentração do poder nas mãos do Chefe do Executivo. Nove anos depois, a nova Constituição, além de resgatar a figura de Deus, elegeu o regime democrático como aquele a ser adotado pela Assembleia Constituinte. O preâmbulo de 1969 silenciou a respeito do aspecto ideológico e político da Constituição, apenas inserindo a proteção de Deus nos mandos e nos desmandos dos governos militares, que por ela seriam acobertados. Repetiu-se em 1969 o exórdio de 1967. Em 1988, sob o clima de democracia e de renovação de esperanças, a Assembleia Constituinte aprovou a Constituição da República Federativa do Brasil, a qual é prefaciada por um dos mais belos preâmbulos de que se tem conhecimento. Nele, estão projetados a Democracia, os direitos fundamentais, a justiça como valor informativo do Brasil, o princípio da não-discriminação que ganha roupagem normativa no texto constitucional. A sintetização do novo momento democrático foi feita em palavras solenes de compromisso com o povo brasileiro, mas com cunho vinculante para o legislador ordinário 281 . Há nele uma remissão àqueles que estabeleceram a Constituição (o povo brasileiro) com um fim específico (instituição de um Estado Democrático de Direito), objetivos definidos (assegurar o exercício de direitos sociais e individuais, como a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça), fundada em valores (harmonia social) e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, sob cláusula de promulgação. Aspecto relevante do texto preambular são os valores supremos eleitos pela descrição textual. Trata-se de uma função de garantia dogmático-constitucional com a intenção de “prescrever ao Estado uma ação em favor da efetiva realização dos ditos valores em direção (função diretiva) de destinatários das normas constitucionais que dão a esses valores conteúdo específico” 282. Certo é que a previsão inaugural dos dogmas constitucionais fundamenta as normas redigidas em sequência, a exemplo do art. 3º, inciso V (o bem de todos como objetivo da República Federativa do Brasil), 170, caput, (fundamentação da Ordem Econômica na existência digna) e 193 da CF/1988 (o bem-estar como meta da Ordem Social). Todos os valores supremos insculpidos no proêmio são reafirmados na parte positiva do texto e reforçam sua função hermenêutica e integrativa para com as normas constitucionais, não 281 Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. 282 SILVA, Comentário contextual à Constituição, 2007, p.23. 115 sendo possível, destarte, conforme doutrina majoritária, conferir-lhes um sentido distinto do pretendido pelas normas constitucionais. Não é, todavia, texto desprovido de utilidade, em face de abrigar a intencionalidade do legislador que o confeccionou 283 . Nele habitam princípios orgânicos, revelados nos textos constitucionais, razão pela qual não se pode ignorar sua valoração, visto que uma árvore é a extensão de sua raiz 284 . 5.1.5 O Preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos da América, de 1787 285 O preâmbulo norte-americano é conhecido como o primeiro da história do constitucionalismo clássico e se calca num dos princípios mais valorizados na sociedade estadunidense – a liberdade. Assume o valor de promulgação formal da Constituição e se caracteriza como poesia libertadora e proclamação de valores balizadores para o futuro do povo norte-americano, funcionando como instrumento de integração política e cultural, embora seja reconhecida a sua ausência de normatividade. A Suprema Corte Norte-Americana, no caso Jacobson v. Massachusetts, 197 U.S. 11, 22 (1905) – que envolvia a constitucionalidade de determinados dispositivos da Lei de Massachusetts obrigando a vacinação e a revacinação de indivíduos daquele Estado para conter doenças possivelmente epidêmicas em contraposição ao direito individual de liberdade dos indivíduos –, utilizou o preâmbulo como fundamento interpretativo. Na ocasião, quando invocada a liberdade contida no preâmbulo, foi decidido que ele indicava apenas fins gerais para o povo, não podendo ser considerado como fonte de poder substantivo, esse sim atribuído ao Governo dos Estados Unidos e aos seus serviços. Os ditos poderes “abarcam apenas aqueles expressamente garantidos no corpo da Constituição e aqueles que podem ser deduzidos daqueles expressamente garantidos” 286. 283 MAUÉS, Antônio G. Moreira. Brasil: Preámbulo de la Constitución de Brasil de 1988. In: DEL MORAL, Antonio Torres; TEJADA, Javier Tajadura (org.). Los preâmbulos constitucionales em Iberoamerica. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001, p.75. 284 SAMPAIO, Luiz Augusto Paranhos. Comentários à nova Constituição Brasileira. São Paulo: Atlas, 1989, V.1, p.20. 285 Nós, o Povo dos Estados Unidos, a fim de formar uma União mais perfeita, estabelecer a Justiça, assegurar a tranquilidade interna, prover a defesa comum, promover o bem-estar geral, e garantir para nós e para os nossos descendentes os benefícios da Liberdade, promulgamos e estabelecemos esta Constituição para os Estados Unidos da América. 286 O preâmbulo indica a fins gerais para que o povo ordenou e estabeleceu a Constituição, nunca foi considerada como a fonte de qualquer poder substantivo atribuídas ao Governo dos Estados Unidos ou em qualquer dos seus serviços. Tais poderes abarcam apenas aqueles expressamente garantidos no corpo da Constituição e aqueles que podem ser deduzidos daqueles expressamente garantidos. Fonte: http://supreme.justia.com/us/197/11/. 116 5.1.6 O Preâmbulo da Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948 Após o Segundo Grande Conflito Armado Mundial, como fruto do nazismo, surgiram sociedades sem identidade de humanismo, havendo a banalização do mal. As atrocidades cometidas e respaldadas pelos sistemas jurídicos vigentes impeliram uma nova forma de pensar o homem e seus direitos, fato que permitiu um ambiente propício para o nascedouro de uma teoria dos direitos fundamentais. Em 1948, elaborou-se a Declaração Universal de Direitos Humanos, documento muito mais de afirmação axiológica, não reconhecido como fonte formal do direito internacional. Nela há a marca da mudança de paradigma quanto ao tratamento dispensado aos homens, funcionando como um norte no controle dos abusos dos Estados contra seus cidadãos. Muito embora a definição do instituto preambular diga respeito a um texto constitucional, cristalizando os anseios de uma nação, o termo foi empregado para a Declaração em epígrafe no sentido de elemento introdutório, visto que não se trata de um Documento Político de determinado Estado, e, por conseguinte, nada tem a ver com as aspirações de uma comunidade. Logo, a referida Declaração desempenhou papel de eco para os chefes de Estado, os particulares, além de todo e qualquer humano quando enfatizou o compromisso com os direitos do homem, de modo que “sua força é tamanha que muitos já entendem como lei obrigatória o respeito ao homem e seu espaço no mundo moderno” 287. 5.1.7 A Constituição Francesa de 1958 e a excepcionalidade normativa do Preâmbulo 288 Ao contrário da maioria dos sistemas constitucionais, o Preâmbulo da Constituição Francesa de 1958 integra seu corpo textual e o bloco de constitucionalidade. Trata-se de uma exceção ao entendimento da ineficácia normativa do preâmbulo. Para que se possa compreender essa realidade, é necessário esclarecer que a referida Constituição não dispõe de uma declaração de direitos fundamentais. No caso francês, o Preâmbulo funciona como elemento repristinatório (ou anômalo 289 ) de normatividade, anterior à Constituição, na medida 287 MARÇAL, 2001, p.24. 288 O povo francês proclama solenemente a sua adesão aos Direitos Humanos e aos princípios da soberania nacional tal como foram definidos pela Declaração de 1789, confirmada e complementada pelo Preâmbulo da Constituição de 1946. Em virtude destes princípios e do princípio da livre determinação dos povos, a República oferece aos Territórios Ultramarinos que manifestem vontade de a ela aderir novas instituições baseadas no ideal comum de liberdade e fraternidade, concebidas com vistas a sua evolução democrática. 289 BORGES, p.152. 117 em que elege os direitos encartados na Declaração do Homem e do Cidadão de 1789 e no Preâmbulo da Constituição de 1946. O Conselho Constitucional Francês não entendia o preâmbulo de 1946 como fonte normativa, dado que prevalecia o entendimento de que os princípios expostos na prólogo só eram dotados de eficácia caso previstos no próprio texto constitucional, haja vista serem meras fórmulas de promulgação da respectiva Carta. Sabe-se que o valor jurídico da deonticidade do texto introdutório não era reconhecido pelo Conselho, até mesmo porque o Preâmbulo não era uma unanimidade entre os tribunais judiciários e os Conselhos de Estado. Os tribunais defendiam que os comandos preambulares só ganhavam eficácia se previstos em leis ordinárias; o Conselho de Estado, por sua vez, os definia como princípios gerais de Direito. Porém, com o advento da Constituição de 1958 – que, aliás, conduzia ao preâmbulo de 1946 – a jurisprudência estabilizou-se, junto com o Conselho de Estado, no sentido de que os ditames do preâmbulo eram princípiológicos 290 . Porém, em 16 de julho de 1971, o Conselho Constitucional Francês, por meio da Decisão n° 71-44 DC, reformulou seu entendimento quanto ao bloco de Constitucionalidade e afirmou ter o preâmbulo constitucional força normativa, nos mesmos moldes das outras normas presentes na Constituição de 1958 291 . A alteração de entendimento representou o fim da soberania da lei e a ascensão da supremacia constitucional sob todas as formas 292293 . 290 Idem, p.154. 291 A decisão considerou que a exigência de autorização prévia, administrativa ou judicial, para a constituição de uma associação violava a liberdade de associação. Dominique Rousseau detalha o caso que deu origem à decisão que é considerada como o marco do renascimento do Conselho Constitucional francês, ipsis litteris: “Em 25 de janeiro de 1971, o tribunal administrativo de Paris anulou, de acordo com a sua jurisprudência uniforme, o acto de recusa do Prefeito da Polícia de Paris de entregar ao fundador da associação “Os amigos da Causa do Povo” o recibo da declaração dos estatutos, baseando-se na circunstância de a lei de 1º de julho de 1901, sobre associações, não atribuir à autoridade administrativa o poder de apreciar preventivamente a licitude da associação e a legalidade dos seus estatutos. Em vez de recorrer ao Conselho de Estado, o Governo fez aprovar no Parlamento, em 23 de junho de 1971, uma lei que alterava a lei de 1901 e nos termos da qual se instituía, por iniciativa do Prefeito, um controlo a priori das associações por parte das autoridades judiciais. Essa lei foi aprovada apesar da oposição do Senado, liderada por PIERRE MARCILHACY, que considerava que as suas normas violavam a liberdade de constituição de partidos políticos reconhecida pelo artigo 4º da Constituição. O Presidente da Assembleia Nacional, ALAIN POHER, foi mais ou menos obrigado a apelar ao Conselho, pedindo-lhe que apreciasse a constitucionalidade daquela reforma legislativa. ROUSSEAU, Dominique. Do Conselho Constitucional ao Tribunal Constitucional?. Revista Síntese. v. 1, n. 3, jan-mar., 2004, p. 92. 292 Cf. FAVOREU, L.; PHILIP, L. Les grandes decisions du Conseil Constitutionnel. Paris: Dalloz, 2004. 