UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM SHEILA CRISTIANE DE JESUS REALISMOS MARAVILHOSO, FANTÁSTICO E TRANSCULTURAÇÃO NA COMPOSIÇÃO LITERÁRIA DE CEM ANOS DE SOLIDÃO. NATAL/ RN 2020 SHEILA CRISTIANE DE JESUS REALISMOS MARAVILHOSO, FANTÁSTICO E TRANSCULTURAÇÃO NA COMPOSIÇÃO LITERÁRIA DE CEM ANOS DE SOLIDÃO. Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Estudos da Linguagem, área de concentração Estudos em Literatura Comparada. Orientador: Prof. Dr. Samuel Anderson de Oliveira Lima. NATAL/RN 2020 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA. Jesus, Sheila Cristiane de. Realismos maravilhoso, fantástico e transculturação na composição literária de Cem anos de solidão / Sheila Cristiane de Jesus. - Natal, 2020. 77f. Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2020. Orientador: Prof. Dr. Samuel Anderson de Oliveira Lima. 1. Realismo maravilhoso - Dissertação. 2. Realismo fantástico - Dissertação. 3. Transculturação - Dissertação. I. Lima, Samuel Anderson de Oliveira. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 82.09 Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710 SHEILA CRISTIANE DE JESUS REALISMOS MARAVILHOSO, FANTÁSTICO E TRANSCULTURAÇÃO NA COMPOSIÇÃO LITERÁRIA DE CEM ANOS DE SOLIDÃO. Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Estudos da Linguagem, área de concentração Estudos em Literatura Comparada. Orientador: Prof. Dr. Samuel Anderson de Oliveira Lima. Aprovada em: ______/______/______ BANCA EXAMINADORA ______________________________________________________ Prof. Dr. Samuel Anderson de Oliveira Lima - Orientador UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ______________________________________________________ Prof. Dr. Derivaldo dos Santos - Membro interno UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE _____________________________________________________ Prof. Dr. João Batista de Morais Neto - Membro externo INSTITUTO FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ____________________________________________________ Profa. Dra. Leila Maria de Araújo Tabosa – Membro externo UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE AGRADECIMENTOS Meus agradecimentos sinceros ao professor João Batista de Morais Neto, por ter despertado em mim o desejo de pesquisar sobre transculturação na época em que paguei disciplinas na graduação de Espanhol. Ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem (PPGEL/UFRN) por ter me proporcionado as condições para dar prosseguimento à minha formação acadêmica de excelência e por tudo que aprendi com meus mestres que atuam nesse programa. Ao Centro de Recursos Didáticos de Espanhol do IFRN, que me concedeu empréstimos de livros que muito auxiliaram esta pesquisa. Ao Professor Samuel Anderson de Oliveira Lima, meu orientador, que foi sempre gentil e incentivador dos estudos literários, acreditou que pudéssemos chegar a uma pesquisa de valor acadêmico. Ao professor Derivaldo dos Santos, que tanto acreditou em mim, mesmo quando eu mesma cheguei a não acreditar, proporcionou valiosas contribuições para este trabalho. Aos meus colegas de pesquisa Jocylena Dantas Bandeira e Rafael Bastos, cujas tardes de trocas e companheirismos me contagiaram. A todos que contribuíram para esta pesquisa surgir, que cada um receba minha sincera gratidão. Á Deus, meu criador, seja a glória por ter chegado aqui. Era tudo que ia ficando de um passado cujo aniquilamento não se consumava, porque continuava aniquilando-se indefinidamente, consumindo-se dentro de si mesmo, acabando-se a cada minuto, mas sem acabar de se acabar nunca. Gabriel García Márquez RESUMO Esta dissertação tem como objeto de análise o romance Cem Anos de Solidão a partir dos precedentes narrativos oriundos dos Realismos imaginários que inspiraram a sua escrita, perpassando pelo contato de culturas distintas que possibilitaram o fenômeno da transculturação presente na sua unidade narrativa em seus três níveis: o linguístico, o composicional e o da cosmovisão do autor. Destacamos o nível transculturador da composição literária do enredo e personagens para estabelecer a análise de corpus do próprio romance e sua pertinência com os elementos regionais e modernos que originam o fenômeno transculturador. O objetivo é analisar a obra sob a perspectiva transcultural proposto por Rama e seus elementos dos realismos imaginários somados à cultura universalista adquirida do elemento externo. Estabelecemos os critérios de análise no nível da composição literária, já que dela deriva os outros dois níveis, ou seja, o linguístico e da cosmovisão do autor. A análise se pauta pelo método teórico-metodológico de pesquisa qualitativa e análise crítica, se propõe a destacar as regulares aparições de elementos dos realismos imaginários, elemento interno e a simbiose com elementos das culturas ocidentais externas e a recorrência mítica no romance escolhido, para constatar a utilização desses elementos na estrutura textual e o fenômeno transculturante. Para isso, tomamos por base os postulados teóricos de Becerra (2008), Peña Gutiérrez (1987), Vax (1965), Todorov (1981) e Roas (2001) sobre os realismos mágico-mítico, maravilhoso e fantástico; Mielietinsky (1987) e Eliade (1972), sobre as características do mito; Calvino (1990) sobre imagem e leveza; Benjamin (1984) imagem e alegoria. Também temos Lezama Lima (1979), sobre a imagem da América latina e suas culturas múltiplas, Ángel Rama (1987; 2001) sobre o fenômeno transcultural e Greimas (2013) sobre os elementos de interpretação da narrativa mítica. Os resultados indicam que todo o romance foi configurado de maneira que a transculturação estivesse articulada com os elementos dos realismos mágico, maravilhoso e fantástico, inscrevendo a composição original como fruto da somatória de elementos míticos das diferentes etnias e elementos culturais prefiguradas nas personagens e suas ações na fábula construída. Palavras-chave: Realismo Maravilhoso. Realismo Fantástico.Transculturação. Composição literária. RESUMEN Esta disertación tiene como objeto de análisis la novela Cien años de soledad desde los precedentes narrativos originarios de los Realismos imaginarios que inspiraron su escritura, pasando por el contacto de diferentes culturas que hicieron posible el fenómeno de la transculturación presente en su unidad narrativa en sus tres niveles: el lingüístico, la composición y la cosmovisión del autor. Destacamos el nivel transculturador de la composición literaria de la trama y personajes para establecer el análisis de corpus de la propia novela y su pertinencia con los elementos regionales y modernos que originan el fenómeno transculturador. El objetivo es analizar la novela bajo la perspectiva transcultural propuesta por Rama y sus elementos de los realismos imaginarios añadidos a la cultura universalista adquirida del elemento externo. Establecimos los criterios de análisis en el nivel de la composición literaria, pues que de ella deriva los otros dos niveles, o sea, lo lingüístico y la cosmovisión del autor. El análisis se basa en investigación teórico-metodológica y análisis crítica, se propone a destacar las regulares apariciones de los elementos de los realismos imaginarios, elemento interno y la simbiosis con los elementos de las culturas occidentales externas y la recurrencia mítica en la novela elegida, para constatar la utilización de eses elementos en la estructura textual y el fenómeno transculturante. Para ello, nos basamos en los postulados teóricos de Becerra (2008), Peña Gutiérrez (1987), Vax (1965), Todorov (1981), Roas (2001) sobre tres realismos mencionados; Mielietinsky (1987) y Eliade (1972), sobre las características del mito; Calvino (1990) sobre imagen y blandura; de Benjamin (1984) imagen y alegoría. También tenemos Lezama Lima (1979), sobre la imagen de América Latina y sus múltiples culturas, Rama (1987; 2001) y su visión sobre el fenómeno transcultural y Greimas (2013) sobre los elementos de interpretación de la narrativa mítica. Los resultados indican que toda la novela se configuró de tal manera que la transculturación se articuló con los elementos de los realismos imaginarios, inscribiendo la composición original resultante de la suma de elementos míticos de diferentes etnias y elementos culturales prefigurados en los personajes y sus acciones en la fábula construida. Palabras clave: Realismos Imaginarios. Transculturación. Composición literaria. Personajes. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 9 2 OS DIVERSOS REALISMOS ....................................................................................... 12 2.1 O Realismo mágico-mítico de Miguel Ángel Astúrias .................................................... 15 2.2 O real maravilhoso de Alejo Carpentier .......................................................................... 21 2.3 O realismo fantástico e Juan Rulfo ................................................................................. 23 2.4 A obra Cem Anos de Solidão ........................................................................................ 299 3 IMAGEM, CULTURA E REALISMOS IMAGINÁRIOS............................................ 33 3.1 As borboletas amarelas em Cem Anos de Solidão ........................................................... 36 3.2 A imagem do gelo presente em Cem Anos de Solidão ..................................................... 41 3.3 Os elementos dos realismos imaginários ...........................................................................43 4 TRANSCULTURAÇÃO E REALISMOS IMAGINÁRIOS ......................................... 46 4.1 Do que os mitos são compostos ...................................................................................... 50 4.2 - A vereda da transculturação ......................................................................................... 53 4.3 - Regionalismo versus Modernismo................................................................................ 54 4.4 Elementos da transculturação na obra ............................................................................. 63 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................74 REFERÊNCIAS .....................................................................................................................76 9 1 INTRODUÇÃO Nas diversas formas de estudar e pesquisar literatura e sua importância cada vez mais rarefeita no mundo digital e tecnológico em que vivemos, encontramos alento ao depararmo-nos com uma obra latino-americana intitulada Cem Anos de Solidão. Escrita por Gabriel García Márquez na década de 60 do século XX, essa se consolidou como um magnífico exemplar do alcance que a literatura tem em agregar pessoas de culturas, línguas e etnias de países diferentes ao prazer da leitura. Partindo dessa óptica, esta dissertação objetiva analisar o romance Cem Anos de Solidão sob a perspectiva transcultural do pensar mítico e do embate entre regionalismo versus modernismo, bem como os elementos dos realismos mágico-mítico, maravilhoso e fantástico até consolidar o fenômeno da transculturação, que pode ser constatado na obra, para entendermos os caminhos que inspiraram a sua escrita. Tanto o realismo maravilhoso e o fantástico, quanto a herança cultural de diferentes etnias que ocuparam as Américas antes das colonizações portuguesa e espanhola, foram preservados, explorados e pensados por variados artífices da palavra, que buscaram consolidar uma produção a qual não fosse considerada mera cópia daquilo que se fazia em termos de arte escrita no velho mundo nem repetisse as velhas fórmulas do regionalismo. Ao buscar produzir algo que verdadeiramente expresse as novas possibilidades de criação artística, em condições de engendrar uma obra capaz de conter elementos transculturantes, um tipo novo de fazer literário que não somente procure negar os modelos anteriores advindos da identidade cultural do colonizador do velho mundo, mas que englobe o que já se conhecia – as formas de saberes míticos existentes no continente americano, as gerações anterior e posterior à do Boom hispano-americano que eclodiram produções as quais reverberam inquietações anteriormente descritas, principalmente nas áreas temáticas. Não se limitando a essa perspectiva, seus expoentes buscavam mesclar, nos campos do experimentalismo literário, os elementos das mitologias ameríndias, os segredos místicos dos povos ciganos, as tragédias do teatro greco-romano, as esperanças judaico-cristã de terras prometidas no mesmo cadinho efervescente de culturas distintas. Dos embates travados entre os elementos tradicionais das culturas regionalistas e da inserção do modernismo no continente americano, surge o fenômeno da transculturação presente na unidade narrativa de Cem Anos de Solidão em seus três níveis: o linguístico, o composicional e o da cosmovisão do autor. Desses, destacamos também o nível transculturador da composição literária do enredo e das personagens para estabelecer a análise temática do corpus do próprio romance e sua pertinência com os elementos regionais e modernos que originam o fenômeno transculturador. O contato de culturas humanas diferentes possibilitou a conjunção do real e do 10 fantástico, da razão e da imaginação, do colonizador e do colonizado na composição literária de García Márquez, originada a partir do amálgama de criatividade e plasticidade cultural e uso da linguagem artística, estética. O nível de análise transculturadora da composição literária de enredo e personagens foi escolhido com o objetivo de estabelecer as bases da reflexão crítica na trajetória do escritor da transculturação, como a prática transculturadora e o contato com obras anteriores que influenciaram a sua escrita. Como os níveis de utilização da linguagem e da cosmovisão do autor dependem prioritariamente da seleção de elementos para a composição literária, a prática transculturadora se faz presente pelo processo de reelaboração dos elementos externos, adquiridos das influências de leituras do criador da obra, somados aos saberes da sua própria cultura regional latino-americana. Desse modo, levantamos a hipótese de ser o nível composicional o fator determinante para a escolha dos elementos tanto internos das culturas regionais, quanto externos do cânon ocidental, para criar a fissura necessária que visa ao fenômeno da transculturação narrativa. Passamos, então, a refletir como essa articulação está associada aos diversos realismos, a saber, o mágico-mítico de Astúrias, o maravilhoso de Carpentier e o fantástico de Rulfo, suas características, juntamente com os elementos da herança cultural de povos ameríndios segregados e historicamente suplantados pelo poderio imposto do colonizador, preservadas suas tradições, costumes e valores por meio das trocas culturais e suas mitologias conservadas na camada da memória, anteriores à colonização espanhola. Para tanto, escolhemos dividir este estudo em cinco capítulos por acharmos pertinente tecer um apanhado da fortuna crítica que influenciou a composição do romance analisado, uma vez que a proposta é dar vislumbre ao modo pelo qual o fazer literário foi engendrado no continente americano no período que antecedeu a obra e ao modo pelo qual os escritores modernistas trataram os elementos internos e externos oriundos de suas regiões culturais, como os advindos dos movimentos modernistas que já ocorriam na Europa. O primeiro e o quinto capítulos, correspondem, respectivamente, às considerações introdutórias e finais deste trabalho: nestas, apresentamos a proposta de dissertação com seus objetivos; naquelas, fazemos um arremate do que foi tratado ao longo do texto. O segundo capítulo, por sua vez, traz-nos a fortuna crítica dos escritores que versaram sobre a temática dos realismos mágico, maravilhoso e fantástico, a fim de ressaltar como essas contribuições foram determinantes para a escolha dos elementos de origem interna e externa do universo das comunidades regionais sujeitas à influência dos elementos modernizadores. O terceiro capítulo versa sobre a imagem e a cultura da América latina e seus efeitos na produção narrativa ao abordar, sobretudo, a respeito dos fenômenos naturais e sobrenaturais, uma 11 vez que são partes integrantes da cosmogonia dos povos rurais. Nessa perspectiva, observam-se escolhas de elementos marcantes – objetos, cores, insetos, línguas, convívio e trocas culturais – que anteciparam as configurações e contextos situacionais vividos por personagens na obra, como também se observa a transculturação ocorrida na produção literária, tomando por base a cultura. Nesse capítulo, já há análises de passagens da obra. O quarto capítulo se propõe ao aprofundamento da análise e interpretação da obra, destacando os embates entre os diversos elementos interno e externo selecionados pelo autor do romance e a concretização do fenômeno transculturador. Adotando o método teórico-metodológico de pesquisa qualitativa e análise crítica, a leitura proposta visa destacar as regulares aparições de elementos dos realismos maravilhoso e fantástico, elemento interno, em simbiose com elementos das culturas ocidentais e a recorrência mítica no romance escolhido, para constatar a frequência de utilização desses elementos na estrutura textual e os traços culturais regionalistas e modernizador. Para isso, tomamos por base os postulados de Becerra (2008); de Peña Gutiérrez (1987); Vax (1965), Todorov (1981), Roas (2001), sobre os três realismos antes citados; de Mielietinsky (1987) e Eliade (1972), sobre as características do mito; de Calvino (1990) sobre imagem e leveza; de Benjamin (1984) imagem e alegoria; de Lezama Lima (1979) sobre a imagem da América latina e suas culturas múltiplas; de Rama (1987, 2001) e sua visão sobre o fenômeno Transcultural; de Greimas (2013) sobre os elementos de interpretação da narrativa mítica e a composição literária de personagens nas narrativas transculturais. Quanto aos resultados, estes indicam que todo o romance foi configurado de maneira que a transculturação esteve articulada com os elementos dos realismos mágico, maravilhoso e fantástico – somatória dos embates entre os elementos regionais e modernos, de cosmovisão mítica e transculturada –, inscrevendo-a como composição original, fruto desses elementos culturais das diferentes etnias, prefiguradas nas personagens e suas ações na fábula construída. Consideramos, desse modo, Cem Anos de Solidão um marco da originalidade latino- americana, visto como poucas obras propuseram, em sua composição, abarcar em uma única unidade literária tamanho número de elementos oriundos de diversas culturas, tanto antigas quanto modernas, além de diversas temáticas de composição mítica como a morte, a solidão, o incesto, a tragédia, as lutas entre permanências e rupturas sociais, elementos sobrenaturais, ascensão e queda das sociedades humanas. Sendo a transculturação o meio pelo qual a obra se fez atemporal e sempre poderá ser lida e estudada em suas fontes inesgotáveis de fruição, por prazer ou por reflexão crítica, ela trata de interesses e amores nossos, vivências e saberes antigos, mágicos e, por fim, humanos, demasiadamente humanos. 12 2 OS DIVERSOS REALISMOS O maior problema apresentado e que quase nunca se resolveu entre as gerações dos anos 50 do século XX foi o de dividir, distanciar e, muitas vezes, opor o objetivo e o subjetivo, o real e o imaginário, o interno e o externo, o social e o individual, o trabalho e o lazer, o sério e o lúdico em suas composições literárias. A cada avanço entre o conceito dado como antigo e o que se apresentava como novo, incorria-se no erro de recair em um ou em outro extremo. Essa dicotomia entre o real e o imaginário fazia aberta oposição e dividia a linguagem entre a acadêmica, para o autor; e a de jargão, para as personagens, as quais obedeciam à realidade social do escritor. Por outro lado, as noções sociopolíticas colocaram em pauta certos temas literários e os autores escolhiam abordá-los de acordo com o que melhor conheciam, uma vez que suas produções se situaram no período pós-guerra no continente americano, onde novas formas de fazer arte e de representá-la se encontravam em grande ebulição. No meio do século XX (1947 -1953), surgiram várias obras fundamentais no trâmite dos realismos. Muitos desses autores – notadamente a geração de escritores hispano-americanos como Miguel Astúrias, Alejo Carpentier, Juan Rulfo, posteriormente Gabriel García Márquez, Julio Cortázar e outros –, conheceram os vanguardistas dos anos 1920 e 1930 europeus, o realismo social e o desassossego por perseguir caminhos inovadores nas artes. Gabriel García Márquez foi um dos escritores da geração conhecida como Boom hispano- americano. Como viajante intermitente, escreveu mais fora do que dentro de seu país de origem sem, contudo, deixar de considerar a realidade social da Colômbia. Como jornalista e escritor, conseguiu penetrar todos os meios de comunicação do continente americano e de vários outros países, bem como da Espanha. Ele e outros escritores dessa mesma geração, que incluía Julio Cortázar, Carlos Fuentes, Mario Vargas Llosa, produziram grandes obras em menos de cinco e seis anos, dentre elas, especificamente Cem Anos de Solidão, sua maior criação artística e literária. Avaliados na distância temporal, na atualidade e constância dos seus escritos e a recepção desses escritores aos leitores mais jovens, vemos que conseguiram o mérito de imporem-se nos mercados do mundo, desde os anos 1960. García Márquez tinha por volta de 35 anos de idade e sua produção foi inscrita na órbita geral dos realismos maravilhoso e fantástico, com características similares às produzidas anteriormente nos idos dos anos de 1947, ainda que com particularidades estilísticas próprias. Cuando se habla de escritores latinoamericanos de relevancia, es imposible no nombrar a Gabriel García Márquez. Sus textos han contribuido no solo con la cultura de la región, sino que también han sido una presentación al mundo de la identidad latinoamericana, sus mitos y tradiciones. […]Su nombre completo era Gabriel José de la Concordia García Márquez y nació en Colombia, el 6 de 13 1 marzo de 1927. Se lo conoce popularmente como Gabo o Gabito (diminutivo de Gabriel. Grifos nossos). Foi jornalista e escritor, abandonou o curso de Direito para dedicar-se exclusivamente à literatura. Por possuir características estilísticas originais, a geração do Boom (García Márquez, Vargas Llosa, Carlos Fuentes e Julio Cortázar) não deve ser analisada somente pela categoria dos 2 mitos que se fizeram presentes na sua criação literária. O momento propício em que esses autores começaram a criar foi considerado espetacular, por terem promovido a atividade de divulgação e difusão de suas obras, como se isso – e era no período de suas produções – fosse uma atitude pecaminosa. No entanto, a importância do Boom, apesar de sua transitoriedade, chegou mesmo a 3 obscurecer outros autores, mas não superou o Novo Romance – como ficaram conhecidas as novas formas de narrativa latino-americana –, construído por seus antecessores em postulado teórico. Entretanto, recriou-o a partir daquela vereda desbravada anteriormente por eles. Um romance como Cem Anos de Solidão utiliza-se de temporalidades e espacialidades múltiplas, desde a abertura da obra com a alternância de várias histórias em uma e de várias pessoas com diversas perspectivas narrativas. Existe ainda a clara intenção de englobar, numa só narrativa, várias gerações de uma mesma família, como assim quis fazer os romances totalitaristas escritos nos anos 1920 e 1930; as vidas expressas em sua integridade compunham um panorama que foge da linearidade cronológica, uma vez que o importante, para o autor, era conseguir o êxito de criar um espaço e um tempo coerente, bem como um narrador. A imaginação passou a permear de forma definitiva a organização estrutural das histórias das personagens, tornando-as entidades autônomas. Anteriormente, as histórias nasciam das vivências ou dos testemunhos documentados ou fictícios, bastando organizá-las para criar um fio condutor. Nesse novo fazer fictício propagado pela geração do Boom, tudo se fazia fracionado ou se fracionava para, depois, montar como é feito no cinema. As diferentes sequências e níveis, bem como a utilização dos recursos psicológicos, mecânicos, intuitivos, históricos, reais ou fantásticos, foram aproveitados para tornar coerente a 1 Seu nome completo era Gabriel José de la Concordia García Márquez e nasceu na Colômbia, em 6 de março de 1927.Ele é conhecido popularmente como Gabo ou Gabito (diminutivo de Gabriel. Grifos nossos). Para conhecer mais, ver disponível em https://www.universia.net/mx/actualidad/vida- universitaria/importancia-gabriel-garcia-marquez-literatura-latinoamericana-1136994.html. acesso em 01/11/2020. 2 Esses mitos referidos não só fazem menção ao status de escritores que alcançaram com suas obras, mas também faz referência aos pressupostos mitológicos que tomaram das culturas ameríndias sobreviventes ao contato colonizador e aos mitos da sua formação enquanto leitores da tradição literária ocidental, que remonta ao legado greco-romano em suas composições narrativas. 3 Estamos nos referindo aos autores da geração de 1920 e 1930, como Carpentier, Astúrias e, posteriormente, Rulfo, autores precursores dos diversos realismos que irão ser atualizados e servir de inspiração à própria geração do Boom hispano-americano. 