UNIVERSIDADE FEDER AL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM MEMÓRIA ATÁVICA Estética da loucura em Mario Quintana CARLOS ROBERTO RODRIGUES BARATA JÚNIOR Natal/RN 2017 MEMÓRIA ATÁVICA Estética da loucura em Mario Quintana CARLOS ROBERTO RODRIGUES BARATA JÚNIOR Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte sob a orientação do Prof. Dr. Derivaldo dos Santos, com vistas à obtenção do título de doutor. Natal/RN 2017 Dedico a André AGRADEÇO A Vô, in memoriam. À minha avó Ana, Por ter me ensinado a ler. À minha avó Claudina, Pelo carinho. Ao professor e orientador Derivaldo dos Santos, Pelas injeções de coragem, pela amizade, pela paciência, pelo inefável. À professora Sandra Sassetti Fernandes Erickson, Pela guia numinosa. Às professoras Tânia Lima e Valdenides Dias, Por desempenar este trabalho quando do exame de qualificação. Aos professores Ilza Matias e Marcos Falleiros, Pelos sopros apolíneos. Às professoras Dona Lourdes e Lusivandra Teiga, Pelo exemplo. Ao caro Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da UFRN, em especial ajuda constante de Beth e Gabriel Uchôa. À minha mãe, Pela amizade. Ao meu pai, Pela amizade. Aos meus poderosos companheiros de bordo, Eliane da Silva, Francisco Vitoriano, Helissa Medeiros, Laurytha Carlos, Lígia de Melo e Renah Santos, indispensáveis para a conclusão deste trabalho. Aos meus alunos e colegas de trabalho da UFRN em Currais Novos. Aos meus alunos da UFERSA em Caraúbas. A Edilson Aureliano, Por todas as charges produzidas exclusivamente para este texto. RESUMO Este trabalho tem como objetivo investigar as acepções do termo “loucura” e de seus numerosos derivados na obra do poeta Mario Quintana (1906-1994). Por pouco mais de meio século, o escritor gaúcho entrelaçou insistentes imagens em um plano estético unificado, com vistas a questionar os conceitos de razão e de consciência. O poema Atavismo (1977) se ofereceu para servir ao mesmo tempo enquanto ponto de partida e eixo central para nossas análises. Conduzido por Atavismo, este estudo observou que os termos “loucura” e “poesia” têm ambos a mesma gênese: uma memória atávica. Por isso, foi preciso que considerássemos as inferências sobre o atavismo, conceito das ciências biológicas relativo a um tipo especial de memória e, também, a memória ela mesma. Na redundância proposital formada pelo adjetivo “atávica” e pelo substantivo “memória”, o poeta nos induz à percepção de que a discussão sobre a loucura/poesia orbita em torno de um problema coletivo, isto é, social, em sua relação com os tempos e com os valores dos tempos. A compreensão assumida é a de que o(s) termo(s) loucura/poesia se erige(m) como antítese de formas específicas das configurações sociais vigentes, sejam elas políticas, artísticas, econômicas ou culturais. É, na busca do entendimento dessa antítese, que apregoa formas mais espontâneas de vida que este trabalho finaliza seus esforços, apurando as figuras e recursos estéticos com os quais o poeta incorporou seu intento: a criança, o louco, Trebizonda e outros adidos no elenco linguístico quintaniano. Por trabalharmos com uma poética bem articulada em si, a leitura interligada dos poemas de Mario Quintana se sustenta por si mesma, mas não se institui necessariamente hermética, exclusiva. Sendo esta uma pesquisa qualitativa, e não havendo fortuna crítica que verse sobre a temática, a melhor forma de trabalho é, antes de tudo, a leitura atenta dos poemas e a anuência de suas próprias vozes. Entretanto, isso não impede que lancemos mão de outros textos e elementos elucidativos que subsidiem esta pesquisa com aportes teóricos, críticos, estéticos e filosóficos. Dessa forma, é de grande valia a intersecção dos poemas com outras vozes, tais quais, Sófocles (497?-406? a.C.), Shakespeare (1560?-1616), Machado de Assis (1839-1908), Mikhail Bakhtin (1895-1975), Henri Bergson (1859-1941), Maurice Halbwachs (1877-1945), Salvador Dalí (1904-1989), Jacques Le Goff (1924-), Michel Foucault (1926-1984), Ecléa Bosi, dentre outras. Tais vozes impulsionam apontamentos críticos mais ricos acerca de uma obra brasileira propagada durante uma vida inteira em defesa de uma humanidade além da lógica cartesiana. Palavras-chave: Loucura. Memória. Poesia. Sociedade. ABSTRACT This work aims to investigate the meanings of the trope “madness” and its many derivatives in the work of the Brazilian poet Mario Quintana (1906-1994). The Southern poet worked for over half a century with an aesthetic unified plan, like a tapestry of recurring images, in an attempt to question the concepts of reason and conscience. The poem Atavismo (1977) offers itself as a central axle to our analysis. Guided by Atavismo, this study observed the terms “madness” and “poetry” have the same genesis: an atavistic memory. In order to do so, it was necessary to consider inferences about atavism, a concept from Biology concerned to a special type of memory and about memory itself. Because its redundant insistence with the adjective “atavist” as an attribute of memory, the poet lead us to the perception that the discussion about madness/poetry turns around a collective problem, that is a social problem in relation with time and the values of time. The comprehension is that the terms madness/poetry are built as an antithesis of specific social settings like political, artistic, economic and cultural backgrounds. Trying to achieve a comprehension of such antithesis that defends more spontaneous ways of life, his work walks towards its end analyzing the tropes and aesthetical resources with which the poet embodied his plan: the child, the madman, Trebizon and other attachés in the Quintanian linguistic cast. Since we have been working with a very articulated poetics, a connected reading of the poems is desirable, which does not mean hermetic or exclusive. However, this approach does not prevent lay hold of other texts and explanatory elements that support this research with theoretical, critical, aesthetic and philosophical contributions. Therefore, the intersection of the poems with the voices of texts like Sophocles (497?-406? BC), William Shakespeare (1560?-1616), Machado de Assis (1839-1908), Mikhail Bakhtin (1895- 1975), Henri Bergson (1859-1941), Maurice Halbwachs (1877-1945), Salvador Dalí (1904-1989), Jacques Le Goff (1924-), Michel Foucault (1926-1984), Ecléa Bosi among others. Such voices promote richer critical notes about a Brazilian work spread over a lifetime in defense of a humanity beyond Cartesian logic. Keywords: Madness. Memory. Poetry. Society. RESUMEN Este trabajo tiene como objetivo investigar los diferentes significados del concepto locura y sus cuantiosos sentidos en la obra del poeta brasileño Mario Quintana (1906- 1994). Por cerca de poco más de medio siglo, el escritor riograndense entrecruzó insistentes imágenes, en un plano estético unificado, con el fin de cuestionar los conceptos de razón y conciencia. El poema Atavismo (1977) se ofreció para servir simultáneamente como punto de partida y eje central de nuestro análisis. Conducido por Atavismo, este estudio encontró que los términos “locura” y “poesia” tienen la misma génesis: una memoria atávica. Por eso fue necesario que considerásemos las inferencias en relación a lo atávico, como concepto de las ciencias biológicas relativo a un tipo especial de memoria, así como sobre la memoria misma. En la redundancia deliberada, formada por el adjetivo “atávica” y el sustantivo “memória”, el poeta nos induce a la percepción de que la discusión acerca de la locura/poesía gira alrededor de un problema colectivo, es decir, social, en su relación con los tiempos y con los valores de esos tiempos. La comprensión asumida es que lo(s) términos(s) “locura”/“poesia” se erige(n) como antítesis de las formas específicas de los entornos sociales actuales, ya sean políticas, artísticas, económicas o culturales. Es en la búsqueda de la comprensión de esta antítesis que se aprecian formas más espontáneas de vida donde esta obra finaliza sus esfuerzos; el cálculo de las cifras y los recursos estéticos con la que el poeta ha introducido su intención: el niño, el loco, Trebisonda y otros agregados al elenco lingüístico quintaniano. Al trabajar con una poética naturalmente bien articulada, la lectura interconectada de los poemas de Mario Quintana se sostiene por sí misma, sin necesariamente ser hermética o exclusiva. Dado que se trata de una investigación cualitativa y no habiendo una colección crítica que abordase la temática, la mejor manera de trabajar ha sido, ante todo, una lectura cuidadosa de los poemas y el consentimiento de sus propias voces. No obstante, esto no ha impedido que se haya podido utilizar otros textos y elementos explicativos que apoyen esta investigación con aportes teóricos, críticos, estéticos y filosóficos. Por lo tanto, destacamos el enorme valor en la intersección de los poemas con otras voces, tales como: Sófocles (497?-406? aC), Shakespeare (1560?-1616), Machado de Assis (1839-1908), Mikhail Bakhtin (1895-1975), Henri Bergson (1859-1941), Maurice Halbwachs (1877-1945), Salvador Dalí (1904-1989), Jacques Le Goff (1924-), Michel Foucault (1926-1984), Ecléa Bosi, entre otras. Tales voces impulsan, tal vez, notas críticas más ricas sobre una obra brasileña diseminada durante toda una vida en defensa de la humanidad y más allá de la lógica cartesiana. Palabras clave: Locura. Memoria. Poesía. Sociedad O poema O poema é uma pedra no abismo, O eco do poema desloca os perfis: Para bem das águas e das almas Assassinemos o poeta. Mario Quintana 11 SUMÁRIO INTRODUÇÃO................................................................................................................................12 1 ATAVISMO .......…………............................................................................................................26 1.1 Uma leitura darwinista ................................................................................................................30 1.2 Ressignificação poética .…................................................................................................…......39 1.3 Uma tradição atávica....................................................................................................................54 2 MEMÓRIA ...................................................................................................................................85 2.1 À lembrança da lua ..............................................................................................…...................96 2.2 Quem não se lembra, inventa .........…...................................................................................... 111 2.3 Memória enlouquecida ............................................................................................................ 131 3 LOUCURA................................................................................................................................. 149 3.1 O eco do poema........................................................................................................................ 164 3.2 O aulos de Atenas..................................................................................................................... 176 3.3 A canção da vida....................................................................................................................... 183 3.4 Cortinas de Tule ....................................................................................................................... 201 CONCLUSÃO ...............................................................................................................................215 REFERÊNCIAS ........................................................................................................................... 220 ÍNDICE DAS ILUSTRAÇÕES .................................................................................................. 231 12 INTRODUÇÃO O ano é o de 1940, nasce A rua dos cataventos, primeiro livro de poemas de Mario Quintana. Ele, aos trinta e seis anos, mais um gaúcho interiorano residente na Porto Alegre em vias de modernização. O livro, arregimentação de sonetos em meio à efervescência produzida pelo contexto artístico disseminado em 1922. Publicar uma obra de sonetos em plena expansão moderna poderia ser um despropósito, algo simples, ou até mesmo um deslocamento superficial. Entretanto, publicar um livro cujo primeiro poema trouxe um tema recorrente nos próximos quarenta e quatro anos é um fato pelo menos digno de atenção. Julgou-se (BARATA, 2010, p. 29) que o primeiro soneto de A rua dos cataventos fosse a plântula de tudo quanto se pode colher na obra quintaniana, poeta germinado pelas Musas. O soneto de número 1 apresenta-nos o termo “doidivanas” (QUINTANA, 2005, p. 85, I) que se desdobrará como um leque das referências diretas que podem ser constatadas em toda a obra quintaniana. Neste momento, não nos assenta demorada exposição em torno do termo loucura; ora porque prolífico, ora por causa do vasto número de obras que minuciosamente já versam sobre ele. Contudo, convém apontar alguns traços característicos àquilo sugerido pelo teor quintaniano. A fundamentação primeira a da qual parte esta pesquisa é a relação quintaniana entre poesia e loucura. Relação dual, de similitude, mas diferençada, como podemos ver no poema a seguir, cujo título é Simultaneidade: – Eu amo o mundo! Eu detesto o mundo! Eu creio em Deus! Deus é um absurdo! Eu vou me matar! Eu quero viver! – Você é louco? – Não, sou poeta. (QUINTANA, 2005, p. 535) Mario Quintana insiste nessa dualidade em “A diferença entre um poeta e um louco é que o poeta sabe que é louco... Porque a poesia é uma loucura lúcida.” (QUINTANA, 2005, p. 828, A diferença). Em alguns momentos, os quintanares podem até intercambiar os termos “poesia” e “loucura”, como em Ah, vida... “[...] E a única criatura com quem Gelsomina conseguiu entender-se (aliás, um trágico entendimento) foi com o Louco, isto é, com a Poesia...” (QUINTANA, 2005, p. 815, Ah, vida...). Nossa pesquisa de mestrado (BARATA, 2010) nos conduziu ao que se pensa ser proposta estética geral dos quintanares. Diz-se proposta estética por causa da notória intencionalidade de