UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA COMPARADA PUNHAL, CAPOTE E SOMBREIRO: RECEPÇÃO E RESSIGNIFICAÇÃO DO MITO DE DON JUAN NA OBRA LITERÁRIA DE CASTRO ALVES MARCOS VINÍCIUS FERNANDES Natal/RN 2018 MARCOS VINÍCIUS FERNANDES PUNHAL, CAPOTE E SOMBREIRO: RECEPÇÃO E RESSIGNIFICAÇÃO DO MITO DE DON JUAN NA OBRA LITERÁRIA DE CASTRO ALVES Defesa de doutorado acadêmico apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem. Orientadora: Drª Karina Chianca Venâncio Natal/ RN 2018 MARCOS VINÍCIUS FERNANDES AGRADECIMENTO À Karina Chianca Venâncio, por ter me oportunizado pela terceira vez a dignidade de trabalhar intelectualmente ao seu lado. Karina reúne em si mesma todas as riquezas que seu nome sugestivamente evoca em jeu de mots, de que destaco a pertinência, o compromisso, a seriedade e a intuição artística. À minha mãe Maria Gomes da Silva, cujo exemplum de vida reta e abnegada de mãe, põe-me em blasfêmia à adoração exclusiva de seu Deus cristão. A Marcos Aurélio, por ter privado a Edmond Dantès de morrer de inanição em seu solitário confinamento. A Marcos Túlio, pelos voos fantásticos na taverna hoffmanniana, abstinente de seu punch característico, todavia regada de saber e de teoria. A Bruno Nino, por assumir de bom grado o papel de tesoureiro e de analista de sistema me reservando tempo aos cuidados da redação. Aos exemplares modelos de donjuans que me fizeram reconhecê-los nas leituras variadas dos mitos literários, Márcio, Túlio, Vinícius, Hermes, Bruno Galego, Ferreira, entre outras figuras erradias e erradas, que me ajudaram no entendimento de seus quadros psicológicos. A Willy Paredes, pelo apoio no latim e pelo empréstimo de sua imagem como representação viva mais acabada do mito, justamente por ser alheio à própria miséria que o ronda. À Ana Maria, por se deixar representar de Elvira, embora seja eu mais um pálido Romeu. À Gilmara Castor, pela resiliência em conviver sob o mesmo teto em cinco meses de sua preciosa vida. Aos professores que aceitaram gentilmente nosso convite, Marcio Venicio Barbosa, Philio Generino Terzakis e Flávia Cristina de Souza Nascimento Falleiros, cujas contribuições a trazer já revelam o namoro também com o tema. À Wiebke Röben de Alencar Xavier, pelas contribuições de sugestão de leitura e dos debates sobres os impressos e periódicos do Brasil oitocentista. À Madrecita, Rosalina Sales Chianca, um compêndio humano, versado de plurais saberes, eruditamente rico e humanisticamente construtivo. A Andrey Pereira de Oliveira, pelas contribuições traduzidas no fino trato do rigor acadêmico, nas sugestões de melhoria da redação, mas, sobretudo, por acordar em mim, à ocasião da dissertação em 2012, o faro estruturalista de há muito adormecido. A José Fernandes Neto (in memoriam) À Maria Gomes da Silva À Lucélia Gomes Rodrigues (in memoriam) Ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ao ex-ministro da Educação Fernando Haddad A quem dedico. Bela? À noite, sim, quando vagueiam pelas ruas mal alumiadas esses vultos que deixam reluzir no escuro uns olhos pretos por entre as rendas da mantilha; essas incógnitas caminheiras das desoras, que escondem na baeta um segredo de ciúme, ódio e de amor. Mal desses corações se tivessem de pulsar a descoberto! És bela à noite também, quando na rua deserta, um encapotado de sombreiro de abas descidas arrepia-se e enlanguesce unido a um postigo ou portão sob o alto pinheiro, e afagando o violão, manda às paredes e janelas um estribilho suspirado. Dalmo ou mistério da noite – Luiz Ramos Figueira FERNANDES, Marcos Vinícius. Punhal, Capote e Sombreiro: Recepção e ressignificação do mito de Don Juan na obra literária de Castro Alves. 2018. 320 páginas. Defesa de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (PPGeL). Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2018. RESUMO O presente trabalho tem por disposição estudar a feição assumida do mito literário de Don Juan em algumas composições da obra literária de Castro Alves com destaque às produções realizadas em prosa: “Pesadelo” (1863), “Crônica Jornalística” (1864) e “D. Juan ou a prole dos saturnos” (1869). O mito de Don Juan na produção artística do poeta baiano suscita questionamentos ainda hoje não claramente resolvidos. A fim de melhor compreender as manifestações do repisado motivo do sedutor espanhol na obra do romântico brasileiro, pretendemos traçar uma linha de análise direcionada à pesquisa histórica dos empréstimos literários em suas transformações assentidas pelo impulso criativo do escritor. Revisitando a fortuna crítica de Castro Alves, nos trabalhos de Haddad (1953), Gomes (1997), Ferreira (1947), entre outros, encontramos lacunas ainda não preenchidas a propósito da editoração de seus textos e de atribuição de trabalhos que não lhe são autorais, implicando direta ou indiretamente na maneira como o pesquisador dá entrada à leitura dos motivos poéticos em sua obra. Desta forma, investimos para este estudo numa pesquisa de recepção textual a fim de reavaliar o espólio de sua obra e reconfigurar a imagem tradicionalmente consentida por seus críticos mais influentes no tocante ao motivo literário de Don Juan. Pondo em evidência as experiências de leitura praticadas nos círculos culturais acadêmicos por onde o poeta atuou, como Recife e São Paulo, recuperando uma dominante esquecida de sua produção literária, a saber, o culto do fantástico e do gótico, propusemos analisar, entre poemas mais antologiados e consagrados do escritor baiano, como “Os três amores” e “Adormecida”, textos igualmente sobre os quais ainda não se atraiu a atenção dos estudos castroalvinos. Intentando o estudo comparativo da célebre narrativa do sedutor espanhol com o nosso corpus delimitado, procedemos também à apresentação da evolução do mito desde o seu estabelecimento textual literário com Tirso de Molina, seguido de perto pelas recriações de Molière e Mozart nos séculos XVII e XVIII, até a expansão alcançada pelos românticos. Palavras-chave: Castro Alves, Don Juan, recepção literária, gótico, fantástico. FERNANDES, Marcos Vinícius. Dagger, Cloack and Hat: Reception and ressignification of the myth of Don Juan in the literary work of Castro Alves. 2018. 320 pages. Doctoral defense. Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (PPGeL). Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2018. ABSTRACT This research aims to study the assumed feature of the literary myth of Don Juan in some compositions of the literary work of Castro Alves, highlighting the productions realized in prose: "Pesadelo" (1863), "Crônica Jornalística" (1864) and “D. Juan ou a prole dos saturnos” (1869). The myth of Don Juan in the artistic production of the Brazilian poet raises questions still not clearly resolved today. In order to better understand the manifestations of the Spanish seducer's motif in the work of the Brazilian romantic, we intend to draw a line of analysis directed to the historical research of literary concessions in their transformations assented by the creative impulse of the writer. Revisiting the critical fortune of Castro Alves, in the Works of Haddad (1953), Gomes (1997), Ferreira (1947), and others, we find gaps that have not yet been filled in relation to the publication of his texts and attribution of works that are not of his authorship, directly or indirectly implying the way in which the researcher enters the reading of poetic motifs in his work. In this way, we invested in this study in a research of textual reception in order to reassess the heritage of his work and to reconfigure the image traditionally accepted by his most influential critics regarding the literary motif of Don Juan. Highlighting the reading experiences practiced in the academic cultural circles through which the poet worked, such as Recife and São Paulo, recovering a forgotten dominant of his literary production, namely, the cult of the fantastic and the gothic, we proposed to analyze, between poems more anthologized and consecrated by the Brazilian writer, such as "Os três amores" and "Adormecida", texts equally on which the attention of the castroalvin studies has not yet been attracted. In order to compare the famous narrative of the Spanish seducer with our delimited corpus, we also presente the evolution of the myth from its literary textual establishment with Tirso de Molina, followed closely by the re-creation of Molière and Mozart in the 17th and 18th centuries, until the expansion reached by the romantics. Keywords: Castro Alves, Don Juan, literary reception, gothic, fantastic. FERNANDES, Marcos Vinícius. Poignard, Cape et Chapeau: Réception et resignification du mythe de Don Juan dans l’oeuvre littéraire de Castro Alves. 2018. 320 pages. Soutenance de thèse de doctorat. Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (PPGeL). Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2018. RÉSUMÉ Ce travail a pour but d’étudier l’image du mythe littéraire de Don Juan dans certaines pièces de l’oeuvre de Castro Alves, en soulignant les réalisations littéraires en prose: “Pesadelo” (1863), “Crônica Jornalística” (1864) et “D. Juan ou a prole dos saturnos” (1869). Le mythe de Don Juan soulève de questions pas encore nettement résolues dans l’oeuvre du poète de Bahia. Pour mieux compreendre les manifestations de ce bien rodé sujet du séducteur espagnol chez l’oeuvre de l’écrivain romantique du Brésil, nous prétendons dessiner une lygne d’analyse vers la recherche historique des emprunts littéraires dans leurs transformations assurées par l’impulsion créative de l’écrivain. En consultant la fortune critique de Castro Alves, dans les oeuvres de Haddad (1953), Gomes (1997), Ferreira (1947), entre autres, nous avons trouvés des lacunes pas encore remplies à propos de l’édition de ses textes et de l’attribution d’oeuvres qui ne lui appartiennent pas, impliquant direct ou indirectement la façon dont le chercheur lise les motifs poétiques chez son oeuvre. De cette façon, nous investissons pour cette étude de la réception textuelle afin de réévaluer la sucession de son travail et reconfigurer l’image traditionnellement autorisée pour ses critiques les plus influents par rapport le motif littéraire de Don Juan. Soulignant les expériences de lecture pratiquées dans les cercles culturelles académiques où le poète a agi, comme Recife et São Paulo, en récuperant une dominante oubliée de sa activité littéraire comme le culte du fantastique et du gothique, nous proposons d’analyser, entre plus de poèmes anthologisés et préstigieux de l’écrivain de Bahia, comme “Os três amores” et “Adormecida”, des textes sur lequels l’attention n’a pas encore été attirée aux études sur Castro Alves. Tentant l’étude comparative du célèbre récit du séducteur espagnol avec notre corpus delimité, nous pésentons également l’évolution du mythe depuis sa création littéraire chez Tirso de Molina, suivi de près par des récréations de Molière et Mozart aux XVIIème et XVIIIème, jusqu’à l’expansion atteinte par les romantiques. Mots-clés: Castro Alves, Don Juan, réception littéraire, gothique, fantastique. LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Anúncio publicitário da Empresa de teatro Coimbra, dando nota sobre o espetáculo O gaiato de Lisboa, seguido da cançoneta Os pomos do meu pomar e da comédia O judas em sábado de aleluia. (Diário de Pernambuco. 6 dez. 1866. p. 2)...................................................37 Figura 2 – Recorte da Figura 1, pondo em evidência a cançoneta Os pomos do meu pomar de Castro Alves..............................................................................................................................38 Figura 3 – Folha de rosto de Oeuvres Complètes de Lord Byron com tradução de Louis Barré. (Paris: Bry Ainé, 1856)..............................................................................................................45 Figura 4 – Apresentação da dedicatória que antecede o Canto I de Don Juan de Byron com ilustração de Ch. Mettais e E. Boucourt.....................................................................................45 Figura 5 – Partitura de “Addio Teresa: Chanson Sicilienne” com letra de Alexandre Dumas e música de Hippolyte Monpou. Weissenburg: Hoffmann’sche Leihbibliothek, 1838................85 Figura 6 – Detalhe da figura 5 contendo pentagrama com o ritornelo “Addio, Teresa, Teresa, addio, al mio ritorno ti sposerò”.................................................................................................86 Figura 7 – Página 137 de Espumas Fluctuantes organizada por Afrânio Peixoto, contendo a divisória que separa as últimas estrofes de “Adormecida”.........................................................96 Figura 8 – Recorte da página 175 de Poetas hispano-americanos com poema “Una lágrima de felicidad”, de Eusebio Caro, apresentando uma linha pontilhada que separa as estrofes finais..96 Figura 9 – Primeira de três páginas da carta de Castro Alves ao irmão Guilherme datada de 7 de maio de 1870. Fonte: FERREIRA, 1947, p. 910A..............................................................100 Figura 10 – Terceira de três páginas da carta de Castro Alves ao irmão Guilherme datada de 7 de maio de 1870, trazendo o pedido daquele do livro Poetas Espanhóis Fonte: FERREIRA, 1947, p. 910C...........................................................................................................................100 Figura 11 – Detalhe de entrecho da terceira página da carta de 7 de maio, onde se encontra o pedido de Castro Alves do despacho do livro Poetas Espanhóis (Poetas Hespanhóes)............100 Figura 12 – Folha de rosto de Juicio critico de algunos poetas hispano-americanos por Miguel Luis e Gregorio Victor Amunategui. Santiago: Imprenta del ferrocarril, 1861. Fonte: https://books.google.com.br....................................................................................................111 Figura 13 – Recorte de página de Espumas Flutuantes, contendo epígrafe de Shakespeare extraída de Reisebilder. (ALVES, 1870, p. 71) Fonte: http://objdigital.bn.br..........................127 Figura 14 – Folha de rosto de Oeuvres de Henri Heine. (Paris: Renduel, 1834) Fonte: https://archive.org...................................................................................................................128 Figura 15 – Página da parte IX de Reisebilder na qual se encontra a epígrafe de Shakespeare que serviu de modelo para Castro Alves. (HEINE, 1834, p. 252) Fonte: https://archive.org/ ..128 Figura 16 – Introdução ao Dom Juan: Conto Fantástico de Hoffman. Tradução original de autoria do bacharel em Direito Marques Rodrigues. O Cidadão, 12 fev 1854.Fonte: Arquivo pessoal.....................................................................................................................................130 Figura 17 – Carta de Marques Rodrigues enviada a Antônio Vicente Feitosa, diretor de O Cidadão, dando notícia das traduções de Contos Fantásticos de Hoffman. O Cidadão, 12 fev 1854. Fonte: Arquivo pessoal..................................................................................................130 Figura 18 – Cabeçalho de O Cidadão: periódico social e moral. O Cidadão, 12 fev 1854. Fonte: Arquivo pessoal.......................................................................................................................130 Figura 19 – Folha de rosto de Obras Poéticas de Don José de Espronceda. Paris: Baudry, 1851. Fonte: Arquivo pessoal............................................................................................................135 Figura 20 – Imagem da ficha relativa a Obras de José de Espronceda. ...................................135 Figura 21 – Capa de Dom João Tenório de José Zorrilla. Rio de Janeiro: Athena, 1936. Fonte: Arquivo pessoal.......................................................................................................................136 Figura 22 – Imagem da ficha catalográfica relativa a Dom João Tenório de José Zorrilla. Fonte: Arquivo pessoal.......................................................................................................................136 Figura 23 – Imagem da ficha catalográfica relativa a Oeuvres Complètes de Molière. Paris: Didot Frères, 1843. Fonte: Arquivo pessoal............................................................................137 Figura 24 – Imagem da ficha catalográfica relativa a Oeuvres Complètes de Molière. Paris: Didot Frères,1843. Arquivo pessoal........................................................................................137 Figura 25 – Detalhe do entrecho final de “Crônica jornalística” onde aparece a referência ao personagem Ludwig sem a distinção gráfica necessária. O Futuro 30 ago 1864. Fonte: http://memoria.bn.br................................................................................................................140 Figura 26 – Notícias sobre a publicação de obras inéditas de Castro Alves. A República, 6 nov de 1872. p. 2. Fonte: http://memoria.bn.br/.............................................................................233 Figura 27 – Reprodução integral da matéria noticiosa de A República sobre os inéditos do poeta. Correio Paulistano, 15 nov. de 1872. p. 2. Fonte: http://memoria.bn.br/..................................234 Figura 28 – Publicidade dos inéditos de Castro Alves sob encargo de Campos Carvalho. Artes e Letras, 1872, p. 176. Fonte: http://www.orealemrevista.com.br/..........................................239 Figura 29 – Imagem da vigésima oitava página do manuscrito de A prole. Fonte: Acervo da Biblioteca Nacional/ Divisão dos Manuscritos........................................................................247 Figura 30 – Detalhe da Figura 29, contendo alterações de escrita para o drama A prole........247 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 13 CAPÍTULO I RECEPÇÃO E REVISÃO DO MITO DE DON JUAN ................................. 20 1. O MITO DE DON JUAN EM CASTRO ALVES: UMA QUESTÃO PRELIMINAR ... 22 2. O PROBLEMA DAS FONTES E A PALAVRA DA CRÍTICA .................................... 34 3. NOVOS ESTUDOS CRÍTICOS E PREMÊNCIA DE UMA REVISÃO ........................ 55 CAPÍTULO II MATRIZES MÍTICAS DE DON JUAN ....................................................... 72 1. A MATRIZ ESPANHOLA E AS EVIDÊNCIAS DE LEITURA ................................... 74 2. SOBRE MOTIVOS ESPANHÓIS ................................................................................... 98 3. NA TRILHA DO SEDUTOR ........................................................................................ 121 CAPÍTULO III O MITO DE DON JUAN: ORIGENS, EXPANSÃO E UNIVERSALIDADE 143 1. O MITO DE DON JUAN: DO BARROCO À QUEDA DO ANTIGO REGIME ........ 145 2. RESSIGNIFICAÇÃO DO MITO E ABSOLVIÇÃO DO HERÓI NO OLHAR DOS ROMÂNTICOS ...................................................................................................................... 177 CAPÍTULO IV - O MITO DE DON JUAN EM CASTRO ALVES: O GÓTICO, O FANTÁSTICO E O DRAMA ................................................................................................ 201 1. CASTRO ALVES NO RECIFE: ENTRE O GÓTICO E O ESTRANHO .................... 203 2. NAS ARCADAS PAULISTAS: ENTRE O GÓTICO E O DRAMA ........................... 228 CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 249 REFERÊNCIAS: .................................................................................................................... 254 ANEXOS: ............................................................................................................................... 266 ANEXO A: TEXTOS DE CASTRO ALVES ........................................................................ 266 ANEXO B: TEXTOS SOBRE O MITO DE DON JUAN FORA DE CIRCULAÇÃO ........ 288 13 INTRODUÇÃO A pesquisa realizada para este nosso trabalho foi pensada para atender a uma necessidade dos estudos críticos a respeito da presença do mito de Don Juan no conjunto da obra do escritor romântico Castro Alves. Tema recorrente entre os tópicos de relevância no ensaísmo literário e nas produções acadêmicas sobre o poeta baiano, a apresentação deste repisado motivo da literatura espanhola encontra alguns desafios ainda não superados pelo crivo da crítica literária moderna. Convencionalmente, o juízo apreciativo sobre a incidência do mito donjuanino no autor de Espumas Flutuantes incorre, em nosso entendimento, em dois problemas estruturais, não solucionados, e relacionados a uma compreensão mais aberta da apropriação do(s) modelo(s) literário(s) que serviu(ram) de influxo à representação arquetípica do sedutor sevilhano plasmada pelo poeta em suas composições artísticas. O primeiro deles diz respeito ao enfoque dos estudos castroalvinos dado à importância biográfica para a análise da produção artística do escritor que tem o motivo literário como tema de eleição. Sem negar abusivamente a contribuição enriquecedora dos primeiros estudos sobre o assunto e, considerando também a própria natureza singular dos escritos de Castro Alves, marcados de forte apelo autobiográfico e acentuado tom confessional, muito da crítica literária desenvolvida sobre a obra do escritor baiano se depara com a escassez de fontes literárias às quais o poeta teve acesso e cuja indeterminação impeliu os seus pesquisadores ao continuísmo da abordagem biográfica das composições daquele autor. O segundo impasse enfrentado está igualmente correlacionado ao rastreio das fontes inspiradoras do tema de Don Juan neste poeta e cuja imprecisão torna arbitrária a seleção de textos castroalvinos que eventualmente portariam a estampa de releituras donjuanianas do mito espanhol. Assim, posicionamo-nos a uma pesquisa na qual a seleção de nosso corpus se manifesta devidamente conformada a textos cuja motivação primeira e maior é o tema do herói sevilhano e que serviram de inspiração a Castro Alves que os solicita de forma direta, sem que haja necessariamente apenas um cotejo alusivo ao mito ou o tangenciamento do tema em suas produções literárias. Desta maneira, pretendemos analisar com maior destaque, no nível formal e temático, três composições saídas do punho de nosso poeta-alvo: “Pesadelo” (1863), “Crônica Jornalística” (1864) e “D. Juan ou a prole dos saturnos” (1869). Os textos que integram o nosso corpus seguiram a uma ordem cronológica, entendendo, inicialmente, uma linha evolutiva do 14 tratamento do mito de Don Juan nos primeiros escritos do poeta no Recife acadêmico onde este pôde explorar o gênero narrativo para os jornais dos estudantes de Direito daquela cidade, até o domínio satisfatório do gênero drama em sua chegada a São Paulo. Os textos selecionados para análise também têm em perspectiva o confronto intertextual com versões do mito donjuanino que ficaram esquecidas do cânone literário. Para esta empreitada, precisamos resgatar narrativas marginalizadas pela crítica literária e que dão conta do mito de Don Juan, presentes em edições de impressos e de periódicos que fizeram fortuna entres os estudantes de Pernambuco e de São Paulo entre as décadas de 1850 e 1860, com especial cuidado ao período de 1862 a 1867, em que o poeta baiano fincava estada naquela primeira cidade e contribuía para os jornais locais. De sua passagem em São Paulo, consideramos a apropriação de leituras espanholas e composições musicais hoje fora de circulação e que falsearam, em anos de estudos críticos sobre o autor, a atribuição de determinadas peças de sua obra como sendo donjuaninas. Do período de Recife, especificamente, detectamos três produções da imprensa periódica acadêmica diretamente ligadas ao culto literário de Don Juan. O primeiro consiste em uma tradução do conto Don Juan de Hoffmann vertida para o português do Brasil pelo acadêmico Marques Rodrigues, a primeira, a propósito, a se ater sobre a transposição desta narrativa do escritor germânico para nossa língua e que constava em um efêmero periódico escrito pelos estudantes de Direito do Recife, O Cidadão (1854-1855). O segundo diz respeito ao poema Octavio e Branca de 1847 tributado a João Cardoso de Menezes, modelo de inspiração para o conto-poema “Pesadelo” de Castro Alves. O terceiro texto revitalizado trata-se de um livro apreciado pelos estudantes do Recife e do Maranhão, mas cujo acesso só conseguimos obter pela pesquisa digital à Hemeroteca Nacional do Uruguai. Trata-se do impresso Bibliotheca Litteraria, seleta de textos de escritores não tão renomados, entre os quais o nome de Hoffmann aparece ao lado de Paul Parfait, Xavier Maistre e Benjamin Gastineau. É deste último que vem a inspiração do poeta baiano para o já citado poema “Pesadelo”, modelados pela sugestão de um Don Juan africano do conto “A condessa negra” integrado àquela antologia. Todos estes textos se encontram disponibilizados agora na seção de anexo deste nosso trabalho. De posse destes informes, sentimo-nos mais confiantes a responder à indagação que inquietava um dos primeiros críticos e biógrafos do poeta baiano, o pesquisador Calmon (1973), o qual discorria sobre os intertextos donjuaninos factíveis de terem servido de sugestão literária à elaboração da obra castroalvina. A constatação das fontes literárias sobre este mito nos permitiu, de igual modo, a discriminar uma faceta pouco conhecida e até heterodoxa na avaliação da crítica literária sobre o autor de Espumas Flutuantes: a do poeta cultor do gênero 15 gótico e do fantástico. Dos textos que selecionamos para a dissertação de nossa tese é inegável o vínculo que estabelece mais diretamente com os temas do mito de Don Juan assinalados pelo gosto do sobrenatural e do romance negro, o que justifica a presença de nomes como Hoffmann e Espronceda, responsáveis por impulsionar a faceta do fantástico entre os nossos estudantes acadêmicos. Destes modelos singulares do mito nos quais se encontra um herói soturno, envolto em cenas de crimes e mistério, suscitando ora o medo, ora o suspense, nos leitores brasileiros consumidores do gênero fantástico, é que nasce a inspiração dos textos donjuaninos de Castro Alves submetidos aqui à nossa análise e que agrupamos sob o título Punhal, Capote e Sombreiro, por metonimizar o assassinato, a emboscada e os assaltos noturnos deste Don Juan às sacadas das amantes como temas subversivos à ordem burguesa estabelecida e, parcial ou integralmente, presentes no corpus selecionado para nossa redação. Apoiamo-nos para o estudo da vertente fantástica e do estudo do gótico no referencial teórico proposto por Todorov (2008) e Volobuef (2005) a fim de melhor entender as implicações conceituais dos subgêneros estranho e sobrenatural com os quais o fantástico faz fronteira e que se veem explorados no exercício literário de Castro Alves. Para uma percepção mais detida da manifestação literária do donjuanismo na obra castroalvina, balizamos nossa pesquisa na crítica especializada sobre o assunto através do Dictionnaire de Don Juan, organizado por Brunel (2009), que conta com uma coletânea de ensaios dos mais atuantes e modernos críticos sobre o assunto. Selecionamos textos críticos sobre a literatura das versões europeias sobre o mito que ali se encontram por estarem atentos à pesquisa histórica mais detalhada de cada autor que tratou sobre o tema, desde sua gênese com Tirso de Molina, até o advento do donjuanismo romântico. A proposição de estudar o mito de Don Juan não se coaduna, entretanto, com qualquer estudo de natureza antropológica ou psicanalítica, sendo, pois, o conceito de mito aqui atribuído às sequências literárias nos diversos gêneros registrados pelos primeiros autores que estabeleceram textualmente no século XVII a história deste herói como sedutor temerário até a universalização assentida pelo Romantismo no final do século XVIII. Assim sendo, apoiandonos no procedimento metodológico da pesquisa histórica a essas diversas e distintas modalidades textuais de donjuanismo, empreendemos um rastreio a obras consagradas e desconhecidas do cânone literário europeu a fim de ampliar a compreensão da incidência das leituras de composições que tocassem o tema e infundissem na definição do donjuanismo castroalvino. Por esta razão, posicionamo-nos em sintonia com as pesquisas a periódicos, suplementos literários, jornais e livros pouco estudados ou fora de circulação, à maneira como 16 vem sendo operada a entrada nestes documentos pelos últimos trabalhos acadêmicos desenvolvidos pelos estudos da recepção de Michel Espagne, o transfert culturel. Parte dos conceitos aplicados na dissertação de nossa tese, a exemplo de empréstimos, fontes, matriz, textos de partida e de chegada, está ancorada nas definições pontuadas da noção de transferências culturais postuladas por este historiador francês e que considera as particularidades históricas e culturais envolvidas na passagem de um texto primeiro como fonte motivadora e inspiradora de renovação artística. Nosso trabalho, inicia-se com uma reflexão sobre a abordagem da representação mítica do poeta Castro Alves em anos de formação e estabelecimento definitivo do escritor no cânone nacional. Revisaremos os estudos críticos sobre o poeta baiano que puseram mais em evidência a imagem do poeta como um sedutor do que propriamente o estudo aplicado à leitura- interpretativa da manifestação do mito literário em seus escritos. Abordaremos, de igual sorte, para uma melhor compreensão dos estudos críticos castroalvinos sobre o tema, o surgimento do mito na Espanha barroca até a reinterpretação literária assinada pelos poetas românticos, cuidando de sua evolução histórica e de sua análise apoiada nos estudos críticos especializados sobre o tema, e com nossa contribuição interpretativa sobre determinados aspectos familiares ao mito como a componente do fantástico intrínseca ao arquétipo literário. A pretensão de resgatar a história das sequências literárias de Don Juan tem por objetivo transparecer as formas variadas que estavam presentes como recepção textual no século XIX e precisar histórico e esteticamente se serviram como empréstimos de leitura por Castro Alves em sua apreensão particular da imagem do mito. Nossa atenção maior ainda será consagrada à literatura romântica e francesa que nortearam as obras de nossos cultores do mito aqui no Brasil como Álvares de Azevedo e, evidentemente, Castro Alves. Em linhas gerais, o mito de Don Juan cristalizou-se no imaginário popular como a saga do incorrigível conquistador de mulheres, de discurso eloquente e arrebatado, conhecido por sua volubilidade e pelo jogo de sedução com as suas vítimas. Enxergando nas amantes presas fáceis de suas investidas, o herói, insaciável em seu desejo, se consolidou como imagem reprovável e hedionda na construção de seu arquétipo. Essa representação do mito é, em verdade, decorrente da insurgência do caráter religioso da peça no século XVII às pequenas remodelações sofridas pelos anos subsequentes em sua estrutura de narrativa moralizante. Coube ao Romantismo o resgate e a absolvição do personagem. De Molina (1630) a Molière (1655), pouco se perceberam, na condução dos eventos da novela, 17 alterações sensíveis a sua essência no tocante à imagem reprovável do sedutor. A crítica à moral decadente dos costumes e as implicações ideológicas que se sobrepõem nestas primeiras obras fazem de Don Juan um inconstante reconhecido por sua “incapacidade de fixar-se num mesmo objeto, um perpétuo apelo ao outro, e tal ódio ao casamento que ele está sempre parodiando” (BRUNEL, 1998, p. 256). No século XIX, porém, Don Juan é alçado à condição de vítima. Isso muito se deveu às releituras propostas do mito pelos primeiros românticos e, notadamente, ao conto de Hoffmann, Don Juan e o devaneio de um viajante entusiasta (1813). Nesta pequena narrativa inspirada na ópera Don Giovanni (1787) de Mozart, o contista alemão reatualiza a legenda dando-lhe uma feição mais humana e, portanto, menos maniqueísta e manobrável como se queria em sua origem com Tirso de Molina na Espanha de 1830, sendo remodelado com contornos psicológicos que o encerram à complexidade do movimento romântico. Esse personagem que nos legou Hoffmann, mais humano, elaborado com maior densidade psicológica, está familiarizado às inquietações e às angústias do homem moderno, em sua sede de verdade velada pela transcendência cósmica: O Don Juan de Hoffmann, adaptado ao gosto de uma sensibilidade romântica, é determinado por uma natureza dupla, demoníaca e divina, ele é um ser dividido entre as armadilhas do império infernal e a nostalgia do infinito. Ele sente que a existência é feita de um combate incessante entre as energias celestes e as forças diabólicas, que Satã habita presente “até este esforço para beijar o infinito, testemunhando a “origem divina” de Don Juan, devotado a ultrapassar o nível comum da humanidade. (EIGELDINGER, p. 220, 1976) (Tradução nossa)1 A evolução histórico-literária do mito reservamos ao terceiro capítulo desta tese e reforça nossas premissas apontadas nos dois primeiros capítulos anteriores a respeito da inconsistência de determinadas leituras literárias sobre o tema realizadas pelo poeta baiano. Traçamos estas considerações históricas, situando o mito no espaço e no tempo, respondendo às questões estéticas e ideológicas que o motivaram à sua definição textual. No primeiro capítulo, focalizamos os estudos tradicionais e contemporâneos da crítica literária no autor a respeito da presença do donjuanismo em sua obra. Expusemos as lacunas deixadas por seus primeiros compiladores no tocante ao tratamento dado ao espólio do autor, enfatizando a 1 “Le Don Juan d’Hoffmann, adapté au goût d’une sensibilité romantique, est déterminé par une double nature, démonique et divine, il est un être partagé entre les pièges de l’empire infernal et la nostalgie de l’infini. Il éprouve que l’existence est faite d’un combat incessant entre les énergies célestes et les puissances diaboliques, que Satan demeure présent ‘jusque dans cet effort pour embrasser l’infini’, témoignant de ‘l’origine divine’ de Don Juan, voué à dépasser le niveau comum de l’humanité”. (EIGELDINGER, p. 220, 1976). 18 necessidade de repô-lo ao seu estado inicial de concepção textual. Destacamos que o aspecto fragmentário da obra do poeta impulsionou o surgimento de uma crítica votada ao estudo do mito em Castro Alves orientada a dois procedimentos de análise: o biográfico e o temático, ambos, porém, afastados das implicações históricas de revisão e recepção que envolvem os escritos do autor. Por essa razão, no segundo capítulo, ocupamo-nos em devolver aos textos de Castro Alves o seu lugar de destaque associado à análise mais comprometida com as condições de sua produção. Retomamos, atualizando, os estudos do primeiro revisor de suas fontes de leitura, Jamil Almansur Haddad, a fim de estabelecer um quadro de leituras efetuadas pelo escritor romântico relativas ao motivo do sedutor espanhol. Pusemos em prática o resultado de nossa pesquisa aos acervos literários em Pernambuco, acrescentando aos nossos achados outras descobertas realizadas nos periódicos oitocentistas consultados em plataforma digital. Ao quarto e último capítulo reservamos a análise textual dos trabalhos em prosa de Castro Alves, enfatizando a manifestação do mito de Don Juan pelo aporte do gótico e do fantástico, a faceta das produções literárias desconhecida pela crítica do escritor. A esse nosso corpus, reunimos as informações de pesquisa de documentação histórica das fontes literárias para estabelecer o cotejo com as versões distintas de cada mito donjuanino que motivou os textos do poeta baiano por nós selecionados. Destacamos que a redação desta tese dá continuidade às pesquisas realizadas à ocasião de nossa dissertação sobre Castro Alves e Alfred de Musset e que, agora se soma àquelas realizadas em bibliotecas públicas e gabinetes de leitura, como a Biblioteca Clemente Mariani, situada no interior da Bahia, o Gabinete Português de Leitura e a Fundação Joaquim Nabuco, ambos situados no Recife, bem como a consulta digital de periódicos disponíveis digitalmente no sítio da Biblioteca Nacional Brasileira (Hemeroteca Nacional), a Biblioteca Digital Luso-Brasileira e a Hemeroteca Nacional do Uruguai. Completamos a pesquisa com a consulta a dois centros como a Biblioteca Nacional de França e a já citada Biblioteca Nacional do Rio Janeiro, detentoras de um catálogo sobre o Gabinete Português de Leitura para o ano de 1863, e que se encontra atualmente disperso na seção de obras raras de ambas instituições à espera, conjuntamente a outros documentos, de serem inventariados. Destacamos que as traduções dos textos em língua francesa, espanhola e italiana é todo de nossa responsabilidade, e a tradução das epígrafes latinas, creditadas ao Prof. Dr. Willy Paredes Soares. Quanto à tradução do alemão para o conto Don Juan de autoria de Hoffmann (2010), procedemos a uma consulta cotejada com a transposição espanhola de responsabilidade de Gallardo de Mesa em Cuentos de Hoffmann (2002), a versão portuguesa de Antônio 19 Gonçalves em Don Juan de Hoffmann (1995) e a tradução francesa de André Coeuroy em Don Juan de Hoffmann (1986). 20 CAPÍTULO I RECEPÇÃO E REVISÃO DO MITO DE DON JUAN 21 Que sentidos são tributados a Castro Alves quando se interpreta o mito de Don Juan em seus textos literários? Para responder a esta questão é preciso antes esclarecer dois problemas que trazemos para o cerne dos debates sobre o poeta: o de revisão e o de recepção textual. Assim como em outros tópicos de sua poética, a compreensão do tema proposto para esta nossa pesquisa está imbricada com a ausência de acordo entre os seus primeiros críticos e o atual posicionamento dos estudos sobre o autor. Duas linhas de pesquisa se afastam na maneira de dar entrada aos textos potencialmente donjuaninos do poeta. Uma, tradicional e biografista, alheia ao estudo do plano discursivo das composições castroalvinas, a outra, mais sensível à abordagem das representações simbólicas facultadas pelas recriações poéticas do escritor. Ambas, em seu tempo e sua direção metodológica tomada, ainda nos possibilitam renovar as discussões sobre a pesquisa da incidência literária e da ressignificação de Don Juan no poeta. Tendo em vista os desafios encontrados para a penetração mais funda em um tema que orienta, por vezes, leituras-interpretativas dissonantes faz-se necessário recorrer à pesquisa histórica a fim de instrumentalizar nossas próprias hipóteses no intento de encontrar melhores resultados ao nosso trabalho. Mesmo sabendo da universalidade intrínseca à natureza do mito de Don Juan, o que leva tradicionalmente pesquisadores a explorar seus aspectos anedóticos na proposição de suas análises, é ainda possível jogar luz sobre os textos do poeta baiano, empreendendo uma pesquisa do rastreio de suas fontes leitoras iniciais. Para isso faremos uma apresentação de trabalhos que se ocuparam do mito a fim de sugerir uma terceira linha de raciocínio possível em estudar o repisado tema espanhol e cujo parâmetro está assentado na atenção às condições materiais do texto como realidade estética condicionada a seu tempo e seu sentido histórico determinado. 22 1. O MITO DE DON JUAN EM CASTRO ALVES: UMA QUESTÃO PRELIMINAR No imaginário popular brasileiro, consolidou-se a representação da figura de Don Juan vinculada ao nome do poeta romântico Castro Alves. Há, entre biógrafos e críticos do escritor baiano, quase um consenso formado a respeito de sua afinidade pessoal com o tema do sedutor da tradição espanhola. De relatos de familiares e amigos próximos a autorretrato a crayon saído de seu punho, construiu-se a imagem do conquistador de mulheres espelhada nos traços do irresistível personagem mítico. A morte prematura, a simpatia acolhida pelos colegas de academia, os círculos boêmios de que tomou parte, primeiramente em Recife, depois em São Paulo, os variados lances anedóticos da vida amorosa, tudo contribuiu para a afirmação do perfil eternamente jovem e feiticeiro de poeta galante. A expressão dessa imagem assentada na intimidade que o baiano devotava às eleitas do coração, por vezes, comunica-se com os versos que nos legou de maneira a ratificar o símbolo do fascinante conquistador andaluz: No capítulo do lirismo amoroso, as peças capitais se multiplicam na obra de Castro Alves. Fácil de paixões, como bom romântico, criou obras-primas no gênero, desde os primeiros encantamentos não realizados até o último e frustrado romance com a cantora italiana Agnese Trinci Murri, que, diga-se de passagem, passou o resto da vida, em seu país natal, reverenciando o poeta havia décadas desaparecido. Dos nossos românticos, na verdade, Gonçalves Dias e Castro Alves foram os dois únicos e autênticos coureurs de femmes, apesar da vida breve do primeiro e brevíssima do segundo. Entre essas musas do poeta baiano dominou, sem dúvida alguma, Eugênia Câmara, a atriz portuguesa com quem viveu o mais longo e o mais conturbado dos seus relacionamentos, figura célebre nos palcos da época, versejadora a suas horas e dez anos mais velha que o amante. Das obras-primas do gênero não podemos deixar de lembrar “Hebreia”, inspirada pela bela judia Esther Amzalak. (BUENO, 2011, p. 9-10) A extensão de suas paixões amorosas torna inegável o paralelo temático do jovem poeta com a do incorrigível conquistador, muitas vezes, amalgamando a vida às produções artísticas que nos deixou. Deve-se a Xavier Marques, biógrafo ligado às irmãs do escritor, a revelação ao grande público de uma nota curiosa e chistosa que se encontrava na iminência de se apagar dos registros de família e da memória popular: o travestimento do poeta na imagem do sedutor: 23 Passeava a cavalo, e em certas ruas por onde costumava passar já o espreitavam das janelas olhos risonhos de moças enfeitiçadas. Tinha ele tanta consciência da própria sedução que, antes de deixar o palacete Sodré (uma das últimas residências do poeta em Salvador), para o habitual passeio, assomando à janela dizia por brincadeira: - Pais de família, alerta! Que D. Juan vai sair! (MARQUES, 1997, p. 114) A esta altura da vida do poeta, momento em que regressava a Bahia para viver os anos finais da breve existência2, já é perceptível a familiaridade com que tratava o mito espanhol. Desse tempo também, mais precisamente em fevereiro de 1870, numa crítica humorística em correspondência trocada com Aleixo, pseudônimo literário do cunhado Augusto Álvares Guimarães, mostrava Castro Alves deter uma compreensão vária sobre o tema como a do herói rebaixado às quixotescas investidas amorosas. A vítima era o estudante de medicina Sousa Meneses3, autor de Pétalas Divagantes, obra logo recolhida por este após os ataques cáusticos de Libório, codinome do remetente Castro Alves: Cair ou vencer – estas palavras despertam garbos de voluntários no espírito do poeta, que aliás num de seus dias de D. Juan confessa que por um triz, não caiu e o cavalo o não despedaçou sob seus pés, porque as pernas lhe tremiam; e assim diz ele na tuba canora e bélica: “Ir ao combate por tremendas balas/ Tombar nas alas com enlevos nobres.” Pensarás que isto já é heroísmo, não; depois de ter ido ao combate, depois das tremendas balas, depois de ter tombado nas alas, poeta, o que pensas que irás fazer? (Crítica humorística – ALVES, 1997, p. 738) [grifos do autor] 2 Como é do domínio público, Castro Alves, após uma série de reveses que sobre ele recaiu, dentre os quais destacamos a amputação, em 1869, no Rio de Janeiro, de um pé gangrenado e o término do romance com Eugênia Câmara, viu-se forçado a interromper os estudos na Faculdade de Direito, situada no Largo de São Francisco em São Paulo, para dedicar maiores cuidados à debilitada saúde física – o poeta era vítima da tuberculose – em seu regresso à terra natal. É deste instante de sua vida íntima e amorosa que surge o relato dos galanteios às damas nos passeios a cavalo como nos dá conta Xavier Marques. 3 A propósito do esboço biográfico deste escritor não logramos no recolhimento de informações mais detalhadas. Apenas replicamos as informações presentes na Biografia Onomástica de Castro Alves, de Tace Pace, na qual seu autor nos informa que Sousa Meneses foi alvo da cumplicidade dos dois correspondentes (PACE, 1980, p. 42), que deixaram registrada a crítica humorística no Diário da Bahia em 13 de fevereiro de 1870. (GOMES, 1997, p. 880). Machado de Assis, também, naquele mês corrente de 1870, nos dias 14 e 21, e 2 do mês de março, escrevia nas páginas do periódico fluminense Jornal da Tarde, sob o pseudônimo de Lara, uma série de textos críticos em tom de mofa a respeito da obra de João José de Sousa Meneses, reunidos sob o título de “Cousas”. (Jornal da Tarde, 2 mar. 1870, n. 106, p. 1). Disponível em: . Acesso em 5 mai. 2018. 24 A veia irônica do comentário crítico de Castro Alves ao colega das letras desnuda uma faceta incomum às representações mais correntes que se têm sobre o poeta. Antevisto como Poeta dos escravos e Poeta da liberdade – bem como também libertário – a correspondência humorística apresenta não o cantor tribunício de retórica fácil e altissonante, mas o escritor afeito à pilhéria e ao gracejo dos quadros variados da crônica jornalística. Nas palavras jocosas de Libório depreende-se uma manifestação inabitual do mito donjuanesco na obra do baiano, fatura das leituras realizadas em Álvares de Azevedo, um dos modelos de inspiração do escritor. Em abril daquele mesmo ano de 1870, em uma carta à irmã Adelaide ainda pouco difundida pelos compiladores de sua obra4, dava sinais de estimar melhoras do quadro da débil saúde, revestindo-se de uma narcísica imagem de sedutor: Não penses que ainda estou tão doente como de lá saí, ao contrário sou hoje um bom cavaleiro, e as tabaroas olham com certos olhos que me fazem desconfiar de uma boa presença... (são vaidades de doente!) [...] Comer leite, galopar, ver flores, ler o “Cosmos” e reler o meu Byron e o “Homem que ri” – eis os afazeres de teu irmão. [...] Aí vão 3 poesias para tu leres; delas tira apenas “Os versos de um viajante” para copiares nas “Espumas Flutuantes” onde a colocarás na ordem que quiseres. (O Malho, 19 abr. de 1934, p. 28)5 Representava-se como cavaleiro galante que despertava o fascínio das acanhadas sertanejas do interior baiano mediante àquela ilustre presença. Curiosamente revelador, entre as leituras de cabeceira, figurava a do inglês Lord Byron, um dos expoentes da literatura romântica que, com o seu Don Juan (1819-1824), também havia se ocupado do velho motivo espanhol. É de se supor, entre os poemas deixados pelo inglês, a leitura absorvente por Castro Alves daquela obra, tendo em vista que, dois meses antes (Fevereiro de 1870), escrevia os 4 A carta em discussão permaneceu inédita até o ano de 1934, quando uma entrevista à irmã do poeta, coordenada pela redação da folha fluminense O Malho, tornou-a, enfim, pública numa matéria que veio à estampa sob o título de “Poetisa aos oitenta anos”. Tratava-se da irmã dileta de Castro Alves, à ocasião octagenária, que divulgava esta preciosa missiva datada de 23 de abril de 1870 e escrita em Curralinho, residência sertaneja da família. Dispusemos do texto do jornal, uma vez que as edições dos biógrafos anteriores à cobertura da matéria em O Malho, obviamente não o puderam contemplar em brochura. Ainda assim, após a transcrição para aquela folha nos anos 1930, não encontramos a carta constando em sua integralidade nas edições posteriores àquele ano. Eugênio Gomes, autor de Obras Completas (1997), apresenta-no-la, a partir de uma fotocópia a que teve acesso, sem as linhas iniciais as quais referendamos no corpo do nosso texto. Também Lopes Rodrigues Ferreira, no terceiro volume de Castro Alves (1947), não a traz entre os inéditos da epistolografia associada ao poeta, recuperando alguns entrechos contidos no volume 1 de seu trabalho sobre o poeta (FERREIRA, 1947, v. 1, p. 396-397). Para efeito de maior ampliação da publicidade de seus inéditos, transcrevemo-la em sua inteireza – e já com os acertos ortográficos da norma vigente – na seção de anexos a partir da matéria divulgada pelo jornal fluminense referido. 5 Disponível em: . Acesso em 5 mai. 2018. 25 Versos de um viajante como a carta faz alusão e cujos versos diziam: “Tenho saudades... ai! de ti, São Paulo,/ - Rosa de Espanha no hibernal Friul –/ Quando o estudante e a serenata acordam/ As belas filhas do país do sul.// [...] Quando eu sonhava nos morenos seios/ Das belas filhas do país do sul” (ALVES, 1997, p. 137). Representação característica ao Don Juan de Byron dada à ênfase à mobilidade do herói a terras distantes e aos variados namoros de bordo que estão presentes nesta obra do escritor europeu. É certo que Castro Alves havia se ocupado de traduções de outros textos do Lord inglês em dezembro do ano anterior. A uma taça feita de um crânio humano e As trevas, ambos integrados às Espumas Flutuantes (1870), são transposições para o português inspiradas em poemas de Byron e datadas respectivamente de 15 e 23 de dezembro de 18696. Porém, nada desautoriza o mergulho mais fundo do poeta nas leituras byronianas, entre as quais despontaria o Don Juan (1819-1824), visto que dedicava atenção ao tema já em 1868, em São Paulo, e em 1869, no Rio, quando dava forma ao drama D. Juan, ou a prole dos saturnos7. De retorno à Bahia, em 28 de janeiro de 1870, cobrava do amigo Cornélio, que o havia hospedado na Corte, a peça dramática, esquecida numa caixa: “Manda o D. Juan, que ficou dentro da caixa do chapéu. Quem tal diria? Um conquistador...” (A Luis Cornélio dos Santos – ALVES, 1997, p. 759). No comentário lacônico ao amigo, fazendo referência às circunstâncias adversas ao estado de sua saúde, não deixa escapar o abalo moral a que se entregava, mal disfarçado pela pilhéria alusiva ao conquistador que imaginou um dia ter sido. Mais uma vez, Don Juan era o modelo da cultura popular no qual o poeta se projetava para a constituição de uma identidade masculina. Imagem delineada, outras vezes, por uma impressão romântica sobre a realidade circunstante como fazia crer em carta ao irmão Guilherme, três meses depois de escrever a Cornélio, quando sentia a doença do pulmão lhe dar uma trégua: Dou-te a agradável notícia de que estou melhor, graças ao ar, à calma e mais alguma coisa. Todo dia passeio a cavalo por serras e vales ao amanhecer. Sou um magnífico cavaleiro andante nestas paragens solitárias, mas poéticas. (A Guilherme de Castro Alves – ALVES, 1997, p. 762) 6 Castro Alves havia traduzido os poemas Lines Inscribed upon Cup Formed from a Skull e Darkness, presentes em The Poetical Works of Lord Byron. Um terceiro poema O prisioneiro de Chillon, tradução de The Prisoner of Chillon, revelado a público como inédito por Lopes Rodrigues em 1947, não apresenta, porém, qualquer nota indicativa de datação. 7 Daqui à diante A prole dos saturnos. 26 Os reveladores testemunhos recolhidos na epistolografia deixada por Castro Alves nos dão ciência não apenas da intimidade familiar gozada com os seus pares, mas deixa claro, de igual sorte, como a familiaridade com o tema de Don Juan perpassava a linguagem da prosa diária do poeta a tal ponto deste se ver personificado na figura do espanhol. Essa rede de narrativas colhidas da vida íntima do escritor, aliada aos depoimentos que se seguiram à sua morte, deram impulso ao aparecimento de uma crítica empenhada em estabelecer o paralelo entre o homem e o mito do sedutor. Nos primeiros anos de formação de um juízo crítico sobre a obra de Castro Alves, prevaleceram os estudos apreciativos voltados para a preferência ao biografismo em detrimento do estético, o que favoreceu para ratificar a impressão inicial da presença do mito de Don Juan ancorada nos lances anedóticos da vida do poeta, desprezando- se, portanto, a análise comparada com o texto literário. Duas linhas de pesquisa concorrem para a compreensão do donjuanismo nas realizações literárias de Castro Alves. Uma, mais tradicional e pioneira nos estudos sobre o poeta, de forte apelo biográfico; a outra, direcionada ao estudo do mito literário pela análise comparada de textos. A primeira reúne trabalhos imprescindíveis à fixação dos textos dispersos do poeta e ao estabelecimento de uma fortuna crítica a seu respeito, e nos quais se impõem as contribuições dos estudos de Múcio Teixeira, Xavier Marques, Afrânio Peixoto, Lopes Rodrigues, Urbano Tavares Rodrigues; a segunda, comprometida com a seleção e o diagnóstico dos textos do autor onde se repercute a incidência do mito literário, direcionada ao comparativismo literário, e na qual se destacam o pioneirismo de Jamil Haddad e os trabalhos acadêmicos mais recentes de Maria do Carmo Pinheiro Mendes e Tereza Cristina Mauro. Ao analisarmos o panorama da crítica literária sobre o escritor, no tocante à ressonância deste motivo literário em seus textos, impõe-se o juízo crítico formulado nas impressões biográficas de uma convenção que o definiu como poeta galante e sedutor. Desta imagem estereotipada de incorrigível amante e de romântico sensual, consolidou-se uma longa tradição de trabalhos ensaísticos sobre o autor que reforçou o entendimento geral e inequívoco de uma ampla produção poética nascida sob a inspiração do mito espanhol. Na verdade, durante os anos seguidos à morte do poeta, crítica e biografia se retroalimentaram, nesse sentido, para a fixação da imagem de um Don Juan sedutor. Ambas se constituíram, no decurso dos estudos castroalvinos, pela dependência mútua desta representação literária, tornando inglória ao pesquisador a tarefa de rastreio das origens histórico-literárias que dessem sustentação teórica a esta convenção. 27 Não nos constam, porém, até o presente momento, estudos críticos sobre a incidência do mito literário na obra de Castro Alves efetuados pelo rastreio histórico a fontes textuais8 de escritores que tomaram o personagem de Don Juan como argumento poético de seus trabalhos. O mito de Don Juan, no tocante à definição das fontes textuais de inspiração literária, ainda não recebeu o seu devido lugar de destaque entre os estudos críticos sobre o poeta baiano. Essa constatação a que se viu entregue o mito espanhol, ou seja, relegado ao esquecimento da pesquisa histórico-literária, não é, porém, atribuída à importância secundária que o motivo poético assumiu nos estudos castroalvinos; nem também é reflexo da omissão e da indiferença dos primeiros críticos de Castro Alves no intento de precisar as marcas intertextuais dessa presença literária na obra do escritor. Outros temas recorrentes na lírica do poeta, a exemplo da natureza americana, do drama do negro cativo, do ideal republicano, entre vários, padecem do mesmo problema. Falta um levantamento seguro dos suportes literários onde grassavam esses temas e que modelaram as composições artísticas do poeta baiano. A obra de Castro Alves se mostrou bastante generosa na indicação de suas preferências literárias. Nos textos do autor, sobram as citações em epígrafe que adornam os seus poemas inspirados, algumas vezes até, estampadas de entrechos de duplos empréstimos e de variado repertório idiomático, embora se sobreponha, em geral, o vernáculo francês. Compreender a modalidade de donjuanismo empregada no curso das realizações literárias que compõem a obra legada por Castro Alves pressupõe, de igual modo, melhor entender o círculo de leituras a que o poeta se ligou, a sorte de empréstimos de que se valeu em seus trabalhos, as condições culturais nas quais vivenciou a experiência da troca literária, e a 8 A noção de fonte textual, como antes aventada, segue o entendimento disposto por Michel Espagne, pesquisador e historiador francês largamente explorado no grupo de estudo de Márcia Abreu (2014) a propósito das transferências culturais transatlânticas. Espagne (2013), ao definir, entre outros conceitos, o de fonte, não vislumbra uma relação casual da passagem de um texto primeiro de partida para um segundo, ou texto de chegada, quando um escritor se apropria de uma leitura como modelo de inspiração a seus trabalhos. Não se trata, porém, de uma transposição arbitrária (de produtos culturais de um centro específico a um espaço de acolhida) na qual as trocas se dão de forma vertical e banal, sem que se perceba uma apropriação significativa destes empréstimos no espaço de acolhida. É menos uma questão de mera circulação dos produtos importados, tratando-se, em essência, de trocas simbólicas entre dois contextos que promovem, por fim, uma reinterpretação do bem de acolhida. Logo, o pesquisador que se coloca nesse cenário de trocas não pode se entregar ao estudo abandonado do interesse de precisar as condições histórico-culturais que permeiam essa troca simbólica. A fonte nas transferências culturais, antes de um mero texto desconectado de seu panorama histórico, é estudada como produto cultural promotor de contínua renovação artística. Esta compreensão de empréstimo de fontes literárias, longe de ratificar um discurso eurocêntrico comum aos primeiros estudos comparativos, está a serviço do reconhecimento do valor e da autonomia das literaturas dos países fora dos grandes centros econômicos europeus como o Brasil e os outros países latino-americanos emergentes, bem como outros situados no Oriente e Leste Europeu, também consumidores do mercado editoral majoritariamente francês no século XIX. Procedemos à pesquisa histórica destes impressos transatlânticos a fim de reconfigurar as leituras que fizeram fortuna no tempo acadêmico de Castro Alves e que amplamente vêm sendo resgatados em recentes trabalhos acadêmicos sobre a recepção textual transatlântica no país. 28 definição concedida à obra resultante do processo de assimilação destas fontes textuais motivadoras. Isso porque a entrada dos empréstimos textuais neste poeta romântico, em especial, naquilo que mais o notabilizou, o emprego das epígrafes, assume, como veremos à frente, sentidos bastantes divergentes do pensamento crítico oficial, fazendo de sua obra um verdadeiro objeto de análise para estudo de caso. Empreender uma avaliação da sorte dos intertextos epigráficos que ilustram suas tantas composições implica num trabalho de reconstituição da atmosfera intelectual na qual o escritor se inseriu, mas também, em termos mais pragmáticos, definir os suportes literários de onde foram pinçados estes empréstimos. Evidentemente, a pesquisa histórica dessas fontes não constitui um fim em si mesma, mas um valor instrumental na direção de melhor entender as manifestações do mito literário em Castro Alves. Esse, contudo, é um dos desafios a que se entrega a pesquisa do motivo literário de Don Juan na condução das recriações textuais realizadas pelo poeta baiano. Outro também diz respeito à revisão dos textos originais onde se encontra essa presença mítico-literária. A obra de Castro Alves, estando eivada de incorreções e classificações controversas, carece de uma revisitação aos manuscritos e aos primeiros comentadores que deram início à formação de uma fortuna crítica a seu respeito, a fim de que possamos ter um entendimento mais equilibrado e seguro sobre a apreciação dos motivos literários que o autor soube artisticamente explorar. Logo, faz-se necessária uma pesquisa amparada na revisão literária do texto castroalvino para avaliarmos e redefinirmos a importância de cada sugestão de leitura a que deu o baiano na apreensão particular do mito de Don Juan em suas recriações literárias. De antemão, deixamos claro, a partir do que foi inventariado para esta nossa pesquisa, que o mito literário esboça um desenho não tão convencional como foi traçado a respeito da imagem popular que se definiu sobre o autor de Espumas Flutuantes. Há várias matrizes e matizes temáticos e formais que devem ser estudados na recepção literária do personagem sevilhano na obra do baiano. A nosso ver, se julgarmos todas as incidências textuais consultadas, o mito de Don Juan se apresenta, na obra de Castro Alves, de maneira multifacetada como o é o mosaico de referências textuais que encabeçam seus poemas: uma eclética biblioteca catalogada nas sumárias citações epigráficas. Ao viver um período de transição em que o mito sofria um processo de esgotamento natural como motivo poético, Castro Alves pôde acolher diferentes nuances temáticas sobre as versões literárias que leu, orientando a cada sugestão textual assimilada uma percepção particular e conveniente para a configuração de suas composições originais. É desta indeterminação em situar as referências de leitura nos textos castroalvinos que resulta o impasse dos estudos comparativos atuais em 29 formular um juízo crítico menos tradicional e, em nosso entendimento, mais consistente da presença do mito literário na obra do escritor. Deixamos claro também que as ocorrências literárias desse mito no intertexto castroalvino não são tão evidentes como se pressupõe, conferindo ao conjunto de seus escritos uma aparência difusa e fragmentária. Curiosamente, no tocante ao ostensivo quadro de suas epígrafes, não encontramos, em toda extensão da obra do escritor, qualquer referência direta da incidência de versões possíveis do mito de Don Juan. As referências mítico-literárias que rastreamos para a proposição de nosso corpus foram concebidas por outras relações transtextuais como citações de personagens, subtemas evocados, lugares-comuns e argumento textual, reconhecíveis no cotejo textual às versões preexistentes a Castro Alves. Folheando o epistolário do poeta não há também indícios robustos de que este tenha se servido de uma ou outra versão literária das já existentes, à sua época, sobre o sedutor espanhol. Ressentem-se os estudos de literatura comparada no Brasil, de igual modo, da inexistência de uma tradição histórico-literária de biografias e journaux intimes como as prestigiadas e sabidamente divulgadas no romantismo europeu9. Recorremos, portanto, às memórias e testemunhos deixados por figuras próximas ao poeta, depoimentos de familiares e, sobretudo, à consulta a periódicos oitocentistas por onde Castro Alves trafegou a fim de reconfigurar o painel de leituras onde incide o mito literário de Don Juan. Todos os procedimentos tomados para a averiguação histórica das fontes de leitura solicitadas pelo poeta estão em sintonia com a delimitação das composições onde a referência textual se revela explícita e diretamente relacionada ao mito literário. Não nos ocupamos, portanto, dos textos castroalvinos nos quais a menção intertextual ao mito literário é mais vaga e dispersiva, resultado da confluência do donjuanismo como generalidade de sua expressão com outros mitos literários da tradição literária ocidental e que, embora mantenham tematicamente pontos de contato com aquele, apresentam uma configuração própria e exclusiva. Desta 9 Entre aqueles que cultivaram o gênero do journal intime na Europa, destacaram-se personalidades literárias como Goethe, Byron, Stendhal, Tolstoï e Kierkegaard, para ficarmos apenas nos mais conhecidos. Apesar de sua flexibilidade em relação aos padrões normativos dos gêneros literários tradicionais, o journal intime, ainda que mantendo uma estrutura fragmentária, muito contribuiu na reconstituição da história do pensamento cultural europeu. Registrando as impressões e os sentimentos em notas diárias do seu autor, tornou-se muito popular sobretudo no século XVIII na Inglaterra com a erradicação progressiva do analfabetismo, ganhando enorme adesão nos Oitocentos romântico europeu. (GORP et al., 2005, p. 266). Muitas vezes tornado público, saindo da esfera da intimidade que o recobria, tornou-se uma modalidade de texto literário na fronteira do relato e do estético. No Brasil, Joaquim Nabuco foi um dos raros, já no final do século XIX, a cultuar o gênero com sua conhecida Minha formação (1900). Para melhor entendimento sobre o assunto cf. DIDIER, Béatrice. Le journal intime. France: PUF, 2002. 30 maneira, não entram para a composição deste trabalho, salvo rara exceção, considerações ajuizadas a propósito dos exemplares amantes representativos desta tradição da modernidade europeia como o Romeu de Shakespeare, o Don César de Bazan de Victor Hugo, o Lovelace de Samuel Richardson, o Valmont de Choderlos de Laclos, ou ainda, a figura popular do libertino conquistador que inspirou Da Ponte para o libreto do Don Giovanni (1787), Giacomo Casanova. Quando nos lançamos à varredura dos textos a que o poeta pôde ter acesso, surpreendemo-nos com leituras improváveis e que não figuram no nosso atual cânone literário. Poetas desconhecidos da crítica tradicional que sugerem facetas desconhecidas da obra do baiano e que trazemos à baila para entender o sentido que este último tomou de empréstimo àqueles nas solicitações de leitura do mito de Don Juan. Escritores que, embora representativos em seu tempo, encontram-se hoje à margem do cânone literário romântico, alguns deles desconhecidos por completo da crítica contemporânea. É o caso do olvidado João Cardoso de Menezes e Souza (1827-1915), o barão de Paranapiacaba, autor de Harpa Gemedora (1849) e Octavio e Branca (1849), duas obras epigônicas de orientação ultrarromântica que inspiraram, respectivamente, Castro Alves na concepção de Mocidade e Morte (1864) e de Pesadelo (1863), este último objeto constitutivo de nosso corpus. Praticando um modelo de donjuanismo de extração byroniana, o poema Octavio e Branca nos propõe uma compreensão mais larga dos influxos de leitura do poeta baiano, muitas vezes, restrito pela crítica castroalvina ao byronismo exercido por Álvares de Azevedo em Noite na Taverna (1855). Outra leitura improvável na mesa de estudo do poeta é a do escritor francês Benjamin Gastineau, novelista ainda hoje pouco aludido na historiografia literária de seu país, e que cultivou também uma modalidade de donjuanismo singular, longe do realizado nos grandes centros europeus, propondo um resgate do exotismo árabe na elaboração de seu personagem sedutor. A Condessa negra, uma de várias novelas de sua Odisseias Argelinas10, foi, por algum tempo, familiar à nossa mocidade acadêmica nas províncias do Norte do país, e auxiliou a Castro Alves, num primeiro momento, na apreensão do mito literário de Don Juan por vias não convencionais de leitura. 10 É curioso anotar que as Odisseias Argelinas não receberam esse título em sua divulgação no território nacional brasileiro. A versão francesa respondia pelo título “Les femmes et les moeurs d’Algérie” (As mulheres e os costumes da Argélia), e também apresentava a novela A Condessa Negra como parte integrada aos capítulos- novelas constitutivos do livro de Benjamin Gastineau. 31 Assim também procedeu a Marques Rodrigues, estudante da Faculdade de Direito em Recife nos anos de 1850, responsável, consoante nossas pesquisas, pela primeira tradução para o português do conto Don Juan do escritor prussiano romântico E. T. A. Hoffmann. A tradução de contos hoffmannianos para o círculo do consumo literário entre os estudantes acadêmicos em Pernambuco revela uma prática esquecida dos estudos críticos sobre Castro Alves e que diz respeito à moda vigente do fantástico e do gótico que esteve sempre presente entre os escritos deixados pelo poeta. Situado num período de transição entre o ultrarromantismo e o condoreirismo hugoano, não pôde Castro Alves desprezar essa fatura da tradição romântica que o acompanhou até os últimos anos de sua vida, a despeito da opinião geral que se construiu sobre a imagem do poeta autorrefletida em Victor Hugo. Esse rastreio a fontes literárias diversas de que se dispôs Castro Alves para suas composições nos auxilia a recompor o quadro panorâmico de suas leituras no qual a figura do mito de Don Juan assume contornos e sentidos particulares na representação da imagem vulgarizada do sedutor. Tendo o mito incorporado múltiplas versões à sua forma literária original, atribuída ao engenho de Tirso de Molina, comediógrafo autor de O Burlador de Sevilla (1630), o trabalho de reconhecimento das fontes textuais a fim de melhor perceber a modalidade do mito empregada em determinado escritor-alvo é, com efeito, uma tarefa que exige uma imersão em textos literários diversos e entendimento das condições de aclimatação e de assimilação literária. Do Barroco espanhol ao advento do Romantismo na Europa, o mito de Don Juan conheceu gêneros e tratamentos variados que promoveram a popularização do personagem literário, alçado à condição de motivo poético entres os escritores no século XIX até o natural esgotamento temático em decorrência da insurgência do Realismo. Entre os que se renderam ao fascínio literário do sedutor andaluz, destacam-se o aludido Tirso de Molina, que o transpôs no século XVII da oralidade popular para o texto dramático, e Molière na França de Luis XVI; Da Ponte e Mozart na forma operística de Don Giovanni, encenada às vésperas da Revolução Francesa; E. T. A. Hoffmann com a reinterpretação da ópera destes últimos para a narrativa do conto fantástico na Alemanha; Balzac, Mérimée e Théophile Gautier, novamente na França, dando sequência à tradição contística legada por Hoffmann na imprensa local; Espronceda e Zorrila, resgatando ao teatro espanhol a importância do mito legado a Molina. É certo que o número de cultores do velho motivo literário nascido do cancioneiro espanhol não se restringe aos nomes acima arrolados, apresentando, portanto, um leque muito 32 maior de autores que se debruçaram sobre o tema. Ressaltamos, todavia, essas fontes de leitura como, em parte, paradigmáticas para o sentido configurado do donjuanismo que o poeta baiano concebeu de sua reinterpretação do mito na elaboração das composições literárias que realizou. Os escritores em destaque, de igual sorte, compondo o cânone da tradição literária sobre o mito, servem-nos de medida à análise comparativa textual, uma vez que constituíram a referência de leitura no recorte textual feito pelos últimos estudos castroalvinos e do qual divergimos parcialmente. Julgamos que a seleção literária compilada por Castro Alves envolve nomes familiares aos círculos de leitura de que o poeta participou especialmente em Recife e em São Paulo, somando nomes consagrados a exemplo de Byron e Shakespeare aos poucos festejados Benjamin Gastineau e Cardoso de Menezes, como já referidos. Tendo em vista a extensão do quadro de leituras a respeito do mito de Don Juan na obra de Castro Alves e proposto nos últimos anos pela crítica do poeta, fazem-se necessários o resgate histórico da entrada desses textos no Romantismo brasileiro e o estabelecimento de como se deu a apropriação particular de cada leitura solicitada pelo escritor a fim de definir sua concepção literária do mito na condução de seus trabalhos escritos. Para além da representação anedótica do poeta baiano como sedutor contumaz, a obra de Castro Alves nos fornece pistas, ainda que esparsas, dos textos literários nos quais o motivo espanhol é contemplado e que serviram de orientação artística aos poemas e ligeiras narrativas que o escritor nos deixou. Quais seriam, portanto, as modalidades textuais em que o tema se viu apreciado e que serviram de influxo às peças literárias do poeta baiano? Como e em que condições pôde ele se valer destas solicitações de leitura na condução de uma obra que, sem o tempo devido de revisão em razão da morte prematura e anunciada, ainda sim conheceu contornos diferentes, a exemplo do ultrarromantismo, do fantástico e do gótico, e do drama romântico, como igualmente expressões de seu donjuanismo literário? Mais de um motivo apontaria para o caráter difuso e fragmentário do tema de Don Juan na obra castroalvina. A vida efêmera que não lhe permitiu o arranjo cabal de seus escritos, o momento de transição que o poeta vivenciou do ultrarromantismo à poesia social de moda hugoana, a mobilidade em centros acadêmicos e culturais distintos (Bahia, Recife, São Paulo, Rio de Janeiro), a própria indefinição histórica do aporte textual do mito literário no Romantismo local, constituem indícios da dispersão do tratamento do motivo literário como unidade temática. 33 Entretanto, a reconfiguração do cenário de leitura e a compilação das solicitações dos empréstimos literários facultadas pela pesquisa histórica nos fornecem um panorama promissor para as manifestações literárias do mito que estão presentes na obra de Castro Alves. A pesquisa às fontes variadas da manifestação literária do mito de Don Juan ainda mesmo nos auxiliou no reconhecimento de textos do poeta baiano potencialmente associados à temática do sedutor espanhol e até agora não apreciados pela crítica literária acadêmica. Dos textos castroalvinos em que reconhecemos o paralelo direto com o mito literário, seis foram delimitados para o nosso corpus em afinidade com a solicitação de leitura literária que cada composição exigia ao tempo de sua confecção. Não prescindindo da pesquisa histórica para a seleção das peças elencadas para a análise comparada no último capítulo de nosso trabalho, deixamos em evidência as seguintes composições do escritor: “Pesadelo” (1863), “Crônica Jornalística” (1864) e “A prole dos saturnos” (1869). No próximo capítulo, exporemos o posicionamento dos estudos castroalvinos no tocante ao tratamento literário do tema de Don Juan na obra do poeta e as dificuldades encontradas por seus críticos na determinação das fontes de leitura como um problema reconhecido de revisão e de recepção de seus textos literários. Sem uma definição mais precisa das manifestações diversas do mito literário a que o poeta pôde recorrer, restringe-se o universo das leituras textuais solicitadas por Castro Alves. Recolocando em cena escritores até então esquecidos do cânone literário tradicional, podemos perceber outras modalidades de donjuanismo praticado pelo poeta baiano, ampliando o horizonte de suas leituras acadêmicas, e revogando o direito da compreensão do tema em questão pela análise comparada do texto literário em detrimento do direcionamento crítico tradicional voltado ao biografismo. 34 2. O PROBLEMA DAS FONTES E A PALAVRA DA CRÍTICA O estudo do mito de Don Juan no Brasil nos impõe inúmeros desafios. A confluência entre os gêneros dramático, lírico e narrativo que se viu promovida com o advento do Romantismo é particularmente um deles. No século XIX, os limites que os separavam se tornavam cada vez mais tênues. A própria evolução histórica a que sofreu o mito literário do Barroco às modalidades variadas de romantismo praticado na Europa nos dá uma dimensão deste quadro. Textos que se interpenetram, renovando o debate sobre o mito, combinando-se a outras legendas e outras literaturas, inclinando-se às demandas estéticas da moda vigente, e, por vezes, respondendo a implicações de natureza subjetiva ligadas ao escritor. Somadas a isso, agora em nosso cenário nacional, estão as várias lacunas históricas do material investigativo da memória dos Oitocentos no Brasil, alguns em condições penosas de conservação, reflexo do tratamento dispensado pelas autoridades governantes de nosso país. A literatura já naquele tempo não poderia, afinal, ser entendida diferente de passatempo da mocidade, mero diletantismo: O preconceito contra a literatura criava uma situação ambígua e curiosa. De um lado, havia a pressão dos homens de siso, que só admitiam versos e romances como uma crise da mocidade, e consideravam poetas e romancistas maduros como sonhadores perigosos, inadaptados à vida prática e incapazes de enfrentar questões sérias, como política. [...] Nesse sentido, liberais e conservadores, com raríssimas exceções, concordavam em todos os pontos. (MACHADO, 2001, p. 170-171) [grifos do autor] Farta e valiosa documentação que se perdeu, extraviou-se, ou permanece atualmente em precárias condições de manipulação ou restrita a exemplares únicos e de difícil acesso público. Exemplo do descaso às letras do país é a situação em que se encontra hoje o Diário da Bahia, material investigativo de extrema relevância aos estudos do poeta Castro Alves. Órgão aclamado da imprensa periódica oitocentista, o jornal baiano é um dos vários casos existentes sobre as condições em que se encontra entregue o nosso patrimônio histórico-cultural. Numa consulta à Hemeroteca Digital, apenas estão acessíveis à navegação digital três periódicos em intervalos de tempo fracionados do Brasil Império: Diário da Bahia (1833-1838), Novo diário da Bahia (1837-1838) e Diário da Bahia (1882-1889). Como se vê, há uma enorme lacuna entre o período da existência do poeta baiano e uma década depois de sua morte, o que deixa o pesquisador à mercê da credibilidade das fontes secundárias ou comentários de matéria 35 noticiosa a respeito do poeta. Sobre o estado de conservação em que se encontra o veículo a pesquisadora Maria Teixeira nos dá nota: É sabido que, apesar do avanço tecnológico na área da preservação de documentos impressos em papel e da existência de centros no Brasil especializados na restauração de obras raras, até o presente momento não é possível restaurar o suporte dos jornais. A matéria prima utilizada na impressão deste tipo de periódico é de baixa qualidade, tornando-o muito vulnerável, e uma vez vítima da ação do tempo e da ação predatória do homem não terá condições de ser reconstituído através dos procedimentos de restauro disponíveis e adequados aos vários tipos de papel. No caso específico da coleção do Diário da Bahia, restam apenas duas alternativas: submetê-los ao processo de transferência de suporte ou resgatá-los via transcrição dos textos sobre os mais variados assuntos constantes em cada exemplar da referida coleção. (TEIXEIRA, 2006, p. 2030) Diante deste panorama pouco alentador para a pesquisa histórica das fontes literárias que constituíam o cenário de leitura de nossos escritores no Brasil Império, a realização de um trabalho voltado para o estudo comparativo de um mito como o da envergadura de Don Juan se afigura como uma atividade aparentemente inoperante. Entretanto, a disponibilização de periódicos e revistas pela versão digital da Biblioteca Nacional Brasileira (Hemeroteca Digital), pela Biblioteca Digital Luso-Brasileira e pela Biblioteca Nacional de Uruguai (BIBNA) fornece-nos hoje, senão uma compreensão definitiva sobre a recepção deste mito na formação intelectual dos nossos românticos – e, em especial, de Castro Alves –, ao menos, aponta caminhos alternativos e favoráveis a uma interpretação da realidade local neste tocante11. Em pleno século XXI, Castro Alves é ainda, do nosso cânone, um escritor cuja obra impõe desafios à aventura crítica dos pesquisadores. Isso, em parte, porque muitos dos obstáculos apontados por seus estudiosos para uma melhor compreensão de sua produção literária ainda se mostram sem solução aparente. São problemas da ordem de organização do seu espólio legado, de editoração, de revisão, de ortografia, de comentários e de informações enviesadas, e, sobretudo, interesse maior de nossa pesquisa, do rastreio mais amplo das fontes textuais de seus empréstimos literários. Mais de um de seus estimados críticos detectou este impasse de revisão do poeta. Cláudio Veiga o sinalizou em suas traduções e na necessidade de acerto tipográfico12 de sua obra. Em um dos vários trabalhos do crítico sobre a influência 11 Informaremos sobre a importância desse acervo digital no segundo capítulo deste nosso trabalho. Em A Pátria, um dos periódicos disponíveis digitalmente pela Biblioteca Nacional Uruguaia, encontramos uma novela-folhetim, A Condessa Negra, uma das várias narrativas de Odisseias Argelinas de Benjamin Gastineau, que foi reintegrada à seleta da Biblioteca Literária, série de coletâneas de textos literários originais brasileiros e europeus que eram vendidos a baixo custo aos estudantes das províncias do Norte do país. 12 Chamou à atenção do estudioso as várias edições que alternavam a data histórica de um de seus poemas, “Jesuítas” de Espumas Flutuantes, referente à chegada dos jesuítas no Brasil que, ao invés de dever constar o 36 francesa em Castro Alves, reconhece o problema de uma necessidade de revisão de seus escritos que se veem enodoados por erros grosseiros passíveis de serem imputados ao poeta: A leitura de traduções feitas por Castro Alves mostra a necessidade de uma edição crítica de sua obra. É preciso corrigir erros que não são de sua responsabilidade, erros que enodoam suas traduções e se perpetuam em edições sucessivas. Trata-se, sem a menor dúvida, de erros cometidos por copistas ou impressores. É o que mostra, com a maior evidência, um confronto com o original francês. (VEIGA, 1986, p. 82-83) Jamil Haddad, responsável pela primeira revisão das fontes literárias consultadas pelo poeta, reconhece o problema na indicação das personagens literárias em sua obra13. O autor de Revisão (1953), retificando Afrânio Peixoto, autor de Obras Completas (1921), devolve aos estudos de crítica literária alguns personagens de Castro Alves colhidos em Álvares de Azevedo e aos quais o segundo julgava ser figuras da mocidade errante do poeta baiano. Dando esclarecimentos sobre a incidência das leituras azevedianas apropriadas por Castro Alves, o crítico assim se pronunciava: Identifica Afrânio Peixoto os vários anjos (referindo-se ao poema “Os Anjos da Meia-Noite”) com o antigo vezo de assentar a arte inteira do poeta em base inteiramente biográfica. [...] Já Bárbora não é uma prostituta que Castro Alves conhecera, mas um nome de meretriz tirado de “A Noite na Taverna”. (HADDAD, 1953, v. 3, p. 231) Anderson Horta, por seu turno, chama a atenção para os lapsos de copistas e tipógrafos na transposição dos versos que estamparam as sucessivas edições da obra do escritor. Horta (2013), conhecido pelo seu revelador ensaio “os ‘erros’ de Castro Alves”, aponta os erros da tradição crítica formada sobre a expressão verbal no poeta e tida frequentemente como desvios linguísticos, mas que, muitas das vezes, mal interpretada por equívocos criados entre copistas século XVI, apresentava o XVIII, e até mesmo, XIII, na versão mais atual de Obras Completas, a de Aguilar. Esta última edição, a propósito, é a que adotamos para o nosso trabalho por ser a mais recente, a de 1997, sendo a terceira reimpressão da segunda edição de 1976, corrigida e comemorativa do sesquicentenário do poeta. Entretanto, o erro grosseiro permanece à página 126. Problema solucionado pelo professor Veiga ao confrontar todas as edições a que teve acesso e cruzá-las com a edição original de 1870 de Espumas Flutuantes. 13 Esse é um dos entraves recorrentes ao mergulho nas fontes de leitura em Castro Alves e da qual nos ocuparemos mais à frente na análise de três dos seis textos selecionados de nosso corpus: “Pesadelo”, “Crônica Jornalística” e “A prole dos saturnos”. Haddad é, entre os aclarados críticos do poeta, o primeiro a se ater no desenvolvimento de estudos comparados direcionados ao rastreio das fontes literárias solicitadas como leitura pelo escritor baiano. Entretanto, o estimado crítico deixa-se trair pelo mesmo problema da sedução biográfica como veremos na análise do poema “Pesadelo” ou no equívoco à atribuição do nome da personagem Marion de “Boa Noite” – clara leitura do poema ‘Rolla’ de Alfred de Musset – à leitura de Byron (Ibid. p. 133), uma vez que o próprio Álvares de Azevedo já o havia traduzido e o assinalava assim em uma de suas críticas literárias: “Marion, a mulher da última noite de Rolla, não a imagineis a messalina impudica” (AZEVEDO, 2000, p. 683). 37 e tipógrafos, tratavam-se, antes, de licença poética adotada pelo autor ou do respeito ao registro comum à linguagem de seus antecedentes românticos. Outro lapso clamoroso ligado à necessidade de revisão de seus escritos está na atribuição dada a obras de classificação duvidosa, para as quais o juízo crítico geral até hoje consente com o entendimento dos ensaios pioneiros sobre o autor. É o caso, por exemplo, da suposta peça dramática “Os pomos do meu pomar”, uma cançoneta inspirada, segundo nossa avaliação, em Victor Hugo e preparada para um entreato da companhia do empresário português Duarte Coimbra onde atuava a atriz Eugênia Câmara – e que a crítica reproduz como um drama traduzido do francês – como mostra este anúncio publicitário do periódico Diário de Pernambuco14: 14 Disponível em: . Acesso em 5 mai. 2018. Figura 1: Anúncio publicitário da Empresa de teatro Coimbra, dando nota sobre o espetáculo O gaiato de Lisboa, seguido da cançoneta Os pomos do meu pomar e da comédia O judas em sábado de aleluia. Diário de Pernambuco. 6 de dez. 1866. p. 2. Fonte: http://memoria.bn.br/ 38 Alfredo de Carvalho, influente estudioso do poeta, é quem nos dá a notícia de maneira oblíqua no seu apreciado ensaio Estudos Pernambucanos. É bastante aceitável a informação truncada do historiador e folclorista pernambucano, uma vez que este a tomou de notas do depoimento de uma testemunha ocular e amigo do poeta no Recife, Regueira Costa. Na passagem para a escrita, provavelmente as informações destoaram de seu sentido primeiro. O mesmo se dá com o registro de uma composição literária do escritor baiano, o Masaccio, grafada equivocadamente com dois zês, e que, na realidade, consistia numa referência alusiva ao pintor italiano da Renascença conhecido pelo emprego da técnica pictórica do chiaroescuro. De acordo com as nossas pesquisas, acreditamos que está cançoneta tenha sido uma das várias inspirações do poeta solicitadas a Victor Hugo. Em nosso entendimento, razões legítimas nos levam a crer nessa hipótese. Victor Hugo é a leitura que mais perdurou na trajetória da produção poética do escritor brasileiro. O autor de Os miseráveis também escreveu no exílio da Bélgica no ano anterior (1865) à aparição da cançoneta de Castro Alves nos palcos de Pernambuco uma coletânea de seus poemas intitulada Les chansons des rues et des bois (As canções das ruas e dos bosques), publicada originalmente em Bruxelas por Lacroix et Verboeckhoven. A edição parisiense de J. Hetzel, porém, é datada de 1866, ano em que os editores belgas que detinham os direitos de reprodução e divulgação desta obra de Hugo já propunham uma 4ª edição em Paris. (HUGO, 1866, p. 3). Esta informação nos faz confirmar a efetividade do comércio dos transatlânticos entre as grandes metrópoles: “O intervalo entre a publicação na imprensa francesa e na carioca equivalia à travessia de um navio da Europa ao Rio de Janeiro”. (MACHADO, op. cit., p. 44). Recife, estando na rota dos transatlânticos europeus, seria beneficiária desta aquisição do poeta francês. A alusão ao título da récita de Castro Alves para o palco do Santa Isabel remete ao poema bucólico do escritor francês Senior est Junior, onde se encontra o verso “Tous les pommiers de mon verger” (Todas as macieiras do meu pomar), sofrendo alteração para recuperar o efeito do trocadilho proposto pelo poeta pomos/pomar. Figura 2: Recorte da Figura 1, pondo em evidência a cançoneta Os pomos do meu pomar de Castro Alves. 39 Todos os críticos que pudemos consultar, de Afrânio Peixoto a Costa e Silva, reproduzem-na como peça dramática, tomando acertadas as palavras de Alfredo de Carvalho, única fonte documental, até agora, sobre esta produção literária perdida do baiano: “O autor do Gonzaga produziu ainda duas traduções de peças teatrais francesas, uma intitulada Os pomos do meu pomar, ornada de música e que foi representada no Teatro Santa Isabel, e outra, a comédia em dois atos, entremeada de cópias, denominada Clarinha e Clarim.” (CARVALHO, 1907, p. 234). A peça, na realidade, tratava-se de uma cançoneta, uma récita feita para ser declamada em palco, prática muito comum à época, entre um drama e uma comédia, o Gaiato de Lisboa e O judas em sábado de aleluia, de Mendes Leal e Martins Pena respectivamente como nos dá nota o reclame da empresa teatral portuguesa: “Findo o drama a Sr.ª Eugênia Câmara cantará a cançoneta, original francês e traduzida pelo Sr. Acadêmico Castro Alves intitulada Os Pomos do meu Pomar”. (Diário de Pernambuco, 6 dez. 1866, p. 2). É também de Alfredo de Carvalho, como já mencionado, a informação da existência de um romancete de Castro Alves, o Masaccio, extraviado pelas mãos de um entusiasta do poeta, o acadêmico paulista Campos Carvalho, e cujo registro gráfico comprometeu o olhar da crítica literária sobre o juízo da apropriação das fontes do escritor baiano15. Por esta razão, Eugênio Gomes, em notas comentadas à sua edição de Obras Completas (1997) de Castro Alves, ecoando as informações de Alfredo de Carvalho, estabelece a eventualidade de um parentesco da obra do escritor baiano com o poeta de As Noites, Alfred de Musset: Entre as suas produções extraviadas encontra-se um romancete – Mazzacio -, cujo original foi conservado durante algum tempo em poder de Regueira Costa, perdendo-se depois do prematuro desaparecimento de Campos de Carvalho, que tencionava publicá-lo em livro. O título, que longo torna lembrado o Lorenzaccio de Alfred de Musset, é tudo o que se conhece a respeito desse manuscrito. (ALVES, 1997, p. 878) O problema se perpetua em Lopes Rodrigues, outro aclarado estudioso e biógrafo do poeta, que assinala o nome da obra à maneira grafada por Alfredo de Carvalho16. Entretanto, Xavier Marques, crítico baiano responsável por umas das primeiras biografias do poeta, parece 15 A importância do nome de Campos Carvalho está diretamente ligada à perpetuação dos escritos de Castro Alves e a qual daremos melhores informações mais à frente quando propusermos a análise de seu drama A prole dos saturnos. Por ora, destacamos como o registro do título dessa obra, o Masaccio, afetou a apreciação da crítica sobre a recepção de uma das leituras mais dominantes no escritor baiano: Alfred de Musset. 16 Lopes Rodrigues, também recuperando as informações deixadas por Alfredo de Carvalho, assim se pronuncia sobre os esparsos perdidos do poeta: “‘Gonzaga’ foi a grande obra daquele momento. Seguiram-se obras menores: tradução da comédia em francês de J. Gabriel e Didier, intitulada ‘Clarinda e Clarim’; ‘Pomos do meu Pomar’. Tentou uma novela. ‘Mazzacio’, cujo manuscrito deu sumiço lá pelo Recife, privando a posterioridade dele de um romance, que daria o complemento à medida do dramaturgo e do poeta.” (FERREIRA, 1947, v. 1, p. 205). 40 o único a ter se atentado para este deslize, uma vez que registra a obra na grafia do nome do pintor renascentista Masaccio: “Escreveu uma novela intitulada Masaccio, cujo manuscrito se desencaminhou.” (MARQUES, 1997, p. 64). Tommaso di Giovanni Cassai (1401-1428), o Masaccio, pintor renascentista florentino, artista extremamente influente nas gerações posteriores à sua, foi responsável pela renovação da técnica de perspectiva do estilo gótico para o renascimento italiano. O conhecimento sobre o pintor italiano, a nosso ver, não poderia ter passado indiferente à formação humanística de Castro Alves. Seu pai, o Dr. José Bento Alves, era um homem ilustrado, fundador da extinta Biblioteca Clássica Portuguesa e de uma sociedade de Belas Artes na Bahia. (Gazeta médica da Bahia, 25 de jan. 1867, p. 163-6)17. O próprio Castro Alves apresenta uma faceta pouco conhecida e explorada desta formação. O poeta chegou a reproduzir, em desenhos e óleos, alguns quadros conhecidos pintados pelo artista romântico de ascendência holandesa Ary Scheffer, além de variadas caricaturas e esboços de paisagem que se encontram hoje, todos, sob posse da Biblioteca Nacional. Em nossa pesquisa, descobrimos ainda que uma matéria reproduzida por um jornal do Recife acadêmico, o Cidadão (1854-1855), que se encontrava desativado há 163 anos, traz um esboço biográfico do pintor florentino. Este jornal, aliás, é de estimado valor histórico-literário por trazer traduções das edições francesas de E.T.A Hoffmann e, em especial, o conto Don Juan, redefinindo a compreensão que hoje temos sobre os estudantes de direito na capital pernambucana e o círculo de leitura do qual estes fizeram e tomaram parte. Estas informações desencontradas emitidas pelos primeiros críticos do poeta, aparentemente de pouca relevância para a compreensão do mito literário de Don Juan, são, ao contrário, determinantes na maneira como a crítica ulterior se posicionou a respeito das fontes potenciais de leitura às quais o escritor supostamente havia mantido contato direto. Ao arrolarmos as leituras do Recife acadêmico de Castro Alves ao nome de Alfred de Musset, escritor que incorporou às suas composições o donjuanismo bebido em Hoffmann e em Byron, estamos assentindo com a ideia de Gomes (1997) de que o poeta brasileiro pudesse ter lido, além da peça Lorenzaccio, eventualmente também outras produções da lavra do poeta francês que exploraram o mito de Don Juan, a exemplo do poema Namouna. Algo que não nos encorajamos a defender, tendo em vista que a presença mussetiana se mostrou marcante e 17 Disponível em:. Acesso 5 mai 2018. 41 efetiva a partir dos anos de 1868 quando este se encontrava em São Paulo e, depois, no Rio de Janeiro: Predomina (período do Recife) o Castro Alves dominado por um Musset byroniano, assinalado pelo arroubo da volúpia e do prazer sexual, […] influência de como os antecedentes a Castro Alves leram-no à luz do byronismo. […] A segunda maneira (período de São Paulo e Rio) pode ser percebida pelos últimos anos de atividade poética do escritor brasileiro em que se verifica uma leitura mais profunda de Alfred de Musset. Neste momento, os temas veiculados ao Mal do Século cedem àqueles recorrentes à obra mussetiana, a saber, o amor, a mulher e a melancolia. (FERNANDES, 2012, p. 42) Em nosso entendimento, a fatura das leituras bebidas em Alfred de Musset eleva o donjuanismo de Castro Alves a um momento de maturação de sua poesia. Entretanto, sendo elas posteriores à formação acadêmica do Recife, como se explicaria uma vertente de sua poesia erótico-sensual já nos anos de 1865-1867 em que fica evidente o estilo dos versos mussetianos? Marques (1997), Calmon (1947), Haddad (1953) e Farias (1971) são os críticos que defendem a tese de que há uma presença do poeta francês anterior a 1868. Todavia, destacam uma ressonância mussetiana decorrente da moda byroniana ainda vigente no Brasil de 1860 e/ou de uma leitura colhida diretamente no escritor de As Noites. Acreditamos que a primeira hipótese, a das leituras filtradas a Musset/Byron, é sustentável em razão dos caminhos abertos pelo ensaísmo desenvolvido na Academia de São Paulo por Álvares de Azevedo e que culminou com a gestação de sua obra mais influente no gênero dos contos fantásticos, a Noite na Taverna. Ressalta-se que Álvares de Azevedo havia já traduzido o poema Rolla, vertido como Jacques Rolla, e que fez fortuna entre os estudantes acadêmicos de São Paulo e de Recife. A moda, aliás, do byronismo à la Musset não escapou nem mesmo ao jovem Machado de Assis que também deixou no prelo uma coletânea de poemas da mocidade inspirada na Lira dos Vinte Anos de Azevedo, descoberta recente feita pelo pesquisador Wilton Marques18. 18 Wilton Marques, empreendendo uma pesquisa pelos jornais do Rio de Janeiro disponibilizados digitalmente, descobriu um anúncio publicitário, informando a existência do livro “Livro dos vinte anos” do escritor fluminense cuja publicação não chegou a lume, já no avanço dos anos de sua vida, por razões entre as quais o estudioso aponta a do receio de vê-los publicados ao lado de trabalhos de maior elaboração estética. Sobre o influxo desta poesia azevediana no Brasil, reproduzindo as palavras de Cilane Alves, pesquisadora da obra de Azevedo, assim discorre Marques sobre a moda adotada também por Machado de Assis: “Ainda nesse mesmo período, quando do aparecimento do primeiro volume das obras de Álvares de Azevedo que trazia os poemas de Lira dos Vinte Anos (1853), a poesia romântica local conheceu um momento deveras interessante de inflexão estética que introduziu novos temas na ordem do dia. Entre outros aspectos, ao expressar traços mórbidos da vida, Azevedo acabou por adotar ‘o byronismo como uma tendência legítima para a literatura brasileira em oposição ao nacionalismo literário vigente’”. (MARQUES, 2016, p. 17). 