293 Eis a decisão, ipsis litteris: “Vista a lei de 10 de janeiro de 1936, relativa aos grupos de combate e às milícias privadas; 1. Considerando que a lei referida, ao exame do Conselho Constitucional, foi submetida ao voto de duas assembleias, em respeito a um dos procedimentos previstos pela Constituição, no curso da sessão do Parlamento aberta em 02 de abril de 1971; 2. Considerando que, entre os princípios fundamentais reconhecidos pelas leis da República e solenemente reafirmados pelo preâmbulo da Constituição, encontra-se o princípio da liberdade de associação; que esse princípio está na base das disposições gerais da lei de 1° de julho de 1901, relativa ao contrato de associação; que, em virtude desse princípio, as associações se constituem livremente e podem se tornar públicas apenas sob a ressalva do depósito de uma declaração; que, assim, à exceção das medidas suscetíveis de serem tomadas em relação a categorias particulares de associações, a constituição de associações, ainda que elas pareçam eivadas de nulidade ou tenham um objeto ilícito, não pode ser submetida, 118 A revolução interpretativa do Conselho Constitucional ocorreu primeiramente com a referência feita ao Preâmbulo da Constituição de 1958 – remissivo – como bloco de constitucionalidade, já que “no articulado da Constituição de 1958 não era possível encontrar qualquer norma consagradora da liberdade de associação” 294295. O segundo efeito do novo entendimento foi a adoção de um paradigma de materialidade de controle de constitucionalidade, de forma que o Conselho Constitucional tornou-se o guardião dos direitos fundamentais previstos na Declaração de 1789 e no Preâmbulo de 1946. O abandono de uma perspectiva meramente formalista do controle de constitucionalidade e a utilização da lente dos valores e das normas previstos no Preâmbulo proporcionaram força normativa ao que antes se entendia apenas por caráter diretivo e ideológico. O Conselho voltou a se manifestar sobre a normatividade do preâmbulo em 1987 (Decisão nº 86-225-DC 296 ), 1992 (Decisão nº 92-308-DC 297 ) e 1999 (Decisão nº 98-408- para sua validade, à intervenção prévia da autoridade administrativa ou mesmo da autoridade judiciária; 3. Considerando que, se nada mudou no que concerne à constituição até mesmo das associações não declaradas, as disposições do artigo 3° da lei cujo texto é, antes de sua promulgação, submetido ao Conselho Constitucional para o exame de sua conformidade à Constituição, têm por objeto instituir um procedimento de acordo com o qual a aquisição da capacidade jurídica das associações declaradas poderá ser subordinada a um controle prévio, pela autoridade judiciária, sobre sua conformidade à lei; 4. Considerando, por isso, que há lugar para declarar não conformes à Constituição as disposições do artigo 3° da lei submetida ao exame do Conselho Constitucional, as quais completam o artigo 7° da lei de 1° de julho de 1901, e assim, por via de consequência, que a disposição da última frase da alínea 2 do artigo 1° da lei submetida ao Conselho Constitucional a elas faz referência; 5. Considerando que não resulta nem do texto de que se trata, tal qual ele foi redigido e adotado, nem dos debates aos quais a discussão do projeto de lei deu lugar diante do Parlamento, que as disposições precitadas sejam inseparáveis do conjunto do texto da lei submetida ao Conselho; 6. Considerando, enfim, que as outras disposições desse texto não são contrárias a disposição alguma da Constituição; Decide: Artigo primeiro: São declaradas não conformes à Constituição as disposições do artigo 3° da lei submetida ao exame do Conselho Constitucional, as quais completam as disposições do artigo 7° da lei de 1° de julho de 1901, assim como as disposições do artigo 1° da lei submetida ao Conselho que a elas fazem referência. Artigo 2°: As outras disposições do dito texto de lei são declaradas conformes à Constituição. Artigo 3°: A presente decisão será publicada no Jornal oficial da República francesa. Jornal oficial de 18 de julho de 1971, p. 7114. Coletânea, p. 29” [Tradução livre]. C.C. 71-44 D.C. 16 juil. 1971. Disponível em: http://www.conseil- constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/les-decisions/acces-par-date/decisions-depuis-1959/1971/71- 44-dc/decision-n-71-44-dc-du-16-juillet-1971.7217.html. Acesso em 22 de maio de 2011. 294 ROUSSEAU, p.93. 295 Embora a expressão e teoria bloco de constitucionalidade (composto pela Constituição de 1958 e seu preâmbulo, o Preâmbulo da Constituição de 1946 e os princípios fundamentais reconhecidos pelas leis da República) seja atribuída a Louis Favoreu, há casos apontados pela doutrina que conectam a datas do início do século XX. Cf. MANILI, Pablo Luis. El bloque de Constitucionalidad: la recepción Del Derecho Internacional de los derechos humanos em El Derecho Constitucional Argentino. Buenos Aires: La Ley, 2002, p.284-288. 296 Nesta decisão, a alínea 11 do Preâmbulo da Constituição de 1946 foi tomada como parâmetro de constitucionalidade, em declaração de conformidade com a Constituição do artigo 4º. In: http://www.conseil- constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/les-decisions/depuis-1958/decisions-par-date/1987/86-225- dc/decision-n-86-225-dc-du-23-janvier-1987.8333.html. Acesso em 22 de maio de 2011. 297 A Decisão nº 92-308-DC diz respeito à aprovação do Tratado da União Europeia. As normas do Preâmbulo foram utilizadas para sustentar a aprovação, tomando como base a disposição preambular de 1946, na qual a República francesa se conforma às regras de direito internacional público. In: http://www.conseil- constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/les-decisions/depuis-1958/decisions-par-date/1992/92-308- dc/decision-n-92-308-dc-du-09-avril-1992.8798.html. Acesso em 22 de maio de 2011. 119 DC 298 ), reiterando em todos os casos o entendimento proferido no leading case de 1971, em particular no tocante à composição do bloco de constitucionalidade. 5.1.8. O Preâmbulo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Não há duvidas de que o Supremo Tribunal Federal é o guardião da Constituição, a ele cabendo realizar o controle de constitucionalidade das leis e dos atos normativos federais e estaduais, bem como das normas internacionais em relação à Lex Magna. Nessa linha, a interpretação dada pelo STF às leis e à Constituição é o único Direito considerado como válido em última instância, em razão da vinculação de suas decisões, nos termos do art. 102, §2º da CF/88. Embora parte da doutrina entenda que determinada matéria deva ser compreendida sob um significado específico, não se pode proceder ao estudo do instituto sem o arrolar do posicionamento da Corte Máxima. O mais conhecido julgado é a ADI n. 2.076/AC, relatada pelo Ministro Carlos Velloso, quando o Partido Socialista Liberal alegou inconstitucionalidade por omissão da Constituição Acreana por ter omitido de seu preâmbulo a expressão “sob a proteção de Deus”. Com efeito, a Corte Suprema decidiu, sob o manto da unanimidade de votos, que o Preâmbulo da Constituição não constitui norma central, razão pela qual não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força normativa 299 . O Ministro Velloso, foi reducionista, ao consignar, em seu voto, que o preâmbulo está à margem do Direito, sendo componente dos meandros da política, e reflete a posição ideológica do Constituinte, não deferindo-lhe relevância jurídica. Não se discorda do entendimento do Supremo ao afirmar que a expressão “sob a proteção de Deus” não é norma de reprodução obrigatória nas Constituições Estaduais, em obediência ao princípio da simetria. Porém, contesta-se visceralmente a tese jurisprudencial de irrelevância jurídica absoluta do Preâmbulo. 298 Teve como objeto a aprovação do Estatuto da Corte Penal Internacional e se fundamentou em dispositivos constitucionais e no preámbulo para aprová-lo, mediante revisão da Constituição. 299 EMENTA: CONSTITUCIONAL. CONSTITUIÇÃO: PREÂMBULO. NORMAS CENTRAIS. Constituição do Acre. I. - Normas centrais da Constituição Federal: essas normas são de reprodução obrigatória na Constituição do Estado-membro, mesmo porque, reproduzidas, ou não, incidirão sobre a ordem local. Reclamações 370-MT e 383-SP (RTJ 147/404). II. - Preâmbulo da Constituição: não constitui norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força normativa. III. - Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente. ADI 2076 / AC – Relator: Min. VELLOSO Julgamento: 15/08/2000 Tribunal Pleno DJ DATA-08-08-2003. 120 Ainda que não se possa pregar uma força normativa direta da descrição introdutória, pois não é da cultura constitucionalista nacional, é inegável o seu caráter de força interpretativa e integradora. Se assim não o fosse, qual seria a sua utilidade e finalidade ao ser inserido na Constituição Federal? Meramente decorativo ou arte poético-jurídica? Certamente não. Os argumentos do magistrado sucumbem diante de um estudo mais profundo acerca do tema, conforme já exposto neste escrito e revelam o preâmbulo como um prólogo esquecido, empoeirado, que só serviu à Assembleia Constituinte e que atualmente não conviria para ser relembrado e reafirmado a cada decisão judicial dentro de seu contexto, resultado da luta e do quão caro foi à sociedade brasileira ter garantido o acesso à democracia. A carga valorativa e principiológica arraigada no seio preambular funciona como uma bússola tanto para o texto positivo propriamente dito que se segue quanto para o legislador e os agentes políticos. Negar-se-ia que a garantia dos direitos sociais e individuais, a exemplo da liberdade, da segurança, do bem-estar, do desenvolvimento e da igualdade devem permear as ações do Estado Brasileiro? Seria insensato afirmar que a política de métodos pacíficos de solução de conflitos adotada pelo Poder Judiciário, encampada pelo Conselho Nacional de Justiça, mediante a Resolução nº 125, de 29 de novembro de 2010, e por particulares é reflexa ao fundamento da pacificidade na resolução das lides inserido no Prólogo Constitucional? Parecem acomodadas e superficiais as construções argumentativas qualificadoras do prefácio como mero discurso político-ideológico. Imperiosa uma mudança na leitura interpretativa de sua função. Constatou-se uma sensível mudança na ADI N. 2.649/DF, relatada pela Ministra Carmem Lúcia. A ação, impetrada pela ABRATI – Associação Brasileira das Empresas de Transporte Interestadual, Intermunicipal e Internacional de Passageiros, perseguia a inconstitucionalidade da Lei N. 8.899, de 29 de junho de 1994, que concede passe livre às pessoas com deficiência. Embora ainda tímida, a argumentação da Ministra relatora abrigou- se no conjunto de valores e princípios vinculantes, ao menos para o legislador, do prelúdio 300 . 300 Devem ser postos em relevo os valores que norteiam a Constituição e que devem servir de orientação para a correta interpretação e aplicação das normas constitucionais e apreciação da subsunção, ou não, da Lei 8.899/1994 a elas. Vale, assim, uma palavra, ainda que brevíssima, ao Preâmbulo da Constituição, no qual se contém a explicitação dos valores que dominam a obra constitucional de 1988 (...). Não apenas o Estado haverá de ser convocado para formular as políticas públicas que podem conduzir ao bem-estar, à igualdade e à justiça, mas a sociedade haverá de se organizar segundo aqueles valores, a fim de que se firme como uma comunidade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...). E, referindo-se, expressamente, ao Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988, ensina José Afonso da Silva que ‘O Estado Democrático de Direito destina-se a assegurar o exercício de determinados valores supremos. ‘Assegurar’, tem, no contexto, função de garantia dogmático- constitucional; não, porém, de garantia dos valores abstratamente considerados, mas do seu ‘exercício’. Este signo desempenha, aí, função pragmática, porque, com o objetivo de ‘assegurar’, tem o efeito imediato de prescrever ao Estado uma ação em favor da efetiva realização dos ditos valores em direção (função diretiva) de 121 Emanando posicionamento diferente do esposado em 2003, mas se apoiando na normatividade do preâmbulo, depreende-se do voto transcrito uma via diretiva da axiologia preambular. Já é um passo de progresso interpretativo que, quiçá, um dia poderá culminar num destino de valorização dos clamores sociais e de um momento histórico definidor de uma nova fase na vida constitucional e democrática brasileira. Em julgados mais recentes, o STF demonstra um abrandamento do posicionamento antes consolidado. O juízo de que o preâmbulo é destituído de normatividade, não possuindo valor jurídico, tem sido abrandado por uma nova interpretação apresentada em algumas decisões fundamentais e de repercussão social. A primeira delas, o HC 94.163-RS, teve como relator o Ministro Carlos Ayres de Britto, que referenciou o Preâmbulo Constitucional como um dos argumentos interpretativos da Lei de Execução Penal à luz da Constituição, sob a perspectiva da fraternidade como elemento norteador da sociedade brasileira 301 . Seguindo a mesma linha, dois julgados corroboraram a retomada valorativa do preâmbulo. No Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 26071-DF, ao tratar sobre a reserva de vagas em concurso público, a argumentação da relatoria defendeu que o Prefácio deveria ser o marco inicial na busca de uma sociedade fraterna, razão pela qual se justificaria a política de ação afirmativa, objeto da discussão 302 . Outra decisão, a ADI 3510 303 – cujo objeto são dispositivos da Lei de Biossegurança –, faz destinatários das normas constitucionais que dão a esses valores conteúdo específico’ (...). Na esteira destes valores supremos explicitados no Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988 é que se afirma, nas normas constitucionais vigentes, o princípio jurídico da solidariedade. (ADI 2.649, voto da Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 8-5-2008, Plenário, DJE de 17-10-2008). 