expressar artisticamente, ou seja, aos sentidos, aquilo que foi pe[n]sado pelo intelecto. Tal vértice 13 estético quintaniano se revela avesso à linha reta, ao retrato, à cor sólida, à sisudez, ao iluminismo, ao positivismo, aos planejados fitos. Em contrapartida, o estético em Mario Quintana se avizinha da curva, da paisagem, do verde, do grotesco, do sublime, do movimento, da antimodernidade e do sensível. Dito de outra forma: através da comunicação poética, o poeta gaúcho tem intenções de revelar a humanidade como orgânica, sensível e majoritariamente não fenomenológica: Um dia o Diabo viu uma criança fazendo com o dedo um buraco na areia e perguntou-lhe que diabo de coisa estaria fazendo. - Ué! Não vês? Estou fazendo com o dedo um buraco na areia! espantou-se a criança. Pobre Diabo! O seu mal é que ele jamais compreenderá que uma coisa possa ser feita sem segundas intenções. (QUINTANA, 2005, p. 334, O diabo e a criança) No poema acima, temos o cruzamento de informações para a crítica do leitor: o diabo, símbolo do que não é bom, do que não é o bem; e a criança, seu antagonista, como outro símbolo importante, o bom. Mais importante que as personagens é o desfecho, cuja percepção nos é possível pela engenharia linguística: a da abertura ao espanto, à novidade. A relação entre o diabo e a criança fica suspensa em incompreensão. Cada indivíduo, nessa participação, pensa o outro como louco, mas a voz lírica toma partido da criança: o mais razoável é a desrazão das ações do ser infantil do que a razão esperada sempre pelo demônio. Diabo e criança ficam espantados espanto com o outro: ela porque ele não entende o óbvio, que é a abertura e a exploração às infinitas possibilidades, principalmente as despropositadas; a velha serpente se espanta pelo cerco das ações humanas, que as limita a ter um propósito. O diabo e criança é apenas um poema dentre muitos que totalizam a rica proposta estética quintaniana, a estética do Eterno Espanto, como já a nomeamos (BARATA, 2010). Assessorados por tais análises feitas em torno de uma poesia dialógica, isto é, social, havíamos constatado que o quintanar não se isenta do desejo de participação no coletivo (BARATA, 2010). Vejamos que o uso linguístico em O diabo e a criança não é apenas interativo, mas é também transacional. Esse aspecto de negociação de valores e conceitos são práticas sociais. Associando-se tais discussões a um nível de teor brincalhão, surge como resultado um atributo marcante para a obra de Mario Quintana, uma leveza que é típica da Arte pela Arte, mas destoante da Arte pela Arte em conteúdo, porque não se alheia ao social. Se não é assumidamente Arte Engajada, o quintanar também não é Arte pela Arte. E é essa procura por situar tal poética e seu lugar dentro dessas duas dimensões que buscamos continuar investigando: a impossibilidade de apreensão de tudo que é humano pela razão, pela doxa, pelo 14 consenso; porque, para a existência do eterno espanto, são necessários o desconhecido, o estranho, o grotesco, a suspensão de valores, a loucura. Mas o que seria a loucura nos quintanares? Apenas negação da lógica cartesiana? Recusa da consciência? Desprezo pelo senso comum ou pelo bom senso? Esquecimento da História? Ao mesmo tempo em que a notória aparição que marca a loucura como outro tema-chave, crucial para a compreensão da obra de um dos mais importantes poetas brasileiros, abraçamos a hipótese de que os quintanares estão a falar da loucura de um modo diferente e peculiar, compreensivo e cúmplice. Se Mario Quintana, por vezes, intercambia os termos “loucura” e “poesia”, queremos conduzir a troca desses vocábulos através da leitura da noção de pseudofruto, como o caju (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 564). O caju tem a aparência de um fruto, mas não o é. A qualidade comunicada pelo antepositivo “pseudo-” não é o mesmo que ‘falso’, ‘mentiroso’, ‘fictício’; o atributo “pseudo-”, nesse caso, é o mesmo que feição. Para o homem, o caju não é uma fruta mentirosa ou enganosa, mas sim algo que possui cor e cheiro, se porta e é consumido como uma fruta. Quando os quintanares dizem que a poesia é o mesmo que/é análogo a/é diferente da loucura, podemos afirmar que é uma pseudoloucura. Nesse caso, não é uma loucura inventada, simulada ou fictícia, mas que se porta com os mesmos aspectos da loucura. Explicando por outras vias: a obra de Mario Quintana não nos apresenta uma comparação entre poesia e loucura através de “como”, conjunção comparativa; tal relação também não se dá por metáfora, nem por catacrese, já que são empregados dois termos. Poesia e loucura, nos quintanares, se permutam metonimicamente, por causa de suas semelhanças conceituais. Pretendemos transpor para o discurso crítico, mediador social, as concepções estéticas atinentes à loucura, tema quintaniano alusivo ao eixo dialógico1. poesia/sociedade, assumindo-se sempre que a poesia, em face do todo social, seja análoga à loucura. Sem contranitência às outras áreas científicas, nossa pesquisa esquivar-se-á, frequentemente, das leituras médica e psicológica. Da primeira, por causa das suas conclusões embrionárias sobre a loucura enquanto patologia clínica; da segunda, devido ao desdém que tal perspectiva gera no poeta em questão: “A psicanálise? Uma das mais fascinantes modalidades do gênero policial, em que o detetive procura desvendar um crime que o próprio criminoso ignora.” (QUINTANA, 2005, p. 251). Entretanto, isso não implicará em interdição de referências a elas, quer para abordar apontamentos contidos nos poemas, quer para fundamentar nossa leitura. 1Conceito desenvolvido pelo filósofo russo Mikhail Bakhtin (1895-1975). “O Dialogismo como conceito desenha a linguagem como resposta à vida e vice-versa. Apesar de conservarem sua singularidade, elas se perpassam ao ponto de não se poder divisá-las. ” (BARATA, 2010, p. 10) 15 Tentamos justificar a necessidade desta pesquisa em Literatura Comparada partindo de uma crença comum a outros críticos, que enxergam a poesia como um bem social: O povo que cessa no cuidado da sua herança cultural se transforma em bárbaro; o povo que cessa de produzir literatura cessa seu mover no pensamento e na sensibilidade. A poesia de um povo toma sua vida da fala do povo e em retorno devolve vida para ela; e representa sua mais alta consciência, seu maior poder e sua mais delicada sensibilidade. (ELIOT, 1986, p. 5, tradução nossa) É, por isso, também que optamos por inserir nosso trabalho em uma área harmônica com o tema, a de estudos de Literatura e Memória Cultural, uma vez que a proposta é sugerida pelos próprios quintanares: loucura em simultânea oposição e aliança à consciência, que é especificamente o saber compartilhado com/para o social. O título desta tese ainda remete à insistência em não separar nossos estudos do seio materno da arte, criação humana para a expressão do sensível. Esta propositura se filia à área e é amparada por críticos como Mikhail Bakhtin: Antes de mais nada, os estudos literários devem estabelecer um vínculo mais estreito com a história da cultura. A literatura é parte inseparável da cultura, não pode ser entendida fora do contexto pleno de toda a cultura de uma época. É inaceitável separá-la do resto da cultura […]. (BAKHTIN, 2003, p. 360) Aos termos em mão um trabalho literário acerca da loucura, nada mais sensato que o guiar pelo campo dos estudos culturais, onde suas conjecturas responsáveis pelo estabelecimento de conceitos como realidade, imaginação, normalidade e loucura serão revisadas. Ademais, até o momento não existia nenhuma pesquisa que contrastasse os quintanares ao pensamento acerca da loucura especificamente, espaço fértil e apto a suscitar esclarecimentos válidos ao recrudescimento de uma obra não alheada à leitura da sociedade e importante para a sociedade brasileira, onde se insere. Acreditamos que a forma mais adequada para a investigação da obra quintaniana seja através da pesquisa qualitativa, via procedimentos indutivo-científicos; donde partiremos das ocorrências particulares, almejando chegar a um núcleo geral da relação loucura/sociedade/poesia/loucura nos quintanares. Primeiramente, tomaremos por diretriz a leitura hermenêutica da loucura dentro da integralidade da obra de Mario Quintana. Obtendo uma visão coesa de como essa temática se revela, a pesquisa desdobrar-se-á em interpretações que se valerão da oscilação e articulação entre o estético e o social. Para tanto, nossa pauta será a de apreciações comparatistas amparadas por 16 iniciais pressupostos teóricos, a saber: as análises dialógicas de Mikhail Bakhtin são tomadas como guia teórica para todo este estudo. À semelhança do ocorrido em nossa pesquisa de mestrado, assumimos que o poema não foge ao governo da língua, e esta é guiada pelo timão da sociedade. À de Bakhtin, como eixo teórico central em todo o estudo, juntamos a leitura que Theodor Adorno faz da arte “como antítese social da sociedade” (ADORNO, 2008, p. 21). A pesquisa também fará uso dos recursos interpretativos oferecidos pelos conceitos de tradição, elaborados por T. S. Elliot (1986); aliados aos de memória, trazidos por Jacques Le Goff (2003) e Bornheim (1987), uma vez que estaremos sempre assumindo a inserção de Mario Quintana em tradições discursivas, sociais, literárias e estéticas, tais quais, tradição atávica, tradição mnemônica e a tradição da loucura. Utilizaremos também conceitos propostos por Michel Foucault (2008). Em momentos oportunos, outros vultos teóricos sempre serão bem acolhidos. Todo quintanar, como perceberemos durante nossas análises, deseja caminhar e, conosco, lado a lado, indicar o caminho para sua própria compreensão. A teia estético-filosófica do quintanar é complexa, e se engana o cientista que a quiser enquadrar antes da análise, durante sua leitura ou no pós-exame. Admoesta-nos o método um quintanar específico, Leitura interrompida: A nossa vida nunca chega ao fim. Isto é, nunca termina no fim. como se alguém estivesse lendo um romance e achasse o enredo enfadonho e, interrompendo, com um bocejo, a leitura, fechasse o livro e guardasse na estante. E deixasse o herói, os comparsas, as ações, os gestos, tudo ali esperando, esperando… Como naquele jogo a que chamavam brincar de estátua. Como num filme que parou de súbito. (QUINTANA, 2005, p. 509) Acima temos a voz dos quintanares sobre si mesmos: eles brincam de estátua, param de súbito, esperam sempre por mais. Mesmo quando chegam ao fim, eles não terminam. No máximo, o que dá para fazer aqui é permitir que, primeiro, fale o poema, e, então, a cada capítulo, se reúnam, em torno dele, vozes afins ou dissonantes que deem conta de amplificar a sua própria voz. A voz teórica virá em socorro nosso para auxiliar na compreensão dos versos, para mais bem lê-los. Servimo-nos da leitura crítica, não transformamos o poema em escravo dela. As teorias associadas à leitura em cada parte existem em função do poema, e não o contrário. O poema que dá origem à problemática de nosso estudo, cujos termos internos rearranjamos para intitular nossa pesquisa, e que é o axis em torno do qual gravitam todas as nossas discussões é Atavismo (1957): 17 As crianças, os poetas, e talvez esses incompreendidos, os loucos, têm uma memória atávica das coisas. Por isso julgam alguns que o seu mundo não é propriamente este. Ah, nem queiras saber… Eles estão neste mundo há muito mais tempo do que nós! (QUINTANA, 2005, p. 575, Atavismo, grifo nosso) Atavismo não foi escolhido aleatoriamente dentre os tantos quintanares que versam sobre a loucura. Inicialmente percebemos que ele é uma espécie de resumo ou gérmen explicativo de causa. Além de simplesmente apontar correlações entre loucura e poesia, esse poema diz que a loucura é causada por uma memória atávica. E, como o que pretendemos é averiguar qual o significado da loucura nos quintanares e, através de tal descoberta, saber um pouco mais sobre o que pensa da natureza da poesia os próprios quintanares, nada melhor que investigar a origem da loucura. Por isso, optamos por desarticular o texto. A desconstrução, todavia, busca estudar como cada parte dele se articula com o todo e, em última análise, vislumbrar o que isso nos acrescenta à compreensão da obra de Mario Quintana em totalidade. À vista disso, esta tese se encontra dividida em três partes principais: Atavismo, Memória e Loucura. Simétricos, os capítulos Atavismo e Memória buscam entender o que os quintanares concebem por cada conceito. Apesar de a natureza dos termos atavismo e memória terem naturezas vinculadas, foi necessário estudar cada um deles quase em separado, semi-independentemente. O primeiro capítulo demonstra o estado da arte do termo “atavismo” no campo estético, seus primórdios, suas significações, ou seja, o que artistas como Jack London (1876-1916) tinham em mente quando decidiram lançar mão criativa sobre um vocábulo não pertencente às ciências humanas. Nisso temos um poeta gaúcho que sabe estar inserido em uma tradição, que não fala sozinho, mas que dialoga com os seus pares literatos e com a sociedade como um todo, inclusive com a ala científica. Aos poucos, perceberemos o que Mario Quintana quer que seja compreendido com a isca da terminologia biológica em seu quintanar. Por sua vez, Atavismo desdobrar-se-á em três subcapítulos. O primeiro desses é Uma leitura darwinista, seção importante que analisa a formação do termo “atavismo” e busca a sua compreensão do particular semântico para o universal em Quintana. Ao buscar as origens biológicas do termo atavismo, discutimos os fundamentos físicos, seu engendro, características de seu funcionamento, distorções do termo, limitações, dissensos e a perspectiva atual. Vozes do mundo biológico e psicológico se alternam na tentativa de elucidar ao leitor pouco afeito ao termo-chave o que ele significa estritamente. A pedido do poema Atavismo, vozes importantes para a compreensão do termo se arregimentam em auxílio, como as de Charles Darwin (1809-1882), Stephen Jay Gould (1941-2002) 18 e Brian Hall (1941-), respeitável pesquisador do fenômeno, com quem esta pesquisa teve contato direto. Outras vozes notórias, como a de Cesare Lombroso (1835-1909), também surgem. Entretanto, uma vez que o interesse do artista é ressignificar a vida, “atavismo” não