UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS OBALUAIÊ: um estudo sobre o estigma no convívio com o HIV/Aids em terreiros de Umbanda na cidade de Fortaleza-Ceará. VIOLETA MARIA DE SIQUEIRA HOLANDA NATAL – RN 2013 VIOLETA MARIA DE SIQUEIRA HOLANDA OBALUAIÊ: um estudo sobre o estigma no convívio com o HIV/Aids em terreiros de Umbanda na cidade de Fortaleza-Ceará. Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Doutora em Ciências Sociais. Área de Concentração: Ciências Sociais Linha de Pesquisa: Religião, Memória e Práticas Culturais. Orientador: Prof. Dr. Luiz Assunção. NATAL – RN 2013 Catalogação da Publicação na Fonte Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária/Documentalista Anyelle da Silva Palhares CRB-15/532 H722o Holanda, Violeta Maria de Siqueira. Obaluaiê : um estudo sobre o estigma no convívio com o HIV/Aids em terreiros de Umbanda na cidade de Fortaleza-Ceará. / Violeta Maria de Siqueira Holanda. – Natal, RN, 2013. 174 f. Orientador: Prof. Dr. Luiz Assunção. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 1.Drama social. 2. Aids. 3. Umbanda. 4. Estigma. I. Assunção, Luiz. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. CDU316.74 VIOLETA MARIA DE SIQUEIRA HOLANDA OBALUAIÊ: um estudo sobre o estigma no convívio com o HIV/Aids em terreiros de Umbanda na cidade de Fortaleza-Ceará. Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Doutora em Ciências Sociais. Área de Concentração: Ciências Sociais. Tese defendida e aprovada em 20 de março de 2013. Banca Examinadora Prof. Dr. Luiz Assunção – Orientador (UFRN) Prof. Dr. Antônio George Lopes Paulino – Examinador Externo (UFC) Profa. Dra. Irene de Araújo van den Berg Silva – Examinadora Externa (UERN) Profa. Dra. Maria Lúcia Bastos Alves – Examinadora Interna (UFRN) Profa. Dra. Vânia de Vasconcelos Gico – Examinadora Interna (UFRN) Às minhas filhas, Lara e Mariana e à minha mãe, Consuêlo. AGRADECIMENTOS Sou grata a Deus pela inspiração, força e resistência durante todo o percurso de minha vida e deste doutorado. Ao meu orientador professor Dr. Luiz Assunção pelas reflexões sugeridas. Às professoras Dra. Irene de Araújo van den Berg Silva, Dra. Maria Lúcia Bastos Alves, Dra. Vânia de Vasconcelos Gico e ao Professor Dr. Antônio George Lopes Paulino que integram a banca examinadora desta tese. Quero agradecer profundamente a rica colaboração dos pais, mães e filhos de santo da Umbanda Cearense que gentilmente abriram seus terreiros e partilharam suas histórias de vida durante a pesquisa, em especial a Mãe Constância, Mãe Vilma, Pai Robério, Lúcio Júnior e Sheila Araújo. Ressalto também o importante aprendizado com os colegas do Grupo de Resistência Asa Branca (GRAB), onde aprendi sobre a importância da luta pelos direitos humanos do público LGBT e das pessoas vivendo com HIV/Aids. Ao querido amigo Lailson Silva e às amigas Andrea Linhares, Evaneide Melo (Evinha) e Janaína Zaranza pelo companheirismo durante o doutorado. Aos colegas Fred Linhares e Felipe Morais pela revisão gramatical e ao meu ex-aluno Francisco de Assis pela ilustração da capa de Obaluaiê. Aos colegas de trabalho do IFRN Câmpus Pau dos Ferros Amélia, Abigail, Andressa, Andreza, Antônio, Claudiane, Erasmo, Kátia, Fábio, Rodrigo e Olívia pela torcida e palavras sempre incentivadoras. À minha mãe Consuêlo Siqueira pela parceria em todos os momentos, às minhas filhas Lara e Mariana, inspirações de minha vida, e ao meu pai Edmar Neco (em memória), a quem dedico este trabalho. A prosa vai ser misturada O linguajar meio louco Vai ter papo de caboclo Conversa de doutorado Riso, canto e balada Repente feito de rima Receita de medicina e Remédio popular História de arrepiar Êta conversa arretada! (Ponto cantado produzido durante a pesquisa. Domínio Público, 2010) RESUMO A tradição e a vivência nos espaços religiosos afro-brasileiros, denominados terreiros, revelam o quão dinâmico é a reprodução e troca de saberes e conhecimento que, através de sua visão de mundo, revelam formas de lidar com a saúde e a doença. Os terreiros constituem territórios ricos, culturalmente, em que pessoas moldam concepções, práticas e crenças a respeito da saúde, das enfermidades e das formas de cura, repassados de geração a geração, através da oralidade. Com o advento do HIV/Aids a partir dos anos 80, um novo desafio se estabelece na comunidade dos terreiros e nas trajetórias individuais das pessoas afetadas pela doença que desde idade tenra participam dessa prática religiosa. O objetivo desta pesquisa é a análise sobre o estigma no convívio com o HIV/Aids em terreiros de Umbanda na cidade de Fortaleza-Ceará, considerando a (re)produção dos dramas sociais vivenciados pela comunidade em questão. Durante a investigação foram adotados dois parâmetros fundamentais: primeiro, que considera a compreensão da reprodução do estigma (ou da identidade deteriorada) em relação ao HIV/Aids em sua dimensão sócio-histórica, e seus efeitos no contexto investigado (GOFFMAN, 1988). E segundo, que se refere à criação e reprodução dos dramas sociais, enquanto experiência social realizada através do aprendizado, manuseio e atuação simbólica, que se reproduz em quatro fases: ruptura, crise, ação corretiva e reintegração (TURNER, 1971). PALAVRAS-CHAVE: Umbanda. Aids. Estigma. Drama Social. ABSTRACT The tradition and living in African-Brazilian religious spaces, called yards, reveal how dynamic the reproduction and exchange of knowledge are, and that through their worldview, reveal ways of dealing with health and disease. The yards are culturally rich territories, in which people shape concepts, practices, and beliefs about health, disease and forms of healing, passed on from generation to generation through oral tradition. With the advent of HIV/AIDS from the 80s, a new challenge is established in the community of the yards and in the individual trajectories of people affected by the disease, who since an early age participate in this religious practice. The objective of this research is the analysis on the stigma in living with HIV/AIDS in yards of Umbanda in Fortaleza-Ceará, considering the (re)production of social dramas experienced by the community in question. During the investigation we adopted two basic parameters: the first one considers the understanding of the reproduction of stigma (or deteriorated identity) in relation to HIV/AIDS in its socio-historical dimension and its effects in the investigated context (Goffman, 1988). And the second one refers to the creation and reproduction of social dramas as a social experience carried through learning, handling and symbolic performance, which is reproduced in four stages: rupture, crisis, corrective action and reintegration (Turner, 1971). KEYWORDS: Umbanda. Aids. Stigma. Social Drama. RESUMEN La tradición y la vivencia en los espacios religiosos afro-brasileños, nombrados terreros, revelan lo dinámico que es la reproducción y el cambio de saberes y conocimiento que, a través de su visión de mundo, revelan formas de lidiar con la salud y la enfermedad. Los terreros constituyen territorios ricos, culturalmente, en que personas moldean concepciones, prácticas y creencias acerca de la salud, de las enfermedades y de las formas de cura, repasados de generación a generación, a través de la oralidad. Con el advenimiento del VIH/Sida a partir de los años 80, un nuevo desafío se establece en la comunidad de los terreros y en las trayectorias individuales de las personas afectadas por la enfermedad que desde tierna edad participan de esa práctica religiosa. El objetivo de esta pesquisa es el análisis sobre el estigma en la convivencia con el VIH/Sida en terreros de Umbanda en la ciudad de Fortaleza-Ceará, considerando la (re)producción de los dramas sociales vividos por la comunidad en cuestión. Durante la investigación fueron adoptados dos parámetros fundamentales: primero, que considera la comprensión de la reproducción del estigma (o de la identidad deteriorada) en relación al VIH/Sida en su dimensión socio-histórica, y sus efectos en el contexto investigado (GOFFMAN, 1988). Y segundo, que se refiere a la creación y reproducción de los dramas sociales, en cuanto experiencia social realizada a través del aprendizaje, manoseo y actuación simbólica, que se reproduce en cuatro fases: ruptura, crisis, acción correctiva y reintegración (TURNER, 1971). PALABRAS CLAVE: Umbanda. Aids. Estigma. Drama Social. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura da Capa – Desenho de Obaluaiê por Francisco de Assis, 2013 01 Figura 1 – Fotografia da Casa de Umbanda Rancho de Trindade – Guajirú, Caucaia/CE 71 Figura 2 – Fotografia dos Elementos Utilizados no Ritual de Cura 73 Figura 3 – Fotografia da Preparação para o Descanso de 24 horas 77 Figura 4 – Fotografia do Sítio Minas de Ouro – Mucunã, Maranguape/CE 78 Figura 5 – Fotografia da Festa no Terreiro de Pai Daniel 119 LISTA DE SIGLAS AIDS – Síndrome da Imunodeficiência Adquirida APROCE – Associação das Prostitutas do Estado do Ceará BEMFAM – Bem Estar Social no Brasil CAPES – Centro de Atendimento Psicossocial CD4 – Exame Avaliativo do Sistema Imunológico de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS DSTs – Doenças Sexualmente Transmissíveis GAPA/CE – Grupo de Apoio à Prevenção à AIDS no Ceará GRAB – Grupo de Resistência Asa Branca HSH – Homens que Fazem Sexo com Outros Homens ISDS – Instituto de Saúde e Desenvolvimento Social LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais NIV – Núcleo de Interação pela Vida OMS – Organização Mundial de Saúde ONGs – Organizações Não Governamentais ONU – Organização das Nações Unidas PVHA – Pessoas Vivendo com HIV/AIDS RNP – Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS RSP+ - Rede Nacional de Solidariedade Positiva SEPPIR – Secretaria Especial de Politicas de Promoção da Igualdade SESA – Secretaria de Saúde do Estado do Ceará SICLOM – Sistema de Controle e Logística de Medicamentos SINAM – Sistema de Informação sobre Mortalidade SIM – Sistema de Informações sobre Mortalidade SISCEL – Sistema de Controle de Exames Laboratoriais de CD4/CD8 e Carga Viral SUS – Sistema Mundial de Saúde TARV – Terapias Antirretrovirais UECUM - União Espírita de Umbanda do Ceará UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte SUMÁRIO INTRODUÇÃO 13 CAPÍTULO 1 – ABRINDO CAMINHOS 29 1.1 – O Espaço da Saúde no Universo Religioso da Umbanda 31 1.1.1. Relatos de Cura 42 1.1.2. Assentamentos 53 1.2. – Rituais de Cura 68 1.2.1. Ritual de Cura no Terreiro de Mãe Constância 70 1.2.2. Ritual de Cura no Terreiro de Pai R. de Oxum 78 CAPÍTULO 2 – UMBANDA, AIDS E ESTIGMA: UMA AMPLA CRONOLOGIA 83 2.1 – O Contexto Sócio-Histórico da Umbanda e as Práticas em Saúde 84 2.2 – O Advento do HIV/Aids no Brasil e no Ceará 94 2.3 – O Caráter Estigmático da Aids e sua Inserção nos Terreiros de Umbanda 100 CAPÍTULO 3 – RECONSTITUIÇÃO DA PESQUISA: DRAMAS SOCIAIS EM QUESTÃO 110 3.1 – Diversidade Sexual nos Terreiros: Proteção e Relações de Poder 112 3.2 – Revelação da Soropositividade: Ruptura e Crise nos Terreiros de Umbanda 121 3.3 – Acolhimento e Participação: Mediação e Reintegração nos Terreiros 136 CONSIDERAÇÕES FINAIS 148 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 151 GLOSSÁRIO 163 ANEXOS 165 13 INTRODUÇÃO Obaluaiê ou Omulu é identificado na literatura sobre tradições religiosas afro- brasileiras como orixá relacionado às pestes e as doenças infecto-contagiosas, a exemplo da varíola e da Aids 1 . Tem ligação com o sol e todas as coisas quentes. Quando alguém adoece há uma expressão: “ilê nba a” – a terra quente o pegou. É considerado a própria doença, e em certos terreiros não se pronuncia seu nome em vão. Seu nome é invocado para a cura, pois ele tem esse dom. Seus filhos são bons rezadeiros e curandeiros. Abençoa os doentes. Segundo reza a lenda, Obaluaiê nasceu cheio de feridas e chagas sendo rejeitado por sua genitora (Nanã). Desprezado e jogado na beira-mar, o menino chorava dia e noite, até que Yemanjá o encontrou e tratou de curar suas chagas. Como meio de proteção, Yemanjá cobriu Obaluaiê com palhas e jurou que sempre que estivesse coagido por olhares desconfiados, o jovem lançaria uma luz incandescente e pipocas ao ar, apresentando- se como príncipe encantando... A platéia ficaria inebriada com tamanha beleza! (MÃE VILMA, 2008). A tradição e a vivência nos espaços dos terreiros de cultura afro-brasileira revelam o quão dinâmico é a reprodução e troca de saberes e conhecimento que, através de sua visão de mundo, revelam formas de lidar com a saúde e a doença. A importância das práticas, dos mitos e ritos religiosos na interpretação e alcance da cura tem sido amplamente reconhecida nas ciências sociais. Lévi-Strauss (1967) reconhece na interpretação religiosa o rico repertório de imagens e símbolos que longe de apresentarem estados confusos e desordenados, expressam distintas visões de mundo em contextos socioculturais ordenados em um todo coerente. Os terreiros são considerados espaços sagrados de cura, onde a saúde tem como base a mãe natureza, e as doenças nunca são consideradas exclusivamente físicas ou espirituais. Faz parte da vida da comunidade religiosa a presença de rezas e benzeduras proporcionadas por pais e mães de santo, na representatividade dos espíritos desencarnados e orixás. Assim, os terreiros constituem territórios ricos, culturalmente, em que pessoas moldam concepções, práticas e crenças a respeito da saúde, das enfermidades e das formas de cura, repassados de geração a geração, através da oralidade. 1 Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. 14 Nessa perspectiva, os símbolos criam realidades, naturalizam imagens em determinados momentos históricos, utilizando a memória social coletiva e as tradições. Para Mauss (1974), no campo religioso, os mitos e crenças exteriorizam o domínio dos símbolos. O simbólico serve de expressão total das coisas, e corresponde aos humanos que os assimilaram e a ele aderem. A dimensão simbólica é um dos traços distintivos do fato social. Mediante os símbolos e as representações presentes nas práticas, mitos e rituais os adeptos da Umbanda e do Candomblé constroem a cultura, a religião, atribuindo-lhes peculiaridades em relação a outras e propiciando a comunicação entre os sujeitos que a formam. Portanto, o modo como eles lidam com a saúde e a doença também estão conectados a um sistema simbólico, às representações sociais construídas histórica e culturalmente. A lenda de Obaluaiê inspira uma situação limite entre a vida e a morte, o abandono e o cuidado, o restabelecimento a partir do fortalecimento do sujeito diante de seus pares, enfim, trata-se da formação de um arquétipo em conflito, que traz a tona elementos como proteção e generosidade, mas também intolerância e medo em virtude da “peste”. Diante desta complexa ligação entre religião e saúde, esta pesquisa explicita práticas em saúde no convívio com o HIV/Aids em terreiros de Umbanda na cidade de Fortaleza, capital do Ceará. Para tanto, busca compreender o contexto sócio-histórico da Umbanda, considerando as especificidades do cenário cearense, suas práticas em saúde, e sua relação com o surgimento do HIV/Aids. Meu interesse em conhecer a Umbanda surgiu desde 2006, quando fui convidada a ir para uma “gira”2 no terreiro de Mãe Constância3. O terreiro, denominado Rancho Trindade, fica localizado no município de Caucaia, Região Metropolitana de Fortaleza, onde funciona há aproximadamente dez anos. Filha de Mãe Júlia Condante, fundadora da Federação Cearense de Umbanda, em 1954, Mãe Constância representa uma forte liderança da Umbanda no Estado do Ceará e pratica a religião há mais de quarenta anos. Fundou seu 2 Ritual realizado em festa comemorativa em alusão a(s) entidade(s) da Umbanda. 3 Constância de Souza Araújo é natural de Fortaleza, hoje tem 66 anos. Entrou na Umbanda desde os 18 anos. Foi filha de Mãe Júlia Condante e pratica a religião há mais de quarenta anos. O terreiro de Mãe Constância é regido na Umbanda por Seu Zé Pilintra e, no Candomblé, segue a Nação Keto, sendo regido pelo orixá Ogum. É divorciada, têm quatro filhos consaguíneos e possui uma grande parceira de vida e religião, trata-se de Mãe Vilma. É bastante atuante no meio religioso, participa da Rede de Terreiros, resolveu prestar concurso para a Secretaria de Saúde do Município de Caucaia. Hoje, divide seu horário de trabalho entre o CAPES, em Fortaleza, e o hospital municipal, em Caucaia, além das atividades ligadas ao seu terreiro. 15 primeiro centro no bairro do Montese, onde funcionou durante 35 anos e ficou bastante conhecida, mantendo uma significativa rede de contatos e de filiação de novos umbandistas. As giras e festas da Umbanda sempre são freqüentadas por outros pais, mães e filhos de santo, formando uma rede de pertencimento e de solidariedade entre si. Ali é o espaço privilegiado de discussão e revelação de temas do cotidiano entre os adeptos e vivência com o sagrado, assim como de partilha da situação de outros terreiros em funcionamento. Assim, fui apresentada a um e outro membro daquela comunidade, identificando em alguns deles, os sujeitos que também eram envolvidos no movimento de luta contra Aids, ou que tinham proximidade com a causa. Na ocasião, trabalhava como socióloga no Grupo de Resistência Asa Branca (GRAB) e acumulava experiência na coordenação de projetos sociais relacionados à temática da Aids. O que me chamou atenção, naquele momento, foi o fato de alguns militantes do movimento de luta contra a Aids e do movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) participarem da Umbanda e manterem uma agenda paralela nos espaços dos terreiros. Então, logo fiquei curiosa em saber como se gestava a troca de conhecimentos e experiências entre aqueles sujeitos e o universo da Umbanda. Em 2007, comecei a desenvolver um projeto de prevenção às hepatites virais nos terreiros de Fortaleza e Região Metropolitana. O referido projeto, financiado pelo Programa Nacional de Hepatites Virais do Ministério da Saúde e executado em parceria com GRAB, proporcionou uma abertura expressiva nos terreiros visitados, mantendo um contato direto com adeptos, pais e mães de santo, através de ações educativas nos terreiros e em seminários integradores com o público em questão e profissionais de saúde da Prefeitura Municipal de Fortaleza. Minhas experiências individuais de coordenadora de projetos sociais aguçaram minha curiosidade enquanto cientista social e, em 2008, submeti ao Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) o projeto de pesquisa de doutorado. Entre as discussões teóricas, sobretudo no campo da Antropologia, sempre que possível retornava aos terreiros para novas visitas exploratórias, principalmente acompanhando as ações da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, conhecida popularmente em Fortaleza como Rede de Terreiros, e da União Espírita de Umbanda do Ceará (UECUM). 16 Pesquisar sobre a historiografia da Umbanda e suas práticas em saúde (em especial, no convívio com o HIV/Aids) e participar dos encontros em rede proporcionaram uma compreensão singular do cenário histórico mais amplo e sua relação com a biografia dos indivíduos envolvidos na pesquisa. Em 2010, comecei a realizar as primeiras entrevistas semi-estruturadas com pais e mães de santo, militantes da luta contra Aids e pessoas declaradas vivendo com HIV/Aids, todos praticantes da Umbanda. Considerei como eixos da investigação exploratória os processos de iniciação e conhecimentos sobre a Umbanda e as práticas em saúde no convívio com o HIV/Aids. Com o advento do HIV/Aids a partir dos anos 80, um novo desafio se estabelece na comunidade dos terreiros e nas trajetórias individuais das pessoas afetadas pela doença que desde idade tenra participam dessa prática religiosa. As concepções tradicionais de saúde e doença começam a estabelecer relações com as novas formas de controle, prevenção e convívio com o HIV/Aids. Percebemos, então, certa inversão no lidar com a rota da epidemia, onde o discurso e a prática ritual e religiosa refletem sobre a problemática vivenciada por seus adeptos. O caráter estigmático da Aids alimentado ainda pela ausência da cura científica e pela “vulnerabilidade”4 de infecção, adoecimento ou morte pelo vírus HIV torna o convívio com a questão muitas vezes velado no domínio do privado, das trajetórias e memórias individuais dos sujeitos que a vivenciam. O estigma, enquanto base conceptual relevante pode ser entendido como uma ameaça social, representando algo de ruim, isto é, uma identidade deteriorada por uma ação social (GOFFMAN, 1988). Os portadores de HIV muitas vezes enfrentam uma variedade de desvantagens sociais em virtude do preconceito e da discriminação. Ao entrevistar alguns umbandistas que vivem com HIV percebemos em suas trajetórias de vida tensões e contradições no convívio de sua situação de sorologia, em muitos casos, de sua homossexualidade. 4 Mann (1995) estabelece a conceituação de vulnerabilidade ao HIV/Aids como a expressão do “esforço de produção e difusão de conhecimento, debate e ação sobre os diferentes graus e naturezas de indivíduos e coletividades à infecção, adoecimento ou morte pelo HIV, segundo a particularidade de sua situação quanto ao conjunto integrado dos aspectos sociais, programáticos e individuais que os põem em relação com o problema e com os recursos de enfrentamento”. 17 Pai R. de Oxum 5 , pai de santo e portador do vírus HIV há vinte e quatro anos, narra às dificuldades enfrentadas durante a descoberta de sua sorologia e sua relação com os parceiros de Umbanda e do Candomblé: Ai começou a bomba estourar, porque a Fortaleza inteira já sabia... como nós trabalhávamos no José Frota e lá tinha pessoas que era amigo dela, que era do Candomblé e da Umbanda ai souberam do exame dela lá dentro do próprio hospital, tiveram o prazer, o orgulho de espalhar na Fortaleza inteira que R de Oxum e M.B. estavam infectados... Tive situações dentro do candomblé que eu não podia abrir uma casa, que eu não podia fazer filho de santo por causa da infecção... (PAI R. DE OXUM, 2011). A experiência individual com a estigmatização e discriminação relacionadas ao HIV/Aids muitas vezes é influenciada por crenças culturais e por outras formas de estigmatização existentes na sociedade, tais como em relação às diferenças de sexo, orientação sexual, gênero, “raça e etnia”6, pobreza e, inclusive, religioso, em nosso caso, relacionado a prática da Umbanda. Em geral, a representação negativa de pessoas com HIV/Aids tende a reforçar o medo, a exclusão e o isolamento de pessoas afetadas pela doença. Mais frequentemente, isso cria o que Herbert Daniel descreveu como “morte social”, na qual a pessoa não se sente parte da sociedade civil, sem conseguir mais ter acesso aos serviços e ao apoio que necessita (DANIEL & PARKER, 1991). Neste sentido, o estudo exige um olhar mais atento ao processo de estigmatização do HIV/Aids no contexto dos terreiros de Umbanda em Fortaleza. Enquanto categoria analítica, o estigma aqui se apresenta não tanto como coisas ou disposições psicológicas da 5 Pai R. de Oxum é natural de Fortaleza, tem 45 anos, entrou na Umbanda aos 13 anos e no Candomblé aos 18 anos. É viúvo e possui três filhos adotivos. Hoje, assume sua homossexualidade e condição de soropositividade abertamente, é aposentado pelo INSS e pensionista pelo município de Fortaleza. Gosta de viajar e conhecer outros contextos religiosos nos demais estados do país. É filho de santo de Mãe Maria José (Bizé), de Maceió. Possui seu terreiro em Maranguape há 4 anos. Já fez parte do GRAB e convive com o HIV há vinte e quatro anos. 6 Os termos “raça e etnia” aqui mencionados tomam por base a concepção de Weber, onde “a etnia, como a nação, fica do lado da crença do sentimento e da representação coletiva, contrariamente à raça, que fica do lado do parentesco biológico efetivo” (WEBER apud POUTIGNAT & STREIFF-FENNAR, 1997). Assim sendo, não existe outro motivo senão esse parentesco para se evitar definitivamente o conceito de raça, pois, mais do que fazer progredir a compreensão dos diferentes grupos humanos, ele tem respaldado preconceitos e xenofobia. Malgrado as controvérsias em torno do conceito de raça, ele foi comumente usado nas ciências sociais e quase sempre foi confundido com a noção de etnia. No Brasil, desde o final do século XIX, são inúmeros os trabalhos de pesquisa voltados para o tema raça. Mas a sua definição foi problemática, especialmente pela sua filiação aos caracteres biossomáticos, pois definir racialmente um grupo, naquele momento histórico, significava observar os traços fenotípicos comuns (estatura, cor) e psicológicos (capacidade de inteligência) de um determinado grupo de indivíduos (Ver em BEZERRA, 2002:9). 18 parte dos indivíduos, mas como processos sociais ligados às estruturas culturais e ao funcionamento da sociedade mais ampla. Entender o estigma reproduzido no terreiro requer uma compreensão sobre as práticas de saúde em sua dimensão sócio-histórica, que nortearão os processos de negociações, manipulações, escolhas e decisões no convívio com o HIV/Aids nos terreiros. Por outro lado, ao analisar a experiência do convívio com o HIV/Aids nos terreiros, os episódios de conflitos também costumam ser atenuados com ações de acolhimento realizadas por pais e mães de santo durante os rituais de cura e no próprio cotidiano dos adeptos. O conhecimento de uma longa tradição, o exercício da escuta e do aconselhamento, a disponibilidade de tempo e energia para o acompanhamento no tratamento diminuem as distâncias entre o enfermo e o cuidador, entre o enfermo e a comunidade do terreiro. Destaco aqui o depoimento de J. Índio 7 , filho de santo e portador de HIV, que encontrou no terreiro de Mãe Constância o acolhimento necessário diante de suas aflições: Ela me disse você vacilou, abriu os braços, me abraçou, me beijou e disse: “eu tô aqui pro que der e vier”, pronto. Foi o que eu recebi da mãe Constância... não precisa de mais nada, né? Porque eu tenho muito amor, muita consideração por ela. A nossa historia é muito integrada e minha irmã de santo Vilma também sabe. Ficou em cima de mim direto para não me deixar esmorecer, para eu não me deprimir. Com relação a roça, a minha mãe de santo já tinha tido uma experiência anterior com filho de santo que soube que era soropositivo... isso foi na década de 80 e ela o acolheu. Ela botou ele dentro de casa e cuidou dele até morrer, ela não o abandonou, a família o abandonou e quem acolheu foi ela. Então, só disse pra mim o seguinte: “eu num quero saber dessa historia, eu quero saber que você tem problema e vamos cuidar de seu lado espiritual. (J. ÍNDIO, 2010). Enquanto realidade processual, continuamente negociada e vividamente expressa nos relatos dos portadores de HIV e demais membros da comunidade dos terreiros, as relações sociais, as contradições e os conflitos emergem em meio aos “dramas sociais” e aos meios de cooperação. Turner (1996) em sua análise simbólica sobre o drama social entre os Ndembu na Zâmbia define como: 7 J. Índio é natural de Fortaleza, tem 49 anos, participa da Umbanda desde 1986. É filho de Mãe Ilza de Oxum e frequenta o terreiro de Mãe Constância há mais de trinta anos. É solteiro, gosta de participar de eventos culturais, do maracatu. É professor do ensino infantil e fundamental, concursado pelo município de Horizonte. Fez parte do GRAB e convive com HIV há 10 anos. 19 Uma sucessão encadeada de eventos entendidos como perfis sincrônicos que conformam a estrutura de um campo social a cada ponto significativo de parada no fluxo do tempo [...] representam uma complexa interação entre padrões normativos estabelecidos no curso de regularidades profundas de condicionamento e da experiência social e as aspirações imediatas, ambições ou outros objetivos e lutas conscientes de grupos ou indivíduos no aqui e no agora. (TURNER, 1996, p. XXI e XXII). Tomando por base a referência de Turner (1996), é possível perceber, na análise sobre os rituais de cura e de aflição entre os Ndembu, um sentido de pertencimento capaz de transcender o permanente estado de tensão interpessoal e conflito político interno às instáveis aldeias. O autor compreende a experiência social como uma experiência de subjetivação realizada através do aprendizado, manuseio e atuação dos símbolos, onde a continuidade da sociedade Ndembu repousa, em última instância, na continuidade de uma “comunidade de sofrimento”, cujas tensões e conflitos se expressariam e, de algum modo, resolver-se-iam ritualmente nos ritos de cura e aflição. Neste sentido, os aspectos socioculturais expressos nas práticas em saúde da Umbanda Cearense instigam questionamentos que serão tratados nesta pesquisa. A saber, como as concepções tradicionais de saúde e doença se relacionam com as novas formas de controle, prevenção e convívio com o HIV/Aids? Quais os elementos simbólicos do panteão religioso da Umbanda (e muitas vezes do Candomblé) são utilizados durante as práticas em saúde e nos rituais de cura? Como se estabelecem as relações sociais entre os praticantes de Umbanda portadores de HIV, pais e mães de santo e demais comunidade dos terreiros? Como se configuram as ações conflituosas e de acolhimento no convívio com o adepto portador de HIV/Aids? No plano teórico 8 , a análise adota dois parâmetros fundamentais: primeiro, que considera a compreensão da reprodução do estigma (ou da identidade deteriorada) em relação ao HIV/Aids em sua dimensão sócio-histórica, e seus efeitos no contexto investigado (GOFFMAN, 1988). E segundo, que se refere à criação e reprodução dos dramas sociais, enquanto experiência social realizada através do aprendizado, manuseio e atuação simbólica, que se reproduz em quatro fases: ruptura, crise, ação corretiva e reintegração (TURNER, 1971). 8 Ver esquema conceitual em Anexo I. 20 No caso de que trata esta pesquisa, a primeira hipótese é que, considerando o público afetado pela doença (historicamente pertencente ao quadro de exclusão social), bem como as perspectivas da ausência de cura da Aids, as práticas em saúde nos terreiros são (re)produzidas em meio ao estigma ou a produção de uma identidade deteriorada, que norteará os processos de negociações, manipulações, escolhas e decisões no convívio com o HIV/Aids nos terreiros. E, a segunda hipótese é que, com base nos materiais culturais a que têm acesso, através do aprendizado, manuseio e atuação simbólica, que envolve, por um lado, a sistemática de acolhimento e aprendizado religioso por parte dos pais e mães de santo e, por outro, a militância na luta contra a Aids, muitas vezes, fortalecida pelas ações da Rede de Terreiro e pelo próprio Estado, os adeptos afetados pelo HIV/Aids constroem novas identidades, redefinindo por meio dos dramas sociais suas posições e relações na comunidade a que pertence. No contexto do rico universo simbólico da Umbanda encontramos, portanto, a possibilidade de investigação sobre os processos de saúde-doença 9 em meio ao estigma e aos dramas sociais vivenciados pela a comunidade em questão, diante do convívio com a problemática do HIV/Aids. Assim, relacionar o universo das práticas em saúde ao contexto religioso da Umbanda significa ainda permitir uma abordagem que considere as diferentes estratégias pelas quais as religiões reinterpretam a experiência da doença e modificam a maneira pela qual doente e comunidade percebem o problema. Vários estudos (Turner, 1967; Levi-Strauss, 1967, 1975; Kleinman,1980; Rabelo, 1993, 1994) abordam as terapias religiosas sob a perspectiva do culto enquanto campo organizado de práticas e representações, ao interior do qual o especialista religioso manipula um conjunto dado de símbolos para produzir a cura. E, para que os símbolos religiosos funcionem, ou seja, produzam cura, é preciso que sejam compartilhados pelo curador, o doente e sua comunidade de referência; usualmente, toma-se como pressuposto este compartilhar de símbolos e significados entre os participantes do processo de cura. Aqui pretendemos examinar as práticas em saúde sob a perspectiva dos umbandistas portadores de HIV, pais e mães de santo que convivem com a problemática, seja por sua condição de sorologia ou por ter filhos de santo portadores de HIV/Aids e militantes da luta contra Aids com atuação nos terreiros. O objetivo da pesquisa é, portanto, a análise 9 É a forma como o conjunto de fatores ambientais, sociais e próprios dos indivíduos interage (se relaciona), resultando em uma situação de bem-estar (saúde) ou de sofrimento, doença, incapacidade ou morte. (BRASIL, 2002). 21 sobre o estigma no convívio com o HIV/Aids em terreiros de Umbanda, considerando a (re)produção dos dramas sociais vivenciados pela comunidade em questão. O estudo considera que as práticas em saúde revelam relações com a estrutura social mais ampla através das ações/atitudes estabelecidas no próprio cotidiano dos adeptos da Umbanda. A biografia individual do adepto portador de HIV é significativa para a compreensão da “situação-doente” e das possíveis superações do problema, além das importantes narrativas por parte dos pais e mães de santo e militantes da luta contra Aids que partilham a vivência do problema. No universo da Umbanda, a herança da ordem religiosa, transmitida, sobretudo, através da oralidade, é de responsabilidade dos pais e mães de santo. Essas lideranças assumem um importante papel no aprendizado religioso dos sujeitos envolvidos, demandando todo um processo de socialização moral e religiosa na comunidade dos terreiros. Essa relação de poder que une pai ou mãe de santo aos seus filhos de santo é considerada indissolúvel e dura até a morte. A. de Ogum, filho de santo de portador do vírus HIV, reconhece a importância de uma boa escolha ao pai ou mãe de santo a quem vai se filiar. A confiança no sacerdote é o elemento central destacado por ele para a definição desta escolha: Tinha que ver onde eu me adaptava. Comecei a verificar os prós e os contras... Pra você escolher um pai ou mãe de santo não pode ser só escolhi, não. Ele tem que ser seu amigo, você tem que se identificar com ele. Ele tem que ser parte de você, porque ele vai praticamente comandar a sua vida. Ele quem vai botar a mão na sua cabeça. Você tem que ter completa confiança nele... dele saber tudo de sua vida, de você contar tudo. Hoje eu tenho minha mãe de santo como mãe verdadeira. Eu confesso as coisas muito mais do que eu confesso pra minha mãe biológica. Por que você é quem escolhe. (A. DE OGUM, 2012). Na perspectiva da pesquisa científica, Goffman (2008) analisa a “biografia” afirmando que: Quer a linha biográfica de um indivíduo esteja registrada nas mentes de seus amigos íntimos ou nos arquivos de pessoal de uma organização, e quer ele porte a documentação sobre sua identidade pessoal ou esta documentação esteja armazenada em arquivos, ele é uma entidade sobre a qual se pode estruturar uma história – há um caderno a sua espera pronto para ser preenchido. Ele é, certamente, um objeto para a biografia. (GOFFMAN, 2008:73). Ao relacionar o estudo da “biografia” com o estigma, Goffman (2008), afirma que o pesquisador deve ter uma atenção sobre a relação entre a “identificação pessoal” e a 22 “identificação social”10. Considerando que o estigma e o esforço para escondê-lo ou consertá- lo fixam-se como parte da identidade pessoal, o autor afirma que para construir uma identificação pessoal de um indivíduo, a exemplo do estigmatizado, o cientista utiliza-se também da identidade social deste sujeito, junto com tudo o mais que possa estar associado a ele. Segundo Goffman (2008): Pode-se supor que a posse de um defeito secreto desacreditável adquire um significado mais profundo quando as pessoas para quem o indivíduo ainda não se revelou não são estranhas para ele, mas sim suas amigas. A descoberta prejudica não só a situação social corrente mas ainda as relações sociais estabelecidas; não apenas a imagem corrente que as outras pessoas têm dele mas também a que terão no futuro; não só as aparências, mas ainda a reputação. (GOFFMAN, 2008:76). Portanto, o estigma pode ter um forte efeito sobre a biografia de um indivíduo. E, segundo o referido autor, apesar de todo o “encobrimento” (ou segredo) que o estigma impõe sobre o indivíduo, a revelação da situação de conflito pode estar sempre por um fio. Para Goffman (2008): (...) mesmo quando alguém pode manter em segredo um estigma, ele descobrirá que as relações íntimas com outras pessoas, ratificadas em nossa sociedade pela confissão mútua de defeitos invisíveis, levá-lo-ão ou a admitir a sua situação perante a pessoa íntima, ou a se sentir culpado por não fazê-lo. De qualquer maneira, quase todas as questões muito secretas são, ao mesmo assim, conhecidas por alguém e, portanto, lançam sombras sobre o indivíduo. (GOFFMAN, 2008:85). Durante a pesquisa, percebemos a forte ligação que os filhos possuem com seus pais e mães e santo e, na maioria das vezes, a crise (Turner, 1971) vivenciada pelo sujeito que se descobre soropositivo induz a busca pela ajuda e aconselhamento junto ao sacerdote 10 A “identidade pessoal” é definida por Goffman (2008) como “marcas positivas ou apoio de identidade e a combinação única de itens da história de vida que são incorporados ao indivíduo como auxílio desses apoios para a sua identidade. A identidade pessoal, então, está relacionada com a pressuposição de que ele pode ser diferenciado de todos os outros e que, em torno desses meios de diferenciação, podem-se apegar e entrelaçar, como açúcar cristalizado, criando uma história continua e única de fatos sociais que se torna, então, a substância pegajosa à qual vêm-se agregar outros fatos biográficos” (GOFFMAN, 2008:67). Quanto à “identidade social” Goffman (op.cit.) afirma que criamos um modelo social do indivíduo e, no processo de nossas experiências, nem sempre é imperceptível a imagem social do indivíduo que criamos. Essa imagem pode não corresponder à realidade, mas ao que denomina de uma “identidade social virtual”. Os atributos, denominados como “identidade social real”, são, na verdade, o que pode demonstrar a que categoria o indivíduo pertence. O estigma é um atributo que produz um amplo descrédito na vida do sujeito. Em situações extremas, é tido como “defeito”, “falha” ou desvantagem em relação ao outro. Isso constitui uma discrepância entre a identidade virtual e a identidade real. Para os estigmatizados, a sociedade reduz as oportunidades, esforços e movimentos, não atribui valor, impõe a perda da identidade social e determina uma imagem deteriorada, de acordo com o modelo que convém à sociedade (GOFFMAN, 2008:12). 23 e/ou a comunidade a que pertence. A revelação faz parte do tratamento na busca pelo equilíbrio espiritual. Este processo pode ser facilitado quando, de alguma forma, o indivíduo encontra um ambiente adequado para sua exposição, seja por uma situação de soropositividade compartilhada pelo sacerdote ou demais adeptos, seja pelo “convívio negociado” que alguns soropositivos encontram em determinados terreiros. No entanto, também há situações em que o adepto portador do vírus HIV não se sente a vontade para revelar sua soropositividade, o que pode sugerir a existência exacerbada do estigma da Aids e a possível ruptura (Turner, 1971) no relacionamento com aquele terreiro. Seguindo o pensamento de Simmel (1939) “a intencionalidade da ocultação de um segredo assume intensidade muito maior no embate com a revelação. Esta situação dá lugar à ocultação e ao mascaramento muitas vezes agressivo e defensivo, por assim dizer, contra uma pessoa, o que em si é designado como segredo”. Mãe Vilma narra uma situação em que um pai de santo ao descobrir que era portador do vírus HIV entra no isolamento e chega a óbito pela depressão e medo da revelação diante de seus filhos: Teve um amigo que acabou contraindo outras coisas e se negando. Tinha gente que dizia que morreu de gastrite, de úlcera, de num sei o que, onde a gente sabia que era Aids, a defesa era lá em baixo, sem defesa nenhuma porque num se tratava, porque num aceitava, num se assumia, aí morreu de frustração porque toda frustração leva a depressão, né? E a depressão é fatal. Foi problema dele mesmo, preconceito dele com ele mesmo por ele não querer dizer, já tinha casa aberta, tinha muitos filhos e como é que ia passar isso pros filhos? Teve medo dos filhos o abandonarem, então ele preferiu ficar no abandono e acabou morrendo. (MÃE VILMA, 2012). Aqui podemos remeter a noção de liminaridade, proposta por Turner (1971). Trata-se de uma fase intermediária caracterizada pela mudança no status social de um grupo ou de um indivíduo. Implica solidão ao invés de sociedade, o afastamento voluntário ou involuntário de um indivíduo de uma matriz socioestrutural. Pode implicar alienação da existência social em vez de uma participação mais autêntica na mesma. Ao observar os aspectos sociais da liminaridade em ritos de passagem Ndembu, Turner (1971) afirma: Tais ritos começam caracteristicamente com o sujeito sendo simbolicamente morto ou apartado de relações normais seculares ou profanas e terminam com um nascimento simbólico ou reagregação à sociedade. O período ou fase liminar que se interpõe está, portanto, betwixt and between as categorias da vida social comum. Tentei, então, ampliar o conceito de liminaridade para que ele pudesse abranger qualquer condição fora da, ou nas periferias da vida cotidiana, argumentando que havia uma afinidade entre o meio no tempo sagrado e o lado de fora no espaço sagrado, já que a liminaridade entre os Ndembu é uma condição sagrada. (TURNER, 1971: 47). 24 A revelação da soropositividade de um adepto junto à comunidade de terreiro a que pertence ocasiona uma fase liminar ao processo de convivência, em que as relações sociais instituídas serão negociadas em meio ao acolhimento e a intervenção “político- solidária” entre os agentes envolvidos. O convívio negociado pode representar a ação corretiva e reintegração (Turner, 1971) com o grupo, tem haver com a facilidade de relacionamento que alguns portadores do vírus HIV encontram em determinados terreiros de Umbanda. O acolhimento e a intervenção “político-solidária” que ampliam os conhecimentos sobre os riscos de contaminação e os meios de convivência com o HIV/Aids são elementos importantes neste processo. Esta experiência se aproxima do que Goffman (2008:93) define como “cooperação tácita”, que significa uma espécie de liberdade de ação que os portadores do estigma encontram diante de pessoas que possuem estigmas iguais ou semelhantes. Visto que a própria Umbanda foi historicamente uma religião discriminada que acolheu diversos públicos estigmatizados como pobres, negros (também brancos e classe média), prostitutas, homossexuais, portadores de diversas doenças, dentre outros, além de possuírem lideranças estigmatizadas fora da religião, mas respeitadas dentro dela, e que malgrado as perseguições sofridas pela religião, ela permanece viva (re)inventando velhas e novas práticas culturais no desafio pela sobrevivência, torna-se importante considerar na análise da pesquisa a dimensão sócio-histórica da Umbanda , bem como a experiência social no convívio com o HIV/Aids neste processo. Portanto, as práticas em saúde relacionadas ao convívio com o HIV/Aids nos terreiros de Umbanda serão analisadas sob a percepção de sua dimensão sócio-histórica em relação com a biografia e as narrativas cotidianas dos praticantes de Umbanda portadores de HIV, pais e mães de santo que convivem com a problemática e militantes da luta contra Aids com atuação nos terreiros. Estas narrativas revelam configurações singulares estabelecidas em meio de constantes negociações, escolhas e decisões, que repercutem nas trajetórias individuais e nas formas de pensar e viver de um grupo. Neste sentido, as experiências individuais do cientista social, também devem estar associadas ao produto intelectual que se gesta, onde o nível de criatividade de sua análise será respaldado pela “imaginação sociológica”. Wright Mills (1972:11) explica que a “imaginação sociológica” capacita seu possuidor a compreender o cenário histórico mais amplo, em termos de seu significado para a vida íntima e para a carreira exterior de 25 numerosos indivíduos, ela permite compreender a história e a biografia e as relações entre ambas, dentro da sociedade. Ao nos dispor a investigar as práticas em saúde no convívio com o HIV/Aids nos terreiros de Umbanda, pressupomos que as experiências individuais, a condição de pesquisadora social e o desenvolvimento dessa “imaginação sociológica”, auxiliarão na compreensão do movimento gerador desse processo, qual seja, a inter-relação entre as concepções tradicionais de saúde e doença e as novas formas de controle, prevenção e convívio com o HIV/Aids; os elementos simbólicos do panteão religioso da Umbanda (e muitas vezes do Candomblé) utilizados durante as práticas em saúde e nos rituais de cura; as relações sociais estabelecidas entre os praticantes de Umbanda portadores de HIV, pais e mães de santo e demais comunidade dos terreiros; e a configuração das ações conflituosas e de acolhimento no convívio com o adepto portador de HIV/Aids. Para tanto, foram realizadas visitações, observações e escutas sistemáticas aos sujeitos da pesquisa, as quais obedeceram aos seguintes momentos: o primeiro, a participação nas comemorações festivas dos respectivos terreiros, que aconteciam de forma constante e partilhada coletivamente; o segundo, a apresentação dos espaços sagrados e da família de santo, que se constituíram em visitas previamente agendadas pelos pais e mães de santo responsáveis pela casa; o terceiro, a realização das entrevistas individualizadas e semi- estruturadas com os interlocutores da pesquisa (às vezes, as entrevistas eram concedidas durante a visita de apresentação dos espaços sagrados); e, por fim, a observação de dois rituais de cura, que serão explicitados em detalhes posteriormente. Em Fortaleza, priorizamos as visitas aos terreiros que mantém vínculos com a Rede de Terreiros e/ou UECUM, que ficam localizadas nos bairros do Benfica (Mãe Stela), José Walter (Pai Júnior de Oxum), Presidente Kennedy (Pai Liberdônio), Dias Macedo (Pai Daniel), Castelão (Pai Silvano) e Granja Portugal (Pai Ricardo). Na região metropolitana, os terreiros pesquisados ficam localizados nos municípios de Caucaia (Mãe Constância e Pai Jairo) e Maranguape (Pai Robério e Pai júnior de Oxum, após mudança do José Walter). Durante os primeiros contatos junto aos terreiros em atividades de prevenção às hepatites virais e ao HIV/Aids, realizadas ainda em parceria com o GRAB e a Secretaria Municipal de Saúde, os vínculos com a comunidade umbandista eram fortalecidos em meio ao aprendizado religioso, aos conhecimentos relacionados a saúde e a doença, e ao estigma relatado pelos umbandistas que participavam dos eventos. Os momentos de interação com o 26 público dos terreiros, profissionais de saúde e militantes da luta contra Aids foram decisivos para amenizar as dúvidas e incertezas relacionadas ao convívio com os sujeitos da pesquisa. Muitas vezes, nossa postura foi de falar menos e observar mais atentamente as conversas, os cultos e as orações com o intuito de compreender melhor o universo que estávamos pesquisando. Durante as festas nos terreiros, sempre que possível íamos acompanhada de Mãe Constância ou de alguma liderança do movimento de luta contra Aids. Observávamos os cumprimentos e as formas de agir durante as giras. E por alguns instantes, nos misturávamos entre os adeptos, observando e escutando suas práticas e conversas entre si. Como instrumentos técnicos da pesquisa de campo foram utilizados o diário de campo, gravadores, câmaras fotográfica e de vídeo 11 . Os equipamentos digitais foram recorridos somente quando autorizados previamente pelos sujeitos envolvidos na pesquisa. Mas, a observação participante e os diálogos informais foram ferramentas importantes na compreensão daquela cultura que nos parecia tão distante. Velho (2005) define da seguinte forma a observação participante, referindo-se a Foote Whyte no prefácio de Sociedade de esquina: Sua valorização da observação participante não é apenas retórica, mas sim a expressão de uma posição ético-científica voltada para a melhor e mais rica compreensão dos fenômenos sociais, tendo como base o respeito aos indivíduos e grupos investigados. (VELHO apud WHYTE, W. FOOTE, 2005, p. 12). Neste sentido, o pesquisador enquanto cientista social deve ser probo na investigação, relatar o que vê, o que sente, as reações, as hesitações, as exacerbações e até os silêncios, sendo um dos pressupostos imprescindíveis para a autenticidade e honestidade com suas fontes. Ao tentar penetrar em formas de vidas tão estranhas, a observação participante cumpre um papel estratégico no ato da elaboração do texto, sendo evocada constantemente durante toda a interpretação do material etnográfico. 