42 É perceptível a leitura de poemas azevedianos hauridos nas leituras que o poeta paulista fez em Musset, e dos quais Castro Alves se valeu para a elaboração de seus poemas no Recife. Entretanto, estes poemas de Azevedo apresentam uma configuração de temática mórbida e tétrica, de ambientação onírica e soturna, que não se harmonizam necessariamente aos versos sadios e eróticos de parte de sua lírica erótico-sensual já presente no Recife. De onde, portanto, haveria o poeta extraído esta bagagem de leitura? Este questionamento novamente incide na emergência de se resgatar a memória de nossas letras fundamental aos estudos comparativos. O mito de Don Juan, em suas múltiplas facetas forjadas por cada sociedade e cultura com as demandas estéticas de seu tempo, somado aos desafios impostos pelo cenário em que se encontra o tratamento dispensado à memória nacional torna, como havíamos afirmado, a atividade do pesquisador inglória e de difícil realização. Contudo, não é um problema diferente daqueles a que se veem entregues os estudos da recepção textual. Há uma importância de situar contextualmente no tempo e no espaço os produtos culturais e as condições que os motivaram à sua realização. Julgamos pertinente a reconstituição deste cenário leitor no qual o escritor baiano viveu e dele tomou parte. Mais do que as solicitações estrangeiras, sempre conectadas com seus escritos literários, estavam à mira atenta do poeta as produções dos seus contemporâneos muitas vezes esquecidas da apreciação crítica de nossa fortuna acadêmica. Sendo assim, põe-se necessário à pauta das novas discussões acadêmicas o estudo direcionado igualmente a estes poetas epigônicos que contribuíram enormemente no influxo lírico das representações estéticas em Castro Alves sob temário variado de sua produção literária. Investigando a rede de leituras esquecidas e/ou minoradas de sua importância pelos críticos do poeta baiano, decidimos reconhecer as fontes distintas de leitura e as proporções adotadas pelo escritor na configuração de suas peças líricas e de alguns de seus trabalhos em prosa . Os trabalhos de literatura comparada sobre Castro Alves ainda hoje se ressentem do biografismo que os tocou em seu primeiro momento. A crítica biográfica, na aurora dos estudos sobre o poeta, não se equivocou, em nosso entendimento, em apontar com lucidez os acentos lírico-eróticos em sua obra literária, constituindo valiosa fonte de pesquisa. A poesia erótico- sensual a que se liga uma das expressões de seu donjuanismo tem nodamente forte apelo autobiográfico. Ao se ler Castro Alves, observa-se, pois, um poeta que declama o seu investimento amoroso, numa evidente absorção do mito de Don Juan que excede, à primeira vista, a constatação mais direta das fontes textuais, de onde decorre toda a construção de uma mitologia íntima atrelada à sua imagem de bardo amoroso e sedutor. Vários trabalhos se 43 ocuparam da construção mítica da figura do poeta que oscila entre o poeta das causas sociais e o poeta dos transportes amorosos. Tergiversamos, porém, apenas quanto ao enfoque dado à entrada na análise dos textos castroalvinos, e recuperamos as palavras de Jorge Amado no seu ABC sobre o poeta: Esse fato prodigioso e importantíssimo (a passagem do poeta pelo país) que é o aparecimento de um gênio da altura de Castro Alves provocou no Brasil até agora uma literatura de homens que, talvez atemorizados pela grandeza do acontecimento, têm-se restringido à veracidade das datas e à descoberta dos nomes verdadeiros daquelas a quem eram dirigidas determinadas produções do poeta. Muito útil, sem dúvida, mas muito pouco. Faltou-lhes a coragem de encarar Castro Alves de frente e tentar modelar seu perfil nas suas verdadeiras proporções. De tomar dos seus versos e transformá-los em palavras suas, ditas em conversas nas passeatas boêmias da Bahia, do Recife ou de São Paulo. (AMADO, 1961, p. 25) Ainda que se referindo à compreensão do perfil biográfico de Castro Alves, Jorge Amado chamava a atenção, já nos anos 1940, para a urgência de penetração nos textos do escritor, enfocando a importância das proporções a que se deviam dar a eles. Esta restituição feita à obra do poeta foi paulatinamente realizada no decurso do século passado entre o final daquela década e início dos anos 1970 com o desenvolvimento de uma crítica que se voltou para o texto enquanto produto de um sistema literário devidamente demarcado em seu tempo. É deste período que surgem nomes como o de Jamil Haddad, Maria Alice Faria, Telênia Hill, Fausto Cunha, Cláudio Veiga, empenhados em devolver aos textos castroalvinos o protagonismo dos estudos literários e comparatistas. Em Revisão de Castro Alves (1953), Jamil Haddad empreende uma pesquisa do rastreio das fontes literárias que impulsionaram o gênio criador do poeta baiano. Persiste no crítico o método psicanalítico apoiado nos, até então, recentes estudos de Marañón19, segundo os quais as conquistas do herói sevilhano são um ponto questionável de sua virilidade. Para Haddad (1953, v. 2), a presença do donjuanismo em Castro Alves é um sintoma de imaturidade emocional, sendo o poeta, “um misto de Werther e Don Juan. A ruminação desesperada e sem remédio, hibridando-se com o entusiasmo hedonístico” (Ibid., p. 194). O complexo de Don Juan de que fala o crítico de Revisão é concluído por observações feitas ao poeta de natureza psicobiográfica; contudo, verifica-se nesta abordagem do crítico um 19 Gregor Marañón (1887-1960) foi um endocrinologista e escritor espanhol decidido a estudar o mito pelo ângulo da ciência médica de seu tempo, trazendo considerações novas e, pouco convencionais, aos estudos críticos da personagem. Para Marañón, o quadro clínico do popular herói sevilhano se inscreveria numa patologia de feminilidade denunciada pelos traços delicados e o narcisismo evidente na exposição quantitativa de suas conquistas, traço de personalidade responsável por apagar os indícios de sua suposta virilidade. 44 sólido trabalho de mapeamento das leituras literárias do escritor baiano que legou aos estudos castroalvinos os fundamentos da análise literária aplicada ao texto. Entre os escritores arrolados por Haddad que mantêm nítido diálogo com o mito espanhol, sobressaem-se Lord Byron nos poemas Don Juan e Childe Harold, Alfred de Musset em Rolla, Contes d’Espagne et d’Italie, Mardoche e Namouna e Álvares de Azevedo em Noite na Taverna. Tirso de Molina e Molière não são destacados, aquele, sequer, lembrado, enquanto este, juntamente a Hoffmann, são apenas citados uma vez no quadro estatístico – elaborado pelo crítico – das referências onomásticas constatadas nos escritos do baiano. É evidente que o cálculo dos empréstimos literários pelo registro das citações e alusões anotadas não nos dá uma real dimensão do influxo que estas exerceram em Castro Alves e, por extensão, em qualquer poeta, e o próprio crítico do escritor reconhecia essa limitação no seu estudo de Revisão: “[...] a intensidade de uma influência não pode ser expressa apenas através desses indícios numéricos. Todavia para uma primeira impressão, de todo aproximativa, são bastante significativos”. (HADDAD, 1953, v. 3, p. 11). Entretanto, além de compor um primeiro painel do círculo de leituras do jovem poeta, como diagnosticado por Haddad, delimita também o vasto leque de solicitações textuais que eventualmente soavam familiares àquele em detrimento de outras – embora expressivas no trato do mito literário – menos evidentes na apropriação temática e linguística para suas composições artísticas. A pesquisa de Haddad é extensiva no sentido de que o crítico não se restringe às fontes às quais nomeia de alienígenas (estrangeiras), mas se empenha em resgatar igualmente as autóctones (nacionais), e, ao lado do cânone europeu, perfilam-se também nomes pouco afeitos à sensibilidade da crítica-literária daquele momento e, mesmo, de nossa contemporânea20. O autor de Revisão é o primeiro também – e um dos raros – a dar importância à plataforma de acolhida dessa literatura estrangeira pelo poeta ao referendar o catálogo da livraria Garnier e o seu papel de difusor dos impressos em solo nacional: A Livraria canalizava para o Brasil toda a literatura famosa do mundo, porém mastigada, transfigurada ou deformada em França. O brasileiro do tempo, praticamente, só podia ler Salústio na tradução de Durosoir, Tácito na de Nisard, Xenofonte na de Dacier, Anacreonte na de Vasseron, Ariosto na de Philippon de la Madeleine, Boccaccio na de Sabatier de Castres, e para quem não apreciasse muito os idiomas originais, havia ainda o “Dom Quixote” na versão de Viardot e os “Lusíadas” na de J. B. Millié... Alguma literatura alemã também chegava: As memórias de Goethe, “Da Alemanha” de Heine... E da 20 São os casos dos escritores contemporâneos a Castro Alves e que ficaram esquecidos parcial ou totalmente dos estudos literários que se seguiram à morte do poeta. Destacam-se os portugueses, muitas vezes, preteridos pela preferência aos franceses e ingleses, como Tomás Ribeiro e Soares dos Passos, bem como os brasileiros a exemplo de Paulo Eiró, Tobias Barreto, Junqueira Freire e Laurindo Rabelo. 45 Inglaterra vinham as obras completas de Byron, na tradução de Louis Barré, como Shakesperae vertido por Benjamin Laroche. (Ibid., p. 17). [grifos nossos] A atenção com a qual Haddad dispensou a recepção das leituras estrangeiras em Castro Alves abriu caminhos para que Onédia Barboza, no final dos anos 1960, melhor desenvolvesse uma dessas solicitações: a de Byron. Em Byron no Brasil, a estudiosa confirma através do texto francês de Louis Barré e do original inglês o acesso cruzado das fontes a que o poeta teve para a tradução de poemas do Lord inglês. Ainda que não explore especificamente o Don Juan de Byron em Castro Alves, Onédia, reforçando a constatação de Haddad sobre as impressões de leitura do poeta baiano, abre-nos também o pressuposto da leitura realizada desse poema por via francesa, uma vez que a edição de Oeuvres Complètes de Lord Byron na qual o nome de Barré consta como tradutor contava, de igual maneira, com o Don Juan transposto do inglês para o francês21. Uma consulta a esse impresso disponibilizado hoje em meio digital pelo sítio da Gallica da Biblioteca Nacional de França torna pública e acessível esta informação22: 21 A edição a que fazemos alusão trata-se de Oeuvres Complètes de Lord Byron. 22 Disponível em: . Acesso em 18 jan. 2018. Figura 4: Apresentação da dedicatória que antecede o Canto I de Don Juan com ilustração de Ch. Mettais e E. Boucourt. Figura 3: Folha de rosto de Oeuvres Complètes de Lord Byron com tradução de Louis Barré. Paris: Bry Ainé, 1856. Fonte: gallica.bnf.fr/ 46 Estudando a recepção de Byron no Brasil através das traduções de brasileiros no século XIX, Barboza (1974) se dedica, em um dos capítulos de sua tese, a três composições do baiano nos quais a consulta cruzada do inglês e do francês se faz presente. Analisando a prática tradutória executada nos poemas “A uma taça feita de um crânio humano”, “As trevas” e “O prisioneiro de Chillon”, conclui, replicando o pensamento de Haddad (1960), que o byronismo de São Paulo foi o que, de fato, afetou a poesia do escritor que “chegou ao poeta inglês mais através do byronismo paulista do que por influência de outros cultores de Byron de suas relações, no norte do país”. (BARBOZA, op. cit., p. 214). [grifos nossos]. A pesquisadora de Byron no Brasil se referia a um estudo desenvolvido pelo autor de Revisão no qual o crítico estabelecia o paralelismo existente entre o poeta baiano e Castro Alves23: São Paulo carreou Byron para o poeta baiano. De resto, o byronismo brasileiro é preponderantemente um byronismo paulista, e o que medrou em outras províncias deve muito ao trabalho de metabolização, de incorporação da poética do Lorde, operada em São Paulo e sobretudo por Álvares de Azevedo. Castro Alves é o poeta exaltado e viril24, é árvore estuante de seiva e porejando vitalidade. Todavia, ele é capaz também de muitas fraquezas, inclusive a de chorar. Poeta hedonístico, da vida radiosamente vivida, plena e ardente, tinha também as suas horas de tristezas, os seus momentos em que a Morte estendia a projeção das asas sobre poemas que longe estão de conseguirem manter-se num clima permanente de alegria e saúde. São Paulo, se por um lado contribuiu para manter a ossatura de seu pensamento político, por outro incorporou à sua poesia um elemento desfibrador, amolecedor, femininamente mórbido (HADDAD, 1952, p. 41). As considerações supracitadas do crítico ditarão os parâmetros e as diretrizes a serem seguidos nos estudos comparatistas entre os dois poetas de nosso romantismo. Haddad (1952) faz um minucioso estudo das afinidades eletivas entre Castro Alves e Álvares de Azevedo, demonstrando a incidência literária deste último na expressão verbal das composições poéticas daquele. Estabelece os pontos de contato que elam A prole dos saturnos do baiano, objeto também de nossa análise, à Noite na Taverna do paulista, bem como a esta última se ligam também os poemas de Castro Alves “A uma estrangeira”, “O ‘Adeus’ de Teresa” e “Os Anjos 23 Trata-se do ensaio “Álvares de Azevedo e Castro Alves”, publicado no ano de 1952 para revista Anhembi e reintegrado como capítulo final à obra Álvares de Azevedo, a maçonaria e a dança, síntese das ideias apresentadas na tese que o crítico desenvolveu e com a qual concorreu à cátedra de professor de literatura brasileira da Universidade de São Paulo em 1945. 24 Na edição que encontramos de Álvares de Azevedo, a maçonaria e a dança, consta-se o vocábulo “civil”, ao invés de “viril”, o que, à primeira vista, parece bastante razoável com a noção de patriotismo e republicanismo de que se cerca a poesia do escritor; entretanto, dado o contexto do desenvolvimento das ideias antagônicas de uma poesia mórbida em oposição a uma poesia varonil, parece-nos mais sensato que haja algum equívoco de edição. Optamos, portanto, pelo primeiro texto onde o ensaio foi publicado em revista, “Álvares de Azevedo e Castro Alves”, uma vez que se preserva a palavra “viril”, dirimindo-nos esta dúvida. 47 da Meia-Noite”. Como afirma o crítico, Álvares de Azevedo será para o poeta baiano e no cenário nacional “o enorme dínamo propulsor da poesia brasileira desse período de nosso século XIX.” (Ibid., p. 47). Tais aferições têm enorme impacto na avaliação futura a qual a crítica se submeterá nos estudos comparatistas entre os dois escritores românticos, de modo a se tornar leitura indispensável à fortuna crítica de Castro Alves. Com efeito, também replicamos, assim como Barboza (1974), esta aproximação indiscutível entre os poetas postos em evidência por Haddad. A obra do baiano se viu, no transcorrer de sua efêmera vida, acompanhada de perto do influxo exercido pela literatura byrônica cultivada por Álvares de Azevedo. Já, em Recife, Castro Alves pôde ficar familiarizado com o byronismo do escritor paulista a propósito da publicação de Obras de Álvares de Azevedo promovida pela ação empreendedora do editor-livreiro, instalado no Rio de Janeiro, Garnier. A edição da obra de Azevedo de 1862 em três volumes é contemporânea a Castro Alves que partia neste ano de sua terra natal para a capital pernambucana a fim de cursar os exames preparatórios ao ingresso na Faculdade de Direito do Recife. Em carta ao amigo Marcolino Moura em 1864, dava sinais de que Azevedo já era uma de suas leituras de cabeceira: Minha vida passo-a aqui numa rede, olhando o telhado, lendo pouco, fumando muito. – O meu cinismo passa à misantropia. (...) De vez em quando vou a Soledade. Aí há uma menina bem bela, mas, meu amigo, é a flor sem perfumes de que fala Álvares de Azevedo. (A Marcolino Moura – ALVES, 1997, p. 743). [grifos nossos] O comentário em destaque se referia ao drama inacabado Macário coligido no segundo tomo de Obras da edição Garnier dedicado à prosa do escritor paulista e aludia à resposta da personagem homônima às indagações polêmicas do personagem Satã sobre o moralismo burguês e a castidade da mulher: “A virgindade d’alma pode existir numa prostituta, e não existir numa virgem de corpo. – Há flores sem perfume, e perfumes sem flores”. (AZEVEDO, 2000, p. 520-521). Há, pois, razões para creditar à São Paulo byroniana a preferência dos temas poéticos do Lord inglês emprestados ao poeta baiano. Apenas, porém, ressaltamos que o byronismo que se encontra nos versos de Castro Alves não é exclusividade do período de sua estada na terra de Álvares de Azevedo, ou seja, no início de 1868. Tampouco deve ser tratado como incidental às produções laboradas no Recife. Esse, aliás, é um posicionamento defendido pela maior parte da crítica que se ocupou da avaliação totalizante da obra do escritor, cindindo- 48 a em dois momentos : o do Recife, libertário e engajado, e o de São Paulo, mórbido e tétrico. Jorge Amado é um dos críticos que apresenta essa leitura, a qual Haddad contesta: [...] Ainda sob a magia de Byron se preocupava (São Paulo) apenas com criar formas novas para velhas orgias estudantis, ainda esperava para começar a ser um centro de agitações políticas, ainda São Paulo marcava com uma marca de amor e morte os versos geniais de um Álvares de Azevedo e de um Fagundes Varela e já Recife marcava a liberdade de Castro Alves e Nabuco (AMADO, 1961, p. 101). O crítico de Revisão entende como extremada a análise da formação política do poeta como decorrente dos anos em que este último esteve em Pernambuco, contestando, desta sorte, Amado por apontar que os ideais de liberdade não eram exclusivos àquela terra: “apesar de longe da fermentação socialista de Pernambuco, não deixou (São Paulo) de marcar de liberdade Castro Alves e Nabuco.” (HADDAD, op. cit., 1952). Em nosso entendimento, os temas da liberdade e do byronismo na obra de Castro Alves tiveram maior expressão nos palcos políticos nos quais atuou na academia de Recife e de São Paulo respectivamente. Contudo, não nos parece adequado confiná-los – sobretudo o byronismo – a estas esferas geográficas da produção artística do poeta baiano, sem levar em conta a fatura de suas composições na qual esta delimitação espacial e temporal não se mostra pertinente. Barboza (1974) mesmo nos evidencia o amplo espectro alcançado pelas leituras byronianas no Brasil, estendendo-se para além de São Paulo, pois já presente antes no Rio de Janeiro, recebendo acolhida até em províncias como a do Maranhão e a do Espírito Santo. Todavia, restringindo-se às afirmações deixadas por Haddad a respeito do poeta e se atendo especificamente ao trabalho de tradução realizada por este último, não se foi possível à pesquisadora de Byron reconhecer traços do Lord inglês em produções anteriores à estada de Castro Alves na terra de Azevedo. A circunscrição do byronismo a São Paulo e, mais notadamente, a Álvares de Azevedo resulta em impasses na apreciação crítica de textos castroalvinos anteriores à sua chegada àquela cidade e nos quais a intertextualidade com a obra do inglês se manifesta flagrante. É o caso do poema “Os três amores”, objeto também de nossa análise, escrito em setembro de 1866 quando o poeta se encontrava no Recife e cuja interlocução com o canto I do mito de Don Juan de Byron é incontestável. A menção à personagem Júlia, primeira das aventuras amorosas do 49 espanhol, não encontra, por exemplo, correspondência nas leituras byronianas via Azevedo, uma vez que este intertexto, em especial, não é explorado na obra do escritor paulista. A cristalização do byronismo polarizado em São Paulo perde de vista a participação efetiva de parte da produção literária de Castro Alves já desenvolvidos em outros centros culturais como Recife e, até eventualmente, Salvador na Bahia, e nos quais essa moda vigente se via igualmente contemplada. Um byronismo cuja precedência, certamente, remonta a Álvares de Azevedo, mas ressemantizado de há muito pelo romantismo do Mal du siècle: Os byronistas autênticos, por mais pessimistas que sejam, nunca são sentimentais. O sentimentalismo é o traço característico dos byronistas falsificados, dos poetas do “Mal du siècle” ou “Weltschmerz”. Aqueles são uns grandes indivíduos isolados; estes constituem a maioria compacta dos poetas da época. Para compreender a divulgação enorme do equívoco com respeito à poesia de Byron, interpretada como a de um Lamartine excêntrico, é preciso observar um fenômeno importante: não surgiu nenhum byronista sentimental na Inglaterra. São todos eles do Continente. [...] de maneira superficial imita-se os gestos de Byron: seu gosto paisagístico, sobretudo entre os eslavos; o radicalismo satanista, em Musset, Lenau, Espronceda; e, em toda parte, o liberalismo político, bastante vago. [...] sendo a poesia do “mal du siècle” puramente subjetiva, não suporta outra classificação senão a psicológica conforme os temperamentos. (CARPEAUX, 1980, p. 1274) Tratava-se de um byronismo de viés melancólico diferente daquele praticado por Byron na Inglaterra vitoriana. A feição satírica e irônica dos versos metalinguísticos do original inglês do Don Juan de Byron ganha novos sentidos entre os seus cultores fora do distrito da Inglaterra em outros países europeus, como ressalta Carpeaux, como aqui também no Brasil. Em nosso romantismo local, Azevedo foi um dos poucos que conseguiu lograr em suas composições as oitavas de veio épico-cômico do Don Juan byroniano: Diversamente de seus compatriotas, esse poeta não ignorou um traço essencial à obra do precursor britânico, a saber, sua duplicidade estilística, que oscila entre a extrema emotividade do hiper-romântico e o sarcasmo acerbo de um Byron cômico-satírico, herdeiro do neo-classicismo inglês. É essa duplicidade, evidente no texto do poeta paulista, que justifica considerar Álvares de Azevedo o mais byronico de nossos românticos. (OLIVEIRA, 2011, p. 144) Em Castro Alves, porém, permanece, em um primeiro momento, a versão do byronismo ultrarromântico, de versos sentidos, pontuados de queixumes exalados pela voz lírica, muito próximos daqueles que consagraram o escritor paulista na Lira dos Vinte Anos e da musicalidade cadente das estâncias de um Casimiro de Abreu: “Donzela bela, que me inspira à lira./ Um canto santo de fervente amor,/ Ao bardo o cardo da tremenda senda/ Estanca, 50 arranca-lhe a terrível dor”. (Exortação – ALVES, 1997, p. 409). Nesta composição de 1865, ainda prevalece o byronismo sentimental e plangente, à maneira de Musset filtrado nas leituras de Azevedo, mas que, ao mesmo tempo, deixa transparecer a sensualidade e o erotismo que irão ditar o estro poético, mais tarde, em “Boa Noite” e “Adormecida”, realizações maiores do amor carnal na lírica castroalvina, como já anunciam os versos desse mesmo poema: “Fada encantada, em teu regaço lasso,/ Viajante errante, deixa-me pousar;/ Lírio ou martírio, abre teu seio a meio,/ Estrela bela, vem-me enfim guiar.” (Ibid.). Despojado da irreverência dos versos incendiários de Byron, Castro Alves tomou outra direção à sua poesia, a da causa social e da defesa das liberdades individuais – com a qual o paralelo com o inglês é evidente – orientada por um forte senso de humanismo e de identidade com os valores republicanos e liberais das sociedades democráticas. A imagem de bardo em luta renhida pelos ideais democráticos para a libertação política da Grécia a qual eternizou o heroísmo de Lord Byron não pode ser desvinculada da apreensão do byronismo em Castro Alves. Em “O Derradeiro Amor de Byron” de Castro Alves, a título de exemplo, predomina o Byron mítico da construção cultural, consagrado pelas biografias sucessivas à morte do inglês, apresentando-o como defensor da liberdade dos homens e de combate da tirania dos poderosos. Essa é, ademais, a vertente dos versos socialmente engajados do escritor baiano com os quais não se coadunam necessariamente os motivos do egocentrismo e do narcisismo atrelados ao mito literário de Don Juan cultivado entre os escritores ultrarromânticos. No plano da expressão lírica, contudo, Castro Alves soube explorar, de igual sorte, o mito do sedutor sevilhano pelo byronismo ultrarromântico como igualmente pelo exercício literário do gótico e do conto fantástico, como veremos na análise que consagraremos as produções literárias da juventude acadêmica do poeta de sua passagem no Recife. Logo, o reconhecimento de composições literárias do autor de Espumas Flutuantes pregressas ao ano de sua matrícula no terceiro período do curso de direito no Largo de São Francisco onde estudou em São Paulo, e nas quais ressoa o mito literário de Don Juan, mobiliza- nos a uma reavaliação das fontes de leitura com as quais Castro Alves teve afinidade e da atuação político-cultural que a capital de Pernambuco desempenhou na formação acadêmica do escritor. Sobre este segundo ponto, o do papel ocupado pela academia de Recife na vida intelectual dos estudantes de direito, há uma grande lacuna nos estudos castroalvinos os quais carecem de melhores esclarecimentos no que tange à apreciação crítica da produção literária desse período e do desvelamento das condições materiais que facultaram a gestação dessa fatura esquecida de sua produção literária. Consciente da negligência devotada a este espólio de suas 51 realizações literárias no Recife, o crítico baiano Edivaldo Boaventura tornou-a notória em estudo sobre o assunto no final dos anos 1980: Não há, contudo, estudo especializado sobre os seus dias pernambucanos, como encontramos acerca do seu tempo paulistano, fluminense e baiano. [...] O período marcou a sua formação, durante o qual participou efusivamente da vida literária, teatral, jornalística e estudantil recifense. A sua estada pernambucana suscita alguns problemas biográficos ainda não resolvidos. (BOAVENTURA, 1996, p. 41-42) E salienta, deste período, uma parte de sua produção lírica – muito antes dos rumos que iria tomar sua poesia em direção à causa social – afetada de um pessimismo que, a nosso ver, guarda laços estreitos com o ultrarromantismo byroniano: [...] O Poeta escreveu “Meu segredo”, dedicado “À Senhora D***”, “Pesadelo”, “Cansaço”, que é de 7 de outubro de 1863. Todos demonstraram bem a crise de pessimismo. Versos sentimentais em estilo brando, à maneira de Lamartine, Junqueira Freire e Álvares de Azevedo, completou Xavier Marques. Época de maior influência de Musset, Byron, principalmente Victor Hugo, quando brotaram as primeiras manifestações abolicionistas. (Ibid., p. 43). Poemas bebidos em Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu que sinalizam o namoro com os temas byronianos, eivados ainda do argumento do “Amor e Medo” que havia marcado a geração anterior à sua, embora já carregando o indicativo da renovação da lírica brasileira numa transição para o advento de um erotismo franco. No seu divulgado ensaio “Amor e Medo”, Mário de Andrade já apontava: “Em Castro Alves se sente sempre, ou pelo menos mais que nos outros, a mulher. Ele foi de fato um sexual perigoso, duma sexualidade animal bem correta” (ANDRADE, 2002, p. 227). E, opondo-o a seus prógonos no tratamento dado ao tema, não esquece de denunciar que também o cultivou de seu período no Recife para dar lugar depois a uma poesia mais viril: Castro Alves é dentre os grandes românticos, o que mais esgarçadamente poetou de amor e medo. Está claro: também versou o tema nesse sequestro precário e geral, com que o amor e medo se mostra na poesia de todo o rapaz que verseja: o tema do “amar e ser amado”. [...] Porém mesmo isso é mínimo nele e perderá cedo porque na verdade não hesitou no amor. (Ibid., p. 230). Poesias que de byrônicas à maneira azevediana vão ganhando uma outra feição com a qual nos habituamos a enxergar o poeta, memorável pela poesia erótica, sexual, já anunciada nessas produções primeiras de sua iniciação literária e certamente inspirada em autores 52 esquecidos do cânone romântico. Fontes de leitura que inspiraram os escritos de Castro Alves e que cederam à moda do byronismo ultrarromântico e despertaram, outrossim, o gosto pela poesia erótica e sensual ingênita à índole do poeta baiano, relegadas ao limbo da crítica-literária ou, mais ainda, alheias ao domínio público para uma pesquisa acadêmica. Os estudos castroalvinos muitas vezes, tomando uma resolução a fim de justificar a presença do erotismo flagrante de sua poesia, apropriaram-se do aporte biográfico para dar sentido ao arrojo dos versos insinuantes e expressivamente sensuais de sua lírica, legados, antes, de uma tradição olvidada de nosso romantismo. Não se trata, porém, de subtrair à atenção dos estudos críticos o lastro autobiográfico presente nas composições artísticas de Castro Alves. É, aliás, um fundamento de sua poética, unânime entre os críticos do autor e que o torna distinto de seus contemporâneos: A poética de Castro Alves oferece este aspecto singular. Tão sincera, traduzindo o sentir do momento, que, por vezes, é contraditória, espelho de imagens que se sucedem. [...] Fato curioso não focalizado: os períodos de exaltação amorosa coincidem com aquêles em que ele mais produz, em que mais a miúde o visita a inspiração (AZEVEDO, 1971, p. 103). É legítima a compreensão de sua poesia como produto das emoções sentidas pelo poeta que as expressa com desbragamento como se a cada verso declamado se abrisse ao leitor uma confissão amorosa das páginas de sua vida sentimental: [...] Podemos falar, na sua obra, duma espécie de sentimento de Olímpio, com referência ao personagem autobiográfico de Victor Hugo, cuja submissão inicial às sugestões do ambiente se transforma em certa tirania sobre ele, desmaterializando-o para reorganizá-lo como sistema quase subjetivo de signos. E aí temos outro exemplo da sua força passional – na capacidade de transfigurar intensamente cenários onde amara ou sofrera, vivendo a saudade (ele, morto aos vinte e três anos) com uma profundeza e vigor evocativo só proporcionado geralmente pelo tempo, através da sedimentação lenta no subconsciente. (CANDIDO, 2000, p. 251-252) [grifos do autor]. Importa-nos, porém, neste momento, explicitar as fontes textuais das quais foi o poeta baiano tributário e a contribuição que estas prestaram para a consolidação do mito literário de Don Juan no círculo particular das leituras acadêmicas do escritor. Precisaríamos para tal ampliar o horizonte da pesquisa, admitindo outros suportes documentais além do catálogo da livraria Garnier vislumbrado pela percepção crítica de Haddad. No Recife acadêmico, a empresa de outro livreiro-editor francês, a livraria Garraux, chegava em 1865 para instalação 53 ali de uma filial em decorrência do sucesso obtido na capital paulista, logo tornada ponto de encontro entre os estudantes: [...] Garraux inaugurou uma filial no recife, a Librairie Française, situada na Rua do Crespo, 9. Causou sensação. A imprensa acentuava o “luxo do arranjo da casa” e o grande sortimento de obras de literatura, artes, direito etc., frisando que levava “a primazia às demais desta cidade”. O local logo se tornou um dos pontos de encontro preferidos pelos escritores pernambucanos e, sobretudo, pelos jovens poetas que cursavam a Academia de Direito, entre os quais Fagundes Varela, Castro Alves, Vitoriano Palhares, Luís Guimarães Júnior e Tobias Barreto. (MACHADO, op. cit., p. 64) O catálogo de Garraux ainda não se inscreve no panorama acadêmico das produções castroalvinas datadas de sua chegada ao Recife, ou seja, entre 1862 e 1864. Buscamos, então, uma outra fonte, essa jamais consultada nos estudos do autor. Recorremos à consulta ao Gabinete Português de Leitura situado na capital pernambucana e aos periódicos recifenses da época do poeta. Ali encontramos fontes potenciais para a imagem do mito literário de Don Juan plasmado, ao menos, em três das seis composições selecionadas para análise textual de nosso trabalho. Descobrimos quais versões de Don Juan circulavam no Gabinete Português bem como a preciosa informação de que o baiano era frequentador desse ambiente. Encontramos também uma versão do mito traduzido para o português e publicado por uma folha anexa do Diário de Pernambuco: O Cidadão. Este periódico, estava desativado a quase 170 anos e nele consta uma tradução de um conto fantástico de Hoffmann, o Don Juan ou viagem de um entusiasta, realizada oito anos antes da chegada de Castro Alves ao Recife por um acadêmico de direito, o Sr. Marques Rodrigues. Estavam ali lançadas as sementes do culto ao fantástico entre os estudantes acadêmicos. Outro material, desta vez, consultado na biblioteca digital do Uruguai, trouxe-nos à tona uma obra da leitura da mocidade de Castro Alves dada por perdida entre os bibliófilos. Trata-se da Bibliotheca Litteraria, uma seleta de quatro textos de escritores desconhecidos da crítica atual, mas que fez fortuna entre as leituras dos Oitocentos. Entre eles se destaca um conto do francês Benjamin Gastineau cujo protagonista é, em nosso entendimento, uma das inspirações para o poema “Pesadelo” em 1863. Completamos a pesquisa, trazendo ao público outras obras fora de circulação e que impactaram na visão poética de Castro Alves como poetas castelhanos como Eusebio Caro e Fernández Madrid, e até composições musicais que inspiraram o seu estro poético como as de Alexandre Dumas e Hippolyte Monpou. 54 Estas são as fontes do mito literário mais próximas ao círculo das leituras conhecidas por Castro Alves e, até agora, apagadas dos estudos críticos sobre o escritor. A elas se integram as contribuições das pesquisas de Haddad (1953), Faria (1871) e Barboza (1874) com o levantamento do donjuanismo espelhado no modelo europeu das obras de Lord Byron e de Alfred de Musset, e, no cenário romântico nacional, no sucesso alcançado pela popularização da obra de Álvares de Azevedo com Noite na Taverna, Macário e Lira dos Vinte Anos. Enriquecem a fortuna crítica sobre os estudos da ressonância do mito de Don Juan na obra de Castro Alves os recentes trabalhos acadêmicos propostos por Mendes (2005) e Mauro (2014) ao resgatar o método do comparativismo literário iniciado pelo autor de Revisão. Intentando estender o campo de leitura da manifestação do mito literário na poesia do poeta baiano, os novos estudos trouxeram contribuições efetivas à pesquisa sobre o tema em escopo, reatualizando a discussão que permaneceu restrita aos estudos castroalvinos realizados na segunda metade do século passado. No próximo subcapítulo, daremos melhores detalhes da atuação da pesquisa desenvolvida pela crítica universitária contemporânea a fim de retomar o problema apontado inicialmente neste nosso trabalho a respeito da indeterminação histórica das leituras castroalvinas. Traçaremos o painel em que se encontram os empréstimos literários na avaliação crítica dos novos estudos castroalvinos e apresentaremos um quadro das leituras no tocante ao mito de Don Juan em evidência no Recife acadêmico a partir da reconfiguração do cenário leitor daquela cidade na formação intelectual do poeta baiano. 55 3. NOVOS ESTUDOS CRÍTICOS E PREMÊNCIA DE UMA REVISÃO Entre os autores representativos da literatura europeia que prestaram tributo ao mito de Don Juan, quais corresponderiam ao círculo de leituras de nossos escritores românticos e, mais precisamente, à realidade circunscrita à observação atenta de Castro Alves? Tal consideração havia sido ponderada por Pedro Calmon que, esclarecido da universalidade do mito em sua expressão literária, aventou a existência de amplo leque de possibilidades: [...] Don Juan, é poeta! Um pouco de cada um dos Don Juans conhecidos, de Tirso de Molina, de Molière, de Mozart, de Byron, de Zorilla, de Musset, “beau como le génie”; senão o de Hoffmann, “au soin de la musique”! Sugere ainda uma aproximação de leitura por Flaubert, possivelmente pela frase e nome da heroína do novelista francês “Madame Bovary c’est moi” (CALMON, 1973, p. 226) A apreciação crítica das origens literárias do mito em Castro Alves pelo estudioso em questão dizia respeito ao estudo do drama incompleto A prole dos saturnos. A extensão das representações literárias de Don Juan no século XIX e a dificuldade de sinalizá-las por meio de uma pesquisa histórica já inquietavam o crítico do poeta que decidiu, por fim, dar como resolução ao problema uma interpretação biográfica: “os personagens [...] são um tanto de Barrière, e de sua saudade... de Eugênia, que os animara no palco do Santa Isabel” (Ibid., p. 301). Reflexão esta que inspirou recentemente Edvard Passos Neto (2016), em sua dissertação sobre o teatro e a teatralidade no referido drama, na proposição de um fecho para a peça imaginado no triângulo amoroso vivido pela atriz portuguesa, o ator e antigo companheiro Furtado Coelho e o jovem poeta baiano. Interpretação que, segundo o pesquisador do teatro castroalvino, não apenas lhe serviu de mote ao desdobramento da trama daquela obra incompleta, mas justificaria o impulso criador do poeta à realização das partes que ficaram daquele texto dramático: Todas essas semelhanças me fazem pensar que Castro Alves escreveu essa peça inspirado em sua própria vida. Se o enlace afetivo de Eugênia e Castro fosse fruto de uma obra de ficção, e não da vida real, poderíamos dizer que, devido à atmosfera tragicômica, Castro Alves, ao descrever D. Juan, produziu 56 uma paródia. Uma criação que teve como mote o grande drama de sua vida pessoal, sua história com Eugênia. [...] Castro Alves já tinha consciência de que sua vida, em especial no que toca seu enlace com Eugênia, guardava enorme potencial para inspirar obras dramáticas. (NETO, 2016, p. 94) A leitura interpretativa pelo viés biográfico é uma possibilidade encontrada por parte da crítica literária desenvolvida sobre a obra de Castro Alves e que alcança sua motivação maior na natureza singular destas produções realizadas pelo escritor. O desejo de publicizar a vida afetiva é, além de notório ao estro poético do autor baiano, uma prática, ao mesmo tempo, não tão incomum aos poetas do Oitocentos romântico e que achou na imagem de Castro Alves um modelo convencional à representação pública do homem das letras como indivíduo aberto à exposição de suas dores íntimas: Essa concepção romântica da poesia pode parecer hoje um pouco estranha, por conta do costume de ver na poesia muito mais uma causa íntima do que uma coisa pública. Entretanto, a passagem da esfera do privado à esfera do público explica boa parte das fragilidades e das grandezas da poesia castroalvina. (AGUIAR, 1997, p. 39-38) Reforçando a própria imagem de vate inspirado e carregada de forte apelo patético, sua poesia orienta naturalmente o posicionamento de uma crítica atenta à avaliação de juízo biográfico. Uma outra razão – e na qual nos apoiamos – à tendência ao biografismo aplicado aos estudos castroalvinos se deve ao caráter fragmentário das composições deixadas pelo poeta. É o caso do drama em escopo que, desprovido da sequência de sua trama nos atos e cenas que escaparam à posterioridade, criou um impasse à análise literária da crítica que dele se ocupou. Ainda que, a rigor, não seja a indeterminação histórica o móvel da crítica biografista desenvolvida por Calmon (1973) e Neto (2016), visto que ambos assumem, prévia e deliberadamente em suas pesquisas, o paralelo da vida do poeta com o plano estético como método à análise do texto literário castroalvino, as lacunas abertas pela falta de uma revisão da obra do poeta, bem como o caráter fragmentário desta e o seu teor intimista inclinam os críticos de Castro Alves a um direcionamento favorável ao biografismo. Curiosamente, a despeito do aspecto intimista que o escritor baiano imprimiu ao conjunto de sua obra, é exatamente nos textos de Castro Alves nos quais fica pendente a precisão das leituras-fontes como modelo de inspiração que se impõe aos seus críticos a solução da análise do texto literário pelo método biográfico. É assim na interpretação proposta ao poema “A uma estrangeira” de Espumas 57 Flutuantes cuja incerteza da sugestão literária do nome Inês – interlocutora para quem o eu poético decanta seus versos apaixonados nessa composição castroalvina – posiciona críticos mais direcionados ao comparativismo literário pelo texto como Eugênio Gomes a anuir, em nota comentada a Obras Completas (1997), com os primeiros críticos do poeta baiano: “presume-se que haja sido inspirado (‘A uma estrangeira’) por uma companheira de viagem, na travessia do Rio à Bahia, em nov. de 1869”. (ALVES, 1997, p. 813). A questão, porém, havia sido solucionada por Faria (1971) que, sem negar as motivações da esfera pessoal e afetiva que inspiraram àquela realização literária do poeta, investiu, antes, na primazia ao texto literário comparado: “o assunto [...] se liga [...] à atmosfera que o cerca e à atmosfera literária, impregnada pela presença de Musset. Daí a epígrafe, tirada do poema ‘Suzon’”. (Ibid, p. 13). Em Haddad (1953), estudioso que redefiniu à pesquisa da crítica sobre o poeta ao promover a delimitação de suas fontes literárias, percebe-se essa reversão ao biografismo literário quando a fonte de leitura é incerta ou não tão clara. Situação verificada no sentido atribuído ao poema “Pesadelo” (1863), cuja inexatidão das condições de produção do texto inviabilizou melhores juízos sobre potenciais leituras para fatura daquele trabalho, levando o crítico a pender também à sedução biográfica. Na análise a este poema-conto, escrito pelas leituras de impressos e de periódicos que estavam à mão de Castro Alves no Recife acadêmico, Haddad decide pelo escrutínio dos relatos de crimes passionais envolvendo a ascendência genealógica do poeta a fim de justificar o hispanismo que recobre as questões de honra e vindicta exploradas pela trama de “Pesadelo”: O poeta aí traz para o verso a Espanha convencional, de desvario e amor, arrogância e morte. Tem a Espanha nele o seu decantado sabor de crime, a sua inalterável predestinação árabe para a vingança, o sentimento exacerbado do ciúme, o coração rancoroso de quem não é capaz de desculpar o agravo. A existência de Castro Alves desdobra-se sombreiada pela projeção da sombra de dois crimes: o primeiro foi na casa da rua do Rosário. [...] O segundo crime – o de Pórcia – já foi por nós – e provavelmente mais de uma vez referido. (HADDAD, 1953, v. 3, p. 91-92) O poema, na realidade, evidenciava uma modalidade de donjuanismo byroniano que Castro Alves havia colhido da leitura de Cardoso de Menezes. O poema-conto Octavio e Branca (1849), como já destacado anteriormente, iniciou o poeta baiano no exercício literário do gênero gótico. “Pesadelo” refletia uma leitura improvável dos tempos do Recife e que reincidiria como 58 sugestão de leitura na gestação, meses depois naquela capital, do conhecido poema “Mocidade e Morte” (1864). O apagamento do nome de Menezes da historiografia literária contemporânea, porém, impôs ao autor de Revisão a uma tomada de posição àquele problema sem solução aparente: a análise literária do poema castroalvino pelo método biográfico. Nos últimos anos, houve um empenho entre os críticos do poeta em resgatar a temática do donjuanismo, dando, desta vez, relevo à importância da análise do motivo pelo texto literário. A diligência empregada em trazer o debate à discussão do comparativismo literário foi ação promovida pelos novos estudos acadêmicos. O direcionamento crítico tomado pelos recentes estudos castroalvinos no âmbito da pesquisa universitária privilegia a seleção das composições do poeta nas quais a releitura do mito de Don Juan se mostra, segundo o juízo desta nova crítica, mais aparente. Dois trabalhos especificamente devotam atenção ao tema pelo enfoque da análise textual comparada: Maria do Carmo Pinheiro Mendes, em artigo sobre o mito de Don Juan e suas relações com o romantismo brasileiro, e Tereza Cristina Mauro, em dissertação focalizando as relações aproximativas entre a obra de Castro Alves e de Álvares de Azevedo. Mendes (2005) dá novos rumos à pesquisa sobre o donjuanismo em Castro Alves ao estabelecer um recorte de poemas castroalvinos potencialmente veiculados ao motivo literário do sedutor espanhol e, até então, apagados do olhar atento dos primeiros críticos. Apoiando-se no ensaísmo desenvolvido por seu compatrício Urbano Tavares Rodrigues nos anos 1950, Présentation de Castro Alves (1953)25, a pesquisadora portuguesa redefine a orientação dada neste trabalho, centrado na imagem do perfil sedutor do poeta, ao ressaltar a necessidade de penetração nos poemas castroalvinos via aproximação literária com o mito: [...] Tavares Rodrigues tem o propósito de chamar a atenção para a natureza donjuanesca deste romântico brasileiro. Donjuanesco, de resto, é chamado pelo ensaísta, cuja leitura da poesia lírica de Castro Alves é determinada pela imbricação vida-obra. [...] Mais do que a reconstituição biográfica amorosa do romântico brasileiro e a sustentação de sua natureza donjuanesca (traduzida na inconstância amorosa) importam-nos a figura de Don Juan poeticamente recriada e os elementos donjuanescos na obra literária. (MENDES, op. cit., p. 444-445) 25 Trata-se de uma conferência que este pesquisador havia apresentado ao Instituto de Estudos Luso-Brasileiros da Sorbonne em 1953. Publicado originalmente em língua francesa, a primeira versão do trabalho encontra no depósito do acervo da Biblioteca Nacional de França disponível à consulta pública, entretanto, o artigo encontrou uma segunda publicação, desta vez, em língua portuguesa, reunido à coletânea O mito de D. Juan e outros ensaios de escreviver (2005). 59 Distanciando-se da perspectiva da análise biográfica do texto, a estudiosa reavalia a tradição dos estudos castroalvinos sobre o tema, considerando duas tendências possíveis da manifestação do mito na obra literária do poeta baiano: a identificação mais imediata do eu lírico com o personagem, evidenciado na associação daquele à figura do sedutor andaluz, e a manifestação de um comportamento donjuanesco constatado por movimentos repetitivos de sedução, posse e abandono. Desta maneira, entram no rol das composições submetidas à análise textual poemas já consagrados sobre o assunto – ainda que precedentemente avaliados pela perspectiva biográfica – como “Os três amores” e “A volta da primavera”, nos quais a referência à figura de Don Juan é notória, e outras peças do autor baiano assinaladas pelo movimento contínuo e maquinal da sedução e do abandono das vítimas femininas pelo conquistador como em “O ‘Adeus’ de Teresa” e “Os Anjos da Meia-Noite”. A pesquisadora também vislumbra em outras composições do poeta, a exemplo de “Boa Noite”, “Mocidade e Morte”, “O laço de fita” e “Amemos” (única peça entre as referidas não integrada às Espumas Flutuantes), aproximações com o temário da sedução e da dualidade entre vida e morte que envolve o mito. Da seleção realizada por Mendes (2005), destacam-se apenas três intertextos, entre os representativos da tradição europeia, que dialogam com os poemas de Castro Alves. A leitura de Byron nos já citados “Os três amores” e “A volta da primavera”, Zorrilla em “O ‘Adeus' de Teresa” e a sugestão do motivo do catálogo das amantes do Don Giovanni de Da Ponte e Mozart, aproveitada para a concepção, segundo a pesquisadora, de “Os Anjos da Meia-Noite”. A restrição a um número limitado de referências diretas do mito literário de Don Juan plasmado nos textos de Castro Alves faz-nos considerar a dificuldade encontrada pela estudiosa em sinalizar outras leituras factíveis de que o poeta havia lançado mão. Ao que parece, os inúmeros desafios a que aludimos anteriormente a respeito do estudo do mito no Brasil, e da mobilidade de trânsito do poeta em mais de um polo cultural, levou a pesquisadora portuguesa a considerar os aspectos mais salientes e convencionais ao mito como a temática da sedução, da posse e do abandono. O estudo preparado por Mendes (2005) se mostra inovador sobre vários pontos. Além de reatualizar o olhar dos estudos castroalvinos sobre o donjuanismo, tomando uma direção contrária à tendência do biografismo ainda vigente, propõe uma sistematização, como já visto, em dois eixos temáticos possíveis de donjuanismo na obra do poeta, e, mais importante, 60 delimita textos da lavra do escritor baiano, não antes apreciados pelos seus críticos, como recriações poéticas do mito. Acreditamos, todavia, que a avaliação crítica empenhada pela pesquisadora resvala no mesmo problema comum ao caso Castro Alves: a incerteza/indeterminação das fontes materiais de consulta ao texto literário. Um trabalho que havia sido iniciado por Haddad (1953) na metade do século passado, como já tínhamos referido, e que não obteve sequência pelas imposições naturais de seu tempo à exequibilidade de uma pesquisa mais extensiva. Tendo o mito literário de Don Juan conhecido várias modalidades de gênero e de abordagem temática no Romantismo europeu e americano, o reconhecimento de traços distintivos presentes nas recriações variadas deste repisado motivo é notadamente comprometido. Quando a referência textual, enquanto sugestão de leitura ao escritor que dela se valeu, não se configura de maneira expressamente manifesta, os indícios da apropriação literária se apagam na generalidade do tema. É o que se sucede com o mito de Don Juan ao tender normalmente àquilo que Pierre Brunel classificaria como monotonia donjuanesca: “Poderíamos dizer que o que não muda em Don Juan é o seu gosto por mudança, chega a ser até mesmo uma monotonia donjuanesca.” (BRUNEL, 1998, p. 257). A estrutura de base do mito permanece invariavelmente a mesma. As estratégias empregadas no jogo retórico da sedução têm o mesmo fim: a posse seguida do abandono de suas vítimas. Don Juan conquista suas presas amorosas por meio do cálculo de suas investidas e da consciência do fascínio que sua figura sobre elas exerce. O desenlace da trama em final trágico ou a remissão de suas faltas é uma das poucas componentes deste enredo flexíveis à alteração, e, ainda assim, concentrado no poder de decisão do autor nos dois desfechos possíveis apontados. As poucas mudanças sofridas no corpo mítico de Don Juan na cultura ocidental, sobretudo no que toca à essência da trama narrativa conservada e a permanência dos aspectos pitorescos de seu perfil sedutor, tendem a nivelar, até mesmo, recriações poéticas singulares pelo traço anedótico do fascínio, da sedução, do perjúrio, do abandono. Assim sendo, alguns subtemas que se afiguram privados a determinadas obras em escopo são, na verdade, mais comuns do que aparentam. O tema do catálogo, à título ilustrativo, é atribuição delegada ao engenho da ópera de Da Ponte e Mozart, e havia conhecido um esboço inicial no teatro de Molière. A própria popularidade alcançada pelo drama operístico do Don Giovanni, ecoando nos trabalhos de Hoffmann e Musset, é indicativo da interpenetração dos gêneros literários. 61 Pensando nisso, é importante precisar as circunstâncias e os antecedentes de leitura que precederam a formação intelectual de cada escritor em estudo. Mendes (2005) mesmo, embora não ponha em franca evidência, já faz a reconstituição de parte deste cenário leitor castroalvino ao expor em seu trabalho um poema de Álvares de Azevedo, “A Sombra de D. Juan”, claramente conhecido pelo poeta baiano (Ibid, p. 439-440). Seguindo a linha da abordagem do texto literário, Teresa Cristina Mauro estabelece uma aproximação mais ampla entre a obra de Álvares de Azevedo e a de Castro Alves. As ideias explanadas pela pesquisadora parecem ecoar os eixos temáticos explorados por Mendes (2005), a exemplo da alusão à capacidade de sedução de Don Juan e a evidência de um ramo do donjuanismo praticado em Portugal assinalado pela velhice da personagem, ambos tópicos relevantes ao estudo da articulista portuguesa. O recorte dos textos castroalvinos aponta também a afinidade entre os trabalhos, uma vez que Mauro (2014) e Mendes (2005) consideram “O ‘Adeus’ de Teresa”, “Os Anjos da Meia-Noite”, “Boa Noite”, e “Mocidade e Morte” como manifestações legítimas do donjuanismo castroalvino, além dos mais evidentes “Os três amores” e “A volta da primavera”. A novidade do trabalho de Mauro (2014) está na seleção de poemas não assinados pela crítica tradicional do poeta como donjuaninos, a exemplo de “Os perfumes”, “O hóspede” e “É tarde”, ampliando o olhar da crítica atual para o leque de manifestações possíveis do mito na obra de Castro Alves. Excetuando algumas composições já definidas em pesquisas anteriores como donjuaninas – o caso de Haddad (1953) ao timbrar com o selo do mito o poema “Manuela”, composição de Os Escravos, e “Versos de um viajante”, de Espumas Flutuantes, e Cunha (1971) em “O São Francisco”, integrado à A cachoeira de Paulo Afonso – algumas delas são verdadeiros achados da pesquisadora como no insight do reconhecimento da leitura feita pelo poeta baiano do conto “Claudius Hermann”, de Noite na Taverna, a partir da apropriação de uma metáfora de Azevedo que Castro Alves reproduz em um de seus trabalhos de crítica literária. (MAURO, op. cit., p. 147). A bem da verdade, o confronto textual entre Álvares de Azevedo e Castro Alves é débito que a crítica castroalvina tributa ao ensaísmo desenvolvido por Jamil Haddad na metade do século passado. Rastreando quase todas as leituras realizadas pelo poeta baiano no paulista, o autor de Revisão chegou a aferir também o intertexto azevediano de “Claudius Hermann” como fonte de leitura de Castro Alves, a partir do empréstimo de metáforas reconhecíveis em poemas como “O ‘Adeus’ de Teresa”, “Boa Noite” e “Mocidade e Morte” (HADDAD, 1952, 62 p. 127-128). A associação do conto em questão aos trabalhos de crítica literária do escritor baiano foi algo, porém, que passou despercebido ao pesquisador e ao resto dos comentadores do poeta, sendo reconhecida, a justo tempo, pela investigação da pesquisa de Mauro (2014). A estudiosa recupera também as pesquisas iniciais do autor de Revisão a respeito da sinalização de lances contidos no enredo de A prole dos saturnos, nitidamente inspirados nas leituras que o poeta havia feito de “Solfieri” e “Claudius Hermann”, contos integrantes de Noite na Taverna, a fim de lhes acentuar os traços da sedução e da retórica calculada de Marcus, modelo de Don Juan na peça castroalvina. A contribuição da pesquisadora ao correlacionar a fala de Claudius Hermann no conto homônimo azevediano a um comentário crítico de Castro Alves presente numa apreciação literária que este último elaborou em 1864 fornece mais um indício de que a moda da leitura de Noite na Taverna já estava bem sedimentada nos anos de sua estada no Recife acadêmico26. Essa informação, aliás, figura-se-nos bastante oportuna, uma vez que o modelo de donjuanismo em Castro Alves já estava presente também naquela cidade, sendo forjado, até mesmo, em outra peça teatral, e de maior âmbito, como Gonzaga e a Revolução de Minas, da qual daremos notícia na análise de A prole dos saturnos no último capítulo de nosso trabalho. Assim como na pesquisa da articulista portuguesa, repete-se, no trabalho da pesquisadora brasileira, a disposição da análise do donjuanismo pela valorização dos componentes temáticos do mito literário plasmados nas recriações poéticas dos textos castroalvinos, sublinhando, assim, a direção contrária ao biografismo crítico. Embora discorra sobre o paralelo existente entre os intertextos castroalvino e azevediano, verifica-se, neste último estudo proposto por Mauro (2014), uma incursão às formas representativas do mito literário de Don Juan a fim de dar sentido às imagens recriadas por Castro Alves a partir de sua apropriação leitora. É, neste ponto, que a pesquisadora atualiza o trabalho de Mendes (2005), pois, empregando uma abordagem análoga de exploração dos temas representativos ao mito de Don Juan na obra de Castro Alves, avança a discussão ao considerar a circunscrição cultural e temporal a que estavam subordinados os dois escritores: 26 Mauro (2014) referia à passagem de “Impressões da leitura de A. A. de Mendonça” na qual Castro Alves reprovava os acentos melancólicos da poesia do poeta conterrâneo, sugerindo melhores voos: “Em todo o caso deveria haver mais esperanças naquele coração de moço, sua poesia em vez de ser o grito da andorinha senta à cruz do cemitério, devia ser, no dizer Álvares de Azevedo, o voo das aves da manhã no banho morno das nuvens vermelhas da alvorada”. (ALVES, 1997, p. 670). A referência ao conto “Claudius Hermann”, de Azevedo, como havia identificado a pesquisadora, integrava o espólio da crítica de Castro Alves aos jornais do Recife. No caso presente, tratava-se de uma contribuição do poeta ao suporte recifense O Futuro, no qual o poeta havia produzido, segundo nosso julgamento, suas primeiras manifestações donjuaninas, “Pesadelo” e “Crônica Jornalística”. 63 As questões ideológicas características da atmosfera na qual se inscrevem Álvares de Azevedo e Castro Alves obviamente condicionam outros modos de leitura do mito. Nesse sentido, transformações dessa ordem ocorridas ao longo do intervalo que separa o auge das produções literárias do poeta paulista (1848-1851) e do poeta baiano (1865-1870) interferem no funcionamento da alusão ao mito nas suas obras. (MAURO, op. cit., p, 142) Observa-se aqui mais do que a proposição de uma análise comparada pelo cruzamento dos intertextos dos dois românticos, mas, sobretudo, a tentativa de compreender os estratos de tempo aos quais pertenceram e como estes últimos impactaram na percepção leitora que Álvares de Azevedo e Castro Alves fizeram do mito. Entretanto, a pesquisadora focaliza apenas as questões histórico-culturais sabidamente veiculadas ao nome do poeta baiano para justificar aquilo que corresponde, na realidade, a uma faceta do seu donjuanismo combativo bebido em Byron. Reincide, portanto, na interpretação corrente de uma imagem de Castro Alves associada ao engajamento social com a qual o mito de Don Juan mantém semelhanças dada à natureza de seu estado de transgressão. Como se percebe, o grande impasse na penetração mais funda das razões que motivaram o mito de Don Juan em castro Alves reside na indeterminação histórica das leituras efetuadas pelo escritor. Este problema, contudo, não tem, lamentavelmente, maiores desdobramentos nos dois trabalhos aqui mencionados. Apesar da renovação na abordagem temática e formal da análise do mito pelo texto literário, rompendo com a perspectiva do biografismo crítico tradicional, as novas pesquisas sobre o donjuanismo em Castro Alves empregam um procedimento metodológico alheio às circunstâncias particulares de recepção e de revisão envolvidas aos textos do poeta. Ao explorar a incidência do mito de Don Juan nos textos castroalvinos, Mendes (2005) e Mauro (2014) o fazem pela eleição de versões do mito nas quais as marcas distintivas são preteridas aos traços genéricos e anedóticos popularmente difundidos. Desta maneira, os críticos que se ocuparam do poeta, com raras exceções, aduzem à permanência do mito na obra do escritor, ora pela associação vida/obra, ora pelos modelos convencionais de donjuanismo, sem demarcar as experiências de leitura que mobilizaram a apreensão literária do mito de Don Juan na fatura dos textos castroalvinos. No rico cenário leitor do Oitocentos romântico, e considerando o sortido mercado de impressos e de suportes literários que agitavam as principais capitais do país, a recepção literária do motivo espanhol se viu mediatizada em versões canônicas de fácil difusão, a exemplo de Molière e Da Ponte e Mozart, 64 mas também em modalidades mais restritas a determinados centros acadêmicos de leitura. Trafegando por polos culturais distintos e vivendo um período de transição entre o ultrarromantismo e o drama romântico-realista, as realizações literárias de Castro Alves conheceram mais de uma possibilidade de compreensão do donjuanismo. Ao cômputo da obra literária legada por Castro Alves, registramos um donjuanismo sensual e erótico, político-engajado na linha de Byron e Victor Hugo, ultrarromântico, e fronteiriço à moda do gótico e do fantástico. Estes dois últimos, aliás, foram ostensivamente apagados dos estudos críticos castroalvinos por manter uma aparência irreconciliável à imagem popularmente difundida do autor como poeta ardente e sedutor. Evidentemente que estas manifestações donjuaninas estão entranhadas às práticas e às trocas de leitura realizadas nos palcos de atuação pública por onde o escritor transitou. Nesses centros culturais, de intensa atividade literária proporcionada pelo periodismo acadêmico e por um ambiente favorável à circulação de impressos, figuram-se as condições materiais ao aporte de leitura diversa, estrangeira e nacional, a respeito do mito. Em nosso entendimento, o caráter difuso, fragmentário e múltiplo, da presença do mito literário na obra de Castro Alves é produto dessas interações de leitura com a qual o poeta se deu em seus anos no Recife, na Bahia e em São Paulo. Recompor esse cenário das trocas literárias facultaria uma percepção mais nítida da extensão alcançada por esse tema apreciado pelo escritor. O posicionamento atual da crítica do poeta se direciona em caminhos divergentes no tocante a apropriação que Castro Alves havia se servido de suas leituras. Recapitulando a interpretação dada pelos primeiros e os novos estudos sobre o poeta no tocante à incidência literária do motivo espanhol em sua obra, teríamos um quadro não muito ortodoxo quanto à uniformidade destas manifestações. Como já comentado, Haddad (1953) rastreia leituras do poeta bebidas em Byron, Musset e Azevedo, com especial destaque a este último; Faria (1971), sem necessariamente se ater a esta discussão, leva-nos a inferir uma leitura da vertente donjuanina em Rolla, de Musset, num primeiro contato que o autor baiano teve da leitura do francês via Azevedo: “As diversas alusões a Rolla [...] atestam na sua poesia a presença de um Musset desfigurado pelo byronismo brasileiro” (Ibid, p. 5); Barboza (1974), assim como Maria Alice Faria ao se distanciar desta discussão, fornece-nos informações preciosas sobre leituras francesas de Byron; Eugênio Gomes, especificamente na apreciação do incompleto A prole dos saturnos, amplia o leque dos intertextos mussetianos solicitados pelo escritor, ao sugerir a tirada tétrica da narcotização de Ema, vítima, naquele drama, do sedutor 65 Marcus (O Globo, 19 ago. 1961, p. 9); Calmon (1973) enxerga uma transição do mito de Romeu vacilante no amor para um Don Juan fatídico em “Os três amores”, “A volta da primavera” e A prole dos saturnos, acertando a este último as impressões do teatro dramático recolhidas em Théodore Barrière, dramaturgo francês autor da peça realista As mulheres de mármore, e o burlador definitivo, figura do teatro espanhol, na realização de os “Anjos da Meia-Noite” (Ibid, p. 301-302). Os novos estudos, à exceção de Neto (2016) que, como já observamos, recupera em sua pesquisa o paralelo vida/obra para a cena teatral de A prole dos saturnos, investem, nas análises dos textos de Castro Alves, uma aproximação com a matriz espanhola do mito. Na evolução histórica do mito literário espanhol adaptado para o tablado, três nomes são tradicionalmente lembrados: Tirso de Molina, Zamora e José Zorrilla. O primeiro e o último, porém, foram consagrados pela popularização do personagem burlador, Don Juan Tenorio. Neste modelo bem definido de herói, temos o conquistador que aplica suas burlas às presas de sua retórica sedutora, mas também que se vale do embuste dos disfarces para penetrar furtivamente na alcova das donzelas malogradas. Mendes (2005) assinala a preferência de Castro Alves por esse modelo de herói. Nos poemas nos quais a incidência textual é mais direta, a exemplo de “Boa Noite” e “A volta da primavera”, alusivas a Shakespeare e a Byron respectivamente, a pesquisadora põe em evidência os intertextos aludidos pelo poeta; entretanto, dada a dificuldade de delimitar a inspiração de “O ‘Adeus’ de Teresa”, frisa, antes, os aspectos genéricos ao mito da tradição espanhola, fazendo inferência à primazia do mito em Zorrilla como manifestação literária dominante ao romantismo: “O ‘Adeus’ de Teresa” (1868) relata os vários estádios da conquista donjuanesca – sedução, posse e abandono – concentrados numa única estrofe de cinco versos. [...] As três fases da actividade de Don Juan, embora sugeridas já em Tirso de Molina, só com o romântico espanhol José Zorrilla adquirem significado pleno. Em Don Juan Tenório, o protagonista seduz, no espaço de um ano, setenta e duas mulheres que rapidamente esquece. (Ibid., p. 447-448) A possibilidade de diálogo com os modelos espanhóis conhecidos é também matéria da pesquisa de Mauro (2014), estabelecendo vínculo com Molina, Zorrilla e Espronceda. No primeiro, a estudiosa encontra lances do enredo de A prole dos saturnos rastreáveis no intertexto de El Burlador de Sevilla, a exemplo da postura altaneira de Tisbea, pescadora ludibriada por Don Juan, ao cumprir obstinadamente a promessa de vingança pelo logro: 66 Vale lembrar, contudo, de que uma marca característica da personagem de Tisbea, em Molina, residia em sua eloquência e sua proximidade com Ema deriva também do fato de ela ter jurado vingança a Don Juan após ser ludibriada por ele. Não por acaso, Ema anuncia que caso Marcus deixasse de amá-la, ela se transformaria no “Satanás da vingança” (p. 231), anunciando uma atitude que se confirmará no rascunho do final do drama. (Ibid, p. 152) A intertextualidade com Molina ainda encaminha a leitura-interpretativa de “Mocidade e Morte”, cujo entrechoque com a fatalidade do destino é admitido como uma “alusão indireta ao mito [que] pode denotar a morte como castigo, à maneira de El Burlador.” (Ibid. p. 132). Zorrilla, por sua vez, é sugerido, conjuntamente a Molina, no emprego de metáforas da natureza presentes na canção “Manuela” de Castro Alves que se somam a descrições metafóricas “quase que literal” (p. 156), emprestadas a Byron. Já Espronceda ditaria a tônica do cenário noturno presente em “Os Anjos da Meia-Noite”. Confrontando os dois ramos da crítica castroalvina devotada ao estudo da incidência do mito literário no poeta, percebe-se, de imediato, uma cisão no que diz respeito à admissão de uma matriz espanhola como modelo inspirador. Sem negar, necessariamente, a entrada de uma representação mítica de Don Juan nos textos do poeta baiano, percebemos que a crítica biográfica tradicional raramente enfoca versões donjuaninas tributadas ao teatro espanhol. A nova crítica, em contrapartida, em um sentido contrário àquela tradição dos estudos sobre o poeta, não hesita na proposição do comparativismo assentado em textos de Molina e Zorrilla, escritores responsáveis pela popularização do mito na Espanha. Diante desse cenário binário na qual se insere a crítica castroalvina, refletimos sobre alguns pontos que, em nosso entendimento, auxiliariam na avalição que se faz hoje sobre a apropriação do mito literário no poeta. Tanto a crítica atual, quanto a tradicional biográfica, trazem enorme contribuição à fortuna dos estudos castroalvinos sobre o tema. Inicialmente, acreditávamos que a reserva mantida pelos primeiros estudiosos do poeta no que toca à aceitação daquela matriz espanhola era produto de uma crítica-literária simpática à promoção do comparativismo textual voltado ao centro cultural metropolitano francês. Entretanto, a constatação da rede de leituras de extração francesa na obra do autor é própria à sua época e a adesão consentida aos temas que se ligavam à história da civilização francesa já foi estudo de mais de um de seus críticos como Antônio Cândido, Maria Alice Farias e Cláudio Veiga. Fazia parte, portanto, do status público da juventude romântica liberal e progressista, antenada nas 67 leituras de Hugo, Musset e Byron, este último traduzido e retraduzido pelos cacoetes daquela geração, até o aparecimento da demanda de novas leituras com o advento do Realismo. Evidentemente que, vivendo num período movido pela internacionalização da cultura, Castro Alves teve a oportunidade de conhecer outras literaturas que desembarcaram no Brasil, além das consagradas pelo panteão francês. Contudo, ainda assim, eram estas as mais visitadas, não havendo nisso qualquer estranhamento. Razão que fez Fausto Cunha chamar a atenção da crítica castroalvina na elaboração de juízos apressados sobre o índice de referências de leitura no poeta: Castro Alves, como todos os românticos e ultrarromânticos, sofreu tremendas influências estrangeiras. Nem sempre conseguiu desvencilhar-se de seus modelos, dos estereótipos e da retórica ordinariamente primária do romantismo. Assim, nada há que admirar no fato de haver mais “francesismo” do que “sertanejismo” nos passos que Eugênio Gomes considerava “absolutamente sertanejos”. A linguagem castroalvina guarda, demais de tudo, contribuições muito nítidas de poetas anteriores. (CUNHA, 1978, p. 52) Ao colocar em discussão a abordagem à incidência e à apropriação das leituras estrangeiras e nacionais verificáveis nos textos do poeta baiano, Cunha (1978) rediscutia o peso tradicionalmente atribuído à imagem de Castro Alves como escritor de exceção. Sem entrar na celeuma do julgamento do valor concebido às realizações poéticas do escritor – um dos capítulos centrais de seu O Romantismo no Brasil (1971) – julgamos, ainda hoje, pertinentes e atuais as ponderações que o crítico trazia à ocasião para o estudo do caso literário de Castro Alves. Cunha (1971) pretendia atribuir aos debates castroalvinos o peso da pesquisa histórica mais rigorosa às análises literárias propostas por seus contemporâneos sobre o poeta. Desta maneira, dedicando-se com afinco às circunstâncias culturais de produção do texto pela perspectiva histórica, refutava as análises-interpretativas sobre a obra do escritor assentadas em uma imagem de seu gênio culturalmente construída. A despeito das noções de originalidade e de imitação, a fim de, como já dito, emitir juízo de valor sobre a obra de Castro Alves, as considerações de Cunha (1978) assumiam, porém, um compromisso com os aspectos históricos e estéticos que deram forma aos poemas modulados pelo poeta romântico. Assim, em elogio ao desvelo com que Eugênio Gomes se 68 entregava à pesquisa dos manuscritos deixados pelo poeta, recordava o cuidado que se deveria ter na entrada à análise dos textos castroalvinos: Há outro motivo não menos ponderável: é o relativo desprezo com que se trata, em nosso meio, a pesquisa literária. Pela razão mesma de nossa incipiência cultural, a pesquisa ocupa um lugar dos mais obscuros. Via de regra, considera-se o ensaio de pesquisa como um artigo de circunstância e, pior ainda, como o produto de uma descoberta casual. Poucos são aqueles que conhecem de perto o que seja rastrear durante dias, semanas, meses, até anos, uma simples data de livro, para depois averiguar um fato, corroborá-lo, retificá-lo, etc. – sem que muitas vezes o resultado compense o trabalho. Há um detalhe ainda penoso que escapa aos leigos: é que, frequentemente, da leitura de dezenas de livros e revistas, da consulta de jornais e documentos inéditos, do levantamento de dados originais, da manipulação de fichas laborais, do confronto de material de difícil acesso, da localização de produções tidas como extraviadas – resulta... nada! (CUNHA, 1978, p. 48-49) As reflexões do crítico surgiam num momento em que os espólios da obra literária de Castro Alves eram ainda estudados a fim de se dar a eles um estabelecimento textual mais confiável. Como observamos no capítulo anterior, esta insegurança resultante da ausência de uma padronização dos textos castroalvinos nas diversas edições que se seguiram à morte do poeta ainda levavam pesquisadores como Eugênio Gomes a reavaliar a fortuna literária existente do escritor. Como vimos, alguns posicionamentos na definição de crítica genética redefinem um cabedal de informações que o pesquisador carrega a respeito de um determinado tema em escopo. É, assim, que nos parece comportar o tema do donjuanismo na obra de Castro Alves, orientando a interpretações variadas e, até mesmo, dissonantes entre si por seus mais respeitáveis comentadores. Esse quadro polarizado de que falávamos a propósito das incidências textuais de leitura sobre o mito em Castro Alves é reflexo, além da variação de opiniões no que tange à segurança no estabelecimento do texto definitivo, da necessidade também de revisão dos que se ocuparam em tratar das fontes de leitura inspiradoras do poeta, e da qual nem mesmo Haddad (1953) escapa por ter tido que “largar na arena uma excessiva quantidade de pontos, cada um dos quais por si só merecedor de investigação” (CUNHA, op. cit., p. 51). De um lado, temos o aporte biográfico que os primeiros críticos davam na entrada aos textos castroalvinos e que, ao mesmo tempo, não arriscaram em defender a hipótese de leituras do poeta bebidas no teatro espanhol; na outra ponta, uma crítica literária acadêmica, desvinculada deste primeiro sentido tradicional, 69 voltando-se para os elementos estruturais e temáticos dos textos do poeta admitidos como legítimas manifestações donjuaninas colhidas em Tirso e Molina. Os atuais estudos críticos sobre o motivo espanhol no poeta trazem à tona uma discussão que já parecia aparentemente vencida para os seus pesquisadores, propondo, desta sorte, uma reavaliação da crítica literária anterior. Rompem com leituras verticais que aferem ao texto castroalvino a noção de produto cultural de discutível valor estético ou desprovido de originalidade. Propõem, portanto, um olhar renovador sobre sua obra ao se dobrar na leitura das representações do mito recriado em versos conhecidos de Espumas Flutuantes e no drama A prole dos saturnos. É, com efeito, um trabalho que consolida de vez o abandono do ensaísmo de cunho biográfico. Todavia, é necessário ajuntar que o novo ramo dos estudos castroalvinos não parece se inclinar às condições da materialidade histórico-discursiva do texto para justificar as injunções simbólicas que dele consegue abstrair. Ao propor a seleção de textos com os quais o mito de Don Juan flertaria tematicamente, Mendes (2005) e Mauro (2014) o fazem, porém, sem considerar a gama de intertextos que se interpõem à fatura das produções castroalvinas e que são, decerto, espelhadas na experiência leitora historicamente demarcada em seu tempo pelo poeta. Produtos culturais sintonizados com o discurso romântico e familiares obviamente à vivência artística de Castro Alves que devem ter o seu peso no balanço das composições que saíram do punho do escritor. É, neste ponto, que divergimos das pesquisadoras, no tocante ao procedimento de seleção e de abordagem da incidência do mito literário desprovida do suporte mais acurado da investigação histórica. Posicionamento contrário que nos faz acordar com as pesquisas das fontes de leitura do poeta, trabalho iniciado por Haddad (1953) que as quantificou, embora não as tenha, como já havia explicado Cunha (1978), aprofundado numa investigação mais consistente. Uma pesquisa que já angustiava estes dois últimos estudiosos e que hoje vem sendo ultimamente desenvolvida pelos trabalhos acadêmicos de recepção textual. Desta sorte, anuímos – embora tenhamos reserva à análise textual pelo viés biográfico – com a crítica tradicional em não assinalar leituras de Castro Alves debitadas à matriz do mito espanhol encontrado em Molina e Zorrilla. Dois motivos nos levam a declinar na concordância em delegar ao teatro espanhol destes autores o modelo literário que o poeta brasileiro havia achado para a concepção de seu personagem mítico. O primeiro reside num problema de inconsistência histórica na acolhida do teatro espanhol como demanda de leitura insurgente 70 entre nossos românticos. Os estudos sobre a recepção de Zorrilla no Brasil é outro entrave para averbar uma presença consistente do escritor como fonte de inspiração direta aos nossos poetas, aparecendo em casos incidentais aos autores nacionais que frequentaram outros centros, a exemplo de Gonçalves Dias. A situação de Molina é ainda mais delicada e preocupante, uma vez que seu nome foi ofuscado do cânone espanhol, com muito de suas peças sendo atribuídas a Lope de Vega, permanecendo por quase três séculos no ostracismo, para ser recuperado apenas no século XX pelos esforços de sua contumaz pesquisadora Blanca de los Ríos. Uma varredura de seu nome no acervo digital de nossa memória em periódicos oitocentistas nos dá um diagnóstico de como sua representatividade literária foi postergada para um período ulterior ao Romantismo. A outra razão estaria na ausência de marcas da própria escrita do intertexto desses escritores plasmado esteticamente nas composições de Castro Alves. Não encontramos nenhuma evidência textual indicativa de que o poeta baiano houvesse se apropriado de o Don Juan Tenório de Zorrilla (1844) ou de El burlador de Sevilla y Convidado de Piedra (1630). As alusões a Zorrilla não chegam a se configurar em indícios robustos de sua manifestação discursiva no poeta brasileiro de modo que as aproximações possíveis entre os dois – Zorrilla e Castro Alves – revelam-se apenas nos traços anedóticos comuns às versões mais populares do mito e ao autor de Don Juan Tenório e que estão naturalmente diluídos também nos textos do baiano. Esse é, entretanto, apenas um dos aspectos da complexidade que tange à incorporação do mito de Don Juan no poeta brasileiro. O outro, ainda que imbricado ao primeiro, diz respeito ao modo como esses aportes textuais incidem na maneira peculiar de como o poeta concebe o tratamento dispensado ao mito. Facetas desconhecidas do mito de Don Juan em obras de Castro Alves menos exploradas pelo crivo de seus críticos assinalam um modelo não muito convencional com a imagem sadia e erótica consentida pelo imaginário popular sobre o poeta. Uma prática com gêneros textuais incomuns à imagem literária que se quis do escritor baiano aponta para uma tendência inabitual ao estro poético castroalvino: a do cultor do gênero gótico e do fantástico. Antes de dedicarmos cuidado à análise mais detida a essa forma de manifestação do mito donjuanino, consagraremos um estudo da evolução histórico-literária de Don Juan desde seu berço na Espanha Contrarreformista do século XVI até sua expansão e popularização com a chegada do Romantismo. Intentaremos unir as informações colhidas dos traços singulares 71 presentes nas versões mais conhecidas do mito literário de Don Juan às nossas pesquisas bibliográficas de fundo histórico a fim de estabelecer, através desses dados coletados, quais formas factíveis de leitura do mito literário infundiram na concepção e definição do tema nos trabalhos do poeta. Procuraremos configurar o panorama histórico das práticas de leitura do poeta dos anos de 1860 no Recife acadêmico – segundo berço, depois da Bahia, de sua formação humanística e cultural –, a fim de compreender a apropriação literária do mito donjuanino nesse período anterior à sua entrada gloriosa na São Paulo de 1868. Adiantamos, portanto, que as impressões genéricas do motivo do sedutor andaluz, infundidas por versões literárias desconhecidas de hoje ou improváveis ao olhar da crítica castroalvina em geral, já representavam realidade na fatura de suas composições na capital pernambucana, integrando- se, mais tarde, às que viriam a lume em sua passagem pelas arcadas paulistas. Rastrearemos as potenciais fontes literárias da matriz mítica espanhola para melhor entender se e como elas impactaram na apreensão imaginária do tema para a formulação de suas composições poéticas e em prosa. 72 CAPÍTULO II MATRIZES MÍTICAS DE DON JUAN 73 A linguagem poética de Castro Alves se assemelha à prosódia encontrada nos versos de escritores espanhóis e hispano-americanos. Essa constatação possibilita o levantamento da hipótese de uma entrada da leitura de alguma versão de Don Juan em impressos diferentes dos encontrados pelo domínio do mercado francês aqui no Brasil. Os críticos do autor sugerem conhecimento de Castro Alves da matriz espanhola do mito, representada, principalmente, pela tríade de Tirso de Molina, José de Zorrilla e José de Espronceda. Ferreira (1947) trouxe à nota um estudo no final dos anos de 1950 que revelou um lado desconhecido do poeta: a familiaridade com a língua e cultura espanhola. Haddad (1953) enxergou na revelação daquele crítico uma aproximação hereditária com os árabes na Espanha, construindo uma tradição das raízes hispânicas na abordagem dos poemas do escritor. Se o texto de Castro Alves se mostrou mais de uma vez inspirado em livros de autores de seu tempo, seria possível afirmar também que, assim como a bagagem de leituras francesas, o poeta teve e/ou dominava outras modalidades de língua e de leitura? A redescoberta de impressos do Oitocentos romântico vem responder a essa indagação, ampliando a faixa das leituras do escritor. O afrancesamento dos estudos no autor em muito contribuiu para o fortalecimento de sua fortuna crítica, mas é de se considerar que o baiano viveu em centros mundanos de relativa agitação cultural na era do comércio do livro facultada pelas rotas dos transatlânticos. Uma revisão de alguns aspectos encontrados em seus manuscritos, alicerçada à pesquisa aos centros de sua atividade intelectual, dão-nos hoje resultados mais animadores. Desta forma, intentamos ressignificar o olhar da crítica tradicional e moderna a respeito de trabalhos literários do autor assinados como manifestações de leituras donjuaninas. Castro Alves, dominando um leque maior de leitura dos românticos contemporâneos, pôde criar a sua própria representação literária do sedutor espanhol. 74 1. A MATRIZ ESPANHOLA E AS EVIDÊNCIAS DE LEITURA O poeta espanhol Francisco Villaepesa, responsável pela introdução de Castro Alves em seu país, ao transpor para o castelhano os versos inspirados do romântico, atestou a seu respeito: “Castro Alves, por seu temperamento, por sua sensibilidade e por sua imaginação, foi um poeta medularmente espanhol, sem deixar de ser o mais brasileiro de todos” (VILLAEPESA, 1930, p. 14)27. Vertendo para a sua língua O Navio Negreiro (1868), entre outras composições do estro poético do baiano, o tradutor sentiu na translação dos originais deste último um parentesco linguístico entre o castelhano e o português do Brasil. Arvorando- se na condição ocupada de seu duplo ofício de poeta e de tradutor, Villaepesa era o primeiro a sinalizar abertamente uma identidade aproximativa da poesia de Castro Alves com o espanhol. O contato com manuscritos inéditos do poeta naquela ocasião da década de 1930, a exemplo de traduções de El diablo mundo (“O diabo mundo”), de Espronceda e Pajaro Viajero (“Pássaro Viajante”), do chileno Guillermo Gana, integrado à coletânea do espanhol sem indicativo de autoria, teria, de certa forma, contribuído para uma impressão castelhana dos versos de Castro Alves, mas nada, porém, que desabonasse o registro feito pelo tradutor espanhol àquelas poesias que lhe chegavam às mãos. Ao empenho deste trabalho incipiente de divulgação dos poemas castroalvinos na Espanha28, seguiram-se mais dois estudos de promoção do acento espanhol nos versos do poeta29. Haddad (1953, v. 2) esforça-se por construir uma origem genealógica do poeta de ascendência espanhola árabe. Faz injunções às impressões de leituras literárias do poeta para justificar essa origem arábica (Ibid. p. 21). Quando, porém, atém-se às questões direcionadas ao estudo do texto, tem resultados um pouco mais convincentes. Apresenta ao leitor uma presença hispânica assinalada pelos versos de Les Orientales (“As Orientais”) de Victor Hugo, 27 “Castro Alves, por su temperamento, por su sensibilidad y por su imaginación, fué un poeta medularmente español, sin dejar de ser el más brasileño de todos” (VILLAEPESA, 1930, p. 14). As palavras do poeta espanhol eram as considerações finais de a “Carta Abierta” dirigida à irmã daquele, Adelaide dos Guimarães Castro Alves, que, como se sabe, mais de uma vez se colocou à frente nos esforços de perpetuar a memória do escritor. 28 A rigor, Múcio Teixeira é quem primeiro ensaia traduções do poeta baiano para o espanhol. Em sua Vida e Obra de Castro Alves (1896), encontram-se as primeiras poesias do poeta vertida para a língua de Cervantes e que se encontram apensas à sua obra. Entretanto, como trabalho restrito à tradução, e voltado detidamente à recepção espanhola do poeta romântico brasileiro, colocamos em evidência as traduções de Francisco Villaepesa. 29 Há um terceiro trabalho publicado, Sangue espanhol nas veias de Castro Alves (1977), resultado de uma conferência dada por Vivaldo Cairo em Salvador no dia 21 de março de 1977. A exposição do palestrante, porém, reproduz, quase em forma de síntese, as discussões trazidas por Lopes Rodrigues Ferreira em Castro Alves (1947), e a quem homenageia, epigrafando-o na abertura de sua exposição. Todavia, deixamos aqui, à guisa de registro, esta informação. 75 e não esquece de apontar uma Espanha convencional marcada por crimes de honra e vindictas presentes, como já tínhamos aludido, em poemas de Alfred de Musset. No livro terceiro de sua Revisão, todo consagrado às influências literárias, o crítico, contudo, omite, quase por completo, as possibilidades de fontes inspiradoras de leitura de expressão espanhola. As traduções do chileno Guillermo Gana são ligeiramente referendadas30 e os espanhóis Lozano e Espronceda são apenas vagamente citados como imitadores de Hugo e Byron respectivamente. Ferreira (1947) é, porém, dos que se ocuparam do tema o mais versado. Em “Aroma de Cádiz”, estudo preparado para o segundo tomo de seu Castro Alves (1947), traz à tona toda uma imagética espanhola de que se revestem os textos literários e epistolares do poeta. Considera as raízes familiares que lhe transmitiram o sangue dos espanhóis. Com uma vasta erudição, passeia por nomes seletos e menos prováveis da literatura e cultura em geral espanhola para reforçar o sentido da imagem simbólica e originária da Espanha, inspirando a concepção de Haddad (1953) sobre a procedência do berço do escritor baiano. No tocante às fontes textuais, o crítico faz ilações ao poeta sobre seu conhecimento de O burlador de Molina para lhes justificar as façanhas amorosas de contumaz conquistador à maneira daquele personagem, “desfazendo corações de donzelas e mantilhas de damas”. (FERREIRA, op. cit., p. 552). Encontra uma identidade simbólica com o mito de Zorrilla em sua interpretação biográfica da terceira estrofe de “Os três amores”, poema emblemático do repertório de textos donjuaninos do poeta: Castro Alves não é o D. Juan de Zamora, sim o toreador de corações de mulheres, de Zorrilla, fanfarrão, ameaçador, liricamente trágico. O D. Juan de Tirso acaba no inferno; o de Zamora acaba sem destino ou sem destino certo; o de Zorrilla redime-se, pelo amor. O de Castro Alves só se salva com a morte, se atingir “mantilha”... (Ibid., p. 553) Ainda no mesmo poema castroalvino, no conhecido decassílabo “Sou D. Juan!... Donzelas amorosas” (ALVES, 1997, p. 94), identifica uma confissão pública do poeta de seu orgulho hispânico de sedutor. Em “Versos de um viajante”, embora na perspectiva da análise 30 Haddad (1959), porém, faz esse ajuste à 3ª edição de Castro Alves: Poesias Completas, ao interpô-las às traduções reunidas do poeta no final desse livro. 76 biográfica, traz-nos valiosa informação de diálogo textual de Castro Alves com Espronceda, ao associar o cenário das belas moças despertadas pela guitarra do estudante no poema daquele à versão donjuanina do mito neste último, El estudiante de Salamanca (1840) (“O estudante de Salamanca”). Como se percebe na apresentação de Ferreira (1947) e Haddad (1953), predomina novamente a abordagem do estudo textual pelo biografismo, ressaltando-se a ascendência espanhola do escritor, espelhada numa imagem mítico-literária, não muito claramente definida, em Molina e em Zorrilla (Ferreira), ou através das impressões de Castro Alves sobre a imagem da Espanha registrada de suas leituras literárias (Haddad). Não ficam patentes, porém, pelo comparativismo textual, as ocorrências de leitura das versões possíveis e conhecidas do mito literário do teatro espanhol, focalizando ambos estudiosos do autor a linhagem genealógica castroalvina recobrada em imagens convencionais da Espanha diluídas em sua obra literária. Faltam, portanto, trabalhos seguros referentes ao poeta baiano que possam explorar tematicamente a manifestação, ainda que mínima, da literatura espanhola em suas composições artísticas31. A presença da Espanha na obra de Castro Alves não fica condicionada à restrição de imagens convencionais de topônimos como Andaluzia e Madri, apuráveis em textos traduzidos de Musset ou neles inspirados32, ou de personagens arquetípicos da tradição literária espanhola ressemantizados em recriações poéticas ulteriores e tornados populares na forma de livros no século XIX, a exemplo de Don Juan, na versão de Byron, de Campeador, o El Cid das canções de gesta hispânicas, na versão homônima de Thomas Corneille, ou, ainda, do Don Quixote de Cervantes, na versão de Viardot, como já anotado por Haddad33. Antes, verifica-se uma marca, se não definitiva, ao menos, relativamente expressiva, de uma literatura espanhola que ainda 31 Haddad (1953), nesse sentido, é ainda mais omisso. No que se refere à compilação das “influências” literárias estrangeiras na obra do poeta, aparecem respectivamente topicalizadas no terceiro livro da Revisão as francesas, inglesas, alemães, portuguesas, italianas e norte-americanas, porém, nenhuma espanhola. 32 Como se sabe, Castro Alves traduziu poemas do escritor francês como “Madrid” e “Venise” de Premières Poésies (1829) (“Primeiras Poesias”), lugares-comuns do romantismo europeu; ou ainda, a atmosfera sensual da Andaluzia sugerida pelo poema “L’andalouse” (“A andaluza”) que, conforme sugere FERREIRA (1947, p. 569), seria inspiração à concepção da personagem do poema “Pesadelo”. 33 A leitura de o D. Juan de Byron por Castro Alves, como já se faz perceber, era bem conhecida, porém não correspondia a um modelo exclusivo de leitura do mito literário, vindo a se somar a outras manifestações literárias familiares ao poeta baiano. No caso do cavaleiro legendário do medievo espanhol, conhecido das lutas travadas contra os mouros muçulmanos, Castro Alves o conhecia também de versões de impressos franceses, chegando mesmo a mencioná-lo em notas comentadas às Espumas Flutuantes: “A bravura é uma herança nesta nobre terra (Bahia)! E o passado pode repetir ao presente como o D. Diègue de Corneille: ‘Montre-toi digne fils d’un père tel que moi’” (ALVES, 1997, p. 207). 77 permanece fora dos debates de literatura comparada a respeito de Castro Alves, e do romantismo nacional. A identidade com os escritores espanhóis pode ser sentida, de imediato, no plano da expressão verbal. Castro Alves emprega recursos técnicos de poética e lança mão de um repertório lexical notadamente familiar aos castelhanos. Na compilação da linguagem de Espumas Flutuantes, HADDAD (1959) nos oferece um relatório de ocorrências dos vocábulos nesta obra do poeta. Ainda que não houvesse se dobrado ao estudo etimológico do léxico mapeado, o crítico nos oportuniza uma ferramenta valiosa de pesquisa. Em uma consulta à compilação do crítico do autor, apoiando-nos no dicionário de Língua Portuguesa de FARIA (1859), contemporâneo a Castro Alves, foi possível que reconhecêssemos o registro do espanholismo de origem árabe (alcantil, alcova, âmbar, aroma, atalaia, cabana, coifa), da rubrica da poesia facilmente encontrada em escritores românticos espanhóis (arrebol, auras, balsas, frente, palor, rubente) e do castelhano direto (espalda, Chimborazo). Este último, aliás, apresenta forte semelhança com a linguagem empregada por José de Espronceda, um dos cultores do mito de D. Juan na Espanha: Ondulados flocos de nevada espuma Forma o arroio que se jogando salta, Ricos países de vistosa pluma Em campos aéreos o passarinho esmalta: Levanta-se ao longe nebulosa bruma, Rica em sombras, tão pobre de luz, E o verde prado e o distante monte Parede e término são do horizonte. Ali no vertical cume vaporoso Seu manto no Oriente a aurora estende E branco, e puro, e gracioso fogo De sua fronte de nácar se desprende: Cândida sílfide em seu fugaz deslumbre O ar entorno rosado inflama E em sua fonte a ondina voluptuosa Se balança ao som da água harmoniosa. E atrás a densa e fúnebre cortina Do fundo mar sobre a loura espádua, Rajadas dando de sua luz divina Balança-se o sol em leitos de esmeralda. (El diablo mundo – ESPRONCEDA, 2008, p. 114)34 [grifos nossos] 34 “Rizados copos de nevada espuma/ Forma el arroyo que jugando salta,/ Ricos paises de vistosa pluma/ En campos de aire el pajarillo esmalta:/ Alzase lejos nebulosa bruma,/ De sombras rica, si de luces falta,/ Y el verde prado y el lejano monte/ Muro y término son del horizonte.// Allá en enhiesta vaporosa cumbre/ Su manto en 78 O fragmento em destaque constitui a introdução do quarto canto de O diabo mundo, poema de cunho metafísico de Espronceda cujo prólogo Castro Alves havia traduzido em 1871. A abertura desse canto é realizada pela exposição de um quadro plástico-visual no qual os elementos naturais são alegorizados com a chegada do arrebol. O esquema rimático espádua/esmeralda é também adotado por Castro Alves, chegando a preservar a forma gráfica castelhana do original, espalda. Tomando a sugestão pictórica a Espronceda, o poeta brasileiro tropicaliza o cenário de seu poema “Immensis orbibus anguis” (1869), deslocando os mitos da tradição europeia (ondina, sílfide) em favor do enquadramento do modelo feminino ameríndio: Resvala em fogo o sol dos montes sobre a espalda, E lustra o dorso nu da índia americana... Na selva zumbe entanto o inseto de esmeralda, E pousa o colibri nas flores da liana. Ali — a luz cruel, a calmaria intensa! Aqui — a sombra, a paz, os ventos, a cascata... E a pluma dos bambus a tremular imensa... E o canto de aves mil... e a solidão... e a mata... E à hora em que, fugindo aos raios da esplanada, A Indígena, a gentil matrona do deserto Amarra aos palmeirais a rede mosqueada, Que, leve como um berço, embala o vento incerto... (Immensis orbibus anguis – ALVES, 1997, p. 188) [grifos nossos] A referência no intertexto de Espronceda ao “Rico países de vistosa pluma” é o mote de que se serve Castro Alves para exaltar a cor local brasileira a partir do arranjo lexical de vocábulos diretamente pinçados do texto espanhol (fogo, sol, monte(s), ali, sombra(s), pluma, espalda, esmeralda) ou semanticamente análogos à escolha dada ao seu texto (balança/ embala, passarinho/ colibri, verde prado/ flores da liana, arroio/ cascata, leitos de esmeralda/ rede mosqueada). Como se observa, o poeta romântico espanhol é uma leitura inspiradora à concepção do poema de Castro Alves, embora não evidente à primeira vista, posto que não aparece estampado Oriente el alba tende,/ Y blanca, y pura, y regalada lumbre/ De su frente de nácares desprende:/ Cándida silfa á su fugaz vislumbre/ El aire en torno sonrosado enciende,/ Y en su fuente la ondina voluptuosa/ Se mece al son del agua harmoniosa.// Y tras la densa y fúnebre cortina/ Del hondo mar sobre la rubia espalda,/ Ráfagas dando de su luz divina/ Mécese el sol en lechos de esmeralda”. 