poderia sobreviver na arte sem a ocorrência dessa transformação. Por isso, o terceiro subcapítulo averigua quais deslocamentos Mario Quintana dá ao termo e quais tonalidades o poeta imprime neles. Em Ressignificação poética, subcapítulo seguinte, o interesse é no câmbio do termo da esfera biológica para a social. É aí que percebemos que o abundante número de outros artistas tem intenção semelhante à quintaniana, fazendo do poeta gaúcho um integrante de uma ampla malha que discute a seleção natural enquanto seleção social e a evolução biológica enquanto transformação mental do indivíduo e da sociedade da qual faz parte. Nesse caso, que nomeamos de Tradição atávica, percebemos uma bifurcação com uma saída positiva, que se harmoniza com os quintanares; e uma negativa, de dissonância, representada pelo trabalho com o atavismo que fez Salvador Dalí (1904-1989). Outrossim, ainda realçamos a semelhança de procedimento estético entre o poeta brasileiro e o pintor espanhol, a fim de observarmos a existência de uma tradição atávica consolidada na arte. Ainda que tal tradição se ramifique, por vezes se paralelizando, suas partes cooperam entre si. O primeiro capítulo, Atavismo, se encerra com a entrada de Quintana em uma já antiga tradição atávica. Após essa leitura, temos uma compreensão do ser atávico como aquele de natureza selvagem, não adestrada, não adaptado às configurações da sua sociedade. Apesar de todo atavismo ser uma espécie de memória, porque vestígio, Atavismo nos indica que nem toda memória é atavismo. Vejamos que o substantivo feminino “memória” é seguido pelo atributo “atávica”. A expressão utilizada por Mario Quintana é “memória atávica”. A intenção poética trabalha, por derivação, um atavismo memorial, que tem permanecido com o homem ao longo da evolução, mas o núcleo está no nome, é ele que o poeta quer trabalhar em primeiro plano e, por isso, o caracteriza com aquele adjetivo. Isso implica dizer que existem memórias que não são atávicas, não possuídas pela criança, nem pelo louco, consequentemente, nem pela poesia. É, nessa direção, que esta pesquisa ruma para o seu segundo capítulo. Nele investigamos aquilo que Mario Quintana concebe como memória, para, então, afunilar no que concerne à memória atávica. Desde os tempos mais remotos, um dos temas mais centrais do interesse humano é a memória. Um dos assuntos mais fecundos, essa face da cognição ocupa o pensamento da religião, das artes, das ciências exatas, humanas, biológicas e aplicadas, bem como da filosofia. Para o nosso poeta, essas múltiplas versões, por vezes até contrastantes, não seriam tratadas com ordinário interesse. Passo a passo com os seus poemas, veremos Quintana corroborar as visões clássicas e, 19 por vezes, até mesmo discutir perspectivas de memória distintas, uma vez que, para ele, tudo é memória. Assinalamos assim, graças a uma observação bastante elementar: dentro de toda a obra quintaniana, não existe uma única vez a aparição direta, nem mesmo uma indicação indireta da palavra “amnésia”. Isso significa que, mesmo assim, ela se encontra na obra, fotograficamente, por uma via negativa. Um poeta não é só o que ele diz, mas também o que omite. Ora, ao suspender um termo de valor negativo em um plano de mesma qualificação, que é a não ocorrência na obra inteira, Mario Quintana desenvolve um recurso estético equivalente à ênfase linguística de dupla negativa da língua portuguesa. Quando se diz “Eu não tenho não”, por exemplo, a negação se torna mais vigorosa. Termos como I) “desmemória” e II) “esquecer”: “O maior desmemoriado que existe é o crente. Ele jamais se cansa de ouvir a mesma história. E sempre esquece os mesmos mandamentos.” (QUINTANA, 2005, p. 352); III) “olvidar”: “[…] Sempre de barco passando,/ Cantando os meus quintanares…// No mesmo instante olvidando/ Tudo o de que te lembrares.” (QUINTANA 2005, p. 161); e IV) “deslembrar”: “[…] É que o povo tem pressa porque a vida é curta, deslembrado de que, se passam rápidos os anos, podem ser longos os dias, as horas, os minutos… […]” (QUINTANA, 2005, p. 714) abrolham nos quintanares, contudo, jamais implicam em perda permanente. Podemos dizer que houve sumiço da memória, sazonal ou até mesmo perene no indivíduo, porém ela permanece em algum lugar, podendo aparecer ou ser recuperada a qualquer momento, porque coletiva. Integremos aqui uma das leituras que faz Quintana do movimento do próprio tempo, que até se esconde, mas não pode morrer. Essa ideia é anunciada em alto e bom som, através do título de um dos seus livros, Esconderijos do tempo, de 1980. Dessarte, temos um Mario Quintana que não nega a memória, nem a História; insurgir-se é contra o feitio delas. A irrevogabilidade do vivido impossibilita o seu aniquilamento e também abre as portas para as possibilidades de análise desse passado. Quer-se que ela seja vista sob incansáveis perspectivas: nos seus poemas, a memória é eterna. Por isso, as discussões de uma estética memorialista nos quintanares são auxiliadas pelas considerações teóricas de Maurice Halbwachs (1877-1945). Com essa visão, é que podemos ler e entender poemas como Da arte de recordar: “O que têm de bom as nossas mais caras recordações é que elas geralmente são falsas.” (QUINTANA, 2005, p. 320). Vejamos que Da arte de recordar é equivalente às falas de Primeira, personagem na peça O Marinheiro (1915) de Fernando Pessoa (1888-1935): 20 PRIMEIRA – Não desejais, minha irmã, que nos entretenhamos contado o que fomos? É belo e é sempre falso… SEGUNDA – Não, não falemos disso. De resto, fomos nós alguma coisa? PRIMEIRA – Talvez… Eu não sei. Mas, ainda assim, é sempre belo falar do passado… As horas têm caído e nós temos guardado silêncio. Por mim, tenho estado a olhar a chama daquela vela. Às vezes treme, outras torna-se mais amarela, outras vezes empalidece. Eu não sei por que é que isso se dá. Mas sabemos nós, minhas irmãs, por que se dá qualquer coisa?… (uma pausa) A MESMA – Falar do passado ̶ isso deve ser belo, porque é inútil e faz tanta pena… SEGUNDA – Falemos, se quiserdes, de um passado que não tivéssemos tido. TERCEIRA – Não. Talvez o tivéssemos tido… PRIMEIRA – Não dizeis senão palavras. É tão triste falar! É um modo tão falso de nos esquecermos!… Se passeássemos?… (PESSOA, 2010, p. 54) Seria ingênuo ler Da arte de recordar ou O Marinheiro, inferindo que Mario Quintana e Fernando Pessoa respectivamente negariam o passado, porque falso, inventado. O que o primeiro nega é um único passado, quando ele se quer múltiplo, podendo ser sempre (re)visto e (re)avaliado. Falso é sempre o passado quando absoluto. Nega-se a visão determinista, que afirma que somos, no presente, uma derivação do passado. Porque, se é possível mudar a perspectiva do passado, se a base pode ser modificada, então, a visão de um presente sólido não se sustenta! Ademais, seria leviano se um poeta, nesse caso, nem o seria, desprezasse a matriz da poesia, que é a antiga deusa Memória (KRAUSZ, 2007). Para a leitura de O Marinheiro, também é necessário recobrar a obra Mensagem (1934) com uso que fez Fernando Pessoa (PESSOA, 2006) de elementos históricos de Portugal, dando-lhes uma nova roupagem, reaproveitando os valores do passado, ressignificando o coletivo patrimônio memorialista. Em vez de utilizar símbolos nacionais, perceberemos que Mario Quintana lança mão das mesmas estratégias, mas usando elementos do cotidiano à sua volta, como a cadeira de balanço, os puzzles e jogos de passatempo. De todas as partes do humano, quando uma delas especificamente, a memória, reverte a uma condição tida por perdida, mas que já foi sua em inteireza, então, ela é atávica. Aquele que não é criança, poeta ou louco também tem uma memória, que não possui tal qualidade. O funcionamento da memória da tríade se explica, não por um defeito, mas por uma reversão a um tempo incomum, mas completamente normal. Para discorrer sobre o funcionamento da memória do trio atávico, dividimos a análise em três novos subcapítulos, que se desenham com a incumbência de apresentar como usam a memória atávica a criança, o poeta e o louco. 21 À lembrança da lua, que é a primeira divisão do capítulo Memória, trabalha o funcionamento mnemônico da criança. O poema-sede da análise é Noturno. A memória da criança se afigura como uma tapeçaria entre um legado tecido com menos fios sociais e uma profusão de fios individuais. Quem não se lembra, inventa é o subcapítulo onde encontramos o poeta enquanto recriador, que desmantela os arranjos do presente, assemelhando o seu ofício aos tempos em que as espécies biológicas e a própria Terra estavam em formação. Poemas como Mas tudo é novo debaixo do sol!: “Resmungam os velhos: - ‘Não há nada de novo debaixo do sol’ - nem se lembram dos que, neste momento, estão recriando o mundo: os poetas, os artistas, os recém-nascidos…” (QUINTANA, 2005, p. 248) e Criatividade: “[…] É melhor esperar que a poeira baixe, que as águas resserenem: deixar tudo à deriva da memória. Porque a memória escolhe, recria. Quanto ao poeta, que nunca se lembra, inventa. E fica mais perto da verdadeira realidade.” (QUINTANA, 2005, p. 785) são decisivos para a análise. Memória enlouquecida aborda a memória enquanto a capacidade que têm a criança, o poeta e o louco para fundir elementos, em criar personagens, em inventar. Um dos poemas que nosso estudo lerá é Imaginação…: “A imaginação é a memória que enlouqueceu.” (QUINTANA, 2005, p. 281). Em todas essas passagens, o poema assume características do lúdico, que, com suas regras internas, indaga e recria o tempo. Além de Maurice Halbwachs, outros textos aparecerão como grande valia para a função no diálogo que os quintanares destinam às perspectivas de memória. Alguns desses são A arte da memória (1966), do inglês Frances Yeats (1899-1981), Memory in literature (2003), de Suzanne Nalbantian (1950-), e Theories of memory (2007), ensaios organizados em conjunto pelos professores Michael Rossington e Anne Whitehead (1971-). Duração e simultaneidade (1922) de Henri Bergson (1859-1941) também nos ajudará a explicar pontos específicos da memória atávica. São esses achados de uma memória que recria, reavalia e reinventa não só o passado, mas também o presente, que nos conduzem ao estudo da loucura, que, para Quintana, é similarmente um olhar sobre a poesia. Nosso último capítulo, Loucura, se pretende como voz da nem sempre perceptível crítica dos quintanares à forma de viver da modernidade. Teremos, nesse derradeiro capítulo, um diálogo aberto dos quintanares com a sociedade, conversa essa que usará a loucura como termo verbal, poético, para, na verdade, negar o poder da razão quando carente de mistério, verdade e beleza. Vindos, poeta e louco, de um passado mais remoto, carregam em si uma memória. Sobre a duração de suas presenças, que são continuadas, perpetuadas “neste mundo”, podemos decalcar o conceito de tradição. Uma tradição da loucura na literatura, que faz uso do passado, para pôr em 22 xeque o presente quando perigoso para o homem. Essa é a abordagem que esta tese dá à loucura/poesia no nosso derradeiro capítulo, onde encontraremos um breve histórico da loucura na cultura e na literatura. Nossa proposta, porém, desperta o enfoque para a complexidade da temática representada pelo eixo poesia/loucura, complexidade sugerida pelo verso já citado: “Porque a poesia é uma loucura lúcida.” (QUINTANA, 2005, p. 828, A diferença). Dessa forma, Mario Quintana apresenta um tríplice problema: a) a poesia não é exatamente o mesmo que loucura, b) a poesia é análoga à loucura ─ inconsciência, mas c) é inconsciência compartilhada porque lúcida, (con)sciente. Um problema que, deveras, merece ser analisado. Ao vermos desenharem-se, no papel quintaniano, imagens oníricas de Lilis, Países de Trebizonda, Loucos, Quixotes, Reis de Tule, percebemos o quintanar como um esforço por se assemelhar à loucura, a uma loucura antiga. Daí parte o interesse do nosso estudo, surgido da antítese duma alteração/ausência de consciência que é cônscia de si e da sua antiguidade e se caracteriza também como ativa, produtiva, interativa. Rumando ao término do trabalho, continuamos a estudar uma estética que funde espaços, tempos e ideias. Figuras sonoras, como o eco, o aulos, a canção, são manifestações estéticas do retorno e da intersecção de valores. Loucura, nosso último capítulo, se subdivide em quatro partes. O eco do poema analisa o alcance da poesia no abismo, que é profundidade, mas também baixeza do homem. Tentamos entender como um contexto utilitarista prevê linhas sólidas e contínuas para os perfis. A voz lírica parece fazer um convite à rebelião, planejando o assassinato do poeta. Buscamos entender o momento tenso quando o poeta entra em um processo de exclusão por sua sociedade. De que forma a arte lê os establishments?2 De que forma os estes percebem a arte? Quantas são as divergências entre consciência/sociedade e loucura/poesia? O aulos de Atenas é um subcapítulo que ainda continua a leitura do anterior. Entretanto, dessa vez, procuramos observar algumas tensões a razão e a desrazão. Utilizamos um grupo de esculturas antigas para ilustrar essa parte. Ao final, percebemos, em Quintana, uma defesa da poesia, que não se conforma com ataques. A arte, integrante da cultura, se propõe a representar/resolver essa tensão. A literatura, talvez, seja o campo mais fértil onde a angústia da razão se faz falar. O excesso de possibilidades na/da literatura faz com que os extremos entre razão e loucura se homomorfizem. Inspiração ou delírio poético é tão necessário quanto o uso da razão no momento da concepção do poema. Fedro se 2 “1 a ordem ideológica, econômica, política e legal que constitui uma sociedade ou um Estado. 2 a elite social, econômica, política de um país 2.1 grupo de indivíduos com poder e influência em determinada organização ou campo de atividade [...]” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1243). 