14 montagem, também não foram perfilados personagens unilaterais ou somente vistos de uma perspectiva. Todos passaram a serem múltiplos, todos com singularidades e características que se pode apreender de modelos universais, dentro de uma amarração artística literária de primorosa leveza, grandeza e vigor. A geração do Boom, da qual García Márquez fez parte, foi a responsável por introduzir um enfoque mais refinado na produção de obras literárias, pois “el boom fue la última gran manifestación literaria moderna que tuvo una recepción totalizadora: mercado masivo, impacto 4 mediático y legitimidad académica ” (CORTÉS apud Becerra, 2008, p. 16). Partindo dessa colocação, pode-se afirmar que todas as narrativas produzidas do período de 1960-1970 emergiram de uma série de narradores inspirados pelo mesmo fenômeno de criação literária que estava oculta e quase totalmente esquecida por completo. Desse passado riquíssimo, surgem as narrativas exclusivamente romancistas, com traços distintos de produção criativa e estímulo de mudanças. Foi sob o pressuposto da construção da linguagem que os escritores da geração Boom construíram seus romances, com uma escrita ambiciosa, complexa e cheia de audácias formais, legando a imagem exata de ruptura com que se havia produzido nos períodos anteriores, sem negar os contributos recebidos das culturas pré-colombianas, assimilando-os ao mesmo tempo em que traçou uma fronteira que marcaria a sua maturidade. Desde o local para o universal e, ao mesmo tempo, estabelecendo uma linha divisória transversal do rural ao urbano – fator esse fundamental, pois demarca a superação do regionalismo anterior e suas limitações estéticas e o âmbito campestre de seus espaços de ficção –, a geração Boom deixou a herança legada de um molde interpretativo que custou a ser definido e colocado na prática e que mantém ainda sua vigência. Depois dessas incessantes buscas, bebendo das fontes da geração dos anos 1920 e 1930, os autores da dita geração publicaram seus contos e romances aproximando-se daquilo que intentavam na esfera narrativa, marcados claramente pela estranheza, a qual se originava da maneira como encaravam a realidade e de como se criava, na literatura, essa nova realidade proposta. Desse caudal, fez-se o campo dos Realismos mágico-mítico, maravilhoso e fantástico, também chamados de Realismos imaginários. Autores como os da geração dos anos 1920 e 1930 foram as fontes primárias de composição literária dos romancistas do Boom, que buscaram novas formas de assimilação de uma literatura oral pujante herdada dos antepassados autóctones, mesclada ao cânon de literatura ocidental trazida pelo colonizador. O encontro dessas culturas e visões de mundo deu origem a uma nova vereda do pensar: ao se distanciar das classificações 4 “O Boom foi a última grande manifestação literária moderna que teve uma recepção totalizadora: mercado de massa, impacto midiático e legitimidade acadêmica”. (CORTÉS apud Becerra, 2008, p. 16, tradução nossa). 15 existentes – ou pelo menos da maioria delas –, três deles se perfilaram como pilares torrenciais de criatividade, agregadores e cativantes. Não podemos somente colocá-los como escolas dogmáticas nem como catecismos fechados, mas como perfis estilísticos, compositores de poéticas diferenciadas, seguidos com cautela por outros escritores que os enriqueceram, deformando-os ou estilizando-os, como foi o caso dos quatro autores do Boom hispano-americano e que vão ser primordiais para a escrita do romance Cem Anos de Solidão, obra proposta para esta análise. Vejamos os principais deles. 2.1 O realismo mágico-mítico de Miguel Ángel Astúrias O mágico e o mítico tiveram, para os jovens escritores da geração anterior ao Boom, conotações particulares: aquele, em suas percepções, significava a liberação sobre as forças da natureza e a sua utilização em um amálgama energético e criativo; este, inscrito sempre como 5 cosmogonia terrena, representava os ideais puros de uma cultura. A associação com a magia contemporânea do “civilizado” nem sempre era equilibrada, porque a realidade ficcional se revestia de truques que dão a aparência de uma realidade, digamos real, quando não deveria ter. A atividade do mago ou do feiticeiro americano proporcionava uma ruptura com os códigos racionais ocidentais e produzia consequências ininteligíveis para um europeu. Afinal, o desconhecimento dessa sofisticada casualidade construiu a magia da palavra do bruxo, de suas artimanhas e rituais, de sua dramatização, constituindo um realismo reverso como assim postulou se configurar os diversos realismos em solo americano. Desse amálgama, surgiu o Realismo Mágico-mítico do escritor Astúrias (1899-1974). Suas principais obras – Leyendas de Guatemala, Señor Presidente e Hombres de Maíz – são consideradas as mais expressivas, pois foram feitas com base na magia da palavra, na atemporalidade e fragmentação imaginária dos textos pré-colombianos como o Popol-Vuh e que muitos confundiram com o Surrealismo. En la obra del poeta de grandes cualidades, pero sobre todo novelista, el realismo mágico tiene como objetivo captar la condición del hombre, junto con la esencia del mundo americano. El gran tema del escritor guatemalteco es la libertad, la dignidad del individuo ante el asalto continuo de las fuerzas del mal.[...] Con matices distintos, fue lo nacional, no solo indígena, la preocupación nuclear de Asturias. De ahí que su indigenismo haya servido tanto al desarollo plástico, anecdótico y estructural de su magicorrealismo como a la proyección sociopolítica 5 Cosmogonia: código de doutrinas, princípios religiosos, místicos ou científicos que explicam a origem do universo, de uma determinada realidade. 16 de aquellas obras donde el tono fantástico cede el paso a la crudeza de un lenguaje 6 más apegado a la realidad . (BELLINI, 1997, p. 470 apud Pacini, p.02) A forma adotada por ele na sua composição literária, por referir-se ao mundo social e político, antecipou um salto na configuração da linguagem como signo, como palavra mágica de personagens literários tecidos em concordância com a urdidura do texto narrativo. Nessa tessitura, a reabilitação do universo mítico pré-hispânico, ainda não contaminado pela cultura europeia, era o plano de fundo de suas obras e a exaltação de uma insurgente nacionalidade guatemalteca. El mundo de las Leyendas es un mundo fabuloso, fantástico, dinámico, sin límites, es decir, en el que los límites de lo real y lo imaginario no existen. [...] Hay hecho importante relacionado con las Layendas de Guatemala. Como dice Oviedo en su Historia de la literatura hispanoamericana 3 'hay aquí un nuevo arte de contar; estamos ante los gérmenes mismos de lo que más tarde se llamaría realismo 7 mágico (OVIEDO, 2001, p. 496-497, apud Pacini, p.02). A obra de Astúrias intitulada Señor Presidente propõe-se ser um reflexo do que é uma ditadura e uma experimentação da linguagem narrativa, ressaltando a presença de uma população de descendência Maia, eminente na obra, que sobrevive apegada às suas ricas e primitivas tradições e crenças. O propósito de unificar, na criação literária, as vítimas do poder de desmando de um homem alçado ao cargo de líder social e a força criativa das pessoas anônimas cujas vozes e imagens impregnam a atmosfera no transcorrer da leitura da narrativa, consolida-se em prazer e deleite de uma amarração narrativa perfeita e que cativa o leitor. Já em Hombres de maíz, de 1949, Astúrias formulou uma ousada proposta de imersão no mundo guatemalteco onde convivem a realidade social e o mito. Essa obra é reconhecida por sua relevância de ser pioneira na gênese dos realismos ficcionais hispano-americanos. Nela, estão plasmadas as crenças, costumes, tradições, expressões locais, preocupação social, exploração dos indígenas e violação do direito sagrado a terra. 6 “Na obra do poeta de grandes qualidades, mas, sobretudo romancista, o realismo mágico tem como objetivo captar a condição do homem, junto con a essência do mundo americano. O grande tema do escritor guatemalteco é a liberdade, a dignidade do indivíduo ante o ataque contínuo das forças do mal.[...] Com matizes diferentes, foi o elemento nacional, não somente indígena, a preocupação central de Asturias. Por isso que seu indigenismo serviu tanto ao desenvolvimento estético mutável, anedótico e estrutural de seu magico-realismo como a projeção socio-política daquelas obras nas quais o tom fantástico cede diante da crueza de uma linguagem mais aproximada à realidade“. ((BELLINI, 1997, p. 470 apud Pacini, p.02, tradução nossa). 7 O mundo das Lendas é um mundo fabuloso, fantástico, dinâmico, sem limites, ou seja, naquele que os limites do real e do imaginario não existem. [...] há um feito importante relacionado com as Layendas de Guatemala. Como diz Oviedo em sua Historia de la literatura hispanoamericana 3. Há nele uma nova arte de contar; estamos mesmo diante das sementes do que mais tarde se chamaria realismo mágico.' (OVIEDO, 2001, p. 496-497, Apud Pacini, p.02, tradução nossa). 17 el escritor estaba trabajando en ella desde 1945- tiene el significado de una directa inmersión en el con el aliento mítico de sus hechos extraordinarios (la recurrencia al nahualismo, al acervo mitológico de la cultura maya) hasta borrar los límites entre lo real y lo imaginario en una atmósfera visiblemente animista. Es la peculiaridad del discurso narrativo asturiano – y no sólo el contenido argumental mítico y mágico del relato – el que articula en Hombres de maíz una gramática magicorrealista, que anula las diferencias entre lo real y lo extraordinario, ubicándolos en un plano de igualdad semántica. (LLARENA, 2008, p. 130 Apud 8 Pacini, p.03) Esse romance de Astúrias é um reencontro da história da cultura ameríndia a partir dos seus mitos e criações sociais coletivas, recorrendo sempre às suas origens remotas e inserindo-se na cultura moderna ocidental que a cerca, mesmo que de forma velada. Abaixo, um relato mítico que se pode ler como uma interpretação do esplendor do povo Maia antes da chegada dos espanhóis e aquilo que se tornou posteriormente: Los «hombres de maíz» son los indios, según la cosmogonía indígena mayaquiché. En el Popol Vuh está escrito que cuando los Progenitores, Creadores y Formadores, Tepeu y Gucumatz, estimaron que había llegado el momento de hacer aparecer al hombre sobre la tierra unieron las mazorcas de maíz blanco y amarillo llevadas por los animales Yac, el gato salvaje, Utiú, el coyote, Quel, el papagayo, y Hob, el cuervo. El maíz entró entonces, por voluntad de los dioses, en la carne de los hombres formados y creados y se convirtió en su sangre. Después Ixumcané hizo nueve bebidas con mazorcas amarillas y mazorcas blancas molidas” de las cuales 9 proviene la fuerza y la musculatura de los hombres. (BELLINI, 2008, apud Pacini, p. 04) Essa é uma típica passagem em que a origem dos ameríndios é vinculada não somente ao reino animal, mas a uma planta que era a base de seus hábitos alimentares. Com relação à obra, em sua totalidade, fez-se marcante por assentar uma alegoria das consequências devastadoras da desintegração da cultura tradicional indígena ao denunciar a invasão das terras comunais dos ameríndios por colonos brancos, que promoviam a destruição do sistema de vida daqueles. 8 O escritor estava trabalhando nela desde 1945- tem o significado de una direta imersão no âmago mítico de seus feitos extraordinários (a recorrência ao idioma nahuátl, ao acervo mitológico da cultura maia) até diluir os limites entre o real e o imaginário em uma atmosfera visivelmente animista. É peculiaridade do discurso narrativo asturiano – e não só o conteúdo argumental mítico e mágico do relato – o que articula em Hombres de maíz uma gramática magico-realista, que anula as diferenças entre o real e o extraordinário, localizando- os em um plano de igualdade semântica. (LLARENA, 2008, p. 130 Apud PACINI, p.03, tradução nossa). 9 Os homens do milho são os índios, segundo a cosmogonia indígena mayaquiché. No Popol Vuh está escrito que quando os Progenitores, Criadores e Formadores, Tepeu y Gucumatz, concluiram que havia chegado o momento de fazer surgir o homem sobre a terra, uniram as espigas de milho branco e amarelo trazidas pelos animais Yac, o gato selvagem, Utiú, o coiote, Quel, o papagaio, e Hob, o corvo. O milho entrou por vontade dos deuses, na carne dos homens formados e criados e se transformou em seu sangue. Depois, Ixumcané fez nove bebidas com espigas amarelas e espigas brancas moídas das quais se origina a força e a musculatura dos homens. (BELLINI, 2008, apud Pacini, p. 04, tradução nossa). 18 Impotentes para se defender, eles recorriam à mitologia e à magia cujas manifestações são descritas em uma ampla amostra dentro das narrativas orais que, posteriormente, foram descritas em narrativas literárias de viajantes europeus ao novo mundo, sendo retomadas pelos escritores latino- americanos que buscavam produzir obras as quais representassem essas peculiaridades locais. Para deixar claro o sentido de alegoria ao qual nos referimos nesta análise, pois esse recurso de linguagem vai ser citado em outras partes da análise, tomemos por base o pressuposto defendido por Benjamin (1984, p. 37) ao dizer que alegoria é um recurso utilizado na linguagem para torná-la acessível a todos. No entanto, no seu sentido etimológico, a palavra também nos remete a outro nível de significação: dizer uma coisa para significar outra. Para o filósofo, a alegoria só é considerada válida quando o particular “só vale como exemplo do universal” (BENJAMIN, 1984, P. 183), pois uma imagem alegórica provoca uma viva impressão no espírito, daquela se estabelece uma relação convencional entre a imagem, que serve de ilustração, e seu significado, que se situa em camadas mais profundas do pensar. A alegoria representa mais do que a ilustração, mas a expressão, assim como a linguagem e a escrita, mantém seu caráter de signo. O simbólico, como afirma Benjamin (1984, p. 187), sustenta-se a partir de uma ideia em sua forma sensível, corpórea (escrita), e a representação alegórica, já consolidada como conceito, perpassa a ideia de processo de substituição (imagem). Ele opõe alegoria e ao símbolo como par dialético que engloba o nome e o signo. Essa distinção dá-se por aquela, diferentemente deste, ter um caráter momentâneo, uma vez que a alegoria se configura pela progressão e pelas sequências de momentos. Por isso, ela compreende em si mesma o mito. Para descrever a alegoria como procedimento de constituição de sentido, Benjamin (1984, p. 196- 198) expõe a arbitrariedade, cujo princípio se fundamenta na concepção de que a subjetividade em que “cada pessoa, cada coisa, cada relação pode significar qualquer outra.” Na alegoria, segundo esse pensador, não existe nenhuma liberdade simbólica de expressão, uma vez que ela é a figura de linguagem mais propensa à natureza e exprime a existência não somente humana, mas também em sua forma enigmática; a história biográfica de um indivíduo. É por esse barroquismo expressado no contexto mundano, história de sofrimentos e episódios de declínio, que a narrativa se torna direcionada a um passado e não a um futuro. É justamente esse olhar para o passado do paraíso e da queda – influência direta das raízes judaico-cristã –, que resulta o procedimento em que a obra de uma vida e de uma época é conservada, resguardada no seu transcurso histórico, justamente o feito de García Márquez ao construir a Macondo como imagem alegórica da América latina. Voltando ao fazer literário de Astúrias, a partir da composição, nota-se a preocupação em registrar o contraste entre a vida dos índios, em harmonia com a natureza, dedicados ao cultivo do 19 milho, e o materialismo dos brancos que só pensam em apresar e enriquecer, sem nenhum vínculo com a terra de suas explorações. Quando se confronta com essa dura realidade, os ameríndios se dão conta da perda do paraíso. Cada episódio da narrativa é autônomo e apresentado como fragmento da estrutura formal escrita, mas sem deixar de estar integrado ao conjunto. Alternando o tom de protesto e as ressonâncias líricas em uma mesma narrativa, Astúrias – mesmo empregando seus jogos de linguagens, sua presença mágico-mítica, seu barroquismo literário, sua versão primária sobre a figura dos ditadores latino-americanos – não foi reconhecido como pioneiro. Contudo, sua influência se prolongou àqueles que prosseguiram tanto na busca da linguagem autêntica latino- americana, quanto na composição do ditador como personagem principal de um contexto histórico bem presente e recente em um traslado criativo do real e do ficcional na feitura do romance, no qual as linhas tênues do real e do imaginário se acharam diluídas. Para refletirmos também o conceito de mito, tão presente na herança ameríndia e nas populações rurais da América espanhola e portuguesa, começamos com Mielietinsky (1987, p. 329), que afirma o mito como princípio criativo eternamente vivo, pois “a literatura está geneticamente relacionada com a mitologia”. Nesse sentido, o autor russo considera o conto maravilhoso e o epos heroico como formas de conservação e superação da mitologia. Ele discorre, ao longo da obra A poética do mito, sobre diversas explanações utilizadas do elemento mitológico na literatura, desde a Idade Média, partindo do paganismo, até a expansão territorial dos preceitos cristãos que fez o arcabouço de narrativas anteriores a esses inerte, mas não morto. No Renascimento, há uma reabilitação desses elementos míticos no campo literário, sendo amplamente utilizados como “arsenal de metaforicidade poética, uma fonte de temas e uma singular linguagem formalizada da arte” (Mielietinsky, 1987, p. 331). Ao mesmo tempo, ele observa que a partir dos séculos XVI-XVII criaram-se tipos literários não tradicionais de imensa força generalizadora, representativos exemplares de comportamentos universalmente humanos. Dessas composições, foram publicadas obras como Hamlet, D. Quixote, D. Juan e dentre outros, verdadeiros marcos da literatura universal. A partir do século XVIII até o inicio da metade do século XX, os temas tradicionais mitológicos foram abandonados e, em seu lugar, foi estabelecido um processo de distanciamento das relações da escrita que tinha a mitologia como sua base. No entanto, o autor russo ressalta que houve o surgimento de novas formas de tratamento literário com o elemento mítico, como a introdução de uma concepção antropocêntrica; dela, vai surgir o novo “mito burguês”, que se assenta na construção da nacionalidade, por meio da classe social burguesa. Esse vai constituir em um discurso de fundação histórico-social e, posteriormente, vai conceber a ideia de criar uma nova 20 mitologia capaz de traduzir o principio identitário entre a natureza e o espírito humano. As duas formas de relação entre a literatura e a mitologia vão, desse modo, ser verificadas posteriormente pelas correntes realista e romântica. É na obra mitológica romântica, oscilante entre o fantástico e o místico, que se descortinou como uma das veredas que levaram ao mitologismo no romance do século XX. Ela estabelece uma nova relação com o tempo, visão de mundo que passa a ser mitológica e seu tratamento passa a ser perceptível no nível do enredo. A maneira de narrar passa a ser voltada para a individualidade, um tempo anterior. Essa presença tanto do fantástico quanto do maravilhoso, principalmente em obras produzidas por latino-americanos, apontam elementos representativos dessa nova mitologia, sendo o fantástico inserido no cotidiano da existência das personagens. É também de bom alvitre destacar que a poética do mito não é uma refração a um retorno espontâneo e intuitivo do pensar mítico, mas uma atitude intelectual e filosófica com bases fundamentadas nos conhecimentos de culturas antigas, história, religião e teorias contemporâneas. Os latinos e afro-asiáticos, segundo Mielietinsky (1987, p. 433-434) optaram por uma forma de tomada do mito no realismo mágico, aparecendo na relação crítica-social somados aos elementos de tradição cultural a que ele chama de folclórico-mitológico local. Isso ocorreu porque “a coexistência e a interpretação, que às vezes chega à síntese orgânica de elementos historicistas e mitológicos, realismo social e folclore autêntico” foram inseridos em narrativas e possibilitados delas fazerem parte. O componente do mito se constitui, segundo Eliade (1972, p.60), como fenômeno de cultura quando analisado sob a perspectiva histórico-religiosa. Enquanto as grandes mitologias foram eternizadas por meio dos textos escritos, como,a mitologia dos gregos, as chamadas mitologias primitivas, pertencentes às sociedades ágrafas, foram conservadas pela via oral e pelos rituais durante tempos imemoriais. Essas foram registradas pelos primeiros viajantes, missionários e etnógrafos enviados para conhecer as peculiares formas de vivências das comunidades que habitavam o continente americano. Nessas sociedades ameríndias, os mitos estão vivos, são eles mesmos que sustentam e justificam todo o código comportamental de atividades e vida humana, conferindo-lhes significação e valor à existência. Embora haja diversas visões sobre o que poderíamos analisar como sendo a definição do que é mito, concordamos com o que Eliade (1972, p. 09) expõe quando afirma que “o mito narra como, graças às façanhas dos entes sobrenaturais, uma realidade passou a existir.” Constitui-se, portanto, como discurso fundador de uma criação, pois algo passou a ser e foi produzido. A ação dos entes sobrenaturais e divinos criou o homem e esse ser vivente é o que é hoje: mortal, cultural e sexuado. Nessa perspectiva, o mito sempre se refere a uma história 21 verdadeira para essas comunidades étnicas, o qual se difere do elemento colonizador e pode ser comprovado, a exemplo da morte, que assola todos os homens, pois todos eles morrem. Então, podemos afirmar que “conhecer os mitos é aprender o segredo da origem das coisas. Em outros termos, aprende-se não somente como as coisas vieram à existência, mas também onde encontrá-las e como fazer com que reapareçam quando desaparecerem” (ELIADE, 1972, p.14). Ou seja, quando nos é possibilitado conhecer a origem das coisas, isso nos propicia a condição de dominá-las e manipulá-las. Esse conhecimento não é externo nem abstrato, e sim vivido pelos eventos, sejam rememorados, sejam reatualizados. O indivíduo evoca a presença das personagens dos mitos e torna-se contemporâneo delas, uma vez que essas aludem que o mundo, o homem e a vida têm origens sobrenaturais, e que essa história é exemplar, significativa e deve ser preservada por remeter-nos a um retorno às origens. O mito, portanto, é um ingrediente vital de civilização humana; longe de ser uma fabulação vã, ela é o contrário, uma realidade viva à qual se recorre incessantemente. Não é absolutamente uma teoria abstrata ou fantasia artística, mas uma verdadeira codificação da religião primitiva e da sabedoria prática. (ELIADE, 1972, p. 19) Nisso, os mitos delineiam a cosmogonia pelos discursos fundadores de como surgiu o cosmo. Essa, por sua vez, constitui-se de um modelo exemplar de toda situação criadora: tudo o que o homem faz, repete-se de alguma maneira. O feito, o gesto arquetípico do deus criador na criação do mundo, pois o mito codifica o pensamento, estabelece regras de comportamento (ritos) e, por meio delas, mantém a ordem cósmica e social que são passados de geração a geração pelas narrativas orais até chegar ao registro escrito como identidade constituída de uma visão de mundo, que nos remete aos tempos iniciais nos quais não havia os usos e costumes do elemento externo em terras ameríndias. 