79 em epígrafe como o poeta latino Virgílio35. A releitura poética de O diabo mundo feita por Castro Alves naquele ano de 1869, dois anos antes de traduzi-lo parcialmente em 187136, relativiza a informação de seu exegeta mais aclarado, Afrânio Peixoto, que havia definido ser aquela tradução de Espronceda evidência, “se não (das) preferências poéticas (do poeta baiano), leituras graves, que não (lhe) eram indiferentes ao gênio” (ALVES, 1921, v. 1, 417). Ademais, a leitura de Espronceda pode mesmo ser ventilada se considerarmos que o próprio Castro Alves se correspondia ao amigo Augusto Guimarães pelo pseudônimo de Libório como já visto. Este último, Don Liborio, é, alias, personagem integrado ao enredo de O diabo mundo e que, até o presente momento, passou despercebido pelo olhar atento de seus críticos.Essa nossa constatação, portanto, corrobora com as notícias de Marques (1997) que, muito antes das aferições de Peixoto (1921)37, já anotava a leitura de Espronceda pelo poeta antes mesmo de 1869, em 1867 na Bahia: Na aprazível vivenda faziam-se sessões de leitura e discussões literárias. Castro não se apartava dos seus diletos poetas Hugo, Edgard Quinet, Byron, Espronceda. (...) Quando ali, na chácara, teve ocasião de ler aos camaradas a poesia “A Boa Vista”, um deles observou-lhe que havia nela versos alexandrinos viciados. O poeta respondeu-lhe: “– Assim os faz Espronceda”. Conservou-os sem alteração e tal que os deu nas Espumas Flutuantes, em 1870, quando aliás já metrificava corretamente os alexandrinos. (MARQUES, op. cit., p. 72) A reposição desse esquecido índice de leitura ao período em que Castro Alves esteve na Bahia (1867) e, possivelmente, na fase do Recife (1862-1867), traz relevância ao nome de 35 “Immensis orbibus anguis” tem seu título extraído do verso 204 presente no canto II da Eneida do poeta mantuano Virgílio cuja tradução seria “Vinham lambendo as sibilantes bocas”. A epígrafe que ilustra o poema castroalvino, “Sibila lambebant linguis vibrantibus ora”, pode ser traduzido por “serpentes de espirais imensas lambiam com línguas vibrantes nas bocas sibilantes”. 36 Castro Alves escreve o seu “Immensis orbibus anguis” no Rio de Janeiro em 13 de agosto de 1869 ainda sob o efeito da desilusão amorosa provocada pelo término do relacionamento com a atriz Eugênia Câmara e agravada pelas limitações impostas pelo seu estado de saúde conforme esclarecem seus biógrafos. A tradução do prólogo de O diabo mundo é datada de 20 de fevereiro de 1871, tendo sido ela realizada em Salvador na Bahia. 37 Xavier Marques, escrevendo uma década antes de Afrânio Peixoto dar lume a Obras (1921), havia noticiado o fato de que Espronceda fazia parte das leituras afetivas de Castro Alves. Como nos explica Bueno (1997), em orelha de livro a 3ª edição de Vida de Castro Alves, publicada originalmente em 1911, Xavier Marques pôde contar para a preparação da biografia do poeta baiano com o amparo documental das três irmãs do poeta, ainda vivas naquela ocasião, além de depoimentos da oralidade os quais recolheu a tempo para a definição de sua obra sobre o autor. Segundo nos parece, o equívoco de Afrânio Peixoto, quanto à presença de Espronceda como leitura ao poeta, tenha se restringido a essa obra, lida por Castro Alves para a feitura de “Immensis orbibus anguis”, uma vez que o crítico assinalaria depois em outra obra sobre o autor baiano: “Castro Alves imitaria Hugo, talvez, como imitaria, por vezes, a Lamartine, Musset, Byron, Espronceda... os poetas de suas leituras prediletas, se é que tais preferências já não dizem de uma similitude de gênio que o levaria, com os variados gostos deles, para as mesmas tendências poéticas.” (PEIXOTO, 1922, p. 304) 80 Espronceda próxima à das preferências pelos franceses como Lamartine e Alfred de Musset, este último sendo, como o poeta espanhol, traduzido já no final da vida do poeta baiano, depois de absorvido e reinterpretado pelo brasileiro. Muitos trabalhos acadêmicos já se ocuparam da presença francesa de Victor Hugo, Musset e Lamartine nas traduções saídas do punho do poeta, entretanto, até o presente momento, nada foi profundamente pesquisado a respeito do autor de O diabo mundo e de O estudante de Salamanca, cujas obras inspiraram a concepção do donjuanismo de viés gótico no escritor como veremos no último capítulo de nossa redação. O débito da produção literária de Castro Alves com a literatura romântica de expressão espanhola é real e perceptível. Dos que exploraram o mito de Don Juan especificamente, Espronceda tem, segundo nossas averiguações, contribuições efetivas à penetração do motivo espanhol no baiano. Outros escritores castelhanos também tiveram sua quota na definição de uma identidade mítico-literário nas composições do autor baiano. Todavia, a inconsistência de informações históricas mais seguras, a propósito das práticas culturais de leitura circunscritas à determinada faixa de tempo em que se coloca Castro Alves, resulta em interpretações diferentes ao entendimento mais geral que se tem sobre a incidência do mito de Don Juan, pelo aporte castelhano, no escritor. É o que ocorre na seleção e na proposição de análise textual de alguns poemas do autor elaborados pelos novos estudos críticos. Um bom exemplo disso é a delimitação do conhecido poema “O ‘Adeus’ de Teresa” ao rol de poemas donjuaninos de Castro Alves. Para Mendes (2005), como adiantamos no subcapítulo anterior, o texto castroalvino exploraria os estádios da sedução amorosa (sedução, posse e abandono), conhecidos do Don Juan do teatro de Molina, mas popularizados por Zorrilla no Romantismo. O poema de Castro Alves – mais de uma vez parodiado em texto, do qual se sobressai a popular releitura de Manuel Bandeira, “Teresa” – narra a história do namoro de um casal de amantes que, após sucessivos encontros noturnos, sempre finalizados em despedidas consentidas no regresso do rapaz, têm seu epílogo marcado pela separação definitiva em consequência da quebra de juramento da moça. Estruturado em quatro sextilhas, com cada qual tendo o verso final deslocado à maneira de ritornelo, o poema apresenta, nas três estrofes iniciais, respectivamente, o arrebator primeiro encontro na valsa, o intercurso amoroso na alcova, e as recobradas entrevistas até a partida do amante e sua promessa de retorno. Destacamos as duas últimas para recuperar o efeito de anticlímax produzido pelo texto castroalvino: 81 Passaram tempos... sec'los de delírio Prazeres divinais... gozos do Empíreo... ... Mas um dia volvi aos lares meus. Partindo eu disse — "Voltarei!... descansa!...” Ela, chorando mais que uma criança, Ela em soluços murmurou-me: "adeus!" Quando voltei... era o palácio em festa!... E a voz d'Ela e de um homem lá na orquesta Preenchiam de amor o azul dos céus. Entrei!... Ela me olhou branca... surpresa! Foi a última vez que eu vi Teresa!... E ela arquejando murmurou-me: "adeus!" (O “Adeus” de Teresa – ALVES, 1997, p. 107) Como se percebe, uma série de metáforas hiperbólicas são emprestadas ao poema para conferir elevação e intensidade atemporais ao gozo amoroso do casal: sec'los de delírio, prazeres divinais, gozos do Empíreo. Entretanto, o amante, retornando à sua terra, “Mas um dia volvi aos lares meus”, despede-se da amada, não sem antes tranquilizá-la de seu regresso. Ao lance patético da despedida na terceira estrofe, segue o abalo provocado pela cena desconcertante da estrofe final, derradeiro reencontro dos antigos namorados. A hiperbolização da paixão amorosa do casal não pode ser desprezada como estratégia textual a fim de conferir, na última estrofe, o sentido de ruptura da aliança que os unia antes. Mendes (2005), porém, encontra nesse artifício retórico do poema uma alusão clara ao mito de Don Juan: As restantes estrofes ocupam-se com a descrição dos sentimentos da mulher abandonada que, como frequentemente acontece na tradição mítica, surge para recriminar o sedutor já esquecido desta conquista e agora entregue a novas seduções, descritas como “volúpia amorosa”, “prazeres divinais” e “gozos do Empíreo”. (Ibid, p.447-448) A marca temporal “passaram tempos” é lida na interpretação da crítica supracitada como alusiva ao tempo consagrado às inúmeras investidas amorosas do conquistador depois de haver abandonado a antiga amante, atribuindo, portanto, à ação do verbo volver e ao grupo nominal lares meus o regresso à morada da amante. Entretanto, vale mencionar que o texto é 82 enunciado no passado e a referência ao pretérito perfeito do verbo em questão (volver) serve como marcador de uma circunstância contrária aos eventos que se sucedem na linha do tempo. Trata-se de um contratempo: o amante precisou voltar aos seus lares. O sentido da expressão soaria como “tive que volver” ou “havia volvido”, ao invés do evidente pretérito perfeito. Fato que se coaduna com a reação de desespero da amante ao tomar ciência da longa ausência anunciada pelo eu-lírico “Voltarei!... descansa!...” e corroborada pela abertura da estrofe final, recuperando a ideia do tempo dilatado como sugere o marcador da subordinada temporal “Quando voltei...”. Mauro (2014) também enxerga o poema de Castro Alves pelo prisma do donjuanismo, porém, diferentemente da análise da estudiosa anterior, consente com a ideia de que o poeta “relativiza a concepção do personagem de Don Juan como um conquistador sempre vitorioso”, e, alegando uma releitura do mito encontrado em Byron, “no qual o protagonista era manipulado pelas mulheres”, considera o desfecho do texto como irônico (MAURO, 2014, p. 118). É possível que a injunção da pesquisadora ao mito de Byron tenha sido inspirada pela análise de Antônio Carlos Secchin que sugeriu uma ambiguidade, na segunda estrofe, do vocábulo presa, de adjetivo para substantivo, na passagem do registro escrito para o oral: conservando-a presa/ conservando a presa (a caça) (SECCHIN, 2013, p. 40). Hipótese atraente e que alinharia o enredo às peripécias familiares ao burlador espanhol, ainda que Secchin não estabeleça esse parâmetro com o mito do conquistador. De fato, “O ‘Adeus’ de Teresa”, como já considerava Calmon (1973), tem “na cena do ciúme que na estrofe palpita, um realismo que salta aos olhos, sem que possam enfumaçá-lo os versos da ficção”38. A despeito do estudo entrelaçando os eventos do poema aos lances da vida amorosa de Castro Alves, este último crítico também considerava, em sua análise à terceira estrofe do texto poético, o tom “em despedidas, para os lares seus” (CALMON, 1973, p. 200) [grifos do autor], não, assinando, portanto, o poema como legitimamente donjuanino. A indagação sobre a demarcação do espaço é também ponderada por Secchin: Há referência, não muito clara, a “lares meus”: o homem dispunha de mais de um lar? Trata-se da casa dos pais? Da casa da esposa? De qualquer modo, a 38 Essa consideração sobre o entendimento de Calmon (1974) do texto pelo realismo que toma a cena romântica já havia chamado a atenção de Eugênio Gomes que, assim como ele, não se dispõe a assinalar “O ‘Adeus’ de Teresa” como uma composição atrelada às manifestações donjuaninas do poeta baiano. (ALVES, 1997, p. 807). 83 relação com Teresa não era “oficial”, na medida que o conceito de “lar” era externo ao par amoroso. (SECCHIN, op. cit., p. 40) [grifos nossos] Como se constata, nenhum desses dois últimos críticos, Calmon (1973) e Secchin (2013), reportam ao espaço dos aposentos de Teresa como uma remissão aos lares do eu-lírico amante, de onde ele partiria supostamente para outras conquistas amorosas como nos faz entender Mendes (2005). Também a despedida anunciada, ao término da terceira estrofe, não configura um cálculo do amante mediante Teresa a ponto de lhes definir os traços de Don Juan, ainda que byrônico, como afirma Mauro (2014). O Don Juan de Byron, a despeito da imagem de vítima de funestas paixões que carrega consigo, é conhecido de sua mobilidade de trânsito por várias terras e experiências amorosas que dão números reais ao seu currículo das presas femininas. Todavia, o debatido poema de Castro Alves tem motivações histórico-culturais próprias que lhe trazem um desenho bastante singular. Nossas pesquisas aos suportes dos periódicos oitocentistas, leva-nos a outras conclusões sobre o texto. “O ‘Adeus’ de Teresa” foi, antes, inspirado numa canção romântica francesa para piano muito popular em seu tempo. Vejamos: Parte o navio Que deve me levar, E meu coração suspira Por te deixar. Addio, Teresa, Teresa, addio, Al mio ritorno ti sposerò. Nosso capitão Me chama a bordo. Mas sua voz é inútil, Me faço de morto. Addio, Teresa, Teresa, addio, Al mio ritorno ti sposerò. Eu não sei ainda, Se a corveta, Voga em direção à aurora Ou ao crepúsculo. Addio, Teresa, Teresa, addio, Al mio ritorno ti sposerò. Mas, se no lugar Por onde passarei Um homem só passar Eu te escreverei. Addio, Teresa, Teresa, addio, 84 Al mio ritorno ti sposerò. (Addio Teresa – DUMAS e MONPOU, 1838, p. 97)39 39 “Il part le navire/ Qui doit m'emporter,/ Et mon cœur soupire/ De te quitter./Addio Teresa, Teresa addio,/Al mio ritorno ti sposerò.// Notre Capitaine/ Me rappelle à bord./ Mais sa voix est vaine/ Je fais le mort./ Addio Teresa, Teresa addio,/ Al mio ritorno ti sposerò.// Je ne sais encore/ Si le batiment/ Vogue vers l'aurore/ Ou le couchant./ Addio Teresa, Teresa addio,/ Al mio ritorno ti sposerò.// Mais si dans l'espace/ Que je parcourai/ Un seul homme passe/ Je t'écrirai./ Addio Teresa, Teresa addio,/ Al mio ritorno ti sposerò.” (Addio Teresa – DUMAS e MONPOU, 1838, p. 97). 85 Figura 5: Partitura de “Addio Teresa: Chanson Sicilienne” com letra de Alexandre Dumas e música de Hippolyte Monpou. Weissenburg: Hoffmann’sche Leihbibliothek, 1838. Fonte: https://books.google.com.br/ 86 A canção “Addio, Teresa”40, composição de Hippolyte Monpou e letra de Alexandre Dumas, publicada em novembro de 1837 (NOSKE, 1970, p. 330), apresenta o mesmo argumento de que Castro se valerá para a definição de “O ‘Adeus’ de Teresa”: a emergência da partida, uma despedida comovida e a promessa de retorno. Outras identidades podem ser reconhecidas entre os dois textos; por semelhança, como a inexatidão sobre o lugar da viagem do amante (lares meus/ em direção à aurora ou ao crepúsculo); ou dessemelhança, como o tempo verbal no futuro selando os votos da união do casal (voltarei/ escreverei), mas com desdobramentos diferentes. Na realidade, a graciosa canção de Monpou e Dumas, a rigor, sequer tem um fecho, ao menos, não um convencional, provocando um efeito de suspensão ao leitor, mas que animaria as melhores expectativas à imaginação do público romântico. Castro Alves aproveita esse gancho do texto francês e renova a lírica brasileira, propondo um desfecho ainda menos convencional com uma cena pintada de realismo sugerido pelo anticlímax da quebra dos votos da amada. Nem em Castro Alves, nem em Monpou e Dumas conseguimos espreitar quaisquer traços que os liguem às versões do mito de Don Juan, como a sedução, uma vez que a comoção amorosa é compartida pelo jovem: “eu fitei Teresa”, “a tremer co’a fala”, em Castro Alves, e “Meu coração suspira por te deixar”, na canção dos franceses; entre o casal também não se interpõe(m) outra(s) mulhere(s), traço distintivo em todas as versões do mito. Nem conquista da parte do amante, posto que as ações são conjuntamente combinadas entre a moça e o rapaz, desaparecendo a marca do narcisismo comum ao burlador: “A valsa nos levou”, “e amamos juntos”. E, menos ainda, abandono, visto que, em “O ‘Adeus de Teresa’, é o amante que, aliás, é flagrantemente enganado. 40 Disponível em: . Acesso em 5 mai. 2018. Figura 6: Detalhe da figura 5 contendo pentagrama com o ritornelo “Addio, Teresa, Teresa, addio, al mio ritorno ti sposerò”. 87 A estrutura formal é ainda mais generosa quando se cotejam os dois textos. Apesar do padrão homométrico dos decassílabos em Castro Alves se opor ao versos heterométricos do francês (pentassílabos, tetrassílabos e eneassílabos), os dois poemas são escritos em sextilhas com esquema rimático muito próximo (AABCCB no primeiro, ABABCC no outro), ambos contam com 24 versos, e a circularidade musical do ritornelo ecoa expressivo nas fórmulas finais que arrematam as estrofes: “murmurou-me: ‘adeus’” e “Addio, Teresa, Teresa, addio,/ Al mio ritorno ti sposerò” (“Adeus, Teresa, Teresa, adeus,/ Ao meu retorno te desposarei”). Uma visita aos suportes dos nossos periódicos oitocentistas poderia ainda dirimir alguma dúvida restante sobre as origens do texto e os sentidos de leitura conferidos a este último por aqueles que o retrabalharam no Romantismo como Castro Alves. Há ressonâncias do texto- canção em poetas menos conhecidos como um que assina, na imprensa pernambucana em correspondência com a paulista, pelo nome de L. S. Monteiro de Barros, autor do poema “Versos a Thereza” (1869)41, cujos versos retratam os dissabores de um jovem pela perda de sua Teresa, e dos quais retiramos os da penúltima estrofe: Hoje é tudo diverso, Thereza. Eu fiquei esquecido e sem galas, Tu és sempre as rainhas das salas, A visão vaporosa de um sonho. Hoje é tudo diverso de outr’ora. Sobre a lousa dos nossos amores, Para ti o presente é de flores, Para mim pesadelo enfadonho. (Versos a Thereza. Imprensa Acadêmica – 12 de jun. 1870) Ou ainda os versos brejeiros recobertos de malícia do muito popular em seu tempo, o poeta paraense Bruno Seabra, autor de Lucrécias, de cujo livro extraímos alguns versos do poema “Thereza”42: “Adeus senhora Thereza!/ [...] Soberba co’o seu marido,/ Soberba co’o seu vestido,/ Já não conhece ninguém!// [...] lembre-se daqueles dias/ à sombra dos cafezais/ Vá tranquila que o segredo/ Da minha boca... jamais...” (Thereza – SEABRA, 2002). O caso de “O ‘Adeus’ de Teresa” não constitui um fenômeno isolado ao problema dos estudos do texto literário no poeta baiano. Outro poema cujo rótulo padece de uma investigação mais precisa é um dos mais antologadas da lírica brasileira: “Adormecida”. 41 Disponível em: . Acesso em 14 mai de 2018. 42 Disponível em < https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=28589 >. Acesso em 14 mai de 2018. 88 Matéria do estimado estudo de Mário de Andrade “Amor e Medo”, já rendeu vários ensaios críticos como o de Anazildo Vasconcelos da Silva que propõe uma análise semiótica do texto e Maria Alice Faria com a revisitação das fontes francesas em Musset, para ficarmos nos mais conhecidos. Entre os autores que o classificam como donjuanino, Mauro (2014) o registra como análogo ao modelo do El burlador da tradição espanhola, visto que o personagem do poema de Castro Alves se vale de estratégias de sedução como o disfarce (Ibid., p. 118). A questão do tema do texto já havia, contudo, sido solucionada por Faria (1971) que sobre ele comenta: O poema “Adormecida”, é uma espécie de réplica brasileira à imagem da moça adormecida, envolta nos cabelos soltos, que já encantara a geração de Musset, na França, com Rolla, e praticamente cegara Álvares de Azevedo com relação a outros aspectos mais interessantes do poeta francês. Trata-se, pois, de uma autêntica sugestão literária, aqui muito bem aproveitada pelo poeta brasileiro. (Ibid., p. 7) O poema43, epigrafado com uma passagem de Rolla (1833), de Musset, tem, com efeito, afinidades genéricas com esse texto romântico francês. Rolla, nome do protagonista que leva o nome à obra, foi muito popular entre os românticos da geração de 1830 em Paris, chegando a cair na vulgarização do clichê. Não teria podido Castro Alves alcançar a sugestão literária pelas ilustrações que se tornaram conhecidas na França pelo crayon de Henri Gervex ou Eugène Lami, tendo em vista que os trabalhos destes últimos em desenho e pintura datam respectivamente de 1878 e 1883, anos depois da morte do poeta brasileiro. Os quadros desses dois artistas ilustram a contemplação de Jacques Rolla, personagem blasé, corrompido pelos vícios de seu tempo, à jovem Marion, desfalecida sobre um leito caprichosamente convidativo. É o tema da bela adormecida de que fala Faria (1971), pintado com as cores do ultrarromantismo byroniano na França, cujo maior adepto no cenário local foi o paulista Álvares de Azevedo. Castro Alves certamente conhecia o tema – antes mesmo da fixação da leitura dessa obra para o ano de 1868 como propõe esta última crítica – posto que o referencia em uma fábula em prosa em 1866, publicada originalmente no jornal recifense A luz: “Oh! Não te espantes se às vezes sou rúbida, como o primeiro sorriso de Safo, e às vezes pálida como a fronte do moço autor de Jacques Rolla” (O eco – ALVES, 1997, p. 695). A menção ao título da 43 Disponível na seção de anexos de nosso trabalho. 89 obra pelo nome completo do herói, ao invés do estampado em brochura, Rolla, é um indicativo muito claro de sua leitura parcial de Musset. Na realidade, tratava-se dos ensaios de crítica literária de Álvares de Azevedo, publicados originalmente nos Ensaios Literários da imprensa periódica paulista, sob o título de Alfredo de Musset: Jacques Rolla, e anexados depois no segundo tomo de Obras (1862) na edição do livreiro-editor Garnier. De acordo com a observação de Castro Alves naquele periódico de Pernambuco, a descrição do personagem é carregada das tintas da morbidez ultrarromântica que caracterizava os estudos de crítica literária do escritor paulista. Os temas da perversão juvenil, como orgias, embriaguez e suicídio, não pesam, porém, na confecção de “Adormecida”, onde, agora, a referência paratextual é direta: uma legítima epígrafe colhida num impresso francês. As impressões de Castro Alves sobre Musset perpassadas pelo donjuanismo byroniano cedem à penetração mais funda na obra deste escritor e, logo, aparecem outros temas como a melancolia, o luto e a renovação amorosa em metáforas emprestadas aos ciclos da vida e da natureza, presentes em poemas como “Adeus”, “Murmúrios da tarde” e “A volta da primavera”, todos epigrafados em As Noites, de Musset, e escritos entre junho e novembro de 1869 no Rio de Janeiro. Todavia, “Adormecida”, ainda que gestado diretamente nas leituras francesas de Musset, como faz supor a epígrafe, não apresenta uma tonalidade que ateste a imersão textual em Rolla. O poema byroniano do autor de as Noites tem quadros bem definidos da melancolia do Mal-do-século romântico francês. No lugar do donjuanismo byroniano herdado de Azevedo ou da atmosfera blasée de Musset, o que se vê, nesse poema de Castro Alves, é um erotismo franco em sentido contrário ao ultrarromantismo ainda vigente em 1868, ano da publicação de “Adormecida”. Sobre ele, aliás, já havíamos considerado: Na poesia de Álvares de Azevedo, Musset se apresenta pelo medo de amar. Castro Alves, dele se impregna para alcançar o amor Eros. Em seu diálogo com os textos mussetianos, se não se tem a concretização do amor físico, percebe-se a evocação erótica. É o ideal Eros que corre em suas veias e se torna evidente. (CHIANCA e FERNANDES, 2012, p. 60)44 44 “Dans la poésie d’Álvares de Azevedo, Musset se présente dans la peur d’aimer. Castro Alves, lui, s’en empreigne pour atteindre l’amour Éros. Dans son dialogue avec les textes mussétiens, si l’on n’a pas la concrétisation de l’amour physique, on aperçoit l’évocation érotique. C’est l’idéal Éros qui coule dans ses veines et devient evidente” (CHIANCA e FERNANDES, 2012, p. 60). 90 Dada a diferenciação entre o texto de partida do francês e o de chegada de Castro Alves, recuperando este tão somente os aspectos mais genéricos àquele, põe-se, então, uma questão fundamental: qual teria sido o texto de base à inspiração dos versos de “Adormecida”? Como vimos, Mauro (2014) aproxima-o de El burlador, da tradição espanhola, Faria (1971) identifica, ainda mesmo, a Rolla de Musset. Haddad (1953) também vê ligações com a literatura francesa, a Fanny, romance de Ernest Feydeau, ao qual o crítico justifica, alegando sua tradução em língua portuguesa por Camilo Castelo Branco. E faz um cotejo do enquadramento de uma cena da prosa de Feydeau com a primeira estrofe do texto castroalvino: A “Adormecida” de Castro Alves é parecida com certa atitude de Fanny. Uma noite eu me lembro... (... et dans l’encadrement obscur qu’elle decoupa au fond de la chambre...) Ela dormia/ numa rede encostada molemente.../ Quase aberto o roupão... solto o cabelo (Elle était à demi-vêtue de ce nonchalant costume que je lui avais vu... C’était une robe très lâche en cachemire bleu ouverte au corsage qui laissait voir, entre les flocons de batiste, la naissance de la poitrine... Ses cheveux négligement dénoués...) (HADDAD, op. cit., v. 3, p. 130) A tradução de Castelo Branco, publicada inicialmente em 1859, todavia, parece desmentir a sugestão literária de que supostamente Castro Alves teria se servido. A personagem deste romance, ainda que provocante, não é flagrada dormindo e acompanhada pelo voyeurismo do amante espreitador, como aparece no texto de Castro Alves. Antes, apesar do desalinho dos trajes, passeia alerta com os seus filhos pelos recintos de sua casa. Trazemos aqui a tradução proposta por Camilo Castelo Branco, sem os cortes previstos no texto de Haddad, e destacando em negrito a seleção efetuada pelo crítico castroalvino: E no enquadramento obscuro que ela cortava no fundo do quarto, vi, duvidoso da minha razão, uma forma vaga aluminada em rosto por um castiçal que ela trazia. Postedades do céu! Era ela! Oh Deus! Por que não me fulminaste naquele momento! Entrou vagarosamente, depôs o castiçal sobre a cômoda, e, atravessando longitudinalmente o recinto, foi direta a ele, que a observava tranquilo, e sem levantar-se. Fanny estava meio vestida com aquele desleixado traje que eu lhe vira algumas vezes pelas manhãs, quando, ao sair da cama, passeava no jardim com os filhos. Era um chambrão muito farto de cachemira azul aberta no peito, entre flocos de cambraia, deixando ver o começo dos seios. Saiam-lhe das largas mangas os braços nus. Trazia desmanchados negligentemente os cabelos, apanhados sobre as faces lisas, e apertados por grossos tufos sobre a nuca. Aquele eterno porte de plácido pudor, lá o aparentava no semblante. (FEYDEAU, 1903, p. 92-93) [tradução de Camilo Castelo Branco] 91 Ao que parece, Haddad (1953) faz um recorte de passagens-chaves do texto de Feydeau para ajustar uma correspondência de imagens recuperadas na primeira estrofe de “Adormecida”. A supressão de informações imprescindíveis ao texto francês como os filhos de Fanny e o seu estado de vigília, transitando pela casa, distam, em muito, das pretensões esperadas do leitor ao se deparar com uma virgem mergulhada em seu sono profundo. Nesse sentido, o enquadramento pensado pelo autor de Revisão não é mais sugestivo do que o intertexto mussetiano solicitado como epígrafe ao poema de Castro Alves: “Seus longos cabelos desalinhados a cobrem inteiramente./ A cruz de seu colar repousa na sua mão,/ Como para testemunhar que ela fez sua prece./ E que a fará, despertando amanhã”45 (ALVES, 1997, p. 124). Castro Alves, ainda que sabidamente versado na língua francesa, vai encontrar maior inspiração na literatura espanhola e, de mais a mais, em escritores situados fora do grande circuito literário europeu. Para a elaboração de “Adormecida”, não obstante o repertório de leituras francesas de que já dispunha nesse tempo em mãos, Hugo, Musset, Lamartine, Murger, o poeta elegeu um livro, até o presente momento dado como perdido, e no qual continha bom número de autores hispano-americanos. De posse desse impresso, do qual mais à frente daremos nota, o poeta brasileiro, conhecido de seu engajamento social, pôde conhecer a poesia de Don Jose Eusebio Caro (1817-1853), poeta natural de Nova Granada, de que fazia parte a atual Colômbia, também politicamente comprometido com o direito à liberdade dos povos e ferrenho opositor aos órgãos dirigentes de seu país. No livro de extenso título, Juicio crítico de algunos poetas hispano-americanos46 (1861), figurava alguns dos melhores poemas daquele autor, dentre os quais Castro Alves selecionou um para o seu “Adormecida”: “Una lágrima de felicidad”. Colocamos os dois poemas lado a lado para confirmação de nossa hipótese: Adormecida Uma noite eu me lembro... Ela dormia Numa rede encostada molemente... Quase aberto o roupão... solto o cabelo E o pé descalço do tapete rente. 'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste Uma lágrima de felicidade Sozinhos, ontem, sentados no leito De tua ternura coroou meu amor, Tu, a cabeça afundada entre meu peito, Eu, circundando com abraço estreito Teu talhe encantador; Tranquila tu dormias, eu velava. 45 “Ses longs cheveux épars la couvrent tout entière/ La croix de son collier repose dans sa main,/ Comme pour témoigner qu'elle a fait sa prière./ Et qu'elle va la faire en s'éveillant demain.” 46 Doravante, Poetas hispano-americanos. 92 Exalavam as silvas da campina... E ao longe, num pedaço do horizonte Via-se a noite plácida e divina. De um jasmineiro os galhos encurvados, Indiscretos entravam pela sala, E de leve oscilando ao tom das auras Iam na face trêmulos — beijá-la. Era um quadro celeste!... A cada afago Mesmo em sonhos a moça estremecia... Quando ela serenava... a flor beijava-a... Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia... Dir-se-ia que naquele doce instante Brincavam duas cândidas crianças... A brisa, que agitava as folhas verdes, Fazia-lhe ondear as negras tranças! E o ramo ora chegava, ora afastava-se... Mas quando a via despeitada a meio, P'ra não zangá-la... sacudia alegre Uma chuva de pétalas no seio... ___________ Eu, fitando esta cena, repetia Naquela noite lânguida e sentida: "Ó flor! — tu és a virgem das campinas! "Virgem! tu és a flor da minha vida!..." (ALVES, 1997, p. 124-125) Cheia dos perfumes do jardim, A fresca brisa pela grade entreaberta, E nossa alcova toda embalsamada De rosa e de jasmin. Por cima das árvores estendia Seu longo raio horizontal o sol, Desde o remoto ocaso de si fundia: Imenso, entorno dele, resplandecia Um céu de arrebol. Do sol seguindo a última pegada, Dispersas ao acaso, aqui e ali, Assomam com luz trêmula e bela, Para o oriente uma ou outra estrela, Sobre um fundo turqui. Nenhum rumor, ou voz, ou movimento, Turbava aquela doce solidão; Somente se ouvia sussurar o vento, E oscilar, qual um pêndulo, teu hálito Com plácida igualdade Oh! Eu me estremeci!... sim; de ventura Me estremeci, sentindo em meu redor Aquela eterna, fúlgida natureza; Em meus braços vencia tua formosura; Em meu peito o amor. ........................................................... E, em um instante de glória, de improviso, O que minha alma buscava encontrar achei; Uma secreta voz do paraíso Dentro de mim gritou-me: Deus o queira; Seja tua ali e aqui. (CARO, 1861, p. 175)47 47 “Solos, ayer, sentados en el lecho/ Do tu ternura coronó mi amor,/ Tú, la cabeza hundida entre mi pecho,/ Yo, circundando con abrazo estrecho,/ Tu talle encantador;// Tranquila tú dormías, yo velaba./ Llena de los perfumes del jardín/ La fresca brisa por la reja entraba,/ Y nuestra alcoba toda embalsamaba/ De rosa y de jazmín.// Por cima de los árboles tendía/ Su largo rayo horizontal el sol,/ Desde el remoto ocaso do se hundía:/ Inmenso, en torno de él, resplandecía/ Un cielo de arrebol!// Del sol siguiendo la postrera huella/ Dispersas al acaso, aquí y allí,/ Asomaban, con luz trémula y bella./ Hacia el oriente alguna u otra estrella./ Sobre un fondo turquí.// Ningún rumor, o voz, o movimento/ Turbaba aquella dulce soledad;/ Sólo se oía susurrar el viento,/ Y oscilar, cual un péndulo, tu aliento,/ Con plácida igualdad!// Oh! yo me estremecí!... Sí; de ventura/ Me estremecí, sintiendo en mi redor/ Aquella eterna, fúlgida natura!/ En mis brazos vencida tu hermosura!/ En mi pecho el amor!// [...] Y en un rapto de gloria, de improviso,/ Lo que mi alma buscaba hallar creí;/ Una secreta voz del paraíso/ Dentro de mí gritome: Dios lo quiso;/ Sea tuya allá y aquí!” 93 Num primeiro contato entre os dois textos, já se percebem as semelhanças existentes no tratamento do tema abordado. Castro Alves e Caro desenvolvem uma acintosa poesia erótica e recorrem à metaforização dos elementos naturais para projetar o ato sexual dos amantes em seus poemas. O enredo é simples: uma jovem entregue ao sono profundo, um amante que faz sua vigília, o entardecer tomando parte da cena amorosa, o intercurso sexual e o clímax do gozo, a contemplação do corpo lasso da amada e a declaração final de amor. O tempo da enunciação é o mesmo, uma cena erótica evocada pela lembrança do rapaz, com a diferença de que, em Castro Alves, a amada é reportada em 3ª pessoa, aparecendo somente em 2ª pessoa na declaração amorosa final, rememorada em discurso direto; em Caro, é a 2ª pessoa que fica evidente, entretanto, assim como no primeiro, todo o discurso é conduzido pela voz lírica do amante. Em “Adormecida”, a marcação temporal é menos rígida e vaga (Uma noite eu me lembro...), enquanto que no outro, bem demarcada (ontem). Quanto à descrição do cenário, é interessante notar a capacidade criativa do poeta baiano ao solicitar os empréstimos textuais. Assim como na confecção de “Immensis orbibus anguis”, em que se imiscui na leitura de Espronceda, Castro Alves se apropria do texto espanhol de partida para redefinir a imagem emprestada, aclimatando-a à identidade cultural brasileira. Agora, é a marcação espacial de Caro que é mais vaga e subjetiva (No leito de tua ternura), ao passo que Castro Alves, precisando o lugar de repouso, a rede, tropicaliza a moldura do quadro à maneira nacional (Numa rede encostada molemente.../ (...) E o pé descalço do tapete rente). Ambos poetas investem na paisagem erótica. O poeta colombiano projeta as investidas sexuais do amante nos raios do crepúsculo, cuja remissão à forma no singular, adjetivada e espacialmente orientada não se faz casual (estendia seu longo raio horizontal o sol). Castro Alves, por sua vez, vale-se da representação fálica do jasmineiro que adentra pela janela da alcova da moça. Sugestão essa que se encontra no texto espanhol (A fresca brisa pela grade entreaberta/ E nossa alcova toda embalsamada/ De rosa e de jasmin), mas que o romântico brasileiro reorganiza para a condução de sua própria trama erótica. Movimentos repetitivos no lusco-fusco do jogo amoroso animam a cena erótica. Em Castro Alves, a estratégia é alcançada no emprego dos pares antitéticos dos verbos (serenar versus beijar, beijar versus fugir, chegava versus afastava-se). Caro adota o emprego dos dêiticos espaciais (aqui versus ali) e a imagem sugestiva do pêndulo, com o qual os suspiros arrancados pela donzela são comparados. Em ambos, o recurso linguístico encaminha os avanços e recuos do coito amoroso ao clímax do gozo, realizado por meio de metáforas bastante 94 ousadas. É nesse ponto que os poetas apresentam as diferenças mais radicais como desfecho à cena erótica. Aparentemente, o texto do poeta colombiano deixa a cena em aberto em relação àquilo que o amante decidiu fazer no momento do orgasmo. Ao que tudo indica, o amante tem a satisfação plena do gozo amoroso, sem recorrer, portanto, ao onanismo, como se faz perceber na penúltima estrofe do texto espanhol: “Oh! Eu me estremeci!... sim; de ventura/ Me estremeci, sentindo em meu redor/ Aquela eterna, fúlgida natureza;/ Em meus braços vencia tua formosura;/ Em meu peito o amor” (CARO, 1861, p. 175) [grifos nossos]. Entretanto, não é isso que vemos em “Adormecida”. Castro Alves, ou consciente dos rumos contrários que queria dar ao seu texto em relação ao poema espanhol, ou por interpretar o fecho em Caro como uma sinalização do onanismo, decidirá, por fim, pelo desfecho do coito interrompido. O certo é que o colombiano havia proposto, de fato, a plenitude do gozo no seu poema como comprovam esses versos que não constam na versão aqui posta anteriormente para a análise: E alienado, cego, delirante, Teu corpo mole que o amor formou Terno contra o meu peito palpitante ... E em tua face uma lágrima ardente De meus olhos caiu! Ai! Despertaste... Sobre mim puseste Teu olhar, feliz ao despertar; Mas teu doce sorriso em cenho triste Mudou-se a ponto que meus olhos viste Molhados reluzir! (CARO, 2008, p. 53)48 [grifos nossos] As duas estrofes supracitadas são subsequentes à estrofe final que se encontra na versão a que Castro Alves teve acesso. Nelas, podemos evidenciar a metáfora erótica sugestionada pela lágrima desabrochada que cai dos olhos do amante sobre a face da donzela após a contração de seus corpos, o que justifica o título do poema. Castro Alves, contudo, recobre de requintes a cena da interrupção do coito, num movimento a que atribuiríamos hoje 48 “Y enajenado, ciego, delirante,/ Tu blando cuerpo que el amor formó/ Traje contra mi pecho palpitante.../ Y en tu faz una lágrima quemante/ De mis ojos cayó!// Ay! despertaste... Sobre mí pusiste/ Tu mirada, feliz al despertar;/ Mas tu dulce sonrisa en ceño triste/ Cambiose al punto que mis ojos viste/ Aguados relumbrar!” (CARO, 2008, p. 53). 95 como fantasia sexual, posto que o amante teatraliza o instante de seu gozo. A metáfora é hiperbólica e tem inspiração na estrutura do próprio texto de Caro, ainda na segunda estrofe deste, e que Castro Alves desloca para o momento final, potencializando o efeito visual: “E nossa alcova toda embalsamada/ De rosa e de jasmin”. (CARO, op. cit., p. 175). E em Castro Alves: “[...] sacudia alegre/ Uma chuva de pétalas no seio...” (ALVES, 1997, p. 124-125). Relocando as sugestões de imagens que aparecem no texto do colombiano, Castro Alves recria a cena poético-erótica, preservando o fio narrativo do texto espanhol, sem abrir mão de sua originalidade inventiva em imagens ousadas e contrárias das que se vê no texto integral de Caro. Essa razão explicaria o desconhecimento expresso de Castro Alves de versões alternativas nas quais o poeta brasileiro pudesse apreciar a leitura do colombiano. Uma outra explicação do desconhecimento, do poeta brasileiro, do desfecho menos insinuante de Caro está no fato de que o primeiro repete quase que inteiramente a disposição gráfica e formal do segundo, presente na coletânea de Poetas hispano-americanos (1861): sete estrofes de quartetos decassilábicos acompanhados de um pé quebrado no colombiano; sete estrofes de quartetos decassilábicos em Castro Alves. Entretanto, a prova cabal da apropriação daquele texto reside num elemento muitas vezes considerado de menor importância e que envolve uma pesquisa de crítica genética. Em ambos, registra-se um tracejamento entre a penúltima e a última estrofe que no texto de Caro correspondia a uma seção do organizador do livro para se adequar ao propósito de uma seleta de textos comentados. Castro Alves a reproduz rigorosamente como na versão encontrada no livro de 1861. O manuscrito de “Adormecida” não sobreviveu ao tempo, todavia, fazendo confiança ao último exegeta que sobre ele pôs os olhos, o biógrafo e crítico Afrânio Peixoto, transpondo-o em Obras (1921), chegamos a essa conclusão49: 49 Eugênio Gomes também, seguindo o padrão gráfico estabelecido por Peixoto (1921), conserva o tracejamento distintivo para a edição de suas Obras Completas. (ALVES, 1997, p. 124-125). A primeira publicação de Espumas Flutuantes, em 1870, pela Lellis Masson, na Bahia, trazia igualmente a marca gráfica à página 76. (ALVES, 1870, p. 76). O manuscrito de “A flor e a virgem”, versão alternativa de “Adormecida” para a imprensa paulista da Imprensa Acadêmica, não constava esse sinal gráfico, restando, pois, a confiança no manuscrito microfilmado com o título de “Dormida” que, segundo Gomes (1997), encontrava-se sob posse da Biblioteca Nacional, recentemente reaberta para pesquisa no setor de obras raras. 96 A existência desse livro esquecido nos apresenta um novo olhar a respeito da maneira como nos lançamos sobre os textos castroalvinos. Os Poetas hispanos-americanos, com seu fragmento de “Una lágrima de felicidad”, de Eusebio Caro, rompem com as leituras unilaterais que orientam o estudo comparativo tendo na epígrafe a única fonte possível de inspiração artística. Esse, aliás, é um ponto a ser sensivelmente considerado nos estudos castroalvinos, visto que boa parte de seus poemas foram inicialmente publicados nos jornais, sofrendo pequenos reajustes que alteraram a fisionomia do texto. Exemplo disso é “Mocidade e Morte” (1864), poema publicado em Espumas Flutuantes, e que rendeu um ensaio a Manuel Bandeira no qual o pernambucano apontava a evolução de sua forma primitiva, “O tísico”, e que recebeu retoques para o acabamento final: “Todas as emendas feitas posteriormente em ‘O tísico’, que Figura 7: Página 137 de Espumas Fluctuantes organizada por Afrânio Peixoto, contendo a divisória que separa as últimas estrofes de “Adormecida”. (ALVES, 1921, v. 1, p. 121) Fonte: https://digital.bbm.usp.br Figura 8: Recorte da página 175 de Poetas hispano- americanos com poema “Una lágrima de felicidad”, de Eusebio Caro, apresentando uma linha pontilhada que separa as estrofes finais. (CARO, 1861, p. 175) Fonte://books.google.com.br 97 tal foi o título dado no momento e conservado ainda quando publicado em São Paulo por volta de 1868-1869, são para melhor” (BANDEIRA, 1954, p. 79). O mesmo ocorre à “Adormecida”, cuja publicação na Imprensa Acadêmica de São Paulo a 19 de junho de 1870 trazia o título “A flor e a virgem”, sendo mudado, logo em seguida, para a primeira edição de Espumas Flutuantes na Bahia. O título segundo, com efeito, tem uma ligação muito mais próxima à epígrafe de Musset em Rolla, porém, a referência ao elemento antropomórfico no primeiro, “A flor e a virgem”, capta melhor o cenário e os nuances do espanhol que o texto francês não comporta. Esse sentido de projeções sexuais e negaceios emoldurados num quadro de entardecer se perdem no intertexto mussetiano de Rolla, de modo que os aspectos eventuais que aquele texto possa evocar a respeito do donjuanismo não se fazem estruturalmente presentes na “Adormecida” de Castro Alves. Nota-se, portanto, a necessidade de revisão do que a fortuna crítica castroalvina construiu nesses últimos anos e vem moldando, por referência primeira, o pensamento crítico dos novos estudos sobre o autor. Poemas como “Adormecida” e “O ‘Adeus’ de Teresa”, publicados ambos em São Paulo, tem o seu lugar histórico devidamente situado nos trabalhos do escritor baiano e apontam leituras precisas as quais, muitas vezes, não se restringem à impressão pelo texto literário, como é o caso de “O ‘Adeus’ de Teresa”. Pensando nisso, no próximo capítulo, iremos retomar essa discussão a fim de determinar leituras que o poeta realizou dos espanhóis e dos hispano-americanos e como elas modelaram a concepção do mito de Don Juan no poeta em sua chegada a São Paulo. Construção imaginária que o poeta forjou do mito a partir da absorção de leituras de impressos estrangeiros que não podem estar mais relegados ao esquecimento dos estudos comparados em sua obra literária. Propuseremos uma reconstituição do cenário leitor do escritor em outro centro cultural, o Recife Acadêmico do período de 1862 a 1867, para buscar as raízes primeiras do mito literário e reconhecer outras modalidades do mito evidenciadas em textos poéticos, bem como, em prosa. 98 2. SOBRE MOTIVOS ESPANHÓIS Seria possível uma leitura de Castro Alves do mito de Don Juan pelas matrizes espanholas presentes nas versões de Tirso de Molina e José Zorrilla como aventado no capítulo anterior pelos novos estudos críticos no autor? E, se não estas, quais aportes literários chancelariam a entrada do mito nos escritos do baiano? Essa questão é complexa e exige um esforço de nossa parte, cujo interesse está voltado mais para o mito literário historicamente constituído do que a representação cultural do mito como figura popular no escritor. O problema envolve dois aspectos a ser considerados no cuidado aos textos literários de Castro Alves. Um de revisão de seus escritos por uma pesquisa de crítica genética, o outro pelo estudo da recepção dos textos literários que circulavam pelos lugares por onde o poeta publicamente atuou, e ao qual nos dedicaremos mais detidamente no subcapítulo seguinte. Comecemos, portanto, pelo primeiro caso a fim de justificarmos o espanholismo de seus versos, e relativizarmos seu conhecimento do personagem de Don Juan pelo teatro espanhol. As evidências de nossa pesquisa histórica nos revelam que a apropriação da literatura espanhola pelo poeta não se mostra acidental ou passageira. Elas apontam para uma necessidade de conformidade estética e ideológica da poesia de Castro Alves com os autores castelhanos de seu tempo. Inicialmente, posicionemo-nos a respeito de um impresso que, de há muito, vem atraindo a atenção dos bibliófilos do Romantismo e, em especial, dos pesquisadores do poeta baiano. Brito Broca foi um dos primeiros a chamar a atenção ao olhar da crítica literária no tocante ao apagamento de fontes textuais de leitura fundadoras de nosso romantismo que se viram preteridas aos clássicos do cânone romântico europeu: Mas ao lado das celebridades, cujo nome a história literária, e continuam a ser tidas como tais, embora algumas já bem pouco lidas, eram também aqui muito vulgarizadas outras figuras que hoje não desfrutam mais nenhum prestígio, quando não se acham completamente esquecidas. Leva-nos a melancólicas reflexões sobre o enigma da posterioridade ver como poetas e romancistas, outros bafejados pelos favores do público, ombreando com as grandes figuras contemporâneas, na opinião da crítica mais autorizada, hoje não passam de uma espécie de fósseis, de que apenas se ocupam os estudiosos e pesquisadores. (BROCA, 1979, p. 102-103) 99 Em seu estudo sobre aquilo que liam os nossos românticos, Broca (1979) fez também considerações pertinentes acerca da multiplicidade de textos que incidiam em epígrafes e alusões diversas no espólio do poeta baiano. Uma delas reforça a impressão que temos hoje sobre a incidência das leituras realizadas pelo poeta e que anda na contramão do posicionamento oficial dos críticos do autor, sobretudo, no que tange à sobrestima e ao peso que se dão às epígrafes que encetavam os seus trabalhos literários: “Mas se Castro Alves provavelmente não teria lido todos os autores que citava, leu de certo alguns que nunca chegou a citar” (Ibid., p. 113). Entre essas leituras estava a dos escritores espanhóis, a que o crítico, aludindo à revisão das fontes literárias proposta por Haddad (1953, v. 3), ligava ao poeta o nome de Manuel Quintana, escritor espanhol que “pelos seus ardores libertários devia ter exercido alguma influência no baiano” (BROCA, op. cit., p. 102). Outra, a que nos interessa mais precisamente, dizia respeito a um livro de poetas espanhóis sobre o qual acreditamos ter alguma relação direta ou indireta com o impresso mencionado no subcapítulo anterior. Ponderava o crítico sobre aquela leitura: A 7 de maio, em Curralinho, escrevendo a Guilherme de Castro Alves, o poeta se expande: “A minha leitura agora é Humboldt”. [...] Na mesma carta pede ele ao irmão para enviar-lhe o livro dos Poetas Espanhóis, do qual não temos, entretanto, nenhuma informação explícita. Dos poetas espanhóis, Castro Alves se referiu (já o dissemos antes) apenas a Quintana. (Ibid, p. 113-114) [comentários do autor] A carta remetida por Castro Alves a Guilherme, o seu irmão mais novo, é datada de 7 de maio de 1870. Nela, como comenta Broca (1979), o remetente cobrava o despacho de tal livro, referendado sob o título de Poetas Espanhóis, como se vê acima. A apresentação desta carta, integrada a Obras Completas (1997) de Eugênio Gomes, publicadas originalmente no ano de 1960, já se mostra com os acertos ortográficos da norma padrão vigente para os anos de 1990. Afrânio Peixoto não a traz compilada ao epistolário reunido a sua Obras (1921), motivo que fez com que Eugênio Gomes a resgatasse no terceiro tomo de Castro Alves (1947), de Lopes Rodrigues Ferreira. A missiva, pertencente ao acervo pessoal de Carlos Alves Guimarães, sobrinho-neto do escritor, tornada pública na obra de Ferreira (1947), apresentava o seguinte registro: 100 Figura 9: Primeira de três páginas da carta de Castro Alves ao irmão Guilherme datada de 7 de maio de 1870. Fonte: FERREIRA, 1947, p. 910A Figura 10: Terceira de três páginas da carta de Castro Alves ao irmão Guilherme datada de 7 de maio de 1870, trazendo o pedido daquele do livro Poetas Espanhóis. Fonte: FERREIRA, 1947, p. 910C Figura 11: Detalhe de entrecho da terceira página da carta de 7 de maio, onde se encontra o pedido de Castro Alves do despacho do livro Poetas Espanhóis (Poetas Hespanhóes). 101 No manuscrito original, inédito até aquele ano de 1947, é perceptível o registro da rubrica do livro sob o título de Poetas Hespanhóes, conforme a ortografia vigente na época. Como já exposto, o impresso, portando esta estampa, jamais foi encontrado, o que nos leva a pressupor a hipótese da alusão genérica feita por Castro Alves ao livro. Algo que não soaria estranho, tendo em vista que muitas das obras do Romantismo ainda guardavam o estilo pomposo da didascália no título à maneira da tradição clássica, como o mais discreto Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, de Goethe, ou ainda, o desconcertante Viagens para várias nações remotas do mundo. Em quatro partes. Por Lemuel Gulliver, primeiro cirurgião, e depois capitão de vários navios (1726), do irlandês Swift, clássico romance da literatura inglesa, popularizado, depois, entre os românticos, como Viagens de Gulliver (1796)50. O próprio escritor baiano, em carta de que daremos nota no quarto capítulo, reportava-se ao seu drama incompleto de título alternativo pelo econômico designativo D. Juan51, aliás, como no caso do livro espanhol, mais condizente à linguagem informal e ligeira da carta. De acordo com as nossas investigações a impresso e periódicos do Oitocentos brasileiro romântico, três obras concorreriam para estampar o título daquele livro evocado por Castro Alves em 1870. O primeiro, o tomo inicial de Poetas Españoles y Americanos del Siglo XIX (1851)52 que continha seleções de Espronceda e de Quintana, escritores traduzido e epigrafado pelo baiano; O segundo, o tomo inicial de Ensayos Biográficos y de crítica literária sobre los principales poetas y literatos hispanos-americanos (1863)53 – cuja presença do venezuelano Abigail Lozano não passou despercebida ao brasileiro, pois que o traduziu para Espumas Flutuantes – e o tomo segundo que trazia Guillermo Gana, poeta chileno traduzido por Castro Alves em dois poemas, “Pássaro viajante” e “O junco e o cipreste”; e, por fim, o Juicio crítico de algunos poetas hispano-americanos (1861)54, cuja presença de Eusebio Caro foi por nós já explicada e, sobretudo, Jose Fernandez Madrid, outro colombiano, que, em nosso entendimento, inspirou a confecção do poema donjuanino “Os três amores”. 50 No inglês, Travels into Several Remote Nations of the World. In Four Parts. By Lemuel Gulliver, First a Surgeon, and then a Captain of Several ships. A tradução para o português de 1816 pela typografia rollandiana em Lisboa, a partir do francês, trazia também título extenso. Outras traduções francesas do inglês, mesmo muito tempo depois, apresentavam os títulos extensos, entretanto, deixando em relevo a forma condensada Voyages de Gulliver (“Viagens de Gulliver”), seguida de um subtítulo maior, como as traduções ilustradas da Hachette em 1872. 51 Como já referido, adotamos um título mais enxuto, A prole, para evitar dubiedade com a referência à versão de Byron ou à maneira geral como se grafava o título na imprensa periódica do século XIX no Brasil. 52 Doravante, Poetas Españoles y Americanos. 53 Doravante, Ensayos Biográficos. 54 Como já dito antes, chamado por nós aqui de Poetas hispano-americanos. 102 Ao menos que se imagine uma obra que compilasse todos esses escritores num único volume, hipótese bastante improvável, um desses impressos aludidos receberia a nomenclatura redutora de Poetas Espanhóis pelo baiano. Os Poetas Españoles y Americanos são, ao que parece, o menos provável, se considerarmos os 19 anos que separam sua publicação do ano da carta de Castro Alves. Fosse talvez uma leitura do Recife de 1865, guardando ecos em sua chegada a São Paulo, visto que os poemas de Quintana que nele aparecem, “Oda al mar” e “A la invencion de la imprenta”, reverberam nos poemas castroalvinos de “O sol e o povo” (1865), em epígrafe, e nas imagens arrojadas emprestadas a “O livro e a América” (1868). A alusão no impresso ao nome de Espronceda, a quem nos interessa para a percepção do mito literário de Don Juan, não nos traz segurança, uma vez que, dos quatro textos do poeta espanhol selecionados para esse livro, apenas um, o canto II de O diabo mundo, poderia estar ligado a Castro Alves, mas, ainda assim, de forma imprecisa, uma vez que o prólogo traduzido pelo baiano não está ali reunido. Ademais, passagens de El estudiante de Salamanca, modelo de donjuanismo, ao nosso entender, manifesto em imagens e sugestões literárias no escritor baiano, também não se encontram integradas à obra em questão. Restariam os dois outros livros, os Ensayos Biográficos e Poetas hispano-americanos, que nos assemelham mais próprios às leituras realizadas pelo poeta, além de apresentarem indícios incontestáveis de imersão textual feita por ele em poemas destas obras. A primeira, em seu tomo inaugural, revela à luz dos estudos castroalvinos a causa da inexatidão do título que o poeta atribuiu mais tarde à sua tradução do poema “Napoleon”, de Abigail Lozano. Nas Espumas Flutuantes, figura o poema “Oitavas a Napoleão”, com o subtítulo “Tradução de Lozano”; acontece que o poema de Castro Alves não corresponde a nenhuma da versões possíveis de obras nas quais se encontra o texto do venezuelano, à exceção daquela dos Ensayos Biográficos, na qual o texto aparece em fragmento, tal como no do brasileiro, e apresentando um comentário crítico que o antecede e que Castro Alves mal interpretou grosseiramente: “Em suas oitavas a Napoleão, Lozano é muito feliz; expressa-se assim”55 (CAICEDO, 1863, v. 1, p. 248) [grifos nossos]. Ainda de Ensayos Biográficos, desta vez, no segundo tomo, vem a leitura do chileno Guillermo Gana. Aqui aparece uma coisa mais curiosa. Como referido, dois dos poemas de Castro Alves teriam sido traduzidos dali. Entretanto, um terceiro poema que aparece na seleção da seção do livro dedicada ao chileno, o “Amar y ser amado”, é até hoje atribuído como poema 55 “En sus octavas á Napoleon, Lozano es muy feliz; se expressa así” (CAICEDO, 1863, v. 1, p. 248). 103 de autoria do escritor baiano, opinião consignada por críticos como Afrânio Peixoto e Eugênio Gomes, e que segue, por extensão, em todos os demais comentadores do poeta. Vejamos: Amar e ser amado (fragmento) Amar e ser amado! Com que anelo Com quanto ardor este adorado sonho Acalentei em meu delírio ardente Por essas doces noites de desvelo! Ser amado por ti, o teu alento A bafejar-me a abrasadora frente! Em teus olhos mirar meu pensamento, Sentir em mim tu’alma, ter só vida P’ra tão puro e celeste sentimento: Ver nossas vidas quais dois mansos rios, Juntos, juntos perderem-se no oceano —, Beijar teus dedos em delírio insano Nossas almas unidas, nosso alento, Confundido também, amante — amado — Como um anjo feliz... que pensamento!? (ALVES, 1997, p. 422) Amar y ser amado Amar y ser amado!... Con qué anhelo, Con cuánto ardor este adorado sueño No he acariciado en mi delirio ardiente, En esas dulces noches de desvelo! Ser amado por tí... sentir tu aliento Acariciando mi abrasada frente! En tus ojos mirar mi pensamiento, Sentir mí alma en la tuya; existir solo Por su puro y celeste sentimiento: Ver nuestra vida cual dos mansos rios, Poderse juntamente en el Océano; Siempre tus blancas manos en mi mano Nuestras almas en una, nuestro aliento Confundido tambien, amante amado, Como un ángel feliz… (GANA, 1863, p. 273) O poema-tradução de Castro Alves apareceu, inicialmente, integrado a um livro de versos de seu espólio, conforme indicação de seu cunhado Álvares Guimarães, vindo, depois, a incorporar à seção de Originais de Obras (1921) de Afrânio Peixoto. Gomes (1997), replicando este último, também alheio aos fatos, coloca-o naquela seção, isolando-o de os dois outros de Gana, “Pássaro viajante” e “O junco e o cipreste”, reunidos à seção de Traduções. A sequência do heroico quebrado do verso final, Ah! yo hé soñado (“Ah! eu sonhei”)56, que não aparece na seleta de Ensayos Biográficos, confirma a necessidade do acabamento do último decassílabo na tradução de Castro Alves, justificando a indicação paratextual de fragmento, abaixo do título deste texto, posta pelo poeta brasileiro, fazendo remissão àquela seleta de escritores hispano-americanos. 56 Na edição chilena de Poesias Completas de Guillermo Blest Gana (1854), a continuação do verso “Como un ángel feliz…” salta para o verso seguinte: “Ah! yo hé soñado”, formando este último rima emparelhada com o antepenúltimo “Confundido tambien, amante amado”. (GANA, 1854, p. 293). Pelo desconhecimento da sequência textual, viu-se o poeta baiano impelido ao improviso da rima. 104 É bem provável que os Ensayos Biográficos, em seus dois tomos, dada à entrega do poeta naquele ano de 1870 aos trabalhos de tradução, estivessem na mira de Castro Alves, uma vez que só neste ano havia trasladado quatro poemas de Musset: “Madri”, “Veneza”, “Chanson” e “Otávio”. Como os três poemas de Gana não constam de datação temporal, ficamos apenas com essa hipótese, que poderia ser reforçada pelo fato de que “Oitavas a Napoleão”, embora sem indicação de data em Espumas Flutuantes, apareceu no periódico o Ypiranga com o registro de 3 de maio de 1868 como nos dá nota Eugênio Gomes (ALVES, 1997, p. 120)57, dois anos antes, portanto, ao advento da carta a Guilherme. Caso houvesse uma prova mais robusta para a certificação dessa nossa hipótese, isso explicaria a natureza do pedido daquela missiva, e na qual consistiria no livre trânsito de impressos entre amigos e familiares: “Manda-me o livro dos Poetas Espanhóis” (ALVES, 1997, p. 764): um empréstimo ou devolução deste. De toda sorte, o terceiro livro, Poetas hispano-americanos, se remotamente evocaria o livro a que Castro Alves faz referência em carta, visto que o poeta não se serviu dele para trabalhos de tradução, ao menos, tem um peso representativo na definição do mito de Don Juan naquele que seria considerado o poema-síntese das composições poéticas do escritor sobre o herói andaluz. Vejamos: Na volúpia das noites andaluzas O sangue ardente em minhas veias rola... Sou D. Juan!... Donzelas amorosas, Vós conheceis-me os trenos na viola! Sobre o leito do amor teu seio brilha... Eu morro, se desfaço-te a mantilha... Tu és — Julia a Espanhola!... (ALVES, 1997, p. 94) O entrecho em destaque é a terceira e última estrofe de “Os três amores”58, poema do autor, publicado em setembro de 1866. É flagrante a leitura, no enxerto em destaque, do mito romântico entrevisto no Don Juan (1819-1824) de Lord Byron. A alusão à personagem Júlia assinala intimidade de Castro Alves com a trama da obra do inglês, muito popularizada na Europa e aqui no Brasil em versões francesas como as de Louis Barré, como já demonstrado no capítulo anterior. A passagem que alude ao canto I do intertexto byroniano reencena a 57 Acrescentamos que, em consulta ao periódico disponível digitalmente na Hemeroteca, a data é 3 de maio, ao que Gomes (1997) dá importância à publicação do texto naquele jornal. 58 Poema disponível na seção de anexo deste nosso trabalho. 105 primeira experiência do jovem Don Juan em Sevilha, ocasião em que conhece aquela espanhola, amiga de sua mãe e mulher de Don Alfonso, e cuja traição o força a deixar sua terra natal. A intrusão da versão de Byron no texto acima causa, de pronto, um estranhamento ao leitor moderno iniciado na leitura da obra do inglês. Don Juan, na obra homônima do lord, é mais seduzido do que propriamente sedutor, quando se faz um apanhado do saldo de suas conquistas. A obra de Lord Byron encerraria em si mesma um paradoxo, tendo na figura de seu protagonista a representação daquilo que LÉVY-BERTHERAT (1999) nomeia de “Herói anti- donjuanesco” (P. 147)59: O herói de Byron é, com efeito, totalmente o contrário de um Don Juan: personagem do eterno adolescente, ingênuo, [...] ele age em quaisquer circunstâncias com “as melhores intenções”. [...] Se ele seduz, é sempre contra sua vontade, e nada não está mais distante de si que a artimanha e o cinismo dos Don Juan clássicos. [...] Sua única arma de sedutor é sua beleza juvenil, e se ele se entrega às mulheres que ama, é sempre obrigado pelas circunstâncias, jamais por sua própria iniciativa.” (Ibid., p. 147-148)60 O poema do Recife, porém, expõe outra modalidade de Don Juan, visivelmente ancorada numa representação extraída de alguma matriz espanhola não rastreável à primeira vista. Os críticos mais atuais divergem quanto à procedência dessa imagem. Mauro (2014, p. 123) a captura em Molina, “na medida em que o sujeito lírico se coloca como sedutor de várias mulheres, impulsionado pelo seu sangue ardente”. Mendes (2005, p. 447) prefere apostar numa marca comum ao Romantismo, a identificação, apontando nesse estreitamento entre o eu-lírico e a figura mítica do sedutor, uma mudança de direcionamento em relação às versões anteriores do mito cuja omissão da personalidade do herói era evidente. Sem diretamente cravar o herói de Don Juan Tenório de Zorrilla para esse poema de Castro Alves, esta última estudiosa deixa- nos entender essa injunção, visto que, em seu ensaio sobre o mito em poetas brasileiros, ao analisar “Os três amores”, ocupa-se, logo em seguida, do estudo de “O ‘adeus’ de Teresa”, assinalando ali o intertexto de Zorrilla, como já vimos. 59 “Héros anti-donjuanesque”. 60 “Le héros de Byron est en effet tout le contraire d’un Don Juan: personnage d’éternel adolescent, ingénu, [...] il agit en toutes circonstances avec “les meilleures intentions”. [...] S’il séduit, c’est toujours malgré lui, et rien n’est plus éloigné de lui que la rouerie ou le cynisme des Don Juan classiques. [...] Sa seule arme de séducteur est sa beauté juvénile, et s’il abandonne les femmes qu’il aime, c’est toujours contraint par les circonstances, jamais de sa propre initiative”. (Ibid, p. 147-148) 106 A proposição de Mendes (2005) nos parece mais acertada, já que o personagem burlador do mito de Molina não se coaduna com a imagem de exposição pública de sua figura, agindo mais na penumbra para o bom êxito de suas conquistas. A identificação não é um traço distintivo do Don Juan dos corrales de comedia do teatro Barroco Espanhol61, berço de seu nascimento, de onde saiu depois para ganhar lugar em outros palcos da Europa. Bem, ao contrário, quando acossado por suas vítimas ou por aqueles que zelam por sua honra, o Tenório de Molina responde com evasivas, como na ocasião em que é instado por Isabela, duquesa de Nápoles, enganada em seus aposentos pelo falso amante: “Quem sou?! Um homem sem nome!” (MOLINA, 2010, p. 10)62; ou ainda, replicando a burla aplicada à moça no motejo à indagação do rei daquela cidade onde se encontrava na primeira cena da peça: “Quem há de ser?/ Um homem e uma mulher” (Ibid. p. 10)63. No poema de Castro Alves em foco, o eu-lírico se veste das honrarias do sedutor, confunde-se com ele, ou mesmo, é o próprio conquistador, em carne e osso. Há uma identificação clara dessa primeira voz no texto com o personagem espanhol ou, mais ainda, uma autoafirmação de sua personalidade singular em Don Juan. Colocando-se na primeira voz da enunciação, estreita-se ao discurso romântico pautado no egocentrismo da linguagem, como dão mostras os sinalizadores textuais: “[...]em minhas veias rolas”, “Sou D. Juan!...”, “conheceis-me os trenos na viola!”, “Eu morro”, “desfaço-te”. Até mesmo, a viola, ocupando o lugar do tradicional bandolim espanhol, para efeito de rima no quarto verso, reduplica, em metonímia, a imagem do sedutor andaluz; são os, como sugere o emprego do pronome oblíquo átono com conotação possessiva, meus trenos, tangidos em minha viola: “Vós conheceis-me os trenos na Ø viola”. As marcas da linguagem situam o texto dentro da programática do Romantismo, confirmando, ao menos no plano da expressão verbal, a identidade da estética literária com o personagem sedutor do poema de Castro Alves. Mas, seria possível assinalar uma correspondência do poema com o mito literário em Zorrilla? Em Don Juan Tenorio (1844), drama fantástico escrito em versos, encontramos um herói que tem no domínio da fala um de seus maiores trunfos para a sedução. É um personagem que se impõe perante seus adversários 61 Os corrales de comedias na Espanha do século XVI representavam a modalidade de teatro público fisicamente estabelecido em oposição às formas itinerantes também existentes. A seu respeito Oliveira comenta: “Os ‘corrales de comedias’, um teatro permanente na Espanha, apareceram no princípio do século XVI e acompanharam todo o grandioso teatro do Século de Ouro, época em que se destacaram autores como Lope de Vega, Tirso de Molina, Juan Pérez Montalbán e Pedro Calderón de la Barca” (OLIVEIRA, 2017, p. 232). 62 “¿Quién soy? Un hombre sin nombre.” (MOLINA, 2010, p. 10) 63 “¿Quién ha de ser?/ Un hombre y una mujer” (Ibid. p. 10). 107 pelo histórico vitorioso de suas conquistas amorosas e pelo valor de sua honra espanhola traduzida no número de adversários vencidos por sua espada. Isso fica patente na segunda cena do primeiro ato da peça, quando D. Luis, um rival à altura do protagonista, disputa com ele para saber quem entre os dois tem maiores vitórias anotadas em suas listas. A importância de recuperar o mito na tradição, a fim de reforçar a autoimagem de sedutor, porém, distancia o Don Juan de Zorrilla de novas conquistas no tempo presente. Don Juan Tenório vive mais de ratificar seu passado e encenar o presente que faz do drama um teatro dentro do teatro: Frente ao Don Juan de Tirso, o “homem sem nome”, o de Zorrilla, pois, afirma seu nome com insistência. Junta-se a isso a característica comentada de Don Juan como representador ou ator. Don Juan Tenorio seria o homem que se representa a si mesmo, que representa o tipo que antes dele outros homens, outros Don Juans, contribuíram em criar. A progressão é, então, clara desde o Don Juan de Tirso até este: o homem sem nome, ao largo das gerações, criará paradoxalmente um dos nomes mais imponentes e definitivos na história da humanidade. Não obstante, mais que um homem com nome, o don Juan de Zorrilla resulta em um nome sem homem: uma sombra, como bem afirma Inés. (FEAL, 1984, p. 40)64 O Don Juan da peça de Zorrilla não acorda as burlas e os embustes que o sedutor de Molina aplica às suas vítimas femininas na peça de El burlador de Sevilla. De modo que, o caráter mais impulsivo e lascivo que dão contornos ao herói do teatro neste segundo se perde, em seus traços essenciais, na teatralidade executada pelo Don Juan do primeiro. É de se questionar, porém, a reflexão de Mendes (2005) a propósito do traço identitário do herói no poema de Castro Alves com uma tradição romântica legada em Zorrilla. Na peça deste último, mais de uma vez, quando abordado sobre sua identidade, Tenorio responde prontamente: Brígida Cavalheiro? 64 “Frente al don Juan de Tirso, el ‘hombre sin nombre’, el de Zorrilla, pues, afirma su nombre con insistencia. Añádase esto a la característica comentada de don Juan como representante o actor. Don Juan Tenorio seria el hombre que se representa a sí mesmo, que representa el tipo que antes de él otros hombres, otros don Juanes, han contribuído a crear. La progresión es entonces clara desde el don juan de Tirso hasta éste: el hombre sin nombre, a lo largo de las generaciones, creará paradójicamente uno de los nombres más imponentes y definitivos en la historia de la humanidade. No obstante, más que un hombre con nombre, el don Juan de Zorrilla resulta un nombre sin hombre: una sombra, como bien afirma Inés”. (FEAL, 1984, p. 40) 108 D. Juan Quem vai lá? Brígida Sois Don juan? D. Juan Pela vida de...! Se és a beata! E juro que já a tinha esquecido! Vem, Don Juan eu sou. (Don Juan Tenorio – ZORRILLA, 2005, p. 63)65 No poema “Os três amores”, a inflexão de voz “Sou D. Juan” do personagem andaluz, implicando a exaltação pela fama reconhecida, afinal, as donzelas o conhecem de “os trenos na viola”, poderia ser motivada diretamente no drama fantástico de Zorrilla, entretanto, duas considerações nos demovem desta linha de pensamento. A primeira tem a ver com a precedência dessa imagem. Castro Alves, leitor de Álvares de Azevedo, desde 186366, certamente conhecia o poema “Sombra de Don Juan”, integrado ao terceiro volume de Obras (1862) da Garnier67, e cuja terceira parte, do poema, “A canção de Don Juan”, expunha motivos e imagens de que o baiano se serviu: “Ó faces morenas! Ó lábios de flor, Ouvi-me a guitarra que trina louçã, Eu trago meu peito, meus beijos de amor, Ó lábios de flor, Eu sou D. Juan!68 “Nas brisas da noite, no froixo69 luar, Nos beijos do vento, na fresca manhã, Dizei-me: não viste, num sonho passear70, Ao frouxo luar, Febril Don Juan? 65 “BRÍGIDA: ¿Caballero? D. JUAN: ¿Quién va allá? BRÍGIDA: ¿Sois don Juan? DON JUAN: ¡Por vida de...!/ ¡Si es la beata! ¡Y a fe/ que la habia olvidado ya!/ Llegaos, don Juan soy yo”. (Don Juan Tenorio – ZORRILLA, 2005, p. 63) 66 Poemas como “Pesadelo”, “Cansaço” e “Meu segredo”, embora não epigrafados, são nitidamente elaborados, parcial ou integralmente, nas leituras de Álvares de Azevedo, sobretudo, por gurdarem os ecos do tema do medo de amar que vai aos poucos cedendo na poesia de Castro Alves à sensualidade que ganhava corpo com outras experiências de leitura. 67 O terceiro volume da edição carioca trazia como indicação “Lira dos Vintes: continuação”. As novas edições concertaram na proposição de uma terceira parte para este espólio publicado em 1862. 68 A presente edição organizada por Alexei Bueno traz o título honorífico de Don, para esse verso, na forma abreviada. Todavia, a edição de 1862 assinala por extenso à página 108. 69 Em Obras (1862), frouxo. 70 Também, ali no impresso, passar. 109 Acordem, acordem, ó minhas donzelas, “A brisa nas águas lateja de afã! Meus lábios têm fogo e as noites são belas, Ó minhas donzelas, Eu sou Don Juan! “Ai! nunca sentistes o amor d’Espanhol! Nos lábios mimosos de flor de romã Os beijos que queimam no fogo do sol! Eu sou o Espanhol: Eu sou Don Juan! (AZEVEDO, 2000, p. 281-282) A frase emblemática do poema castroalvino é um eco de Azevedo, no sentido mais estrito do termo. No poema do escritor paulista, Don Juan morreu e a voz lírica, como um duplo do sedutor, vai despertá-lo ao cemitério para ouvir os conselhos do espanhol. É um poema tétrico, de ambiência noturna bem ao gosto ultrarromântico de Azevedo. Don Juan recorda o passado florido distante perdido, e, meditativo, reflete sobre o saldo de uma vida abandonada à devassidão. O trecho em destaque acentua apenas o momento vitorioso do passado do herói, recobrado no tanger de sua guitarra, que, logo, se desfaz na sequência dos versos do poema de Azevedo. O que acontece aqui é algo bastante intrigante e, ao mesmo tempo, comum à poesia de Castro Alves. O baiano se apropria de imagens de uma tradição estabelecida, muitas vezes contrárias às plasmadas no seu texto, para ressemantizar e renovar o código poético vigente. No poema do paulista, o repertório imagético-lexical tem correspondência direta em Castro Alves: ó minhas donzelas/ donzelas amorosas, a guitarra que trina louçã/os trenos na viola, Eu sou Don Juan!/ Sou D. Juan!...; porém, palavras que remetem ao enquadramento sombrio na sequência do texto do paulista são apagadas: palidez, sombria, regelou, frio, cipreste. Logo se vê que a apropriação do mito literário via Zorrilla não tem ressonância em Castro Alves, quando nos detemos à observação da estrutura linguística e imagética de “Os três amores”, ficando apenas a equivalência com o Tenorio do autor espanhol sugerida pela expressão isolada e, ao nosso ver, muito distante, do segmento de verso “Sou D. Juan”, já presente em Azevedo. A outra consideração que nos declina a encontrar paralelos entre os dois autores, Zorrilla e Castro Alves, tem implicações históricas de prática de leitura. Nenhum estudo, até o 110 presente momento, entre aqueles da recepção do texto em Castro Alves, conseguiu apresentar dadas concretos da presença de José Zorrilla na faixa das leituras de Castro Alves. Carlos Ferreira, amigo do poeta e com quem conviveu no tempo de São Paulo, em sua Feituras e Feições (1905), estimável obra da crônica dos costumes dos tempos estudantis, ainda que pouca alentada pela crítica do escritor, traz outras escolhas assentidas pelo baiano: “Nas horas vagas entre os seus recitativos e a prosa dos amigos, lia Murger, Flaubert, Byron, o grande Shakespeare e outros auctores predilectos seus”. (FERREIRA, 1905, p. 219-220) Se o cronista amigo de Castro Alves abre espaço para suposições ao mencionar “outros autores prediletos” da preferência do poeta baiano, também não destaca Zorrilla na primeira linha de suas leituras. Xavier Marques, como já vimos no subcapítulo anterior, não anota também a escolha literária do espanhol pelo poeta brasileiro, quando este se encontrava na Bahia de 1867, dando informes, antes, sobre a incidência de Byron e Hugo entre suas leituras. Se Zorrilla, como também Molina, não chegaram em seus ecos a Castro Alves, como se explicaria o acento espanhol que encontramos no texto de 1866 e que a poesia de Álvares de Azevedo, tomada de uma tonalidade lúgubre, não conseguiu lhe emprestar? É aqui que se destaca o terceiro dos impressos que elencamos a candidato ao título de livro dos Poetas Espanhóis, a que o poeta solicita em carta ao irmão. Como visto no subcapítulo anterior, os Poetas hispano-americanos (1861) já haviam inspirado, com a poesia do colombiano Eusébio Caro, a Castro Alves na elaboração de “Adormecida”, em novembro de 1868, em São Paulo. O livro, porém, não era uma aquisição recente do escritor. Pesquisando os Poetas hispano-americanos, disponível hoje em meio digital, descobrimos que, além de “Una lágrima de felicidad” do colombiano aludido, o impresso trazia outros escritores castelhanos diretamente ligados às questões da independência e da identidade cultural americana, muito convenientes ao engajamento político do baiano. Era uma seleta de textos comentados pelo juízo crítico de dois autores, desconhecidos, ao menos hoje, do público brasileiro, Miguel Luis e Gregorio Victor Amunategui. O impresso trazia na estampa o prêmio de obra laureada em certame concedido pela Faculdade de Filosofia e Humanidade da Univeridade do Chile para o ano de 1859. Não era um volume francês, como habitualmente se poderia esperar, mas trazia o selo de uma tipografia chilena local, a Imprenta de Ferrocarril, que a havia publicado em Santiago no ano de 186171: 71 Disponível em: < https://books.google.com.br/books?id=zE6PQqzKaDYC&dq=juicio%20critico%20de%20alguns%20poetas%20 111 americanos%20una%20lagrima%20de%20felicidade&hl=pt- BR&pg=PR1#v=snippet&q=sangre%20espanola&f=false>. Acesso em 19 mai 2018. Figura 12: Folha de rosto de Juicio critico de algunos poetas hispano-americanos por Miguel Luis e Gregorio Victor Amunategui. Santiago: Imprenta del ferrocarril, 1861. Fonte: https://books.google.com.br 112 O livro em destaque reunia nomes mais conhecidos do grande público como o cubano Heredia e o argentino Echeverría, mas também contava com a presença de seis chilenos, Eusebio Lillo, Andrés Bello, Salvador Sanfuentes, Néstor Galindo, Guillermo Matta e Guillermo Blest Gana; dois equatorianos, José Joaquín Olmedo e Juan Leon Mera; os dois colombianos José Eusebio Caro e José Fernández Madrid; outro cubano, Gabriel de la Concepcion Valdes; um venezuelano, José Antonio Maitín; e um uruguaio, Adolfo Berro. As poesias de Poetas hispano-americanos vinham na forma de fragmento, muitos deles com dísticos, tercetos, sextilhas, ou outros poemas mais longos, mas raramente em sua forma integral, atendendo à compactação do material para o juízo crítico de seus comentadores. Dois deles teriam inspirado “Os três amores” de Castro Alves com soluções literárias que não passaram despercebidas pelo poeta; o chileno, Guillermo Matta, e o colombiano José Fernández Madrid. O fragmento do primeiro é um quarteto de uma poesia não referendada em seu título pelo comentador72, mas que ilustra bem o idealismo romântico dos versos que aparecem ali atribuídos a seu nome: Em toda parte teus passos com amor ardente Sigo ansioso... Eterna tua memória Vive risonha em minha mente infeliz73, Como a lembrança de futura glória74. (MATTA, 1861, p. 372) O deslize do último verso que acode à observação chistosa do comentador, “recordam- se as coisas passadas, mas não as futuras” (LUIS e AMUNATEGUI, 1861, p. 11)75, não é problema para Castro Alves que, desprezando a construção defeituosa, recupera os demais pelo efeito expressivo da sugestão lírica. No poema de Matta, o amor à distância, platônico, alimenta euforia e expectação no eu-lírico, sentimentos motores da coita amorosa, tema prestigiado da tradição literária medieval-renascentista, relacionado ao sofrimento afetado ao poeta trovador pela inacessibilidade da dama. O motivo medieval, recuperado nos versos românticos do 72 Trata-se de Canto de un bardo: la virgen de mis sueños. Disponível em: . Acesso em 18 mai 2018. 73 Invertemos, aqui, a ordem a fim de evitar a cacofonia que o texto não evoca no espanhol. 74 “Do quier tus pasos con amor ardiente/ Sigo anelante... Eterna tu memoria/ Vive risueña en mi infelice mente,/ Como el recuerdo de futura gloria” (MATTA, 1861, p. 372) 75 “Se recuerdam las cosas pasadas, pero no las futuras” (Ibid. p. 372) 113 chileno, faz Castro Alves repô-lo à imagem romanesca de Torquato Tasso, escritor renascentista italiano que se tornou símbolo popular do amor romântico, mais de uma vez revisitado como leitura no século XIX. A sugestão dos versos de Matta tem consequências diretas na composição da primeira estrofe de “Os três amores”: Minh′alma é como a fronte sonhadora Do louco bardo, que Ferrara chora... Sou Tasso!... a primavera de teus risos De minha vida as solidões enflora... Longe de ti eu bebo os teus perfumes, Sigo na terra de teu passo os lumes... — Tu és Eleonora... (ALVES, 1997, p. 94) A apropriação da história dos amores de Tasso por Eleonora, nobre de Ferrara a quem este lhe consagra os versos, é uma convenção literária que se soma ao anedótico do trágico destino do italiano, ensandecido pela ideia fixa de perseguição religiosa. Tasso é o cantor das penas de amor, que chora (canta) a cidade de sua amada, cuja visão risonha lhe afugenta o sofrimento e a solidão. Os temas da coita, da idealização feminina e do amor cultuado à distância já estão presentes no cubano e Castro Alves os redefine pelo modelo convencional do par romântico. A leitura inspirada em Matta é notória, visto que além de temática, ela se manifesta igualmente no plano da expressão verbal. A opção por correlatos ou paralelismo sintático-semânticos aproxima os textos, confirmando essa impressão: Em toda parte/ na terra, mente infeliz/ fronte sonhadora, tua memória vive risonha/ a primavera de teus risos enflora, sigo ansioso teus passos/ sigo os lumes de teu passo, vive/ vida, risonha/ risos. Na segunda estrofe de “Os três amores”, os amantes e o amor que os liga mudam de cenário e enfoque. De Ferrara, o leitor é deslocado para Verona, onde se dão os amores furtivos de Romeu e Julieta: Meu coração desmaia pensativo, Cismando em tua rosa predileta. Sou teu pálido amante vaporoso, Sou teu Romeu... teu lânguido poeta!... Sonho-te às vezes virgem... seminua... 114 Roubo-te um casto beijo à luz da lua... — E tu és Julieta... (ALVES, op. cit., p. 94) Agora, é o clássico amor romântico, dos eternos apaixonados, a medo, certamente, porém, recíproco e realizado. A linguagem é farta em adjetivação e em verbos que assinalam o débito à herança ultrarromântica, espelhada, mais especificamente, na poesia notívaga e soturna dos versos de Álvares de Azevedo: desmaia, pálido amante vaporoso, lânguido poeta, sonho- te. José Fernández Madrid, por sua vez, ditará o tom da terceira estrofe de “Os três amores”. A concepção de amor muda nessa última estância e os receios e negaceios dão lugar a um erotismo franco. Desta feita, há uma ruptura clara com os prógonos da poesia romântica, direcionando os versos do autor à renovação da lírica-amorosa brasileira: Na sua poesia lírica, nem o comedimento de Gonçalves Dias, nem o desespero de Álvares de Azevedo. Gonçalves Dias idealizara a mulher pura e recatada, a virgem a quem se devia respeito e servilidade amorosa; Álvares de Azevedo, os anjos vaporosos ou as virgens diáfanas dos sonhos; Castro Alves, as mulheres sensuais. Se seus antecessores apenas falam poeticamente do amor, sem realizá-los, ele os realiza poeticamente; se falam de amadas, ele fala de amantes. (MARQUES JÚNIOR, 1997, p. 6) É com o poeta colombiano, por cujas ideias político-libertárias Castro Alves naturalmente nutriria simpatia, que a renovação da erótica romântica toma forma em “Os três amores”. Madrid é apresentado em Poetas hispano-americanos76 como “um caudilho dos insurgentes, poeta da época revolucionária mais exaltada, perseguido pelos parciais da metrópole até se obrigar a buscar refúgio nas montanhas” (LUIS e AMUNATEGUI, 1861, p. 11)77. Não era a descrição de um perfil literário que desabonasse o interesse do leitor, cujos versos também os consagrou à defesa da liberdade e à denúncia do arbítrio político. Todavia, o fragmento de que o poeta baiano vai se valer não o impulsiona ao espírito combativo, ao contrário, o texto do colombiano põe em evidência o orgulho espanhol, sem 76 Disponível em: . Acesso em: 20 mai 2018. 77 “un caudillo de los insurjentes, poeta de la época revolucionaria mas exaltada, perseguido por los parciales de la metrópoli hasta obligarle a buscar un refujio en los montes” (LUIS e AMUNATEGUI, 1861, p. 11) 115 esquecer, porém, de declarar o seu estarrecimento face aos crimes inflingidos pela metrópole aos colonos. É o sentimento de pertencimento que está ali presente no texto de Madrid e que Castro Alves o ressignifica com finalidades distintas. Vejamos: Sangue espanhol corre por minhas veias; Meu é seu falar, sua religião a minha, Tudo, menos sua horrível tirania. Não odeio a Espanha; somente Abomino aos tigres da Ibéria, Que de sangue inocente, De lágrimas, de luto e de miséria Preencheram este novo continente. (MADRID, 1861, p. 11)78 Assim, como em Matta, a sugestão poética do fragmento é incorporada e assimilada pelo baiano, mas obedecendo às pretensões estéticas que o inspiram à feitura do poema. Curiosamente, o texto de partida, uma poesia reflexiva e patriótica, é ressemantizado na passagem para os versos do brasileiro, assumindo outra identidade, a mítico-literária do herói Don Juan. De posse de uma construção literária prévia sobre o mito, bebida em leituras, como a de Azevedo e Byron, como já visto, os aspectos espanhóis, de orgulho nacional e sentimento de valor às raízes, são ressignificados como sensualidade e ímpeto irrefreável de sedução. Um único verso, carregado de simbolismo ideológico, mas cujo efeito estético de sua construção denuncia, na forma, no ritmo e no tom, a leitura do fragmento. Cotejamos os versos dos dois escritores: Sǎn/ gre˘es/ pǎ/ ñō// lǎ/ cōr// rĕ/ pŏr/ mĭs/ vē// nas (Madrid) Ŏ/ sǎn/ gue˘ar/ dēn// te˘em/ mī// nhǎs/ vēi// ăs/ rō// la (Castro Alves) Ambos escritores recorrem ao ritmo do verso para expressar o sentido patético das imagens. Em Madrid, os acentos tônicos do decassílabo heroico recaem na 4ª, 6ª e 10ª sílabas, 78 “Sangre Española corre por mis venas;/ Mio es su hablar, su relijion la mia,/ Todo, ménos su horrible tiranía./ No aborrezco a la España; solamente/ Abomino a los tigres de la Iberia,/ Que de sangre inocente,/ De lágrimas, de luto i de miseria/ Han llenado este nuevo continente”. (MADRID, 1861, p. 11) O fragmento em destaque pertence à Elegia II de La muerte de Atahualpa do escritor castelhano. 116 e a cesura pontua a latinidade das origens hispânicas do eu-lírico. Em Castro Alves, porém, o aumento de pausas rítmicas (4ª, 6ª, 8ª e 10ª), mais do que o etos espanhol, marca o erotismo in crescendo no desejo do herói andaluz. Se, no primeiro, o sangue corre contínuo pelas veias do sujeito lírico, no outro, ele rola, crescente e revulsivo, impulsionando o sedutor às aventuras amorosas. A metáfora assonante, perceptível na progressão vocálica da nasal aberta à fechada, “sangue ardente em minha”, reforça o efeito patético do verbo rolar, e confere ao verso o sensualismo particular. Os mitos literários de Don Juan em Byron e Azevedo já não são os mesmos na passagem para o texto de Castro Alves. Deles se extraem apenas os traços anedóticos e, reinterpretados, refundem-se ao espanholismo inspirador do poema-fragmento de Fernández Madrid. O erotismo mórbido da “Canção de Don Juan” do poeta paulista dá vez à sensualidade viril, do desejo incontido, orgástico, que transforma o signo dos versos pálidos daquele em um hino de louvores ao amor carnal. Compare-se a apropriação pelo poeta baiano do vocábulo treno (lê-se, treno), muito usual entre nossos românticos, com valor semântico poeticamente demarcado, ao sentido encontrado em Fagundes Varela e no mesmo Álvares de Azevedo. Nestes se evoca o sentido corrente do léxico: “Quando as harpas do peito a morte estala,/ Um treno de pavor soluça:/ E a nota divinal que rompe as fibras/ Nas dulias angélicas ecoa!” (Epitáfio – AZEVEDO, 2000, p. 163). E no primeiro: “Ainda um treno! E o vendaval sem freio/ Ao soprar quebrará a última fibra/ Da lira infausta que nas mãos sustenho”79. (Cântico do Calvário – VARELA, 1892, v. 2, p. 38). Etimologicamente associada aos ritos fúnebres (Θρηνος, ου (ό) [Trenos]), “lamentação sobre um morto, canto fúnebre”, por extensão, “canção de luto, canto queixoso” (BAILLY, 2000, p. 943)80, o vocábulo tem seu étimo preservado nos versos de temas lutuosos dos escritores citados. Em Castro Alves, a canção entoada em tonalidade lúgubre ganha sentido erótico em função de seu deslocamento a outro campo semântico: volúpia, sangue, veia, seio, amorosas, ardente, brilha, amor. Construções tradicionalmente ligadas ao temário ultrarromântico como “leito de morte” e “eu morro” são reformuladas para “leito do amor” e pela sugestão do gozo amoroso buscada no francês, 79 Varela, em Obras Completas (1892), usa mais de uma vez o vocábulo com o sentido de canto fúnebre. Entretanto, há raros momentos em que a euforia marca os acentos melódicos do treno: “O ganges dorme sonhando./ Meu batel se embala arfando/ Sobre as ondas de crystal;/ O rouxinol inspirado/ Modula o threno adorado/ Nas sombras do laranjal!” (Oriental – VARELA, 1892, V. 1, p. 160) 80 “Lamentation sur un mort, chant funèbre. 2. p. ext. chant de deuil, chant plaintif” (BAILLY, 2000, p. 943) 117 segunda língua da vida cultural e acadêmica dos Oitocentos, como Mendes (2005, p. 446) já havia observado na ambivalência da expressão petit mort81. Toda a estrofe ecoa ao som da viola de Don Juan. As modulações dos trenos são sentidas no corpo do texto que explora o efeito sonoro no emprego dos ditongos nasais /ɐj/, incidindo sempre nas pausas poéticas: O sangue ardente em minhas veias rola... Sou D. Juan!... Donzelas amorosas, Vós conheceis-me os trenos na viola! Sobre o leito do amor teu seio brilha... O poema apresenta motivos espanhóis imbricados ao mito de Don Juan desfigurados das referências mais evidentes, Byron, pela citação direta de sua personagem, e indiretas, Azevedo, pela retomada parcial de um entrecho de “Sombras de Don Juan”. Também não são aqui acudidos o teatro do Século de Ouro, no qual se destacou Molina com seu El burlador de Sevilla, nem Zorrilla com a teatralidade de seu personagem Tenorio. Vemos, antes, pelos indícios históricos, recolhidos em depoimentos, epistolário, rastreio de impressos, e cruzamento textual, a presença de outra matriz, lido pelo círculo boêmio e acadêmico de que Castro Alves fez parte e, notadamente hoje esquecido, como o espanhol José de Espronceda. O poema “Os três amores” pinta um personagem sem os traços da burla, do logro, conferidos ao mascarado sedutor de Molina que age na sombra para atacar a honra das famílias das nobres de Castilha e Nápoles, por onde transita, até os estratos sociais mais baixos, deflorando camponesas e pescadoras. Antes, ele se pronuncia publicamente, revela-se em primeira pessoa, acorda a noite, entoando canções de amor às donzelas enamoradas de seu feitiço. A sua aparência jovial, embora não confessamente expressa na última estrofe, faz-nos sugerir o viço dos verdes anos tal é a impressão que fica pela alusão ao Romeu de Shakespeare na estrofe anterior, da inocência do primeiro tempo amoroso da primeira estrofe, e da própria alusão que a estrofe final faz à iniciação sexual de o D. Juan de Byron com a fogosa Dona Júlia. O personagem também de Zorrilla consumido pelo aspecto performático de suas conquistas não comporta a espontaneidade adolescente que se encontram no El estudiante de Salamanca, 81 No francês, o próprio gozo; a expressão tem conotação metafórica e sexual, dado o paralelo com o embotamento dos sentidos decorrente do ápice amoroso análogo à perda dos sentidos que a decreta. 118 versão literária do mito de Don Juan em Espronceda, e que julgamos manter pontos de contato com os poemas Castroalvinos. Essas impressões são bem definidas, quando confrontamos os dados que nos chegam de nossa pesquisa bibliográfica no Recife, local da publicação de “Os três amores”, e da qual nos ocuparemos no próximo capítulo. Mas não podemos perder de vista aquilo que em Castro Alves é mais importante: a maneira como ele se apropria dessas leituras. Ter se valido dos escritores castelhanos para a composição de sua poemas líricos revela uma prática consciente e comprometida com a leitura de suas fontes de inspiração, assentindo com a noção de que os empréstimos literários no escritor não se restringem à transposição passiva do conteúdo temático-formal solicitado: Como o signo se apresenta muitas vezes numa língua estrangeira, o trabalho do escritor em lugar de ser comparado ao de uma tradução literal, se propõe antes como uma espécie de tradução global, de pastiche, de paródia, de digressão. O signo estrangeiro se reflete no espelho do dicionário e na imaginação criadora do escritor latino-americano e se dissemina sobre a página branca com a graça e o dengue do movimento da mão que traça linhas e curvas. (SANTIAGO, 1978, p. 23) Santiago (1978) nos dá uma boa dimensão da realidade cultural na qual poderíamos situar os empréstimos de leitura do escritor baiano e que consiste naquilo que o crítico denomina de entre-lugar do discurso latino-americano. Ainda que Castro Alves não esteja arrolado aos autores do estudo do crítico, é muito oportuna a sua reflexão a propósito do espaço e da função que ocupa o escritor na América Latina em seu processo de resistência ao domínio cultural da metrópole e de afirmação de uma identidade nacional. O escritor no espaço do neocolonialismo empreende um movimento de “agressão contra o modelo original, fazendo ceder as fundações que o propunham como objeto único e de reprodução impossível” (Ibid. p. 23). Em termos políticos, a obra de Castro Alves estava ancorada num projeto de reafirmação da identidade da nação, cada dia mais se abrindo ao discurso liberal e republicano. Seus poemas antiescravagistas e panfletários dão sinais da fissura que já sofria o modelo de estrutura da sociedade patriarcal brasileira. No plano discursivo amoroso, o poeta também acompanhou essa evolução. Engajado numa renovação da erótica nacional, a imersão textual em suas leituras não poderia resultar em mimetização do passado ou em simples reprodução passiva dos contemporâneos. O discurso que se lhe apresenta em Poetas hispano-americanos 119 era a ele atual e familiar, mas não o impediu de o reler de acordo com as orientações estéticas às quais estava inclinado. Matta e Madrid são assimilados e aclimatados ao seu projeto de renovação literária. Seus textos emprestam a ele outros sentidos, bem divergentes, quando se pensa na composição dali resultante como um todo, confirmando a autonomia que detinha como leitor desde os modelos europeus até as sugestões literárias ideologicamente mais simpatizantes. A imaginação criadora de que fala Santiago (1978) define, afinal, a originalidade de seu trabalho que põe a nu os procedimentos de transformação dos empréstimos literários. Recolhendo poucas linhas de fragmentos de textos comentados, Castro Alves multiplica, abre o leque de possibilidades semânticas ao se servir do texto, o que já havia despertado a atenção de outros críticos do autor: “Não poderíamos esquecer, porém, que, mais que um fingidor, o poeta é um multiplicador. Ele cria sobre o que foi, o que poderia ter sido e o que gostaria que tivesse sido”. (FRAGA, 2002, p. 190) Em “Os três amores”, sentimos esse domínio sobre o processo de criação artística pelo escritor. Das versões donjuanescas evidentes da tradição, o de Byron e o de Azevedo, decalcados pelas traduções francesas, ficam apenas os elementos anedóticos do mito: a iniciação amorosa de D. Juan a Júlia, a espanhola fogosa, colhida em Byron; a autoafirmação do próprio senso de sedução, bebido em Azevedo. Entretanto, a atmosfera é outra; o sensualismo dos versos em nada faz pensar nesses últimos, é parte de seu potencial criador inspirado em matrizes esquecidas da historiografia literária. Os castelhanos lidos em seleta não denodam o seu texto, ao contrário, renovam a atenção da crítica sobre a inventividade artística do poeta e da necessidade de compreendê-lo em seu tempo e suas circunstâncias de produção. Ampliar os horizontes das leituras de Castro Alves faculta uma compreensão mais sólida sobre como se deu esse processo de aquisição textual dos impressos oitocentistas, muitas vezes estudados pela restrição às epígrafes mais evidentes. A bem da verdade, se considerarmos o seu epistolário encontraremos outro cenário leitor, de um poeta que leu produções variadas de seu tempo, em impressos e suportes literários os mais distintos, como nos dá conta a carta sobre a qual detalhamos, endereçada ao irmão em 1870: Manda-me o livro dos Poetas Espanhóis. – A minha leitura agora é Humboldt. Abismo-me nas maravilhas do Cosmos. Ler-se Humboldt aqui é duplamente 120 belo. – Adeus. Conta-me as novidades literárias, manda-me de tudo, jornais e jornalecos. (A Guilheme de Castro Alves – ALVES, 1997, p. 764) Ou ainda, na preferência à apropriação nacional da literatura estrangeira, em carta da Bahia de 1867 ao amigo Regueira Costa do Recife: Como vai a Noiva de Abidos, de Byron? A tua mimosa assimilação da poesia de Lamartine? – Manda-as, quero sentir o doce perfume dos teus versos tímidos e virgens como um seio velado de virgem... Quero ler Byron e Lamartine na melodiosa toada de tuas estâncias. (A Regueira Costa – ALVES, 1960, p. 747) [grifos do autor] Foi por esses contatos de leitura que o autor baiano logrou em formular uma imagem singular e perene do popular personagem andaluz em seus trabalhos artísticos. A leitura de livros improváveis como aquele que aqui trouxemos à baila se revela importante na medida que abre o leque da leitura a que o poeta tivera acesso e que tocaram diretamente ou não o mito literário de Don Juan. Essas pesquisas a versões pouco estudadas e até desconhecidas ilustram, ao mesmo tempo, o movimento empreendido pelo escritor nas Américas em relação à matriz estrangeira. Torna-se mais fascinante o sentido cosmopolita que Castro Alves imprimiu ao seu trabalho artístico, valendo-se de leituras múltiplas a fim de sintonizá-las ao seu projeto de renovação da poesia brasileira. Até o início de nossa pesquisa, não supúnhamos sua apropriação de textos fora do grande cânone europeu, e, menos ainda, suspeitávamos da existência de leituras com os aspectos históricos e culturais tão precisos e implicados com o processo de recriação poética de seus textos. A fim de cumprir essa lacuna dos estudos sobre o poeta, iremos no próximo capítulo fazer um resgate de outros aportes textuais muito íntimos à experiência das letras acadêmicas e do periodismo literário praticado pelo escritor no Recife. Faremos uma exposição de nossa incursão a centros literários e folhas de periódicos conhecidos do escritor baiano a fim de trazer dados mais concretos da apropriação de leituras onde incida a presença do mito de Don Juan. Sem condicionar a esse material investigativo, fruto de nossas pesquisas, uma realidade exclusiva de entrada no estudo do mito, ele vale tão somente para validar nossas hipóteses das leituras que críamos que o poeta houvesse feito nesse tempo ainda pouco estudado da vida acadêmica na capital pernambucana e dar números mais concretos àqueles que o estudam com o olhar em vistas dos eventos históricos. 