11 Sobre a importância dos “aparatos tecnológicos da verbo-visualidade contemporânea” e suas relações na tradição etnográfica, Etienne Samain (1995) ressalta que “deveríamos, enfim, preocuparmo-nos e nos perguntarmos o que vem a significar – em termos não apenas antropológicos, mas, ainda, heurísticos – o encontro e a mixagem de práticas cognitivas e comunicacionais seculares (visualidade, oralidade e escrita) com os mais recentes aparatos tecnológicos da verbo-visualidade contemporânea (som, fotografia, cinema, vídeo, informática), se é verdade que esses novos aparatos tecnológicos podem já e poderão cada vez mais servir à fundação e à prática de uma antropologia visual” (SAMAIN, 1995:26). O referido autor ainda descreve: “O que Margaret Mead, dessa maneira, pressentia e intuía na época, é que chegava o momento onde não bastaria “falar e discursar” em torno do homem, apenas “descrevendo-o”. Haver-se-ía de “mostrá-lo”, “expô-lo”, “torná-lo visível” para melhor conhecê-lo, sendo a objetividade de tal empreendimento não mais ameaçada pelo “visor” da câmara do que pelo “caderno de campo” do antropólogo” (MEAD apud SAMAIN, 1995:25). 27 Serão consideradas nas análises as observações e escutas sistemáticas das giras e dos rituais de cura, bem como as narrativas que abordam a convivência com o HIV/Aids, sobretudo, no cotidiano dos adeptos afetados pela questão. O mundo do narrado e do vivido se torna um fenômeno simbolicamente significativo para a compreensão do estigma em meio aos dramas sociais nos terreiros de Umbanda no convívio com o HIV/Aids. Trata-se da construção de um texto, como uma tessitura de significados elaborados pelos sujeitos da pesquisa (pesquisadora e interlocutores), que expressam suas vozes e modelam a pesquisa etnográfica. Portanto, o texto obedecerá à seguinte estrutura: O primeiro capítulo, intitulado Abrindo Caminhos, pretende contextualizar o espaço da saúde no universo religioso da Umbanda Cearense. Inicialmente, o objetivo será investigar a cosmologia da religião e sua relação com os rituais e as práticas em saúde. Em seguida, serão apresentados alguns Relatos de Cura como expressão dos processos de saúde- doença vivenciados pelos umbandistas, bem como os principais Assentamentos da Umbanda Cearense no sentido de entender os locais de culto às entidades e orixás, a representação simbólica de suas imagens e os efeitos de suas “energias” relacionadas com as práticas em saúde. Finalmente, serão explanados dois Rituais de Cura observados durante a pesquisa como ponto de partida para o entendimento do universo simbólico das práticas em saúde no convívio com o HIV/Aids nos terreiros de Umbanda em Fortaleza. O segundo capítulo, intitulado Umbanda, Aids e Estigma: uma Ampla Cronologia, versa, no primeiro momento, sobre as práticas culturais reproduzidas nos terreiros de Umbanda em sua dimensão sócio-histórica, configurada em sua expressão de realidade coletiva. O objetivo é perceber como se revelam as diferentes estratégias de convivência das práticas culturais em saúde da Umbanda com as formas legitimadoras e institucionais da ordem social brasileira, considerando as especificidades no cenário cearense. Em seguida, buscamos compreender o contexto da Aids no Brasil e no Ceará, identificando os impactos causados pela inserção da doença em contextos sociais, o seu perfil epidemiológico, bem como às respostas sociais frente a problemática em questão. Tal reflexão, auxilia na análise a seguir sobre o caráter estigmático do HIV/Aids e sua inserção nos terreiros pesquisados. No terceiro capítulo, intitulado Reconstituição da Pesquisa: Dramas Sociais em Questão focará o olhar sobre a constituição das relações sociais entre os praticantes de Umbanda portadores de HIV, pais e mães de santo e militantes da luta contra Aids com 28 atuação nos terreiros. O objetivo é compreender com se configura o estigma no cotidiano dos sujeitos pesquisados no convívio com o HIV/Aids, considerando a (re)produção dos dramas sociais vivenciados pela comunidade em questão. Para tanto, apresentamos, inicialmente, o tópico Diversidade Sexual nos Terreiros: Proteção e Relações de Poder. Contextualizar as relações de proteção e poder no convívio com a diversidade sexual nos terreiros, que antecedem ao advento da Aids, torna-se importante na medida em que, atualmente, a maior incidência de HIV/Aids nos terreiros acontece entre jovens homossexuais que se apresentam como protagonistas na luta contra a epidemia nos terreiros. O tópico seguinte Revelação da Soropositividade: Ruptura e Crise nos Terreiros de Umbanda têm por objetivo compreender as vivências dos sujeitos e os aspectos estigmatizantes de suas experiências, no sentido de entender a produção de uma identidade deteriorada a partir da descoberta de sua condição de sorologia e do processo de revelação diante da comunidade do terreiro. Finalmente, no tópico Acolhimento e Participação: Mediação e Reintegração nos Terreiros será abordado o processo de reconfiguração das identidades dos sujeitos afetados pelo HIV/Aids a partir dos dramas sociais estabelecidos com a comunidade religiosa a que pertence. O objetivo é perceber como o processo de acolhimento e aprendizado religioso conduzidos por pais e mães de santo e a intervenção político-solidária de militantes da luta contra a Aids auxiliam da construção destas novas identidades. Nas considerações finais, teceremos uma análise sobre o panorama das práticas em saúde na Umbanda e suas perspectivas relacionadas ao convívio com o HIV/Aids nos dias de hoje. 29 CAPÍTULO I ABRINDO CAMINHOS 30 ABRINDO CAMINHOS A análise sobre o estigma em meio aos dramas sociais no convívio com o HIV/Aids em terreiros de Umbanda em Fortaleza nos remete ao universo simbólico de Obaluaiê, a partir da analogia sobre os “signos de Obaluaiê”, na investigação de Abrantes (1999), e ao estudo de Caprara (1998), no qual identifica o orixá como o “médico-ferido”, capaz de influenciar os processos da doença e do sofrimento a partir da relação que se estabelece com ele. Segundo Caprara (1988), Obaluaiê é a divindade que, de um lado incorpora a doença, e de outro, promove a cura. É então o médico-ferido capaz de experienciar a própria dor e ao mesmo tempo deflagrar um processo de cura. Em primeiro lugar, Obaluaiê é considerado o “senhor das cabaças”, já que estas contêm os grandes mistérios, as grandes porções mágicas. Assim, por silogismo, Obaluaiê é também identificado como o “senhor dos mistérios”. Em sua indumentária, a presença da cabaça pode ser percebida como a existência de porções possíveis para aplacar as doenças, combater as epidemias (ABRANTES, 1999:58). Assim, o universo simbólico da Umbanda e sua relação com as práticas em saúde no convívio com o HIV/Aids se apresenta como um mistério, cheio de lendas e trajetórias individuais e coletivas a serem investigadas a luz da pesquisa científica social. O estigma e o drama social mostraram-se como importantes ferramentas conceituais para a aproximação deste mistério, como a utilização do xarará, o instrumento em que Obaluaiê faz referência à humanidade, aos indivíduos que estão sob seu domínio, comandando saúde e proteção. Neste contexto, é necessário emergir na literatura clássica sobre a Umbanda, a Aids e o Estigma, a fim de se obter uma visão mais ampla dos aspectos sócio-históricos que interagem com o universo pesquisado. A noção de drama social revela o encontro grandioso e a necessidade de uma percepção mais sensível e atenta sobre os processos dramáticos de revelação, conflito, acolhimento e participação que as práticas em saúde no convívio com o HIV/Aids exigem. Mas, Obaluaiê ainda está protegido por seu filá de palhas, escondendo seu corpo coberto de chagas, que sua mãe adotiva Yemanjá protegeu. Desta forma, Obaluaiê participa das cerimônias coletivas, se apresentando como entidade do mistério da proteção, mas também do medo, da contaminação pela epidemia. Neste sentido, é suma importância estar 31 atenta a biografia e as narrativas cotidianas dos umbandistas portadores de HIV, dos pais e mães de santo que convivem com a problemática e dos militantes da luta contra Aids com atuação nos terreiros. Participar da vida coletiva da Umbanda cearense permite as observações e escutas sistemáticas das giras e dos rituais de cura, bem como das narrativas que abordam a convivência com o HIV/Aids, sobretudo, no cotidiano dos adeptos afetados pela questão. É na interação com os demais Orixás que Obaluaiê se faz presente, na interação simbólico-coletiva. Tem o poder da cura, das temidas epidemias que assolam a humanidade. Sua dança marca a personalidade de uma entidade misteriosa, mas com imensa força na condução de seus trabalhos e vitórias a serem alcançadas. A análise sobre o estigma no convívio com o HIV/Aids permite um olhar sobre os processos de negociações, manipulações, escolhas e decisões no convívio com a problemática nos terreiros. Assim como, a dinâmica de acolhimento e aprendizado religioso conduzidos por pais e mães de santo e a intervenção político-solidária de militantes da luta contra a Aids, que auxiliam na (re)configuração das identidades dos sujeitos afetados pelo HIV/Aids no contexto investigado. Para melhor compreensão de tal fenômeno, este capítulo pretende contextualizar o espaço da saúde no universo religioso da Umbanda Cearense. Inicialmente, o objetivo será investigar a cosmologia da religião e sua relação com os rituais e as práticas em saúde. Em seguida, serão apresentados alguns Relatos de Cura como expressão dos processos de saúde- doença vivenciados pelos umbandistas, bem como os principais Assentamentos da Umbanda Cearense no sentido de entender os locais de culto às entidades e orixás, a representação simbólica de suas imagens e os efeitos de suas “energias” relacionadas com as práticas em saúde. Finalmente, serão explanados dois Rituais de Cura observados durante a pesquisa como ponto de partida para o entendimento do universo simbólico das práticas em saúde no convívio com o HIV/Aids nos terreiros de Umbanda em Fortaleza. 1.1 O ESPAÇO DA SAÚDE NO UNIVERSO RELIGIOSO DA UMBANDA O universo religioso da Umbanda é caracterizado por sua riqueza de símbolos e complexidade ritual que envolvem uma multiplicidade de elementos socioculturais. As práticas de cura têm um lugar significativo nos rituais umbandistas, pois é justamente o momento em que os adeptos têm a oportunidade de serem atendidos em seus problemas 32 particulares. Dentre as queixas que trazem estão problemas financeiros, questões de saúde, situações de conflito interpessoal e emocional. Em nossa pesquisa interessa compreender os processos de saúde-doença relacionados ao convívio com o HIV/Aids nos terreiros de Umbanda. Para tanto, é importante entender a cosmologia da religião, seus rituais e as práticas de seus agentes. As práticas em saúde da Umbanda remetem às origens indígenas, africanas e portuguesas, bem como acrescidas das influências do Candomblé, do Catolicismo Popular e do Kardecismo. Bairrão e Leme (2003) afirmam que o termo Umbanda servia na cultura banto para designar aquele que curava, o curandeiro cuja função era tratar dos males da comunidade seguindo os conhecimentos de sua tradição. Segundo Magnani (2002) tal como ocorre nos demais cultos de possessão que, em graus diferentes, estão em sua base o Candomblé e o Espiritismo, a pedra angular da Umbanda é a comunicação entre a esfera sobrenatural e o mundo dos homens, através da incorporação das entidades espirituais num grupo e no corpo dos iniciados. Apresenta, contudo, algumas particularidades que a diferenciam daqueles cultos. No Candomblé, as entidades (orixás) não são considerados espíritos de mortos, mas reis, princesas e heróis divinizados que representam forças da natureza (Iansã, os ventos; Iemanjá, o mar; Ossãe, as folhas e plantas; Oxum, os rios e cascatas, etc); atividades humanas (Oxossi, a caça; Ogum, a guerra e a metalurgia; Omolu, a medicina); virtudes e paixões (Xangô, a justiça; Oxum, o amor e o ciúme; Oxalá, a sabedoria, etc), cujas ações de desenvolvem num tempo mítico (MAGNANI, 2002:2-3). Na Umbanda, as entidades são consideradas espíritos de mortos que descem do astral onde habitam para o planeta terra- visto como lugar de expiação- onde, através da ajuda dos mortais, ascendem em seu processo evolutivo em busca da perfeição. Tal concepção, tributária da doutrina do carma, apresenta, contudo, algumas diferenças com relação ao Espiritismo Kardecista, enquanto para este último os espíritos que descem nas sessões são individualizados e reconhecidos pela história de suas vidas passadas, as entidades umbandistas constituem categorias mais genéricas, onde a referência à vida pessoal é substituída por representações como, por exemplo, caboclos e preto-velhos (MAGNANI, 2002:3). A Umbanda tem como crença a reencarnação e a divisão entre o mundo material do cotidiano dos praticantes e o mundo espiritual. Tudo que existe no mundo real possui um equivalente, uma cópia espiritual e abstrata no mundo sobrenatural; e, inversamente, tudo que existe neste mundo sobrenatural tem uma contrapartida, uma representação material ou 33 corporal no mundo real. As representações religiosas referentes às entidades espíritas atuam de forma exemplar nas práticas cotidianas de seus adeptos, e vice-versa. A religião, portanto, integra socialmente, uma vez que membros de uma comunidade religiosa compartilham a mesma cosmovisão, segundo valores comuns e praticando sua fé em grupos, em congregação, desenvolvendo uma rede de sociabilidades, em particular observa-se nas religiões afro-brasileiras. Para a compreensão de tal fenômeno, a concepção clássica de Durkheim (1978) 12 sobre religião a define como “uma coisa eminentemente social”. Os ritos, as crenças que se manifestam são realizadas pelas representações religiosas, que são “representações coletivas que exprimem realidades coletivas”, pois não há o que se conhece por religião sem uma sociedade. Os ritos “são maneiras de agir que não nasceram senão no seio de grupos reunidos e que estão destinados a suscitar, a manter ou a refazer certos estados mentais desses grupos”. Muito do que a sociedade é hoje foi constituído nas suas bases fundamentais pela religião (DURKHEIM, 1978:155). Na Umbanda, através do transe, é permitida a interação entre o mundo espiritual com o mundo físico. Por intermédio da mediunidade, as entidades se apresentam nos terreiros para transmitir ensinamentos, dar conselhos e orientações, recomendações no sentido de promover a cura e solucionar problemas, seguindo as linhas ou falanges 13 que se dividem conforme as fases de evolução espiritual. A riqueza do universo simbólico religioso constitui uma importante herança histórica e social, com influências indígenas, africanas e portuguesas. Magnani (2002) aponta que o transe não é nem estritamente individual nem propriamente uma representação com a profundidade dos mitos, mas a atualização de fragmentos de uma história mais recente através de personagens tais como foram 12 Os estudos de Durkheim ampliam as perspectivas anteriores sobre religião que viam como algo constituído por um modelo rígido e indivisível. Quando, na verdade, o autor de as Formas Elementares da Vida Religiosa (1989) entendia como “um sistema mais ou menos complexo de mitos, dogmas, ritos e cerimônias”. Logo, de um ponto de vista metodológico, o que se deve procurar são os fenômenos elementares de que é formada a religião, que se ordenam sob duas categorias fundamentais: as crenças e os ritos. As primeiras, seriam “estados da opinião, consistem em representações; os segundos são modos de ação determinados” (DURKHEIM, 1989). 13 Ortiz (1978) classifica e reconhece as linhas ou falanges dentro de um panteão característico da Umbanda. Por um lado, aproximando-se do Candomblé, o panteão é composto por orixás, que são os espíritos referentes às divindades africanas representantes das forças da natureza, como o fogo, o vento, a água, o metal; e, por outro, os espíritos desencarnados, classificados por “espíritos de luz” (caboclos, índios, pretos velhos e crianças) e “espíritos das trevas” (exus e pombas-gira). Esta última divisão corresponde à concepção cristã que estabelece a dicotomia entre o bem e o mal; enquanto os “espíritos de luz” trabalham unicamente para o bem, os exus e sua representação feminina- pombas-gira, em sua ambivalência, podem realizar tanto o bem quanto o mal. Em sua dimensão maléfica, os exus são identificados com as práticas da Quimbanda, conforme veremos em seguida. 34 conservados na memória popular: o caboclo Tupinambá, ou o pai Joaquim de Angola, quando descem, não são a representação deste ou aquele indivíduo em particular, mas uma representação genérica e estereotipada de índios brasileiros, escravos africanos e outros personagens liminares (Turner, 1974) presentes em diferentes contextos históricos e sociais brasileiros (MAGNANI, 2002:3). Mauss (1974) analisa que, no campo religioso, os mitos e as crenças exteriorizam o domínio dos símbolos. O simbólico serve de expressão total das coisas, e corresponde aos humanos que os assimilaram e a ele aderem. Portanto, os símbolos têm a ver com os códigos culturais, refletem a estrutura social em que o indivíduo está inserido. Como transmissor de cultura, são agentes socializantes. Na nossa sociedade, os sistemas simbólicos transmitem e perpetuam nas gerações seus conhecimentos e sua visão em relação à vida, ao mundo. Em nosso estudo podemos dimensionar a partir de tais reflexões teóricas, que os símbolos religiosos – em especial os rituais manipulados pelos pais e mães de santo – fazem com que o social e a cultura se tornem apreensíveis pelas pessoas como algo real dentro de seu próprio sistema simbólico. Assim, a religião, enquanto sistema cultural encontra eco na teoria geral da Cultura, que é definida por Geertz (1989) como: Um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradoras disposições e motivações nos homens, através da formulação de conceitos de uma ordem de existência geral, e vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que as disposições e motivações parecem singularmente realistas. (GEERTZ, 1989). Nesta perspectiva, os sistemas simbólicos culturais pertencentes ao universo religioso articulam e veiculam uma rede de significados, em que por meio deles é possível compreender a própria realidade social. Tal compreensão poderá ser descrita de forma inteligível a partir da “descrição densa”, ou seja, uma descrição em profundidade do objeto social, que considera suas configurações internas de relações sociais, suas relações de poder, suas tensões, seus processos de reprodução permanente, suas dinâmicas de transformação (GEERTZ, 1989). Conforme atesta Geertz (1989): A cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os conhecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos com densidade. Estas descrições são construções que imaginamos que os atores elaboram por meio da vida que levam, a fórmula que eles usam para definir o 35 que acontece com eles mesmos. Neste sentido, os textos antropológicos são construções, como uma leitura da cultura e, mais que isso, são interpretações de interpretações. (GEERTZ, 1989). Através das narrativas e das estórias vivenciadas pelos adeptos da Umbanda e investigadas pelo pesquisador é possível perceber como se gestam nas práticas rituais e nas relações interpessoais a produção de conhecimento e seus significados (tessitura de significados), a promoção à saúde e prevenção de doenças e agravos, incluindo as ações de acolhimento ou conflituosas (estigmatizadas) relacionadas ao trato com as doenças, bem como a (re)invenção de tradições milenares em meio ao universo simbólico religioso da Umbanda e suas práticas em saúde. Pesquisadores como Loyola (1984), Magnani (1984), Montero (1985), Nascimento (1999), Carvalho (1995), Rabelo (1999) e Mantovani (2006) descrevem as práticas de cura características da Umbanda e ressaltam a importância que o tratamento espiritual adquire para os umbandistas e para a comunidade dos terreiros. No universo da Umbanda, doenças e curas estão relacionadas significativamente ao sobrenatural, uma vez que a pessoa é o resultado da vontade da ação dos espíritos desencarnados ou orixás e de uma iniciativa individual (iniciação) de integração a uma comunidade. A vida é percebida como uma fonte de intensa dedicação e aprimoramento do ser humano seja no campo físico e/ou espiritual, em uma sequência de obrigações e tarefas a cumprir junto a sua entidade protetora correspondente. Os pais e mães-de-santo por serem considerados os mais evoluídos espiritualmente, detêm o poder superior no terreiro, tendo a responsabilidade sobre a iniciação dos adeptos e pela invocação dos espíritos desencarnados e orixás. A estruturação das práticas umbandistas segue esta visão cosmológica e o desempenho da cura quase sempre fica por responsabilidade de espíritos incorporados, chamados “guias”, que propagam benefícios aos praticantes pelo ideal de promover a “caridade”, a ajuda ao próximo. Montero (1985) e Magnani (1980) descrevem práticas como o “passe” a “benzeção”, a “desobssessão” que são procedimentos curativos desempenhados na proximidade entre o consulente (o indivíduo que traz a queixa) e o agente da cura, que pode ser tanto um espírito ou um chefe-de-culto. No ensaio clássico “O feiticeiro e sua magia”, Lévi-Strauss (1949) analisa a doença como uma situação em que o indivíduo doente se encontra acometido de um mal- estar “sem nome” e a manipulação dos símbolos religiosos garante que o estado doente 36 provocado por esse desconhecido, que afeta o indivíduo, possa ser compreendido e significado, resultando na recuperação da saúde do mesmo. A este processo Lévi-Strauss (1949) denomina “eficácia simbólica”: A eficácia simbólica consistiria precisamente nesta „propriedade indutora‟ que possuiriam, umas em relação às outras, estruturas fomalmente homólogas, que se podem edificar, com materiais diferentes, nos diferentes níveis do vivente: processos orgânicos, psiquismo inconsciente, pensamento refletido. (LEVI- STRAUSS, 1949, P. 233). Lévi Strauss (1949) apresenta relatos etnográficos nos quais procuram mostrar os mecanismos psico-fisiológicos do xamanismo, que se mostra como uma expressão concreta da eficácia simbólica, implicando também processos de interação social. O Xamã é visto como uma figura social que significa alguém que sabe, um sábio. O autor mostra que a eficácia da magia perpassa pela crença dela mesma, apresentando três aspectos fundamentais: a crença do feiticeiro, a crença do doente e a crença da coletividade. Nas palavras de Levi- Strauss: Não há, pois, razão de duvidar da eficácia de certas práticas mágicas. Mas, vê-se, ao mesmo tempo, que a eficácia da magia implica na crença da magia e que esta se apresenta sob três aspectos complementares: existe, inicialmente, a crença do feiticeiro na eficácia de suas técnicas; em seguida, a crença do doente que ele cura, ou da vítima que ele persegue, no poder do próprio feiticeiro; finalmente, a confiança e as exigências da opinião coletiva, que formam à cada instante uma espécie de campo de gravitação no seio do qual se definem e se situam as relações entre o feiticeiro e aqueles que ele enfeitiça. (LEVI-STRAUSS, 1949:194). Neste sentido, a dimensão da saúde-doença pode ser entendida como fenômeno individual e coletivo que emerge no interior de contextos socioculturais. Rabelo (1999) corrobora com tal discussão analisando o caráter intersubjetivo de toda “experiência”14 individual e coletiva do adoecer e tratar-se. Segundo a autora, 14 Neste contexto, o conceito de experiência expressa uma preocupação em problematizar e compreender como os indivíduos vivem no mundo, o que remete a idéia de consciência e subjetividade, mas também, e especialmente, de intersubjetividade e ação social (Rabelo, 1999:11). Na concepção de Turner (1986) a etimologia de experiência deriva do indo-europeu per, com o significado literal, justamente, de “tentar, aventurar-se, correr riscos”. Experiência e perigo vêm da mesma raiz. A derivação grega, perao, “passar por”, também chama a atenção do autor pelo modo como evoca a idéia de ritos de passagem. Turner descreve cinco “momentos” que constituem a estrutura processual de cada erlebnis, ou experiência vivida: 1) algo acontece ao nível da percepção (sendo que a dor ou o prazer podem ser sentidos de forma mais intensa do que comportamentos repetitivos ou de rotina); 2) imagens de experiências do passado são evocadas e delineadas – de forma aguda; 3) emoções associadas aos eventos do passado são revividas; 4) o passado articula-se ao presente numa “relação musical”, tornando possível a descoberta e construção de significado; e 5) a experiência se completa através de uma forma de “expressão”. Performance – termo que deriva do francês antigo parfournir, “completar” ou “realizar inteiramente” – refere-se, justamente, ao momento da expressão. A performance completa uma experiência. (TURNER apud DAWSEY, 2005:163-164). 37 (...) implicada na idéia de ser-em-situação, não está apenas à unidade corpo-mente, mas também o enraizamento fundamental do indivíduo no contexto social, enquanto ser que é desde sempre ser-com-outros. (...) a intersubjetividade é, assim, um conceito que aponta para um „ser-vivido‟, no qual o indivíduo desenvolve suas ações, procuram compreender-se mutuamente e compartilham o mesmo tempo e espaço com os outros. (RABELO, 1999:15). Com base nas discussões teóricas de autores como Weber, Mead, Blumer e Garfinkel, Rabelo (1999) interpreta o social como campo permanente de toda experiência, do qual não se pode escapar, por tratar-se de um campo móvel, continuamente deslocado, ampliado e refeito pelos indivíduos no curso de suas ações/interações cotidianas. Nosso interesse é investigar o estigma enquanto expressão destas experiências intersubjetivas, que são individuais e coletivas, vivenciadas a partir do convívio com a problemática do HIV/Aids nos terreiros, nos quais serão consideradas a (re)produção dos dramas sociais vivenciados pela comunidade em questão. Sobre o caráter intersubjetivo presente em representações coletivas relacionadas aos “dramas sociais”, Turner (2008) afirma: Nas representações coletivas intersubjetivas do grupo, descobriríamos „estrutura‟ e „sistema‟, „padrões de ações propositadas‟ e, em níveis mais profundos, „quadros de categorias‟. Estas estruturas individuais e de grupo, possuem uma função direcionada, uma função „cibernética‟, na interminável sucessão de eventos sociais, impondo a eles o grau de ordem que possuem e, de fato, dividindo unidades processuais em fases... A estrutura de fases do drama social não é produto do instinto, e sim modelos e metáforas que os atores carregam em suas cabeças. (TURNER, 2008:31-32). Portanto, os sistemas culturais que envolvem os “dramas sociais” dependem da participação de agentes humanos conscientes e volitivos e das relações continuadas e potencialmente cambiantes dos homens. Turner (2008) vislumbra em sua estrutura conceitual sobre o drama social uma análise processual, sendo interpretado dentro dos princípios da estrutura social um modelo dinâmico de sociedade, que se mostra através de uma ação relacional, constituída e apresentada de forma dramática. Considerando as análises sobre rituais e práticas de cura, Rabelo (1994:48) chama atenção aos estudos sobre o ritual em que vários antropólogos (Geertz, 1973; Turner, 1967; Kapferer, 1979; Csordas, 1983) têm enfatizado seu caráter transformativo, por meio da manipulação dos símbolos em contextos extracotidiano. Geertz (1973) explorou essa idéia ao sugerir que a briga de galos balinesa organiza experiências e sensações do cotidiano dos balineses em um “todo” ordenado, constituindo para estes uma espécie de “educação sentimental”. Enquanto Turner (1967, 1969, 1971, 1975) escreveu extensamente sobre como 38 os rituais operam de modo a conduzir os indivíduos a determinados estados e atitudes frente ao mundo: o isolamento de objetos e imagens de seu contexto ordinário e sua recombinação em novos contextos, a focalização em determinadas unidades simbólicas, a combinação de fortes estímulos sensoriais e intelectuais. Sobre a questão da cura no contexto religioso e, mais especificamente, no contexto ritual, Kapferer (1979) argumenta que o ritual produz cura na medida em que permite uma mudança na perspectiva subjetiva pela qual o paciente e comunidade percebem o contexto da aflição. E, Csordas (1983) entende a cura religiosa, como dinâmica de persuasão que envolve a construção de um novo mundo fenomenológico para o doente. Ou seja, no ritual de cura, o doente é persuadido a redirecionar sua atenção a novos aspectos de sua experiência ou a perceber esta experiência segundo nova ótica. A cura consistiria, assim, não no retorno ao estado inicial, anterior à doença, mas na inserção do doente em um novo contexto de experiência. No Brasil, Rabelo (1993) analisa em seu estudo sobre religiosidade e cura em classes populares urbanas, a religião sob uma ótica da experiência religiosa, isto é, das formas pelas quais seus símbolos são vivenciados e continuamente re-significados, através de processos interativos concretos entre indivíduos e grupos. A autora problematiza diante da facilidade dos membros das classes populares se movimentarem em diferentes cultos, a idéia de uma convergência necessária entre projetos religiosos e práticas sociais. Diferentemente da percepção de Geertz, no estudo de Rabelo (1993), a relação entre símbolos religiosos e vida social não é definida a priori por propriedades e significados inerentes aos símbolos, mas estabelecida no curso de eventos concretos nos quais os indivíduos se apropriam, confrontam e reinterpretam os símbolos à luz de determinados fins e interesses. A partir de sua experiência de pesquisa, a autora ressalta que se os símbolos são por vezes modificados e moldados pela religião, também determinam, em grande medida, a maneira pela qual os projetos religiosos são incorporados ao cotidiano dos indivíduos. Aproximando-se da perspectiva de Rabelo (1993), o percurso investigativo de nossa pesquisa aponta que as relações conflituosas, estigmatizantes, no convívio com o HIV/Aids nos terreiros são vivenciadas e narradas, sobretudo, a partir das relações sociais estabelecidas no cotidiano dos sujeitos. Embora seja significativa a compreensão do universo simbólico e da vida social a partir do ritual, conforme atestaram os antropólogos citados, a análise dos rituais de cura, bem como do universo simbólico dos Assentamentos da Umbanda 39 cearense representam, nesta pesquisa, o ponto de partida para o entendimento das práticas em saúde no convívio com o HIV/Aids nos terreiros. Para tanto, a análise de Turner (1996) em Cisma e continuidade 15 sobre a estrutura social dos Ndembu em que é explanado um processo social em movimento, um modelo dinâmico de sociedade em que a ação relacional, reconstituída e apresentada de forma dramática, é interpretada dentro dos princípios da estrutura social, nos inspira na investigação sobre o estigma e os “dramas sociais” vivenciados pela comunidade de terreiros diante da convivência com o HIV/Aids. Cavalcanti (2007:132) ao traduzir e analisar parte da referida obra aponta o capítulo V como especialmente esclarecedor. Nele, estão contidos os três primeiros dramas diretamente vivenciados por Turner em sua primeira permanência em campo. O primeiro deles é de setembro de 1951, e o investigador percebe sua presença no cenário aldeão como um “fator de ação”. A análise desses três dramas revela com limpidez o sistema em operação na vida cotidiana e, com isso, o vívido perfil humano dos principais personagens. A autora aponta dois aspectos interessantes oriundos da analogia proposta entre o processo social e a idéia dramatúrgica, a saber: 1- No encadeamento das sequências de ações, o drama social revela aquilo que ocorreria imperceptivelmente no fluxo cotidiano da aldeia: o realinhamento das relações sociais em pontos críticos de maturação ou declínios estruturais. Esses pontos críticos da estrutura social em movimento dinâmico conformam a dimensão de destino inexorável que Turner atribui aos processos sociais que analisa. 2- Ao mesmo tempo, esses desdobramentos de ações podem ser vistos como uma prova de força entre interesses conflitantes de pessoas e grupos que tentam manipular, cada qual em seu próprio benefício, a rede de relações sociais estruturais e circunstanciais. Esses processos sociais revelariam então outra dimensão embutida na metáfora dramatúrgica, aquela do embate entre os homens que abre um campo de alternativas possíveis para a ação. (TURNER apud CAVALCANTI, 2007:133. Grifos da autora). 15 Cisma e continuidade em uma sociedade africana (1996), corresponde a uma fase inicial da carreira de Turner em que ele produz sua monografia baseada na pesquisa de campo realizada em dois períodos: entre dezembro de 1950 e fevereiro de 1952, e entre maio de 1953 e junho de 1954. Com esse livro de estréia, Turner formulou com sucesso a noção de drama social, introduzindo uma instigante heterodoxia nas análises funcionalistas dos processos de conflito então em voga. Sem tradução para o português, nos reportamos às referências de Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (2007), em seu artigo “Drama social: notas sobre um tema de Victor Turner”. 40 De um modo geral, a vida social Ndembu 16 é caracterizada por Turner (1996) pela matrilinearidade com a regra de casamento virilocal – ou seja, as mulheres deslocam-se para a aldeia do marido quando casam – gera uma grande instabilidade na sociedade Ndembu tanto no casamento quanto na estrutura residencial de suas aldeias. Operando com a matrilinearidade, a virilocalidade impõe a um grupo de irmãos uterinos (siblings) a separação residencial dos parentes com os quais conviveu na infância. Na prática, combinam-se, em grande tensão, o ideal de construir grandes e duradouras aldeias e a mobilidade real e frequente de seus membros. Em sua análise, Turner (1996) cria uma grande tensão dramática envolvendo intensamente o leitor em sua narrativa. Nesse futuro vislumbrado como destino, a aldeia Mukanza, nos diz o autor, clivar-se-ia em duas – com Kasonda (sub-linhagem Malabu) e Sandombu (sub-linhagem Nyachitang’a) fundado cada qual sua própria aldeia, e com Sakazao (sub-linhagem Malabu) assumindo a chefia da aldeia Mukanza. Vale informar que nada disso, como comenta Turner no prefácio à edição de 1968 (p.XXIII), veio ocorrer. Mukanza Kabinda foi um chefe longevo e morreu em 1967. Foi sucedido, sem maiores conflitos, por Kasonda. A aldeia Mukanza manteve sua integridade por mais uma geração. (TURNER apud CAVALCANTI, 2007:134). A sequência dos três dramas investigados por Turner (1996) no capítulo V desemboca diretamente no importante capítulo X, no qual o autor analisa “sociologicamente”, ele enfatiza, e não “simbolicamente”, tarefa que ele nos avisa ter deixado para um outro momento – um culto de aflição. Trata-se do ritual Nkula (esquecimento do ancestral). O principal organizador desse ritual foi Sandombu (Sub- linhagem Nyachitang’a) e a principal mulher de Sakazao (sênior da linhagem Malambu). Através de uma identificação pelo sofrimento, os laços de solidariedade que mantêm a aliança das duas sub-linhagens e, portanto, a própria continuidade da aldeia Mukanza, se refazem. Cavalcanti (2007) analisa que (...) embora a noção de drama social focalize a ação social, vale ressaltar que o fato aparentemente óbvio de que os dramas sociais analisados são necessariamente narrativas sobre ações, ou seja, as ações propriamente ditas foram objeto de uma 16 Turner (1996) esboça inicialmente a estrutura social dos Ndembu de forma clássica, com muitas genealogias, pesquisa de campo exaustiva, quadros estatísticos e amostragens. O autor identifica um total de 64 aldeias na amostra quantitativa, onde apenas uma aldeia perdurava há doze gerações – a aldeia Mukanza, base do estudo de caso então realizado. 41 transposição ficcional, e existem na forma de narrações idealizadas e ordenadas por nosso autor. Do ponto de vista do nativo, o processo de acusação interno à aldeia, que sempre se segue à irrupção da crise inauguradora de um drama qualquer, é ele mesmo uma análise e auto-análise da conduta dos atores/personagens. O autor/antropólogo organiza essas narrativas e ações na sua própria narrativa de um drama revelador das razões estruturais implícitas aos conflitos explicitados pelas acusações, defesas e contra-acusações que movimentam a trama de ações... (CAVALCANTI, 2007:134). Desta forma, a descrição de Turner (1996) revela um processo social em movimento, um modelo dinâmico de sociedade em que ação relacional, constituída e apresentada de forma dramática, é interpretada dentro dos princípios da estrutura social. Cavalcanti (2007) ressalta que indo além dos paradigmas do funcionalismo, é importante aprofundar o referencial dramatúrgico da idéia de drama. Segundo a autora: Por esse viés, o drama social é também - além da „principal unidade de descrição e análise no estudo do processo social‟ (Turner, 1996, p. XXV), com suas quatro fases características (quebra de uma rega ou valor; crise; ação reparadora; re- integração ou reconhecimento do cisma) – um curso de tempo ativo de experimentação subjetiva, afetiva e cognitiva, dos princípios estruturais pelos personagens/atores sociais. Seu desenrolar não apenas revela os focos de tensão da estrutura social, mas constitui também um lugar de possível reflexão, análise e auto- análise e de transformação conceitual e interior da pessoa Ndembu em seus relacionamentos. (CAVALCANTI, 2007:135). À luz de tais reflexões teóricas, vislumbramos a possibilidade da análise sobre o estigma nos terreiros como um processo social em movimento e em constante negociação, em que as concepções tradicionais de saúde e doença se relacionam com as novas formas de controle, prevenção e convívio com o HIV/Aids. Estas práticas expõem relações conflituosas, estigmatizadas, nas quais os aspectos fundamentais da comunidade umbandista, normalmente encobertos pelos costumes e hábitos do trato diário, ganham proeminência. Mas, também apresentam lições de acolhimento e participação político-solidária que auxiliam na reconfiguração das identidades dos sujeitos afetados pelo HIV/Aids. A seguir, apresentaremos alguns relatos de cura como expressão dos processos de saúde-doença vivenciados pelos umbandistas, os principais assentamentos e dois rituais de cura observados durante a pesquisa de campo, como ponto de partida para o entendimento das práticas em saúde no convívio com o HIV/Aids nos terreiros de Umbanda em Fortaleza. 42 1.1.1 – RELATOS DE CURA A relação dos adeptos da Umbanda com questões relacionadas à saúde é bem pertinente e costuma se manifestar desde a iniciação na religião. Nos depoimentos levantados entre os umbandistas é comum a associação da busca pela religião movida por questões relacionadas à saúde que não tiveram êxitos na medicina convencional. Os problemas e sintomas das doenças muitas vezes estão relacionados às manifestações da mediunidade, estas que precisam ser trabalhadas e desenvolvidas para o “controle” das manifestações físicas. Os sintomas costumam manifestar-se desde a infância, e são caracterizados por tonturas, tremores, dores na cabeça, insônias, perturbações, etc. Pai Liberdônio narra sua experiência de iniciação e cura por intermédio do Preto Velho Pai Joaquim de Angola: Bem eu criança tinha 6 pra 7 anos de idade, meus pais muito católicos, e eu fiquei muito doente, doente mesmo levaram pra médico e tudo. E não tinha na medicina, eu não achei a cura, e achei a cura dentro da Umbanda. Pelo um preto velho chamado Pai Joaquim de Angola, foi quem me recebeu a primeira vez, foi quem me curou e nela eu fiquei até hoje, porque o problema era espiritual, era mediunidade realmente, era mediunidade porque realmente quando o preto velho passou os banhos, as folhas pra fazer os remédios, as coisas com plantas medicinais e realmente obtive a cura, e depois desenvolvi e nela eu fiquei até hoje, fui curado dentro da Umbanda. Hoje a casa que eu tomo conta o Pai Joaquim também faz parte, o Preto Velho, né. Nessa casa também já fez muitas curas graças a Deus, muitas curas mesmo espirituais pelo Preto Velho e pelo Pai Janá desenvolvido pelos caboclos, né... (...) Olha, eu sentia muita tontura, dores de cabeça, insônia certo, principalmente dor de cabeça, fiz vários exames tudo e não concretizava, realmente o médico nunca achava o problema, a doença. Eu não dormia a noite era tontura, era insônia essas coisas, muitas perturbações, e quando passei a freqüentar uma casa, eu fui curado, realmente foi iniciou a minha cura, esses sintomas, era mediunidade, era mediunidade realmente hoje eu me sinto curado e realizado no mundo espiritual e fui curado. (PAI LIBERDÔNIO, 2010). Conforme visto nesse depoimento, os pais e mães de santo que são curados por determinadas entidades costumam cultuá-las quando abrem seus próprios terreiros. O sucesso nos tratamento de cura e a crença na existência da espiritualidade fortalecem a prática religiosa da Umbanda e sua relação com a saúde, sendo intermediada pelo elo existente entre o enfermo, o médium e as entidades espirituais. O processo de iniciação e cura vivenciada por Pai Jairo foi conduzido pelas entidades Negro Gerson, Mãe Maria e Preta Velha Juliana. Segundo o pai de santo, o evento 43 proporcionou sua crença na existência da espiritualidade e, consequentemente, em sua conversão definitiva para a Umbanda: Eu comecei com 10 anos de idade, alias eu comecei a sofrer a minha mediunidade com 7 anos... Com problemas de saúde, mas só que eram problemas espirituais, não era doença material pra médicos resolverem... Aconteceu que a clarividência começou a ficar avançada, comecei a sentir umas fraquezas, tontura e cheguei ao ponto de um encosto, um espírito negativo encostar em mim, foi como me levaram até a ele. Ai lá tinha esse centro de Umbanda, essa casa de cura, eu me deparei com uma entidade chamada Negro Gerson, Mãe Maria e Preta Velha Juliana e foi a forma de me levarem até a ele e dar início a minha mediunidade, lá eu fiquei bom, fiquei andando porque eu já fui lá praticamente sem andar.... Esse foi o primeiro encontro que eu tive com a Umbanda, primeiro vinculo e de lá no mesmo dia, eles me mostraram por A mais B que a espiritualidade existe, que as energias realmente se encontram vestidas diante dos médiuns o qual tem os dons e de lá já sai bom, bem de saúde. Enquanto já tinha procurado vários médicos e não descobriram a minha doença, tudo começou e tá ai. Ai lá eu tinha o que? Eu tinha de 9 pra 10 anos, ai com 10 anos recebi a primeira instancia e de lá pra cá não sabia como lidar em relação a eles, alguns me maltratavam outros não. Ai uma certa pessoa me fez o convite pra minha casa, meu Pai de Santo que até já faleceu e lá foi organizou a minha espiritualidade me deu orientação, ai tudo começou daí. (PAI JAIRO, 2010). Os problemas de doença também costumam estar relacionados a um “trabalho”, “feitiço” ou “bruxaria” demandados por terceiros. Nestes casos, a medicina convencional também não demonstra êxito em seus tratamentos de cura, devendo o pai ou mãe de santo identificar a natureza do problema e buscar a solução inspirada na intervenção das entidades espirituais junto ao enfermo. Por outro lado, a referência médica através do diagnóstico da doença por meio de exames clínicos também é considerada durante a consulta espiritual. É significativo o número de relatos que narram trajetórias de pessoas “desenganadas” pela medicina convencional que alcançaram sua cura após o tratamento espiritual na Umbanda. Bem, acho que ano passado em 2009 mais ou menos julho pra agosto uma senhora me procurou nesta casa, a qual sou zelador pra desmanchar um trabalho ela já tinha ido em vários terreiros dentro do Estado do Ceará primeiramente ela foi aos médicos procurar a medicina, mais ela foi desenganada, foi desenganada, mais era um trabalho realmente eu posso dizer de bruxaria, era um trabalho muito pesado, e ela procurou a minha casa essa pessoa, de julho pra agosto mais ou menos, ela passou uns 6 meses na minha casa, hoje ainda faz parte da minha casa, ela foi curada, foi desmanchado o trabalho e eu obtive êxito abaixo de Deus, meus Pretos Velhos ela realmente obteve a cura e o médico desenganou, deu poucos dias a ela certo. E ela está viva pra contar a história e realmente foi curada, pra mim realmente é muito gratificante”. (PAI LIBERDÔNIO, 2010). “(...) A pessoa chega geralmente um dia antes do trabalho (ritual). Ela relata ao pai ou uma pessoa que está lá o que está sentindo, como começou os primeiros sintomas, o que tomou, o que fez e o que deixou de fazer em termos de 44 medicamentos. Dependendo de alguns casos a gente que é médium sente logo quando os sintomas são de fato espirituais. Quando não se tem essa sensibilidade, então, não se percebe na conversa. É perguntado se a pessoa não procurou os médicos. Por que às vezes as pessoas sentem as coisas e por influência de terceiros acha que é feitiço, ou que é algo espiritual, mas às vezes não é, é caso de médico. Quando a pessoa diz que foi ao médico, que fez exames e deu tudo normal, e que cientificamente ela não tem nada, aí ela faz uma consulta particular com a entidade, aí ela (entidade) diz o motivo da doença e passa o material pra ser utilizado no ritual de cura ou se faz na própria gira. Já aconteceu da pessoa chegar praticamente nos braços e no ato (gira) a entidade fez um “desmanche” e a pessoa já saiu praticamente andando. Claro que não é uma única vez que a pessoa fica curada, tem todo um processo de gira, que tá sendo acompanhado mesmo, você vai tomando os banhos, toda semana indo falar com a entidade pra pessoa ficar boa por completo. (PAI CLEILTON, 2010). Situações de “trabalho”, “feitiço” ou “bruxaria” demandados por terceiros dificilmente encontrarão êxito na medicina convencional, segundo os depoimentos dos sacerdotes. Neste sentido, o pai ou a mãe de santo é quem detém o conhecimento específico, através de sua espiritualidade, para o “desmanche” do serviço em questão. Este conhecimento faz parte de uma longa tradição, transmitido oralmente, e adquirido por uma intensa entrega do sacerdote a vivência na religião, em que são partilhadas experiências e aprendizagens (e seus segredos) por entre seus pares. O sucesso da intervenção do sacerdote é o que confere sua autoridade diante da comunidade do terreiro a que pertence e que é responsável. Sem esquecer, é claro, que a cura só terá êxito com o empenho do enfermo em seu tratamento. Dona Iolanda, mãe de sangue de Pai Silvano e conhecida por trabalhar na Umbanda com a linha mais antiga do Catimbó 17 , narra sobre as características físicas encontradas no enfermo que denotam a manifestação de uma feitiçaria, segundo a sua interpretação. Durante um ritual de cura, o ambiente do terreiro é dominado por odores fortes, que ela denomina de “rabugem”, e por suores exalados de forma expressiva. Faz parte do processo de cura o descarte de materiais utilizados durante a sessão. A catimbozeira ainda revela durante as conversas que antigas práticas de contato direto entre o curador e o enfermo 17 Segundo Roger Bastide (1959), em seus estudos sobre religiosidade afro-brasileira, “o catimbó e o espiritismo popular são um apelo aos espíritos místicos ou aos espíritos dos matos para que venham ajudar os pobres viventes a elevar-se espiritualmente e a encontrar uma solução para seus problemas cotidianos, inclusive o da saúde física. O catimbó era primitivamente, entre os índios selvagens, uma festa de colheita e da preparação da jurema, mas tornou-se pouco a pouco um culto destinado a fazer descer os espíritos da floresta, dos rios e das montanhas, os encantados, nos corpos dos catimbozeiros, para que respondessem às consultas dos infelizes e dos doentes.” (BASTIDE, 1959:154). Em seu estudo sobre a tradição da jurema na umbanda nordestina, Assunção (2006) afirma que “adjunto de jurema, beber jurema, segredo da jurema, catimbó, não importa o nome, o que interessa é registrar a similitude dessas práticas em períodos e culturas diversas. Convém também observar que os elementos dessas práticas, vividos por meio de um processo de reelaboração e reinterpretação, estão presentes no culto da jurema dos terreiros de umbanda do nordeste brasileiro como um culto aos mestres catimbozeiros, aos caboclos indígenas e aos negros africanos”. (ASSUNÇÃO, 2006:22). 