301 HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. PROVIMENTO MONOCRÁTICO DE RECURSO ESPECIAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. OFENSA AO PRINCÍPIO DA COLEGIALIDADE. LIVRAMENTO CONDICIONAL. FALTA GRAVE (FUGA). DATA-BASE DE RECONTAGEM DO PRAZO PARA NOVO LIVRAMENTO CONDICIONAL. ORDEM CONCEDIDA. (HC 94163, Relator: Carlos Britto, Primeira Turma, julgado em 02/12/2008, DJe-200. Divulgado em 22-12-2009. Publicado em 23-10-2009). 302 RMS 26071, Rel.: Carlos Britto, Primeira Turma, julgado em 13/11/2007, DJe-018. Divulg. 31-01-2008. 303 CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DE BIOSSEGURANCA. IMPUGNAÇÃO EM BLOCO DO ART. 5º DA LEI Nº 11.105, DE 24 DE MARÇO DE 2005 (LEI DE BIOSSEGURANCA). PESQUISAS COM CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO DIREITO À VIDA. CONSITUCIONALIDADE DO USO DE CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS EM PESQUISAS CIENTÍFICAS PARA FINS TERAPÊUTICOS. DESCARACTERIZAÇÃO DO ABORTO. NORMAS CONSTITUCIONAIS CONFORMADORAS DO DIREITO FUNDAMENTAL A UMA VIDA DIGNA, QUE PASSA PELO DIREITO À SAÚDE E AO PLANEJAMENTO FAMILIAR. DESCABIMENTO DE UTILIZAÇÃO DA TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONFORME PARA ADITAR À LEI DE BIOSSEGURANCACONTROLES DESNECESSÁRIOS QUE IMPLICAM RESTRIÇÕES ÀS PESQUISAS E TERAPIAS POR ELA VISADAS. IMPROCEDÊNCIA TOTAL DA AÇÃO. [...] II - LEGITIMIDADE DAS PESQUISAS COM CÉLULAS- TRONCO EMBRIONÁRIAS PARA FINS TERAPÊUTICOS E O CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. [...] A escolha feita pela Lei de Biosseguranca não significou um desprezo ou desapreço pelo embrião "in vitro", porém uma mais firme disposição para encurtar caminhos que possam levar à superação do infortúnio alheio. Isto no âmbito de um ordenamento constitucional que desde o seu preâmbulo qualifica “a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça" como valores supremos de uma sociedade mais que tudo "fraterna". O que já significa incorporar o advento do constitucionalismo fraternal às relações humanas, a 122 menção ao Prólogo como vetor axiológico integrante da hermenêutica de concretização de direitos fundamentais. 5.2 O CASO DO ART. 4º, INCISO VII, DA CFRFB/88 Da apresentação sistematizada do corpo constitucional e de toda a integração normativa das demais espécies reguladoras da vida social nos moldes hodiernos, tem-se que todo o universo jurídico deve estar em sintonia para que suas disposições sejam minimamente eficazes e façam algum sentido e não sejam tidas como um amontoado de regras (ou melhor, de preceitos institucionais) sem fim (pré-ordenado) consolidado. Essa breve enunciação da necessidade interpretativa-sistemática da Constituição é a premissa básica para que se possa perscrutar mais profundamente (em sua esteira filosófica, principalmente) a questão contida no inciso VII, do artigo 4º da Constituição da República e a sua correlação com as determinações resolutórias de conflitos de maneira pacificadora contidas no preâmbulo constitucional. Para que se possa passar à discussão da análise acima encetada é imprescindível que se ponha em testilha o mencionado artigo constitucional, o qual enuncia, in verbis, que: “A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: [...]VII - solução pacífica dos conflitos”. O artigo encontra-se consentâneo com as indicações preambulares, haja vista determinar, expressamente, que a solução pacífica de conflitos seja erigida como princípio regente das relações internacionais, nas quais a República Federativa do Brasil tome parte. Outrossim, se lido em conformidade com a disposição prefacial, forma conjunto bastante específico dentro do sistema constitucional brasileiro, formalizando previamente um bojo indicativo do proceder na resolução das controvérsias (ou conflitos sociais, em uma acepção mais específica das contendas que o mencionado conjunto tenta normatizar). Essa percepção é importante para que se possa vislumbrar, em um entendimento lógico do próprio traduzir verdadeira comunhão de vida ou vida social em clima de transbordante solidariedade em benefício da saúde e contra eventuais tramas do acaso e até dos golpes da própria natureza. Contexto de solidária, compassiva ou fraternal legalidade que, longe de traduzir desprezo ou desrespeito aos congelados embriões "in vitro", significa apreço e reverência a criaturas humanas que sofrem e se desesperam. Inexistência de ofensas ao direito à vida e da dignidade da pessoa humana, pois a pesquisa com células-tronco embrionárias (inviáveis biologicamente ou para os fins a que se destinam) significa a celebração solidária da vida e alento aos que se acham à margem do exercício concreto e inalienável dos direitos à felicidade e do viver com dignidade (Ministro Celso de Mello). [...]. ADI 3510-DF, Rel.: Min. Carlos Britto, Tribunal Pleno, julgado em 19/05/2008, DJe-096. Divulg: 27-05-2010. Publicado: 28-05-2010. 123 sistema, como as demais soluções conflitivas devem ser solucionadas nas demais relações existentes na República Brasileira. O problema na análise do mencionado conjunto normativo (partindo-se do pressuposto de que tenham sido superados os eventuais achaques que propõem a inexistência de força normativa no preâmbulo) é a indicação, dos que defendem uma sistemática litigiosa para a resolução dos conflitos, da solução pacífica desses como regente apenas das relações internacionais da República Federativa do Brasil, não servindo, dessa feita, para tutelar ou regulamentar o restante das situações conflituosas, isto é, as demais situações abarcadas pelo direito comum nacional (as quais, indubitavelmente, constituem a maior parcela dos imbróglios existentes no campo jurídico). Assim sendo, para rechaçar essa suposta divergência de possibilidades resolutórias de conflitos recorre-se ao coerentismo para explicar o porquê de as relações não abrangidas pelo direito internacional (como determina a redação do inciso VII do artigo 4º da Constituição da República) também deverem ser solucionadas pacificamente. A justificação filosófica (e, no caso em debate, também, jurídica) para que haja uma aplicação irrestrita das soluções pacificadoras dos conflitos jurídicos reside na necessidade de se ter uma coerência entre todas as disposições normativas que digam respeito ao mesmo tema, ou seja, à solução de conflitos. De acordo com as bases do coerentismo, uma crença 304 é justificada se for coerente com outras inseridas num conjunto já aceito 305 . O objetivo primordial consiste em especificar, dentro do sistema, como a coesão se dá, sem que seja necessário recorrer a um tratamento circular do problema de aceitação das crenças anteriores. Essas, na verdade, já eram aceitas por si mesmas (o problema do fundacionismo 306 ). O conceito de coerência tem sua base teórica na noção de sistema, sendo um conjunto cujos elementos permanecem em relação mútua tanto de consistência, quanto de interdependência. Essa é uma definição de coerência bem simples de se compreender, no entanto a sua explicação lógica mais aprofundada 307 enuncia que a coerência tem um aspecto eminentemente negativo no todo no qual está inserida e faz parte. Em última instância, a coerência é uma reformulação do Princípio Aristotélico da Não-Contradição, de modo que, em termos neoplatônicos, ele é uma combinação entre a unidade (premissa básica da crença 304 O vocábulo “crença” está sendo utilizado em sua acepção filosófica, a qual diz respeito a uma condição psicológica do sujeito que se define pela sensação de veracidade relativa a uma determinada ideia. 305 GRAYLING, A C. Epistemology. Epistemology. In: Bunnin et al (orgs.). The Blackwell Companhion to Philosophy. Cambridge: Blackwell Publishers, 1996, p.44. 306 O fundacionismo é a teoria filosófica anterior ao coerentismo E defende que de uma crença fundamental (fundante) derivam todas as demais crenças do sistema, algo frontalmente combatido pelo coerentismo. 307 CIRNE-LIMA, Carlos. Sobre o Uno e o Múltiplo em Plotino. In: SOUZA, Draiton Gonzaga de (Org.). Amor Scientiæ: Festschrift em Homenagem a Reinholdo Aloysio Ullmann. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, p.108. 124 defendida) e a ordem da mônada 308 com a multiplicidade da díade 309 indeterminada. Assim que se define o princípio da coerência universal, agregando conceitos de unidade e de identidade sem, contudo, rejeitar a possibilidade de uma nova inserção lógica dentro do próprio conjunto já estabelecido de premissas e de crenças válidas – uma visão bastante próxima do conceito de coerência no sistema de experiências de William James 310 , segundo o qual deve haver uma evolução na adequação de novas experiências que suscitem novas crenças. A coerência acaba por ser compreendida como sendo o elemento lógico fundamental que serve para evitar a contradição de qualquer sistema (filosófico ou jurídico), a partir da cessação do problema da derivação e da desnecessidade de se recorrer a uma circularidade para explicar a causa de alguma assertiva dentro do conjunto de possibilidades já pré-definido anteriormente. É amplamente aceito que a própria sustentabilidade de crenças por meio de outras crenças exige, como elemento básico e mínimo, a própria coerência 311 . É justamente nesse horizonte de interpretação lógica do sistema que se pode compreender a exigência de haver uma consistência entre a crença a ser infirmada e o conjunto ao qual ela pertence. Do critério da consistência se subentende, se a própria derivação conjuntural se der em consentâneo com as próprias premissas estatuídas no conjunto que serve de orientação para o conteúdo do sistema. No que concerne ao critério da dependência exigido para se obter a coerência de crenças, há certa discussão atinente a sua formulação universal. Existindo, portanto, basicamente duas correntes para tentar explicar tal critério. A primeira delas, mais rigorosa e um tanto quanto excessiva, determina que a dependência significa implicação recíproca entre crenças, de modo a se corresponderem logicamente para que a coerência seja instaurada. Uma segunda noção, mais difusa que a anteriormente apresentada, enuncia que a crença é coerente com o conjunto analisado, se a qualquer uma das crenças derivadas seguir-se o próprio conjunto e se nenhum subconjunto de crenças for logicamente independente do restante. Depois de toda essa explicação filosófica de matiz lógico, retomando o caso jurídico em apreço, tem-se o conjunto pré-estabelecido de normas apontando a coerência com o sistema jurídico mais amplo como indicador da operação pacífica (ou pacificadora) da solução de conflitos. Qualquer crença defensora do contrário estaria eivada de incoerência 308 Conceito fundamental e básico do sistema filosófico e lógico de Leibniz (1956, p. 14), segundo o qual significa “substância simples” – do grego μονάς, μόνος, que se traduz por "único", "simples". Como tal, faz parte dos compostos, sendo ela própria sem partes e, portanto, indissolúvel e indestrutível. 309 A díade é um par no qual a individualidade de cada um é eliminada em detrimento da unidade. 310 WAALS, Cornelis de. Sobre Pragmatismo. Trad. Cassiano Terra Rodrigues. São Paulo: Loyola, 2007, p.74. 311 WILLIAMS, Michael. Unnatural Doubts. Princeton, 1996, p.266. 