2.2 O real maravilhoso de Alejo Carpentier Outro escritor que esteve em contato com as vanguardas europeias do século XX, mas que fugiu da influência surrealista, pois intuiu e teve consciência para criar para além da realidade diferenciada da América e sua história, foi o cubano Alejo Carpentier (La Habana, 1904 – Paris, 1980). Esse escritor transcendeu o que foi proposto por Astúrias e ultrapassou a composição dos jogos literários dos narradores dos anos 1940 e 1960 por ter sido aquele que conseguiu ascender a 22 um ponto ideal intermediário, em que cada passo inovador na composição literária ocorria pela exigência do desenvolvimento argumentativo dentro da obra. Sua marca predominante foi fazer experimentações de linguagem com a categoria Tempo e as marcas da Espacialidade na narrativa. Ao construir uma história e a reconstruí-la em um presente que descamba em um passado e este, por sua vez, assemelha-se a um futuro, inovou nos recursos de quebra de linearidade dentro da narrativa. Um presente individual que se bifurca por vários presentes (passados) históricos, dialogando com a circularidade e o paralelismo paradoxal da existência humana cujo presente se apresenta dividido e comprimido na fábula. Seus romances são exemplares maravilhosos de jogos temporais, nos quais podemos detectar o tempo mítico, o tempo de origem, o histórico-dialético e o lúdico-psicológico. Ao inteligentíssimo manejo do tempo, Carpentier aludia que este era história e quando o indivíduo, no seu micromundo, entra em conflito com o seu fluxo, há uma ruptura em sua consciência e em sua dimensão histórica. Sua escrita subversiva negava-se a colocar o homem como centro vital de sua história coletiva, pois sua existência transcendia e seria muito maior e conflituosa à medida que se imbricava no contexto sóciohistórico. Duas categorias permearam seus escritos: o Barroco e o Real Maravilhoso, o último já advindo do primeiro. A América crioula, barroca desde a sua gênese, não poderia receber outro qualificativo que não seria o de maravilhoso. Esse termo não é tomado por ele no sentido elementar, mas de cunho mais profundo, pois mescla a estética do belo e do feio que se encontra com uma forma de ser particular e autêntica na América. Partindo dessa compreensão acerca do maravilhoso, o Surrealismo não era, para o autor, considerado como tal, por ser fabricado intencionalmente. Carpentier, quando questionado sobre o que seria esse maravilhoso, afirmava-o como sendo “lo real maravilloso, en cambio, que yo defiendo y es lo real maravilloso nuestro, es el que encontramos al estado bruto, latente, omnipresente en todo lo latinoamericano. Aquí, lo insólito es cotidiano, 10 siempre cotidiano. Por isso, mesmo não havendo estranheza nem recusa em referir-se a fenômenos sobrenaturais, nem insólitos, pois é algo inerente ao viver diário das populações ameríndias, passa a fazer parte no contato social do elemento do colonizador. Comienza a serlo de manera inequívoca, cuando surge de una inesperada alteración de la realidad, (el milagro), de una revelación privilegiada de la realidad de una iluminación inhabitual o singularmente favorecedora de las inadvertidas riquezas de la realidad, de una ampliación de las escalas y categorías de la realidad, percibidos con particular intensidad en virtud de una exaltación de espíritu que lo 10 O real maravilhoso, no entanto, que eu defendo e é o real maravilhoso nosso, é o que encontramos em estado bruto, latente, onipresente em todo latino-americano. Aqui, o insólito é cotidiano, sempre cotidiano. (CARPENTIER, 1949 apud PEÑA GUTIÉRREZ, 1987, p. 222. Tradução nossa). 23 11 conduce a un modo de ‘estado límite’. (CARPENTIER, 1949 apud PEÑA GUTIÉRREZ, 1987, p. 222) Os seis aspectos mais iminentes da escrita de Carpentier, como o barroco, o real maravilhoso, a unidade e a universalidade da cultura latino-americana, o tempo como história e consciência e a distinção entre América e Europa nas formas de criação artística literária, fizeram seu marco definitivo nas produções latinas de 1949 em diante. García Márquez afirmou, em entrevistas, ter aprendido muitas facetas da escrita de Carpentier e empregou-as na criação de Cem Anos de Solidão e na de O outono do Patriarca, pois esse escritor abriu, com o seu Realismo, centrado no Maravilhoso, muitas veredas aos seus contemporâneos e sucessores os quais o escritor García Márquez se mostrou, no seu fazer literário, um dos seus leitores e seguidores. 2.3 O realismo fantástico e Juan Rulfo. À diferença do Realismo mágico-mítico, que busca referências na realidade americana segundo as quais as leis naturais racionais, ocidentais, aparecem deslocadas e à do Realismo Maravilhoso Carpenteriano, que busca e encontra o insólito na própria natureza da realidade, o Realismo fantástico alude a todos os contatos com a coerência racional, com o maravilhoso em estado bruto, com o automatismo psíquico (dos surrealistas) e aproxima-se das formas imaginárias puras. Certamente, o fantástico é uma violação das leis naturais, mas não por causas mágicas, nem míticas, nem automáticas, nem mescla uma ordem real a outra fantástica, fantasiosa. Nele, apresenta-se uma arbitrariedade cujo fim é produzir o assombro, o entretenimento, ou uma moral ensinada, perpassada e pré-determinada. E sempre o elemento do fantástico está atrelado a imagens reais, porém concebidas a partir de uma ordem irreal para a racionalidade e sempre contendo uma proposta utópica nessas imagens fantásticas. O mundo de Alice no país das maravilhas é fantástico; a maioria dos contos de Hans Christian Andersen também. O paradoxo do fantástico sempre foi a “realidade”, cuja lógica, às vezes, apresenta-nos mais palpável que a própria realidade concreta, cotidiana. Nela, com grande 11 Começa a sê-lo de maneira inequívoca, quando surge de uma inesperada alteração da realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da realidade, de uma iluminação não habitual ou singularmente favorecedora das inadvertidas riquezas da realidade, de uma ampliação das escalas e categorias da realidade, percebidas com particular intensidade em virtude de uma exaltação de espírito que o conduz a um modo de ‘estado limite’. (CARPENTIER, 1949 apud PEÑA GUTIÉRREZ, 1987, p. 222. Tradução nossa). 24 naturalidade, surge uma nova ordem – com grande coerência e verossimilhança –, e todos terminam aceitando-a. No contexto latino-americano, a obra mais marcante desse estilo foi Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo, que exerceu grande influência direta sobre García Márquez. Um romance curto com vários traços de seus contos anteriores, nos quais podemos destacar a economia narrativa, linguagem sincrética entre o coloquial camponês e a erudição de seu criador, atmosfera densa e pessoal, além de outras peculiaridades. La obra de Rulfo inaugura algunas de las claves que van a caracterizar a la novela hispanoamericana de éxito internacional: la creación de un espacio mítico (para el autoconocimiento e para la autoflagelación) y la ruptura radical con las estructuras del realismo. Un estilo narrativo conciso, ascético, directo, sin concesiones ni distingos, introduce el lector en un mundo alucinante, donde el detalle familiar se enlaza de inmediato con una fantasía delirante. Comala es un reino maldito, el llano en llamas es una tierra inhóspita e invisible. Ambos son símbolos complejos de la frustración que convierte la vida colectiva en un infierno de violencia y la 12 individualidad en un abismo de pecados. (PEDRAZA JIMÉNEZ; RODRÍGUEZ CÁCERES, 2008, p.711) Foi um grande salto em sua apropriação da realidade dentro da composição narrativa, pois sua abordagem é sobre mortos como se estivessem vivos. A história, ao ser narrada, revela que quem conta é um morto e a sua interlocutora, uma morta; a ela narra que os vivos do povoado, onde perpassa a ambientação, são fantasmas de um passado que jamais deixou de ser presente. No enredo, o fantástico agiganta-se em toda a sua expressão, sem mágicas. Um romance de mortos- vivos, e depois de narrada a história, seus narradores desaparecem como fantasmas que são, marcando assim a literatura hispano-americana com sua linguagem de vozes silentes, sua atmosfera de mistérios, seus monólogos, sua rigorosidade sequencial, sua dramatização humana e sua luta contra a solidão, tema que García Márquez vai explorar com muita precisão em Cem Anos de Solidão. Existe muita dificuldade para definir o território do fantástico e dos temas que o compõe, bem como suas fronteiras são indefinidas, porque, muitas vezes, tomam-se por referente os domínios do poético ou do trágico. O teórico e filósofo Louis Vax (1965, p. 4) aborda o termo 12 A obra de Rulfo inaugura algumas das chaves que vão caracterizar o romance hispano-americano de êxito internacional: a criação de um espaço mítico (para o autoconhecimento e para a autoflagelação) e a ruptura radical com as estruturas do realismo. Um estilo narrativo conciso, ascético, direto, sem concessões nem distinções, introduz o leitor em um mundo alucinante, aonde o detalhe familiar se enlaça de imediato com uma fantasia delirante. Comala é um reino maldito, a planície em chamas é uma terra inóspita e invisível. Ambos são símbolos complexos da frustração que transforma a vida coletiva em um inferno de violência e a individualidade em um abismo de pecados. (PEDRAZA JIMÉNEZ; RODRÍGUEZ CÁCERES, 2008, p.711, tradução nossa). 25 Fantástico para categorizar o que ele acreditava ser um subgênero literário do que ele considera sendo o gênero Maravilhoso, como nos contos populares unidimensionais. Para ele, o fantástico é constituído de uma escrita que nos apresenta pessoas como nós mesmos, situados na presença do inexplicável, mas dentro de uma dimensão de mundo real. É justamente entre as dimensões do real e do possível, em contraposição ao irreal e impossível, que o fantástico estabelece sua gênese para esse teórico. A origem dessa tipologia textual remonta aos romances góticos nos quais converge o aterrador, os castelos misteriosos, encantados, os seres não viventes, os ambientes inquietantes concebidos do imaginário, portanto, irreais. Por isso, a arte do fantástico é aquela que introduz terrores imaginários no campo do mundo real, visto como ela forja sua antinomia na realidade cotidiana que nos cerca e não nos perturba, fazendo irromper o fenômeno do sobrenatural, pois nela não há fantasmas. No hace mucho tiempo, los campesinos reunidos en torno al fuego, en las veladas de invierno, escuchaban, con delectación y angustia, historias de aparecidos y hombres lobos, de vampiros y sujetos maléficos. Y son precisamente los mismos temas de aquellas narraciones tradicionales los que aparecen en los cuentos modernos. (VAX, 1965, p. 07) Faz-se necessário, então, crermos no impossível, pois o fantástico é justamente essa penetração do elemento sobrenatural em um mundo sujeito à razão. O horror e o macabro têm lugar no mundo natural e as narrações transcorrem com toda a naturalidade nos relatos fantásticos. Até os dias atuais, vemos a literatura de entretenimento sendo assolada por vampiros, lobisomens, fantasmas, anjos caídos e dentre outros. Aqueles estariam mais aparentados com o criminoso e o maníaco sexual do que com as divindades tutelares presentes nos mitos de fundação. Já estes refletiriam nossas tendências que aspiram a gozar liberdades, libertas de senso e amarras sociais. Nas narrações fantásticas, monstro e vítima deixam entrever a dicotomia do nosso próprio ser, nossos desejos inconfessáveis e o horror que isso nos inspira. 13 “El más allá ” do fantástico, na realidade, está muito próximo e “se revela, en los seres civilizados que pretendemos ser, una tendencia inaceptable para la razón, nos horrorizamos como si 14 se tratara de algo tan ajeno a nosotros que creemos venido de más Allá. ” (VAX, 1965, p.11). O monstro que atravessa paredes nos alcança onde quer que estejamos, pois o monstro somos nós 13 “Más allá”, ou “mundo de allá” é o termo que designa, no idioma espanhol, o mundo dos mortos. 14 Revela-se, nos seres civilizados a que pretendemos ser, uma tendência inaceitável para a razão, horrorizamo-nos como se se tratasse de algo tão distante do que nós que acreditamos vindo do além. Tradução nossa. 26 mesmos; está adormecido dentro de nosso ser, enquanto podemos fingir que ele está fora de nossa existência. No fantástico, o sobrenatural se faz necessário para que a razão se escandalize. A tragédia que assola o ser humano prisioneiro do destino, apesar de sê-lo, conserva sua dignidade e integralidade humana. A personagem fantástica é aquela que transcendeu seu lado humano ou se entregou a seu lado bestial, sem qualquer crise de consciência, e deixa os conflitos emocionais de lado para dar vazão ao júbilo selvagem. O horror que nos atemoriza é justamente o que nos atrai, pois, segundo Vax (1965, p. 16), torna positivos os sentimentos negativos. Os leitores da literatura fantástica se deixam enfeitiçar, não olham desde uma perspectiva externa, mas fazem mais uso do temor do que da inteligência. Não é outro mundo o que se lhes apresenta na escrita, é o seu próprio universo que, paradoxalmente, metamorfoseia-se, corrompe-se e transforma-se em outro. Assim como os monstros habitam os seres e as coisas que nos rodeiam, o artífice das letras cria-os e reprodu-los por meio do uso da linguagem. O ser bestial do fantástico é, dessa forma, aquele que se submete à razão para fazê-la servir aos seus propósitos maléficos, como nas obras de Kafka e Lovecraft. O fantástico também tem a característica de fazer o homem ver o seu duplo fora dele quando esse se,desdobra não somente no seu interior, mas também de forma externa. Diz a tradição popular que, se alguém encontrar seu duplo, morrerá em breve. O mesmo fenômeno à luz da ciência se configura em lesões cerebrais que, por sua vez, são diagnosticadas como transtornos mentais. Seja qual for o ponto de análise, o importante é que o elemento do fantástico, ao surgir, torna-se o escândalo da razão, inicia os embates entre o visível e o invisível. O horror e o sobrenatural se alimentam desse impasse entre razão teórica e razão prática, dupla violação das leis da natureza e da moral. O fantástico não se esforça para tratar o impossível pelo simples fato de causar espanto, mas pela sua condição de impossível de lidar com o absurdo e o contraditório, pois ele, quando concretizado, perde seu caráter de fantástico, fantasioso. É por essa questão que a temática dos mortos que vivem continuam no âmbito do fantástico, pois contradiz o possível, e isso faz oscilar nossos pés, a terra firme das nossas certezas. Para Todorov, o fantástico é um gênero independente do maravilhoso e os temas daquele se aproximaram dos pressupostos estabelecidos pela psicanálise, sendo o teórico o primeiro a considerá-lo um gênero literário a partir de uma visão estruturalista. Após analisar algumas obras do gênero fantástico, ele concluiu que a função do sobrenatural é subtrair o texto à ação da lei e, por meio disso, transgredi-la. Ele seria o meio pelo qual se cria a possibilidade de livre expressão de temáticas consideradas tabus, e elas passam a receber uma roupagem de fenômenos sobrenaturais. 27 Essa espécie de disfarce tornou-se desnecessário com o surgimento da psicanálise, pois a literatura fantástica passou a trabalhar com o mesmo objeto de estudos das pesquisas em psicologia, demonstrando que tal relação é bastante clara da obra fantástica com as imagens produzidas pelo inconsciente humano. Também, para ele, as formulações míticas são originadas no imaginário coletivo universal, cujos dramas existenciais põem em destaque questões humanas como um todo e sua condição de existência. Além disso, Todorov defende a ideia de que a literatura fantástica é um gênero importante e de que “não reconhecer a existência dos gêneros, equivale a pretender que a obra literária não mantenha relações com as obras já existentes. Os gêneros são precisamente esses elos mediante os quais a obra se relaciona com o universo da literatura.” (TODOROV, 1981, p.15). O fantástico é concebido por ele como a vacilação experimentada por um ser que não conhece nada mais além do que as leis naturais e, ao ser confrontado por um fenômeno sobrenatural, não pode explicar tal acontecimento pela razão: ou é alucinação dos sentidos ou é produto da imaginação. Ou se é fantástico, é maravilhoso, também posto por Todorov como estranho. O conceito é justamente definido por meio dos embates entre real e imaginário. “ou o diabo é uma ilusão um ser imaginário, ou existe realmente como outros seres, com a diferença de que rara vez o encontra.” (TODOROV, 1981, p. 15). O fantástico, assim, ocupa o espaço dessa incerteza e, ao escolher entre uma e outra resposta, iremos, em definitivo, deixar o campo do fantástico para adentrar o campo do maravilhoso ou estranho. Para Todorov, “o fantástico não dura mais que o tempo de uma vacilação comum ao leitor e ao personagem, que devem decidir se o que percebem provém ou não da ‘realidade’, tal como existe pela opinião corrente” (TODOROV, 1981, p.24). Ele também ressalta a necessidade de provocar o efeito, causando incerteza, perplexidade e medo, pois é na inquietude provocada que está a fissura da dúvida nas convicções do real; é nesse campo fértil da imaginação que o sobrenatural floresce e é um elemento de suma importância para as construções narrativas. Outro crítico que discorre sobre o gênero literário fantástico é David Roas em seu artigo La amenaza de lo fantástico, abordando-o pelo viés de sua principal característica: o elemento do sobrenatural. Esse, então, é tomado por referente no sentido amplo em que designa tudo aquilo que transcende a realidade da compreensão humana, pois para ele “a literatura fantástica é o único gênero que não pode funcionar sem a presença do sobrenatural” (ROAS, 2001, p. 08). O sobrenatural se constitui então uma transgressão às leis, que organizam nossa realidade e compreensão de mundo, aquilo que não é explicável, que não existe segundo os postulados dessas normas. Para que a fábula narrada seja considerada fantástica, deve-se criar uma realidade similar à vivência daquele que lê, em que o espaço e o ambiente vão desassossegar a estabilidade desse leitor. 28 É justamente por isso que o elemento do insólito vai ser sempre uma ameaça para essa realidade, que sempre acreditamos ser governada por leis imutáveis e rigorosas. Para esse tipo específico de literatura, o fantasma é um dos recursos básicos das composições narrativas por eles representarem o Outro, o não humano. Há, nesse recurso, a transgressão das leis físicas, visto que um ser que retorna dos mortos e para o qual não existe o tempo – está condenado a cumprir sua existência por toda a eternidade –, nem o espaço – sua forma etérea atravessa paredes, portas, acompanham pessoas por distintas distâncias, como o caso do fantasma de Prudêncio Aguillar em Cem Anos de Solidão. Ele seguiu José Arcádio Buendía até Macondo, chegando diante do Buendía com aparência envelhecida após décadas de peregrinação em busca do patriarca da estirpe.. Isso muito o perturbou, pois não foi a aparição do vivo-morto que o surpreendeu, mas a sua aparência que lhe chamou a atenção, visto que assim haveria uma outra morte após a morte para se conjecturar, quem sabe. Por essas e outras características, o fantasma é considerado um protótipo de personagem significativo na narração fantástica. Outra característica do fantástico é que ele provoca a oscilação das nossas certezas perante a percepção da realidade diferente da nossa, de modo que coloca, inclusive, a dúvida sobre a nossa própria existência; o real passa a ser conjecturado como possível irrealidade, enquanto o irreal toma o plano de uma realidade cada vez mais possível, iluminando uma área da nossa mente na qual a razão tende a fracassar, uma completa inversão dentro do campo narrativo. Para que o fantástico se destaque, faz-se necessário que surja esse conflito entre o contexto situacional em que ocorrem as ações da narrativa (realidade ficcional, análoga à nossa) e a irrupção do fenômeno sobrenatural nessa realidade. A fim de que esse efeito seja alcançado, vai depender da forma como consumimos as histórias enquanto leitores, e a ideia de realidade que temos construída desde nossa percepção como sujeitos históricos, sociais e culturais. Na literatura latino-americana do século XX, com o surgimento do realismo maravilhoso, o elemento do fantástico apresentou-se como componente imprescindível para que se diluísse a fronteira entre ambos os gêneros, pois o realismo maravilhoso possibilita a coexistência não problemática entre o real e o sobrenatural em uma esfera de realidade semelhante a nossa. Outro fator primordial para que fenômenos sobrenaturais ressaltem as condições visando à naturalização do fantástico é o contexto social no qual transcorre a narrativa, pois “toda la representación de la realidad depende del modelo de mundo de que una cultura parte: realidad e irrealidad, posible e 15 imposible se definen en relación con las creencias a las que un texto se refiere ” (SEGRES Apud Roas, 2001, p.15). Nessa perspectiva, a visão de mundo de cada pessoa se constitui por fatores 15 toda a representação da realidade depende do modelo de mundo da qual uma cultura parte: realidade e irrealidade, possível e impossível se definem em relação com as crenças a que um texto se refere. Tradução nossa. 29 culturais presentes no decorrer de sua formação e isso influencia diretamente tanto na produção quanto na recepção do texto. Roas (2001, p. 17) ainda define a diferença existente entre o realismo fantástico e maravilhoso como sendo o último um aspecto sobrenatural do primeiro – desde a premissa do olhar de quem lê –, não se configura nunca como uma exceção das leis naturais, mas como algo cotidiano e corriqueiro no campo do segundo, o realismo maravilhoso. A participação do leitor é, portanto, outro fator importante para a existência do fantástico, pois ele vai depender justamente daquilo que conhecemos e do que consideramos real. E para isso, faz-se necessário considerarmos a questão cultural quando nos defrontamos com as ficções fantásticas. Como o fantástico se configura como ruptura do sobrenatural no mundo real e não há condições de explicá-lo de modo racional, o discurso do primeiro também se configura em uma relação intertextual constante com o outro discurso, que é a realidade – nela, reside o fator da construção cultural, o modelo interior de mundo e a localização de seu criador. Ainda podemos ressaltar que características da literatura fantástica oferecem temáticas as quais colocam em xeque a nossa percepção de realidade. Para que haja uma fissura nessa realidade, faz-se necessário que o texto literário apresente um mundo mais real possível, que consiga servir como parâmetro comparativo com o fenômeno sobrenatural, ou seja, que ocorra o choque da aparição do sobrenatural em confronto direto com essa realidade. Portanto, o realismo é um fator de necessidade estrutural de todo texto fantástico, como afirma Roas (2001 p.24-26). Para tanto, o escritor de literatura fantástica reproduz técnicas do realismo a fim de que o texto possa estabelecer a relação com seus leitores de ser sempre acreditável e possível de ocorrer. Por isso, esse tipo de literatura nos obriga a ler referencialmente os textos. Inscrevendo-se na realidade, o fantástico se apresenta também como um atentado àquela que o cerca, tendo em vista que a verossimilhança é mais um elemento que o gênero exige na sua construção para o desenvolvimento narrativo. Isso se reflete nos relatos realistas que servem de base para tornar possível uma transformação, uma transgressão dessa realidade pelo acontecimento inexplicável. Esse elemento, vale salientar, também possibilita estabelecer a divisória entre realidade e fantástico. 2.4 A obra Cem Anos de Solidão A obra Cem Anos de Solidão inscreve-se nos realismos supracitados, possui características perceptíveis dos três: os realismos mágico-mítico, maravilhoso e fantástico. Segundo 30 16 Chiampi (1980, p.19), o conceito de realismo mágico , termo pelo qual os realismos imaginários ficaram conhecidos por aqui no Brasil, consiste em “um vigoroso e complexo fenômeno de renovação ficcional” surgido na primeira metade do século XX e consiste em um achado crítico e interpretativo das produções literárias latino-americanas, que cobria a passagem da estética realista e naturalista dos romances até então produzidos para uma nova forma de visão “mágica” da realidade. As principais características desse fenômeno na literatura, descritas por Irlemi Chiampi (1980, p.21), são: a desintegração da lógica linear de consecução e consequência do relato, por meio de cortes na cronologia fabular, a multiplicação e simultaneidade dos espaços da ação; a caracterização polissêmica dos personagens e atenuação da qualificação diferencial do herói; o maior dinamismo nas relações entre narrador e o narratário; o relato e o discurso, por meio da diversidade das focalizações, da autorreferência e do questionamento das instâncias produtivas da ficção. Segundo Chiampi, o maravilhoso provoca uma equivalência absoluta entre o real e o extraordinário por meio de uma paulatina naturalização e persuasão narrativa que concebe status de verdade ao que não existe. Dessa forma, o realismo maravilhoso desnaturaliza o real e naturaliza o insólito, possibilitando que o ordinário e o extraordinário coexistam na mesma representação de mundo. Así, los hechos son presentados al lector como si fueran algo corriente. Y el lector, contagiado por el tono familiar del narrador y la falta de asombro de éste y de los personajes, acaba aceptando lo narrado como algo natural: el realismo maravilloso revela que la maravilla está en seno de la realidad sin problematizar hasta la paradoja de los códigos cognitivos y hermenéuticos del público. Un perfecto ejemplo de ello es Cien Años de Soledad (1967), la célebre novela de Gabriel 17 García Márquez. (ROAS, 2001, p.12) Essas novas técnicas surgem como formas para constituir uma imagem plurivalente do real, pois o narrador adota uma nova atitude diante da realidade. E essa forma de abordar a 16 Preocupamo-nos em fazer referência ao explicitado antes: Os realismos mágico-mítico, maravilhoso e fantástico estão dentro da categoria Realismos Imaginários no Manual de la literatura latino-americana. Consideramos a obra Cem Anos de Solidão inscrita nos realismos maravilhoso e fantástico. Chiampi aborda a vertente do realismo mágico para chegar até ao real maravilhoso, não sendo eles conceitos díspares, mas análogos. 17 Assim, os acontecimentos são apresentados ao leitor como se fosse algo corriqueiro. O leitor, contagiado pela maneira familiar de o narrador tecer o fio narrativo e pela falta de assombro desse e dos personagens, acaba aceitando o primeiro como algo natural: o realismo maravilhoso revela que a maravilha está no seio da realidade sem problematizar até o paradoxo dos códigos cognitivos e hermenêuticos do público. Um perfeito exemplo disso é Cem Anos de Solidão (1967), o célebre romance de Gabriel García Márquez. (ROAS, 2001, p.12. Tradução nossa.) 