45 já não são mais realizadas nos terreiros, a exemplo, da sucção de feridas, muito comum entre as práticas mais antigas dos catimbozeiros. (...) Chegou um homem aqui com a perna... vixe Maria! já tinha andado por todo médico já ia cortar a perna... ---- o senhor acredita em macumba? Não. Pois o senhor volte pra trás num terreiro de macumba pra tirar o que você tem e era uma macumba mesmo que botaram nele... ai eu disse toda verdade, tudo que foi passado que ele viu o caboclo disse pra ele, não sabia nem quem era, o homem ele disse...--- --- gostei, gostei porque o caboclo disse tudo que passou na minha vida mesmo, foi passado. Eu só fiz três cura... a coisa mais horrível do mundo, eu tinha recebido uma saia de macumba do Rio de Janeiro que uma mulher tinha me dado... essa saia ficou como um beiju dura no meu corpo, ai o caboclo disse assim que eu subi tinham tirado ela e botaram outra, quando foi no outro dia eu fui lavar essa saia e dei fim, mais tem uma coisa pus ele bom, quando ficou bom a senhora pode crer que esse terreiro ficava quando começava a cura dele esse terreiro ficava parecia que tinha botado uma lata d‟água que tinha botado era uma catinga de rabugem mais feia do mundo, ali foi uma feitiçaria bem feita, ai com três curas ele chegou a mim e disse estou bonzinho ele andava de bermuda porque não podia usar calça nem sapato, mais era daqui até a ponta do pé era um lastreio só a perna do homem, não era ferido não, era aquele vermelhão e aquele aguaceiro até eu mesmo quando ele chegou pra falar comigo, eu digo eu vou fazer sua cura porque caridade é caridade... ele chorava porque tinha os filhos, os filhos passando fome passando mal porque ele não podia trabalhar, ele era pedreiro.... (CATIMBOZEIRA IOLANDA, 2010). As experiências de cura na Umbanda também possuem elos com outras práticas religiosas, como vimos anteriormente com o Catimbó e o Candomblé. São práticas antigas e/ou mais recentes que são incorporadas ao saber fazer dos pais e mães de santo da Umbanda. Nos relatos, ainda aparecem outras práticas como a utilização de energias do Reike e do Xamanismo. Mãe Constância, após a realização de curso 18 por intermédio da Rede de Terreiros, percebe como um elemento positivo para sua atuação, a incorporação de saberes a partir das práticas do Reike, e de seu aperfeiçoamento no Candomblé: Está melhor do que há 20, 30 anos atrás, certo? Melhor porque os instrumentos que eu uso hoje são mais modernos, né? Hoje eu trabalho com energias diferenciadas do que eu trabalhava há 30 anos. Eu era uma pedra que precisava ser polida. Era mais bruta, né? Agora eu já estou mais polida. Então, a energia que eu trabalho hoje já é mais útil, e como eu disse, a ferramenta que eu uso hoje é mais moderna, é melhor. Trabalho com o Reike e também com o Candomblé, estou me aperfeiçoando. São energias diferentes, mas que a gente trata. Quando uma pessoa chega na minha mão, 18 Em 2010, a Rede de Terreiros, em parceria com a Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde, Universidade Estadual do Ceará, Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza e Ministério da Saúde realiza o curso de Reike com destaque para as temáticas de afro-religiosidade, massoterapia e reflexologia. 46 digamos assim, com um problema, eu já tenho maior capacidade de saber o problema dela e a melhor cura espiritual. São remédios mais completos para aquela dor, né? Então, eu posso buscar num ponto diferente. (MÃE CONSTÂNCIA, 2011). Com o foco na saúde, a Rede de Terreiros intervém nas práticas culturais nos terreiros de Umbanda em Fortaleza. Atualmente, as ações realizadas através de parcerias estimulam a ampliação do atendimento de pais e mães de santo nas próprias unidades de saúde da Prefeitura Municipal de Fortaleza, preparando os sacerdotes para atuação na área da saúde mental. Embora ainda possa ser considerada uma experiência pontual, a prática do Reike aliada a Umbanda e ao Candomblé também adentram nos espaços dos terreiros, repercutindo nas condutas dos sacerdotes diante de sua clientela. Pai Robério, relata sua experiência em um caso de cura sem a presença necessária do enfermo, pois este já se encontrava internado no hospital na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Diz que, através de sua mediunidade, conseguiu transpor a doença para seu corpo e, após três dias, retirá-la por meio das práticas energéticas do Xamanismo: Em casa, pronto eu tinha um filho de santo em minha casa, que até hoje eu não esqueci jamais disso, ele tava com uma amigo com problemas de rins, calculo renal, e tava internado. Então, ele chegou nas últimas, foi pra UTI. Ai Francisco, que era meu filho de santo, disse: ---pai o senhor pode fazer alguma coisa? ---- Ah! Francisco, a única coisa que eu podia fazer era tirar um ebó nele, mas como ele já tava no hospital, o que eu posso fazer aqui é um arreia, pedir misericórdia pra Oxalá. E assim fizemos, ele cozinhou o milho, ai esfriamos o pé de oxalá, cantei, cantei. Até então nem sabia quem era a criatura, porque eu nunca tinha visto ele. Fui dormir. Então dormir fiquei sonhando, mas um sonho acordado, saiu um pombo do meu telhado e pousou em cima de mim, o qual eu tava deitado de lado, o bombo pombo pousou ai eu me assustei, do que eu me assustei, ai saiu voando e foi embora, no outro dia eu acordei com uma dor nos meus rins, como se eu tivesse mesmo uma infecção, mais até então nem passava pela minha cabeça a respeito da pessoa pra quem eu rezei, ta entendendo? Eu acordei assim, sem noção. Aí 7 horas da manhã ele me liga dizendo que o cara tinha saído da UTI, estava muito bem, o médico ia abrir ele acabou não abrindo, porque tudo modificou os exames dele e ele estavam tudo bem. Até hoje, bebendo todas e comendo tudo e muito obrigado, e eu passei três dias com problema de rins, a doença do homem só deu pra mim, entendeu? Mas, como a gente já é sabedor da coisa, então a energia vem, porque a gente já sabe como abraçar ele e expulsa-lá, enquanto vocês que ainda não tinham experiência se oprime, ta entendendo se decai é o que a gente chama de principio xamanico é um, é que tem pessoas que tem essa, esse tipo de mediunidade, o xamanismo ele tira da pessoa e trás pro seu corpo, e o teu corpo ele tem condições de retirar de você eventualmente, mas ele faz primeira essa, essa transição entendeu, é o principio xamanico da historia, ele globaliza varias outras religiões que tão ligadas ao mundo mais ancestral, o xamanismo. (PAI ROBÉRIO, 2011). 47 No que se refere à condução dos tratamentos de cura, estes são sempre conduzidas pelo líder espiritual, o pai ou a mãe de santo responsável pelo terreiro, mas quase sempre se realizam com o auxílio dos filhos ou de outros pais de santo, que aprendem o ofício durante os rituais de cura. Isso confere uma oportunidade singular de aproximação do enfermo com a comunidade geral do terreiro. Partilhando através da “irmandade” os demais filhos de santo auxiliam no apoio do tratamento e recuperação daquele que necessita. Pai Cleilton, embora detenha o status de pai de santo, preferiu não abrir seu próprio terreiro e permaneceu filiado ao terreiro de Pai Liberdônio. Ele relata sua experiência na casa em questão, e destaca as diferenciações nos tratamentos para as diversas manifestações de enfermidades: Na casa de meu pai quando as pessoas chegam vão automaticamente em busca do dono da casa, que é meu pai. Depende muito da situação de cada um. Tem pessoas que chegam enfermas que no ato da gira a entidade da casa faz um ritual de “desmancha”. Uma desmancha de trabalho... quando a pessoa chega enferma por motivo de “demandas”. Doenças que não sejam por “demandas” se faz orações, passe, se dar banhos de limpeza, descarregos, se passa algumas plantas... aí depende muito do que a entidade do meu pai ou outra entidade que está em mim ou nos meus irmãos, que por ventura veja a necessidade da pessoa. (PAI CLEILTON, 2010). Os tratamentos de cura na Umbanda estão relacionados comumente às demandas de caridade do terreiro. A clientela é ampla e se divide entre os adeptos internos – pais, mães e filhos de santo, e os clientes externos. No que se refere à comunidade interna, esta deverá obedecer a uma sistemática de obrigações junto às entidades e orixás por meio de uma hierarquização estabelecida pela quantidade de obrigações e pelos anos de dedicação junto à casa a que pertence. Quanto aos clientes externos, o terreiro pode atuar em várias frentes. Pode ter uma atuação mais coletiva, visando à integração da comunidade em geral ou um atendimento personalizado junto ao indivíduo que necessita 19 . No caso de Mãe Constância, que desde criança sofria com perturbações mentais e problema de asma, aos 18 anos, após crise que a deixou acamada, recorreu a Maria dos Caboclos, curandeira residente no bairro do Pirambu, e muito conhecida por suas atividades de cura naquela comunidade. Maria dos Caboclos, após tratamento de cura em Mãe Constância, intermediado pelo caboclo Seu Légua, solicitou a esta como recompensa, sua 19 O atendimento personalisado ao cliente externo é caracterizado pela realização de trabalhos mágico-religiosos particulares, geralmente relacionados às questões de amor, financeiras ou de saúde. (Ver em CHAVES, 2010). 48 dedicação e empenho para transformar-se em uma futura curadora, conforme o depoimento da mãe de santo: (...) Eu voltei várias vezes pra fazer as curas. Foram nove curas, nove dias seguidos que eu fui pra Maria dos Caboclos continuar fazendo as rezas, as curas e tudo. Aí o João, que nós já estávamos casando nessa mesma época, mandou que eu perguntasse quanto era eu tava devendo pra ela... Ai ela disse: --- pra mim você não deve nada! Mas, pergunte pro seu Légua! que era o guia dela. Ai eu fui e perguntei, meio tonta, né? Não sabia de nada. Eu perguntei pra ele, ai ele disse: ----você quer pagar a cura que foi feita em você? --- Quero, né? Ai ele disse: ---- pois faça uma roupinha branca e venha pra cá toda semana pra você desenvolver. Ai eu não entendi o que ele queria dizer, aquelas palavras... Ai eu pedi pra menina que tava muito tempo com ela, pra me dizer o que ele estava pedindo. Ai ela explicou. Então eu perguntei pro Seu Légua se eu ia fazer a mesma coisa que ele fez. Dona Maria dos Caboclos então disse: --- no dia que você chegou aqui doente eu disse que você ia ficar boa, você não ficou boa? --- Fiquei. ---- Então, eu não minto, não é? Ele dizendo pra mim: Então, tem que acreditar que você vai fazer a mesma coisa. Ai pronto, eu cheguei pro João e contei. Ele fez uma revolução danada, por que ele não queria, né? Mas, não teve outro jeito. Eu fiz uma roupinha branca e fui pra lá e desenvolvi. Isso foi no mês de agosto, que eu fui a primeira vez, quando foi no mês de outubro, eu já estava recebendo caboclo. (MÃE CONSTÂNCIA, 2011). A partir do depoimento de Mãe Constância podemos perceber que embora o processo de iniciação tenha forte relação com a questão saúde-doença, ele também se apresenta como uma vivência capaz de repercutir significativamente por toda a vida do indivíduo, demarcando, inclusive, a iniciação do adepto na própria religião. Por sua ligação com questões relacionadas à saúde mental, Mãe Constância continuou em sua trajetória a realizar atividades de caridade para a população em geral. Ela narra sobre suas viagens ao interior do Estado com intuito de atender pacientes com problemas mentais. Fala de uma época, provavelmente década de setenta, em que seu terreiro funcionava como casa de hospedagem para atender os enfermos interioranos: Vixe! Teve uma época em que havia muita cura de problema mental. Minha casa serviu até de hospital, para hospedar pessoas com problemas mentais que vinham do interior. Eu viajava pro interior a procura de fazer cura. Fui para o Iguatu, por intermédio de pessoas que freqüentavam minha casa, que tinha parente doente por lá. Ai eu fui pro Iguatu com essa pessoa, quando eu cheguei tinha tanta gente doente, com problema mental. Eu fazia muitos trabalhos, teve bons resultados, de pessoas chegarem lá em casa completamente transtornadas. Louco que vivia amarrado, e eu tinha que dizer: --- solta! eu seguro! Tive de segurar sozinha, vinha quatro homens segurando e eu mandava soltar. Segurava só com aminha força espiritual, dominava essa pessoa que estava completamente transtornada, que era assediada por entidades negativas. (MÃE CONSTÂNCIA, 2011). 49 O depoimento ressalta o caráter popular que atinge as ações de um terreiro. A clientela é formada por pessoas de baixa renda, moradores de áreas pobres do interior do Estado, onde os serviços de saúde pública eram inexistentes. Portanto, durante um longo período de ausência do Estado no que se refere aos serviços de saúde pública, foram estes espaços religiosos que desempenharam importante função na assistência aos enfermos da região, apesar de toda perseguição sofrida. Os relatos revelam a condição social precária e o lugar desigual da sociedade a que pertencem estes sujeitos. Ao mesmo tempo, as ações do terreiro fortalecem a atuação da mãe de santo e legitimam sua prática quanto ressalta a fortaleza de sua energia diante da adversidade causada pelo transtorno mental. Hoje, Mãe Constância e Mãe Vilma, ambas do terreiro Rancho Trindade, atuam como agentes de saúde em unidade da Prefeitura Municipal de Fortaleza – no CAPES (Centro de Atendimento Psicossocial), em parceria com a Rede de Terreiros. O público atendido são os portadores de transtornos mentais, seus familiares e os próprios profissionais de saúde do município de Fortaleza. As mães de santo desenvolvem encontros terapêuticos com rezas, cânticos e bênçãos nas próprias unidades de saúde. E, aquele que desejar uma atenção mais individualizada, é convidado a ir ao terreiro. Portanto, a parceria se estabelece, o fluxo de atendimento se modifica, e o “bem estar” relacionado à saúde adquire uma dimensão mais ampliada no serviço público, que incluem as tradicionais práticas terapêuticas da Umbanda. Além do atendimento desenvolvido no CAPES, as mães de santo dão continuidade a rotina do terreiro realizando o atendimento individualizado a clientela externa, o apoio aos filhos de santo da casa sempre que necessário, e o cumprindo das obrigações junto às entidades e os orixás por meio das comemorações festivas. No que se refere à cobrança pelo viés financeiro nos terreiros, esta prática é recorrente normalmente àqueles que possuem condições para o pagamento. As cobranças financeiras estão relacionadas, sobretudo, aos trabalhos intermediados pelos exus. Pai Cleilton relata a relação de cobrança estipulada no terreiro a que pertence: Na casa de meu pai não é cobrado nada. Eu, particularmente, não concordo que seja cobrado. Por que o que a pessoa recebe de graça você tem que dar de graça. Se você tem uma mediunidade é porque Deus lhe deu essa mediunidade e ele deu de graça, você vai para o terreiro apenas para lapidar essa mediunidade. Tem casas que cobram porque os pais e mães de santo fazem de sua religião um emprego, é um meio de sobrevivência, é uma forma deles tarem tendo como arrecadar dinheiro 50 para se manterem e as próprias despesas da casa. Mas, isso não é generalizado nas casas, são poucas casas que cobram, e nas que cobram quando chega uma pessoa muito carente, ela não cobra, ela faz por caridade ou por misericórdia, pois por essas cobranças tem entidades que cobra do médium e às vezes deixa ele enfermo, então se faz por caridade, em caráter de urgência. Mas, a cobrança no candomblé acontece com mais freqüência, na umbanda, nem tanto, tem... mais é pouca, noventa por cento é por base da caridade. Quando sai uma cobrança, não é o caso de eu faço um “cruzo” e você me paga tanto em dinheiro... Mas, o pai de santo pede alguma ajuda pra casa ou que a pessoa faça algum benefício em prol da casa. A maioria dos “cruzos” são de graça. Os poucos que cobram são os “cruzos” que tem energia da terra, que são os “cruzos” de Exu. Essas casas cobram. Na casa de meu pai o máximo que você faz é dar um presente para Exu, não é pagamento. (PAI CLEILTON, 2010). A cobrança é um elemento importante de diferenciação entre a Umbanda e o Candomblé. Em relação ao Candomblé, os depoimentos apontam que a Umbanda se destaca por realizar um maior número de ações de cunho caridoso. Álvaro Bezerra, coordenador da Rede de Terreiros em Fortaleza, fala do caráter elitista e hierárquico do Candomblé. E, em contrapartida, da facilidade do acesso aos terreiros de Umbanda para o desenvolvimento de trabalhos comunitários em saúde, o que expõe, de fato, uma prática de longa duração que os terreiros já realizavam em tempos remotos: Fortaleza abriu os braços para o pessoal do terreiro, principalmente pro pessoal da Umbanda. O pessoal do Candomblé eu acho que deveriam se olhar enquanto mães e pais de santo e abrir mais o coração já que é tão bonito, porque que eles se acham grandes ao ponto de não contribuir? Ou seja, descer lá dos seus palácios e dos seus tronos e chegar ao povo comum, que também são eles... eles tem que se ver assim, se espelhar no outro, está junto do outro, se colocar junto do outro para sentir realmente como é que acontece e fazer com que a saúde aconteça mais, se fortaleça. O pessoal da Umbanda participa mais, o pessoal do candomblé por conta da história da África e da criação e da mitologia e tudo... na cabeça de cada um funciona de cada jeito, do jeito que é, eu acho que tinha que ser mais aberto eu acho que tem que seguir a tradição tem que usar da oralidade para repassar e para multiplicar as informações em relação ao axé, e em relação a saúde eu acho que também temos que crescer, temos que saber do potencial de cada terreiro e desenvolver, fazer com que dentro desse terreiro as pessoas sejam capacitadas junto da saúde para pelo menos encaminhar para onde tem que ser feito e isso tem que ser em parceria terreiro e Saúde, que é o que a gente tem tentado... (ÁLVARO BEZERRA - REDE DE TERREIROS, 2009). O coordenador ainda destaca as ações de acolhimento realizadas por pais e mães de santo durante o tratamento de cura na Umbanda. Embora o trabalho da Rede de Terreiros aconteça em parceria com os profissionais da rede municipal de saúde, o coordenador tece críticas ao atendimento realizado pelo sistema de saúde público e ressalta o caráter acolhedor das práticas de saúde nos terreiros: 51 (...) A gente trabalha com base em coisas anteriores a própria medicina que seriam as plantas, as águas, as pedras, as coisas que compõe o universo, o planeta e que nós enquanto seres que também fazemos parte disso a nossa contribuição para com o planeta que é o nosso lar, que seria diferente, que seria o nosso corpo para o espírito, o que rola de ruim é que nós somos umas ervas daninhas que não nos cuidamos e contribuímos para a destruição da nossa casa maior que é o grande organismo que é o planeta e todos que compõe o cosmo... No Ceará já existe esta tradição e este cuidado a partir do momento que alguém adentra o terreiro e tem uma pessoa que vai dar um pouco de atenção, vai ouvir um pouquinho, vai deixar que você se desarme de tudo que lá fora estava deixando inquieto. Você vai ter uma pessoa que vai ter seu mapa astral, jogar búzios, ver como é que você está energeticamente, quem está lhe regendo, quais são os vudus, qual a energia que lhe rege, como você pode fazer para melhorar, diferenciado do sistema de saúde, que você chega tem uma fila gigante, não tem a menor atenção, as pessoas não querem saber, não respeitam a sua idade, não quer saber da sua cor, querem trabalhar mecanicamente, mesmo com a humanização toda eu acho muito longe da realidade do terreiro, que cuida de você como um todo, que lhe acolhe como se fosse um bebezinho, que lhe dar atenção, que lhe tem carinho, que mesmo sendo um desconhecido você se sente fortalecido e fica a vontade, pode abrir seu coração. Eu acho que nesse processo a saúde já está se dando de tamanho gigante, que é alguém poder lhe ouvir que é alguém ter atenção a você. Isso é interessantíssimo dentro da sistemática da saúde no terreiro. (ÁLVARO BEZERRA - REDE DE TERREIROS, 2009). O conhecimento de uma longa tradição, o exercício da escuta e do aconselhamento, a disponibilidade de tempo e energia para o acompanhamento no tratamento diminuem as distâncias entre o enfermo e o cuidador. As práticas em saúde nos terreiros fortalecem a crença na cura e são conduzidas por meio de rezas, benzeduras e passes, consultas espirituais junto aos caboclos e pretos velhos, jogos de búzios, uso de plantas medicinais por meio de chás, garrafadas e banhos de ervas, dentre outros. Pai Liberdônio conta um pouco de seus segredos e destaca a importância dos pretos velhos na condução dos tratamentos de cura: Geralmente na umbanda tem as ervas medicinais, tem as ervas quentes, as ervas do descarrego eu uso muito na minha casa, banho de tipi, dou banho de descarrego dou banho de ervas marmeleiro, dou banho misturado com alho roxo, amara chama-se a cachaça misturado com limão e sal e tal tem esse banho de descarrego que é o forte, que se chama rabo de galo, rabo de galo para o caboclo, no Preto Velho também dou banho de descarrego pra poder tirar todas as cargas negativas, é o meu primeiro processo no meu rito na minha casa, ai vou ensinar a fazer os banhos de limpeza e os medicamentos de acordo com o Preto Velho deixar, o Preto Velho é que ensina as plantas medicinais que eu vou usar, pra fazer uma garrafada pra pessoa, a babosa o alecrim, o arruda, o cipó ... ai eu faço a garrafada de acordo com cada entidade o Preto Velho me ensina os remédios para determinadas doenças e inicia o ritual... (...) dependendo também da doença, como foi feita a demanda, a demanda se materializa, trabalho de feitiçaria, bruxaria todos nós sabemos curadores o feitiço ele se materializa, o trabalho ele se materializa. Então quando tá realmente muito avançado sobre o corpo da pessoa, nós temos que geralmente uma 7, 14 ou 21 guias, ai depende na minha casa eu pego 7 médiuns já firmado pra poder ajudar na cura, pra arrear os Pretos velhos, pra fazer uma corrente uma 52 assistência naquela cura, 7, 14 a 21 dias pra o trabalho ser concretizado nessa cura. (PAI LIBERDÔNIO, 2010). A relação de acolhimento aos clientes externos pode ser pontual ou duradoura, a depender do nível de dificuldade demandado pela doença e dos anseios e dedicação de quem procura. Mas, a relação com os filhos de santo comumente é mais densa e prolongada. As lideranças religiosas assumem um importante papel na condução moral de seus filhos de santo, demandando todo um processo de sociabilização moral e religiosa na comunidade dos terreiros. Essa relação de poder que une pai ou mãe de santo aos seus filhos de santo é considerada indissolúvel e dura até a morte. A relação de acolhimento vivenciada nos terreiros permite uma interação entre as subjetividades do cuidador e de quem é cuidado. Há uma troca mútua de conhecimentos e sentimentos que facilita a superação das situações de conflito. A confiança se fortalece na medida em que o pai ou a mãe de santo prioriza o exercício do ver, do tocar, do ouvir e do sentir. O adepto convalescente encontra meios para a superação de seus problemas de saúde através do acompanhamento do sacerdote - intermediado pela representação simbólica da “força”, da “energia” e dos “tratamentos” indicados pelas entidades e orixás - além da dedicação e assistência empreendidas por parte da irmandade do terreiro. Esta confiança é de fundamental importância para os sujeitos fragilizados por uma situação de doença, como por exemplo, pelas pessoas infectadas pelo HIV/Aids praticantes da Umbanda. 53 1.1.2. ASSENTAMENTOS Neste tópico serão explanados os locais de culto às entidades e orixás – Assentamentos 20 - e sua relação com as práticas em saúde, no sentido de entender a interpretação simbólica das imagens e os efeitos da representação de suas “energias” diante da superação de problemas e, por conseguinte, do alcance da cura. Sabe-se que as linhas energéticas para cada tratamento dependerá do tipo de doença e a identificação estabelecida pelo pai ou mãe de santo – intermediado pelas entidades e orixás - e o enfermo em questão. No terreiro de Umbanda se organiza um mundo sagrado 21 , e é lá onde se realizam os rituais. É caracterizado por elementos simbólicos demarcados em lugares específicos, que demandam energias específicas (reunião de energias). Cada entidade possui seu assentamento, ou seja, um espaço de culto e reverência para a realização das obrigações. Para a abertura de um terreiro, o pai ou mãe de santo deverá ter cumprido o seu ritual de maturidade, conhecido como o “vôo da liberdade”, através da obrigação acompanhada por seu sacerdote guia e reconhecimento da comunidade a que pertence. O sacerdote guia deverá acompanhar seu filho de santo em todo o processo de constituição do novo terreiro, orientando e demarcando os assentamentos necessários. A explanação dos assentamentos aqui apresentados obedecerá a organização dos terreiros visitados durante a pesquisa, especialmente, os terreiros de Pai R. de Oxum e Mãe Constância 22 . Serão consideradas as narrativas e os pontos cantados pelo pai de santo R. de Oxum e pelos filhos de santo J. Índio e Sheila Araújo, ambos do terreiro de Mãe Constância. Os dois terreiros são, ao mesmo tempo, unidades de residência e local de cultos. É a residência do pai e mãe de santo transformada em terreiro de Umbanda. Os espaços dos terreiros são amplos, bem arborizados e afastados da cidade. A maior parte dos assentamentos fica localizada na entrada e lateral do terreiro, sendo um local de constante visitação e culto 20 Os Assentamentos representam a materialização das energias por meio de altares compostos por imagens e elementos de reverência às entidades e orixás cultuados. Eles são também a representação de formas de conceber e compreender o universo religioso. 21 Do ponto de vista da caracterização interna dos terreiros, em sua maioria, divide o espaço da residência do pai ou mãe de santo, ou seja, muitas vezes os altares e imagens de adoração, os lugares de culto e acolhimento aos “clientes” ficam localizados na sala, no quarto e em outras dependências do domicílio do sacerdote. A propósito dessa característica, não existe uma separação rígida entre sagrado e profano, e sim, uma certa invasão do sagrado na vida cotidiana. No entanto, ainda que de forma simples, percebemos a preocupação em se reservar um lugar, seja no quintal ou na lateral da residência, para os espaços de adoração, a realização das giras e o acolhimento aos clientes e visitantes em geral. 22 Ver em anexos II e III os desenhos da planta dos terreiros de Pai R. de Oxum e Mãe Constância com as localizações de seus respectivos assentamentos. E, nos anexos IV e V as fotografias dos assentamentos. 54 por parte da liderança religiosa para a realização da magia de seus “trabalhos”23. Enquanto espaço sagrado, os assentamentos possuem interditos, sendo necessário para adentrar nestes locais estar sempre acompanhado do líder espiritual ou de um filho de santo de confiança da casa, fazer reverência através de gestos rituais e entrar descalços em respeito à entidade ou orixá ali representados. No altar, também denominado “peji” nos terreiros de Umbanda, encontramos as imagens das entidades espirituais da Umbanda e orixás do Candomblé, misturados aos santos católicos, como N. Senhora, Pe. Cícero, São Sebastião, Cosme e Damião, São Jorge, dentre outros, e até imagens de Buda. Outros elementos encontrados são as guias, as flores, as quartinhas, os couros pendurados dos animais sacrificados, as fotografias dos orixás e de alguns “clientes” dos terreiros, os nomes de pessoas escritos e fixados junto às imagens e outros elementos simbólicos que os representam, como palhas para Obaluaiê, brinquedos para os erês, etc. De um modo geral, a multiplicidade das representações simbólicas presentes nos altares remete o caráter dinâmico e integrador da Umbanda, que resulta de um processo de reelaboração de elementos simbólicos de várias religiões, e que também obedecem às influências regionais em determinados contextos sócio-históricos (Concone, 1987). Ao demonstrar o altar (peji) principal de seu terreiro, Pai R. de Oxum elabora a seguinte definição sobre a Umbanda: Esse por último é um peji simbolizando a religião Católica junto com a Umbanda, fazendo a união, porque a Umbanda, na realidade, é a união de nações, vem Congo, vem o povo de Aruanda, os caboclos, os penas, os índios, guerreiros, flecheiros, boiadeiros, gentileiros, o povo da Jurema, são os mestres, a encantaria que vem do Maranhão, que são príncipes, princesas, pessoas do Rei da Turquia, Légua Bougi Bouá, todo esse culto é elaborado aqui dentro da Umbanda e trabalhado também. (PAI R. DE OXUM, 2013). O terreiro de Pai R. de Oxum é regido na Umbanda pela proteção do Boiadeiro e de Dona Madalena e, no Candomblé, segue a Nação Jeje Nagô Vodun 24 , sendo regido pelo orixá Oxum. O pai de santo também afirma ser um dos principais motivadores pelo culto da Encantaria da Jurema em Fortaleza. O terreiro de Mãe Constância é regido na Umbanda por 23 Pordeus Jr. (2000:91) discorre sobre a categoria trabalho como esforço físico ou mental, necessário à realização de uma produção cultural entre as sociedades ditas primitivas ou arcaicas. Na Umbanda, o termo trabalho é sinônimo de rito mágico-religioso, sendo utilizado para vários fins, como por exemplo, para solucionar problemas de saúde, financeiros e amorosos. 24 Nação Jeje/Mina Jeje (povos Ewe e Fon – idioma fon). O reino do Dahomé é o berço dos povos Ewe e Fon, que formam o Candomblé Jeje. Esses povos desembarcaram no Brasil a princípio em São Luís/MA. Na Bahia também há o ritual Jeje e também em Pernambuco, Rio Grande do Sul e São Paulo. No Maranhão é conhecido como Tambor de Mina. Para a Nação Jeje, suas divindades chama-se “Voduns”, tradição herdada dos povos africanos Ewe-Fon. Foram chamdos “Jeje”-estrangeiros- pelo povo Nagô. (RODRIGUES, s.d). 55 Seu Zé Pilintra e, no Candomblé, segue a nação Keto 25 , sendo regido pelo orixá Ogum. A referência a escolha da entidade ou orixá que rege um terreiro pode estar relacionada às relações de gênero 26 a partir da conjuntura pessoal da liderança religiosa. Pai R. de Oxum fala sobre sua relação com o Boiadeiro e Dona Madalena, assim como, a relação de Seu Zé Pilintra, no terreiro de Mãe Constância: Na realidade, é assim... eu sou um Pai de Santo, tenho filho, mas sou solteiro, não tenho esposa, mas quem faz o papel de mulher dentro da minha casa? Dona Madalena, entendeu? E o pai dentro da minha casa é o Boiadeiro, mas o papel da mulher, da mãe, da senhora é a Dona Madalena, então há uma ligação muito forte. Na Mãe Constância, seu Zé Pilintra, faz o papel de homem, de Pai, né? Há uma ligação muito grande, as pessoas é que não procuram centralizar, entendeu? Fazer sintonia de uma energia com a matéria. Ah, mas porque é a mulher com espírito de homem, porque é o homem com o espírito de mulher, há uma conjunção nisso, há uma união entre sexo do homem com o espírito mulher e a mulher com o sexo do espírito homem e assim vai. (PAI R. DE OXUM, 2013). Partindo para a disposição dos assentamentos do terreiro de Pai R. de Oxum, o primeiro assentamento que se apresenta é o dos Exus (Elegbaras, em Jeje). Segundo o pai de santo, Esses são os assentamentos de Elegbaras como Pomba Gira também pode ser chamado em Jeje Nagô Vodun. Aqui fazemos os sacrifícios para que haja a energia entre a terra o ser humano e Orum para que nos proteja do mal, do perigo e de formas de energias negativas. Exu, também chamado na forma de Elegbara, trabalha pra positividade e não é conhecido como negativo na casa de Jeje, mas muitas formas são usadas para isso, não discordo com quem fala, mas nós devemos acrescentar mais um pouco sobre a crença, sobre a fé, sobre a união que Exu nos faz e nos dá espaço sobre isso. (PAI R. DE OXUM, 2013). O assentamento dos Exus fica localizado na entrada do terreiro, do lado esquerdo. Para Pai R. de Oxum, eles representam a consagração dos mestres que foram tombados, tendo para cada entidade assentada um padrinho ou madrinha representados por santos católicos. 25 Nação Keto (povo Iorubá ou Nagô – idioma ioruba). Antigo reino africano, situava-se onde hoje se encontram a República Popular do Benim e a Nigéria. É também o nome dado ao povo que aqui chegou como escravo, vindo dessa região. Foram responsáveis pela implantação da maioria dos terreiros na Bahia. É a maior e mais conhecida Nação dos cultos afro-brasileiros. Tem grande influencia sobre as outras Nações, que incorporam algumas práticas e rituais. Subgrupos: Efá e ljexá ou Batuque, no Rio Grande do Sul e Mina-Nagô no Maranhão. (RODRIGUES, s.d). 26 Sobre relações de gênero ver em SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Recife, SOS CORPO, 1995. 56 Por exemplo, nos assentamentos das pomba-giras Estrada e Esmeralda aparecem como madrinhas, respectivamente, Santa Bárbara e N. Senhora de Fátima. Outras imagens católicas também se apresentam como padrinhos, são eles: Pe. Cícero, São Sebastião e Santo Antônio. Na concepção de Pai R. de Oxum algumas entidades evoluem espiritualmente, podendo ser transformados os próprios cultos em sua homenagem. O pai de santo narra as transformações do culto a D. Maria Mulambo em seu terreiro: Aqui Dona Maria Mulambo, que o povo tem ela como Pomba Gira, Exu, mas aqui em casa ela foi juremada como mestra, então ela recebeu uma graduação de espiritualidade, ela foi evoluída, então hoje ela não come mais sangue, ela não participa mais de matanças, essa coisa toda... Ela só se alimenta de frutas, flores e perfume. (PAI R. DE OXUM, 2013). Apesar da variação de culto aos Exus, seu assentamento é considerado central na abertura de uma casa de Umbanda. O Exu representa a energia vital do terreiro, que leva e traz todas as energias, seja ela positiva ou negativa. É chamado de “carteiro”, não separa o bem e o mau. É responsável pela defesa e a cura. Os exus são destemidos e encaram qualquer tipo de situação/doença. Eles tratam todos sem distinção, buscando sempre o “bem estar” de quem o procura, não importando o caráter do trabalho que será empreendido. Esta força vital torna-se essencial para o emponderamento dos convalescentes e a superação de suas aflições. O filho de santo J. Índio diante de suas experiências na religião e enquanto soropositivo descreve Exu da seguinte forma: Exu é o movimento, é o caminhar, é a força que faz você ir para frente. Quando a necessidade é extrema, quando trata-se de um trabalho muito “pesado” somente os exus dão conta de desmanchar os feitiços. Quando se fala em exu, lembra-se que ele é o gerador do conflito. Mas, todo mundo carrego seu “exu”, seu “bará”, ele faz com que seu conflito leve você para frente. (J. ÍNDIO, 2012). Segundo Pordeus Jr. (2002) os estudiosos que se debruçaram sobre essa personagem optaram por duas abordagens: a primeira tenta explicar a coexistência de elementos contraditórios, em um único ser, com apoio de considerações psicológicas, sem chegar a conclusões aceitáveis. A segunda considera Exu como a imbricação de dois seres diferentes, mas de maneira arbitrária, que conduz à destruição da personagem mítica sem levar em conta os componentes contraditórios. O autor aponta uma terceira abordagem, que considera Exu como “Herói Civilizador”, apoiado na Etnologia, ou seja, no estudo da 57 realidade da experiência social, em que mitos seriam o fundamento dessa realidade. Na descrição do autor: Defendemos a tese de que a ambigüidade do Exu é a manifestação, no plano mitológico, da ambigüidade brasileira. Dessa maneira, recorremos a Shaden para conceituar e denominar a nossa personagem, pois para esse antropólogo, o “Herói civilizador é o portador ou inventor de elementos culturais de ordem material ou técnica, sendo-lhe atribuída a invenção de armas e utensílios, de técnicas agrícolas etc... Os benefícios que lhe são atribuídos, estão particularmente ligados àquilo que a cultura considerada define como sendo os interesses vitais da comunidade” (...) e conclui: “de qualquer modo é compreensível que a sociedade conceba representações sobrenaturais à sua própria imagem, enfrentando os mesmos perigos, lutando com as mesmas dificuldades, recorrendo às mesmas soluções”. Seria aqui enfadonho, portanto, tecermos comentários sobre as condições de vida das categorias populacionais em que realizamos o estudo; subentende-se a recorrência ao Exu, no Espiritismo de Umbanda, como Herói Civilizador. (SHADEN apud PORDEUS JR., 2002:74-75). Os assentamentos de Exus geralmente possuem ferramentas de ferro com figuras ilustrativas derivadas dos pontos riscados por meio dos rituais. Os pontos riscados são, portanto, revelados pelas entidades incorporadas durante os rituais. As entidades também revelam sua identidade (sexo e energia vital), que serão figuradas nas ferramentas que compõem o assentamento. Figuras arredondadas, de coração, remetem ao feminino. Figuras em formato de setas retas e chifres simbolizam a fertilidade e a força masculina. O vermelho e o preto são as cores características da casa de Exus. Paredes vermelhas, portão preto, perfumes, chapéus, velas, colares (guias) ambientam o espaço definido. Em um dos assentamentos de Exus observados, pudemos visualizar as imagens de Seu Sete Encruzilhadas, considerado o pai da Umbanda. À direita de Seu Sete Encruzilhadas, encontra- se a pomba-gira Sete Saias, conhecida popularmente como Maria do Arrastão, por sua característica de arrastar e conquistar as figuras masculinas. O ponto cantado de Maria do Arrastão é ecoado no terreiro de Mãe Constância da seguinte forma: Sou Maria Sete Saias, Maria do Arrastão. Com minhas sete saias, vou vencer sua questão. À esquerda de Seu Sete Encruzilhadas, encontra-se a pomba-gira Rainha, ou pomba-gira das almas, relacionada às questões das almas e dos cemitérios. A figura menor do altar superior representa o Exu Tiriri, ligado à linha energética do descarrego, ou seja, do desfazer mandingas encomendadas por outrem. Geralmente, o Exu Tiriri trabalha utilizando 58 os elementos da natureza, como as pedreiras e as cachoeiras. Também presente encontra-se a pomba-gira Maria Padilha, famosa nos terreiros, representa a feiticeira da rua. Maria Padilha representa a ambiguidade sexual no terreiro (feminino e masculino). Ela assume esteticamente a figura feminina, mas age com a determinação e a seriedade masculina, a partir da concepção de seus adeptos. J. Índio descreve da seguinte forma: Maria Padilha não gosta de brincadeira, é valente e resguardada. Quando se vai fazer obrigação para ela você tem que oferecer o galo e a galinha, senão ela não fica satisfeita. Tem que alimentar e energizar o lado fêmea e o lado macho. (J. ÍNDIO, 2012). Para os adeptos que fazem parte do universo pesquisado, existem sete linhas na Umbanda 27 , ainda que variem de nomes. A linha dos Exus, também conhecida como Quimbanda, é qualificada como linha negra, feitiçaria, magia, macumba 28 , etc. Daí que alguns autores como Ortiz (1978), Trindade (1987), Pordeus Jr. (2000) têm demonstrado uma tendência da Umbanda a ocultar a referida linha. No entanto, é a Quimbanda que é sempre praticada quando as coisas não funcionam bem ou nos estados de aflição, se revela umas das práticas mais importantes nos terreiros umbandistas. Segundo Pordeus Jr. (2000:79), a Quimbanda como imagem refletida no espelho, é o inverso da Umbanda, ou ainda a sobrevivência da memória negra através da rearticulação de Exu. O assentamento de Ogum (Gun Xeroquê, em Jeje) fica localizado no lado direito da entrada principal dos terreiros de Pai R. de Oxum e de Mãe Constância. Ogum é o orixá das batalhas, patrono dos agricultores na luta pela sobrevivência. É o senhor dos metais e das ferramentas por ele criadas. É visto como divindade da tecnologia. No movimento de suas danças revela ação de luta, abrindo caminhos. Pai R. de Oxum relata sobre o assentamento de Gun Xeroquê e os procedimentos adotados durante os rituais para o referido orixá: 27 As sete linhas da Umbanda relacionadas aos Orixás são: Linha das demandas (Ogum) – são compostas por caboclos, exus, eguns (almas), boiadeiros, ciganos, baianos e militares; Linha da Justiça (Xangô) – têm composição mista (caboclos e pretos velhos), policiais, juristas e advogados; Linha dos Povos d‟água (Yemanjá) – serias, iaras, caboclas dos rios e das fontes e marinheiros; Linha dos Caboclos (Oxóssi) – caboclos, índios e boiadeiros; Linha das Crianças (Iori) – crianças (meninos e meninas) de todas as raças; Linha dos Pretos Velhos (Iorimá) – pretos e pretas velhas de todas as nações; e, finalmente, a Linha Religiosa (Oxalá) – santos católicos, povo do oriente, mista (pretos velhos e caboclos). 28 Percebi durante a pesquisa que o termo macumba é usado no cotidiano dos terreiros de uma maneira afirmativa/positiva, sendo inclusive referendado em alguns pontos cantados. No entanto, fora do espaço estudado, o termo é utilizado de forma genérica e negativa, para designar pejorativamente todas as formas de culto afro-brasileiro. Para maior discussão sobre o assunto, ver Birman, 1995, p7; e Negrão, 1996, p79. 59 Aqui é o assentamento de Gun Xeroquê em Jeje nós chamamos dessa forma, com esse nome e o qual nos representa o assentamento o escudo, a proteção, a defesa. No ritual pra ele devemos amolar as facas um dia antes, não se pode amolar as facas no dia do ato, do ritual na função de Gun, porque nós estaríamos o afrontando, então, o estamos chamando pra guerra, pra briga, então ele fica muito raivoso, quem acha que Orixá, que Vodun não tem sentimento? Ele tem. Então, nós devemos saber como fazer o ato, a função para que o próprio Vodun não venha se revoltar contra nós, como é chamado Kizilas, então o Vodun está Kizilado, então é porque tem alguma coisa errada, então tem que ser muito cauteloso com ele, principalmente, com Gun porque é o Orixá da Guerra. (PAI R. DE OXUM, 2013). Ogum representa a linha das demandas, compostas por caboclos, exus, eguns (almas), boiadeiros, ciganos, baianos e militares. Em Fortaleza, o assentamento do Caboclo 29 Índio nos terreiros de Umbanda é considerado obrigatório. Ele simboliza a pajelança, a influência indígena na Umbanda cearense. O próprio surgimento da religião é identificado pelos umbandistas a partir da aparição do primeiro caboclo “Sete Encruzinhadas”. O assentamento de caboclo é caracterizado por encantados indígenas, representantes dos pajés, guerreiros e caboclos da mata. Segundo Pordeus Jr (2002): Em um primeiro momento, a nomeação da categoria cabocla está impregnada no tempo, na história econômica, de uma atividade produtiva: a pecuária em toda a região do semi-árido nordestino. Em um segundo momento, o caboclo índio encontraria na Macumba/Umbanda a possibilidade situacional de jogar sua multiplicidade nas representações do grupo religioso, com a permanência da representação da identidade indígena perdida, sem sofrer a dominação cultural. (PORDEUS JR., 2002:19). Essa herança histórica se apresenta durante os “trabalhos” dos caboclos, em que são ensinados os “segredos” das folhas e dos banhos que serão utilizados durante os processos de cura. J. índio (2012) fala dos segredos e utilidades das plantas recorridas pelos caboclos, “folhas de café são utilizadas para abrir caminhos, folhas de “cuiamansa” para acalmar as crianças, banhos de arruda servem para afastar energias negativas. Os caboclos também realizam passes espirituais através das rezas”. Estas entidades também atuam como os exus, porém trabalham em lugares determinados como as matas, os rios, as estradas, etc. No candomblé representa Oxossi, orixás das matas. Segue um trecho de seus pontos cantados: 29 Pordeus Jr. (2002:29) analisa que a categoria cabocla, na década de 1980, ressurge no Nordeste como questão de etnicidade, onde grupos indígenas considerados extintos voltam a falar, a se organizar em busca dos seus direitos. A religião umbandista, segundo o autor, é o espaço situacional onde ocorre a (re)aproximação social, a reconquista do poder de (re)construir a identidade indígena a ser (re)conhecida pela representação do imaginário da categoria cabocla. 60 Ó Senhor das Matas, Na suas matas eu vou me abrigar. Folha verde caindo, pelo chão vou seguindo com o senhor vou caçar. Vou me embrenhar nesse verde, paz e esperança pra mim... O Caboclo Boiadeiro é a entidade de referência do vaqueiro do sertão nordestino. Representa o homem trabalhador do campo. É forte, galante e exerce um significativo “domínio” nos trabalhos que conduzem. No terreiro de Pai R. de Oxum quem comanda é o caboclo boiadeiro. Segundo o pai de santo, O boiadeiro é o dono do terreno, da casa, é o homem, é o meu pai, meu irmão, meu amigo, é o que toma de conta dos meus filhos, toma de conta do meu povo, é o que traz tudo de bom pra minha casa, nos auxilia, nos orienta a viver e a andar, a ver a vida melhor sem preconceito, sem olho gordo, sem ambição, sem inveja, é a entidade que a gente mais respeita aqui nessa casa. (PAI R. DE OXUM, 2013). No terreiro de Mãe Constância, quem comanda o espaço é o caboclo boiadeiro Sr. Joaquim Bartolomeu. Há também uma importante corrente ligada ao vaqueiro - Seu Légua, que tem como principal representante o Sr. Bougi Bouá Trindade. Trata-se de uma entidade antiga que trabalha com amor e fartura financeira. Geralmente é comemorado no mês de junho, durante os festejos juninos. Segue um trecho de seus pontos cantados: Seu Légua no caminho tem gente... Toca fogo no batente. Amarra o boi bougi. Amarra o boi bouá. Amarra o boi légua bougi. Amarra o boi bouá. Jr. Índio (2012) relata que “o caboclo boiadeiro prefere os lugares abertos, como os campos de grama baixa, pra fazer seus trabalhos de „amarração‟ e „arrasta‟, por isso que os elementos utilizados são chicotes, peias, durante a realização de suas mirongas”. Segundo o filho de santo, o boi é o elemento de domínio que representa a força para “arrastar” alguém. Fala do importante Pai de Santo Joãozinho da Gomeia que ficou famoso por incorporar o caboclo Pedra Preta, durante a década de setenta. Jr. Índio (2012) canta para o boiadeiro: “Vou amarrar o boi no pé de cajarana. O meu boi tá amarrado é no pé da cajarana...” 