125 (como elemento negativo da análise lógica da própria relação da crença para com o conjunto abordado, como demonstrado anteriormente). Não há consistência em defender que no plano internacional os conflitos devem ser resolvidos pacificamente e defender, mutuamente, que no plano interno deva haver o apoio à litigiosidade. Inexiste estruturação lógica e consistente para se asseverar a premissa básica de uma corrente que não defenda a pacificação social em sentido mais amplo, e, que, ao mesmo tempo, proponha a litigiosidade como elemento central da argumentação. A formalização desse empenho jurídico é incongruente com o próprio conjunto normativo de crenças estabelecido pela constituição (tanto no preâmbulo quanto no inciso VII do artigo 4º). Ainda nessa senda, não há a relação de dependência entre a defesa da litigiosidade no plano interno e a aplicação de resoluções pacíficas no plano externo, como se eles fossem dois conjuntos apartados. Na verdade, trata-se de uma crença incoerente com o conjunto ao qual ela se comunica logicamente. Não há nem derivação (a pacificação como regra geral não dá azo a se derivar a litigiosidade como regra específica) nem, tampouco, se forma a litigiosidade a partir de um subconjunto dependente da normatização constitucional, como se, por exemplo, existisse alguma norma internacional que o Brasil fosse signatário que determinasse a litigiosidade como regra resolutória dos conflitos. Caso se insistisse na validade desse subconjunto seria necessário que houvesse toda a integração normativa ao sistema jurídico pátrio, sem falar que, axiologicamente, tal determinação seria incompatível com o atual sistema brasileiro que já possui determinações acerca desse tema. No entanto, há de ser peremptório em afirmar a inexistência desse subconjunto relativamente independente, de modo que esse cenário, a não ser a título de explanação acadêmica, não pode sequer ser cogitado como normativo e válido segundo os critérios estabelecidos. É incoerente, ilógico, e, também, inaceitável do ponto de vista da validade das premissas e das crenças apresentadas, uma indicação normativa em certo sentido se encaixando dentro dos parâmetros normativos de um conjunto de elementos constitucionais, em frontal discrepância com as determinações das resoluções litigiosas de conflitos no âmbito cultural interno da República Federativa do Brasil. Conclui-se que as relações jurídicas desenvolvidas internamente não podem estar subjugadas a uma regra incoerente com o próprio conjunto definido sistematicamente pela Constituição. Não se está sequer a advogar um monismo em termos de aplicação de normas internacionais (não há de se adentrar nessa seara para compreender os critérios de lógica e de formalização encetados nessa argumentação), apenas deve-se compreender que o sistema 126 constitucional, em sua inteireza, clama tanto por uma unidade interpretativa, quanto por uma identidade lógica em sua aplicação. Compreende-se, derradeiramente, que o único posicionamento a se coadunar com tais exigências é o defensor, no plano interno, ainda que não haja uma disposição textual expressa nesse sentido, do sentido único para a atuação do Brasil em relação às controvérsias. Trata-se, portanto, de uma inferência lógica e coerente com o conjunto normativo constitucional, o da imprescindibilidade da existência de uma política institucional de resolução de conflitos pacífica, a derivar da própria Constituição e de uma interpretação coerente do sistema constitucional estabelecido, bem como do conjunto normativo por ele próprio erigido, em prol de soluções precipuamente pacificadoras. 5.3 A ARBITRAGEM COMO MÉTODO PACÍFICO DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS Considerando a proposta temática do estudo até o momento desenvolvido, decidiu-se por discorrer acerca do único mecanismo pacífico de solução de controvérsias presente na Constituição Federal de 1988 que possui legislação própria: a arbitragem. A referência textual feita diz respeito à utilização da arbitragem na negociação coletiva, isto é, como instrumento de solução de conflitos coletivos de trabalho 312 . Na seara infraconstitucional, a Lei 9.307/96, de 23 de setembro de 1996, regulamentou as regras procedimentais da arbitragem. Sua leitura deve ser realizada à luz do fenômeno constitucionalizador, isto é, numa visão de materialização dos pilares fundamentais erigidos pela Norma Básica. Buscar-se-á, adiante, tratar de suas especificidades – não sob a ótica juslaboral, e sim como instrumento próprio da solução pacífica de litígios capaz de ser efetivamente utilizado como método extrajudicial – alternativo, portanto – de resolução de disputas 313 . A premissa fundamental do raciocínio que ora se desenvolverá é da Lei Arbitral como fruto de uma necessidade legiferante, mas, acima disso, como um reflexo dos valores emanados pela Constituição para as normas que nela tem arrimo de validade e já debatidos quanto aos conflitos. 312 Art. 114, §2º, CF/88: § 1º e 2º - Frustrada a negociação coletiva, as partes poderão eleger árbitros. § 2º Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente. 313 Para um estudo mais detalhado sobre a arbitragem, sobretudo no que diz respeito a sua compatibilização com o fenômeno globalizador, bem como a sua repercussão no Direito Individual do Trabalho Cf. FILHO, H. L. A arbitragem aplicada aos contratos individuais de trabalho na era da globalização. Revista Complejus, v. I, 2010, p. 104-124. 127 5.3.1 Elementos A Lei n. 9.307, de 23 de setembro de 1996, é o documento legal responsável pela regulamentação da arbitragem. No seu artigo 1º, a lei dispõe sobre quais interesses são passíveis de serem arbitrados. Diz o texto legal, in verbis “são arbitráveis os conflitos sobre interesses patrimoniais e direitos disponíveis”. Observe-se que dois são os elementos sustentadores do método em comento: os direitos patrimoniais disponíveis e a consensualidade, resultado da livre manifestação das partes 314 . Direitos patrimoniais disponíveis são aqueles que têm valor econômico e patrimonial e podem ser livremente alienados (vendidos, cedidos, doados) e aos quais o seu proprietário pode renunciar, transacionar ou transigir (fazer acordos ou negociar), desde que tenha capacidade civil para isto tanto. Por exemplo, um particular, maior e capaz, proprietário de um terreno, pode dispor dele como bem entender: poderá vendê-lo, doá-lo ou mesmo abandoná-lo, permitindo que seja ocupado por terceiros. Portanto, estão excluídos da apreciação da arbitragem aqueles direitos que versem sobre matérias de ordem pública, extra commercium como questões de Direito de Família 315 . O motivo pelo qual a arbitragem avança em passos acelerados na contemporaneidade se deve à celeridade de seus procedimentos e à sua confidencialidade, resguardando segredos comerciais e industriais, fatores raros com as cortes judiciárias estatais. O fato de que os “árbitros internacionais possuem, em geral, um treinamento superior na área industrial, financeira, comercial ou de negócios”316, imprimindo uma maior qualidade nas decisões e na possibilidade da arbitragem ser realizada num país neutro, livre de preconceitos locais e com menor custo em relação ao procedimento judicial, também contribui para a consolidação da credibilidade do instituto. Para que a arbitragem seja adotada, é necessário que, no corpo dos contratos, as partes façam a previsão de que, caso haja algum litígio decorrente da sua execução, esse será necessariamente resolvido pelo juízo arbitral. É a denominada cláusula compromissória, a qual tem força obrigatória entre os contratantes, de modo que caso surja algum conflito, deverá ser integralmente observada. O juízo arbitral pode ser exercido por qualquer pessoa civilmente capaz e que possua a confiança das partes, não sendo a profissão de árbitro o um 314 SANTOS, Ricardo Soares Stersi dos. Noções gerais da arbitragem. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p.39. 315 Muito embora, de acordo com a legislação brasileira, o Direito de Família e outros de ordem pública estejam fora do rol dos direitos arbitráveis, em algumas legislações, é possível tal hipótese. 316 GARCEZ, José Maria. Arbitragem internacional. In: _________ (org.). A arbitragem na era da globalização. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p.166. 128 requisito essencial para que o indivíduo seja nomeado o julgador da lide. O importante é que ele esteja em condições de entender e decidir a questão, embora sejam necessários conhecimentos a respeito do processo arbitral para que a sentença seja eficaz e obedeça aos requisitos legais. É saliente a faculdade das partes preverem na cláusula compromissória o nome do árbitro ou de entidades especializadas em arbitragem, assim como o direito de fundo aplicável ao julgamento da divergência. Na prática comercial, prefere-se a eleição de Câmaras ou Tribunais Arbitrais, pois possuem regimentos internos bem elaborados que servirão para regular o processo de maneira expedita, além de serem dotadas de um aparelhamento capaz de assessorar as partes e prestar todas as informações necessárias. Dada a estipulação da arbitragem pelas partes contratantes, surgindo algum litígio, a parte interessada deve se dirigir ao órgão especializado nomeado na cláusula, que indicará as providências que se fizerem necessárias. Daí em diante, serão obedecidas aws regras fixadas pelos contratantes, pelos órgãos arbitrais ou pelos árbitros. Entretanto, há limites que devem ser respeitados. São aqueles entendidos como fundamentais para a existência de um verdadeiro processo legal: o contraditório, a igualdade das partes, a imparcialidade e o livre convencimento do julgador. Esses princípios, se não observados, podem dar causa à nulidade da sentença arbitral. Por fim, o árbitro proferirá sentença, que tem a mesma eficácia de uma sentença judicial, sendo passível de processo de execução, nos termos do artigo 584, VI do CPC. Quanto à tipologia, a arbitragem pode ser de dois tipos: ad hoc e institucional. Na primeira espécie, as partes designam os árbitros e escolhem as regras a serem aplicadas no juízo arbitral. Já a arbitragem institucional consiste na condução da arbitragem por uma instituição permanente, dotada de regulamento e de uma organização própria. 5.3.2 Arbitragem Nacional versus Arbitragem Internacional Para uma boa compreensão da arbitragem internacional e de sua natureza, é relevante que seja feita a distinção entre ela e a arbitragem nacional. Como já explanado, no plano interno é um instituto de caráter privado e com grande incidência na área empresarial. Já no setor internacional, é certo que está se desenvolvendo na seara privada, mas foi no campo público que teve grande destaque, devido ao fato de que, internamente, a arbitragem ser posterior à jurisdição estatal, enquanto na seara internacional não se verifica uma jurisdição oficial, capaz de resolver os conflitos de ordem supranacional. 129 Pontue-se, também, que a arbitragem internacional tem característica predominantemente de Direito Comercial e nela são encontrados elementos pertencentes a mais de um sistema jurídico nacional. Os envolvidos no litígio geralmente possuem domicílios em países diferentes e o local do cumprimento da obrigação, em geral, ocorre em país estranho ao domicílio de uma das partes. Por outro lado, no âmbito nacional, a arbitragem é encarada como um instituto de Direito Processual e os elementos que a compõem estão conectados a um mesmo sistema legal, tendo as partes residência no mesmo Estado e devendo adimplir a obrigação, em regra, nos limites do território nacional. 