31 realidade de uma maneira mais complexa, muitas vezes esotérica e lúcida diante de descrições do sobrenatural como algo cotidiano e corriqueiro, é identificada genericamente como magia. A magia é a arte ou saber que domina os seres ou forças da natureza, por meio de fórmulas, práticas ou efeitos contrários às leis tidas como naturais, sob o signo de um determinado conhecimento. A realidade se torna um símbolo, cujo sentido devemos desvendar e essa busca pelo significado, de símbolo em símbolo, ocorre até que o sujeito sofra um processo de metamorfose gradativa (tal como ocorre com as borboletas), alcançando o pleno saber que se opõe ao que abalizamos como “civilizado” e racional. Tradicionalmente, o maravilhoso é, na criação literária, a intervenção de seres sobrenaturais, divinos ou legendários (deuses, deusas, anjos, demônios, gênios, fadas, etc.) na ação narrativa ou dramática. É identificado, muitas vezes, com o efeito que provoca tais intervenções no ouvinte ou leitor (admiração, surpresa, espanto, arrebatamento). Seria, por sua vez, o nosso medo do sobrenatural, do desconhecido, atávico e inconsciente, gerado pela cisão entre o real e o imaginário. Esse elemento do fantástico, do inusitado, gera reflexões em torno da arbitrariedade da razão, pois seu possível é bem improvável, causando uma rusga nas convenções culturais ao deixar a dúvida no leitor que aceita esse contrato de se deparar com essa cissura no transcorrer da leitura. Assim, o efeito do real construído no discurso é simultaneamente desconstruído pelo efeito do mágico. Cem Anos de Solidão é um universo confeccionado de uma forma complexa e exuberante, cujos ingredientes somente poderiam configurar uma unidade harmoniosa dentro do gênero literário Romance. Exige do leitor uma atenção cuidadosa para entender a intrincada árvore genealógica dos Buendía, visto que os nomes das personagens repetem-se e suas existências são ligadas primordialmente ao povoado de Macondo. Esse aldeamento, fundado por José Arcádio Buendía e sua prima e esposa Úrsula, surge do nada e se finda consumido pelas areias, ventos e esquecimento, assim como as vidas de sua população e a estirpe da família, no mesmo plano de término da narração. Os personagens são assolados por duas coisas primordiais: a solidão e a busca pelos prazeres. Suas paixões vividas sequer são arrefecidas pelo tabu social e religioso que diz respeito às relações incestuosas dentro do núcleo da família dos Buendía. Com o passar do tempo (não o cronológico, porém mítico, cíclico), vai-se desenvolvendo o microcosmo da família patriarcal a partir do momento em que seus fundadores passam a sentir a necessidade de nomear as coisas para 18 não as esquecer. 18 Durante a enfermidade da insônia, que abordaremos mais adiante, as pessoas estavam esquecendo como eram os nomes das coisas, objetos, pessoas, etc. e, para que isso não ocorresse, fez-se necessário o uso da linguagem escrita, por meio de etiquetas, com o objetivo de fixar e não esquecer completamente suas existências. 32 No início, Macondo é uma aldeia solitária, rústica, mas cresce, conhece o apogeu e a prosperidade ao entrar em contato com o mundo exterior, como diversas sociedades humanas. E como elas, também chega ao período de decadência e do extermínio. Dois grandes acontecimentos marcam a história dentro da narrativa dessa comunidade: a disputa partidária entre conservadores e liberais, que descamba em uma guerra civil na qual um dos personagens mais marcantes, o coronel Aureliano Buendía, participou ativamente; e a instalação de uma companhia norte-americana de cultivo e exportação de bananas. A companhia bananeira é uma parte da narrativa bastante tensa pelos conflitos trabalhistas e, no desenrolar dos fatos narrados e o aumento dos conflitos, descamba na matança dos grevistas. Depois da retirada da fábrica da redondeza da cidade, o povoado é lançado na decrepitude e, novamente, no seu isolamento inicial. Nessa parte da narrativa, o personagem em destaque é José Arcádio Segundo, sobrevivente do massacre grevista e é na voz dele que o evento é exposto. Essa maravilha da imaginação criativa mescla questões de ordem social com toda a sorte de elementos do fantástico e inverossímil. Destaca-se, pois Junto a la magia y el alquimia, tienen cabida los inventos que trae el gitano Melquíades (el catalejo, la lupa, el imán) cuyos secretos persigue obsesivamente José Arcadio. Estamos ante una epopeya moderna, que no pierde en ningún momento el contacto con la realidad americana. Presenta una estructura abierta, 19 pero construida a base de componentes cíclicos. (PEDRAZA JIMÉNEZ; RODRÍGUEZ CÁCERES, 2008, p.700 - 701). Essa magnífica acumulação de acontecimentos, distribuídos em diversas micronarrativas dentro da unidade da obra, escritos em uma prosa fascinante, o ritmo de Mil e uma noites dessa esplêndida fabulação prende e conquista o leitor, dando-lhe variadas referências de diversas obras cujos modelos foram atualizados e retomados na sua composição narrativa. Essa ciclicidade não é circular, mas elíptica, em que predomina uma estética de repetição e do ineditismo da forma. Nessa composição, a aparente igualdade não esconde a diferença, mas institui a diferença sem anular a semelhança. Mas, entre todas [as obras literárias contemporâneas] uma já alcançou, em várias línguas, uma fama não só literária, mas popular, talvez por ser a obra prima deste período[as letras contemporâneas na América Latina], Cien años de soledad, de 19 Junto à magia e a alquimia, tem espaço os inventos que traz o cigano Melquíades (o astrolábio, a lupa, o imã) cujos segredos perseguem obcessivamente José Arcádio. Estamos ante a uma epopeia moderna, que não perde em nenhum momento o contato com a realidade americana, pois apresenta uma estrutura aberta, porém construída à base de componentes cíclicos. (PEDRAZA JIMÉNEZ; RODRÍGUEZ CÁCERES, 2008, p.700 – 701, tradução nossa). 33 García Márquez. É um livro de amor e imaginação. Tudo está nele: história e mito, protesto e confissão, alegoria e realidade, e tudo é contado com uma velha arte que quando aparece realmente vence as fórmulas literárias, que tanto é dom quanto obra da inteligência e do espírito, o velho segredo da narração que uma vez mais 20 nos cativa. (MARTÍNEZ, 1979, p.81) Constituída a partir das influências intertextuais presentes na tragédia grega de Sófocles (Édipo Rei), nas ações da personagem Penélope (da Odisseia) no teatro de Shakespeare (Hamlet e a introdução do fantasma na narrativa), na tradição judaico-cristã (a terra prometida bíblica e a mitologia imagética católica), nos relatos dos viajantes sobre o novo mundo (a América dividida e, posteriormente, explorada pelos povos espanhóis, portugueses e ingleses ao norte do continente), passando pela mitologia, superstições e tradições culturais das civilizações pré-colombianas Astecas, Maia e Inca e suas visões de mundo. 3 IMAGEM, CULTURA E REALISMOS IMAGINÁRIOS A obra do discurso é distinta, mesmo que ela seja análoga a outras, especificamente o discurso científico, pois coloca em destaque a relação existente entre sentido explícito e sentido implícito, em que o primeiro diz respeito à linguagem cognitiva e o segundo, à linguagem emotiva. 21 Para Ricoeur e a tradição positivista, “a literatura é o uso do discurso em que várias coisas se especificam ao mesmo tempo e onde o leitor não é intimidado a entre elas escolher. É o uso positivo e produtivo da ambiguidade”, por isso o leitor é sempre um agente ativo na interpretação daquilo que ler. Quando lemos as narrativas em seus diversos gêneros literários – sejam contos, romances ou poesias, como as imagens aludidas por elas –, essas leituras presentes fluem e atraem a nossa percepção e imaginação como fontes de escape, fissuras no tecido da realidade que nos rodeia, que nos motivam, inspiram-nos e despertam-nos o desejo de sermos melhores. Isso ocorre, segundo Manguel (2011, p.06), porque elas “são símbolos, sinais, mensagens e alegorias ou talvez sejam apenas presenças vazias que completamos com nossos desejos, experiências, questionamentos e remorso. Qualquer que seja o caso, as imagens, assim como as palavras, são a matéria de que somos feitos”. Do ponto de vista formal, as narrativas existem no tempo e as imagens, no espaço. A imagem dá origem a uma história e esta, por conseguinte, pode dar origem a uma imagem. Os elementos e o léxico que utilizamos para construir uma imagem são determinados tanto 20 MARTÍNEZ, José Luis. Ensaio intitulado Unidade e Diversidade. In: América Latina em sua literatura. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979, p. 81 grifos nossos. Na citação original, o título está em espanhol e foi mantido na referência. 21 Ricoeur, Paul. O discurso e o excesso de significação. In: Teoria da Interpretação, 1976, p.59. 34 pela iconografia como também por outros aspectos situacionais de cunho privativo ou social, aleatórias ou obrigatórias em nossa formação enquanto expectadores ou leitores, na qual podemos reconhecer a nossa própria experiência de mundo que temos como real. Para Roland Barthes (1999), tanto a imagem quanto o signo são articulados, pois eles compõem a imagem linguística. A articulação existente entre os elementos da imagem e o seu simbolismo faz parte de um mesmo sistema referencial e cultural e, além disso, existem dois tipos de mensagens a serem consideradas numa narrativa: a mensagem literal, própria do que as palavras significam e a mensagem simbólica, que conduz a uma interpretação. Nessa óptica, o texto é um limitante da imagem, ao mesmo tempo em que induz a sua produção no ato de sua leitura. 22 Já segundo Lezama Lima, no ensaio intitulado Imagem da América Latina , quando Cristóvão Colombo e Marco Polo foram feitos prisioneiros depois de suas descobertas geográficas, durante o período das suas prisões, tiveram tempo de reconhecer, em suas aventuras de sangue e imagens, os riscos de morte que encontraram ao deparar-se com uma realidade completamente distinta da que estavam acostumados e relataram, em seus escritos, os encontros que tiveram com os prodígios durante suas empreitadas. Nesse contexto das descobertas e exploração de territórios até então não imaginados pelos europeus, podemos inferir o tema das culturas, partindo da menção do que podemos, segundo Santos (1983, p. 44-45), considerar como Cultura. Esta seria, conforme o autor, a dimensão mais ampla do processo social de vida de uma sociedade e abrange todos os aspectos da vida coletiva e, por isso, é uma produção histórica. Uma ideia de processo em que sociedades indígenas encontram-se em interação crescente com a sociedade nacional, passam a participar de processos sociais comuns, a partilhar de uma mesma história. Nesse processo, suas culturas mudam de conteúdo e de significado. Elas podem ser marcas de resistência à sociedade que as quer subjugar, tomar suas terras, colocá-las sob controle. Ao mesmo tempo, é inevitável que incorporem novos conhecimentos para que possam melhor resistir, que suas culturas se transformem para que as sociedades sobrevivam. (SANTOS, 2006, p. 46) Nesse sentido, os valores, as tradições, as lendas e as crenças não dizem nada por si mesmos, uma vez que dizem algo enquanto parte de uma cultura a qual não pode ser entendida sem referência à realidade social de que faz parte e à história de sua sociedade. Afinal, nada do que é cultural é estanque; está em constante transformação. As culturas podem desaparecer sem destruir as imagens que elas evocam; podem ruir, mas podem viver por meio da produção de suas imagens. Responsável por avivar as fagulhas do espírito 22 Esse ensaio está publicado na obra América Latina em sua literatura, que reúne uma série de ensaios sobre a identidade literária criada e construída na América Latina desde sua colonização até os dias atuais. 35 das ruínas, a imagem entrelaça-se com o mito que está no umbral das culturas, precedendo-as e seguindo seu cortejo fúnebre, ou ressurgindo e reiniciando-se em uma nova configuração. Com a propagação no novo mundo dos mitos gregos, conservados em sua extensão na latinidade dos povos colonizadores, surgiram novos viveiros de imagens e elas, por sua vez, reorganizam e unificam as culturas depois de sua hipotética extinção. O caos no qual mergulhou o mundo hispânico medieval no período de sua colonização a partir do século XVI - XVII era muito diferente da unificação que se propagava no mundo islâmico e na Europa do mesmo período. Quanto ao império Inca, este não possuía formas de contato com o império romano, embora seja possível de ter existido em temporalidades próximas. 23 Alguns historiadores medievalistas atestam que o processo “civilizacional” pelo qual passou a América no período de sua colonização, quando a Europa estava se desvencilhando de dez séculos de dogmatismo e controle religioso católico para adquirir respostas pelas vias cientificistas, pode ser considerado um período medieval tardio, mesmo se concretizando num período cronologicamente aceito como moderno. Enquanto a visão europeia de império se fragmentava em vários centros de exercício do poder, na América Latina ainda se tinha a visão do império irradiado a partir de um único centro imanente. Esse mundo novo, tátil, imagético, exótico e excêntrico teve seu mapeamento descrito em cartas de viajantes, com suas impressões construídas a partir do que se conhecia até outrora e ressaltavam as diferenças marcantes que encontravam entre o novo e velho mundo. De modo algum, a imaginação foi a “louca da casa, mas um princípio de reconhecimento e de legítima 24 diferenciação ”, pois os primeiros cronistas desse cenário paisagístico da América uniram o primitivismo das expressões ameríndias ao refinamento das imagens descritas como um novo olhar concebido pelo contato das descobertas. A gravitação da imagem feita raízes desde o princípio entre nós, a imagem que vai para o centro da terra e que está totalmente libertada da razão mágica. A imagem produzida por esse espaço que conhece, que cria uma gnose, cobre-nos com uma placenta que conhece, que nos protege do mundo ctônico, da mortal obscuridade que podia destruir-nos antes do tempo. (LEZAMA LIMA, 1979, p. 482) 23 Podemos citar Le Goff e Braudel da Escola dos Annales em suas obras A Civilização do Ocidente Medieval e Civilização Material, Economia e Capitalismo, séculos XV-XVIII, respectivamente. Não há necessidade de explorar por demais o cerne dessas obras, pois estamos apenas referenciando discussões do campo da História. 24 O autor está, nessa passagem, fazendo o contraponto sobre o ocorrido na Europa, em que se partiu de uma expressividade cultural das fadas aos mitos, enquanto no continente americano ocorreu uma transformação do mito em imagens, o que ajudou significativamente na sua preservação. 36 Da imagem, cria-se a cultura em suas diversas formas e mesmo assim, há espaços em que, principalmente na poesia e no romance, aquela não pode mais ser nem fabulação nem mito, podendo assim atuar na história com sua vitalidade operante e força transformadora. A força criativa da imaginação, as estéticas plásticas dos relatos descritos por viajantes, mostram que a imagem produzida pode exceder as realidades captadas pelos sentidos. Tantos os espaços astecas como os incaicos possuem semelhanças no que diz respeito à fusão do personagem histórico com o mitológico. Foi assim com Montezuma, imperador asteca e Viracocha, o príncipe fantasmal, cujo nome é o mesmo do sétimo rei inca Yáhuac Huacac, que o alerta do perigo de morte por meio dos sonhos. E assim aqueles que sonharam com o fim de seus impérios, em meio a agouros e presságios, medos e desconfianças, foram condenados à morte. Também as temáticas do desterro, do cativeiro, da solidão e da morte estão inseridas no cerne dessas imagens e “aquilo que chamamos a era americana da imagem tem como seus melhores signos de expressão os novos sentidos dos cronistas das Índias” (LEZAMA LIMA, 1979, p. 484) mescla dos ritos gregos e latinos, criando novos fabulários, incorporando nova gravitação nas obras, reconstruindo culturalmente os povos ameríndios, hispânicos, lusos, africanos e asiáticos bem como suas cores, suas etnias e suas múltiplas formas de fazerem-se representar. As secretas pulsações do invisível nas imagens continuam ganhando as mais decisivas batalhas, por meio da pulsão criativa e da plasticidade estética tão ansiosas por conhecimento, quanto por serem conhecidas. 3.1 As borboletas amarelas em Cem Anos de Solidão Ao pensar sobre como a imagem é fonte inesgotável de questionamentos e de interpretações, veem-nos uma projeção imagética e uma cor pertinente a algumas das narrativas de Cem Anos de Solidão, na qual podemos comparar a existência da mistura entre a imagem, cultura e elemento mitológico. A respeito disso, vamos começar pelas borboletas amarelas que acompanhavam Maurício Babilônia, o progenitor do penúltimo Buendía. O fenômeno das borboletas, que se apresenta na parte da narrativa, aborda o amor impossível e trágico de Renata Remedios Buendía. Quanto ao amarelo, essa cor, ao aparecer em outras narrativas dentro da mesma obra, é considerada como indicativo de presságio de mudanças, morte e transformação. A borboleta é um inseto que passa por um fenômeno natural chamado Metamorfose e o seu ciclo de vida é curto, em torno de poucos meses. Nesse breve espaço de tempo, ela nasce lagarta de um ovo, devora toda a folhagem de que necessitará para o período de incubação no casulo e depois 37 desse período, que os antigos chamavam de “se encantar”, elas, aparentemente mortas no tecido do casulo fechado, renascem como as lindas borboletas que conhecemos: seres delicados, de cores vivazes, símbolo da alegria, da vida e da ressurreição. Nas diferentes culturas e sociedades humanas, a borboleta possui diversos significados. Na obra de García Márquez, elas aparecem na narrativa quando percebeu de vez as borboletas amarelas que precediam as aparições de Maurício Babilônia [...] Mas quando Maurício Babilônia começou a prossegui-la como um fantasma que só ela identificava na multidão, compreendeu que as borboletas amarelas tinham alguma coisa a ver com ele. Maurício Babilônia estava sempre na plateia dos concertos, no cinema, na missa maior aos domingos, e ela não precisava vê-lo para descobri-lo porque as borboletas indicavam onde ele estava. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p.322-323) Eram as borboletas que precediam a chegada desse homem mestiço, rude, que cheirava a óleo de motor, pelo qual Rebeca Buendía, mencionada na obra como Meme, filha de Aureliano Segundo e Fernanda de Caprio, veio a apaixonar-se perdidamente. O amor, mesmo verdadeiro da parte dele e a entrega rebelde dela ao seu amado, não foi suficiente para burlar a tragédia que assola a estirpe Buendía, pois ambos eram de níveis sociais diferentes: ele era subalterno do pai de Meme, mecânico de automóveis. As borboletas amarelas invadiam a casa a partir do entardecer. Todas as noites, ao voltar do banho, Meme encontrava Fernanda desesperada, matando borboletas com a bomba de inseticida. ‘Isso é uma desgraça’, dizia. ‘A vida inteira me contaram que as borboletas noturnas chamam o azar’. Uma noite, enquanto Meme estava no banheiro, Fernanda entrou por acaso no seu quarto, e havia tantas borboletas que mal se podia respirar. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p.327) Para os Astecas e os Maias, a borboleta simbolizava o deus do fogo, com a cor que varia do amarelo ao laranja, Xiutecutli, o qual levava como emblema um peitoral chamado “borboleta de obsidiana” que simbolizava a alma ou o sopro vital a escapar da boca de quem está morrendo. Psiquê, na mitologia grega, era a esposa de Eros, uma humana tornada imortal depois de passar por tormentos e provações. Depois de aprovada, ela recebe como prêmio o verdadeiro amor, que é eterno. O seu nome significa tanto “borboleta”, quanto “alma”. No que diz respeito à imagem evocada pela palavra borboleta e sua cor, são uma alegoria da imortalidade da alma, prefigurando alma humana como provada por sofrimentos. Barthes, na obra O Óbvio e o Obtuso, fala especificamente sobre as cores de uma imagem artística e afirma que 38 Mas o que é a cor? Um prazer. [...] a cor também é uma ideia (uma ideia sensual): para que haja cor (no sentido do prazer), não é necessário que a cor seja submetida a modos enfáticos de existência; não é necessário que seja intensa, violenta, rica, ou mesmo delicada, refinada, rara, ou ainda imóvel, pastosa, fluida, etc.; não é necessário que haja afirmação, instalação da cor. Basta que apareça, que esteja presente, que se inscreva como um traço vago no canto dos olhos, [...] como uma aparição, pois a cor é como uma pálpebra que se fecha, um leve desmaio. (BARTHES, 1999, p. 150-151, grifos nossos) Por esse excerto, podemos inferir que a impressão de uma cor aguça nossa sensibilidade, nossa maneira de interpretá-la, nosso conhecimento de mundo daquilo que ela, para nós, pode significar. Nesse sentido, a cor amarela vai surgir em outro momento da narrat iva quando o patriarca da família, José Arcádio Buendía, falece. Nessa outra imagem descrita na narrativa, há uma chuva de pequenas flores amarelas que caíam, simbolizando a morte. No livro do Apocalipse, na Bíblia Sagrada, dos quatro cavaleiros mencionados em trazer as pragas aos filhos dos homens, o de cor amarela é o cavaleiro da morte. Tanto para a vida quanto para a morte, esse matiz é mencionado, causando um efeito de estesia no leitor. Em outra passagem da obra, um forasteiro do qual sua imagem descrita era de um príncipe de contos de fadas, chega a Macondo e é atraído pela beleza de Remédios Buendía, a Bela. Não demorou o povoado entender que entre eles havia um “pacto secreto, um desafio irrevogável cuja culminação não podia ser somente o amor, mas também a morte. No sexto domingo, o cavalheiro apareceu com uma rosa amarela na mão” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p.234-236). Não demorou muito para que a simbologia da cor surtisse seus efeitos, como mostra a passagem do corpus da obra: “Quando o encontraram morto ao lado de sua janela, e morto de verdade, Remédios, a Bela, confirmou sua impressão inicial. – Vejam só – comentou – Era completamente abestalhado”. Essa mesma cor amarela vai aparecer ainda na narrativa que descreve o trem de Macondo, o mesmo que transporta os corpos dos mais de três mil trabalhadores assassinados durante a truculenta ação da companhia bananeira em reprimir o movimento grevista de que José Arcádio Segundo fez parte. Sobrevivente do massacre, esse Buendía acorda dentro de um dos vagões, sendo trasladado como morto no meio dos corpos dos outros trabalhadores, visão que vai permear seus pesadelos pelo resto de seus dias. Assim como para o escritor o papel sempre é branco, é a ruptura da folha em branco que se constitui seu desafio, pois a mácula da sua escrita empreende na narrativa as cores que tanto representam os prazeres, bem como as aflições, angústias e a solidão necessária para conceber seu ato criador. 