61 Três assentamentos de orixás Jeje Nagô Vodun compõem o cenário da busca pela prosperidade, cura e proteção no terreiro de Pai R. de Oxum. São elas: Bessen, a deusa Dan da Nação Jeje Nagô Vodun; Vodun Agué, também chamado de Osanyin, orixá da folha, da cura e da medicina; e Yasmins, divindades feiticeiras guardiãs contra o mal olhado, o feitiço e as energias negativas. Pai R. de Oxum relata sobre a importância dos referidos assentamentos e seus significados: Bessen, a deusa Dan, a deusa da nação Jege Nagô Vodun, o qual é cultuado todo ritual ahu bobo iá, a forma de como é chamado. Dentro da nação, rodarmos com a cabeça no chão porque é dela, da terra, que é recolhida a água para o reino de Xangô aonde nos cobre com Orun- a paz, a prosperidade, a harmonia, a tranqüilidade. É o Orixá da transportação, da transformação, da união, da junção entre a terra e o Orun. Esse é o Vodun Agué, que em outras nações é chamado de Osanyin ou Catendê. Agué é o Orixá da folha, que traz a medicina, cura, purifica a matéria, o qual o aboa é levado a ele, se sacrifica a folha cortando-se com obé, que é a faca para que possa nos abençoar em cima daquelas ervas, nos cobrindo de proteção e de muitas coisas mais que desejamos em cima do Vodun. Aqui é a consagração, é a localização das Yasmins. Não podemos nos esquecer dessas divindades dentro da Nação Jege Nagô Vodun. Essas são as três feiticeiras o qual não devem ser cultuadas três, nem cinco, mas sim nove, o povo só comenta três ou cinco quando na realidade são nove Yasmins, nove feiticeiras. Elas que são as nossas guardiãs, a nossa proteção contra mal olhado, feitiço, coisas negativas pesadas, como até o desencarno de uma pessoa dentro da casa, a gente tira o plano do desencarno pra dar mais tempo de vida ao ser humano. Então as Yasmins nos ajuda nisso, ela nos encaminha, limpa o caminho, ela varre a trilha, elas é quem tomam conta de tudo. Homem não cultuam elas, só mulheres, homem não pode chegar até elas. Ele só sacrifica e assenta, mas quem cultuam elas são as mulheres. Dizem que é porque uma delas foi estuprada, então, elas são vingativas e não gostam do sexo masculino. (PAI R. DE OXUM, 2013). É interessante observar como a interpretação simbólica das entidades e orixás e os efeitos da representação de suas “energias” atravessam o mundo ordinário e cotidiano dos terreiros visitados. Pai R. de Oxum, enquanto portador do vírus HIV, que já adoeceu por duas vezes de câncer, além de ter sofrido grave infarto, prioriza os elementos da saúde, da cura e da proteção em seu terreiro. O último assentamento externo de sua casa é destinado a Iansã (Oiá Balé, em Jeje), Obaluaiê (Xapanã, em Jeje) e Oxum (em homenagem a uma zeladora que desencarnou, obedecendo ao culto dos mortos). Este último orixá se apresenta de forma menos destacada, representada por um pote de barro, uma quartinha, pratos e vasilha de louça branca, no canto esquerdo do assentamento, e, segundo Pai R. de Oxum, trata-se de “uma zeladora de santo 62 que desencarnou, e Oxum não quis partir, quiseram continuar morando comigo aqui em casa e ela mora aqui do lado da Balé”. Sobre o assentamento de Obaluaiê, o pai de santo destaca sua relação com Xangô e as causas relacionadas à justiça: Obaluaiê fica na conjunção com Oiá, que eu não posso levar ele lá pra dentro, onde ficam os outros Oxuns, por causa de Xangô, ele não pode estar ligado a Xangô, há uma rivalidade entre os dois. Porque na realidade Obaluaiê está dizendo rei das terras dos mortos, Xangô, onde é que está Oba? Que é Rei? a palavra „Oba‟ quer dizer Rei, na realidade, no conto da lenda Xangô foi que roubou a coroa de Obaluaiê pra se tornar Rei da Terra de Oió. Quer resolver caso de justiça? Bota a cabeça no pé de Obaluaiê e pede por justiça, pronto, aí é rapidinho. Xangô é outra coisa, porque é o povo que confunde, acha que Xangô é o dono da justiça, não, Xangô é injusto, ele é injusto com o irmão por ter roubado sua coroa, entendeu? É tanto que ele não pode cuidar da Terra de Oió, ficou tão desesperado pelas coisas erradas que fez... como por exemplo, teve escravo que escravizou pai, que passou sete anos na masmorra, lá sofrendo e por sete anos a terra ficou infértil, seca, as mulheres não pariam, as mulheres não menstruavam, então por culpa de Lissá, mas também por culpa dele que não procurou ver qual era o homem que estava sendo preso, que, por fim, enforcou-se. Não soube tomar conta do Reino, como Gun, pelo desespero dele da fome e da sede, chegou em sua casa, de uma guerra, então todos os membros da aldeia estavam em silêncio em memória ao dia dele, que era aquele dia, e ele chegou desesperado pra comer e pra beber, então, ninguém atendia, ninguém respondia, então ele puxou o facão e saiu degolando todo mundo, o filho dele veio às pressas acudiu: --- Que é isso, meu Pai? --- O que que o senhor estar fazendo? --- Ora, ninguém me respeita, ninguém me responde nada! Então o filho respondeu: --- Meu Pai, hoje é um dia consagrado ao senhor! Ele pegou o facão, enfiou na terra e se enterrou, por vergonha do que ele tinha feito. Quer dizer, o ser humano tem suas falhas, como o próprio Vodun também teve as suas, né? Então hoje ele se corrige, ele procura se corrigir em cima dos adeptos dele dentro da religião. (PAI R. DE OXUM, 2013). Embora Pai R. de Oxum relacione Obaluaiê com Xangô e as questões relacionadas à justiça, comumente o referido orixá tem representação simbólica relacionada ao mundo da peste e da doença, contraditoriamente, também assume a faceta da cura, a depender das relações estabelecidas junto ao credor. É considerado o patrono da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde dada a importância de sua representação junto às causas de cura. É tido como o Deus da Cura, o único que conhece o mistério entre a vida e a morte. Obaluaiê dialoga com o Candomblé, o Catolicismo e a Umbanda. No Candomblé, Obaluayê 30 ou Omolu é um orixá muito temido e que requer bastante respeito. É considerado a própria doença, e em certos terreiros não se pronuncia seu nome em vão. Seu nome é invocado para a cura, pois ele tem esse dom. Seus filhos costumam ser bons curandeiros e rezadeiros. Abençoa os doentes. Seu arquétipo é caracterizado pelo velho, calmo, sensível, que suporta privações. É o curador, o dono da 30 Referência utilizada no Candomblé. 63 terra. Quando alguém fica doente há uma expessão: “ilê nba a” – a terra quente o pegou. A saudação para Obaluayê é Atóto! Silêncio! Costuma ser comemorado entre os meses de agosto e setembro. Abrantes (1999), em sua obra “Sobre os signos de Omolu”, descreve a vestimenta do “Senhor dos Mistérios” e seus significados a partir da interpretação de seu informante Joaquim Motta: Em primeiro lugar, Joaquim falou-me da importância da cabaça na indumentária de Obaluayê, em especial nos cultos afro-brasileiros... ela tem várias finalidades e funções, como representar o „Aye‟ e o „Orum‟, ou seja, a Terra e o Céu. Obaluayê é considerado o „Senhor das cabaças‟, já que estas contêm os grandes „Axés‟, os grandes mistérios, as grandes porções mágicas. Assim, por silogismos, chego ao título de „Senhor dos Mistérios‟... Em sua indumentária, a presença da cabaça pode ser „lida‟ como a existência de „porções‟ possíveis para aplacar as doenças, combater as epidemias.” (...) Outra presença marcante na indumentária de Obaluayê é o filá de palha da costa que está associada à imagem de proteção, ao princípio de que o orixá teria o corpo coberto de chagas. Ao se apresentar, no decurso das cerimônias, Omoluntraz sempre na cabeça o filá, que lhe cobre o rosto e protege seu corpo... (...) Outro elemento da indumentária de Omolu que mercê consideração é o xaxará, uma espécie de bastão que o orixá traz nas mãos feito de vários feixes de palha, enfeitado com búzios, contas e anéis de couro pintado de preto ou vermelho. Este instrumento pode ser interpretado como uma „vassoura‟ que varre o mundo dos vivos, que varre as epidemias. O seu interior é oco e o babalorixá 31 , ao construir o xaxará, introduz em seu interior o Axé. As varetas que compõem o xaxará seriam referência à humanidade, aos indivíduos que estão sob o domínio, comando e proteção de Obaluayê. A palavra xaxará é composta do elemento “xaxá”, que significa “pintas de varíola”, e da sílaba “ará”, que quer dizer “esfregar”, “tirar”. (ABRANTES, 1999:58-62). O universo simbólico de Obaluayê é bastante rico no Candomblé e sempre está associado ao contexto da doença e da proteção. J. Índio (2012) nos fala de um Itã, ou seja, de uma lenda de referência para compreensão do orixá Obaluayê: Obaluayê chega a uma festa e os demais orixás fazem chacota e entra em conflito por ele ser o mais reservado. Depois, ele dança e bebe cambaleando e toca seu xaxará, espalhando doenças contagiosas para os outros orixás. Até que Olorum (Deus supremo) repreende Obaluayê e como castigo ele fica coberto de chagas tendo as palhas para lhe proteger. (J. ÍNDIO, 2012). Durante a pesquisa, realizamos uma visita ao terreiro de Candomblé de Pai Virgílio de Omolu, no município de Caucaia. Na ocasião, o terreiro comemorava a ascensão de um dos filhos de santo em cargo direcionado dentro do terreiro. Portanto, como Obaluayê 31 O termo “babalorixá” se remete ao sacerdote masculino de um terreiro de Candomblé. 64 é o orixá que rege a casa, sua aparição é obrigatória, representando um momento significativo de culto e proteção para a comunidade presente. (Ver em Anexo VI). No Catolicismo, por meio do sincretismo religioso 32 , Obaluaiê está relacionado a São Lázaro, santo protetor dos males da lepra e dos mendigos. Na Umbanda, está vinculado a uma corrente carregada, da caveira, dos trabalhos pesados, é o Rei Omolu, que é sempre comemorado durante o mês de agosto. Depois dele, há um chefe a quem ele dá a sua chave, é o Exu João Caveira que mora no cemitério e de quem depende a Linha das Almas. Obaluaiê se apresenta coberto por palhas e tem a pipoca como símbolo em suas oferendas, estando sempre representado nos terreiros. Brilha como o sol, irradiando sempre energias de força e superação. Jogar pipoca e referendar Obaluaiê é sinônimo de bons presságios na Umbanda. Pai Cleilton relata sua afinidade com Obaluaiê e as características de seus filhos de santo: Eu tenho uma afinidade com a linha de preto velho... a entidade que eu tenho a maior admiração, respeito e obediência é Obaluaiê... Geralmente os filhos de Obaluaiê são fechados. As pessoas até confundem por ser fechada, trancada, por ser antipática, abusada... O filho de Obaluiaê tem uma facilidade muito grande pra se aborrecer com as pessoas, é como se fosse um velho, ele tem a paciência quase inexistente, mas sente uma necessidade muito grande de estar próximo das pessoas pra ajudar, principalmente, próximo das pessoas que estão enfermas... procuram de alguma forma estar aliviando a dor ou até mesmo tentando meios para curar. (PAI CLEILTON, 2010). Na Umbanda cearense os assentamentos de Obaluaiê estão sempre presentes. No entanto, sua aparição enquanto entidade é bastante restrita. No depoimento de J. Índio (2012) ele declara que já participou de rituais na Umbanda em homenagem a Obaluaiê nos quais só os filhos de santo são convidados, em sala fechada, em que há toda uma representação de um indivíduo morto, em que todos viram o corpo de um lado para o outro, e em seguida, o mesmo se levanta representado à ressurreição. O assentamento de Obaluaiê na Umbanda, geralmente, fica localizado no Cruzeiro 32 O fenômeno denominado sincretismo religioso é refletido por Bastide (1971) como um elemento que aparece como característica daqueles países que conheceram a escravidão, e que experimentaram a mistura de raças e de povos na convivência com a diversidade étnica em um mesmo lugar, criando uma “solidariedade de cor”. O autor assevera que cada elemento da religião tem lugar determinado e que o conjunto desses elementos abre possibilidades para novas intervenções com outros. Chama a atenção para a fusão entre as diversas etnias africanas que chegaram ao Brasil (nagô, jeje e bantu), dando origem a diferentes combinações afro-católicas, fomentando por sua vez outro sincretismo, ou seja, o das próprias religiões africanas que aqui se encontraram. Seria o sincretismo regional na África em razão de guerras e migrações, acrescido do sincretismo nacional que se estabeleceu entre as diversas etnias negras já no Brasil, e o sincretismo entre as religiões africanas, indígenas, católicas e espíritas. 65 das Almas. Trata-se de um elemento simbólico presente no terreiro relacionado à morte, à vida, à doença, à saúde e à cura. Ele se apresenta juntamente com seu filho Seu Zé Pilintra e todos os Pretos Velhos. Seu Zé Pilintra, o exu da madrugada, trabalha com várias demandas. Filho do orixá Obaluaiê, é o executivo do terreiro. “O malandro nasce em Pernambuco, sai batendo pelo sertão das Alagoas e vai para o Rio de Janeiro viver como caboclo namorador, na malandragem” (Mãe Constância, 2010). Ao mesmo tempo, Seu Zé Pilintra é a entidade que mais trabalha nos terreiros de Umbanda do Brasil. Durante as giras, os adeptos costumam cantar vários pontos para Seu Zé, são eles: Casinha branca que Zé mandou fazer com a cruz em cima Ai eu quero ver... Meus inimigos vão morar na casa com a cruz em cima Que Zé mandou fazer. Zé eu vim aqui pra te pedir pro senhor me ajudar Ô Zé que eu devo fazer, ô José! Deixa a macumba rolar... Casinha branca, casinha branca Que Zé mandou fazer para ofertar seu pai Omolu, Seu Atotô, Obaluaiê.. Oi Atotô Obaluaiê, Atotô Babá. Atotô Obalauaiê, Atotô é o orixá. Mãe Constância ainda relata sobre a importância de Seu Zé Pilintra na permanência e manutenção de seu terreiro. Durante a pesquisa, presenciamos vários momentos em que a entidade se fazia presente nos momentos de aflições e aconselhamento aos filhos de “sangue” e de “santo” de Mãe Constância. Reservadamente, ela conduzia seu “cliente” ao assentamento de Seu Zé e, pacientemente, escutava e aconselhava a quem o recorria. Todavia, a mãe de santo relata as perseguições e discriminação sofrida pelo referido Exu em tempos remotos: É seu Zé, (...) ele diz que é quem manda no terreiro (risos). E eu digo que ele é meu tudo, é quem me sustenta, quem me dá de comer, é quem traz o cliente, é quem traz o dinheiro. É ele que faz os trabalhos, (...) que faz tudo é ele. (...) Desde que comecei a trabalhar com ele, desde o princípio da minha mediunidade, e no princípio, na época de Mãe Júlia não aceitava esse tipo de entidade trabalhando, só se fosse uma coisa necessária, uma vez. E ela fazia muita discriminação, por exemplo, na casa dela Exu só baixava uma vez por ano. Ela fazia uma festa para Exu. (MÃE CONSTÂNCIA, 2010). 66 Na Umbanda, os Pretos Velhos exercem o domínio sobre as almas, as rezas e as curas. Eram negros escravizados vindos de diversas partes do continente africano que trouxeram consigo seus segredos de cura utilizados em suas tribos de origem. Representam o conforto, a experiência dos avos, a humildade, a sabedoria, a simplicidade e a indulgência da velhice. Quando incorporam, o corpo do médium se curva sob o peso da idade, dança ou anda mancando e fala suavemente. Pede o cachimbo, do qual tira grandes baforadas. São convocados bastante durante os rituais de cura por afastar mandingas, quebrantes e mal “olhado”. Os pretos velhos costumam rezar em crianças e gestantes, utilizando, inclusive, o repertório de orações do catolicismo. J. Índio nos conta como os pretos velhos atuam: Os pretos velhos costumam dar passes. Rezam com as folhas do pião, da arruda e até mesmo da mangueira. Pegam as folhas sempre verdinhas, bem verdinhas. Aí se o quebrante for forte, depois que o preto velho reza na pessoa, a folha fica toda murcha. Aponta logo o estado energético da pessoa. (J. ÍNDIO, 2012). O filho de santo ainda ressalta a característica de Pai João, um preto velho conhecido por aceitar sua condição de escravo, que se torna passivo diante das dificuldades da vida, encontrando sempre a melhor maneira de resolver seus problemas, por meios pacíficos. Ismael Jr. (2002) ressalta a importância do negro no cenário cearense: Desde o final do século XIX, construiu-se, no Ceará, todo um ideário do movimento abolicionista do qual decorreu a emancipação que se antecipou à Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, sancionada pela Princesa Isabel. Esse movimento ficou de tal forma cristalizado no imaginário, que levou o Estado a se autodenominar de “Terra da Luz”. Outro mito que se cristalizou, provavelmente para reforçar o primeiro, foi a “não existência do negro” na formação cearense, o que nos levaria a uma distinção em relação aos estados vizinhos. Nessa mesma corrente de esquecimento oficial, são embarcadas as etnias indígenas. As reivindicações étnicas dos mais de dez grupos indígenas que aí estão mostram exatamente o contrário. As pesquisas antropológicas e historiográficas contemporâneas vêm desmentir também a tentativa de apagar a nossa memória africana. (PORDEUS JR, 2002:49). Atualmente, o governo brasileiro reconhece a luta do povo cearense pela libertação dos escravos, que teve como marco a alforria de todos os negros cativos cinco anos antes da decretação da Lei Áurea, pela princesa Isabel. O fato ocorreu no município de Redenção, a 50 km de Fortaleza, onde está localizada, hoje, a sede da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira, a qual tem se dedicado na valorização da cultura afro-brasileira, por meio de cursos e intercâmbios que favorecem a população afro- descendente cearense, bem como aos estudantes e professores vindos de países de origem africana. 67 Finalmente, Pai R. de Oxum apresenta seus assentamentos internos. Na entrada da casa está Baraonã, segundo o pai de santo, “é o senhor dos caminhos, é o homem que cuida da casa, cuida dos filhos, dos consulentes, de todos aqueles que precisam dele.” No lado esquerdo, estão os assentamentos de Dona Madalena e do Mestre Nego Gerso, Pai R. de Oxum diz: “eles são os mestres da casa, são os que cuidam de mim, dos filhos, auxiliam o povo da casa, os consulentes, as pessoas que estão fracas e oprimidas à procura da solução para os seus problemas. Eles são os encarregados de orientar, de elaborar a situação de cada um para que possa dar um progresso ao amanhecer.” Ao centro do terreiro está o Ajé, localizado em cima do Mino, que é o assentamento central da casa. Pai R. de Oxum fala que o “Ajé é o orixá da prosperidade que fica aqui no centro, compartilhando a prosperidade, pra não faltar o ageum, pra ter mais sossego, mais tranquilidade e ser próspero na vida de todo mundo. É um orixá rico, não quer dizer que vai trazer riquezas, a sorte cabe a cada um buscá-la. Mas, o Orixá esta aqui para dar prosperidade, a sabedoria e a inteligência.” Ao lado do altar (peji) principal do terreiro ficam os assentamentos dos voduns. Em local mais reservado, eles representam os assentamentos do pai de santo e seus filhos (ogans e ekedes), havendo uma ligação e energia entre as pessoas da casa, formando uma família, uma equipe. São assentamentos dos erês (vungê, em Jeje), de Oxum (azeritolá), Oxossi (Odé), Ogum (Gum), Iansã (Oiá), Xangô (Badé), Osanyin (Agué) e Ajagunã (Oxoguiã), que caminha com Ogum e Oxossi. Tantas representações simbólicas das imagens, objetos e “energias” relacionados aos assentamentos da Umbanda e do Candomblé revelam a riqueza da religião afro-brasileira no cenário cearense. Aqui, tentamos destacar os assentamentos dos terreiros visitados, especialmente, o de Pai R. de Oxum e de Mãe Constância, enfocando a relação entre a interpretação simbólica das imagens e os efeitos da representação de suas “energias” diante da superação de problemas e, por conseguinte, do alcance da cura. A seguir, explanaremos dois rituais de cura nos terreiros mencionados. 68 1.2. RITUAIS DE CURA O presente tópico visa acompanhar dois rituais de cura nos terreiros de Mãe Constância e Pai R. de Oxum. A descrição minuciosa dos referidos rituais justifica-se pelo significativo momento simbólico que representam os rituais de cura, sobretudo, para o portador de HIV em relação com a prática religiosa, bem como em relação à convivência com a comunidade umbandista a que pertence. O primeiro ritual será conduzido por Mãe Constância e é destinado ao fortalecimento da cabeça (ori) e energização vital de seu filho de santo J. Índio, como é conhecido na Umbanda ou J. de Oxossi, como é batizado no Candomblé. O segundo ritual será conduzido por Pai R. de Oxum e destina-se a Osanyin, orixá conhecido como catingué na Angola e Agué no Jejê. Este representa a cura e a medicina, transformando a vida e a trajetória espiritual dos indivíduos. J. Índio e Pai R. de Oxum são portadores do vírus HIV e os rituais são de significativa importância para sua inserção e fortalecimento dentro da religião, bem como para o reconhecimento por parte dos demais participantes. Neles, estão envolvidos o indivíduo portador de HIV e a comunidade do terreiro a que pertencem. De acordo com Turner (1968), “o ritual é uma reafirmação periódica das condições sob as quais os homens de uma cultura particular devem interagir para haver algum tipo de vida social coerente”. O autor ver duas funções para o ritual: uma função expressiva e uma função criativa. Em seu aspecto expressivo, o ritual “retrata de uma forma simbólica certos valores e orientações culturais chave”. Isto é, ele expressa esses valores básicos de forma dramática, comunicando-os tanto aos participantes quanto aos espectadores. Em seu aspecto criativo, o ritual, “na verdade cria, ou recria, as categorias por meio das quais os homens percebem a realidade – os axiomas subjacentes à estrutura da sociedade e as leis da ordem natural e moral”. Assim, o ritual reafirma, sistematicamente, certos valores e princípios de uma sociedade e o modo como seus membros devem agir diante uns dos outros, dos deuses e do mundo natural. Além disso, ele ajuda a recriar nas mentes dos participantes sua visão coletiva do mundo. (TURNER apud HELMAN, 2009:203-204). A coleta dos dados referentes aos rituais foi realizada através da observação participante e da consulta interpretativa aos informantes especialistas (pai, mãe e filho de santo) no momento posterior ao evento. Toda a condução dos rituais é realizada pelo pai ou 69 mãe de santo, em que as práticas rituais seguem o conhecimento de uma longa tradição, mas nem por isso é privado de transformações. Embora os rituais pertençam ao quadro dos terreiros de Umbanda, ambos têm forte influencia do Candomblé, onde é possível perceber o culto e respeito às duas tradições. Se por um lado os caboclos estão presentes no cotidiano do terreiro, sobretudo durante as consultas espirituais e proteção às aflições ordinárias (e nem por isso menos importante), por outro, os orixás se apresentam intrinsecamente na reprodução religiosa a partir de seus eventos ritualísticos. No entanto, Mãe Constância identifica as transformações dos rituais a partir das influências do Candomblé sobre a Umbanda: Tá muito modificada da época que eu entrei na Umbanda pra hoje, sofreu muita mudança muita, muita mesmo. Por exemplo, naquela época não existia essa história de orixá como hoje, assim, na minha casa é do Ogum e a casa de fulano é de outro santo. Hoje a Umbanda tá cultuando muito como o Candomblé. Ele tá se infiltrando, e a Umbanda se infiltrando no Candonblé. Tá havendo muita transformação nessa história. Então, tinha coisa que era só do caboclo, ele realmente via a pessoa, ia pra desenvolver e recebia aqueles banhos, aqueles passes, ia fazendo aquela limpeza espiritual e começava, então, a receber os seus caboclos, né. A proporção que ele ia recebendo o caboclo dele, ele ia fazendo aquelas obrigações que não é a mesma coisa que sinto hoje. Por que hoje tem muito aquele negócio de matança, naquela época era só folha, era só banho de ervas, banhos no mar, na cachoeira, as purificações eram feitas com perfumes, com rosas, não eram feito com sangue. Na Umbanda não existia sangue. Hoje já tá tudo igual ao Candomblé, havendo matança pra tudo. Qualquer trabalho que vai fazer faz matança. Os caboclos que baixavam naquela época não baixam mais. Mas, também a gente observa que ainda tem muita gente que trabalha com aqueles cabocos daquela época, mas tem outros que já tão trabalhando com outros cabocos diferentes, né. Agora fica meio difícil da gente relacionar. Fica um pouco difícil. (MÃE CONSTÂNCIA, 2010). A considerável literatura antropológica que trata sobre os rituais do Candomblé, dentre eles (Bastide, 1989, 2005, Carneiro, 1977, Vogel; Mello; Barros, 1993), registram a diversidade de interpretações dos cultos afro-brasileiros. Os relatos apontam além de semelhanças, as próprias diferenças no conteúdo dos rituais observados, podendo em algumas situações as etapas serem substituídas e noutras, acrescentadas. Bastide (2005) alerta que não se deve esperar por uma interpretação única, mas considerar as várias possibilidades re-interpretativas que os indivíduos – pais e mães de santo – vão lançar mão em suas tentativas de se aproximarem o máximo possível de um modelo 70 africano ou, pelo menos, do que se acredita ter restado dele. Corroborando com esta perspectiva, Vogel, Mello e Barros (1993) afirmam que (...) a qualquer momento poderá surgir alguém que viu um rito cuja sequência é diferente daquela que acaba de lhe ser apresentada. Suas objeções podem ser o resultado de uma observação atenta e criteriosa, não devendo, portanto, ser desqualificada, pois as discrepâncias não são fruto necessariamente da maior ou menor veracidade das descrições. Podem apresentar ao contrário, distintas concepções ou modos de articulação de uma determinada sequência ritual. (VOGEL, MELLO E BARROS, 1993) Na interpretação dos rituais que foram observados buscamos proceder, inspirando-se na descrição densa de Geertz (1989), a uma descrição minuciosa, objetivando retratar de forma mais fiel possível todos os momentos dos rituais e das técnicas de cura empregadas. Vale ressaltar que não se trata de verificar se tais práticas são bruxarias, feitiçarias ou superstições, conforme atesta Laplantine (1991), mas perceber como os doentes vivem sua doença, como os diferentes agentes de saúde agem, para apreender a idéia que os que curam e os que são curados fazem da doença e da cura sonhadas, imaginadas, espiritualizadas, representadas, ou seja, vivenciadas. No contexto pesquisado, é importante perceber que a cura não é o resultado direto das medidas terapêuticas, realizadas no interior do ritual, até porque a Aids é uma doença que ainda não tem cura. Mas, a busca pelo melhoramento e fortalecimento da energia vital do enfermo, denominada axé, no Candomblé, ou força, na Umbanda 33 . Trata-se de uma representação que através de uma intervenção mágica no mundo adquire poder de atuação, de uma ação capaz de reverter uma situação-problema. O ritual de cura é o fenômeno por excelência de ligação entre o enfermo e o sobrenatural (entidades superiores), intermediada 33 O axé nos cultos nagôs estudados por JUANA ELBEIN (1976) é o princípio que torna possível o processo vital. O axé de um terreiro se expande e fortifica pela combinação das qualidades e significações dos elementos que o compõem: a) o axé de cada orixá fixado nos peji, realimentado pelas oferendas e pela ação ritual, transmitido pela iniciação e ativado pela conduta individual e ritual; b) o axé de cada membro do terreiro que se soma ao axé de seu orixá, recebido no decorrer da iniciação, e ao axé herdado de seus próprios antepassados; c) o axé dos antepassados do terreiro, cujo poder é acumulado e mantido nos “assentos”. O desenvolvimento do axé individual e o de cada grupo impulsiona o axé do terreiro; por outro lado, quanto mais antigo e ativo é o terreiro, mais poderoso seu axé. A força aproxima-se da noção de axé. No entanto, segundo MONTERO (1985), a idéia de força, no pensamento umbandista, adquire uma conotação prática que inexiste na categoria africana de axé. “(...) A esse sentido tradicionalmente africano de força, que se confunde com a qualidade do ser existente, sobrepõe-se, no caso da Umbanda, um sentido novo, que tem a ver com as possibilidades do fazer, isto é ter força (energia, vontade) para conseguir.” 71 pela atuação da mãe ou pai de santo e pelos demais integrantes do terreiro, que proporcionará ao moribundo energia/força necessária para o enfrentamento de seus problemas mundanos, desdobrados em seu cotidiano. Por conseguinte, a cura deve ser entendida como uma realidade processual, continuamente negociada e confirmada no cotidiano do doente e dos membros de suas redes de cuidado e apoio. Os rituais de cura descritos a seguir são tomados como ponto de partida para a análise das relações sociais no convívio com o HIV/Aids nos terreiros. 1.2.1. Ritual de Cura no Terreiro de Mãe Constância O terreiro de Mãe Constância é denominado Rancho de Trindade e fica localizado no distrito de Guajirú, município de Caucaia, Região Metropolitana de Fortaleza. O terreiro funciona neste local há aproximadamente dez anos, quando a mãe de santo decidiu sair do bairro Montese, em Fortaleza, em busca de um local mais afastado da cidade, com maior tranquilidade e privacidade para realização de seus trabalhos. Figura 1- Casa de Umbanda Rancho de Trindade – Guajirú/Caucaia-CE 72 No terreiro de Mãe Constância a obrigação (bori 34 ) foi preparada para J. Índio, sendo considerada de pequeno porte e foi destinada para o fortalecimento de sua cabeça (ori 35 ), de sua energia e equilíbrio vital. J. Índio andava deprimido, disse-nos que há três meses não buscava o tratamento médico de acompanhamento das suas taxas de imunidade e de medicalização dos antiretrovirais 36 . Seus colegas de terreiro diziam-me que seu problema era desilusão amorosa, que ele não sabia escolher seus parceiros, provocando sempre situações de sofrimento. Para iniciar o ritual, a consulta de búzios individual é um elemento importante que norteará o tipo de ebó (limpeza) que será necessário em cada caso. A partir dela, a mãe de santo acolhe o sofredor, com seus problemas e expectativas, e conduz ao tratamento de energização através da preparação da obrigação (bori). Para tanto, deverão ser utilizados elementos simbólicos constituídos por plantas, grãos, frutos e animais, que deverão ser disponibilizados em consonância com as características dos orixás correspondentes. Também são recomendadas até a data da obrigação dietas alimentares e restrições comportamentais, como abstinência sexual, que deverão ser obedecidas pelo filho de santo. Mãe Constância explica que as obrigações deverão ser realizadas após um ano da “feitura do santo” (ritual de iniciação no Candomblé), em seguida, a cada três anos, correspondendo à evolução hierárquica a ser alcançada. No entanto, o ritual de fortalecimento da cabeça (ori) e de energização vital é realizado sempre que o indivíduo ou a mãe de santo achar necessário. Os elementos necessários para o ritual são vários e requer uma dedicada preparação por parte dos integrantes do terreiro, que incluem desde a limpeza e organização do espaço destinado ao evento (roncó), a escolha e compra dos artefatos em mercado específico, a feitura minuciosa dos alimentos, além da própria criação dos animais que serão utilizados na obrigação. Uma atenção especial é dada aos elementos perfuro cortantes (facas, 34 A palavra significa, segundo o povo-de-santo, “dar de comer à cabeça”. A sequência ritual foi primeiramente mencionada por Querino (1955, p.60) ao considerar que “tem por objetivo esta prática satisfazer a um preceito a fim de obter saúde”; e por Verger (1955, p.98), ao fazer etnografia detalhada da cerimônia em um terreiro baiano. 35 De acordo com Abimbola (1989, p.11), o conceito “ori inu”, fundamental na perspectiva religiosa iorubana, traduz a idéia de “uma cabeça interior”, ou melhor, de um destino pessoal e intransferível. Da mesma forma que o “emi” – a respiração – evocadora do hálito divino que confere vida, é esta cabeça que se torna responsável pela capacidade de desenvolvimento do ser humano. É, portanto, esta “cabeça escondida” ou “desconhecida” – a unicidade do indivíduo – que vai ser objeto principal das modalidades de cerimônia para o “ori”. 36 Os antiretrovirais são os medicamentos consumidos pelos portadores de HIV que visam manter as taxas de imunidade de forma satisfatórias evitando, assim, a contração da Aids. 73 bisturis) que serão utilizados durante o evento, tendo em vista que qualquer manuseio inconsequente poderá por em risco a contaminação pelo vírus HIV. Os objetos são manuseados apenas pela mãe de santo e serão utilizados para o sacrifício dos animais. A mãe de santo inicia o ritual com orações e cânticos aos orixás pedindo permissão, acompanhamento e proteção às entidades durante a cerimônia. Neste momento, o roncó já está organizado e a disposição da mãe de santo com todos os elementos que serão utilizados na obrigação. Os filhos de santo cantam sempre acompanhados por uma espécie de chocalho (adjá), fazendo reverência às determinações da mãe de santo. A cor branca predomina na vestimenta dos participantes, estando J. Índio envolvido por lençóis da mesma cor dos pés à cabeça. Sobre sua cabeça é colocado um bolinho de milho branco denominado acaçá apoiado em uma folha de bananeira. Em seguida, a mãe de santo joga uma noz denominada obi para saber se os elementos, incluindo os animais, serão aceitos pelos orixás. Somente após tal consulta é que o ritual poderá dar continuidade. O milho amarelo e branco é cozido e enrolado na folha da bananeira constituindo o acaçá; o feijão preto e fradinho são utilizados para a feitura do bolinho de acarajé, cozido em banho Maria, e também é enrolado na folha da bananeira (curú); também são ofertados arroz (bolinhos), pipoca, verduras, frutas e legumes, bolinhos de farinha, ovos, velas, moedas, louças brancas, lençóis branco, preto e vermelho (variando de acordo com o tipo de ebó a ser feito). No ebó é utilizado o banho de dengué (caldo do cozimento do milho branco), ajebó Figura 2- Elementos utilizados no ritual de cura 74 (quiabo cortado bem pequeno junto com água), ervas das quais são extraídas o sumo, além do sacrifício de bichos como peixe, galinha, galo, porco ou pombo quando necessário. O alimento é preparado de forma diferenciada a partir de cada momento do ritual. Para o ebó não são utilizados sal e temperos no preparo dos alimentos, diferentemente daquelas ofertadas aos orixás, que são preparados com sal, camarão, cebola, azeite de dendê e azeite de oliva, além de mel e coco a depender da exigência e característica específica de cada orixá. A importância do milho branco e seus produtos derivados, como o acaçá (uma espécie de manjar), é referendada pela oferenda a Oxalá, senhor da criação, e Iemanjá, rainha das águas. O manjar apoiado em uma folha de bananeira é disposto na cabeça de J. Índio (acaçá), onde permanece ao longo de todo o ritual e será banhado por vários outros elementos. As plantas e os grãos fortalecem a troca de energia através do alimento, assim como o sangue adquirido através do sacrifício de animais. O milho amarelo cozido (uma espécie de mugunzá) é ofertado a Oxossi, senhor da caça e das florestas, e a pipoca a Obaluaiê, senhor da terra e dos curandeiros. Os feijões preto e fradinho representam a força de Ogum, orixá das batalhas e Oxum, orixá da fertilidade, respectivamente. O acarajé para Yansã, dona das almas dos mortos e que representa os ventos e as tempestades. Dentro do princípio de ação e reação, em que cada dom tem um contra-dom, a presença do sacrifício (incluindo o de animais) é o elemento de troca que possibilita as modificações necessárias na resolução dos problemas. O peixe é um elemento considerado de muita energia que facilita o equilíbrio mental e dos pensamentos por sua ligação com Iemanjá. O pombo é ofertado a oxalá, orixá das águas, que traduz energia positiva e restaura a saúde e a vida de um modo geral. A galinha também é ofertada para Iemanjá que facilita a limpeza e afasta as energias negativas. O primeiro animal ofertado é o peixe, denominado de ejá. O bicho é conduzido já morto para os braços da mãe de santo, onde corta com uma faca, a parte dos olhos, e com uma tesoura as partes do rabo e das guelras. Calmamente, a mãe de santo conduz o processo com a ajuda de um filho de santo, que segura o manjar sobre uma folha de bananeira (acaçá) onde será feita a representação do peixe com as partes que lhes foram extraídas. Os filhos de santo cantam repetidamente ao som do adjá “Ejá mobá, Ejá amor boeri, Ejá mobá”. Após o 75 corte do ejá, o restante do peixe é separado em uma bacia branca e coberto por um pedaço de pano branco, ficando ambos dispostos no cancó. A representação do peixe (acaçá) tem uma importância significativa ao longo do ritual, sendo tomado como base para a obrigação de J. Índio. Este deverá ser ofertado no final ao Ile (Terra), tida como razão principal da existência humana. Em seguida, o pombo e a galinha são conduzidos ainda vivos para o local do ritual. São lavados os pés do pombo e suas asas movidas para frente, sendo segurados firmemente por um filho de santo. A mãe de santo limpa a faca em um pedaço de pano branco, chama por Ogum e ergue o instrumento perfuro cortante para o alto. Sacrifica a galinha cortando-lhe o pescoço e joga o sangue sobre outro acaçá e dentro de uma quartinha branca dispostos no altar. Logo após, derrama o líquido sobre a cabeça, ombros, mãos e pés de J. Índio. Neste momento, os filhos de santo cantam “Éjé xororô, Éjé um paô, Ejé xororô”. Após a sangria, a cabeça da galinha é arranjada entre as asas, de modo fechado, sendo o bicho posto no colo de J. Índio. A mãe de santo exalta o momento dizendo “Êpa, Êpa, Babá”, põe a mão na testa e no chão. Todos cumprimentam curvando-se ao chão e voltando-se para o altar. O pombo é passado ainda vivo na frente e por trás da cabeça de J. Índio. Algumas penas são retiradas e dispostas em uma tigela. Depois, o bicho é sacrificado, tendo sua cabeça arrancada e guardada em uma quartinha de cor branca. Neste momento, os filhos de santo cantam “Ô ô juman man, olorum ô juman man”. O sangue do pombo é jogado sobre o acaçá anteriormente utilizado com o sangue da galinha. O líquido ainda quente também é jogado sobre a cabeça de J. Índio e, em seguida, também é conduzido até a sua boca para que seja provado pelo filho de santo. Em seguida, o pombo é conduzido em suas costas sendo formado um sinal de cruz. Percebe-se que o pombo tem significativa importância no ritual, sendo um elemento central na purificação do enfermo. Os filhos de santo encerram esta etapa com o cântico “É dé ielé que me fá jeum”. Estando dispostos a galinha e o pombo entre as pernas de J. Índio, a mãe de santo acrescenta uma folha de bananeira sobre sua cabeça e joga outros elementos como mel (batalá), azeite (epô), sal (yó) e vinho branco (oti). Simultaneamente, os elementos utilizados também são jogados no altar sobre as demais oferendas. Os filhos de santo cantam “Bata lá bata ô, oriô axé borô” e, em seguida, “É de á de alojá, epô. É de á de alojá, batalá”. “É de á de 76 alojá, ô ti”. O que fica evidente é que para cada elemento trabalhado no ritual há um cântico com uma terminação específica. Por fim, um manjar dividido em pequenos pedaços, em formato de bolinhas, é jogado na cabeça de J. Índio e, finalmente, um manjar em formato de bolo é beliscado e arranjado no altar. O pedaço do manjar destacado do bolo é organizado na cabeça do filho de santo. Após a junção de todos os elementos a mãe de santo solicita um lenço branco longo (ojá) que será envolvido na cabeça formando uma espécie de turbante. As filhas de santo se aproximam e auxiliam na organização do turbante, no qual é dado um nó na parte de baixo e o restante do pano é amarrado na parte de cima. Finalmente, os bichos são retirados do colo de J. Índio e ali mesmo depenados, sendo utilizada parte das penas para disposição no altar, especialmente dentro das quartinhas, sobre o corpo do filho de santo e distribuídas entre os participantes do evento, doadas como uma espécie de amuleto. A pena doada aos participantes é encaixada por trás da orelha de cada um. A mãe de santo exalta as palavras de bom pressagio “Ibá bobó aieé, bobó aioô”. Ibá bobó prosperidade! Ibá bobó muito axé! Ibá bobó muita saúde! Ibá bobó caminhos abertos! Finalizando com Ê mô já meche quê iô... Êpa Êpa bá bá! E todos saúdam e batem palmas em agradecimento. A sacerdotisa ainda espalha a galinha no chão como se quisesse comprovar a morte do bicho, depois pega água pela boca e lava a faca jogando-a para cima, exaltando e chamando por Ogum. Em seguida, junta o pombo e a galinha em uma bacia branca para que sejam cozidos e transformados em alimentos para o filho de santo. Os lençóis sujos de sangue são trocados e J. Índio é preparado para seu repouso das próximas vinte e quatro horas. Os filhos de santo ajudam-no a se levantar, que reage meio cambaleando com se estivesse entorpecido. É conduzido a se deitar novamente, agora sobre lençóis brancos e limpos. A mãe de santo senta ao lado de J. Índio anunciando a reza final com o chocalho (adjá) na mão. Os filhos de santo acompanham sentando-se no chão, batendo palmas e cantando “Ori ê jô. Ori e ô jererê, ôri. Ori o cá, ori é Jô... A pô mô qué, ori, ori, jererê, ori”. Em seguida, todos cumprimentam a obrigação, pedem benção a mãe de santo e se despedem de J. Índio um a um, deitando no chão e jogando o corpo de um lado para o outro. 77 Figura 3- Preparação para o descanso de 24 horas Durante o período de repouso e fortalecimento de energia J. Índio receberá uma dieta especial composta pelos alimentos que fazem parte da própria oferenda. Os animais serão preparados pelas filhas de santo que se reúnem na cozinha, consolidando também um importante momento de socialização e fortalecimento dos conhecimentos da religião. O preparo do cozimento classifica temperos e partes específicas dos animais. O peixe é limpo e cozido por inteiro com pouco sal, alho, cebola e azeite de oliva, sendo servido durante o almoço com pirão feito com o caldo do próprio animal. Da galinha e do pombo retiram-se as vísceras, salvo o coração, fígado e moela, partes consideradas importantes para o fortalecimento do axé. Os bichos são amarrados com cordões e cozidos inteiros com pouco sal, azeite e cebola, sendo em seguida fritos e servidos no jantar com farofa. É importante ressaltar que a depender da casa religiosa o alimento também é compartilhado entre os participantes do ritual, sendo considerado um momento de integração e respeito ao que foi realizado. No dia seguinte, a cabeça de J. Índio é lavada cuidadosamente. Depois, ele toma um banho de ervas como finalização do ritual. Tudo que fora ofertado é recolhido, incluindo as penas dos bichos sacrificados, que são consideradas carregos e deverão ser despachadas em um local apropriado, seja no mato, seja na praia. A mãe de santo ainda guarda a louça utilizada no ritual, que deverá representar mais uma cabeça na casa de santo, sendo cuidada e reservada caso seja necessário uma nova obrigação. Assim, o ritual representa não somente o 78 fortalecimento individual do filho de santo, mas da própria relação entre este e comunidade religiosa a que ele pertence. J. Índio nos revela em momento posterior ao ritual que o evento teve grande importância para seu melhoramento espiritual e corporal. Disse que se sentia fortalecido para seguir seus tratamentos e se manter firme na religião. Percebemos durante todo o processo ritualístico o acolhimento ofertado pela comunidade do terreiro em torno do filho de santo em questão. 1.2.2. Ritual de Cura no Terreiro de Pai R. de Oxum O terreiro de Pai R. de Oxum fica localizado no Sítio Minas de Ouro, em Mucunã, na estrada do município de Maranguape, região metropolitana de Fortaleza. Nas proximidades de seu terreno também estão concentrados mais dois espaços religiosos, o terreiro de Pai Júnior e o de Pai Sílvio, que sempre promovem eventos agregando um considerável número de adeptos naquelas proximidades. Inicialmente, meu contato foi com Pai Júnior, conhecido historicamente pela luta contra a homofobia e a Aids. Então, por meio de seu intermédio fui apresentada a Pai R. de Oxum, portador do vírus HIV há vinte e quatro anos, com forte atuação na Umbanda e no Candomblé cearenses. Figura 4- Fotografia do Sítio Minas de Ouro – Mucunã, Maranguape/CE 79 O local é bem arborizado e a estrada dá acesso a uma pequena serra com cachoeiras que facilitam os despachos dos rituais. Ao chegar, Pai R. de Oxum nos recebe e nos apresenta a disposição dos assentamentos. Fala de suas dificuldades e conquistas com relação ao espaço religioso organizado. Em sua casa moram alguns filhos de santo, que como uma família, o ajuda nos afazeres domésticos e na manutenção do sítio. Nesta ocasião, o pai de santo nos explica que o ritual de cura a ser realizado será ofertado para o fortalecimento da casa de um modo geral. Então, fomos conduzidos a um espaço mais afastado da casa onde estavam preparados os elementos que iriam compor o ritual. Um pote grande dá sustentação a um prato, onde dentro se encontram uma quartinha com vários outros pratos pequenos a seu redor, todos compostos por barro. O pote estava localizado no centro de um retângulo com aproximadamente quatro metros, estando ornamentada com plantas como espada de São Jorge, mamona, arruda, dentre outras, e alguns objetos de cerâmica em formato de pato e cogumelos. Ao lado do retângulo, estão apoiados em uma cadeira e por cima de uma bandeja de inox a cachaça, o vinho, o aluá (garapa feita com rapadura e especiarias), o mel, o dendê, os temperos e o sal. As galinhas ficam soltas rodeando o espaço reservado. Os filhos de santo se aproximam, incluindo uma criança entre eles, que toca um pequeno chocalho. Uma filha de santo se junta cantando e balançando um chocalho maior (adjá). O pai de santo conduz o ritual jogando dentro do pote, inicialmente, o dendê, o aluá, a cachaça, o vinho, o mel, os temperos e o sal. Em seguida, uma das galinhas é sacrificada e seu sangue é misturado com os demais elementos. A cabeça da galinha é jogada ao chão. O sacerdote canta e todos seguem em coro “Padedéé ôô Padedé a ricó”. Após o derramamento de todo o sangue, o pai de santo realiza um esforço de puxar as asas e pés do animal. Outra galinha é sacrificada e os procedimentos seguem da mesma forma. Pai R. de Oxum abre com ajuda das mãos e da boca uma noz denominada obi. Então, em uma bacia branca a noz se divide em duas partes e o sacerdote comemora batendo palmas, o que demonstra um sinal positivo da permissão dos orixás em relação ao ritual. Em seguida, a noz é jogada no terreiro. A quartinha é fechada com uma espécie de chifre de barro. Penas dos papos das galinhas são arrancadas e jogadas sobre aquele altar. O pai de santo conduz o coro “Lelê, marê, marê. Oxum marê, lelê marê, oxum maré”, e um casal de filhos de santo dançam com 80 uma das mãos para trás e a outra para frente realizando movimento de onda. Os cânticos e as danças prosseguem por um bom intervalo de tempo. Maracá, ô bô rum... Ôxum maré, le lê, maracá... Õ bôie! Com o auxilio de um filho de santo, Pai R. de Oxum conduz as galinhas para outro local do terreiro. Trata-se de uma árvore rodeada de panelas, quartinhas e bacias de barro ofertadas para Osanyin. O pai de santo explica que Osanyin é conhecido como catingué na Angola e Agué no Jejê. Diz que o orixá representa a cura, a medicina e que transforma a vida, em cada momento da trajetória espiritual do indivíduo. Fala que o referido orixá concede a terra, a possibilidade da erva e do alimento, além de estabelecer a ligação com a folha, a paz e o amor. Ressalta que nada se faz dentro do Candomblé sem o culto a Osanyin, e que é da folha que se vem o culto do vodu ou do orixá, seja como for chamado em qualquer nação. “Se não tiver folha não tem Candomblé, não tem orixá, não tem nada”. Em seguida, ele repete a conduta com o mel, o dendê, o aluá, a cachaça, o vinho, os temperos e o sal jogando-os sobre uma bacia de barro que conduz o símbolo do orixá, composto por uma armadura de ferro com pontas para o alto. O pai de santo explica que a única bebida que o orixá reconhece e não se incomoda de ser ofertada é a cachaça. Diz ser muito comum os pais de santo consumirem a bebida durante os rituais sem nenhum constrangimento para a entidade. Depois, mais duas galinhas serão sacrificadas, tendo o sangue derramado sobre os elementos anteriormente dispostos e sobre a armadura de ferro. Todos cantam “Padedéé, padedé aricó...”