5.3.3 Fontes do Direito Arbitral A necessidade de se assegurar o reconhecimento das sentenças arbitrais estrangeiras na esfera das legislações vernáculas foi o principal elemento motivador de se buscar a uniformização das regras processuais e substantivas. Nesse ínterim, foram celebrados em 1923 e 1927, o Protocolo de Genebra, relativo às Cláusulas de Arbitragem, e a Convenção de Genebra, respectivamente. Outro documento importante foi o resultante da Convenção de Nova York, de 1958, o qual tratou do Reconhecimento e da Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras. Tornou-se o mais importante instrumento jurídico internacional em vigor no campo da arbitragem, devido à grande adesão dos países aos seus preceitos. Suas disposições foram complementadas pela Convenção Europeia sobre arbitragem comercial internacional, firmada em Genebra (1961). Há, ainda, outros tratados como a Convenção de Washington, de 1965; a Convenção de Moscou, de 1972; a Convenção Interamericana (do Panamá) sobre Arbitragem Comercial Internacional, de 1975, e a Convenção Interamericana sobre a eficácia extraterritorial das sentenças e dos laudos arbitral estrangeiros, firmada em Montevidéu (1979), entre os pelos membros da Organização dos Estados Americanos (OEA). Tão logo assinados os tratados mencionados, os Estados os foram ratificando, tornando-os parte de seus ordenamentos jurídicos e, por conseguinte, integrando-os gradualmente às legislações nacionais como fonte do direito arbitral. 5.3.4 A Corte Permanente de Arbitragem e a Corte Internacional de Arbitragem Diante do já saliente desenvolvimento comercial das Nações e da necessidade de se designar uma entidade hábil a dirimir os conflitos entre elas, sujeitos de direito privado e 130 organizações intergovernamentais, foi criada, em 1899, a Corte Permanente de Arbitragem (CPA) 317 , sediada em Haia, na Holanda. Quatro dos métodos recomendados pela Carta da ONU foram adotados de forma expressa pela CPA: investigação, mediação, conciliação e arbitragem. Mesmo sendo instituída originalmente para resolver controvérsias entre os Estados, a partir de 1935, a CPA ampliou seus serviços para incluir também casos em que se encontrem envolvidos tanto os Países como outras partes não-estatais. Contudo, faltava à estrutura jurisdicional internacional um órgão capaz delinear um corpo de regras [comuns a todo o comércio exterior], aceitas universalmente, ou seja, a Lex Mercatoria. Nesse sentido, em 1919, instituiu-se a Câmara de Comércio Internacional (CCI), Organização Não-Governamental, não pertencente a ONU, embora preste a ela muitos serviços. Quatro anos mais tarde, criou-se a Corte Internacional de Arbitragem (CIA), órgão vinculado à CCI e prestadora de serviços a empresas dos 63 países inscritos na Câmara. A CIA destaca-se não só pelas suas decisões arbitrais, mas por todo um trabalho de harmonização das regras do direito do comércio internacional em prol do desenvolvimento das relações entre comerciantes privados, tendo iniciado a regulamentação dos Métodos Extrajudiciais de Solução de Conflitos em 1975, com a primeira edição das regras para condução e administração de procedimentos ou processos envolvendo a Conciliação e a Arbitragem. 5.3.5 Tendências e obstáculos à implementação da arbitragem Muito embora a arbitragem tenha demonstrado ser instrumento eficiente na composição das controvérsias, ainda é possível notar entraves à efetivação desse instituto, especialmente nos países em desenvolvimento. Como os obstáculos são mais ou menos uniformes, à guisa de exemplo, tomemos o caso do Brasil como modelo. Por aqui, ainda não há sedimentada uma cultura de utilização dos Mecanismos Extrajudiciais de Solução de Conflitos 318 . Isso se deve a vários fatores, dentre eles, a influência estatal sobre o povo brasileiro, um dos motivos de repulsa à justiça privada. As raízes da referida ingerência residem, entre outras razões, na grande dependência que os cidadãos possuem do governo; o brasileiro ambiciona ser funcionário público; todo o necessário a ser feito é atribuído ao 317 As regras de procedimento da CPA foram elaboradas com base nas regras estabelecidas pela Comissão das Nações Unidas para o Direito Mercantil Internacional (CNUDMI). 318 Não obstante ainda não haver uma tradição arbitral, a Constituição Republicana de 1988 dispõe no art. 4º, que o Brasil se rege, nas relações internacionais, por vários princípios, destacando no inciso VI, a solução pacífica de conflitos. 131 governo, que não resolve os problemas do país. Para a esmagadora maioria dos brasileiros, não se concebe um Estado que não ministre Justiça. Discussões também existem quanto à constitucionalidade de alguns dispositivos da LA 319 . Vozes, arraigadas pelo dogmatismo jurídico, pelejam contra o sucesso do instituto, pois a LA, ao dispensar a homologação judicial (art. 31), consagrar a cláusula compromissória e a sua executoriedade, caso uma das partes se recuse a firmar o compromisso a que se obrigou (art. 7º, caput), supostamente feriria o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, consubstanciado no artigo 5º, XXXV da Carta Magna. Contudo, não foram atentos os detratores da LA. A Lei 9.307/96 não é de utilização obrigatória, de modo que “[...] se uma das partes for coagida pela outra a celebrar uma convenção de arbitragem, estará sujeita à anulação como qualquer ato jurídico do gênero (convencional) 320”. Mesmo havendo resistências minoritárias, o processo de globalização dos conflitos e utilização de meios alternativos, na sua resolução, é irreversível. Nota-se uma tendência à especialização contínua dos árbitros e à proliferação de Tribunais e Câmaras arbitrais. O uso, o reconhecimento e a credibilidade desse mecanismo extrajudicial crescem diariamente e, em posição de destaque, estão Itália, Bélgica, Portugal, França, Holanda, Grã-Bretanha, Alemanha, Japão e EUA. No processo de interdependência econômica, militar contra a arbitragem é enfrentar o perigo de perda de investimentos externos e retrocesso no processo de desenvolvimento socioeconômico. Muito embora se tenha dado uma conotação mais comercial a arbitragem, ela pode ser utilizada em qualquer situação de conflito, desde que o objeto da discussão seja um direito patrimonial disponível. Não tem ele ela o objetivo de suceder ou aniquilar a jurisdição estatal, mas sim atuar como um instrumento poderoso de acesso à justiça, desafogando as cortes judiciais, com julgadores preparados e procedimentos seguros e eficazes. Renegá-la é demonstrar ao mundo a indisposição em promover o aperfeiçoamento da justiça. 5.4 OUTROS MÉTODOS PACÍFICOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS Para além das disposições constitucionais preambulares e referentes à arbitragem, pode-se destacar que o Estatuto Maior prevê, no art. 98, incisos I e II, a criação de juizados 319 O Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido da constitucionalidade da LA, decidindo a Homologação de Sentença Estrangeira - SE 5206 – Espanha. Rel. Min. Sepúlveda Pertence, m.v., j. 12.12.2001, DJU 19.12.2001). 320 ALVIM, José Eduardo Carreira. Tratado Geral da Arbitragem. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p.45. 132 especiais e juizados de paz – dotados, dentre outras funções, da atividade conciliatória321. Nos meandros da legislação infraconstitucional – conforme já apontado acerca da arbitragem –, a existência de mecanismos pacificadores se espraiam por todo o ordenamento jurídico nacional. É, na verdade, nada mais do que a técnica de construção de um subsistema normativo com fundamento constitucional. No cenário das variadas tipologias alternativas de solução de controvérsias, duas têm se destacado, em razão do conhecimento e da difusão assumidos no papel de métodos cooperativos: a conciliação e a mediação. A seguir, far-se-ão algumas considerações sobre essas tipologias, com o intuito de demonstrar que a constitucionalização do direito afeta à solução pacífica dos conflitos está concretamente positivada na legislação infraconstitucional. 5.4.1 A conciliação e a mediação Presente desde a Constituição Imperial até os dias atuais, a conciliação apresentou-se nos mais diversos ramos do Direito. Trata-se de um processo consensual e autocompositivo em que um “terceiro imparcial, após ouvir as partes, orienta-as, auxilia, com perguntas, propostas e sugestões a encontrar soluções (a partir da lide) que possam atender aos seus interesses e as materializa em um acordo que conduz à extinção do processo judicial”322. Importante ressaltar que não obstante a participação de um conciliador (magistrado ou não), o heteros incumbido de operacionalizar a consensualidade, não se enquadra o presente modelo como heterocomposição, em razão das partes autonomamente celebrarem o termo. Ainda que homologado pela autoridade judicial, o elemento diferenciador do enquadramento da espécie de resolução do litígio é a participação ativa do terceiro na decisão final da contenda, fato não presente na conciliação, posto o caráter instrumental e de estímulo do agente conciliador. A conciliação pode ser extra, intra ou pós-processual. Na primeira modalidade, o objetivo é evitar a instauração de uma lide, enquanto na segunda forma ela surge antes da prolação da sentença de mérito. Por fim, a vertente pós-processual ocorre durante a execução 321 Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau; II - justiça de paz, remunerada, composta de cidadãos eleitos pelo voto direto, universal e secreto, com mandato de quatro anos e competência para, na forma da lei, celebrar casamentos, verificar, de ofício ou em face de impugnação apresentada, o processo de habilitação e exercer atribuições conciliatórias, sem caráter jurisdicional, além de outras previstas na legislação. 322 BACELLAR, Roberto Portugal. Mediação e arbitragem. São Paulo: Saraiva, 2012, p.66. 133 – ou, como a melhor doutrina leciona, cumprimento de sentença323. Não se deve confundir a conciliação com a transação, que, nos termos do art. 840 do Código Civil Brasileiro, objetiva prevenir ou terminar o litígio mediante concessões mútuas e possui formalização específica disciplinada pelo supradito Código, um modo de extinção das obrigações 324 . Em sede processual civil, o Código de Processo Civil determina que o magistrado deve tentar, a qualquer tempo, conciliar as partes (art. 125, IV), prevê um momento próprio, no formato de audiência, para o estímulo à conciliação (art. 277, caput), autoriza a utilização do instituto em questões relativas ao direito de família, equipara o valor do termo de conciliação (quando assinado pelas partes e homologado pelo juiz) ao de uma sentença. De igual forma, deixa a critério do magistrado a designação de audiência de conciliação, instrução e julgamento após a oitiva do exequente nos embargos de devedor (art.740) e induz a extinção do processo com resolução de mérito quando as partes transigirem (art. 269, III). A Lei Nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, ao dispor sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminai, prevê a existência da conciliação como fundamento da criação desses órgãos nas diversas fases processuais e homenageia o instituto como pedra de toque da celeridade processual. Na mesma toada a Lei 12.153, de 22 de dezembro de 2009, cujo texto dispõe sobre os Juizados Especiais da Fazenda Pública no âmbito dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios. Na seara trabalhista, nota-se a importância da conciliação. A própria nomenclatura anteriormente dispensada aos órgãos de primeiro grau (Juntas de Conciliação e Julgamento) anuncia o tom conciliador dos órgãos laborais e reproduzido na criação das Comissões de Conciliação Prévia (art. 625-A ao 625-H da Consolidação das Leis Trabalhistas), na possibilidade da autocomposição conciliatória a qualquer tempo nos dissídios individuais trabalhistas (art. 764) e na obrigatoriedade de proposição da conciliação na abertura da audiência inaugural (art. 846, CLT) e ao final da instrução (art. 849). Nos dissídios coletivos, também se verifica a influência da conciliação na construção da sentença normativa, conforme os arts. 858, b, 860, 862, 866 do Estatuto Laboral. A postura do conciliador e a celebração do termo respectivo pode, ainda, fazer com que uma das partes reconheça a procedência do pedido, renuncie à pretensão ou desista da ação. Portanto, a doutrina especializada tem defendido uma atuação menos intuitiva e mais 323 CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho. Niterói: Impetus, 2012, p.1316. 