121 3. NA TRILHA DO SEDUTOR Com quais obras associadas ao tema de Don Juan teria tido Castro Alves contato em sua passagem pelo Recife? Excetuando o berço baiano, ainda em tenra idade, a cidade de Pernambuco será o local de duração mais prolongada entre as estadas onde o poeta se instalou até a fatalidade de sua morte em 1871 em Salvador. São cinco anos de formação acadêmica entre fevereiro de 1862 até abril de 1867. Dois anos destes, 1862 e 1863, dedicados aos preparatórios para o ingresso na Faculdade de Direito do Recife, êxito alcançado apenas no terceiro ano daquele tempo em Pernambuco. Entre os 15 e 19 anos – o poeta morreria aos mal completos 24 – conheceu rápida ascensão, chegando a escrever um drama, Gonzaga e a Revolução de Minas, encenado na capital baiana em 1867. Sua glória, porém, está toda consagrada à chegada a São Paulo, lugar de sua eleição ao qual devotou, mais de uma vez, amor irrestrito. Para penetrar nas questões subjacentes às fontes de leitura do baiano, essas considerações não podem passar despercebidas ao nosso olhar como pesquisador. Uma informação traiçoeira quando se estuda a recepção literária estrangeira em impressos de que Castro Alves se serviu tem a ver com o papel que ocupam as citações textuais, notadamente as epígrafes, que encetam os seus escritos literários. A julgar pela leitura de suas Espumas Flutuantes (1870), única obra publicada, às pressas, com o poeta em vida, o índice de ocorrência do paratexto epigráfico revelaria, se não todas, a maior parte de leituras realizadas pelo escritor nos últimos anos de sua vida. Só dessa obra teríamos: Byron, desde as já comentadas traduções, até a citação portuguesa de o Childe Harold para “O fantasma e a canção”; Alfred de Musset, em Rolla, Les Nuits, Souvenir e Suzon para “Adormecida”, “A volta da primavera”, “Murmúrios da Tarde”, “Uma página da escola realista” e “A uma estrangeira”; Almeida Garret, em Rosa no mar para novamente “Murmúrios da tarde”; Abigail Lozano, na tradução do fragmento de Napoleon para “Oitavas a Napoleão”; Shakespeare, em versão francesa de Romeu e Julieta para “Boa-Noite”; Hugo, em Les châtiments para “Jesuítas”; Virgílio, em A Eneida para “Immensis Orbibus Anguis”; Fagundes Varela, em Cantos e Fantasias para “Versos de um viajante” e “Aves de arribação”; La Marvonnais, em Perturbation para “Pelas sombras”; Eugène Berthoud, em tradução de Les trois soeurs du poète para “As três irmãs do poeta; Goethe, em tradução portuguesa do Fausto para “A Luís”; Teófilo Braga, em Tempestades Sonoras para “O hóspede”; Tomás Ribeiro, em Sons que passam para “Aves de arribação”; José de Alencar, em Cinco Minutos para “Os perfumes”; Junqueira Freire, em 122 Inspirações do claustro para “É tarde” e Contradições Poéticas para “Quando eu morrer”; Mont’Alverne, em uma frase anedótica (É tarde! É muito tarde!) ainda para o poema “É tarde”; Octave Feuillet em Dalila para “Uma página da escola realista”. Colocamos em evidência apenas as faturas da produção literária entre 1868-1871, período em que o poeta esteve em São Paulo, Rio de Janeiro, Curralinho e Salvador. Do tempo em que esteve em férias na Bahia, em 1867, apenas Virgílio, nas Geórgicas, e Mickiewicz, em Maximes et sentences, para “Sub tegmine fagi” e Azevedo, em Obras (1862) para a “A Boa Vista”. Do longo período no Recife, porém, tão somente, Salomão, em latim, com Cântico dos Cânticos (Bíblia Sacra) para “Hebréia”; Dante Alighieri, em italiano, com a Divina Comédia e Laurindo Rabelo em Adeus ao mundo para “Mocidade e Morte”; Eugène Bouchard, em A M. Lamartine para “A Maciel Pinheiro”; Novamente Azevedo, em Obras (1862) para “Pedro Ivo”; Hugo, em tradução de Odes et Ballades na versão de “Perseverando” e em paráfrase de Les deux îles para “As duas ilhas”; John Milton, em inglês, no Paradiese Lost para “Dalila”. Quanto à poesia de Os Escravos (1883), escrita entre 1865 e 1868, o número para a capital pernambucana é mais generoso: um aforismo de Napoleão, um verso de Vozes Interiores de Hugo e uma quadra de José Bonifácio, todos, para “O século”; uma sextilha de Pedro Calasans para “Ao romper d’alva”; Heine, em francês, com De l’Allemagne para “A visão dos mortos”; Nathaniel Lee, em português, para “Mater Dolorosa”; Mateus (Bíblia Sacra) para “Confidência”; Hugo, novamente em Voix intérieures e Quintana, em Oda al mar para “O sol e o povo”; Lavater, em português, com Os Estudos da fisionomia; Hugo em Les orientales Orientales para “A criança”; Lutero, em Worms, e Alexandro Herculano, numa tradução de Delavigne, O cão do Louvre, ambos para “A cruz e a estrada”; Eugène Sue, em português, com Canto dos filhos de Agar, para “Bandido Negro”; Tomás Ribeiro, em D. Jayme para “América”; Byron, em Cain, e Lucrécio para “Remorso”; Hugo, novamente com tradução de Bug Jargal, para “Canto de Bug Jargal”; Uma frase atribuída a Maciel Pinheiro para “Antítese”; Pelletan, em uma frase para “Súplica”; Isaías, para “O vidente”. Em São Paulo, completaria o livro Mickiewicz, em francês, com Mère polonaise para “A mãe do cativo”; Ésquilo, em francês, com Prométhée para “Prometeu”; um provérbio latino para “Os frades”; Alfred de Musset, em À la Malibran para “O derradeiro amor de Byron”. Outras obras como A cachoeira de Paulo Afonso (1876), datada de São Paulo, se veem adornada de o Reisebilder (quadro de viagens) de Heine em francês. Entre as Poesias Coligidas, organizadas por Eugênio Gomes em Obras Completas (1997), fechariam esse quadro das 123 ocorrências intertextuais, primeiramente no Recife, Franklin Dória, em Enlevos para “Ao Sr. Furtado Coelho”; Azevedo, em Obras para “Pensamento de Amor”; Maciel Monteiro, em uma tradução de A Mademoiselle Nichtowsk, de Lamartine, para “Horas de Martírio”; Hugo, em Les rayons et les ombres para “Amemos”; Azevedo, em frase atribuída a ele antes de morrer para “Fatalidade”; Em São Paulo, ainda, Hugo, em português, com Les Misérables e Lamartine, em Méditations Poétiques, para “Poeta”82; No Rio, Les Nuits para “Adeus”; e, de volta a Bahia, Alfred de Musset, em A Pépa, para “Em que pensas?”. E nos trabalhos de tradução e paráfrase do escritor baiano, primeiramente em São Paulo, Hugo em “Palavras de um conservador” e “A Olímpio”; Henry Murger, em “A Balada do desesperado”; Na Bahia, Musset, em “Madri”, “Veneza”, “Chanson” e “Otávio”; Espronceda, em “O diabo mundo”; Lamartine, em “Elegia”, provavelmente também ali83; Gana, sem lugar e data, em “O junco e o cipreste” e “Pássaro viajante”84; e “Amar e ser amado”, também de Gana, que deslocamos de Originais85 para cá, como já estudado no subcapítulo anterior. Ainda integraríamos, ao quadro das traduções, Byron, em “O prisioneiro de Chillon”, inédito que Gomes (1997) situa em Litigiosa86. Essas seriam todas as manifestações de leitura mais diretas efetuadas por Castro Alves e rastreadas nos volumes reunidos a Obras Completas (1997). O trabalho de rastreamento quantitativo das fontes de leitura do escritor foi iniciado por Jamil Almansur Haddad nos anos de 1950 no terceiro volume de sua Revisão (1953), como antes explicamos. Dois outros estudos, nessa direção, também se destacam: Milton Marques Jr. em Um poeta entre o amor e a revolução (1997), direcionado ao estudo das epígrafes e leituras francesas nas obras Espumas Flutuantes, Os Escravos, A cachoeira de Paulo Afonso e Poesias Coligidas; e Cleonice Ferreira de Sousa em Aspectos da presença francesa na obra de Castro Alves (2015), tese na qual a pesquisadora elenca outras incidências de textos possíveis, como Henry Murger, e de léxico da língua francesa no autor. Nossa pesquisa de varredura a Obras (1997) veio apenas a replicar o trabalho pioneiro de Haddad, atualizado pelos críticos mencionados. Propusemos algumas retificações, de acordo com as nossas descobertas apresentadas nos subcapítulos anteriores, 82 Essa informação, em especial, recolhemos da recente tese de Cleonice Ferreira de Sousa (2015), estudiosa castroalvina que pesquisou a presença francesa no poeta. Cf. Aspectos da presença francesa na obra de Castro Alves. (Tese de doutorado). 83 Posição defendida por Afrânio Peixoto em Obras (1921) e que Gomes (1997) reaviva em comentário a Obras Completas. 84 Haddad (1953, v. 2) supõe na Revisão o “Pássaro viajante” como uma produção de 1868 em São Paulo. 85 Para a seção de Poesias Coligidas, integrada ao volume de Obras Completas (1997), Eugênio Gomes reúne Originais, Traduções, Fragmentos, Litigiosas e Colegiais. 86 A poesia foi recolhida por Eugênio Gomes a partir do acesso ao trabalho de Lopes Rodrigues Ferreira em seu Castro Alves (1947). 124 desfalcando determinados textos das classificações tradicionais, mas relocando, sem prejuízo quantitativo, a outras seções do espólio legado pelo poeta baiano. Mais do que ampliar o horizonte das leituras feitas por Castro Alves, nossa proposta consiste em renovar o olhar sobre a entrada que se dá à leitura dos textos castroalvinos. Estamos decididos a explorar o rico temário das composições literárias do escritor, mas respeitando o fundo histórico subjacente a essas suas criações. De modo que, à abordagem quantitativa, pretendemos integrar uma qualitativa, que, de fato, seus críticos mais novos, como os citados, e os da nova crítica donjuanina, já vem realizando, mas sem perder de vista as implicações histórico-culturais que estão por trás da concepção do texto. Procedimento, aliás, que já vinha sido executado num período ulterior ao advento da crítica estruturalista, e mais tarde, à semiótica aplicadas aos textos do autor, e que hoje foi esquecido dado o ranço do biografismo que revestia esses primeiros trabalhos. A viabilidade de nossa pesquisa, portanto, só se tornou possível por reconhecermos, a tempo, esse intrincado jogo de relações contextuais que permeia a recepção e o estabelecimento dos textos castroalvinos. São questões que demandam um conhecimento mais preciso e detalhado sobre as leituras que plasmaram as imagens poéticas de seus textos literários. Não nos encorajamos, desta maneira, à análise dos textos de Castro Alves em sujeição ao traço mais evidente de sua fatura: o índice paratextual das epígrafes. Salvo os casos em que elas impulsionam mais diretamente o ato criativo do poeta, revelado na superfície de seus textos, a leitura-interpretativa bilateral texto/epígrafe deixa escapar ricas manifestações literárias tão mais expressivas e/ou inspiradoras ao ato criador. Comecemos, primeiramente, antes de esboçarmos nossa proposição de factíveis fontes de leitura do escritor, trazendo a observação de que muitos dos textos de Castro Alves viram- se integrados originalmente aos periódicos oitocentistas por onde ele passou, deixando transparecer formatações diferentes. Índices paratextuais desiguais como título, dedicatória, epígrafe, ora dupla, ora expressamente ausente (s), notas explicativas, prólogos, que foram se sucedendo na linha do tempo até uma edição razoavelmente consentida na aprovação mais geral de seus críticos e biógrafos. Tomemos, apenas, a título ilustrativo, o caso da revisão imposta por Manuel Bandeira, em Antologia aos poetas brasileiros da fase romântica (1937), ao verso de “Adormecida” Mas quando a via despeitada a meio, que o poeta pernambucano, julgando imperícia dos tipógrafos, altera deliberadamente para Mas quando a via despertada a meio, como Eugênio Gomes já deu, em notas às Obras Completas (1997), esclarecimento. (ALVES, 125 1997, p. 810). Essa, porém, é ainda uma constatação de somenos importância, quando se põe em discussão a sobrestima que carregam as epígrafes no peso atribuído aos estudos sobre o autor. A reflexão no tocante ao rigor da pesquisa sobre as epígrafes nos românticos, e notadamente em Castro Alves, havia já despertado o interesse de Fausto Cunha que desenvolveu longo estudo em O Romantismo no Brasil (1971) a respeito das metáforas e imagens clichês comuns à escola romântica87. Preocupava ao arguto crítico a singularidade que somente o exame histórico e a crítica desinteressada e sincera seria capaz de repor aos estudos do poeta baiano. Desta maneira, o crítico do autor reavaliava o problemático caso das origens do texto epigráfico no romantismo nacional, despertando para o fenômeno comum já na França, e estendida, aqui no Brasil, do despistamento epigráfico, em que o escritor se apropriava de maior status literário, apagando os vestígios da incursão em outros. (CUNHA, 1978, p. 64) O procedimento do despistamento epigráfico revelava também ao pesquisador o processo de aquisição dos textos fontes, motivo que fez Cunha (1978) rebater a Péricles Eugênio da Silva Ramos a propósito de um estudo, “As Willis de Castro Alves”, que este último crítico havia realizado sobre a presença dessas entidades do folclore nórdico na poesia do baiano via Adam Mickiewicz, escritor romântico polonês. Silva Ramos determinava na ocasião a impossibilidade de que Castro Alves tivesse lido o mito pela entrada da leitura no romântico alemão Heinrich Heine, e o fez comparando as duas versões do mito, a do alemão à do escritor polonês. Cunha (1978), porém, o refutou a partir de um levantamento histórico da apropriação do mito pela recepção da imprensa periódica francesa, responsável pela difusão dos trabalhos de Heine nesse país. Castro Alves, que epigrafava Mickiewicz, poderia, segundo nos faz pensar Cunha (1978), ter se valido do entrecho do polonês para encetar ao seu “Sub tegmine fagi”, mas com as vistas no texto do alemão. A consideração de Cunha (1978), do despistamento epigráfico, pode ser reflexo da própria natureza fragmentária da aquisição dos livros no Oitocentos brasileiro que muitas vezes estava relacionada à forma como se davam fisicamente esta sorte de empréstimos. É sabido, pelos depoimentos e cartas sobre o escritor baiano, da posse de alguns livros e dos despachos 87 É de Cunha (1971) a extensiva pesquisa sobre as metáforas românticas, em especial, a de “O borbulhar do gênio”, verso emblemático de “Mocidade e Morte”, de Castro Alves, na qual o crítico corrige as leituras anacrônicas que, até aquele momento, assentiam àquele vocábulo a noção de genialidade inata do escritor, quando a metáfora era, antes, coletiva ao domínio poético-linguístico romântico e significava a própria inspiração ao ato de escrever. 126 dado por amigos e familiares desses impressos, mas isso não põe Castro Alves fora das trocas de leitura de seu tempo: Era um hábito da época. Os volumes circulavam, lidos por cinco, seis, dez ou mais estudantes. Alguns copiavam trechos ou poemas inteiros, babando de gozo, para depois discuti-los com os amigos. Dessa forma, muito rapaz pobre, sem dinheiro para adquirir livros, ou muito filho de fazendeiro endinheirado, mas sem conseguir a obra desejada nas livrarias, pôde conhecer a última novidade da literatura francesa ou um autor mais antigo, ou apenas famoso, mas difícil de se encontrar. (MACHADO, 2001, p. 208) A literatura do período romântico é, por si só, fragmentária, não só pelas condições materiais inerentes ao país, sem um projeto de desenvolvimento de uma indústria nacional, essencialmente agrário, e dependente do mercado externo para a importação dos artigos desejados como os estimados livros, mas também pelo volume variado de impressos de literatura, crítica e estudo literário, manuais, dicionários, que conferiam uma fisionomia irregular às casas de livros e atmosfera das letras nos Oitocentos romântico. Basta dizer que os Cantos e Fantasias (1865), de Fagundes Varela, foram impressos em Paris pela livraria Garnier, já instalada no Rio de Janeiro, dada as vantagens de custo com o preço do papel comparado ao do território nacional88. (Ibid., p. 82) Vejamos como isso se manifesta no plano das apropriações de leitura do escritor em alguns exemplos que conseguimos detectar de nossa consulta aos impressos românticos. Começamos por “Mater Dolorosa” de Os Escravos. A epígrafe que abre o poema traz o nome de Nathaniel Lee, dramaturgo inglês, sobre quem se tem poucas informações. A referência da epígrafe faz pensar em alguma peça do escritor em particular e, até mesmo, em sua popularidade, dado que o fragmento aparece traduzido para o português. Nada mais enganoso. Trata-se da nona lição do Curso de Literatura Francesa de Villemain89, manual literário das letras francesas muito popular aqui no Brasil, cuja passagem foi trasladada para o português: 88 Sobre essa questão, abordaremos, no último capítulo, o problema encontrado pelo espólio de Castro Alves no tocante à espera do interesse comercial das casas de edição, como a Garnier, para sua publicação. 89 Disponível em: . Acesso em 22 mar 2018. 127 Deixa-me murmurar à tua alma um adeus eterno, em vez de lágrimas chorar o sangue de meu coração sobre meu filho; porque tu deves morrer, meu filho, tu deves morrer. (Mater Dolorosa – ALVES, 1997, p. 222) O Titus! Laisse-moi te serrer encore une fois sur mon sein, murmurer à ton âme un adieu éternel, au lieu de larmes, pleurer le sang de mon coeur sur mon enfant; car tu dois mourir, mon cher Titus, mon fils, tu dois mourrir. (NATHANIEL LEE, 1838, p. 268-269) A confirmação se dá ao consultar outro poema de Os Escravos, “Remorso”; a epígrafe de Lucrécio, em latim, “Neque fama deum, nec fulmina, nec mini tanti/ Murmure, compressit coelum...”, está na lição anterior, a oitava de Villemain (LUCRÉCIO, 1838, p. 234)90, que Castro Alves recorta de um fragmento de doze versos. Já em “Frades”, terceira parte do poema “Jesuítas e Frades”, a epígrafe extraída de um provérbio litúrgico, “Mel in ore, verba lactis,/ Fel in corde, fraus in factis”91, é um dístico pinçado da décima quarta parte de Reisebilder (“Quadros de viagem”), livro incorporado ao segundo volume de Oeuvres Complètes de Heine. (HEINE, 1834, p. 373)92. Mas, talvez, o mais surpreendente dos empréstimos à literatura estrangeira seja realizado nesse mesmo livro de Heine, “O quadro de viagens”, uma de suas leituras diárias no período em que esteve em São Paulo. O livro tem como cenário a Itália romântica e os amores skakespeareanos de Romeu e Julieta são evocados no capítulo IX da narrativa de Heine. A história do jovem casal italiano, eternizada na pena de um inglês, será revisitada por um alemão, e divulgada em impresso francês. Esta obra, e não outra, é a escolhida por Castro Alves para encetar um dos poemas mais antologados da literatura brasileira, “Boa- Noite”: 90 Disponível em: . Acesso em 22 mar 2018. 91 “Mel na boca, palavras de infância,/ Fel no coração, fraude nos feitos” 92 Disponível em: . Acesso em 22 mar 2018. Figura 13: Recorte de página de Espumas Flutuantes, contendo epígrafe de Shakespeare extraída de Reisebilder. (ALVES, 1870, p. 71) Fonte: http://objdigital.bn.br 128 Evidentemente, que estes resultados não sugerem o desconhecimento por parte do autor brasileiro do intertexto de Romeu e Julieta, nem depreciam a percepção do mito pelo contato com outras releituras de Shakespeare. Servem, todavia, para deslindar as experiências leitoras do escritor e como elas puderam contribuir no impulso criativo de seus trabalhos literários. De posse delas, podemos também delinear o quadro das leituras do escritor – ao menos as mais evidentes – para em seu tempo histórico determinado, compreender quais modalidades dos grandes mitos da literatura moderna pode acolher, como o de Shakespeare e Don Juan, por exemplo. Nossa pesquisa, leva-nos, considerando a obra e o lugar relativamente de acolhida destas leituras, através das epígrafes, traduções e paráfrases, a este número de ocorrências por lugar: Figura 14: Folha de rosto de Oeuvres de Henri Heine. (Paris: Renduel, 1834) Fonte: https://archive.org/ Figura 15: Página da parte IX de Reisebilder na qual se encontra a epígrafe de Shakespeare que serviu de modelo para Castro Alves. (HEINE, 1834, p. 252) Fonte: https://archive.org/ 129 Recife (1862-1867) Bahia (Salvador/Curralinho) (1867/ 1870-1871) São Paulo (1868) Rio de Janeiro (1869) 34 22 20 9 Para esse resultado, meramente ilustrativo, não consideramos outras formas de incidência textual como alusão à personagem, aforismo, diálogo direto, releituras textualmente não manifestas, entre outros. Tentamos apenas esboçar um cálculo das ocorrências das leituras por lugar e, consequentemente, por tempo, para poder avançar na pesquisa das fontes in loco. Dada a inviabilidade de uma pesquisa bibliográfica pelos palcos por onde o poeta atuou nessas quatro esferas mundanas, concentramo-nos em uma parada: o Recife acadêmico de 1863-1866, uma página esquecida da história do poeta pela crítica literária. A fim de rastrear potenciais leituras do mito de Don Juan na capital pernambucana, uma vez que a recepção histórica do mito donjuanino pela matriz espanhola de Zorrilla e Molina em São Paulo não traz resultados conclusivos para o caso do poeta, como visto nas análises das faturas dos poemas desse período. Empreendemos uma pesquisa a três centros de estudo, dois na capital pernambucana e um na região de Cachoeira, onde viveu o poeta, e hoje se encontra o Centro Amedoc Clementi Mariani, situado na Universidade Rural do Estado da Bahia. Nossa primeira parada, numa pesquisa realizada em 2016, foi a da Fundação Joaquim Nabuco, centro cultural pernambucano, detentor de um dos maiores acervos de periódicos oitocentistas do país. Ali encontramos o que poderia ser o embrião de uma modalidade de literatura sobre Don Juan associada à moda do fantástico. Marques Rodrigues, estudante maranhense, bacharel pela Faculdade de Direito daquela cidade é o primeiro a contribuir com a história do mito no Brasil. Traduzindo para o português os Contos Fantásticos de Hoffmann, escritor responsável pela renovação romântica do personagem espanhol, seria o bacharel o primeiro a tornar público e acessível a narrativa integrada àquele volume de contos: o Don Juan de Hoffmann93, pelo aporte do fantástico: 93 Disponível na seção B de anexos desse nosso trabalho. 130 Figura 16: Introdução ao Dom Juan: Conto Fantástico de Hoffmann. Tradução original de autoria do bacharel em Direito Marques Rodrigues. O Cidadão, 12 fev 1854. Fonte: Arquivo pessoal. Figura 17: Carta de Marques Rodrigues enviada a Antônio Vicente Feitosa, diretor de O Cidadão, dando notícia das traduções de Contos Fantásticos de Hoffmann. O Cidadão, 12 fev 1854. Fonte: Arquivo pessoal. Figura 18: Cabeçalho de O Cidadão: periódico social e moral. O Cidadão, 12 fev 1854. Fonte: Arquivo pessoal. 131 O título do conto, aportuguesando a insígnia de nobreza, Don, que portava o personagem em outras versões mais correntes, é possível que fosse uma interpolação decorrente da leitura do mito via Molière, versão mais popularizada no cenário local, e na qual se registrava Dom. O certo é que para seu trabalho de tradução, Marques Rodrigues houvera que consultar a versão francesa de Contes Fantastiques d’Hoffmann (1843), na tradução de Xavier Marmier, como já comprovamos outra vez94. O trabalho do ex-estudante da Faculdade do Recife revela uma faceta desconhecida da prática das leituras dos acadêmicos daquela instituição. Tradicionalmente, isso muito em função dos estudos de crítica literária trazidos por Silvo Romero no final do século XIX, a capital de Pernambuco era antevista como palco das transformações sociais do país, privando-se dela a possibilidade de outros diálogos de leitura literária que não de engajamento social e político. A Escola do Recife, termo forjado por Romero, como é designado o período por que Tobias Barreto e Castro Alves passaram no Recife desconsidera abertamente práticas de leitura e escrita literária ainda em voga naquela cidade. O Don Juan de Marques Rodrigues responde a uma demanda de leitura do gótico e do fantástico no Brasil oitocentista e do qual Castro Alves também, em seus primeiros tempos, tomou parte. Em crítica literária ao periódico acadêmico O Futuro, o escritor baiano mostrava ter domínio do gênero fantástico de seu tempo, e mais precisamente, o de E. T. A. Hoffmann: Em Hoffmann (a natureza) é vertiginosa ou fantástica, parece que desatina aos clarões avermelhados do punch, que arde na lareira, quando a tempestade açoita, gemendo, as vidraças, e o céu chumboso da Alemanha se estende como um crepe mortuário por sobre os vetustos castelos dos Berlichingen. (O Futuro, 30 juin. 1864, n. 2, p. 24)95 Há uma omissão flagrante ao estudo dessa tendência dos escritos do poeta pelos seus primeiros comentadores, ciosos em conservar a imagem do poeta sadio e engajado nas causas libertárias. Castro Alves mesmo produziu textos em estreita consonância com os temas do 94 O estudo das traduções francesas de Hoffmann no Brasil foi desenvolvido por nós em 2017, notadamente, tendo por recorte a recepção em Pernambuco, palco das primeiras leituras acadêmicas de Castro Alves. Cf. CHIANCA VENANCIO, K. ; FERNANDES, M. V. . Castro Alves: un lecteur d'Hoffmann. In: XXI Congresso Brasileiro dos Professores de Francês, 2017, Aracaju. Français, langue de la modernité. Aracaju: Federação Brasileira dos Professores de Francês, 2017. v. 01. p. 67-68. 95 Disponible sur le site:. 132 romance negro e que apresentam pontos de contato com o mito de Don Juan como “Pesadelo”, poemeto gótico escrito em 1863, ainda quando estava envolto em suas leituras de Álvares de Azevedo, ou a “Crônica Jornalística” que redigira para o periódico literário referido, e que reservamos à análise no último capítulo. Retomando nosso percurso investigado das incidências mítico-literárias de Don Juan no Recife Acadêmico de Castro Alves, outro centro que pudemos visitar foi o Gabinete Português de Leitura. O nosso interesse por esta instituição foi crescendo à medida em que liamos pela Hemeroteca Digital os periódicos da capital pernambucana no decênio de 1860, a exemplo do Liberal Pernambucano e o Jornal de Recife, este, aliás, onde o poeta publicou seu primeiro poema em jornais, “A destruição de Jerusalém”, aquele de onde saiu O Cidadão, na condição de folha literária daquele jornal. A relação entre o Gabinete Português de Leitura em Pernambuco96 e o poeta baiano passava muito distante dos estudos castroalvinos, o que deveríamos repensar em razão do que falam os especialistas sobre o centro português: Em Recife e Salvador, o Gabinete Português de Leitura teve um papel inestimável na difusão do gosto pela leitura e dos ideais românticos. Eram as únicas bibliotecas públicas que dispunham de obras de autores contemporâneos, chegadas da Europa com uma certa regularidade. Criado em 1851, o GPL do Recife foi freqüentado assiduamente pelos rapazes da Academia de Direito Vitoriano Palhares, Tobias Barreto, Castro Alves. Gostava de cortejá-los. Para falar na sessão magna comemorativa de seu 14º aniversário, convidou Fagundes Varela. O poeta fluminense proferiu um discurso inflamado contra os inimigos da instituição, na qual reconhecia a condição de “primeira associação literária de Pernambuco”. (MACHADO, 2001, p. 204-205) [grifos nossos] A estimável consideração de Ubiratan Machado não parece infundada, visto que as referências de consulta bibliográfica deixadas pelo pesquisador, como informações noticiosas trazidas pelo Diário de Pernambuco (30 set 1865), confirmam a validade de sua revelação. A informação de que Castro Alves era frequentador do Gabinete tem respaldo em Alfredo de Carvalho, e estranhamente ainda não acordou ao interesse de seus estudiosos. Conta Carvalho (1907) em Estudos Pernambucanos97 que o poeta recorria àquele centro para o empréstimo de livros a fim de se preparar para os exames e sabatinas: 96 Doravante, GPL. 97 O livro conheceu um segunda edição Fac-Similar em Natal-RN no ano de 2002 pelo editor Abimael Silva, edição que adotamos para este nosso trabalho. Acreditamos que a pouca circulação que teve este estudo sobre o autor 133 No primeiro anno (1865) Castro Alves offereceu-se para ser o “leccionista” de Regueira Costa, que foi aprovado plenamente. No segundo ano (1866) inverteram-se os papeis; e o meu prezado amigo retribuiu ao poeta o obsequio anteriormente prestado. Dentre os livros que, do Gabinete Portuguez de Leitura, lhe levou ao retiro de Santo Amaro não esqueceu as obras de Donoso Cortés, attendendo ao ponto de direito ecclesiástico, e juntos passaram, até alta madrugada, os dois “segundo-annistas” em proveitosa e animada discussão. (CARVALHO, 1907, p. 217-218) Se esse era o local de onde o poeta recolhia os livros para estudo dos exames na Faculdade de Direito e, sabendo que, como nos revela Machado (2001), ali aportavam as maiores novidades dos impressos europeus, não era difícil pressupor que também dali saíssem seus empréstimos literários. Sabendo que a maior parte das ocorrências textuais do poeta estão no período do Recife, é possível que houvesse, nos centros de estudo desta capital, como o GPL, algum indício considerável de leitura de impressos que abordassem o mito de Don Juan. Fizemos, inicialmente, uma pesquisa digital e detectamos a existência de três catálogos da instituição entre o início de 1850 e o de 1880. O primeiro, o de 185498, não nos revelou resultados muito interessantes, salvo a informação de que o Gabinete dispunha desde esse ano coleções permanentes de periódicos, dentro os quais O Cidadão, onde apareceria a versão traduzida de o Don Juan de Hoffmann pela pena de Marques Rodrigues. De Byron, apenas a “Viagem a roda do mundo”, publicada na Bahia em 1836. De Molière, apenas um estudo homônimo de autoria de Antônio de Souza Macedo. Nenhuma referência aos espanhóis Molina, Zorrilla e Espronceda. O terceiro catálogo, de 1883, também não é muito alentador, posto que se concentra em leituras jurídicas, religiosas, científicas, e as poucas referências literárias não são dignas aqui de nota para nosso trabalho. O segundo é o que parece ser o mais animador, uma vez que foi realizado em 1863 – conveniente ao período da estada do poeta na cidade – pelo diretor do GPL na ocasião que encomendou 3000 exemplares à editora do belga Alphonse Lemale para impressão do material. (Diário de Pernambuco, 26 ago. 1863. p. 2). Destes 3000 exemplares, de acordo com as nossas pesquisas restam hoje apenas dois: ambos extraviados. O primeiro se encontra na França com o título discretamente alterado em uma letra, mas que não restam dúvidas de sua descrição: O Catalogo dos livros do gabineto portuguez de leitura em Pernambuco (1863). Infelizmente, nas três torres correspondentes a Biblioteca Nacional de França em Paris não conseguiu ser apagou a notoriedade do poeta nesta fase de sua formação intelectual, o que justifica não haver estudos a respeito do Gabinete de Leitura e Castro Alves. 98 Disponível em: . Acesso em 22 mai 2018. 134 localizado (Pirvu, 2017). O segundo, depositado no setor de Obras Gerais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, não conseguiu ser localizado, a que a responsável pela ação de busca creditou ao número reduzido de funcionários e a necessidade de ser inventariado conjuntamente ao material que com ele se encontra, estando, portanto, desaparecida de seu local de origem desde 1998, data do último inventário realizado. (CONCEIÇÃO, 2018). Impostas as dificuldades de realização da pesquisa, recorremos à varredura digital deste documento pelos periódicos pernambucanos entre 1860 e 1870. Encontramos duas matérias publicadas pelo jornal Diário de Pernambuco, referentes ao catálogo de 1863 publicado por A. Lemale e outra sobre parte do acervo daquela instituição. A primeira matéria informativa do periódico99, sobre o catálogo, relatava a aquisição de 3000 exemplares e 800 suplementos confecionados no Havre por Alphonse Lemale, ficando a organização, a coordenação e a classificação das obras sob encargo de Joaquim Gerardo de Bastos e os livros expedidos confiados ao correspondende de Lisboa, Antônio Maria Pereira. O Diário de Pernambuco ainda informava que o GPL havia recebido doações de Franklin Távora e Filgueiras Sobrinho e, entre 1862 e 1863, já contava com 559 volumes em Português e 4 em francês, além de ter assinado para aquele ano de 1863 com A gazeta de Portugal. A segunda matéria, por sua vez, explora a realidade dos livros (Diário de Pernambuco 12 ago de 1865, p. 3)100, porém o periódico só informava dos livros recém-adquiridos por volta daquele período da publicação da notícia. Eram 80 livros doados, de relevante, apenas um, doado por Manoel Soares Pinheiro: Fabiola ou l’Eglise de catacombes, cuja personagem empresta o nome a uma das lembranças femininas recordadas pelo eu-lírico de “Os Anjos da Meia-Noite”, de Castro Alves. O número e as ocorrências de leitura não muito alentadoras não dão razões, contudo, para descreditarmos a importância do GPL como referência nos impressos de extração literária. A mesma matéria de 1865 do jornal pernambucano informava da aquisição de 563 livros somente naquela administração de Antônio José Ferreira Alves, diretor da instituição, contando na prática mais de 18 mil volumes. Todos esses dados nos moveram a uma pesquisa local para averiguar quais obras sobre o motivo de Don Juan eram familiares aos estudantes que frequentavam aquele centro de estudo. 99 Disponível em: . Acesso 22 mai 2018. 100 Disponível em: < http://memoria.bn.br/docreader/029033_04/14215>. Acesso 22 mai 2018. 135 A visita orientada às dependências da casa portuguesa veio a nos trazer resultados oportunamente positivos às nossas pesquisas sobre a incidência do mito nos textos castroalvinos. Suspeitávamos não haver leitura do escritor adquirida do teatro espanhol, como, ao contrário, se afirma a propósito do impacto dos intertextos de Molina e de Zorrilla como tradição legada. Este último ainda constava nas prateleiras das numerosas estantes dos livros da casa, porém em um período muito posterior à morte do poeta baiano. Molière e Pierre Corneille, como representantes da matriz francesa do mito, também despontam entre os impressos de destaque, ainda que Castro Alves deles tomasse apenas o aspecto externo ao mito, o enredo e os lances anedóticos. Mas o escritor que mais nos chama a atenção e que acerta com nossas impressões sobre as leituras realizadas pelo poeta é ainda um espanhol, um pouco ainda esquecido de maiores estudos, mas que guarda inúmeras afinidades eletivas com Castro Alves: José de Espronceda: Figura 19:Folha de rosto de Obras Poéticas de Don José de Espronceda. Paris: Baudry, 1851. Fonte: Arquivo pessoal. FiguraFigura 20: Imagem da ficha relativa a Obras de José de Espronceda. 136 O livro de Espronceda era um impresso francês. Tratava-se de Obras Poéticas de Don José de Espronceda, organizadas e anotadas pelo seu revisor e amigo Juan Eugenio Hartzenbusch e haviam sido publicadas em Paris pela livraria europeia Baudry. Em sua composição constavam El Pelayo, ensayo épico; Poesias líricas; El estudiante de Salamanca, cuento; El diablo mundo, poema. A edição era de 1851, um ano depois da fundação da casa, cujos primeiros anos atendia apenas ao público português, vindo a abrir suas portas em 1855 para os brasileiros, como nos dá nota Machado (2001). Além dessa edição, o GPL dispunha, como comentado, de outro espanhol que tinha igualmente abordado o mito de Don Juan, José Zorrilla: O livro de Zorrilla, Dom João Tenório, era uma tradução de Sady-Garibaldi para o português, porém, a edição carioca que o publicou o datava de 1936, anos depois do término do Romantismo. O GPL contava, ao menos, com uma informação consoladora para os bibliófilos e pesquisadores do autor espanhol, a edição de uma de suas obras, as Recordações d’outrora, numa tradução de Joaquim Xavier Pereira, editada por uma firma portenha em 1884. Dos franceses o domínio era relativamente expressivo: uma edição de Oeuvres Complètes de Pierre Corneille – que havia transposto em versos o Dom Juan de Molière depois Figura 21: Capa de Dom João Tenório de José Zorrilla.Rio de Janeiro: Athena, 1936. Fonte: Arquivo pessoal Figura 22: Imagem da ficha catalográfica relativa a Dom João Tenório de José Zorrilla. Fonte: Arquivo pessoal. 137 da morte deste – datada de 1846 pela editora Firmin Didot; nenhum exemplar da versão de Alexandre Dumas para o mito, o Dom Juan de Marana (1836); e três volumes de diferentes edições de o Dom Juan ou le Festin de Pierre, de Alexandre Dumas, porém, duas já do século XX, Les chef-d’oeuvres de Molière, impressa pela editora carioca Americ-Edit, e Théâtre complètes ilustre, pela Larousse, e a editada em Paris em 1843, Oeuvres complètes de Molière pela firma Didot Frères, as quais não consigamos localizar fisicamente: Figura 23: Imagem da ficha catalográfica relativa a Oeuvres Complètes de Molière. Paris: Didot Frères,1843. Fonte: Arquivo pessoal. Figura 24: Imagem da ficha catalográfica relativa a Oeuvres Complètes de Molière. Paris: Didot Frères,1843. Arquivo pessoal. 138 A reunião desses dados reforça a nossa tese de ter sido inconsistente a possibilidade de Castro Alves haver lido as versões da matriz espanhola do mito de Don Juan propostas por Tirso de Molina e José Zorrilla. Replicamos, do mesmo modo, uma conferência apresentada em 1948 por Macedo Soares, que havia cursado em São Paulo, assim como o baiano, a mesma faculdade, a propósito da celebração dos 300 anos de morte de Gabriel Téllez, o Tirso de Molina. Na ocasião o estudioso, seguindo as descobertas da tirsista Blanca de los Ríos, declarava como a obra do dramaturgo permaneceu por quase três séculos no ostracismo, vindo a ser redescoberta já nas portas do século XX, razão pela qual justificasse o que ele acreditava em ter sido improvável a leitura do mito pelos nossos autores românticos: A Sombra de Dom Juan, de Álvares de Azevedo, e os Três amores, de Castro Alves, servem para mostrar a fascinação que “Dom Juan” exercia sôbre a geração brasileira que viveu sob o signo do romantismo. O “Dom Juan”, porém, que êles admiravam não era o terrível Burlador de Sevilha, mas o “Dom Juan” de Lord Byron, que é apresentado mais como vítima das circunstâncias do que pròpriamente como perigoso pecador. Tirso de Molina, ao que parece, não tinha chegado ainda no Brasil. Ao Brasil chegara o seu personagem, estilizado por Lord Byron, que o despiu de suas roupas medievais para lhe dar a fisionomia de um romântico do século XIX. (SOARES, 1948, p. 276) Esta conferência, aliás, é aludida por Edmundo Moniz – especialista nos estudos de Zorrilla no Brasil – no apêndice “Zorrilla e a América” de seu D. João e o Surrealismo (1960). Nesta obra, Moniz traz uma informação enviesada a propósito das palavras daquele conferencista. Intentando legitimar uma presença efetiva do Don Juan de Zorrila em nossos românticos, aquele confiava a este último a notícia de que “o D. João, que os (Castro Alves e Álvares de Azevedo) fascinava [...] não era o de Tirso de Molina e sim o D. João do romantismo, de Byron e de Zorrilla” (MONIZ, 1960, p. 11). [grifos nossos]. Ocorre que, como no texto supracitado, Soares não faz essa injunção, desabonando até de seu objeto de estudo, Tirso de Molina, a possibilidade de vínculo com os românticos brasileiros em favor da leitura dominante por Lord Byron. Nem mesmo Moniz (1960) consegue estabelecer, pelo texto cruzado com os poetas brasileiros, eventuais pontos de contato, o que justifica o recorte feito a obras de cunho surrealista cuja a incidência de Zorrilla é nítida. Entretanto, assim como ele, concordamos com a leitura – excepcional afirmamos – de Gonçalves Dias dos textos do romântico espanhol, posto que o maranhense o epigrafou mais de uma vez; constatação que, ao invés de nos desencorajar como pesquisadores, mais nos estimula a estudar os nossos escritores pelas particularidades de 139 cada caso, como considerando a bagagem cultural de Gonçalves na Europa, ou, mais especificamente, Castro Alves pelos palcos das cidades por onde atuou. Encorajamo-nos, porém, a defender a tese de que José de Espronceda foi, com efeito, uma presença significativa em Castro Alves, mesmo que este não o tenha destacado em nenhum de seus poemas em epígrafe. A tradução de O diabo mundo realizada pelo baiano já no último ano de sua vida parecia apontar Espronceda como uma excrescência à sua obra poética relativamente já definida. Mas a leitura de poemas como “Immensis Orbibus Anguis” espelhada em O diabo mundo e, mesmo, o perfil jovial de o Don Juan de “Os três amores”, evocando o motivo poético de O estudante de Salamanca, como já comentado, traem a absorção da leitura de Espronceda pelo poeta baiano. Outra possibilidade desse vínculo com o espanhol está na própria dimensão fantástico- gótica que recobre os textos de Espronceda e que Castro Alves também intentou imprimir nas suas raras narrativas. Não apenas o autor de O diabo mundo, mas outros escritores que ficaram à margem do cânone estão, ainda que indiretamente, presentes nos escritos do baiano. Benjamin Gastineau seria um deles. Autor de uma novela intitulada por Odysseias Argelinas, esse escritor francês só nos chegou ao conhecimento pela pesquisa contínua aos periódicos oitocentistas. Descobrimos uma novela-conto101, A Condessa Negra, que reaviva o tema do orientalismo romântico por outras lentes que não a de Victor Hugo em Castro Alves. Essa conclusão a que chegamos só foi possível pela consulta aos textos de Castro Alves, que saíram inicialmente nos jornais do século XIX e que hoje estão disponíveis digitalmente, confrontados com recentes descobertas. Em “Crônica Jornalística”, escrita para o periódico O Futuro (1864), Castro Alves faz uma rápida referência a Ludwig, de Parfait. Eugênio Gomes traz essa informação em Obras Completas (1997) como um nome próprio, sem diferenciar autor e obra, talvez por influência do texto de Peixoto (1921) que, assim, o traz em sua edição de Obras. Acontece aqui um caso curioso, em que a consulta à fonte mais recuada no tempo, ao invés de aclarar o pesquisador, reforça o erro. Na falta do manuscrito, o jornal era o primeiro documento que responderia à confiabilidade de original, como acontece, até hoje, aos autógrafos que extraviaram do poeta, delegando-se aos textos encontrados na imprensa como fonte fidedigna. Em O Futuro102, 101 Disponível na seção B dos anexos de nosso trabalho. 102 Disponível em: . Acesso em 10 ago 2017. 140 todavia, a referência literária vem sem o itálico, fazendo com que o leitor alheio à intimidade do círculo de leituras do poeta, inferisse àquela nota uma alusão a algum escritor desconhecido: Parfait, porém, era a referência a Paul Parfait, traduzido aqui no Brasil como Paulo Parfait, e Ludwig o personagem de seu conto fantástico, Os três presentes do diabo. A recente tese de Antônia Pereira de Souza, A prosa de ficção nos jornais do Maranhão oitocentista, defendida em 2017 em João Pessoa, nos auxiliou a chegar a essa conclusão. A estudiosa faz em seu trabalho um levantamento das obras que corriam na imprensa maranhense em meados do século XIX e aponta uma coleção de leituras literárias a baixo custo intitulada Bibliotheca Litteraria, trazendo o nome do autor, Paulo Parfait, e o conto, Os três presentes do diabo. O livro, porém, jamais foi achado. A pesquisadora também não conseguiu identificá-lo nos jornais não digitalizados a que teve acesso no Maranhão. Esgotadas nossas buscas pela Hemeroteca Digital, dando esse nome como entrada, descobrindo, tão somente, avisos noticiosos de sua venda na imprensa maranhense e cearense, recorremos a outras plataformas. Por fim, encontramo-la em um jornal da Hemeroteca Digital do Uruguai, A Patria. Tratava-se de um Figura 25: Detalhe do entrecho final de “Crônica jornalística” onde aparece a referência ao personagem Ludwig sem a distinção gráfica necessária. O Futuro 30 ago 1864. Fonte: http://memoria.bn.br 141 jornal promovido por brasileiros residentes naquele país. A publicação era de 1883, e trazia três dos quatro contos presentes no quarto volume da série Bibliotheca Litteraria: Os três presentes do diabo, de Paulo Parfait; Cinábrio, de Hoffmann; e a Condessa Negra, de Benjamin Gastineau. O quarto que não conseguimos localizar no jornal é O leproso da cidade d’Aoeste, obra de Xavier Maistre, hoje facilmente encontrada em plataforma digital. A referência a Hoffmann, por si só, dá a toada desta série, cujos contos são marcados por uma atmosfera sombria, repleta de mistérios, fantasias e assassinatos. Ela confirma o pressuposto de que Castro Alves, como outros românticos de seu tempo, não foi, nem ficou alheio à prática do gênero no país, razão pela qual recobriria, mais tarde, à maneira de Noite na Taverna, de Azevedo, seu drama A prole dos saturnos de imagens soturnas. A condessa negra serviu de estímulo, conjuntamente à leitura de Azevedo, ao exercício do fantástico, gênero já cultuado pelo maranhense Marques Rodrigues que havia, oito anos antes da chegada de Castro Alves no Recife, traduzido o Don Juan, conto fantástico de Hoffmann. O nome de Marques Rodrigues não seria indiferente ao poeta, visto que também cursou Direito na Faculdade de Recife, os seus contos traduzidos para O Cidadão certamente estariam depositados nas estantes de o GPL, uma vez que a instituição tinha coleção permanente desse periódico, que teve vida efêmera (1854-1855), e, conforme Machado (2001), teria sido ele o autor de O livro do povo, o “maior best-seller do estado (Maranhão) e do país” (Ibid. p. 82). Todas essas observações nos serviram para traçar um painel das leituras que, não apenas por citação e alusões mais diretas, Castro Alves havia tomado parte e às quais se ligam temas variados de sua obra literária como o de Don Juan. A condessa negra é uma obra cujo enredo apresenta um modelo de Don Juan, Jorge Kerouard, versão argelina do célebre sedutor que Benjamin Gastineau dava ao público francês de seu tempo, sem esquecer a atmosfera sombria dos quadros misteriosos que dão o fundo às cenas dos crimes e dos amores adúlteros da protagonista com seu amante sedutor. Daremos notícia dessas manifestações esquecidas do mito de Don Juan no Brasil através da análise estrutural de textos de Castro Alves onde a manifestação donjuanina pelo fantástico se faz sentir. Analisaremos os textos, na ordem cronológica de suas concepções pelo autor, cuja temática do mito se estreita com o gênero fantástico e com o gótico. Propuseremos uma análise formal e temática de três composições constitutivas do corpus de nosso trabalho: “Pesadelo”, “Crônica Jornalística” e “A prole dos saturnos”: à exceção trabalhados da terceira, 142 francamente erótica, todas as demais, sintonizadas à vertente desconhecida do donjuanismo gótico e fantástico de Castro Alves. 143 CAPÍTULO III O MITO DE DON JUAN: ORIGENS, EXPANSÃO E UNIVERSALIDADE 144 Convencionalmente, o mito literário de Don Juan é um legado atribuído ao engenho do frei espanhol Tirso de Molina. Extraído do romanceiro popular, a obra ganhou os tabalhados dos corrales de comedia na Espanha contrarreformista até chegar à Itália e França depois. Com Molière, o mito ganha outra significação, perdendo a sua finalidade doutrinária que o moveu inicialmente com o seu criador religioso. O Festin de Pierre, a versão francesa do mito, será juntamente a Don Giovanni de Da Ponte e Mozart, os modelos responsáveis pela expansão do mito de Don Juan na Europa e, depois, no continente americano. Os românticos já no século XIX irão sacramentar o mito, promovendo-o à universalização. É com escritores como Hoffmann, Balzac, Mérimée e Gautier que o mito deixa o teatro para visitar outra plataforma literária: o conto. Nesses escritores, as implicações também serão outras, desde a atmosfera fantástica do álcool que leva o entusiasta viajante do conto do escritor germânico à busca do eterno feminino, até a perversão das cenas cruéis de Belvidéro na obra de Balzac, passando pela renovação do mito proposta pelo modelo de Don Juan criado por Mérimée. Esta última obra, As almas do purgatório, consolidará uma nova tradição nas representações conhecidas do sedutor espanhol. Mérimée proporá, inspirado na legenda de Miguel de Marana, uma nova abordagem do mito, a do herói que encontra a redenção de sua alma pela transformação operada no sincero arrependimento religioso. A “maranização” proposta em As almas do purgatório terá repercurssões diretas na obra de Alexandre Dumas e do espanhol José Zorrilla, dividindo as atenções com a “faustização”, o modelo de Don Juan muito cultivado no romantismo pelo seu caráter questionador. Todas essas recriações literárias no século XIX contribuíram para a popularidade do herói sevilhano que chegava no Brasil e nos países hispano-americanos também na imprensa periódica e nos impressos estrangeiros. 145 1. O MITO DE DON JUAN: DO BARROCO À QUEDA DO ANTIGO REGIME Nos dois capítulos de nosso trabalho, dedicamo-nos à revisão e à recepção da obra literária de Castro Alves, bem como de sua fortuna crítica consolidada, a fim de rastrear factíveis evidências de leitura do mito de Don Juan realizada pelo poeta. Discutiremos, agora, a manifestação desses empréstimos literários na expressão da prosa, da poesia e do teatro romântico deixados pelo escritor. Mais do que apontar as incidências do mito nos textos castroalvinos, interessa-nos entender como e de que forma essas versões literárias íntimas a Castro Alves contribuíram à criação de uma obra, a um só tempo, tributária e renovadora da tradição de seus antecessores. Contemplaremos, para isso, cinco poemas que julgamos nitidamente alicerçados no mito donjuanino, por se fazerem, pelas imagens, argumentos ou construções verbais alusivas a uma ou mais versões revisitadas pelo autor. Boa parte delas permanece, até hoje, alheias aos estudos de crítica-literária sobre Don Juan, de modo que o seu resgate histórico não vem aqui levantar discussões acerca de suas potencialidades estéticas, mas possibilitar o diálogo existente e desconhecido com o autor na condução de sua definição particular sobre o mito. Desta forma, pomos em evidência à análise formal e temática as composições em prosa que saíram de experiências de leituras excepcionais em Recife, “Pesadelo” e “Crônica jornalística”, nas quais a apropriação do gótico e do fantástico se faz perceptível, da incorporação de textos dramáticos como “A prole dos saturnos”. Dos intertextos de base, coletados por nossa pesquisa, que serviram à inspiração do estro poético de Castro Alves para essa fatura de sua obra literária estão a de escritores como José de Espronceda, Cardoso de Menezes, Benjamin Gastineau, Álvares de Azevedo, Lorde Byron, Willian Shakespeare e José Cadalso. Alguns já consagrados de suas versões donjuaninas, como Byron e Espronceda, à margem do cânone literário europeu, Benjamin Gastineau e Azevedo, redescobertos pela historiografia literária, Cardoso de Menezes, ou redefinido pelo poeta baiano em sua concepção do mito, como Shakespeare. Porém, para adentramos na superfície dos textos de Castro Alves, faremos, antes, neste capítulo, um breve resgate do mito literário em sua forma original na Espanha, na recepção pelo teatro de Molière na França, na expansão alcançada pela ópera de Mozart e Da Ponte, até a popularização da figura do sedutor legada pelos românticos em suas variações com o gótico, o fantástico e o mito fáustico. 146 O berço espanhol O mito de Don Juan tem sua paternidade literária assinada pelo engenho de Tirso de Molina, cognome de Frei Gabriel Téllez, religioso ordenado pela insigne Ordem Católica das Mercês103 na Espanha do século XVII. Em seu El burlador de Sevilla y convidado de piedra de 1630, registra-se a fusão de duas narrativas populares que serviram de matrizes basilares ao argumento fundamental defendido por Tirso de Molina nesta obra maior de seu teatro: a burla e a danação de Don Juan Tenório. Na primeira delas, um certo galán104 é o protótipo do que se converteria adiante no Don Juan literário. Segundo o seu enredo (MENÉNDEZ Y PELAYO, 2008b, p. 316-317)105, um galán, mal-intencionado, acorre à igreja a fim de flertar com as belas moças que vão à missa. Ao caminho do templo, dá de cara com uma caveira descarnada contra qual o concupiscente investe com uma botinada. O sorriso aberto e sugestivamente maledicente do crânio denuncia a manha sacrílega do lascivo a que este prontamente responde com o audacioso convite de cear àquela noite consigo em sua casa. Aturdido com o consentimento dado pela ossada profanada, o embusteiro se vê em apuros e recebe forçosamente a conviva indesejada, embora a ela dispense todas as honrarias em uma lauta refeição. Ela, porém, de nada come e lhe retribui a gentileza com uma entrevista à meia-noite na igreja. Chegando ao lugar destinado, o galán é surpreendido com uma vala aberta onde a caveira estende-lhe o convite para ali comer e repousar e ao qual, já em estado de penitência, o infeliz rechaça, invocando o nome de Deus. Absolvido de sua sentença mortal, é liberado pela figura macabra, recebendo dela a lição exemplar do respeito aos mortos e do cumprimento aos sacramentos eclesiásticos. 103 A Ordem dos mercedários ou Ordem de Nossa Senhora das Mercês surgiu no século XIII da necessidade imperiosa de libertação dos cativos católicos os quais se encontravam sob o jugo do domínio muçulmano no contexto histórico das guerras religiosas pelo domínio do controle territorial e, por extensão, marítimo do Mediterrâneo. 104 No espanhol moderno, o vocábulo admite a função de adjetivo, galante, galã, bem como a de substantivação por derivação imprópria da língua, un galán (um galante, um galã), assumindo mesmo o registro de epônimo, a exemplo, de Don Galán, personagem de fim trágico recolhido de um romance similar por Said Armesto e recitado por uma lavradora da província de Ourense na Galiza, a Sra. Rita Beleiro. (SAID ARMESTO, 1908, p. 34-35). Em termos etimológicos, porém, sua origem remonta à influência do galicismo do verbete galant, derivado do verbo galer cujo sentido é dado por “divertir-se”, adequando-se, ao mesmo tempo, ao estilo farsista imprimido pelo romanceiro popular no qual os aspectos cômicos estão conjugados aos efeitos doutrinários dos ouvintes. 105 Trata-se da versão recolhida por Menéndez Pidal e recitada pela senhora Josefa Fernández, moradora de Cureña, situado no povoado de Riello na província de Léon, norte da Espanha. O texto foi transcrito para a Antologia dos poetas líricos castelhanos por Menéndez y Pelayo, discípulo de Pidal, e o disponibilizamos conjunto a uma tradução de nosso punho na seção dos anexos. 147 A segunda componente da tradição oral a integrar-se ao teatro de Tirso diz respeito à figura macabra e, por vezes, fatal da caveira e a sentença do julgamento que esta mesma dispõe ao temerário galã, ambos assinalados pela menção ao Convidado de piedra na estampa da peça. Nos versos do cancioneiro popular, a mão de Deus pesa inexorável sobre o burlador, assegurando o efeito moralizante despertado pelo final trágico e abrupto: Vem-te, Don Galán, comigo,/ esta noite a minha ceia, Vem comigo ao Campo Santo,/ que melhor coisa tu farias. [...] Entra nesta sepultura/ para comer da minha ceia. – Eu aqui não entro, não,/ que a essa mirada não me trouxe. – Que a ela te tragas, que a ela não te tragas/ entrarás, vilão, nela, Que tua luz já se acaba/ e o teu corpo morto fica. (SAID ARMESTO, op. cit., p. 34-35)106 A partir dessa tradição oral do folclore popular espanhol, estariam lançados os gérmens embrionários do desenvolvimento do mito que iria se amplificar no tempo e no espaço, assumindo diversos matizes. Inicialmente, contudo, é o teatro de Molina que no século XVII irá polarizar as manifestações dessa oralidade e estabelecer o cânone pelo advento do status do texto literário, ainda que esse reconhecimento tenha se dado já muito postumamente. Sem a significação de nossos dias, o El burlador de Sevilla o Convidado de Piedra de Tirso se inscreve num contexto bastante específico de produção do teatro do Século de Ouro, época áurea da cultura espanhola na qual as peças atingiram o seu esplendor, servindo de modelo de inspiração mais tarde a países como Alemanha e França até o advento do Romantismo. Antes, porém, a comédia107 de Tirso é produto das tensões provocadas entre as duas igrejas, a Católica e a Protestante, assumindo um sentido ainda mais peculiar atrelado à liturgia praticada por seus adeptos. El burlador de Sevilla y Convidado de piedra é uma peça dramática constituída de três jornadas ou partes. Na primeira delas, Don Juan Tenorio, o burlador, após seduzir a 106 “Vente, Don Galán, conmigo,/ esta noite á miña cena,/ Ven conmigo al Camposanto,/ que mellor cousa te dera./ [...] Entra ’n esta sepultura/ á comer da miña cena./ – Eu aqui non entro, non,/ que esa mira non truxera./ – Que a trayas, que non a trayas,/ entrarás , villano, ’n ela,/ Ca luz tua xá s’acaba/ y-o teu corpo morto queda” (SAID ARMESTO, op. cit., p. 34-35). 107 O emprego aqui do vocábulo comédia está também despido de seu sentido moderno convencional, voltado para o traço de fundo cômico, sendo, entretanto, atribuição larga que se concediam às peças teatrais de maneira genérica. O drama de Tirso é prioritariamente uma obra de fins doutrinários que, a despeito de conservar lances de proximidade com o humor, apresenta um desenho bem definido no tocante à moralização esperada de sua prática pedagógica. 148 duquesa Isabela na corte do rei de Nápoles, consegue fugir de seus perseguidores com a ajuda de seu tio Don Pedro Tenorio que, enviado pela embaixada da corte espanhola à cidade, reconhece no encapuzado o sobrinho, e o auxilia na fuga. A partir desta apresentação, uma série de conquistas será emplacada pelo embusteiro, valendo-se sempre do artifício industrioso da burla com a qual se gaba ao lacaio, Catalinón. Em rota de fuga, Don Juan cai literalmente aos braços de uma nova aventura amorosa: a pescadora Tisbea108. Náufrago na praia de Tarragona, nas costas da atual Catalunha, consegue fazer das circunstâncias adversas uma oportunidade singular para execução de uma de suas burlas: o exercício retórico da sedução: Vivo em vós, se no mar morro. Já perdi todo o receio Que me pudesse inundar, Pois do inferno do mar Saio para vosso claro céu. Um espantoso furacão Se deu com minha nave no meio, Para arrojar-me a estes pés, Que abrigo e porto me dão, E em vosso divino oriente Renasço, e não há que espantar, Pois que vês que há de amar a mar Uma letra somente. (Ibid. p. 36-37)109 Estabelece-se desta cena um dos pontos altos da personalidade do embusteiro e que consiste no prazer fruído no jogo retórico com suas vítimas, mas cujo desfecho incorre no mesmo fim como adverte a Catalinón: “Esta noite hei de gozá-la” (Ibid. p. 41)110. Persuadida de suas palavras, Tisbea cede enfim à entrevista em sua cabana para o intercurso amoroso. Descoberta a perfídia, a pescadora impreca aos circunstantes da cena, pretendentes a sua mão e, agora, testemunhas de sua desonra, a vingança de direito, assentindo a eles, ciosos de seu 108 O encontro com Tisbea é um dos momentos emblemáticos do mito tirsiano na continuação das narrativas subsequentemente desenvolvidas sobre o sedutor de Sevilha. É ela que constituirá a matéria prima na plasmação do episódio amoroso dividido por Don Juan e Haidea no segundo canto de Don Juan (1819-1824) de Lord Byron. 109 “Vivo en vos, si en el mar muero./ Ya perdí todo el recelo,/ que me pudiera anegar,/ pues del infierno del mar/ salgo a vuestro claro cielo./ Un espantoso huracán/ dio con mi nave al/ través,/ para arrojarme a esos pies,/ que abrigo y puerto me dan,/ y en vuestro divino oriente/ Renazco, y no hay que espantar,/ pues veis que hay de amar a mar/ una letra solamente” (Ibid. p. 36-37). 110 “Esta noce he de gozalla” (Ibid. p. 41). 149 amor, com a justiça distributiva: “Eu sou a que fazia sempre/ dos homens burla tanta;/ que sempre as que fazem burla/ vêm a ficar burladas” (Ibid. p. 56)111. Na segunda jornada, de volta a Sevilha, sua terra natal, Don Juan aplica nova burla. Travestido da capa do amigo La Mota, surpreende a Dona Ana, filha do Comendador Gonzalo de Ulloa, em seus aposentos. Reconhecendo se tratar de uma fraude à sua honra, investe aos brados contra o impostor que, acossado por Don Gonzalo, trespassa-lhe neste a espada, sentenciando-lhe à morte112. Na terceira e última jornada, Don Juan desmancha o noivado de dois jovens camponeses, Aminta e Batrício, executando sua última burla à honra feminina. Empenhando a palavra em perjúrio à camponesa, Aminta sagazmente lhe cobra o reforço de seus votos, tomando, desta vez, a intercedência do castigo divino caso a ela aquele lhe falte. É um momento de imperícia do embusteiro que, inadvertidamente, sela seu próprio destino: “Se acaso/ A palavra e a fé minha/ Te faltarem, rogo a Deus/ Que à traição e com aleivosia/ Dê-me morte um homem... (À parte). (Morto:/ Que, vivo, Deus não permita!).” (Ibid. p. 119)113 Ao perjurar em nome de Deus, Don Juan excede a leniência a suas burlas que a frouxa lei dos homens lhe concede, passando, agora, a intentar também contra a ordem divina. Do plano terreno, onde se sente muito à vontade para transitar com seus engodos, o burlador passa a medir forças com o sagrado, chegando ao ápice de sua impenitência ao profanar o sepulcro de Don Gonzalo de Ulloa, onde se encontra uma inscrição destinada a seu assassino. A cena é uma clara adaptação do texto tirsiano à ofensa que Don Galán impõe à caveira sinistra extraída do velho romanceiro espanhol, na qual a botinada é deslocada pela ação sacrílega do puxão das barbas do Comendador como os versos deixam sugerir: “JUAN: E vós haveis-vos de vingar/ Bom velho, barbas de pedra?/ CATALINÓN: Não as poderás cortar,/ Onde se crescem barbas tão fortes” (Ibid. 127)114. 111 “Yo soy la que hacía siempre/ de los hombres burla tanta;/ que siempre las que hacen burla/ vienen a quedar burladas”. (Ibid. p. 56) 112 Esta passagem é um dos momentos capitais do mito por diversas vezes evocada nas sequências literárias motivadas no el burlador de Tirso. Ausente em Byron, recordada em Molière, revivida na cena em De la Ponte, constitui uma ferramenta chave para a compreensão da entrada dos potenciais textos literários desembarcados no Brasil que sobre ela se detiveram. O quadro da morte do comendador e os seus desdobramentos pintados em lances lancinantes na expressão de sua filha é uma descrição ausente no texto tirsiano, mas extremamente familiarizado com a dramática operística 113 “Si acaso/ la palabra y la fe mía/ te faltare, ruego a Dios/ que a traición y alevosía/ me dé muerte un hombre... (Aparte). (Muerto:/ que, vivo, ¡Dios no permita!)” (Ibid. p. 119). 114 “JUAN: ¿Y habeisos vos de vengar,/ buen viejo, barbas de piedra?/ CATALINÓN: No se las podrás pelar,/ Que en barbas muy fuertes medra” (Ibid. 127). 150 Fecha-se a cena do cemitério115 com Don Juan confiante face aos desígnios que lhe aguardam a ponto de repetir o conhecido motivo do convite macabro: “A esta noite para cear/ aguardo-vos em minha pousada”. (Ibid. 128)116. O burlador recebe surpreso o convidado de pedra e, assim como no início da peça aquele encobre sua identidade na burla à Isabela, este devolve-lhe o troco, quando inquirido a revelar-se: “Eu sou” (Ibid. p. 133)117. A sós com o revenant, cobra-lhe este que lhe cumpra a palavra dada: a de comparecer a sua ceia. Embora temeroso, Don Juan e seu criado vão ao encontro fatal: a honra de cavalheiro domina a sua vontade. Na ceia macabra, áspide e escorpiões, fel e vinagre, são servidos aos convivas. Desafiado pelo convidado de pedra, Don Juan não hesita em atender o pedido do anfitrião, estender-lhe a mão num aperto que o fulminará com o fogo do inferno. Como se pode ver pela exposição dos quadros da peça, a obra El burlador de Sevilla registra um mundo muito diferente daquele que apreendemos hoje. Isso, é claro, pelas condições históricas e de produção às quais estava submetida como já aludimos, ou seja, a intercessão direta do pensamento contrarreformista. Percebe-se essa mediação decisiva no delineamento que se traça do caráter do personagem. O burlador, a despeito de todo o fascínio que ele provoca em nós pela expressão reivindicatória que assume na peça, não se trata de nenhum materialista cínico ou cético que impreca contra o sagrado assegurado de seu racionalismo patente sobre as questões metafísicas118. O personagem de Tirso, ao contrário, é um sedutor temerário que age indiferente à contrição de suas faltas, mas precisamente devoto de sua fé cristã-católica. Não por acaso, quando instado por seu criado a respeito da vindita de Deus por suas burlas, disfere o seu mote mais batido, tan (qué) largo me lo fiáis: “CATALINÓN: Aqueles que fingis e 115 A respeito da referência ao espaço citado na obra, vale a nota explicativa de Said Armesto que esclarece o porquê das menções alternadas à morada do revenant, ora no sepulcro, ora na igreja: “En las comarcas rurales de Galicia los enterramientos se hacen en los atrios; de suerte que el cementerio está emplazado en torno de la iglesia parroquial. Lo mismo ocurre en las aldeas de Bretaña.” (SAID ARMESTO, op. cit., p. 34). (“Nas zonas rurais de Galícia, os sepultamentos se fazem nos adros; de sorte que o cemitério está localizado em torno da igreja paroquial. O mesmo ocorre nas aldeias de Bretanha.”) 116 “Aquesta noche a cenar/ os aguardo en mi posada.” (Ibid. p. 128). 117 “Yo soy.” (Ibid. p. 133). 118 É o que veremos, em seguida, na reinterpretação do mito proposta por Jean-Baptiste Poquelin, o Molière, em seu Festin de pierre. 151 enganais/ Às mulheres dessa maneira/ Vós os pagareis com a morte./ JUAN: Ainda tenho muito tempo” 119. (Ibid. p. 50)120. O burlador, portanto, é o exemplo oposto a ser seguido, o anti-exemplo por excelência, não devendo receber o agraciamento de seu público virtual. É um personagem que responde adequadamente aos anseios da Reforma Católica para qual a salvação divina é um prêmio concedido aos que se voltam para o seio da madre igreja, opondo-se à liturgia praticada pelos reformistas da Igreja de Lutero, como nos esclarece Ribeiro (2007), a propósito das questões político-filosóficas e históricas sobre o tema da predestinação nos personagens da obra de Tirso de Molina: [...] o autor de El burlador de Sevilla, em consonância com o pensamento agostiniano, e talvez tendo em vista a controvérsia sobre a graça de Deus, considera que todos os homens estão dotados da sindérese e do livre-arbítrio, a diferença entre Don Juan e Don Gonzalo é apenas de uso deste atributo, e não uma diferença originária, predestinada. Nisto aproveita o ensejo para propagar ideais antiluteranos de tal modo que a estátua de Don Gonzalo alegoriza a própria Igreja Católica, encarnando as ideias contrarreformistas e dogmáticas frequentemente presentes na produção teatral do Siglo de Oro. (RIBEIRO, op. cit., p. 18-19). Segundo a supracitada pesquisadora, uma questão de credo religioso vigia na vida prática e diária do fiel no Seiscentos barroco: a interpretação dada ao livre-arbítrio. Conforme relata Ribeiro (Ibid., p. 12), a sindérese, iluminação que Deus concedia ao fiel para julgar, pela razão, suas próprias ações a fim de se livrar da perdição de sua alma, diferia radicalmente do princípio da fidúcia defendida pelos luteranos reformistas, na qual o homem recebia, embora imerecedora, uma graça salvadora confiada aos predestinadamente por Ele escolhidos. Este conflito entre a fé passiva e o poder de decisão sobre o livre-arbítrio estava, pois, no cerne das 119 Mais de um comentador já atentou para o desafio da tradução desse verso. M. Espinosa e Claude Elsen, em sua tradução francesa do espanhol, verte por “j’ai donc tout mon temps...” (MOLINA, s/d, p. 93) (“por isso tenho muito tempo!”). Numa esquecida versão para o francês impressa na Bélgica no século XIX que encontramos disponível em plataforma digital, Ch. Potvin decide por “C’est bien loin que tu me renvoies!” (MOLINA, 1852, p.36). (“Está bem longe o que tu me devolves”). Ribeiro, por sua vez, opta pela expressão “tenho tempo de sobra” (RIBEIRO, op. cit., p. 11). Dado esse quadro demonstrativo, todos, a grosso modo, guardam o mesmo sentido concordante de que Don Juan projeta para um futuro distante a contrição de seus pecados. 120 “CATALINÓN: Los que fingís y engañáis/ Las mujeres de esa suerte/ Lo pagaréis con la muerte./ JUAN: ¡Qué largo me lo fiáis!” (Ibid. p. 50). 152 discussões teológicas do tempo, não podendo, como faz pressupor a estudiosa, passar indiferente ao teatro do frei mercedário. Assim sendo, Don Juan é o cristão que se vale mal da lei divina outorgada pelo ideário contrarreformista, fazendo confiança cega na providência que à última hora irá por ele interceder. A obra, revestida de fundo ideológico e doutrinário, tem claros fins pedagógicos, expondo, em sua natureza de comédia exemplar, um herói longe de abjurar a sua fé no credo católico, mas pagando com a salvação de sua própria alma pela impenitência de suas faltas. Todavia, Tirso de Molina, ao recorrer ao cancioneiro popular para a criação de sua obra dramática, não imaginaria que ali também estava montando as bases da fundação de um mito literário que iria escapar à sua mão. A peça do frade das mercês iria se expandir e se universalizar. Mas, até ganhar a forma popularizada de irresistível sedutor, o burlador trafegaria novos caminhos e culturas, abrindo a cena de outros palcos, ressignificando-se a cada solicitação. E, nesse processo contínuo de (re)encenações, a obra excederá à condição de simples motivo para o convite à cena, constituindo, do mesmo modo, como veremos nos subcapítulo seguinte, fonte inspiradora de criação literária. O Festin de Pierre: o mito em vias de expansão Na aurora do classicismo francês, Molière, pseudônimo de Jean-Baptiste Poquelin, revitalizará o mito literário na criação de uma obra com sentidos bastante divergentes de seus antecessores. O Dom Juan ou le Festin de Pierre, posta em cena em 1665, se, por um lado, aponta, como se faz aludir pelo título, a revisitação do autor aos textos radicados no país, por outro, demonstra uma capacidade extraordinária de síntese dos motivos dispersos pela tradição literária de seus prógonos numa obra que dará novo fôlego ao mito. Já na estampa da peça pode- se perceber à referência ostensiva a Dorimon e Villiers, na qual se conserva a elipse proposta por estes últimos de sua tradução do italiano para a língua de Molière: o Banquete (de/ dado por) Pedro121. Do traçado do perfil psicológico do personagem, recuperam-se a imagem do 121 O problema do título da peça rendeu uma série de debates entres os principais comentadores da obra de Molière à ocasião da publicação de Oeuvres Complètes de Molière de 1824 editorada por L. Aimé-Martin pelo livreiro Lefèvre. É apoiando-se nas notas desta edição que Gendarme de Bévotte conseguirá solucionar a questão. Conta- nos o estudioso, seguindo as indicações de Aimé-Martin, que Boileau já registrava, anterior ao advento das obras francesas traduzidas do italiano, a fórmula Festin de Pierre em seus versos. A confusão havia sido dada pela 153 raptor de mulheres, do blasfemador incontinente, do zombador e do hipócrita, herdados dos continuadores do teatro de Tirso e que distam, desde já, das implicações teológicas presentes neste. Quanto à estrutura das unidades da peça, o dramaturgo remou na contramão da corrente de seu tempo. Apesar de o Barroco definir a vida cultural na Europa, a França, até então absolutista, fazia ressurgir o gosto pelos temas da Antiguidade Clássica, pautando-se nos ensinamentos da Poética de Aristóteles para a fundação de um teatro de corte. Boileau122, com quem Molière travava amizade, logo, ditou o padrão normativo a ser empregado na dramaturgia local123. Uma peça em três unidades de tempo, lugar e ação. O tempo demarcado por um dia, não excedendo “uma revolução do sol ou superá-la de pouco” (ARISTÓTELES, 2005, p. 24); um único lugar onde a ação devesse ser desenvolvida; e uma unidade de ação que não permitisse digressões ou eventos que a ela não se relacionassem. Dom Juan ou le Festin de Pierre, todavia, é organizada em cinco atos, os quais se intercalam de digressões e se ambientam em cenários diferentes (palácio, campina, bosque, aposentos, campo). O Festin de Pierre de Molière ainda se torna singular por ser a primeira obra, dentre àquelas que a precederam, a transpor o mito do teatro em versos para a prosa dramática. Todas as sequências a Tirso recorreram à fórmula vigente. O dramaturgo francês, entretanto, monta sua peça em diálogos e solilóquios mais soltos, fugindo à estrutura cerrada dos versos alexandrinos, conferindo, assim, uma maior mobilidade ao desenvolvimento das ideias postuladas pelos personagens. Logo, adotando o estilo da prosa, Molière cria uma obra nova e, a um só tempo, conforma sua estrutura às discussões filosóficas prementes no modo de vida aristocrático da corte de Luís XIV, o Rei Sol124. ambiguidade trocadilhesca existente na passagem do italiano di pietra (de pedra) para o francês di Pierre (de Pedro), acordando o nome da personagem de suas versões, o comendador de pedra. A língua francesa registrava os substantivos pela maiúscula, assim como é hoje na estrutura da língua alemã, de modo que Pierre admitiria o duplo sentido de nome próprio e comum: Pedro e pedra (la pierre). Gendarme de Bévotte chega à solução para o caso, esclarecendo que Molière, inteirado dos textos de seus compatriotas, reproduziu a etiqueta já vulgarizada pelo gosto popular, conservando as duas figuras de retórica: a elipse e o trocadilho. (GENDARME DE BÉVOTTE, op. cit., p. 110-112) 122 Nicolas Boileau (1636-1711), poeta e crítico francês, conhecido por suas sátiras aos desafetos de seu tempo, tornou-se uma referência de padrão estético a ser seguido com sua Arte Poética, dando sustentação teórica aos dramaturgos para a consolidação do teatro clássico francês. 123 Apesar de L’art poétique (A arte poética) de Nicolas Boileau ser datada de 1674, ou seja, posterior em quase dez anos ao Dom Juan de Molière, a prática do respeito às unidades aristotélicas presentes em sua Poética já era bem familiar à corte de Versailles, sendo antes empregado no teatro de Corneille e, ganhando corpo, logo em seguida, com Racine. 124 É importante ressaltar que, apesar da censura que o Festin de Pierre acolheu, mas especificamente pelo panfleto difamatório Observations sur une Comédie de Moliere intitulée Le Festin de Pierre, de autoria ainda hoje incógnita e assinada por um certo Sr. Rochemont, Molière contava também com o apoio de Luís XIV que o patrocinou com 154 A comédia de Molière é um retrato caricato dos costumes e das relações interpessoais da sociedade francesa no tempo do rei. Já sem a forte censura imposta pela inquisição nos países ibéricos, o dramaturgo, podendo gozar da simpatia daquele monarca e da atmosfera mais favorável à circulação das ideias cultuadas pela vida palaciana, desnuda a realidade do jogo social travado entre homens sem escrúpulos e para os quais os vícios e as virtudes não correspondiam mais a fronteiras bem definidas. Atacando os integrantes dos diversos estratos sociais, Molière põe ao avesso um mundo em que todos se deixam reger pela hipocrisia: Todos culpados, pois – mais culpados de fraquezas humanas e (à exceção do lacaio, muito comprometido com o mal) culpados poupados pelo ridículo que, na ordem do cômico, sanciona por regra a deformidade moral. Vítimas comoventes também, pois espezinhadas pelas vilanias do “grão senhor malvado”, que fez de sua liberdade de espírito o instrumento de seus pequenos prazeres. (BIDEAUX, 1999, p. 649)125 Em o Festin de Pierre, apresenta-se-nos um herói que toma parte deste corrompido código social. O que o torna distinto dos demais é que as suas ações impudentes são autojustificadas no amparo ao direito à libertinagem ao qual confessa com franqueza desabrida a seu lacaio. Todos portam máscaras sociais, porém, só Dom Juan revela uma face despida do falso moralismo que afeta convenientemente aqueles ao seu entorno. É um personagem complexo, de forte carga dramática, condescendendo com as mesmas imposturas sociais as quais acusa, o que faz depreender o traço pessimista de sua natureza enigmática: No século de ouro do teatro clássico, Molière reinventa uma personagem nascida barroca que seduz por ser contraditória, ambígua e ambivalente. Ao atualizar e nacionalizar essa personagem mítica, o dramaturgo descobre, recria e aperfeiçoa o Don Juan, dando-lhe sentido na medida em que acentua, ataca e ridiculariza alguns vícios característicos de sua época, configurando-o como herói (ou o anti-herói?), isolado e solitário, sedento de infinito em meio à volúpia. (ROSA E SILVA, 2006, p. 101) uma pensão – o primeiro a receber esse tipo de estímulo na França pelas mãos de um monarca – o que lhe assegurou uma relativa longevidade à obra para depois ser reformulada pelo punho de Pierre Corneille numa versão mais edulcorada que contou com a revisão da viúva do escritor amigo do rei. 125 “Tous coupables, donc – mais coupables de faiblesses humaines et (à l’exception du valet, trop compromis avec le mal) coupables épargnés par le ridicule qui, dans l’ordre du comique, sanctionne d’ordinaire la difformité morale. Victimes émouvantes aussi, car piétinées par les vilenies du ‘grand seigneur méchant homme’, qui a fait de sa liberté d’esprit l’instrument de ses menus plaisirs”. (BIDEAUX, 1999, p. 649) 155 O tema da libertinagem é um dos pontos altos da peça. Mas em que consistia essa libertinagem apregoada pelo Dom Juan, de Molière? A discussão sobre o assunto fazia parte da vida mundana e galante da corte de Versalhes. Na peça, o personagem, a despeito do delineamento de seu perfil hipócrita e cínico, é confessadamente um materialista que lança mão do bom senso e da razão para dar sentido às coisas do mundo. Embora viciado, o protagonista de Molière traduz um momento de relativa reabertura dos debates filosóficos de que gozava o absolutismo francês no século XVII e que se viram silenciados pela repressão imposta pelo estado eclesiástico, o qual perdeu força com o fim da Idade Média. A princípio e a rigor, e para uma compreensão mais ampla de que se dará nota126, o termo libertino não estava revestido do sentido que atribuímos hoje e lembrado pelos romances do gênero no século XVIII. Como nos esclarece Leduc-Fayette, o libertino era aquele que se autodenominava de esprit fort (espírito forte), ou seja, o homem que se libertava das falsas opiniões e superstições para apreender a realidade circundante pelo uso da razão e do método especulativo; opunha-se, portanto, ao esprit faible (espírito fraco), o rude de conhecimento que se deixava levar pelo dogma e os tabus sociais, não alcançando o estado elevado daquele. (2001, p. 55-56). Pautados na moderação e na abertura para o diálogo, os denominados de esprit fort não se valiam de sua condição de sábios para impor aos seus interlocutores o conhecimento ou rebaixar aqueles que não o depreendiam. Com o tempo, porém, a etiqueta (esprit fort) assumiu um sentido depreciativo e, logo, os que faziam do uso da razão sua profissão de fé foram pelos moralistas assim tachados ironicamente. (Ibid.) Até meados do século XVII, o termo libertino designava também correntemente “o fantasioso, o indisciplinado complacente com suas inclinações” (Ibid. p. 56)127, ganhando, gradativamente, ao final deste século e, no seguinte, sentido mais degradante: A confusão de libertinagem e da “licença dos costumes” é tardia; ela data dos anos 1680, ao passo que se opera um deslizamento semântico de “espírito livre” para “devassidão”. Assim na sua carta Sobre a libertinagem, Fénelon vitupera “estes homens indignos mesmo de nome de homens, que se orgulham 126 Referimo-nos à apreensão do termo pela escola romântica e, mais restritamente, ao byronismo praticado no Brasil de meados do século XIX, em especial, por Álvares de Azevedo. Nesse momento de nossa literatura nacional, uma série de produções vão resgatar o tema do libertino, entretanto, com uma roupagem distinta das implicações que nortearam o texto de Molière. 127 “le fantaisiste, l’indiscipliné complaisant à ses penchants.” (Ibid. p. 56) 156 da força de espírito pondo-se na fila das bestas”. A etiqueta torna-se sinal de infâmia ao ponto de que um tal La Mettrie declarará em 1746 em A volúpia tomar “por horror” “o odioso nome de libertinagem e de devassidão! (Ibid. p. 56-57)128 Estando a obra de Molière situada numa faixa de tempo anterior à delimitada, dificilmente apresentaria sentidos conferidos aos atuais e emprestados à libertinagem do século XVIII. De sorte que a representação do mito literário foi se amoldando às exigências de gosto e de público demandadas e condicionadas pelas implicações histórico-culturais de cada tempo até conhecer uma maior mobilidade mais tarde que o projetará à sua universalização. Ao tempo do teatrólogo dos setecentos, porém, a escala de valores à qual seus personagens estavam submetidos parece clara e definitiva, afastando-se de sentidos anacrônicos que a crítica literária contemporânea lhe possa eventualmente atribuir. Como homem de “espírito livre” do século XVII, Dom Juan é um personagem materialista, inquiridor, que desafia as verdades indevassáveis doutrinadas pela igreja, do que decorre seu forte sentimento antirreligioso. Sua condição de esprit livre faculta uma tolerância assentada no equilíbrio da razoabilidade de seus diálogos. A liberdade de pensamento, apoiada no estudo da razão, todavia, faz dele um contestador, muito embora não se atenha aos mistérios da religião ou às questões de ordem metafísica. Antes, como materialista, segue as leis da natureza de uma vida fruída na apreensão da verdade pelos sentidos, apoiando-se no estilo de vida epicurista, como nos deixa entender Bideaux (1999): Os libertinos do XVII século têm em comum um consentimento ardente e ativo com o prazer. Não esperam nenhuma recompensa no além, eles não saberiam submeter-se aos renunciamentos mais ou menos severos exigidos pelas diversas versões do cristianismo de seu tempo. (p. 645)129 [grifos nossos] 128 “La confusion du libertinage et de la ‘licence des moeurs’ est tardive; elle date des années 1680, alors que s’opère un glissement sémantique de ‘libre penseur’ à ‘débauché’. Ainsi dans sa lettre Sur le libertinage, Fénelon vitupère-t-il ‘ces hommes indignes même de nom d’hommes, qui se piquaient de force d’esprit en se mettant au rang des bêtes’. L’étiquette devient signe d’infamie au point qu’un La Mettrie déclarera en 1746 dans La volupté tenir ‘en horreur’ ‘l’odieux nom de libertinage et de débauche’!” (Ibid. p. 56-57) 129 “Les libertins du XVIIe siècle ont en commun un consentement ardent et actif au plaisir. N’attendant aucune recompense dans l’au-délà, ils ne sauraient se soumettre aux renoncements plus ou moins sévères exigés par les diverses versions du christianisme de leur temps”. (p. 645) [grifos nossos] 157 Diferindo da noção tardia de licenciosidade a qual vigorou na virada do século XVII, a libertinagem contemporânea a Molière cultuava, antes, o rechaço às convenções sociais pré- estabelecidas que acorrentavam os esprits faibles em sua estreiteza de pensamento. O libertino, em contrapartida, adepto do epicurismo, identificado apenas com a apreensão imediata da realidade do mundo físico e alheio àquelas associadas ao espírito, tão logo seria execrado pela opinião pública dos moralistas e do senso comum. Não tardaria para que, no dizer de Leduc- Fayette (op. cit., p. 56), se consumasse esse “deslizamento semântico” e o libertino tomasse, em sua expressão contestatória à norma e aos valores instituídos, bem como na simpatia ao estilo epicurista, contornos à feição do devasso. Uma libertinagem que louva os prazeres da vida terrena, despojada de uma moralidade reguladora e que tem por medida o humanismo e a razão como método especulativo, admite, com o decurso dos anos, uma estreita relação com a devassidão e o ateísmo. Entretanto, essa condição se constrói ocasional e paulatinamente: Antiga, por outro lado, é a assimilação, abusiva e injuriosa no espírito de seus autores, do libertino com o ateu. Ela chega ao insulto. [...] É preciso, aliás, ter consciência de que os ateus declarados eram raros em uma época onde a Inquisição reinava ainda [...] e que confundir os variados espíritos livres, frequentemente amalgamados pela designação pejorativa de “libertinos”, com os exclusivos ateus é um erro... Mas, em contrapartida, é importante lembrar o peso do pirronismo, a ressureição de Sextus Empiricus à ocasião da edição latina que dera Henri Estienne em 1526 dos célebres Hypotyposes pyrrhoniennes, e a revivescência do ceticismo pelo viés de Montaigne, de Sanchez ou Charron acusado por Garasse de ser “o inventor” dos “espíritos fortes”. (Ibid., p. 57)130 Irreligioso, muito antes que ateu, o Dom Juan molieresco é um indivíduo questionador que desvela ao leitor-plateia as mazelas de um mundo corrompido pelos vícios. A amoralidade moderada pela razão e de que ele se acerca faz acentuar na outra ponta os falsos valores morais daqueles que veemente lhe censuram. Pondo em xeque uma sociedade desconcertada, que 130 “Ancienne en revanche est l’assimilation, abusive et injurieuse dans l’esprit de ses auteurs, du libertin avec l’athée. Elle ressortit à l’insulte. [...] Il faut par ailleurs prendre conscience que les athées déclarés sont rares à une époque où l’Inquisition règne encore [...] et que confondre les libre-penseurs de toutes sortes, souvent amalgamés sous l’appellation péjorative de ‘libertins’, avec les seuls athées est une erreur... Mais, en revanche, il importe de rappeler le poids du pyrrhonisme, la résurrection de Sextus Empiricus à l’occasion de l’édition latine que fit Henri Estienne en 1562 des célèbres Hypotyposes pyrrhoniennes, et la reviviscence du scepticisme par le biais de Montaigne, de Sanchez ou Charron accusé par Garasse d’être ‘l’inventeur’ des ‘esprits forts’.” (Ibid., p. 57) 158 deposita no cumprimento do dogma a confiança da remissão de seus pecados, o personagem de Molière desmascara a hipocrisia das relações humanas e rompe com a própria alienação. A par dessas ligeiras considerações contextuais à obra, como então se manifestaria a figura mítica de Dom Juan Tenorio na superfície textual desta peça do comediógrafo francês? Inscrita a um período de debates filosóficos que tomava conta da vida intelectual e artística da qual fazia parte a monarquia absolutista de Luís XIV, Dom Juan ou le Festin de Pierre, a despeito da crítica generalizada às convenções sociais, não focaliza, como seria de esperar, sua mordacidade à soberania palaciana. Em contrapartida, alguns integrantes da nobreza são expostos ao ridículo na pena do autor e, sobretudo, se evidencia um nítido sentimento anticlerical traduzido no escárnio aos valores e aos costumes já devidamente estabelecidos à sua época. O Festin de Pierre abre as cortinas com uma fantasiosa digressão do lacaio de Dom Juan, Sgnarelle. A consideração que este faz sobre as propriedades medicinais do tabaco dá de imediato a medida do tom que assumirá a peça: o cômico estampado na exposição do ridículo: Digam o que disser Aristóteles e toda a filosofia, não há nada igual ao tabaco, é a paixão das gentes honradas; e quem vive sem tabaco, não é digno de viver; não apenas ele alegra, e purga os cérebros humanos, mas, ainda, instrui as almas na virtude, e se aprende com ele a se tornar homem honrado. (MOLIÈRE, 1993, p. 147)131 A intrusão do serviçal em matéria restrita ao círculo dos nobres, aludindo a uma postiça erudição forjada em compêndios, desmascara o primeiro dos personagens: o do lacaio com ares senhoris. Numa sociedade estamental e de inexistente ou quase rara mobilidade de suas classes, os fumos de nobreza de Sganarelle destoa do status quo que a ele é conferido. O quixotesco anseio de tornar-se homem honrado contrasta expressamente com a posição tomada por seu amo que lhe faz inúmeras concessões a seus rasos pronunciamentos. Ora, como se sabe os homens honrados (honnêtes hommes)132, era o ideal de homem a ser seguido no século XVII. 131 “Quoi que puisse dire Aristote, et toute la philosophie, il n'est rien d'égal au tabac, c'est la passion des honnêtes gens; et qui vit sans tabac, n'est pas digne de vivre; non seulement il réjouit, et purge les cerveaux humains, mais encore il instruit les âmes à la vertu, et l'on apprend avec lui à devenir honnête homme”. (MOLIÈRE, 1993, p. 147) 132 Deixamos aqui a tradução proposta por Carlos Manzano hombre honrado (MOLIÈRE, 2017, p.222). Millôr Fernandes, por óbvias razões de uma tradução adaptada para o palco, substitui por este sintagma de sentido genérico “refina as boas maneiras” (MOLIÈRE, 1997, p. 5). Embora reconheçamos a intraduzibilidade do termo eivado de implicações históricas que o dizem respeito, decidimos, a fim de manter uma padronização linguística 159 Distinguiam-se pela moderação das palavras e um vasto campo de saberes, dominando as suas paixões em favor da razão e da sensatez, sendo, portanto, um modelo muito apreciado e praticado pelos nobres no âmbito da corte e da vida mundana133. Sgnarelle deixa transparecer a fragilidade do mundo das aparências ao qual o homem comum também se vê ligado. Sua canhestra reflexão a Gusmão, escudeiro de Elvira, esposa abandonada por Dom Juan, serve, porém, para lhes acentuar os traços de esprit faible, sinalizando a veia cômica da peça à plateia. Tanto assim o é que seu discurso perde força e ele se vê obrigado a arrematar a ideia: “[...] Mas chega desta matéria.” (MOLIÈRE, op. cit., p. 147)134 Sua importância, todavia, é crucial, pois é por ele que o espectador fica sabendo do mal currículo que consente à terrífica fama de sedutor irrefreável do amo: [...] O maior celerado que já pisou na terra, um raivoso, um cão, um diabo, um turco, um herege, que não crê nem em céu, nem inferno, nem lobisomem, que leva essa vida como uma verdadeira besta-fera, como um porco de Epicuro, como verdadeiro Sardanapalo, que tampa os ouvidos aos sermões com o texto traduzido para o português, pela solução inspirada no espanhol, homem honrado, em oposição a rubrica francesa cuja transposição literal em nossa língua, homem honesto, soa deslocado e anacrônico. 133 É importante frisar que essa descrição do homem honrado do século XVII não se coaduna com a noção dos nobres do século XVIII e, menos ainda, com os entoados dândis no seguinte. Aqueles que poderiam se dignar da distinção pública, eram, entretanto, os menos tomados de afetação, sendo a elevação de sua honradez consequência direta da prática deste modelo vivido em essência. Para melhor entendimento sentencia: “Ces types supposent un masque donc une distinction entre être et apparence. Or l’honnêteté suppose qu’il faut paraître ce que l’on est. On peut dire que c’est là transposer la Transparence et l’Obstacle cher à Starobinski, et la pensée de Rousseau, du XVIIIe et XVIIe. Nous voulons simplement dire que l’honnêteté nous semble une critique du Baroque, qui est marque, exagération, imagination, gloire, exaltation, mysticisme. C’est donc un trait du classicisme français, ce qui ne veut pas dire que toute la société fût classique. Notons que le héros, l’homme de cour, le saint, le glorieux, frappent la vue et qu’exister, qu’être, c’est être vu. Toute la cour est là. Or l’honnête homme ne frappe point la vue. C’est porquoi Méré insiste sur le discernement, soulignant qu’il existe une fausse honnêteté. Si l’honnête homme doit être transparent, c’est une transparence fort difficile à discerner dans le jeux de miroirs qu’est la société et le monde imaginaire baroque. L’honnête homme ne porte pas de masque, il n’existe pas pour la vue, car il faut, dit Méré, être honnête homme même au désert.” (SAISSELIN, 1993, p. 11). (Estes tipos [tipos barrocos] supõem uma máscara, assim, uma distinção entre ser e aparência. Ora, a honradez supõe que é necessário parecer o que se é. Pode-se dizer aqui que se trata de ultrapassar a Transparência e o Obstáculo caros a Starobinsky, e ao pensamento de Rousseau, do século XVIII ao XVII. Nós queremos simplesmente dizer que a honradez nos parece uma crítica do Barroco, que é máscara, exageração, imaginação, glória, exaltação, misticismo. É, pois um traço do classicismo francês, o que não quer dizer que toda a sociedade fosse clássica. Notamos que o herói, homem de corte, o santo, o glorioso, ferem a vista e que existir, querer ser, é ser visto. Toda a corte está lá. Ora a honradez não fere em nada a vista. É por isso que Méré insiste sobre o discernimento, destacando que existe uma falsa honradez. Se o homem honrado deve ser transparente, é por uma transparência muito difícil a distinguir no jogo dos espelhos que é a sociedade e o mundo imaginário barroco. O homem honrado não usa máscara, ele não existe para a vista, pois é necessário, diz Méré, ser homem honrado mesmo no deserto.) 134 “[...] Mais c’est assez de cette matière.” (MOLIÈRE, op. cit., p. 147) 160 que se lhe passa e trata como conto-da-carochinha tudo no que acreditamos. (Ibid. 149)135 Neste ponto já estamos muito distantes da representação mítico-literária forjada por Tirso de Molina. Se neste, é o burlador que emprega suas bromas (brincadeiras) às vítimas burladas, temerário e impenitente, mas vendo sempre na providência divina a depositária de sua fé, aqui temos um celerado (do latim, sceleratus, de scelus, sceleris: crime)136, malvado e conquistador. Pior, é, no abominável retrato pintado pelo lacaio, a encarnação do próprio mal na terra, um diable (diabo). Sem crer no Céu ou no Inferno, torna-se para a autoridade da Igreja um herege, passível de ser combatido pelos órgãos repressores que a representam, pois semeia a dúvida e a discórdia. Sem a natureza de uma humanidade, dispensa as admoestações sobre a justiça divina que, volta e meia, é lembrada pelo Catalinón de Tirso. Na realidade, sequer Dom Juan se vê inclinado a pôr o sagrado no rol dos debates filosóficos e especulativos da metafísica, aos quais, aliás, é, de todo, indiferente. Não crendo em absolutamente nada dos mistérios do sagrado, flerta com a representação perversa do diabo, alimentando no imaginário popular – pelo qual Sganarelle se norteia – o temor e a reserva. Como figura contestadora faz-nos evocar o étimo do vocábulo, emprestado do grego ao latim cristão (διάβολος [diabolos]> diabŏlus), “que se lança entre”, “que desune”, ou seja, aquele que se lança para dividir. (ROBERT, 2002, p. 739). Sendo aquele que se lança, interpondo-se para separar, desunir, consequentemente desvia, desencaminha, tirando da rota; é o que se depreenderá mais tarde nas sequências do mito a Molina e Molière, onde o personagem receberá a insígnia de sedutor (seductor, de seducere: separar) (Ibid. p. 2394)137. 135 “[...] le plus grand scélérat que la terre ait jamais porté, un enragé, un chien, un diable, un Turc, un hérétique, qui ne croit ni Ciel, ni Enfer, ni loup-garou, qui passe cette vie en véritable bête brute, en pourceau d'Epicure, en vrai Sardanapale, qui ferme l'oreille à toutes les remontrances qu'on lui peut faire, et traite de billevesées tout ce que nous croyons”. (Ibid. 149) 136 scélérat, no francês, um malvado, conquistador; ou ainda um criminoso por inferência do latim sceleratus, de scelus, sceleris, ou seja, “crime”; justificando-se, assim, no alcance etimológico, a natureza cruel reconhecida de seus crimes (ROBERT, 2002, p. 2377). 