. A noz (obi) é novamente jogada sobre uma bacia branca para a permissão da entidade com relação ao ritual. O pai de santo explica que ele (obi) é o alimento do orixá, que funciona como uma espécie de “radar”, em que ao ser provado o orixá identifica imediatamente a localização de quem o provou. O sacerdote ainda enfatiza: “o obi cura tudo! tudo, tudo, tudo!” Sorrir e ainda afirma que é afrodisíaco. Todos aguardam de cócoras o momento da confirmação da permissão, logo após, seguem as palmas. Os participantes formam um semicírculo de frente à árvore e às oferendas, sentando-se em pequenos bancos e em uma esteira de palha que é estendida no chão. Um 81 cachorro se aproxima, brinca com os filhos de santo descontraindo o momento, e deita a cabeça no colo de uma moça sentada na esteira. Pai R. de Oxum evoca o coro dizendo “Eu, eu”! O adjá toca fortemente e todos catam por um bom intervalo de tempo Ê lê gum a lá, oxum... ba, bá, oxum. Naga um napururu. Ave mauí, maparabá... Pai R. de Oxum começa a explicar a lenda de Osanyin, narrando que este orixá une-se a Oxossi pela mata, que foram os únicos orixás do sexo masculino que se apaixonaram, quando Osanyin enfeitiça Oxossi dando-lhe aguardente e folhas em uma cabaça, para que este saísse da aldeia e fosse morar com ele na mata. Iemanjá fica triste com o acontecido e envia um pássaro em busca de Oxossi na mata. O pai de santo sorri e evoca o coro “Eu, eu”! Por fim, Pai R. de Oxum encerra o ritual desejando paz, saúde, felicidade e prosperidade para todos. Diz “Glórias e vitórias, sempre! Saúde em primeiro lugar”! Todos batem palmas. Em seguida, uns recolhem as galinhas e seguem para a cozinha. O pai de santo ordena que o restante do material (as oferendas) seja recolhido para o devido descarrego na mata (no caso, próximo à cachoeira), juntamente com o material que será tratado na cozinha. Ao chegar à cozinha estavam dispostos em cima de uma mesa dois pratos grandes de barro contendo uma massa de batata doce em formato de cobra que, segundo a filha de santo, representa oxum maré, e no outro, um repolho grande em homenagem à Osanyin. A filha de santo explica que a oferenda deverá ficar durante três dias na casa do santo e, em seguida, será conduzida para o despacho na mata. O pai de santo limpa as galinhas e cozinha para serem servidas no momento do almoço. A atuação de Pai R. de Oxum frente à comunidade de terreiro que conduz, através do ritual de fortalecimento do grupo, nos remete ao caráter coletivo do ritual vivenciado por aquelas pessoas. Conforme nos descreve Turner (1968) o ritual reafirma, sistematicamente, certos valores e princípios e o modo como seus membros devem agir diante uns dos outros, dos deuses e do mundo natural. Além disso, ele ajuda a recriar nas mentes dos participantes sua visão coletiva do mundo. A importância da integração entre o pai de santo e sua 82 comunidade de terreiro se traduz no elemento maior pela busca do fortalecimento coletivo. Esta relação é vital no processo de aceitação e convivência com a problemática da Aids. Pai R. de Oxum, portador do vírus há vinte e quatro anos, já adoeceu de câncer por duas vezes e, recentemente, sofreu grave infarto. No entanto, continua suas atividades no terreiro e justifica sua energia vital devido sua crença e atuação na prática religiosa. Embora tenha sofrido (e continua sofrendo) discriminações no próprio ambiente religioso 37 , ele considera que os rituais de fortalecimento do terreiro são fundamentais para a manutenção de sua casa. 37 Através de depoimentos dos filhos de santo soubemos que Pai R. de Oxum sofreu grande preconceito durante o batismo de Candomblé em sua casa. Alguns filhos de santo se recusaram em fazer o ritual conduzido por Pai R. de Oxum por medo de contaminação pelo HIV. Então, o pai de santo se sentiu obrigado a convidar outro pai de santo para efetivar a parte dos cortes durante o batismo. 83 CAPÍTULO 2 UMBANDA, AIDS E ESTIGMA: UMA AMPLA CRONOLOGIA 84 UMBANDA, AIDS E ESTIGMA: UMA AMPLA CRONOLOGIA Este capítulo versa, no primeiro momento, sobre a as práticas culturais em saúde reproduzidas nos terreiros de Umbanda em sua dimensão sócio-histórica, configuradas em sua expressão de realidade coletiva. O objetivo é perceber como se revelam as diferentes estratégias de convivência das práticas culturais em saúde da Umbanda com as formas legitimadoras e institucionais da ordem social brasileira, considerando as especificidades no cenário cearense. Em seguida, busco compreender o contexto da Aids no Brasil e no Ceará, identificando os impactos causados pela inserção da doença em contextos sociais, o seu perfil epidemiológico, bem como as respostas sociais frente a problemática em questão. Tal reflexão auxilia na análise a seguir sobre o caráter estigmático do HIV/Aids e sua inserção nos terreiros pesquisados. 2.1. O CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO DA UMBANDA E AS PRÁTICAS EM SAÚDE A vasta literatura denominada afro-brasileira (Ramos, 1934; Bastide, 1971; Ortiz, 1978; Negrão, 1996, dentre outros) reconhece a Umbanda como uma religião de matriz africana, mas que reelabora elementos simbólicos de várias religiões. Concone (1987) denomina a Umbanda de “religião brasileira” por expressar em sua ideologia o nacionalismo e o mito das três matrizes culturais formadoras da identidade cultural brasileira - a partir das influências indígenas, negras (nagô, jeje e bantu) e ibéricas. O catimbó, a jurema, o calundu, o batuque, a macumba, o candomblé de caboclo e de Angola, o tambor de Mina, os movimentos messiânicos, dentre outros, são expressões cultural-religiosas tradicionais identificadas, com maior ou menor pertencimento, nas diversas regiões do país. Os estudos sobre a Umbanda na região do Ceará identificam duas designações para as práticas religiosas anteriores ao registro na polícia do primeiro Centro Espírita de Umbanda, em 1952: “macumba” ou “catimbó”, sendo o último termo oriundo da influência indígena. Como diz Roger Bastide, “excluindo a região do Maranhão onde predominou o 85 dahomeano 38 , todo o Norte do Brasil, da Amazônia à fronteira de Pernambuco, será o domínio do índio. Foi ele quem influenciou profundamente a religião popular, a pajelança no Pará e no Amazonas, o „encantamento no Piauí, o catimbó ou cachimbó nas outras regiões‟.” No contexto cearense, haverá forte influência do catimbó proveniente do Piauí e Maranhão. O primeiro esboço dessa religião durante o período colonial foi a Santidade, culto que tinha o cerimonial marcado pelo sincretismo de elementos cristãos (como a Igreja, a adoração a um ídolo, o rosário, as cruzes, a procissão, etc.) e elementos indígenas (pajelança e culto aos caboclos). O catimbó é considerado uma das religiões mais antigas do Nordeste. Trata-se de uma religião de possessão por espírito, principalmente de mestre e caboclos, que tem como principal atividade propiciar a consulta e a cura. Para Cascudo (1951), o catimbó é um processo de feitiçaria branca, com o cachimbo negro e o fumo indígena, estando firme nos lábios do pajé curador, desde o século XVI. Segundo Bastide (1972) o ritual do catimbó acontecia muitas vezes na própria residência do catimbozeiro, utilizando-se da mobília da casa para montagem do altar, contando com o uso da cachaça, charutos, perfumes, imagens de santos, caboclos ou crucifixos, e o maracá como instrumento musical. O referido autor ainda afirma: O catimbó e o espiritismo popular são um apelo aos espíritos místicos ou aos espíritos dos matos para que venham ajudar os pobres viventes a elevar-se espiritualmente e a encontrar uma solução para seus problemas cotidianos, inclusive o da saúde física. O catimbó era primitivamente, entre os índios selvagens, uma festa de colheita e da preparação da jurema, mas tornou-se pouco a pouco um culto destinado a fazer descer os espíritos da floresta, dos rios e das montanhas, os encantados, nos corpos dos catimbozeiros, para que respondessem às consultas dos infelizes e dos doentes. (BASTIDE, 1959:154). Nas corimbas ou pontos cantados, também há muitas referências à jurema, seja como planta, seja como linha, seja como força mágica. Portanto, as práticas religiosas no Ceará também não irão se diferir do catimbó característico do Rio Grande do Norte e Nordeste em geral. Em seu estudo sobre a tradição da jurema na umbanda nordestina, Assunção (2006) afirma: (...) adjunto de jurema, beber jurema, segredo da jurema, catimbó, não importa o nome, o que interessa é registrar a similitude dessas práticas em períodos e culturas diversas. Convém também observar que os elementos dessas práticas, vividos por meio de um processo de reelaboração e reinterpretação, estão presentes no culto da jurema dos terreiros de umbanda do nordeste brasileiro como um culto aos mestres 38 Os dahomeanos (beninenses atuais) aqui chegaram nos séculos XVIII e XIX, e foram chamados no Brasil de jeje. Os cultos religiosos de influência dahomeana referem-se aos vodus, considerados discretos e perigosos. (BASTIDE, 1972). 86 catimbozeiros, aos caboclos indígenas e aos negros africanos. (ASSUNÇÃO, 2006:22) Durante a passagem da Missão Folclórica, conduzida por Mário de Andrade ao Norte e ao Nordeste, no período de 14 de dezembro de 1928 a 29 de março de 1929, em seu diário de viagem intitulado Um Turista Aprendiz (2002), o autor destaca os rituais mágicos do catimbó. Em Belém, procura indagar a respeito da pajelança para um médico que o acompanhava nas reuniões promovidas para recebê-lo, e que demonstra muito pouco conhecimento sobre o assunto. O escritor afirma: “Mostrei outro dia como eram perceptíveis bem as influências de religiosidade africana e ameríndia nas zonas diferentes da feiticeira brasileira”. (ANDRADE, 2002:221). A missão cultural e pesquisa etnográfica de Mário de Andrade, em passagem por Natal, ainda revela a participação do “aprendiz” em um ritual de “fechamento de corpo”39, em visita conseguida por Câmara Cascudo. O autor manifesta, a partir da experiência vivida no catimbó, uma sensação de forte estranhamento, conforme suas palavras a seguir: “É impossível descrever tudo o que se passou nessa sessão disparatada, mescla de sinceridade e de charlatanismo, ridícula, dramática, cômica, religiosa, enervante, repugnante, comovente, tudo misturado” (Idem, p. 224). As práticas religiosas, assim como os rituais mágicos do catimbó, sofrerão forte repressão e opressão por todo o período, sendo sistematicamente perseguidas pelo Estado e pela Igreja Católica. As fotos da coleção de Cascudo (1951) mostram policiais com catimbozeiros presos, ou mesmo demonstração ritual, realizada em plena delegacia de polícia. Na própria Missão Folclórica, conduzida por Mário de Andrade, a realização de cânticos do Xangô no Teatro Princesa Isabel, em Pernambuco, somente foi possível após autorização prévia das autoridades competentes. O fato é que as práticas religiosas e os rituais mágicos de cura propiciaram a consolidação de estruturas sociais próprias de sobrevivência, incluindo as formas de lidar com a saúde e a doença, apesar de toda perseguição da elite dominante. No entanto, o fortalecimento do Estado e suas diferentes instâncias e esferas de decisão farão emergir novas perspectivas na relação com as populações historicamente “excluídas”. No contexto das populações afro-brasileiras, Batista (2002) analisa que desde o fim da escravatura elas ficaram por sua conta e risco, sem qualquer apoio do Estado. Após a entrada do regime republicano, os afro-brasileiros irão travar verdadeira luta para se 39 Fechar o corpo significa protegê-lo espiritualmente contra forças malignas encomendadas por meio do feitiço. 87 manterem em condições de viver com a saúde e a educação ofertadas pelo Estado, sobretudo porque penetrou a tese da democracia sócio-étnico-racial e sexual geradora da invisibilidade, da universalidade e das generalizações que não propiciaram que muitos enxergassem na sua particularidade, na sua especificidade e nos seus males físicos e psíquicos. Na segunda metade do século XX, as transformações da ordem social, econômica e política incidirão no campo da cultura e da religião no Brasil. O Estado assume as rédeas do planejamento e desenvolvimento do país, institucionalizando a vida social e os serviços públicos a serem ofertados à população em geral. É nesse contexto que surge a Umbanda. Segundo Ortiz (1999), a Umbanda expressará, através de seu universo religioso, o movimento de consolidação de uma sociedade urbano-industrial, na qual, o processo de institucionalização das federações religiosas valorizará o Espiritismo e rejeitará as de origens indígenas e negras, a exemplo do catimbó e da macumba. No cenário cearense, Ismael Pordeus (2002) analisa a mutação da Macumba para a Umbanda a partir da fundação da Federação Espírita de Umbanda, em 1954, impetrada pela mãe de santo Júlia Condante. Segundo o autor, a Macumba utiliza o nome da Umbanda para se legitimar, do mesmo modo que a Umbanda emprega a designação Espírita, com objetivos similares, em relação ao Espiritismo Kardecista. O Espiritismo de Umbanda irá predominar, por um lado, entre setores da classe média, aproximando-se, sobretudo, dos princípios doutrinários do Espiritismo de Allan Kardec, legitimando a idéia de evolução dos espíritos e voltando-se para o bem e a caridade, à luz da linha branca da Umbanda, afastando-se do seu contrário, a Quimbanda, rechaçada por espíritos obsessores, típicos das práticas afro-brasileiras, como os exus que integram a macumba. E, por outro, a Umbanda se sobrelevará entre setores das classes subalternas, representando um elo significativo entre essas populações periféricas no que diz respeito ao aparato de inserção social, como de atendimento a demandas individuais nos diversos campos: amor, cura, fortuna, proteção espiritual, abertura de caminhos, etc. Ao estudar a memória histórica das possíveis matrizes do Espiritismo de Umbanda no contexto cearense, Ismael Pordeus (2002) aponta as contradições, incompletude, parcialidades na codificação de seu repertório conceitual, de seus sincretismos. As invenções cotidianas revelam as diferentes estratégias de como os adeptos da Umbanda se ajustam e constroem formas subterrâneas de conviver com formas legitimadoras de uma nova ordem. Assim, a Umbanda cearense ainda revela fortes elementos do cuidar das práticas antepassadas. Os segredos de uma tradição, suas energias e o modo de lidar dar com o 88 infortúnio ainda se mostram presentes nos tratamentos de cura comandados por pais e mães de santo. No que se refere ao estudo sobre as religiões afro-brasileiras e sua relação com a saúde, foi Nina Rodrigues o primeiro a desenvolver trabalhos de “medicina social” abordando questões sobre problemas “patológicos, tanto individuais quanto sociais, causados pela mestiçagem racial”. Seus estudos foram pioneiros ao se interessar pela posição do negro africano na sociedade brasileira, consistindo em análises raciais, o que o levou a receber muitas críticas por parte de pesquisadores futuros 40 . Posteriormente, estudos especializados no campo da saúde coletiva (Montero, 1985 e 1986; Loyola, 1984; Magnani, 1980) priorizam temas pertinentes como o processo histórico e as transformações da medicina popular tradicional, no qual as práticas de saúde umbandistas são identificadas, e a análise sobre o embate político-ideológico com a medicina oficial moderna. A partir da interpretação de Montero (1986), as práticas denominadas “mágico- religiosas” da Umbanda vão surgir num momento em que, nas cidades, as camadas populares, particularmente as classes trabalhadoras, já estão relativamente bem incorporadas a uma política de saúde do Estado, e em que as práticas terapêuticas tradicionais estão em franco desaparecimento 41 . 40 Baseadas nas teorias raciais desenvolvidas na Europa e nos Estados Unidos no final do século XIX e início do século XX, os intelectuais brasileiros, dentre eles, Nina Rodrigues, tinham preocupação na formulação de uma identidade brasileira. Conforme esses autores, o negro era visto como elemento incapaz de contribuir positivamente na composição étnica do Brasil em razão da cor e dos traços psicossomáticos que portava. Conforme atesta Skidmore, “Nina Rodrigues foi o primeiro pesquisador a estudar a influência africana de maneira sistemática”, pois as pesquisas realizadas pelos museus (Museu Nacional/RJ; Museu Paulista e Emílio Goeldi/PA), no âmbito da Antropologia Física, centravam-se preferencialmente no índio. Ainda que fosse para dar plausibilidade à inferioridade do negro, Nina Rodrigues foi sem dúvida quem mais contribuiu na classificação dos povos africanos trazidos ao Brasil, especialmente para a Bahia, por força da escravidão. Por outro lado, nota-se que no cerne das investigações estava a preocupação com o atraso do país, pelo qual, na opinião do próprio Nina Rodrigues, o negro, em grande parte, era responsável (SKIDMORE apud BEZERRA, 2002:16). 41 Para o auxílio da compreensão geral sobre tal fenômeno, um dos aspectos que pode ser referendado é a periodização histórica da medicina no Brasil apresentada por Santos Filho (1977), segundo a qual são identificados três momentos distintos: Fase colonial, que se prolongaria até o início do sec. XIX e se caracterizaria pelo predomínio da medicina indígena, africana e jesuítica, organizada em torno do conhecimento fitoterápico e da observação empírica das doenças, sobretudo nos dois primeiros séculos de colônia; Fase pré- científica, que teria início no séc. XIX com o aparecimento das primeiras escolas de Medicina na Bahia e Rio de Janeiro (1808) e dos primeiros periódicos especializados. Com a vinda da Família Real para o Brasil, teria princípio um longo processo de organização da formação de profissionais médicos habilitados no país, tendo como conseqüência o cerceamento rigoroso das atividades populares de cura- curandeiros, raizeiros, benzedores, etc., que detinham a ampla hegemonia em detrimento da medicina de origem ibérica; Fase científica, que se estabelece ainda no séc. XIX com o desenvolvimento da tecnologia sanitarista levada a cabo pelos Institutos Butantã e Bacteriologia. Com o aperfeiçoamento teórico-científico e a atuação cada vez mais eficaz sobre as doenças infecciosas, a medicina científica afirma-se em meados do séc. XX como forma terapêutica eficiente e hegemônica (SANTOS FILHO, 1977). 89 Diante do declínio dos sistemas terapêuticos tradicionais e o progressivo domínio da medicina científica, a Umbanda surge recuperando e integrando alguns elementos das práticas tradicionais, transformando-as num conjunto original. Montero (1985) destaca o importante papel terapêutico de “curandeiros” e “benzedores”42, que foi fortemente afetado pelas transformações econômicas e sociais do processo de urbanização: A desestruturação das relações locais provocadas pelos movimentos migratórios cada vez mais amplos, as novas condições de vida da cidade, a própria transformação do repertório tradicional das doenças e o aparecimento de males até então desconhecidos e resistentes aos remédios da medicina rústica, e a grande expansão da Medicina universitária, inclusive no meio rural, são fatores que atuaram no processo de desarticulação do sistema de conhecimento do curandeiro, (...) que também afetam o benzedor. (MONTERO, 1985) Nessa inter-relação entre a Umbanda e os conhecimentos dos sistemas terapêuticos das medicinas tradicionais e modernas, Montero (1986) analisa que com o fortalecimento da medicina universitária através do domínio empírico e da atuação eficaz das doenças infecciosas, o ritual religioso aparece redefinindo inteiramente o espaço social de atuação da “medicina popular”. Ele abandona o caráter empírico que caracterizava a atuação de raizeiros e benzedeiras, ambos voltado para a supressão de doenças visíveis cujo repertório era finito e conhecido por todos e passa a operar inteiramente no domínio simbólico. Dos elementos tomados de empréstimos da medicina popular, a Umbanda resgata, sobretudo, o domínio das relações interpessoais. Neste cenário, o campo de atuação das práticas mágico-terapêuticas da Umbanda começa a ser delimitado na medida em que o monopólio da cura passa a estar nas mãos da medicina científica. Essa necessidade se torna bastante evidente na distinção formal que os umbandistas fazem entre “doença material”, que seria relativa à competência médica, e “doença espiritual”, relativa à competência mágica (Montero, 1986). Portanto, a doença perde no contexto religioso seu conteúdo orgânico inicial e se torna um acontecimento simbolicamente significativo que organiza e pontua a biografia individual do enfermo. Ao trazer as causas do fenômeno mórbido para o campo do espiritual, instaura-se o espaço legítimo da competência religiosa no âmbito da cura. À medicina cabe apenas cuidar, através de seus meios instrumentais, do corpo combalido do adepto que os espíritos 42 Segundo a autora, o “curandeiro” busca uma eficácia empírica ao operar adequadamente com o repertório das doenças e dos remédios (busca da cura pelo uso de ervas), mas o faz baseado em conhecimentos e observações experimentais sobre as qualidades dos elementos naturais. O curandeiro tem, é verdade, uma relação de intimidade com o mundo do sobrenatural que o distingue dos outros homens, mas é sempre ele que age, com seu saber, sobre a doença, e não as divindades. Enquanto, os “benzedores” agem sobre a doença apenas simbolicamente, através da reza. (MONTERO, 1985). 90 sofredores maltrataram. A legitimidade da prática mágica é fortalecida através do discurso das competências diferenciadas e complementares em relação à prática médica. No entanto, o conflito não deixa de estar presente, basta remetermo-nos ao passado histórico marcado por preconceitos, intensas perseguições e perigo constante de punição legal à espreita dos umbandistas. De fato, eles não podem entrar em concorrência direta com a medicina. No contexto em que as práticas de saúde da Umbanda são identificadas no campo da medicina popular, cabe ressaltar aqui a perspectiva teórica de Michel De Certeau (1996), que inova a forma de pensar a esfera do “popular” dos significados. Segundo o autor, é no jogo, nos lances, nas táticas – pequenas, invisíveis, discretas e geralmente eficientes – que os atores acionam para questionar relações de poder ou instaurar novas formas de viver. Popular, nesse novo sentido, indica uma forma específica de fazer e também de falar, extremamente calcada na ação e, portanto, nada passiva ou receptiva. Consiste em uma agência subalterna e, por vezes, subversiva, mas não necessária ou evidentemente pode ser pensada como tradicionalmente excluída (CERTEAU, 1996). Neste sentido, as resistências e táticas de sobrevivência das práticas culturais podem surgir nas mais variadas formas. Na seguinte descrição de Santos e Santos Neto (1989), podemos perceber o processo de fusão entre a Mina e a Pajelança, no Maranhão, como resultado das relações entre as legislações, a polícia, os médicos, a burguesia, os pajés e a cura: Sem sossego e muito menos liberdade, as casas de cura iam-se impedidas de funcionar. (...) Condenada pelos médicos, repudiada pela burguesia e escorraçada pela polícia, a cura (procurada pelas classes desfavorecidas da sociedade como medicina alternativa) não resistiu à inevitável opressão, cujo arrefecimento só ocorreu à proporção que os curadores adotaram um estratagema. Eles projetaram sobre o tambor de mina o sonho de uma relativa vida à luz do sol. E numa terra que já se acostumara a “dormir ao som dos tambores”, as casas de cura (ansiosas por um pouco de paz e liberdade) resolveram mascarar-se de tambor mina para ludibriar as forças da repressão. (...) Com efeito, acelerou-se o processo de fusão da mina com a pajelança. E notórios curadores ou pajés, a partir daí, passaram a comportar-se como se mineiros fossem. Na verdade, eles só queriam uma coisa: ver-se livres, ainda que parcialmente, dos assédios da polícia. E, por conta da perseguição policial, os curadores foram obrigados a substituir o pandeiro e o maracá inicialmente por palmas (menos ruidosas, poderiam dificultar o faro da polícia) e depois, como disfarce, adotaram o mesmo ritual dos chamados mineiros. (SANTOS E SANTOS NETO, 1989: 118-119). Em outro estudo sobre a pajelança no Maranhão, Barros (2009:164) afirma que através de suas práticas e representações, mesmo aquelas produzidas em meio a conflitos, tensões e perseguições, de um intenso processo de resistência cotidiana, os curadores e pajés foram capazes de estratégica e criativamente redesenhar sua participação na sociedade 91 maranhense, e organizar formas de fazer, pensar e sentir, especialmente no que concerne a possíveis tratamentos de doenças, que se difundiram socialmente. No cenário cearense, as constantes perseguições por parte das elites, da igreja e do Estado 43 , a própria condição social dos adeptos e a ligação que a religião possui com a natureza - que necessita de lugares próximos as matas, cachoeiras, pedreiras, rios, com espaço livre para a realização das oferendas, dos rituais e das festas - conduziram para que os espaços (de cura) da Umbanda – os terreiros - se instalassem, sobretudo, em bairros mais afastados e/ou periféricos dos centros urbanos. Embora a maior parte dos adeptos seja composta por pessoas da classe popular, pessoas de classe média e alta (por exemplo, alguns políticos) também costumam recorrer aos pais e mães de santo em busca de ajuda espiritual para a resolução de seus problemas. Essa dinâmica mantém viva a tradição, mas também se (re)inventa diante das adversidades na luta pela sobrevivência. Com o final do regime militar e a consolidação do Estado Democrático Brasileiro, a partir dos anos 80, as novas perspectivas na ordem social, política e econômica incidirão, mais uma vez, no campo da cultura, da saúde e da religião no Brasil. Do ponto de vista da organização política da saúde pública, pressionado pelo movimento sanitarista brasileiro 44 , o Estado passa a intervir sistematicamente a partir dos desdobramentos da Assembléia Nacional Constituinte, que introduz o sistema de seguridade social na Constituição Federal de 1988, do qual a saúde passa a fazer parte como direito universal, independentemente de cor, raça, religião, local e moradia e orientação sexual, a ser promovido pelo Sistema Único de Saúde (BRASIL, 1988, Art.194). A saúde passa a ser entendida como um conceito que não se limita apenas ao aspecto biomédico, mas um conceito mais amplo que traz em si elementos que são construídos socialmente, tais como qualidade de vida e bem estar 45 . 43 Em Fortaleza, ainda é comum que a segurança pública, através do “Ronda do Quarteirão”, atue na imposição de limites quanto aos horários de funcionamento dos terreiros durante as festas. 44 Em 1986, durante a 8ª Conferência Nacional de Saúde, a participação conjunta de profissionais de saúde, dirigentes sindicais e de órgãos públicos, intelectuais, parlamentares e representantes de diversos movimentos sociais, dentre eles, o Movimento Popular de Saúde (MOPS), o Movimento de Reintegração dos Hansenianos (MORHAN), as Plenárias de Saúde Mental, o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO), etc., levou a formação do Movimento Sanitarista Brasileiro. Aquela Conferência representou a culminância de um longo processo de lutas travadas em torno da reestruturação completa da saúde no Brasil (BRASIL, 2002). 45 Segundo Fleischer et al (2010) “paralelamente, a saúde, na concepção holista, que foi a concepção tradicional da medicina – encarada mais como arte do que técnica - , hegemônica antes da invasão da medicina alopática, durante o século XIX, com suas especializações na perspectiva do „bem-estar geral‟ do corpo, da mente e do espírito, do holos humano, por conseguinte. O „sentir-se bem‟, percebido nas subjetividades individuais e grupais, dá a medida da percepção do “estar com saúde”. (FLEISCHER et al, 2010:15). 92 Então, podemos pensar sobre os impactos dessa intervenção do Estado no contexto da saúde nos terreiros de Umbanda. Sabe-se que no entrave entre a biomedicina e os sistemas terapêuticos tradicionais, fica evidente entre os umbandistas a distinção formal entre “doença material”, que seria relativa à competência médica, e “doença espiritual”, relativa à competência mágica, embora possa ser compreendida como tática de sobrevivência das práticas em saúde no contexto umbandista. Em meio a tais perspectivas, o Estado se fortalece e passa a intermediar “novas” concepções de saúde que incluem as percepções dos sujeitos historicamente excluídos, a exemplo das populações afro-descendentes e dos adeptos das religiões afro-brasileiras. Cabe ressaltar aqui a importância de novos estudos que evidenciem essa nova dinâmica (e seus embates) no cenário da saúde brasileira. Na década de 1990, o governo federal passa a se ocupar com o tema da Saúde da População Negra, em atenção às reivindicações da Marcha Zumbi dos Palmares, realizada em 20 de novembro de 1995, o que resultou na criação de um Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da População Negra/GTI e do Subgrupo Saúde (BRASIL, 2007). A criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), pela lei nº 10.678, de 23 de março de 2003, representa um marco institucional na tentativa da promoção da igualdade e proteção dos direitos de indivíduos e grupos raciais e étnicos, por meio do acompanhamento e coordenação das políticas de diferentes ministérios, dentre os quais o da saúde, e outros órgãos do governo brasileiro (BRASIL, 2003). Em 2003, também é criada a Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, durante o II Seminário Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, realizado em São Luis/MA. A Rede é uma iniciativa do “povo de santo”46 que visa promover a saúde dos adeptos das religiões de matrizes africanas, representando uma instância de articulação que envolve mães, pais e filhos de santo e demais adeptos da tradição; lideranças comunitárias; gestores, profissionais, conselheiros e agentes comunitários de saúde; integrantes de organizações não governamentais e pesquisadores (REDE NACIONAL DE RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS E SAÚDE, 2005). A exemplo do que acontecera com a questão indígena, durante a década de 1980, quando o fortalecimento da etnicidade entra em evidência a partir da organização política em busca dos direitos dos grupos indígenas (PORDEUS JR, 2002:29), o Movimento Social Negro se fortalece a partir da década de 1990, ampliando sua participação social nas instâncias políticas brasileiras, bem como no próprio Sistema Único de Saúde (SUS). 46 Povo de santo é um termo utilizado para denominar os adeptos das religiões Afro-brasileiras. 93 No Ceará, a Rede de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, conhecida popularmente como Rede de Terreiros, foi criada em 2006, quando ocorreu o VI Seminário Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, em Fortaleza. Integraram-se na Rede de Terreiros, inicialmente, pais, mães e filhos de santos; e lideranças do movimento homossexual e de luta contra a Aids. Considerando que a problemática da Aids já era uma realidade nos terreiros desde os anos 90, essas lideranças religiosas e de saúde mantinham, embora de forma pontual, ações de prevenção em torno dessa e outras doenças 47 . Em 2006, a Rede de Terreiros se institucionaliza na capital cearense, através de participação em núcleo da Secretaria Municipal de Saúde. Desde então, a Rede tem se fortalecido estendendo suas ações e mantendo um calendário de atividades nos terreiros, em postos da prefeitura, bem como em eventos de grande repercussão, a exemplo da abertura da Parada pela Diversidade Sexual, que reúne na Avenida Beira Mar um público estimado em mais de quinhentas mil pessoas (Ver Anexo VII). Entre suas ações, se destacam a promoção da saúde mental (parceria em que filhos, pais e mães de santo atuam em unidades de saúde da prefeitura municipal, através de terapias comunitárias) e a prevenção das DSTs/Aids e Hepatites Virais (parceria em que lideranças e profissionais de saúde atuam no ambiente dos terreiros, através de palestras educativas). Hoje, são vinte e seis terreiros atendidos diretamente pela Prefeitura Municipal de Fortaleza, através da Rede de Terreiros (Ver Anexo VIII). Portanto, a Aids se apresenta como questão presente e relevante a ser trabalhada no contexto dos terreiros cearenses. Diante desse cenário, consideramos importante compreender o advento da Aids no Brasil e no Ceará, identificando os impactos causados pela inserção da doença em contextos sociais, o seu perfil epidemiológico, bem como as respostas sociais frente à problemática em questão. 47 Oficialmente, há o registro de um trabalho de prevenção em DST/Aids nos terreiros de Fortaleza, em 1994, desenvolvido pela Marilyn Kay Nations, em parceria com a Secretaria de Saúde do Estado do Ceará. 94 2.2 – O ADVENTO DO HIV/AIDS NO BRASIL E NO CEARÁ A Aids é uma doença emergente, grave, de comportamento pandêmico, sendo considerada um dos maiores problemas de saúde pública no mundo, com 34 milhões de pessoas infectadas (WHO, 2012). No Brasil, os primeiros casos foram notificados no início da década de 80, sendo inicialmente registrados, predominantemente, entre homossexuais, usuários de drogas injetáveis, hemofílicos e profissionais do sexo. Essa constatação levou a identificação, nesse período, dos “grupos de risco”, sendo considerado pelos profissionais da medicina e autoridades sanitárias como estratégia fundamental para identificar a doença que se expandia e causava pânico na população. A incidência entre os homossexuais provocou intolerância entre a população brasileira em geral e a doença foi identificada como “peste gay”. O desconhecimento e a ausência da cura da Aids geraram medo e abandono às pessoas infectadas naquele momento. Na época, setores da sociedade civil organizada clamaram por solidariedade e respeito à cidadania dos infectados pelo HIV. Essa solidariedade, imprescindivelmente, reúne elementos complexos, como a desconstrução de estigmas quanto a sexualidades, questões de gênero, orientação sexual, raça e etnia, religião, dentre outros, e, especialmente, no que diz respeito aos múltiplos olhares sobre as Pessoas Vivendo com HIV/Aids (PVHA). No início dos anos 80, organizações de defesa dos direitos de homossexuais e alguns profissionais de saúde empreendiam as primeiras respostas à epidemia no Brasil. Ao mesmo tempo em que realizavam ações educativas, exigiam dos governos medidas para prevenir novos casos e tratar as pessoas que já estavam doentes. Lideranças como Herbert de Souza (Betinho), sociólogo e portador de hemofilia, Herbert Daniel, escritor e militante do movimento homossexual e Agenor Miranda de Araújo Neto (Cazuza), cantor e compositor, dentre outras, mobilizaram ações na mídia em defesa dos direitos das PVHA. No lugar da fatalidade, surge a solidariedade como mensagem principal da luta contra a epidemia. As trajetórias individuais dessas lideranças afetadas pelo HIV/Aids repercutiram no cenário nacional quando eles revelaram sua soropositividade, dando a oportunidade para que a sociedade pudesse refletir a questão da Aids como um problema social, de saúde pública, e não apenas como problema de alguns. 95 Os interlocutores da Aids da década de 80, com a manifestação da doença, foram aos poucos falecendo durante os anos 90 – Cazuza (1990), Herbert Daniel (1992), Paulo César Bonfim (1992), Betinho (1997). Tal situação causou preocupação de enfraquecimento das respostas brasileiras ao HIV/Aids. No entanto, ocupando o espaço vazio deixado e respirando o idealismo dos antecessores, começa a surgir um novo grupo de liderança, ou seja, uma “segunda geração”48. Com um perfil diferenciado das PVHA da década anterior, esses novos sujeitos são pessoas mais simples, menos famosas e que foram infectados no próprio país. Essas novas lideranças regionalizam o movimento de luta contra a Aids e desenvolvem ações locais em diferentes áreas do Brasil. Nesse cenário, podemos inferir que surge uma “política-solidária”, em que a militância de luta contra Aids a partir de sua própria experiência no processo de saúde-doença que o HIV/Aids demandou, consegue sensibilizar a sociedade em geral e o próprio Estado para uma tomada de decisão diante da problemática. Se por um lado, o movimento propiciou o aumento de informações sobre as formas de prevenção e convívio com o HIV/Aids através do fortalecimento de organizações não governamentais, por outro, pressionou pela melhoria nos tratamentos através do acesso à medicação mais adequada, por meio das terapias antiretrovirais (TARV), fornecidas gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde. Jonathan Mann (1987), fundador do Programa Global de Aids da Organização Mundial da Saúde (OMS), durante a Assembléia Geral das Nações Unidas, identificou três fases da epidemia da Aids, observável em qualquer comunidade. A primeira, o autor descreve como a epidemia da infecção por HIV- uma epidemia que geralmente entra em todas as comunidades de forma silenciosa e sem ser notada. A segunda fase é identificada como a epidemia de Aids propriamente dita, a síndrome de doenças infecciosas que podem ocorrer devido à infecção pelo HIV, mas tipicamente (devido à ação particular do vírus no sistema imunológico humano) somente após um certo número de anos. E, finalmente, a terceira epidemia, potencialmente a mais explosiva, como a epidemia das respostas sociais, culturais, econômicas e políticas à Aids- reações que vêm se caracterizando, principalmente, por níveis excepcionalmente altos de estigma, discriminação e, certas vezes, negação coletiva que, para 48 Ver em ONUKI, Daisuke. & HOLANDA, Violeta Maria de Siqueira. Aids, ação coletiva e uso de preservativo no município de Icapuí/CE. Em: VII Encontro de Antropólogos do Norte-Nordeste. Recife: VII Encontro de Antropólogos do Norte-Nordeste, 2001. 96 usar as palavras de Mann, “são uma questão tão central para a AIDS global quanto a doença em si” (MANN, 1987). Ao longo de trinta anos de convívio com o HIV/Aids no Brasil, a infecção passou por mudanças no seu perfil epidemiológico, com consequente alteração na história natural da doença. Esse fato deve-se, principalmente, à introdução da terapia antirretroviral (TARV) iniciada no país em 1996. Como consequência constatou-se um aumento da sobrevida e melhoria na qualidade de vida dos pacientes em tratamento. No entanto, conforme atestam Parker e Aggleton (2001), embora se tenham alcançado vitórias no desenvolvimento de tratamentos novos e mais eficazes e de terapias para as PVHA em ambientes que dispõem de recursos, muito menos tem sido obtido na tentativa de superar o impacto do estigma e da discriminação nas vidas dos afetados pela epidemia. Sendo biologicamente tão complexo como é o HIV, essa complexidade se empalidece em comparação com a complexidade das forças sociais envolvidas na produção e reprodução do estigma em relação ao HIV e à Aids (ver em Malcolm et al. 1998; UNAIDS, 2000). Na concepção de Mann, Tarantola e Netter (1993) para se reduzir o estigma associado às pessoas infectadas e doentes, é preciso que o HIV/Aids seja normalizado como um problema de saúde pública. Nesse raciocínio, é necessário desenvolver uma compreensão mais ampla da necessidade de evitar a discriminação contra as pessoas infectadas pelo HIV, pessoas com Aids e pessoas com comportamento de risco. Nesse sentido, o conceito de “vulnerabilidade”, desenvolvido por Mann (1995), amplia as tradicionais categorias de análise epidemiológicas, incorporando as dimensões culturais, sociais e políticas na interpretação dos dados e informações disponíveis sobre o HIV/Aids. O esforço de produção e difusão de conhecimento, debate e ação sobre os diferentes graus e naturezas de indivíduos e coletividades à infecção, adoecimento ou morte pelo HIV, segundo a particularidade de sua situação quanto ao conjunto integrado dos aspectos sociais, programáticos e individuais que os põem em relação com o problema e com os recursos de enfrentamento (MANN, 1995). É importante destacar que Ayres (1999), no Brasil, partiu também para o aprofundamento dessa idéia de que todas as pessoas são vulneráveis à infecção pelo HIV ou 97 ao adoecimento (no caso das pessoas soropositivas), e que o nível de vulnerabilidade de cada um ou de um determinado grupo social depende de vários fatores. No início da década de 90, a frequência de casos entre mulheres cresceu consideravelmente e a transmissão heterossexual passou a ser a principal via de transmissão. Atualmente, o Brasil tem como característica uma epidemia estável e concentrada em alguns subgrupos populacionais em situação de vulnerabilidade (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2012). De acordo com o último Boletim Epidemiológico (ano base de 2010), foram notificados (pelo SINAM, SIM, SISCEL/SICLOM) 608.230 casos de Aids acumulados de 1980 a junho de 2011, sendo 397.662 (65,4%) no sexo masculino e 210.538 (34,6%) no feminino. A razão de sexo vem diminuindo ao longo dos anos. Em 1985, para cada 26 casos de Aids entre homens, havia um caso entre mulheres. Em 2010, tal relação foi de 1,7 homens para cada caso em mulheres. Ainda segundo o Ministério da Saúde (2012), analisando-se o acumulado de casos de Aids notificados no SINAN, de 1990 a junho de 2011, em indivíduos do sexo masculino de 13 anos e mais de idade, segundo a categoria de exposição (forma de infecção), 32,3% dos casos de Aids, no ano de 1999, ocorreram entre heterossexuais, sendo que, em 2010, esse percentual passou para 42,4%. Entretanto, entre homens na faixa etária de 15 a 24 anos, no mesmo período, houve aumento proporcional da categoria de exposição homens que fazem sexo com outros homens- HSH, passando de 25,2%, em 1990, para 46,4%, em 2010. Acompanhando-se a tendência observada na pesquisa dos conscritos, jovens do sexo masculino de 17 a 22 anos de idade, a prevalência na população HSH também aumentou, passando de 0,56% para 1,2%, praticamente o dobro, entre 2002 e 2007. Nas mulheres de faixa etária semelhante (15 a 24 anos de idade), segundo o estudo-sentinela de parturientes, a prevalência se manteve constante, em torno de 0,24%. No Ceará, desde o primeiro caso conhecido em 1983, foram notificados 11.759 casos até outubro de 2012 no Sistema de Informação e Agravos de Notificação (SINAN) de Aids. Destes, 70% são do sexo masculino e 30% são mulheres. A epidemia caracteriza-se no estado cearense por uma evolução lenta e progressiva, com destaque para maior incidência nos anos de 2003 e 2004. Em seguida, registrou-se um declínio até o ano de 2006 e, nos anos seguintes, novo crescimento, chegando à maior incidência no ano de 2011. Na análise por categoria de exposição entre os indivíduos com 13 anos e mais de idade, a principal forma tem sido a sexual, sendo os heterossexuais predominantes desde 1997. 98 Os dados do último Informe Epidemiológico da Aids, divulgados pela Secretaria da Saúde do Estado (SESA, 2012) revelam o aumento de casos entre heterossexuais. Em 2011, foram registrados 401 casos contra 119 em homossexuais, e 32 em bissexuais. Se levados em consideração os índices por cor, faixa etária e sexo, o boletim aponta que o perfil da doença se concentra mais em homens, pardos, de 20 a 49 anos. Embora a maior incidência tenha sido registrada no grupo heterossexual, é importante frisar que os números são superiores em virtude de ser uma população bem maior e que, de fato, a maior proporção de casos está no grupo de homens que fazem sexo com homens (HSH). A resposta da sociedade civil no Ceará também acontece, sobretudo, na segunda metade da década de 80, quando as primeiras entidades de apoio ao controle do HIV/Aids e de defesa dos direitos humanos das pessoas com HIV/Aids surgem no Estado. O Grupo de Resistência Asa Branca (GRAB), fundado em 1986 e o Grupo de Apoio à Prevenção à Aids no Ceará (GAPA/CE), fundado em 1989, são algumas delas. No que se refere à assistência, o Hospital São José de Doenças Infecciosas do Estado do Ceará foi o pioneiro no acompanhamento e acolhimento dos primeiros casos de Aids detectados no Estado. A partir dos anos 90, com a ampliação do número de casos de HIV/Aids, as mudanças no perfil epidemiológico da doença (Heterossexualização, Feminilização, Interiorização e Pauperização) e a ampliação dos recursos públicos destinados à prevenção e ao controle da doença (incluindo financiamentos do Banco Mundial), outras importantes instituições da sociedade civil organizada vão surgir em defesa das pessoas afetadas pelo HIV/Aids. São elas: a Associação de Voluntários do Hospital São José (1993), o Grupo Girassol (1996), o Centro de Convivência Madre Regina (1993), a Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids\Núcleo Ceará (1998), a Rede de Solidariedade Positiva- RSP+ (2000), a Associação das Prostitutas do Estado do Ceará- APROCE (1990), o Núcleo de Integração Pela Vida- NIV (1994), a Aliança Luz (1998), além de instituições alheias como Bem Estar Social no Brasil (BEMFAM), Comunicação e Cultura e Instituto de Saúde e Desenvolvimento Social- ISDS. Hoje, são mais de cinqüenta instituições organizadas através do Fórum de ONGs Aids do Ceará. Conforme atestado no projeto “Articulando o Ativismo em Aids no Nordeste” (2006) 49 , o ativismo na luta contra Aids tem exercido um papel importante na organização, mobilização e manifestação em defesa dos direitos humanos das PVHA. Aspectos como o 49 Ver em Solange Rocha & Violeta Holanda (Orgs). Articulando o Ativismo em Aids no NE.Recife/Fortaleza: SOS Corpo- Instituto Feminista para a Democracia/ GRAB- Grupo de Resistência Asa Branca, 2006. 99 controle da qualidade do sangue, o fornecimento universal dos medicamentos anti-retroviais via SUS (ampliando significativamente a “sobrevida” dos portadores), a definição de procedimentos quanto à prevenção da transmissão perinatal (que pode reduzir a cerca de 1% as chances de transmissão da mãe HIV+ para seu bebê), são algumas das grandes conquistas que movimentos sociais, pesquisadores, profissionais de saúde e governos impingiram na resposta à Aids no país. No Ceará, o modelo se repete. No contexto dos terreiros de Umbanda, o registro oficial de trabalho de prevenção de DST/Aids na cidade de Fortaleza tem início em 1994, a partir da pesquisa desenvolvida por Marilyn Kay Nations, em parceria com a Secretaria de Saúde do Estado. O projeto tinha por objetivo desenvolver atividades educativas/preventivas, distribuição de preservativos e incentivos ao teste de sorologia do HIV para a comunidade dos terreiros. Na ocasião, o acesso à informação sobre as formas de contaminação e convivência com o HIV/Aids estava sendo ampliado. O impacto e o relato dessas ações nos terreiros serão comentados por alguns de nossos informantes no tópico sobre “acolhimento e participação”. Vale ressaltar, no entanto, que as ações se fortalecem, sobretudo, a partir do envolvimento dos próprios adeptos da Umbanda, sejam eles homossexuais, pessoas vivendo com HIV/Aids ou alguns profissionais de saúde. Isso acontece a partir de parcerias entre a Rede de Terreiros de Fortaleza, a Prefeitura Municipal de Fortaleza, algumas organizações não governamentais de apoio aos grupos LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) e de Pessoas Vivendo com HIV/Aids. Essa parceria reúne, imprescindivelmente, elementos complexos e muito importantes como a garantia do direito universal à saúde, sem perder de vista a desconstrução de estigmas quanto a sexualidades, questões de gênero, orientação sexual, concepções religiosas, dentre outros e, especialmente, no que diz respeito aos múltiplos olhares sobre as Pessoas Vivendo com HIV/Aids (PVHA) e as conexões entre os conceitos de saúde e doença, vida e morte. Sobre o caráter estigmático da Aids e sua inserção nos terreiros de Umbanda, trataremos no tópico seguinte. 