324 A Lei Instrumental Civil utiliza, por vezes, indistinta e atecnicamente o termo transação e conciliação para a mesma situação. Contudo, o entendimento aqui adotado é que a diferença conceitual foi abraçada pelo Código de Processo Civil ao prever, no art. 475-N, III, que a sentença homologatória de conciliação ou de transação, ainda que inclua matéria não posta em juízo, é título executivo judicial. 134 técnica na condução dos procedimentos conciliatórios. A recomendação de que o conciliador descreva as etapas do processo judicial com os riscos, as consequências do litígio agravadas pela demora e pelas opções recursais, o resultado (necessariamente) desfavorável a uma das partes, a dificuldade de produção probatório e os custos da manutenção ou da perda da ação 325 . As vantagens da autocomposição devem ser explanadas, ad exemplum, a criação da decisão final pela vontade única e exclusiva das partes, a solução rápida, a manutenção da relação social afligida pelo litígio e a desnecessidade de se produzir provas. Tida como um instrumento capaz de contribuir efetivamente para a resolução de litígios (nem sempre no aspecto qualitativo, nos termos já defendidos em seção própria), a conciliação apresenta-se no Projeto de Lei Nº 8.046/2010, que institui o novo Código de Processo Civil. Objeto de controvérsias e discussões na comunidade jurídica e já aprovado no Senado Federal, a redação dada ao aludido projeto sistematiza a conciliação e a mediação judicial, significando um passo relevante na consolidação de uma jurisdição mais cooperativa. Os arts. 144 ao 153 arrolam os conciliadores e os mediadores como auxiliares da justiça e positivam na Lei Adjetiva os programas em curso desenvolvidos pelo Conselho Nacional de Justiça de modo a autorizar a criação de setores e programas destinados à autocomposição 326 . Dispõe, no mesmo espírito inovador, o art. 323, §2º do PL, que poderá haver mais de uma sessão destinada à mediação e à conciliação, não excedentes a sessenta dias da primeira, desde que necessária à composição das partes. Trata-se da valorização concreta da resolução do litígio dedicando um maior tempo aos modelos não adversariais e coincide com o entendimento defendido até o momento de alteração do paradigma relatorial e da celeridade a todo custo pelo índice qualitativo da resolução das disputas. Ao lado da conciliação, a mediação tem sido notável como meio pacífico de resolução de conflitos. Define-se como um processo negocial, no qual os envolvidos numa contenda, juntamente “com a assistência de uma pessoa ou pessoas neutras isolam sistematicamente os problemas em disputa com o objeto de encontrar opções, considerar 325 BACELLAR, p.69. 326 O art. 7º da Resolução nº 125, de 29 de novembro de 2010, prevê a criação, no prazo de 30 dias, dos Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos compostos por magistrados da ativa ou aposentados e servidores, preferencialmente atuantes na área. Nos Núcleos de Conciliação, as partes envolvidas em conflito confiam a um terceiro estranho ao processo a função de auxiliá-las a chegar a um acordo. Essa iniciativa evita futura sentença judicial e permite a solução definitiva do litígio, diminuindo a grande demanda dos processos em trâmite. Para atender aos Juízos, aos Juizados ou às Varas com competência nas áreas cível, fazendária, previdenciária, de família ou dos Juizados Especiais Cíveis e Fazendários, os Tribunais deverão criar os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (“Centros”), unidades do Poder Judiciário, preferencialmente, responsáveis pela realização das sessões e das audiências de conciliação e mediação que estejam a cargo de conciliadores e de mediadores, bem como pelo atendimento e pela orientação ao cidadão (art. 8º). 135 alternativas e chegar a um acordo mútuo que se ajuste às suas necessidades”327. Não está vinculada às regras do processo ou aos seus princípios específicos (no que toca à litigância), tampouco ao direito material – lastro da fundamentação jurídica da discussão –, posto que a função do mediador é de aproximar as partes e permitir que elas descubram a lide sociológica e resolvem resolvam por si 328 . Conquanto seja um método autocompositivo e de natureza negocial, a mediação não se confunde com a conciliação. As distinções basilares residem na extrajudicialidade do procedimento (portanto, sem as regras mais limitadoras da conciliação que ocorre no âmbito do Poder Judiciário) e no princípio regente da mediação denominado de confidencialidade (em contraposição à publicidade da conciliação, posta sua natureza de ato processual). A razão de ser da confidencialidade cria um clima de confiança entre as partes e confere sigilo às explanações e às informações trazidas durante o processo de Mediação, com o intuito de vedar a divulgação de acordos e controvérsias 329 . A aplicabilidade da mediação é recomendada mais às relações de cunho multiplexo, cuja duração não é circunstancial (a essas aplica-se a conciliação), mas duradoura e há o interesse na manutenção do vínculo 330 . No que diz respeito à finalidade e ao foco, a conciliação objetiva a celebração de um acordo e, por consequência, a extinção de um processo, enquanto na a mediação tem por objeto “desvendar os verdadeiros interesses, desejos, necessidades (lide sociológica) que se escondem por trás das posições (lide processual), o que, quando ocorre, faz com que naturalmente surja um acordo”331. Por fim, quanto à atuação do terceiro, o conciliador é mais proativo, opina sobre o mérito da avença, orienta, sugere e se dedica mais à substancialidade e aos pontos controvertidos da matéria do que nos interesses contrapostos em si. O papel do mediador é tem uma importância mais comunicativa e é focado nas relações parcialmente afetadas com o intuito de identificar os pontos de convergência capazes de (re)aproximar as partes 332 . 327 FOLBERG, Jay, TAYLOR, Alison. Mediación. Resolución de conflictos sin litígio. Mexico: Limusa, 1996, p.135-145. 328 GORCZEVSKI, Clovis. Jurisdição parestatal: solução de conflitos com respeito à cidadania e aos direitos humanos na sociedade multicultural. Porto Alegre: Imprensa livre, 1997, p.84-85. 329 O Código de Ética de Conciliadores e Mediadores Judiciais, publicado como anexo da Resolução n. 125/09, assegura, no art. 1º, §1º, atecnicamente (em razão de ser uma peculiaridade da mediação), a confidencialidade como princípio geral da atuação dos conciliadores e dos mediadores judicias e a define como o dever de manter sigilo sobre todas as informações obtidas na sessão, salvo autorização expressa das partes, violação à ordem pública ou às leis vigentes, não podendo ser testemunha do caso, nem atuar como advogado dos envolvidos, em qualquer hipótese. 330 BACELLAR, p.92. 331 Idem, p.93. 332 Ibidem. 136 Poucos são os dispositivos que arrolam a mediação como mecanismo no direito brasileiro, embora a prática seja difundida sobretudo em centros de mediação e junto às pessoas físicas ou jurídicas que desejam se resguardar dos efeitos negativos da publicidade de uma ação judicial. Há previsão É no art. 616,§1º, da CLT, Decreto nº 1.572/95 (estabelece regras para a mediação na negociação coletiva) e no art.4º, I, da Lei nº 10.101/00 (dispõe sobre a participação nos lucros). 5.5 A RESPONSABILIDADE DO ESTADO COMO PROMOTOR DE POLÍTICAS PÚBLICAS PACIFICADORAS A responsabilidade estatal decorre da necessidade de estruturação do funcionamento social tomada como pressuposto lógico a inserção da atividade do ente abstrato regulador no desenvolvimento da humanidade. A ideia de responsabilidade tem origens na Roma antiga. O termo spondeo é o mais aproximado da locução responsabilidade 333 e era designada para aquelas pessoas devedoras, que respondiam pelos danos decorrentes dos contratos verbais, instituindo uma das primeiras ideias de restauração de equilíbrio econômico, jurídico e de reparação do dano. Contudo, é necessário destacar que o termo latino refere-se ao gênero responsabilidade, a qual é distinta das outras tipologias, quais sejam responsabilidade moral e responsabilidade jurídica. A primeira categoria está ligada às regras de natureza moral ou religiosa e atua no campo da consciência individual. Foi largamente difundida durante os primeiros séculos da Era Cristã e na Idade Média com o Direito Canônico. É uma espécie mais generalista de responsabilidade, pois prescinde do conceito de dano e bebe das definições de pecado, certo e errado, céu e inferno. A responsabilidade jurídica, por seu turno, só é caracterizada quando há violação de norma jurídica, devidamente elaborada de acordo com os trâmites constitucionais, e haja dano. Logo, vê-se que a distinção reside em critérios objetivos e previamente estabelecidos. No campo da responsabilidade jurídica estão abrigadas as diversas naturezas subespécies, inclusive a civil. A Constituição da República afirma repetitivamente a responsabilidade do Estado na promoção das políticas públicas e dos critérios para seu acesso, quase sempre com o artigo caput dos títulos referentes à saúde, à educação, à seguridade social, dentre outros. Sabe-se, 333 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. São Paulo, Saraiva, 2002, 4ª ed., p.1. 137 em contraposição, que a atuação nos direitos prestacionais demanda recursos financeiros, os quais estão limitados pelas leis orçamentárias e, segundo alguns doutrinadores, pelas cláusulas da reserva do possível 334 . A afirmação de programas direcionados ao Estado reporta aos postulados propostos por J.J. Canotilho na sua Teoria da Constituição Dirigente. Pela teoria dirigente, busca-se romper com a tradicional concepção das normas programáticas, desde o momento em que a Constituição não se delimita apenas a assegurar direitos existentes ou prever ideais de sociedade, mas age como instrumento de transformação de realidades orientado para o futuro. O raciocínio dedutível do dirigismo abriga-se na já insistida força jurídica da Constituição, mas vai além quando tenta vincular o legislador, positiva ou negativamente, fornecendo-lhe fundamentos e linhas de atuação na política 335 . Veja-se que a Constituição Federal de 1988, de cristalino caráter dirigente, é dotada de um conjunto de dispositivos programáticos que levam (ou deveriam levar) os governantes e parlamentares a trilhas bem específicas no caminho de concretização constitucional. Embora o próprio Canotilho tenha admitido uma revisão na sua Teoria da Constituição Dirigente, ao adaptá-la às novas circunstâncias factuais portuguesas e propugnar por uma teoria própria de dirigismo em cada Estado, não é recomendável abandonar tão importante e influente arquétipo científico, mormente em realidades de não realização plena dos programas pontuados pela Lex Fundamentalisl 336 . Não obstante o intrínseco relacionamento entre o dirigismo constitucional e as normas programáticas, aquele é a pedra de toque entre a constitucionalização do direito das relações privadas e a eficácia das normas constitucionais. É possível que a positivação constitucional das relações privadas seja encampada como norma programática no corpo da Constituição ao traduzir objetivo, programa ou valor a ser estimulados pelo Estado. Convém aqui ressaltar que a vinculação do legislador - seja em relação às normas pontualmente programáticas (como defende Lerche) ou à toda a Constituição [Dirigente]- não se sucede apenas no plano do um dia será. A ideia de esperança de aplainamento das desigualdades por intermédio da Constituição pode e deve ser viabilizada desde já, para que no futuro haja resultados consistentes de alteração social. 334 Segundo Paulo Gilberto Cogo Leivas, a cláusula da reserva do possível foi “referida no julgamento do caso Numerus Clausus I pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha [...]” no qual o referido Tribunal “distingue dois direitos: um direito a participar nas instituições educativas existentes e um direito à criação de novas vagas”. LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. Teoria dos Direito Fundamentais Sociais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p.97-98. 335 CANOTILHO apud BERCOVICI, Gilberto. Idem, p.169. 336 MAQUES NETO et al. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (org.). Canotilho e a Constituição Dirigente. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. 2.ed., p.18. 