137 Em verdade, apesar de não haver o emprego da palavra na obra de Molière, é possível estabelecer essa relação semântica entre o sedutor e o diabo do ponto de vista etimológico. Paul Robert, no seu dicionário da língua francesa, já registra em 1662 o emprego da palavra em Rousseau, associada aos sedutores de moças e mulheres e, ainda, a conquistador: “Celui que séduit une fille, une femme; celui qui fait habituellement des conquêtes. ‘une lois par laquelle une fille abusée était punie avec le séducteur’ (Rousseau).’” (Ibid.). (“Aquele que seduz uma moça, uma mulher; aquele que faz habitualmente conquistas. ‘uma lei pela qual uma moça abusada fosse punida com o sedutor’ [Rousseau].’”). O sedutor, porém, que exerce seu fascínio e embevece os corações das mulheres é uma construção muito próxima à literatura romântica, sendo modelo de culto dos poetas. Aqui, porém, no texto molieriano, sem que se descarte o registro histórico, prevalece o selo do corruptor, do desviador e, do conquistador, 161 Não obstante o desprezo ao dogma instituído, é um inveterado mulherengo que não hesita em lançar de sua maior arma para o sucesso das empresas amorosas: a promessa do casamento: Tu me disseste que ele desposou tua senhora, acredita que ele teria feito mais por sua paixão, e que com ela teria ainda te desposado, o seu cachorro, e o seu gato. Um casamento não lhe custa nada para contratar, ele não se serve de nada de outras armadilhas para agarrar as belas, e é um pretendente de mão cheia, senhora, donzela, burguesa, camponesa, não encontra nada tão quente, nem tão frio para si; e se eu te dissesse o nome de todas aquelas que ele desposou pelos diversos lugares, seria um capítulo para durar até a noite. (MOLIÈRE, op. cit., p. 149)138 Sem fazer distinção de status quo ou status social, Dom Juan é um coureur du monde (mulherengo) – como completa o lacaio ao próprio amo (Ibid. p. 150) – estendendo o lastro de seus domínios amorosos e, ao mesmo tempo, sem jamais estabelecer neles morada fixa. As reprovações do criado são logo rebatidas por seu mestre que, fazendo se valer da qualidade discursiva de esprit fort, põe abaixo o moralismo de Sganarelle pelo direito de exercício de sua libertinagem: Tu queres que nós nos liguemos a morar no primeiro objeto que nos prende, que nós nos renunciemos por ele e que não tenhamos mais olhos para ninguém? Bela coisa querer se orgulhar de uma falsa honra em ser fiel, de sepultar-se para sempre numa paixão, e estar morto, ainda em sua juventude, para todas as outras belezas que nos podem atrair os olhos: não, não, a constância só é boa para os ridículos, todas as belas tem o direito de nos encantar, e a vantagem de ter encontrado a primeira, não deve privar às outras das justas pretensões que têm todas de nossos corações. (Ibid. p. 150-151)139 É um elogio ao epicurismo como estilo de vida e em franco desacordo com o este último no sentido mesmo de dominador, daquele que alarga os horizontes de seus domínios, como se perceberá na comparação que Dom Juan faz de si a Alexandre, o Grande. 138 “Tu me dis qu'il a épousé ta maîtresse, crois qu'il aurait plus fait pour sa passion, et qu'avec elle il aurait encore épousé toi, son chien, et son chat. Un mariage ne lui coûte rien à contracter, il ne se sert point d'autres pièges pour attraper les belles, et c'est un épouseur à toutes mains, dame, demoiselle, bourgeoise, paysanne, il ne trouve rien de trop chaud, ni de trop froid pour lui; et si je te disais le nom de toutes celles qu'il a épousées en divers lieux, ce serait un chapitre à durer jusques au soir”. (MOLIÈRE, op. cit., p. 149) 139 “Tu veux qu'on se lie à demeurer au premier objet qui nous prend, qu'on renonce au monde pour lui, et qu'on n'ait plus d'yeux pour personne? La belle chose de vouloir se piquer d'un faux honneur d'être fidèle, de s'ensevelir pour toujours dans une passion, et d'être mort dès sa jeunesse, à toutes les autres beautés qui nous peuvent frapper les yeux: non, non, la constance n'est bonne que pour des ridicules, toutes les belles ont droit de nous charmer, et l'avantage d'être rencontrée la première, ne doit point dérober aux autres les justes prétentions qu'elles ont toutes sur nos cœurs”. (Ibid. p. 150-151) 162 moralismo religioso professado pelo lacaio. Um discurso iluminado por uma formação libertina de homem elevado, equilibrada e ponderada em leituras, como reconhece Sganarelle: “Vós falais todo como um livro” (Ibid. p. 151)140; mas que deixa entrever suas reais ambições, conquistar tudo (todas), subjugando as resistências contrárias a esse avanço: Não há nada que possa parar a impetuosidade de meus desejos, sinto-me um coração para toda a terra; e como Alexandre, desejaria que existissem outros mundos, para lá poder estender minhas conquistas amorosas. (Ibid.)141 Uma destas conquistas, Dona Elvira, surpreende o falso amante, confessando um de seus novos planos: o rapto a uma prometida. Aquela, porém, é a esposa abandonada. Dom Juan a desviou, tirando-a do claustro, e, rompidos os votos do celibato, agora Elvira lhe vê rompidos os do matrimônio. Dois sacramentos legitimados pela igreja cujo rompimento é cinicamente justificado pelo sedutor por sua conscientização em reatar a primeira aliança que a unia a Deus. Percebendo o engodo, a esposa enganada lhe atira a vindita: Não esperes que eu exploda aqui em reprovações e injúrias, não, não, eu não tenho uma ira para exalar em palavras vãs, e todo seu calor se reserva para sua vingança. Ainda te digo: o Céu te punirá, pérfido, do ultraje que me fizeste, e se o Céu não tem nada com que possas temer, tema ao menos com a cólera de uma mulher ofendida.142 (Ibid. p. 157)143 Dom Juan segue a caminho da realização obstinada de suas paixões. Já no segundo ato, é salvo por Pierrot, camponês prometido à jovem Charlotte, de um naufrágio que nos faz alusão ao encontrado em Tirso e perpetuado pela tradição italiana. Assim como pelo intermédio de seu lacaio, é pela descrição de Pierrot que o leitor toma nota do incidente ao herói. É um consentimento da peça dado às regras da estética clássica no teatro francês, uma única unidade 140 “vous parlez tout comme un livre.” (Ibid. p. 151) 141 “Il n'est rien qui puisse arrêter l'impétuosité de mes désirs, je me sens un cœur à aimer toute la terre; et comme Alexandre, je souhaiterais qu'il y eût d'autres mondes, pour y pouvoir étendre mes conquêtes amoureuses” (Ibid.) 142 Esta passagem do Festin de Pierre é um dos momentos mais antológicos da comédia de Molière. Para nós, constitui uma valiosa ferramenta de análise na recepção do texto do dramaturgo francês no Brasil. É através dela que sustentaremos um de nossos argumentos para o desenvolvimento do teatro nacional, ainda em formação, em um de nossos escritores românticos que também se rendeu ao gênero: Castro Alves. Em nosso entendimento, o poeta a readaptou às condições locais e à feição da fisionomia intentada para uma de suas composições literárias, explorando os contornos dramáticos da comédia de Molière. 143 “N'attends pas que j'éclate ici en reproches et en injures, non, non, je n'ai point un courroux à exhaler en paroles vaines, et toute sa chaleur se réserve pour sa vengeance. Je te le dis encore, le Ciel te punira, perfide, de l'outrage que tu me fais, et si le Ciel n'a rien que tu puisses appréhender, appréhende du moins la colère d'une femme offense”. (Ibid. p. 157) 163 de ação e supressão das cenas periféricas, entretanto, executado com pleno vigor no drama espanhol. Molière se encontra, pois, a meio termo entre a tradição legitimada e as demandas de estilo de seu tempo. Na descrição dos trajes do herói, não falta ao gênio de Molière uma reprovação à moda extravagante da nobreza constatada pela fala coloquial de um homem bronco: [...] eu me perderia lá dentro, e fiquei completamente embasbacado em ver aquilo. Imagina, Carlota, eles têm cabelos que não estão presos às cabeças, e põem aquilo depois de tudo como uma grande gorra de fios. Eles têm camisas que têm mangas onde entrariam nós dois sem se encolher.144 (Ibid. p. 159)145 A ingenuidade de Pierrot ao descrever maravilhado os traços do sedutor faz acender um vivo interesse em sua prometida: “Ele ainda está na tua casa completamente nu, Pierrot?” (Ibid.)146. Dom Juan se valendo desse status de cavalheiro, investe em Charlotte, despertando os ciúmes do seu pretendente. A inocência não é exclusiva a este, mas atinge igual sua parceira ao acreditar nas promessas de ascensão social confiadas por um nobre. É o mesmo recurso empregado a Mathurine, outra camponesa iludida pela palavra empenhada, em clara demonstração de que a ambição é um vício que também acomete os mais humildes. No terceiro ato, potencializa-se a ação sacrílega do personagem e pela qual Molière respondeu a maior censura147. Fugindo a uma batida policial, Dom Juan e Sganarelle se travestem de camponês e médico respectivamente. O velho traje é uma peça do guarda-roupa 144 Decidimos neste trecho por uma tradução mais livre, mas respeitando a pesquisa etimológica dos vocábulos. Uma primeira constatação é de que os textos franceses preservam geralmente a construção coloquial do original de Molière para surtir o efeito do cômico. Logo, palavras como perdrais (perderia), étais (estava), avaient (tinham), ébaubi (embasbacado), tiennent (prenderem/ segurarem), leur (seu), ont (têm), se apresentam como pardrais, estais, avons, ébobi, tenont, leu, ant. A inadequação, segundo à norma culta, do emprego de alguns relativos também se fez aqui de maneira deliberada a fim de preservar o efeito do cômico assegurado pela prosódia do texto francês. 145 “[...] je me pardrais là dedans pour moi, et j'estais tout ébobi de voir ça. Quien, Charlotte, ils avont des cheveux qui ne tenont point à leu teste, et ils boutont ça après tout comme un gros bonnet de filace. Ils ant des chemises qui ant des manches où j'entrerions tout brandis toi et moi”. (Ibid. p. 159) 146 “Est-il encore cheux toi tout nu, Piarrot?” (Ibid.) 147 Essa passagem foi extirpada já na segunda encenação da peça e ainda em vida pelo poeta. Nas edições subsequentes em texto, permaneceu assim desta forma, até ser reintegrada ao corpo original do texto à ocasião do “redescobrimento” do dramaturgo no século XIX pelos românticos, quando as condições estavam mais favoráveis à regulação da censura. É o que nos informa Gendarme de Bévotte ao apontar que, após quinze representações, de um meteórico sucesso, teve que ser suspensa após a censura sofrida pelo panfleto de Rochemont e cujos detalhes, segundo o pesquisador, não ficaram ainda bem esclarecidos, mas que certamente “avaient alarmé la conscience des dévots” (op. cit., p. 143) (“tinham alarmado a consciência dos devotos”). 164 do lacaio cedida ao amo e com a qual Sganarelle se vangloriou uma vez a alguns camponeses, receitando-lhes remédios e fazendo-os crer que exercia aquele ofício. A revelação mostra que, sob a capa da moralidade, esconde-se um personagem que, como seu amo, também incorre em práticas moralmente questionáveis, conferindo-se-lhe, deste modo, os traços da hipocrisia. Entretanto, o criado se defende da leviandade feita pelo júbilo que havia alcançado ao ajudar os necessitados e, a qual, na óptica do amo, se passara tudo muito natural, uma vez que os médicos também eram charlatões. É uma novidade para Sganarelle sobre a complexidade do caráter do amo que, além de corruptor de donzelas, não crê no altruísmo dos homens, e pior, nem em Deus, nem no diabo, nem em vida após a morte. Instado por aquele sobre suas crenças reais, Dom Juan arremata: “Acredito que dois e dois são quatro, Sganarelle, e que quatro e quatro são oito.”148 (Ibid. p. 176)149 É uma blasfêmia aos ouvidos de um religioso doutrinado que ensaia uma réplica às palavras do amo, porém não muito inspirada, e que se compromete na fluência do raciocínio: “[...] interrompei-me se quiserdes, não sei debater se não se me interrompe, calai-vos expressamente e me deixeis falar por pura malícia”. (Ibid. p. 177)150 Sem o alcance do raciocínio estudado do amo, e não logrando com as causas da existência divina, volta-se para os efeitos reservados por ela: “Acreditai no que quiserdes: o que me importa é que não sejais condenado!” (Ibid.)151. Todavia, o arrependimento do herói não lhe chega e o ceticismo é elevado a outro nível: o da blasfêmia. Sarcasticamente, Don Juan cobra a um pobre que abjure de sua fé para receber seu óbulo. É uma cena desconcertante e reata o vínculo diabólico do personagem com os textos do cânone católico presentes no imaginário popular. Don Juan é novamente aquele que divide (diabolos), que testa, ou, atenta.152 148 Na segunda edição do terceiro tomo das Obras Inéditas de Álvares de Azevedo de 1862, publicada por B. L. Garnier, o poeta em um de seus poemas, O poema do frade, crava como epígrafe esta passagem conjuntamente aos diálogos que a antecedem. 149 “Je crois que deux et deux sont quatre, Sganarelle, et que quatre et quatre sont huit.” (Ibid. p. 176) 150 “[...] interrompez-moi donc si vous voulez, je ne saurais disputer si l'on ne m'interrompt, vous vous taisez exprès, et me laissez parler par belle malice”. (Ibid. p. 177) 151 “Croyez ce que vous voudrez: il m’importe bien que vous soyez damné!” (Ibid.) 152 Não se pode negar a fatura religiosa da qual se reveste a peça. A despeito dos debates filosóficos que animavam a vida mundana e intelectual dos nobres, a presença religiosa ainda era presente e regia o pensamento comum da sociedade francesa. Parte por tradição legada, parte por adequação às conveniências exigidas pelo clero, Molière produz um texto consciente e se vê no desafio de atender a interesses conflitantes. De um lado, a simpatia recebida daqueles que compartilhavam as ideias epicuristas, por outro lado, a restrição imposta pelo clero e os moralistas, o que o obrigou, em nosso entendimento, a acentuar a veia cética e sarcástica do personagem, conferindo-lhe uma dimensão nefasta e reprovável a ser combatida, assegurando a complexidade distinta de seu caráter. Ao pôr à prova o mendigo, Dom Juan chega a lembrar passagens do cânone católico, seja no Novo Testamento com a última das três tentações do Diabo a Cristo ou, ainda, na tentação do adversário no livro de Jó quando este é tentado por aquele que fala pela boca de sua mulher a renegar a fé depositada em Deus. É por fazer uma obra com lances de 165 Embora em tom de mofa, a cena se fecha, porém, com a caridade concedida: “Vá, vá, eu te dou por amor da humanidade” (Ibid. p. 179)153; e o herói fazendo valer sua honra de cavalheiro ao correr em auxílio de Carlos, irmão de Elvira, que, à procura do sedutor da irmã, termina sendo surpreendido por três salteadores. Esta última cena, aliás, reforça a natureza ambivalente do personagem. Para Bideaux, a ação briosa tomada por Don Juan se inscreve a uma ética de honra à qual ele pertence, entretanto que só se respeita às conveniências do personagem e seus desejos subjetivos. (op. cit. p. 647). O crítico ainda acrescenta que é a amoralidade o princípio norteador de suas ações, uma vez que, como libertino, não há valores que obstruam a realização de suas vontades: “não existe princípio respeitável, religioso ou moral que poderia obrigar o herói”. (Ibid. p. 646)154. Esse cumprimento imprevisto do exercício da honra sustentada pelos valores de nobreza não deixa de nos chamar atenção, uma vez que na cena anterior, ainda que por meios questionáveis, Dom Juan já havia ofertado a esmola ao pobre. É um herói cuja moral libertina colide diretamente com o moralismo de seu servo, mas que é capaz de agir em defesa de um desconhecido numa situação adversa, quando Sganarelle procurava acovardado abrigo155. Nesse jogo de contradições, Dom Juan fica sabendo a identidade de Carlos – o irmão que veio cobrar a honra da irmã e da família – porém se omite da sua. As inclinações subjetivas do sedutor que o fazem omitir-se a Carlos, também lhe ferem os brios, quando este, ignorando a situação, avilta-lhe o nome. É Dom Alonse, o segundo irmão de Elvira, quem desmascara o sedutor. Ambos vieram cobrar a honra manchada de seus nomes. Todavia, a honradez de ter salvo a vida de Carlos faz com que este lhe poupe de novo combate. Percebe-se, nesta altura da peça, que as ações aviltantes do sedutor se somam numa crescente que tende ao infinito. E, sem forças que lhe imponham limites, Dom Juan reforça o paralelo com Alexandre, o Grande: o anseio de conhecer outros mundos. São os dois últimos atos da peça que reunimos aqui em um único bloco devido à cisão que instaura ao enredo. Na realidade, esse novo eixo temático já está anunciado na quinta e última cena do terceiro ato. Dom Juan e Sganarelle acidentalmente se deparam diante do conveniência religiosa alcançados nos que o precederam que Molière pode liberar seu personagem principal para denunciar os vícios de seu tempo, dando a ele um desfecho que justificasse a sua controversa atuação no palco. 153 “Va, va, je te le donne pour l’amour de l’humanité.” (Ibid. p. 179) 154 “il n’est pas de principe respectable, religieux ou moral, qui pourrait contraindre le héros libertin” (Ibid. p. 646). 155 Vale lembra que tanto a coragem de Dom Juan, quanto a de Sganarelle são postas à prova. Aquele precisa combater três salteadores que estão numa luta desigual com Carlos. Restam a eles equipararem-se ao irmão de Elvira na peleja ou decidir por uma ação mais fácil, porém, vil: Dom Juan vai ao encontro, Sganarelle se esconde. 166 suntuoso mausoléu erigido ao pai de uma de suas vítimas. Ali está a estátua esculpida em homenagem ao Comendador morto pela espada do sedutor criminoso. Este último força o lacaio a convidá-la para sua ceia. Temeroso, Sganarelle o faz a contragosto e aquela assente ao convite, baixando a cabeça. O movimento não é acompanhado pelo amo que se impacienta com o criado aparvalhado. É necessário reforçar o convite a ela, desta vez pela própria boca de seu algoz. A estátua repete o sinal e Don Juan deixa o local entregue às suas cismas: “Vamos, saiamos daqui” (MOLIÈRE, op. cit., p. 186).156 É um elemento novo ao mito literário, do qual nos ocuparemos mais adiante, e que consiste na apropriação do elemento fantástico, tema de eleição dos escritores românticos, responsável, ao nosso ver, por assegurar a longevidade de sua efabulação. Por ora, nos ocupamos da intrusão do evento insólito aos olhos do personagem. Para Don Juan, o incidente do mausoléu é explicado ao lacaio como uma falsa impressão resultante de um efeito óptico. A relutância na aceitação do mistério soa mais como uma resistência ingênita à sua natureza do que propriamente uma conformação cega ao materialismo que professa na sua condição de esprit fort. O ceticismo e o forte sentimento anticlerical do personagem não lhe podem ser confundidos com ateísmo. Em verdade, lendo-se a peça, não se rastreia qualquer menção de imprecação intentada diretamente ao sagrado. Suas falas e motejos se dirigem à doutrinação do lacaio e as incoerências do mendigo que estuda os próprios infortúnios como sendo o desejo realizado da vontade de Deus. A natureza arredia do herói é, contudo, a razão maior de sua obstinação que não abre mão de seu desejo de expansão de suas conquistas. Esse esclarecimento, aliás, quem nos lança é M. Bideaux: Bem longe dos ateus virtuosos que imaginara talvez Bayle, Dom Juan encontra na irreligião uma aliada de sua libertinagem de costumes. Esta crítica corrosiva não é menos cega às manifestações do sobrenatural: a falta de lucidez facilita aqui o endurecimento ao pecado, abrindo assim a via à sanção do céu. (op. cit. p. 650)157 Em um dos últimos instantes de encontrar uma reconciliação com o sagrado, o sedutor é tomado pelas admoestações de Elvira que se volta para a igreja e assume a missão de alcançar 156 “Allons, sortons d’ici”. (MOLIÈRE, op. cit., p. 186) 157 “Bien loin des athées vertueux qu’imaginera bientôt Bayle, Dom Juan trouve dans l’irréligion une alliée de son libertinage de moeurs. Ce critique corrosif n’en est pas moins aveugle aux manifestations du surnaturel: le défaut de lucidité facilite ici l’endurcissement au péché, ouvrant ainsi la voie à la sanction du ciel. (op. cit. p. 650)” 167 a rendição dos pecados do sedutor. As palavras resolutas da noviça reabilitada e a entrega fervorosa a sua fé, ao invés de atingir sentimentos piedosos, ateia no sedutor a antiga paixão. Entretanto, o comendador lhe assoma à ceia e reivindica o seu lugar reservado. A cena é ligeira e parece mais um consentimento dado por Molière à fabulação do mito literário nas versões anteriores ao autor. A estátua se despede da ceia de Dom Juan, devolvendo-lhe o convite. Desfazendo-se de todos avisos, sermões e admoestações, o sedutor recebe um espectro velado em forma de mulher. Sganarelle é quem sinaliza ao amo da aparição celeste. Dom Juan retruca: “Se o céu me dá um aviso, é necessário que ele fale mais claramente, se quiser que eu entenda.” (MOLIÈRE, op. cit., p. 205)158. O espectro se pronuncia e lhe concede um último instante para o arrependimento. Dom Juan, renitente, contesta o sobrenatural das vozes que lhe admoestam. A aparição se lhe revela e Dom Juan, ainda incrédulo, faz um movimento hostil em sua direção: “Espectro, fantasma ou diabo, eu quero ver o que é”. (Ibid.)159 O espectro trasmuda-se na figura do tempo com uma foice à mão. Ainda impenitente e resistindo a crer, ele dirige a sua espada ao tempo do espectro se desfazer no ar. É a vez da estátua vingativa que aparece implacável estendendo-lhe a mão. Sem hesitar, Don Juan sela o aperto fatal; um fogo invisível lhe consome o corpo em brasas. Dom Juan é fulminado pelo fogo do céu e sua alma se abisma no inferno. Como percebemos, o Festin de Pierre assume valores peculiares em sua expressão verbal. Sem a configuração própria ao universo de Tirso no qual a querela entre as igrejas preenche o fundo da trama, outras razões motivaram a fisionomia da comédia de Molière. A mudança do verso para a prosa dramática, da religiosidade patente para o sentimento anticlerical, da honra inquebrantável espanhola para os valores nobiliárquicos de conveniência, do pecador temerário para o materialista irreligioso, evidencia a transformação sofrida pelo mito literário num curto espaço de tempo e, mais do que isso, revela como as sugestões literárias tornam possível não apenas o diálogo entre uma matriz e sua(s) releitura(s), mas, sobretudo, a consideração do olhar crítico para o destacamento de uma obra singular. Um mito forjado na oralidade do cancioneiro popular, que uniu à imagética do homem religioso de herança medieval a genialidade do homem moderno representada pelo talento de Tirso de Molina. Importa-nos agora, desde já, mostrar como esta criação literária do teatro espanhol, perpetuada pelas comédias italianas e inspiradora da vigorosa peça dramática de Molière, conseguiu manter-se resistente às alterações do tempo histórico, ampliando as 158 “Si le ciel me donne un avis, il faut qu’il parle un peu plus clairement, s’il veut que je l’entende” (MOLIÈRE, op. cit., p. 205). 159 “Spectre, fantôme, ou diable, je veux voir ce que c’est”. (Ibid.) 168 fronteiras de atuação cênica de onde partiu até a universalização consentida pelos românticos pós-revolucionários em seu livre trânsito com a imprensa periódica na Europa e na América na era do progresso técnico e científico. Da Ponte e Mozart, os precursores da universalização Dos tablados de Tirso a Molière, o mito do sedutor sevilhano perde de vez o seu controle. Amplia-se e se reinventa a cada nova solicitação cênica. Suaviza a veia sarcástica daquele dramaturgo francês na adaptação em verso do Festin de Pierre de Thomas Corneille160. No início do século XVIII, renasce no berço espanhol com Antônio Zamora e o seu No hay deuda que no se pague y convidado de piedra. A peça, encenada nos ritos festivos dos dias dos mortos até meados do século XIX, momento em que se viu substituída pelo Don Juan Tenorio (1844) de Zorrilla, foi popular em seu tempo, seguindo a produção paralela dos entremezes. Já de volta à Itália, o mito se renova e renova a Commedia dell’arte, suprimindo desta os traços burlescos característicos com a pastoral de Carlo Goldoni. Don Juan Tenorio, ossia il dissoluto de 1736 é uma comédia autobiográfica na qual o libertino é mais um banal sedutor à maneira dos romances picantes dos setecentos. O ponto alto da comédia fica pela supressão do maravilhoso em favor da inclusão do elemento fantástico em que a catástrofe culminada pelas mãos do além-túmulo é substituída por um raio que vitima o sedutor (RAVOUX-RALLO, 1999a, p. 447)161. Ainda no século XVIII, a tradição do mito conhecerá uma nova faceta. Em 1761, Gluck transmuda o gênero, dando novos sentidos à comédia com a encenação em Viena do balé Don Juan para o qual ele subscreve a partitura. É a promoção do diálogo entre as artes e o 160 Thomas Corneille (1625-1709) realizou, amparado da assistência da viúva de Molière, uma adaptação da obra condescendente às exigências dos costumes, com cortes de cenas que causaram, antes, reações contrárias à permanência da versão original e integral do texto de seu compatriota. Referimo-nos aqui ao irmão mais novo de Pierre Corneille, o autor de Le Cid, cuja lembrança do nome se faz mais frequentemente. 161 Segundo as informações de E. Ravoux-Rallo, a obra de Goldoni teve motivações pessoais para que o autor cumprisse o seu empenho. Na apresentação das personagens, os amantes pastores Elisa e Carino têm-lhes o idílio desmanchado pela sanha do libertino que conta com a volubilidade daquela para aplicar a sua empresa, despertando, assim, os ciúmes do amante traído. As cenas melodramáticas da vítima, de acordo com o pesquisador, foram hauridas da relação turbulenta que o dramaturgo travou com a comediante Elisabetta com quem Vitalba, outro ator de sua companhia, mantinha um romance paralelo. (1999a, p. 445). Do ponto de vista da composição em relação aos antecessores, sua peça conserva um estilo de comédia mais próximo ao empregado em Molière, dispensando o burlesco e o escatológico, evidentes na tradição da Commedia dell’arte, para o tratamento do tema e eliminando a figura do arlequim para alcançar o efeito desejado da moderação. (Ibid.) 169 chancelamento para uma modalidade até então não conhecida do mito como nos faz crer Pierre Brunel: Don Juan ilustra de maneira exemplar o que se denominou de “balé de ação”, um espetáculo no qual a música, o drama, a coreografia e a encenação se unem – uma obra já de arte total, logo, apelando à colaboração estreita e harmoniosa do compositor, do coreógrafo e do operador de palco. (BRUNEL, 1999, p. 439)162 Distinta, desde o enredo à execução, passando pelo arranjo coreográfico, Don Juan de Gluck foi mais, abriu as portas para a sagração definitiva do motivo literário na ópera-bufa de Da Ponte e Mozart que fecha em grande estilo aquele século. Don Giovanni de 1787 é, como havia certa vez Wagner afirmado, a ópera das óperas. Concentra, como era próprio ao gênero do dramma giocoso, os aspectos cômicos devidamente dosados aos temas sérios. É também, na linha teatral do mito literário, a terceira frente que liga o gênio de Mozart aos de Molina e de Molière. Genialidade, claro, que partilha do talento de seu libretista, o italiano Lorenzo Da Ponte. Montada em dois atos, a peça expõe um personagem que, de vez, assume as feições da libertinagem. Don Giovanni, a despeito do balanço moral que fica registrado de seu fecho, é, em parte, um elogio aos prazeres terrenos cantados por seu herói. São as forças dionisíacas que dominam as ações do libertino. Diferentemente de Tirso de Molina cujo conteúdo religioso de que se reveste sua criação faz do burlador um temerário que projeta para frente a remissão salvadora (tan largo me lo fiáis); ou ainda, o materialista e irreligioso de Molière entregue à razão e ao culto dos prazeres epicuristas; o Don Juan de Da Ponte e Mozart é inegavelmente instintivo. Há nele um reconhecido impulso sexual irrefreável. Nada detém este Don Juan que vive do gozo do presente sem jamais se fixar aos objetos de suas empresas eróticas. Assim, consentimos com as palavras de Georges Bataille sobre as impressões que lhe causaram o drama do personagem: O Don Juan de Mozart [...] apresenta dois instantes decisivos. No primeiro, a angústia – para nós – já está presente [o Comendador foi convidado para ceiar], mas Don Juan canta: “Viva as mulheres – viva o bom vinho – glória e sustento da humanidade...”. No segundo, o herói segurando a mão de pedra do 162 “Don Juan ilustre de manière exemplaire ce qu’on a appelé le ‘ballet d’action’, un spectable dans lequel la musique, le drame, la chorégraphie et la mise en scène s’unissent – déjà une oeuvre d’art totale donc, appelant la collaboration étroite et harmonieuse du compositeur, du choréographe et du machiniste”. (BRUNEL, 1999, p. 439) 170 Comendador – que o gela – e instado a se arrepender, responde [esta é, antes de cair fulminado, sua última réplica]: “Não, velho fátuo!” [...] Don Juan não é a meus olhos – mais ingênuos – senão uma encarnação pessoal da festa, da orgia feliz, que nega e derruba divinamente os obstáculos. (BATAILLE, 1973, p. 85-86)163 [grifos nossos] É uma figura que sob os trajes aristocráticos que veste se escondem os apetites de uma fera: “Ele tem bem traços de uma grande fera, por seu apetite extraordinário, sua capacidade sexual, sua energia vital.” (RAVOUX-RALLO, 1999b, p. 254)164. É perceptível esta impressão desde a primeira cena do primeiro ato da peça na qual, exercendo sua força bestial de macho no cio, intenta violentar Dona Ana, a filha do Comendador: Donna Anna Segurando Don Juan. Não esperes, se não me matares, Que eu te deixe jamais fugir! Don Giovanni Procurando sempre se ocultar. Mulher louca! Em vão gritas, Quem sou eu não saberás!) [...] Donna Anna Todos! Servos! Ao traidor! Don Giovanni Cala ou trema ao meu furor! (DA PONTE, 2017, p. 358)165 É o homem que se faz conhecido pela famosa lista, o inconfundível catálogo de suas conquistas, eternizada na ária de Mozart Madamina (Minha senhora). Escrito, com minúcia, pelo punho de Leporello, o pajem do libertino, é o indicativo do desejo sexual sem limites: “Na 163 “El Don Juan de Mozart [...] presenta dos instantes decisivos. En el primero, la angustia – para nosotros – está ya presente (el Comendador ha sido invitado a cenar), pero Don Juan canta: ‘Vivan le femine - viva il buon vino – gloria e sostegno d’umanitá...’. En el segundo, el héroe, sosteniendo la mano de piedra del Comendador – que le hiela – e instado a arrepentirse, responde (ésta es, antes de caer fulminado, su última réplica): ‘No, vecchio infatuato!’ [...] Don Juan no es a mis ojos – más ingenuos – sino uma encarnación personal de la fiesta, de la orgía feliz, que niega y derriba divinamente los obstáculos.” (BATAILLE, 1973, p. 85-86) [grifos nossos] 164 “Il a bien des traits d’un grand fauve, par son appétit extraordinaire, sa capacité sexuelle, son énergie vitale.” (RAVOUX-RALLO, 1999b, p. 254) 165 “DONNA ANNA, Trattenendo Don Giovanni: Non sperar, se non m’uiccidi,/ Ch’io ti lasci fuggir mai!/ DON GIOVANNI, Sempre cercando di celarsi: Donna folle! Indarno gridi,/ chi son io tu non saprai!/ [...] DONNA ANNA: Gente! Servi! Al traditore!/ DON GIOVANNI: Taci e trema al mio furore!” (DA PONTE, 2017, p. 358) 171 Itália, seiscentos e quarenta; na Alemanha, duzentos e trinta e uma; cem na França, na Turquia noventa e uma; mas na Espanha são já mil e três”166. (Ibid. p. 397). Número mirífico, muito mais que real, e que traduz a ânsia de libertinagem de seu autor. Mais uma projeção do desejo tolhido de Leporello no seu amo, o catálogo impressiona tanto pelo cálculo e extensão dos objetos de conquista, quanto pela sazonalidade com a qual estes são apanhados: “No inverno, a rechonchuda; no verão, a magricela.” (Ibid. p. 398)167. Otto Rank, no conhecido estudo sobre o duplo e Don Juan168, é quem defende a tese que enxerga no personagem serviçal o alter ego do sedutor. Para o discípulo de Freud – com quem mais tarde romperia relações – Leporello funciona, no texto operístico, como a consciência do herói, estando os desejos mais impulsivos e, portanto, inconscientes, realizados nas ações perversas e reprováveis pela mão de seu amo. Ele seria, portanto, um Doppelgänger (duplo) do sedutor incontinente, uma vez que, em vários episódios do drama, é Leporello que assume o posto daquele, praticando, ainda que canhestramente, as burlas já habituais àquele. De fato, se pensarmos nas peripécias vividas pelos dois personagens, é forçoso reconhecer que o par imaginado por Da Ponte e Mozart se intercomunicam de tal maneira que difícil é distinguir os papéis ocupados por eles e, por vezes, até o grau de hierarquia que separa amo e lacaio, dada à liberdade mais frouxa que aquele concede a este. Entretanto, essa constatação se dá nos eventos mais superficiais das ações do outro par que Molière pôs em cena. Dom Juan e Sganarrelle, na comédia do dramaturgo francês, travam uma relação de diálogo aberto, porém, consentida no limite imposto pelo primeiro ao segundo. Além disso, a condição elevada de esprit fort deste Dom Juan abre o precedente para a liberdade de expressão de pensamento de um lacaio submetido ao ridículo do próprio raciocínio miúdo. De modo que, ao primeiro sinal de oscilação mais brusca do humor do mestre, as relações verticais são novamente redefinidas169. 166 “In Italia seicento e quarenta; in Allemagna duecento e trentuna; cento in Francia, in Turchia novantuna; ma in Ispagna son già mille e tre”. (Ibid. p. 397) 167 “Voul d’inverno la grassotta, vuol d’estate la magrotta.” (Ibid. p. 398) 168 Referendamos aqui a edição francesa “Don Juan et le double” em razão das dificuldades impostas pelo acesso à língua alemã. Na realidade, a versão francesa deliberadamente funde dois trabalhos publicados em datas diferentes pelo autor: Der Doppelgänger (O duplo) de 1914 e Die Don Juan-Gestalt (a figura de Don Juan) de 1922, reunidos na tradução francesa das edições Denoël de 1932 e reeditadas pela Payot em 1973. 169 Isto fica claro na abertura do quarto ato do Festim de Pierre de Molière. Após o evento insólito com a estátua do comendador no mausoléu, Dom Juan, enfastiado dos sermões de Sganarelle sobre a vindita que lhe cairá dos céus, trata, logo, de restabelecer seu poder de mando: “Écoute. Si tu m'importunes davantage de tes sottes moralités, si tu me dis encore le moindre mot là-dessus, je vais appeler quelqu'un, demander un nerf de bœuf, te faire tenir par trois ou quatre, et te rouer de mille coups. M'entends-tu bien?” (MOLIÈRE, op. cit., p. 187). (“Escuta. Se tu me importunares mais com tuas tolas moralidades, se tu me disseres ainda a menor palavra a respeito, eu vou chamar alguém, pedir um nervo de boi, fazer-te segurar por três ou quatro e te cobrirem de mil pancadas. Ouviste-me bem?”). 172 Em Don Giovanni, Don Juan e Leporello invertem entre si as posições de poder que ocupam e os definem enquanto estratos sociais e subvertem, com isso, os códigos de conduta e as leis estabelecidas de um mundo de valores em crise e já em estado de decadência política. Leporello, por exemplo, é instigado pelo amo a trocar com ele suas vestes a fim de aplicar uma burla a Elvira, a antiga amante do sedutor. E este mesmo se regozija ao ver o lacaio se insinuando à sua conquista passada, enquanto se dirige aos aposentos da camareira desta. Este trânsito livre de uma fronteira à outra que faz do servo lacaio, e deste aquele, seja apenas, talvez, uma coincidência que una os personagens pela relação de cumplicidade que entre eles se mantém; e que, ao mesmo tempo, desperta uma investigação mais profunda, de linha antropológica e psicanalítica, como faz Otto Rank ao reconhecer a singularidade dos personagens nesta peça de Da Ponte e Mozart e que fomenta a existência de duplos: Teria sido impossível fazer do personagem de Don Juan este cavaleiro frívolo, sem consciência, não tendo respeito com nada, se Leporello precisamente não constituísse a parte de Don Juan que representa a crítica, o medo, ou seja, a consciência do herói. Com esta chave, podemos agora compreender porque Leporello substitui seu mestre precisamente em todas as situações penosas, porque ele pode se permitir criticá-lo e compensar, por assim dizer, a consciência que lhe falta. Por outro lado, compreendemos também a enormidade da impiedade de Don Juan pelo fato de que todos os elementos que poderiam por um freio aos excessos de sua personalidade são eliminados. (RANK, 2001, p. 160)170 Pierre Brunel, que também foi sensível às considerações do crítico, enxerga no tratamento do duplo, antes, uma mobilidade à qual está condicionada o herói. Don Juan, na visão do estudioso, é um personagem previsível, cíclico, imutável e que, sobretudo, suscita imitadores: O estudo de Otto Rank tornou-se um clássico. [...] De fato, para Rank, o duplo constitui uma estrutura pré-donjuanesca confirmada pelo mito de Don Juan. Ao constatar que Don Juan suscita duplos (de tal maneira que, em última análise, existe apenas ele), Rank sugere que se trata de um personagem dividido, em quem se enfrentam dois duplos. O inverso talvez esteja mais próximo da verdade: Don Juan, personagem monolítico, suscita imitadores. 170 “Il eût été impossible de faire du personnage de Don Juan ce chevalier frivole, sans conscience, n'ayant respect de rien, si Leporello précisément ne constituait pas la partie de Don Juan qui représente la critique, la peur, c'est- à-dire la conscience du héros. Avec cette clé, nous pouvons maintenant comprendre pourquoi Leporello remplace son maître précisément dans toutes les situations pénibles, pourquoi il peut se permettre de le critiquer et de suppléer pour ainsi dire à la conscience qui lui manque. D'un autre côté, nous comprenons aussi l'énormité de l'impiété de Don Juan par le fait que tous les éléments qui pourraient mettre un frein aux excès de sa personnalité sont éliminés”. (RANK, 2001, p. 160) 173 No teatro, temos Leporello, que por inveja talvez de seu amo ou “porque participa de alguma forma de poesia de seu amo” (Flaubert, projeto de Une Nuit de Don Juan [Uma noite de Don Juan]), apaixona-se por essa multiplicidade (por isso ele lê para Elvira o catálogo detalhado das conquistas de Don Juan) e chega até a imitá-la. (BRUNEL, 1998, p. 258) Questão de método, a que cada crítico recorre na decodificação do texto, e que, muitas das vezes, não apresenta necessariamente resultados entre si excludentes. O que não diverge as opiniões, todavia, é o reconhecimento patente da desabrida libertinagem do herói e que, situada no tempo de seus autores, Da Ponte e Mozart, foi forjada num modelo de sociedade que entrava em colapso e em estado de dissolução. Já no Antigo Regime agonizante, Da Ponte e Mozart nos brindam com um personagem irreverente, subversivo e anunciador da transformação social para um novo tempo. Don Juan, símbolo de uma nobreza perdulária, promove festas, bailes, ceias fartas, faz com que todos comam e bebam, dancem minuetes, alemandas, contrandanças, mesclando ritmos aristocráticos aos populares, numa reencenação dos festivais báquicos revivida num palco dos setecentos: (Nesta alegre perspectiva de festa e neste ar célebre, pode-se reconhecer Don Giovanni, bem diferente dos outros don juans. E, primeiramente, na orgia que ele prepara: as danças, o vinho e a embriaguez, a sexualidade desenfreada são cantadas com brio, e também, a dispensa e a dispersão, a ausência de escolha – toda mulher tem relações sexuais – o desejo inesgotável. Mas também a mistura: as três danças figuram as classes sociais misturadas na orgia que confundem os estratos da sociedade. O minuete aristocrático para os máscaras, a contradança para Zerlina, o ländler, dança popular, que ele fará dançar Masetto com Leporello por zombaria. Esta “libertà” que ele proclama é sobretudo a sua, mas ela é seguramente também aquela da orgia) (RAVOUX- RALLO, 1999b, p. 254)171 Liberdade dos impulsos sexuais, mas também liberdade que se depreende da inversão dos papéis sociais que Don Juan provoca no trato dispensado a seus convidados mediante ao desalinho das danças em sua festa. Uma liberdade também que será o signo da nova escola romântica e do desenvolvimento de um espírito de identidade nacional, indispensáveis à afirmação dos valores burgueses modulados pelos ideais iluministas e pelas revoluções socais americana e francesa. 171 “Dans cette joyeuse perspective de fête et cet air célèbre, on peut reconnaître Don Giovanni, bien différent des autres don juans. Et d’abord dans l’orgie qu’il prépare: les danses, le vin et l’ivresse, la sexualité débridée sont chantés avec brio, et aussi la dépense et la dispersion, l’absence de choix – toute femme fait l’affaire – le désir inépuisable. Mais aussi le mélange: les trois danses figurent les classes sociales mêlées dans l’orgie qui brouille les strates de la société. Le menuet aristocratique pour les masques, la contredanse pour Zerline, le ländler, danse populaire, qu’il fera danser Masetto avec Leporello par dérison. Cette “libertà” qu’il proclame est surtout la sienne, mais elle est sûrement aussi celle de l’orgie”. (RAVOUX-RALLO, 1999b, p. 254) 174 Um modelo de herói que, conjuntamente àquele de Molière, responderá devidamente às necessidades de demanda ideológica da estética romântica. Serão inspiradores dos poetas e eleitos por estes como representantes diretos dos ideais libertários e revolucionários que a burguesia ascendente proclamou. Em especial, o de Da Ponte e Mozart, uma vez que o Don Giovanni conserva algo intrigante em sua fabulação. Depois das malfadadas aventuras amorosas com Dona Ana e Zerlina, esta última camponesa prometida ao jovem Masetto, Don Juan tem o seu destino selado ao ultrajar a memória do Comendador172 no cemitério onde este se encontrava sepultado. Dali mesmo fica sabendo que não verá a luz do outro dia: “acabarás de rir antes do amanhecer”. (DA PONTE, op. cit., p. 584)173. Em seguida ao evento sobrenatural, o libertino monta uma farta ceia e recebe a visita inesperada. Até este ponto, nada que viesse, a grosso modo174, a romper com os motivos literários e com a condução dos eventos presentes em seus anteriores. Entretanto, quando se vê assomado pelo fantasma do Comendador, este, ao contrário dos análogos a Tirso e Molière, cuja implacabilidade da vindita é uma dominante, resolve conceder ao libertino a oportunidade de redenção: A Estátua Arrepende-te, muda de vida. É o último momento! Don Giovanni Quer se romper, mas em vão. Não, não, eu não me arrependo. Vai-te longe de mim! A Estátua Arrepende-te, celerado175! Don Giovanni Não, velho fátuo! [...] 172 Assinalamos o personagem pelo emprego da maiúscula, assim como registrado igualmente na peça dramática de Molière, momento em que o motivo do revenant já estava tradicionalmente consolidado, dispensando, portanto, a alusão distintiva do nome como se verifica no modelo arquetípico de Tirso de Molina com o seu personagem Don Gonzalo de Ulloa. 173 “Di rider finirai prima dell’aurora!” (DA PONTE, op. cit., p. 584) 174 Brunel (1998) já havia chamado a atenção para esta reincidência do mito literário a qual nomeou de monotonia donjuanesca: “Poderíamos dizer que o que não muda em Don Juan é o seu gosto por mudança, chega a ser até mesmo uma monotonia donjuanesca.” (p. 257). 175 Assim procedemos como para com o texto de Molière, ou seja, conservando a raiz latina (sceleratus), em que a palavra tem a etimologia do vocábulo associada a crime, logo, por extensão, criminoso. Essa também é a solução encontrada por Jean Massin de sua tradução para o francês: “criminel”. (DA PONTE, 1993, p. 269). A tradução espanhola apresentada por Balló y Pérez (2017), apoiada em uma versão bilíngue do libreto de Da Ponte extraído da Fundación Gran Teatre del Liceu (2002), oferece, porém, como alternativa à tradução o vocábulo “desalmado”. (DA PONTE, 2017, p. 627). 175 A Estátua Ah! Não há mais tempo! (Ibid. pp. 626-628)176 Don Juan é, paradoxalmente às outras versões do mito, quem simboliza a inexorabilidade do próprio destino. Cabe só a ele o poder de decisão sobre a fatalidade iminente que aos outros lhes foi parcial ou totalmente denegado. Em Tirso, a estátua não concede ao burlador nem mesmo a confissão de seus pecados: não há clemência, nem penitência177; na comédia de Molière, o desenlace da catástrofe é tão brusco que o herói mal chega a esboçar direito um rogo à intervenção divina178. O que em Tirso e em Molière se vê são admoestações, conselhos, reprovações e sermões para livrar o sedutor da senda que o encaminhará ao abismo fatal. Em Molière, apesar da relutância em se dobrar à credulidade no sobrenatural, Dom Juan não é agraciado por uma provação derradeira de sua fé: a estátua lhe inflige as penas do inferno sem apelações. Contudo, é com Da Ponte e Mozart que o mito conhecerá outra dimensão, a rebeldia àquele que, em última análise, representa na terra a comunicação com o sagrado. A natureza deste novo herói nascido na transição para um mundo de mudanças radicais irá dar perenidade ao mito literário em direção à sua universalidade. Com o advento do Romantismo na Europa, movimento por si só multifacetado, o sedutor de Sevilla perderá o sentido primeiro a que lhe foi conferido nos palcos da Espanha contrarreformista, e que consistia na moralização religiosa e, depois, no acento dos traços burlescos das versões da Commedia dell’arte na Itália seiscentista. Também não será, a rigor, o da mordacidade dos costumes que saiu da pena de Molière como também não, a despeito de sê-lo motivo inspirador, o Don Giovanni de Da Ponte e Mozart ainda envolto ao mundo da libertinagem galante do absolutismo decadente. 176 “LA STATUA: Pentiti, cangia vita./ È l’ultimo momento!/ DON GIOVANNI: Vuoi scoigliersi, ma invano./ No, no, ch’io non mi pento./ Vanne lontan de me!/ LA STATUA: Pentiti, sclellerato!/ DON GIOVANNI: No, vecchio infatuato!/ [...] LA STATUA: Ah! Tempo più non v’è!” (Ibid. pp. 626-628) 177 Em El burlador de Sevilla, Don Juan ainda adverte à estátua que com Doña Ana, sua filha, não havia chegado às vias de fato, apelando para sua clemência. Irresoluto o comendador, pede ainda para que se lhe conceda a penitência: “Deja que llame/ quien me confiese y absuelva.” (MOLINA, 2010, p. 161) (“Deixa que chame/ quem me confesse e absolva”.), a que a estátua responde inflexível: “No hay lugar; ya acuerdas tarde.” (Ibid.) (“Não há mais tempo, acordaste tarde para isso”.) 178 A última cena do Festin de Pierre quase que se resume à condenação do Comendador e à constatação da danação pelo herói. “La Statue: Dom Juan, l'endurcissement au péché traîne une mort funeste, et les graces du Ciel que l'on renvoie, ouvrent un chemin à sa foudre. Dom Juan: Ô Ciel, que sens-je? Un feu invisible me brûle, je n'en puis plus, et tout mon corps devient un brasier ardent, ah!” (MOLIÈRE, 1993, p. 206). (“A Estátua: Dom Juan, o endurecimento no pecado arrasta a uma morta funesta, e as graças do Céu que se devolvem, abrem um caminho para os seus raios. Dom Juan: Ó Céu, que sinto? Um fogo invisível me queima, eu não posso mais, e todo o meu corpo torna-se um braseiro ardente, ah!”). 176 O Don Juan do novo século XIX responderá aos anseios do novo tempo: libertário, questionador, idealista, sonhador, revolucionário, ora consentindo com os ideais democráticos de liberdade e igualdade convenientemente comuns à classe burguesa num primeiro momento; ora rechaçando desta os valores culturais representados pela propriedade privada e pelos códigos de honra respaldados pelo estado e pela igreja depois. O Romantismo colaborou para a formação da imagem mitigada de Don Juan ou, ao contrário, acentuou-lhes os traços da perversão moral e da rebeldia que, em verdade, são o verso e o reverso da mesma moeda, de um mesmo sujeito dividido entre o ideal e o banal, o sonho e a realidade, a euforia e a lassidão, expressões opostas e tão caras à identidade do sujeito romântico. 177 2. RESSIGNIFICAÇÃO DO MITO E ABSOLVIÇÃO DO HERÓI NO OLHAR DOS ROMÂNTICOS É com o Romantismo que o mito literário recebe sua consagração e se universaliza. De imediato, o corpo mítico muda de forma e de tom. Do teatro cantado nos séculos XVII e XVIII, passa às composições narrativas do conto e da novela, alcançando até o modelo épico com a obra de Byron. A extensão do domínio restrito ao campo literário é alargada e, logo, conhecerá também as formas do teatro das marionetes de Guignol às pinturas a óleo de Eugène Délacroix e Marcel Saunier, bem como as ilustrações no crayon dos irmãos Johannot. O tratamento dado ao motivo literário também se amolda à programática da estética romântica. Don Juan, agora, não assume os contornos do inveterado conquistador, cético e indiferente às vítimas desonradas. O Romantismo, logo, ocupar-se-á no reparo dessa imagem negativa a que se viu entregue a criação de Tirso de Molina. Muito dessa depuração da figura do herói se deve à fusão que a velha narrativa espanhola sofreu com a legenda de outro Don Juan: o de Mañara. Don Juan de Mañara, ou Maraña – invertido e sem o diacrítico como registra a criação de Mérimée –, diz respeito à lenda que se criou em torno do folclórico personagem Miguel Mañara. Sevilhano de extração aristocrática, Mañara perde, ainda jovem, sua esposa e, sem filhos, decide abdicar de sua vida abastada ao ser admitido por uma confraria caritativa e auxiliar os mais necessitados. (PIVETEAU, 1999, p. 586-587). A legenda de homem santo piedoso ganha, nos anos seguintes à sua morte, uma outra interpretação de modo a se aceitar a tese de que a sua entrega à devoção religiosa era resultado de uma vida desregrada e dispendiosa que outrora havia tido em sua juventude179. Não demoraria para que a imaginação popular correlacionasse o personagem lendário de Don Juan Tenório ao legendário de Miguel de Mañara, emprestando os traços da libertinagem daquele a este. Logo, a literatura romântica dará sua contribuição para a continuidade desta tradição oral. Prosper Mérimée com Les Âmes du Purgatoire (As Almas do Purgatório) de 1834 é o responsável por trazer o personagem legendário de Mañara para o contexto dos contos fantásticos que estavam em voga na França à ocasião da popularização do escritor prussiano E. T. A. Hoffmann empreendida por seu tradutor oficial Loève-Veimars. Leitor de Tirso e Molière, 179 Muito desse caráter anedótico de que se acerca a vida deste nobre sevilhano se deve à maneira como os populares e historiadores interpretaram o epitáfio encontrado à entrada do templo do Hospital de la Caridad em Sevilha, visto ora como prova de humildade do homem santo, ora como indicativo de uma vida entregue à devassidão: “Aquí yacen los huesos y cenizas del peor hombre que há habido en el mundo” (SAID ARMESTO, op. cit., p. 84). (“Aqui jazem os ossos e as cinzas do pior homem que houve no mundo”). 178 bem como das versões dos românticos anteriores a seu conto, como o destacado Hoffmann e o inglês Lord Byron, Mérimée recorre ao modelo histórico de Mañara, guardando os traços já difundidos pela tradição do burlador espanhol. (AUGRY, 1999, p. 621-622). Em Les Âmes du Purgatoire, Don Juan de Maraña não é, em princípio, um sedutor implacável. Na realidade, esse papel é desempenhado por Don Garcia, depravado libertino que se incube de iniciar o colega na vida mundana dos estudantes de Salamanca. Aos poucos, Maraña deixa-se perder pelos conselhos de Don Garcia, entregando-se ao desregramento e à vida boêmia. Assassinatos e seduções levam-no a um rebaixamento moral que tem por desfecho a ideia sacrílega que lhe advém em pôr o nome de Deus na lista dos maridos ultrajados de suas vítimas. Teresa, antiga amante do sedutor, é o alvo de seu plano diabólico. Recolhida ao claustro, a jovem atende agora pelo nome de Ágata e torna-se, aos olhos do sedutor, a maior obsessão de suas conquistas. Eventos insólitos, porém, sucedem-se à proximidade de sua maquinação blasfema. A contemplação dos supliciados no purgatório estampados em quadro no oratório de Teresa causa-lhe funda impressão. Entretanto, é a visão aterradora de seu próprio enterro, após haver antevisto os cadáveres de Don Garcia e Don Gomare, capitão falecido pelas mãos deste último, que irá despertar o arrependimento de Maraña e sua consequente conversão. A obra de Merimée abrirá uma linha sucessória de textos que irão optar pela preferência ao tema do sedutor convertido. A conversão final do herói, porém, não é novidade no tratamento do mito. Como já havíamos mencionado, uma produção paralela saída da tradição popular de farsas e entremezes no Portugal do século XVIII já dava conta de finais alternativos àqueles que o público europeu já estava habituado a presenciar das comédias de Tirso de Molina e de Molière. E, mesmo na América, precisamente no difuso contexto histórico de nosso teatro nacional, encontramos registros deste epílogo incomum ao que a crítica moderna entende sobre a evolução da história do mito180. É, porém, com a novela de Mérimée que se dá a conjunção da legenda ao mito literário e a imagem de Don Juan Tenório se impregnará de tal maneira à de Miguel de Mañara que, a partir daí, será difícil para o leitor estabelecer entre eles os traços distintivos. Desta vertente do texto de Mérimée ainda sobressaem, entre os mais conhecidos, o Don Juan de Marana ou la chute d’un ange (a queda de um anjo) de Alexandre Dumas (o pai) 180 Referimo-nos mais especificamente à crítica francesa. O volumoso Dicionário de Don Juan, organizado por Pierre Brunel, contando com ensaios de especialistas portugueses e espanhóis, também se silencia sobre o assunto. Said Armesto com seu renomado estudo sobre as origens populares do mito também não propõe essa discussão. Trabalhos como o de Ana Paula Pinto Alves em sua tese D. João em Portugal e a de Christine Zurbach com A tradução teatral trataram, porém, de reparar essa lacuna e abrir os horizontes da pesquisa histórica para a produção comercial voltada para as demandas populares. 179 de 1836, El estudiante de Salamanca de José de Espronceda de 1837 e, embora não confesso por seu criador, o Don Juan Tenorio de José Zorrilla de 1844181. Na outra ponta da absolvição do herói – mas ainda seguindo a moda do fantástico – Honoré de Balzac escreve um longo conto, acentuando os traços da perversão de Don Juan. L’élixir de longue vie (O elixir da longa vida) escrito para Revue de Paris em 1830 vai na esteira dos textos românticos que, segundo informa BRUNEL (1999, p. 53), sofre um processo de faustisation (“faustização”) em oposição à “maranisation” (“maranização”) exercida por Mérimée. O tema do Fausto na literatura romântica é notadamente reconhecido pela crítica literária. Mais de um poeta recorreu em suas obras ao mito fáustico que, assim como o de Don Juan, nasceu das raízes populares. Entre os românticos recebeu uma maior atenção, tendo em vista a sua capacidade de efabular sobre os mistérios insondáveis de que se acercam o criador e atormentam a razão do homem. Ao traduzir a angústia da criação face às questões existenciais insolúveis, Fausto se aproxima de outros mitos ocidentais que a ele se irmanam a exemplo da rebeldia de Prometeu, da ambição de Satã, da omissão do Judeu Errante ao Salvador, da inveja de Cain, todos recuperados pelo romantismo e em sujeição ao amálgama de seus modelos primevos. Don Juan se estreita com esses questionadores da ordem divina da tradição judaico- cristã e greco-latina da cultura ocidental. Entre os românticos, torna-se: “[...] Don Juan símbolo essencial e insubstituível de certas angústias radicais que ao homem pesam, uma categoria imarcescível da estética e um mito da alma humana” (ORTEGA Y GASSET, 1944, p. 47).182 A aproximação ao mito de Fausto não seria, pois, mais que evidente. Don Juan, direta ou indiretamente – a depender da versão a qual se solicite –, é igualmente um subversor da ordem social e das leis normatizadas pelos homens. Não há códigos de conduta ou poder legitimado que não possam sofrer à ação transgressora de suas burlas. Com a evolução histórica do mito, a rebelião à instância do sagrado ganha contornos mais definidos e a proximidade àqueles modelos de contestação à esta ordem divina elevam o personagem do sedutor a uma esfera supra-humana: 181 Segundo SÉRIS (1999, p. 1017), a ocultação desta fonte do texto de Mérimée deve ser atribuída à necessidade de criação de um teatro nacional na Espanha. Indignado pela cena espanhola ter tomado espaço nos palcos franceses, o escritor espanhol deixava expresso o patriotismo literário ao reivindicar para o país a paternidade do mito literário iniciada com Tirso e continuada por Zamora depois. 182 “[...] Don Juan símbolo esencial e insustituíble de ciertas angustias radicales que al hombre acongojan, una categoría inmarcesible de la estética y un mito del alma humana”. (ORTEGA Y GASSET, 1944, p. 47) 180 A idade barroca não criou Don Juan por acaso; também não foi por acaso que o “Sturm und Drang” germânico “reativou” Fausto e o propulsou para todo o romantismo. Também não é por acaso que o romantismo ao mesmo tempo exaltou, triturou, torturou e para acabar deslocou Don Juan. O conteúdo mental, enriquecido pela proximidade de Fausto, permaneceria fascinante, mas exigiria uma nova elaboração que a estrutura estética não podia receber sem gemer e quebrar com todos seus membros.183 (MASSIN, 1993, p. 69-70) A faustização do herói seria, portanto, uma demanda programática de parte do movimento romântico e da maneira como as literaturas estrangeiras solicitariam estes empréstimos ao mito. A bem da verdade, o Sturm und Drang correspondeu, em território germânico, ao que hoje a crítica moderna entende como o pré-romantismo na Alemanha e muitos dos seus idealizadores, a exemplo de Johann Wolfgang von Goethe e Friedrich Schiller, apresentavam por ideário estético o mergulho na tradição clássica grega. Obras como Os sofrimentos do jovem Werther e Goetz von Berlichingen corresponderam a apenas uma fração do romantismo nascente na Alemanha e que foi convenientemente importada à França como literatura romântica. (ROSENFELD, 1969, p. 146-147). Mesmo o Urfaust (Fausto Zero) de Goethe, uma das versões preliminares que originaria o chamado Primeiro Fausto, só receberia esta última forma definitiva no século XIX, muito depois do Sturm und Drang da juventude do escritor germânico184. Entretanto, guardadas estas proporções, Fausto recebeu boa acolhida na recepção da primeira parte do poema de Goethe na França e contou com as obras de Lenau e Grabbe que estabeleceram uma equivalência entre os dois mitos. O L’élixir de longue vie encontrava-se nesta faixa de tempo em que as obras de Goethe e de E. T. A. Hoffmann, este com a tradução dos contos fantásticos pelo punho de Loève- Veimars em 1830, ganhavam adesão no gosto do público francês cioso da leitura do gênero fantástico. A própria constatação de que o escritor francês a publicou nos anos de 1830 na Revue de Paris, sabendo que alguns contos de Hoffmann já haviam sido publicados no ano anterior neste veículo185, e que Gérard de Nerval dois anos antes já trazia o Fausto vertido para a sua 183 “L’âge baroque n’a pas créé Don Juan par hasard; ce n’est pas par hasard non plus que le ‘Sturm und Drang’ germanique a ‘reactivé’ Faust et l’a propulsé vers tout le romantisme. Ce n’est pas par hasard non plus que le romantisme a tout à la fois exalté, trituré, torturé et pour finir disloqué Don Juan. Le contenu mental, enrichi par la proximité de Faust, demeurait fascinant mais exigeait une nouvelle élaboration que la structure esthétique ne pouvait recevoir sans gémir et craquer dans toute sa membrure”. (MASSIN, 1993, p. 69-70) 184 O Urfaust foi a versão ainda em esboço dada por Goethe em 1775 à época do Sturm und Drang. A este modelo embrionário se seguiu um fragmento de 1790, dado a lume anos depois à morte do autor. A versão, porém, do Primeiro Fausto só conheceu sua forma definitiva em 1808 quando se viu publicada. A segunda parte, de publicação póstuma, foi editada em 1833. É importante ter em mente que esta segunda parte da obra atende à atmosfera clássica do poema de Goethe, sendo, portanto, a primeira, mais afinada ao estilo romântico, popularizada no século XIX em França pela tradução de Gérard de Nerval em 1828, sucedida às de Saint-Aulaire em 1823 e de Albert Stapfer no mesmo ano de 1828. 185 Entre os estudiosos da recepção de Hoffmann na França, destaca-se o exaustivo estudo de Elizabeth Teichmann, La fortune de Hoffmann (A fortuna de Hoffmann) de 1961, que recobre a produção tradutória dos contos do escritor 181 língua, dão sinais da apropriação dos escritores alemães pelos franceses sob o signo do exótico e do fantástico. No conto de Balzac, concorrem para a fatura do texto os dois processos de faustização e de adequação à moda do fantástico. A narrativa conta-nos a história de dois don juans, Bartholoméo Belvidéro e Don Juan Belvidéro. O primeiro, nonagenário e pai do segundo, tendo levado uma vida abandonada aos prazeres sexuais, já em idade alta, casa-se com uma jovem moça a quem dá à luz Don Juan. Cercado de belas mulheres no palácio de Ferrara onde mora com o pai, Don Juan espera o velho morrer para poder enfim gozar da opulenta herança paterna. O velho pai, entretanto, tem outros planos. Detentor de um elixir cujas propriedades mágicas são capazes de restituir a vida, Bartholoméo confia ao filho o trabalho de ungi-lo com a poção milagrosa em sua morte. Don Juan não cumpre a tarefa delegada pelo pai e, ainda que incrédulo, aplica, somente horas depois de sua morte, o elixir no olho direito do cadáver. Surpreendentemente, o olho se reanima e fixa Don Juan como que cobrando a finalização do procedimento. Neste momento, Don Juan deixa transparecer a sua natureza mais perversa. Com feições diabólicas, dá a entender sua intenção ao pai que lhe deixa cair uma lágrima quente na mão do filho. Don Juan esmaga o olho do velho. O cachorro da casa que testemunhava a cena expira também, soltando um terrível gemido. Don Juan torna-se senhor supremo dos bens de seu pai. Cético e egoísta, entrega-se aos amores fáceis, sem criar laços duradouros e afetivos. Na velhice, assim como o pai, muda-se para Espanha e casa sexagenário com uma jovem andaluza de nome Elvira. Por cálculo, torna-se um mal pai e mal esposo, uma vez acreditar, por suas observações, que somente se é ternamente amado pelas mulheres quando a elas não se devota em nada o pensamento. É assim que com uma educação repressora e religiosa, contrária à que recebeu, deseja infundir o respeito ao filho Philippe, incumbido agora da obrigação que o pai negligenciou ao avô. À hora da morte, Philippe cumpre as indicações passadas por Belvidéro que tem a cabeça e um braço ungidos pelo elixir confiado àquele. Na ânsia de recobrar a vida, Don Juan estrangula o pescoço do filho com o braço rejuvenescido e vigoroso, fazendo com que o jovem deixe quebrar o frasco precioso. A missão não é cumprida, entretanto a cena insólita causa estarrecimento aos presentes, motivando a canonização do herege. Don Juan, homem cruel e cético, à ocasião de sua celebração na igreja em razão do milagre prussiano em impressos e jornais da França na primeira metade do século XIX. Do material consultado de suas investigações, a pesquisadora aponta, entre jornais variados anteriores ao ano de 1830, a Revue de Paris onde já se encontravam, no ano de 1829, algumas narrativas contísticas de Hoffmann como o fragmento de “Le pot d’or” (o vaso de ouro), “Gluck”, “Souvenir du siège de Dresden” (Lembrança de um cerco a Dresde), “La cour d’Artus” (A corte de Artus), “Don Juan”, “Les aventures de la nuit de la Saint-Sylvestre” (As aventuras da noite de São Silvestre) e “Zacharias Werner”. 182 comprovado de seu corpo incorrupto, desprende a cabeça ao corpo e crava seus dentes no cérebro do abade que presidia sua santificação. Como se percebe, este longo conto – e quase novela – de Balzac explora pontos subjacentes à estrutura do mito. Seguindo a moda do fantástico que vigorava na França de 1830, o autor da Comédia Humana valoriza e potencializa o elemento fantástico inerente ao mito, mas que, em sua origem e posterior expansão, estava arraigado à aceitação comum de seu caráter sobrenatural. Balzac, atinando para esta particularidade, em uma época em que deuses e demônios iam perdendo a aura mística de que se revestiam, cria um herói na linha de Molière, ultrapassando à personagem deste por fazer do seu um cético, egoísta e cruel, que debocha da existência divina. Escritor este cujo personagem é modelo para o seu Belvidéro: “Ele fora, com efeito, o tipo de Dom Juan de Molière, do Fausto de Goethe, do Manfred de Byron e do Melmoth de Maturin” (BALZAC, 1999, p.35)186. O traço do fantástico presente em Molière, a qual o autor da Comédia Humana faz alusão, é, todavia, mais uma componente convencional ao Festin de Pierre que seu autor paga à tradição dos que o antecederam que necessariamente um mergulho no universo dos temas inquietantes do gênero que tomaram a Europa no século XIX. Numa época marcada, ora pela religiosidade consentida do homem barroco, ora pela razão dos materialistas do século XVII, seria inimaginável pôr em discussão o fantástico pela óptica da dúvida e da hesitação: Já faz duzentos anos que a razão perdeu seu trono na literatura. Permanecia atenta nos tempos de Descartes e Boileau, mesmo quando a obra de arte se adornava com os prestígios do maravilhoso: a fábula, a alegoria, até a lenda, estavam colocados sob seu controle e serviam a seus desígnios; enquanto aos relatos de sonhos introduzidos em nossas tragédias para despertar ou manter o interesse dramático, parecem construídos, observava Nodier, por homens que nunca sonharam. (CASTEX, 2007, p. 7)187 Os românticos vão trazer à tona no século XIX uma tendência que havia já se iniciado com Jacques Cazzote um século antes com o seu Le diable amoureux (O diabo apaixonado). 186 “Il fut en effet le type du Dom Juan de Molière, du Faust de Goethe, du Manfred de Byron et du Melmoth de Maturin” (BALZAC, 1999, p.35) 187 “Hace ya doscientos años que la razón perdió su trono en la literatura. Permanecía atenta en los tempos de Descartes y de Boileau, incluso cuando la obra de arte se adornaba con los prestigios de lo maravilloso: la fábula, la alegoria, hasta la leyenda, estaban colocados bajo su control y servían a sus designios; en cuanto a los relatos de sueños introducidos en nuestras tragedias para despertar o mantener el interés dramático, parecen contruidos, obserbava Nodier, por hombres que nunca han soñado”. (CASTEX, 2007, p. 7) 183 (Ibid.) A introdução de uma modalidade moderna do tratamento do fantástico ganha, contudo, toda força nos anos de 1830. Balzac, intuitivamente ou não, resgata o evento insólito da peça de Molière, despindo dela os vestígios sobrenaturais que a recobriam antes. A cena do entrechoque de Dom Juan com o revenant no Festin de Pierre é a revelação do elemento maravilhoso intrínseco ao mito e presenciada por este e Sganarelle. Entretanto, como já havíamos pontuado, a convicção sobre o sinistro evento que se apresenta aos olhos do amo e seu lacaio é posta em suspensão por aquele. Dom Juan, homem materialista e aplicado ao estudo especulativo da natureza, não se deixa dobrar pelo que acredita ser efeito do baralhamento de seus sentidos, ainda que esta impressão encontrasse respaldo no testemunho duplo de seu serviçal. De modo que, também em Molière, produz-se, se não uma modalidade de fantástico com a qual estamos habituados a lidar, ao menos a proposição de uma forma embrionária do gênero que seria invariavelmente explorada e desenvolvida nos séculos subsequentes ao comediógrafo dos setecentos. Dom Juan, na qualidade de esprit fort, rechaça agora quaisquer ponderações a respeito do incidente formuladas pelo juízo miúdo do criado impertinente. Evidentemente, que outras razões voltadas para o efeito do cômico e da crítica mordaz aos costumes com a qual – apesar de todo o furor que recebeu o acolhimento da peça – parte da plateia ilustrada da corte de Louis XIV estava habituada a assistir, afasta esta impressão marcante dos eventos sobrenaturais no tocante ao tratamento da peça. O pacto selado entre público e plateia divide as opiniões entre os esprits forts e esprits faibles, entre materialistas e religiosos, entre a razão e o dogma, aos quais o par Dom Juan-Sganarelle alegoriza na cena com sucesso. Os traços acentuados do ridículo no desenho dado a Sganarelle parecem definir o lado do qual o escritor tomou parte, indo muito além da elaboração de uma comédia de conveniência ao moralismo religioso. Entretanto, a intrusão das cenas finais em que o além-túmulo sobrevém ao personagem com toda sua emergência vingativa nos faria acreditar no contrário deste raciocínio, inclinando-nos a pressupor a vitória do poder divino sobre a insubordinação humana. Nada mais falso, porém, na peça de Molière. Como vimos, todo o desdobramento dos eventos finais do Festin de Pierre é conduzido num movimento rápido e de concentração dramática. Ao contrário da peça de Tirso cuja disposição dos eventos, do primeiro ao último ato, respeita a uma unidade do homem com o sagrado, em Molière, porém, não se evidencia o caráter pedagógico contrarreformista, sendo o seu desfecho resultado de uma obediência consentida à fabulação narrativa legada por seus anteriores. Esta singularidade do caráter da peça, no tocante à abordagem dada ao tema do fantástico, não passou, em nosso entendimento, despercebida na apreensão feita por Balzac do 184 mito literário que este colheu no Festin de Pierre de Molière. As afinidades que estreitam os personagens do autor de Tartuffo com o do escritor da Comédia Humana dão bem conta do diálogo entre os textos. Tanto Dom Juan, quanto Belvidéro são incrédulos em seu tempo às explicações que a igreja lhes dá sobre os mistérios que envolvem o sagrado. Irmanados no sentimento antirreligioso, os dois personagens também encaram a presença do sobrenatural como um evento insólito que lhes provoca estranhamento. Em Molière, ao primeiro contato da Estátua do Comendador, Don Juan é lacônico, entretanto deixa latente sua estupefação inconfessada em cena: “Vamos, saiamos daqui” (MOLIÈRE, 1993, p. 186)188. Em Balzac, é a figura do velho Bartholoméo Belvidéro que assume o papel da estátua vingadora. A cena insólita do olho reanimado lhe trai a razão, infundindo-lhe medo: Ele via um olho cheio de vida, um olho de criança na cabeça de morte, a luz tremia ali em meio a um fluido novo; [...] Este olho flamejava, parecia queria se lançar sobre don Juan, e ele pensava, acusava, condenava, ameaçava, julgava, falava, gritava, mordia. [...] explodia-se tanta vida neste fragmento de vida que Don Juan espantado recuara, andara pelo quarto, sem ousar olhar aquele olho que ele novamente via sobre as prateleiras, sobre a tapeçaria. [...] por todo lugar brilhavam olhos que latia por ele! (BALZAC, op. cit., p. 29- 30)189 Sem a moldura das narrativas fantásticas do século XIX, onde as vacilações, o sentimento de pavor e a densidade psicológica são mais evidentes, a peça de Molière se enquadraria em um tempo, segundo a reflexão de Castex (Ibid.), lembrando as palavras de Charles Nodier, em que os relatos de sonhos introduzidos (para) [...]despertar ou manter o interesse dramático (pareciam) construídos [...] por homens que nunca sonharam. Com efeito, como nos explica o pesquisador sobre o fantástico na França, à época do domínio da razão no século XVII, a categoria do maravilhoso já se encontrava subordinada ao controle das leis da natureza, do estabelecimento do real sobre o imaginário, da ciência como método especulativo, de maneira que os gêneros que se arrolavam a essa instância do sobrenatural, a exemplo da fábula, do conto de fadas, da lenda, já se apresentam com suas regras internas delimitadas e definidas ao leitor. 188 “Allons, sortons d’ici”. (MOLIÈRE, 1993, p. 186) 189 “Il voyait un oeil plein de vie, un oeil d’enfant dans une tête de mort, la lumière y tremblait au milieu d’un jeune fluide; [...] Cet oeil flamboyant paraissait vouloir s’élancer sur don Juan, et il pensait, accusait, condamnait, menaçait, jugeait, parlait, il criait, il mordait. [...] il éclatait tant de vie dans ce fragment de vie, que Don Juan épouvanté recula, il se promena par la chambre, sans oser regarder cet oeil, qu’il revoyait sur les planchers, sur les tapisseries. [...] partout brillaient des yeux qui aboyaent après lui!” (BALZAC, op. cit., p. 29-30) 185 De que maneira, portanto, a obra de Molière, situada em um contexto histórico-cultural bem definido, poderia flertar com a modalidade do fantástico? A própria definição do conceito suscita debates e impõe desafios para uma sistematização precisa do gênero fantástico e daqueles que orbitam ao seu redor. Em Introdução à literatura fantástica, Tzvetan Todorov intenta encontrar a solução para o problema, pormenorizando as diversas modalidades de gênero literário para chegar a um padrão estrutural mais confiável. A partir de um recorte de contos do século XIX, o crítico propõe uma classificação envolvendo três gêneros, ou cinco, se somarmos àqueles mais dois subgêneros. Inicialmente, a nota distintiva do fantástico estaria no reconhecimento de um evento na narrativa que suscite nos personagens ou no leitor implícito a sensação de dúvida e de hesitação. Algum evento insólito que desafie as leis da natureza e da razão e ponha a narrativa em suspensão. É uma condição imanente à sua estrutura: o leitor deve entrar no texto e dele sair, escolhendo um dos caminhos possíveis que se lhe apesentam ao seu final. Todorov (2008), entretanto, para evitar problemas conceituais, impõe a necessidade de o leitor reconhecer de imediato a distinção entre o efeito provocado pelo fantástico (ou efeito fantástico) e o fantástico enquanto gênero. Aquele apresenta uma extensão mais larga e está intrínseco à própria natureza do fantástico enquanto gênero. O efeito fantástico faz fronteira com outros gêneros, a exemplo do romance negro, durando apenas o instante da hesitação. Entretanto, o segundo, o gênero fantástico, é definido pela persistência desta hesitação que lança o leitor na ambiguidade e faz com que este último escolha entre duas alternativas ao término do texto: a do sobrenatural explicado ou a do sobrenatural aceito. Caberia, então, ao leitor decidir entre uma dessas duas fórmulas que lhe são entregues: a aceitação das leis que regem a realidade conhecida ou a admissão de novas leis que deem conta dos eventos insólitos apresentados. De acordo com Todorov, teríamos, então, o fantástico no limite entre dois outros gêneros: o estranho e o maravilhoso, ou seja, este marcado pela aceitação do sobrenatural, aquele marcado pelas leis da realidade. O estranho guardaria relações de proximidade com o fantástico no sentido de despertar, como este último, sensações extraordinárias como o terror e o medo, característicos da pura literatura de terror. O maravilhoso, por sua vez, é o território do quimérico, do fantasioso, do conto de fadas, onde as leis do sobrenatural já são previamente aceitas pelo leitor. O estruturalista búlgaro propõe ainda intersecções entre os gêneros simétricos do estranho e do maravilhoso e nas quais se encontraria o fantástico puro, ou seja, o fantástico por excelência. Assim, teríamos, segundo Todorov, cinco modalidades correlacionadas, ora mais à 186 esquerda, ora mais à direita, de fantástico: o estranho (estranho-puro), o fantástico-estranho, o fantástico (fantástico-puro), o fantástico-maravilhoso e o maravilhoso (maravilhoso-puro). O fantástico-estranho seria o que convencionalmente se atribuía por “sobrenatural explicado” (Ibid. p. 51)190. Os eventos narrativos estariam marcados pela aparência de incidentes sobrenaturais, mas cujo desenlace reestabeleceria a conexão com a realidade: “Acontecimentos que parecem sobrenaturais ao longo de toda a história, no fim recebem uma explicação racional. Se esses acontecimentos por muito tempo levaram o personagem e o leitor a acreditar na intervenção do sobrenatural, é porque tinham um caráter insólito”. (Ibid.). Já o fantástico-maravilhoso se destacaria pela apresentação de um fundo fantástico, mas cujo desfecho penderia para aceitação do sobrenatural. Seria, ainda, o que mais se assemelharia ao fantástico-puro, uma vez que permanecendo “sem explicação, não racionalizado, sugere-nos realmente a existência do sobrenatural”. (Ibid. p. 58). De acordo com as considerações desenvolvidas acima, seria difícil assentir com a ideia de que Molière intentou, em pleno século XVII, tirar de sua pena uma obra com a arquitetura de gênero fantástico. Mas, por que, então, seria o Festin de Pierre tão solicitado entre os escritores-cultores do fantástico no romantismo francês, a exemplo, de Balzac e Mérimée? Nossa inquietação ainda é maior, quando transpomos as fronteiras e encontramos o mesmo dramaturgo, conhecido de suas comédias, tendo mercado de leitura entre os escritores românticos no Brasil como constatamos no depósito do Gabinete Português de Leitura em Pernambuco. O L’élixir de longue vie, tomando a sistematização proposta por Todorov, aplicar-se- ia em um desses modelos de fantástico, no caso, o puro. A ambiguidade se instala até o desfecho da narrativa, quando a cabeça de Belvidéro morde o cérebro do abade, reforçando a sensação de pavor e ruptura com a realidade evidenciadas já antes na reanimação parcial dos corpos do velho Bartholoméo e do filho. Desde a entrada do conto até o seu arremate, o leitor tem ciência de que as leis que regem a natureza e o mundo dos personagens são aquelas determinadas pela razão e com as quais ele também consente. Entretanto, uma fissura rompe a estabilidade deste “real”, lançando-o na dúvida e cristalizando o efeito fantástico: “Há textos que mantêm a 190 Todorov se refere às denominações “sobrenatural explicado” e “sobrenatural aceito”, partindo da classificação da crítica tradicional a respeito da novela gótica. Segundo o crítico, estariam nesta faixa conceitual respectivamente as obras de Ann Radcliffe e as de Matthew Gregory Lewis, o que equivaleria ao fantástico-estranho e o fantástico- maravilhoso. (Ibid. p. 48). 187 ambiguidade até o fim, o que quer dizer também: além. Fechado o livro, a ambiguidade permanecerá”. (Ibid. p. 50)191. O conto de Balzac já rendeu vários estudos e todos são unânimes em atribuir uma gama variada de intertextos que auxiliaram no seu processo de confecção192. Da inspiração no Frankenstein ou Prometeu moderno de Mary Shelley aos Elixires do diabo de E.T.A. Hoffmann, passando pelo processo de faustização solicitado a Goethe: A questão das fontes se encontra inegavelmente posta com um texto como L’élixir de longue vie. A aquisição da erudição balzaquiana é a este respeito considerável. A questão da influência de Hoffmann é particularmente forte em Balzac em 1830 e se manifesta de maneira difusa no L’élixir de longue vie.” [...] L’élixir de longue vie é, com a pedra filosofal, uma das duas pesquisas do Prometeu moderno segundo Mary Shelley. [...] A questão do mito e de seu tratamento é complexa. O mais evidente é a ‘faustização’ de Don Juan. (BRUNEL, 1999, p. 49)193 A inspiração de Balzac em Molière também não é mínima e, em nosso entendimento, menos ainda casual. O Festin de Pierre se inscreve num roteiro de produção de textos fantásticos do romantismo nos anos 1830, e mesmo depois, que viria bem a calhar como sugestão literária. Com efeito, se atentarmos para o elemento insólito da peça dramática não estranharíamos a concessão feita pelos escritores no século XIX a uma comédia do remoto classicismo francês. A rigor, as comédias do século XVII e XVIII, feitas para divertir e moralizar, não se enquadrariam no moderno gênero fantástico cultivado no século XIX. Estariam, antes, imbricadas com o maravilhoso ou o sobrenatural em que o pacto de aceitação da ruptura com a 191 É evidente que a classificação proposta por Todorov responde a um recorte de contos e novelas majoritariamente francesas do século XIX em um momento em que a definição do conceito de fantástico se encontrava já estabelecida e o próprio escritor reconhece as limitações de sua adequação à realidade do fantástico empregado nas narrativas do século XX como as desenvolvidas nos textos de Franz Kafka. Tendo em vista o nosso recorte direcionado ao estudo da recepção brasileira de impressos e periódicos da literatura francesa na primeira metade do século XIX, julgamos valiosa fonte de crítica literária para elucidar a modalidade de fantástico que se praticava entre os nossos escritores românticos. 192 Destacamos a tese de Marli Cardoso dos Santos em Balzac e os mitos da modernidade que estuda as relações do mito de Fausto e Don Juan em dois contos do contista francês: “Le peau de chagrin” e “L’élixir de longue vie”; e o ensaio de Pierre Brunel sobre o mito de Don Juan na obra de Balzac, material recolhido para figurar no seu dicionário. 193 “La question des sources se trouve indéniablement posée, avec un texte comme L’élixir de longue vie. L’acquis de l’érudition balzacienne est à egard considérable. La question de l’influence de Hoffmann est particulièrement forte chez Balzac en 1830 et se manifeste de façon diffuse dans L’élixir de longue vie. [...] L’élixir de longue vie est, avec la pierre philosophale, l’une des deux recherches du Prométhée moderne selon Mary Shelley. [...] La question du mythe et de son traitement est complexe. Le plus évident est la ‘faustisation’ de Don Juan”. (BRUNEL, 1999, p. 49) 188 realidade, estabelecido na relação entre leitor/plateia e obra/palco, já estava predefinido; mais ainda se pensarmos o conteúdo moral e pedagógico da peça iniciada em Tirso, na qual a intrusão do sobrenatural religioso é acompanhada de um desfecho admoestador. Pela óptica desse leitor/espectador que se punha face à cena, enquadraríamos a peça na definição proposta por Todorov sobre o maravilhoso: No caso do maravilhoso, os elementos sobrenaturais não provocam qualquer reação particular nem nas personagens, nem no leitor implícito. Não é uma atitude para com os acontecimentos narrados que caracteriza o maravilhoso, mas a própria natureza desses acontecimentos. (op. cit., p. 60) Porém, a obra de Molière reserva uma peculiaridade. Excetuando a figura de Sganarelle, que alegoriza o misticismo popular na peça, Dom Juan é um personagem cuja formação ilustrada de libertino materialista, guardadas as proporções, mantém uma aproximação identitária com o modelo de homem do século XIX. Num mundo onde o avanço técnico da ciência e o progresso material despertado pela Revolução Industrial se encontravam relativamente consolidados, a razão é ainda a medida do pensamento humano. As leis da física são agora justificadas pela prática do empirismo e as ciências como a biologia e a química estão na ordem do dia, dando um salto à frente ao método especulativo empregado no século XVII. Basta atentarmos para a atmosfera na qual o personagem do conto de Balzac se encontra e a atribuição a que ele dá quando surpreendido pela falsa impressão assombrosa causada pelo pavoroso rangido de um cuco mecânico: De repente, um barulho agudo, semelhante ao ranger de uma mola enferrujada, rompera este silêncio. Don Juan, surpreso, quase deixara cair o frasco. Um suor, mais frio que o aço de um punhal, saíra de seus poros. Um galo de madeira pintada surgira acima de um relógio e cantara três vezes. Era uma dessas engenhosas máquinas equipadas pelas quais os sábios desta época se deixavam despertar à hora marcada para seus trabalhos. A aurora já se avermelhava nas janelas. [...] O velho relógio estava mais fiel em seu serviço do que ele estava no cumprimento de seus deveres com Bartholoméo. Este mecanismo se compunha de madeira, de polias, de cordas, de engrenagens, ao passo que ele tinha este mecanismo particular ao homem e denominado coração. (BALZAC, op. cit., p. 24-25)194 194 “Tout à coup un bruit aigre, semblable au cri d’un ressort rouillé, rompit ce silence. Don Juan, surpris, faillit laisser tomber le flacon. Une sueur, plus froide que ne l’est l’acier d’un poignard, sortit de ses pores. Un coq de bois peint surgit au-dessus d’une horloge et chanta trois fois. C’était une de ces ingénieuses machines à l’aide desquelles les savants de cette époque se faisaient éveiller à l’heure fixée pour leurs travaux. L’aube rougissait déjà les croisées. […] La vieille horloge était plus fidèle à son service qu’il ne l’était dans l’accomplissement de ses devoirs envers Bartholoméo. Ce mécanisme se composait de bois, de poulies, de cordes, de rouages, tandis que lui avait ce mécanisme particulier à l’homme, et nommé un cœur”. (BALZAC, op. cit., p. 24-25) 189 Em L’élixir de longue vie, o mundo prometido pelo progresso científico toma conta do ambiente. É a mecânica dos corpos representada pelo relógio automático que dá sentido à impressão vacilante de Don Juan Belvidéro, pouco depois deste haver presenciado a morte de seu pai. O que poderia provocar hesitação, logo retoma sua aparência trivial. As leis da natureza são aceitas e o personagem como o leitor têm consciência delas. Somente depois com o evento da reanimação do olho de Bartholoméo é que se provoca uma ruptura com essas leis, levando à dúvida o leitor, à intrusão do fantástico. Como homem atento à realidade circunstante, Dom Juan de o Festin de Pierre também se deixa guiar por essa realidade imediata a qual este apreende pelos sentidos. Suas reflexões são mediadas pelo juízo crítico da observação da natureza, das coisas em seu entorno, ponderadas pela razão e pelo limite que o personagem impõe entre esta razão e o fenômeno sobrenatural. É assim que ele reage a propósito da discussão com o lacaio sobre o incidente insólito constatado pelos dois à ocasião do meneio da cabeça da misteriosa estátua, anuindo- lhes ao convite feito à sua ceia: “O que quer que seja, deixemos isso, é uma bagatela, e nós pudemos ter sido enganados por uma falsa luz ou surpreendidos com qualquer vapor que nos tenha turvado a vista”. (MOLIÈRE, 1993, p. 187)195 Como se percebe, Dom Juan não se deixa induzir pela percepção dos sentidos, atribuindo ao estranho fenômeno como produto de algum efeito luminoso que lhes havia perturbado a vista. Para ele não há qualquer ruptura da realidade imanente, dando até pouca importância ao caso. A postura do protagonista também tem muito a ver com sua natureza de esprit fort, pouco afeito à extensão de delongadas discussões sobre qualquer matéria, Dom Juan é um materialista epicurista, e vive da realidade presente apreendida pelos sentidos, sem se importar com as questões de ordem metafísica. Isso, porém, não exclui o conflito observado entre o enunciado e a enunciação de suas palavras. No ato de sua fala há um nítido contraste com aquilo que se apresenta como discurso ao seu interlocutor. Sganarelle, inclusive, bem se apercebe desse instante de inconsistência das ideias do amo: “Eh, senhor! Não procureis desmentir o que vimos com estes dois olhos”. (Ibid.)196 Momento em que Dom Juan se impacienta e se vale da condição de amo, encerrando a discussão. Entretanto, é exatamente na cena anterior a este diálogo travado com Sganarelle, a do evento insólito com a estátua (cena V do ato IV), que desperta no espectador um certo receio 195 “Quoi qu'il en soit, laissons cela, c'est une bagatelle, et nous pouvons avoir été trompés par un faux jour, ou surpris de quelque vapeur qui nous ait troublé la vue”. (MOLIÈRE, 1993, p. 187) 196 “Eh! Monsieur, ne cherchez point à démentir ce que nous avons vu des yeux que voilà.” (Ibid.) 190 sobre as convicções e a segurança do protagonista em sua opinião já formada sobre o sobrenatural. A frase curta e lacônica “Vamos, saíamos daqui” é intrigante, e não pode ser compreendida como sinal deliberado de indiferença do personagem. Ela pode ser até minorada deste efeito de inquietação produzido no herói face ao desvelamento do sobrenatural pelo comentário que Molière põe na boca do lacaio para suscitar o efeito cômico à plateia no fechamento do ato: “Eis aí os esprits forts que não querem crer em nada” (Ibid. p. 186)197. Mas, ainda, um momento que denuncia a perturbação do herói como reconhece a própria crítica moderna francesa ao minuciar o tratamento dado ao episódio em cena: Sobram as reações do herói mediante às manifestações do sobrenatural. Na primeira (o aceno de cabeça feito pela Estátua) ele responde por uma escapatória (“Vamos, saiamos daqui”), que os atores interpretam às vezes com um longo silêncio – tradução do embaraço (legítimo, da mesma forma!) diante do qual ele se encontra. Mas ele se refaz rápido e, preocupado em dominar sua perturbação intelectual (ele o deve, se ele é bem destes “esprits fort” que desencorajam Sganarelle), fornece-lhe, depois do entreato, uma explicação de natureza científica. (BIDEAUX, op. cit., p. 644)198 [grifos nossos] Embora não estivéssemos no modelo de sociedade oitocentista como aquela dominada pelo progresso técnico-científico e com menor cerceamento das liberdades individuais decorrente da separação da Igreja e do Estado e que fabricaram as condições do surgimento do moderno gênero fantástico, o texto de Molière, dado as especificidades das circunstâncias histórico-culturais que modularam a natureza de seu personagem, expõe-nos o entrechoque de um incrédulo com uma realidade que não se sustenta mais pelas leis da própria razão de que este se vale. Há em o Festin de Pierre, não um texto estritamente fantástico, mas o prenúncio, digamos, de uma modalidade de gênero que também rompe com as relações de causalidade e expõe seu herói face ao insólito. É o efeito do fantástico que se explora, gerando a dúvida tão somente nele, o herói, e mais ninguém. Uma amostra, deslocada de seu tempo, de uma manifestação embrionária de fantástico revelada pelo efeito que este produz em seu herói e ao qual se prestará como modelo muito apreciado e conveniente aos românticos. Esta é, por sinal, a compreensão que o século XIX, pelo menos aquele de nosso corte de leitura, apresentará na 197 “Voilà de mes esprits forts, qui ne veulent rien croire.” (Ibid. p. 186). 198 “Restent les réactions du héros devant les manifestations du surnaturel. À la première (le signe de tête fait par la Statue) il répond par une échappatoire (‘Allons, sortons d’ici’), que les comédiens doublent parfois d’un long silence – traduction de l’embarras (legitime, tout de même!) devant lequel il se trouve. Mais il se reprend vite et, soucieux de dominer son trouble intellectuel (il le doit, s’il est bien de ces ‘esprits forts’ qui découragent Sganarelle), il lui fournit, après l’entracte, une explication de nature scientifique”. (BIDEAUX, op. cit., p. 644). [grifos nossos] 191 recepção da obra reencenada nos palcos franceses dois séculos depois de sua censura decretada pelo moralismo religioso: Que peça estranha como o Don Juan que foi encenado na outra noite e como se concebe bem que os clássicos não pudessem suportá-la no seu estado primitivo! Don Juan, à qual Molière deu o título de comédia é propriamente falando um drama e um drama moderno em toda força do termo. [...] Jamais Molière fez nada de mais franco, de mais livre, de mais vigoroso, de mais ousado; o fantástico, este elemento de um emprego tão difícil para o francês cético [...] é tratado com uma seriedade e uma crença bem raras entre nós. A estátua do Comendador produz um efeito de terror que não se superou no teatro. O barulho de seus calcanhares de mármore deixa correr um arrepio sobre a carne como o sopro da visão de Jó: nada é mais assustador que este convidado de pedra com seu traje de imperador romano e seu penacho ornado; nenhuma tragédia chegou a esta intensidade de pavor. Falai-nos poetas cômicos para ser terríveis! Don Juan, tal como entendeu Molière, é ainda mais ateu que libertino. [...] Em nossos dias, o caráter de Don Juan, que cresceu com Mozart, lord Byron, Alfred de Musset e Hoffmann, é interpretado de uma maneira mais humana, mais larga, mais poética; ele tornou-se, de certa maneira, o Fausto do amor. (Histoire de l’art dramatique en France, GAUTIER, 1859, p. 15)199 Théophile Gautier, um dos mais prolíficos escritores do fantástico na França, escrevendo suas impressões sobre a encenação da comédia para o jornal La Presse de 11 de fevereiro de 1847 (TORTONESE, 1999, p. 431), não deixa de registrar os aspectos sobrenaturais sensíveis ao drama. Sem esquecer de mencionar a contribuição dos escritores modernos para o enriquecimento do mito, agora mais humanizado e “faustizado”, não esquece também de pintá-lo com as tintas do fantástico, acentuando-lhe as impressões ficadas pela performance do Comendador e a seriedade com a qual o gênero se viu tratado pelo gênio de Molière e recuperado na cena francesa daquele ano. Gautier seguia, pois, uma terceira via da representação mítica do herói sevilhano. No século XIX, Don Juan teria os traços modificados pela “faustização” e “maranização” do mito, 199 “Quelle pièce étrange que le Don Juan tel qu'il a été exécuté l'autre soir, et comme on conçoit bien que les classiques n'aient pu la supporter dans son état primitif! Don Juan, auquel Molière a donné le titre de comédie, est, à proprement parler un drame et un drame moderne, dans toute la force du terme. [...] Jamais Molière n'a rien fait de plus franc, de plus libre, de plus vigoureux, de plus hardi; le fantastique, cet élément d'un emploi si difficile pour le Français sceptique […] est traité avec un sérieux et une croyance bien rare chez nous. La statue du Commandeur produit un effet d'épouvante qu'on n'a pas surpassé au théâtre. Le bruit de ses talons de marbre fait courir un frisson sur la chair comme le souffle de la vision de Job: rien n’est plus effrayant que ce convive de pierre avec son habit d’empereur romain et son aigrette sculptée; aucune tragédie n'arrive à cette intensité d'effroi. – Parlez-nous des poètes comiques pour être terribles! Don Juan, tel que l'a compris Molière, est encore plus athée que liberti. [...] De nos jours, le caractère de Don Juan, agrandi par Mozart, lord Byron, Alfred de Musset et Hoffmann, est interprété d'une façon plus humaine, plus large, plus poétique ; il est devenu, en quelque sorte, le Faust de l'amour. (Histoire de l’art dramatique en France, GAUTIER, 1859, p. 15) 192 mas também pelo apelo comercial do fantástico, e quiçá do gótico, que tomou a França de 1830 e permaneceria ainda no gosto corrente dos escritores depois. Partindo dos modelos inspiradores de Hoffmann e Goethe, Balzac e Mérimée dão uma nova dinâmica ao tratamento do mito literário de extração molieriana ao revitalizá-lo pela moda do fantástico que conhecerá depois novos seguidores: Por volta de 1830, o fantástico se põe ao serviço de intenções mais profundas: a crueldade de um Villiers, as obsessões de um Maupassant contrastam com a engenhosidade fria de um Mérimée; as implacáveis análises às quais se entrega um Nerval atormentado pela loucura nos últimos anos de sua vida, surpreendem a quem tem começado a ler suas primeiras histórias, escritas em um tempo em que, cedendo à moda, imitava sem muita convicção os contistas alemãs. (CASTEX, op. cit., p. 8)200 A imposição do gênero fantástico dos anos 1830 muda as feições do mito, extraindo dele os aspectos extraordinários do motivo do revenant e das reações que este desperta no herói face ao insólito. Do mesmo modo, o texto de Molière se verá redefinido, substituindo o caráter cômico do original pela carga dramática presente nos acentos de revolta e pessimismo que o Romantismo lhe conferiu. Don Juan, a partir de então, é o revoltado em busca do alcance do sublime, da realização de um ideal amoroso jamais satisfeito: o “Fausto do amor”: “[...] É que Don Juan tinha o direito de obter seu ideal e de saciar esta imensa sede de amor que devorava suas largas veias, pois todo desejo deve ser satisfeito”. (GAUTIER, op. cit., p. 16)201 Evidentemente, o apreço pelo fantástico e a redefinição da imagem do herói tão largamente explorados pelos românticos na Europa, a exemplo de Balzac, Mérimée e Gautier, e aqui nas Américas e, em especial, no Brasil, com escritores como Álvares de Azevedo, Fagundes Varela e Castro Alves, tem a precedência presidida pelo obra de E. T. A. Hoffmann com o seu Don Juan: Eine fabelhafte Begebenheit, die sich mit einem reisenden Enthusiasten zugetragen (Don Juan: fabuloso acontecimento que ocorreu a um entusiasta viajante). Nascido em 1776 em Königsberg, antiga Prússia, Ernst Theodor Amadeus Hoffmann foi um dos escritores mais eminentes de seu tempo. Tomando seu nome “Amadeus” emprestado ao gênio de Mozart, Hoffmann desenvolveu uma carreira artística entre a literatura e a música. Ele 200 “Hacia 1830, lo fantástico se pone al servicio de intenciones más profundas: la crueldad de un Villiers, las obsesiones de un Maupassant contrastan con la ingeniosidad fría de Mérimée; los implacables análisis a los que se libra un Nerval atormentado por la locura en los últimos años de su vida, sorprenden a quien ha comenzado por leer sus primeros relatos, escritos en un tiempo en el que, cediendo a la moda, imataba sin mucha convicción a los cuentistas alemanes”. (CASTEX, op. cit., p. 8) 201 “[...] C’est que Don Juan avait le droit d’obtenir son idéal et d’apaiser cette immense soif d’amour qui dévorait ses larges veines, car tout désir doit être satisfait”. (GAUTIER, op. cit., p. 16) 193 mesmo escreveu uma ópera, Undine, trazendo assim uma enorme contribuição na vulgarização dos conceitos e do universo desta arte adaptados ao domínio literário pelo mérito de seus contos. Sua adesão ao segundo momento do romantismo na Alemanha, afastado da escola de Iena conduzida por Goethe e Schiller, aproxima-o de Tieck, Jean-Paul e Arnin, autores que se consagraram pela promoção de uma tradição literária ancorada no folclore e mitos populares germânicos. Forçoso é reconhecer que, em geral, a ideia de que fazemos de Hoffmann é ligada a uma tradição construída pela imprensa francesa no final dos anos 1820, influenciada pela perda de interesse pelo romance negro e literatura gótica praticados na Inglaterra. Enxergando aí um sinal aberto para renovação do gênero, o autor de Fantasiestücke in Callots Manier (Quadros de fantasia à maneira de Callot) de 1814, vertido em França por Contes Fantastiques (Contos Fantásticos), não tardaria a ser apresentado no meio dos românticos franceses pelo seu primeiro tradutor, Loève-Veimars. Como sabemos, a acolhida do romantismo alemão na França foi marcada pelo programa estético difundido por Madame de Staël vinte anos antes à razão da publicação de seu ensaio literário De l’Allemagne (1813). Como detalha Lambert: Por meio de Mme de Staël, as letras francesas se familiarizaram tão bem quanto mal com uma série de escritores do Além-Reno. Mme de Staël e seus sucessores procederam de maneira eclética em sua descoberta das culturas e das literaturas estrangeiras. Para louvar o país de Goethe, seria necessária à Mme de Staël a proteção da Inglaterra, que parecia já menos “bárbara” naquele momento; para introduzir na França Klopstock, Goethe, Schiller, a Restauração teria precisão da garantia de Mme de Staël. As obras estrangeiras marcadas pelo classicismo encontraram menos oposição que “a nova escola” do Além-Reno. (1979, p. 15)202 Desta maneira, a imprensa francesa desempenhou o papel de difusor do contista prussiano por via das traduções de Loève-Veimars. E. T. A. Hoffmann chegou a ser lido em Paris em 1830, justo antes que seu livro fosse publicado pelo editor-livreiro Eugène Renduel203 202 “À la suite de Mme de Staël, les lettres françaises se sont familiarisées, tant bien que mal, avec une série d’écrivains d’Outre-Rhin. Mme de Staël et ses successeurs ont procédé de manière éclectique dans leur découverte des cultures et des littératures étrangères. Pour vanter le pays de Goethe, il fallut à Mme de Staël la caution de l’Angleterre, qui paraissait déjà moins ‘barbare’ à ce moment; pour introduire en France Klopstock, Goethe, Schiller, la Restauration aura besoin de la caution de Mme de Staël. Les œuvres étrangères marquées par le classicisme rencontreront moins d’opposition que la ‘nouvelle école’ d’Outre-Rhin”. (1979, p. 15) 203 RENDUEL, Eugène. Contes Fantastiques de E. T. A. Hoffmann. Paris, 1830. Disponível no site: 204 Trata-se do prefácio preparado para a versão francesa da obra do autor prussiano “Sur Hoffmann et les compositions fantastiques” (Sobre Hoffmann e as composições fantásticas) publicada inicialmente na Revue de Paris sete meses antes. 