23 oferece através do arcabouço icônico da mitologia grega e nos apresenta a loucura como intervenção divina, cujo vértice se bifurca em Mania e Mania de Theia. Dentre os dons divinos, análogos à loucura, está a poesia, cujo delírio, através da memória, “celebra as gestas dos antigos e que servem de ensinamentos às novas gerações”. (PLATÃO, 2007, p. 81) A canção da vida é o penúltimo subcapítulo e continua a explorar a temática sonora proposta quintaniana no verso “O eco do poema”. Trata-se de uma ampla análise sobre figuras dinâmicas que se estabelecem esteticamente para defender o movimento como forma da verdade elementar da vida. Elementos musicais são utilizados pelo poeta gaúcho para unir natureza e cultura em um retorno contínuo. A canção se coloca entre as duas esferas, natural e cultural. É, através da audição, que também percebemos o mundo. Já a música é produto cultural. Tanto veículo de conhecimento quanto de comunicação de alguma mensagem, a canção se alinha ao vestígio atávico, ao eco insistente, porquanto que, sem propósito aparente, se apodera daquele que a executa. Cortinas de Tule continua a concatenar a poética de Quintana com a concepção de que há uma verdade aberta, dinâmica e orgânica. Nesse capítulo, são apresentados diretamente os poemas que fazem referências ao louco enquanto sujeito que vive uma realidade diferente daquela instituída por seu grupo social. O louco é dono de um saber que é seu e está alheio a questões que interessam à maioria daqueles em seu entorno. A loucura não reconhece autoridade, espaço nem tempo. Frequentemente o louco recria sua identidade e habita lugares fictícios, mundos próprios que ele constrói e onde se exila. Veremos também no que o louco e o poeta se distanciam. Michel Foucault (2006, 2008) nos importará, visto que responde parcialmente às nossas perguntas ao espelhar o impasse entre razão e desrazão. À semelhança da teoria da evolução das espécies, via seleção natural (DARWIN, 2003), Foucault descreve a ideia de razão como seleção social, através da qual o louco seria um dos não aptos à perpetuação social. História da loucura questiona o poder de juízo da sociedade, quando esta, muitas vezes, se autofabrica. O filósofo francês propõe que, em vez de uma pretensa realidade avaliar a arte, deveria ser a arte a avaliadora da realidade. (FOUCAULT, 2008, 530) Por ser um tema fértil tanto na literatura quanto na sociedade, concepções de loucura são abundantes. Analisaremos algumas delas aos poucos, sempre que Mario Quintana estabelecer o diálogo. Outros trabalhos, estéticos ou críticos, surgirão para amparar nossas análises, como, por exemplo, os trabalhos de Eurípedes (480-406 a.C.), Platão (427-347 a.C.), Machado de Assis (1839- 1908), Friedrich Nietzsche (1844-1900), Johan Strindiberg (1849-1912), William Shakespeare (1560?-1616), Gilles Deleuze (1925-1995) associado a Félix Guattari (1930-1992), etc. Entre o artístico e o filosófico, num hibridismo mais filosófico que literário, encontraremos refúgio no Fedro de Platão e no Elogio da loucura, obra de 1509, escrita por Desidério Erasmo. 24 Nesses trilhos, abundantes teorias artísticas e filosóficas se encontram para responder à quase cômica pergunta antedada por Machado de Assis em O alienista: seria mesmo a loucura insana, ou seria louca a sociedade? Durante nossas análises, perceberemos que Quintana responde positivamente à pergunta. Elogio da loucura traz uma leitura do louco como preferível oposição do sábio, visão que, apesar da terminologia, não diverge da apresentada por Platão. Nessa obra, o louco é um não escravo da razão, tendencioso às emoções e ao estético. A grande poesia não se esquiva de ler a loucura, criatura e criadora da sociedade. Antes de Mario Quintana, outro grande poeta já empregado nas discussões desta introdução, Fernando Pessoa, propõe que tudo que é humano, sociedade e arte, advém da loucura: Louco, sim, louco, porque quis grandeza Qual a Sorte a não dá. Não coube em mim minha certeza; Por isso onde o areal está Fico o meu ser que houve, não o que há. Minha loucura, outros que me a tomem Com o que nela ia. Sem a loucura que é o homem Mais que a besta sadia, Cadáver adiado que procria? (PESSOA, 2006, grifo nosso) Podemos assumir que o ponto de vista do poema de Fernando Pessoa acima é: a) loucura para o establishment contemporâneo, b) ruptura da concepção da ordem vigente, onde o homem é racional e c) trabalho estético, tradição atávica que deságua num Mario Quintana inserido nessa problematicidade ao nos apresentar o conceito de loucura lúcida. Embasados nessas premissas, gostaríamos de expandir os nossos questionamentos e, por conseguinte, obter uma visão mais precisa dos quintanares. Mas o que é a loucura? Onde está a lucidez? Como seria possível um louco ser lúcido? Qual é a relação existente entre loucura e memória? Por que é que o louco necessariamente se constitui em um ente atávico? Como Quintana transpõe, na prática, a loucura para a poesia e também a poesia para a loucura? Ao final do nosso labor, esperamos verificar como a loucura, imagem da poesia, se apresenta, se representa e se comporta nos quintanares. Nisso, teremos o louco, que também é o poeta e a criança, desarticulando suas configurações sociais. Desejamos compartilhar o saldo do nosso exercício ao elucidar questões, levantar novas perguntas, abrir discussões e assim contribuir com o contínuo aprimoramento da fortuna crítica de Mario Quintana. 25 Figura 1: Quintarwin Fonte: Acervo do autor 26 1 ATAVISMO Antigos desejos nômades irrompem, Agitando-se dentro das cadeias do hábito, Voltando de seu sono brumal, Despertam o ferino ancestral.3 A ideia de abrir um texto com a epígrafe acima não é original. O estadunidense Jack London (1876-1916) já a utilizara em 1903, para apresentar o tema geral do seu célebre romance, The call of the wild (LONDON, 1997) (De agora em diante, citaremos a obra vertida para O chamado da floresta). A epígrafe do livro de London, que aproveitamos para estimular as discussões deste capítulo, foi publicada originalmente por O’Hara (1870-1944) no periódico nova-iorquino The bookman, em 1902. Na verdade, os quatro versos não são uma estrofe independente, mas fazem parte de um poema intitulado Atavism4. O’Hara nunca teve grande fama. É possível que seu poema tivesse mesmo se perdido no tempo e ainda nos fosse desconhecido, caso London não o tivesse utilizado para abrir o romance estadunidense mais conhecido. Em linhas gerais, O chamado da floresta nos conta a história da transformação de Buck, um brincalhão labrador, forçado a deixar sua zona de conforto, a quente e simpática Califórnia, para servir como puxador de trenó no gélido e inóspito Noroeste canadense. Essa transformação se dá no nível psicológico. Buck muda gradualmente, ao passar por sucessivas provas de dor. Enquanto a fartura da ensolarada fazenda do Juiz Miller e os mimos dos 3Atavismo (O’HARA, 1902, p. 229, tradução nossa) 4“Antigos desejos nômades irrompem,/Agitando-se dentro das cadeias do hábito,/ Voltando de seu sono brumal,/ Despertam o ferino ancestral.// Hilotas dessas casas nunca mais./ Permitam-nos sermos livres, sair;/ Fragrância por janela e porta,/ Hálito do mato e do mar.// Depois do torpor do arbítrio,/ Mórbido de interna porfia,/ Acolham o frêmito animal,/ Emprestando um tempero à vida.// Banam os venerados pergaminhos,/ Fragmentados por longos séculos./ Os forros que a trêmula luz animou/ Permute-os por estrelas.// Sagrem seus sonhos nas árvores,/ Que seja a natureza vossa única deusa;/ Adore ao sol e a brisa,/ Altares onde nada se expia.// As vozes de um ermo chamado;/ Sussurram acerca de junças e riachos,/ Desatados os grilhões que amarguravam,/ Voltam ao esquema primitivo.// Sintam a grande terra latejante/ Palpitando no compasso do vosso coração,/ Mais uma vez consciente da verde/ Folhagem sob os seus pés.// Indiferente à dor como a rosa,/ Respire com o deleite do instinto;/ Viva a existência que passa/ Sem alma pela noite.” (O’HARA, J., 1902, p. 229, tradução nossa). Old longings nomadic leap, / Chafing at custom’s chain; / Again from its brumal sleep/ Wakens the ferine strain.// Helots of houses no more, / Let us be out, be free;/ Fragrance through window and door/ Wafts from the woods, the sea. // After the torpor of will, / Morbid with inner strife, / Welcome the animal thrill, / Lending a zest to life. // Banish the volumes revered, / Sever from centuries dead; / Ceiling the lamp flicker cheered/ Barter for star instead.// Temple thy dreams with the tree, / Nature thy god alone; / Worship the sun and the breeze, / Altars where none atone. // Voices of solitude call, / Whisper of sedge and stream; / Loosen the fetters that gall,/ Back to the primal scheme.// Feel the great throbbing terrene/ Pulse in thy body beat,/ Conscious again of the green/ Verdure beneath the feet.// Callous to pain as the rose,/ Breathe with instinct’s delight;/ Live the existence that goes/ Soulless into the night.” 27 moradores do lugar representam a prazerosa comodidade da civilização, o frio desterro resume os violentos desafios impostos pela natureza. À medida que se afasta das benesses da sociedade, o cão se desperta para um sentido adormecido e atende a ele. Ao final da história, Buck se transforma em besta feroz e sanguinolenta, animalidade que não é censurada pelo leitor do romance. London arquitetou a obra de forma que acabássemos por preferir a selvageria, a violência instintiva, espontânea e bravamente legitimada em nome da sobrevivência, em vez da irresponsável indolência e da cega busca pelo acúmulo de posses – a história se passa durante a febre do ouro, que levou milhares de homens a se arriscarem no Norte do Canadá e no Alasca, ao fim do século XIX e início do século XX. Através de Buck, o romancista nos apresenta o humano inserido em três estados possíveis: 1) numa frágil condição de harmonia e funcionamento social, que a qualquer momento pode se desmantelar ao interesse particular de um de seus constituintes, o que pode levar a; 2) um estado não preferível de desorganização social, que é sem motivo legítimo, uma vez que a única razão para a ausência de regras é apenas o desejo de possuir; 3) num estado de justiça selvagem, no qual a única lei é a da sobrevivência, já que o retorno à desejada vida na civilização não é mais possível. O chamado da floresta é um Bildunsroman5 às avessas. Dizemos que, numa narrativa desse tipo, o protagonista se desenvolve, se forma, cresce, evolui positivamente, isto é, progride. Todavia, enquanto o protagonista do Bildunsroman comum é afligido por toda sorte de circunstâncias adversas, que exigem uma reformulação de sua identidade com vistas à resolução dos problemas, ao re(a)finamento psicológico, ao (re)ajuste social, a reformulação da identidade de Buck, causada pelas adversidades que enfrenta, não traz apenas a resolução dos problemas, mas o cão se embrutece. Não é à civilização que sua personalidade se readéqua, mas à natureza. Seu crescimento é diferente do herói do Bildunsroman, é invertido. O cão migra da cultura para a bestialidade. Embora seu exterior continue canino, por dentro, ele se transforma em lobo, se deseduca. Buck desaprende a domesticação, comportamento aprendido com seu pai, Elmo, “um inseparável companheiro” (LONDON, 1997, p. 20) dos humanos. Essa desaprendizagem é seguida por outro processo mais forte. Aos poucos, o cachorro se dá conta de um sexto sentido intrínseco que lhe pertence, uma espécie de chamado interior, legado de seus ancestrais. Ele descobre o 5A tradução em Português para este termo alemão é geralmente apontada como Romance de Formação, Romance de Educação e Romance de Crescimento. Todavia, além de abarcar esses três sentidos, o termo seria mais bem vertido como Romance de Construção. Assim como a construção de um edifício obedece a colocação de peça após peça, estágio após estágio, a construção psíquica da personagem obedece a uma cadeia estrutural. No Dicionário de termos literários (MOISÉS, 2004, p. 56), encontramos que o termo foi empregado pela primeira vez por Karl Morgenstern e posto em circulação por Wilhelm Dilthey em 1870. Massud Moisés considera o ponto mais alto do bildunsroman a obra Wilhelm Meister (1795-1796) de Goethe, também cita algumas obras brasileiras no gênero, como O Ateneu (1888) de Raul Pompéia e A velha casa (1966) de José Régio. 28 instinto, “impulsos irresistíveis” (LONDON, 1997, p. 240). Esse novo companheiro é memória remota, não imediata, déjà-vu6 concreto, anterior aos diversos períodos que antecederam a domesticação dos da sua espécie, primordial: E não apenas ele aprendeu pela experiência, mas instintos, que há muito tempo estavam mortos tornaram-se vivos mais uma vez. As gerações domesticadas desabaram na sua frente. De forma vaga, ele se lembrou da juventude anterior da raça, do tempo em que os cães selvagens se juntavam em alcateias pela floresta primitiva, e matavam sua presa enquanto a fazia tombar. […] Dessa maneira, era que lutavam seus esquecidos ancestrais. Eles reanimaram a antiga vida dentro dele, e os velhos truques que eles legaram na herança da raça eram os truques dele também.7 (LONDON, 1997, p. 72, tradução nossa) Ele sondava as profundezas da sua natureza, e das partes da sua natureza que eram mais profundas que ele próprio, voltando ao útero do Tempo.8 (LONDON, 1997, p. 108, tradução nossa) Ele era mais velho do que os dias que vira e do fôlego que dera. Ele atrelava o passado ao presente, e a eternidade diante dele palpitava através dele em um ritmo poderoso, que o fazia oscilar como as marés e as estações oscilam. 9 (LONDON, 1997, p. 200, tradução nossa) As últimas citações são apenas um extrato da imaginária construída em O chamado da floresta. Esse conjunto de imagens é essencialmente isotópico. Orbitam todas as suas imagens em volta de um eixo comum, núcleo imagético, que chamaremos de eixo atávico. Conceitos como instinto, memória, tempo, ancestralidade, primitivismo, raça, natureza, descontinuidade, latência e selvageria são recorrentes na construção dessa imaginária. O próprio livro de London poderia ter sido intitulado de atavismo. 6Já visto. Termo comum em Português, de origem francesa. De acordo com o Dicionário Houaiss, “forma da ilusão da memória que leva o indivíduo a já ter visto (e, por ext., já ter vivido) alguma coisa ou situação de fato desconhecida ou nova. ” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 930). 