39 As imagens das borboletas amarelas, a chuva de flores amarelas, a rosa amarela e o trem amarelo não estão na narrativa por uma coincidência. O inseto, os elementos da flora, o objeto trem – símbolo do moderno –, todos pigmentados por essa cor, são elementos mesclados pela cosmogonia das comunidades rurais, pelos elementos da própria natureza e pela realidade da família Buendía. As borboletas são o símbolo da alma de Maurício Babilônia, da efemeridade de seu amor, da violência de seu desterro e de seu repúdio; as flores, a metáfora da efemeridade da vida humana, consumida pelas intempéries e pelo labor; a rosa ofertada, o significado de um amor não frutífero e recusado; o trem, o emissário dos traslados entre o mundo dos vivos e o dos mortos. A cor amarela tem as tonalidades do vermelho como o fogo e sua simbologia compreende tanto a pureza e luminosidade do sol, como a tentação de desejar e possuir aquilo que é proibido e perigoso. Na natureza, os animais que possuem a cor vermelha ou a amarela são portadores de venenos letais e são essas que servem justamente de alerta para outros animais que tentem apresá- los. O Amarelo também é a cor da mudança, pois anuncia, na intensidade e numerosidade das borboletas invasoras dos ambientes das personagens, que o decifrador dos mistérios seria concebido. O filho dessa castrada união, o penúltimo dos Buendía, nasceria e seria aquele que decifraria os pergaminhos (o oráculo) do cigano Melquíades e em cujo sangue seria extinta a solidão e a existência da família Buendía e do povoado de Macondo. Podemos também ver as borboletas sob o signo da arte e da resistência. Segundo Calvino, seria o ideal de leveza, um valor que permeia as diversas artes literárias, como o mito de Perseu que se sustenta sobre as asas aladas e o vento; o herói que decepa a Medusa e utiliza-a contra seus adversários, o monstro que petrifica com seu olhar. O mito da Medusa nos remete ao discurso de fundação, de origem dos usos e costumes que estão bem presentes na obra de García Márquez. Calvino afirma que a leveza nos retira o peso da vida, enseja o desejo que qualquer escritor romancista almeja em poder ilustrar sua arte com símbolos de leveza. Assim como a obra romancista traça paralelos entre a realidade concreta e a imaginária, a leveza tende a se acabar bem cedo, revelando o peso de viver iminente e insustentável. A leveza da borboleta retira “peso à estrutura da narrativa e à linguagem” (CALVINO, 1990, p. 15). Ela imprime valor de beleza no presente e projeta no futuro uma perspectiva indireta, a imagem capturada no ar, encontrando nessa imagística do mito alegoria intrínseca da relação entre o escritor e o mundo. Não há dúvidas de que os mitos nos falam, pois há a voz implícita nas imagens evocadas e que não se pode explicar de outra maneira. A necessária delicadeza de alma para suscitar as ações cruéis da separação, da morte infortuna de Maurício Babilônia, do distanciamento e do claustro de Meme. A história dessas duas personagens tem elementos trágicos, dramáticos, pesados 40 psicologicamente e a airosidade das borboletas vem de encontro à realidade desses eventos narrados, com a leveza, efemeridade e profusão das borboletas circundando os ambientes. Todas as vezes em que o viver humano se percebe como um peso, devemos fazer como a borboleta e voar para outros espaços, mudar a perspectiva de observador, considerar o mundo que se nos apresenta sob outros pontos de vistas, outra lógica e outras formas de criar. A imagem de leveza deve ser aquela que perdurará no espaço/tempo sem se dissolver como nas miríades dos sonhos, pois a leveza é um modo de ver o mundo fundamentado na filosofia e na ciência. A leveza se cria no processo de escrever, com os meios linguísticos peculiares do escritor e é um fenômeno independente da doutrina filosófica que o autor siga ou assuma. Para se tratar do caso do tema da solidão e da morte dos personagens Meme e Maurício Babilônia, a imagem segue como entidade caracterizada pela leveza das borboletas em seus voos pelos ambientes do amor infrutífero, por estar em movimento na dinâmica das ações das personagens e, por fim, converter-se em vetor de informações nas aparições em que a narrativa se desdobra nos desfechos dos destinos dos personagens. Diante do peso da vida, da opressão imposta pela mãe de Meme, Fernanda Di Caprio, sua rede de contrições públicas e privadas “acaba por aprisionar cada existência em suas malhas cada vez mais cerradas” (CALVINO, 1990, p. 19), até que se cerra definitivamente com a morte da última borboleta amarela que acompanhava Meme e o fechamento das grades do claustro. A última vez que Fernanda a viu, tratando de igualar seu passo ao da noviça, acabava de fechar atrás dela a tenebrosa grade de ferro da clausura. Ainda pensava em Maurício Babilônia, em seu cheiro de óleo e em sua nuvem de borboletas andarilhas, e continuaria pensando nele todos os dias de sua vida, até a remota madrugada de outono em que morreria de velhice, com o nome trocado e sem jamais ter dito uma só palavra, num tenebroso hospital de Cracóvia. (GARCÍA MÁRQUEZ. 2014, p. 331) Assim, termina a história de Meme Buendía. Não poderíamos enaltecer a leveza da linguagem se, de igual modo, não soubermos valorizar a linguagem dotada de peso, e essas duas evocações opostas se encontram no campo do literário: o elemento sem peso flutua sobre as situações e o elemento que tende a comunicar o peso da existência dá espessura de opressão e sensações de tragédia. Dessa forma, a leveza das borboletas possibilita essa sensação de quebra desse peso, imprime precisão e determinação por não ser um elemento vago ou aleatório. Pelo grau de abstração descrita, reflete o momento de dor dos amantes, que atenuam as sensações negativas suscitadas pela irrevogável decisão do banimento da personagem, condenada ao desterro e à solidão do convento em que foi enclausurada. 41 É por meio da literatura que nossos sistemas de vivências antropológicas são perpetuados, tendo em vista que o peso existencial, expresso por meio da linguagem, é contraposto à leveza, que buscamos para manter o equilíbrio e sermos capazes de modificar a realidade. . Assim como Perseu e suas sandálias voadoras, as borboletas de Cem Anos de Solidão vêm-nos ao encontro e permite- nos voar ao reino em que nossas necessidades serão magicamente recompensadas. Para prosseguirmos nos caminhos que nos descortina a literatura, devemos cuidar para que o peso da matéria não nos esmague. 3.2 A imagem do gelo presente em Cem anos de Solidão O romance Cem Anos de Solidão é uma obra na qual podemos observar uma forte dinamicidade entre a maleabilidade do gênero romance, pois agrega, em seu suporte, múltiplos discursos e práticas sociais, características unânimes que o definem enquanto gênero. Dentro da unidade literária, a narrativa é composta de várias micronarrativas. Algumas imagens nos são perpassadas durante a leitura da obra como formas metafóricas de transmissão de ideias sutilmente inseridas para que o leitor seja cativado pela sucessão de ações que se segue à tomada de decisões das personagens. O livro é demarcado por fases, com temporalidades diversas e, ao invés de uma visão retrospectiva e totalizante, lança a proposta da diferença e do porvir de maneira prospectiva. O gelo, por exemplo, é a imagem que abre a obra, logo mencionado no início da narrativa e faz alusão ao futuro, indicativo de possibilidades de transformação e de indício do novo, ligado ao desenrolar da própria narrativa. Por isso, o gelo aparece em várias fases da saga dos Buendías, simbolizando que uma das etapas elíptica está prestes a encerrar-se, para que outra venha a tomar seu lugar na fábula. “Muchos años después, frente al pelotón de fusilamiento, el coronel Aureliano Buendía había de 25 recordar aquella tarde remota en que su padre lo llevó a conocer el hielo”. Um presente (passado) que desenlaça um futuro, sem, no entanto, deixar de ser passado. Nessa passagem, podemos observar o jogo das temporalidades distintas, vinculado à imagem evocada do gelo, evocando também uma característica do realismo maravilhoso de Carpentier. A narrativa se descortina em um momento específico de uma das personagens da segunda geração dos Buendía. Mais adiante, a quebra de linearidade vai ocorrer novamente quando os acontecimentos remeterem ao êxodo dos pais dessa personagem, o Coronel Aureliano Buendía. 25 García Márquez, 2007, p. 9. Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Tradução nossa. 42 Ora, o gelo, elemento tão destoante do ambiente quente e tórrido de Macondo, um avanço tecnológico extraordinário para aquele lugarejo perdido nas selvas, não tinha outra forma de ser 26 definido senão como o primeiro feito dos Buendía, “o grande invento de nosso tempo ”. Introduzido pela atividade criativa, esse episódio vai marcar a existência e a influência da chegada ou difusão de objetos, hábitos e instituições estrangeiras, principalmente os que são provenientes da cultura europeia. Nesse sentido, a ida e vinda dos acampamentos ciganos no entorno de Macondo desempenham fundamental importância, pois, por meio dos ciganos, a comunidade macondiana 27 tinha contato com o mundo exterior. No início, esse contato se dá por meio de Melquíades e, posteriormente à sua morte, outros grupos advindos do mundo externo deram prosseguimento a esse processo de mudanças significativas. Dessa chegada e assimilação de elementos estrangeiros, Macondo sofreu muitas mudanças significativas. Formado a partir da mudança física da água quando essa é submetida a mudanças de temperatura, o gelo constitui uma das três imagens fundamentais na composição da obra, assim como a árvore (castanheira) na qual José Arcádio foi acorrentado e as borboletas que acompanham a aparição de Maurício Babilônia na parte final da narrativa. A presença daquele na fábula é, então, um elemento que identifica o realismo maravilhoso, pois retira a obra do espaço da mentalidade ocidental e universal, inscrevendo-a em uma singularidade local, específica. Quando o coronel conheceu o gelo na tenda dos ciganos, a pulsão de inteirar-se do que lhe era desconhecido e estava diante de si, causou-lhe assombro. A imagem do gelo diante da expectativa da morte funcionou como um catalisador do caráter mítico dos tempos iniciais, do contato com o estranho, o desconhecido, um conhecimento que até então era oculto. Dentro do tempo histórico da repetição e do costume, o gelo vai ser evocado, mas seu valor de novo vai ser esvaziado por completo. Virão, no decorrer da narrativa, as fábricas de gelo, dos sorvetes dos Aurelianos Triste e Centeno e das caixas importadas da Europa por Amaranta Úrsula, mas aqueles momentos que o coronel tenta em vão reviver, como o episódio da tenda dos ciganos, e sua sensação de nostalgia quando ele ainda acreditava em reais mudanças, é uma das causas de sua amargura no fim da sua trajetória, sem o fascínio mítico dos tempos de outrora. 28 Cláudio Guillén menciona, no seu artigo Algunas literariedades de Cien Años de Soledad, que a questão entre o tempo mítico – situado na época em que Macondo foi fundada, e o tempo cronológico – iniciado durante o transcurso das guerras civis empreendidas pelo Coronel 26 García Márquez, 2014, p. 60. 27 A simbologia de Melquíades, o cigano, é a mesma do sacerdote Melquizedeque do livro de gênesis na Bíblia Sagrada. Ambos são detentores de conhecimentos transcendentes entre o mundo dos homens e o mundo da divindade, além de ambos serem como portadores dos oráculos divinos. 28 GUILLÉN, s/d., p. CVII. 43 Aureliano Buendía, no momento em que este conhece o gelo na tenda dos ciganos, é rememorado na hora de sua morte, marcando definitivamente a construção da identidade macondiana. O contato dos habitantes de Macondo com o gelo denota essa particularidade nas formas pelas quais o gelo é percebido e manipulado. Tudo era novo, não havia usos nem costumes, pois foi o contato com o estrangeiro e o que adveio dele vai repercutir durante toda a obra, indicando que o leitor adentrará a um sistema interpretativo diferente daquele do sistema ocidental estabelecido, pois o moderno, enquanto possibilidade, far-se-á presente no decorrer da história. É desse processo de hibridação e negociação cultural entre o existente e o adquirido que as bases fundadoras da cidade de Macondo são firmadas, assim como a sua identidade. Desse embate contrastante entre o sistema ocidental interpretativo e o outro, nativo – como também a negociação entre aquilo que entendemos como sendo o real e o sobrenatural –, o gelo é o elemento totalmente estranho à visão de mundo macondiana e desencadeia o choque, ao denotar a distinção de contraposição a dois tipos distintos de percepção e reflexo de realidades. O gelo, assim como o astrolábio, a lupa, o ímã e o daguerreótipo (precursor das câmeras fotográficas), eram considerados por José Arcádio Buendía como inventos espantosos e maravilhosos. O gelo migraria do domínio das coisas conhecidas e naturais para o das coisas artificiais feitas pelos homens; essa imagem sutilmente é colocada pelo autor para mostrar o caráter transcultural da identidade macondiana. Nessa leitura, a lógica do dominado não se opõe inicialmente à do dominador, pois não há uma disputa, mas um único nível que se desdobra e ganha possibilidades espectrais e etéreas, simbólicas e metafóricas, por meio de recursos estilísticos de repetição e intensificação, uma forma de resistência. O gelo, desse modo, é utilizado pelo seu caráter exótico e cotidiano para questionar o discurso do colonizador de que tudo que dele adveio é bom. Nisso, o autor detém-se na construção do enredo, pois as probabilidades de interpretação se enriquecem e se amplia. O gelo, que sempre está ao ponto de se derreter quando passa a forma líquida, outra forma estacionária, compartilha seu espaço fictício demonstrando a capacidade de metamorfose, um realce especial ao caráter fluido do movimento de um tempo absoluto a um tempo histórico e cronológico e vice-versa. 3.3 Os elementos dos realismos imaginários A presença do insólito na própria natureza da realidade, que se apresenta de uma maneira extremamente simples, mas capaz de criar imagens com condições de preservar traços de sua originalidade local, religiosa e não pagã, faz-se perceber em toda a narrativa. Não somente isso, a família Buendía tinha, em Úrsula, a guardiã dos valores católicos com vários rechaços, como 44 também a que resguardava os valores religiosos de outras etnias, cujas matrizes não foram aceitas pela diocese tampouco o pároco como seu representante legal. Na associação direta sobre a ascensão de Nossa Senhora aos céus e a assunção de Remédios, a Bela, podemos perceber o enlace perfeito em que os valores imagéticos tradicionais católicos, nessa passagem abaixo, mesclam-se com a natureza inusitada de um fenômeno sobrenatural: Acabou de falar e Fernanda sentiu um delicado vento de luz que arrancou os lençóis de suas mãos e os estendeu em toda a sua amplitude. Amaranta sentiu um tremor misterioso nas rendas de suas anáguas e tratou de se agarrar no lençol para não cair, no mesmo instante que Remédios, a Bela, começava a se elevar. Úrsula, já quase cega, foi a única que teve serenidade para identificar a natureza daquele vento irreparável e deixou os lençóis à mercê da luz, vendo Remédios, a Bela, que dizia adeus com a mão, entre o deslumbrante bater de asas dos lençóis que subiam com ela, que abandonavam com ela o ar dos besouros e das dálias, e passavam com ela através do ar onde as quatro da tarde terminavam, e se perderam com ela para sempre nos altos ares onde não podiam alcançá-la nem os mais altos pássaros da 29 memória. A imagem descrita da personagem está liberta dos convencionalismos sociais – uma mulher que não era desse mundo, segundo Úrsula gostava de pensar –, sendo elevada aos céus e para sempre, não pelo soar das asas do anjo dos mistérios vindo buscar os mortos, mas pelos lençóis feitos asas de uma vida que não passou pelos umbrais da eternidade de forma natural. Ao fazer uma leitura desse traslado, o milagre que se configura ao alterar a realidade é um dos traços do realismo maravilhoso nessa passagem, pois os limites do real e do mágico se fazem presente e é totalmente aceito pela comunidade de Macondo sem contestação. Outra imagem icônica desse mesmo estilo na obra é a descrição da criatura capturada pelos habitantes macondianos, “híbrido de bode cruzado com fêmea herege”, na passagem após a morte de Úrsula, a matriarca dos Buendía. Antes da morte de Úrsula, houve uma grande mortandade de pássaros na região e os habitantes inqueriram o padre local sobre esse fenômeno. O sacerdote, então, deu como resposta que essa era obra de uma criatura do mal e, quando surgia, as mulheres grávidas pariam monstros. Poucos dias após o sermão do padre, encontraram a criatura presa em uma armadilha nos arredores de Macondo. Já estava tirando o monstro das varas que tinham fincado no fundo de uma fossa coberta de folhas secas, e ele havia deixado de berrar. Pesava como um boi, apesar de sua estatura não ser maior que a de um adolescente, e de suas feridas emanava um sangue verde e pegajoso. Tinha o corpo coberto por uns pelos ásperos, cheios de carrapatos miúdos, e a pele petrificada por uma crosta de cracas, mas ao 29 García Márquez, 2014, p. 274 45 contrário da descrição do pároco, suas partes humanas eram mais de anjo combalido que de homem, porque as mãos eram lisas e hábeis, os olhos grandes e crepusculares, e tinha nas omoplatas os cotocos cicatrizados e calosos de umas asas potentes, que devem ter sido desbastadas com machados de lavrador. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 274.) Advertida como um anjo caído pelo pároco de Macondo, a criatura fantástica capturada assemelhava-se às figuras divulgadas no período medieval como sendo o satanás (Baphomet), inimigo da igreja católica, o qual lhe foi retirado as asas e sua concepção se constituía violação das leis naturais, um híbrido de besta e humano. Esse ser, na narrativa, tem paralelismo evidente com o minotauro da mitologia grega, criatura mitológica da história de Teseu, o grande herói grego, que vivia selado em um labirinto em Creta, na Grécia. Assim como Úrsula nutria o medo de conceber um filho com rabo de porco por ter casado com seu esposo, primo legítimo, constituindo o pecado do incesto, esse mesmo temor vai ser perpassado aos seus descendentes por ela, mesmo que eles continuem repetindo esse mesmo pecado, propagando o ciclo das relações incestuosas, segundo a óptica do catolicismo. Desse desvio da natureza, mescla do universo de seres fantásticos das mitologias ocidentais literárias e religiosas, por conseguinte, estão em harmonia com o universo do próprio realismo fantástico e assim se fizeram presentes na fábula de García Márquez. 46 4 TRANSCULTURAÇÃO E REALISMOS IMAGINÁRIOS Não poderíamos falar de obra narrativa latino-americana sem tocar no cerne deste fenômeno extremamente importante para o entendimento dos processos civilizacionais que permeiam a América latina: a Transculturação. Não só isso, mas também os reflexos desse processo nas produções escritas, das quais Cem Anos de Solidão é uma delas. Esse postulado teórico se inicia com o escritor e antropólogo cubano Fernando Órtiz para designar um processo que expresa mejor las diferentes fases de proceso transitivo de una cultura a otra, porque éste no consiste solamente de adquirir una cultura que es lo que en rigor indica la voz anglo-americana aculturación, sino que el proceso implica también necesariamente la pérdida o desarraigo de una cultura precedente, lo que pudiera decirse una parcial desculturación, y, además, significa la consiguiente creación de 30 nuevos fenómenos culturales que pudieran denominarse neoculturación. (ÓRTIZ apud RAMA, 1987, p. 32) Isso significa que ambas as partes imbricadas no processo – a que se acultura e a que se cria a partir de uma base pré-existente – sofrem modificações significativas, gerando assim uma nova forma de expressividade cultural e, por que não dizer, artística. Os elementos daquilo que se distanciou e o que se assimilou fazem parte dessa nova expressão cultural, não podendo ser considerada nem a primeira – a que assimilou, nem a última – a que surgiu do contato e das trocas e negociações, mas de algo diferenciado e singular que fora criado a partir desses contatos culturais entre diferentes estratos sociais na América Latina, precisamente entre colonizadores e colonizados. Dessa contiguidade, formou-se uma nova realidade original e independente, pois o traslado de uma cultura à outra e sua modificação, provocada a partir das bases originárias, concebe uma nova forma de pensar e expressar-se bem como produzir. Isso é o que chamamos, portanto, de transculturação. Podemos inferir o conceito de Transculturação como a influência ou a difusão cultural que uma sociedade exerce sobre a outra, provocando novos e diferentes desenvolvimentos nesse âmbito. A partir do processo receptivo por parte de um grupo social, essa definição também se remete a formas culturais oriundas de outros estratos sociais diversificados, sendo capazes de adaptar-se a uma nova forma que pode ser mais ou menos complexa. 30 Expressa melhor as diferentes fases do processo transitivo de uma cultura à outra, porque isto não consiste somente de adquirir uma cultura que é o que, a rigor, indica a voz anglo-americana aculturação, e sim que o processo implica também, necessariamente a perda, o desprendimento de uma cultura precedente, o que pudera se dizer uma parcial desculturação e, além disso, significa a consequente criação de novos fenômenos culturais que puderam denominar-se neoculturação. (ÓRTIZ apud Rama, 1987, p. 32, tradução nossa). 47 No processo transculturador, há o predomínio da heterogeneidade, ou seja, da mistura de diferentes visões de mundo na mesma unidade de composição e comporta partes de diversas naturezas ou elementos diferentes de uma mesma matriz cultural. Para analisarmos melhor esse processo, temos que considerar as três partes envolvidas: o assunto do qual se quer tratar, a cosmovisão escolhida e as formas literárias necessárias para a sua materialização criativa. No entanto, o modelo de transculturação proposto por Órtiz não conseguia responder aos critérios de seletividade e de inventividade (ou criação), pois, segundo Rama (1987, p. 38), esses critérios “deben ser obligadamente postulados en todos los casos de ‘plasticidad 31 cultural ”. Isso se deve porque essa seletividade contém uma mensagem crítica e aplica-se não somente à cultura estrangeira, mas também à originária da qual ela é parte integrante. Se formos pensar no compêndio da tradição cultural trazida pelo elemento estrangeiro para o continente americano, esse processo transculturador não implica somente em perdas e destruição para as localidades internas das regiões colonizadas, mas também impulsiona a retomada de valores primitivos, adormecidos ou esquecidos, presentes e inertes dentro do próprio sistema cultural de comunidades humanas em suas regiões de origem. Esses mesmos valores, tradições e crenças são elementos de resistência, capazes de sobreviver aos processos de apagamento e substituição de uma cultura por outra e, por mais que sofram imposição, neles se sobressai à capacidade de sobrevivência e inventividade. A capacidade de inventar e de criar responde, dessa forma, ao processo transculturante com a dinâmica entre utensílios, normas, objetos, valores, crenças e costumes em uma articulação viva na estrutura funcional textual. Rama (1987, p. 40 - 48) analisa três níveis da produção literária – o linguístico, o composicional e o da cosmovisão do escritor – em que se dão os processos de transculturação. As relações entre personagem, fábula e as demais categorias da narrativa fazem parte do segundo nível. O teórico utiliza, inclusive, teorias europeias e norte-americanas ao abordar o assunto, mas também não as trata da mesma maneira. Isso se deve ao fato de que seu interesse é mais crítico que teórico, focalizando mais as questões sociais referentes às relações interculturais que ocorrem no seio da cultura latino-americana. Desse modo, os processos transculturantes passam por um tripé articulado entre: a) Língua: o escritor faz parte de um sistema linguístico, no qual ele mescla elementos da fala coloquial com o código da norma culta da língua, elaborando, a partir dessa mistura de linguagens, um código intermediário com óbvio objetivo artístico. Nesses arranjos, há reconhecimento do escritor e do código linguístico que o representa, que o reconhece e daí “abandona la copia, con cuidada caligrafía de sus irregularidades, sus variantes respecto una norma 31 “Devem ser obrigatoriamente postulados em todos os casos de plasticidade cultural” (RAMA, 1987, p. 38, tradução nossa). 48 académica externa y en cambio, investiga las posibilidades que le proporciona para construir una 32 específica lengua literaria dentro de su marco” (RAMA, 1987, p.43) . Seria isso um fenômeno de “neoculturación” como sugeria Órtiz, pois o produto desse processo leva em consideração a unificação textual por meio da construção de uma expressão de linguagem estética que resgata a visão regional de mundo, sem nisso incorrer na destruição identitária. b) A composição literária (ou estrutura): nesse apartado, faz-se necessária a análise dos problemas advindos entre escolhas de modelos tradicionais plasmados pelo regionalismo e, naturalmente, pelas formas modernas estrangeiras importadas. Gabriel García Márquez utiliza, em Cem Anos de Solidão, as estruturas de narrativas orais e populares para resolver a conjunção do plano do verossímil e histórico das ações, com os elementos do realismo maravilhoso no qual se situa a perspectiva das personagens sobre esse agir real. Ele recorreu às fontes orais de narração e à visão de mundo que rege essa peculiar técnica fazendo menção a um fato curioso ocorrido na casa de uma tia, em um momento remoto de sua vida: uma jovem da comunidade se apresentou na casa de sua consanguínea, inquirindo o porquê de um ovo de galinha encontrado por ela possuir uma protuberância incomum. A tia olhou o ovo e 33 disse que era um ovo de basilísco , com a maior naturalidade possível e que se fazia necessário destruí-lo. Fizeram, então, uma fogueira no quintal e queimaram o ovo e encerrou-se o caso. Esse é um exemplo de que o vanguardismo passou a permear a narrativa fantástica bem como a realista-crítica, preenchendo-as de destreza, percepção diferenciada do real e contágio emocional de longo alcance, mas ainda assim passível de uma cosmovisão fragmentária. Quando 34 García Márquez cita essa história do ovo de basilísco , que lhe proporcionou o insight para uso da técnica em seus escritos, apontava para um sistema narrativo elaborado em uma cultura local que poderia ser utilizado em prosa, mesmo que oriundo de tradições orais. Mircea Eliade afirma que Em vez de, como seus predecessores, lidar com o mito na acepção usual do termo, ou seja, como “fábula”, ”invenção”, “ficção”, aceitou-o como era compreendido nas sociedades arcaicas em que o mito designa, pelo contrário, uma “história 32 Abandona a cópia, com cuidada caligrafia de suas irregularidades, suas variantes a respeito de uma norma acadêmica externa e, em contrapartida, investiga as possibilidades que lhe proporciona para construir uma específica língua literária dentro de seu marco. (RAMA, 1987, p.43, tradução nossa). 