195 autores no tocante aos motivos de suas leituras acadêmicas nos fornece hoje resultados relevantes. O Fabuloso acontecimento que ocorreu a um entusiasta viajante, ainda que arrolado aos contos de Fantasiestücke sob o estigma da moda do fantástico em França, é, com efeito, uma obra singular ao talento de Hoffmann pela proposição que este formula sobre a natureza trágica de que se reveste o personagem literário. Para o contista prussiano, Don Juan representa o anseio de toda uma humanidade privada do conhecimento sobre os mistérios da vida, e que faz de sua corrida frenética a suas conquistas amorosas um paliativo para o alcance de verdades cósmicas cuja falta lhe oprime. Numa clara aproximação com o mito fáustico, Hoffmann abre os caminhos para que Grabbe e o austríaco Lenau em, respetivamente, Don Juan und Faust (Don Juan e Fausto) de 1823 e Don Juan (Fragment) de 1844 deem sequência ao mito literário na Alemanha com o enfoque voltado para o drama existencial enfrentado pelo personagem em sua solitária quête mediante os mistérios que sondam a criação. Inspirado no modelo da ópera mozartiana para o mito literário, Hoffmann estrutura seu conto em três partes. Na primeira seção, a narrativa relata a experiência de um viajante, entusiasta do Don Giovanni, que, hospedado em um quarto de hotel contíguo a uma sala de teatro, é despertado pelos sons desconcertados do arranjo da orquestra que antecedem a abertura da peça. De imediato, o leitor se dá conta do primeiro indício da atmosfera de fantástico que recobre o conto: o hóspede entusiasta – narrador-personagem do texto – comunica ao leitor que havia bebido à mesa da hospedaria. Sob o efeito do álccol, portanto, é possível justificar os eventos insólitos que pontuam os fatos narrados pelo protagonista. Como espectador, o entusiasta acompanha o primeiro ato da cena de Mozart, passando em revista os personagens que contracenam no palco: Masetto, Zerlina, Leporello, Elvira. Porém, nenhum deles fazem mais figura que o enigmático Don Juan e a romântica Dona Ana. É sobre a impressão que estes últimos causam no narrador que se desenvolve o enredo narrativo. Vale salientar que o domínio sobre o qual Hoffmann detem a respeito dos temas da ópera encontra-se plasmado pelo senso crítico e apurado do personagem entusiasta. A apropriação do conhecimento sobre o drama operístico aproxima a música do canto dos atores ao velho tema literário, confiando ao narrador uma capacidade de avaliação sobre aquela arte. É esta percepção distintiva sobre o Don Giovanni de Mozart que legitima e autoriza o entusiasta viajante às considerações de crivo crítico sobre os personagens e os nuances da peça, além da compreensão profunda do drama que o torna íntimo à paixão que segreda uma de suas personagens: Dona Ana. 196 A aparição da filha do Comendador no conto de Hoffmann assinala o segundo indício da fantasia por que passa o narrador. O evento incomun se dá no curso do primeiro ato quando aquela aparece a este no exato momento de uma de suas perfomances no palco. A presença simultânea da prima-dona, há pouco no tablado, e, quase instantaneamente agora, ao pé do camarote em que se encontra o narrador, produz o efeito fantástico da cena insólita. Efeito este passível de dúbia interpretação, ora pelo assentimento da presença real de Dona Ana ao narrador, ora pela compenetração a que devota este à atuação da atriz que interpreta a personagem no palco. Nesta hesitação proposital, está a chave para o consentimento do fantástico do conto: Era Dona Ana indiscutivelmente. Não me veio a possibilidade de considerar como ela poderia estar ao mesmo tempo no teatro e no meu camarote. Assim como o sonho feliz une as coisas mais estranhas e, então, uma crença devota compreende o sobrenatural e o liga, sem cerimônia, aos denominados fenômenos naturais da vida, assim eu também próximo de maravilhosa mulher, caí numa espécie de sonambulismo no qual reconheci as secretas relações que intimamente me uniam a ela e que, mesmo com sua aparição no teatro, não pudera separa-se de mim. (Don Juan – HOFFMANN, 2010, p. 60- 61).205 Entre a dúvida decorrente da possibilidade de conversação real com a personagem da peça no camarote e o estado de embriaguez provocado, muito mais, pela música absorvente das árias e dos recitativos que pelo domínio do álccol, o colóquio entre o narrador e Ana termina ao anúncio do início do segundo ato, com esta última se despedindo daquele sob estranha palidez que lhe cobre o rosto. Ao desenlace do drama no segundo ato, o narrador ainda se encontra sob esta impressão de lividez que toma o semblante da prima-dona, a que ele atribui ser resultado do motivo profundo que une esta ao assassino de seu pai. A segunda parte do conto concentra a leitura-interpretativa do narrador sobre as implicações profundas que motivaram o Don Giovanni de Mozart. Recolhido a seu quarto, à meia-noite, o hóspede entusiasta do drama se dirige novamente ao camarote 23 onde havia 205 “Es war Donna Anna unbezweifelt. Die Möglichkeit abzuwägen, wie sie auf dem Theater und in meiner Loge habe zugleich sein können, fiel mir nicht ein. So wie der glückliche Traum das Seltsamste verbindet und dann ein frommer Glaube das Übersinnliche versteht und es den sogenannten natürlichen Erscheinungen des Lebens zwanglos anreiht, so geriet ich auch in der Nähe des wunderbaren Weibes in eine Art Somnambulism, in dem ich die geheimen Beziehungen erkannte, die mich so innig mit ihr verbanden, daß sie selbst bei ihrer Erscheinung auf dem Theater nicht hatte von mir weichen können”. (Don Juan – HOFFMANN, 2010, p. 60-61). 197 desfrutado da presença singular da filha do Comendador. Ali dispõe de um tinteiro para escrever uma carta ao amigo Theodor, interlocutor virtual a quem o narrador se reporta no conto. O criado serve-lhe o ponche que o entusiasta havia encomendado, mais uma vez é o argumento possível para justificar o perfume que este último sentira no camarote às duas horas badaladas e que denunciava a presença da atriz no ambiente. A narrativa se fecha com um ligeiro epílogo marcado pela conversação do narrador com outros espectadores da peça na manhã seguinte. É por eles que o entusiasta fica sabendo que a intérprete de Dona Ana na noite passada havia falecido pontualmente às duas horas da manhã. Como se percebe pelo desfecho do conto que, igualmente a outros indícios narrativos, sugere uma dupla interpretação dos fatos relatados pelo entusiasta, a obra de Hoffmann explora a hesitação comum ao fantástico, imprimindo novo sentido ao mito literário que rapidamente será assimilado por sucessores do gênero como Balzac, Mérimée e Gautier. Entretanto, como havíamos afirmado, esta é apenas uma das contribuições da ressignificação do mito dada pelo escritor prussiano. A outra, e talvez a mais expressiva para a renovação das sequências literárias sobre o assunto, está mais próxima à feição moderna que concebemos a imagem mítica de Don Juan representado sob os traços do dramatismo de nossa humanidade transviada após a queda adâmica. A dimensão humana e trágica de Don Juan que se choca com as forças divinas às quais investem contra ele estreita o personagem aos mitos da tradição ocidental, eleitos para releitura nas obras dos escritores românticos, e que tocam o motivo da danação e da queda como é o caso de Prometeu, Caim, Ahasvérus e Fausto. Há, aliás, uma afinidade do sedutor sevilhano com este último herói que reforça a faustização no conto de Hoffmann pelos contornos que guarda Don Juan com o aspecto diabólico do Mefistófeles de Goethe: [...] o estranho jogo de um músculo frontal por sobre as sobrancelhas traz, por alguns segundos, algo de Mefistófeles à sua fisionomia, que, sem roubar a beleza ao rosto, provoca um involuntário arrepio. (HOFFMANN, op. cit., p. 57)206 A reinterpretação do mito – bebido em Mozart e Da Ponte – proposta por Hoffmann confere ao personagem uma natureza diabólica, questionadora, contudo, desfigurada da 206 “[...] das sonderbare Spiel eines Stirnmuskels über den Augenbrauen bringt sekundenlang etwas vom Mephistopheles in die Physiognomie, das, ohne dem Gesicht die Schönheit zu rauben, einen unwillkürlichen Schauer erregt”. (HOFFMANN, op. cit., p. 57) 198 concepção medieval cristã do demônio perversor, mas, sobretudo, assentida na imagem do anjo de luz do Velho Testamento antes de seu banimento celeste: Don Juan não tem nada com um homem comum. Ele traz, ao contrário, a marca de uma extrema distinção: a natureza o proveu, “como o mais caro de seus filhos queridos, de tudo que eleva o homem no seu íntimo parentesco com o divino”. Daí seu esplendor físico, seu brilho que podem levar a pensar naquele de Lúcifer antes que fosse tornado Satã. (BRUNEL, 1999, p. 469)207 Segundo os esclarecimentos do crítico supracitado, Don Juan, porém, será atingindo pelo selo do diabo, opondo-se à celestial Dona Anna, a imagem do amor ideal tantas vezes perseguida pelo sedutor sevilhano e encontrada, contudo, já muito tarde: Insatisfeito, ele vai procurar a satisfação no amor, e vai correr sem parar de uma bela mulher a outra. [...] Quem é Ana, efetivamente ? Ela é o simétrico feminino de Don Juan. [...] Mas ele a encontrou muito tarde – e este “muito tarde” está no centro de sua tragédia. (Ibid., p. 470)208 A recriação hoffmaniana para o mito de Don Juan trará, portanto, uma nova faceta à tradição literária de seus antecessores ao propor agora essa busca cósmica e sede de infinito do herói cuja satisfação se realiza na imagem de uma completude só possivel no alcance do ideal feminino. A nostalgia do infinito, perdido pela queda e pela danação do sedutor, encontrará um refrigério no ideal amoroso a qual Don Ana encarna na peça de Mozart. É, por ela, que Don Juan pode reatar o laço rompido com a sua natureza originária divina, uma vez que a mulher ideal redimiria o sedutor para os transportes com o sagrado: “o que nos coloca em relação imediata com o sobrenatural” (HOFFMANN, 2010, p. 67)209. Embora, para o Don Juan de Hoffmann, a possibilidade de redenção apareça em hora muita avançada e demais aprazada para um arrependimento sincero mediante sua já anunciada perdição da alma e, sobretudo, o peso de faltas imperdoáveis, o motivo será simpatizante aos 207 “Don Juan n’a rien d’un homme vulgaire. Il porte au contraire la marque d’une extrême distinction: la nature l’a pourvu, ‘comme le plus cher de ses enfants bien-aimés, de tout ce qui élève l’homme dans son intime parenté avec le divin’. D’où sa splendeur physique, son rayonnement qui peuvent faire penser à celui de Lucifer avant qu’il ne soit devenu Satan”. (BRUNEL, 1999, p. 469) 208 “Insatisfait, il va chercher la satisfaction dans l’amour, et il va fuir sans cesse d’une belle femme vers une autre. [...] Qui est Anna, en effet ? Elle est le symétrique féminin de Don Juan. [...] Mais il l’a rencontré trop tard – et ce ‘trop tard’ est au centre de sa tragédie”. (Ibid., p. 470) 209 “die uns mit dem Überirdischen in unmittelbaren Rapport setzt.” (HOFFMANN, 2010, p. 67) 199 continuadores do mito literário no romantismo europeu e nas Américas. A apropriação do personagem em sua corrida deseperada para atingir o êxtase da paixão amorosa será modelar nas sequências literárias com a epopeia inacabada de Lord Byron, Don Juan (1819-1824), na qual o andaluz conquistador é mais vítima desafortunada do malogro de suas paixões, e com os poemas amorosos de Alfred de Musset na França, dos quais Namouna é o mais ilustrativo. Neste último, aliás, a inspiração em Hoffmann é mais que confessa como dão mostra estes versos da identidade com o contista germânico: Quanto ao finório francês, ao Don Juan comum, Bêbado, rico, alegre, zombando o homem de pedra, Perguntando em todos os lugares onde achar o vinho bom, Caçoando senhor Dimanche, e dizendo a seu pai Que seria melhor sentar para lhe pregar um sermão, É a sombra de um finório que não vale Valmont. É dele o maior, o mais belo, o mais poético, Que ninguém fez, com o qual Mozart sonhou, Que Hoffmann viu passar, ao som da música, Sob um brilho divino de sua noite fantástica, Admirável retrato que ninguém acabou, E que em nosso tempo Shakespeare teria achado. (Namouna – MUSSET, 2009, p. 260-61)210 A moda do fantástico e do byronismo europeu veio tomar de assalto também os versos de Alfred de Musset. No contexto das Américas, em especial, no Brasil, o byronismo será a pedra de toque da geração de Álvares de Azevedo que pôde recolher essa tradição do mito em Hoffmann, Byron e Musset em uma obra adaptada às condições de produção de nosso romantismo local. Nos próximos capítulos, dedicaremos ao estudo de outro escritor brasileiro, cultor do donjuanismo, e objeto maior de nossa tese, que igualmente grassou na exploração do mito literário pelo viés amoroso, assim como também, pelo culto do gótico e do fantástico. Antevisto como o poeta dos escravos e eternamente cantor das paixões eróticas, esta é uma das facetas, pouco, e até renegadas, do mito literário em Castro Alves : a do escritor entusiasta do 210 “Quant au roué français, au Don Juan ordinaire,/ Ivre, riche, joyeux, raillant l’homme de pierre,/ Ne demandant partout qu’à trouver le vin bon,/ Bernant monsieur Dimanche, et disant à son père/ Qu’il serait mieux assis pour lui faire un sermon,/ C’est l’ombre d’un roué qui ne vaut pas Valmont./ Il en est plus grand, plus beau, plus poétique,/ Que personne n’a fait, que Mozart a rêvé/ Qu’Hoffmann a vu passer, au son de la musique,/ Sous un éclair divin de sa nuit fantastique,/ Adimirable portrait qu’il n’a point achevé,/ Et que de notre temps Shakespeare aurait trouvé”. (Namouna – MUSSET, 2009, p. 260-61) 200 gênero fantástico. Vivendo em uma geração onde o exercício crítico-literário nos jornais era bastante intenso, Castro Alves pôde ter um contato direto com a moda vigente desde 1830 na França e que ganhava força ainda nos círculos acadêmicos de São Paulo e Recife. Propuseremos na análise de poemas do autor baiano e na revisitação a escritores epigônicos esquecidos da crítica literária contemporânea um novo olhar sobre o mito literário em Castro Alves. Para isso, resgataremos no próximo capítulo os textos com os quais o poeta teve contato e aos quais disponibilizamos apenso na seção de anexos deste trabalho. Mostraremos como esse lado perverso do mito literário de don Juan também vingou em seus textos iniciais. Essa tendência, encontrada na moda vigente dos contos fantásticos, de que Hoffmann, Balzac, Mérimée e, depois, Gautier, são a referência, tem ressonância nos escritos do baiano de sua estada no Recife e em São Paulo. Dedicar-nos-emos, portanto, a estudar essas produções do escritor nas quais a atmosfera noturna é o cenário invocado pelo autor. 201 CAPÍTULO IV - O MITO DE DON JUAN EM CASTRO ALVES: O GÓTICO, O FANTÁSTICO E O DRAMA 202 Nos dois primeiros capítulos de nosso trabalho, dedicamo-nos à revisão e à recepção da obra literária de Castro Alves, bem como de sua fortuna crítica consolidada, a fim de rastrear factíveis evidências de leitura do mito de Don Juan realizada pelo poeta. Discutiremos, agora, a manifestação desses empréstimos literários na expressão da prosa, na forma do conto, da crônica e do teatro romântico deixados pelo escritor. Mais do que apontar as incidências do mito nos textos castroalvinos, interessa-nos entender como e de que forma essas versões literárias íntimas a Castro Alves contribuíram à criação de uma obra, a um só tempo, tributária e renovadora da tradição de seus antecessores. Contemplaremos, para isso, três trabalhos em prosa que julgamos alicerçados no mito donjuanino de viés gótico-fantástico. Essas produções, além de revelarem uma fatura literária pouco estudada do escritor, tornam-se aqui importantes por evocarem o mito de Don Juan pelas imagens, argumentos ou construções verbais alusivas a uma ou mais versões revisitadas pelo autor. Boa parte delas permanece, até hoje, alheias aos estudos de crítica-literária sobre Don Juan, de modo que o seu resgate histórico não vem aqui levantar discussões acerca de suas potencialidades estéticas, mas possibilitar o diálogo existente e desconhecido com o autor na condução de sua definição particular sobre o motivo de Don Juan. Desta forma, pomos em evidência à análise formal e temática as composições em prosa que saíram de experiências de leituras excepcionais em Recife, “Pesadelo” e “Crônica jornalística”, nas quais a apropriação do gótico e do fantástico se faz perceptível, e da incorporação de textos dramáticos lidos em São Paulo resultando em “A prole dos saturnos”. Dos intertextos de base, coletados por nossa pesquisa, que serviram à inspiração do estro poético de Castro Alves para essa fatura de sua obra literária estão a de escritores como José de Espronceda, Cardoso de Menezes, Benjamin Gastineau, Álvares de Azevedo, Lorde Byron, Willian Shakespeare e José Cadalso. Alguns já consagrados de suas versões donjuaninas, como Byron e Espronceda, à margem do cânone literário europeu, Benjamin Gastineau e Azevedo, redescobertos pela historiografia literária, Cardoso de Menezes, ou redefinido pelo poeta baiano em sua concepção do mito, como Shakespeare. 203 1. CASTRO ALVES NO RECIFE: ENTRE O GÓTICO E O ESTRANHO Segundo esclarece Luiz do Nascimento em História da imprensa de Pernambuco, a propósito dos textos de Castro Alves circulados no Recife, “Pesadelo” e “Crônica literária” foram publicados na estreia do jornal O Futuro em 15 de junho de 1864: A edição de estreia divulgou [...] uma crônica literária e o poema “Pesadelo”, de Castro Alves. (...) O n. 4, com algum atraso, circulou no dia 30 de agôsto, dele constando a “Crônica Jornalística”, de Castro Alves, que focalizou, em meio a digressões literárias, a receptividade d’O Futuro na Bahia, onde a Revista Acadêmica, da turma de Medicina, lhe dedicou dois artigos: uma catilinária e um ‘abraço simpático mandado da inteligência à inteligência”. (NASCIMENTO, 1962, p. 204) O efêmero e, portanto, raro, periódico literário, saído do prelo da Tipografia Comercial G. H. de Mira, na capital pernambucana, conheceu seis números. Dois apenas hoje se encontram disponíveis em plataforma digital pela Hemeroteca Nacional, o segundo e o quarto, privando- nos da leitura, na fonte, do primeiro daqueles textos, “Pesadelo”. Entretanto, a julgar pelo trabalho e as informações de Homero Pires em Poesias (1913) – inacessível digitalmente – que publicou os dispersos do poeta antes de Obras (1921) de Afrânio Peixoto, o poema havia sido escrito bem antes, em maio de 1863211. A descrição destas modalidades de escrita que o poeta efetuou naquela cidade aponta para um aspecto sintomático desse período: Castro Alves foi também um leitor do gênero gótico. Não apenas do romance negro, mas também do fantástico já em vigência nos contos que apareciam nas folhas do Diário de Pernambuco e Jornal do Recife nos primeiros anos de 1860212. Só de alusões de leitura relacionadas à literatura gótico-fantástica feitas naquele periódico literário de 1864, considerando a mencionada crônica e a crítica literária “Impressões de leitura de A. A. de Mendonça” que integram àquele suporte, identificamos: Alexandre Dumas (Pai), E. T. A. Hoffmann, Lorde Byron, Ossian, Paul Parfait, Álvares de Azevedo, 211 Gomes (1997) corrobora esta informação a partir daquilo que havia colhido de Obras (1921) de Afrânio Peixoto, assegurando ter o texto sobrevivido ao tempo em um livro de versos de Castro Alves que se encontrava sob posse de Augusto Guimarães, seu dileto cunhado e amigo. Em Poesias (1913), aparece datado com aquela data à página 18, confirmando o veredicto do autor de Obras Completas e daquele outro de Obras. (ALVES, 1913, p. 18) 212 FERNANDES, M. V.; TÚLIO FERNANDES, M.; CHIANCA, K. (2017, Novembro). Travessias do fantástico hoffmaniano: impressos e periódicos no Recife acadêmico e a formação crítico literária de Castro Alves. Comunicação apresentada ao XVI Congresso de la Asociación Latinoamericana de Estudios Germanísticos, Buenos Aires. 204 Cardoso de Menezes, e ainda Hugo, na versão da fantasia de seu Pécopin, e Shakespeare nos quadros negros de Macabeth. A moda do gênero fantástico já tinha chegado ao Recife desde 1854 à ocasião da tradução dos contos de Hoffmann como anteriormente vimos. Marques Rodrigues traduzia para O Cidadão (1854-1855), suplemento literário do Liberal Pernambucano (1852-1858), não apenas o Don Juan do contista prussiano, mas também a Rebeca de Cremona e Marino Falieri, todos saídos da leitura francesa de Contes Fantastiques pela tradução de Xavier Marmier. O Jornal do Recife dava mostras também claras da preferência pelo gênero e, atendendo à demanda existente, só entre os anos de 1859 e 1861213, preencheu suas páginas de trabalhos ligados ao tema com as seguintes estampas: As Ruínas da Glória: conto fantástico, Esther e As bruxas (Fagundes Varela); O voto: conto fantástico de Hoffmann e Cismas (E. Bitencourt); O castigo do milhão: conto fantástico (Pedro Veron); A visão: conto de Hoffmann e O morgado: conto noturno (Hoffmann); Eugênio Wallace (Almeida Braga); O cavalheiro de Piratinin: conto fantástico de Pernambuco (Moraes Pinheiro); Henriquieta: conto fantástico, imitado do espanhol (José de Vasconcelos); O monge de Olinda: romance original (Nogueira de Barros) e Um sonho (L.S.). Como se vê, o contexto cultural no qual se inseria Castro Alves era, portanto, bastante favorável à exploração do gênero, ainda que essa faceta do poeta cause uma certa rusga à opinião geral sobre o escritor. Raros são os críticos que fizeram essa observação na obra do poeta, dos quais se destaca Jamil Haddad com o pioneiro estudo sobre a presença dos contos de Noite na Taverna na obra do baiano em Álvares de Azevedo e Castro Alves (1952). A promoção do gótico em Castro Alves via Azevedo é, porém, uma redução de sua atividade literária, tendo em vista as leituras que já transitavam nos círculos das redações das folhas pernambucanas. Basta dizer que o Victor Hugo que aparece referendado na “Crônica Jornalística” é uma fantasia ao gosto da moda hoffmaniana e não o poeta engajado de Os Miseráveis. Ademais, partindo do recente levantamento da pesquisa de Souza (2017), além dos já apontados Paulo Parfait, Benjamin Gastineau e Hoffmann, na quinta série de Bibliotheca Litteraria, outros escritores flertaram, de modo igual, com o gênero fantástico nessa coleção: A alma transmitida: romance (Mery), Nisida (Pier Angelo-Fiorentino e Alexandre Dumas), Uma lágrima do Diabo: mistério (Théophile Gautier), A vingança dos mortos: conto (C. Vignon), Noite do diabo: poema (Dr. D. Carneiro). 213 Nosso recorte se restringiu a esses dois anos, pois, entre 1862 a 1864, a Hemeroteca Digital não dispôs ao acesso público para navegação em sua plataforma exemplares daquele quadriênio, o que não invalida, porém, a moda que repercutia naquela década no Recife. 205 As narrativas que ilustraram os preciosos exemplares de O Futuro dão sinais igualmente da moda dominante. O jornal quinzenal, redigido entre julho e agosto de 1864 por Maciel Pinheiro, Aristides Milton, Antônio Carvalhal e Castro Alves, denunciava a presença ainda marcante dos temas românticos que estavam em via de dissolução na Europa e que persistiam na prática acadêmica da imprensa periódica do Recife. Mantinham, pois, o vínculo com a tradição estrangeira, capitaneada, sim, pela popularidade alcançada de Noite na Taverna de Álvares de Azevedo, impulsionando o culto ao gênro no país, mas já radicada desde 1843 com a publicação do conto O morgado de E. T. A. Hoffmann na Minerva Brasiliense por Bernadino Ribeiro (LOPES, 1997, p. 256). Citemos, a exemplo comparativo, o conto de Carvalhal História de uma Sempre- Viva214, do qual guardamos apenas o desfecho. Um jovem, após sucessivos infortúnios amorosos, crê, enfim, ter encontrado sua alma gêmea Julia, bela virgem de débil constituição física. Dias depois do encontro em que os amantes selaram o voto de sua união, a jovem morre, reservando apenas ao desafortunado amante o lamento de sua perda, entoado pelo seu lutuoso alaúde: Hoje ele vaga pelo mundo vítima do desespero e da dor, e no meio dos sepulcros, dedilhando sentidos trenos no seu alaúde, chora a virgem de seus amores que o céu roubou-lhe, e que à noite em sonhos vem trazer-lhe as harmonias do céu. (O Futuro, 30 ago. 1864, n. 4, p. 60-61) A ambiência noturna e a morte precoce e trágica recordam os heróis byronianos do autor de Noite na Taverna que se entregam ao desregramento de suas vidas errantes. Em “Anjo e Demônio”215, de Aristides Milton, os elementos da moldura e da tonalidade estão mais em sintonia com a paisagem noctívaga do gótico impresso pelos contos azevedianos: Nessa hora nem lua, nem estrela vagava no enegrecido firmamento: toda a natureza dormia, e apenas, pousado sobre um cipreste, um mocho com seu piar lúgubre e agourento parecia entoar um cântico de morte! (O Futuro, 30 jun. 1864, n. 2, p. 26) Esta curta narrativa, porém, ao contrário do humor negro do escritor paulista, transparece em seu desfecho patente efeito moral ao público, sem abrir mão da atmosfera lúgubre característica. Branca, jovem apaixonada por Julio, é corrompida por este e suas falsas 214 Disponível em: . Acesso em 06 jun. 2017. 215 Disponível em: < http://memoria.bn.br/DocReader/821250/9>. Acesso em 06 jun. 2017. 206 promessas de união. A passagem supracitada focaliza o momento anterior aos amantes se entregarem ao prazer do primeiro beijo. Desprovida dos astros celestes que iluminam a cena noturna que dá fundo aos transportes da paixão dos amantes, a pintura da paisagem é um crepe funerário, dando lugar à ave agourenta no cenário principal. Nesse primeiro tempo de contato com os gêneros da tradição gótico-fantástica no Recife, o poeta baiano exerceu, porém, outra modalidade de prosa em íntima correspondência com o mito de Don Juan. Aqui se faz necessário, mais uma vez, destacar a sensibilidade às condições de produção do texto de Castro Alves que vai num sentido muito divergente das referências canônicas sobre o tema. Nas duas produções de seu punho escritas para O Futuro, o poeta lança mão de experências de leitura que não estão sequer rastreadas e acessíveis ao grande público. Uma mais recente e de que o poeta se valeu para desenvolver a prática do gótico é um achado de Cid Vale Ferreira que redescobriu em 2003 o escritor romântico João Cardoso de Meneses e Souza, o barão de Paranapiacaba, o introdutor do vampirismo no Brasil, muito antes de Azevedo e o seu sucesso atingido por Noite na Taverna, e “cerca de cinco décadas antes dos voos noturnos de Drácula” (FERREIRA, 2003, p. 205): Também incrustados no livro (Harpa Gemedora) estão poemas indianistas (que antecedem em vários anos a produção de Gonçalves Dias) e composições de inspiração lutuosa que sacralizam o cadáver materno, motivo recorrente na época. Todavia, apesar de sua contribuição no estabelecimento do indianismo, do byronismo e de sua presença entre os fundadores da literatura bestialógica, o poeta é ignorado pela maior parte dos historiadores do nosso romantismo. Não é de se estranhar, portanto, que outros de seus méritos permaneçam velados, como a autoria da provável primeira obra vampírica brasileira. (Ibid., p. 203) A leitura de Cardoso de Meneses era familiar ao poeta e foi dela que saiu a inspiração para o poema gótico “Pesadelo”. O barão de Paranapiacaba escrevia em 1847 a sua Harpa Gemedora que veio a lume dois anos depois em 1849. Castro Alves mergulha na leitura de Octavio e Branca ou a maldição materna para a confecção de sua composição, mas o livro não seria abandonado como sugestão literária aos seus poemas, visto que uma de suas maiores realizações poéticas ainda no Recife um ano após, em 1864, seria inspirada em seu prólogo: E eu morro, ó Deus! na aurora da existência, Quando a sede e o desejo em nós palpita... Levei aos lábios o dourado pomo, Mordi no fruto podre do Asfaltita. 207 No triclínio da vida — novo Tântalo — O vinho do viver ante mim passa... Sou dos convivas da legenda hebraica, O ’stilete de Deus quebra-me a taça. É que até minha sombra é inexoravel, Morrer! morrer! soluça-me implacavel. (Mocidade e Morte – ALVES, 1997, p. 89) “Mocidade e Morte”, inspirado em título de poema homônimo de Alexandre Herculano, despertou a atenção da pesquisadora Mauro (2014) que encontrou paralelos da morte que sobrevem ao eu-lirico no poema castroalvino com a punição infligida a Don Juan pelo Comendador, o revenant, em O burlador de Sevilha de Tirso. O poema de Castro Alves, contudo, é todo construído no sentido da fatalidade que recai sobre o eu-lírico mediante à irreversibilidade da morte iminente. Até mesmo a metáfora original “mordi o fruto podre do Asfaltita” que fez Afrânio Peixoto recorrer à botânica, em um longo comentário em notas a Obras (1921)216, para dar um sentido mais inteiro ao verso, Castro Alves foi alcançar naquela obra esquecida217 e recolhida hoje pelos esforços da pesquisa de Cid Ferreira: Como uma inspiração do gênio sentado sobre as ruínas do universo – retratam em escuras tintas a alma do bardo de Albion, profundamente ferida da desgraça, árida, embotada e erma de sensações deliciosas; - porque já seus lábios tinham tocado no âmago desse pomo misterioso, que os viajantes fingem nas margens do lago Asphaltite, e que engana com uma aparência de delícias, ocultando unicamente cinzas e podridão sob o véu embaiador que o disfarça. (Prólogo à Harpa gemedora – SOUZA, 1847, p. 9) [grifos nossos] Ainda que não pintasse com os traços da sedução o sujeito lírico de voz queixosa e plangente de “Mocidade e Morte”, o poeta baiano já ensaiava em 1863 sua incursão nos temas do donjuanismo. Para isso, elegeu não uma leitura, mas, ao menos três, das quais o nome de José de Espronceda tem notória participação. 216 Assim dava nota Peixoto (1921) ao impasse daquele verso: “Nas margens do Lago Asphaltita ou Mar Morto ha duas especies vegetaes, cujos fructos receberam o nome de pomos de Sodoma: uma asclepiadacea, Calotropis procera, dá fructos amarellos, do tamanho de uma pequena laranja, cheios de uma paina sedosa, que se pode tecer; a outra, solanacea, Solaneum sodomeum, o limão de Lot, dos Arabes, fruto enganador, de conteúdo escuro e granuloso, com areia, acre, como cinza. Talvez seja este o da tradição, que chamou Castro Alves – o fruto podre do Asphaltita.” (PEIXOTO, 1921, v. 1 p. 59) 217 Disponível em: . Acesso em 9 ago 2017. 208 Pesadelo Escrito aos mal completos dezesseis anos, “Pesadelo”, comparado ao conjunto da obra do escritor baiano, é um poema ainda pouco estudado e divulgado218. Revelaria, ainda, no corpo da obra do autor, a faceta macabra dos raros escritos que o poeta se inclinou a escrever. Um número modesto de produções, que conta com trabalhos de tradução e peça de teatro, mas consideráveis pela qualidade estética de suas elaborações: “Crônica jornalística”, “A prole dos saturnos”, “É tarde!”, “Fabíola”, “Último fantasma”, “A uma taça feita de um crânio humano”, “As Trevas”, “Quando eu morrer”, “Mocidade e Morte”, “Bandido Negro”, “O diabo mundo”. Depõem contra a posição da crítica literária iniciada em Afrânio Peixoto que via neles uma excrescência à sua obra. O cenário soturno de que falam esses versos produz um certo embaraço à imagem sadia e vibrante do escritor sensual e do vate condoreiro, ampliando o leque de possibilidades dos motivos poéticos em sua obra: Vários caminhos podem levar à compreensão de Castro Alves: o da mensagem cívica ou social sobreleva todos os outros, para os que nele querem buscar o homem de ação. Uns, preferem o lírico da ternura, e não me envergonha estar entre eles; outros, o condoreiro de rimas campanudas; e outros enfim o político, o profeta da revolução, sem fazerem caso da qualidade de seus versos. (GOMES, 1953, p.46). Estruturado em cinco partes, “Pesadelo” é um conto-poema ou poema em conto que expõe uma certa segurança do baiano no domínio de rara atividade literária, o exercício da prosa gótica. Em princípio, temos a leitura que se reconhece em Octavio e Branca de Cardoso e Menezes como fonte de inspiração do gênero ao escritor baiano. A obra, integrada à Harpa Gemedora, conta a história dos amores proibidos de dois jovens cuja antiga aliança que os une é ameaçada pelas pretensões da família da moça, o conde Holbachi e sua esposa. Na véspera das bodas de Branca, a filha estimada de Holbachi, Octavio assoma aos portões do castelo do nobre para cumprir os planos de fuga com a amada. O medo de serem descobertos faz com que 218 Em 2012, na comemoração dos 165 anos do nascimento do poeta, o dia da poesia, a Secretaria de Educação do Estado da Bahia provomeu uma ação para tornar mais divulgado este poema ainda pouco conhecido do público. Em Cabaceiras do Paraguaçu, município do Recôncavo baiano, foram distribuídos mil livretos com aquela composição de 1863 a oito bibliotecas públicas do estado. 209 a jovem apresse o passo ao amante, ansioso de unir-se a ela ali mesmo nos jardins do palácio. Receosa da débil saúde da mãe e da honra paterna, Branca não resiste por muito tempo à paixão que os assalta. Afrontando “a maldição paterna, pompas de nome, e opinião do mundo”, entrega-se, enfim, ao amado para aprenderem a “amar com a natureza!...”. A fuga dos amantes desencadeia uma série de maus presságios. Oranzo, prometido de Branca, exposto à vergonha da insídia, jura de Octavio “trincar-lhe o coração, beber-lhe o sangue”. A desonra da filha agrava o estado de saúde da condessa que morre logo em seguida. Num veleiro os fugitivos ganham a liberdade ao mar. Porém, uma espessa nuvem de água encapela os céus, agitando os mares, e estraçalhando a embarcação junto à penedia. Em vão, Octavio protege o corpo regelado da amada que, logo, morre. Este último, porém, ainda chega à terra, náufrago, com vida. O peito entreaberto do infeliz à areia da praia é o convite fatal para que Holbachi enterre o punhal vingador. Não seria a última das mortes sinistras; velando o corpo da filha à campa, ao lado da qual se punha o de Octavio sepultado, o conde amanhece morto, depois de os morcegos lhe fazerem a ronda noturna. O poema de Cardoso de Menezes se integra claramente ao universo dos romances negros que fizerem fortuna no século XVIII na Inglaterra até dar, aos poucos, lugar à entrada do conto fantástico. O vampirismo sugerido pela morte sinistra do conde, o cenário do castelo medieval, a ambientação noturna e tétrica, os crimes e assassinatos, e os sortilégios que pairam sobre a morte dos personagens asseguram o vínculo da narrativa com a prosa gótica. Do ponto de vista estrutural, Octavio e Branca mantém, do mesmo modo, a semelhança com o gênero romanesco mais longo dada a sua extensão em dezessete partes-capítulos de versos decassílabos brancos, dando mais fluidez à narrativa. O poema de Castro Alves é mais enxuto: cinco partes. As epígrafes de autores europeus em Cardoso e Meneses (Turquety, Mendes Leal e Garret) são preteridas à divisão de mini-capítulos com estampas dramáticas: O rendez-vous, O assassino, A louca, A entrevista no túmulo, Os dois cadáveres. A trama é desenvolvia pelo velho motivo do triângulo amoroso romântico. No primeiro deles, Laura, fogosa amante andaluza, recebe em seus aposentos a presença de Joseph, o bardo formoso que acorda a noite com o planger ardente de seu bandolim. O canto inconfundível do amante cessa e, à janela, desponta a espanhola seminua, deixando entrever pelo luar, à meia-tinta, pé, madeixa e seio. Beijos férvidos são trocados e a alcova se fecha à intimidade do casal. 210 O segundo capítulo muda abruptamente de cenário. A “noite perfumada e lânguida” dá vez à noite sinistra e tenebrosa. Na noite erma e chuvosa, aparece o vulto negro de Jorge, embuçado “do capote e do sombrero”. Jorge, o libertino, caminha misterioso e taciturno, guiado pelo som das cordas sentidas do instrumento do rival. O canto de Joseph é, porém, o canto do cisne, o último antes de sua morte: Jorge o apunhala em único golpe e priva a noite para sempre de seu som. No terceiro capítulo, novo quadro; Laura, ensandecida, singra descalça as ruas frias da madrugada. Seu passo obstinado tem objetivo certo, vingar a morte do amante desafortunado. A quarta parte apresenta Laura tomada de vez pelo desvairo. Joseph insepulto é recoberto de seus beijos quentes e as tranças do rapaz são feitas de brinco no dedilhar da imaginação perturbada da moça, recordando as canções de outrora. Laura expõe ao cadáver o punhal ensanguentado com que houvera vingado o amante, tirando a vida de Jorge. A quinta e última estrofe é composta de uma única sextilha cuja disposição gráfica claramente aponta para o desfecho de efeitos dramáticos. Laura, sempre embalando o querido corpo do amante, é vencida, enfim, pela dor de sua pena, unindo-se de vez a Joseph na morte. Da ambientação tétrica de Octavio e Branca, soube Castro Alves preservar o enquadramento da noite macabra. A bem da verdade, é possível, de certa forma, apontar equivalência entre “Pesadelo” e “Poema do Frade”, de Álvares de Azevedo, que já fazia parte da faixa das leituras de Castro Alves. Nesse poema, Jônatas à maneira byroniana é quem revive a figura do libertino blasé, entregue à vida errante e aos amores de certa espanhola. Alguns momentos, aliás, são bastante alusivos aos lances narrativos em Castro Alves: Depois o véu do leito estremecendo Vi duas criaturas soerguidas Como dois anjos, pálidas gemendo! Invocavam as virgens consumidas Em desejos de amor, a Deus se erguendo: As folhas que se beijam recendidas, Que palpitam à luz, e em fogo lento Murcham de gozo ao hálito do vento! (O Poema do Frade – AZEVEDO, 200, p. 334) E em Castro Alves: 211 Depois uns lábios férvidos se uniram Entre beijos dois nomes se escutaram... Dois nomes e mil beijos amorosos Nos lábios as palavras encerraram... Dois nomes em que a vida toda s'ia... Dois poemas de santa poesia... (Pesadelo – ALVES, 1997, p. 384) Percebe-se na descrição do encontro entres os pares amorosos nos dois entrechos, a linguagem metafórica muito familiar associada ao fogo intenso que marca as carícias de seus beijos, tudo apontando favorável para a conjunção carnal e gozo consequente dessa relação. A escolha da estrutura formal é debitada, em parte, a Azevedo. Castro Alves lança mão de uma sextilha decassilábica, variando entre o esquema ABCBDD e ABABCC. A solução da escolha já é decidida previamente por sugestão das sextilhas de Azevedo que brinca, porém, com a alternância da estrofação: “Como varia o vento – o céu – o dia,/ Como estrelas e nuvens e mulheres/ Pela regra geral de todos os seres,/ Minha lira também seus tons varia,/ E sem fazer esforço ou maravilha/ Troca as rimas da oitava pela sextilha.” (AZEVEDO, op. cit., p. 337). Todavia, o tom do texto de Castro Alves não recupera o pilhérico dos versos de “O poema do Frade”, revelando que o poeta baiano não captou as nuances da poesia épico-cômica de Don Juan de Lorde Byron. Raríssimos são os poemas de Castro Alves em que o humor marca o passo do verso, como “A canção do boêmio”, já absorvido pela leitura mais tarde de Byron. Outro motivo estaria no fato de que o poeta se valeu de traduções francesas para traduzir o escritor inglês, nas quais muito do humor resultante do jogo de palavras ali se perde na prática tradutória. Ficaram, porém, os traços anedóticos, e a percepção pessoal que o baiano tem de suas leituras, remodelando-as a seu interesse. Ao invés do chiste, o poema sério, macabro, que coloca Azevedo ao lado de Cardoso de Meneses como legítimos representantes do ultrarromantismo no Brasil, com os seus personagens erradios e satânicos, atenuados pela pena de Castro Alves que decide, antes, pelo enquadramento tétrico, mas dispensando o sobrenatural do autor de “Octavio e Branca”: Uma noite era negro firmamento, Monótona caía fria chuva, E a terra envolta em véu de densas trevas Parecia chorosa uma viúva; Só as aves da noite regeladas Gritando se escondiam nas moradas. Trazia o vento o silvo da rajada Meia noite soou! – Nos ares trêmulos Fúnebre ecoa o som do campanário De horror gelando o coração dos vivos! Meia noite soou! – Por toda a parte Silêncio sepulcral desdobra as asas! Nem estrondo de andar, que trilhe as ruas Nem brisa, que murmure brandamente! Diríeis desmaiada a natureza 212 Que lúgubre zunia nos pinheiros, Trazia gritos pávidos, medrosos, Talvez dalguns perdidos caminheiros, E no embate co’a branca penedia, O mar sinistro e tétrico rugia. (Pesadelo – ALVES, 1997, p. 384-385) Ao pavoroso badalar do bronze. Só ousa violar mudez tão erma Do pássaro da noite o guincho agudo, E uivos de cães, quiçá correndo em cata De maligno Vampiro redivivo. (Octavio e Branca – SOUZA, 1847, p. 99- 100) O cenário em ambos escritores é tétrico, porém Castro Alves atenua os vestígios de mistério ligados ao sobrenatural encontrados no poema gótico de Cardoso de Meneses. O gótico é mais evocado por cenas convencionais do gênero: a noite sem lua, o espaço do cemitério, os personagens erradios, a natureza sinistra dos ciprestes e mochos funerários, a chuva miúda ou torrencial. Em Octavio e Branca, o vampiro abre e fecha o romance. Ele sobrevoa à noite o castelo dos Holbachi, perseguido pelos cães e, fatal, decreta sugestivamente a morte do seu ilustre senhorio. Contudo, outras leituras ficam patentes na configuração do texto. Desde a possível sugestão literária, ainda que mínima, do personagem de Benjamin Gastineau, Jorge Kerouard, personagem amante da Condessa de Lucenais na novela Condessa Negra: Jorge Kerouard era um perfeito Don Juan: belo, bem feito, de fisionomia franca, olhos vivos e cheios de afoiteza, ele encantava à primeira vista: e se ajuntarmos a estas belezas físicas um espírito ilustrado, uma imensa distinção de maneiras, compreender-se-á que Jorge Kerouard era feliz nas cidades de Argel, onde o coração e a imaginação, tão próximos do sol, com facilidade se inflamam e entusiasmam. (A Pátria 22 mai 1883, p. 1) Na novela francoargelina, Jorge é um sedutor nato cuja fama corre solta pelas planícies do Argel. Sua fama de inveterado conquistador se junta ao orgulho e altivez estereotipados pela cultura árabe que faz com que ele perca um posto militar ao não se dobrar à cobrança de seu superior em devolver a esposa raptada por seus ardis: “nunca abandonaria uma mulher à cólera de um marido ultrajado”. Por essa razão, o sedutor se recolhe à região de Guelma, situada no nordeste da Argélia, onde lá viverá outra experiência amorosa, desta feita, com a esposa do Conde de Lucenais, a condessa negra. Essa narrativa, como já dissemos, embora jamais estudada entre os críticos que se ocuparam do mito, não era estranha ao universo das leituras literárias entre os acadêmicos das províncias do norte do país, posto que se encontram anunciadas na publicidade dos periódicos 213 do Maranhão, do Ceará e do Pernambuco. Se, como veremos em “Crônica Jornalística”, a remissão ao nome do escritor Paulo Parfait e de Pecopin – conto hugoano integrado àquela seleta da Biblioteca Litteraria – este ocupando o quinto volume, aquele o segundo, desta série literária, evidenciam o contato com as literaturas marginais ao cânone, mas em voga como prática de leitura, é certo que a impressão do mito de Don Juan assumirá um caráter muito particular no poeta nesses primeiros anos. Mesmo os temas do triângulo amoroso, das emboscadas noturnas, do assassinato por crimes de honra, estão presentes na novela de Benjamin Gastineau, relativizando as leituras biográficas que viram em “Pesadelo” uma extensão ficcional dos crimes passionais que agitaram o tumultuado passado dos familiares do poeta, como defendiam Haddad (1953) e Ferreira (1947). As representações do mito em Castro Alves são muito bem definidas na linha do tempo, carecendo apenas de uma pesquisa mais atenta aos domínios de leitura do escritor. A Condessa Negra é também uma intriga pontuada de mistérios cujo desenlace final deixa entrever os paralelos temáticos também com “Pesadelo”. No final do conto, Jorge Kerouard, hospedado juntamente à condessa em uma herdade familiar ao Conde de Lucenais, encaminha-se também no bréu da noite para estreitar-se à sua amante: Meia noite soou no relógio da herdade, envolvida em trevas e silêncio. Mas o que havia de engraçado, apesar da calma aparente da herdade, era que ninguém ali dormia, e Jorge menos do que todos. Vítima da emoção a mais violenta, ergueu-se do leito como se tivesse sido movido por uma mola, e exclamou: - A paixão me asfixia neste celeiro! Ela vive ali, há alguns passos de mim; parece que lhe ouço a doce respiração; e deixaria eu escapar esta admirável noite de simoun que inspira ardores e causa trevas? As negras noites da África me conhecem e me são propícias! O antigo capitão de caçadores tomou seu longo punhal kabylo e saiu do celeiro. O terreno da herdade estava mergulhado numa escuridão profunda; o céu estava negro e somente no fundo do horizonte um clarão vermelho ensanguentava a nuvem. O ar rarefeito escaldava os pulmões, e respirava-se vapores; era uma terrível noite de sirocco. Os bois afiguraram-se a Jorge massas confusas, mais difíceis de romper que um exército inimigo. (A Pátria – 31 mai 1883, p. 1) Também o tema dos assaltos e raptos noturnos aos aposentos das amantes está bem vívido na narrativa de Gastineau, retocados pelo pitoresco do orientalismo árabe como se vê na alusão aos ventos quentes do norte da África, o simun e o siroco. Ao atravessar o pátio onde dormem os bois da herdade, Jorge é surpreendido pelo conde de Lucenais com um sabre em 214 riste que, investindo a carga de chumbo na direção do rival, desperta a fúria árabe deste último. Tomado pelo desejo de vingança ao atentado à sua vida, o Don Juan africano corre ao encalço do oponente, descuidado dos animais perigosos que repousam ali. A confusão desperta os bois e o sedutor é alvejado pelos chifres dos animais, morrendo pouco depois. A condessa recebe, depois, duvidosa, a confissão do moribundo amante de que tudo havia sido produto da maquinação do marido, a qual o conde de Lucenais negaria expressamente mais tarde à esposa. A novela se fecha, porém, com a dúvida da amante sobre o evento misterioso, separada do marido, mas carregando consigo o luto pela morte do sedutor, vitimado por razões misteriosas e sinistras. Como em Gastineau não há em Castro Alves o sentido do insólito, que aparece em Cardoso de Meneses e nas sequências narrativas românticas do mito de Don Juan em Hoffmann, Mérimée, Balzac e Gautier. Estão presentes nos dois primeiros o ambiente noturno, o amor triangular, os crimes de honra, a vindita. Mas, ainda é curioso, outra marca textual inspiradora do espanholismo dos versos e que nos faz repensar a atuação de José de Espronceda como leitura significativa da poesia e desta rara manifestação da prosa do baiano. Espronceda, como Castro Alves, mantém muitos pontos de contato, desde a índole libertária, o gosto pelos versos líricos, a poesia confessadamente sensual, passando até pelo apreço que os dois cultivavam no estilo de dândi. Mas é, exatamente, em “Pesadelo”, em uma fatura precisamente desta produção gótico-literária, que se guardam as proporções entre os escritores. Em O estudiante de Salamanca também um crime é cometido pelas mãos de um personagem libertino. Félix de Montemart, “um segundo Don Juan”, burlador, cínico e apostador, é um personagem blasé à maneira dos personagens byronianos, mas singular pelo seu espanholismo característico ancorado na tradição do burlador e o vício no jogo que o distingue dos demais: A identificação, em contrapartida, de Montemart com Don Juan Tenorio é explícita e fortemente significativa. Desde o início, Espronceda estabelece uma filiação entre um e outro. [...] Montemart é [...] um bandido, um aventureiro, sempre pronto a cometer burlas e calaveradas. Se ele mostra no conto uma única aventura amorosa, o terceiro jogador faz alusão [...] a suas incontáveis conquistas. Do Tenorio, Montemar tem ainda a presteza física, a audácia, o cinismo, a irreverência, o gosto da blasfêmia. Ele é também o 215 homem do instante, que vive passionalmente o presente. (SÉRIS, 1999, p. 377)219 A descrição do herói de Espronceda com a indumentária espanhola característica tem eco em Álvares de Azevedo e Castro Alves. O capote e o sombrero, símbolos, conjuntamente ao bandolim, distintivos do Don Juan espanhol, não poderia sugerir aqui uma leitura de Molière, por exemplo, cujo figurino aristocrático em nada evoca o encapuzado de Espronceda. Há um outro detalhe na obra do romântico espanhol, o personagem, assim como em Zorrilla, é apresentado no número econômico de suas conquistas, sendo mais relembradas as seduções, mas não se lhe apagam os traços da corrupção, abrandados no autor de Don Juan Tenorio (1844). Mas o indício mais forte da leitura de Castro Alves já naquele ano de 1863 de Espronceda está nos lances de emboscada e de assassinatos. Comparemos os textos: Uma noite era negro firmamento, Monótona caía fria chuva, E a terra envolta em véu de densas trevas Parecia chorosa uma viúva; Só as aves da noite regeladas Gritando se escondiam nas moradas. Trazia o vento o silvo da rajada Que lúgubre zunia nos pinheiros, Trazia gritos pávidos, medrosos, Talvez dalguns perdidos caminheiros, E no embate co’a branca penedia, O mar sinistro e tétrico rugia. De um lampião à luz incerta e vaga Um vulto negro e triste s'enxergava; Coberto do capote e do sombrero, O rosto macilento só mostrava... Mas dalgum raio ao brilho repentino Conhecereis — Jorge — o libertino — Que fazes, Jorge, a estas horas mortas? A noite está tristonha e friorenta; Vai aquecer da prostituta ao colo De libertino a fronte macilenta. Era mais de meia noite, Antigas histórias contam, Quando em sonho e em silêncio Sombrio envolveu a terra Os vivos mortos aparecem Os mortos a tumba deixam. Era a hora em que acaso Temerosas vozes soam Informes, em que se escutam Tácitas pisadas ocas, E pavorosos fantasmas Entre as densas trevas Vagam, e ladram os cachorros Amandontrados ao vê-los. (...)O céu estava sombrio, Não vislumbrava uma estrela, Silvava lúgubre o vento E ali no ar, qual negros Fantasmas, se desenhavam As torres das igrejas, E do gótico castelo As altíssimas almenas, Onde canta ou reza acaso Temeroso o sentinela. (...) Súbito rumor de espadas 219 “L’identification, en revanche, de Montemart avec Don Juan Tenorio est explicite et fort significative. D’entrée de jeu, Espronceda établi une filiation entre l’un et l’autre. [...] Montemart est [...] un bravache, un aventurier, toujours prêt à commettre burlas et calaveradas. S’il affiche dans le conte une seule aventure amoureuse, le troisième joueur fait allusion [...] à ses innombrables conquêtes. Du Tenorio, Montemart a encore la prestence physique, l’audace, le cynisme, l’irrévérence, le goût du blasphème. Il est aussi l’homme de l’instant, qui vit passionnément le présent. 216 Vai escaldar esta alma morta e fria Aos beijos do cognac qu'incendia. (...)Mas Jorge está mais lúgubre e sombrio Que o mármore dum túm'lo mais calado, Parece o seu olhar mais turvo e frio, O sulco do sobrolho mais cavado... Ai! Jorge... Vais unir ao libertino A covardia infame do assassino... E ele pouco esperou. Saudoso canto, Que suspirava ao longe, aproximou-se, E o canto era mais terno e mais sentido Qu'o último som do cisne que finou-se; Era um canto em que atroz pressentimento Segredava ao mancebo o passamento. Um momento depois um grito agudo Triste uniu-se da noite à voz sombria... Foi um grito somente e após ouviu-se O convulso estertor de um'agonia... A noite se estendeu como um sudário Do cantor sobre o leito funerário. Somente após à fulva luz de um raio Veríeis uma virgem linda e nua... Tremia de terror, ouvira o grito... 'Stava pálida e branca como a lua, E quando viu o amante — de amargura Tornou-se a estátua pasma da loucura. (Pesadelo – ALVES, 1997, p. 384-385) Quebrou e um “ai” se escutou; Um “ai” moribundo, um “ai” Que penetra o coração, Que até a medula congela E dá àquele que ouviu tremor. Um “ai” de alguém que ao mundo Pronuncia o último adeus. O ruído Cessou, Um homem Passou Embuçado, E o sombrero Recatado Nos olhos Ficou. (...) Uma rua estreita e alta Uma rua do Ataúd Qual de negro crepe Eterno capuz sombrio A vestisse, sempre E de noite sem mais luz Que a lâmpada que ilumina Uma imagem de Jesus, Atravessa o embuçado A espada na mão ainda, Que lançou vivo reflexo Ao passar em frente a cruz. (El estudiante de Salamanca – ESPRONCEDA, 2008, p. 95-97)220 É notória a maneira como o poeta baiano se serve da primeira parte de O estudante de Salamanca. A presença de um rival na peça do espanhol – que não Oranzo no texto de Octavio e Branca, privado do embate com o rival, morto, antes, pelas mãos de Holbachi, o pai da amante 220 “Era más de media noche,/ antiguas historias cuentan,/ cuando en sueño y en silencio/ lóbrego envuelta la tierra,/ los vivos muertos parecen,/ los muertos la tumba dejan./ Era la hora en que acaso/ temerosas voces suenan/ informes, en que se escuchan/ tácitas pisadas huecas,/ y pavorosas fantasmas/ entre las densas tinieblas/ vagan, y aúllan los perros/ amedrentados al verlas./ (...) El cielo estaba sombrío,/ no vislumbraba una estrella,/ silbaba lúgubre el viento,/ y allá en el aire, cual negras/ fantasmas, se dibujaban/ las torres de las iglesias,/ y del gótico castillo / las altísimas almenas,/ donde canta o reza acaso/ temeroso el centinela./ (...) Súbito rumor de espadas/ cruje y un ¡ay! se escuchó;/ un ay moribundo, un ay/ que penetra el corazón,/ que hasta los tuétanos hiela/ y da al que lo oyó temblor./ Un ¡ay! de alguno que al mundo/ pronuncia el último adiós./ El ruido cesó,/ un hombre/ pasó/ embozado,/ y el sombrero/ recatado/ a los ojos/ se caló./ (...) Una calle estrecha y alta,/ la calle del Ataúd/ cual si de negro crespón/ lóbrego eterno capuz/ la vistiera, siempre oscura/ y de noche sin más luz/ que la lámpara que alumbra/ una imagen de Jesús,/ atraviesa el embozado/ la espada en la mano aún,/ que lanzó vivo reflejo/ al pasar frente a la cruz.” (El estudiante de Salamanca – ESPRONCEDA, 2008, p. 95-97) 217 – é um fato considerável. Mais robusta ainda é a de como se dá esse triângulo amoroso. A obra de Espronceda também se constrói pela atmosfera gótica, sem o vampirismo, porém, de Octavio e Branca. Os traços físicos de Montemart trajado à espanhola têm correspondência entre os dois textos, “Pesadelo” e “O estudante de Salamanca”, chamando a atenção para o fato de o empréstimo, o sombrero, não ser traduzido e grafado em itálico como no espanhol. Embora, Álvares de Azevedo use desse expediente, o conjunto dos aspectos do intertexto esproncediano não estão nele no “Poema do Frade”. Castro Alves segue com fidelidade a fisionomia do texto espanhol, recuperando motivos, tonalidade e léxico. Também, em Espronceda, constata-se o personagem libertino que erra às desoras da noite para cometer a perversão do crime. As imagens castroalvinas se espelham no texto espanhol. É a lâmpada incerta que mal ilumina a face sinistra dos dois criminosos, numa noite cerrada, sem estrelas, sem testemunhas, convidativa à perversão dos impulsos inconscientes. Há deslocamentos nas cenas. Castro Alves retarda o crime, expondo primeiramente o perfil sinistro de seu anti-herói libertino. Espronceda, diferentemente, põe em cena o assassinato sem delongas e, a partir daí, é apresentada ao leitor a face cruel de Félix de Montemart. A natureza toma parte do cenário em metáforas sinistras como a terra que se enluta como viúva chorosa em Castro Alves; Em Espronceda, a remissão ao globo é mais genérica e sugere a recuperação do passado sombrio que engendrará a trama. Outros deslocamentos são perceptíveis como o assassinato pelo punhal em um e pela espada em outro, mas, em ambos, ligeiros, sem luta renhida, decretando a morte do rival, silenciando de vez à noite. A morte encapela a noite, a metaforização lutuosa sai da restrição do terreno para a expansão cósmica em Castro Alves, visto que a rua que se recobre como crepe funerário naquele é substituída por este pelas mãos antropomórficas da noite que estende o lençol dos mortos sobre o amante infeliz. Inúmeros outros procedimentos poderiam ser ainda rastreados no confronto entre os textos como o estado desvairado e a morte da infeliz amante após a cena do crime ou a imagem erótica da lua que penetra com seus raios a janela da donzela em voyeurismo desconcertante. Fica a impressão de um poeta cujo manejo do verso já apontava o escritor que seria anos depois, a despeito da tenra idade. Com dezesseis anos apenas, Castro Alves domina a sextilha, emprestada a Àlvares de Azevedo, definindo um padrão regular aos versos; presta homenagem à tradição ultrarromântica e gótica, recuperando o enquadramento da atmosfera dos versos de Cardoso de Meneses; faz valer suas leituras de crimes e assassinatos em Gastineau, evocando 218 a personagem donjuaniana de Jorge Kerouard; cria, enfim, um conto gótico em poema, estampando-o como “poemeto”, seguindo os passos de Espronceda que assim o fez ao batizar O estudante de Salamanca como um “cuento” (conto). Crônica Jornalística Se “Pesadelo” é o primeiro modelo literário de Don Juan (re)criado pelo poeta baiano em seu contato com a experiência do gótico, a “Crônica Jornalística” aparecida no periódico de O Futuro é um continuador do donjuanismo de Castro Alves na esteira do exercício com os temas do sobrenatural em vigência no Recife acadêmico. Como o primeiro, a crônica é uma atividade da lavra dos raros trabalhos do poeta baiano no estilo da prosa. Como gênero pensado para o jornal, esse escrito representa, ao lado de “Crônica humorística”, publicada em 1870, uma fatura pouco aventada pelos trabalhos de crítica literária sobre o poeta. Na realidade, apenas um crítico se ocupou dos escritos do baiano voltados para os jornais de seu período acadêmico: Castro Alves não foi indiferente ao jornalismo. Se não o exerceu como militante, não deixou de tomar parte nas lides da imprensa, em mais de um jornal acadêmico, quer no Recife, quer em São Paulo. E podemos afirmar que na época em que ele viveu, como ainda hoje, salvo os donos dos jornais diários, ninguém vivia do jornal. Mas a imprensa acadêmica retrogradou porque naquela fase gozava de grande prestígio, principalmente nos ambientes culturais e comerciais, que a prestigiavam. (PASSOS, 1971, p. 159) Alexandro Passos, em seu Humanismo de Castro Alves, ainda esboça uma apresentação sobre a crônica de O Futuro, ficando, todavia, apenas na exposição superficial do periódico, sem entrar no texto, ao contrário do estudo mais atencioso que dedica aos trabalhos de crítica literária deixados pelo escritor. Nosso interesse também não é outro senão a incidência clara de uma componente estrutural ao mito de Don Juan que se acha ali e que, até então, não redundou em nenhum comentário a seu respeito. Outro aspecto que nos faz integrar o texto à série de produções artísticas sobre o tema do sedutor espanhol é o fato de que, mesmo sendo uma crônica, cujo rigor literário é, em tese, menos exigente, a qualidade estética do texto e a natureza de sua estrutura inclinada ao conto pesam favoravelmente no diálogo com o mito donjuanino. 219 Em linhas gerais, a “Crônica Jornalística” de O Futuro é, em última instância, uma paródia da vida acadêmica. O cronista narrador da história dá indícios, do início ao fim do texto, de que tem de arrematar para a folha da redação aquela incumbência de trabalho. Sua contrariedade reside, porém, no impasse de ter de escolher entre os compêndios de Direito Romano para sabatina do dia seguinte ou a folha jornaleira que também não se dobra a fazer concessões. É, portanto, uma crônica metalinguística, e, sem que o diga, ao mesmo tempo, humorística, pois relata a vida comezinha dos estudantes acadêmicos, divididos entre a faculdade maçante e a notoriedade do jornal. Observada pelo prisma da trama narrativa, porém, a crônica se estreita ao universo ficcional do conto fantástico: É MEIA-NOITE. Um senhor da redação chega-se a mim com ar carregado: - A crônica? - A sabatina é que tu chamas crônica? É verdade... a sabatina é a moléstia crônica do estudante. - Não; quero ler a crônica do Futuro que deve sair amanhã. Dá-ma. - Ah! Meu Deus... Ainda não a fiz. - Deixa de haver jornal, é o resultado... Compromisso e mais compromisso... Tomou o chapéu o meu colega e saiu com ar severo. Eu vi-o afastar-se, sem coragem de lhe dizer cousa alguma. Olhei em redor de mim; vi os senhores expositores escancarados, como querendo dar-me um insípido abraço; voltei a cara. Então no escuro do quarto pareceu-me ver uma figura terrível de caderneta em punho, molhando o lápis à boca, com este letreiro à testa – Bedel. – Era o fantasma do Comendador. (Crônica Jornalística – ALVES, 1997, p. 686) A fisionomia da crônica como é apresentada por Castro Alves trai o modelo tradicional esperado do gênero centrado nos assuntos banais do cotidiano. O que se sucede, no entanto, é uma fantasia bem ao gosto das narrativas que faziam o sucesso dos folhetins dos diários, sem perder de vista a censura e o tom pilhérico à vida de estudante. Uma fórmula da contística fantástica se percebe na introdução da crônica-conto de Castro Alves: a marcação temporal da noite. A noite como espaço de eleição da novela gótica aparece no conto fantástico também, mas com outra significação. Como visto em “Pesadelo”, a atmosfera bem definida do cemitério, da noite sem lua, dos crimes, e das perversões humanas, descreve o Loucus Horribilis da novela gótica, criando, portanto, um pacto prévio com o leitor que adentra a narrativa na expectativa do que encontrar em seu enredo: 220 A essência da narrativa gótica era a chamada de literatura do pesadelo, geralmente ambientada em castelos ou abadias, cujos labirintos eram o cenário ideal para cenas de terror e crime nas quais, muitas vezes, intervêm forças sobrenaturais. Tal narrativa explorava os lances dramáticos, o ritmo acelerado de aventura e rápida sucessão de acontecimentos surpreendentes, assustadores e emocionantes. O texto gótico exprime também uma crise moral, alternando momentos de angustia e depressão, idealizando a morte, o erotismo, a confissão e a fantasia. (MENON, 2007, p. 24) Como visto no subcapítulo anterior, textos como “Pesadelo” e “Octavio e Branca” se inscrevem nas categorias supracitadas da definição mais geral do gênero gótico, com ligeiras diferenças, que os separam em sua essência narrativa, a exemplo da ausência do traço sobrenatural no poema gótico de Castro Alves, que em Cardoso de Meneses aparece em toda sua força expressiva na alusão aos vampiros. A “Crônica Jornalística”, ao contrário, já ambientada num cenário conhecido do mundo regido pela nossa convencional razão, não se familiarizaria com esses requisitos da novela gótica. Esse último texto de Castro Alves, passando-se, incialmente, no espaço reservado ao quarto de estudo do cronista, sem, portanto, aderir ao enquadramento tétrico fomentador do terror, dista dos quadros sinistros que o leitor romântico eventualmente encontraria naquele outro gênero do romance negro: O romance gótico, ou Gothic novel, move-se em princípio no elemento fantasmagórico, criando o efeito de terror pela ambientação em lugares lúgubres e solitários, como castelos sombrios, cemitérios abandonados, passagens secretas e masmorras. Seus recursos técnicos são o mistério e o suspense, e seu enredo está centrado na oposição entre inocência e perversidade, na luta entre o Bem e o Mal. (VOLOBUEF, 2005, p. 115) A crítica Karin Volobuef, em estudo ao fenômeno da orgia na prosa de Noite na Taverna e Macário de Álvares de Azevedo, leitura de base de Castro Alves, analisa a presença da noite nessas obras como força geratriz dos impulsos inconscientes de seus personagens. Tomando o argumento da embriaguez e da orgia verbal que movem aquelas histórias, Volobeuf (2005) considera, a rigor, imprecisa a classificação da prosa azevediana como uma produção literária ligada ao gênero gótico. Apoiando-se nos estudos de Todorov, entre outros críticos, afirma ser Noite na Taverna, antes, uma experiência de metaescrita literária provocada pelos efeitos do álcool e da embriaguez noturna em seus personagens, perdendo o componente, em seu entendimento, indispensável do sobrenatural: 221 Mas – é importante notar – não retoma o sobrenatural. Embora os críticos costumem referir-se a estes contos como “fantásticos” e Eugênio Gomes (1953, p. 13) fale de “histórias de terror e perversões” que exerceram “poderosa influência sôbre alguns espíritos inclinados à sedução do horror” – nada há neles que exceda o natural. Não nos deparamos com fantasmas nem assombrações, mas com aventuras no estilo dos romances de capa e espada, em que donzelas são raptadas enquanto dormem, outras são vendidas a piratas, jovens mancebos duelam à luz da lua e vultos atravessam sorrateiros as sombras noturnas. (Ibid, 2005, p. 116) [grifos do autor] A refletir sobre o pressuposto da componente sobrenatural engendrando a diégese narrativa, não teríamos em “Pesadelo” um modelo genuíno do gótico realizado por Castro Alves. Não seria, rigorosamente, a aplicação tácita das novelas góticas surgidas no século XVIII, cujo parâmetro de expressão literária teria sua correspondência em O monge (1796), de Matthew Lewis, obra reconhecida por sintetizar as características do gênero na Inglaterra. Todavia, ainda que despido dos eventos sobrenaturais presentes na prosa gótica, “Pesadelo”, desde o título sugestivo sintonizado com o universo sombrio do gênero, até, como já visto, a eleição dos cenários, temas e imagens, guarda inegáveis relações com o gótico praticado no século XIX. Não, seria, portanto, o gênero executado em sua plena expressão, mas o exercício literário do gótico que o escritor baiano não quis ou não soube captar das leituras às quais teve acesso, como Cardoso de Meneses, em Octavio e Branca, e Espronceda, em O estudante de Salamanca. Ademais, é importante considerar aquilo que se entendia como gótico no século XIX, tendo em vista que Noces Lugubres (“Noites Lúgubres”) (1789-1790), de José Cadalso, obra introdutória do gênero na Espanha, e que também modelou obras como Noite na Taverna, não apresenta a intrusão do elemento sobrenatural (CÂMARA, 2014, p. 7). O conto de Cadalso, introduzido por Bernardino Ribeiro no Brasil em 1844 na Minerva Brasiliense, se passa em meio às cruzes e tumbas do cemitério e seu protagonista Tediato profana o túmulo da esposa a fim de lhe recobrar o corpo. Estaria aí a semente de Noite na Taverna e do drama ultrarromântico de Castro Alves, ressignificados pela perversão dos personagens que não encontra paralelo no texto de Cadalso, uma vez ser a obra do espanhol voltada para efeitos moralizantes, como veremos na análise de A prole dos saturnos. Entretanto, a despeito da correção dos costumes, guarda também com “Pesadelo” esse universo do macabro e dos distúrbios psíquicos humanos num período muito anterior ao advento do ultrarromantismo na Europa, e que Castro Alves, igualmente, soube explorar em seu poemeto em cenas escatológicas: 222 Num esquife entreaberto está deitado Um cadáver de moço abandonado. E entregue às intempéries... sem amigos Sem ter quem vá ali chorar um pranto. Tu, que cantaste os sentimentos puros, Qu'encontraste no mundo um doce encanto, Tu dormes, sonhador, já macilento, Entregue aos vermes vis, posto ao relento. (...) Quem perturba esta lúgubre morada? Uma mulher... É Laura, a apaixonada. E ela chegou-se rindo e soluçando C'um rir entre medonho e entre formoso, Seus lábios tressuavam de ironia Ao mesmo tempo de inocente gozo. Junto ao verde cadáver ajoelhou E com os lábios ardentes o beijou. (Pesadelo – ALVES, 1997, 387-388) [grifos nossos] A crônica de O Futuro, porém, figura-se mais próxima de outra modalidade literária com a qual o gótico também se avizinha: o fantástico. Em oposição à imagem convencional da atmosfera gótica, aqui se tem o mundo tangível, do dia a dia, reforçado mesmo pelo gênero crônica atrelado às questões prosaicas do mundo real e do tempo presente. A incidência do insólitio que sobrevem à narração estabelece uma ruptura com a sequência natural dos fatos narrados e com as leis que regem a razão humana. É através desta fissura no universo real que se dá o aparecimento do fantástico e, no caso da crônica castroalvina, a retomada do mito de Don Juan: “Então no escuro do quarto pareceu-me ver uma figura terrível de caderneta em punho, molhando o lápis à boca, com este letreiro à testa – Bedel. – Era o fantasma do Comendador”. A descrição pilhérica da figura do inspetor, apontando a falta letiva do narrador estudante, perde de vista as filigranas que envolvem a narrativa fantástica em questão. Como já visto no capítulo dedicado à evolução do mito literário, o motivo do revenant é um dos mais notáveis e responsáveis pela perenidade das sequências narrativas donjuaninas. Nascido da oralidade popular, por questões de finalidade moral, a personagem do além-túmulo foi reconfigurada pela pena de Molina a serviço do ideário contrarreformista no seu El burlador de Sevilla. Representava o triunfo da Igreja sobre o homem e uma reção à tradição clássica do deus ex-machina, presente nas modalidades de teatro espelhadas nos mitos greco-latinos. No confronto a outros mitos da tradição literária ocidental moderna, era o contraponto ao exemplo da salvação do Fausto de Goethe, cuja intervenção da mão divina o arrebata a Mefistófeles das 223 potências infernais à última hora. Em Molière, também como já abordado, essa componente é uma obediência à fabulação narrativa, mas que servirá de gancho à recepção daquela obra, o Festin de Pierre, no século XIX na França para à conformação da moda fantástica de 1830 pelo afrancesamento dos contos de Hoffmann e continuidade em escritores como Balzac, Mérimée e Gautier. Na crônica de Castro Alves fica patente a apreensão da tradição do mito de Don Juan pelo aporte das sequências mítico-literárias praticadas pela moda fantástica que chegava no Brasil nos anos de 1850 como nos dão mostra os periódicos pernambucanos de o Jornal do Recife e O Cidadão, restringindo a análise à recepção local onde se encontrava o poeta baiano nos primeiros anos de 1860. A menção do confronto de Don Juan com o além-túmulo pelo prisma do fantástico, despertando o pavor no narrador estudante, “sucumbi, um calafrio passou- me pelo corpo” (Crônica Jornalística – ALVES, 1997, p. 686), é um motivo muito comum na popularização do gênero alcançado pela difusão da imprensa periódica francesa, já disseminada em território nacional brasileiro. Se atentarmos para as definições de Todorov (2008), no plano da expressão verbal, de como se modela a construção da contística fantástica em meados do século XIX, objeto de recorte de seu estudo, veríamos quão sintonizadas estariam essas narrativas com o discurso da crônica e da crítica literária do poeta baiano. Os contos fantásticos publicados nos anos de 1830 na França e repercutidos no Brasil entre 1850 a 1865 apresentavam os eventos insólitos na narrativa construídos pela ambiguidade enunciativa do narrador, o que assegurava o efeito esperado da dúvida no leitor. Em análise mais detida ao gênero exercido na França nas obras de Nerval e Gautier, por ocasião da leitura dos contos de Hoffmann, o crítico búlgaro dá melhores detalhamentos sobre esse traço distintivo: A ambigüidade prende-se também ao emprego de dois procedimentos de escritura que penetram todo o texto. [...] chamam-se eles: o imperfeito e a modalização. Esta última consiste, lembremo-lo, em usar certas locuções introdutivas que, sem mudar o sentido da frase, modificam a relação entre o sujeito da enunciação e o enunciado. Por exemplo, as duas frases “Chove lá fora” e “Talvez chova lá fora” referem-se ao mesmo fato; mas a segunda indica além disso a incerteza em que se encontra o sujeito que fala quanto à verdade da frase que enuncia. [...] Se essas locuções (relativas ao tempo verbal no passado) estivessem ausentes, estaríamos mergulhados no mundo do maravilhoso, sem qualquer ligação com a realidade cotidiana, habitual; por meio delas, somos mantidos nos dois mundos ao memso tempo. O imperfeito, além do mais, introduz uma distância entre a personagem e o narrador, de tal modo que não conhecemos a posição deste último. (TODOROV, 2008, p. 43- 44) 224 O pesquisador do fantástico, mapeando as incidências de ambiguidade manifestadas na relação dos eventos insólitos com o plano linguístico na obra de Nerval, apontava formulações comuns às encontradas nas narrativas sobre o gênero: Parecia-me que, que me parecia, Acreditei, Sentia-me, Tive a sensação de, tornava-se claro para mim. O emprego linguístico destas locuções é facilmente encontrado em Castro Alves. Em apreciação crítica, como já citado, ao sentido expresso pela natureza na obra de Hoffmann, o baiano mimetiza o próprio recurso linguístico utilizado por esse autor: “Em Hoffmann (a natureza) é vertiginosa ou fantástica, parece que desatina aos clarões avermelhados do punch” (O Futuro, 30 juin. 1864, n. 2, p. 24) [grifos nossos]. A crônica em destaque também lança mão da fórmula fantástica: “Então no escuro do quarto pareceu-me ver uma figura terrível de caderneta em punho”. (Crônica Jornalística – ALVES, 1997, p. 686). A apropriação do mito literário de Don Juan pela via do fantástico na “Crônica Jornalística” é reforçada por alusões de leitura associadas ao medo como os contos fantásticos de mil e um fantasmas de Alexandre Dumas, o personagem fantasmagórico de Bânquo, em Macabeth de Shakespeare, e o similar de Lorde Byron, Oscar d’Alva, no poemeto homônimo do escritor inglês. A ambientação do cenário lusco-fusco também sugere desprendimento da realidade, favorecendo a impressão do sobrenatural: “Aos últimos clarões da luz, que morria, percebi uma figura sinistra, que se aproximava de mim.” (Ibid. p. 686) A luz baça do quarto do estudante gera incertezas, criando as condições ideais para a imaginação noturna. Vale lembrar que o efeito produzido pelo fantástico, de dúvida, de hesitação, até o arremate da trama, não se torna inverrossímil aos olhos do leitor que queira enxergar a narrativa pela previsibilidade de sua estrutura. Aquele, quando investe na leitura desta, estabelece um pacto prévio de que um evento insólito irá assomar a algum ponto do enredo, cabendo a ele decidir se aceita as regras desse jogo ou não; é o que Todorov (2008) chama de efeito fantástico, subjacente ao gênero, numa coerência interna ao próprio texto, à revelia do interese imediato do leitor. Logo, a menção ao estado de sonolência que eventualmente justificaria as impressões fantásticas do narrador não dá a medida ao juízo avaliativo do texto sob pena de relativização do gênero. É, assim, que a narrativa de Castro Alves mantém, de igual sorte, preservada esse aspecto da ambiguidade à estrutura interna do enredo, projetando o leitor virtual, e o leitor do jornal para qual ele escreve, no seio da hesitação do fantástico: “A luz ia pouco a pouco extinguindo-se, e eu via-a morrer inanida; minhas pálpebras pesavam” (Crônica Jornalística – ALVES, 1997, p. 686). 225 É o sono que dá asas à imaginação do estudante. Entretanto, essa é uma possibilidade de interpretação ventilada ao leitor, caso decida pela manutenção das leis que regem à razão humana. A outra, seria a fantasia que decorre desse estado de sonolência que assalta o narrador, se se der crédito ao que este enuncia. A escolha entre um, ou outro, é o que produz o fantástico, ou seja, a hesitação. Na cena seguinte à luz mortiça que ilumina o quarto, uma senhora, trajando “novidades velhas, com um corpinho de dissertações extemporâneas, um balão de insipidez, as botinas da fábrica redação” aparece aos olhos do estudante: é a crônica do jornal. A dama tira o narrador de seu estado de letargia e ambos saem a passeio pelas ruas da velha Recife acadêmica. Pouco mais à frente, o narrador é arrebatado como o “Pecopin de Hugo”, e vão parar na Bahia. A alusão a essa fantasia do escritor francês, Légende du beau Pécopin et de la belle Bauldour (1842), estampadas nas edições da Bibliotheca Litteraria como “Beau Pécopin et belle Pécopine”, mostram a intimidade com outro gênero fronteiriço ao fantástico: o conto maravilhoso. O Pecopin de Victor Hugo, assim como a crônica de Castro Alves é uma paródia, não à vida acadêmica, mas ao romantismo feérico medieval, visto que seu personagem abandona a esposa, a Pécopine, nas vésperas do casamento para gozar dos prazeres de uma caçada fantástica com os amigos na floresta. O texto hugoano, muito pouco difundido nos estudos do francês, é ao mesmo tempo aqui uma presença de peso à condução da narrativa, tendo em vista os meandros que envolvem a relação de seus protagonistas com o mundo que os cerca: o do matrimônio burguês, em Hugo, o do cumprimento dos deveres escolásticos, em Castro Alves. Entretanto o texto de Victor Hugo é uma fantasia onde as leis do sobrenatural permanecem do início ao fecho da narrativa, não aventando a possibilidade da dúvida que marca os contos hoffmanianos ou a crônica de Castro Alves. O momento-chave do conto, porém, depois de várias digressões das quais o narrador irá se valer para dar corpo a matéria solicitada pelo jornal, está no retorno à casa. Despedindo-se da senhora, esta lhe cobra um abraço de despedida, ao que sucede um aperto que lhe abala os ossos. Transcrevemos a passagem: Então senti um arrocho terrível, um abalo que me dilacerava todos os membros... - Deixa-me por piedade, murmurei. - Qual deixá-lo. Qual nada. Um abalo mais forte deslocava, os ossos se me estalavam, soltei um grito, e... 226 ........................................................................................................................... E acordei... tendo junto de mim um companheiro de casa, que me sacudia pelo braço a gritar: acorda para a aula. (Crônica Jornalística – ALVES, 1997, p. 689-90) Esse momento da crônica traz duas ponderações que aqui cabem considerar. A primeira, relativa ao próprio gênero fantástico, diz respeito a modalidade empregada pelo escritor. Aqui não temos mais o fantástico tradicional que normalmente se encontra nos contos hoffmanianos cujo desfecho produzem a dúvida definita no leitor. Estaria o conto castroalvino ligado à modalidade do fantástico-estranho de que fala Todorov (2008) e que consiste na explicação aos eventos insólitos que são apresentados ao leitor no decurso da narrativa e que permitem uma reconstituição da leitura pela observação da razão. Em outras palavras, o texto assegura uma suspensão do insólito até o seu último instante, o fecho, momento no qual uma solução racional é apresentada ao clima sobrenatural de inquietação que pairava na trama, restituindo ao leitor o equilíbrio narrativo. A revelação final de que tudo não havia se passado de um sonho do narrador, explicando o sobrenatural ao leitor, aponta para o domínio desta modalidade do gênero fantástico em Castro Alves. Apontando leituras com características bem definidas como o maravilhoso de Victor Hugo ou o fantástico no estilo de horror de Alexandre Dumas, o poeta baiano escolhe um caminho alternativo, de um gênero bem disseminado na França, o fantástico- estranho, pelo qual se destacaram Théophile Gautier e Gérard de Nerval, trazidos à tona pelos estudos pioneiros do tema por Tzvetan Todorov. A compreensão dessa prática da literatura fantástica é ainda endossada pelo reforço à ocorrência do evento insólito inicial na crônica. Ao perguntar ao amigo, que lhe sacudia fortemente, se tudo aquilo não havia passado de fantasmagoria, o estudante solta uma confissão final: “É verdade, caros leitores, eu tinha adormecido desde que olhara para os expositores de Direito Romano, que (não passe adiante) dispensam a cultura do ópio no Brasil”. (Crônica Jornalística – ALVES, 1997, p. 690) É, pois, um paraíso artificial que engendra, juntamente ao sono incontido do estudante, toda a narrativa, sinalizando o domínio seguro do gênero contístico por Castro Alves em função da permeabilidade que admite o espaço literário da crônica. 227 A outra ponderação diz respeito a como o escritor também se vale do mito literário de Don Juan, ainda que minimamente na composição da crônica. O desfecho da narrativa traz uma imagem bastante peculiar às sequências literárias do mito. No quinto e último ato de o Festin de Pirre, uma sombra que representa o tempo com uma foice, antecede o aperto final do Comendador que irá abismar o personagem ao inferno. Essa imagem também estava na leitura do Recife, em O estudante de Salamanca de Espronceda: O esqueleto cariado e lívido os braços frios, longos e asquerosos, envolve-o em muitos laços apertados, e ávido o acaricia em sua ansiedade: e com sua boca cavernosa busca a boca de Montemar e à sua bochecha a árida, descarnada e amarela face repugnante se junta e esfrega. (ESPRONCEDA, 2008, p. 146)221 O encontro final com a morte, personificada pela seduzida Elvira na versão do espanhol romântico Espronceda, traz novos contornos ao mito literário através da imagem da mulher cadáver responsável pelo destino fatal do personagem. É uma sugestão literária que não aparece com a força expressiva original na passagem para o texto castroalvino, dado o seu estilo humorística, mas que contribuiu para o enriquecimento de leituras no sentido de uma visão mais madura do mito donjuanino. 221 “El carïado, lívido esqueleto,/ los fríos, largos y asquerosos brazos,/ le enreda en tanto en apretados lazos,/ y ávido le acaricia en su ansiedad:/ y con su boca cavernosa busca/ la boca a Montemar, y a su mejilla/ la árida, descarnada y amarilla/ junta y refriega repugnante faz.” 228 2. NAS ARCADAS PAULISTAS: ENTRE O GÓTICO E O DRAMA A ida de Castro Alves de Salvador a São Paulo, passando antes pelo Rio de Janeiro, para cursar o terceiro ano da Faculdade de Direito no Largo do São Francisco em 1868, possibilitou novas experiências de leitura. Passar pelas arcadas por onde haviam antes cruzado Álvares de Azevedo e Fagundes Varela foi um marco simbólico que lhe faltava à imagem prefigurada de poeta laureado. Desse contato esperado, o escritor reforçou a preconcebida imagem romanesca que trazia da cidade, da academia, dos lentes, e da atmosfera espanhola e enevoada que pairava sobre a terra de Azevedo: Eis-me em São Paulo, na terra de Azevedo, na bela cidade de névoas e de mantilhas, no solo que casa Heildelberg com a Andaluzia... [...] Se a poesia está no envergar do ponche escuro e largar-se campo fora a divagar perdido nestes gerais limpos e infinitos como um oceano de juncos; se a poesia está no enfumaçar do quarto com o cigarro clássico, enquanto lá fora o vento enfumaça o espaço com a garoa, [...] com a garoa ainda mais clássica; se a poesia está no espreitar de uns olhos negros através da rótula dos balcões ou através das rendas da mantilha que em amplas dobras esconde as formas das moças, então a Paulicéia é a terra da poesia. – Sim! Porque aqui não há senão frio, mas frio da Sibéria; cinismo, mas cinismo da Alemanha. [...] Escrevo-te à noite. Faz frio de morte. Embalde estou embuçado no capote, e esganado no cachenez... [...] Olha, se leres poesias nebulosas, germânicas, tiritantes, híbridas, acéfalas, anômalas... não critiques nunca antes de ver se são de São Paulo, e se forem... cala-te. (A Augusto Álvares Guimarães – ALVES, 1997, p. 752-54) [grifos do autor] A impressão da cidade retratada sob o signo do ultrarromantismo não é gratuita em Castro Alves. Ali começaria seu projeto de drama ultrarromântico, tendo no personagem de Don Juan o modelo de sua história. As informações sobre o D. Juan e A prole dos saturnos resulta em uma série de problemas de definição histórica sobre o texto, de como, onde e em que circunstância foi concebido, da classificação que a ele é atribuída, e quais textos motivadores formularam seus quadros, cenários e personagens intrigantes. Algumas pesquisas foram feitas neste nosso trabalho para jogar luz sobre esses eventos nebulosos que envolvem a fixação do texto literário de A prole dos saturnos. Pesquisamos a imprensa periódica carioca, notadamente a folha A Reforma, entre 1871, ano da morte do poeta, e 1875, ano da morte de Campos de Carvalho, um amigo naqueles tempos das arcadas paulistas, esquecido pelos biógrafos de Castro Alves, mas que teve sob posse, pouco depois da morte deste, as obras completas do baiano, muito antes das edições de seu espólio saírem em obras reunidas por Múcio Teixeira, 229 Homero Pires e Afrânio Peixoto. Toda essa pesquisa histórica traz dados novos sobre os acontecimentos relacionados ao escritor pouco depois de sua morte e não encontra ressonância em trabalhos históricos e bibliográficos como Pace (1980) e Costa e Silva (2006), de sorte que a tomaremos como parâmetro, daqui por diante, para o estudo do texto. À guisa de esclarecimento A prole dos saturnos é, de longe, a composição literária de Castro Alves que mais divide opiniões entre os seus estudiosos. Contribui para isso a feição fragmentária e imprecisa sobre a qual se deu o estabelecimento do texto definitivo. É de Afrânio Peixoto, com as Obras Completas (1921), a responsabilidade como autoridade maior na revisão dos manuscritos do poeta sob o olhar vigilante e auspicioso de sua irmã, Adelaide Guimarães de Castro Alves. De posse dos autógrafos e dispersos do escritor baiano, Afrânio, na sua avaliação final sobre a questão, deixa entender a incompletude daquela peça dramática finalmente integrada ao conjunto da obra castroalvina na edição dos anos 1920. O peso da palavra do reconhecido biógrafo ressoa ulteriormente em estudos respeitáveis para os quais a indefinição do drama Don Juan já era ponto pacífico. É assim que estudos como o de Eugênio Gomes (1997) e o de Alberto da Costa e Silva (2006)222 ainda repercutiam o pensamento ultimado por Afrânio Peixoto que, em notas comentadas a sua Obras (1921), desta forma, ponderava: D. Juan teria sido completamente escrito, vistos estes dois depoimentos? Não é possível saber. Nos seus papéis achei o autógrafo do 1º ato e a cópia respectiva, por letra de Augusto Álvares Guimarães (amigo e futuro cunhado do poeta), que aí ficaram publicados. Achei também, a lápis, letra de Castro Alves, e copiado igualmente por Augusto Guimarães, o seguinte esboço ou programa do 2º ato, o que permite talvez a presunção não tivesse sido realizado em escrita definitiva. (ALVES, 1921, v. 2, p. 240) [grifos nossos] 222 Destacamos estes dois críticos em detrimento de outros em função de sua maior abrangência no domínio da compilação textual (Eugênio Gomes) e do estudo biográfico (Costa e Silva) sempre referenciados nos estudos mais recentes sobre Castro Alves. Eugênio Gomes mesmo, na condição de diretor da Biblioteca Nacional, foi responsável pela organização e revisão dos manuscritos concedidos definitivamente pela família do poeta àquela instituição nos anos de 1950. Costa e Silva, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras, é o último nome na atualidade a propor uma biografia de fôlego sobre o escritor baiano seguindo a linha de uma tradição respeitável a que se reúnem os ilustres Xavier Marques, Afrânio Peixoto e Pedro Calmon. Adotamos, no tocante a Eugênio Gomes, a última edição de 1997 de Obra Completa, revisada e recorrigida, dando a saber, porém, a versão de 1960 como a primeira realizada por este crítico. 230 Como se percebe nas considerações supracitadas, a indefinição do drama não se trata de um caso de insuspeição, estando o crítico, de um modo, predisposto a inclinar-se, consoante os bosquejos do poeta que lhe caíram à mão, à alternativa presumida de um texto inacabado, mas admitindo, em contrapartida, a possibilidade – embora em seu juízo improvável – da existência do texto finalizado. O que se seguiu a esta apreciação do aclamado biógrafo de Castro Alves foi uma tradição crítica decorrente que, deliberadamente ou não, terminou por afastar o evento da dúvida e do contraditório. Muito possivelmente o equívoco tenha-se também perpetuado pela inferência mais incauta feita à observação de Afrânio a propósito daquilo que este considerava incompleto e, muitas vezes, tomado, como sinonímia, por inacabado pelos críticos posteriores. Mas em que consistia aquela questão levantada pelo organizador das Obras de 1921? Ao aludir aos tais depoimentos mencionados em nota de comentário ao drama em discussão, Afrânio Peixoto se reportava a uma carta do poeta na qual este cobrava ao amigo Luis Cornélio os manuscritos da peça esquecidos em uma caixa de chapéu no Rio, e à biografia de Valle Cabral sobre o autor apoiada no testemunho do cunhado Augusto Álvares Guimarães, com ambos documentos assentindo a favor da possibilidade de um fecho à obra. Destacamos o primeiro dos dois indícios: “Manda o D. Juan que ficou dentro da caixa do chapéu. Quem tal diria? Um conquistador... Manda ao Chico ou ao Augusto”. (A Luis Cornélio dos Santos – ALVES, 1997, p. 759). Francisco Lopes Guimarães Júnior, o Chico, era o outro cunhado do poeta, tendo sido responsável, como nos esclarece Tácito Pace, pela remissão das cartas da capital do Império destinadas ao poeta por Luís Cornélio, sob quem estava a posse dos manuscritos do drama. (PACE, 1980, p. 294). Pela solicitação feita por Castro Alves ao amigo, não se pode aferir a que passo se encontrava a evolução da peça, se iniciada apenas ou avançada em seu enredo, ou ainda, finalizada, carecendo, tão somente, de alguns acertos de revisão. Nenhuma notícia contínua ao episódio em análise foi registrada no epistolário do poeta aos amigos referidos, ficando apenas à posterioridade o que restou do drama: 42 folhas integradas ao acervo da seção dos manuscritos da Biblioteca Nacional. O segundo indício que sugere, se não a integridade da obra, uma perspectiva de avanço do trabalho, é creditado ao esboço biográfico de Alfredo Valle Cabral223, assistido pelas 223 Segundo informações de uma página da Biblioteca Nacional, o nome de Alfredo do Valle Cabral foi de extremo relevo para a reformulação da seção de manuscritos da instituição. Conjuntamente ao colega de repartição Teixeira de Mello, Valle Cabral deu luz ao periódico fluminense de efêmera circulação, a Gazeta Literária (1882-1883), 231 contribuições do testemunho do próprio familiar do poeta, Augusto Guimarães. Nesta biografia, Valle Cabral torna público o estado em que se encontrava aquela obra, sem que dela se pudesse depreender ou o arremate ou a indefinição de seu enredo, assegurando a admissão do campo da dúvida na ponderação sobre os eventos históricos subjacentes à avaliação cabal da natureza do texto: “Além do drama D. Juan, quase todo perdido, Castro Alves não possuía um só de seus primeiros versos. Foi dos fins de 1864 para cá que começou a guardar o que compunha. Ainda assim perdeu muita coisa impressa.” (Gazeta Literária, 1 de dez. 1883, n. 5, p. 102). Ao informar a dispersão dos originais, sem se deter mais profundamente sobre ela, o biógrafo não apenas aventa a leitura de interpretações discordantes sobre o registro da peça – ora inacabada, ora definida, porém extraviada –, mas traz curioso dado a respeito da diligência com a qual o poeta dispensava a suas produções. É de conhecimento geral que as composições literárias de Castro Alves, assim como os de muitos românticos, ilustravam primeiro os diversos periódicos das capitais pelas quais os acadêmicos transitaram para eventualmente saírem depois estampados nas vitrines das livrarias em forma de brochura. O alto custo das impressões imposto pelo mercado livreiro e as facilidades de trânsito dos estudantes das quais gozavam com as redações das gazetas do Império desenharam esse quadro da atividade literária no cenário oitocentista brasileiro onde as folhinhas jornaleiras levavam a preferência sobre a pompa das edições de luxo. No que concerne a esta questão, é possível que o poeta baiano estivesse sujeito à realidade desfavorável à qual os escritores eram submetidos no competitivo mercado editorial do país, ainda não fosse ele um principiante na concorrência das letras nacionais. As Espumas Flutuantes (1870) é exemplo notório da resistência oferecida pelos livreiros-editores em apostar no fomento a autores debutantes, embora promissores e potencialmente rentáveis a seus negócios, oportunizando antes escritores nacionais já renomados. Para aqueles que se aventurassem no alcance do prestígio proporcionado pelo livro, caberia só a eles assumir todos os riscos da empresa ou esperar na fila acirrada das subscrições. No caso de Castro Alves, a ânsia da glória ainda em vida e presumível numa edição de maior abrangência e aceitação do público ilustrado fez com que o poeta apressasse a publicação de seu livro, delegando, a amigos e familiares, os trâmites de negociação com os editores, cioso onde se encontra seu estudo biográfico sobre Castro Alves e do qual Afrânio Peixoto se serve para os comentários anotados às Obras (1921). Disponível em: . Acesso 6 set. 2017. Numa pesquisa mais detida sobre sua participação naquele periódico (Gazeta Literária, 15 de out. 1883, n. 2, p. 34) e (Gazeta Literária, 1 de dez. 1883, n. 5, p. 101) e ainda noutro intitulado A luz (1872-1896) (A luz, 6 out. 1872, v. 2, p. 97), constatamos seu trânsito com a imprensa baiana, dando notas precisas sobre as publicações dos biografados, onde se faz menção à tipografia Camillo de Lellis Masson, firma contratada para as edições de Espumas Flutuantes (1870) de Castro Alves e A Messalina (1864) de Antônio Augusto Mendonça, compatrício do grande poeta que, assim como o baiano Filgueiras Sobrinho com Auroras e Crepúsculos (1863), também publicado pela Lellis Masson, ficou à margem do cânone literário. 