7And not only did he learn by experience, but also instincts long dead became alive again. The domesticated generations fell from him. In vague ways, he remembered the youth of the breed, to the time the wild dogs range in packs through the primeval forest, and killed their meat as they ran it down. […] In this manner had fought forgotten ancestors. They quickened the old life within him, and the old tricks which they had stamped into the heredity of the breed were his tricks. 8He was sounding the deeps of his nature, and of the parts of his nature that were deeper than he, going back into the womb of Time. 9He was older than the days he had seen and the breaths he had drawn. He linked the past with the present, and the eternity behind him throbbed through him in a mighty rhythm to which he swayed as the tides and seasons swayed. 29 Figura 2: Quintanodonte Fonte: Acervo do autor 30 1.1 Uma leitura darwinista “Atavismo” é termo incomum. Um dicionário (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 331) nos diz que ele surge na língua portuguesa por volta do ano de 1871, influenciado pelo vocábulo francês “atavisme” em circulação desde 1836. Este, por sua vez, é uma reabilitação do étimo latino “atavus”, que quer dizer tataravô; em termos gerais, era utilizado como sinonímia para ancestral. Atavismo é conceito primeiro da biologia. Indica a “1 reaparição em um descendente de caracteres de um ascendente remoto e que permaneceram latentes por várias gerações 2 hereditariedade biológica de características psicológicas, intelectuais, comportamentais […]” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 331). Outro dicionário define o atavismo dessa maneira: “1 Uma assemelhação com ancestrais remotos superior à assemelhação com os pais em vegetais ou animais 2 reversão a um tipo anterior.” (OXFORD, 1991, p. 66, tradução nossa). Dentre os casos notórios dessa semelhança maior com os ancestrais (HALL, 1984, 1995, 2003), estão o aparecimento de dentes nas aves galiformes (HARRIS et al., 2006), o reaparecimento de patas primitivas nos cetáceos (BEJDER; HALL, 2002) e a cauda humana10 (ADAMS; SHAW, 2008). Dizemos (HALL, 1984) que determinado atributo é atávico quando ele já existiu materializado e recorrente na estrutura orgânica de toda uma espécie, mas que, por algum motivo, sua manifestação foi descontinuada, todavia, ficando ocultos os elementos gerativos desse atributo no interior de algum membro da espécie. Em latência, por incontáveis descendências, esses componentes gerativos podem ser desencadeados posteriormente, fazendo com que algum indivíduo, pertencente a uma geração ulterior, apresente o atavismo, isto é, o atributo que estava desaparecido, que pertencera à espécie outrora. Não se trata de uma modificação em larga escala, mas de um microrretorno (BLACKBURN, 1984, p 244). Um dos mais estimados textos de defesa para estudiosos do atavismo é o artigo de Brian Hall, Developmental mechanisms underlying the formation of atavisms11 (1984). Segundo Hall, existem quatro pré-requisitos para a constatação do fenômeno: 10Apesar da rara ocorrência, a aparição é uma possibilidade. O ser humano não possui cauda, mas possui o mecanismo responsável para o desenvolvimento de uma. A explicação é no gene moderador Wnt-3a que nos mamíferos é o responsável pela regulagem e desenvolvimento da cauda. 11Ainda sem tradução em vernáculo: Mecanismos de desenvolvimento inerentes à formação dos atavismos (tradução nossa) 31 (1) sua persistência na vida adulta; (2) sua ausência nos pais ou ancestrais recentes; (3) sua presença em somente um ou alguns indivíduos dentre de uma população, e (4) sua semelhança próxima com (uma identidade com?) a mesma característica possuída por todos os membros de uma população ancestral.12 (HALL, 1984, p. 89, tradução nossa) Alguns pesquisadores (MORRIS, 1895, p. 896) procuraram explicar o atavismo como uma falha no desenvolvimento das primeiras fases embrionárias. Essa falha, por sua vez, seria causada, ou pela superabundância da energia molecular nas células germinais, ou pela presença de material excedente nos grupos moleculares, que se concentrariam em certas regiões embrionárias, no estágio de formação no qual o que está especificamente em desenvolvimento são suas características ancestrais. Tal superprodução energética ou concentração de material excessivo cessaria o desenvolvimento naquela fase, impedindo o embrião de atingir o momento mais atual da espécie. Há ainda opositores da solidez do conceito, não necessariamente opositores do evolucionismo, mas que apontam dificuldades na teoria e método. A oposição de longa data pode ser traçada desde o século XIX (REID, 1897; F. A. L., 1898, p. 267). Todavia, estudos contemporâneos têm permitido a legitimidade da discussão sobre a aparição dos atributos orgânicos arrevesados. Dos métodos utilizados para demonstrações de casos atuais, existem os de rigoroso controle morfológico, como o de Reilly e Lauder (1988), e os validados pelos avanços da pesquisa genética (GATESY et al., 2003; HALL, 2003) através dos mapeamentos de DNA. Apesar de o princípio de funcionamento do atavismo ter sido demonstrado por William Castle (1867-1962) em 1906, através de experiências com preás, o fenômeno ainda continua sendo trabalhoso por biólogos, geneticistas e médicos (TOMIĆ; MEYER-ROCHOW, 2011), principalmente, devido à dificuldade em se estabelecer uma distinção entre o que é atávico e o que é falha orgânica. Entretanto, existe consenso entre os pesquisadores hodiernos sobre o dever de não confundir esse fenômeno de retroação com doença, mau funcionamento genético ou defeito físico. O atavismo é um fenômeno natural não subtrativo às funções habituais da espécie e que não implica em insuficiência dos processos físicos. Isso significa que é um adicional à estrutura biológica, apesar de esse aditivo ancestral ser apenas de ordem apendiceada, supérflua, portanto, sem utilidade. Diz-se assim porque a recomposição desses atributos dantes esquecidos pela natureza reaparece de forma aparentemente despropositada, sem visível ligação com a exigência direta do meio. Hall (1984, p. 119) comenta que os atributos atávicos podem se ajustar perfeitamente ao todo funcional do organismo. 12“(1) Its persistence into adult life; (2) its absence in the parents or recent ancestors; (3) its presence in only one or a few individuals within a population, and (4) its close resemblance to (identity with?) the same character possessed by all members of an ancestral population.” 32 O ponto inicial formal das discussões sobre tudo isso é 1859. Talvez seja o ano que mais tenha abalado todas as estruturas das instituições globais, não só as do Ocidente. Foi um tremor maior que o causado em nível eclesiástico pela Reforma Protestante (1517) e mais perigoso politicamente que a iluminista Independência dos Estados Unidos da América (1776). Ele agitará todo o continente europeu, em especial quando do desdobramento da revolução jacobina doze anos depois. Essa data continua sendo um evento histórico de repercussão tão grande quanto os casos das duas grandes guerras do século XX. As instituições tiveram que se adequar ao seu apelo. As instâncias de poder que não se flexionaram ao novo paradigma se fragilizaram. Os estabelecimentos educacionais, os políticos e até a própria arte cederam ao diálogo biológico. Organizações tradicionais, como as religiosas, tiveram que se reinventar ou entraram em declínio. Desde então, o valor total de verdade, antes detido em ampla escala pela fé ocidental, ou se fragmentou, ou passou definitivamente às mãos da ciência. Naquele ano, Charles Darwin anuncia o seu trabalho sobre a origem das espécies por meio de eleições feitas pela natureza (DARWIN, 2003). Na verdade, não se tratava de um estopim, de um marco repentino; Darwin não foi o início da discussão acerca da evolução biológica, ele é apenas a conclusão desse processo (ABAGGNANO, 2007, p. 459). Abbagnano ainda nos informa que apesar da forte influência aristotélica no predomínio da teoria da substância, que previa a imutabilidade ontológica do mundo, tantos outros, desde a Grécia antiga até o Iluminismo, cogitaram a possibilidade da transformação biológica. Décadas antes de Darwin, outros pesquisadores apresentaram proposições científicas da mutação das espécies (CAMPBELL; REECE, 2011, p. 454); entretanto, os antecessores de Darwin apenas apontavam que a vida mudava, mas sem demonstrar como aconteciam as modificações. Somente um desses cientistas apresentou um mecanismo explicativo, Jean-Baptiste de Lamarck13 (1744-1829), que se provou quase inteiramente sem validade. Darwin demonstrou que a vida evolui de forma aleatória. São incidentes ambientais que exigem das espécies um encaixe ao novo meio, sob pena de perecimento; sobrevivendo à luta pela 13De acordo com Campbell & Reece (2011, p. 454-455), Lamarck trabalhava o funcionamento da evolução via dois princípios: 1) Uso e Desuso, defendendo que partes do organismo que são utilizadas se desenvolvem mais que as não utilizadas. Assim, o pescoço da girafa se torna mais longo porque ela o utilizaria mais que as outras espécies, na tentativa de alcançar a folhas dos altos ganhos. A girafa precisa do pescoço, as outras não precisam. 2) A herança de características adquiridas. Dessa maneira, uma girafa cujo pescoço cresceu mais passaria esse atributo para sua prole e assim sucessivamente. Esses dois princípios de Lamarck foram amplamente aceitos em seu tempo; mas longo depois da Teoria da Seleção Natural, que defende o sabor do acaso na escolha das formas de organismo que vivem e se desenvolverão, bem como daquilo que morrerá; Lamarck foi vilipendiado ainda em vida, principalmente por opositores da evolução, que negam que ela nem chega mesmo a acontecer. Hoje em dia o conhecimento da genética refuta as proposições de Lamarck: atributos físicos adquiridos pelo uso durante a vida de um indivíduo não são legados. Fazemos lembrar que para Darwin não é o que mais se preparou, nem o mais forte, que sobrevive. To Fit, em Inglês indica encaixe não planejado, uma espécie de 'coube direito', adequação natural, isto é, por acidente da espécie ao meio. 33 vida apenas a espécie que acidentalmente está apta, ou seja, mais adequada, mais flexível estruturalmente para permanecer no espaço. A espécie que mais se encaixar ao meio se reproduz, transmitindo à sua prole, assim, os atributos essenciais que lhe permitirá a acomodação ao novo ambiente. Dessa forma, as espécies aos poucos se transformam em outras, pois novas exigências são impostas pela natureza instável, consequentemente, os atributos recém-desenvolvidos pela aquisição durante as adaptações aos últimos meios são transmitidos à descendência. Esse movimento sempre em direção ao futuro, entretanto, parecia também carregar algo que intrigava o próprio naturalista. Apesar de obsoletos ao novo ambiente, atributos específicos abandonados durante os vários processos adaptativos anteriores, indispensáveis outrora, todavia superados pelos mais recentes ajustes ao meio, tornam a aparecer. Para Darwin, existe uma surpreendente pulsão do passado que insiste no presente, um desejo latente de reaparição desses atributos esquecidos. É como se aquilo que se achava perdido esperasse um momento-chave para reaparecer. (DARWIN, 2003, p. 38) Em A origem das espécies, temos a base de todo desenvolvimento atual da pesquisa sobre o atavismo. Mesmo sem utilizar o termo especificamente, Darwin empregou um sinônimo, o vocábulo “ancestral”, um dos sentidos originais da palavra latina “atavus”, como havíamos observado. O darwinismo entra em consonância com a visão popular e simbólica sobre a hereditariedade: está no sangue, mesmo que oculta, ela pode voltar a se manifestar. Também percebemos que Darwin caracteriza o processo com termos específicos: ancestralidade, gerações passadas, desaparecimento, latência, alguma circunstância favorável, reaparecimento. Darwin recupera seus estudos sobre o atavismo dentro de uma nova publicação quase uma década depois, em Animais e plantas sob a domesticação (1868), dessa feita, utilizando exatamente o termo “atavismo”. Lembramos que essa palavra só é incorporada ao português em 1871, três anos depois da publicação do livro e doze após Darwin ter assinalado o atavismo como possível através do processo chamado de seleção natural em A origem das espécies. Animais e plantas sob a domesticação, dividida em dois volumes, apresenta a discussão logo nos capítulos iniciais, especialmente na conclusão sobre a possibilidade de reversão nos equinos (DARWIN, 1868a, p. 64). Darwin chama de Herança a discussão que se divide em três capítulos, do décimo segundo ao décimo quarto. No início do décimo terceiro, encontramos: O grande princípio da herança a ser discutido neste capítulo foi reconhecido por agricultores e autores de várias nações, mostrados pelo termo atavismo, derivado de atavus, um ancestral; no inglês Reversion, ou Throwing back; no francês Pas- en-arrière; e pelo alemão Rück-shritt. Quando a criança se assemelha com um avô 34 mais que com os pais imediatos, não damos muita atenção, apesar de na realidade o fato ser largamente observado; contudo, quando a criança se assemelha muito mais com um ancestral remoto, ou com algum membro distante na linhagem colateral, e nós devemos atribuir esse caso último à descendência de todos os membros de um progenitor comum, sentimo-nos com certo grau de espanto.14 (DARWIN, 1868b, p. 28, grifo em itálico do autor, grifo em negrito nosso, tradução nossa) Dessa forma, ainda que o termo não tenha sido criado por Darwin, é só nele que o conceito se sustenta. Pensar em atavismo na modernidade é pensar em darwinismo e também na série de impactos que essa doutrina causa no pensamento da humanidade nos quase dois séculos de sua existência. Entre algumas considerações que ainda devemos fazer sobre o termo “atavismo”, está a de que sua concepção original deve ser observada, e não confundida com outras hipóteses. Um importante marco para essa discussão é um livro de John Arthur Thomson (1861-1933) intitulado Heredity (1926). Especialmente no final do quinto capítulo, Thomson nos faz o seguinte apontamento: Muitos dos fenômenos comumente denominados por ‘reversões’ são denominados erroneamente, e a reversão verdadeira não parece ser de ocorrência frequente. Além disso, quando ela ocorrer, pode ser que signifique não uma deterioração, mas um retorno a uma posição de grande estabilidade orgânica. (THOMSON, 1926, p. 137, grifo nosso)15 Isso implica dizer que o traço ancestral não é uma degeneração. Atavismo não é o mesmo que decaimento de estado melhor. Não se trata de uma comparação em que o estado recente é melhor que o anterior. A comparação não pode existir pela própria acepção do nome da teoria na qual o atavismo se insere. Evolução não é sinônimo de progresso. Não se deve confundir a Teoria da evolução com o Evolucionismo, este sendo 14“The great principle of inheritance to be discussed in this chapter has been recognized by agriculturists and authors of various nations, as shown by scientific term Atavism, derived from atavus, an ancestor; by the English term of Reversion, or Throwing back; by the French Pas-en-arrière; and by the German Rück-shritt. When the child resembles either grandparent more closely than its immediate parents, our attention is not much arrested, though in truth the fact is highly remarkable; but when the child resembles some more remote ancestor, or some distant member in a collateral line, – and we must attribute the latter case to the descent of all members from a common progenitor, – we feel a just degree of astonishment.” 