138 De toda forma, no que ainda pertine à eficácia das normas em estudo, seja em qualquer categorização tomada como paradigmática, sempre se remeterá ao dualismo entre a aplicabilidade imediata ou mediata e a necessidade e intervenção do legislador ordinário para a concretização daquelas. O cerne da questão não paira sobre uma classificação ou outra, até porque, nesse aspecto, importa muito mais a materialidade da eficácia do que as belas e eruditas terminologias dispensadas pela doutrina aos institutos. Desprezar o conteúdo e se debruçar sobre as formas, em detrimento da essência, implicaria cair numa angústia do mesmo nível da esposada na canção Palavras ao Vento, composta por Marisa Monte e Moraes Moreira e interpretada pela saudosa Cássia Eller, nos versos “Palavras apenas, palavras pequenas, palavras ao vento”. É dizer: mudam-se as locuções, mas o problema (ou solução) da aplicabilidade permanece. Deve-se alertar para o fato do momento histórico da construção classificatória do professor José Afonso, hoje tida como clássica e lastro para uma série de decisões judiciais referentes aos direitos fundamentais. A categorização foi elaborada num momento histórico de ditadura militar (1967), no qual os valores constitucionais eram recorrentemente violentados. A representatividade constitucional delimitava-se à sua natureza política, de forma que a teorização feita pelo professor foi uma corajosa tentativa de reação ao sistema jurídico-político vigente baseada na atribuição de eficácia a todos os dispositivos constitucionais, a depender da espécie de norma tratada. O momento democrático atual, pautado pela difundida liberdade e força normativa das liberdades públicas exige uma nova hermenêutica do que se compreende por aplicabilidade das normas constitucionais para se fazer, inclusive, uma interpretação aberta do Estatuto Maior. Ao se tratar do tema constitucionalização do direito na concepção até aqui encarada é imprescindível que haja a compatibilização com a eficácia das normas positivadoras das fontes materiais constitucionais. A elevação ao nível da Constituição tem como premissa o desejo social, representado pela Vontade Magna, de concretização dos direitos ora dogmatizados. Nesse sentido, propõe-se um diálogo entre as normas constitucionais, em especial aquelas decorrentes de clamores populares e de importância estratégica para as relações sociais, e teorizações acerca de suas aplicabilidades. O defendido diálogo aqui proposto calca-se na necessidade de valorização das aspirações populares. Afinal, é da nação, mediante o sistema imputativo-representativo, a referência legitimadora da ordem jurídica, bem como é para o arrimo, a ascensão e o desenvolvimento dos homens que também se supõe uma Constituição. 139 Portanto, no que toca à solução pacífica de conflitos não se visualiza outra saída senão a observância do legislador e dos gestores públicos quanto à respectiva vinculação aos valores constitucionais referentes à solução pacífica de conflitos. A ausência de uma política pública judiciária que ultrapasse meros paliativos procedimentais ou cujo fim não seja o atendimento estatístico do número de processos solucionados é incompatível com as disposições constitucionais. As previsões constitucionais – desde o preâmbulo até o instituto da arbitragem – devem ser lidas e interpretadas de forma sistemática. A melhor hermenêutica sugere que a solução, por intermédio da pacificação, foi desejada pelo legislador constituinte, motivo pelo qual estariam todos os agentes públicos, notadamente aqueles responsáveis pela condução das políticas públicas, designados a investir na concretização dos valores constitucionais atinentes à matéria. A materialidade e a densidade da representação dos conceitos constitucionais para a sociedade brasileira, in casu, a orientação legislativa e judiciária para a gestão dos conflitos pode ser alcançada com investimentos maciços – não somente em sede de procedimentos judiciais e reformas processualísticas – numa ampla campanha de conscientização social acerca das vantagens da cultura da paz e seus espectros dialógicos. O alcance da solução pacífica dos conflitos como base cultural de um povo só pode ser atingido mediante um compromisso público das autoridades políticas, das lideranças sociais e do engendramento de um Plano Nacional de Pacificação que abranja os mais diversos setores sociais. A adoção do princípio da pacificação como bússola de ação individual e coletiva reclama o esclarecimento da sua operacionalização, a estruturação de órgãos públicos voltados especificamente para o tratamento da matéria, tais como centros e núcleos de conciliação, mediação, o estímulo à utilização da arbitragem como mecanismo alternativo à jurisdição, ressaltando o seu caráter célere e extrajudicial, bem como a formação de servidores públicos e agentes privados para os respectivos centros. O Ministério da Justiça, por intermédio da Secretaria de Reforma do Judiciário, em atenção a esta essa necessidade, ainda que em escala de baixo impacto, tem criado ações voltadas para a consolidação de uma Justiça Comunitária 337 . Tal política pública visa a implantação ou o fortalecimento de núcleos por meio do financiamento de atividades de capacitação de agentes de mediação comunitária, aquisição de equipamentos, contratação de profissionais e adequações de espaços físicos. Os núcleos funcionam com a capacitação de 337 A Justiça Comunitária integra uma das ações do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania. 140 cidadãos em técnicas de mediação de conflitos, inserindo a cultura do diálogo 338 . Assim, as sessões são promovidas pelos agentes no sentido de mediar conflitos familiares e de outra natureza, orientados por uma equipe multidisciplinar composta por 01 psicólogo, 01 assistente social e 01 advogado 339340 . Para além das providenciais iniciais, uma atuação estatal no sentido de promover a desjudicialização de diversos conflitos, em contraponto às práticas judiciaristas já comprovadas, que se debruce sobre matérias de relevo nacional e seja um órgão capaz de se dedicar qualitativamente aos seus julgados de cunho coletivo. Porém, em nome da coerência que valida toda ação e resultado, é necessária uma ampla revisão das posturas estatais quanto à sua defesa e à sua atuação em juízo. Se a Carta de 1988 propôs um modelo de resolução de contendas, o primeiro destinatário é, inarredavelmente, o ente abstrato que por ela é suportado e detalhado em seu texto. Exigir ou concluir pela promoção de uma política pública a ser desenvolvida por quem age contrariamente aos seus pressupostos básicos é cair num abismo de ineficiência ou, utopia ideológica, para ser, no mínimo, otimista. 338 Outra iniciativa notável foi a criação da Escola Nacional de Conciliação e Mediação – primeira do país destinada à capacitação de profissionais do Direito para atuar nesse campo de soluções de litígios. A instituição foi lançada pelo Ministério da Justiça, em parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM). 339 Paralelamente, é oferecido atendimento psicológico, assistencial e jurídico a membros da comunidade local envolvidos em conflitos. 340 Fonte: Sítio eletrônico do Ministério da Justiça. Disponível emhttp://portal.mj.gov.br/. Acesso em 28 de outubro de 2012. 141 6 CONCLUSÃO Após realizadas as explanações devidas no curso deste escrito, necessário serem feitas algumas ponderações conclusivas sobre a constitucionalização da solução pacífica de conflitos. O almejado com a exposição das variações teóricas foi permitir um conhecimento, ainda que breve e não exaustivo, sobre a literatura existente. A aquisição mental dos conceitos pode ser decisiva no processo de mudança de rumo de um profissional comprometido com a cultura da paz, mas que o faça de forma meramente intuitiva, para uma formação mais tecnicista. Deve-se evitar uma compreensão incompleta da conduta conflitiva, pois isso representa um comprometimento da habilidade e da capacidade no manusear os dissensos de forma positiva, visto que limita o auxílio que estaria disponível aos adversários que buscam soluções efetivas e, particularmente, impede a celebração de acordos que limitem o aumento das contendas antes que elas fujam ao controle. No mesmo sentido, o Direito não deve ignorar o auxílio das ciências auxiliares no processo de compreensão das demandas que lhes são submetidas, em especial da Sociologia do Direito, na ramificação da Sociologia do Conflito. Uma postura indiferente aos ricos ensinamentos de outras esferas de conhecimento reduziria a função jurisdicional a um tecnicismo de ordem meramente processual e à margem de uma das funções da jurisdição: a pacificação dos conflitos. Vê-se o conflito como negação da cooperação, embora sua compreensão epistemológica seja polissêmica. Deve o julgador, mediador ou conciliador considerar as teorias tanto de ordem funcionalista como as do conflito social, porém, atentando para a necessidade de se ceifar quaisquer tentativas de encarar o dissenso como uma anomalia social. Necessita-se, também, ter em mente as correntes mais modernas e suas respectivas implicações comportamentais nos ações conflitivas. Demonstrou-se, de igual forma, a aplicabilidade da Teoria dos Jogos aos conflitos e a respectiva descrição analógica da Teoria dos Jogos como suporte teórico aos modelos de consensualidade, dada a lógica que a inspira – ganhador/ganhador. O conhecimento de todas as vertentes é bem-vindo à construção de uma base teórica sobre os conflitos. Isso se dá pela variedade de abordagens provenientes das mais distintas teorias, de modo que somente uma delas não é suficiente para explicar todos os casos concretos submetidos ao Poder Judiciário. Em certos limites, cada teoria consegue delinear determinados tipos de litígio e podem ser deveras importantes na sua compreensão e, por conseguinte, na exata forma de solução dos conflitos e a consecução de uma cultura de paz. 142 No que pertence à segunda seção extraem-se algumas deduções relevantes. A definição da garantia constitucional fundamental de acesso à justiça deve ser interpretada da forma mais completa e ampla possível – conforme reafirmado pelos precedentes da Corte Constitucional Brasileira – sob aspectos diversos, isto é, tanto no campo procedimental quanto na significação semântica desse conceito jurídico. Não se deve confundir o conceito de Justiça necessariamente com o Judiciário, dada a abstração e fluidez do que se entende por ela. Assim, a resolução de problemáticas pelas próprias partes envolvidas nas disputas, sem a intervenção necessária do Poder Judiciário, também se compreende como uma possibilidade interpretativa da definição de Acesso. Conhecendo-se a natureza cultural da compreensão filosófica e conceitual da Justiça e da devida correlação desta com o fim primordial do Direito, deve-se envidar esforços para que se estimule a introdução do sentimento de justiça nas relações sociais, mormente na capacidade de dialogar e pôr termo às controvérsias. Tomando por consideração que o foco do presente estudo habita na solução pacífica – judicial ou extrajudicial –, fundamenta-se e justifica-se o tangenciamento entre Acesso à Justiça e mecanismos alternativos à jurisdição. Na mesma esteira, as modernas tipologias de Estado no que reverbera à produção e à distribuição do Direito reclamam uma democratização plural e gestora do acesso sob a visão da participação de atores diversos para além daqueles que integram a figura Estatal. No que diz respeito à cultura do conflito e da litigância, reafirma-se a positividade e o caráter de distorção social da segunda. Sendo assim, o fomento à prática demandista inconsequente dificulta a adoção de uma cultura de paz, dado o depósito das expectativas unicamente na sentença. Verificou-se que o Conselho Nacional de Justiça, nos últimos anos, introduziu no cenário de gestão dos processos judiciais alguns projetos e tentativas de imprimir celeridade aos litígios que assoberbam o Poder Judiciário, a exemplo das Semanas de Conciliação, porém se critica os fins a que se dedicam tais iniciativas. A cultura da litigância é um vício social a ser combatido em sua causa e não em seus efeitos. O enfoque a ser perseguido deveria ser uma política judiciária de prevenção, redução e solução pacífica de conflitos, tanto no campo judicial como fora dele. A restrição aos números e a indiferença quanto à qualidade da solução retira o foco de um problema tão crônico como outros de origem semelhantemente histórica. Transmutar o tratamento dos conflitos de uma mera resposta sentencial e objeto de campanhas sazonais de conciliação para uma massiva, capitaneada solidariamente pelo Poder Executivo e Legislativo, com incursões em escolas, instituições de ensino superior, mídia, campanhas explicativas que valorizem a autocomposição e o diálogo. 