100 2.3 - O CARÁTER ESTIGMÁTICO DA AIDS E SUA INSERÇÃO NOS TERREIROS DE UMBANDA. O objetivo deste tópico é o exame da literatura disponível sobre o estudo do estigma, tanto independentemente do HIV/Aids quanto mais especificamente em relação a ele, para desenvolver uma estrutura conceitual mais adequada à reflexão sobre a natureza desse processo nos terreiros de Umbanda. Neste contexto, destaco a contribuição da análise sociológica sobre estigma de Erving Goffman (1988), bem como as reflexões teóricas mais específicas de Parker e Aggleton (2001) sobre estigma, discriminação e Aids. A palavra estigma representa algo de ruim, que deve ser evitado, uma ameaça à sociedade, isto é, uma “identidade deteriorada” por uma ação social. Para Goffman (1993, p.11), “La sociedad establece los médios para caracterizar a las personas y el complemento de atributos, que se perciben como corrientes y naturales a los miembros de cada uma de esas categorias”. A sociedade estabelece um modelo de categorias e tenta catalogar as pessoas conforme os atributos considerados comuns e naturais pelos membros dessa categoria. Assim, criamos um modelo social do indivíduo e, no processo de nossas experiências, nem sempre é imperceptível a imagem social do indivíduo que criamos. Essa imagem pode não corresponder à realidade, mas ao que Goffman (op.cit.) denomina de uma identidade social virtual. Os atributos, denominados como identidade social real, são, na verdade, o que pode demonstrar a que categoria o indivíduo pertence. O estigma é um atributo que produz um amplo descrédito na vida do sujeito. Em situações extremas, é tido como “defeito”, “falha” ou desvantagem em relação ao outro. Isso constitui uma discrepância entre a identidade virtual e a identidade real. Para os estigmatizados, a sociedade reduz as oportunidades, esforços e movimentos, não atribui valor, impõe a perda da identidade social e determina uma imagem deteriorada, de acordo com o modelo que convém à sociedade. Segundo Parker e Aggleton (2001), as discussões sobre estigma, particularmente em relação ao HIV e à Aids, tomam como seu ponto de partida o trabalho de Erving Goffman, ao definir estigma como “um atributo que é profundamente depreciativo” e que, aos olhos da sociedade, serve para desacreditar a pessoa que o possui (Goffman, 1988). Embora o termo em si tenha uma longa história (que remonta à Grécia Clássica, onde se referia a sinais corporais feitos com cortes ou fogo no corpo dos excluídos), ele só entrou em grande escala a partir da análise sociológica de Goffman. 101 Os referido autores destacam que a ênfase descrita por Goffman no estigma como um “atributo depreciativo” levou o olhar, nos estudos no contexto do HIV/Aids, para o conceito como se fosse um tipo de coisa (particularmente, um valor cultural ou mesmo individual), uma característica ou aspecto relativamente estático, embora culturalmente construído em algum nível (PARKER E AGGLETON, 2001). A ênfase que o trabalho de Goffman deu à posse de uma “diferença indesejável” que leva a uma “identidade deteriorada”, tende a encorajar uma análise individualizada, na qual as palavras vêm caracterizar as pessoas de maneira relativamente não mediada. Dessa forma o estigma, entendido como um atributo negativo é mapeado sobre as pessoas, que por sua vez e em virtude de sua diferença, se entendem como negativamente valoradas na sociedade. No entanto, é importante reconhecer que nenhuma dessas ênfases deriva diretamente de Goffman, que, pelo contrário, tinha grandes preocupações com as questões da mudança social e da construção social das realidades individuais. Na realidade uma leitura do trabalho de Goffman poderia sugerir que, como conceito formal, a estigmatização capta mais uma relação de desvalorização do que um atributo fixo. Mesmo assim, o fato de que a estrutura de Goffman tenha sido utilizada em muitas pesquisas sobre HIV/Aids como se o estigma fosse uma atitude estática e não um processo social em constante mutação limitou seriamente as maneiras pelas quais se têm abordado a estigmatização em relação ao HIV/Aids (PARKER E AGGLETON, 2001). Diante do exposto, enquanto categoria analítica, o estigma aqui se apresenta não tanto como coisas ou disposições psicológicas da parte dos indivíduos, mas como processos sociais ligados às estruturas culturais e ao funcionamento da sociedade mais ampla. Entender o estigma reproduzido no terreiro requer uma compreensão sobre as práticas culturais em sua dimensão sócio-histórica, que nortearão os processos de negociações, manipulações, escolhas e decisões no convívio com o HIV/Aids nos terreiros. As noções mais amplas de poder e dominação ajudam a entender o papel central do estigma na produção e reprodução das relações de poder e de controle no âmbito dos sistemas sociais. Faz com que alguns grupos sejam desvalorizados e que outros se sintam, de alguma forma, superiores. Nessa perspectiva, a identidade social estigmatizada destrói atributos e qualidades do sujeito, exerce o poder de controle das suas ações e reforça a deterioração da sua identidade social, enfatizando os desvios e ocultando o caráter ideológico dos estigmas. A sociedade impõe a rejeição, leva à perda da confiança em si e reforça o 102 caráter simbólico da representação social segundo a qual os sujeitos são considerados incapazes e prejudiciais à interação sadia na comunidade. Fortalece-se o imaginário social da doença e do "irrecuperável", no intuito de manter a eficácia do simbólico. Os estudos mais influentes de Foucault como Vigiar e Punir (1977) e A História da Sexualidade (1988) enfatizam as relações entre cultura e conhecimento, poder e noções de diferença. O autor analisa o que ele define como novo regime de conhecimento/poder que caracterizou as sociedades européias modernas durante o final do séc. XIX e início do séc. XX. Dentro desse regime, a violência física ou a coerção foram dando espaço ao que ele descreveu como “sujeição”, ou controle social exercido não através da força física, mas pela produção de sujeitos adestrados e corpos dóceis. Ele explicou como a produção da diferença (o que Goffman define como desvio) está ligada aos regimes estabelecidos de conhecimento e poder. Assim, o chamado excêntrico é necessário para a definição do natural, o anormal é necessário para a definição da normalidade, e assim por diante. Ao se deter em questões similares àquelas examinadas por Goffman (por exemplo, a psiquiatria e os doentes mentais, a sexologia e os desviantes sexuais ou “pervertidos” etc.), Foucault enfatiza mais claramente a produção cultural da diferença a serviço do poder. Embora a obra de Goffman sobre o estigma não priorize a noção de poder, e a obra de Foucault sobre o poder não se preocupe com a questão do estigma em si, quando aproximamos as duas concepções, inevitavelmente, percebe-se uma semelhança no modo de ver a questão da estigmatização culturalmente construída (ou seja, a produção da diferença valorizada negativamente), apresentando-se como central para o estabelecimento do poder e, portanto, para a manutenção da ordem social. Embora a análise de Foucault tenha se detido no “mundo moderno”, formado no Ocidente industrializado, e nos sistemas de conhecimento presentes nesse contexto histórico e cultural específico, a sua ênfase sobre a produção cultural de diferenças pode ser expandida para a análise de ambientes sociais muito diversos por meio do foco sobre aquilo que Geertz (1997) descreveu como sistemas de “saber local”. Da mesma maneira que Foucault demonstrou o caminho pelo qual as formas de elite do conhecimento (psiquiatria, demografia e outras) ajudam a constituir diferenças em sociedade complexas, as formas de conhecimento mais localizadas ou populares (crenças religiosas, por exemplo) também produzem diferenças em ambientes sociais de menor escala (Geertz, 1997), podendo ainda ser estendido à compreensão da relação entre ambos. No cenário dos terreiros de Umbanda em Fortaleza, com o advento do HIV/Aids, a partir dos anos 80, um novo desafio se estabelece na comunidade dos terreiros e nas 103 trajetórias individuais das pessoas afetadas pela doença que desde idade tenra participam dessa prática religiosa. Nossa pesquisa tem a preocupação de perceber a reprodução do estigma em relação ao HIV/Aids, seus efeitos no contexto estudado e seus possíveis meios de superação. Entender o estigma como construído no ponto de intersecção entre cultura, poder e diferença permite o uso de outras ferramentas analíticas através das quais podemos avançar no entendimento dos modos pelos quais a estigmatização opera. A esse respeito, a noção de violência simbólica (Bourdieu, 1983; Bourdieu & Passeron, 1982) descreve o processo pelo qual os sistemas simbólicos (palavras, imagens e práticas) promovem os interesses dos grupos dominantes, bem como distinções e hierarquias entre eles, ao mesmo tempo em que legitima essa escala ao convencer os dominados da aceitação das hierarquias existentes. Portanto, se todos os significados e práticas culturais englobam interesses e sinalizam distinções sociais entre indivíduos, grupos e instituições, então, poucos significados e práticas o fazem tão claramente quanto o estigma. No que se refere ao HIV/Aids, desde o início da epidemia mobilizou-se uma série de metáforas poderosas em torno da doença que serviram para legitimar a estigmatização. Elas incluem a Aids vista como morte, a Aids vista como horror (onde os infectados são endiabrados e temidos), a Aids como punição (pelo comportamento imoral) e a Aids como o outro (que aflige os que estão à parte). Como define Treichler (1988), o HIV poderia ser descrito como uma epidemia de significação, na qual o uso da linguagem nunca é simplesmente neutro, e serve aos interesses de poder de diversas maneiras. De fato, o estigma opera não somente em relação à diferença (como apontam nossas leituras de Goffman e Foucault), mas até mais claramente em relação às desigualdades sociais e estruturais. É possível ver a estigmatização desempenhando um papel chave na transformação da diferença em desigualdade, e pode funcionar, em princípio, em relação a qualquer dos eixos principais da desigualdade estrutural interculturalmente presente: sexo, orientação sexual, gênero, raça ou etnia, classe social, religiosa, etc. Outro fator importante é entender os múltiplos olhares sobre as Pessoas Vivendo com HIV/Aids (PVHA) e as conexões entre os conceitos de saúde e doença, vida e morte. Com relação ao estigma sexual, ele é o primeiro desses domínios a se tornar visível, uma vez que a infecção do HIV tem sido intensamente associada à transmissão sexual, tendo o seu impacto inicial em populações cujas práticas e/ou identidades sexuais eram de alguma maneira fora dos padrões hegemônicos existentes. A associação do HIV/Aids 104 à homossexualidade, e depois a outras formas de estigmatização como a prostituição, a promiscuidade e o desvio sexual (diferença sexual), marca amplamente toda a história da epidemia e continua a funcionar ainda hoje. A estigmatização sexual, por sua vez, tem sido fortemente associada ao estigma relacionado a gênero como outro elemento importante associado ao HIV/Aids. Em muitas sociedades onde a Aids afetou as mulheres, tal fato passou a ser tipicamente associado a um comportamento sexual considerado inadequado em relação às normas de gênero locais. A prostituição, relacionada à transmissão heterossexual, é entendida como uma expressão da promiscuidade e do comportamento feminino fora dos padrões da normalidade. A estigmatização baseada em raça ou etnia também interage com o estigma associado à Aids. As convicções racistas de muitos dos primeiros discursos sobra a Aids foram evidenciadas tanto em relação aos haitianos nos EUA quanto em declarações espantosas sobre a sexualidade africana típicas dos primeiros anos de epidemia. A experiência de marginalização causada pelo racismo e discriminação étnica contra as populações minoritárias, a exemplo dos afro-americanos e latinos nos EUA, vem sendo intimamente ligada à sua vulnerabilidade diante da epidemia. Quanto ao estigma relacionado à pobreza, muitas vezes associada com a opressão racial, se tornou um dos fatores de maior vulnerabilidade relacionada à infecção pelo HIV. O fato do aumento dos casos entre pessoas de baixa renda auxilia na discriminação relacionada à doença. Por conseguinte, a conjunção de tais fatores auxiliados pela escolha da prática religiosa umbandista marca o sujeito homossexual, preto, pobre, macumbeiro e portador de HIV. O estigma e as marcas dessa trajetória serão explanados no convívio com o HIV/Aids nos terreiros em Fortaleza. Pessoas vivendo com HIV/Aids têm sido (e continuam a ser) vistas como infames em muitas sociedades. Onde a Aids está associada a grupos minoritários, ou comportamento desviantes, como por exemplo no caso da homossexualidade, a infecção por HIV/Aids pode ser ligada a noções de “perversão” e pode gerar punição e até violência física (Mejia, 1988; Daniel & Parker, 1991). Especialistas apontam que o estigma em relação ao HIV/Aids dificulta a prevenção e o tratamento da doença, uma vez que as pessoas não se identificam com o problema e passam a ocultar (ou temer) a possibilidade de estar infectado (o que provoca o diagnóstico tardio) ou, quando isso já aconteceu, a possibilidade de enfrentar o tratamento. De Bruyn (1999) identifica cinco fatores que contribuem para o estigma da Aids: primeiro, o fato de que a Aids é uma doença ameaçadora à vida; segundo, o fato de que as 105 pessoas têm medo de contrair o HIV; terceiro, a associação do HIV e da Aids a comportamento já estigmatizados em muitas sociedades, tais como sexo entre homens e o uso de drogas injetáveis; quarto, o fato de que as pessoas com HIV/Aids são frequentemente consideradas responsáveis por terem contraído a doença; e quinto, as crenças religiosas ou morais que levam as pessoas a concluirem que ter HIV/Aids seja o resultado de uma falha moral (tal como a promiscuidade ou o “desvio” sexual) que merece punição. Ora, se remetermos à relação do estigma com a doença e, sobretudo, com a doença transmissível, podemos perceber que ela é uma característica antiga que acompanha a espécie humana, muitas vezes tida como estratégia de enfrentamento da “ameaça”. Em especial, podemos destacar a própria concepção mágico-religiosa que parte do princípio de que a doença resulta da ação de forças alheias ao organismo que neste se introduzem por causa do pecado ou de maldição. Scliar (2007) exemplifica o caso da lepra, uma doença contagiosa que sugere, portanto, contato entre corpos humanos, contato que tinham conotações pecaminosas. “O levítico detém-se longamente na maneira de diagnosticar a lepra; mas não faz uma abordagem similar para o tratamento. Em primeiro lugar, porque tal tratamento não estava disponível; em segundo, porque a lepra podia ser doença, mas era também e, sobretudo, um pecado.” (SCLIAR MOACYR, 2007:31). Nota-se, portanto, que as concepções de doença (e saúde) são histórica e socialmente construídas, e as relações com o estigma muitas vezes estão relacionadas à ausência da cura e, consequentemente, à ameaça da morte. No campo político, o modelo social democrático institui a necessidade de se constituir um conceito de saúde universalmente aceito. Para tanto, é criada a Organização Mundial da Saúde (OMS) como órgão integrante das Organizações das Nações Unidas (ONU). Em 7 de abril de 1948 (desde então o Dia Mundial da Saúde), a OMS divulga em sua carta de princípios o conceito de saúde, implicando-o como direito universal à vida plena, sem privações, e a obrigação do Estado na promoção e proteção da saúde. Diz o conceito: “Saúde é o estado do mais completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de enfermidade” (OMS, 1948). No que se refere ao estigma relacionado ao HIV/Aids, há de se considerar em sua análise as contradições do fazer biológico, social e político. Uma vez que ainda não existe a cura científica para a doença; as vivências sociais discriminatórias remontam à herança de um passado preconceituoso em relação às doenças transmissíveis e sem cura; e no plano ideológico das políticas públicas, os alcances e as incompletudes de suas determinações. Parker e Aggleton (2001) chamam atenção para o entendimento da estigmatização da Aids no universo da economia política da exclusão social no mundo contemporâneo. Para 106 fazê-lo, os autores afirmam que é imperativo situar historicamente a análise do HIV/Aids e observar que a epidemia se desenvolveu durante o período de rápida mudança social que costuma ser descrito como globalização. A reestruturação radical da economia mundial, intensificada no final dos anos 70 até hoje, tem sido contextualizada em meio ao capitalismo informacional (ver em Castells, 1999a, 1999b, 1999c). As transformações vêm se caracterizando por processos rapidamente acelerados de exclusão social, juntamente com uma interação intensificada entre o que é descrito como forma “tradicional” e “moderna” da exclusão. Dentre os processos mais vívidos descritos pelas pesquisas recentes encontra-se o rápido aumento da feminização, da pobreza e da bipolarização entre ricos e pobres. As novas formas de exclusão, associadas à reestruturação econômica e às transformações globais, ainda reforçam em todos os lugares as desigualdades e exclusões preexistentes, tais como o racismo, a discriminação étnica e os conflitos religiosos. Esta interação intensa entre as formas múltiplas de desigualdade e exclusão oferece um modelo geral para uma reflexão sobre o estigma relacionado ao HIV/Aids. Por outro lado, trabalhos recentes sobre a transformação do sistema global e da economia política do informacionalismo do séc. XXI têm enfatizado a natureza da identidade “mutante” característica dos novos tempos (Hall, 1990). Isso, por sua vez, torna possível começar a teorizar a mudança das construções de identidade(s), inclusive aquela relacionada à experiência de opressão e estigmatização, permitindo a recuperação, e até reposição, da visão original de Goffman (1988), de quase 30 anos atrás, relativa ao impacto do estigma na construção de um tipo de identidade deteriorada. Castells (1999b) define identidades legitimadoras, apresentadas pelas instituições dominantes da sociedade para entender e racionalizar a sua dominação vis-à-vis os atores sociais; identidades de resistências, geradas pelos atores que estão em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação; e, identidades de projeto formadas quando os atores sociais, com base nos materiais culturais a que têm acesso, constroem uma nova identidade que redefine a sua posição na sociedade e, por assim fazê-lo, buscam a transformação da estrutura social como um todo (CASTELLS, 1999b:24). Certamente, a produção das identidades reproduzidas no contexto da Umbanda se aproxima, sobretudo, das “identidades de resistências” definidas por Castells (1999b), uma vez que, historicamente, a religião se configura na “contramão” (embora se considere o fenômeno do sincretismo religioso) dos parâmetros religiosos hegemônicos no país. No entanto, há de se observar os aspectos da produção cultural interna e suas experiências sociais 107 que constroem e redefinem novas perspectivas diante da estrutura social, política e econômica mais ampla. No caso de nossa pesquisa, refletimos como as ações de acolhimento e participação político-solidária no convívio com o HIV/Aids em terreiros de Umbanda na cidade de Fortaleza possibilitam a reconfiguração de identidades deterioradas, marcadas pelo estigma. Portanto, consideramos o processo de (re)construção dessa(s) identidade(s) marcadas na biografia e nas narrativas cotidianas das Pessoas Vivendo com HIV/Aids, que são compartilhadas por pais e mães de santo, militantes e demais pesquisadores da questão, cuja presença, inclusive, é significativa no espaço investigado. Neste sentido, cabe retomar a experiência de Turner (1971) em seu estudo sobre a vida social dos Ndembu em suas aldeias, no qual vislumbra o caráter dinâmico do processo social vivenciado pelas aldeias africanas diante das mudanças estruturais mais amplas por que passava o continente em questão: (...) enquanto havia claramente um “vento de mudança” econômica, política, social, religiosa, legal, e assim por diante varrendo toda a África central e originando-se fora de todas as sociedades aldeãs. Os funcionalistas do meu período tenderam a pensar na mudança como “cíclica” e “repetitiva” e no tempo como estrutural e não livre. Com a minha convicção quanto ao caráter dinâmico das relações sociais, eu via movimento tanto quanto estrutura, persistência tanto quanto mudança e, na verdade, persistência enquanto um notável aspecto de mudança. Vi pessoas interagindo e, dia a após dia, vi as conseqüências de suas interações. Comecei então a perceber uma forma no processo do tempo social. E esta forma era essencialmente dramática. Aqui, minha metáfora e meu modelo eram uma forma estética humana, um produto da cultura e não da natureza... (TURNER, 1971:27). Enquanto realidade processual, continuamente negociada e vividamente expressa nos relatos dos portadores de HIV e demais membros da comunidade dos terreiros, as práticas em saúde no convívio com o HIV/Aids revelam relações com a estrutura social mais ampla em meio às ações/atitudes estabelecidas no cotidiano dos adeptos da Umbanda. E é neste contexto que se revelam as formas de lidar e/ou reproduzir o estigma (ou a identidade deteriorada) frente ao HIV/Aids, bem como os meios possíveis de sua superação. No contexto dos terreiros de Umbanda em Fortaleza, percebe-se que os episódios de conflitos presentes nas relações estigmatizadoras também costumam ser atenuados com ações de acolhimento e aprendizado religioso realizadas por pais e mães de santo durante os rituais de cura e no próprio cotidiano dos adeptos. O conhecimento de uma longa tradição, o exercício da escuta e do aconselhamento, a disponibilidade de tempo e energia para o acompanhamento no tratamento diminuem as distâncias entre o enfermo e o cuidador, entre o enfermo e a comunidade do terreiro. Por outro lado, os indivíduos afetados pela doença também se fortalecem através de grupos de auto-ajuda e na militância na luta contra a Aids, 108 muitas vezes, fortalecida pelas ações da Rede de Terreiro e pelo próprio Estado, levando suas experiências e ações político-solidárias para dentro do terreiro. Assim, os adeptos afetados pelo HIV/Aids constroem novas identidades, redefinindo por meio dos “dramas sociais” suas posições e relações na comunidade a que pertence. As experiências de convivência com a problemática do HIV/Aids nos terreiros de Umbanda em Fortaleza instigam a análise sob o prisma da criação e reprodução dos “dramas sociais” (TURNER, 1971). Segundo a concepção da análise simbólica do autor, os dramas sociais são unidades de processo anarmônico ou desarmônico que surgem em situações de conflito e que podem ser observáveis em quatro fases de ação pública, que são: 1. A ruptura de relações sociais formais, regidas pela norma, ocorre entre pessoas ou grupos dentro do mesmo sistema de relações sociais... Tal ruptura é sinalizada pelo rompimento público e evidente, ou pelo descumprimento deliberado de alguma norma crucial que regule as relações entre as partes... Em um drama social, não se trata de um crime, embora formalmente, possa parecer muito com um; é, na realidade, utilizando os termos de Frederick Bailey, um “estopim simbólico de um confronto ou embate”... 2. Após a ruptura de relações sociais formais, regidas pela norma, vem uma fase da crise crescente, durante a qual – a não ser que a ruptura possa ser rapidamente isolada dentro de uma área limitada de interação social – há uma tendência de que a ruptura se alargue, ampliando-se até se tornar tão coextensiva quanto uma clivagem dominante no quadro mais amplo de relações sociais relevantes ao qual as partes conflitantes ou antagônicas pertencem. Atualmente é comum se falar a respeito disso como a “escalada da crise”... Este segundo estágio, a crise, é sempre um daqueles pontos de inflexão ou momentos de perigo e suspense, quando se revela um verdadeiro estado de coisas, quando é menos fácil vestir máscaras ou fingir que não há nada de podre na aldeia... Cada crise pública possui o que eu chamo de características liminares, uma vez que se trata de um liminar entre fases relativamente estáveis do processo social, embora não seja um “limen” sagrado, cercado por tabus e afastado dos centros da vida pública. Pelo contrário, ele assume seu aspecto ameaçador dentro do próprio fórum e, por assim dizer, desafia os representantes da ordem a lidar com ele. Não pode ser ignorado ou desprezado. 3. Isto nos leva à terceira fase, a ação corretiva. No intuito de limitar a difusão da crise, certos “mecanismos” de ajuste e regeneração (e aqui tomo emprestada alegremente uma metáfora da física), informais ou formais, institucionalizadas ou ad hoc, são rapidamente operacionalizados por membros de liderança ou estruturalmente representativos do sistema social perturbado. Os tipos e a complexidade de tais mecanismos variam de acordo com fatores como a profundidade e a importância social compartilhada da ruptura, a inclusividade da crise, a natureza do grupo social no qual ocorreu a ruptura e o grau de sua autonomia no que se refere a sistemas de relações sociais mais amplos ou externos. Eles podem abranger desde conselhos pessoais e mediação ou arbitragem informal até mecanismos legais e jurídicos formais, e, solucionar certos tipos de crises ou legitimar outras formas de resolução, a performance de ritual público... 4. A última fase que ressalto consiste seja na reintegração do grupo social perturbado ou no reconhecimento e na legitimação social do cisma irreparável entre as partes em conflito... (Grifos do autor. TURNER,1971:33-37). 109 Turner (1971) ainda afirma que do ponto de vista do observador científico, a quarta fase – aquela do clímax, solução ou resultado temporário – é uma oportunidade para se fazer o balanço. Destaca que a natureza e a intensidade das relações entre as partes, e a estrutura do campo total, ter-se-ão modificado. Pode-se descobrir que oposições tornaram-se alianças, e vice-versa. Relações assimétricas podem ter-se tornado igualitárias. A proximidade terá se transformado em distância, e vice-versa. Partes anteriormente integradas ter-se-ão segmentado, partes anteriormente independentes ter-se-ão fundido. Algumas partes não mais pertencerão ao campo, outras o terão adentrado. Novas normas e regras terão sido geradas durante tentativas de remediar o conflito, velhas regras terão caído em descrédito e sido abolidas. Alguns componentes do campo terão menos sustentação, outros mais, e outros terão ainda um novo apoio, enquanto alguns não terão nenhum. A distribuição dos fatores de legitimidade terá mudado, assim como as técnicas utilizadas pelos líderes para conquistar anuência. Essas mudanças podem ser observadas, averiguadas e registradas (TURNER, 1971:37). A seguir, serão explanados os dramas sociais constituídos no convívio com o HIV/Aids nos terreiros de Umbanda em Fortaleza. 110 CAPÍTULO 3 RECONSTITUIÇÃO DA PESQUISA: DRAMAS SOCIAIS EM QUESTÃO 111 RECONSTITUIÇÃO DA PESQUISA: DRAMAS SOCIAIS EM QUESTÃO Este capítulo tem como foco o olhar sobre a constituição das relações sociais entre os praticantes de Umbanda portadores de HIV, pais e mães de santo e militantes da luta contra Aids com atuação nos terreiros. O objetivo é compreender com se configura o estigma no cotidiano dos sujeitos pesquisados no convívio com o HIV/Aids, considerando a (re)produção dos dramas sociais vivenciados pela comunidade em questão. Para tanto, apresento inicialmente o tópico Diversidade sexual nos terreiros: proteção e relações de poder. Contextualizar as relações de proteção e poder no convívio com a diversidade sexual nos terreiros, que antecedem ao advento da Aids, torna-se importante na medida em que, atualmente, a maior incidência de HIV/Aids nos terreiros acontece entre jovens homossexuais que se apresentam como protagonistas no enfrentamento da epidemia nos terreiros. O tópico seguinte Revelação da Soropositividade: Ruptura e Crise nos Terreiros de Umbanda têm por objetivo compreender as vivências dos sujeitos e os aspectos estigmatizantes de suas experiências, no sentido de entender a produção de uma identidade deteriorada a partir da descoberta de sua condição de sorologia e do processo de revelação diante da comunidade do terreiro. Finalmente, no tópico Acolhimento e Participação: Mediação e Reintegração nos Terreiros será abordado o processo de reconfiguração das identidades dos sujeitos afetados pelo HIV/Aids a partir dos dramas sociais estabelecidos com a comunidade religiosa a que pertence. O objetivo é perceber como o processo de acolhimento e aprendizado religioso conduzidos por pais e mães de santo e a intervenção político-solidária de militantes da luta contra a Aids auxiliam da construção destas novas identidades. 112 3.1- DIVERSIDADE SEXUAL NOS TERREIROS: PROTEÇÃO E RELAÇÕES DE PODER A presença da diversidade sexual nos terreiros é um fato e existe anteriormente ao advento da Aids. Ela se mantém e se fortalece na religião. Aliás, raras são as religiões que permitem as relações homossexuais (ou homoafetivas 50 ) abertamente quanto a Umbanda, sejam elas entre gays 51 ou entre lésbicas. A própria orientação sexual de pais e mães de santo contribui para a manutenção e proteção destas relações nos terreiros. Ao analisar a questão do gênero nos cultos afro-brasileiros, Birman (2008) aponta a multiplicidade da noção de pessoa presente no Espiritismo, na Umbanda, no Candomblé, na Jurema e em várias declinações no campo da mediunidade e da possessão que adota diferentes maneiras desta concepção na relação com o universo, e que se difere da concepção de unidade substancial cristã, baseada à imagem e semelhança de Deus, que classifica como desvios e pecados as diferenças que perturbam essa unidade. Segundo a autora: A experiência subjetiva da idéia de uma pessoa múltipla é a idéia que você se constitui como pessoa de alguma maneira aceitando que dentro de você é capaz de ouvir, de dialogar, de exteriorizar, de interiorizar, de ver como complementar, às vezes, ver como contraditório várias vozes, vários entes que estão nessa relação íntima, exterior, interior com você. Ou seja, uma percepção de si que de alguma maneira nos remete à uma complexidade muito grande do que é esse humano. Uma coisa é dizer que eu sou só a imagem de Deus, outra coisa é dizer que eu mantenho uma relação interior, exterior, múltipla, complexa, contraditória, ambivalente de aceitação, de negação e de negociação com vários entes que são de certa maneira meus, mas não somente meus, que são meus mas que eu estou em relação com. (BIRMAN, 2008:52). Neste sentido, o campo subjetivamente considerado na Umbanda oferece de um lado muitas possibilidades de vida para as pessoas que vivem no campo dessa experiência 50 O termo homoafetividade é sugerido pelo Movimento LGBTT (Lésbicas, gays, bissexuais e travestis e transexuais) como alternativa ao termo homossexualdidade, visando ressaltar o caráter afetivo entre pessoas do mesmo sexo, evitando, assim, possíveis conotações homofóbicas sugeridas pelo termo substituído, que ressalta apenas as relações sexuais. 51 Etimologicamente, o termo gay é mais utilizado para se referir aos homossexuais masculinos, sua origem vem dos EUA, tendo como sinônimo alegre, divertido. Porém, a dimensão que este termo tomou não se traduz somente com este significado, nele, também está inserido um conjunto de fatores que tem constituído as identidades homossexuais (Ver em LOIOLA, 2009). 113 subjetiva e também muitas dificuldades, muitas dificuldades exploratórias, às vezes muitas alegrias e às vezes também muitos sofrimentos. As relações de gênero 52 podem ser percebidas a partir destas experiências. Para nós, considerando que a maior incidência de HIV/Aids nos terreiros acontece entre jovens homossexuais e que estes se apresentam como protagonistas no enfrentamento da epidemia nos terreiros, achamos pertinente explanar as relações de proteção e poder previamente estabelecidas entre estes indivíduos no território pesquisado. Os adeptos da Umbanda aqui pesquisados mantêm relações profundas com a religião, que podem se iniciar desde a infância por meio de incentivo dos seus familiares. Durante a investigação, percebemos a participação de crianças nas giras, tocando atabaque e dançando, ou nos rituais de batismos. Outros são convidados por amigos ou namorados que já freqüentavam o ambiente. Nestes casos, a presença vai ficando cada vez mais constante, até participarem do ritual de iniciação propriamente dito. Pai Cleilton, narra às aproximações e distanciamentos em relação à religião, até o momento em que resolveu se dedicar em definitivo: Desde criança a Umbanda me chamava atenção, através da minha vó. Eu lembro que na época eu ficava batendo maracá na festa de Iemanjá. Fomos pra praia com o terreiro que minha avó freqüentava e no término do dia pra dar continuidade das obrigações eu não pude ir porque ia ter um “cruzo” e criança não podia participar, e isso ficou guardado na minha memória. Com o tempo, ela se afastou da religião e eu me afastei automaticamente. Na adolescência, vez ou outra quando eu descobria uma casa eu ia escondido porque ela não permitia... por medo, receio, pelos próprios traumas dela, porque até hoje eu não sei porque ela se afastou da religião. Quando foi em 96/97 eu fui convidado pra uma festa através de um colega pra festa de um companheiro dele que era pai de santo. E quando fui me encantou... pelo ritual, pelas pessoas, já era bem diferente de quando eu era criança, adolescente, porque eu já era adulto. E neste primeiro momento, nesta casa, tive manifestações das entidades e em uma conversa com o pai de santo ele disse que eu tinha que desenvolver, e acabei ficando. (PAI CLEILTON, 2010) Alexandre de Ogum, filho de santo de Mãe Constância, por ser evangélico, teve vários momentos de conflitos com a Umbanda. Até que o convívio com seu namorado e as visitas constantes ao terreiro diminuíram o preconceito e facilitaram sua conversão a Umbanda e, posteriormente, ao Candomblé. Alexandre de Ogum fala sobre seu processo gradual de admiração e encantamento pela religião: 52 Sobre relações de gênero no Candomblé vem em LANDES, Ruth. The City of Women. Albuquerque, University of New Mexico Press, 1994. 114 Eu tive contato com a Umbanda pela primeira vez através de um ex-companheiro, que eu comecei a namorar e ele era da religião. No início eu não aceitava porque eu era evangélico há 17 anos. Isso me deu muitos problemas. Mas, através dessa pessoa eu vim conhecer realmente o que era a Umbanda. Frequentei o primeiro dia, comecei a gostar e comecei a me identificar com a religião. Posteriormente, eu adentrei no candomblé. (...) Eu tinha incutido que Umbanda e Candomblé era a mesma coisa, e era coisa do satanás. Que lá só faziam rituais macabros, pra matar e destruir... é isso que é incutido na cabeça das pessoas. Quando eu conheci essa pessoa eu nem queria saber dele por que ele era daquela religião. Aí numa festa GLS, que era muito tradicional em Fortaleza, a gente acabou se conhecendo e conversando. Nessas conversas ele me disse que era da Umbanda e eu disse que já sabia. Mas, por já está encantado por ele, essa parte já não importava mais. Então, comecei a querer ir aos terreiros. E todas às vezes ele me dizia não. Que não queria me ver nesse mundo da Umbanda... Hoje eu entendo... Por que ele me dizia que tinha que ter raça e determinação, como tudo que se entra nessa vida. E no candomblé tem que ter sangue no olho. Tem que ter aquela força pra estar ali dentro. Fácil é entrar, difícil é sair! Na época, ele era filho de santo de Mãe Constância de Ogum. Em um dos dias eu disse que queria ir e pronto. Na primeira vez, eu cheguei mesmo no quente! Numa gira de Exus. Foi o primeiro contato que tive com a Umbanda. Estavam fazendo a matança pras entidades, as obrigações, e aquilo me amedrontou muito. Meu namorado estava incorporado com uma entidade, com a Maria Chaveiro. E eu vi aquela situação da cabra está com a cabeça cortada, a entidade chupando o sangue da cabra... e tudo aquilo vinha na minha cabeça como uma situação macabra, que aquilo tudo só podia ser pra fazer mal a alguém. Então, a entidade chegou perto de mim e disse: --- tá se tremendo, né? Mas, isso vai passar. E tudo isso aqui você vai fazer parte. Eu realmente fiquei com muito medo, fiquei todo amedrontado. Mas, passando aquele impacto inicial eu passei a observar e a admirar. De outra vez, eu já queria ir de novo. Aí passei a freqüentar, queria estar participando. Era cambonar, ficava auxiliando ele. Então, ia a vários terreiros. E, ninguém via o Júnior se o Alexandre não estivesse perto dele. (ALEXANDRE DE OGUM, 2012). A inserção dos adeptos e as formas de sociabilidade nos terreiros acontecem, sobretudo, por meio das famílias-de-santo 53 , sendo responsável pela rede de relacionamentos e pelos referenciais sociais instituídos. É através da permanência e valorização da tradição na religião, que pais e mães de santo mantém a complexidade de seu sacerdócio, além de estabelecer a proteção e as relações de poder no cotidiano de seus filiados. Para tanto, o filho de santo, independente da sua orientação sexual, necessita conhecer bem as regras e respeitá- las a partir da hierarquia instituída em sua comunidade. Os pais e mães de santo têm a responsabilidade pelos cuidados, orientações, obrigações religiosas na busca do bem-estar físico, psíquico e social na lida com o sobrenatural, com as energias, com o cumprimento das regras, dos preceitos e dos 53 Em seu estudo sobre maternidade simbólica na religião Afro-brasileira, Cantuário (2009) analisa que as comunidades de terreiros liderados por mães de santo, não há só constituição de laços de parentesco por determinação biológica, embora algumas das famílias-de-santo tenham em seu interior uma forte presença de parentes consangüíneos. A maternidade é de sangue, mas também de santo. Nessas famílias-de-santo conta-se também com a adoção, “os filhos de criação”, ou seja, algo além dos laços de parentesco (CANTUÁRIO, 2009:143). 115 fundamentos. Por ser a liderança mediadora entre as entidades, os filhos de santo e demais simpatizantes, devem total obediência ao pai e mãe de santo. Alexandre de Ogum, fala sobre suas experiências cotidianas, algumas vezes conflituosas, vivenciadas por um filho de santo, na Umbanda ou no Candomblé, em obediência ao seu pai de santo: Quando eu decidi entrar na Umbanda veio à questão de qual a casa eu entraria. Então, comecei a analisar qual o pai de santo, onde seria. Por eu sempre fui muito impetuoso e eu não levo desaforo para casa. Por que tem alguns pais de santo que são grossos com seus filhos de santo, eles batem. O filho de santo deve sempre obediência ao pai de santo. No Candomblé ele estará sempre no chão até completar sete anos. Depois, ele não vai mais precisar estar no chão, de cabeça baixa, sem nunca olhar para o pai de santo. Então, tudo aquilo que ele passou ele quer que outra pessoa passe também. Ora, se ele passou pelas humilhações, se ele deitou no chão, vivia de branco se sujando no chão, vivia nos pés do pai de santo, não podia sentar no banco, nem comer de colher ou prato de vidro, por que iaô não pode comer em prato de vidro, certamente, irá querer que outros passem também. Estando, agora, em seu poder. Na Umbanda acontece também. Então, escolhi Mãe Constância pelo que vi, pelo respeito e consideração que ela tinha com seus filhos de santo, que os filhos de santo tinha por ela, e pelo respeito que ela tinha as entidades que cultuava. (ALEXANDRE DE OGUM, 2012). De maneira geral, cabe aos sacerdotes o fortalecimento do grupo, da família de santo, mediante os laços de inter-relacionamentos entre eles e os adeptos. Como sacerdotes, eles exercem o poder a partir de um conjunto de características diversas, como bondade, abnegação, autoritarismo, rigidez, dedicação, viabilização da relação com seus adeptos. Desse conjunto de características especiais, pode ou não aderir à base da legitimidade e reconhecimento por parte de seus seguidores. Alexandre de Ogum reconhece a importância de uma boa escolha ao pai ou mãe de santo a quem vai se filiar. A confiança no sacerdote é o elemento central destacado por ele para a definição desta escolha: Tinha que ver onde eu me adaptava. Comecei a verificar os prós e os contras... Pra você escolher um pai ou mãe de santo não pode ser só escolhi, não. Ele tem que ser seu amigo, você tem que se identificar com ele. Ele tem que ser parte de você, porque ele vai praticamente comandar a sua vida. Ele quem vai botar a mão na sua cabeça. Você tem que ter completa confiança nele... dele saber tudo de sua vida, de você contar tudo. Hoje eu tenho minha mãe de santo como mãe verdadeira. Eu confesso as coisas muito mais do que eu confesso pra minha mãe biológica. Por que você é quem escolhe. (ALEXANDRE DE OGUM, 2012). 116 As relações de proteção e poder dos pais e mães de santo ao grupo a que pertence nos remetem às perseguições sofridas pelas próprias religiões afro-brasileiras em tempos remotos. Há, portanto, uma preocupação entre os sacerdotes em legitimar a religião e suas especificidades, em especial, o acolhimento aos sujeitos diversos, independentemente de sua orientação sexual, classe, raça e etnia, embora também estejam presentes relações conflituosas no cotidiano dos terreiros. Mãe Constancia admite que a homossexualidade nem sempre foi assumida abertamente nos terreiros e que esta é uma característica dos tempos modernos, interferindo, inclusive, na condução dos rituais. A Umbanda é uma religião muito aberta. No meu tempo mesmo, quando comecei, isto (refere-se às relações e o comportamento homossexual) não era tão aberto. Pra você ter uma idéia só existiam duas mulheres: a Pomba-gira e a Maria Padilha. Aliás, a própria Maria Padilha era meio homem e meio mulher. Hoje, são vários os exus-fêmeas, é mulher pra todo lado (risos). Os homens não podiam se vestir de mulher, embora pudessem incorporar o exu-fêmea. Pai Ricardino, por exemplo, ele tem quase oitenta anos, ele incorpora a pomba-gira, mas jamais se vestiu de mulher. Hoje, não. Eles fazem questão de se enfeitar, de botar purpurina e se vestir de mulher. (MÃE CONSTÂNCIA, 2012). A relação da homossexualidade com a religião, em especial com a igreja cristã, remonta um longo passado de perseguições e castrações quanto à sexualidade. Segundo Loiola (2009), a igreja católica prometeu o paraíso em troca da satisfação plena da sexualidade dos sujeitos, a partir de uma série de estratégias castradoras da vida: confundiu a essência da vitalidade humana, a sexualidade, rotulando-a de perversão, fornicação, bestialidade, pecado, sodomia, heresia, dentre tantos outros atributos. Usou a fogueira e a guilhotina durante a inquisição, posteriormente o celibato e a confissão, decretou e publicou a morte, mas não conseguiu o êxito esperado – eximir a necessidade da satisfação do desejo sexual – muito embora tenha produzido subjetivamente uma sexualidade extremamente negativa (LOIOLA, 2009:44). A intencionalidade da igreja cristã, ainda presente nos dias atuais, desqualifica os desejos sexuais. A inibição do prazer sexual, a condução de sexo somente procriativo, a determinação da dualidade entre os homens e as mulheres, a fixação do estabelecimento de papéis sexuais e sociais elimina, portanto, possibilidades da diversidade sexual, pois diante da socialização dos sujeitos no mundo é dada somente a alternativa binária dos sexos. 