15Many of the phenomena commonly labeled as ‘reversions’ are wrongly labeled, and true Reversion does not seem to be of frequent occurrence. Moreover, when it does occur, it may mean, not a deterioration, but a return to a position of greater organic stability. 35 [...] o conjunto de doutrinas filosóficas que veem na evolução a característica fundamental de todos tipos ou formas da realidade, e, por isso, o princípio adequado para explicar a realidade em seu conjunto. Em outros termos, o Evolucionismo é uma doutrina metafísica […]. (ABBAGNANO, 2007, p. 462) Com o termo “evoluir”, Darwin estava apenas indicando transformação, ou seja, o modo como as espécies se alteram umas nas outras. Evoluir significa mudança, variação. A teoria de Darwin não prevê desenvolvimento nem aprimoramento com sentido de progresso, simplesmente porque o meio não é estático: o que pode ser benéfico em determinado habitat pode ser prejudicial em outro. Ainda que palavras, tais quais, “avançado” e “melhor” possam constituir sinonímia, essa relação não é legítima dentro do darwinismo. No processo de seleção natural, o primeiro adjetivo deve ser entendido como marcador cronológico-espacial, isto é, o que se move para frente, ir adiante. O segundo deve continuar sendo apenas um comparativo de superioridade na linguagem em geral; no Evolucionismo, só em relação às circunstâncias específicas, sem comparação do específico com o geral. Com isso, chegamos à conclusão de que as espécies se transformam para frente, ainda que algumas características ancestrais insistam em reaparecer. Quando a Teoria da evolução das espécies se alia ao Evolucionismo, atividades sociais discriminatórias com resultados danosos ocorrem. Casos mais recentes – os das crenças no etnocentrismo italiano e no arianismo, que se transformaram em políticas, conhecidas como fascismo e nazismo, respectivamente – remontam diretamente àquele que mais desvirtuou o atavismo, enquanto termo científico, o médico italiano Cesare Lombroso (1835-1909). É Lombroso quem primeiro une o conceito de atavismo ao de desfavorecimento, consequentemente, opondo ideias como a de normalidade aos de anormalidade física e moral. Lançado em 1876, L’uomo delinquente (LOMBROSO, 2013) defende o conceito de criminoso nato. A criminalidade encontraria explicação na herança legada pelos ancestrais, não sendo decorrente de fatores sociológicos. O criminoso nato não nasceria apenas com o instinto delinquente, mas também carregaria estigmas físicos que o denunciariam, como a presença de mandíbulas largas, ecos atávicos de seu ancestral delituoso. Lombroso, inclusive, indica várias ilustrações anatômicas que ajudariam a reconhecer os traços físicos indicadores de delinquência, que antecipariam, assim, a possibilidade de evitar a conduta do criminoso. A biologia não tardou na indicação de que a tese de Lombroso não se sustentava: “Não há razão nenhuma para complicar a ideia chamando o atributo reverso de ‘anormal’, porque a anormalidade é amiúde difícil de definir.”16 (THOMSON, 1926, p. 118, tradução nossa). O biólogo 16“There is no reason for complicating the idea by calling the reversionary character as ‘abnormal,’ for abnormality is often difficult to define.” 36 evolucionista Stephen Jay faz um precioso comentário social em A falsa medida do homem sobre os usos que Lombroso fez do termo atavismo: “As populações humanas apresentam uma grande variedade de comportamentos; o simples fato de alguns manifestarem certa conduta e outros não, não constitui prova alguma de que o cérebro dos primeiros padeça de alguma patologia específica.” (GOULD, 1999, p. 146) Se reversão pode ser sinônimo para atavismo, esse último termo não adquire os outros significados mais gerais carregados por aquela palavra. Enquanto reversão pode linguisticamente significar a mudança completa para um estágio anterior, na biologia – e de forma genérica – o termo indica que apenas uma das características do organismo foi revertida, não a entidade por inteiro. Desse modo, reversão ou atavismo não indica involução, isto é, o processo de perda gradual das características conquistadas pelas gerações mais recentes, ou o retorno exatamente às mesmas características de outrora. Além disso, há de ser levada em consideração a escala do reaparecimento do atributo ancestral. Quando ele se faz presente de novo em um táxon inteiro, então, o termo correto é reversão. Esse significante é, portanto, equivalente ao fenômeno do atavismo enquanto manifestação generalizada na população; o fenômeno da reversão é de ordem filogenética. Quando o atributo ancestral não é de ocorrência unânime na população, caracterizando-se pela singularidade do seu aparecimento, então, atavismo é o vocábulo que deve ser empregado. Essa discussão sobre o atavismo, muito válida para nosso estudo, se encerra com os desafios limítrofes da própria biologia contemporânea. A questão atual é encontrar uma explicação que harmonize o atavismo aparentemente em choque com a Lei de Dollo, que não poderia ser invalidada. Um fenômeno parece embargar o outro. O belga Louis Dollo (1857-1931) anuncia, em 1893, que: “Um organismo não pode retornar, nem mesmo parcialmente, a um estado anterior, já realizado dentre a série de seus ancestrais.”17 (DOLLO apud TOMIĆ; MEYER-ROCHOW, 2011, p. 333, tradução nossa). A tendência é que a questão encontre consenso assumindo que a Lei de Dollo apenas determina o caráter de irrevogabilidade do processo evolutivo como um todo, isto é, as partes desse histórico orgânico são indeléveis, e a soma total dessas informações adicionadas através das eras não pode ser plenamente [re]vertida. É o retorno total a um mesmo ponto antepassado que se tornaria impossível. (DAWKINS, 1986, p. 116) Resolver essa questão vai além das nossas capacidades, e continuar na leitura biológica que temos feito até o momento foge do nosso escopo. A discussão que temos feito até aqui satisfaz as 17“Un organisme ne peut retourner, même partiellement, à un état antérieur,déjà réalisé dans la série de ses ancêtres.” 37 necessidades das nossas análises porvindouras. Resumimos nossas observações enviesadas na biologia com o conhecimento de que o ser atávico não faz a volta ao passado, mas sim uma volta ao passado, uma volta diferente. Compete-nos relembrar que, estando nossa área de concentração sob a perspectiva das ciências humanas, adentramos no viés das ciências biológicas, especificamente nas disciplinas da biologia evolutiva e da genética, por sugestão inicial do poema-alvo do nosso estudo. 38 Figura 3: Mariodáctilo Fonte: Acervo do autor 39 1.2 Ressignificação poética Nosso trabalho se iniciou comentando uma citação de O chamado da floresta. É verdade que, no cão Buck, estão aproveitados os conceitos darwinistas e que, no romance, arte e biologia estão interseccionadas. Mas o livro de London não é uma alegoria, isto é, uma reconstrução/reconstituição da teoria formal da evolução das espécies. A literatura é um sistema (CANDIDO, 2006, 2012) de qualidade interativa entre suas partes internas e também com o todo social, é jogo dialógico (BAKHTIN, 2003, 2008) do coletivo. Em movimento sincrônico, literatura e sociedade se alimentam uma da outra. Apesar do inegável diálogo estabelecido entre biologia e literatura, a obra de arte é de outra ordem; ela traz implicações estéticas e discussão em níveis subjetivos e socialmente relacionais (ECO, 2008). O chamado da floresta diz respeito ao efeito das sensações e pensamentos de um cão antropomorfizado e de sua retransformação em besta, na perspectiva ressignificada de um relacionamento subjetivo e social. Dizemos retransformação por considerar que 1) o bestial muda para plano do social, mesmo permanecendo nele em latência, porém, mais uma vez, 2) o bestial é reativado, recobrado, ofuscando o processo de civilização pelo qual tinha passado. O ser atávico tem diante de si necessariamente por dois estágios de transformação, um para a frente e outro de retorno. É essa compreensão do darwinismo e da sua revaloração pela arte que funciona como pré- requisito proposto especificamente em nosso objeto de estudo, um quintanar chamado Atavismo: As crianças, os poetas, e talvez esses incompreendidos, os loucos, têm uma memória atávica das coisas. Por isso julgam alguns que o seu mundo não é propriamente este. Ah, nem queiras saber… Eles estão neste mundo há muito mais tempo do que nós! (QUINTANA, 2005, p. 575, grifo nosso) Ora, como já dissemos, o termo “atavismo” não é de assimilação imediata para o leigo. Enquanto palavra densamente específica, posicionada dentro de um poema, o conceito atavismo demanda, por si só, uma interpretação investigativa. Não nos parece estranho pensar que, ao compor Atavismo, nele reverberando a problematização de uma coda biológica, Quintana estaria indicando uma compreensão prévia, para depois arranjar esses conceitos em ressignificação poética. Destarte, torna-se imperativo dizer que os conceitos das ciências biológicas nos interessam apenas por sua aplicabilidade enquanto valor crítico-filosófico; no caso da poesia, por seu valor simbólico e estético. Em consonância com o nosso poeta, a preocupação primeira da poesia não é 40 com a objetividade do mundo físico: “a poesia é um sintoma do sobrenatural.” (QUINTANA, 2005, p. 359), “Ah, mas um poema, um poema é outra coisa…”. (QUINTANA, 2005, p. 564) Por isso, é que não nos ocuparemos da validação concreta das teorias evolutivas, nem da sua aplicabilidade stricto sensu18 na arte. É por causa da alusão linguística constatada empiricamente no quintanar e pelas subsequentes necessidades interpretativas do poema que, das generalizações biológicas com valor de tese, abstraímos o conceito de atavismo apenas enquanto plano simbólico de significação. Quando retomamos os quatro primeiros versos do poema de O’Hara: “Antigos desejos nômades irrompem,/Agitando-se dentro das cadeias do hábito,/ Voltando de seu sono brumal,/ Despertam o ferino ancestral.” (O’HARA, 1902, p. 229, tradução nossa), não nos parece, em primeiro plano, que Atavism é de imediato uma apresentação versificada da descrição darwinista em A origem das espécies? O’Hara fala de tempos antigos, de uma herança móvel, que vai e volta, aparentemente desaparecida, em latência, não manifesta, ocultada pelo embaço da neblina. Essa coisa ancestral é um tipo de anseio ressurgente, espontâneo e agressivo aos grilhões da costumagem. O que ressurge é algo inumano, cuja marca é a animalidade, isto é, o que é incivilizado e indomesticado e, acima de tudo, feroz. Depois de passado o imediatismo da leitura da primeira camada de significação, recuperamos o texto enquanto linguagem poética. Atavism não se contentaria em ser mera versificação do discurso biológico. Deixamos a superfície da primeira indicação linguística e nos aprofundamos em outros níveis de sentido. Começamos a entender que O’Hara intitula o seu poema com um termo biológico como forma de fisgar o leitor para a esfera das discussões sobre a natureza do homem, que, em Atavism, revela uma tensão entre o humano e o animal. Vejamos que, nessa primeira estrofe do poema, a aspiração de que nos fala O’Hara é nômade. O nomadismo é uma conceituação-chave no poema, com pelo menos quatro sentidos interligados. Assim, nômade 1) é marcação temporal no poema, serve para remeter à antiguidade; 2) é um indicativo de dinâmica, do que está eclodindo diante da estagnação; 3) caracteriza, com acuidade, o próprio fenômeno do atavismo como algo anacronicamente errante, que se acende e se apaga, que vai e volta, que desaparece e reaparece; 4) remete automaticamente à pré-história, fase da humanidade que se caracteriza pela ausência de vida civil e desapego ao espaço, necessidade de movimento geográfico imposto pela caça e coleta de vegetais. É, só depois do estabelecimento da 18“tomado no sentido mais estreito, limitado, da palavra […]” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 2620). 