143 Pode-se afirmar que as origens da cultura de litigância são de natureza multifatorial. Implicam o estudo do desenvolvimento socioeconômico de uma determinada sociedade num momento histórico definido, os níveis de credibilidade que os Tribunais gozam no consciente coletivo e a forma como os conflitos são tratados pelo Estado a depender do modelo que se estabeleça, ou seja, Liberal, Social ou Neoliberal. Na mesma esteira, a explosão legislativa e a violação das regras pelos jurisdicionados refletem o descrédito da eficácia social das normas e autorizam o nascimento de mais litígios no seio judicial. Viu-se que a quantidade de ações em curso no Judiciário é desproporcional à população nacional e as respostas da Justiça aos anseios sociais não têm sido satisfatórias, sobretudo pela demora e pela falta de efetividade executória das decisões que profere. Posteriormente, depreendeu-se que o conflito pode ser encarado sob perspectivas variadas, quer em relação ao que se busca, se espera ou meramente se considera. Os litigantes foram vistos sob cinco ângulos e, tomando como base os relatórios disponibilizados pelo CNJ, a Administração Pública ocupa a maior parcela dos contendedores, o que a torna contraditória por excelência, dado que, sendo fonte legislativa, seria esperado que cumprisse espontaneamente os regramentos dela emanados ou promovesse mecanismos alternativos para solução de suas disputas, concretizando o espírito constitucional de pacificação dos conflitos. Abordou-se o papel do juiz e dos advogados no processo de revisão cultural da litigiosidade e se constatou que a formação do profissional do Direito não contribui para uma atuação de cunho consensual. Propôs-se uma revisão das grades curriculares dos cursos de Direito, a se calcarem no incentivo à resolução adjudicada, com o estímulo ao estudo dos métodos alternativos e pacíficos de resolução de controvérsias. Embora haja uma cultura demandista materializada pela quantidade de ações em curso nos Tribunais, conclui-se pela expansão de uma ação educacional acerca dos conflitos, promovida, essencialmente, pelo Poder Público. Em adição a isso, uma mudança de postura da mesma Administração, que insiste em resolver suas disputas pela via contenciosa e praticamente mantém estruturas inteiras destinadas as suas querelas, quando poderia ser o exemplo máximo de pacificação e buscando a solução rápida, barata e efetiva de suas demandas. Em relação ao terceiro capítulo, viu-se que a Constituição não é uma carta de intenções com certeza de frustração futura ou um regulamento do Estado. A doutrina contemporânea inadmite entendê-la somente num plano de documento político, negando-lhe normatividade. Embora haja inúmeras classificações e definições para Constituição, em nenhuma delas pode-se olvidar do caráter de jus cogens das normas constitucionais, o que 144 torna inadequado defini-la como espécie de norma dotada de fraqueza imperativa, dado que sua força se origina não do que disciplina, mas da natureza do caráter da tipologia normativa que integra. A constitucionalização do direito deve implicar algumas interpretações adstritas ao presente tema. Numa conclusão mais genérica, a elevação dos valores pacificados ao status constitucional – por intermédio das regras, vinculantes ou não, já analisadas – representa uma aspiração popular à concretização de tais orientações no Estado Brasileiro. Uma indiferença a este processo constitucionalizador representa uma omissão, por opção política, inconstitucional. Portanto, deve-se optar por uma interpretação menos programática e mais pragmática em relação às normas (ainda que preambulares) da Constituição. Isto se operacionaliza pela consecução das políticas judiciárias pacificadoras atribuídas aos órgãos competentes com o intuito de promover uma ampla campanha pública das vantagens dialógicas e dos mecanismos pacíficos de resolução de controvérsias. Num segundo aspecto, a constitucionalização implica na leitura da legislação infraconstitucional pelo Poder Judiciário ou por outros intérpretes do Direito. A compatibilização do direito ordinário com a Constituição visa a reafirmação dos postulados arrolados na medida que o Direito Comum deve ser lido sob a lente constitucional, de forma que toda e qualquer interpretação de resolução de conflitos deve primar, essencialmente, pela máxima pacificação dos conflitos. É dizer que, dentre as possibilidades distintas de ação, aquela que atenda mais efetivamente aos meandros constitucionais (pacificação) deve ser adotada. O fundamento hermenêutico para tal raciocínio hospeda-se na teoria integrativa/científico-espiritual de Rudolf Smend. O conhecimento do sentido global de Constituição é a bússola informadora da interpretação constitucional quanto aos temas que se deseja abordar. O método Smendiano prioriza a riqueza axiológica da Constituição e abraça um modelo sistemático de interpretação que favoreça a concretização dos valores constitucionais. No caso em apreço, há valores claros correspondentes ao eixo da solução dos conflitos: a Justiça como valor e fim do Direito, a pacificação e a amplitude do acesso à Justiça. A soma desses valores obtém como resultado o espírito constitucional em relação ao objeto da pesquisa e isso se dá em função da análise conjunta do preâmbulo constitucional, do art. 4º, inciso VII e dos dispositivos referentes à arbitragem insertos no corpo do Texto Maior. A abstração da mera textualidade para o debruçamento valorativo e lógico é a pedra de toque do raciocínio sob encerramento. O coerentismo é o referencial autorizador daw conclusões dotadas de uma unidade de sentido para com a solução dos conflitos, isto é, que na 145 ordem interna – assim como na internacional – deve-se atender ao valor principiológico da solução das controvérsias. A realidade do Estado Brasileiro e da eficácia das normas constitucionais tem demonstrado uma crise de credibilidade nas instituições democráticas e no catálogo de direitos outorgados aos cidadãos. Há, em certa medida, uma baixa autoestima constitucional e, a nosso ver, deve-se, em parte ,ao patente desprezo com que as raízes da democracia brasileira são tratadas. A história nacional é nítida ao expor os períodos de tirania e repressão vividos pelo povo brasileiro. Isto se reflete numa indignação introspectiva, acomodação, senso de conformação e incredulidade generalizadas quanto aos fins e métodos de atuação da Constituição. Relembrar os fatos, o contexto e as conquistas do nascimento da Lei Maior, assim como suscitar esperanças para o futuro é uma das tarefas precípuas do Preâmbulo. É não somente elemento de fé no porvir, mas ponto de apoio e de exigência para a realização de valores, garantias e princípios nele previstos. É vetor de unidade cultural, política e de integração entre indivíduos distintos, mas com um denominador de vínculo jurídico-político comum. O Preâmbulo não é uma declaração de amor ao povo brasileiro. Entendemo-lo como membro funcional da Constituição formal, mesmo sem emanar e poder prescrever direitos diretamente, e que, portanto, tem sua representatividade jurídica reconhecida. Logo, está sujeito a todos os preceitos da eficácia e concretização das normas constitucionais a ponto de ser considerado e levado em conta quando das decisões do caso concreto. É um compromisso público, um viés interpretativo e integrador da teoria material da Constituição, uma saída legítima para o resgate da identidade de uma nação grande em número e virtude, mas diminuída nos seus direitos e no acesso aos serviços públicos básicos. Dele emana um postulado para o legislador e para qualquer agente que tenha como encargo administrar um conflito ou elaborar políticas voltadas para sua solução: a busca pela paz. Sugere-se aqui uma nova mentalidade quanto ao assunto, tomadas por base as experiências do direito estrangeiro. Um mesmo preâmbulo para um novo tempo, no qual a retomada da história da Constituição e o estudo aprofundado das repercussões jurídicas e sociais que o Preâmbulo pode ter - seja como estrutura mestra do ensino da Constituição, seja como mecanismo de união nacional – papel basilar no suprimento do déficit de sentimento de constitucionalidade. As, ainda tímidas, referências feitas ao Preâmbulo como fontes de argumentação de decisões do Supremo Tribunal Federal indicam uma lenta mudança paradigmática funcional do prólogo. Porém, sugere-se aqui a normatividade preambular no 146 que pertine à vinculação do legislador ordinário no tocante à concretização das premissas axiológicas. Portanto, ciente da relevância histórica, política e cultural do Preâmbulo, tem a autoridade gestora das políticas públicas judiciárias um respaldo constitucional para desempenhar seu papel da forma mais coerente possível. Corroborando as conclusões, deduziu-se pelo sentido coerentista como espeque teórico para cimentar a necessidade de se ter a propulsão de políticas públicas no âmbito interno e externo que fomentem a solução pacífica de conflitos, sob pena de se ter uma incoerência lógica para com a análise mais aprofundada e delineada dos elementos básicos do sistema constitucional vigente. No âmbito direito ordinário, tomou-se a Arbitragem como amostra de legislação alternativa e pacífica e demonstrou-se límpida sua importância em tempos pós-modernos. A globalização é um fenômeno latente, irreversível e avança a passos largos. No processo econômico, político e cultural, a celeridade na solução dos problemas se configura como um dos reclames de todos os protagonistas do cenário moderno. Entretanto, embora dotada de propagação teratológica nos Estados desenvolvidos e com raízes nobres, o instituto ainda encontra algozes no torrão brasileiro. O estímulo à difusão desse instrumento extrajudicial pode contribuir bastante na concretização dos valores constitucionais em razão do seu caráter extrajudicial e pacífico, dada a opção das partes em prezar por uma decisão consensuada, ainda que heterocompositiva. Por último, aferiu-se que, ao lado da arbitragem, a conciliação e mediação tem posição de destaque na construção das políticas judiciárias de gestão de conflitos, bem como na devida inserção no corpo do direito infraconstitucional, demonstrando, ao nosso ver, um nítido reflexo do fenômeno constitucionalizador indireto, mas que necessita de uma utilização de ordem mais qualitativa, caso se pretenda atender aos fins constitucionais em todos os seus sentidos. As diversas técnicas podem e devem ser utilizadas sistematicamente com a devida legitimação constitucional da pacificação, porém um ajuste em sede de política pública judiciária pode ser feito no sentido de massificar a cultura da paz e não entendê-la como construção meramente restrita aos mecanismos alternativos de solução de controvérsias. 147 7 REFERÊNCIAS ADIERS, Moacir. Constitucionalização do Direito Civil: Um Antigo Tema Novo. In: TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski; LONGO, Luís Antônio (Orgs.). A Constitucionalização do Direito. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008 ALCÂNTARA JUNIOR, José Oliveira. Georg Simmel e o conflito social. Caderno Pós Ciências Sociais. V.2. N.3. jan-jul. São Luis, 2005, p.1-14. ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. 2. ed. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1994. ALMEIDA, Fábio Portela Lopes de. A teoria dos jogos: uma fundamentação teórica dos métodos de resolução de disputa. In: AZEVEDO, André Gomma de (Org.). Estudos em arbitragem, mediação e negociação. 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