33 O Basilisco é uma serpente mitológica europeia, considerada símbolo da alquimia e magia, amplamente representada em iconografias envolta a uma espada ou cajado, ou ainda devorando um ser humano, o que, simbolicamente, significava a iluminação ou gnose do homem devorado por meio da sabedoria. No entanto era considerada, nos territórios americanos, como um monstro fruto da mistura de diversas espécies, semelhante a uma quimera e como o rei das serpentes, era um ser de natureza duvidosa e perigosa. Essa passagem se encontra na Revista de História Ibero Americana, 2013, p. 132. 34 Gabriel García Márquez y Mario Vargas Llosa. Dialogo. Carlos Milla Batres (org.). In: La novela en América latina, Ediciones Uni, 1968. 49 verdadeira” e, o que é inestimável, sagrada, exemplar e significativa (MIRCEA apud RAMA, 2001, p.275.) Assim, a ação narrativa se torna mediada pela sua função mítica, o arquétipo, intrinsecamente ligada à cosmovisão das sociedades pré-colombianas. A história do ovo de basilísco, que nunca ninguém vira, mas que fora destruído com fogo no quintal da casa, tomou os relatos orais das pessoas que viviam naquela comunidade e é com essa naturalidade de tratar assuntos insólitos que García Márquez vai utilizar na construção literária de Cem Anos de Solidão. c) A cosmovisão: é desse vértice do tripé que nascem os significados, os valores e as ideologias. A modernidade que se instalou no século XX testemunhou duas guerras mundiais, promulgou a ideia de que o conhecimento seria a solução para os demais problemas humanos, certeza essa que se perdeu, pois foi sendo pulverizada pelo uso de armas bioquímicas e bélicas, construídas para destruir seres humanos sistematicamente no decorrer de duas grandes guerras mundiais. Nesse afã de busca por respostas para o dilema da existência humana, surge o movimento 35 artístico e estilístico nomeado Modernismo , que vai atuar em diversas tendências literárias, de forma bastante intensa e distinta, a sondar respostas produzidas por cada uma das diversas vertentes das artes e a destacar o ponto que ocupam cada uma delas na multiplicidade cultural latino- americana. Nesse tocante, o modernismo vai colocar o entredito no discurso lógico-racional, ao qual a literatura vinha adotando desde sua origem burguesa no século XIX. Se classificarmos os escritores latino-americanos de acordo com critérios opostos, poderíamos encontrar os diversos matizes, graus de influência, maiores transmutações e compromissos que se produzem por meio de polos opostos e força expressiva, o que corresponde à influência permanente que advém dos centros culturais externos. Isso aplica uma perspectiva cultural moderna e dispõe, para transmiti-la, dos eficazes instrumentos de tecnologia afins. O avanço dos centros externos remeteu o conservadorismo, que procura preservar a continuidade e identidade de um grupo social ao apelar aos meios de comunicação pobres, repetitivos, copiados e tradicionais. Esses traços de produção intelectual podem apontar para um problema mais amplo e complexo, conforme Rama (1987, p.196), pois não seria senão as “manifestaciones superficiales, traducciones epidérmicas de un funcionamiento mental profundo donde puede detectarse el 36 componente original de la cosmovisión del escritor ”. Não se trata, portanto, de uma concentração sobre um reduzido apanhado de assuntos, mas de um sistema reiterativo que se pode aplicar ao ato 35 No Brasil, chamamos Movimento Modernista, mas no mundo hispânico, Vanguardismo. 36 Manifestações superficiais, traduções epidérmicas de um funcionamento mental profundo aonde se pode detectar o componente original da cosmovisão do escritor. (RAMA, 1987, p.196, tradução nossa). 50 da escrita e reescrita sem cessar, introduzindo modificações e rearticulando-os em estruturas que se tornam perecíveis e que são logo substituídas por novas estruturas parcialmente análogas, ainda que constituída de elementos diferentes. Sobre essa perspectiva, Rama (1987, p. 196-197) afirma que “esas operaciones pueden emparentarse con el funcionamiento de una mentalidad irrigada por un pensamiento mítico, pareciéndonos, si no operaciones prototípicas, al menos comportamientos familiares del pensar mítico”, sendo aparentemente mais reminiscências do que articulações do funcionamento intelectual. É bom destacar que as vias de um pensamento mítico não são contrárias ao funcionamento de outras vertentes do pensar, não são obrigatoriamente mágicas ou irracionais, podendo se distinguir de outras vias e de outros pensares, mais pelo campo ao qual se lhe aplica, ou pelo modo de ordenar os fatos, do que pela sua especificidade mental. 4.1 Do que os mitos são compostos Segundo Greimas (2013), em Elementos para uma teoria da interpretação narrativa mítica, a criação de componentes míticos em uma obra literária se caracteriza pelos seguintes componentes: a) Armadura – deriva de um modelo narrativo pré-existente, invariável que considera as dimensões e a dialética na composição do antes versus depois, individual versus coletivo e a categoria gramatical do ser versus parecer. Em Cem Anos de Solidão, existe o depois, o antes, como também os deslocamentos temporais e, em cada sequência, a fábula está focada em duplas ou trios de personagens da família Buendía e, ao descrever essa família, dentro dela está o elemento da coletividade, pois das existências desses indivíduos, cria-se toda a geografia e todo modo de ser e de viver do povoado de Macondo. b) Estrutura de conteúdo – A narrativa é dividida em sequências nas quais há elementos correspondentes articulados ao conteúdo, estando presentes os temas da solidão, do incesto, da presença da morte desde que o patriarca assassina em nome da honra e passa a ser assombrado, tanto ele como sua esposa Úrsula, pelo fantasma do morto. Além desses, também são abordadas as vivências trocadas de descendentes, a repetição dos ciclos de início e término de vida de gerações com os mesmos nomes são somente distinguidas, muitas vezes, por detalhes perceptíveis para que o leitor não se perca na linearidade colocada dentro de uma espiral fabular. 51 Cem Anos de Solidão é subsidiado por várias micronarrativas articuladas para um mesmo 37 eixo central. Segundo Todorov, “não há narrativa sem micronarrativas ” e ela é constituída pelo encadeamento e o encaixe de micronarrativas, pelas diferentes combinações de várias micronarrativas de estrutura estável. Já o discurso literário descortina-se por meio do narrador enquanto as sequências se referem à história que se conta. Quanto aos efeitos de sentido na análise da leitura, “o que finalmente será reconhecido como pertinente para a descrição, depende da isotopia geral da mensagem, isto é, da dimensão do universo mitológico do qual o mito particular é a manifestação” (GREIMAS, 2013, p. 74), pois as transformações dos elementos narrativos se situam no interior do mito-ocorrência. c) Código: As metamorfoses dos personagens podem ser reconhecidas no nível do código, sendo esse o terceiro componente do mito, engendrado em uma estrutura formal e constituído por categorias sêmicas para dar conta do conteúdo da dimensão escolhida do universo mitológico. No caso de Cem Anos de Solidão, a tragédia é um elemento desse código. No fim das contas, a 38 armadura e o código, o modelo narrativo e o modelo taxinômico são os componentes de uma teoria da interpretação mitológica, pois as funções do conhecimento dessas duas estruturas são responsáveis por produzir as mensagens míticas. Relacionando conceito de código aos escritores latinos da transculturação, nota-se que eles fogem tanto do racionalismo lógico da narrativa regionalista, quanto da falta de lógica e 39 fragmentação defendida pela vanguarda. O elemento que torna a produção inovadora é o mito , em que o mais importante é a descoberta dos seus mecanismos mentais e geradores, como o retorno a essa camada aparentemente sepultada, mas de enorme potencialidade criativa. O mito, tomado como referencial nessa perspectiva, não é somente fonte de apreciação e preservação, mas também passa a ter uma configuração nova de estrutura mental literária, segundo a qual se interpreta a cultura modernizadora e até mesmo a tradição local. A ressignificação e a constituição mítica do pensamento servem como filtro para interpretar-se as relações de dependência econômica e cultural, além do conflito existente entre a cultura tradicional local e a cultura universal, mas não deixa de preservar, em seu cerne, o caráter modernista. Os autores da transculturação buscam suas inspirações e múltiplos instrumentais de fazer artístico na tradição das culturas às quais se originaram e, desse contato, conseguem produzir 37 Todorov apud Niel, 1978, p.16. 38 Classificação de uma determinada categoria de assuntos, objetos, seres de uma mesma espécie e, em Cem Anos de Solidão, a categoria da narrativa Enredo. 39 O mito é comumente mencionado em Estudos da linguagem como um saber que nos atravessa sem que o saibamos, assim como o inconsciente. Ele tem a função de dizer o indizível, explicar o inexplicável, fornecer respostas quando existe o questionamento, de forma metafórica, fornecendo organização e proporcionando um resgate necessário à fala do inconsciente. Para maiores informações, vide o artigo: No princípio era o mythos: articulações entre Mito, Psicanálise e Linguagem, 2009, p. 02. 52 suas composições literárias de forma primorosa porque, também, eles mesmos são produtos do contato entre as culturas regionais e as culturas universalistas. Quando os escritores transculturadores descobrem esse “repertório quase fabuloso de elementos que não haviam sido explorados nem utilizados livremente pela narrativa do 40 regionalismo ”, passam a utilizar-se deles nas suas criações estéticas. Nas sociedades ameríndias, a transmissão dos mitos da criação e daqueles que explicavam a realidade sempre ocorreu pela via oral nas festas coletivas, em que ocorriam os rituais, as pinturas corporais, a execução dos instrumentos musicais, seguindo um padrão determinado de rituais dos mais variados. Os mecanismos mentais basilares dos mitos são as redes analógicas, em que esses são engendrados a partir das relações associativas entre os objetos e suas relações frente às percepções sensíveis e às transposições dos enfoques culturais à realidade, tornando-as uma ciência mítica. Para que isso ocorra, é necessário manejar a dialética empreendida entre mito literário e pensar mítico, diferenciando os produtos do contato cultural sem que as obras sejam identificadas como “criações da modernização urbana”, tampouco do regionalismo ou de narrativas as quais partilhavam certas matrizes de origem. Em outras palavras, as elaborações que persistiram na 41 América latina como o acrioulamento das produções artísticas europeias e sua hibridação no decorrer de longos períodos temporais. Assim, com o surgimento e desenvolvimento de técnicas escritas, o campo de integração e mediação do sistema literário latino-americano surtia efeitos por meio de uma estrutura semiconsolidada, em que, por ele, as ações transculturadoras passam a alimentá-lo e consolidá-lo. Por ele, os escritores passam a criar suas obras dentro de circunstâncias específicas nas culturas das quais receberam educação formal e informal e desenvolvem os processos transculturais de escrita através do conflito originado do embate entre a herança regionalista e o iminente modernismo. Podemos, então, pensar em como se realiza essa hibridação entre a cultural local e a cultura universalista? A partir dos trechos do romance analisado, podemos inferir que se defende o local e questiona-se a cultura advinda do estrangeiro, denunciando seus desvios e a decadência que traz às comunidades locais. Desse modo, a escolha pela defesa da cultura do marginalizado é clara. Esta postura não constitui, no entanto, a transculturação, uma vez que ela possivelmente se origina do posicionamento crítico, ideológico e político do escritor. 40 RAMA, 2001, p. 224. 41 O termo “crioulo” no contexto hispânico diz respeito às escritas de descendentes étnicos peninsulares, os nascidos na América, e não como significado de mestiçagem como comumente usamos no Brasil. Esses extratos sociais letrados buscavam uma forma de produzir que lhes concebesse uma nova identidade gerada por meio dos embates de suas culturas locais com as advindas do elemento colonizador. 53 4.2 A vereda da transculturação Para comprovar os elementos da transculturação na obra em análise de García Márquez, recorremos a Ángel Rama em sua Transculturación narrativa en América latina e Literatura e cultura na América latina. Dividimos as etapas desta análise em três níveis na produção literária do romance, em que os processos de transculturação ocorrem – o linguístico, o composicional e o da cosmovisão do escritor. Fazemos menção aos três, mas para o cerne da análise, recortamos no nível da composição literária. Ao desenvolver esse conceito, Rama (1987) objetiva analisar a obra do peruano José María Arguedas, Por seu interesse ser mais enfático sobre as questões sociais e as relações interculturais no cerne da cultura latino-americana, ele tece uma análise mais crítica do que teórica, no entanto não desprezou aquilo que Órtiz, seu predecessor, construiu no plano teórico. Pelo contrário, utilizou e ampliou as perspectivas de análise. Baseando-se nas contribuições dadas por Rama, a análise inicial visa refletir acerca do foco narrativo e os processos de transculturação apontados pelo teórico, buscando delinear o entendimento a respeito de quais relações culturais estão implícitas e explicitas na maneira como o foco se apresenta no romance. A transculturação deixa em evidência que a questão referente à produção literária como resultado do contato existente entre as formas que a cultura humana se mostra no ocidente, ou seja, o original, o particular e o peculiar – que assume nomenclaturas diversas como regionalismo, localismo, diversidade –, tende a fixar uma particularidade ou particularidades culturais. Por outro viés, existe o universal, no qual se rege pela lei de que alguns de seus valores sejam inerentes e identificáveis por todas as sociedades humanas. Rama define três traços que geram as culturas regionais: o histórico, pois este dá-nos a compreensão de que a localidade à qual pertence o escritor em questão era reconhecida como um espaço em que existia uma cultura anterior, estabelecida posteriormente por razões diversas; o geográfico, sob o qual a região se manteve em isolamento durante um determinado período antes do processo “civilizador” chegar e, com a chegada do sistema social imperante, este se opõe sistematicamente aos de grupos socialmente subjugados. Esses grupos, ainda que minoritários, aferram-se a seus valores como meios de produção e existência. O termo transculturação foi adotado por Órtiz, bem antes de Rama, para substituir expressamente o termo ‘aculturação’ adotado por seus antecessores. A diferença entre o uso dos dois termos marca a diferença cultural dos grupos aos quais pertencem os seus elaboradores. Essa diferença marca uma tendência regionalista e frente à outra, universalista. Enquanto a primeira defende a perspectiva de simbiose em que a cultura de dominados continua inerte, ainda 54 que viva dentro dos núcleos minoritários, a última defende o oposto, ou seja, ao se distanciar da sua cultura originária, esta passaria a ser esquecida pelo aculturado por ele assimilar o discurso do Outro de forma passiva e apática, sem contestá-lo de forma alguma. A cultura de caráter originária particular é nomeada por Rama como ‘rural’, ‘regional’, ‘tradicional’ e, às vezes, ‘local’; a de caráter universal é designada como ‘universalizante’, ‘modernizadora’ e, muitas vezes, ‘urbana’. Ao observar as características daquele, nota-se, em sua gênese, a cultura dos grupos minoritários, violentados pelo processo de colonização da América latina, especialmente os indígenas; as características deste, por sua vez, originam-se das culturas de potências imperialistas europeias e constituíram o que se conhece como cultura ocidental. Para entendermos um pouco mais esses conflitos, vejamos alguns pontos importantes a seguir. 4.3 Regionalismo versus Modernismo A narrativa fantástica e a realista-critica, já nos anos 1930, determinaram, ao expandir suas fronteiras artísticas e suas propostas estéticas narrativas, o arrefecimento do movimento narrativo regionalista na maioria das áreas do continente latino-americano. Esse movimento na América latina foi um movimento que colocava, em destaque, o papel da cultura local nas produções narrativas e estéticas de seus escritores. Já a narrativa social, bem como a realista-crítica, eram propostas engajadas contra os postulados fascistas que assolavam o mundo na época e havia, em ambas, elementos de uma modernidade emergente, marca de sociedades que se urbanizavam e a adoção de esquemas primários advindos de modelos importados. Dadas essas características, nota-se que o realismo crítico e o fantástico portenho eram considerados como vertentes do pensamento conservador. No entanto, segundo Rama (2001, p. 210), ao invés de haver um confronto de ideias e princípios entre essas duas fronteiras, ocorreu uma transmutação do regionalismo, principalmente no que diz respeito às temáticas rurais e um estreito contato com elementos tradicionais e considerados muito antigos da vida social latino-americana. O regionalismo, principalmente, soube resguardar um importante conjunto de valores literários e de tradições locais, sendo isso possível por sua adaptação às novas estruturas literárias que, embora fossem aproximadas, não eram análogas, pois “grupo de escritores viu, com muita lucidez, que se o regionalismo fosse congelado entraria em agonia de morte em sua disputa com o vanguardismo e o realismo crítico” (RAMA, 2001, p.211.). Em outras palavras, se o regionalismo entrasse em processo de extinção, haveria uma perda irreparável do conteúdo cultural que, somente 55 por meio da literatura, poderia sobreviver, tendo em vista que sua ação integradora sobre o meio social não poderia ser cumprida por outros canais no nível artístico. Era justamente o regionalismo que acentuava as particularidades culturais das sociedades periféricas em relação aos grandes centros urbanos, conservando os elementos do passado e mantendo seu singular constructo social e privilegiando os meios pelos quais poderia preservar suas 42 configurações originais e transmiti-las às gerações futuras. Um desses elementos da cultura era a tradição realçada pelo regionalismo, tanto na vereda dos valores sociais quanto nas expressões literárias que os fixa. Isso ocorre justamente porque as expressões das estruturas literárias são as que resgatam as transformações sociais e buscam preservar os mesmos valores, articulando-os às novas perspectivas cognitivas distintas. Dessa forma, a vertente regionalista passou a levar aos conglomerados urbanos da América Latina as contribuições culturais provenientes do meio rural, adequando-as às novas condições estéticas que ali foram idealizadas, passando a ser absolvidas, desintegradas e mescladas aos modelos estrangeiros de maior prestígio, por serem considerados universais. Os regionalistas, cientes da ruptura que se aproxima, respondem ao conflito existente entre os diferentes setores internos que compõem a cultura latino-americana, pois enquanto assistem a uma aceleração modernizadora, notam o quanto era desigual a evolução experimentada e os diversos ingredientes originários empregados em suas composições. Por isso, o regionalismo, confrontado com o movimento modernizador, começa a agir vendo a possiblidade de que “as fontes externas transferem para o interior da nação um sistema já consolidado de dominação, cópia de dependência de outros sistemas culturais de outras sociedades colonizadoras, intensificando sua submissão”. (RAMA, 2001, p. 213). Ora, essas relações acima mencionadas podem ser encontradas na literatura, pois esta faz parte da cultura e nela se pode recorrer, em muitos casos, como instrumento de constituição da identidade de um povo. Quanto mais a literatura expuser essas questões, tanto mais importante ela é para a sociedade e as culturas em questão. Segundo Rama, na América Latina, o conteúdo das culturas locais só poderia sobreviver por meio das tradições orais, e pela literatura. As relações entre uma cultura universal e uma cultura particular plasmadas na literatura ganham, quando Rama adota o conceito de transculturação de Órtiz, outra perspectiva de análise, em que se possibilita pensar a experiência da dominação colonial e da inferioridade econômica e política de determinada região, mas também a gênese de algo novo, inusitado em termos de experimentação literária e a busca de uma identidade artística própria, fruto desses embates 42 A palavra cultura está sendo, nesse contexto, traduzia como herança cultural. 56 culturais. Disso deriva o fato, segundo Rama, da narrativa latino-americana ter como aspectos ou intenção fundamental a independência e a originalidade, pois Siempre, más aún que la legítima búsqueda de enriquecimiento complementario, las movió el deseo de independizarse de las fuentes primeras, al punto de poder decirse que, desde el discurso crítico de la segunda mitad del siglo XVIII hasta 43 nuestros días, ésa fue la consigna principal: independizarse. (RAMA, 1987, p.11) Em outra menção a esse desejo de diferenciação, de deixar claro que as mudanças de referenciais criadoras seriam muito mais profícuas e benéficas no campo das artes, ele diz que o principal seria corresponder ao “El criterio de representatividad, que resurge en el período 44 nacionalista y social, aproximadamente de 1910 a 1940” . Isso deixa entrever dois aspectos que são muito importantes na constituição do fazer literário latino-americano: o desejo de diferenciar-se da metrópole colonial e a maneira como isso poderia ser feito, tendo como aspecto fundamental o que ele chama de critério de representatividade. Esse desejo de independência se materializa na literatura, começando pela escolha do elemento geográfico – a exemplo da língua autóctone, a mitologia indígena, elementos da cultura cigana e dentre outros – como aspecto representativo fundamental no processo de diferenciação. Esse processo se aplica à América latina de maneira geral, incluindo o Brasil, tendo em vista que o regionalismo acentua as particularidades culturais que haviam sido forjadas em áreas ou sociedades internas, contribuindo para definir seu perfil diferencial. As etnias locais e grupos sociais subscritos não são um dado natural, mas uma seleção de elementos que serão utilizados para 45 representar uma determinada cultura a fim de identificá-la, sendo esta a ideia de regionalismo que percebemos na obra. O regionalismo, na perspectiva de Rama, consiste na representação artística de aspectos locais escolhidos como ícones arquetípicos de uma cultura que se quer manter frente ao risco do desaparecimento. A condição que se apresenta como sendo a de dominado, de marginal, já traz implícita a constituição de uma nova identidade que se forma. 43 Sempre, mais ainda que a legítima busca de enriquecimento complementário, motivou-as o desejo de se tornarem independentes das fontes primárias, ao ponto de poder se dizer que, desde o discurso crítico da segunda metade do século XVIII até nossos dias, essa foi a intenção principal: serem independentes. (RAMA, 1987, p.11, tradução nossa). 44 O critério de representatividade, que ressurge no período nacionalista e social, aproximadamente de 1910 a 1940. (RAMA, 2001, p. 15, tradução nossa). 45 Esse regionalismo, que menciona Rama, diz respeito a de regiões culturais extensas e nitidamente delineadas dentro de países grandes ou pequenos, em que seja possível observar traços comuns, cujo mapa não se ajusta às fronteiras estabelecidas administrativamente. Para ele, esse mapa seria o mais verdadeiro do que o que se estabelece normativamente pelos países independentes da América Latina. Para melhor entendimento, ver: RAMA, 2001, p.57-58. 