232 da iminência da morte que já lhe batia à porta. Intentando de início ver suas composições ressaltadas nas disputadas edições de Garraux ou Garnier, teve que ceder à realidade mais modesta das finanças de que dispunha, condizente com as vantagens oferecidas pelo negócio acordado com a firma baiana de Lellis Masson, pela qual acabou sendo de fato publicado. Em sujeição ao patronato do mercado editorial, os jovens escritores contavam com uma prévia de chamada publicitária anunciada na plataforma dos jornais a fim de angariar a simpatia do público e os fundos necessários à realização da empresa de se ver publicado. Deu- se, desta forma, a impressão de Espumas Flutuantes que reputou de uma boa apresentação do autor para a comunidade acadêmica o que, decerto, contribuiu para a boa fortuna da aceitação do livro: “Aos admiradores do poeta, aos amigos das letras, aqueles que ainda acreditam que um talento vale mais do que um banqueiro e a lira da mocidade merece mais consideração do que a retórica política pedimos atenção para o livro de Castro Alves”. (Imprensa Acadêmica, 23 de ago. 1870, n. 12, p. 4)224. Entre os textos do autor que seguravam a fila do prelo, conforme esta nota do jornal acadêmico paulista, estavam, em ordem de impressão, além de as Espumas Flutuantes, a promessa de publicação de Os Escravos, logo seguido de “o magnífico drama D. Juan começado aqui (São Paulo)”. (Ibid., p. 4). Essa informação, aliás, já havia sido esclarecida por Afrânio Peixoto em Obras (1921), a fim de definir o lugar e o momento da elaboração da peça, ou seja, entre 1868, período de sua rápida passagem na São Paulo acadêmica em que se deu o trágico acidente que culminou mais tarde na amputação do pé do poeta, e 1869, fase da recuperação deste incidente no Rio e regresso à Bahia de onde viera o seu pedido, ao amigo Cornélio, da remissão dos originais do D. Juan. Uma terceira linha de investigação sobre o assunto, visando fornecer dados, a nosso ver, relevantes à pesquisa histórica, diz respeito à notificação da mencionada obra na imprensa fluminense e paulista meses após à morte do poeta e, até então, não rastreada pela crítica biográfica. Assim como procedeu com as Espumas Flutuantes, tencionava-se publicar todo o espólio da obra do poeta e para isso houve uma movimentação entre amigos e familiares a fim de alcançar, desta vez, uma editora de maior expressão. Ensejava-se, pois, as condições oportunas que a morte dramática e precoce, assim como o alarido acadêmico despertado em 224 Disponível em: . Acesso em 18 nov. 2016. 233 torno do seu nome nas faculdades de direito, favorecia significativamente na aceitação dos volumes pelos editores da Corte. Em nossa consulta aos periódicos A República, órgão carioca dirigido por Quintino Bocaiúva225, e Correio Paulistano, periódico de São Paulo cujo proprietário, o Sr. Azevedo 225 Disponível em: . Acesso em 17 nov. 2016. Figura 26: Notícias sobre a publicação de obras inéditas de Castro Alves. A República, 6 nov de 1872. p 2. Fonte: http://memoria.bn.br/ 234 Marques226, era também redator, tomamos ciência dos reclames expeditos nesses veículos e pelos quais respondia o nome do Sr. Campos Carvalho: 226 Disponível em: . Acesso em 17 nov. 2016. Figura 27: Reprodução integral da matéria noticiosa de A República sobre os inéditos do poeta. Correio Paulistano, 15 nov. de 1872. p. 2. Fonte: http://memoria.bn.br/ 235 Como se pode observar nos documentos em destaque, um projeto de publicação de obras não dadas, até então, ao conhecimento público foi confiado pelos familiares de Castro Alves à iniciativa do “inteligente literato Campos Carvalho que, chegado ultimamente do Norte, trouxe consigo as obras inéditas completas do ilustre e chorado poeta baiano.” A nota informativa traz a peça “D. Juan, drama romântico” dentre as cinco produções em vistas de publicação na capital do Império para onde foram levadas. Não há nenhuma menção sobre a disposição fragmentária da obra e ela é tão somente apresentada como um dos cinco livros do autor a esperar o patrocínio de ser editado, acudindo-se especialmente ao interesse da firma do Sr. Garnier. A constatação de que a obra pudesse estar configurada em toda a inteireza de suas partes integrantes é corroborada por outra fonte documental que trazemos aqui à baila como resultado desta investigação. Em pesquisa a um segundo órgão da imprensa carioca, A Reforma: órgão democrático, identificamos a mesma matéria noticiosa sobre os inéditos do poeta, desta vez, destacando-se a qualidade à propensão de vê-los editorados em volumes independentes, o que faculta o levantamento da hipótese de que a peça admitisse um acabamento viável à publicação: O ilustrado acadêmico Campos Carvalho, autor daquele delicado volume intitulado Arabescos, está encarregado de fazer a impressão de várias obras do malfadado poeta Castro Alves. As obras que devem ser publicadas são os dramas Gonzaga e Don Juan, cada um em um volume, e mais outro volume de poesias contendo o poema os Escravos, o poemeto Cachoeira de Paulo Afonso, traduções de Espronceda, e algumas poesias líricas. Esses novos livros de Castro Alves são preciosíssimos e constituem um tesouro de subido valor. Fazemos votos pela pronta publicação de tais obras; Castro Alves é um dos nomes mais caros às letras nacionais. (Reforma: órgão democrático, 6 nov. de 1872, n. 256, p. 1) Novamente o nome de Campos Carvalho está à frente na incumbência de representante das obras do poeta no Rio de Janeiro. O Don Juan, anunciado em volume independente, não traz, no anúncio deste periódico, a divisa do título alternativo, A prole dos saturnos, com a qual se distinguiria mais tarde e conforme nos deu a conhecer Valle Cabral em sua biografia de 1883, uma década depois da divulgação dos inéditos na imprensa local227. Curiosamente, a 227 A propósito da relevância atribuída ao periódico A Reforma nos estudos biográficos sobre Castro Alves, apenas um ensaio a respeito do poeta de autoria de Joaquim Nabuco, distribuído inicialmente em três exemplares do periódico, e compilados numa publicação da Garnier em 1873, figura entre as fontes da pesquisa histórica mais respeitadas, sem que haja qualquer alusão, entre os comentadores contemporâneos e futuros ao escritor baiano, no tocante à iniciativa de Campos Carvalho em publicar os originais do escritor na imprensa carioca. 236 importância do benfeitor e acadêmico paulista foi apagada dos anais da história do poeta concernente a esta questão. Campos Carvalho, estudante de direito da Faculdade de São Paulo, transferido mais tarde para a academia do Recife, é referido, pelos biógrafos de Castro Alves, como um dos amigos devotos da musa do escritor baiano e da causa abolicionista, e testemunha ocular dos padecimentos que aquele sofrera decorrentes da tragédia no Brás228. Apesar de sua relativa importância na vida íntima do baiano, não acordou à posterioridade os eventos que pairam sobre a publicação dos manuscritos inéditos e aos quais se liga o olvidado acadêmico, e também poeta inspirado das arcadas paulistas. Uma preciosa e ligeira informação sobre ele, porém, foi deixada por Alfredo de Carvalho, prestigiado estudioso de Castro Alves a respeito da passagem do poeta baiano pela capital de Pernambuco. Amparado pelo testemunho de Regueira Costa, um dos amigos de Castro Alves no Recife, Alfredo de Carvalho é o único que nos dá ciência da relação de Campos Carvalho e o intento deste na publicação dos originais do poeta, sem, porém, estabelecer ou aprofundar qualquer vínculo daqueles inéditos com a imprensa carioca de A República e A Reforma: Por muito tempo o ilustre homem de letras a quem devo estes informes (Regueira Costa), conservou o original de um romanceto intitulado Mazzacio; mas, travando relações com um entusiasta de Castro Alves, o Dr. Campos de Carvalho, e manifestando este o desejo de publicar todos os trabalhos do poeta baiano, precedidos da história da sua vida, não teve dúvida em ceder-lhe o manuscrito, na esperança que viesse a dá-lo à luz. A morte prematura deste esperançoso beletrista impediu a realização do seu louvabilíssimo projeto, ficando, talvez, perdida mais esta joia da mentalidade fecunda de Castro Alves, porquanto o primitivo possuidor não guardou cópia do Mazzacio. (CARVALHO, 1907, p. 234-235) Os informes de Alfredo de Carvalho põem a nu a imprevidência de Regueira Costa no despacho de um romancete de Castro Alves confiado a Campos Carvalho infelizmente perdido pelas mãos deste último. No comentário em evidência, afirma o estudioso que o entusiasta do 228 Lugar no qual o poeta teve acidentalmente o pé atingido pelo disparo involuntário da arma que trazia a tiracolo e cuja carga de chumbo ali alojada provocaria dores lancinantes, seguidas de necrose e amputação. Eduardo Teles, com a anuência do próprio Jorge Amado, tem uma versão diferente para o famoso incidente. Apoiando-se em fontes alternativas e depoimentos de parentes, assim como a incongruência entre os fatos relatados, a exemplo da falta de registros médicos e boletins de ocorrência, e, sobretudo, embasando-se nas motivações que agitavam a vida política no país, dividido entre os ânimos acirrados dos integrantes dos partidos liberal e conservador, a questão abolicionista e a manutenção da estrutura fundiária tradicional, Teles (2001) interpreta a lacunosa página da biografia do poeta como uma retaliação duramente aplicada por seus opositores políticos e que o forçou penosamente à resignação e ao encerramento do caso. 237 poeta “pretendia publicar todos os trabalhos do poeta baiano, precedidos da história de sua vida”. De fato, Campos Carvalho produziu um Esboço Litterario sobre a obra de Castro Alves e o qual se encontra disponível em quatro números de o Correio Paulistano229 no ano de 1871. Incompleta esta extensa apreciação crítica presente no jornal paulista, Campos Carvalho poderia ter se apropriado do material para uma futura biografia mais fundamentada e de maior fôlego a partir de seus contatos travados com os familiares e amigos do poeta. Dermevilly Nóbrega foi o único a se ater ao imbróglio das evidências históricas, ocupando-se de situar na linha do tempo o lugar e o papel destinados àquela misteriosa obra Mazzacio230. Como afirma o ensaísta, nem mesmo “Afrânio Peixoto, doutor em Castro Alves, [...] se dignou estudar o problema contido na informação de Regueira Costa.” (Jornal Pequeno, 14 mar. de 1947, n. 60, p. 3). Ora, se o próprio autor de Obras (1921), responsável pela edição dos inéditos do grande poeta, não mergulhou nesta questão, é plausível admitir a ignorância do estimado crítico sobre o fato histórico em evidência, haja vista não ter escrito uma linha a esse respeito. Nóbrega (1947) e Pace (1980) dão-nos, a partir de suas pesquisas, um bom apanhado sobre os dados biográficos de Campos Carvalho, sem, porém, correlacionar as informações colhidas em Alfredo de Carvalho à publicidade contida em A República e A Reforma231. O testemunho de Alfredo de Carvalho é compatível com o noticiário do intento da publicação dos inéditos veiculados pela imprensa do Rio. As lacônicas palavras do bibliófilo 229 Em nossa pesquisa a este periódico paulista, identificamos os números 4484 (20 jul de 1871), 4495 (3 ago de 1871), 4497 (5 ago de 1871) e 4507 (18 ago de 1871). Entretanto, a sequência prometida ao número de 18 de agosto não se efetivou, o que nos leva a considerar o depoimento de Regueira Costa transmitido por Alfredo de Carvalho de que Campos Carvalho intentava dar à luz a história da vida do poeta, correndo atrás de mais informações e dos inéditos do escritor baiano. 230 Apoiando-se igualmente nos testemunhos de Regueira Costa por via de Alfredo de Carvalho e no Castro Alves: Esboço Literário, versão sintetizada de Esboço Litterario, reeditado para figurar na série de artigos e depoimentos de Homenagem do Instituto Geográfico da Bahia ao grande poeta brasileiro Antônio de Castro Alves em 1910, Demervilly Nóbrega considera que o amigo do poeta havia levado “para o túmulo o desgosto de ter sido imprevidente, deixando que se perdesse o original de tão importante trabalho (Mazzacio)” (Jornal Pequeno, 14 mar. de 1947, n. 60, p. 5). Disponível em: . Consultando este estudo, porém, constata-se que Nóbrega não pode apurar tais indicações sobre a relação de Castro Alves e Campos Carvalho no cuidado dos inéditos daquele senão pela seleta resumida do Esboço Litterario presente em Homenagem, sem averiguar as fontes primeiras anotadas em Correio Paulistano. Isso fica claro quando folheamos o texto de Campos Carvalho para aquela edição laudatória ao poeta – e à qual Nóbrega referenda em seu estudo – e que traz como nota de rodapé a referência da fonte datada de 3 de agosto de 1871 (referente ao número 4495), sem considerar as outras três versões (números 4484, 4497 e 4507). Sem a posse dos quatro números do célebre jornal paulista e, sobretudo, sem a publicidade dos inéditos divulgados na imprensa carioca, não pode o ensaísta avançar naquilo de informativo que Alfredo de Carvalho já trazia em seu levantamento biográfico sobre o baiano. Ainda assim, o trabalho de Nóbrega revela-se, senão completo, uma voz solitária na importância investigativa e determinante do acadêmico Campos Carvalho no tocante ao seu papel exercido na condução de uma parte do espólio do poeta das Espumas. 231 Como Dermevilly Nóbrega, Tácito Pace ignora o Esboço Litterario de o Correio Paulistano, referindo, assim como aquele, ao estudo de Campos Carvalho presente em Homenagem, ao qual, como já vimos, dá como fonte e data o jornal paulista de 3 de agosto de 1871. 238 pernambucano sobre o caso dos originais nos sugerem que nem mesmo ele estivesse a par destas circunstâncias, uma vez que não se estendeu sobre elas, nem as referendou no seu estudo sobre o poeta, reproduzindo de ouvido o que pôde colher e anotar das memórias de Regueira Costa abertas a sua confiança. Se, agora sabemos da atuação de Campos Carvalho como o correspondente do poeta baiano no Rio, de sua imprevidência no trato de um exemplar dos originais como Masaccio, consoante informa Alfredo de Carvalho, de seu projeto de recolha dos dispersos e de publicação de uma biografia respeitável, e de seu precoce falecimento em 1876, segundo Nóbrega e Pace, somos inclinados a admitir a hipótese igual de que os originais de D. Juan se extraviaram pelas mãos do amigo e entusiasta de Castro Alves assim como sucedeu com o romancete jamais recuperado. Ao menos que se queira o pressuposto de que Campos Carvalho houvesse faltado com a verdade dos fatos a respeito do acabamento da obra à qual a imprensa carioca dá notícia – programada para uma publicação independente – a fim de pleitear favoravelmente os votos necessários à editoração do maior número dos inéditos do poeta, propendemo-nos a aceitar a admissão do extravio da peça confiada ao acadêmico paulista. Declinamos, de igual modo, a hipótese da omissão calculada de Campos Carvalho sobre o conhecimento do estado de incompletude no qual se encontrava o drama, sob pretexto de publicidade a todo custo, visto que os números onde constavam as chamadas publicitárias dos inéditos na imprensa carioca e paulista traziam logo retificadas informações inexatas de outras edições periódicas a propósito da apresentação de parte daquele espólio sob seus cuidados como procedeu às traduções de Espronceda232. Há de se considerar, portanto, todo o empenho devotado pelo acadêmico paulista na perpetuação da memória do poeta baiano e que, por circunstâncias adversas à sua vontade, como o seu desaparecimento precoce e a aparente inércia dos editores, não pôde realizar a tempo e a contento a impressão dos inéditos233. A propósito, a segunda condição parece assaz razoável ao 232 O Jornal do commercio, um ano antes a 1872, noticiando a morte do escritor baiano e o seu legado cultural deixado em manuscritos, faz menção a “um drama, D. Juan” e a “a tradução do ‘Diabo-mundo’ de Espronceda”, induzindo aos leitores à falsa impressão de que Castro Alves houvera traduzido esta última obra espanhola em sua integridade. (Jornal do commercio, 23 jul. de 1871, n. 202, p.2) Disponível em: . Na realidade, iniciou o poeta brasileiro apenas a introdução dos versos que abrem El Diablo Mondo, estando essa retificação já depois presente nos periódicos de Reforma e Correio Paulistano, o que nos leva a depreender o compromisso com a lisura no processo das informações veiculadas. 233 Esse esforço pode ser traduzido por dois informes divulgados pela imprensa da época. Em carta de autoria de Campos Carvalho tornada pública pela imprensa paulista, o Correio Paulistano de 9 de maio de 1872 noticiava que o acadêmico tivera acesso a inéditos de Castro Alves por cópia cedida pelo irmão, mencionando a família do poeta e uma de suas irmãs, à ocasião de sua passagem pela Bahia. Decorridos 6 meses dessa notícia, o mesmo 239 insucesso do projeto, uma vez que o apelo publicitário se viu mais de uma vez estampado nas páginas da imprensa carioca: “Fazemos votos para que as obras inéditas de Castro Alves sejam editadas quanto antes”. (A Reforma, 13 nov. 1872, n. 262, p.1)234. Vingaram apenas informações noticiosas sobre o episódio nestes exemplares esparsos da imprensa nacional que aduzem à possibilidade real do lançamento do Don Juan em volume independente. Mais curioso ainda é saber que os volumes a serem publicados alcançaram a atenção da publicidade literária, estendendo suas fronteiras na recepção para além-mar como fica evidente no anúncio dirigido à comunidade literária portuguesa pelo raro periódico Artes e Letras publicado em Lisboa235: patrono das obras do poeta é referendado na capital do Império pelo periódico já aludido A República de 6 de novembro de 1872, como tendo “chegado ultimamente do Norte” e trazendo as obras inéditas completas do poeta baiano. A menção ao “Norte”, nominalmente assim registrado à extensão territorial das províncias situadas mais ao norte do país a exemplo de Pernambuco, coaduna-se com o relato de Regueira Costa no qual este entregou àquele no Recife o romancete Mazzacio a fim de vê-lo editorado. Observa-se, conforme o órgão carioca, que Campos Carvalho trazia obras inéditas a ele confiadas, o que faz supor ter o acadêmico sob sua posse alguns originais deste encontro com o velho amigo do poeta e, segundo o órgão paulista, cópias adquiridas da viagem em maio a Bahia, creditando-se à sua pessoa o juízo de benfeitor do legado artístico de Castro Alves. Destes dois documentos, fruto das viagens respectivas a Bahia e a Recife, das relações travadas entre familiares e amigos, pode reunir o máximo de dispersos e inéditos dos quais se dignou para publicação. 234 Disponível em: . Acesso em 5 dez. 2016. 235 Disponível em: . Acesso em 5 dez. 2016. Figura 28: Publicidade dos inéditos de Castro Alves sob encargo de Campos Carvalho. Artes e Letras, 1872, p. 176. Fonte: http://www.orealemrevista.com.br/ 240 Como esclarece o periódico lusitano, o D. Juan figura no rol das obras coligidas com fins editoriais, recebendo a classificação de drama romântico. Chama a atenção uma obra de crítica filosófica, O poeta da República, derivada provavelmente da apreciação crítica que Campos Carvalho deteve sobre aquele espólio. É possível mesmo especular se este livro não seria o resultado mais acabado da crítica emitida sobre a obra de Castro Alves no Correio Paulistano – o Esboço Litterario – a qual não obteve sequência como demonstrado. Ainda assim, a existência dessa outra obra, aparentemente de crítica literária e até agora apagada dos registros históricos, revela-nos a importância que unia os dois grandes acadêmicos, ambos poetas, e comungados na defesa da causa abolicionista. Mais ainda, o Poeta da República harmoniza-se, do mesmo modo, com os depoimentos de Regueira Costa trazidos à tona por Alfredo de Carvalho quando o seu autor intentava “publicar todos os trabalhos do poeta baiano, precedidos da história da sua vida” (CARVALHO, 1907, p. 234-235). Concluímos, desta forma, que, sem estarem a par da matéria noticiosa da imprensa carioca, os estudos apontados por pesquisadores como Dermevilly Nóbrega e Tácito Pace fizeram tão somente replicar as preciosas informações de Alfredo de Carvalho reveladas em Castro Alves em Pernambuco, sem acrescentar alguma novidade que pudesse redefinir o caminho da investigação histórica de seus manuscritos. O empreendimento de um esforço em prol de recolher grande parte dos relatos, testemunhos e notas na imprensa periódica brasileira seria, em contrapartida, inimaginável para esses estudiosos, tendo em vista a mobilidade do escritor nos vários palcos de atuação pública, artística e estudantil, produzindo e escrevendo para diversos e efêmeros jornais. Mais ainda, a condição privilegiada que nos faculta, enquanto pesquisadores contemporâneos, ao acesso quase irrestrito a um grande volume de exemplares, de forma dinâmica e pragmática, disponíveis na plataforma digital granjeia-nos as condições favoráveis das quais aqueles que nos precederam não puderam assim gozar. Esclarecidas estas considerações a respeito do drama D. Juan, esperamos com este preâmbulo, ao menos, devolver à peça a condição inicial na qual se encontrava: envolta em fatos insondáveis sobre o acabamento executado pela pena do poeta. Embora, inclinados a aceitar a admissibilidade do extravio operado involuntariamente pelo acadêmico Campos Carvalho como se deu com o Masaccio e seu O poeta da República, a despeito de todo o esmero delegado à publicação dos inéditos, acreditamos mais sensata a condição da dúvida sobre esta produção no que tange ao arremate de seu enredo, ficando apenas certo o que dela restou, fragmentária em sua classificação como o homônimo Don Juan do mestre em quem o grande poeta brasileiro se espelhou: Lord Byron. 241 D. Juan ou A prole dos saturnos Com A prole dos saturnos, voltam-se os temas da tradição gótica ou, mais rigorosamente, do estranho na literatura. A peça ultrarromântica não faz alusão, em especial, a alguma das versões europeias conhecidas do mito, entretanto, percebe-se um tributo às narrativas dos contemporâneos e dos clássicos da literatura universal. Duas leituras são, notadamente, muito presentes no processo de recriação artística empreendido pelo escritor. A primeira é modelada por Álvares de Azevedo e tem como referência a Noite na Taverna como já foi mais de uma vez aventado pelos críticos do baiano: Nesta fase Castro Alves voltou mais uma vez ao mundo dos pesadelos alvaresianos, revisitando “Noite na taverna” e desta obra tomando empréstimos polpudos que se denunciam no drama “Don Juan ou a prole de Saturno”. Esse drama, bem sobrecarregado das tintas asfixiantes e cinzentas do Romantismo à Hoffmann e Álvares de Azevedo (o de “Noite na taverna”, “O Conde Lopo” e “Macário”), ficou incompleto. (ROCHA, 1982, p. 21). Rocha (1982), ao considerar o modelo de inspiração de A prole dos saturnos, não hesita em assinar as leituras bebidas em Álvares de Azevedo em, aliás, mais de um de seus livros como faz crer o crítico. Essa identidade já havia sido feita muito tempo antes e é creditada ao trabalho de recolha das fontes de leitura literária realizada por Castro Alves como nos informa Jamil Almansur Haddad em Álvares de Azevedo e Castro Alves (1952): Livro típico desse momento e dessa mentalidade é A Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo, que foi início de uma tradição no Romantismo brasileiro, de horror e sangue e demência. Roçou também a Castro Alves o espírito que ele encerra. “Don Juan ou a Prole dos Saturnos” é um filho legítimo dos contos-poemas transtornadores do poeta paulistano. (HADDAD, 1952, p. 32- 33) Haddad, aprofundando o estudo comparado entre os dois escritores, delimita ainda dois entre cinco dos contos alucinantes de Noite na Taverna que impulsionaram a escrita do drama de Castro Alves: “Solfieri” e “Claudius Hermann”, imbricados à associação do binômio amor e morte e dos estratagemas de ingestão de narcóticos aplicados pelos sedutores a suas vítimas. Os novos estudos críticos no poeta replicam as informações do autor de Revisão ao 242 reconhecer que “há fortes ecos de, pelo menos, duas narrativas de Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo, ‘Solfieri’ e ‘Claudius Hermann’” (MAURO, 2014, p. 110), mas propõe, ao mesmo tempo, enxergar outras possibilidade de diálogo textual: “Este drama remete, de certa forma, à peça Romeu e Julieta, tanto pela presença do narcótico, quanto pelo uso que se faz dele: com o intuito de apartar os amantes da sociedade” (Ibid, p. 109). Apresentando entraves históricos de definição do texto, A prole dos saturnos, pela natureza fragmentária, carrega problemas de uma compreensão globalizante, dificultando o paralelo com os mitos literários de Don Juan que nele pudessem incidir. Contudo, é possível, daquilo que restou, estabelecer algumas relações de leitura. Inicialmente, é importante considerar o eixo temático a que se filia o drama. Sendo difícil estampar um rótulo à peça, privados de suas partes constitutivas na inteireza, recorremos à precedência do próprio escritor no teatro. Em 1867, dava à luz o poeta baiano o seu Gonzaga ou Revolução de Minas, encenado sem muito sucesso na Bahia, tendo melhores votos em São Paulo. Elizabeth R. Azevedo faz, a certa altura da análise desta peça, um comentário interessante que pode oferecer uma chave à compreensão de A prole dos saturnos, escrita teoricamente dois anos depois. Diz a estudiosa sobre as personagens históricas daquele primeiro drama de 1867: Quanto aos demais inconfidentes, o drama pinta-os em traços largos. Tiradentes é escultural e altivo. Cláudio Manoel da Costa, sem ser um fanfarrão, é mostrado com uma espécie de diletante, de dandy apaixonado (ou galhofeiro, como o definiu Machado), que abandona os assuntos políticos para ir suspirar ao pé da amada assim que ela dá o ar de sua graça. (AZEVEDO, 2004, xix) [grifos nossos] A apresentação dos heróis inconfidentes tem um retrato desfigurado, quase caricato, por vezes, fugindo do padrão esperado de um drama histórico, mais diligente com os fatos narrados e seus agentes envolvidos neles. Castro Alves, pintando-os em traços largos, abre-se já aqui nessa peça de argumento histórico a precedência da modelagem dos quadros dramáticos às inclinações estéticas provenientes de leituras bem conhecidas. Lendo Gonzaga ou Revolução de Minas, encontramos lances patéticos claramentes saídos de Noite na Taverna, dois anos antes da peça ultrarromântica. Essa percepção havia atinado o juízo crítico de Rocha (1982) que, sem mencionar a obra de Azevedo em específico, dava seu parecer sobre a fisionomia daquele primeiro trabalho do poeta: Mas não terá perdido a sua melhor possibilidade teatral, que, mesmo sobreatulhada de soluções ultra-românticas, é amostra convincente de que um rico e espontâneo prosador anunciava, ainda mais que no “Gonzaga”, a sua convivência ao lado do poeta. (ROCHA, op. cit., p. 21-22) 243 Em Gonzaga ou a Revolução de Minas, Castro Alves desenvolve um modelo donjuanino espelhado em um dos contos de Noite na Taverna: o “Claudius Hermann”. Na narrativa de Álvares de Azevedo, Hermann, libertino e depravado, desencantado com a vida e com os amores é o típico personagem byroniano. Entretanto, o sentimento amoroso que lhe acorda ao peito a jovem Eleonora, prometida ao Duque Maffio, regenera a pureza de sua índole adormecida pela devassidão. A história que Hermann se prontifica a contar com acentos românticos, à mesa entre os libertinos comparsas, é, logo, ridicularizada, a que ele retruca: Ride, sim! misérrimos! que não compreendeis o que porventura vai de incêndio por aqueles lábios de Lovelace e como arqueja o amor sob as roupas gotejantes de chuvas de D. Juan — o libertino! Insano, que nunca sonhastes Lovelace sem sua máscara talvez chorando Clarisse Harlowe, pobre anjo, cujas asas brancas ele ia desbotar maldizendo essa fatalidade que fez do amor uma infâmia e um crime. Mil vezes insanos que nunca sonhastes o Espanhol acordando no lupanar, passando a mão pela fronte, e rugindo de remorso e saudade ao lembrar tantas visões alvas do passado! (Claudius Hermann – AZEVEDO, 2000, p. 589-90) Reside na personagem a influência da “maranização” que já sofriam os modelos românticos de Don Juan no século XIX, como o de Mérimée, Dumas e Zorilla, em oposição às versões satânicas de Espronceda e de Balzac. Os estratagemas, porém, de que Hermann lança mão para obter o amor da jovem Eleonora é que são pervertidos, sem que nele se arrefeça o sentimento de busca do eterno feminino. Hermann irá sedá-la com um narcótico, passando-se pelo amante enganado Maffio. A infâmia é descoberta e a moça, desesperada, ouve os transportes da paixão do libertino, dos quais destacamos os pontos-chaves: Havia uma mulher... era um anjo [...]Escutai: não o amaldiçoeis! [...] Escutai. — O libertino amou, pois, o anjo [...] Que te importam meus sonhos, que te importam meus amores? Sim, tens razão! Que importa a água do deserto, a gazela do areal que o árabe tenha sede ou que o leão tenha fome? Mas a sede e a fome são fatais. O amor e como eles: — entendes-me agora? (Ibid. p. 595- 96) As leituras do Recife ainda estavam bem frescas na memória do poeta, pois é com essa imagem que o poeta baiano irá montar um dos pontos-altos de seu drama histórico, a confissão arrebatada do amor do Governador Visconde de Barbacena com a Maria, de Gonzaga: Que te importa o meu amor! Que te importa a minha morte?... Oh! Mas é a fatalidade! É sempre a fatalidade!... [...] Não se impaciente, senhora, eu vou dizer-lhe tudo [...] Aí estava uma mulher... ou talvez um demônio de 244 beleza. [...] Por que dizer-te mais? O demônio amou o anjo. (Gonzaga ou A Revolução de Minas – ALVES, 1997, p. 612-13d) Castro Alves interpõe à cena daquele drama, muito antes do advento de A prole dos Saturnos, um herói donjuanino encarnado pela figura do Governador de Vila Rica. Um sedutor que goza do status de nobreza ligada à casa real portuguesa, mas que tem seus vícios abertamente declarados pois não reprime o desejo “de mil formas de volúpias, de beijos insensatos” (ibid. p. 613) Em A prole dos saturnos, o discurso do personagem sedutor Marcus é menos visceral, porém, mais elevado, até porque motivado pela correspondência amorosa que o herói desse drama encontra com a amante Ema. A postura cínica deste sedutor não fica bem determinada, uma vez que não conhecemos os desdobramentos da peça incompleta. Deduzimos tão somente a conduta perversa da personagem por um inscript que sobreviveu do espólio do autor e que anunciava o triângulo amoroso na peça. A peça ultrarromântica de Castro Alves é dividida em três partes e conta a história do médico Marcus e os amores proibidos com Ema, esposa do conde Fábio. Amigo e médico da casa do conde Fábio, Marcus é o protótipo de Don Juan que usa, como Claudius Hermann no conto azevediano, do estratagema da narcotização da esposa do rival para roubar-lhe a posse do que foi outorgado àquele pelo matrimônio. Marcus representa juntamente a Ema o casal libertador das amarras sociais que colocam os ideais e as paixões acima das convenções sociais. Em nome do amor, Ema promete abdicar da coroa de esposa e da condição de mãe para viver a aventura amorosa. Com o auxílio do coveiro Paulo, o sedutor descerra a tumba de Ema, onde esta se achava sob o efeito da poção soporífera. Os dois amantes, a sós, preparam a fuga, quando são surpreendidos pela chegada do esposo enganado e seu filho Romeu. A cena não parece casual e nos dá uma orientação possível para entender os desdobramentos de seu desfecho perdido: FÁBIO (sentado à beira da sepultura) – Filho! Vês esta cova?... Aqui dorme um anjo... Uma santa. Uma mulher cheia de virtudes e generosidade... Ouve... Romeu... Um homem de bem cora mais quando lhe dizem que sua mulher é uma perdida, do que se lhe chama ladrão... O último insulto, que se pode fazer a um homem, é ferir sua mãe... Felizes os que podem, como nós, dizer com orgulho: aqui está uma santa... aqui está uma mulher sem mancha... A CONDESSA (a MARCUS) – Oh! Aquela boa-fé mata-me... Eu não posso suportar a hipocrisia... eu quero desiludir aquele homem... devo dizer-lhe toda a verdade... (A prole dos saturnos – ALVES, 1997, p. 732) 245 É nítido como Castro Alves explora essa cena patética. Apesar do espírito libertário dos personagens e o ímpeto de dar asas à paixão amorosa, é procedente refletir sobre a condição do escritor como dramaturgo, tendo na mira o público da peça. Ao se ler A prole dos saturnos tem-se a impressão de que o poeta faz tão somente replicar as imagens, motivos e argumento presentes em Noite na Taverna. O estudo de Haddad (1952) que jogou luz sobre muitos problemas sobre as fontes que motivaram esse drama castroalvino pode obscurecer e fechar a leitura sob essa mesma interpretação. É de se considerar que a publicidade das obras do escritor, pouco depois de sua morte, não traz na estampa essa classificação, mas frisa a natureza de drama romântico. Essa informação que aparenta de somenos importância não parece tão dispensável se considerarmos a maneira como se dão os capítulos de Castro Alves e os eventos que nele ocorrem. A menção ao cemitério para os seus críticos como Haddad (1952) revela todo um espaço potencial à perversão das potências do insconsciente impulsionadas pela noite e pelos ambientes tétricos: De início, temos nêle uma descrição de cenário que recorda plenamente as bacanais da Sociedade Epicuréia. Descreve Castro Alves: “A cena representa uma grande sala forrada de veludo preto. No centro, sobre um estrado também preto acha-se o caixão da Condessa Emma. Ardem círios em torno”. A primeira parte denomina-se feralmente: “A vida na morte”. A segunda, é “A Morte na Vida”, igualmente letal. Entra logo em ação uma personagem visceralmente tirada de Álvares de Azevedo: Macário. [...] O segundo continua numa atmosfera apavorante “É noite. No primeiro plano central um mausoléu com a inscrição do nome da Condessa. À direita um mausoléu com uma cruz. No fundo mais túmulos." (HADDAD, 1952, p. 32-33) O crítico de Castro Alves interpreta os quadros que compõem o referido drama por uma imagem construída sob a impressão dos desregramentos de sociedades secretas e maçônicas. É o mesmo procedimento dado à interpretação de “Pesadelo”, incorrendo em uma leitura-interpretativa pelo viés do biográfico. Como no poema de 1863, assim como em “Crônica Jornalística”, temos leituras literárias bem definidas que motivaram a inspiração criativa do escritor baiano. Apesar do caráter fragmentário, não é inimaginável admitir uma leitura reconhecível à execução desse último drama. A própria narrativa nos fornece indícios de onde procurá-las: “Marcus, uma ideia horrível me atravessa agora o espírito... Marcus, teu amor seria apenas um capricho? És tu D. Juan?... ou és Romeu?...” (A prole dos saturnos – ALVES, 1997, p. 724) Apesar do título ostensivo e remissivo ao sedutor espanhol era preciso ao poeta um domínio seguro sobre narrativas literárias que tocassem o repisado tema de Don Juan. O gênero dramático em prosa, porém, teve sua expressão maior em Molière, entretanto o figurino e o cenário de A prole dos 246 saturnos, a ausência de um pagem como Sgnarelle, a inexistência da figura do Comendador para garantir o eventual sobrenatural final, tornam a apropriação muito distante. Mas é ainda a questão linguística que denuncia as fontes de leitura do poeta e só o resgate da recepção do texto nos condiciona a essa análise comparada na busca da incidência do mito. E, como já aludido no primeiro capítulo, é o mesmo Haddad (1953), em sua Revisão, que nos fornece essa informação valiosa, ao nos deixar a par da leitura de nossos românticos da obra de “Shakespeare vertido por Benjamin Laroche”. (Ibid., p. 17). Vejamos as descrições dos quadros nos dois textos, no de Shakespeare, em versão francesa, e em Castro Alves: A cena representa um cemitério. É noite. No primeiro plano central um mausoléu com a inscrição do nome da Condessa. À direita um mausoléu com uma cruz. No fundo mais túmulos. (A prole dos saturnos – ALVES, 1997, p. 725) Um cemitério no qual se descobre um grande número de tumbas. No primeiro plano, o monumento dedicado à sepultura dos Capuletos. É noite. (Roméo et Juillet – SHAKESPERE, 1847, p. 341)236 Ou, ainda, quando Marcus foge com Ema a galope para ambos alcançarem a liberdade prometida do amor. A metáfora da capa andaluza que recobre a noite para encobrir o casal fugitivo é mais uma sugestão shakespeariana. Da capa de Romeu é que surge a metáfora recriada e Castro Alves a adpata à impressão já formada do mito donjuanino de leituras anteriores: MARCUS – Sim! Para nós – a eternidade e o espaço... Vamos, Emma! Os cavalos relincham à porta do cemitério... A galope! A galope! A noite nos esconderá em sua mantilha espanhola, e quando a aurora nos alumiar, já estaremos longe... muito longe... (A prole dos saturnos – ALVES, 1997, p. 729) Eu tenho a capa da noite para me esconder da vista deles; mas, se eu não devo ser amado por ti, que eles me achem aqui, que seu ódio ponha fim a meus dias; minha vida, sem teu amor, seria apenas uma longa morte. (Roméo et Juillet – SHAKESPEARE, 1847, p. 312)237 Uma consulta ao manuscrito original de A prole nos revela pequenas alterações da escolha lexical empreendida pelo autor baiano que atestam a leitura do drama shakespereano em tradução francesa: 236 “Un cimetière dans lequel on découvre un grand nombre de tombes. Sur le premier plan, le monument consacré à la sepulture des Capulets. Il fait nuit.” (Roméo et Juillet – SHAKESPERE, 1847, p. 341) 237 “J’ai le manteau de la nuit pour me dérober à leur vue; mais si je ne dois pas étre aimé de toi, qu’ils me trouvent ici, que leur haine mette fin à mes jours; ma vie, sans ton amour, ne serait qu’une longue mort. (Roméo et Juillet – SHAKESPERE, 1847, p. 312) 247 No entrecho em destaque, fica patente, na mudança do sintagma nominal “seu manto escuro...” por “sua mantilha de espanhola”, a leitura decisiva do Roméo et Juillet de Laroche, no qual se encontrava a imagem metafórica da “capa da noite”, vertida em tradução livre por Castro Alves: “Le manteau de la nuit” (“O manto da noite”). O escritor baiano barra o qualificativo “escuro”, alusivo às trevas noturnas na tradução do francês, e reelabora a imagem da noite pela escolha feliz da sugestão erótica do traje andaluz. Como se vê os aspectos que a crítica tradicional condiciona à obra, associando seu enredo e eventos noturnos à perversão dos personagens da noite azevediana, é uma construção forjada pelos anos de crítica literária sobre o poeta baiano. A Noite na Taverna aparece com lances pontuais como a recuperação do conto de Solfieri e de Claudius Hermann, e não chegam a configurar um cenário gótico e tétrico no qual se projetam os instintos destrutivos de seus Figura 29: Imagem da vigésima oitava página do manuscrito de A prole. Fonte: Acervo da Biblioteca Nacional/ Divisão dos Manuscritos. Figura 30: Detalhe da Figura 29, contendo alterações de escrita para o drama A prole. 248 personagens. Antes, vemos, uma gótico de fundo, mas que já se encontra por empréstimo de Romeu e Julieta, modificado por uma literatura que problematize os dramas da sociedade como o casamento e a condição da mulher num estado patriarcal e conservador, ao qual Castro Alves fará resistência em sua obra. Mas, como havíamos dito, é de se considerar a condição da peça como um drama romântico, assim como apareceu à primeira vez estampado nas folhas de A República, o que explicaria o perfil de Fábio como pai atencioso e esposo zeloso, ao invés de um antagonista cruel que justificasse a revolta de Ema. O drama exploraria os efeitos de surpresa, indignação e, muito provavelmente, compaixão à heroína, posto que eram esses os dramas que estavam em voga na passagem de Castro Alves pelo Recife acadêmico e por São Paulo. A leitura via recepção do texto literário traz ainda uma última nota curiosa. Ao ler Shakespeare em francês, escrevendo A prole dos saturnos para aquele ano de 1868 em São Paulo, Castro Alves sondava, não mais efusivamente como antes, a noite gótica e seus sortilégios, porém, a noite poética, pois é desse período de São Paulo que escreveria um de seus poemas mais notáveis em que a marca do donjuanismo confunde Romeu com o andaluz sedutor, o poema “Boa Noite”, não mais com assaltos e crimes sinistros, mas com o hálito da manhã e os gorjeios da calhandra como no noturno de Shakespeare. 249 CONCLUSÃO Alberto da Costa e Silva, o último grande biógrafo de Castro Alves, afirmou certa vez em entrevista ser a poesia de Castro Alves marcada de um frescor eternamente juvenil. Os versos do poeta, com efeito, cantando o amor e a natureza, são uma louvação à vida nos deleites que ela generosamente nos oferece. Mas as cordas de sua lira nem sempre vibraram notas de alegria, assim também sua vida carregava emoções ambivalentes como confessava à intimidade do amigo do Recife, Regueira Costa: “Eu vou sempre no mesmo... – Trevas e luz. Tormentos e bonanças. Amargos e ambrosias... É assim que eu vivo” (ALVES, 1997, p. 745). À imagem do poeta sedutor, jovem e viçoso, atraindo para si todas as atenções, põe-se ao lado a do poeta cultor de temas não tão sadios. A poesia de Castro Alves é um caudal de possibilidades, e entre elas está o motivo poético-literário de Don Juan. O modelo de personagem que se figurou no século XIX, porém, tem nuances bem distintas das que hoje conhecemos. Tradicionalmente, a abordagem literária do mito espanhol na obra do baiano é empregada reforçando a representação popular construída em anos a fio por seus comentadores e biógrafos, ou seja, a do bardo cantor da liberdade e do amor. A pluralidade temática intrínseca ao mito de Don Juan, todavia, impeliu-nos a estudar a obra literária de Castro Alves em produções pouco estimadas pela crítica e, deste contato com o texto, foi-nos apresentado um escritor prolífico no tratamento que dispensou ao tema. Encontramos em sua produção literária, mais do que identidades eletivas com o mito pela ascendência espanhola que o distinguia. O autor de poemas como “Os três amores” e “Pesadelo” era um leitor contumaz de impressos românticos dos quais talvez jamais teremos conhecimento. Contudo, aquilo que não foi compilado pelas limitações tecnológicas enfrentadas pelos primeiros biógrafos do autor tem hoje um cenário mais favorável para o desenvolvimento de uma pesquisa bibliográfica sobre o diverso temário de sua obra. É, por este estimável legado deixado pelos primeiros e pelos mais recentes críticos do autor baiano, que pudemos vislumbrar um quadro, em nosso entendimento, mais amplo da manifestação do mito de Don Juan nas páginas de seu espólio deixado. Para interpretar com mais justeza o caráter polissêmico do mito de Don Juan em Castro Alves, pesquisamos os jornais para os quais ele escreveu, como O Futuro, mas nos cercamos, de igual sorte, da leitura de outros que orbitavam o meio cultural de que havia ele tomado conhecimento. Partindo do epistolário, depoimentos, carta, periódicos nacionais e estrangeiros, impressos, análises e ensaios literários, tentamos recuperar a história que envolvia as leituras 250 familiares ao escritor a fim de delinear um quadro, se não preciso, ao menos mais condizente, aos nossos olhos, com aquilo que os eventos e as circunstâncias históricas nos relatam sobre o poeta. Reconstituímos uma estação da vida do poeta que se mostra muito rica e ainda pouca explorada para a compreensão do autor. Numa pesquisa ao GPL e a Fundação Joaquim Nabuco reavemos leituras empoeiradas pelo tempo e esquecidas dos estudos comparativos que constituíram inspiração direta em composições que abordam ou tangenciam o tema de Don Juan. Demos primazia, porém, as de vertente gótico-fantástica e ao gênero narrativo, uma vez não haver estudos sobre esse tema no escritor, e ser eles uma marca reconhecida e largamente difundida nas revisitações românticas ao personagem Don Juan no século XIX. Compilamos, nos dois primeiros capítulos desta tese, todo material de que pudemos nos dispor concernente à biografia, à fortuna crítica, à epistolografia e aos depoimentos a respeito do poeta baiano a fim de elucidar o tratamento concedido ao tema de Don Juan em sua obra literária. Verificamos, cruzando os trabalhos pioneiros de crítica literária sobre o autor com as últimas produções acadêmicas a seu respeito, que os escritos castroalvinos padeciam de uma revisão e uma redefinição na classificação de alguns de seus trabalhos e de determinados motivos literários, entre os quais se evidenciava o mito do sedutor espanhol. Constatamos como a crítica representada por Peixoto (1921), Lopes Rodrigues (1947) e Haddad (1953) ainda estava fortemente carregada de uma orientação biografista que perpetuou até a metade do século passado, tendo ainda repercussão nos estudos atuais no tocante ao motivo de Don Juan. Entretanto, vimos também como estudiosos como Mendes (2005) e Mauro (2014) se empenharam nos últimos anos em abordar as composições do poeta baiano, pondo em relevo o estudo comparado do texto literário, dando para o tratamento do assunto, o procedimento de análise literária que se seguiu em meados do século XX com Haddad (1952), Barboza (1960) e Gomes (1997) pautado na importância dos elementos estruturais e temáticos do texto literário. Observou-se que, a despeito de todo empenho por parte dos novos estudos da crítica acadêmica em deslindar a presença do donjuanismo na obra do autor em escopo, as suas composições literárias careciam de uma investigação bibliográfica mais a fundo e que somente a pesquisa às fontes históricas de leitura consultadas pelo escritor poderia trazer maiores esclarecimentos sobre o mito literário. Deste modo, resgatamos os empréstimos literários de leituras espanholas realizadas por Castro Alves no Recife acadêmico, dando ênfase a versões 251 pouco atinadas pelo juízo crítico de seus estimados pesquisadores, dentre as quais aparece com maior relevo a do romântico espanhol José de Espronceda. No terceiro capítulo, dedicamo-nos a traçar a evolução histórica das sequências literárias do mito desde o seu aparecimento nos palcos do teatro barroco espanhol até a consolidação alcançada com o advento do Romantismo. Foi, a partir do século XIX, que as diversas representações artísticas do motivo do sedutor espanhol deu também a conhecer a vertente do gótico e do fantástico explorada nos contos e na imprensa periódica europeia com seus escritores representativos. Ao analisarmos ligeiramente algumas narrativas de autores que se ocuparam do gênero contístico, percebemos como os temas do suspense, da perversão, do sobrenatural e do insólito caíram no gosto popular, chegando à figura de um herói, tanto sedutor, quanto de aparência mórbida e soturna. Com obras da importância de E.TA. Hoffmann, Gautier e Balzac, expusemos as primeiras versões de uma modalidade de gênero literário que rapidamente iria grassar entre os leitores românticos brasileiros ávidos da novidade das narrativas fantásticas que já faziam sucesso na Europa. A partir do apanhado de narrativas que recobriram o mito de Don Juan do Barroco ao movimento romântico, seguido pelo cotejo dos temas e elementos estruturais de cenário, personagens, enredo, bem como, pela análise contrastiva do plano da expressão verbal entre as composições de Castro Alves selecionadas para nosso corpus e as eventuais versões do mito literário que serviram ao autor de inspiração literária, é que pudemos, enfim, delimitar os potenciais textos que compuseram o painel das leituras donjuaninas realizadas pelo poeta baiano. A revisão histórica destes empréstimos literários tornou possível, portanto, a execução da análise textual a peças do autor à margem dos estudos críticos castroalvinos e familiarizadas com a moda do culto do fantástico e do gótico disseminado no continente europeu e, logo, assimilado pelo gosto do público local no Brasil da segunda metade do Oitocentos. Do resultado de nossas observações e retificações ao juízo crítico sobre o tema de Don Juan e o problema da recepção das leituras estrangeiras empreendidas por Castro Alves, detivemo-nos à análise formal e temática de composições interligadas com o gosto do gótico e do fantástico no Recife com “Pesadelo” e “Crônica Jornalística” e com o drama de fundo ultrarromântico A prole dos saturnos, supostamente extraviado e, portanto, incompleto, como antevisto no subcapítulo da última parte desta redação, À guisa de esclarecimento. Estas composições, todas reunidas ao quarto capítulo de nossa tese, e que compreenderam o ponto 252 nodal desta pesquisa acadêmica, revelaram na prática as muitas e esquecidas modalidades do mito de Don Juan que infundiram na apreensão do destacado motivo literário pelo autor de Espumas Flutuantes sintonizado com a demanda insurgente da leitura de narrativas fantásticas. No quarto capítulo, rapidamente descrevemos um esboço da atividade corrente da leitura e da demanda de textos ilustrativos do gênero fantástico presentes nos periódicos recifenses como Jornal do Recife e Liberal Pernambucano.Vimos como Castro Alves, atendendo às exigências da moda da literatura fantástica, igualmente cedeu, nos primeiros anos de sua formação acadêmica, aos imperativos do culto do gênero na redação da folha de O Futuro. À luz das concepções teóricas postuladas por Todorov (2008) e Volobuef (2005), compreendemos a imersão nas diferentes modalidades de fantástico das quais o jovem escritor baiano tomou parte, fronteiriças ao gótico e ao estranho como gêneros. Trouxemos à tona narrativas que ficaram por muitos anos relegadas a segundo plano do senso da crítica literária ou mesmo permaneciam desconhecidas do público moderno, perdididas em suplementos literários como o conto Don Juan, de Hoffmann, traduzido por Marques Rodriques no efêmero O Cidadão, também do Recife. A presença de uma contística na qual o sobrenatural e o estranho se entrelaçavam com o personagem do mito espanhol de Don Juan aproximou não apenas o poeta baiano a nomes do panteão europeu sensível à moda vigente, como Gautier e Balzac na França, leitores diretos dos contos hoffmannianos, como também permitiu ao escritor brasileiro a leitura da matriz espanhola do mito literário reconhecida na obra de José de Espronceda, O estudante de Salamanca. Vimos, pelo confronto do plano verbal e da atmosfera gótico-fantástica do poemeto “Pesadelo” com a obra do poeta espanhol mencionado, como se configurou a imagem de um personagem erradio, soturno e subversivo, ocultando-se nos trajes característicos da capa e do sombreiro as perversões mais secretas do homem nas noites de Salamanca. Esse modelo de herói gótico se repeteria, em parte, no estabelecimento dos quadros noturnos de uma outra composição do poeta baiano, o drama ultrarromântico A prole dos saturnos, na chegada de Castro Alves a São Paulo acadêmica de 1868, como já salientado. A recolha dos impressos literários donjuaninos para o estudo comparativo com os textos do baiano, contudo, serviu-nos não para minorar a sua originalidade de escritor, assim como pensava parte de seus primeiros críticos, mas para reforçar o seu inegável talento artístico. Castro Alves é um multiplicador, consegue ele variar nas solicitações textuais e reorganizar o material acessado para formular uma obra literária que tem nela uma originalidade inconfundível. Os vários debates que nasceram depois de sua morte foram para outorgar ou 253 deslegitimar as suas potencialidades de grande poeta, a ponto de lerem-no pelo binômio de gênio ou plagiador. Numa época em que a poesia rompia com a imitação dos clássicos, a originalidade era uma cobrança policiada entre os novos adeptos do Romantismo, e, muitas vezes, tinha um peso desproporcional posto àqueles que recorriam a algum modelo prévio para inspiração. Para um período em que a crítica literária se encontrava ainda em formação, o juízo de apropriação do texto literário-fonte era ainda muito diferente do que entendemos hoje, no qual as transformações de motivos e elementos formais são sempre bem vistas como processo de recriação e originalidade. Castro Alves foi como todo bom romântico leitor daqueles que estavam na moda das leituras literárias e pôde delas extrair o melhor para a constituição de uma poesia humanística e comprometida com um senso ético, até certo ponto, inimaginável para seu tempo. Sua poesia também marca a revolução da lírica brasileira, dando voz à mulher oprimida e rompendo com os tabus de nosso sistema patriarcal que já caducava às vésperas da proclamação da República. Um escritor que teve os cacoetes da geração romântica, mas que produziu uma obra eclética, tocando variados temas e que permanece politicamente atual, e, em nosso contexto sociocultural, atualíssima. É o que faz justificar as palavras de seu irmão mais novo, Guilherme de Castro Alves, também poeta, também morto aos 24 anos, e que sobre ele disse as melhores e mais ajuizadas palavras: “Ele era grande e bom, massa para deuses”. 254 REFERÊNCIAS: ABREU, Márcia; Daecto, Marisa Midori. A circulação transatlântica dos impressos: conexões. Campinas: UNICAMP/IEL/Setor de Publicações, 2014. AGUIAR, Flávio. A praça, o povo e o poeta. In: ALVES, Castro. Castro Alves: edição comemorativa dos 150 anos de nascimento de Antônio de Castro Alves. Rio de Janeiro: Odebrecht, 1997. ALVES, Adalberto. 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E o canto — todo amores — todo gozo — Ia ecoando belo e languoroso. Era Joseph — o trovador ardente, Que o silêncio da noite perturbava. Era o bardo formoso, apaixonado Que a Andaluza fogosa fascinava. Pálido o rosto, negro o seu cabelo, Olhar cheio de luz... Ele era belo. Depois calou-se a voz... Como essas fadas Que à noite, quando voa a fantasia, Vemos, sentimos belas, vaporosas, — Anjos que o ideal somente cria; — Tal ou mais linda, abrindo uma janela, Surge uma virgem fascinante e bela. Era um rosto formoso de madona, Voava-lhe a madeixa destrançada. E o seio que tremia, — pelas rendas A lua olhava louca, apaixonada. 267 Tinha um pé que invejara uma criança. Bem feliz quem ao peito lhe descansa!... Depois uns lábios férvidos se uniram Entre beijos dois nomes se escutaram... Dois nomes e mil beijos amorosos Nos lábios as palavras encerraram... Dois nomes em que a vida toda s'ia... Dois poemas de santa poesia... E a porta após rodou por sobre os quícios, E a murmurar deixou passar o amante... Somente um temo e lânguido suspiro Ouvi trazer a brisa sussurrante... E a lua então num lânguido desmaio Ciumenta lançou o último raio... II O ASSASSINO Uma noite era negro firmamento, Monótona caía fria chuva, E a terra envolta em véu de densas trevas Parecia chorosa uma viúva; Só as aves da noite regeladas Gritando se escondiam nas moradas. Trazia o vento o silvo da rajada Que lúgubre zunia nos pinheiros, Trazia gritos pávidos, medrosos, Talvez dalguns perdidos caminheiros, E no embate co’a branca penedia, O mar sinistro e tétrico rugia. De um lampião à luz incerta e vaga Um vulto negro e triste s'enxergava; Coberto do capote e do sombrero, O rosto macilento só mostrava... Mas dalgum raio ao brilho repentino Conhecereis — Jorge — o libertino — Que fazes, Jorge, a estas horas mortas? A noite está tristonha e friorenta; Vai aquecer da prostituta ao colo De libertino a fronte macilenta. Vai escaldar esta alma morta e fria Aos beijos do cognac qu'incendia. Vai... Quando a alma s'enjoa deste mundo Sempre descrente, acerbo d'ironia, 268 O cognac nos dá formosos mundos, Castelos encantados de poesia. E entre um gol' de cognac e uma fumaça Em ditoso delírio a vida passa. Mas Jorge está mais lúgubre e sombrio Que o mármore dum túm'lo mais calado, Parece o seu olhar mais turvo e frio, O sulco do sobrolho mais cavado... Ai! Jorge... Vais unir ao libertino A covardia infame do assassino... E ele pouco esperou. Saudoso canto, Que suspirava ao longe, aproximou-se, E o canto era mais terno e mais sentido Qu'o último som do cisne que finou-se; Era um canto em que atroz pressentimento Segredava ao mancebo o passamento. Um momento depois um grito agudo Triste uniu-se da noite à voz sombria... Foi um grito somente e após ouviu-se O convulso estertor de um'agonia... A noite se estendeu como um sudário Do cantor sobre o leito funerário. Somente após à fulva luz de um raio Veríeis uma virgem linda e nua... Tremia de terror, ouvira o grito... 'Stava pálida e branca como a lua, E quando viu o amante — de amargura Tornou-se a estátua pasma da loucura. III A LOUCA Laura, onde vais? Sozinha a tais desoras O vento há de gelar-te a branca pele. Como tremes convulsa, e que sorriso! Que chamas teu olhar ardente expele! Laura, onde vais! Os pés nus, delicados, Não maltrates nos seixos orvalhados. Mulher, a quem procuras a estas horas? Donzela, porque sais tão alta noite? Não vês como aparecem mil fantasmas? Não sentes da geada o frio açoite? E das aves da noite o triste pio Não faz por ti correr um calafrio? ... 269 E ela seguia muda e taciturna, Nas rochas machucando o pé divino. Parecia sonâmbula perdida, Autômato a seguir o seu destino. Arfava o peito em ânsias ofegante, Seu olhar era fixo e fascinante. E seguia... e seguia... e nem ao menos Parava um só momento no caminho; Não sentia rasgarem-se-lhe as vestes De incultos ervaçais no duro espinho. O gênio da vingança é que a impelia... Como o Judeu errante ela seguia... ............................................ IV A ENTREVISTA NO TÚMULO Era um triste lugar. Entre ciprestes, Que a custo balançavam a ramagem, Onde só p'ra gemer tristes endechas Passava regelada e fria a aragem, Num esquife entreaberto está deitado Um cadáver de moço abandonado. E entregue às intempéries... sem amigos Sem ter quem vá ali chorar um pranto. Tu, que cantaste os sentimentos puros, Qu'encontraste no mundo um doce encanto, Tu dormes, sonhador, já macilento, Entregue aos vermes vis, posto ao relento. E esta fronte onde o gênio se inflamava, Donde brotava ardente a poesia, E os lábios que disseram sons cadentes, Que ensinava-te alegre a fantasia, São hoje como a lâmpada sem lume, — Harpa sem cordas, — flores sem perfume. Ninguém vem te chorar. Não, dentre as sombras Uma sombra passou branca e ligeira, Os ramos do arvoredo estremeceram, Espantada voou a ave agoureira... Quem perturba esta lúgubre morada? Uma mulher... É Laura, a apaixonada. E ela chegou-se rindo e soluçando C'um rir entre medonho e entre formoso, Seus lábios tressuavam de ironia Ao mesmo tempo de inocente gozo. 270 Junto ao verde cadáver ajoelhou E com os lábios ardentes o beijou. Depois sentou-se triste junto ao esquife E as passadas cantigas recordando, Nos dedos frios, trêmulos, nervosos, C'os cabelos do amante ia brincando; Co'a outra mão sobre o morto regelado Pôs um longo punhal ensangüentado. "Durmamos, disse ela, é meu amante! Não vês? Eu tenho as mãos ensangüentadas. Este sangue é de Jorge, é do assassino, Durmamos: tuas cinzas 'stão vingadas". ... Então beijou-o louca em devaneio E recostou-lhe a fronte no seu seio... ............................................ V OS DOIS CADÁVERES E depois quando a aurora ergueu-se linda, Viu a louca a embalar no seio o amante, Cantando mil cantigas e o beijando Sempre amorosa, triste e delirante... Mas a lua co'os raios desmaiados Viu dois mortos unidos, abraçados ... CRÔNICA JORNALÍSTICA É MEIA-NOITE. Um senhor da redação chega-se a mim com ar carregado: - A crônica? - A sabatina é que tu chamas crônica? É verdade... a sabatina é a moléstia crônica do estudante. - Não; quero ler a crônica do Futuro que deve sair amanhã. Dá-ma. - Ah! Meu Deus... Ainda não a fiz. - Deixa de haver jornal, é o resultado... Compromisso e mais compromisso... Tomou o chapéu o meu colega e saiu com ar severo. Eu vi-o afastar-se, sem coragem de lhe dizer cousa alguma. Olhei em redor de mim; vi os senhores expositores escancarados, como querendo dar- me um insípido abraço; voltei a cara. Então no escuro do quarto pareceu-me ver uma figura terrível de caderneta em punho, molhando o lápis à boca, com este letreiro à testa – Bedel. – Era o fantasma do Comendador. 271 Sucumbi, um calafrio passou-me pelo corpo; pensei no Futuro, na sabatina, na falta, e fiquei sufocado, abatido ante essa tríplice figura de Bânquo, ou de Oscar d’Alva. A luz ia pouco a pouco extinguindo-se, e eu via-a morrer inanida; minhas pálpebras pesavam. Aos últimos clarões da luz, que morria, percebi uma figura sinistra, que se aproximava de mim. - Temos os mil e um fantasmas de Dumas? Disse comigo. Quis esfregar os olhos, mas estava tolhido... O vulto foi cada vez se tornando mais distinto. Era uma figura de mulher. Trajava um xale de novidades velhas, um corpinho de dissertações extemporâneas, um balão de insipidez, as botinas da fábrica redação; seu chapéu tinha o dístico de crônica. A senhora aproximou-se de mim com passos firmes, então senti que uma força me arrancava da paresseuse, e um braço se tratava no meu. Era ela que (desconfiando talvez da minha delicadeza) tomava a iniciativa e me convidava a um passeio. Segui-a automaticamente, nem sequer perguntei-lhe onde íamos; já eu tinha-a conhecido e murmurava: Maldita crônica!... A princípio seguimos ruas tortuosas e escuras; depois sentia sob os pés uma areia movediça; olhei – era um deserto. Não me pude conter e disse à minha companheira: - Indubitavelmente me levas a algum sabbat de feiticeiras; que areal é este? Estamos no Saara? - Se te levo a feiticeiras, não sei; isto é o caminho da Academia, o inóspito campo do Hospício. Calei-me e segui-a. Adiante, num edifício com semelhança de convento, feio e tosco, havia uma grande multidão de pessoas. Conversava-se sobre política, fim do ano, etc., etc., em tudo quanto é objeto de prosa, pensava-se em geral nos gerais. Aproximamo-nos de um grupo e ouvimos o seguinte diálogo: - Não sabes? Num jornal das Alagoas estão sendo reproduzidas as postilas do Dr. Brás. - Mas como? - A questão da escravidão tendo sido mais uma vez agitada entre nós, alguém que abraça a teoria do senhorio do homem sobre o homem, achou razoável sustentá-la à custa alheia. - Que gralha adornada das penas do pavão! Retirei-me aborrecido de tanta miséria e cinismo. - Adiante! Adiante! Disse eu à minha companheira. De repente senti que a terra me faltava. Éramos arrebatados pelo espaço. 272 Foi uma vertigem, um correr de Mazeppa, ou o rasgar do éter do Pecopin de Hugo. ......................................................................................................................................... Quando paramos, estávamos noutra terra – na Bahia. - Que queres ver? – disse a minha sibila. - Tu, que és a musa da crônica, inspira-me alguma cousa que preste; porque, entre nós, não sei como hei de sair desta. - Bem. Nesse grupo lia-se um periódico – era a Revista Acadêmica. - É mais um tribuno dos sentimentos grandes, é mais um apóstolo da religião da ideia, é mais um gladiador gigante da arena do pensamento. Como as trombetas de Jericó, que um dia ergueram os mortos de seus toros de pedra, as trombetas da civilização erguem as inteligências da época de seu leito de marasmo. A inteligente mocidade da Academia médica da Bahia não podia ficar surda a este apelo. Nas noites embaladas de cismares profundos do belo e do grande, o moço sente em si a sede de vida intelectual, e brada o “j’ai quelque chose là” de A. Chénier. Depois, como a águia ama o espaço, o pensamento ama a luz. Filho dessas inteligências que pressentem talvez algum mundo novo para o domínio do pensamento, como sempre o sói cismar a mocidade, é esse periódico. Ardente, como a mocidade, cheio de esperanças como ela, é o miosótis perfumado, que abre as pétalas ao soprar dos ventos do futuro. Seus artigos são bem elaborados. À pág. 2ª lê-se um escrito sobre o catolicismo no Brasil, ou, para falarmos com mais precisão do que teve o autor, sobre a introdução do nosso periódico. Esperamos que o nosso amigo, o Sr. Maciel Pinheiro, responderá ao beatíssimo furor do Sr. Sátiro. Após essa Catilinária, segue-se um escrito do Sr. Aprígio de Meneses sobre o Futuro. É um brado espontâneo de um coração de moço, é um abraço simpático mandado da inteligência à inteligência, é a expressão de uma alma de mancebo, que precocemente ainda não velou os olhos com a túnica da inveja (como tantos outros). Caminheiro desta senda que se chama ciência, ele encontra em cada companheiro um amigo, tendo sempre nos lábios um brado de animação. Agradecemos-lhe em nome de nosso periódico a generosidade de suas expressões. Dos jardins de sua inteligência quis dar-nos uma capela; se a não podemos atar sobre a fronte, trá-la-emos sobre o coração. 273 Não podemos passar em silêncio uma mimosa poesia inserta nesse periódico: - “A Doente.” A forma é pura, o pensamento natural, e felizmente não se ressente da carunchosa escola dos Filintos. “A poesia, disse-o Byron, é o coração” e nada há mais falso do que essa mitologia passada. O poeta moderno deve, no dizer de Milton: “drive far off the barbarous dissonance of Bacchus and his revellers.” Eu queria ir mais longe, esquecendo-me de que estava ao pé de mim a musa das crônicas, que já se achava aliás bem maçada (talvez, como os leitores) e me chamava insistentemente. Fechei o periódico, repetindo comigo o dizer do Sr. Aprígio de Meneses: “Bezebel foi o escolhido para constituir o tabernáculo do Senhor, vós fostes os predestinados para a confecção do tabernáculo do futuro.” - Que mais veremos para aumentar a crônica? - És um doudo, meu caro cronista, pois achas que o respeitável público traga uma crônica maior do que esta?... - É verdade. E quem sabe se eles me acompanharão até este ponto? E demais é muito tarde, e apesar de não sermos estudantes da Bélgica, é mau andarmos a estas horas fora de casa. - Voltemos. ....................................................................................................................................................... Quando pus pé em terra, estava no cais do Imperador. Apanhei a estrada para casa. Na ponta da Boa Vista berrava-se a dois de fundo sobre a queda do ministério; declamava-se sobre interesses da nação ou ambição (palavras fatalmente consoantes) e sobre mil outras coisas, que aliás me incomodavam... E quem eram os declamadores? Oh! Quanta species! Non habent cerebrum. Enfim é justo que assim seja. Nápoles tem os seus lazzaroni, nós temos os nossos dilettanti de ponte. Adiante encontramos fisionomias bem conhecidas por mim. As toilettes domingueiras, as cabeleiras frisadas, o competente jouvin fizeram-me exclamar: - Que será isto? É missa? - Não! Me respondeu a minha companheira. É a festa do Bom Conselho. - Ah! Mas estou tão fatigado!... - Acabemos com essa longa peregrinação. 274 Chegamos enfim, ao nosso tugúrio hospitaleiro. - Boa noite, diz a tal senhora. - Boa noite, excelentíssima, tem esta casa às suas ordens, desculpe. Estava doido por vê-la ao fresco. A senhora apertou-me a mão e ia sair, porém de repente volta-se e diz: - Como até o ano vindouro é provável que não nos vejamos, venha um abraço de despedida. Eu não gostei da pilhéria, mas enfim... Então senti um arrocho terrível, um abalo que me dilacerava todos os membros... - Deixa-me por piedade, murmurei. - Qual deixá-lo. Qual nada. Um abalo mais forte deslocava, os ossos se me estalavam, soltei um grito, e... ....................................................................................................................................................... E acordei... tendo junto de mim um companheiro de casa, que me sacudia pelo braço a gritar: acorda para a aula. Esfreguei os olhos, incrédulo, uma e muitas vezes. Quê! Tudo isto foi sonho? E a figura do bedel? E a minha Urânia? É verdade, caros leitores, eu tinha adormecido desde que olhara para os expositores de Direito Romano, que (não passe adiante) dispensam a cultura do ópio no Brasil. Tudo isto foi o resultado de uma ideia fixa. Mais feliz do que o Ludwig de Parfait (de que não foi mais do que uma paródia), com o meu sonho livrei-me de um trabalho bem maçante, pois apenas tenho de copiá-lo e pedir mil desculpas aos amáveis leitores para os anacronismos e mil outros defeitos, que esta crônica tem. Ah! Esquecia-me do maior incômodo de todos, é o de assinar-me. ANTÔNIO DE CASTRO ALVES OS TRÊS AMORES I Minh′alma é como a fronte sonhadora Do louco bardo, que Ferrara chora... Sou Tasso!... a primavera de teus risos De minha vida as solidões enflora... Longe de ti eu bebo os teus perfumes, 275 Sigo na terra de teu passo os lumes... — Tu és Eleonora... II Meu coração desmaia pensativo, Scismando em tua rosa predileta, Sou teu palido amante vaporoso, Sou teu Romeu... teu lânguido poeta!... Sonho-te às vezes virgem... semi-nua... Roubo-te um casto beijo à luz da lua... — E tu és Julieta... III Na volúpia das noites andaluzas O sangue ardente em minhas veias rola... Sou D. Juan!... Donzelas amorosas, Vós conheceis-me os trenos na viola! Sobre o leito do amor teu seio brilha... Eu morro, se desfaço-te a mantilha... Tu és — Julia a Espanhola!... Recife, Setembro de 1866 O “ADEUS” DE TERESA A vez primeira que eu fitei Teresa, Como as plantas que arrasta a correnteza, A valsa nos levou nos giros seus... E amamos juntos... E depois na sala "Adeus" eu disse-lhe a tremer co'a fala... E ela, corando, murmurou-me: "adeus." Uma noite... entreabriu-se um reposteiro... E da alcova saía um cavaleiro Inda beijando uma mulher sem véus... Era eu... Era a pálida Teresa! "Adeus" lhe disse conservando-a presa... E ela entre beijos murmurou-me: "adeus!" Passaram tempos... sec'los de delírio Prazeres divinais... gozos do Empíreo... ... Mas um dia volvi aos lares meus. Partindo eu disse — "Voltarei!... descansa!...” Ela, chorando mais que uma criança, Ela em soluços murmurou-me: "adeus!" Quando voltei... era o palácio em festa!... E a voz d'Ela e de um homem lá na orquesta 276 Preenchiam de amor o azul dos céus. Entrei!... Ela me olhou branca... surpresa! Foi a última vez que eu vi Teresa!... E ela arquejando murmurou-me: "adeus!" S. Paulo, 28 de agosto de 1868. ADORMECIDA Ses longs cheveux épars la couvrent tout entière La croix de son collier repose dans sa main, Comme pour témoigner qu'elle a fait sa prière. Et qu'elle va la faire en s'éveillant demain. A. de Musset Uma noite eu me lembro... Ela dormia Numa rede encostada molemente... Quase aberto o roupão... solto o cabelo E o pé descalço do tapete rente. 'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste Exalavam as silvas da campina... E ao longe, num pedaço do horizonte Via-se a noite plácida e divina. De um jasmineiro os galhos encurvados, Indiscretos entravam pela sala, E de leve oscilando ao tom das auras Iam na face trêmulos — beijá-la. Era um quadro celeste!... A cada afago Mesmo em sonhos a moça estremecia... Quando ela serenava... a flor beijava-a... Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia... Dir-se-ia que naquele doce instante Brincavam duas cândidas crianças... A brisa, que agitava as folhas verdes, Fazia-lhe ondear as negras tranças! E o ramo ora chegava, ora afastava-se... Mas quando a via despeitada a meio, P'ra não zangá-la... sacudia alegre Uma chuva de pétalas no seio... 277 ____________ Eu, fitando esta cena, repetia Naquela noite lânguida e sentida: "Ó flor! — tu és a virgem das campinas! "Virgem! tu és a flor da minha vida!..." S. Paulo, novembro de 1868. D. JUAN OU A PROLE DOS SATURNOS DRAMA EM TRÊS PARTES (A cena representa uma grande sala forrada de veludo preto. No centro, sobre um estrado também preto acha-se o caixão da Condessa Emma. Ardem círios em torno.) I PARTE: A vida na morte. II PARTE: A morte na vida. III PARTE: Saturno. PRIMEIRA ÉPOCA PRÓLOGO QUADRO PRIMEIRO CENA PRIMEIRA O Dr. MARCUS, o CONDE FÁBIO, MACÁRIO, e a CONDESSA no esquife. O Dr. MARCUS (a um lado – à boca da cena. A MACÁRIO) – A Condessa está morta... MACÁRIO – Morta! Mas como?... meu Deus! Há pouco o baile. Agora o enterro. Que antítese horrível! Ainda ontem ela brilhava bela, orgulhosa, altiva, nas salas deste palácio... Ainda ontem, lembras-te, Marcus?... ela te arrebatava no turbilhão da valsa, como se quisesse levar o seu par consigo para o céu!... Oh! Quem a viu então, apenas resvalando pela terra, com os seios trêmulos sob as pedrarias e os arminhos, com os cabelos meio espalhados sobre teus ombros, com os lábios entreabertos a respirarem sobre tua fonte pálida... Sim! Marcus! Porque tu empalidecias naquela vertigem da Condessa... quem a viu ontem não pensou decerto... que aquele pé ligeiro ia tropeçar na cova... que aqueles seios iam trocar os diamantes pelas lágrimas... que a condessa Emma estaria morta... Dr. MARCUS – Que queres, Macário? A morte às vezes tem dessas fantasias terríveis. Eu, que sou médico, que tenho lutado, como Jacó, com este anjo sombrio, junto à cabeceira do doente, o sei... Ainda ontem, tu o disseste, eu empalidecia naquela valsa... é que sentia um quê de vertiginoso e doentio naquele esvoaçar da Condessa, aquele coração que batia precipitado sobre o meu tinha uma semelhança com o último arranco do moribundo... a espaços eu a 278 apertava contra meu peito, porque me parecia que aquela mulher ia tropeçar e cair inanida sobre os tapetes do baile... Lembras-te, Macário, daquela espanhola, de que fala V. Hugo? Assim foi. Quando as últimas risadas dos convivas perdiam-se nas escadarias e as lajes empalideciam lutando com a manhã, o coração daquela rainha do baile rasgou-se de súbito, com uma corda que estala depois de uma ária brilhante, e a Condessa Emma rolou morta nos braços de seu marido... (Apontando o CONDE FÁBIO.) MACÁRIO – Mas como? Mas por quê? DR. MARCUS – Dor?! Não sei. Não creio que a dor seja a cessação da vida, o aniquilamento da inteligência...Vês (apontando o CONDE). Nem um grito, nem uma lágrima... MACÁRIO – Mas deve ser terrível o acordar daquele sonâmbulo. DR. MARCUS – Terrível... E por isso, Macário, tu que és seu amigo, leva-o daqui antes que desperte. O saimento está pronto... Vai anoitecendo... É preciso que o féretro parta para o cemitério... Eu velarei a Condessa, como amigo, e como médico... MACÁRIO – Sim, Marcus. (Dirigindo-se ao CONDE). É preciso partir, deixar este lugar fatal. Vamos, Senhor Conde, vamos. (O CONDE segue-o pelo braço, silencioso e indiferente.) CENA 2.ª DR. MARCUAS e a CONDESSA DR. MARCUS (depois de acompanhar o CONDE e MACÁRIO e fechar a porta) - Enfim! (Aproximando-se do caixão) – Emma! Emma! Acorda! Mergulhadora da morte, vem um momento respirar à tona da vida, para depois desceres mais forte ao mar profundo do sepulcro... Vamos, desperta! Não ouves, Emma, é a voz de Marcus, que te chama... A CONDESSA (levantando a cabeça) – Marcus! Onde está Marcus?... Meu Deus!... Ah! Um caixão, círios, uma mortalha... Marcus, que leito é este? MARCUS – É o nosso leito de núpcias. A CONDESSA – Marcus, que círios são estes? MARCUS – São as tochas do himeneu... A CONDESSA – Marcus, que mortalha é esta? MARCUS – É teu vestido de noiva! A CONDESSA – Marcus! Marcus! Arranca-me daqui... eu tenho medo... tu não sabes como é horrível... como são frias estas tábuas... como este pano mortuário agarra ao corpo... Escuta... eu tive um pesadelo... eu ouvi a voz do Conde, que me chamava, ao momento em que o narcótico me atirava por terra... depois... foi um sonho pesado, mas que me apertava o peito... Eu via meu filho Romeu, que chorava em torno de mim dizendo: “Minha mãe está morta...” Eu ouvi os criados que passavam gritando “A Senhora Condessa está morta...” E tu mesmo, Marcus, dizias: “A Condessa morreu...” Então eu perguntava a mim mesma... Quem sabe? Se Marcus o diz, é porque é verdade... é que sua ciência o enganou, é que o médico errou; e querendo dar-me a vida do amor, deu-me o sono eterno... 279 MARCUS – Emma! Eu matar-te?... Não! Quando minha boca dizia lugubremente: “A condessa morreu para o mundo”... meu coração murmurava: “Emma desperta para mim”... Pois tu tremes, meu amor, tu tremes perto de mim? A CONDESSA – Marcus! Arranca-me daqui... dá-me a tua mão... MARCUS – Não, condessa, a senhora desvaria... Sair! Mas para quê? Para ir cair de novo nos braços de seu marido, para erguer de novo uma barreira insuperável ao nosso amor? É isto o que quer? Pois bem, senhora... pegue-se ao meu braço... vamos... eu quero conduzi-la de novo ao seio de seu lar... porque a senhora não me ama, porque a Condessa Emma zombou de mim, quando disse ontem no turbilhão da valsa “Marcus... eu te amo!... porém minha alma é bastante honrada para não arrastar na cama do adultério o nome do Conde Fábio e de meu filho Romeu, Marcus! Marcus! Eu quisera morrer para ressuscitar nos teus braços...” A CONDESSA – Oh! Sim! Marcus! Eu te amo... MARCUS – E eu te disse então: “Senhora! Houve um tempo em que o Dr. Marcus vagou nas florestas gigantescas do Amazonas, em que viveu na tribo dos índios, atravessou as savanas e os rios na igara dos caboclos, e estudou a ciência dos narcóticos com os filhos primitivos da América... Um dia, senhora, uma linda cabocla, que o amava, deu-lhe um veneno estranho... este veneno dá a morte por momentos... por horas... por dias... A CONDESSA – Sim... e eu te disse: “Marcus... mata a Condessa e ressuscita a tua Emma... MARCUS – Depois, Senhora... Vós me arrancastes o cristal, que o encerrava... A CONDESSA – E bebi: porque cada uma daquelas gostas se transformaria em oceano de felicidade... Mas, vamos, Marcus, é tempo de me abrires os braços... MARCUS – Não, Condessa, não vê onde está?... A CONDESSA – É verdade... Que sala é esta? Onde estou eu?... Meu Deus, é ainda o palácio do Conde!... Por que me fizeste acordar ainda aqui?... MARCUS – Porque ainda é tempo de renegar o meu amor... A CONDESSA – O teu amor?... MARCUS – Escute, Emma... Ontem era no baile... As flores, as luzes, os sons da orquesta, como outras tantas vozes do céu, murmuravam-te aos ouvidos: Ama, Condessa, ama!... Estátua divina e orgulhosa... é tempo!... Camélia pálida, abre o teu seio às borboletas douradas do amor!...E depois era no terraço... eu de joelhos beijava o arminho de teu vestido, enquanto a lua beijava o arminho negro de teus cabelos... e a noite... o céu... as estrelas... e (apontando para si) o verme da terra te pedia um conceito, uma palavra divina, uma palavra que tu nunca disseras a ninguém no mundo, uma palavra de amor... A CONDESSA – E esta palavra, Marcus, tu ouviste... esta palavra, virgem na minha alma, tu a bebeste nos meus lábios... MARCUS – Oh! Condessa! Tudo aquilo era uma vertigem. Depois... Quem sabe se a mulher que me amava no baile... não teria horror de mim no cemitério? Condessa Emma... ainda é tempo... Ali está a sociedade... aqui está o amor... ali está o seu leito nupcial, que é um túmulo, aqui está um túmulo, que é o seu leito nupcial... Escolha... 280 A CONDESSA – Tu mentes, Marcus... Tu não me pedes deveras que eu escolha... É impossível... Tu quiseste apenas sentir de novo a extensão do meu amor... quiseste gozar do espetáculo de minha paixão, não é verdade? Oh! Não me digas que desconfias de meu amor, porque então eu não acreditaria que me amas... (falando fora do esquife.) Marcus, uma ideia horrível me atravessa agora o espírito... Marcus, teu amor seria apenas um capricho? És tu D. Juan?... ou és Romeu?... Vamos... uma palavra... tu o disseste... ainda é tempo, porque, olha bem, Marcus, uma mulher, como eu, ama somente uma vez na vida, mas precisa de um amor também eterno... Escuta, não me interrompas... Se tu sentes em ti uma paixão única e imensa, como a minha, dize... e nós iremos viver longe... bem longe... na Espanha, na terra das laranjeiras floridas... na Itália, sobre as ondas azuladas do Sorrento..., nos Andes, onde a raça dos Incas embala o amor à sombra das palmeiras, na Grécia, em Paris, onde quer que seja nós iremos abrigar o infinito de nossa paixão... Mas se tu não sentes em ti um sentimento destes, dize... Marcus... dize e tudo estará terminado... Eu te perdoarei porque ao menos não soubeste mentir... Marcus, vê bem que o meu amor é grande e insaciável, como o oceano... MARCUS – E o meu é grande e inesgotável, como o céu... A CONDESSA – Pois então, Marcus, depressa! Depressa atira-me ao cemitério, que já me tarda cair no teu seio... MARCUS (tem chegado com a Condessa para perto do esquife; dá-lhe um vidro a beber) – Oh! Condessa, como és bela, mesmo na mortalha... A CONDESSA – Não!... é o meu véu de noiva... MARCUS (ouve a voz dos padres cantando o Dies irae) – Meu Deus! A CONDESSA – São os meus cantos nupciais... MARCUS – Condessa! Depressa! É preciso entrares para o esquife... A CONDESSA – Marcus, tu te enganas! Aquilo não é esquife, é a crisálida do nosso amor. (Cai desmaiada nos braços de MARCUS) QUADRO SEGUNDO (A cena representa um cemitério. É noite. No primeiro plano central um mausoléu com a inscrição do nome da Condessa. À direita um mausoléu com uma cruz. No fundo mais túmulos.) CENA PRIMEIRA DR. MARCUS e o COVEIRO MARCUS – Vamos, Paulo, tu estás bêbado... Pois tu, que és o Cérbero deste reino das sombras, ladras com medo do luar, que bate nas sepulturas?! PAULO – Senhor Doutor, mas é que é mau brincar com os mortos... Depois... eu vivo com eles e tenho visto muita sombra nas noites de lua caminhar pelo meio das sepulturas... muito gemido triste aqui no cemitério... Dizem que é a lua, que bate na pedra branca das lousas, que é o vento que geme nas folhas do cipreste... mas o coveiro sabe que são as almas, que passeiam, que são as almas, que conversam... Não ouve, Senhor?... 281 MARCUS – Paulo, tu fazes-te covarde... Quantas vezes tens cantado as tuas trovas obscenas ao compasso da pá, com que lanças a cal na sepultura?... Quantas vezes tens dormido embriagado aos pés de um cadáver? Vamos... A tua covardia... não passa de cobiça... Vamos, (dá-lhe uma bolsa) pega da alavanca... PAULO – Eu estou pronto; mas o Sr. Doutor já não se lembra, que salvou uma vez minha vida... Não! Não é cobiça... mas o que eu vou fazer é horrível... e depois... MARCUS – E depois?!... PAULO – E depois? Quando entramos, deixei a porta aberta, enquanto procurava os instrumentos em casa... e ao sair numa das ruas dos carneiros de lá vi caminharem chorando dois vultos pretos... MARCUS – Não vês que a sombra dos ciprestes, que o vento balança, parecem dois homens de luto, que caminham?... Mas, pela última vez, Paulo, digo-te que pegues da alavanca. PAULO (pegando na alavanca) – Porém... é mesmo para estudar que o Sr. Doutor quer o cadáver?... MARCUS – Acreditas que eu lhe queira roubar as jóias? PAULO – Não... mas, Senhor... por que prefere este a outro defunto?... MARCUS – Por quê? Porque a Condessa morreu de uma enfermidade súbita e desconhecida, cuja origem quero saber... Depois que te importa? Que importa ao cadáver que lhe rasguem as estranhas? É uma profanação, não é assim?... Enganas-te, pobre coveiro... É uma virtude procurar, como os áugures antigos, nas entranhas palpitantes da vítima a profecia do futuro, ir arrancar do seio da morte o princípio da vida... PAULO – Mas, Senhor, amanhã podem procurar os ossos da Condessa... MARCUS – Pois bem. O primeiro cadáver de mulher pobre, que aqui lançarem, - atira- o nesta sepultura... Mas vamos, coveiro do inferno... levanta esta lousa... que o dia não tarda... PAULO (levantando a lousa) – O cimento está molhado... São duas pedras... pronto... (tem suspendido e posto de lado a tampa da sepultura juntamente com MARCUS.) MARCUS – Agora deixa-me tirar a Condessa. (Debruça-se para a sepultura.) PAULO – Senhor, não ouviu passos... Não vê longe... lá... muito longe... MARCUS (levantando EMMA nos braços) – Vamos... é preciso que este coração não palpite tanto... que a embriaguez não me mate... porque pela primeira vez eu sinto a vertigem da felicidade... (A CONDESSA solta um gemido.) PAULO – Senhor! Senhor! Não ouve? É a defunta que se queixa... MARCUS – Cala-te imbecil... Depressa! Os cavalos estão prontos? Tudo está preparado? Sim! Sim! Fecha esta lousa... assim! E agora vai-te... e cala-te... Vê bem... este segredo é meu... e teu... 282 CENA 2.ª DR MARCUS e a CONDESSA MARCUS (sentado sobre a sepultura, tendo a CONDESSA encostada a si, depois de olhá-la muito tempo) – Houve um dia um artista, que amou uma estátua de mármore; houve um dia um carrasco, que amou um cadáver de rainha. E o artista amou e amou tanto que estremecia de volúpias estranhas ao contato daquela pedra indiferente, que adorou, cismou, viveu longos dias com uma prece, um olhar, um sorriso só para aquela figura marmórea, que achou mais gozos naquela indiferença, do que no delírio dos amores da terra... E o carrasco amou e amou tanto que bebeu vinho da vida na taça lívida dos lábios da defunta... que se ardeu na frieza daquele seio inanimado, que apertou contra o peito em espasmos divinos o corpo degolado de Maria Stuart... Mas o que sentiria Pigmalião, o que sentiria o carrasco se os seios de mármore, se os seios da morta estremecessem, se os braços da estátua, se os braços da mulher os estreitassem, se os lábios de Vênus, se os lábios de Maria dessem-lhe sorriso por sorriso, carícia por carícia, beijo por beijo, delírio por delírio? Ó D. Juan! Ó Lovelace! Embalde nos seios das Andaluzas, das Haidéias foste procurar o vinho supremo do amor... Ninguém nunca teve a volúpia, que sai da cova, o delírio, que sai da morte, o beijo repassado de eternidade!... (Beija- a sofregamente na testa.) Ergue-te... Lázaro do amor! Ergue-te e cai no meu seio... A CONDESSA – Meu amor! Marcus! Oh! Como é bom apertar-te em meus braços! Como é bom encher o peito de ar... Respirar... sim, respirar... beber o espaço... Oh! Marcus! Que formosa noite... Não vês... As estrelas parecem hoje mais claras e maiores... Como os ciprestes catam... como tudo isto é alegre... como tu és belo... como eu te amo... Vamos, Marcus. Eu tenho frio... Aquece as minhas mãos nas tuas... minha testa arde... aquenta-a com teu hálito. (Leva a mão à cabeça, arrancando a coroa roxa.) Ah! É a minha coroa de viúva... que vinha se colocar entre tuas carícias e meus cabelos... Eu não a quero... Não! Cilício da sociedade, tu não apertarás mais os pensamentos da minha cabeça... não! Grilhão de flores!... tu não prendes mais minha alma... porque... porque “a borboleta, que sai da crisálida não reveste a fealdade da larva...” MARCUS – Sim... Emma... a noite te coroará de estrelas. A CONDESSA – Não! Marcus... o teu amor me coroará de beijos... MARCUS – Ah! Emma! Como tu me enlouqueces! Como tu sabes amar!... A CONDESSA – Mas não é assim, Marcus, que todos amam? Não é assim que tu me amas? Não foi assim que tu mo ensinaste? Ainda me lembro... A primeira vez que te vi, tu embriagavas as moças de um baile com as tuas palavras melodiosas, e falavas de amor... Então, Marcus, eu pela primeira vez estremeci ao olhar de um homem... perguntei-te sorrindo o que era o amor... tu me disseste: “Senhora! É a adoração, a idolatria, o desejo, mas tão grandes que pedem – ao infinito, que se alargue para contê-los, - à eternidade, que cresça para encerrá-los.” MARCUS - E tu te riste, então, Emma. A CONDESSA – Ri-me, porque então se abria para mim a felicidade... A felicidade, que na terra só tem um nome – amor. A felicidade sem sombras; a ventura sem remorsos... (Movimento de Marcus.) Sim... Marcus, porque eu não tenho remorsos... Remorsos... e de quê? De nunca ter manchado a honra de um homem, que eu não amava, de nunca haver mentido sobre a terra, de procurar a minha felicidade, sem ferir a ninguém? Não! Remorsos tenha a mulher, que vai embalar no leito do esposo a imagem de outro homem, a mulher que arrasta na lama e expõe ao ridículo a honra, que lhe não pertence, e que ela rouba para matar. Remorsos 283 sintam essas miseráveis, que não têm um tesouro n’alma... Não... elas têm-no... mas em pequenas moedas azinhavradas ao contato de tantos dedos. Mas eu, Marcus, no dia em que senti palpitar em minhas entranhas o teu amor, foi como as caboclas de nossa terra com os filhinhos, recém-nascidos... (apontando o esquife)... mergulhei ali... no mar do sepulcro para vir trazê-lo a ti, intacto e puro, na margem desta outra vida, que começa... MARCUS – Tu és o anjo da paixão. A CONDESSA – Anjo, que nunca rolará do céu de teu amor, não é verdade, meu querido Marcus? Porque então eu seria o Satanás da vingança. Também Lúcifer era o arcanjo da luz... no entanto foi depois o demônio da treva... (Passando a mão pela fronte.) Mas quem fala de sombras, quando a alvorada desponta... Olha, tu não sabes que música divina eu sinto em meu cérebro... coloca a mão sobre o meu peito... Escuta... Dir-se-ia que meu coração, como um pássaro que sente o sopro da primavera, se debate contra as paredes de meu peito... Pois bem... pobre pássaro... é tempo de voar... tens diante de ti a vida inteira, para viver... a terra inteira, para atravessar!... MARCUS – Sim! Para nós – a eternidade e o espaço... Vamos, Emma! Os cavalos relincham à porta do cemitério... A galope! A galope! A noite nos esconderá em sua mantilha espanhola, e quando a aurora nos alumiar, já estaremos longe... muito longe... A CONDESSA – Sim! Partamos! É a hora em que velam os amantes... (Vão a sair precipitadamente para o fundo, mas ao encontrarem-se com as personagens que aparecem, recuam surpresos para a esquerda.) CENA 3.ª O CONDE FÁBIO, ROMEU, MARCUS e a CONDESSA EMMA O CONDE FÁBIO (vestido de preto, trazendo ROMEU também de luto pela mão) – É a hora em que só velam os esposos... MARCUS (recuando até esconder-se atrás do mausoléu da cruz) – O Conde Fábio!... A CONDESSA – Meu filho! O CONDE FÁBIO (procurando a sepultura da CONDESSA) – Aqui... sim... deve ser aqui junto das outras lousas da família... (Lendo o letreiro.) Meu Deus! Encontrei-a enfim. (Cai de joelhos e esconde a cabeça entre as mãos.) ROMEU – Meu pai! Por que me trouxeste aqui? Se faz tanto frio!... O CONDE FÁBIO – Filho... para aqueceres alguém, que ainda sente mais frio... do que nós... Aproxima-te, Romeu... toca esta pedra... vê que lençol tão gelado, que leito tão escuro... lá dentro trevas, trevas somente... e nem uma carícia... nem um hálito de amigo... nada! A solidão, a solidão, que parece outro tumulo, que encerra este... Oh! Quem sabe se o morto não sofre?... Quem sabe se, à meia noite, quando a geada cai na sepultura, a pobre moça que viveu num leito de mornos arminhos não acorda, procurando embalde agasalhar-se com a mortalha molhada?... quem sabe quanto crânio se debate então pelos ângulos sombrios da lousa?... (Chorando) Oh! Filho!... filho... Ainda ontem ela vivia bela, santa, e miniosa da felicidade... Às vezes eu pensava que os tapetes macios eram ainda 284 ásperos para ela, que o cetim era tosco para calçar-lhe o pezinho de criança... que a própria gaze fazia dorida a sua pele divina... e hoje... hoje! ROMEU – Hoje, meu pai, vestiram-me de preto sem eu querer... Não é tão feia esta cor? Por que me obrigam a isto? O CONDE FÁBIO – Por quê?... porque ficas assim mais bonito com os teus cabelos louros; porque deve ser já uma prece ver uma criança de luto... a inocência coberta da desgraça... o anjinho ferido no coração... ROMEU – Eu nunca o vi assim, meu pai!... Está chorando... mas nunca meu pai chorou... O CONDE FÁBIO – Cala-te, Romeu, bem vês que eu não choro. Mas conversemos, meu filho... Dize-me, tu não tens tido muitas saudades de tua mãe?... ROMEU – Oh! Muitas, e onde está ela que não a vejo desde o baile?... Ela estava tão pálida no terraço, quando o Dr. Marcus lhe deu uma bebida... MARCUS e a CONDESSA – Meu Deus! (Contracena por detrás do túmulo da direita.) FÁBIO – Uma bebida?... Sim!... é tão natural num baile... quando o seio se abrasa naquela atmosfera de fogo e de perfumes... (Pausa.) ROMEU – Meu pai! Onde está minha mãe?... está muito longe? FÁBIO – Muito longe... sim, muito longe... porque entre ela e nós está o infinito... porque ela está tão longe, como o céu da terra!... Ai! Por mais que solucemos, ela não ouvirá nossa voz... por mais que caminhemos não chegaremos a seu pouso... por mais que a procuremos, nunca mais tornaremos a vê-la... nunca mais... Entendes bem isto, meu filho?... nunca mais... ROMEU – Então, meu pai, nós vamos ficar sozinhos... FÁBIO – Sós, meu filho, sós... ROMEU – E nunca mais minha mãe me beijará? FÁBIO – Nunca. ROMEU – E quem tocará à noite no piano aquela música, tão bonita, quem me fazia adormecer? FÁBIO – Ninguém, ninguém, filho!... Não mais passeios alegres ao campo, não mais bailes esplêndidos, não mais alegria... A manhã nos achará solitários na casa triste e abandonada, a noite nos encontrará no salão deserto e escuro... Ela foi-se... A nossa alegria, a nossa felicidade... Minha mulher... tua mãe... Romeu! ROMEU – Mas... Papai, quer me assustar... pois não me tinha dito que ela estava aqui? FÁBIO – É verdade... (à parte) Pobre criança! Para que hei de dizer-lhe que é órfão!!... (A ROMEU) Sim... meu filho... eu brincava contigo... tua mãe está aqui... está muito perto de nós... ela está ouvindo tudo que nós dizemos... ela está nos vendo mesmo... ROMEU – Então por que não nos vem abraçar... 