41 agricultura em volta dos grandes rios, que o homem veio a se fixar, a sociedade, a se desenvolver, e, consequentemente, a História, a florescer. Essa última possibilidade de sentido é ainda enfatizada quando O’Hara lança na segunda estrofe de Atavism o termo “hilota”19: “Hilotas dessas casas nunca mais./ Permitam-nos sermos livres, sair;/ Fragrância por janela e porta,/ Hálito do mato e do mar”. (O’HARA, 1902, tradução nossa). Percebemos que, com essa palavra, London está indicando que o poema deve ser entendido na esfera de discussão social20; porque é, na sociedade, organismo-Esparta, depois de um longo período de estabilidade, que uma de suas partes reverte, atavismo-hilota, fazendo ressurgir o ancestral, a liberdade. Considerando a ideia de literatura enquanto sistema e diálogo social e o exato período em que O’Hara publica Atavism, a modernidade, apreendemos que o eu-lírico em O’Hara é recusa da configuração social vigente, resposta negativa dentro do diálogo estabelecido poeticamente com a sociedade. Parece supérfluo dizer que o sistema econômico vigente durante a modernidade era o capitalismo, que não previa a repartição equilibrada dos bens da nação, sendo as riquezas da posse de um pequeno grupo capitalista, ainda hoje conhecido como burguesia. Essa relação fica muito clara quando observamos que, em Esparta, poucas pessoas eram livres e detinham o poder político e econômico; a maioria, os hilotas, trabalha de sol a sol como escravos do Estado, sem nenhum direito social. A voz lírica, que um dia já fora livre, se tornou hilota. Agoniado pela opressão social, atende agora ao chamado de algo selvagem que nunca morreu, que permaneceu por séculos em latência. O hilota atende ao chamado de retorno aos tempos em que não era oprimido; é um chamado à selvageria, que é liberdade moral, financeira, sexual, subjetiva e política. O eu-lírico de Atavism é uma declaração de liberdade contra uma sociedade injusta, marcada pelo abuso e pela exploração do sujeito. É na natureza que o ser atávico se refugia contra a poderosa construção social. A reversão parte de dentro de si mesma, da organização social. A sociedade que excluía o indivíduo, que forma com outros excluídos um grupo maior e mais forte, é agora excluída por ele. A liberdade do hilota não será novidade, ela é o retorno ao estado anterior recuperado. 19O Dicionário aponta que o termo é apenas histórico e alusivo à política em Esparta: “Escravo do Estado que cultivava o campo. 2 fig. Pessoa de ínfima condição social ou que foi reduzida ao grau extremo da miséria, da servilidade ou da ignorância” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1532). Um verbete próximo ainda indica uma derivação: hilotismo “1 estado ou condição de servo 2 fig. Ato, estado ou condição que revela abjeção e ignorância. ”. Hilota e hilotismo provêm da raiz grega “heílōs, ōto" (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1532) que é igualmente raiz de outro termo vernáculo, um conceito biológico, o helotismo: “associação entre duas espécies na qual uma recebe muito mais benefícios do que a outra. (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1513). 20 42 Em termos mais abrangentes, o poema apresenta o atavismo como uma espécie de retorno da humanidade ao homem (CANDIDO, 2006; 2012), à emancipação humana, em termos adornianos (ADORNO, 1995) da opressão. Retorno a uma natureza anterior, mais viva e justa. Não se trata de uma negação da sociedade enquanto instituição, o que se aborda é a defesa do natural e da inteireza humana, representada no texto pela amplidão e louvor do orgânico. É contra uma sociedade que se tornou não natural que o hilota se ergue. Em O chamado da floresta, também percebemos exatamente o mesmo desfecho. A voz lírica, em O’Hara, se amplifica no narrador onisciente da alma de Buck. O cão foi levado ao nível de hilota. Sem direito algum, a não ser o de conduzir o trenó, de produzir riqueza, o animal é apenas força de trabalho. Incessantemente produz para uma organização social que não dá a mínima importância à sua condição de sujeito. Não há leitor que não se apiede com o sofrimento do bicho, que luta bravamente para que sua vida não se esvaia em nome do ouro. Dessa forma, o poema em questão pode ser concebido como uma forma de neutralização do capital em favor de um realinhamento da vida mais plena, habitada de sentido. A sociedade de Buck, os vários donos e os outros caninos, se torna insuportável. O conforto relativo de um passado recente já não é possível. Buck atende ao chamado de volta total a um passado largamente mais interessante. No final da obra, ele está de novo integrado à sociedade, numa nova versão de uma mais primitiva, a alcateia. Ao apresentar, respectivamente, a anacrônica dinâmica do hilota e do cão Buck, não parece que O’Hara21 e London têm o intuito de reaproveitar considerações iniciadas no darwinismo? Não estaria Mario Quintana interessado nessas camadas de significação também? Atavismo foi publicado pela primeira vez em A vaca e o hipogrifo (1977). É possível que Quintana tenha sido levado ao tema primeiramente via arte, em vez de fontes da biologia formal – mesmo levando em consideração que o poeta não era ignorante nas ciências naturais, biológicas e médicas; seu pai, Celso de Oliveira Quintana, era farmacêutico, e o poeta era prático na farmácia paterna na pequena Alegrete. Quintana, além de leitor de literatura francesa e inglesa, era tradutor de ambas as línguas. Não é estranho se pensar que o poeta brasileiro tenha lido O chamado da floresta, ou de que tenha estudado A besta humana (1888), romance de Émile Zola, que também reaproveita a discussão em torno do atavismo (BELL, 2008)22. Se não leu convencionalmente uma das obras ou mesmo ambas, não é impossível que Quintana tivesse tido contato indireto com elas: lembremos que o primeiro 21Fazemos observar que o termo hilota pareado com considerações sobre o atavismo não se origina em O’Hara. O termo já estava em uso na circulação do discurso científico pelo menos cinco anos antes de O’Hara, em The Present Evolution of Man (REID, 1897, p. 372). 43 emprego formal do poeta em Porto Alegre foi na Livraria do Globo, na seção dos livros estrangeiros, especialmente desempacotando as “raridades francesas” (QUINTANA, 2005, p. 31). Além disso, o poeta gaúcho veio a fazer parte das rodas de discussão intelectual da Porto Alegre de seu tempo, cujo círculo englobava personalidades como Augusto Meyer e Erico Verissimo. Se não tomou contato com o termo “atavismo” diretamente com a arte, atentemos para que Quintana trabalhou na redação de jornais de notícias durante muito tempo na capital gaúcha e, nesse caso, a informação pode ter gerado poesia: “Os verdadeiros poetas não leem os outros poetas. Os verdadeiros poetas leem os pequenos anúncios dos jornais.” (QUINTANA, 2005, p. 171) O desafio do poeta em A vaca e o hipogrifo, como podemos perceber pelo próprio título do livro, foi reunir a esfera do cotidiano e trivial ao do poético. Assim, Atavismo se junta aos seus outros colegas de livro, poemas em que a natureza, o efêmero, os utensílios, a História e as ciências – a vaca – são transladados para o campo da fantasia – o hipogrifo. A realidade objetiva, simples e imediata, passa por um processo de ressignificação: é, depois dessa expansão do olhar, que uma vaca não é mais vista como tal; depois da renovação da perspectiva, o bovino ganha uma aura mais nobre, transforma-se em hipogrifo. O movimento inverso também é possível, elevações não merecidas podem perder a aura, e o hipogrifo pode virar uma vaca. Na conjunção aditiva do título do livro, está a dica para entender as proposições poéticas inseridas na obra. Isto é, a poesia não estaria nem no real, na vaca, nem na fantasia, no hipogrifo; a poesia está na soma desses dois valores: na conjunção entre vacas e hipogrifos. O poema Atavismo é decerto uma dessas ressignificações quintanianas. Em Atavismo, Quintana propõe um novo olhar, uma explicação sobre três elementos do cotidiano: a criança, o poeta e o louco. O poeta os caracteriza como seres atávicos. Mas, então, o que devemos entender por seres atávicos? Passemos agora da coda biológica para a proposição poética de Quintana: 22“O estigma de Jacques, em conformidade com a descrição do “criminoso nato” de Lombroso, cuja criminalidade é parcialmente devida ao ressurgimento de substância hereditária vinda de um distante, pré-histórico, até mesmo pré- humano, passado. ‘Voilà l’hérédité de la bête’, Zola escreveu, em apontamentos preparatórios, explanando como Jacques mataria ‘par atavism’ para satisfazer ‘le lointain homme primitif chez lui’. Zola já havia previamente pensado as consequências da evolução reversa produzida pela degeneração moreliana cinco anos antes; Germinal descreveu o amedrontador assassinato de um soldado pelo jovem Jeanlin, cuja ‘dégénérescence’ familiar fez com ele se tornasse ‘lentement repris par l’animalité ancienne’ – e o primitivismo lupino de Jacques certamente contém algo desse degenerativo escorregão evolucionário. ” (BELL, 2008, p. 42. tradução nossa). “Jacques’s atavistic stigmata conform to Lombroso’s description of the ‘born criminal’, whose criminality is in part ascribed to the resurgence of hereditary material from a distant prehistoric, even pre-human, past. ‘Voilà l’hérédité de la bête’, Zola wrote in preparatory notes, describing how Jacques will kill ‘par atavisme’ to satisfy ‘le lointain homme primitif chez lui’.10 Zola had previously entertained the consequences of the reverse evolution produced by Morelian degeneration — five years earlier, Germinal described the chilling murder of a soldier by young Jeanlin, whose family ‘dégénérescence’ caused him to be ‘lentement repris par l’animalité ancienne’ — and Jacques’s woolfish permittivity certainly retains something of this degenerative evolutionary slide.” 44 Crianças, poetas e loucos são componentes de uma população que evoluiu, ou seja, que se transformou de uma coisa em outra diversas vezes. As três figuras se encontram no último, mas não no derradeiro, estágio de evolução. O atributo que reaparece na criança, no poeta e no louco já fez parte de toda a população em um tempo primitivo, mas que precisou se apagar provisoriamente do grupo; todavia, nunca desapareceu por completo. Entrou em um período de latência por necessidades dos novos ambientes, entretanto, seu retorno não é só possível, mas também imprevisível. Nessa fase, que é mais recente, aparecem traços que não pertencem a esse estágio atual, nem foram herdados imediatamente das gerações anteriores. Essa reaparição de um atributo específico não foi generalizada, isto é, não se trata estritamente de uma reversão, porque só o trio apresenta a retrovariação, o coletivo não redespertou o atributo. A característica ancestral da criança, do poeta e do louco, uma vez ressurgida, se manifesta sempre, é permanente neles. Essa marca primitiva é de estranheza para um observador de fora, porque se apresenta como incomum. Parece ser despropositada tal reaparição: não faz sentido possuir esse atributo atávico, uma vez que o ambiente mais recente onde vivem todos não prevê uma finalidade para ele. Ainda que esse atributo se encaixe utilmente em alguma função exercida da criança, do poeta e do louco, há uma sensação geral de estranheza, de que o trio atávico não se harmoniza com o todo coletivo. Não se sabe dizer como nem por que só o trio apresentar essa marca antepassada no presente. Geralmente tende-se a crer que seja uma espécie de degradação ocorrente nesses indivíduos, quiçá um defeito, ou mau funcionamento de alguma de suas partes. Tem-se quase a certeza de que alguma coisa falhou. Por causa de seu atavismo, diz-se que criança, louco e poeta são anormais, embora ninguém consiga apontar o motivo disso. O grande grupo, às vezes, associa a visão geral da evolução a crenças que não se sustentam, e a criança, o poeta e o louco se tornam vítimas certas, exatamente por seu atavismo cultural, mesmo que essa sua condição seja natural e, portanto, legítima. Já foi proposto, inclusive, que esse trio atávico era criminoso nato, seres danosos para a sociedade. Quando a observação é mais acurada, percebe-se que não é possível afirmar que se trata de uma doença ou de uma degeneração. Mas há, sim, uma sensação geral de que, nas três figuras, houve uma queda de patamar, uma perda de refinamento da configuração mais recente. Isso se dá porque quem não é criança, poeta nem louco só apresenta mudanças quando as diferenças são novas, mas nunca quando antigas. É, tendo por base exatamente esse histórico biológico de conceituação do atavismo e toda a profusão semântica que ele carrega, que o poeta gaúcho nos direciona para a interpretação de 45 Atavismo. Podemos verificar essa acepção na obra inteira de Mario Quintana, mas, neste capítulo, nos concentraremos especificamente nos poemas que trabalham com o eixo atávico. Demoremo-nos mais um pouco em Atavismo: As crianças, os poetas, e talvez esses incompreendidos, os loucos, têm uma memória atávica das coisas. Por isso julgam alguns que o seu mundo não é propriamente este. Ah, nem queiras saber… Eles estão neste mundo há muito mais tempo do que nós! (QUINTANA, 2005, p. 575, grifo nosso) Em Atavismo, além de percebermos o eixo atávico, observado em O’Hara e London, por meio de palavras ou expressões como “memória”, “há muito tempo”, “outro mundo”, explicitamente capturamos o ponto de largada da primeira camada de sentido para a interpretação, o discurso biológico. O poema pode ser perfeitamente lido como uma apresentação, através do título, seguida de estabelecimento de diálogo íntimo entre voz lírica e leitor, onde o “nós” final é simplesmente a conclusão da conversa poética. Todavia, quando reparamos o conjunto dos numerosos poemas em A vaca e o hipogrifo, não percebemos só a apresentação de vozes líricas observadoras, que apenas falam de acontecimentos terceiros ou de seus próprios estados de espírito; pelo contrário, notamos que a voz lírica é amiúde participante no que enuncia, nem que seja apenas a título de julgamento confidenciado ao leitor, a exemplo das estratégias dos narradores machadianos. A vaca e o hipogrifo traz incontáveis marcas linguísticas de diálogo, como os pontos de interrogação, travessões, aspas indicadoras de discurso direto, apresentação de personagens com quem a voz lírica interage, etc. Entendemos que esses poemas são esteticamente polifônicos/plurilíngues (BAKHTIN, 2010; TEZZA, 2003, p. 230), oferecendo uma espécie de teatralidade, uma opção de leitura mais rica em termos estruturais, gráficos e semânticos. Por isso, que, em Atavismo, julgamos mais interessante ler seu teor como se concebido por um poeta-diretor, assistindo ao arranjo do texto como um mise-en-scène23. Dentro dessa possibilidade cênica, podemos perceber primeiramente as apresentações de cinco personagens ou grupos de visões diferentes: 1) a de “Eles”, 2) a de “alguns”, 3) a do “tu- oculto”, 4) a da Voz Lírica – ela mesma protagonista e decisiva na cena – e 5) a nossa visão de leitor-espectador interativa no espetáculo. Voz Lírica se deixa transparecer externa, assim como nós leitores estamos externos, e onisciente, ela não tem dúvidas. “Alguns” acredita que detém certo grau de entendimento, dentro de 23“1 CINE TEAT m.q. DIREÇÃO 2 disposição de cenários no palco, em uma produção teatral 3 p. ext. cena (‘fingimento’, ‘simulação)” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1833). 