57 A relação, neste caso entre dominador e dominado, deve ser vista de outro prisma, pois já não é o dominador que facilmente pode excluir ou inferiorizar o dominado em sua narrativa, mas é o momento de o dominado criar a sua própria. Nesse momento, ele precisa reelaborar a história de modo que ela lhe seja favorável. Rama discute as três formas de reagir das culturas dominadas em relação ao processo modernizador advindo das metrópoles: a vulnerabilidade, a rigidez e a plasticidade cultural. Em uma primeira forma, haveria uma renúncia às próprias peculiaridades culturais; a segunda, caracterizar-se-ia por um apego exacerbado aos próprios produtos culturais e a terceira, a própria transculturação, que reelabora o elemento externo a partir do interno e vice-e-versa. Nessa conjuntura, Rama vai detectar nas narrativas transculturais que os autores encontram a solução dessas questões por meio da assimilação das tradições locais, orais, associando-as às novas tendências e estruturas artísticas, compondo assim o que ele chama de ‘plasticidade cultural’. A plasticidade cultural consiste na destreza para integrar, em um produto, as tradições perpetuadas na mentalidade coletiva de uma sociedade considerada retrógrada às novidades advindas de outras culturas diferentes da sua e mais desenvolvidas. Cada escritor que opta por essa última vertente de abordagem cultural não a considera apenas como um simples sincretismo, pois entende que cada cultura possui uma estrutura e que a adesão de novos elementos de origem externa exige uma rearticulação total da estrutura cultural própria, a regional, e novas formas destacadas dentro delas. Para um criador, são articulações artísticas, no entanto, nelas se pode apreender uma propositiva cultural resultante do confronto entre culturas distintas. Por meio dessa capacidade criadora, o artífice da palavra passa a integrar, em sua composição literária, as tradições locais adormecidas no traço das mentalidades coletivas e as novidades advindas das vanguardas europeias e expoentes modernistas. Essa plasticidade cultural se origina a partir da relativização da própria linha regionalista, pois as comunidades ameríndias perceberam que a resistência radical implicaria em morte cultural. Para que isso não ocorresse, seria necessário haver uma transmutação do regionalismo para salvar seus traços mais acentuados da mortandade cultural imposta pela pressão exercida da cultura dominante. A tendência dos meios urbanos à universalidade e a tendência às migrações internas em direção às cidades fazem com que a cultura de tendência universalista se alastre. A literatura foi o único meio, segundo Rama, que manteve viva a identidade das tradições rurais na América Latina, ou pelo menos teve essa intenção. Essa manutenção, no entanto, não está calcada no resgate e preservação das tradições rurais, senão na reelaboração dessa tradição a partir de elementos híbridos que, aproveitando-se de aspectos da cultura universalizante, mantêm-se como material para criação viva e não para apreciação museológica. (ALMEIDA BARBOSA, 2006, p. 33-34) 58 Ou seja, os elementos das culturas existentes, antes do período da tomada de território pelos europeus, permanecem vivos no traço das mentalidades, nas tradições orais das sociedades ágrafas e nas pessoas de diversas etnias, tanto as nativas aqui na América latina, quanto as trazidas pela empresa de conquista, como os africanos, cristãos novos, árabes e povos ciganos desterrados da península ibérica e outros rincões. 46 A partir do segundo nível de interpretação proposto por Rama, é no elemento da transculturação que podemos perceber como a composição literária vai assimilar as inovações selecionadas pelo escritor no plano narrativo. O autor transcultural vai se distanciar do plano de composição tradicional do regionalismo, no entanto também vai se distanciar do stream of consciousness, marca distintiva de muitas narrativas modernas. Percebemos que a resolução encontrada para se produzir nessa região de fronteira foi buscar na tradição cultural, principalmente nas fontes orais, a forma para transmutar o conhecido em algo novo e original. Esse aspecto é muito importante, pois é o que diz respeito ao ponto de vista e ao modo de narrar uma história. Na prática, a cultura transculturada – nascida do contato de culturas diferentes –, conserva os valores originais, passíveis de serem detectados dentro da sua historicidade e cuja energia criadora atua tanto na sua herança particular, quanto nas incorporadas do exterior. Quanto ao nível linguístico, em que a transculturação incide sobre os aspectos sintáticos e morfológicos da língua, aparecem palavras, expressões locais, bem como constructos oracionais que destacam aspectos e importância das línguas ameríndias no seio da família Buendía, mas perpassado no texto pela linguagem de aspecto culto, formal do autor. as crianças ficaram relegadas a um segundo plano. Ficaram aos cuidados de Visitación, uma índia guajira que tinha chegado à aldeia com um irmão, fugindo da peste da insônia que flagelava sua tribo fazia vários anos. Ambos eram tão dóceis e servis que Úrsula resolveu abrigá-los para que ajudassem nas tarefas domésticas. Foi assim que Arcádio e Amaranta falaram a língua guajira antes do castelhano, e aprenderam a tomar caldo de lagartixas e a comer ovos de aranhas sem que Úrsula percebesse, porque andava demasiado ocupada com um negócio promissor de animaizinhos de caramelo. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 79) Observemos que a língua indígena já se fazia bem marcante no padrão comportamental dos pequenos Buendía, dada a criação recebida dos indígenas, bem como suas formas de expressão que abarca uma cosmovisão diferente do elemento colonizador peninsular do qual a família trazia em 46 Nível da composição literária abrange desde as categorias da narrativa, os aspectos linguísticos e os elementos culturais oriundos das diversas etnias em contato no continente, somados às tradições literárias ocidentais que servem como molde para compor a unidade artística que se propõe a criar. 59 sua matriz genética e cultural, pois “as obras literárias não estão fora das culturas, mas as coroam, e nas mediações em que essas culturas são invenções seculares e multitudinais, faz do escritor um produtor que trabalha com as obras de inúmeros homens” (RAMA, 2001, p. 247-248.) A América Latina é essa fonte acumuladora cultural interna, com matéria prima suficiente para fornecer elementos de cosmovisão, língua e técnicas de produção estilística e estética literárias. A personagem Rebeca, por exemplo, chega à casa dos Buendía com uma carta referendando-a como filha órfã de parentes desses. Mesmo ninguém se lembrando da parte de quem se tratava, adotaram-na. Contudo, a menina somente iniciou sua comunicação verbal por meio da língua indígena. Rebeca era tão rebelde e tão forte, apesar de seu raquitismo, que tinham que agarrá- la pelo pescoço, como um bezerro, para que engolisse o remédio e mal conseguiam reprimir suas pedaladas no ar e suportar os arrevesados hieróglifos que ela alternava com mordidas e cuspidas e que, segundo os escandalizados índios, eram as obscenidades mais grosseiras que se podia imaginar em seu idioma. Logo se revelou que falava castelhano com tanta fluidez como a língua dos índios. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 84) Nessa passagem, menciona-se o uso comum das duas línguas pela personagem, a do colonizador e a língua autóctone dos índios que convivem no mesmo núcleo familiar dos Buendía. Em outras passagens, podemos averiguar o contato entre culturas linguísticas diferentes por meio de outros personagens que protagonizam algumas das micronarrativas da obra, como é o caso de José Arcádio, o patriarca, que depois de achar-se louco, debate em latim com o vigário de Macondo sobre a existência de Deus e o sânscrito, que era a língua na qual os pergaminhos de Melquíades, o cigano, eram escritos. O cigano Melquíades é outro personagem marcante. Seu grupo de ciganos nômades foram o principal meio de contato de Macondo com o mundo externo. Sob o estigma de uma etnia perseguida, esse homem foi o melhor amigo de José Arcádio Buendía e seus manuscritos só permitem a decifração no fechamento da narrativa, por Aureliano Babilônia, o penúltimo dos Buendía. Eles revelavam toda trajetória de vida dos fundadores de Macondo, a família Buendía em todas as sete gerações. Isso nos faz detectar o oráculo de Édipo Rei, que previu toda a tragédia que sobreviria sobre o rei Laio e sobre o destino de Édipo, cumprindo sua função como prognosticador. Enquanto na obra de Sófocles o destino da família era antecipado pelo oráculo, em Cem Anos de Solidão, o destino se revela no final não deixando dúvidas a intertextualidade e o paralelismo entre as duas obras. Outra vez podemos perceber a reelaboração do elemento interno pelo contato com o externo, 60 pois Édipo Rei foi uma das obras que García Márquez citou ser de sua predileção, assim como o imperador romano Júlio César. Quanto ao que se quer averiguar em nível de cosmovisão, a alternância acontece de maneira conflituosa entre o que foi inicialmente a religião e a moral católica versus o paganismo e a selvageria dos ameríndios, liberalismo versus conservadorismo. No episódio de Cem Anos de Solidão, que aborda a guerra civil, é um exemplo emblemático: o pensamento social revolucionário contra o pensamento retrógrado oligárquico. Além desse, a greve dos trabalhadores contra a companhia bananeira, que culminou na matança dos primeiros, é outra passagem para ser levada em consideração dentre outras que se presentificam na narrativa. Embora o romance apresente essas projeções sociais, deve-se ressaltar que a visão mítica prevalece em toda a obra. O mito funciona como forma de apreender a realidade dentro da perspectiva da cultura local, bem como a maneira pela qual o autor se apropria da tradição e dos mitos ocidentais, reintroduzindo-os no espaço da escrita e composição literária, pois acreditamos que a análise do processo de transculturação nos níveis linguístico e da cosmovisão dependem fundamentalmente do nível da composição literária. Uma passagem sobre essa questão da produção transculturadora trabalhar com a dimensão de outras culturas escritas, pode ser ainda exemplificada na passagem em que Amaranta recebe a visita da morte na varanda das begônias em que estava bordando. Um encontro entre realismo fantástico e cânon ocidental literário. Amaranta parecia carregar na testa a cruz de cinza da virgindade. Na verdade levava essa cruz na mão, na venda negra que não tirava nem para dormir, e que ela mesma lavava e passava. Sua vida se esvaia em bordar o sudário. Dava para dizer que bordava durante o dia e desbordava a noite, e não com esperança de assim derrotar a solidão, mas ao contrário, para sustentá-la. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p.295, grifos nossos) Nessa visita que recebeu da morte, ela recebeu ordens de tecer sua própria mortalha e que morreria na noite que acabasse de terminá-la. A intertextualidade é evidente entre o bordar e desbordar de Amaranta e o tecer e destecer de Penélope, a esposa de Ulisses, o grande herói da Odisseia. Penélope tecia para esperar o retorno de Ulisses ao reino de Ítaca, sob pressão para escolher um novo pretendente ao trono. Amaranta tecia para se manter viva e burlar a morte, pois queria testemunhar a morte de Rebeca, sua rival: ambas fizeram o trabalho manual se estender por anos. Isso é reelaborar o elemento externo a partir do interno e vice-e-versa. Dessa maneira, é por meio do enfoque narrativo que sabemos em que medida, tanto nas personagens quanto no narrador, o escritor se projeta como sendo um artista da transculturação, criando um produto literário transculturado desde a cultura local com direto paralelismo semântico com a universal. 61 Ademais, a temática da morte e a presença de mortos sempre aparece em passagens da obra como parte do cotidiano dos Buendía: do desterro de José Arcádio, o patriarca, que assassina Prudêncio Aguillar devido a uma afronta sofrida – fantasma esse que vai lhe assombrar no decorrer de sua vida em Macondo e com o qual conversava amarrado na castanheira –, até o fantasma de Melquíades visitando o lar dos Buendía para instruir Aureliano na decifração dos seus pergaminhos em sânscrito e mantê-los a salvo de qualquer infortúnio. Quando José Arcádio, o Buendía que foi enviado para Roma na esperança de se tornar papa e retorna a Macondo em busca da sua herança (que nunca existiu), encontra sua mãe morta e somente Aureliano Babilônia ocupa a casa, depois de quase décadas de sua partida, pois “Para ter a certeza de não perdê-lo nas trevas [da cegueira], ela [Úrsula] tinha dedicado a ele [José Arcádio, filho de Fernanda de Caprio] um canto do quarto, o único onde poderia estar a salvo dos mortos que perambulavam pela casa a partir do amanhecer.” (García Márquez, 2014, p. 402, grifos nossos). O espectro do morto foi introduzido na literatura por meio do teatro de William Shakespeare, na dramaturgia de Hamlet, como personagem de ficção. A presença dos mortos na casa desolada também é um elemento das sociedades pré- colombianas que os vê como amigos, com os quais têm que conviver e dos quais não se pode escapar. Vivos e mortos se reconhecem sem perspectivas, marcados por acontecimentos anteriores, pois estão circunscritos em um mesmo local e estão, pela morte, associados à solidão. Ela é um elemento transculturador por enlaçar as perspectivas dos viventes, tanto ameríndios quanto europeus, como fator inerente na narrativa que estabelece conexões entre sociedades e culturas distintas e reflete-se diretamente como temática na produção literária. São poucas as passagens em que as personagens falam em discurso direto em Cem Anos de Solidão, porém isso ocorre quando menos se espera. Quando estamos já habituados, enquanto leitor da obra, com o narrador em terceira pessoa, o autor introduz um pequeno diálogo como forma de ilustrar uma discussão metafórica para além do texto sobre conhecimento científico e dogma religioso, como o caso da passagem em que José Arcádio fala a Úrsula a respeito da descoberta de a terra ser redonda como uma laranja. - A terra é redonda como uma laranja Úrsula perdeu a paciência. “Se é para ficar louco, pois que fique você, sozinho”, gritou. “Não trate de pregar nas crianças suas ideias de cigano.” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p.295) Essa alternância dada ao enfoque narrativo entre a primeira e a terceira pessoa do discurso é uma técnica bastante utilizada nas narrativas do ocidente, pois de acordo com o desenvolvimento do enredo, o narrador onisciente pode passar a narração para algum personagem, dando-lhe a voz 62 para melhor dimensioná-lo. Essa problemática não consiste somente no plano da narração, mas na diferenciação entre ela e a composição do diálogo, em que, muitas vezes, o que ocorre não é a transmissão da voz narrativa para o personagem, mas apenas a sua fala inserida diretamente no período narrativo, com ou sem marcação gráfica. A afirmação de que há mudança de foco vem, na verdade, do fato de que essa fala em primeira pessoa pode se estender por muitas páginas, narrando ou não. Essa mudança é sentida de várias maneiras, podendo ser pré-anunciada, advinda e separada da fala do narrador por sinais de pontuação (ou mesmo pela ausência deles), ou sendo demarcada na diferença de linguagem entre narrador e personagem, ou pode ser percebida pela própria estruturação sintática e pelo uso dos tempos verbais ou dêiticos que permitem, mesmo sem marcação, a identificação das fronteiras entre personagem e narrador. Em Cem Anos de Solidão, a narrativa vai e volta na escala temporal e fica ao encargo do leitor montar o quebra-cabeça e se situar na narrativa na qual abundam os discursos indiretos e diretos livre. Para refletirmos a condição preponderante do autor na construção narrativa, e como o fazer literário pode ser veículo de denúncia da realidade social, escolhemos o caso do massacre ocorrido na companhia bananeira situada em Macondo (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p.332-345) do qual a personagem de José Arcádio Segundo foi testemunha. Ele sobreviveu ao morticínio e quando retornou para casa, surpreendeu-se que ninguém mencionava o fato e diziam que tal coisa nunca havia ocorrido em Macondo. Uma rede de silêncio cuja única voz dissonante era a sua. Com o passar dos anos, ele ensinou Aureliano Babilônia a ler e escrever e contou ao menino o que tinha vivenciado. Depois de muito tempo, certa feita, Aureliano ouviu certa pessoa reclamar da ruína e que Macondo estava mergulhada depois que a companhia bananeira tinha ido embora. Aureliano o contradisse com uma maturidade e uma argumentação de pessoa adulta. Seu ponto de vista, contrário à interpretação geral, era que Macondo tinha sido um lugar próspero e bem encaminhado até que foi desordenado e corrompido e espremido pela companhia bananeira, cujos engenheiros provocaram o dilúvio como pretexto para aludir compromissos com os trabalhadores.[...] o menino descreveu com detalhes precisos e convincentes, como o exército tinha metralhado mais de três mil trabalhadores encurralados na estação, e como carregavam os cadáveres num trem de duzentos vagões e os atiraram ao mar. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p.382-383) Há evidência clara na referida passagem que esses deslocamentos do enfoque da narrativa marcam os indícios da presença do autor implícito, o qual opta por apresentar, na voz do narrador onisciente, um acontecimento do mundo real e que denuncia por meio do fazer literário. O autor pode até usar de artifícios para as personagens aparentarem autonomia e viverem por si mesmas, no 63 entanto, aos olhos do perspicaz leitor atento e crítico, a tentativa de controle de construção criativa constante exercida por ele soa como as manifestações das várias vozes do autor no texto. Há, também, a intertextualidade na passagem bíblica de Jesus no meio dos doutores nesse trecho da obra, fazendo um comparativo entre Aureliano Babilônia e o cristo. A teoria do autor implícito foi proposta por Wayne Booth (1961) como uma crítica às colocações de Henry James (1964) e Percy Lubbock (1976), que afirmavam que o autor deveria ao máximo se afastar, se imiscuir da obra, buscando uma dramaticidade e não deixando indício de que há uma mente por trás da narrativa e, principalmente, das personagens. Booth, em contrapartida, afirma que, invariavelmente, o autor está implícito em todas as ações, falas, arranjo de intrigas etc. que venham a compor uma obra literária. (ALMEIDA BARBOSA, 2006, p.68) Nessa perspectiva proposta, a narrativa, não estando a cargo de uma personagem, será a representação direta do autor na obra. Por meio das memórias de cada elemento da categoria narrativa, apresenta-se a voz dele, que se revela de forma intensa nas meditações, no fluxo de consciência das personagens, nas situações apresentadas na trama, no contexto temporal de suas existências, entremeados pelos fatos presentes, passados e futuros descortinados pela espiral do tempo, ou como diz a personagem Úrsula Iguarán repetidas vezes na narrativa, “é como se o mundo estivesse dando voltas” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 232). O Autor, dessa forma, expressa-se pela personagem, pois enquanto o discurso se exprime pelas referências externas (lugar, tempo, entre outros), a narrativa se desenvolve por meio do desenrolar da ação. Se pela escola estruturalista nem se discute essa questão de autor, pois ele seria um componente externo que provém do contexto em que a obra é produzida, resta somente nos determos ao que o texto se presta. Nessa visão, o texto prescinde do autor, pois, no momento em que este o termina, já não possui domínio sobre ele. No discurso, alguém fala e sua situação no ato mesmo de falar é o foco das significações mais importantes. Em Cem Anos de Solidão, pesa o fato de que, ao se medirem quantitativamente os tipos de discurso e narração na obra, o primeiro supera em muito o segundo, estando ele a cargo do narrador, visto como poucas vezes soa as vozes das personagens que permeiam o enredo. 4.4 - Elementos da transculturação na obra Na obra, podemos detectar vários elementos que comprovam a fusão cultural, linguística e composicional de personagens. Muitas passagens evidenciam que a visão equivocada de que, em contatos culturais, somente houve perdas para os elementos étnicos indígena, cigano e regional não se consolidam, já que esses, de origem milenar, estiveram adormecidos e latentes no traço das 64 mentalidades das suas personagens mais representativas. Vejamos alguns exemplos da presença do elemento indígena no núcleo familiar durante boa parte da obra, em que se narra a enfermidade da insônia: Certa noite, na época em que Rebeca curou-se do vício de comer terra e foi levada para dormir no quarto das outras crianças, a índia que dormia no quarto com eles despertou por acaso e ouviu um estranho ruído intermitente no canto. [...] Pasmada de terror, angustiada pela fatalidade de seu destino, Visitación reconheceu naqueles olhos o sintoma da doença cuja ameaça a havia obrigado, com o irmão [Cautare], a desterrar-se para sempre de um reino milenar onde eram príncipes. Era a peste da insônia. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 85, grifos nossos) Toda essa passagem, que ainda prossegue até várias páginas seguintes, é expressa pela voz da índia na obra, alertando para o perigo iminente da peste da insônia e sua consequência mais nefasta: o esquecimento. Não é de se estranhar o pavor dela, já que a perda da memória condena a comunidade ao ciclo da repetição. No início, seus alertas foram alvo de zombaria, pois nas palavras de José Arcádio que, “morto de rir, concluiu que se tratava de uma das tantas doenças inventadas pela superstição dos indígenas” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 86), não acreditava que um fenômeno tão cercado de fantasia pudesse estar ocorrendo na vida cotidiana. Depois de começar a ver que aquilo que a índia falava tinha pertinência com a realidade, passou a ser levada em consideração e o próprio patriarca convoca os chefes das famílias para disseminar as informações adquiridas sobre a doença, por meio da personagem. Nessa passagem, podemos perceber a forma pela qual se configura a estratificação social das personagens. O casal de índios eram irmãos e príncipes de seus respectivos povos, fugiram de sua comunidade para escapar do destino fatídico de serem assolados pela peste: de altezas à condição de serviçais, fugitivos em busca de refúgio e sobrevivência, justamente no convívio daqueles elementos colonizadores responsáveis por sua extinção. Era Cautare, o irmão de Visitación, que havia abandonado a casa fugindo da peste da insônia, e de quem nunca mais se tornara a ter notícia. Visitación perguntou a ele por que havia regressado, e ele respondeu em sua língua solene: – Vim para o funeral do rei. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 180; 184) Para Cautare, o índio, se ele era príncipe do seu povo, José Arcádio Buendía era arquétipo do rei do reino macondiano. Depois de anos distante, tendo deixado sua irmã e nunca voltado para buscá-la, ele retorna para prestar sua última homenagem ao patriarca da família. Esses 65 príncipes irmãos foram adotados pelos Buendía e foram partícipes da convivência diária. Não foram molestados e nem explorados, pois Foi nessa época que Visitación morreu. Deu-se o gosto de morrer de morte natural, depois de haver renunciado a um trono por temor à insônia, e sua última vontade foi de que desenterrassem de debaixo da sua cama o salário economizado em mais de vinte anos e o mandasse ao coronel Aureliano Buendía para que continuasse a guerra. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 184, grifos nossos) Nessa passagem, podemos perceber que Visitación não foi explorada como escrava, uma realidade corriqueira durante o período da colonização, em que os ameríndios eram forçados a trabalhos que consumiam suas vidas em poucos anos. No episódio da peste da insônia, seu irmão fugiu e passou muitos anos para voltar e só o fez para o funeral de José Arcádio Buendía, o patriarca, já que sua presença era notadamente importante para a criação dos filhos menores e os afazeres domésticos. É perceptível, nessa passagem, que havia uma troca respeitosa e efetiva entre o elemento colonizador e o elemento nativo. As crianças ficaram relegadas a um segundo plano. Ficaram aos cuidados de Visitación, uma índia guajira que tinha chegado à aldeia com um irmão, fugindo da peste da insônia que flagelava sua tribo fazia vários anos. Ambos eram tão dóceis e servis que Úrsula resolveu abrigá-los para que ajudassem nas tarefas domésticas. Foi assim que Arcádio e Amaranta falaram a língua guajira antes do castelhano, e aprenderam a tomar caldo de lagartixas e a comer ovos de aranhas sem que Úrsula percebesse, porque andava demasiado ocupada com um negócio promissor de animaizinhos de caramelo. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 79) Observemos que a cultura indígena já se fazia bem marcante pelo padrão comportamental dos pequenos Buendía pela criação recebida dos indígenas, bem como suas formas de expressão linguística, que abarca uma cosmovisão diferente do elemento colonizador peninsular: tanto a língua guajira se fazia presente na composição do núcleo familiar, como se manifestava na personagem de Arcádio Buendía, filho de Pilar Ternera. No entanto, Arcádio tinha sido uma criança solitária e assustada durante a peste da insônia, no meio da febre utilitária de Úrsula, dos delírios de José Arcádio Buendía, do hermetismo de Aureliano, da rivalidade mortal entre Rebeca e Amaranta. [...] Jamais conseguiu se comunicar com ninguém melhor do que com Visitación e Cautare em sua língua. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 151, grifos nossos) Um ser do entre lugar, entre culturas, entre valores e expressividades distintas da sua gênese hereditária. Em outra parte da narrativa, a personagem expressa seu mal-estar de não encontrar seu lugar no mundo, de ser o estranho no ninho, o cuco criado no ninho de outro pássaro, 66 pois certa feita, esse mesmo Arcádio foi interpelado na taberna de Catarino – um lugar onde os homens davam a beber e às licenciosidades –, que não merecia o nome da família que tinha, algo que não condizia com sua origem e, ao contrário do que muitos esperavam, respondeu: “– com muita honra – disse – não sou um Buendía” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 152). Arcádio é uma personagem marcante em que podemos destacar os elementos da transculturação gerada pelo encontro de culturas opostas. Sua língua, seus valores, sua maneira de conceber o mundo demonstravam a ânsia de expressividade distinta dos traços colonizadores de sua família e a sua identificação com a etnia indígena por meio da língua. Para ele, a sua língua materna era a guajira, não o castelhano. No comportamento, ele era totalmente diferente dos homens da sua família, evidenciando a ausência de seu lugar no mundo. Em sua morte, exaltou o partido liberal e expressou até o fim o desejo de mudanças e de um mundo que pudesse assimilar o diferente. Outro aspecto da obra que nos chama a atenção e no qual podemos detectar o arquétipo do poder, muito presente na constituição do mito. José Arcádio Buendía é um perfeito exemplo de arquétipo das sociedades regionais por possuir um evidente traço de predileção de suas raízes aristocráticas. Sua origem ibérica é aludida na narrativa, bem como a de Úrsula, sua esposa. Ambos são traços da concepção aristocrática de mundo, objeto de idealização, segundo RAMA (2011, p. 320), oriundas do universo dos senhores territoriais da Idade Média, um passado que subsidia a composição de tipos de homens que estão presentes em diversas obras de García Márquez. O coronel Aureliano Buendía, personagem que abre a narrativa de Cem Anos de Solidão, é um símbolo inconteste da resistência regional ao travar dezenas de batalhas. No fim de seus dias, distancia-se do mundo por ver a destruição de seus valores, sobre os quais manteve firme sua cosmovisão do mundo, sendo relegado como nada, quando tudo em que acreditava e tudo pelo qual lutou entra em contradição: seu partido político celebra aliança com o partido opositor, rendeu-se aos reclames da modernidade, às condições políticas, econômicas e sociais dos habitantes de Macondo. A respeito desse fenômeno, observamos quando o alcaide Dom Apolinar Moscote chega a Macondo como emissário do governo da capital e quer impor que as pessoas de Macondo pintem suas casas de azul. José Arcádio Buendía lhe confronta e diz: – Nesse povoado não mandamos com papéis – falou sem perder a calma – E para que o senhor fique sabendo de uma vez por todas, não precisamos de nenhum alcaide nem de corregedor nem de nada disso, porque aqui não tem nada para ser corrigido (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 98). O Alcaide era o elemento de autoridade externo, chegava a Macondo para impor a vontade do grande centro urbano e executar as ordens vindas de lá e impor o ritmo das transformações 67 desejadas pelo poder central do governo conservador. Um modelo moderno, burocrático e que buscava intervir no cotidiano e controlar o modo de vida e comportamentos sociais. Assim, não havia como evitar o confronto com o líder comunitário, o patriarca dos Buendía, cuja tradição e poder se conhecia pela sua força vital e sua palavra. Mesmo sob pontos de vista diferentes, a união desses inimigos se consolidou por meio do casamento de seus filhos, assim se acomodou o choque e o confronto do elemento regional com o elemento modernizador. Esses homens representam, dentro da obra, o sistema cultural que os produziu, pois existe em José Arcádio Buendía uma visão culturalista que defende uma tradição local, um sistema de valores austeros, um passado que modelou os homens da região, realçado pela ruína econômica em que se encontram e pelos estreitos laços que são capazes de desenvolver com a plebe que participa da mesma cultura. Assim, a ação narrativa se torna mediada pela sua função mítica, o arquétipo, intrinsecamente ligada à cosmovisão das sociedades pré-colombianas. É nesse esquema de forças que as personagens transitam, por meio de um narrador da obra que tece o fio narrativo, servindo na função de mediador, um dos papéis cruciais do processo transculturador. Por meio dele, também, transmite-se o legado cultural a uma nova instância do desenvolvimento modernizador. O escritor se serve desse mediador para desenvolver a fábula, através das personagens que desempenham essa dialética de forças no decorrer da obra. A América latina sempre foi pródiga em possuir uma ampla diversidade cultural e por abrigar, em seus territórios de extensões continentais, distintas regiões culturais. No passado, forças unificadoras modelaram a vida dos povos, perpetrando uma historicidade comum, línguas aparentadas e modelos semelhantes de comportamento. Essa herança de colonização ainda reflete, no presente e no alto poder de imposição, devido às suas complexidades econômicas, políticas universais aprendidas e expandidas pelo avanço civilizacional no continente. As regiões culturais existentes no continente americano são importantes, porque, diferentemente das fronteiras geográficas, políticas e econômicas que conhecemos, elas abrangem diversos países e, ao recortar dentro desses, áreas com traços comuns, estabelecendo um mapa cujas fronteiras não são ajustáveis às dos países independentes. Nessas mesmas regiões, ocorreram trocas culturais que podemos pensar em termo de mestiçagem transculturadora. Habitam nelas povos testemunhos (mesoamericanos e andinos), povos novos (brasileiros, grancolombianos, antilhanos e chilenos) e povos transplantados (riopratenses). Essa mistura passa a ser um caudal de resistência à dominação homogeneizadora. Para isso, os intelectuais foram extremamente importantes para que houvesse a oposição. RAMA (2011, p. 292) afirma que, em áreas destinadas ao projeto aculturador, grupos de pesquisadores, artistas e escritores reivindicavam 68 fazer-se ouvir as vozes da localidade que se opuseram à indiscriminada submissão que lhes foi exigida. É o caso do Brasil, Colômbia, México e Bolívia, cujo perfil regionalista é definido até os dias de hoje, embora qualquer um dos outros aceite nítidas divisões regionais mesmo menores. [...] Todos eles contribuem para o estabelecimento de peculiaridades culturais, dentro das quais seus habitantes são educados, em especial no momento decisivo de sua infância e adolescência, a ponto de a maioria, dos que abandonaram suas regiões na juventude, se integram em centros urbanos ou das capitais, não perderem a marca profunda com que foram moldados por sua cultura regional, embora as combinem com outras influências práticas (RAMA, 2001, p. 316). Isso é um fenômeno amplamente observado nos artistas transculturadores, pois mesmo com uma formação escolar erudita, letrada, fortemente influenciada por elementos culturais externos, não negam suas raízes culturais adquiridas nas suas regiões de nascimento e criação. Os escritores eram justamente os que pertenciam a áreas culturais que forneceram subsídios para a defesa contra a ação modernizadora dos grandes centros urbanos sobre as demais áreas periféricas, sobretudo o interior. Embora esse conflito não fosse nada novo, foi resolvido de uma forma diferenciada. O conflito gerado pela superposição da cultura peninsular sobre os povos ameríndios não deixou de dar seus frutos na forma de versões acriouladas e regionalizadas. Isso ocorreu porque, com a “diminuição das comunidades rurais pela oligarquia liberal urbana sob a república” (RAMA, 2001, p. 294), ocasionou um processo em que a força maior era a oriunda das culturas interiores diante do avanço unificador modernizante, pois se transculturaram sem “renunciar a alma”, como afirmou Arguedas em seu discurso yo no soy un aculturado. Não seria possível não aceitar a modernidade, assim também como não seria a solução negar a sua origem para aceitá-la. García Márquez estava influenciado por sua área costeira colombiana, o que não significou ser ajustado ao estereótipo que se criou sobre sua terra natal, o que negaria, igualmente, seu caráter produtivo e criativo em suas criações poéticas. Ele é um dos que postula o renovo de formas, muitas das quais relegadas, que pertencem à configuração cultural de sua região, as quais ele reelaborou nas circunstâncias derivadas dos embates com o elemento modernizador. Se a transculturação é a norma de todo o continente, tanto na que chamamos de linha cosmopolita como na que especificamente designamos como transculturadora, é nessa última que entendemos ter acontecido uma façanha superior inclusive à dos cosmopolitas, que consistiu na continuidade histórica de formas culturais profundamente elaboradas pela massa social, ajustando-a com a menor perda de identidade às novas condições fixadas pelo quadro internacional do momento. (RAMA, 2001, p. 298) 69 Ao resgatar os elementos das culturas originárias da América pré-colombiana, os escritores ficaram diante da perspectiva de, ou repetir fórmulas já conhecidas e servirem ao projeto de reprodução dos elementos de dominação impostos, ou criarem produtos novos e originais que pudessem se propor a uma construção identitária, não negando suas origens culturais locais, mas articulando esses saberes aos da cultural externa de suas sociedades. Outro elemento da transculturação possível de detectarmos em Cem Anos de Solidão é a técnica de escrita de seu criador: a da narrativa folhetinesca. Essa técnica é detectada como sendo os famosos “ganchos” no final dos capítulos de cada obra literária. Elas estão presentes na obra, pois García Márquez foi jornalista por muitos anos e os folhetins eram publicados em jornais impressos de ampla circulação, alcançando popularidade no público consumidor dessa publicação: primeiro, na Europa; depois, estendidas aos diversos países do mundo. Os folhetins começaram como notas de rodapé dos jornais em que se veiculavam diversos tipos de escritos e assim, muitos escritores publicavam seus escritos em formato de fascículos. Os temas eram populares e polêmicos, acontecimentos cotidianos e fatos reais e, nos dias atuais, as séries televisivas, as trilogias escritas e filmadas, são produtos derivados do gênero folhetim, que se popularizou nos finais do século XIX e atingiu seu apogeu no século XX. Para contemplar as especificidades da escrita literária na composição folhetinesca, era necessário inserir várias retomadas e esclarecimentos para orientar o leitor a respeito dos acontecimentos passados, ou de personagens que ficaram muito tempo sem aparecer na narrativa por longos períodos. Vejamos algumas passagens de retomada da ação em que aparece a personagem do coronel Aureliano Buendía, pois como não há uma linearidade nem tempo cronológico, a evidência da técnica de folhetim está implícita nas ações da personagem a partir da abertura da obra até o final do tempo de vida dela. Nos intervalos entre a aparição de Aureliano Buendía e seu desaparecimento, a fábula gira em torno de outras personagens e retorna para focar nele novamente. Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo (García Márquez, 2014, p. 43). Aureliano, porém, deu um passo adiante, pôs a mão e a retirou no ato. “está fervendo”, exclamou assustado. (García Márquez, 2014, p. 59). Aureliano foi junto. (García Márquez, 2014, p. 99). Aureliano Buendía e Remédios Moscote se casaram num domingo de março diante do altar que o padre Nicanor Reyna mandou construir na sala de visitas. (García Márquez, 2014, p. 121). Aureliano foi o único que não se preocupou com eles. (García Márquez, 2014, p. 135). 70 O mesmo Buendía transita por momentos diversos na narrativa e é necessário que haja mecanismos que possam identificá-lo, já que existem, ao todo, 22 homens da família que possuem esse mesmo nome: os flashbacks ajudam a situar o leitor na trajetória da história que lhes é contada e identificam qual é o Aureliano que está em destaque. Tendo em vista que Cem Anos de Solidão é uma obra cuja circularidade espiralada se faz muito presente, a técnica foi usada para mover as partes do romance a fim de possibilitar uma leitura independente, amarrada em uma unidade narrativa romanesca e isso só foi possível ao autor o devido uso dessa técnica. Isso se configura em uma forma de narrar em que o elemento interno reelabora um produto da modernidade em seu favor, pois essa escrita vai ser acrescida de retomadas e possibilita ao leitor certa mobilidade na leitura sem perder o fio condutor da narração. Por mencionar a modernidade na obra, vejamos os choques que ocorreram em Macondo, quando a companhia bananeira se estabeleceu na localidade. Eles ocorreram por seus habitantes estarem alheios aos acontecimentos de evolução dos aparatos técnicos e científicos, bem como o conhecimento limitado de acesso ao que a ciência no século XIX já conhecia com o surgimento das ciências modernas. Em uma região isolada dos grandes centros urbanos, a vida passava como nos dias medievais, na função diuturna da passagem dos dias. Deslumbradas com tantas e tão maravilhosas invenções, as pessoas de Macondo não sabiam por onde começar a se assombrar. Varavam as noites contemplando as lâmpadas elétricas[..], indignaram-se com as imagens vivas que o próspero dom Bruno Crespi projetava no teatro com as bilheterias de boca de leão[...], algo semelhante aconteceu com os gramofones de cilindros que as alegres matronas da França levaram para substituir os antiquados realejos [...] Era como se Deus tivesse resolvido pôr à prova toda a sua capacidade de assombro, e mantivesse os habitantes de Macondo num permanente vaivém entre o alvoroço e o desencanto, a dúvida e a revelação, até o extremo de ninguém conseguir saber ao certo onde estavam os limites da realidade. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p.261- 262, grifos nossos) Com a instalação da companhia bananeira em Macondo, a vida do lugarejo passa a sofrer as invasões dos elementos externos à comunidade. No inicio, era algo deslumbrante e promissor, já que o moderno aparato tecnológico se propunha a trazer propostas de mudanças benéficas para o lugar e seus habitantes. Não foi uma troca livre de consequências nefastas em médio prazo – o elemento regional, ao ceder espaço sem resistência ao elemento modernizador, sofreu a sentença de sua própria aniquilação. Dotados de recursos que em outros tempos estavam reservados à Providência Divina, modificaram o regime das chuvas, apressaram o ciclo das colheitas, e tiraram o rio de onde sempre esteve e o puseram com suas pedras brancas e suas 71 correntes geladas no outro extremo do povoado, atrás do cemitério. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 264) A consequência veio em forma de chuva, pois depois da matança dos grevistas, a companhia 47 bananeira se retirou do povoado e “Choveu durante quatro anos, onze meses e dois dias ” em Macondo. Alterou o clima da região, transformou e explorou os recursos naturais, alterou as relações dos homens com a terra e suas relações entre eles mesmos. Esse diálogo entre o indivíduo e a sociedade moderna é muito presente na literatura de Rulfo, a qual denuncia o modelo de produção capitalista de exploração de riquezas e abandono da comunidade quando não há mais utilidade para alcance de lucros. Aconteceu num dia em que alguém se lamentou na mesa da ruína em que se afundara o povoado quando a companhia bananeira o abandonou, e Aureliano o contradisse com uma maturidade e uma argumentação de pessoa adulta. Seu ponto de vista, contrário à interpretação geral, era que Macondo tinha sido um lugar próspero e bem encaminhado até que foi desordenado e corrompido e espremido pela companhia bananeira, cujos engenheiros provocaram o dilúvio como pretexto para eludir compromissos com os trabalhadores. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 382) A visão do habitante de Macondo, nesse caso Aureliano Babilônia, opõe-se totalmente à do elemento de dominação e exploração de sua condição, por esta concebê-la como um lugar de atraso, rusticidade, sem conhecimento de alguma utilidade e que necessita da intervenção do moderno para civilizar-se. Enquanto o elemento regional aferra-se ao seu estado original de valores, crenças e costumes simples, vida laboral voltada para subsistência e exploração consciente dos recursos, o elemento externo que chega à localidade imprime um ritmo de transformações velozes, tendencia hegemonias para estabelecer padrões, explora e apresa os recursos naturais e as vidas utilizadas nesse processo. Em muitas passagens da obra de Cem Anos de Solidão, vislumbramos a mescla das situações insólitas entremeadas com os embates transculturantes entre o regional e o modernizante. O tecido da narração tem, por sua constituição primordial, estas duas premissas: a realidade da usurpação do lugar de fala dos povos explorados e seus conjuntos de valores, crenças e costumes vivos nos traços de suas mentalidades, como a invasão e deturpação desses mesmos valores pelas empresas modernizadoras ao submeter esses povos aos padrões de sociedades de outras culturas e mentalidades dominantes. 47 García Márquez, 2014, p. 349. O dilúvio sobre Macondo é uma forma de castigo pela depredação empreendida de espoliação dos recursos naturais e mudanças no ecossistema da região e em completa associação ao dilúvio bíblico pela crueldade e desobediência aos valores hebraicos de IEVE. 72 Macondo é a América latina e a companhia bananeira, uma metáfora muito bem construída de empresas de exploração e extração dos recursos físicos e humanos, deixando para trás a destruição e a desolação para os remanescentes que ficarem após sua partida. Outra parte interessante do processo de transculturação na obra analisada é a possibilidade de o escritor se inscrever na sua própria obra literária e defendê-la desde um ponto de vista interno. Na parte final, a partir do último capítulo ou apartado, pois o autor não intitulou da primeira forma as partes componentes do livro, a divisão se deixa entrever pelo término de um ciclo e inicio em outro por meio de apartados. A parte final do romance é protagonizada por Aureliano Babilônia e suas descobertas na livraria do sábio catalão em meio aos seus livros antigos e clássicos, recomendados pelo fantasma de Melquíades que sempre lhe falava no quarto onde era o antigo laboratório de José Arcádio. Nessa livraria, ele encontrou três jovens que se tornaram seus amigos, cujos nomes eram Álvaro, Germán e Gabriel. Até conhecer esses homens, Aureliano Babilônia nunca tinha pensado que “a literatura fosse o melhor brinquedo que haviam inventado para zombar das pessoas” (García Márquez, 2014, p. 420), e que para ser útil, teria que ter um uso prático. O bordel de mentiras nos arredores de Macondo, no qual os amigos faziam suas farras após as discussões sobre literatura, servia perfeitamente para ilustrar a metáfora de ressignificação da realidade, muitos anos após seu apogeu. Tudo naquele lugar era mentira, um estabelecimento que só existia na imaginação, “porque ali até as coisas tangíveis eram irreais” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 421). Nesse mesmo bordel, os clientes questionavam a existência do coronel Aureliano, diziam que ele era uma pessoa que nunca tinha existido de verdade e era usado como discurso do governo para matar liberais, seus opositores. Gabriel, porém, não punha em dúvida a realidade do coronel Aureliano Buendía, porque tinha sido companheiro de armas e amigo inseparável de seu bisavô, o coronel Gerineldo Márquez.[...] Aureliano e Gabriel estavam vinculados por uma espécie de cumplicidade baseada em fatos reais nos quais ninguém acreditava, e haviam afetado suas vidas a ponto de ambos se encontrarem à deriva na ressaca de um mundo acabado, do qual só restava a nostalgia. (García Márquez, 2014, p. 422, grifos nossos) Esse mesmo Gabriel personagem, “coincidentemente”, tem o mesmo nome do autor e era, como ele, um homem “encastelado na realidade escrita” (García Márquez, 2014, p. 420), companheiro de farras e leituras de Aureliano Babilônia. E o mais interessante: era descendente de uma das personagens que acompanharam o coronel Aureliano Buendía com o mesmo sobrenome do autor. Não é uma coincidência, mas sim o fato de o homem ter escrito Cem Anos de Solidão queria 73 fazer parte da sua obra artística, defender seu ponto de vista desde uma perspectiva interna, visto que ele mesmo foi um produto desses embates entre elementos de culturas e visões de mundo distintas. Sem dúvidas, esse é um ponto discutível em que a realidade e a imaginação se diluem e não se distinguem, pois se para esses dois homens, Gabriel e Aureliano, a sua realidade era-lhes questionada, que dizer da nossa em relação com o que está escrito, com aquilo que compactuamos na leitura de uma mentira que, no entanto, é mais real que a verdade muitas vezes. Esse é um dos ardis do realismo maravilhoso de Carpentier, o paradoxo da existência humana. Assim sendo, tanto o caso dos trabalhadores amotinados da companhia bananeira terem sido massacrados na estação, como o trem amarelo carregado de mortos, além da não existência do coronel Aureliano Buendía serem casos contados como mentiras e fruto do imaginário, possibilidades criadas e que só podem existir por meio da literatura, quanto o criador desse universo escrito só pode transcender no tempo por meio dela e deixa-nos esse incômodo no pensamento: talvez nós mesmos, que somos seus leitores, recorremos à mentira por ela ser mais suportável que a verdade da realidade que nos cerca. 74 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Para muitos escritores e intelectuais latino-americanos, a crise no pensamento ocidental, instaurada nos primeiros decênios do século XX, significou a tentativa de criação de narrativas que fossem capazes de considerar os elementos regionais das localidades internas da América Latina e seus elementos étnicos e culturais, historicamente mantidos à margem dentro do campo da representatividade moderna. No ímpeto de encontrar modelos narrativos que pudessem dar conta da diversidade de suas regiões e tivessem condição de representar suas identidades, foram buscar os componentes de suas criações literárias nos estratos sociais e culturais existentes desde muito antes da presença do europeu no continente americano. Esse impulso possibilitou o acesso aos elementos primitivos, pré- modernos de raízes ameríndias, cujo legado se encontrava nas regiões rurais e zonas periféricas dos grandes centros urbanos. Com isso, tornaram-se possíveis as condições de resgate dos valores culturais preservados, principalmente pelo regionalismo, possibilitando, assim, uma reelaboração da existente e resistente cultura popular, permitindo uma reestruturação desses valores e tradições culturais que vieram a compor as novas propostas de inovações estéticas e o fenômeno da transculturação proposto por Ángel Rama. A obra Cem Anos de Solidão pode ser considerada como um exemplar desse amálgama que pôs, em relevância, as apropriações dos precedentes oriundos dos realismos imaginários em conjunção direta com os modelos literários europeus para que ambos os elementos produzidos por culturas tão diferentes encontrassem pontos de intercessão e, como resultado, temos a plasticidade cultural e estética encontrada em sua forma de narrar, de dentro para fora, nas suas criações e recriações transculturadoras. Na sua escrita, García Márquez trabalhou com técnicas jornalísticas folhetinescas; utilizou elementos das mitologias ameríndias como a peste da insônia; destacou o papel do índio não como um explorado, mas um colaborador, cuja herança cultural é válida, sendo ele um indivíduo com direito a ter sua voz ouvida; utilizou os realismos imaginários para enriquecer esteticamente sua escritura; recorreu ao cânon ocidental de suas leituras e sua formação educativa e com ele empreendeu densidade e substância às ações das personagens; reelaborou os elementos externos a partir de uma perspectiva interna, inclusive os componentes imagéticos religiosos e pagãos – os oráculos do cigano, o dilúvio, a ascensão de Remédios e dentre muitos outros; discutiu o impacto social do sistema capitalista de exploração nas regiões rurais, dando forma e significação ao narrado e cumprindo sua função crítica; inscreveu-se como personagem na própria criação, para que pudéssemos perceber que ele mesmo é um produto transculturado enquanto criador ao trazer temas 75 que fazem parte tanto da literatura universal como a regional como a morte, o incesto, a solidão e dentre outros. No tocante à proposta que nos foi confiada, a de vermos a obra Cem Anos de Solidão pela perspectiva transcultural, esta análise não se restringiu somente pelo viés dos realismos imaginários, mas também os utilizando para enriquecer as percepções da obra artística pelo resgate da rica crítica literária da qual nos valemos. Sentimos, então, que a proposta foi concluída para enriquecimento e defesa de algo que temos de muito precioso: a literatura como resgate cultural e resistência; a literatura como obra artística e cultural de não só uma sociedade, mas várias sociedades que devem ser valorizadas e resgatadas, pois qual outro ser senão o homem que pode construir um objeto de arte feito com palavras a ponto de transcender o tempo, o espaço, as culturas, as línguas diversas, as visões de mundo diferentes, propiciar prazer, inquietude, questionamentos e trazer-nos conhecimentos sobre os desejos e expressões daquilo que somos: humanos, demasiadamente humanos. 76 REFERÊNCIAS CARROL, Lewis. 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