285 (EMMA quer caminhar para ROMEU; MARCUS segura-lhe o braço.) FÁBIO – Porque não pode, porque lhe é proibido... ROMEU – Pois então leva-me junto dela? Eu quero ver minha mãe... eu quero ver minha mãezinha... E tu não queres... Oh! Meu Deus! É ser bem mau... FÁBIO – Vê-la?... E por que não?... Por que não hei de ainda uma vez beijar minha querida Emma?... A inocência foi quem me aconselhou... Não é verdade, meu Romeu, que devemos ainda uma vez olhar a nossa boa amiga?... (ROMEU faz-lhe sinal que sim.) Felizes superstições! Que mal faz arrancar a lousa de uma sepultura... E depois... eu quero apenas uma lembrança sua... um pedaço de seus cabelos... uma flor de sua capela... Oh! Emma!... O pássaro, quando foge, deixa ao menos uma pena no ninho abandonado... tu não deixaste nada... nada!... ROMEU – Pai! Vamos! (Contracena de MARCUS e da CONDESSA.) FÁBIO – Sim! Espera, Romeu, espera um instante!... Nós vamos vê-la... Ah! Aqui está uma alavanca... bom!... mais alguns instrumentos... Dir-se-ia que os esqueceram de propósito... (Pegando da alavanca e batendo contra a sepultura.) Meu Deus!... é um sacrilégio... é mau desrespeitar o sono da morte... Se ao menos eu a tivesse visto na hora do enterro... Oh! Como me custa... que dor horrível, que me aperta o coração... eu creio que não terei forças... (Continua por instantes a trabalhar.) Ah! Finalmente!... (tem levantado uma pequena parte da lousa.) (Contracena de MARCUS e da CONDESSA.) A CONDESSA – Ah! (encosta-se desvairada ao ombro de MARCUS.) FÁBIO (voltando-se e deixando de novo cair a lousa) – Como que ouvi um grito?... Quem estará aqui?... Alguém talvez, ou será ilusão de meu cérebro enfraquecido?!... ROMEU – Ah! (apanha no chão a coroa roxa da CONDESSA.) MARCUS (à CONDESSA) – Que será feito de nós?... FÁBIO – Foste tu, criança, que me assustasse!... Ai! Mas o meu cérebro desvaira... esta dor é forte demais... para mim... Filho! Parece que a luz a instantes me falta... (Passa a mão pela testa.) Mas não importa, comecemos de novo... (Pega de novo na alavanca, desfalecido.) Como este instrumento pesa... como esta pedra pesa... como este coração pesa... ROMEU (adiantando-se) – Meu pai... veja que bonita coroa... olhe... eu estive lendo as letras bordadas na fita... e não sabe? Tem o nome de minha mãe... (lendo) Condessa Emma. FÁBIO – O nome de Emma?!... MARCUS e a CONDESSA – Meu Deus!... FÁBIO (tomando a coroa) – Ah! Deve ser isto... É a coroa talvez que prendeu os seus cabelos, e que esqueceram sobre a lousa de sua sepultura... Sim! É a sua coroa, que vem se colocar entre minhas carícias e seu cadáver... Oh! Como a quero... como eu amo-a!... Sim! Grilhão de flores!... tu serás sempre o diadema de meu amor! Sim! Elo do meu passado, tu prenderás sempre minha alma... porque... porque... porque... a crisálida abandonada reveste ao menos o pó dourado da borboleta que fugiu!... 286 MARCUS – Tu desfaleces, Emma? EMMA – Não, meu amigo... tão grande e tão inabalável é o meu amor, que mesmo neste momento eu te digo: - Marcus.. eu te amo... mas... MARCUS – Silêncio! FÁBIO (sentado à beira da sepultura) – Filho! Vês esta cova?... Aqui dorme um anjo... Uma santa. Uma mulher cheia de virtudes e generosidade... Ouve... Romeu... Um homem de bem cora mais quando lhe dizem que sua mulher é uma perdida, do que se lhe chama ladrão... O último insulto, que se pode fazer a um homem, é ferir sua mãe... Felizes os que podem, como nós, dizer com orgulho: aqui está uma santa... aqui está uma mulher sem mancha... A CONDESSA (a MARCUS) – Oh! Aquela boa-fé mata-me... Eu não posso suportar a hipocrisia... eu quero desiludir aquele homem... devo dizer-lhe toda a verdade... MARCUS – Estás louca, Emma? ROMEU – Mas o que tem, meu pai?... as suas mãos estão frias... o que é que tem? FÁBIO – Filho! (meio desvairado) tu és pequeno!... mas guarda estas palavras, este pedido de teu pai... quando eu morrer, enterra-me aqui junto dela... e vem rezar sobre esta sepultura, sobre a sepultura da esposa mais honrada, da mãe mais carinhosa... (EMMA destaca-se dos braços de MARCUS, querendo caminhar para FÁBIO.) FÁBIO (caindo no colo de Romeu) – E, agora, filho, ampara teu pai, que não tem senão a ti na terra. (Cai desmaiado.) EMMA (saindo de trás da cruz) – Basta, Senhor... MARCUS – Cala-te. Deus rejeitou a tua doida confissão. Emma... a tua fraqueza chega à loucura... És uma alma de ferro. EMMA – Oh! O elogio daquele homem pesa-me no coração. MARCUS – Tu te arrependes? EMMA – Escuta... Jura sobre aquele corpo, que é talvez o cadáver do meu marido, jura sobre a cabeça do meu filho, que eu abandono, que me amará sempre... mas sempre e verá como minha alma é gigante na paixão... MARCUS – Eu o juro! EMMA (a partir) – Então, Marcus, avante!... ao futuro!... Num coração, que transborda de amor, não há lugar para o remorso!... 287 CARTA A ADELAIDE DE CASTRO ALVES Minha querida Sinhá Curralinho, 23 de Abril de [18]70. Querer-te todas as felicidades é o pensamento constante de minha vida. Escrevo-te à pressa por ter outras cartas a que responder. Não penses que ainda estou tão doente como de lá saí, ao contrário sou hoje um bom cavaleiro, e as tabaroas olham com certos olhos que me fazem desconfiar de uma boa presença... (são vaidades de doente!). Comer leite, galopar, ver flores, ler o “Cosmos” e reler o meu Byron e o “Homem que ri” – eis os afazeres de teu irmão. Já vês que não tenho ido contra as tuas prescrições. Durmo cedo como todo sertanejo. E, quanto a versos, pelos que te envio, verás que não me tenho esforçado muito com eles. Aí vão 3 poesias para tu leres; delas tira apenas “Os versos de um viajante” para copiares nas “Espumas Flutuantes” onde a colocarás na ordem que quiseres. A propósito, quando se imprimirá este livro? Que respondeu o Cornélio? Que tem feito o Augusto Guimarães? Se ele te pedir algum trabalho meu, que tenhas, para publicar, dá-lhe. Manda visitar por mim ao Dr. Souto. Diz ao Dr. Franco que me mande alguns livros de literatura, lidos ou não lidos, sejam quais forem. Incumbe-te de mandar umas sementes de flores que são para D. Joanna que muito por elas se empenha. Pede a D. Maria que me mande uma lista de objetos que junto a esta carta. Eles me são indispensáveis. Daqui a 4 dias receberás outra carta minha com o “Prólogo” do livro que já escrevi; mas não tenho tempo de copiar. Então as Judias evaporaram-se? Recebi tua gravatinha que prezo muito; ainda mais por ser feita por tuas mãozinhas. Adeus. Leonídia te manda muita lembrança assim como Florzinha, Olívia, Glorinha e D. Joanna. Responde-me por este mesmo portador infalivelmente. Adeus, minha querida irmã do coração, recebe toda a afeição de teu irmão do coração, Secéo. 288 ANEXO B: TEXTOS SOBRE O MITO DE DON JUAN FORA DE CIRCULAÇÃO Don Juan (Recolhido do romanceiro espanhol) Pa misa diba un galán – caminito de la Iglesia, No diba por oir misa – ni pa estar atento a ella, Que diba por ver las damas – las que van guapas [y frescas En el medio del camino – encontró una calavera, Mirárala muy mirada – y un gran puntapié le [diera; Arregañaba los dientes – como si ella se riera. – Calavera, yo te brindo – esta noche a la mi [fiesta. – No hagas burla, el caballero; – mi palabra doy [por prenda. El galán todo aturdido – para casa se volviera. Todo el día anduvo triste – hasta que la noche [llega: De que la noche llegó – mandó disponer la cena. Aún no comiera un bocado – cuando pican a la [puerta. Manda un paje de los suyos – que saliese a ver [quién era. – Dile, criado, a tu amo, – que si del dicho se [acuerda. – Dile que sí, mi criado, – que entre pa cá [norabuena. Pusiérale silla de oro – su cuerpo sentara’n ella; Pone de muchas comidas – y de ninguna comiera. – No vengo por verte a tí – ni por comer de tu [cena; Vengo a que vayas conmigo – a media noche a la [Iglesia. A las doce de la noche – cantan los gallos afuera, A las doce de la noche – van camino de la Iglesia. En la Iglesia hay en el medio – una sepultura [abierta. – Entra, entra, el caballero, – entra sin recelo [n’ella; Dormirás aquí conmigo, – comerás de la mi [cena. Yo aquí no me meteré, – no me ha dado Dios [licencia. Si no fuere porque hay Dios – y al nombre de [Dios apelas, Y por ese relicario – que sobre tu pecho cuelga, Aquí habías de entrar vivo – quisieras o no [quisieras. Vuélvete para tu casa, – villano y de mala tierra, Y otra vez que encuentres otra, – hácele la [reverencia, Y rézale un pater noster, – y échala por la [huesera; Don Juan (Tradução) Para missa ia um galã/ no trilho da igreja, Não ia para ouvir a missa,/ nem para estar atento [a ela Pois ia para ver as damas/ as que vão belas e [frescas. No meio do caminho/ encontrou uma caveira Vira-a muito admirada/ e um grande pontapé lhe [dera; Abria os dentes/ como se ela se risse. – Caveira, eu te brindo/ esta noite em minha [festa. – Não brinques, cavalheiro,/ minha palavra dou [por penhor. O galã todo aturdido/ para casa retornara. Todo o dia andou triste/ até que a noite [chegasse: Quando a noite chegou,/ mandou pôr a ceia. Ainda não comera nada, quando batem à porta. Manda a um dos seus pajens/ que saia a ver [quem era. – Diga, criado, a teu amo/ que se do dito se lembra. – Diga que sim, meu criado,/ que chega pra cá [em boa hora Pusera-lhe cadeira de ouro,/ seu corpo sentara-se [nela; Põe de muitas comidas/ e de nenhuma comera. – Não venho para te ver/ nem para comer de tua [ceia; Venho a que venhas comigo/ à meia-noite à [igreja. Às doze da noite/ cantam os galos lá fora, Às doze da noite/ vão ao caminho da igreja. Na igreja há no meio/ uma sepultura aberta. – Entra, entra, cavalheiro,/ entra sem receio nela; Dormirás aqui comigo,/ comerás da minha ceia. – Eu aqui não me porei,/ não me tem dado Deus [permissão. – Se não fosse porque houvesse Deus/ e ao nome [de Deus apelasse, E por esse relicário/ que sobre teu peito [penduras, Aqui haverias de entrar vivo/ quisestes ou não [quisestes Retorna-te para tua casa,/ vilão e de má [procedência, E outra vez que encontrares outra (caveira),/ [Faze-lhe reverência, 289 Así querrás que a ti t’hagan – cuando vayas desta [tierra. E reza-lhe um pai-nosso,/ e seja pela ossada; Assim quererás que te façam/ quando fores desta terra. Octavio e Branca Ou A Maldição Materna João Cardoso de Menezes e Souza Minuit, c'est un roi sans couronne, Un roi. qui la peur environne. Un spectre hideux et fatal Descendu de son pedestal. Minuit. c'est le prince de l'ombre. Qui jette au vent des glas sans nombre Avec ses lévres de metal. Turquety. Romance [1849] I Meia noite soou! – Nos ares trêmulos Fúnebre ecoa o som do campanário De horror gelando o coração dos vivos! Meia noite soou! – Por toda a parte Silêncio sepulcral desdobra as asas! Nem estrondo de andar, que trilhe as ruas Nem brisa, que murmure brandamente! Diríeis desmaiada a natureza Ao pavoroso badalar do bronze. Só ousa violar mudez tão erma Do pássaro da noite o guincho agudo, E uivos de cães, quiçá correndo em cata De maligno Vampiro redivivo. Qual lâmpada em dossel de azul safira, Muda e serena a lua o céu perlustra, E as nuvens, como bandos d'alvas garças, 290 De quando em quando a face lhe sombreiam. Paleja ao longe a torre esbranquiçada, Como enorme fantasma erguendo a lousa Envolto no sudário do sepulcro. Era a hora em que o negro anjo da morte, Seguido d'um cortejo de finados, Ergue co'a espada as lápides dos mortos, E, sobre um solo de escamados ossos, Planta o seu estandarte funerário. II Quem era, d'onde vinha? Castilho. Mas quem se atreve a assoberbar ardido Dos mortos o rancor a tais desoras? Envolto em longo manto aí jaz um vulto, a fronteira pilastra repousando, Tenebroso – qual dia arrepiado, Em que o gelo nos rouba o fogo às veias, E o sol, coberto c'um lençol de névoas, Perde o brilho e calor co'a luz velada. – Será crime ou amor? – Ninguém se atreve Nem pode desvelar nas fibras íntimas Que arcanos guarda o coração humano. Plácido entanto o lago espelha as torres Do castelo em que habita o conde Holbachi, Que, por voto do povo, estende o mando Sobre a antiga república ditosa, Que ao pedreiro sagrado as bases deve: – Essa, que livre sempre, afronta ousada Do tempo tragador a foice ahenea, Do tempo, que ao roçá-la, encolhe as asas, E com respeito beija a sacra cúpula, Que lhe coroa a catedral vetusta. E enquanto um sobre outro impérios rolam, Ela serena os vê, firme os divisa, Qual no oceano adamantino escolho. III Eis que uma nuvem densa, adelgaçando-se, Descobre a face pálida da lua, E o vulto move os passos vagaroso Parecendo arrastar no andar a vida. Altas muralhas cingem o castelo, Férreo portão por ponte levadiça Bem no centro negreja: – parecia Imóvel sentinela, que velava Por ordem do senhor – forram-lhe o musgo E as curvas trepadeiras parasitas. Para aí ele os passos endereça, E, já próximo à meta, de seu peito 291 Abafado suspiro se evapora. Rangem então da porta os férreos quícios, E uma figura cândida se antolha – Como visão etérea, ou como virgem Evocada da campa aos ais do amante; Súbito tudo some-se dos olhos. O pesado portão rangeu de novo Nos jardins do castelo introduzindo-os. Que mistério! – Será comboio de espectros Ou do baque do estado a trama horrível? Silencio! – eis o desfecho! – Atenta às vozes Que, envoltas em suspiros amorosos, Suaves – como o cântico dos anjos, – – Como o bafejo de sonhar de virgem, – Vem ameigar o ouvido sequioso. “Amada Branca, do meu ser metade, “Delícias de minha alma, anjo celeste, “Que, sobre esta existência amargurada, “Vertes saudável ditame de vida, “Cede do amante aos votos abrasados, “Vê que em torno de nós as lindas flores “O hálito de amor no aroma exalam, "E tu, – formosa pérola caída “Da coroa do eterno sobre a terra, – “Queres quebrar do amor as leis sagradas? “Oh! Não! – fujamos já d'estes lugares, “Vem! – corramos à praia – em nau veleira “Lá nos aguarda o nauta – o mar trilhemos, “E passando a outro lar, em paz iremos “Gozar de amor delícias inefáveis “Pelo nó do himíneo santificadas. “E, entre prazeres deslizando a vida, “Envolverá segredo inviolável “A estância em que habitar Octavio e Branca. “Zomba do pai cruel, que quer pear-te “Voos do coração, impulsos d'alma; “Ele já recusou cumprir meus votos “Unindo-nos à face dos altares. “Vem, não resistas mais; em vindo a aurora “Hão de estes sítios ressoar c'os cantos, “Que de Oranzo a consorte hão de aclamar-te: “Preferes dar-lhe a mão? – Ah! Que esta ideia “Basta para gelar-me os seios d'alma, “E eriçar-me os cabelos sobre a fronte; “Mas, antes que eu te veja em braços dele, “Hei de co'a espada o coração rasgar-lhe, “Ou terás de passar por meu cadáver “Para marchar ao tálamo infamado.” IV “Caro Octavio, a paixão te torna injusto, 292 “A ingratidão te cega e te alucina; “Só me prende dever: um pai que adoro, “Cuja velhice ameigo e suavizo, “De um lado me apresenta as cãs manchadas, “E o coração de angústias retalhado. “Negro quadro de tintas carregadas “Me pinta moribunda a mãe querida “Prostrada nas angústias da agonia, “E a quem vou despenhar na sepultura. “Pareço divisar brandões acesos “Em torno de um esquife mortuário ... “Mas embora, pra os céus alçando o voo, “Meu anjo protetor de mim se aparte, “Vou afrontar a maldição paterna, “Pompas de nome, e opinião do mundo. “Vamos, que – à tua discrição me entrego, “Vamos, que quero respirar teu hálito, “Que a brisa, que constrange a amor os laços, “Em vez de me alentar, sufoca a vida.” V Quem poderá pintar com vivas cores Os transportes de Octavio? – A virgem bela Meiga inclinará a fronte de alabastro Em seu rosto de fogo: em doce beijo Uniram-se os seus lábios abrasados. Era a primeira fruição de amores Nesses lábios virgíneos, que tremiam Como rosas do zéfiro agitadas; Era a emoção primeira de delícias Nesse peito ilibado, arfando ansioso Qual se quisesse o coração rompeu-o. Alma anelante, transbordando em viço Tinha a pureza da centelha eterna, Que não degenerou do mundo ao sopro. Esse instante solene de mistérios, Em que desbrocha o coração no peito, E fala d'alma a mística harmonia No primeiro sentir do amor, que acorda, Resume os sonhos da existência inteira, Compensa eternidade de martírios. Mas o gozo inefável desparece, Nunca mais o sentimos sobre a terra, Só nos deixa saudades e lembranças: É o extremo roçar das asas brancas Do anjo da inocência ao despedir-se. Somente quando à tarde o sol desmaia Nessa hora do crepúsculo saudoso, Parece às vezes despertar-se um eco Longínquo sim, dos gozos desse instante; Sentimos um perfume do passado, 293 Que nos recorda o Céu, e nos consola, Chamando aos olhos lágrimas suaves E Octavio? Esse momento o endeusara, Seu fervido sonhar realizava, Foram seus lábios cálices mimosos, Em que libara o néctar das delícias, Filtraram-lhe no peito suspiroso Um bálsamo suave, como as águas Para a flor do areal, que o sunn bafeja. Quem pode descrever momentos breves Em que lânguidos olhos de donzela, Em que seu peito a palpitar de amores, Unido ao nosso coração, que arqueja Abalam nossa essência e a divinizam? Cair da tarde, lampejar da aurora, Sombras da noite, palejar da lua, Cores de íris, murmurar da fonte, Vagos sons d'harpa aeria em dulias notas – Anjos e luz, perfumes e harmonias –, Nada equivale ao delirar do amante Ao estrear no livro dos amores Das fruições a página dourada. Eles, que desde a infância, as mãos unidas, Entre abraços e beijos inocentes, Nos jardins do castelo passeando, Aprenderam a amar co'a natureza!... VI Nunca a mente mais férvida sonhara Um anjo assim... Mendes Leal Junior. Virgem, que apenas desflorava a vida, Branca era bela como a luz da aurora, Olhos meigos – espelho de su'alma – Arroubavam num êxtase divino, Negras tranças, que o colo lhe beijavam Tornavam cega a alvura de seu seio, Onde a cecem e a rosa se mesclavam. Mas nesse cofre, – santuário augusto, – – Só seus róseos dedinhos penetravam; E quanto almejo lhe adejava em torno! Serafim de beleza, oh! quem pudera Nos palpites, que o peito te dilatam Desvelar teus arcanos amorosos! Se na boca um sorriso lhe pairava Era um botão de rosa, que se abria Descobrindo o matiz de argênteos pontos; Sua cintura frágil se envergava Como a hastea da flor, que pende o cálix; Deslizavam seus passos sobre a relva, 294 Como se aérea sílfide a roçasse; E se a visses trajando a cor da neve Como a virgem de Dante, então julgarás Ver em magos jardins a linda Armida, Entre os brancos vapores da alvorada, Era o mais belo serafim mandado A embelecer a solidão do mundo; Nunca tão bela, tão aérea virgem Os sonhos de um poeta retrataram, – E como a estrela, que fulgente assoma No firmamento envolto em densas trevas, Quando a procela horrisona ribomba, E parece abalar do mundo os eixos – Era um íris de paz, que aparecia Onde alguma desgraça negrejava; Embrandecia a sanha dos guerreiros, Que lectavam em fervido torneio, E dava vida ou morte em mago riso, No elétrico volver dos olhos belos. VII Vagas cores no Céu se desenhavam, E a negra cor dos montes nevoados Num carregado azul se convertia; Desmaiavam as pálidas estrelas, E a lua descorada se espelhava, Qual moribunda lâmpada, no lago, Nas furnas tenebrosas se açoitavam Aves da noite, que da luz fugiram, Enredadas nas folhas verdejantes Alvos flocos das árvores pendiam. E os primeiros prelúdios da alvorada Inda à receio os pássaros trinavam. E ao longe um remo, que açoitava as águas. Alternado por lânguido silêncio, E através desse rápido intervalo Soava às vezes o eco de um suspiro, Que atravessando o ar, tocava a terra Como nota escapada ao coro angélico. VIII Já cintilava o sol num céu sem nuvens, Qual triunfante atleta sobre a arena, E, sorrindo quebrava os brandos raios Nos altos coruchéus de São Marinho, Onde ledo agitava as mansas brisas O sino festival chamando ao templo. Do bronze atroador sulfúreas nuvens Na pura atmosfera se enrolavam, E ao longe ressoavam sons cadentes De música suave envolta em vivas. De alegre gala os cidadãos trajados, 295 No semblante a alegria demonstravam; E o castelo do conde parecia O foco do prazer, mansão de risos... Que será? – É o dia do consórcio Da filha do Senhor – De Branca e Oranzo. IX Como por um condão misterioso O estrondo dos prazeres emudece, E surdo murmurar, e crebros passos Apressurados súbitos ressoam Pelos salões do gótico edifício. Pela espaçosa casa errava um homem Terrível, como o tigre esfomeado Contra o raptor dos filhos, que aleitava, Espumando de raiva, em brasa os olhos, No lívido semblante esparsa a coma, Rangendo os dentes, respirando a custo, Surdos sons murmurando em voz sinistra; Era Oranzo feroz, que ardendo em zelos, Blasfemas maldições lançava aos ares, Jurando estrangular de Octavio o peito, Trincar-lhe o coração, beber-lhe o sangue. Ele – o plebeu audaz, mancebo ignoto Lhe arrebatara a pérola brilhante, Heráldico brasão, timbre de glória Com que queria enobrecer seu ouro. Seu sonho o mais fagueiro se esvaia; Branca desparecera do castelo, Longe a levava o roubador infame. X Um caso tão fatal submerge em luto Os desolados donos do castelo. O conde Holbachi, venerando velho, A quem a idade, as faces enrugando, A fronte d'alvas cãs lhe engrinaldara; Vagava pelas longas galerias, Ferindo o ar c'os ais do desespero, Sufocado co'as lagrimas da angústia. “Filha, filha, bradava em voz queixosa Quem há de sustentar-me afronta exausta, Quem há de dirigir-me os débeis passos, Quando eu for à cabana do mendigo Levar-lhe o pão, e vozes de esperança? Deslizavam meus dias derradeiros Embalados por sonhos de futuro, Que eu nutria por ti, – nos lábios tinha Um sorriso de orgulho ao contemplar-te, Cândida flor que os anjos orvalhavam Exalando os aromas da inocência. Em ti minha esperança repousava, 296 Como um florão de gloria, que aumentasse Brilho e esplendor a raça dos Holbachis. Mas tu lançastes a nodoa da desonra o brasão de teu pai, e envenenaste Meus últimos momentos de existência. Triste! apagou-se a luz, que me guiava Sinistra escuridão me venda os olhos. Leito da campa recebei meus ossos, Só pode a morte embrandecer tais dores.” Presa ao leito da dor, a mãe de Branca Tinha exalado os últimos suspiros, Pois golpe tão cruel cortara o fio Dessa vida a lutar nos paroxismos. E os convivas, que ao baile eram chamados, As sedas do festim trocando em crepe, Formaram seu cortejo funerário. Assim como esse castelo, que entre risos Como encantada habitação de fadas, Vira o sol levantar-se no oriente, Quando a noite estendeu seu véu de sombras, Ecoava nas góticas arcadas Carpir de viuvez, salmos de mortos. XI Eis súbito do sol descora o brilho, E sinistra se estende e envolve os ares Negra nuvem, presságio de procela, Aparelha os corcéis a tempestade, Com eles varre a vastidão do espaço, No frio sopro derramando horrores; Já banqueiam do céu torrentes d'água; Rajadas de Aquilões cerceiam troncos, E despem da floresta a verde coma, Eriça a juba o mar, e ao céu se alteia Em altaneiros turbilhões de espuma Depois tomba de chofre nos abismos. Em fúrias a rugir no leito imenso. Com tremenda explosão ribomba o raio, A rouquejar nos ecos das montanhas, Como listão de fogo os céus cingindo; Corre com rapidez milhões de léguas Pela destra do Eterno arremessado, Eis roça lindo alabastrino colo, Mimo de amor, habitação das graças, E num momento em mármore converte E a obra prima do cinzel divino, Que um bafejo do céu vivificava. ..................................................................... E fez-se ouvir um fúnebre suspiro Como o extremo arquejar de moribundo. XII 297 Secou-se a fonte, que adornavam graças, Murchou na terra a flor, c'os anjos mora, Orna de Deus supremo a frente augusta, Chamou-a um seu sorriso aos céus de glória; Ó, míseros mortais, secai o pranto. XIII Branca – a formosa virgem fugitiva – Vítima foi da maldição materna. Cerrou-lhe a mão da morte os longos cílios, No lábios de coral já desbotados Tem estampado o selo do sepulcro. Ela tão linda, no botão dos anos, Passar da vida à escuridão da campa, Quando apenas o calix dos prazeres Por seus lábios roçara, quando erguera Do véu misterioso dos amores Apenas uma ponta, – e começava A compreender a etérea melodia, Que escutava na aragem suspirosa, Da noite na mudez nos véus da aurora, No fulgor melancólico da lua, No perfume das roxas violetas, Nos sonhos em que os anjos a embalavam!.. Que expiação cruel! – Mas antes ela Do que ver saciado o amor do amante, Sentir já frouxo o aperto dos abraços, E essa aridez dos gozos embotados, Que até recordações esteriliza, E nos priva do encanto das saudades! XIV – Freio das vagas – majestosa assoma Próxima à praia, alcantilada e queda Rocha, que a mão, do tempo enegrecera; Sobre ela o mar em fúrias se abalroa, E, gemendo, rebenta em branca espuma: Ali, qual vidro frágil, se espedaça Veleiro barco soçobrando às ondas... Mísero Octavio, em vão co'as vagas lutas, Reina a morte – rainha dos horrores – Nos tremendos tufões, que o pego açoitam. Ela te enruga o sobrecenho irado E te acena co'as ânsias d'agonia; Sobre o negro rochedo sobranceiro Junto ao corpo da amada te arremessa, Já quase extinto e frio como ela. Que importa que inda um sopro de existência Te faça arfar o peito entumescido, Se o demônio terrível da vingança C'um sorriso infernal te adeja em torno!! XV 298 E nesse instante, em que falava aos homens Nos ecos dos trovões a voz do Eterno, Quando de horror o coração se gela, Treme o punhal na destra do assassino, Quando surge na mente a eternidade, Quando nos lábios a oração cicia, Quando os joelhos trêmulos se dobrão Ante a Madona Santa do Oratório, Ante esse horror da natureza em lucra, Desse quadro de morte pavoroso, A ideia do homicídio negrejava Numa fonte abrasada, e enchentes d'ódio Num coração zeloso transbordavam. Imóvel – como estátua solitária Esquecida entre combros de ruínas – Sobre a deserta praia estava um homem. Quando a tormenta em fúrias redobrava Riso feroz os lábios lhe franzia, E, si o trovão deixava instantes vagos, Confusos sons á espaços murmurava. Eis que ligeiro se avizinha à rocha, Onde, quase exalando o extremo arranco, O desmaiado naufrago arquejava, E, erguendo sobre ele o braço armado, Punhal puído lhe enterrou no peito. E ao longe se sumiu veloz qual sombra Entre os trovões e raios, que estalavam. Quem seria esse homem de mistérios? Talvez fosse o demônio da vingança, Que se envolveu no manto da tormenta Para ser instrumento do ciúme. XVI Solene, triste e grave o bronze entoa A merencória nênia dos finados, Pregoando que a lousa dos sepulcros Sobre mais um cadáver vai feixar-se, Que do arcanjo da morte o sopro gélido Passou por mais um ente, em cujo peito Há pouco ainda o coração batia. – Pavoroso sinal, – pregão terrível, Que é como um ecoar da eternidade, Como uma voz, que o tumulo levanta Para mostrar o nada dos humanos, E a imensa majestade do Infinito! Quem rasgaria o invólucro de argila? Quem faria o terrível passamento? Quem vai pousar a fronte enregelada o duro travesseiro desse leito, Em que o lençol é fúnebre mortalha, E onde o corpo repousa em cinzas frias! 299 Quem são esses, que à campa se encaminham Deitados nesses negros ataúdes? Vede – um formoso rosto de donzela, – Lírio que o vento derrubou na lousa – Resalta dentre o crepe em que se envolve. Cinge-lhe a fronte alvíssima grinalda De rosas e cecens – símbolo usado Da inocência, pureza e virgindade – Ao seu lado um semblante de mancebo, No verdor da existência emurchecido; E as letras, que na campa se gravaram Em dois anéis entrelaçados, dizem – Octavio e Branca, amantes desgraçados. XVII Deu a volta final e derradeira A chave do ataúde – cai a lajem Sobre a boca do túmulo – a existência Se esvaeceu, começa a eternidade, Garret. Já baqueou a lajem do sepulcro, Apagar-se-ão as tochas mortuárias, E findar-se-ão os salmos dos finados; Apenas bruxuleia a luz mortiça Da lâmpada sagrada sobre a campa, Que encerra os novos hóspedes da morte. E nessa muda solidão do templo Soaram uns suspiros sufocados. Eram dum velho, que, prostrado em terra, Por todos esquecido, ali ficara. Após momentos nada mais se ouvia Pelas longas abobadas antigas; Só o sussurro d'asa dos morcegos Voando em torno à lâmpada, quebrava Essa mudez solene e aterradora. Parecia que o velho adormecera Reclinado na lajem funerária. Quando raiou a aurora no oriente, E o sacristão abriu do templo as portas Para rezar-se a missa da alvorada, Tropeçou sobre um corpo inanimado; E então cantou-se o oficio dos defuntos Pela extinta família dos Holbachis. 300 DOM JUAN Conto Fantástico de Hoffman. (Tradução de Marques Rodrigues) A voz sonora que dizia: - Vai começar o espetáculo! – acordou-me do brando sono em que estava. Os rabecões murmuram... ouço prelúdios de rebeca... uma pancada de timbale238... uma consonância de trombeta... uma nota de oboé... esfrego os olhos... o demônio zombará de mim? Não. Estou no quarto da hospedaria, aonde cheguei ontem à noite moído de cansaço. Ao pé de mim está o cordão da campainha, puxo-o, e um criado aparece. – Em nome do céu! Que significa esta música desordenada que ouço? Haverá concerto na hospedaria? - Talvez Vossa Excelência (ao jantar tinha eu bebido vinho de champanhe) ignore que a hospedaria é contígua ao teatro. Esta porta alcatifada abre para um pequeno corredor, que vai ter ao nº. 23, ao camarote dos estrangeiros. - O quê? Um teatro! O camarote dos estrangeiros! - Sim senhor, um pequeno camarote para duas ou três pessoas somente, o que é da maior distinção. E gradeado, tapetado de verde, e está perto da cena. Agrada a V. Exc.ª.? Hoje representa-se o Don Juan do célebre Mozart: o lugar custa escudo e meio: lançá-lo-emos em conta. Disse estas últimas palavras abrindo a porta do camarote, porque, ouvindo eu pronunciar o nome de Dom Juan, tinha-me precipitado para o corredor. A sala era vasta, bem ornada, bem alumiada: os camarotes, a plateia estava cheia de espectadores. Os primeiros sons da sinfonia deram-me excelente ideia da orquestra e, se os cantores a ajudassem um pouco, por certo que ia gozar dignamente a obra prima do grande mestre. No andante, o terror do sombrio e terrível regno all pianto239 lançou em minha alma profunda apreensão. A música festiva do sétimo compasso do alegro ressoou com o grito ruidoso do crime, e pareceu-me ver sair das trevas dos espíritos de fogo com as garras luminosas, e depois a dança doidejante de homens à beira do abismo. Apresentou-se-me ao espírito a luta da natureza humana com as forças desconhecidas que a cercam para a destruir. Enfim a tempestade aplaca-se: o pano ergue-se. Embrulhado no capote, e tremendo de frio e com o semblante melancólico, Leporello dirige-se à meia noite para o pavilhão murmurando: Notte e giorno fatigar.... Assim digo em italiano: Ah! Che piacere. Vou, pois, ouvir todos os recitativos como os compreendeu o mestre como nos deixou. Dom Juan precipita-se na cena acompanhada de D. Anna, que retém o culpado pelo capote. Que olhar! Poderá ser maior, e mais esbelta, e majestosa no andar; porém que fronte! Como fogo de artificio, que não se pode extinguir, os olhos despedem a cólera, o amor, o ódio, 238 Registrado sem o itálico. Ainda que ecoe na escolha do vocábulo a tradução de Xavier Marmier para os Contes Fantastiques de 1843, o dicionário de Língua de Eduardo de Faria admitia a forma timbal ou timbale como oriunda do persa, tambal. (FARIA, 1859, p. 1232). Em conformidade com as normas vigentes para a ortografia de estrangeirismos, decidimos por em destaque a grafia no texto. 239 “Reino das lamentações”. Na versão de o Cidadão, a palavra pianto aparece grafada erroneamente: “regno all panto”. 301 o desespero. Negras tranças de cabelo ondeam-lhe o pescoço: o vestido branco esconde e descobre graças, que se não podem ver sem perigo: o coração, agitado por motivo desumano, palpita com violência... E que voz! Non sperar se non m’uccidi. No tumulto dos instrumentos a voz de D. Anna sobressai como relâmpago. Debalde forceja D. Juan por separar-se dela. Desejará ele isso? Porque não repele energicamente essa mulher? Por que não foge? Seu crime tirou-lhe a força, ou a luta do ódio e do amor cortam-lhe a resolução? O velho pai com a vida pagou a loucura que teve em combater este fero adversário na escuridão. Dom Juan240 e Leporello adiantam-se e conversam juntos em frente da cena. Dom Juan tira o capote, e aparece com o vestido magnifico de veludo bordado a prata: a estatura é nobre e majestosa; o resto, varonil; os olhos, penetrantes; os lábios, volutuosamente desenhados. O movimento das sobrancelhas empresta a fisionomia uma certa expressão diabólica, expressão que faz nascer terror involuntário, sem alterar a beleza das feições. Dir- se-ia que deve ele exercer mágico poder de fascinação, e que arrasta as mulheres que vê, e que as subjuga com essa força misteriosa, que as conduz ao abismo. Alto e magro, trazendo colete de listras encarnadas e brancas, e um pequeno capote encarnado, e chapéu branco na cabeça com pluma encarnada, Leporello acompanha o amo. O resto mostra a singular mistura de sinceridade, astúcia, ironia, audácia. Percebe-se que este velho maroto é digno de ser o criado mimoso de Dom Juan. Felizmente fugiram escalando o muro... Archotes... Aparecem D. Anna e D. Otavio, homem pequenino, enfeitado, afetado, delicado, e que não tem mais de vinte anos. Como desposado de D. Anna, devera sem dúvida morar em casa dela, visto que o chamaram tão depressa. Ao primeiro rumor que ouviu poderá ter vindo, e salvado talvez o pai de D. Anna; porém, antes que tudo, julgou necessário vestir-se cuidadosamente, e além disso não gosta de se arriscar nas trevas: Ma qual mai s’offre, ó Dei, spetacolo funesto agli occhi mei! Nos acentos dolorosos e medonhos deste duo, e deste recitativo há mais que o desespero. Não é só atentado de D. Juan, e a morte do velho, que podem produzir sons como esses: é uma guerra interna, uma luta horrível. A magra, comprida D. Elvira, conservando ainda os sinais de peregrina formosura, porém já desbotada, queixa-se do pérfido D. Juan, e o malicioso Leporello judiciosamente observa que ela fala como livro: Parla come un libro stampato. Neste momento pareceu-me sentir alguém atrás de mim. Poderá alguém ter aberto a porta do camarote, assentar-se no lugar do fundo. Para mim foi penosa descoberta. Julgava-me tão feliz, por me achar só no camarote, por gozar em sossego esta obra prima, por dar largas a todas as minhas sensações, que uma só palavra, uma palavra vulgar, houvera-me dolorosamente roubado o entusiasmo poético e musical que gozava. Resolvi não dar atenção ao meu vizinho, nem lhe falar, nem o olhar, e abismar-me nos êxtases desta representação. Encostando a cabeça sobre a mão, voltando as costas ao recém-chegado, continuei a olhar. A peça representava-se do melhor modo. A pequena Zerlina, brincalhona, amável, distraia com as suas lindas canções ao pobre, ao ingênuo Mazetto. D. Juan exprimia a precipitação de sua alma, o gozo que tinha em desprezar seus semelhantes, e com vigor cantava esta ária acelerada e interrompida: Fui ch’han dal vino. A expressão dos seus músculos tornava-se mais viva... Apareceram os máscaras: o trio era uma prece harmoniosa, que subia ao céu. Depois abre-se o fundo do teatro: a alegria manifesta-se; os copos tinem; os camponeses, os máscaras, atraídos pela festa de D. Juan, alegremente se confundem. Os três máscaras conjurados para a 240 Talvez pela influência popularizada de Molière, Marques Rodrigues assinale o nome Dom Juan, alternando com Don Juan ou, à maneira byroniana e zorrilliana, D. Juan. 302 vingança aproximam-se, e, até começar a dança, tudo se reveste de caráter solene. Zerlina é salva, e D. Juan com a espada em punho, marcha denodado contra os inimigos, desarma o rival, abre caminho por entre a multidão perturbada. Muitas vezes julguei ouvir atrás de mim uma respiração pura, ardente, e o rugir das sedas de um vestido. Julguei ser mulher que estivesse ali, e, mergulhado de todo no mundo poético, não me quis distrair. Quando o pano desceu voltei o rosto para a minha vizinha... Não há palavras que possam pintar a minha surpresa: vi D. Anna como acabava de a ver em cena, fitando-me os olhos vivos, expressivos. Emudeci ao vê-la, e seus lábios desataram um como sorriso imperceptível, no qual vi refletir-se a minha parva figura. Conheci a necessidade de falar-lhe, e a admiração, ou antes, o terror paralisavam-me a língua. Enfim, dos meus lábios saíram estas palavras, contra minha vontade para assim dizer: - Vós aqui? Como é possível – Respondeu-me no mais puro toscano, que se eu não falava italiano seria impossível ter o gosto de conversar comigo, porque não entendia outra língua. Como cântico harmonioso vibrava a sua voz, os olhos tornavam-se mais expressivos, e o lume que desprendiam inflamava-me o coração, fazia-me palpitar as artérias com mais força. Era a própria D. Anna sem dúvida. Não me vinha a ideia como estava ela na cena e no meu camarote. Como o sonho feliz, que vence as maiores dificuldades, como a fé ardente que sobe as regiões sobrenaturais, e que domina as fases ordinárias da vida, assim uma espécie de sonambulismo prostrava-me na presença dessa mulher a tal ponto, que se eu a vira ao mesmo tempo no teatro por certo que me não espantara. Como poderei contar a conversação que tive? Tentando traduzi-la, cada palavra é pálida, é fria, e as frases tornam-se grosseiras para exprimir a graça, a delicadeza do idioma toscano. Enquanto ela me entretinha acerca do papel que representava, e de Don Juan241, pareceu-me que o gênio deste primor de arte pela primeira vez se manifestava ao meu pensamento, e que pela primeira vez me confundia as regiões maravilhosas de um mundo estranho. Disse-me que a vida da sua vida era a música, e que muitas vezes, quando cantava, sentia comoções desconhecidas, que se não podiam descrever. Sim exclamava com voz entusiasmada, com olhar cintilante, então entendo tudo, porém tudo que me cerca é frio, inanimado, e enquanto me aplaudem garganteios difíceis, parece que mãos de ferro me esmagam o coração ardente. Porém, vós entendeis a minha alma, porque não vos é desconhecido esse império maravilhoso, esse mundo romanesco, onde ressoam mágicas harmonias. - Mulher adorável, como podeis conhecer-me? Falou numa das minhas óperas, e pronunciou meu nome. Ouviu-se o apito do teatro, e rápida palidez empanou o rosto de D. Anna; pôs a mão no coração, como se lhe magoasse dor repentina, e murmurou com voz débil: - Infeliz Anna, eis os teus mais terríveis momentos. – Dizendo isto, desapareceu. O primeiro ato havia-me extasiado, porém, depois desta aparição estranha, a música produziu-me efeitos inexprimíveis. Era como a realização, há muito esperada, dos mais belos sonhos de minha vida, era como se todos os pressentimentos de minha alma se reproduzissem em toques harmoniosos. Na cena de D. Anna senti-me como arrebatado em cálida e voluptuosa atmosfera; meus olhos cerraram-se involuntariamente, e julguei sentir em meus lábios a impressão de um beijo ardente, beijo rápido e imperceptível como um som melodioso. 241241 No original consultado, verte-se Don Joan, certamente por descuido tipográfico. 303 Ouço reboar alegremente o confuso final: Giá la mensa è preparata. Dom Juan assentado entre duas raparigas, casquilhava ora com uma, ora com outra, e fazia saltar as rolhas das garrafas para dar livre saída aos espíritos gasosos encerrados no cristal. Sucedia isto num quarto estreito, no fundo do qual avistavam-se, por uma grande janela gótica, as sombras da noite. Enquanto Elvira lembrava ao infiel todos os seus juramentos, via-se o fuzilar do relâmpago, ouviam-se mugidos abafados, que anunciavam a tempestade prestes a desabafar. Enfim, batem à porta com violência. Elvira e as raparigas fogem, por entre as horrendas consonâncias dos espíritos subterrâneos, o colosso de mármore caminha, e põe-se em frente de Dom Juan, que a seu lado parece pigmeu. O chão treme debaixo dos pés do gigante. No meio da tempestade que muge, dos raios que estalam, dos demônios que urram, Dom Juan prenuncia e seu nome terrível. A hora fatal chegou, a estátua desaparece, um vapor espesso inunda a sala, e desse vapor surgem fantasmas horrendos. De tempos a tempos vê-se Dom Juan lutando com os demônios. De repente ouve-se o estrondo de uma explosão: os espíritos infernais e Dom Juan desaparecem: não se sabe como, e Leporello está desmaiado num canto do quarto. Que prazer se não sente ao tornar a ver os outros personagens que procuram Dom Juan! Parece que acabam de escapar a medonha coorte dos demônios. D. Anna tornou a aparecer; como está mudada! Pinta-se-lhe no rosto a palidez da morte, os olhos estão amortecidos, a voz é tremula, desigual, e com tudo produz mavioso efeito no pequeno duo com o noivo afável, que deseja celebrar já as núpcias, feita de se livrar assim de pesado encargo da vingança. O coro rematou perfeitamente a ópera, e eu, entregue a minha exaltação, fui encerrar- me no quarto. O criado veio chamar-me para a ceia: acompanhei-o maquinalmente. A sociedade era numerosa, e a representação de Dom Juan ocupava os ânimos. Todos concordaram em louvar o canto dos italianos, e o modo de representar; porém algumas reflexões destacadas e maliciosas provaram-me que ninguém compreendeu e suspeitou o profundo sentido deste primor das óperas. Dom Octavio agradou muito, D. Anna pareceu um pouco apaixonada. “Devia, disse um dos convivas, moderar-se na cena, e não manifestar comoções exaltadas”. Fazendo esta reflexão, o crítico saboreou uma pitada de rapé, olhou de um modo inteligente e satisfeito para o seu vizinho, que dizia ser a italiana mulher formosa, mas um pouco desleixada nos enfeites, porque na ária principal açoitava-lhe o rosto um dos anéis do cabelo. Outro pôs- se a cantarolar em voz baixa a ária: Fui ch’han dal vino, e uma senhora observou, que não estava contente de Dom Juan, que era sombrio demais, e que não sabia mostrar-se leviano, ou frívolo. Contudo louvaram muito a explosão final. Aborrecido destas sensaborias, retirei-me para o quarto. CAMAROTE DOS ESTRANGEIROS. N.º 23. Sentia-me incomodado, o calor no meu quarto era extremo. À meia noite pareceu-me ouvir pronunciar meu nome ao pé da porta alcatifada. – Quem me proíbe, disse comigo, quem me proíbe ver ainda uma vez o lugar, onde me sucedeu essa aventura singular? Pode ser que torne a ver aquela que vive no meu pensamento. Não é difícil levar ali uma pequena mesa, duas velas, e um tinteiro. O criado vem servir-me o ponche, que lhe tinha pedido: acha o quarto vazio, a porta alcatifada aberta, segue-me no corredor, lança-me olhar equívoco. A um sinal que lhe faço, põe o bule na mesa, e retira-se, olhando-me como quem desejava questionar. Encostando-me na borda do camarote, contemplo a sala deserta, e a arquitetura, que ao frouxo clarão das velas, desenha reflexos estranhos, sombras fantásticas. O vento agita o pano da cena. Se o erguessem, se D. Anna aparecesse ainda na sua terrível agitação... D. Anna!... Meu grito perde-se nos espaços da sala, vibra nos instrumentos da orquestra, um sonido confuso desprende-se, julgo que murmuram esse nome querido, e não posso vencer uma espécie de terror oculto, embora me cause comoção agradável. 304 Sossego enfim, e eis-me disposto, querido Theodoro, a dizer-te como entendo essa obra prima do grande mestre, e a sua profunda concepção. A alma ideal é quem pode encarnar-se na natureza ideal: o espírito da poesia, que recebe a consagração no templo, é quem pode compreender a linguagem do entusiasmo. Se considerarmos o poema de Dom Juan sem procurar nele significação profunda, se considerarmos somente o romance que lhe forma o assunto, apenas se concebe como pôde Mozart mediar e compor, à vista de tal motivo, semelhante música. O homem ardiloso, que morre pelas demasias do vinho e das mulheres, de propósito convida para a sua mesa a estátua de pedra do velho que matou, e que morreu defendendo a própria vida, em verdade não revela muita poesia, e, falando com franqueza, esse homem não merece que as potências infernais se conjurem para procurá-lo, e que a estátua de pedra anime- se, e mova-se, e desça do cavalo para convidá-lo à penitência, e que o demônio mande arrebatá- lo ao outro mundo pelos seus melhores satélites. Podes-me crer, Theodoro, a natureza sorriu a Dom Juan como a seu filho mimoso; deu- lhe tudo o que distingue o homem do vulgo, dos trabalhos, dos cálculos insípidos; aproximou- o da essência divina; fez que vencesse, que dominasse; deu-lhe estatura grande e majestosa, rosto esplendente de fogo celeste, alma profunda, inteligência rápida e viva; mas a medonha consequência do pecado original é o poder que tem o demônio de fascinar o homem, quando se esforça por atingir o infinito; é o poder que tem de armar-lhe ciladas no próprio sentimento da sua natureza divina. Esta luta do princípio celeste e do princípio diabólico produz a paixão terrena, e a vitória que daí nasce nos conduz à vida sobrenatural. A organização física de Dom Juan inflamou-lhe a ambição, e o desejo insaciável, que lhe nasceu do ardor do sangue, precipitou-o à procura de todos os prazeres passageiros, nos quais procurava debalde o gozo completo. Não há coisa neste mundo que exalte mais o homem do que o amor. O amor, por sua influência misteriosa e forte, esclarece e perturba os elementos da nossa natureza. Devemo-nos, pois, admirar, que Dom Juan tivesse a esperança do que o amor havia de saciar-lhe os desejos que o agitavam, e que o demônio empregasse este meio para o perder? Foi ele que persuadiu a Dom Juan, que pelo amor, que pelo gozo da mulher, havia de encontrar na terra a realização das promessas que temos gravadas na alma, assim como o fim dessa aspiração infinita que nos leva ao contato das regiões superiores. Correndo sem descansar de beleza em beleza; embriagando-se, fartando-se nos encantos da beleza; sempre se julgando enganado nas escolhas que fazia; esperando sempre atingir o ideal da felicidade, por fim Dom Juan havia de aborrecer- se desta vida positiva, e, como desprezasse os homens, irritou-se contra as aparições que tinha invocado, e que dele fizeram inútil ludíbrio. Já lhe não trazia gozos terrenos a mulher que subjugasse, e para melhor dizer, era o objeto de insultos desmedidos à natureza humana, e ao seu criador. O desprezo irônico das coisas da vida, acima das quais supunha estar, fez com que zombasse cruelmente das brandas e queixosas criaturas. Cada vez que roubava uma noiva querida, cada vez que rompia violentamente a ventura de dois amantes, alcançava magnifico triunfo sobre a natureza, sobre o criador, e sobre essa força inimiga, que o arrastava para fora dos limites da vida ordinária. Queria ultrapassar estes limites, e desta vez, devia despenhar-se no abismo. O rapto de D. Anna, com as circunstâncias que o acompanharam, foi a empresa mais audaciosa que tentou. A formosura peregrina de D. Anna é como o contraste de Dom Juan. Como Don Juan é o homem de beleza e de força maravilhosa, assim é D. Anna a mulher divina, cuja alma celeste furta-se ao poder de Satanás. Os demônios só podiam tocar em sua vida terrena, e, consumada uma vez sua perda, a justiça do Céu devia cumprir-se. 305 Para o seu alegre festim, Don Juan convida gracejando o velho que matou, e o velho não se importa voltar do outro mundo para o chamar ao arrependimento. Porém o coração de Don Juan está de tal modo perdido, que a divina glória não lhe pode sequer emprestar um raio de esperança, nem o sentimento de uma vida melhor. Como já te disse, D. Anna é o contraste de Don Juan. Era destinada para lhe fazer ver os quilates de uma natureza divina, e salvá-lo do desespero de inúteis esforços. Ele a viu tarde, viu-a na hora do crime, e o pensamento diabólico de perdê-la é o que sente. Ela não é salva: quando aparece, o crime está feito; sente arder no coração o fogo dos sentidos, o ardor do inferno, e não pode resistir. Só Don Juan podia inflamar-lhe esse delírio voluptuoso, que a faz lançar em seus braços, e sucumbir ao ardil dos demônios. Quando ele se afasta, ela sente as agonias todas da sua queda. A morte de seu pai assassinado por D. Juan: a sua aliança com o frio, o vulgar Don Octavio; o ardor da paixão que a devora; o arrojo impetuoso do ódio, reúnem- se para atormentá-la. Conhece que a perdição de Don Juan pode sossegá-la um pouco; porém, será a sua morte esse sossego. Sem descansar instiga à vingança o noivo indolente: ela mesmo persegue o infiel, e quando o vê arrebatado pelas potestades infernais, descansa um pouco; mas não pode ceder ao desejo ardente do esposo, e diz-lhe: Lascia, ó caro, un anno ancora allo sfogo del cor mio! Ela não sobreviverá a esse ano, e D. Octavio jamais há de estreitar nos braços aquela a quem um pensamento piedoso salvou das garras de Satanás. Ah! Que comoções não sentia a minha alma ao ouvir a música pungente do primeiro recitativo, e aquele da surpresa noturna! A própria cena de D. Anna no segundo ato, que, superficialmente considerada, julga-se ter relação a D. Octavio, revela em melodias ocultas, em arrojos maravilhosos, toda a agitação de sua alma. Que pensamentos enérgicos naquelas palavras, que o poeta escreveu sem talvez entendê-las: Forse um giorno il cielo ancora sentira pietà di me!242 Ouço duas horas; uma aragem elétrica banha-me o corpo, sinto o aroma dos suaves perfumes italianos, que me deram a conhecer ontem a presença da minha vizinha. Sons harmoniosos é que podem exprimir a felicidade que sinto: na sala o vento zune com mais força: as cordas do piano da orquestra murmuram. Meu Deus! Parece-me ouvir a voz de D. Anna levada nas asas de música aérea; parece-me ouvi-la cantar: Non mi dir bell’idol mio.... Abre-te aos meus olhos, região longínqua e desconhecida, reino das almas, paraíso esplêndido, onde, com alegria imensa, a dor celeste realiza nos corações absortos as promessas todas deste mundo. Deixa-me entrar no círculo das aparições sublimes. Oxalá que os sonhos que derramas no homem, ou como objetos de terror, ou como mensageiros de paz, oxalá que possam eles levar o meu espírito às regiões etéreas, quando o sono prender meu corpo em laços de chumbo! CONVERSAÇÃO NA MESA REDONDA Um homem discreto, batendo na tampa da sua caixa de rapé. É pena que não possamos ouvir tão cedo uma ópera bem executada! Essa fatal exageração é a causa disso. Um homem trigueiro. 242 Na versão de Marques Rodrigues consta Forse un giorno il cielo encora sentira Pieta di me, onde a má grafia de ancora por encora e pietà por Pieta denunciam a consulta realizada na versão de Xavier Marmier na qual se encontram estes desvios de língua. 306 Sim, sim, muitas vezes o disse. Ontem o papel de D. Anna arrebatava-a muito: estava como louca. Em todo o entreato ficou desmaiada, e teve ataques nervosos na cena do segundo ato. Um homem insignificante. Oh! Contai-me isso. O homem trigueiro. Sim, ataques nervosos, e não a puderam levar fora do teatro. Eu. Em nome do céu! Tenho fé que os ataques não serão perigosos. Tornaremos a ver em breve a signora? O homem discreto, tomando uma pitada. Será difícil: a signora morreu esta noite às duas horas em ponto. A CONDESSA NEGRA (ODYSSEAS ARGELINAS) POR BENJAMIN GASTINEAU Quando eu passava pela pequena cidade africana de Guelma, situada entre Bône e Constantina, dois personagens eram o vivo objeto de todas as conversações. Só se tratava de dois gostos luxuriosos, da riqueza e beleza da condessa de Lucenais e das aventuras amorosas de Jorge Kerouard. Jorge Kerouard era um perfeito Don Juan: belo, bem feito, de fisionomia franca, olhos vivos e cheios de afoiteza, ele encantava à primeira vista: e se ajuntarmos a estas belezas físicas um espírito ilustrado, uma imensa distinção de maneiras, compreender-se-á que Jorge Kerouard era feliz nas cidades de Argel, onde o coração e a imaginação, tão próximos do sol, com facilidade se inflamam e entusiasmam. O Don Juan de Guelma devia a uma de suas aventuras amorosas a perda de seu posto de capitão de caçadores da África. Estando de guarnição em Philippeville, tinha cativado o coração de uma bela italiana, cujo marido, acérrimo jogador, por muito tempo se conservava afastado da família. O capitão introduziu-se em casa de Francisca disfarçado com trajes árabes. Este disfarce da primeira vez foi-lhe bem; mas da segunda o marido reconheceu-o. Dissimulou sua cólera, deixou sair o falso árabe, e vingou-se na mulher, a quem fez entrar em um convento de Philippeville. 307 O capitão, indignado, roubou durante à noite Francisca e a ocultou na praia, a quatro tiros de espingarda de Philippeville. Esta aventura foi um escândalo para o convento e para a cidade; o procurador interveio, e travou-se conflito entre a autoridade civil e a autoridade militar: finalmente, o general, forçado a proceder com rigor, chamou o capitão de caçadores da África, e disse-lhe claramente que devia optar incontinente entre a profissão de soldado e o papel de don Juan; em uma palavra exigia do capitão a entrega imediata da esposa roubada ao marido. Jorge Kerouard replicou ao general que antes de ser soldado vangloriava-se de ser cavalheiro, e que nunca abandonaria uma mulher à cólera de um marido ultrajado. A estas palavras puxou pelo sabre para entregá-lo ao general, que o aceitou sem ousar censurar esta altivez de caráter, esta nobreza de alma. Jorge Kerouard deixou Philippeville e retirou-se para o oásis de El-Kantara, onde perdeu aquela, que lhe sacrificou a reputação e a vida, e a quem dera todas as provas possíveis de dedicação. Foi então que veio habitar a cidade de Guelma, onde a sua reputação o havia precedido; foi bem recebido, principalmente pelo sexo feminino, encantado por saber que ainda havia homens, cujo amor não recuava ante sacrifício algum; em uma palavra, Jorge Keroard era o rei de Guelma, como a condessa de Lucenais era a rainha. Mas a condessa de Lucenais devia sua importância, menos aos méritos morais, do que à opulência da beleza. Como uma patrícia da antiga Roma, tinha escravas, chaouchs, e negras. Seus saraus eram o encanto da cidade de Guelma. Eram bem sabidas as despesas, que ela fazia para aliviar duas tristezas: - a cidade de Guelma, e seu hipocondríaco marido, antigo legitimista, que, tendo energicamente lutado em França, trasportara suas decepções e misantropia para o fundo das solidões africanas. Havia uma mancha no sol. Dizia-se que a condessa gostava muito de Guelma, quando o conde estava na casa de campo da Seralia, e da Seralia quando o marido estava em Guelma. Mas as negras e chaouchs da condessa eram tão mudos que suas ações secretas não transpiravam lósa243, e a maledicência pública era reduzida ao conto, à invenção. Foi por isso que nunca se pôde descobrir a causa real do rompimento de Jorge Kerouard com a família Lucenais. No tempo das boas relações, todas as vezes que Jorge partia de Guelma para dar caça ao leão e a pantera nas matas de Souk-Arras, via-se, algumas horas depois, uma bela amazona, acompanhada por seu chaouchs, seguir a mesma direção. Era tal a simpatia por Jorge em Guelma, que os habitantes tremiam por não o ver voltar da caça aos animais ferozes; assim sua entrada era triunfante quando trazia, com a vida, o cadáver de um leão ou de uma pantera. Havia nesse dia divertimento na cidade e sarau na casa da condessa de Lucenais. Num belo dia Jorge partiu para a caçada dos leões, sem que a costumada amazona se apresentasse; e voltou carregado de despojos opimos. A condessa não festejou a ação. Esta misteriosa separação de Jorge e da condessa sem motivos plausíveis ou aparentes durou um ano. Finalmente a tibieza de amizade rompeu-se tão singularmente, como se tinha formado, Jorge devia procurar os Lucenais para uma obra de caridade, cuja direção lhe fora confiada, e 243 Incompreensível no original que assim registra o vocábulo. 308 foi, com extrema surpresa sua, admiravelmente recebido. Pareceram encantados de torná-lo a ver, e, bom ou mau grado, foi preciso que se comprometesse sob palavra a comparecer no próximo sarau da condessa. - O que significam todos esses sorrisos, todos esses convites de baile? perguntou a si mesmo muito ansiosamente o antigo capitão de caçadores da África, deixando os Lucenais. É porventura o laço de uma loureira, a emboscada de um marido, ou uma simpatia tão irresistível que lança nos ouvidos os agravos do passado? Isto é muito belo, muito engraçado. Não sei por que razão... Ah! quem diabo leu alguma vez claramente no espírito de um marido ou no coração de uma mulher? Quem adivinhou esse mistério vivo, essa esfinge rósea? Vamos, não aprofundemos mui filosoficamente a situação. Tenhamos boa esperança. Depois de amanhã, a luta; depois de amanhã, dia de combate, e dia de vitória, talvez. Desde que recebeu o convite oficial da condessa, Jorge apressou-se em fazer-lhe a honra. Foi ao sarau armado dos pés à cabeça, e sempre desejoso de conhecer os motivos que tinham levado os Lucenais a mudar de atitude, a dispensar tantas graças e amabilidades para com ele, - o maldito, o proscrito da véspera – tão estranhamento acariciado no dia seguinte. O duelista e o caçador de animais ferozes, com seu lançar de olhos, com seu amor do perigo, apresentava um adversário tão valente, tão experimentado como ele. O sarau da condessa foi, como sempre, brilhantíssimo. Todas as notabilidades da cidade estavam presentes, e nada era mais pitoresco do que essa reunião de convidados europeus, mouros e judeus, confundindo as casacas pretas com os burnous de fina lã branca, e com as fardas dos hussards. Mouriscas dançarinas, vestidas de gaze e ouro, faziam suceder suas trepidações apaixonadas às quadrilhas compassadas dos europeus, e em breve os salões da condessa de Lucenais ofereciam o quadro mais agradável, o mais animado dos costumes do oriente e do ocidente. E decerto, os convidados, mais embaraçados do que em Paris, não podiam saber a que beleza dessem a palma: a europeia graciosa, à judia de grandes olhos de gazela, de perfil puro como uma bíblica Noemi, ou a mourisca voluptuosa e lânguida. Jorge Kerouard teve em parte as honras do sarau. Ele estava tão bem em um baile, como em um campo de batalha ou no meio das florestas da África. A condessa de Lucenais pareceu arrebatada do seu espírito e graça. Ela o conduziu para fora dos salões a um parque iluminado a giorno. Tomando uma alameda um pouco sombria, traçada através de uma espessa mata, a condessa, apoiando-se com faceirice sobre o braço do antigo capitão de caçadores, disse-lhe: - Na verdade, Sr. Kerouard, sou-vos infinitamente obrigada por terdes trazido a minha festa vosso entusiasmo, vosso espírito e jovial humor, que pareceis ter comunicado a todos os meus convidados. Nunca tive uma festa tão brilhante, e mereceis-me um sério ressentimento por terdes-vos ausentado um ano inteiro dos meus salões. - Repreendeis muito com acrimônia244, senhora condessa; porém me permitireis não vos responder senão quando falardes seriamente. Se tenho representado a comédia de contentamento em vossos salões, sabeis melhor do que ninguém quando está longe do meu coração esta alegria fingida. Pus uma máscara no rosto; e sinto que a tenhais tomado por minha 244 Na tradução, acriminosamente, a que julgamos ser com acrimônia, uma vez que no original francês consta “Vous raillez très-agreablement” (La comtesse noire – GASTINEAU, 1861, p. 56) (“Vós reeprendeis muito à vontade”). 309 fisionomia real. Minha natureza, mais mal dotada do que a vossa, não sabe lançar o sarcasmo do esquecimento sobre o passado. - Ingrato! que não leva em conta um ano de martírio conjugal, um ano de luta com valor sustentada por ele só! Sim, senhor, quando me julgáveis esquecida, namoradeira, à maneira dessas mulheres sem alma, sem caráter, eu introduzia aqui o inferno; todos os dias vos defendia altiva e obstinadamente contra um marido vingativo, e no momento em que cheguei a expedir- lhe do espírito toda a nuvem, toda a suspeita, recompensais-me com vossa ironia, quase com vossa injúria!!!... - Que me dizeis, senhora? Em que noite estava eu mergulhado! Quê! tivestes este heroísmo! mas por que não me fizestes secretamente saber as lutas de vossa alma, o valor do vosso coração? - M. de Lucenais cerca-me de espiões, vós o sabeis; eu me teria perdido. Em risco de incorrer nas vossas fúteis censuras de indiferença, com risco de ser por vós desprezada, de ser esquecida, eu conservei segredo absoluto. Cheguei a meu fim: ganhei vossa causa junto de meu marido. - Crede-a realmente ganha, condessa? Sinto todas as dificuldades do mundo, eu o confesso, em admitir a conversão de M. de Lucenais. Recordá-los-ei eu como ela se portou conosco? Advertido pelos espiões de vossa casa de que nós caçávamos na floresta da Medjerda, ele nos surpreendeu no momento de nosso repouso de caça, tentou assassinar-me e cobriu-vos de injúrias. Fora de mim, entreguei-lhe nas mãos uma espingarda, e intimei em nome da honra que me desse uma satisfação sobre o próprio terreno, que ele manchara suas injúrias. O miserável, o covarde arremessou a espingarda e retirou-se murmurando palavras de vingança. Eis o que se passou, sonhara. Vós confessareis que seria preciso um milagre para que M. de Lucenais esquecesse todas estas cenas. Entretanto é preciso crer em milagres, por isso que me acho aqui, em casa de M. de Lucenais. - Vós duvidais, Jorge, de minha perspicácia, tendo posto em dúvida meu amor. Pois bem! eu vos confundirei sobre ambos os pontos; vou dar-vos a prova convincente de que não resta a mais ligeira sombra de lembrança de M. de Lucenais. Eu expressei-lhe o desejo de que me acompanhásseis em uma excursão às termas de Hammam-Meskoutine, e ele pareceu cheio de satisfação. Agora, Jorge, recusareis ser meu cavaleiro? - Dai-me vossas ordens, senhora? - Pois bem! amanhã, ao arvorecer. Estejais pronto: não vos ocupeis de provisões; eu mandarei adiante uma mula e meus chaouchs, que levarão nossa subsistência de jornada nesse país selvagem. Se não tendes cavalo disponível, escolhereis um em minhas estrebarias. - Tenho o meu. Amanhã virei bater à vossa porta. Peço-vos permissão para retirar-me: tenho apenas uma hora para dormir, ela me é necessária. - Retirai-vos, Jorge. Dão duas horas. À noite está muito avançada... eu não me deitarei. - Até amanhã, senhora condessa. Jorge inclinou-se e tocou com os lábios os róseos dedos da condessa, a quem conduziu ao baile: depois desapareceu. 310 Jorge Kerouard dormiu de tal modo, apesar das apreensões, a que não podia fugir, que era já alto o dia e ainda não tinha aberto os olhos. Mas um dos chaouchs da condessa, o discreto Ahmed, acordou-o em sobressalto batendo à porta. - A senhora condessa vos espera, senhor Jorge! bradou-lhe ele. - Ah! és tu, Ahmed, murmurou o antigo capitão de caçadores meio adormecido. Maldito sonho pesado! eu me levanto, e em um quarto de hora estarei em casa da senhora condessa. - Quereis que eu vá selar vosso cavalo, senhor Jorge? propôs o engenhoso Ahmed. - Eis razão. Enquanto vou vestir-me, sela Satan. Vai. Em um abrir e fechar de olhos o capitão vestiu-se. Muniu-se de suas balas cônicas de pontas de aço, de sua carabina Devisme, com que matara panteras e leões, saiu, montou a cavalo e apresentou-se em casa da senhora de Lucenais, a qual achou pronta, esperando com impaciência o obediente cavaleiro. A condessa estava bela de arrebatar com seu vestido de amazona cor de pérola; seus abundantes cabelos negros eram graciosamente presos por um chapéu de fantasia de forma redonda, coroado com uma magnífica pena de avestruz que lhe moldurava a mil maravilhas o rosto; sua fina mão enluvada parecia curvar-se ao peso das joias. Vendo-a tão resplendente de beleza, Jorge, don Juan em tudo, ficou um tanto ofuscado; lembrou-se da floresta de Medjerda; balbuciou alguma escusa banal a respeito do mal alinhavado de seu traje; e a condessa encantada de haver produzido seu efeito ordinário, pediu a Jorge o socorro de sua mão para montar sobre a égua Isabella, que contrastava com o pelo inteiramente negro do Satan. Izabella e Satan, altivos de seu fardo, entregaram-se a uma graciosa fantasia das ruas de Guelma, e não tomaram o passo regular senão na estrada de Hamam Merkoutine. Os chaouchs Ahmed e Ibrahim, montados em mulas, seguiam a Jorge e a condessa. Ao passar a pequena caravana, os habitantes de Guelma repetiam com alegria: - Enfim! estão reconciliados! Os primeiros momentos da viagem foram frios, como todos os começos possíveis, com exceção, todavia, do começo do dia em África, que é ardente desde o primeiro raio. Fazia uma dessas radiosas manhãs, que despertam alegremente o homem da letargia da noite, dão ao coração a chama, comunicam aos olhos e ao espírito a viva luz de uma natureza embriagada de sol. O rio Seybouse rolava suas cintilantes águas através dos tufos dos eloendros. Atravessando o Seybouse a vau, engrossado pelas chuvas, Isabella tropeçou de encontro a uma pedra, ajoelhou-se e quase lançava na água sua bela senhora; mas Jorge por um rápido movimento desceu do cavalo e recebeu a condessa, a qual levou nos musculosos braços a outra margem, lutando contra a corrente, que ameaçava a cada instante arrebatá-lo com a senhora de Lucenais. - Nossa viagem começa mal, diz a condessa, tornada a si do susto. - Um pouco de água em vosso vestido, é só o que há a sentir, senhora. - Mas vós, Jorge, para virdes em meu socorro, molhaste-vos até o peito. 311 - Basta uma hora de sol, e nada mais aparecerá. Puseram-se de novo sobre os selins, e continuaram a marcha; Jorge na frente, a condessa atrás dele, Ahmed e Ibrahim seguindo sempre o cavaleiro e a amazona a alguma distância. Como o chefe da caravana guardava um silêncio obstinado, a condessa não pôde deixar de fazer-lhe censuras. - Não vos fazia tão pensativo em viagem, chasqueou ela. - Não gosto de falar nos cemitérios, onde é preciso escutar, replicou Jorge gravemente. Não sabeis, senhora, que nossos cavalos pisam sobre tumbas. Aqui, perto de Mej-z-Amar, neste doloroso retiro de Constatina deixamos quinhentos a seiscentos bravos, que se sacrificaram à salvação do exército. Envolvidos em nuvens de árabes, eles resistiram até o último, e nós podemos continuar a nossa sanguinolenta marcha até Bône. Os mortos passam depressa: muito ligeiramente são esquecidos. - Esta censura não vos poderia quadrar, Jorge, por isso que não esqueceis nem os mortos nem as mortas. - Quereis recordar-me a italiana Francisca, a defunta do deserto; ela está enterrada no meu coração e não posso esquecê-la. Há seis anos eu passava com ela por este caminho, dirigia- me a Constantina e dali parti para o oásis de El-Kantara. - Então acabáveis de sacrificar vossa posição, vosso futuro militar por essa mulher, que tanto vos possuiu o coração, que ainda vos ocupa tanto o espírito. - Calai-vos, condessa, não obedeçais a mesquinhos impulsos; não me censureis por ter cumprido meu dever, por ter sacrificado a uma mártir minha posição e minha ambição. Eu quisera ter sacrificado minha vida, como estou pronto a dá-la por vós. Ficai, pois, persuadida de que posso, sem infidelidade, sem faltar a verdade de um sentimento sagrado, guardar o culto da defunta e amar a vida... duas belas almas irmãs! - Eu vos creio, Jorge, necessito crê-vos, murmurou surdamente a condessa, satisfeita da franqueza deste. Ibrahim vem atrás de nós e não ignorais que ele é um dos espiões de meu marido, como Ahmed é meu criado o mais dedicado. Esta manhã M. de Lucenais ordenou-lhe que me acompanhasse, e ante uma ordem tão formal não pude dizer a Ibrahim que ficasse em casa. - Vosso marido, senhora, representou comigo a comédia da reconciliação: eu vô-lo dizia ontem, nenhuma franqueza, nenhuma palidez pode vir dessa alma baixa e tortuosa; ele não é um Otelo, um Cássio; e prefiro mil vezes a coragem impetuosa e rudes assaltos do leão, às covardias ferozes da pantera, agachada em um ramo, surpreendendo sempre seu inimigo. - Jorge, se eu pudesse um só instante admitir a exatidão de vossa horrível comparação, vos responderia que estais habituado em vossas caçadas a frustrar as perfídias da pantera. O que tendes a temer da hipocrisia, das astúcias felinas que injustamente, como penso, emprestastes a M. de Lucenais? - Não temo coisa alguma de ninguém, senhora. Minha vida tem-se passado em procurar a morte, que me tem sempre fugido como uma miragem, nos campos de batalha, nos acasos de minhas aventuras de guarnição, em minhas lutas contra o animal feroz das florestas da África. 312 - Porque falais de morte, Jorge, quando Deus nos concede a graça de reunir-nos depois de um ano de separação? E a condessa em um delicioso abandono da paixão, colocou a mão sobre o arcão do selim de Satan. Jorge tomou essa mão e a chegou aos lábios ardentes. - Não vos embaraceis mais com Ibrahim, com o olho do marido? Disse-lhe a senhora de Lucenais. Esta observação foi gelo que caiu sobre o ardor de Jorge, que logo abandonou a mão da condessa, murmurando: - Sim, é o mal olho, como dizem os árabes. Reina o silêncio. O cavaleiro e a amazona ficam entregues inteiramente às vivas emoções de seus corações e a embriaguez, que lhes causava a natureza africana com seu céu incandescente, seus profundos horizontes, suas infinitas perspectivas, suas montanhas gigantescas, encaracolando-se umas sobre as outras, apresentando os verdes oásis no fundo das quebradas, como ninhos de pombos bravos nas fraldas dos abismos, com seus sedutores contrastes de rudeza e graça, de energia selvagem e de ternura. Tudo, até as ruínas romanas, semeadas sobre o solo da África, contribui para dar a este admirável país um aspecto de grandeza. O Satan de Jorge tendo feito ressoar os cascos sobre os fustes das colunas e dos capitéis, que estavam caídos pelo caminho, fez despertá-lo de sua mudez e exclamar: - Se estas ruínas pudessem falar, quantas coisas grandiosas revelariam? Quantas heróicas lutas contariam? E, contudo, nem mesmo Salústio deixou-nos o nome desta cidade romana, que, a julgar pelo número de seus túmulos e arcos de triunfo, deve de ter sido uma cidade importante. - Assim se desvanecem as glórias deste mundo, retrucou ironicamente a condessa; assim desaparece o brilho dos heróis na sombra da posteridade. Não é, porém, a história deles, que eu estaria curiosa de perguntar ao passado desta cidade, é a dos amantes confundidos no pó destas ruínas, que consagrariam a vida a um sentimento menos fugitivo, menos fútil que a glória; eles só desafiam o esquecimento e o nada, e tendo passado felizes os dias na terra, amando, amam ainda no céu. - Eu adoro, condessa, vossa maneira de compreender a história romana. Além disto, por mais estranha que ela pareça, não está em desacordo com a história. A voluptuosa mocidade romana vinha deleitar-se nas terras de Hammam Meskoutine, como testemunham estes vastos tanques que vemos em frente, e em ela nadava a seu cômodo; no entanto que os diretores de nossas terras adotaram hoje os banheiros. Esta diferença, bem que insignificante em aparência, mostra perfeitamente, quanto a mim, o gênio dos tempos antigos e dos modernos. A tradição medicinal, assim como a tradição amante, não foi abandonada. Como os soldados romanos, nossos soldados vêm cicatrizar as feridas nestas quentes águas, de uma eficácia maravilhosa, e a pretexto de reumatismos imaginários, de fantásticas dores, os habitantes e as habitantes de Constantina, de Philippeville, de Bône e de Guelma, procuram aqui a liberdade da solidão, o sossego dos bosques, das quebradas sombrias, da fonte pura rumorejando sobre os granitos. Quanto romances africanos, condessa, afogam-se nas termas de Hammam-Meskoutine e Nobres damas, transformadas pelo amor, habitam a cabana, como simples mulheres árabes, e preferem-na as suas suntuosas moradas das cidades. 313 Eu vim cicatrizar no hospital militar de Hammam-Meskoutine um golpe de yatagan, com que me tinham obsequiado os Marroquinos. Todas as tardes os pretendidos inválidos civis dos dois sexos reuniam-se na frente do hospital, e divertiam-se da maneira a mais engenhosa, inventando jogos de prenda, ou improvisando bailes campestres acompanhados por uma única rabeca. É verdade que o maestro da orquestra tinha o concurso dos leões e panteras, que rugiam e urravam em torno de Mespoutine; mas isto não inibia que se dançasse nessa sala de baile, decorada pelas montanhas e florestas, iluminada pelas estrelas e pelo disco da lua. Às dez horas os militares entravam, os pássaros retiravam-se às suas cabanas, ou empreendiam um passeio sentimental ao clarão da lua, sem temer cair nos dentes do animal feroz; tão afoito é o amor! Tomo por testemunha, condessa, todos os caçadores, todos os amantes da província de Constantina, que vierem buscar neste oásis, tão inteligentemente escolhido pelos romanos, nestas termas, nestas montanhas de cumes elevados, nestas florestas de carvalhos no ar cálido desta atmosfera, nestes horizontes infinitos, nestes céus profundos, em toda esta natureza exuberante e pitoresca, a plenitude do amor e da liberdade. - Senhor Jorge, disse a condessa fria ante o entusiasmo do oficial, ou por que alguma parte de seu discurso a tivesse ferido, ou antes por que ela sentisse o temor de deixar-se levar, vosso lirismo vos arrasta a sonhar felicidades impossíveis; mas os romances encurtam o caminho. Aí tendes; sem pensarmos na extensão da jornada, eis-nos chegados. Com efeito, as colunas de vapor que se erguiam das fontes em ebulição, anunciavam a proximidade das termas. Isabella e Satan faziam ressoar um solo árido, minado pelos vulcões subterrâneos. As águas quentes, jorrando, formavam uma multidão de pequenos cones, que a imaginação dos árabes assemelha a tribos infiéis petrificadas e a famílias incestuosas fulminadas de chofre pela cólera celeste: em seu curso, elas depositam o enxofre e o calcário, de que estão impregnadas, e formam degrauzinhos brancos e amarelos, e depois, rumorejando, vão perder-se no meio dos campos de algodão e eloendros. Nas caldeiras naturais das termas de Meskoutine, nas quais a água sobe a cem graus de calor, os soldados feridos preparavam suas panelas e cozinhavam ovos; as senhoras, envolvidas em longos burnous brancos, depois de tomarem banho, entravam em suas cabanas; os caçadores partiam em expedição, e os enfermeiros estavam carregados de garrafas de águas férreas, enchidas nas abundantes fontes dos arredores. Reinava em Meskoutine uma vida ativa e agradável. Contudo a chegada da condessa de Lucenais causou sensação. A enfermeira-mor do hospital a recebeu, ofereceu-lhe aposentos, e a criada da enfermeira conduziu-a para o banheiro e apresentou-lhe a roupa de banho. Neste ínterim Jorge fez uma pequena excursão; explorou em vão a cova do leão, a montanha do leão, e só encontrou uma pantera e um tigre, que matou e trouxe a Meskoutine. A condessa, fortificada pelo banho, desejou continuar a viagem. Afrontando o calor sufocante, os vapores ardentes do sirocco, que flutuavam no espaço, ela quis ir à casa do caid de Meskoutine, que muitas vezes assistira aos seus saraus de Guelma. A caravana sempre seguida pelo olho do marido, pelo inflexível Ibrahim, ganhou a montanha; e logo apareceram as pardacentas cabanas da tribo dos Heractas. Malmente o caid Bou-Sar viu, ou antes adivinhou, que era a condessa, fez sinal aos árabes de seu aduar, os quais se precipitaram em frente da caravana, uns segurando o cavalo de Jorge, outros curvando o dorso para receberem o pé da condessa. Um segundo sinal do caid foi de uma verdadeira 314 matança de carneiros e galinhas, a que os árabes cortaram as cabeças, meteram em espetos, e assaram em fogueiras acesas em pleno ar. Eram os preparativos da diffa, palavra que compreende todas as obrigações da hospitalidade muçulmana. A senhora de Lucenais e Jorge tinham entrado na tenda do caid, e estavam sentados em almofadas, que, bom, ou mau grado, fora preciso aceitar do caid. Este e seus dois filhos estavam sentados com as pernas encruzadas em tapetes. Bou-Sar dirigiu-se primeiro à condessa, tratando-a por tu, segundo o costume árabe: - Tu me tinhas prometido vir visitar o aduar de teu amigo, diz Bou-Sar; eu te agradeço, condessa; és uma cristã de palavra. - Todas as cristãs parecem-se comigo, disse rindo-se a senhora de Lucenais. - Amo-as todas então, como amo a ti, retrucou o caid. - Sem dúvida; mas as cristãs não serão jamais tentadas a amar um árabe, que dá seu coração a cinco ou seis mulheres. - Tu bem sabes, condessa, que só se ama uma. Mas que seria de mim se não tivesse quatro mulheres? Quem me iria buscar água à fonte? Quem me teceria o burnous? Entre as quatro mulheres do muçulmano há sempre três escadas. - Pobres criaturas! Isto faz-me lembrar que eu trouxe algumas bugiarias para elas, alguns tecidos de seda. Dizei-a Ahmed que os tire de minha djebira e que os entregue às tuas mulheres; ao mesmo tempo ele nos trará os víveres. - Como! vens à casa de um caid e trazes víveres! tu os recambiarás ou ficaremos mal. - Mas nos deixa ao menos tomar vinho. - Teu amigo não tem porventura vinho de Bordeaux em suas adegas? Como receberia eu oficiais franceses em minha tenda, se não tivesse vinho? Mahomed, que proibiu o vinho aos crentes, não lhes proibiu oferecê-lo a seus hóspedes. - Muito bem; és um caid civilizado. - Por Deus! exclamou o antigo capitão de caçadores, um folgazão que com os spahis partia quando vim a Guelma aos festins de Balthasar245, regados de vinhos de champanhe, e que, entrado em sua tenda, bebe água pura como dromedário; um excelente tartufo a levar mil vezes vantagem ao de Molière, que faz ostensivamente suas cinco súplicas por dia, acabrunha com profundas reverências os conquistadores de seu país, dobra os impostos que a França lhe pede, afim de guardar metade para si, faz suar os homens de sua tribo como um barão suas terras, a trabalhar seus campos de algodão, adora piedosamente Mahomed e Allah, despojando os Muçulmanos, e dando sua fortuna de Cristo e dos cristãos! Mas perguntai aos árabes de seus creiks, de seus cadis, e de seus caides minotauros! 245 Aqui se evidencia um claro problema de tradução de partager (repartir/partilhar), vertido por partir em português, causando o truncamento do período: “Un gaillard qui partage des festins de Balthazar arrosés de vins de Champagne, avec les spahis quand il vient à Guelma”. (“Um inconveniente que partilha dos festins de Balthazar regados de vinhos de champanhe, com os spahis quando ele vem a Guelma”). (GASTINEAU, op. cit., p. 69) 315 A filípica de Jorge fez saltar a faísca da pedra; um raio de ódio iluminou os olhos do caid Bou-Sard; mas como todos os seus correligionários, que nunca traduzem a cólera por palavras, ele conservou-se mudo e sombrio. - Ora é boa, é boa! Suspirou a senhora de Lucenais, eu reconhecia vosso ódio aos árabes. Pois bem, eu vos declaro que sou uma arabófila. Os árabes são encantadores. Vede como eles nos recebem; e é, no entanto, a esta gente que talhastes a golpes de sabre sem piedade, inexorável capitão de caçadores; que fizestes vítima das razias espoliadoras e que arruinastes. - São encantadores e recebem-nos bem, condessa, exatamente por que os talhamos a golpes de sabre. Os gritos de alegria das moukeres, que se achavam em um compartimento vizinho, estabelecido por meio de um tapete verticalmente estendido, cortaram muito a propósito a conversa. - Oh lá! Bou-Sar, ouves tu? diz a condessa. Tuas mulheres estão encantadas de meus presentes. - Conheces bem as mulheres, condessa, respondeu o caid. A diffa está pronta, acrescentou ele; queres servir-te sob a tenda ou fora? A condessa que já tinha esvaziado um frasco de essência para neutralizar o cheiro de leite coalhado da tenda, respondeu que queria sair. Ela ficou encantada do quadro que se lhe oferecia aos olhos, sob as vastas ramagens das alfarrobeiras, estavam estendidos tapetes, que eram circundados de uma grinalda animada de todos os árabes do aduar; e por detrás das alfarrobeiras estavam agrupadas, cobertas com véus as moukeres, que com a aparição da condessa e de Jorge, tocaram-se seus estridentes sgarits. Os Árabes ergueram-se, abriram alas para deixar passar Jorge e a condessa sobre os tapetes. Então trouxeram um carneiro inteiro, que fumegava em um grande prato de madeira, frangos temperados, e o cuscuz cheio de ovos e uvas cozidas. A condessa tinha um prato e uma colher de pau, ambos novos. Ela riu-se de bom coração vendo esta singular baixela. O caid e os árabes, que não comiam porque é fazer a maior injúria ao hóspede partilhar do seu reposto e não consagrar toda a atenção em satisfazê-lo, assemelhavam-se a mortais, assistindo aos banquetes ambreados dos deuses do Olimpo, e procurando ler em seu semblante a satisfação. - Que tal está o cuscuz? perguntou o caid à senhora de Lucenais. - Delicioso. Os que se fazem em minha casa não se comparam com este. - Vê, replicou o caid com orgulho, não há em Argel uma mulher, que faça o cuscuz como Lella Kadjoun, assim eu paguei por ela dois mil francos, sem contar os presentes do casamento. - E mais barata que nossas cozinheiras, que pedem mil francos por ano, diz Jorge. Neste momento, quatro Mouriscas, vestidas de gaze, lançaram-se do grupo das mulheres sobre um tapete, onde se entregaram a todas as fantasias apaixonadas da dança árabe; – combates simulados, mulheres infiéis feridas pelo yatagan, sestas voluptuosas no fundo das quebradas e amorosos passatempos no oásis do deserto. Os músicos acompanharam estas cenas, batendo repetidas pancadas na pele sonora do derbouka. A senhora de Lucenais ainda que estivesse habituada às danças mouriscas, pareceu estar vivamente impressionada, e Jorge, que 316 a observava, viu-lhe o seio palpitar e agitar-se como vagas ondulosas que se sucedem rapidamente. - Quanta razão tínheis, Jorge, diz a condessa com voz comovida, de exclamar que o paraíso do amor estava aqui. Ah é a delícia dos anjos esta vida patriarcal no meio dos bosques, longe das intrigas e das estéreis agitações do mundo. - Não, condessa, ainda não é aqui. Dispensai-me de desenrolar-vos as intrigas, os roubos, os vícios, os crimes, as misérias e os mesquinhos sentimentos destes pastores árabes, cândidos somente em aparência, que vós tanto amais. O homem, nascido da mulher, é necessariamente mau, quer seja pastor, agricultor, industrioso, quer seja parasita civilizado. E nas bordas do mar ou no fundo das florestas que eu queria ver edificar-se o nosso pequeno castelo, que eu queria viver e morrer sob vossos olhos cheios de chamas como o sol que nos abrasa com seus raios derradeiros. A condessa sufocada pela emoção não pôde responder senão colocando a mão na de Jorge; mas a paixão crescia cada vez mais, e subiu-lhe ao coração como uma maré irresistível. Sucumbindo a emoção ele caiu sobre o tapete vítima de uma crise nervosa. A festa foi bruscamente interrompida. Bou-Sar, sem perder a cabeça, chamou suas mulheres; Jorge retirou-se, um enxame de moukeres cercou a senhora de Lucenais. Elas desacoitaram a amazona; mas deram gritos por não poderem afrouxar um espartilho, que encontraram, um verdadeiro nó górdio e um mistério para elas. Jorge furioso afastou-as, arrebentou o espartilho da condessa, que pôde respirar desembaraçadamente; depois retirou-se de novo, fazendo sinal às mulheres árabes que voltassem para cuidar da senhora de Lucenais e vesti-la. As moukeres abanaram a condessa, cercaram-na de cuidados; e a senhora de Lucenais, tornando a si, perguntou o que tinha acontecido. - Estais muito fatigada, diz Jorge, evitando responder à pergunta feita, para entrar esta tarde em Guelma. - Morta ou viva, é absolutamente necessário que eu entre, retrucou a condessa. Mandei trazer Isabella, eu vos peço, quero partir. Os árabes do aduar estavam petrificados, e não compreendiam nada do que se tinha passado, não tendo visto nunca suas mulheres se acharem incomodadas. O caid somente não estava muito inquieto deste pequeno acontecimento, porque tinha frequentado as nervosas europeias e sabia a facilidade com que elas desmaiam. Finalmente, ele tinha compreendido a verdadeira causa do ataque de nervos da condessa, que, um pouco desfigurada, com o rosto pálido, os olhos afogados em languidez, estava mais bela do que nunca. Chegou a vez de sentir Jorge a paixão que havia inspirado. Montou Satan com muito mau humor, e deixou com pesar o aduar dos Heractas. A volta foi triste. Em África não há a aurora nem crepúsculo, as sombras envolvem bruscamente a terra do mesmo modo que os primeiros raios do sol a iluminam e abrasam. Os chacais, esses oficiais sinistros da noite africana, uivavam a passagem da caravana, Jorge, Amedh e Ibrahim, vigiavam de perto Izabella, que podia, com um passo falso, fazer rolar a condessa em uma quebrada. Por cúmulo de males a lua e as estrelas cobriram-se de repente de nuvens, impelidas pelo vento sul, pelo simoun. Em oposição às noites habituais da África, que são luminosas e quase glaciais, o tempo tornou-se negro e asfixiante. A custo podia retirar-se, 317 e a quatro passos em frente nada se podia distinguir. A cada instante a caravana corria o risco de perder-se, ou de cair em alguma quebrada. - Senhora, disse Jorge com resolução à condessa, vós não estrareis numa noite destas em Guelma. Vamos ter a herdade de Pablo, que é vosso fazendeiro e lhe pediremos hospitalidade. - Mas ao menos, objetou a condessa, conviria que M. de Lucenais fosse prevenido, a fim de que não atribua minha ausência a motivos, que não sejam naturais. Não poderia Ibrahim ir a Guelma? Ibrahim, que tinha ouvido a proposição da senhora de Lucenais fez avançar o seu cavalo. - Não condessa, diz Jorge com vivacidade; é inútil que vosso marido saiba onde passais esta noite. Naturalmente lhe ocorrerá ao espírito que vós não pudestes viajar neste tempo de sirocco. Além de que estais fatigada, desfalecida, e chegareis doente a Guelma, se escapásseis a todos os acidentes. A condessa cedeu ao raciocínio de Jorge, e a caravana chegou à porta de uma casa cercada de muros como uma verdadeira fortaleza. Era uma herdade isolada de toda a habitação, de que era fazendeiro o espanhol Pablo, criador de gados, rendeiro de Lucenais. Ahmed e Ibrahim tinham batido repetidas pancadas à porta; os cães somente respondiam com ameaçadores ladros: finalmente uma voz rude perguntou quem estava ali. Ao nome da condessa de Lucenais, a porta abriu-se imediatamente. Pedida a hospitalidade, Pablo respondeu que só tinha um quarto disponível, e que não ousava oferecer a M. Jorge Kerouard um celeiro por cima das estribarias. Jorge aceitou o celeiro, e Ibrahim, que, como todos os árabes, tinha sem dúvida alguma repugnância em dormir numa casa, pediu para ir passar a noite em seu aduar, vizinho da herdade. A condessa não achou nisso inconveniente algum, e Ibrahim retirou-se; mas em vez de tomar o caminho de seu aduar, tomou a galope, apesar da escuridão da noite, a estrada de Guelma. Foram precisas infinitas precauções para que os hóspedes do espanhol atravessassem um vasto terreiro, entulhado de centenas de bois deitados, que não se incomodavam senão mugindo ao ouvir a rude voz de Pablo. O antigo capitão de caçadores conduziu até a câmara a senhora de Lucenais, recomendou-a ao fiel Ahmed, e deixou-a, abraçando-a com um olhar, que não era certamente um adeus. Estando o celeiro na outra extremidade do edifício, Jorge teve de atravessar o terreiro, seguindo Pablo, que, com uma lanterna na mão, fazia levantar os bois que atestavam com terríveis mugidos o mal humor que lhes causava ao serem incomodados em seu sono. Nem bem tinha Jorge se arremessado vestido como estava sobre a cama de lona, leito habitual de um moço da herdade, Pablo desapareceu levando a lanterna. Duas horas se passaram. A argola da porta da herdade soou; a senhora de Lucenais, que não dormia mais do que Jorge, julgou que seria algum moço da herdade, que entrava de alguma viagem; os cães ladraram; os bois mugiram ainda; depois o silêncio restabeleceu-se. Meia noite soou no relógio da herdade, envolvida em trevas e silêncio. Mas o que havia de engraçado, apesar da calma aparente da herdade, era que ninguém ali dormia, e Jorge menos do que todos. 318 Vítima da emoção a mais violenta, ergueu-se do leito como se tivesse sido movido por uma mola, e exclamou: - A paixão me asfixia neste celeiro! Ela vive ali, há alguns passos de mim; parece que lhe ouço a doce respiração; e deixaria eu escapar esta admirável noite de simoun que inspira ardores e causa trevas? As negras noites da África me conhecem e me são propícias! O antigo capitão de caçadores tomou seu longo punhal kabylo e saiu do celeiro. O terreno da herdade estava mergulhado numa escuridão profunda; o céu estava negro e somente no fundo do horizonte um clarão vermelho ensanguentava a nuvem. O ar rarefeito escaldava os pulmões, e respirava-se vapores; era uma terrível noite de sirocco. Os bois afiguraram-se a Jorge massas confusas, mais difíceis de romper que um exército inimigo. O Don Juan africano não desconhecia a dificuldade de atravessar este terreiro sem incomodar bois e despertar os cães: porém teria morrido de vergonha ao pensamento único de recuar ante obstáculos materiais desta ordem, que o separavam do quarto da condessa. Ele pôs- se, portanto, a obra com afoiteza. Jorge passou sem inconveniente os primeiros bois, deitados; por desgraça, chegado ao meio do terreiro, viu-se forçado apartar com os pés e com as mãos os bois, que dormiam em pé, apoiados e conchegados uns aos outros. Os animais se amotinaram bastante, e os cães de guarda, testemunhas deste reboliço, começaram a ladrar, avançaram ao lugar do terreiro, onde se manifestava a perturbação, e o primeiro que sentiu Jorge, saltou-lhe ao peito: era um enorme molosso. Mas apenas tocou com os dentes o peito de Jorge, este introduziu-lhe no ventre, até o cabo, seu longo punhal, kabylo. O molosso caiu morto. Jorge avançou resolutamente apesar dos ladros dos outros dois cães. O oficial que tinha experimentado o tato viperino da pantera ferida, que tinha sentido a forte respiração do leão, não podia temer os molossos. Apenas dirigia a Vênus uma súplica, e era que os ladros dos cães não despertassem a gente da herdade. Desgraçadamente os dois companheiros dos molossos, espantados da sua sorte trágica, batiam em retirada diante dele, ladrando horrivelmente. Entretanto, Jorge tinha empregado esforços sobrehumanos para atravessar com presteza as massas de carne, que se lhe opunham a passagem. Faltavam-lhe apenas alguns passos para chegar ao fim, quando de repente se abre a porta do quarto do rendeiro, e um homem apareceu, munido de uma lanterna, que pôs em terra, e de uma espingarda. Fez logo pontaria a Jorge; o tiro partiu, e a bala sibilou ao ouvido do antigo capitão, que, ao fraco clarão da lanterna e ao fogo do tiro, creu reconhecer o conde de Lucenais. Fora de si, Jorge precipitou-se sobre o assassino; mas os obstáculos eram insuperáveis. A detonação tinha espalhado o susto, o pânico na legião dos bois, que se entregavam a saltos furiosos, dando chifradas a torto e a direito. Apesar de toda a razão, apesar de toda a evidência do perigo, Jorge quis absolutamente sair deste infernal, para agarrar o assassino, o conde de Lucenais, que depois do atentado tinha entrado em casa e corria já sem dúvida pela estrada de Guelma. Em seu louco ardor de vingança, Jorge lançou-se de encontro as pontas de um touro furioso: foi arremessado a alguns metros de distância, e caiu confuso com as entranhas de fora, ao pé da soleira do quarto da condessa. Ahmed ouviu os gemidos do capitão, abriu a porta, chamou em seu socorro a senhora de Lucenais, que pareceu de roupão branco. 319 - Jorge! Jorge! Exclamou ela com um acento de desespero mal o viu por terra. - Sim, sou eu, condessa, diz Jorge, fazendo um inútil esforço para levantar-se. Esqueci- me ontem de dar-vos as boas-noites, queria reparar o meu erro.... - Jorge ferido, assassinado! - Por vosso marido. Sua alma de assassino incarnou-se em um touro furioso, que me feriu com as pontas! - É um delírio! É uma alucinação do ódio! Jorge, que dizeis, meu marido.... um assassino! - Vosso marido fez fogo sobre mim. - Não, não! Se atiraram, foi o rendeiro Pablo. M. de Lucenais está em Guelma. Não me desespereis, Jorge. - Amanhã, senhora, tomareis parte na cama de um assassino.... tão verdade como vou morrer! - Morrer aqui em uma imunda estrebaria? - Por que não! Cristo não nasceu nela? Adeus, condessa.... eu vos amei bastante, ide! Adeus nossos belos sonhos de Meskoutine, nosso pequeno castelo no fundo dos bosques.... As sombras da morte desciam sobre o rosto pálido e soberbo, repreendendo a agonia do antigo capitão de caçadores da África. A condessa de Lucenais ajoelhou-se, lançou-se sobre o corpo de Jorge, e chegando a seus ouvidos os lábios murmurou: - Não morre, Jorge! Eu não quero que morras.... Eu te amo! Jorge desfalecido não pôde responder; mas um sorriso de felicidade roçou por seus lábios. Ele fez um sinal e chamou Satan. Trouxeram-lhe o inteligente e corajoso cavalo árabe, que o tinha levado sobre os campos de batalha. Satan, vendo seu senhor deitado, ensanguentado, compreendeu que desta vez ele estava vencido. Os olhos de Satan cobriram-se de tristeza; pôs um joelho em terra e lambeu o sangue de Jorge, que abraçou com transporte a cabeça do cavalo; depois o afastou docemente, sentindo que chegava a extrema agonia. Jorge expirou entre os braços da condessa e de Ahmed. Vestida com seu roupão ensanguentado, a condessa foi bater à porta do espanhol, e pediu-lhe conta da morte de Jorge, ao que Pablo respondeu que com efeito ouvira os cães ladrarem, como acontecia quase todas as noites; mas que nenhum tiro tinha sido dado no terreiro. A condessa tinha sem dúvida sonhado: não sabia o que ela queria dizer. A senhora de Lucenais vestiu-se à pressa e partiu da herdade de Pablo: entrando em casa achou seu marido profundamente adormecido. Quando lhe fez saber da morte de Jorge Kerouard, M. de Lucenais deu sinais de violenta tristeza. Então a condessa duvidou se um tiro tinha sido dado na herdade, se Jorge tinha sido o ludíbrio de uma alucinação. A condessa nenhum indício tinha para dissipar as dúvidas, nem uma luz para tirá-la do labirinto tenebroso, no qual se perdia seu pensamento: era-lhe impossível adivinhar que Ibrahim tinha vindo informar a M. de Lucenais da presença de Jorge na herdade, que M. de Lucenais e Ibrahim tinham corrido imediatamente a herdade do espanhol Pablo, amigo dedicado do conde. Ainda mesmo que tivesse adivinhado todos estes movimentos, toda esta criminosa estratégia, 320 favorecida por uma noite escura, como teria ela adquirido a prova do fato, visto como a ausência de Ibrahim era perfeitamente testificada, por isso que M. de Lucenais tinha realmente passado a noite em Guelma e Ibrahim em seu aduar? Além disto todas as investigações feitas concluíram por formar a convicção de que Jorge Kerouard, tendo cometido a imprudência de atravessar, de noite, um terreiro cheio de bois, tinha sido morto de uma chifrada. Entretanto, a condessa não podia chegar à evidência: o coração resistia sempre contra a razão, e ela ouvia sem cessar a voz de Jorge resoar-lhe aos ouvidos. Separou-se sem escândalo e de um comum acordo de M. de Lucenais que, tendo vendido suas propriedades argelinas, vive hoje na Espanha com seu amigo e rendeiro Pablo, e com seu fiel criado Ibrahim. A condessa de Lucenais fixou sua residência em Nice, onde a denominam a Condessa Negra, porque não deixa o luto e não assiste a divertimento algum. Todos os anos, no dia de Todos os Santos, ela atravessa a fronteira, que separa o Piemonte do departamento do Var, para orar sobre o túmulo do antigo capitão de caçadores da África, enterrado no cemitério da sua aldeia natal. A condessa negra não deixa um cofrezinho de ébano: este precioso cofrezinho contém o roupão ensanguentado, que ela trazia quando recebeu o último beijo dos lábios moribundos de Jorge Kerouard.