117 Por outro lado, a ideologia do Estado moderno, burguês, autoritário toma os princípios moralistas defendidos pela igreja e imprime com o suporte da família o machismo, a binaridade dos sexos, o puritanismo, a “moral e os bons costumes”. Desta forma, a igreja – desde o longo período da Idade Média e o Estado – na modernidade e a família – numa perspectiva transversal, constituem os principais instrumentos institucionalizadores para o efeito cristalizador da ética e da moral vigente. Negam, portanto, qualquer das manifestações subjetivas da sexualidade – as homossexualidades- gays e lésbicas, - os transgêneros – transexuais e travestis, os bissexuais dentre outros componentes da diversidade sexual, mesmo assim não conseguem eliminá-las (LOIOLA, 2009:48). O fortalecimento do movimento homossexual pela autoaceitação, a elevação da autoestima, e a consideração de si como agente de sua história acontece, sobretudo, em meados nos anos 70, após o levante de 1969, nos Estados Unidos, em Nova York no bar Stonewall, após massacre de homossexuais pela polícia. Com a união do Movimento de Libertação Feminina, foi criado o Dia do Orgulho Gay. Esse movimento deu continuidade a uma grande jornada para a organização de gays, lésbicas e travestis do mundo todo, de modo que a construção de uma identidade, bem como o fortalecimento dessas categorias inseridas num contexto eivado de muito preconceito, resultou de várias estratégias de resistências, incluindo até mesmo a luta pela sobrevivência. No Ceará, o movimento homossexual também trava suas lutas desde um longo período, e os embates com a sociedade patriarcal, machista e homofóbica são evidentes. No entanto, alguns de seus militantes, ou mesmo sujeitos comuns cuja orientação sexual é a homossexual, encontram refúgio no universo religioso da Umbanda. Embora o convívio coletivo cotidiano seja permeado por tensões e contradições, fruto desta herança histórica arraigada pelo preconceito e discriminação contra os homossexuais, no ambiente dos terreiros os homossexuais encontram o espaço adequado para “sair do armário”, ou seja, encontram o espaço favorável para o desenvolvimento de idéias e ações positivas quanto a sua homossexualidade. O reflexo público desta interação pode ser registrado, durante a realização da Parada pela Diversidade Sexual de Fortaleza, em 2011, onde diversos pais e mães de santo abriram oficialmente o evento com participação de milhares de pessoas, conforme vimos anteriormente. No âmbito interno da Umbanda, a interação entre a homossexualidade e as práticas religiosas mostra-se fortemente durante a incorporação das entidades no terreiro, 118 comumente representada pelos exus-femininos. No entanto, é no processo educativo e doutrinário onde são estipulados os limites e as fronteiras de aceitação destas relações. Através da própria caracterização e incorporação das entidades no terreiro, utilizando-se das representações simbólicas, o sacerdote encontra o caminho necessário para atenuar os possíveis conflitos entre a personalidade do adepto e a personalidade das entidades, num encontro onde se configuram experiências individuais e coletivas, incluindo àquelas relacionadas às relações homossexuais. Alexandre de Ogum relata sobre a aceitação da Umbanda e do Candomblé em relação ao público homossexual; de como o terreiro, através de seu processo doutrinário, estipula os limites e a aceitação da caracterização das entidades a serem incorporadas por ele; e ainda, a perspectiva de como a própria entidade percebe e respeita o adepto que vai lhe incorporar: A homossexualidade, o gay, falando mais grosseiramente, traz o glamour para a Umbanda e para o Candomblé. Por que ele dá aquele charme, faz aquelas coisas todas, traz o brilho. E a Umbanda, hoje, e o Candomblé têm uma aceitação muito grande de homossexuais, gays e lésbicas, pelo fato de não usar a religião como discriminação. Claro, que homem é homem. Independente do que ele veste ou deixa de vestir, se é saia ou calça. Por que para as entidades ele é homem. Ele tem que agir na hora que ele está incorporado como um homem. E se for uma pomba-gira ele age como uma mulher, independente. Por que naquele momento não somos nós, é a entidade. Se ela for mulher tem que agir como mulher. Agora, isso depende muito da educação que se recebe no terreiro, da doutrina da casa quando a pessoa passa a incorporar a entidade. A doutrina da casa é que estipula o que é permitido, se pode botar vestido, saia, batom, salto, etc. Vai depender da educação da casa. No meu caso, a minha entidade não permite que se passe maquiagem, não bota saia. Por que na casa de Mãe Constância as entidades mulheres da casa usam o pano nas costas. O máximo que ela faz é usar anéis, pulseiras e brinco pelo fato de eu ter a orelha furada. Mas, me trajar e travestir de mulher, não. É uma mulher feminina com o físico de um homem. Ela age como mulher, pensa como mulher, fala, brinca, mas na realidade o físico dela é de um homem. Então, naquele momento ela faz o que tem que fazer, mas não denigre a imagem do médium que ela está incorporada. (ALEXANDRE DE OGUM, 2012). A homossexualidade, de certo modo, passa a ser percebida como algo natural, que não é estranho às relações sociais vivenciadas nos espaços dos terreiros, principalmente se este espaço for conduzido por um líder espiritual homossexual. Na concepção de Pai Jairo, a homossexualidade é entendida a partir de uma percepção da natureza humana, sendo transmitida geneticamente. Ou ainda, relacionada a questões de espiritualidade, de carmas de vidas passadas. De todo caso, o respeito ao público em questão é uma tônica em seu depoimento, conforme podemos atestar a seguir: 119 Eu acredito que em relação ao homossexual em geral aos homens e mulheres, isso ai vem na genética, é uma coisa que vem neles, desde o começo do mundo existiu isso, existe e vai existir. Eu acredito que a nossa religião é a que mais acolhe essas pessoas. Quem sou eu pra ter preconceitos, né? Creio também que faça até parte até mesmo das energias, encontros, porque nós temos tudo a ver com as energias, nós somos sintonias. E nós temos vidas passadas também, e tudo isso ajuda, né? Você já traz tudo predestinado, você procura alguma coisa no passado que tá concluindo no presente, enquanto matéria. E, em relação aos homossexuais em geral, eu vejo como pessoas, como cidadãos, como pessoas de bem, e como pessoas que necessitam de mais direitos da sociedade. (PAI JAIRO, 2010). Os valores religiosos não estão desconectados da forma como a sociedade se mantém e se reproduz. A presença das forças religiosas não é sempre a presença do medo, da dor, mas também do respeito, da força e da alegria. Assim, a Umbanda guarda relação com as estruturas sociais mais amplas, incluindo a convivência com o grupo homossexual. O ambiente do terreiro, especialmente durante as festas, é muito propício para reencontros e possibilidades de aproximações pela paquera ou namoro. Durante as giras, os adeptos costumam se transfigurar nas entidades de sua afinidade, independentemente do sexo. Isto cria um ambiente de vaidade e admiração. Numa festa em homenagem a pomba- gira Rainha e outros Exus, na casa de Mãe Constância, em setembro de 2010, percebemos a grandiosidade do evento, que proporcionava aos seus adeptos e demais visitantes um momento de grande confraternização e alegria. (Ver em Anexo IX). No momento de preparação para o desfile das entidades, os filhos de santo se reúnem, separadamente, em um quarto tomado por fantasias e enfeites (colares, brincos, Figura 5- Festa no Terreiro de Pai Daniel (2010) 120 lenços, etc.). Enquanto todos aguardavam a gira, os filhos de santo se preparavam em meio às brincadeiras, fofocas e conversas entre os amigos. Enquanto uns falavam sobre a vida de seus conhecidos, outros brincavam com as características das entidades enquanto se vestiam. Em seguida, as entidades desfilavam na gira portando bebidas, cigarros e charutos. Cada uma demonstrando suas características através do vestuário, do linguajar, dos gestos e das gargalhadas. No entanto, o comando sempre estava na figura central da mãe de santo da casa, incorporada pela Exu pomba-gira Rainha. As entidades femininas mais presentes na gira e, na casa em questão, são: a pomba-gira Rainha, a pomba-gira Sete Saias, a Maria Chaveiro, a Maria Mulambo, a Rosa Caveira, a Cigana; já as entidades masculinas, são: o Tranca Rua, o Tiriri, o Sete Encruzinhadas e o exu do Rio. Na linha dos índios se apresentam o Sete Flechas, o Tupinambá, o Rei dos Índios, a índia Iracema, a índia Jurema. Também costumam estar presentes os mestres Zé Pilintra, Nego Gerson, Seu Chico, Cibamba, o Maximiliano. Na linha dos erês, das crianças, se apresentam a Mariazinha, o Joãozinho, Tapuia, a Menina do Maracujá, etc. A Umbanda é uma religião que estabelece uma nova ordem mítica em que negros, índios, pobres, mulheres prostitutas e malandros podem retornar como espíritos, seja como heróis que souberam superar as privações e opressões sofridas em vida, seja como categoria que, através da evolução espiritual, mantém viva a esperança de ocupar espaços de prestígio que a ordem social lhe negou. Este é um importante elo de identificação que faz com que outros sujeitos socialmente excluídos, a exemplo dos homossexuais e portadores de HIV, se aproximem e permaneçam na religião. 121 3.2 - REVELAÇÃO DA SOROPOSITIVIDADE: RUPTURA E CRISE NOS TERREIROS DE UMBANDA. A descoberta da soropositividade é sempre um evento de crise, seja de caráter individual ou coletivo. O sujeito sente-se encurralado por uma situação em que não tem controle, onde sua própria vida torna-se fragilizada por uma condição biologicamente instituída, a contaminação pelo HIV. No plano individual, sobretudo, durante os primeiros anos de convivência com a epidemia da Aids, muitas vezes a ameaça da morte tornou o evento um momento profundamente dramático e de tomada de decisão importante: viver ou morrer. Atualmente, a qualidade de vida do portador de HIV tem melhorado substancialmente, através de tratamentos contínuos de controle por exames das taxas de CD4 54 e a adesão das terapias medicamentosas antiretrovirais mais modernas. No plano social, as relações geralmente são postas em evidência e o convívio passa a ser estabelecido (ou não) pelo grau de tolerância que o outro (ou ambos) vai ter diante da situação. São múltiplos os fatores que determinarão esta tolerância, mas, sem dúvida, a informação e o afeto são elementos substanciais nesta relação. Ao entrevistar as pessoas que vivem com HIV e que são adeptas da Umbanda, percebemos em suas trajetórias de vida as tensões e os conflitos ocasionados após a revelação de sua soropositividade. O ato da revelação individual, geralmente intermediada pelo profissional de saúde, é um momento de grande tensão e embate para o portador do vírus. De certo modo, o momento histórico da descoberta, onde é mais acessível ou não as formas de tratamento e informações, determinam a condução e o aconselhamento do profissional de saúde diante da situação. A descoberta da soropositividade no início da epidemia muitas vezes foi encarada como uma verdadeira sentença de morte. O filho de santo H. B. narra às dificuldades enfrentadas durante a descoberta de sua soropositividade: Na época, em 92, 94, quando a médica disse que ali estava meu exame e eu só tinha três meses de vida... por que foi assim que ela disse pra mim... a médica era clínica geral e na época quem tinha HIV, Ave Maria! Era grupo de risco, era a morte! E o conselho que ela deu foi pra quando sair dali não me jogar debaixo do carro, nem dar um tiro na cabeça quando chegasse em casa. Foi muito difícil pra mim, tive que superar as dificuldades sozinho. Dali até hoje luto na justiça pela medicação. Por 54 Exame usado para avaliar o sistema imunológico de pessoas com diagnóstico de infecção pelo HIV. 122 que se não for eu não é ninguém, porque quem tá lutando pela vida é você mesmo. (H.B., 2010). A. de Ogum, portador do vírus HIV há quinze anos, relata o momento de descoberta de sua soropositividade e o consequente descrédito espiritual que passou a ter após esta revelação: Na época, em 1998, isso era uma coisa horrível, era um bicho de dez cabeças, mesmo assim eu enfrentei, não baixei a cabeça, não chorei, quando eu fui saber o resultado do meu exame a psicóloga queria que eu não fosse pra casa por que eu não estava bem, mas eu disse: --- Não, pode deixar, eu estou bem. Eu sempre enfrentei com naturalidade, apesar de ser uma coisa mortal na época, não tinha mais o que fazer, já estava contaminado mesmo, tinha mais era que me cuidar. Depois, foi quando eu comecei a desacreditar em Deus, deixei de acreditar em tudo, não acreditava em nada... Só depois de seis anos quando conheci J., foi que comecei a namorar com ele e passei a freqüentar a Umbanda. (A. DE OGUM, 2012). A ausência de tratamento levou a morte precoce de muitos portadores de HIV que contraíram a Aids no início da epidemia. Muitos familiares tiveram que abrigar seus parentes adoecidos pela Aids no próprio domicílio até o óbito se consumar. Àqueles que não encontraram apoio nem abrigo por parte dos familiares foram acolhidos por amigos, parceiros e, no caso de alguns adeptos da Umbanda, pela família de santo a que pertencia. Pai R. de Oxum relata a experiência que passou com seu irmão adoecido pela Aids, o estigma enfrentado por parte de familiares e vizinhos, e o impulso que teve em fazer o exame logo após a morte de seu irmão: Foi em 86 e 87 se eu não me engano, eu peguei o telefone a noite depois que terminou o jogo e liguei. Ai mamãe falou: meu filho seu irmão está doente, tá muito mal, não eu falei com a minha irmã, foi a minha irmã que me informou que ele já estava internado, estava com HIV, e alias não falaram nem HIV falaram AIDS. Na realidade era isso, me apavorei, não desmaiei porque a minha esposa me segurou, mas pra mim foi um baque. Eu tava em São Paulo ai me organizei imediatamente e, em 5 dias, voltei pra Fortaleza. Quando eu volto pra Fortaleza o acolhi, levei pra minha casa, minha esposa não quis porque ela disse que as paredes da minha casa tava tudo infectada de AIDS, separou o prato, o copo, o talher aquilo ali me assustou me apavorou, aquilo dali destruiu comigo, tanto na minha relação espiritual, como material, como homossexual, tá entendendo? Pra mim foi um tapa na minha cara e sabendo a minha esposa que eu também era gay, então aquilo ali me machucou mais ainda, mas encarei, fui levando, ai cheguei pra mamãe, e mamãe mandou trazer meu irmão pra casa dela, por causa da B. e tal, tive que levá-lo pra casa de mamãe. Mas, fiquei dando a assistência pra ele, toda semana, duas vezes 123 por semana. Ai abraçava ele, ele sentia um amor enorme, aquilo dali foi modificando um pouco, até ele não ter mais forças pra resistir e chegou a óbito. Quando meu irmão morreu foi outro terror pra mim. Ai me apavorei e corri, fui para o velório, depois disso uns 15 dias, eu resolvi fazer exames. Eu estava sentindo todos os sintomas em cima de mim cabelo caindo, sapinho na boca, é diarréia e assim tudo o que você imaginar, só tudo psicológico, ai quando eu fiz exames, acho que com 15 dias recebi, fui sozinho e o psicólogo foi e perguntou a mim se haveria algum problema de eu saber sim ou não. Eu disse: não pra mim é normal, pode dizer ai, na realidade eu sou gay, vivo uma situação de risco, então, o que eu posso fazer, meu senhor? Se o senhor der arrodeios não vai dar certo. Ai ele disse: ta bom, mas o senhor quer falar alguma coisa? --- Não, porque quem ta aqui pra perguntar alguma coisa é o senhor e eu to aqui apenas pra responder, que se o senhor me encheu de perguntas e quem vai lhe fazer as perguntas agora sou eu, o senhor é gay? Ai ele fechou-se, né? Ai ele disse: ta ai, o seu resultado deu positivo. Mas, faça novamente. Fiz, aí deu positivo de novo. Encarei isso na real, não precisava de medicação, que as pessoas só usavam o AZT. Às vezes me internava, fui encarando essas estórias... (PAI R. DE OXUM, 2011). A partir do depoimento acima, podemos perceber os dramas vivenciados pela pessoa doente de Aids e os impactos causados no convívio familiar. No caso de R. de Oxum, antes da descoberta de sua soropositividade, ele sofreu o estigma da pessoa “informada”, conforme define Goffman (2008:39). “Trata-se da pessoa que se relaciona com um indivíduo estigmatizado através da estrutura social – uma relação que leva a sociedade mais ampla a considerar ambos uma só pessoa.” Assim, R. de Oxum é obrigado a compartilhar o descrédito da pessoa estigmatizada com o qual ele se relacionou. A resposta desta situação foi abraçar e viver dentro do mundo do estigmatizado, considerando que o próprio mundo de R. de Oxum era semelhante ao de seu irmão, ou seja, era homossexual e tinha consciência das situações de risco que vivenciava. Portanto, mesmo ainda não estando ciente de sua situação de soropositividade, R de Oxum já se sentia socialmente “contaminado” pela Aids e o estigma que ela acarretava. Mas, R. de Oxum ainda iria enfrentar muitos preconceitos, sobretudo na comunidade de terreiros que pertencia em Fortaleza. Como pai de santo sentiu diversas dificuldades em continuar suas atividades após a descoberta de sua sorologia por parte de seus parceiros da Umbanda e do Candomblé. Ser portador do vírus HIV passa a ter um atributo profundamente depreciativo, um atributo que estigmatiza alguém, que provoca um descrédito (um defeito, uma fraqueza, uma desvantagem) de um indivíduo em relação aos outros. As relações conflituosas, geradoras de processos sociais de rupturas e crises, estabelecidas no cenário da Umbanda cearense em virtude da revelação da soropositividade e a constituição de uma identidade deteriorada (do estigma) é o que nos chama atenção neste momento da nossa pesquisa. 124 Quando os primeiros casos de HIV/Aids chegam aos espaços dos terreiros um novo desafio se estabelece na comunidade dos terreiros e nas trajetórias individuais das pessoas afetadas pela doença que desde idade tenra participam dessa prática religiosa. O caráter estigmático da Aids alimentado ainda pela ausência da cura científica e pela “vulnerabilidade”55 de infecção, adoecimento ou morte pelo vírus HIV torna o convívio com a questão muitas vezes velado no domínio do privado, das trajetórias e memórias individuais dos sujeitos que a vivenciam. O estigma, enquanto base conceptual relevante pode ser entendido como uma ameaça social, representando algo de ruim, isto é, uma identidade deteriorada por uma ação social (GOFFMAN, 1988). Os portadores de HIV muitas vezes enfrentam uma variedade de desvantagens sociais em virtude do preconceito e da discriminação. O termo utilizado “aidético” para caracterizar os portadores de HIV/Aids demarca bem o caráter estigmático da Aids. Tendo em vista que os primeiros casos de HIV/Aids aconteceram entre homens jovens e homossexuais, aliado ao estigma da Aids, o estigma sexual também foi um dos primeiros a se tornar visível naquele momento. A infecção do HIV logo foi associada à transmissão sexual e as relações homossexuais, estando vinculadas a outras formas de estigmatização como a prostituição, a promiscuidade e o desvio sexual (diferença sexual). Pai R. de Oxum encontrava-se nesta condição, era um jovem bissexual que contraiu o vírus HIV e, com um agravante, perdera sua esposa pela contaminação, adoecimento e morte pela mesma doença. Após os recorrentes episódios de discriminação durante as relações cotidianas em seu terreiro, o pai de santo revela sua condição em público, demarcando um momento de desabafo, mas também de denúncia e vontade de superação daquele problema: Ai começou a bomba estourar, porque a Fortaleza inteira já sabia... como nós trabalhávamos no José Frota e lá tinha pessoas que era amigo dela, que era do Candomblé e da Umbanda ai souberam do exame dela lá dentro do próprio hospital, tiveram o prazer, o orgulho de espalhar na Fortaleza inteira que R. de Oxum e M. B. estavam infectados... Tive situações dentro do candomblé que eu não podia abrir uma casa, que eu não podia fazer filho de santo por causa da infecção... “(...) sofri um bocado. Em situação de manifestação do espírito, quando a entidade dava bebida pra pessoas beber, quando a entidade oferecia pra pessoa confirmar algum pedido, alguma coisa, sentia que as pessoas viravam as costas e imitava que ia beber, mas não bebiam, pra não se infectar com o copo que eu tinha bebido. 55 Mann (1995) estabelece a conceituação sobre vulnerabilidade ao HIV/Aids como a expressão do “esforço de produção e difusão de conhecimento, debate e ação sobre os diferentes graus e naturezas de indivíduos e coletividades à infecção, adoecimento ou morte pelo HIV, segundo a particularidade de sua situação quanto ao conjunto integrado dos aspectos sociais, programáticos e individuais que os põem em relação com o problema e com os recursos de enfrentamento”. 125 Situações de um sentar num banco tirar a cadeira daquele local, pra ninguém não se sentar, sofri muito, mas dei muito show, baixei muito nível, baixei mesmo, ai quebrei barraco, entendeu? E escrachei o povo. Disse pra eles que um dia eles podiam passar por essa situação, como estava acontecendo comigo. Hoje tem gente que se incuba e eles (refere-se aos pais e mães de santo) mesmos dizem: --- porque vocês não encaram como o R.?... (PAI R. DE OXUM, 2011). Nas relações cotidianas atitudes como a separação de utensílios domésticos de uso coletivo como pratos, copos e talheres, reproduzem o desejo de distanciamento do convívio social com aquele sujeito afetado pela doença. Essas atitudes foram muito comuns nos terreiros de Umbanda. Os adeptos se sentiam ameaçados pela possibilidade de contaminação com o vírus no convívio com o portador de HIV. Sabe-se que os impactos que os sintomas da Aids ocasionam ao corpo humano, como a queda de cabelo, a perda de peso e as manchas na pele formatam os “símbolos do estigma”, ou seja, “os signos que são especialmente efetivos para despertar a atenção sobre uma degradante discrepância de identidade que quebra ou que poderia, de outra forma, ser um retrato global coerente, com uma redução conseqüente na valorização do indivíduo” (GOFFMAN, 2008:53). Portanto, as características físicas da pessoa doente de Aids ressaltam a diferença diante do outro, provocando reações de medo e isolamento. Neste contexto onde os traços físicos da doença eram mais evidentes, podemos identificar na análise de Goffman (2008:14) sobre o estigma a perspectiva da condição do desacreditado, ou seja, quando o defeito da pessoa estigmatizada pode ser percebido só ao se lhe dirigir a atenção (geralmente visual). Hoje, embora as terapias antiretrovirais tenham reduzido os impactos que o HIV/Aids causam ao corpo humano e as formas de transmissão do HIV sejam amplamente difundidas 56 , ainda é comum em alguns terreiros, o medo do convívio social com a pessoa infectada pelo HIV, todavia, a tensão provocada pelo estigma e medo de infecção pelo HIV apresenta-se de forma mais velada. Nesta perspectiva, seguindo mais uma vez a análise de Goffman (2008:14), trata-se da condição do desacreditável, ou seja, quando a condição de portador do HIV não é conhecida pelos demais e nem imediatamente perceptível por eles. 56 Formas de transmissão do HIV/Aids: As três vias principais de transmissão do HIV são contato sexual, exposição a fluidos ou tecidos corporais contaminados e de mãe para feto durante o período perinatal (ver em site do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais: http://www.aids.gov.br/. 126 J. Índio, embora fosse um filho de santo de longa convivência no terreiro que frequentava, narra sobre as dificuldades que passou em virtude do preconceito com relação a sua soropositividade, e da necessidade posterior em se desligar daquela comunidade: Determinadas funções que requeriam que eu mexesse, eu fui impedido de fazer. Até com relação à alimentação, entendeu? A feitura de axés, e as coisas que lidavam com Orixás e quando eu percebi isso, aí eu me afastei da casa, saí da casa porque as pessoas não tinham a mentalidade que eu poderia pegar em determinados objetos sem contaminar ninguém... fazer determinadas oferendas, fazer determinadas coisas relacionadas aos Orixás, porque eu tinha o vírus... porque eu era contaminado com o vírus. (J. ÍNDIO, 2012). A relação do alimento nos rituais é de grande importância, e o fato de um filho de santo ser impedido de manuseá-lo pode ser entendido como grande desfeita, visto que é no processo de feitura dos alimentos que se gestam todo um momento de sociabilidade entre os filhos de santo. É na cozinha que eles conversam sobre seu dia a dia e aprendem o ofício gastronômico exigido pela religião. Mãe Constância relata um episódio em que os convidados para uma festa de Umbanda se recusaram a se alimentarem da “comida da casa” em virtude da cozinheira e seu esposo, o qual era o pai de santo anfitrião, serem portadores do vírus HIV: Eu me lembro que eu fui para uma festa na casa de R. ele tinha HIV e tinha uma mulher também e três filhos. A mulher também era portadora, ela até já morreu. Ai eu me lembro que a maioria das pessoas que estiveram lá tiveram receio de comer, certo? da comida que ele serviu, certo? Porque tinha sido feito pela mulher dele que era portadora do HIV. Até teve quem fizesse piada... e no sei o que ... ai eu fui e disse: gente, olhe, vocês estão preocupados com o quê? que ela tenha cortado o dedo e pingado o sangue dentro da panela? vocês acham que isso vai transmitir o HIV pra todo mundo que comeu a comida é? era pura ignorância, pura ignorância isso ai. (MÃE CONSTÂNCIA, 2010). A atitude da mãe de santo diante do episódio revela um aspecto importante no lidar com a problemática do HIV/Aids. Uma atitude que envolve informação, mas também tolerância no conviver com a questão. A autoridade da mãe de santo confere a possibilidade do acolhimento e da inclusão dos sujeitos afetados pelo HIV na comunidade dos terreiros. Percebe-se, portanto, que muitas vezes, são nas próprias reuniões e festas promovidas pela comunidade que o problema vem à tona com suas possíveis formas de lidar com a situação. 127 Podemos inferir que se trata de um “estopim simbólico de um confronto ou embate”, conforme os termos utilizados por Frederick Bailey (BAILEY apud TURNER, 1971:33). Há uma ruptura das relações formais, uma violação dramática que ocorre entre indivíduos pertencentes ao mesmo sistema de relações, que produz um rompimento público e evidente das normas que regulam as relações entre as partes, conforme caracteriza Turner (2008). A possibilidade de estar em risco eminente de contaminação pelo HIV produziu naquela comunidade o receio de convivência com o indivíduo portador do vírus e, consequentemente, este se torna um símbolo claro de dissidência e de estigma com relação a Aids. Pai R. de Oxum encontra no momento da revelação de sua soropositividade uma oportunidade de exprimir seu drama pessoal, vivenciado a partir dos preconceitos sofridos cotidianamente por seus companheiros de religião: (...) Ai foi num encontro de saúde e religião, num seminário. Pronto, lá eu fui até a plenária e falei pra todo mundo a questão que eu tava sendo barrado dentro de Fortaleza por causa da minha infecção do HIV ... ai a Mãe Biata de Iemanjá se apavorou com aquilo, chamou atenção de pai Silvio de Iemanjá que era um dos organizadores do evento e disse que aquilo não podia acontecer, isso era um absurdo, um cúmulo... Mas, eu enfrentei, e disse: --- Infelizmente gente, eu não posso abrir a minha casa. Mas, eu não tenho Parkinson , eu não sou Hipertenso, eu não tenho o coração crescido, não tenho Síndrome de Down, mas, uma síndrome de deficiência adquirida. Pronto, assim eu falei. E disse se alguém fosse com isso mais a diante eu iria abrir um processo contra todos os terreiros, e que iam pagar uma indenização, e eu ainda exigiria do Estado também. Ai foi que se trancaram num instante, fecharam a boca, foi onde eu encarei mais, porque se você se fecha ai o povo caia em cima. Então, você tem que enfrentar a realidade, tem que mostrar seus direitos, ta entendendo? Não só como cidadão, mais como ser humano, você é um ser humano, então você tem o livre arbítrio, então num importa, o importante é você fazer com fé, você pode estar aleijado, numa cadeira de rodas, mas se você tocar na cabeça de uma pessoa com fé, você dar saúde a ele, então o importante é a fé. (PAI R. DE OXUM, 2011). Pai R. de Oxum reveste sua posição de “vitimização” como resultado da exposição da pessoa estigmatizada, para uma argumentação que prioriza reafirmar as limitações recorrentes de outras formas de enfermidades, como ele se refere aos doentes de parkinson, hipertensão, cardíacos, dentre outros. Enquanto indivíduo estigmatizado pela Aids ele tenta corrigir a sua condição de maneira indireta, esforçando-se para romper com aquela situação desfavoravelmente instituída. Busca reconstruir sua identidade social a partir da ênfase que imprime como sujeito de direitos, enquanto cidadão que pode reconstruir sua 128 vida e suas atividades como qualquer outro indivíduo. Há, seguindo uma perspectiva de Goffman (1985) uma manipulação do indivíduo de informações de si mesmo na tentativa de obter uma imagem positiva diante de um contexto relacional, no caso, previamente estigmatizado. É importante ressaltar que este momento também revela o drama social vivenciado pela própria comunidade de terreiros, e não é a toa que o estopim do problema surge em uma reunião de saúde e religião. As tensões e os conflitos vivenciados no interior daquela comunidade revelam o drama e a necessidade das lideranças tomarem decisões em termos de imperativos e constrangimentos morais muitas vezes arraigados na própria religião. No entanto, vale lembrar que a Umbanda em sua essência é uma religião que revela, desde a sua origem, os traços da contradição, formada historicamente por sujeitos socialmente excluídos, inclusive estabelecendo em sua ordem mítica relações com estes próprios sujeitos, sejam eles, negros, índios, pobres, mulheres prostitutas, malandros, dentre outros. O que se coloca agora é o embate com este novo “sujeito” que se apresenta – o portador de HIV. A configuração desta nova etapa é definida por Turner (1971) como “crise crescente” ou “escalada da crise”, conforme descreve o autor: Este segundo estágio, a crise, é sempre um daqueles pontos de inflexão ou momentos de perigo e suspense, quando se revela um verdadeiro estado de coisas, quando é menos fácil vestir máscaras ou fingir que não há nada de podre na aldeia... Cada crise pública possui o que eu chamo de características liminares, uma vez que se trata de um liminar entre fases relativamente estáveis do processo social, embora não seja um “limen” sagrado, cercado por tabus e afastado dos centros da vida pública. Pelo contrário, ele assume seu aspecto ameaçador dentro do próprio fórum e, por assim dizer, desafia os representantes da ordem a lidar com ele. Não pode ser ignorado ou desprezado. (TURNER, 1971:33-34). Portanto, a crise pública ocasionada pela revelação da soropositividade de um adepto junto à comunidade de terreiro a que pertence ocasiona uma fase liminar ao processo de convivência, implicando algumas vezes solidão ao invés de sociedade, o afastamento voluntário ou involuntário de um indivíduo com relação a sua matriz socioestrutural. No entanto, também há situações em que o adepto portador do vírus HIV não se sente a vontade para revelar sua soropositividade, o que pode sugerir a existência exacerbada do estigma da Aids e a possível ruptura no relacionamento com aquele terreiro. Seguindo o pensamento de Simmel (1939) “a intencionalidade da ocultação de um segredo assume intensidade muito maior no embate com a revelação. Esta situação dá lugar à ocultação e ao 129 mascaramento muitas vezes agressivo e defensivo, por assim dizer, contra uma pessoa, o que em si é designado como segredo”. Mãe Vilma narra uma situação em que um pai de santo ao descobrir que era portador do vírus HIV entra no isolamento e chega a óbito pela depressão e medo da revelação diante de seus filhos: Teve um amigo que acabou contraindo outras coisas e se negando. Tinha gente que dizia que morreu de gastrite, de úlcera, de num sei o que, onde a gente sabia que era Aids, a defesa era lá em baixo, sem defesa nenhuma porque num se tratava, porque num aceitava, num se assumia, aí morreu de frustração porque toda frustração leva a depressão, né? E a depressão é fatal. Foi problema dele mesmo, preconceito dele com ele mesmo por ele não querer dizer, já tinha casa aberta, tinha muitos filhos e como é que ia passar isso pros filhos? Teve medo dos filhos o abandonarem, então ele preferiu ficar no abandono e acabou morrendo. (MÃE VILMA, 2012). Ainda pode acontecer do indivíduo portador de HIV ser rejeitado por sua condição em determinado terreiro, ocorrendo uma ruptura definitiva com relação aquele ambiente, mas, em outro, ser acolhido independentemente de suas aflições. Isto muitas vezes acontece quando o terreiro já possui experiência no lidar com a questão, seja quando o pai ou mãe de santo compartilha da condição de soropositividade, seja porque ele(a) já conviveu próximo com a situação. Ressalta-se, ainda, o importante papel de sensibilização da Rede de Terreiros, que tem facilitado o acesso a informação e, consequentemente, a possibilidade de um convívio com o HIV/Aids menos conflituoso. A crise vivenciada pelo sujeito que se descobre soropositivo induz a busca pela ajuda e aconselhamento junto ao sacerdote e/ou a comunidade a que pertence. Em sua forma dramática, a revelação faz parte do próprio tratamento na busca pelo equilíbrio espiritual. Durante a pesquisa, quando perguntado ao adepto portador de HIV o motivo pelo qual ele escolheu o terreiro que frequenta, geralmente eles se reportam a identificação com a “energia” da casa. Mas, a rede de proteção e apoio se institui no momento em que o terreiro já conviveu com a experiência, tornando mais acessível o acolhimento a esses sujeitos. No depoimento de A. de Ogum é possível perceber a ajuda mútua que a mãe de santo articula na proteção dos seus filhos de santo portadores de HIV: O meu envolvimento com a Umbanda se deu mais para ajudar o meu companheiro, que me mostrou o mundo da religião... Quando eu o conheci, em 2003, ele tinha descoberto que era portador há pouco tempo, ele não se aceitava e não conseguia assimilar. Como eu já sabia, já tinha passado pela experiência, fui para ajudá-lo. Aí tive uma aceitação muito boa na Casa de Mãe Constância, ninguém nunca me 130 discriminou, nunca agiu comigo de forma que eu me sentisse rejeitado...Ela já tinha aquele contato com ele. Então, ele ficou doente e eu não, eu nunca tinha ficado, eu sempre fui uma pessoa saudável, mesmo sendo portador, eu não era aquela pessoa doente. Então, aquilo me deu uma entrada muito grande no meio religioso, isso me ajudou, acho que pelo fato de estar ajudando ele. Então, foi muito tranqüila minha entrada. (A. DE OGUM, 2012). A crise provocada pela revelação da soropositividade também se mostra na relação com a espiritualidade. É comum por parte dos adeptos portadores de HIV a busca de explicações dos momentos de aflição, causados pela infecção, adoecimento ou morte respaldadas por questões religiosas, comumente relacionadas ao exercício da espiritualidade e suas obrigações junto às entidades e orixás protetores. No depoimento de H.B. a infecção e adoecimento pelo HIV/Aids é relacionado a um “feitiço” encomendado por Maria Mulambo, uma entidade da Umbanda. A solução para a situação é “desmanchar feitiço com feitiço”, segundo narra o adepto: O início começou em Fortaleza, quando eu tive um relacionamento com uma pessoa e eu não sabia que ela era envolvida na religião da Umbanda, e por um acaso eu estava na casa dela e encontrei alguns trabalhos, velas, algumas imagens, e eu nunca pensei que ela estivesse envolvida nesse meio, no meio da religião afro-brasileira, que é a Umbanda. Tava lá guardadinho as velas lá no canto, o trabalho, mas eu não perguntei nada. Eu fui embora com essa pessoa para o Rio de Janeiro e lá ela era filho de santo (travesti) e eu tenho quase certeza que ela tava devendo algum trabalho pro santo, que ela não continuou em Fortaleza. Então, aconteceu várias coisas na vida dela que a prejudicou. Passado o tempo, aconteceu de madarem um trabalho que queriam que me atingisse, mas atingiu a pessoa que eu tinha um relacionamento, pois a pessoa era filho de santo, aí pegou nela o trabalho que mandaram pra atingir nossa relação. Então, ninguém sabia o que era... foi quando a gente procurou uma mãe de santo e ela afirmou que tinham mandado uma feitiçaria pra gente... foi quando nós começamos a trabalhar e eu comecei a me envolver nisso, pra curar a demanda que tinha vindo pra ela. Fizemos toda a cura, a defesa pra gente e assim foi... ela ficou bem melhor. Com o tempo eu acho que a pessoa que mandou o feitiço não ficou satisfeita aí mandou uma pior ainda, foi onde minha companheira caiu mesmo... ela adoeceu, foi internada, ela era soropositiva e ninguém sabia e dessa demanda que mandaram pra ela (companheira) foi que si descobriu toda a história... foi quando eu descobri toda a demanda que fizeram pra gente e tinha que desfazer no cemitério todo o trabalho de feitiçaria. (...)Me disseram que tinha sido a Maria Mulambo, que minha companheira estava com a Maria Mulambo, e diz que ela destrói toda coisa, destrói todo relacionamento. (...)Tive que desmanchar feitiço com feitiço... tive que ir ao portão do cemitério e levar um litro de cachaça e vela branca e foi complicadíssimo pra ela (Maria Mulambo) aceitar porque a vela era todo tempo caindo e se apagando. Minha amiga mãe de santo dizia que ela (Maria Mulambo) não tava querendo aceitar... e foi indo, indo, comecei a rezar, rezar, e a vela se firmou e nós só saímos de lá quando a vela estava bem firme, aí foi desfeito o feitiço. (H.B, 2010). 131 No universo da Umbanda, doenças e curas estão relacionadas significativamente ao sobrenatural, uma vez que a pessoa é o resultado da vontade da ação divina e de uma iniciativa individual (iniciação) de integração a uma comunidade. A vida é percebida como uma fonte de intensa dedicação e aprimoramento do ser humano seja no campo físico e/ou espiritual, em uma seqüência de obrigações e tarefas a cumprir junto a sua divindade protetora correspondente (espíritos desencarnados ou orixás). Os pais e mães-de-santo por serem considerados os mais evoluídos espiritualmente, detêm o poder superior no terreiro, tendo a responsabilidade sobre a iniciação dos adeptos e pela invocação dos espíritos desencarnados e orixás. Na trajetória de vida de J.Índio a relação da Aids com sua espiritualidade está bem presente e se apresenta desde a adolescência. No depoimento do filho de santo é possível identificar dois momentos importantes, o primeiro, na Umbanda, e outro, no Candomblé, em que as entidades o alertam sobre a problemática que ele estaria por enfrentar: Eu cai logo no primeiro pai de santo que fui. Uma vez ele cantou pra uma entidade chamada Quebra Barreira e eu cai só senti meu pai me segurando, mas eu era meninote, meu pai ficou até com medo, foi um dos motivos que ele não quis mais me levar pra macumba, porque eu cai, ele ficou com medo deu ficar lá dentro, né. E depois eu fui pra macumba com a minha irmã e quando chegou lá um caboclo mandou eu entrar, quando eu entrei eu cheguei lá cai nos braços do caboclo, ele só disse: isso aqui é meu, não se preocupe porque esse aqui é de caboclo. Era o nego Gerson ele foi uma das primeiras entidades que me alertou eu tinha uns 12 anos de idade e ele disse uma coisa que eu nunca esqueci, ele disse: daqui a uns tempos vai surgir uma doença nova no mundo e isso foi em 77, 78, ele disse: daqui uns tempos vai surgir uma nova doença no mundo e você tome muito cuidado pra não partir antes do tempo. Era uma mãe de santo, uma senhora muito antiga que morava na Bela Vista e ela disse, e ate hoje ainda procurei esse terreiro e nunca mais eu encontrei porque eu achei assim a conversa da entidade, do nego Jacinto segura, e essa doença vai levar muita gente, cuidado pra você não ir no meio, cuidado nos seus caminhos. Na verdade ele já via minha homossexualidade e ele já sabia, disse você é meu filho, tenho que lhe defender e eu escutei aquilo e guardei. Muitos anos depois com o aparecimento da AIDS, eu disse é essa história que ó caboclo falou, eu guardei. Muito tempo depois eu fui pra uma gira na casa de um pai de santo e encontrei um rapaz que incorporou e o nego Gerson, ele chegou e só fez me lembrar. Você se lembra? Que um dia você foi num local e eu lhe disse da história da doença, eu disse lembro, pois é, você tome muito cuidado porque a vida que você leva não é uma vida muito fácil, tenha cuidado na sua vida, ele sempre dizia, porque eu sou seu pai e eu num quero ver você partir logo, né. Essas mensagens que você recebe são muito interessantes... (J. ÍNDIO, 2010). 132 J. Índio tinha consciência da vulnerabilidade que sentia, seja por sua homossexualidade, seja devido à vida “promíscua” que levava, conforme o próprio informante a define. Atormentado pela asma, J. Índio recorre novamente às entidades, e no jogo de búzios, o alerta o toca mais uma vez, agora, por meio de uma mãe de santo do Candomblé, que interpreta sua personalidade, suas vivências e seus riscos por intermédio dos arquétipos dos orixás. Segue seu relato: (...) Cheguei lá com ele, mas eu não fui pra jogar, eu fui pra acompanhá-lo, mas chegando lá ele jogou e ela perguntou se eu ia jogar, eu disse não, ele disse: joga que eu pago pra ti, que o búzio é aquela história, é como uma consulta você tem que pagar, uma consulta é como se fosse uma consulta médica e daí a mãe Zuleide jogou e foi muito engraçado porque quando ela jogou pra mim ela disse: na primeira jogada do búzio, quando o búzio caiu ela disse caíram 14 búzios que é um lá dentro da visão dela, da vidência dela é um, uma caída de búzios que dá cargo pra pessoa do consulente, pra pessoa que nasceu pra ser dentro, pra estar dentro da historia, ela disse: ai você tem um negócio aqui é meio complicado ela não me explicou logo na hora. Também era a primeira vez que eu sentava numa mesa de búzios, mas prestei muita atenção... já estava muito curioso, todo necessitado, porque eu já tinha a tal da minha asma, eu sempre tive essa asma, né. Queria saber o porquê desse problema do cansaço. Quando eu joguei ela disse pra mim que eu era uma pessoa de uma mediunidade um pouco complicada porque eu carregava uma guerra de Orixás, eu tinha dois Orixás que lutavam pela meu Orí, pela a minha cabeça, que eu tinha uma carrego espiritual muito pesado pelo destino. O jogo de búzios te dá os destinos, os mutáveis e imutáveis, imutável é alguma coisa que você carrega sua vida desde quando você nasceu, e outros são mutáveis destinos que estão ali naquele momento que podem se modificar e você tem que agradar os orixás que te regem de alguma forma. Na forma de oferenda, pra que você possa ter uma vida pessoal melhor. E daí decorre na vida financeira, na vida amorosa, que agradando a sua espiritualidade você conhece as outras coisas, e ela disse que eu tinha tudo pra ser do Orixá Oxossi, tinha tudo, meu arquétipo né? É mais eu tinha uma Iansã e pela a vida que eu levava na época, eu era garçom de boate gay, eu vivia no mundo da promiscuidade mesmo né, assim que a gente era bem galinhazinha e tinha essa historia também (...) Então, ela disse: você carrega esses dois Orixás. No dia que você for feito você vai ter que cumprir obrigações para os dois. Se eu fosse você daria obrigação pra Iansã, porque Iansã lhe promete saúde, e Oxossi, pela a vida que você leva, por tudo que você anda fazendo, Oxossi, lhe quebra. (J. ÍNDIO, 2010). O destino de J.Índio fora traçado, deveria cumprir obrigações para Iansã, que lhe garantiria saúde e Oxossi, para lhe dar proteção. O caráter imutável de seu destino apontava para o risco e o cuidado permanente que deveria ter em relação a sua saúde. Quanto ao mutável, este iria depender de sua devoção e cumprimento das obrigações junto aos seus orixás de proteção, que lhe garantiriam uma vida pessoal mais tranquila. Ainda hoje, J. Índio 133 continua cumprindo sua missão, e sempre que vai ao Candomblé sente a força e a vibração das duas entidades sobre seu corpo e sua mente. Paradoxalmente, o filho de santo contrai o HIV através de relação que ele estabelece com um companheiro da própria religião, no entanto, este fato não abala sua relação de devoção junto ao Candomblé, conforme narra J. Índio: Em 2000, 2001 eu conheci uma pessoa que também era de santo e a gente teve um envolvimento amoroso e me descuidei e dessa historia eu me contaminei com o HIV. Então, desde 2001 eu sei que eu sou soropositivo, mas me descobri soropositivo em 2003. Porque antes deu entrar na roça eu tinha feito o exame e eu sabia. Por todo esse processo que eu passei da iniciação e o preceito que me requer que você não tenha sexo, que é uma das coisas primordiais, que você não mantenha relações sexuais, então, eu tinha todo um cuidado, eu já tinha um exame, tive o cuidado, eu só vim me descuidar com essa pessoa e daí eu me contaminei, mas isso eu não atribuí essa contaminação, eu nunca culpei a historia do Candomblé, aquilo pra mim não tem nada haver uma coisa com a outra, entendeu? Isso aí foi discutido meu, não foi do meu Orixá. Ainda mim lembro às vezes da conversa que tive com minha mãe de santo, a minha primeira mãe de santo que ela dizia que Oxossi me quebrava e Iansã me dava saúde. (J. ÍNDIO, 2010). Mas, J. Índio também iria sofrer algumas punições sociais, embora tivesse sido contaminado por seu companheiro de religião. A revelação entre seus pares não deixou de ser menos preconceituosa devido a tal situação. Na Umbanda, ele encontrou situações conflituosas e de acolhimento diante de suas aflições, e que possivelmente, perduram, de alguma forma, até os dias de hoje. De fato, J. Índio representa uma geração que desde idade tenra participa da religião, possui laços fortes que o ligam a comunidade a que pertence, e que vivencia e supera, dia após dia, as formas dramáticas do convívio com o HIV/Aids nos terreiros. Em 2003 eu tive preocupação em avisar pras pessoas com relação a minha soro- positividade, eu chamei meu pai pequeno que era Pai Agenor, eu falei pra ele, eu não falei pra minha mãe que tinha me raspado, eu falei pro pai Agenor porque ele era uma pessoa mais centrada. No momento não estava equilibrado emocionalmente porque é um baque você receber uma noticia dessas, eu quis me isolar, e só avisei pra ele e me isolei. Isso foi em Julho, recebi esse resultado dia 15 de julho de 2003. Quando chegou em agosto um pai de santo, o Henrique, ia dá uma festa pro Tranca Rua eu desaforado, tava dentro de casa com o coração apertado, e disse: eu vou pra essa festa, mas eu vou a caráter. Eu fui todo de preto, me vesti de preto da cabeça aos pés e fui pra Umbanda nessa festa de Tranca Rua. Quando eu cheguei lá a minha entidade a Dona Chaveiro incorporou chamou os meus dois irmãos que rasparam por mim e ela mesmo que falou que se cuidasse de mim, porque eu tinha sujado meu sangue, só foi ela quem disse: pronto, quando eu acordei muita gente 134 tinha escutado... mas, ela quis saber de contar... Aí, mãe Constância no mesmo dia soube. Então, ela me disse você vacilou, abriu os braços, me abraçou, me beijou e disse: eu tô aqui pro que der e vier, pronto. Foi o que eu recebi da mãe Constância... não precisa de mais nada, né? Porque eu tenho muito amor, muita consideração por ela. A nossa historia é muito integrada e minha irmã de santo Vilma também sabe. Ficou em cima de mim direto para não me deixar esmorecer, para eu não me deprimir. Com relação a roça, a minha mãe de santo já tinha tido uma experiência anterior com filho de santo que soube que era soropositivo... isso foi na década de 80 e ela o acolheu. Ela botou ele dentro de casa e cuidou dele até morrer, ela não o abandonou, a família o abandonou e quem acolheu foi ela. Então, só disse pra mim o seguinte: “eu num quero saber dessa historia, eu quero saber que você tem problema e vamos cuidar de seu lado espiritual. (J. ÍNDIO, 2010). A crise provocada pela incidência de casos de HIV e os dramas sociais vivenciados no convívio com a doença entre os adeptos da Umbanda em Fortaleza chamaram atenção para o cuidado com a transmissão do vírus e as práticas que pudessem por em risco a contaminação, no caso, àquelas que envolvessem cortes ou a utilização de objetos perfuro- cortantes durante os rituais 57 . As primeiras ações de prevenção à Aids realizadas nos terreiros foram mobilizadas a partir do envolvimento dos próprios adeptos da Umbanda, sejam eles homossexuais, pessoas vivendo com HIV/Aids ou profissionais de saúde. Oficialmente, as ações de prevenção nos terreiros foram (e continuam sendo) por muito tempo pontual, tendo seu registro em 1994, a partir da pesquisa desenvolvida por Marilyn Kay Nations em parceria com a Secretaria de Saúde do Estado. Desde lá, o registro de atividades promovidas pelo serviço público de saúde são basicamente àquelas mobilizadas pela Rede de Terreiros, a qual também enfrenta grandes dificuldades para manter a sistematização das ações. Os relatos apontam para o estigma que muitos profissionais de saúde tinham (e continuam tendo) ao adentrarem nos terreiros. J.Índio conta sua experiência em visita realizada por um profissional de saúde em um terreiro de Candomblé: Logo no inicio do aparecimento da AIDS, no Fantástico, apareceu uma primeira reportagem sobre Candomblé e AIDS, porque no Candomblé existe um processo, um ritual que a gente chama ritual de cura, que é onde o iniciado é cortado com as 57 Conforme vimos nos rituais de cura conduzidos por Mãe Constância e Pai Robério, o uso de objeto perfuro- cortante (faca) é utilizado somente para o sacrifício dos animais. Os rituais da Umbanda utilizam-se, sobretudo, de ervas, banhos, passes, etc., não há a incidência de cortes no corpo humano. A utilização de navalhas para a realização de pequenos cortes e marcas em diversas partes do corpo em rituais iniciáticos ou de “fechamento do corpo” é uma prática recorrente em terreiros de Candomblé, o que inclui a probabilidade de infecção pelo HIV caso o objeto em questão esteja contaminado. Ressalta-se, porém, que muitos terreiros de Fortaleza e seus respectivos adeptos mantêm a prática das duas religiões. 135 navalhas para a colocação do Axé, que é o pó dos seus antepassados. Você só é iniciado depois desse processo, a pessoa só pode ser considerada raspada ou feita no Candomblé se você passar por esse processo de cura. E apareceu isso na televisão. Na época, o diretor do hospital daqui de referência foi atrás de saber e eu trabalhava nesse hospital, eu era funcionário do hospital na época, tinha passado no concurso do Estado e eu estava trabalhando uns cinco meses. Eu só trabalhava com pacientes soropositivo, minha função era cuidar de pacientes soropositivos. Quando eu estava no terreiro aí eu vejo adentrar o diretor e algumas pessoas da área, que nunca tinha pisado num terreiro de macumba. Escutaram a reportagem no domingo e no sábado posterior era a festa, e ele foi pra ver se conseguia ver alguma coisa, escutou o galo cantar mais não sabia aonde, preocupado, acho que ele pensava que ia ver sangue nas paredes, quando na verdade não é nada disso. Aí eu fui lá recebi, ele até se assustou quando me viu, que ele já tinha me visto zanzando pelo hospital, funcionário do hospital. Aí eu fiz a sala mesmo não sendo da casa, mas eu sempre tive esses acessos nas casas das pessoas (fala do terreiro), é como uma família. Eu recebi mandei avisar pra mãe de santo que ele estava vindo, que ela se preparasse que ele iria fazer um bombardeio de perguntas. Ela atendeu pra poder desmistificar a historia, porque a preocupação da gente sempre foi essa, tentar desmitificar o máximo. Por que as pessoas tem uma visão muito ruim, principalmente por esse lado. O Candomblé e a Umbanda são religiões que não tem esse preconceito com relação a sexualidade, muitos dos seus integrantes são homossexuais. Hoje em dia a gente não tem mais essa preocupação. Mas, na época que a Aids apareceu tinha essa preocupação ligada a Aids e a homossexualidade e a maioria das pessoas que frequentavam o Candomblé eram homossexuais, porque é uma religião que te aceita do jeito que você é. Então perdemos muita gente dentro do Candomblé e da Umbanda por causa da Aids, várias pessoas conhecidas foram embora certo, mas foram grandes pessoas, pessoas boas muito ligadas a seus santos, muito ligadas a sua religiosidade. A agente teve muita perda, mas a vida segue em frente e a gente não tem que chorar pelo leite derramado, mas, perdemos muita gente assim, que dá muita saudade. (J. ÍNDIO, 2010). A partir do depoimento acima podemos inferir que a rede de proteção e apoio também acontece por parte dos filhos de santo portadores de HIV com relação aos terreiros. No depoimento, J. Índio deixa claro sua preocupação em preparar a mãe de santo para a visita do médico “desavisado”, orientando-a e protegendo-a para possíveis questionamentos indesejáveis. Atitude como esta auxilia na (re)inserção e (re)configuração da identidade deteriorada do adepto portador de HIV na comunidade dos terreiros, além, é claro, do cumprimento contínuo das obrigações junto as suas entidades/orixás de proteção, bem como da dedicação que ele deverá manter com o terreiro a que pertence. O depoimento também chama atenção para a ocorrência de pessoas que morreram vitimados pela Aids e que eram adeptos da religião. Neste caso, os terreiros acumulam experiências no lidar com a situação. O processo de acolhimento e aprendizado religioso conduzidos por pais e mães de santo e a intervenção de militantes da luta contra a Aids auxiliarão na reconfiguração das identidades dos sujeitos afetados pelo HIV/Aids. Este processo é o que abordaremos no tópico seguinte. 136 3.3 - ACOLHIMENTO E PARTICIPAÇÃO: MEDIAÇÃO E REINTEGRAÇÃO NOS TERREIROS Neste tópico abordaremos o processo de reconfiguração das identidades dos sujeitos afetados pelo HIV/Aids a partir dos dramas sociais estabelecidos com a comunidade de terreiro a que pertence. O objetivo é perceber como o processo de acolhimento e aprendizado religioso conduzidos por pais e mães de santo e a intervenção “político- solidária” de militantes da luta contra a Aids auxiliam na construção destas novas identidades. Para Turner (1971) a ação corretiva e a reintegração são, respectivamente, a limitação do momento de crise, através de “mecanismos” de ajuste e regeneração por meio dos quais os membros de liderança ou estruturalmente representativos do sistema social perturbado encontram meios, desde conselhos pessoais e mediações, para solucionar os tipos de crises ou legitimar outras formas de solução, reintegrando o grupo social perturbado. Da crise motivada pela descoberta e revelação da soropositividade do adepto na comunidade dos terreiros, surgem formas variadas de lhe dar com a situação. O “convívio negociado” pode representar a ação corretiva e reintegração com o grupo, tem haver com a facilidade de relacionamento que alguns portadores do vírus HIV encontram em determinados terreiros de Umbanda. O acolhimento e a intervenção “político-solidária” que ampliam os conhecimentos sobre os riscos de contaminação e os meios de convivência com o HIV/Aids são elementos importantes neste processo. Esta experiência se aproxima do que Goffman (2008:93) define como “cooperação tácita”, que significa uma espécie de liberdade de ação que os portadores do estigma encontram diante de pessoas que possuem estigmas iguais ou semelhantes. Visto que a própria Umbanda foi historicamente uma religião discriminada que acolheu diversos públicos estigmatizados como pobres, negros (também brancos e classe média), prostitutas, homossexuais, portadores de diversas doenças, dentre outros, além de possuírem lideranças estigmatizadas fora da religião, mas respeitadas dentro dela, e que malgrado as perseguições sofridas pela religião, ela permanece viva (re)inventando velhas e novas práticas culturais no desafio pela sobrevivência. Assim, torna-se importante considerar na análise da pesquisa o acúmulo de experiências a partir do convívio e tratamento dos 137 doentes de Aids no início da epidemia e as ações enérgicas de quem vivenciava o drama, configurando o “mecanismo”maior de ajuste em meio ao contexto social perturbado. Pai Liberdônio menciona a perda de um filho de santo travesti vitimado pela Aids: Tinha uma filha na minha casa, um filho né, que era travesti, homossexual e ele contraiu a AIDS, e ele chegou a falecer dessa doença, pra mim foi muito difícil, era um filho da casa, da qual sou zelador, caboclo e quando ele veio descobrir, já num estado a doença já estava muito avançada. Mais ele lutou muito assim mesmo, nós fizemos corrente de cura porque não tentar, os médiuns da casa abraçaram o irmão né em termos de ajudar de procurar dar força, dar conforto, carinho, na minha casa já aconteceu isso dessa filha que Deus levou, era uma filha do santo, era homossexual, travesti e contraiu a AIDS, mais eu vejo assim, como eu disse agora a pouco, nós eu creio, nós vamos ter uma cura. (PAI LIBERDÔNIO, 2010). Em outro terreiro, a assistência aos doentes de Aids acontecia através de doações e visitas domiciliares. Pai Henrique de Oxossi era um sacerdote bastante atuante, tinha experiência no hospital de referência aos doentes de Aids no Ceará (Hospital São José), e atuava como voluntário no grupo de apoio Girassol. O pai de santo também desenvolvia um trabalho educativo junto aos filhos de santo para a prática de ações solidárias aos doentes de Aids em domicílio. Pai Cleilton relata sobre seu aprendizado ainda jovem no terreiro de Pai Henrique de Oxossi: Na casa que eu entrei, na primeira casa, o pai era engajado de alguma forma no movimento, ele era voluntário do hospital São José, no grupo girassol, então ele puxava a discussão para dentro da casa. A casa tinha como uma das atividades arrecadar alimentos e levava para a pessoa soropositiva a cesta básica, era uma forma de assistencialismo, e quando tinha uma necessidade maior, não só do alimento físico, mas espiritual, então nós íamos na casa da pessoa soropositiva, quando ela não tinha condição, dar um passe, do meu pai ou de outro médium mais graduado receber uma entidade - no caso um preto velho – fazer um passe de cura, uma oração para que aliviasse os sintomas... não que a entidade ou que nós da casa quisesse curá-lo, mas nós queríamos aliviar as dores, o mal estar para que ele tivesse um bem estar por algum tempo, então, nós tínhamos esta atividade na casa, durante quase dois anos a gente fazia isso... tínhamos uma atividade de sopão toda semana para os portadores. Mas isso porque ele tinha a consciência, fazia parte de uma instituição, vivenciava histórias dentro do hospital, e ele queria que apesar da casa ser em uma periferia, ele queria que os filhos tivessem esse compromisso, vencesse a barreira do preconceito. Pai Henrique de Oxossi foi embora para Belém aí a casa fechou. Nós tentamos dar continuidade com as atividades da casa, mas como o pai não estava presente, os meus irmãos da época aos poucos foram se afastando, quando dei por mim só tinha eu e mais três pessoas. Como eu não era pai de Santo a casa fechou e nós não demos mais continuidade. (PAI CLEILTON, 2010). 138 O terreiro de Pai Daniel esteve integrado ao trabalho pontual de sensibilização realizado por Marilyn Kay Nations, em 1994. O projeto, em parceria com a Secretaria de Saúde do Estado, desenvolveu atividades educativas/preventivas, distribuição de preservativos e incentivos ao teste de sorologia do HIV para a comunidade do terreiro. Ainda há registro da inserção de portadores acolhidos em casa de apoio, como o Centro de Apoio Madre Regina, nas atividades dos terreiros. Na ocasião, o acesso a informação sobre as formas de contaminação e convivência com o HIV/Aids estavam sendo ampliadas. Assim, o terreiro de Pai Daniel se fortalece, e durante certo período permaneceu como referência na prevenção do HIV/Aids aos demais terreiros, inclusive, sendo visitado, em 2006, por integrantes do VI Seminário Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde. Regina, esposa de Pai Daniel, fala sobre o projeto: Nos marcou bastante, porque estamos dentro da Umbanda para ajudar o próximo, esse projeto o que nós mais lamentamos foi ele ter terminado, nós lutamos, lutamos, não sei porque acabou e como acabou e a gente não tinha dinheiro pra continuar porque quem segurava era o projeto, né. A gente teve que parar, então marcou definitivamente, porque na realidade foi uma luta que nós tivemos muito forte contra o preconceito, tinha muito preconceito, atendendo as famílias, um ano da prevenção foi o mais importante, a gente fica de pés e mãos atados vendo tanta gente precisando e sem a gente poder fazer nada, acabou o projeto, porque o projeto era quem dava o dinheiro pra cá. O pessoal ia pegar os portadores do Madre Regina e a gente ficava aqui conversando, aconselhando, dando passes, era muito bom. (REGINA. TERREIRO DE PAI DANIEL, 2010). A inserção das políticas públicas de prevenção e incentivo a testagem anti-HIV nos terreiros auxiliam na formação das identidades das pessoas afetadas pela epidemia da Aids. Considerando a perspectiva de Shore & Whright (1997:4), as políticas públicas podem “conformar o modo que indivíduos constroem a si mesmos como sujeitos”. Categorias são definidas, usadas e propagadas a fim de que indivíduos identifiquem a si mesmos. Esse aspecto de identificação através de políticas institucionais atravessa muitos níveis da vida social nas sociedades contemporâneas. A idéia de governabilidade (Foucault, 1991) nos faz perceber a “microfísica” de forças de influências e imposição originando-se geralmente, embora não necessariamente, das agências de Estado, sobretudo através de suas “capilaridades”, a operacionalidade local e cotidiana das práticas públicas. Valle (2002) chama atenção para os efeitos sobre a definição dos indivíduos e pessoas em termos de identidade sexual, raça, status sorológico, grupo sanguíneo, etc., a 139 partir da testagem anti-HIV promovida pelo Estado e suas agências. Segundo o autor, Sob o signo da racionalização como um processo normativo, mais amplo, guiado pelos auspícios do Estado e de suas políticas, pessoas têm sido definidas e identificadas inúmeras vezes durante suas trajetórias sociais e biográficas. Essas formas de definição e identificação têm importante implicação nos processos sociais e culturais relacionados à epidemia da Aids. (VALLE, 2002:188-189). No contexto das práticas de prevenção e incentivo a testagem anti-HIV nos terreiros de Umbanda o conhecimento técnico e suas categorias como soropositivo e soronegativo, portador de HIV e doente de Aids, serão compartilhados e mediados pelos profissionais de saúde juntamente com os adeptos e militantes da luta contra Aids. O uso social da categoria “aidético” é evitado como meio de propiciar uma formação identitária em torno da doença de forma menos estigmatizada. Porém, a descontinuidade de projetos e ações desta natureza reflete a falta de prioridade e assistência sistemática por parte do poder público junto à comunidade em questão, fazendo relembrar o passado histórico marcado por preconceitos e abandono em termos de assistência dos serviços públicos de saúde e educação. A trajetória das ações de acolhimento e assistência aos adeptos portadores de HIV/Aids é marcada pela iniciativa dos próprios sujeitos afetados pela questão. Regina narra a experiência de seu terreiro no acolhimento de dois filhos de santo portadores de HIV/Aids: (...) Teve um caso concreto, a história desse rapaz que hoje é pai de santo... não quero dar o nome, porque foi um exemplo porque quando ele descobriu que tava com Aids ele disse pra mulher que só queria transar de camisinha, que ele tava com Aids mais ela era tão doida por ele, tão maluca que não... --- você não tá com Aids! não quero camisinha! Foi assim que ela adquiriu o vírus. Aí quando dei fé ele chegou aqui numa tarde, a gente tava num encontro, ele participou e quando terminou ele sentou bem ali chorando e disse a minha mulher tá com Aids e ela vai morrer, porque até o remédio que ela recebe ela bota num vidrinho de vitamina, se não tomar na hora ela vai envergando a doença, quando nós chegamos lá ela estava só a pele, ela andava se segurando assim na poltrona ai ele chegou vivo que só ele, Pai Daniel vamos ali na cozinha que a Regina vai conversar com ela, ai levei ela lá pro quarto... Não falei em Aids, aí ela disse assim...--- não, eu estou com bulimia, depois dela contar a história eu disse: vem cá, qual é a diferença de bulimia e Aids? Comecei por ai e ela olhando pra mim, eu disse não tenha vergonha de mim não, nós temos 12 anos de convivência, ai nós trouxemos eles pra cá, a gente passava o dia conversando. Ela ainda durou foi tempo, nunca pegou. Uma vez o Daniel trouxe pra cá uma multidão de pessoas de todos os Estados brasileiros, um Encontro Nacional, ficou lotado, e ele no meio abriu a boca no meio de tanta gente e disse: eu sou portador do vírus HIV, mas ele não vai 140 me matar porque eu estudo, eu me preparo, eu sei e o que eu posso fazer e o que não posso... (REGINA. TERREIRO DE PAI DANIEL, 2010). As ações de acolhimento realizadas por pais, mães e filhos de santo no cotidiano dos adeptos e nos rituais de cura aos poucos atenuam os episódios de conflitos gerados pela problemática do HIV/Aids. O conhecimento de uma longa tradição, o exercício da escuta e do aconselhamento, a disponibilidade de tempo e energia para o acompanhamento no tratamento diminuem as distâncias entre o enfermo e o cuidador, entre o enfermo e a comunidade do terreiro. A iniciativa também reflete o caráter educativo e solidário das ações que envolvem toda a comunidade do terreiro, e que perdura na memória dos indivíduos de várias gerações. No processo educativo, a ameaça e o medo da Aids vai cedendo para uma atitude mais propositiva diante das aflições causadas pela doença. A filha de santo Socorro, que também era membro do terreiro de Pai Daniel, narra sobre o aprendizado e a satisfação ao tratar a Aids como uma “guerra”, um “trabalho de revolta” a ser vencido pela união dos umbandistas: Era pro bem deles, tudo que nós fazemos lá era com objetivo de dá força pra eles para admitir a doença, dar força como se fosse uma psicóloga, e era muito bom na época, nós recebíamos muita força e fazíamos muita campanha para adquirir os alimentos deles e era bom, que pena que acabou né. Muitas pessoas fizeram teste pra tirar as dúvidas se tinha alguém doente na casa. Todo mundo fez o exame, todos deram negativo, graças a Deus. Nenhum deu positivo e ai tivemos mais força para ajudar os outros que ficaram lá, precisando do nosso apoio. Que pena que teve um da nossa época que contraiu, mas nem por isso ele se desesperou, ele não morreu, ele continua em pé firme e forte e vamos ver quanto tempo dura, né. Fizemos muitas curas com os Pretos Velhos, na época meu Pai fazia muita cura levantava muitos, todos numa força só, unidos numa guerra só, estamos ai, né. Dá uma satisfação muito grande, porque a gente entende, quando a gente vai fazer alguma coisa eu creio que todo umbandista é assim ele entende porque ama, pra dá vencimento naquilo, é muito gratificante pra gente vencer um trabalho de revolta, saber que você ajudou a melhorar a vida de uma pessoa é muito bom, muito bom não tenha dúvida. (SOCORRO - FILHA DE SANTO. TERREIRO DE PAI DANIEL, 2010) A experiência com o HIV/Aids entre os adeptos da Umbanda faz com que o grupo compartilhe informações sobre as formas de transmissão e convívio com a doença, onde, muitas vezes, o próprio portador do vírus passa a ser um agente multiplicador da 141 prevenção e do cuidado com a irmandade do terreiro. A. de Ogum narra sobre sua relação com o movimento de luta contra Aids e seu papel dentro do terreiro: (...) O GRAB me ensinou muita coisa com relação ao HIV, porque eu entrei completamente cru, não sabia de nada... Foram muitas palestras, muitos seminários, viajei muito. Até que me tornei especialista na área, passei a dar palestras e coordenar projetos. E a pessoa que mais ajudei com os conhecimentos que obtive do GRAB foi o próprio J., e outras pessoas de outros terreiros que me pediam conselhos, por que as pessoas não me viam só como A. de Ogum, me viam como um centro de informações. Pelo fato de todos no Candomblé e na Umbanda saberem que o J. era portador e me virem com ele, eles acabavam conectando, dizendo: “se o J. é portador, A. também é”, pelo fato de sermos namorados, mas isso nem significa nada, né? Mas, através disso eu dava muitos conselhos, muita informação. (A. DE OGUM, 2012). O engajamento político e a militância pelos direitos humanos das pessoas vivendo com HIV/Aids, aliado a luta pelos direitos do público LGBT, também surgem a partir destas experiências, o que podemos inferir como uma intervenção “político-solidária” que provocará a organização de grupos em defesa dos direitos destes sujeitos excluídos, bem como a reivindicação junto ao poder público pelo acesso aos serviços de saúde de prevenção e assistência ao HIV/Aids. O Pai de santo Cleilton fala de sua relação com a Aids, a militância e sua inserção na Umbanda: A minha entrada no movimento da Aids eu costumo dizer que eu caí de pára-quedas quando eu tinha 17 anos. Eu conheci uma pessoa que era presidente de uma instituição e eu nem sabia de longe o que era essa questão da Aids, e comecei a me envolver com essa pessoa, então, depois de um mês outra pessoa conhecida dele começou a se utilizar da me fé, falando da Umbanda e dizendo que ele era HIV positivo, e até então eu ainda não sabia. E aí eu tive a reação de primeiro impacto de pensar que eu estava contaminado, você fica sem chão, achando que vai morrer. Tivemos uma conversa, ele me esclareceu os pontos, as interrogações, e daí por eu estar envolvido com essa pessoa amorosamente eu quis estar ampliando meus conhecimentos para este mundo, que até era desconhecido para mim. Então, comecei a freqüentar a instituição, que era o GRAB, e ele era o presidente na época. Então comecei a militar fervorosamente com a questão da Aids. Com pouco tempo ele adoeceu, porque na década de 90 não tinha grandes recursos, não tinha os anti- retrovirais, era só o AZT e a Aids foi muito violenta, muito severa com ele. E apesar da minha pouca idade, a pouca experiência, quando ele ficou de cama eu passei a assumir o papel dele mesmo que involuntariamente. Eu passei a ir para os locais representando a instituição e tomando decisões junto à diretoria. E mostrar a cara nos jornais, brigar, ir para a televisão, brigar para melhoria de tratamento, de medicamentos, para o aumento de leitos, e logo em seguida ele faleceu, acho que uns oito meses depois. Quando ele faleceu eu passei um tempo sem rumo, eu não sabia o que fazer, porque eu sai da minha casa e passei a morar praticamente no hospital com ele, eu me dividia com outra pessoa da instituição. Com o falecimento dele eu passei um tempo afastado porque não tinha condições psicológicas pra dar 142 continuidade, e após uns quatro meses eu retornei a instituição e a luta. Nessa seqüência eu entrei na Umbanda de fato, que foi num treinamento de prevenção de DST/HIV/Aids que um amigo me chamou, na festa do companheiro dele, que era dono da casa e que com o tempo eu passei a ser filho da casa. (PAI CLEILTON, 2010). Pai Cleilton atua, hoje, como agente de saúde na Prefeitura Municipal de Fortaleza, na Coordenação Municipal de DST/Aids, atendendo diretamente ao público dos terreiros. Durante a primeira gestão “Fortaleza Bela”, conduzida pelo partido dos trabalhadores, no período de 2005 a 2008, alguns militantes dos movimentos LGBT e de luta contra Aids foram convidados a participar do governo em questão, o que resultou em uma ação mais efetiva dos serviços públicos de saúde nos terreiros pesquisados. Pai Cleilton relata sobre sua experiência: Hoje a gente atende 26 terreiros em Fortaleza e, às vezes, com certa dificuldade, devido à falta de estrutura para as visitas. São poucos os profissionais da saúde que querem ir até os terreiros fazer o trabalho de prevenção. Por que a gente atua com a prevenção das DSTs/Aids e Hepatites Virais. Eu comecei a trabalhar desde a primeira gestão de Luiziane 58 , mas não sabemos como ficará a partir do próximo prefeito eleito. A dificuldade é o medo da continuidade das ações. (PAI CLEILTON, 2012). O medo pela descontinuidade das ações é um reflexo da ausência de uma política pública em saúde de Estado voltada para a população em questão, e não somente uma política de governo. Ademais, conforme projeta a presidenta da União Espírita de Umbanda do Ceará (UECUM), Suzana Sá de Oliveira, conhecida como Mãe Suzana (2010), são, aproximadamente, 5.000 terreiros em Fortaleza e Região Metropolitana, o que podemos afirmar que há uma baixa cobertura no atendimento dos terreiros por parte dos serviços públicos em saúde. Ainda assim, a instituição oficial da Rede de Terreiros em Fortaleza, durante a realização do VI Seminário Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, em 2006, reflete o desejo de organização e fortalecimento das ações que já eram desenvolvidos pelos adeptos nos terreiros. Na ocasião do evento, a problemática do HIV/Aids se apresenta como uma das prioridades a ser trabalhada em parceria com o poder público e suas instâncias da saúde. 58 A gestão “Fortaleza Bela” da Prefeitura Municipal de Fortaleza foi conduzida pelo partido dos trabalhadores durante dois períodos: 2005 a 2008 e 2009 a 2012. 143 Priorizam-se, neste contexto, as ações preventivas e de aconselhamento 59 , as campanhas para o diagnóstico precoce através do teste rápido, o acesso as informações sobre as formas de transmissão e convívio com o HIV/Aids, além da divulgação e acesso aos locais de apoio e tratamento da Aids. São vários os depoimentos que apontam as limitações e a necessidade do fortalecimento da Rede: A Rede de Terreiros já tem alguns anos, e ela vem meio que se arrastando porque as pessoas não têm interesse, não assumem o compromisso com a causa, até mesmo por que as pessoas já têm as atividades de suas casas e acham que é algo mais a fazer, que vão estar comprometidos, e talvez achem que não tem muita importância, não sei. Esse ano nós estávamos tentando dar uma guinada nas ações, porque o que acontece é que uma pessoa da rede de terreiros, que também trabalha na prefeitura, pega os preservativos e distribui em alguns terreiros, um trabalho isolado, solitário, e que a gente ta tentando garimpar pessoas para se unir a esse multiplicador e levantar a bandeira, para que se tenha um trabalho efetivo e se cadastrar o máximo possível de casas e ter um trabalho de conscientização, para que as casas se tornem um banco de preservativos e os pais e filhos multiplicadores de prevenção as DSTs/HIV. (PAI CLEILTON, 2010). Eu acho que existe muita conversa e pouca prática, o que a gente vê é que as pessoas se preocupam muito em fazer promessas, vivem de promessas, que vão fazer isso, que vão promover uma palestra... mas isso nunca se realiza, só existe mesmo um trabalho que eu ainda acho muito pouco, de distribuição de preservativos, certo? Eu num vejo os trabalhos da Rede de Terreiro ir pra frente, as pessoas só tem início, continuidade mesmo eu não vejo.... (J. ÍNDIO, 2010). Ela não está caminhando, ela está dormindo em algum berço. Num berço de algum hotel cinco estrelas, mas não vejo a ação da Rede nos Terreiros. Muito dificilmente quando vai acontecer algum evento eles nos chamam, mas os umbandistas ainda precisam de mais. Não existe uma coordenação que organize os trabalhos e que tragam os benefícios que os umbandistas precisam. (MÃE CONSTÂNCIA, 2010). No embate em se organizar, se fazer representar junto ao poder público e mobilizar as ações efetivas junto à comunidade dos terreiros, a Rede de Terreiros mantém 59 No âmbito da saúde pública, o aconselhamento é entendido como um processo de escuta ativa, individualizado e centrado no cliente. Pressupõe a capacidade de estabelecer uma relação de confiança entre os interlocutores, visando ao resgate dos recursos internos do cliente para que ele mesmo tenha possibilidade de reconhecer-se como sujeito de sua própria saúde e transformação. No âmbito das DST e HIV/aids, o processo de aconselhamento contém três componentes: apoio emocional; apoio educativo, que trata das trocas de informações sobre DST e HIV/aids, suas formas de transmissão, prevenção e tratamento; avaliação de riscos, que propicia a reflexão sobre valores, atitudes e condutas, incluindo o planejamento de estratégias de redução de risco. Esses componentes nem sempre são atingidos em um único momento ou encontro e, de certa forma, podem ser trabalhados tanto em grupo como individualmente. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1998). Percebe-se, portanto, que esta prática, de alguma forma, já se fazia presente nos terreiros de Umbanda pesquisados. 144 uma agenda ainda tímida, pontual, sem planejamento e apoio necessário por parte do poder público, bem como da maioria dos umbandistas cearenses. Tal perspectiva nos remete a reflexão de Castells (1999) e a possibilidade de transformação das identidades de resistências - geradas pelos atores que estão em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação - em identidades de projeto - formadas quando os atores sociais, com base nos materiais culturais a que têm acesso, constroem uma nova identidade que redefine a sua posição na sociedade e, por assim fazê-lo, buscam a transformação da estrutura social como um todo (CASTELLS, 1999b: 24). No exercício em observar os aspectos da produção cultural interna e suas experiências sociais que constroem e redefinem novas perspectivas diante da estrutura social, política e econômica mais ampla, sabemos que as práticas de saúde no convívio com o HIV/Aids em terreiros de Umbanda em Fortaleza avançam, na medida em que revelam formas tão dinâmicas no enfrentamento e superação da problemática em questão; no entanto, os desafios ainda são enormes, tendo em vista que as lideranças mantém uma atuação operacional ainda tímida diante universo a ser trabalhado, e da falta de apoio por parte do poder público e da maioria dos umbandistas. Do ponto de vista da reintegração do grupo ou legitimação social do cisma irreparável entre as partes em conflito (Turner, 1971), podemos inferir que no cenário das práticas em saúde nos terreiros no convívio com o HIV/Aids, o reconhecimento da questão e das formas de conviver encontram-se mais acessíveis, menos conflituosas. No entanto, a aflição e o acolhimento ao adepto portador de HIV/Aids perduram continuamente, diante da dinâmica da reprodução da própria Umbanda, com seus desafios internos e externos, na (re)invensão das suas práticas culturais, diante de sua sobrevivência. O depoimento de Pai Silvano é esclarecedor no sentido da informação sobre os riscos de contaminação pelo HIV através do corte no ritual, e revelador na tomada de decisão em aceitar a condução do processo de cura independentemente da situação do enfermo: Trabalhar na cura é evidente que eu vou fazer, lógico. Só não vou é mexer com corte que eu não vou cortar um HIV, que eu não to doido, não é isso? Pai de santo, macumbeiro, não vai fazer um negócio desses. Mas, isso não quer dizer que ele tá excluído (refere-se à PVHA)... só que o trabalho dele vai passar a ser diferente. Tem que ter mais cuidado, a gente evita o máximo possível os cortes, e quando acontecer, tem que usar luvas, material descartável. A consciência é do médico que vai entrar no barracão quando for fazer a cirurgia dele. Por que a doença ela não tem cara, mas você pode ter o cuidado e tratar com o coração. (PAI SILVANO, 2010). 145 J. Índio, enquanto umbandista portador de HIV, também reconhece a melhoria com relação ao preconceito nos terreiros, e enfatiza a necessidade frequente do aconselhamento junto aos caboclos para fortalecimento de sua saúde: Eu vejo que minimizou a questão do preconceito, tanto que foram abertas duas casas de Candomblé aqui com pessoas portadoras do vírus, casas abertas e as pessoas recolheram e deram abrigo aos seus filhos, não é mais como era antes, por que eu sofri muito no início... Hoje, às vezes vem àquela angústia, vem àquela sensação de que o mundo vai faltar nos seus pés, aí a gente vai aos pés do caboclo, vai ao pé da entidade e conversa pra receber um aconselhamento, e vê que também pior seria se pior fosse, né? Porque tem tantos outros casos, tantas outras doenças têm tantas coisas mais graves do que ser só soropositivo, né? Então a gente sabe que a vida da gente tem que ir pra frente, com diz seu Zé, “É pra frente que as malas batem.” Tem que movimentar o seu Bará, o seu Exú, tem que botar o seu Exú pra funcionar, pra você trabalhar, pra você poder ir pra frente, pra procurar perspectivas novas, é assim que a gente tem que viver, porque se agente for ficar se alimentando de negatividade, com certeza a negatividade vem com muito mais facilidade, então a busca dessa positividade, por intermédio de um passe, das palavras que o caboclo te dá, né? A energia dizendo, “Eu tô aqui pra te defender”, isso é muito importante pra gente, essa busca de estar lá no terreiro é frequente, quando você chega que o caboclo te deseja muita saúde, porque é impressionante, quando eu chego em qualquer terreiro a primeira palavra que eu escuto das entidades é essa, “saúde”, e eles não me desejam outra coisa: “Estou aqui pra lhe dar saúde”, então a energia está sintonizada com o que quero, eu nem falo, então as Orixás... então eu já sei a energia está ligada a mim, né? A minha energia, porque eles não me desejam outra coisa, “que você tenha saúde, que você cresça que prospere, que você viva muitos anos com saúde, paz...”, então, assim, a maioria das palavras que eu escuto das entidades que eu vou, eu qualquer terreiro ou em qualquer cabeça, eles chegam e dizem a mesma coisa, me desejam saúde, então eu vejo isso como se essas energias estejam sempre me vendo, sempre me protegendo, entendeu? (J.ÍNDIO, 2012). A superação do preconceito e a (re)configuração da identidade deteriorada, estigmatizada, do umbandista portador de HIV, passa pela aceitação pessoal de sua condição e o reconhecimento e legitimação social de seus pares diante da problemática. Neste sentido, o terreiro efetiva seu caráter acolhedor, de inclusão e participação da diversidade, enquanto o adepto portador de HIV encontra o espaço adequado para o cuidado de si e de sua irmandade de terreiro. Na fala de A. de Ogum podemos perceber uma argumentação propositiva diante dos estigmas enfrentados por sua homossexualidade, soropositividade e religiosidade: São três coisas que eu tenho muito orgulho: Eu sou gay, sou da Umbanda e sou portador de HIV. Eu não tenho vergonha de dizer isso, qualquer pessoa, em qualquer lugar pode me perguntar e eu confirmo. Não tem necessidade de sair espalhando num outdoor bem grande dizendo: “Ei, sou baitola, sou gay!”, ou então: “Ei, sou macumbeiro, sou da Umbanda!”, ou então: “Ei, psiu, eu tenho Aids!”. Não 146 existe esta necessidade, mas se alguém me perguntar eu respondo na maior tranqüilidade: “Tenho, e daí”? (A. DE OGUM, 2012). As trajetórias individuais se confundem com a trajetória da própria religião. Em um importante evento realizado no terreiro de Pai R. de Oxum em alusão a Jurema Cearense, com a presença de representantes da Rede de Terreiros, da Universidade e de vários outros terreiros (Ver Anexo X), registramos o relato do pai de santo sobre sua inserção na Jurema, suas dificuldades enquanto portador de HIV e sua superação diante dos companheiros de religião e demais participantes: E de lá eu trouxe a Jurema aqui pra Fortaleza suas cantigas, as louvações, saudações, e gostaria que Fortaleza, nesse momento, fosse abraçada por essa energia da encantaria da Jurema... Eu gostaria até de explicar um pouco pra que as pessoas possam entender que muitos pontos que hoje são cantados vieram de Maceió, que são modificados, e eu me sinto triste por isso, porque eu gostaria que cantassem o ponto mesmo, porque esses pontos foram trazidos pra cá, não são meus e sim de mestres e mestras lá de Maceió e Recife, em Olinda, principalmente, em Santo Amaro, onde mora Sérgio De Iansã, ode mora Raminho, né? Então, todo esse povo eu tive contato, eu tive uma ligação. Mestre Junqueira não existia, hoje existe Mestre Junqueira, mas o primeiro médium aqui dentro de Fortaleza chama-se Francisco de Ajagunã que é meu Filho, que há vinte anos eu trouxe esse Mestre Junqueira na cabeça dele, hoje tem muita gente com o Mestre Junqueira e eu acho bonito, mas está modificando, então a gente não pode deixar modificar, a gente não pode modificar as raízes aborígenes, não pode, hoje, a Umbanda é modificada, mas,não podemos deixar os novos hoje fazerem o que querem, vamos cantar o que é certo, o que é correto, não modificar o ponto, concorda minha mãe? Porque a folha tá nascendo da árvore, a folha é a mesma e a cantiga também é a mesma, né isso? Temos que ver isso daí. E nós como mais velhos temos que explorar isso e exigir dos filhos que eles aprendam correto, que eles não induzam a sua mente em cima de uma cantiga que não vai dar resultado, vai influir apenas a mente dele por algo psicológico à toa, que hoje só se manifestam pra demandar, pra feitiço e pra aquilo, não. Existe a encantaria, existe a magia em cima disso, num precisa um ponto cantado pra você demandar porque até eu soube pela minha avó e pelos mais antigos que um ponto mal cantado, um ponto riscado, um ponto mal afirmado traz uma perturbação pra dentro de uma casa, né isso? Então eu aprendi isso desde novo, hoje estou com quarenta e quatro anos de idade, com um rostinho de bebê, e isso me trouxe... Eu acho que é a vivência, é a sobrevivência, sabe? Você viver em situação de vida que muitos, hoje, não conseguem viver e eu vivo com HIV há vinte e quatro anos e eu sou a prova de vida e vivência e sobrevivência dentro da religião, tanto na Umbanda quanto no Candomblé. Se muitos adquirem e caem é porque querem, porque nós temos um tratamento maravilhoso, o hospital São José nos oferece um tratamento maravilhoso, medicação gratuita, médicos e infectologistas maravilhosos, um pólo que são um dos melhores dentro do nosso país, certo? Então, as pessoas se deixam levar pelo preconceito, pela discriminação, pelo abuso da família e até da religião, eu gostaria até que as pessoas da região, hoje, fossem mais amáveis, compartilhassem enquanto ser humano, abraçar a causa, abraçar o ser humano, abraçar o próximo que esteja infectado ou com muita saúde, seja como for, desamparado, passando fome, a gente tem que abraçar a causa, a gente é uma família, a gente é uma nação, a gente é uma comunidade, então hoje eu estou formando essa comunidade pra que a gente possa se unir mais, não só na Umbanda, mas também dentro do Candomblé. Todos são sacerdotes, todos são Pais de Santos, 147 todos são donos de uma casa e donos de seus filhos e cuidam de comunidades, então vamos ver se as pessoas botam mais isso e lutam pela sua causa, lutam pela sua questão, sua postura, num é pra botar uma guia de sete linhas no pescoço que vai te levar ao trono, não. Mas sim a tua humildade, a tua simplicidade, o amor a tua religião, o amor ao teu Orixá, hoje, o que me faz ser o que eu sou é o que eu tenho, é o amor, é a dedicação, o respeito, a luta e a garra, certo? (PAI R. DE OXUM, 2013). Pai R. de Oxum reconstitui em sua fala a tradição da Jurema no cenário cearense, suas origens, suas influências e importância da continuação. Mas, também encontra espaço para compartilhar sua experiência enquanto portador de HIV, divulgando os caminhos e a importância do tratamento e, sobretudo, a solidariedade que a comunidade de Terreiro pode exercer diante da diversidade que compõem os adeptos que dela fazem parte. Portanto, a análise sobre o estigma no convívio com o HIV/Aids nos terreiros de Umbanda em Fortaleza revela a riqueza de uma cultura que se fortalece e se renova diante das adversidades que lhes são impostas. Uma construção histórica de lutas e resistências, onde a Umbanda mostra sua vitalidade, enfrentando seus desafios internos e externos e (re)inventando suas práticas culturais na luta pela sobrevivência. 148 CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise sobre o estigma no convívio com HIV/Aids nos terreiros de Umbanda revela a riqueza de uma cultura que se fortalece e se renova diante das adversidades que lhes são impostas. Uma construção histórica de lutas e resistências que por um lado, revelam um passado de profundas perseguições e preconceitos por parte das elites (intelectual, inclusive), das igrejas e do Estado; e por outro, a determinação de seus adeptos marcados, muitas vezes, por trajetórias de exclusão social. Ainda assim, a Umbanda mostra sua vitalidade, enfrentando seus desafios internos e externos e (re)inventando suas práticas culturais diante de sua sobrevivência. Os umbandistas portadores de HIV/Aids, em meios as incertezas, as fragilidades e as vulnerabilidades impostas por sua condição de soropositividade, encontraram no cenário da Umbanda o acolhimento necessário para o reestabelecimento de seu equilíbrio vital. No entanto, considerando que os valores religiosos não estão desconectados da forma como a sociedade se mantém e se reproduz, a convivência com as pessoas que vivem com HIV/Aids muitas vezes são marcadas pelo estigma que a própria Aids produz, sobretudo, durante os primeiros anos de convivência com a epidemia. O estigma expressa os significados e práticas culturais que englobam interesses e sinalizam distinções sociais entre indivíduos, grupos e instituições. Nas relações cotidianas nos terreiros, atitudes como a separação de utensílios domésticos de uso coletivo como pratos, copos e talheres, e o medo do consumo de alimentos produzidos por portadores de HIV reproduzem o desejo de distanciamento do convívio social com aquele sujeito afetado pelo vírus. Os adeptos se sentiam ameaçados pela possibilidade de contaminação com o vírus no convívio com o portador de HIV. A crise provocada pela incidência de casos de HIV e os dramas sociais vivenciados no convívio com a doença entre os adeptos da Umbanda em Fortaleza chamaram atenção para o cuidado com a transmissão do vírus e as práticas que pudessem por em risco a contaminação, no caso, àquelas que envolvessem cortes ou a utilização de objetos perfuro- cortantes durante os rituais. Porém, as primeiras ações de prevenção à Aids realizadas nos terreiros foram mobilizadas a partir do envolvimento dos próprios adeptos da Umbanda, sejam eles homossexuais, pessoas vivendo com HIV/Aids ou profissionais de saúde. 149 Da crise motivada pela descoberta e revelação da soropositividade do adepto na comunidade dos terreiros, surgem formas variadas de lhe dar com a situação. As tensões e os conflitos vivenciados no interior daquela comunidade revelam o drama e a necessidade das lideranças tomarem decisões em termos de imperativos e constrangimentos morais muitas vezes arraigados na própria religião. Visto que a própria Umbanda foi historicamente uma religião discriminada que acolheu diversos públicos estigmatizados como pobres, negros (também brancos e classe média), prostitutas, homossexuais, portadores de diversas doenças, dentre outros, além de possuírem lideranças estigmatizadas fora da religião, mas respeitadas dentro dela, e que malgrado as perseguições sofridas pela religião, ela permanece viva (re)inventando velhas e novas práticas culturais no desafio pela sobrevivência. O acolhimento e a intervenção político-solidária que ampliam os conhecimentos sobre os riscos de contaminação e os meios de convivência com o HIV/Aids são elementos importantes neste processo. As ações de acolhimento realizadas por pais, mães e filhos de santo no cotidiano dos adeptos e nos rituais de cura aos poucos atenuam os episódios de conflitos gerados pela problemática do HIV/Aids. O conhecimento de uma longa tradição, o exercício da escuta e do aconselhamento, a disponibilidade de tempo e energia para o acompanhamento no tratamento diminuem as distâncias entre o enfermo e o cuidador, entre o enfermo e a comunidade do terreiro. A iniciativa também reflete o caráter educativo e solidário das ações que envolvem toda a comunidade do terreiro, e que perdura na memória dos indivíduos de várias gerações. No processo educativo, a ameaça e o medo da Aids vai cedendo para uma atitude mais propositiva diante das aflições causadas pela doença. A experiência com o HIV/Aids entre os adeptos da Umbanda faz com que o grupo compartilhe informações sobre as formas de transmissão e convívio com a doença, onde, muitas vezes, o próprio portador do vírus passa a ser um agente multiplicador da prevenção e do cuidado com a irmandade do terreiro. A superação do preconceito e a (re)configuração da identidade deteriorada, estigmatizada, do umbandista portador de HIV, passa pela aceitação pessoal de sua condição e o reconhecimento e legitimação social de seus pares diante da problemática. Neste sentido, o terreiro efetiva seu caráter acolhedor, de inclusão e participação da diversidade, enquanto o adepto portador de HIV encontra o espaço adequado para o cuidado de si e de sua irmandade do terreiro. O engajamento político e a militância pelos direitos humanos das pessoas vivendo com HIV/Aids, aliado a luta pelos direitos do público LGBT, também surgem a partir destas 150 experiências. Uma intervenção político-solidária provocará a organização de grupos em defesa dos direitos destes sujeitos excluídos, bem como a reivindicação junto ao poder público pelo acesso aos serviços de saúde de prevenção e assistência ao HIV/Aids. Todavia, no embate em se organizar, se fazer representar junto ao poder público e mobilizar as ações efetivas junto à comunidade dos terreiros, percebemos que o movimento organizado através da Rede de Terreiros mantém uma agenda ainda tímida, pontual, sem planejamento e apoio necessário por parte do poder público, bem como da maioria dos umbandistas cearenses. O desafio é grande diante da ausência de uma política pública em saúde de Estado voltada para a população em questão. No cenário das práticas em saúde nos terreiros no convívio com o HIV/Aids, o reconhecimento da problemática e das formas de convivência encontram-se mais acessíveis, menos conflituosas. No entanto, a aflição e o acolhimento ao adepto portador de HIV/Aids perduram continuamente, diante da dinâmica da reprodução da própria Umbanda, com seus desafios internos e externos, na (re)invensão das suas práticas culturais, no convívio permanente entre seus adeptos, bem como na luta diária por seu reconhecimento diante da sociedade em geral. 151 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRANTES, Samuel. Sobre os signos de Omolu. Rio de Janeiro: Ed. Ágora da Ilha, 1999. AYRES, J.R.C.M. et al. Vulnerabilidade e prevenção em tempos de Aids. Em: Sexualidades pelo avesso: direitos, identidade e poder. Rio de Janeiro: IMS:UERJ, Edições 34, 1999. ANDRADE, Maristela Oliveira de. A viagem de Mário de Andrade ao Nordeste: Missão Cultural e Pesquisa Etnográfica. Recife: Cadernos de Estudos Sociais, v. 25, no. 2, p. 171- 182, jul./dez., 2010 ASSUNÇÃO, Luiz Carvalho de. Reino dos Mestres: a tradição da jurema na umbanda nordestina. Rio de Janeiro: Pallas, 2006. BANDEIRA, Maria de Lourdes. 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Feitura de santo – ritual de iniciação ao Candomblé. Força – aproxima-se da noção de axé, energia vital, força para conseguir um propósito. Ibá bobó aieé, bobó aioô - saudação utilizada durante o ritual de cura, cântico de prosperidade. Ile – terra. Yó – sal. Lelê, marê, marê. Oxum marê, lelê marê, oxum maré - saudação utilizada durante o ritual de cura, cântico de prosperidade. Mugunzá – milho amarelo cozido. Ô ô juman man, olorum ô juman man – saudação utilizada durante o ritual de cura, cântico de prosperidade. Ojá – turbante branco. 164 Obi – noz utilizada para consentimento do ritual. Ori – cabeça interior. Oti- vinho branco. Padedéé ôô Padedé a rico - saudação utilizada durante o ritual de cura, cântico de prosperidade. Roncó – local destinado para a limpeza espiritual. 165 ANEXOS ANEXO I – Esquema conceitual geral considerado durante a pesquisa. Umbanda (Universo simbólico-religioso. Dimensão sócio-histórica) Práticas em Saúde (Processos saúde-doença. Relatos de Cura. Assentamentos. Rituais de Cura) HIV/Aids (Inserção. Perfil epidemiológico. Respostas sociais) Estigma (Aids. Homossexualidade. Constituição da Identidade deteriorada) DRAMAS SOCIAIS ANÁLISE DE PROCESSOS SOCIAIS LIMINARIDADE RUPTURA E CRISE AÇÃO CORRETIVA E REINTEGRAÇÃO REVELAÇÃO (Descoberta e Revelação da Soropositividade) RELAÇÕES COTIDIANAS (biografias, narrativas cotidianas) ACOLHIMENTO E PARTICIPAÇÃO (Acolhimento e aprendizado religioso. Intervenção político-solidária) 166 ANEXO II – Desenho da planta do terreiro de Pai R. de Oxum com as localizações de seus respectivos assentamentos. ASSENTAMENTO DE D. MADALENA QUARTO DO DOTE R. DE OXUM QUARTO DA EKEDE CEZALA VARANDA RONCÓ QUARTO DE OGAN VODUNS ALTAR CENTRO DO TERREIRO ASSENTAMENTO DE BALE E OBALUAIÊ ENTRADA ASSENTAMENTO DOS EXUS (LEGBARAS) OGUM (GUM) BESSEM BOIADEIRO AGUÉ YASMIS 167 ANEXO III – Desenho da planta do terreiro de Mãe Constância com as localizações de seus respectivos assentamentos. CENTRO DO TERREIRO ALTARES ALTARES ALTARES ASSENTAMENTO DOS CIGANOS CAMARINHA (RONCÓ) CRUZEIRO DAS ALMAS ASSENTAMENTO DOS PRETOS VELHOS, ZÉ PILINTRA E OBALUAIÊ ASSENTAMENTO DOS CABOCLOS E BOIADEIROS ENTRADA (CUMIEIRA) ASSENTAMENTO DOS EXUS EXU ONÃ ASSENTAMENTO DE XANGÔ E IANSÃ OGUM 168 ANEXO IV – Fotografias dos Assentamentos do Terreiro de Pai R. de Oxum - 2013. Assentamento dos Exus (Elegbaras) Assentamento de Ogum (Gum) Assentamentos de Iansã (Oiá Balé) e Obaluaiê (Xapanã) – parte externa Assentamentos de Iansã (Oiá Balé) e Obaluaiê (Xapanã) – parte interna Assentamento de Dona Madalena e Nego Gerso Altar Principal 169 ANEXO V – Fotografias dos Assentamentos do Terreiro de Mãe Constância – 2010/2013. Assentamento de Obaluaiê Assentamento dos Exus após obrigação (2010) Cruzeiro das Almas Assentamento de Ogum Altar Símbolo da Umbanda 170 ANEXO VI - Fotografias da aparição de Obaluayê no terreiro de Candomblé de Pai Virgílio de Omolu, em Caucaia/CE – Janeiro/2013. 171 ANEXO VII - Fotografias da Participação da Rede de Terreiros na Parada da Diversidade Sexual de Fortaleza – 2011 (Fotos cedidas pelo Grupo de Resistência Asa Branca). 172 ANEXO VIII - Fotografias da Participação da Rede de Terreiros e Secretaria Municipal de Saúde na Campanha de Vacinação contra as Hepatites Virais e Teste de HIV no Terreiro de Pai Ricardo – Novembro/2012. 173 ANEXO IX – Fotografias da Festa no Terreiro de Mãe Constância (Setembro/2010). 174 ANEXO X - Fotografias da Festa no Terreiro de Pai Robério (Janeiro/2013). (Pai Robério, Prof. Ismael Pordeus Jr., Mãe Estela) Palestra Ritual da Jurema (Pai Robério, Mãe Estela, Prof. Ismael Pordeus Jr., Violeta Holanda – pesquisadora, Leno – Rede de Terreiros)