46 uma visão que lhe pertence, se acha superior a “Eles” e, assim, está autorizada a fazer julgamentos. Não temos acesso à visão de “Eles”. “Eles” representa a criança, o poeta e o louco. “Alguns” representa o que se opõe à criança, ao poeta e ao louco. “Tu-oculto” e Voz Lírica são interlocutores na cena e parecem observar o que se passa com “alguns” e “Eles” de fora. Em segundo lugar, podemos perceber que há uma pendência sobre uma questão espacial. Ela trata sobre “este mundo”, mais especificamente sobre a inadequação de “Eles” a esse lugar. “Eles” parece estar completamente alheada ao caso. “Alguns” possui algum conhecimento sobre “este mundo”, mas é um conhecimento fantasioso, idealizado; por isso, “alguns” se acha apta a julgar “Eles”. De acordo com “alguns”, “este mundo” não é um local apropriado para a incompreensão, não um local onde as ações de “Eles” se encaixariam, pois elas são despropositadas. Logo, não convém ao mundo desejado por “alguns”. “Alguns” acha mesmo que outro-mundo-que-não-é-esse seja um lugar mais apropriado para “Eles”. “Tu-oculto” entende o processo, mas só assiste, parece não ter condições de tomar partido ainda. Voz Lírica não corrobora a visão de “alguns”, porque, para a primeira, só existe “este mundo”. Conforme Voz Lírica, é “alguns” que não se enxerga como a novidade em “este mundo”, é ela que não vê além de si, desconhecendo a história de ”este mundo”, história que atesta que “Eles” pertencem a esse locus há mais tempo que as outras visões todas juntas. “Eles” é mais antiga do que Voz Lírica, “alguns”, “tu-oculto” e do que nós, leitores. Em terceiro lugar, notamos que há uma grande diferença entre Voz Lírica e “alguns”. Enquanto a primeira é onisciente, o conhecimento de “alguns” é limitado. “Alguns” é inconformada com a existência de “Eles” em “este mundo”. Voz Lírica, por sua vez, não só entende que a suposta inadequação de “Eles” àquele espaço não é verdadeira, como tenta convencer “tu-oculto” do contrário, lançando a arguta indireta: “nem queiras saber…”, negativa que funciona como isca, provocando, como convite inverso, “tu-oculto” a procurar o sentido do significado de “há mais tempo que nós”. A nossa visão de leitores é mais externa que toda a cena, mas a visão geral de Voz Lírica o é ainda mais, ela enxerga além. Quando finaliza de ler o poema, o leitor, desestabilizado e sem explicação, percebe o pronome “nós”. Começa aí o processo de compreensão do poema fora dele. A primeira questão é se o diálogo não fora direcionado aos leitores, e a resposta é positiva. Percebemos que “tu-oculto” era a quinta visão, a nossa de leitores do poema, e que o convite feito por Voz Lírica é feito a nós mesmos. De repente, damo-nos conta de que éramos nós o interlocutor de Voz Lírica o tempo todo, de que o diálogo que acabara de acontecer era conosco. Guiados como Dante por Virgílio, éramos nós, espectadores, que, com Voz Lírica, participávamos da peça dentro dela; algo análogo ao que ocorre nas peças dentro das peças shakespearianas A megera Domada, Hamlet e Sonho de uma 47 noite de verão (SHAKESPEARE, 1997). De que “este mundo” é o nosso mundo, do poeta, de Voz Lírica, de “Eles”, de “alguns”, do poeta Quintana e dos leitores, nós mesmos, de sua poesia. Percebemos que nós todos não entendemos um mundo no qual há mais tempo pertence às crianças, ao poeta e aos loucos, seres atávicos. O título do poema, Atavismo, foi um cartão de visitas deixado antes do encontro, como lembrete e dica de que a resposta da aparente inadequação de “Eles” se encontra no estranho termo, que está fora das linhas do poema, anterior a ele, no título, desconhecido pela maioria dos leitores. Voz Lírica estava, na verdade, manipulando a nossa leitura. Ao final do processo interpretativo, sem a resolução esperada no fim do poema, somos nós obrigados a reverter para o título Atavismo. Atentemos à estrutura do curto poema com seu estranho título. A palavra “atavismo” tem um peso na folha de papel, reflexo do seu papel no poema. A própria estrutura do texto assume a função estética de que a resposta da discussão está no retorno: ao passado da própria leitura. Se o leitor já conhecia o termo biológico, algumas considerações podem ser feitas, mas, quando “atavismo” não é um termo familiar, então, um exercício trabalhoso e lento de pesquisa e interpretação é exigido. Ao apresentar “alguns” como antagonista de “Eles” e “este mundo” como nossa realidade objetiva, procuramos por figuras que se opusessem à criança, ao poeta e ao louco, ou melhor, à infância, à poesia e à loucura, isto é, por figuras que caracterizassem o nosso mundo sem a presença do atavismo. Imediatamente vêm-nos à mente as figuras da senilidade, do apoético e da razão. De acordo com o poema em questão, Atavismo, encontramo-nos vivendo, biologicamente falando, em uma população – mundo – que vê a si cheio de experiência, superior; em um ambiente onde beleza e fantasia são apenas encontradas em resquícios, reaparições estranhas; uma sociedade regida pelo pensamento racional. Nesse sentido, o termo atavismo no poema poderia ser sumarizado assim: “O primitivo, o mítico, o intuitivo, o instintivo, oposto ao moderno, ao racional, ao analítico […] ao lógico, ao pensamento cartesiano.”24 (ELGHANDOR, 1994, tradução nossa). Além do que já foi exposto, podemos verificar ainda em Quintana que, quando o poeta decide trabalhar em torno da questão evolutiva, a vigília aparece como o período de latência do primitivo, entremeio no qual os instintos, antes manifestos e operantes, se apagam. Ao cansaço do corpo material, reaproxima-se o sono, um retorno ao passado selvagem. Observemos como isso é descrito em Alma perdida: 24“The primitive, the mythical, the intuitive, the instinctive, as opposed to the modern, the rational, the analytical. […] to logical, Cartesian thinking.” 48 Depois que é o corpo arremessado sobre o cais do sono Quem poderá dizer o que é feito da sua alma milenária? Acaso Ajunta-se às demais novo abandono do mundo Acossadas em grutas Em profundas florestas Onde se desenrolam imensamente as serpentes E arde em silenciosa brasa o olhar fixo das feras? Ou prostra-se ante os Deuses bárbaros Com seus látegos de raios Os seus pés de pedra imóveis e pesados como montanhas? Ah! leva então muitos e muitos séculos até que a madrugada Feita do cricrilar dos derradeiros grilos Das cabeleiras úmidas e pendidas dos salsos Até que a mão da madrugada Afague Suavemente as feições do adormecido à deriva… Sim! À noite, as almas deste mundo vagam em alcateias como Lobos, O medo as traz úmidas e ferozes E só uma ou outra – a minha? – às vezes, solitária, fica… Olha: Aquele negro, aquele enorme cão uivando para a Lua! (QUINTANA, 2005, p. 423) Imprescindível é dizer antes da abundância de imagens do eixo atávico concentradas no poema: selva, primitivo, retorno, ferocidade. Além disso, podemos ver nitidamente uma descrição da alma atávica como aquela em O chamado da floresta, quando o cão retorna às suas raízes lupinas. O título do poema é ambíguo. Primeiro descreve o eu-lírico, que está em vigília, por não ter se deixado levar aquela noite, que é o tempo interno do poema, pelo sono. Ele ficou acordado e pondera, pensa, raciocina, conclui sobre a noite. Todavia, enquanto os outros dormem, eles primitivamente se agrupam em alcateias ferozes e, no sono, formam o grupo de ausência da razão. Já desperto, extravia-se dessa junção de almas, fica perdido do bando. Por outro lado, perdem-se também as outras almas, através do sono, do mundo prévio onde se encontravam, perdem-se da habitual vigília. O adjetivo “perdido” descreve tanto o eu-lírico vigilante quanto as almas adormecidas. Podemos perceber também a marcação de três fases: 1) a noite, que é o período quando as almas retornam ao primitivo – noite que dura séculos, pois a alma em estado de ancestralidade não 49 percebe o tempo. A noite é o sono; 2) a madrugada, responsável por vagarosamente retrazer as almas ao mundo da vigília, e 3) a vigília. Trata-se habitualmente do dia – é só à noite que as almas se ajuntam –, mas não necessariamente, pois o eu-lírico se encontra de vigília à noite. À figura do dia, não mencionada no poema e que só é recuperada por oposição à noite, conectam-se conceitos como ‘luz’, ‘claridade’, ‘definição’, ‘civilização’, ‘civilidade’, ‘ordenação’, ‘pensamento’ e ‘razão’. Outro fator digno de nota é que a natureza humana, de acordo com Alma perdida, prevê um retorno programático à ancestralidade primitiva através do sono. Tudo é programado até chegar ao sono, inclusive o momento de adormecer. O ser humano precisa embarcar na viagem ao primitivo; para isso, a natureza desenhou o cais, mas só ele. Cais é a parte do porto construída, tendo em vista o conforto, para facilitar o acesso à embarcação a ser utilizada para a viagem. No entanto, ao chegar aí, a alma humana percebe que, a partir dali, não há mais nada previsto, não há embarcação, nem rota. Ela é simplesmente arremessada nas águas, viajará pelo sono como quem vaga na água, entregue às aleatórias correntezas. A embarcação implicaria em engenharia, em pensamento. O sono despe qualquer certeza. O atavismo se observa nessa dinâmica entre ancestralidade do sono, volta à vigília e retorno à ancestralidade do sono. Notemos ainda a disposição de certas palavras, como “sono”, “mundo”, “madrugada”, “montanhas”, etc., que criam espaços em branco, intervalos. Percebamos a astúcia poética que comunica a mensagem através da própria estrutura. O atavismo se caracteriza nos versos por meio da intermitência. O branco dos intervalos no papel é intermitente, a linguagem é intermitente. O branco retorna depois da linguagem, a palavra retorna depois do branco. O vazio representa o primitivo, a ausência de civilização, o desconhecido, a desrazão; e a escrita, nosso estado atual, a civilização, o logos. O eixo atávico tal como trabalhado em Alma perdida volta a reaparecer de forma muito semelhante em Evolução: Todas as noites o sono nos atira da beira de um cais e ficamos repousando no fundo do mar. O mar onde tudo recomeça… Onde tudo se refaz… Até que, um dia, nós criaremos asas. E andaremos no ar como se anda em terra. (QUINTANA, 2005, p. 481) Percebemos novamente o reaproveitamento do discurso biológico: é, no mar, que a vida se inicia, onde as espécies primeiras se dividem e se desenvolvem. Na profundeza das águas aonde a 50 luz não chega, as coisas se renovam, “tudo se refaz”. Durante o sopor, a noção de tempo se desfaz, o sono é atemporal, mas não eterno. Mais uma vez, ele sono é acordado pelo dia. Enquanto isso não acontece, ficamos mergulhados na letargia permanente. O homem está condenado a retornar ao primitivo, através do sono, que é mar profundo aonde não chega luz, a razão. Não existe alternativa para o ser humano a não ser intercalar a vigília e o sono, a evolução e o retorno à ancestralidade. O retorno ao passado é imperativo à vida, enquanto o homem for homem e andar sobre a terra. Fora isso, só a morte, como podemos interpretar de: “Até que, um dia, nós criaremos asas./ E andaremos no ar como se anda em terra.” (QUINTANA, 2005, p. 421), isto é, até que nossa composição se desintegre e deixemos de existir, virando simples poeira no cosmos, estilhaçados em partículas microscópicas pelo ar, até que retornemos ao pó, que voa pelo ar. Mas esses últimos ainda podem indicar que “um dia” é hiperbólico, assim colocado no poema para indicar o período transcorrido durante o sono, que separa um dia do outro, ou seja, quando o sopor atemporal é interrompido pela manhã, ao despertarmos, e a letargia do sono se transformar em algo semelhante: nos devaneios feitos pela razão, castelos de areia imaginários, construções diurnas, planos humanos, projetos da civilização. Esse outro sono, que é devaneio da razão, racionalidade criativa e imaginativa, pode, de fato, “criar asas” para andarmos no ar como quem anda em terra – referência possível à tecnologia humana no desenvolvimento de artefatos como o avião. De dia e em vigília, desenvolvemos asas e mudamos como queremos; mas, à noite, somos sempre obrigados a mergulhar no sono e a retornar ao passado ancestral biológico e à desrazão; nem andando em terra, nem no ar. O sono pode ser uma área de intersecção. Podemos ser obrigados a retornar ao passado social; porque durante o sono os sonhos acontecem, e acontecimentos e relações pessoais previamente acontecidos durante o dia se reapresentam. O conceito de evolução em Alma perdida e em Evolução é, portanto, atávico. De uma forma ou de outra, Mario Quintana encontra um jeito de fazer com que o homem lúcido e social adquira características atávicas, ancestrais, como podemos ler em Primitivismo: “Datilografia: escrita por batuque…”. (QUINTANA, 2005, p. 243). Primitivismo adverte que as técnicas desenvolvidas pela sociedade, consideradas como avanço em um plano, são também sempre retorno à ancestralidade noutro. Além disso, Primitivismo implica em consideração sobre o atavismo linguístico: 1) considerando a música enquanto primeira forma linguística, música enquanto linguagem sensorial; 2) considerando a passagem linguística dos sons para os fonemas; 3) considerando o desenvolvimento dos sons da fala para a escrita e 4) considerando a mudança da escrita manual para a escrita mecânica – a datilografia. Temos, então, que esse processo evolutivo é atávico, porque, na 51 medida em que a linguagem adquiriu outros contornos, características dela, antes latentes, reaparecem. O som das máquinas de datilografia são formas atávicas da linguagem. A manipulação que faz Quintana do discurso biológico para nos indicar que o retorno de uma ancestralidade, mais natural e selvagem no presente deve ser bem vista pode ser observada ainda em Passeio pela mata: Ouço, num primitivo espanto, os gritos mais insólitos. Não sei o nome de nenhum desses pássaros, de nenhuma dessas árvores. Olho, agora, esta flor: apenas sei que é amarela. Meu pensamento, ou seja, lá o que for, é simplesmente composto de adjetivos, como nos primeiros dias da Criação. (QUINTANA, 2005, p. 360) Todavia, às vezes, e nesses casos sempre ironicamente ou com teor satírico, o poeta nos apresenta o conceito de evolução com o sentido de evolucionismo, para criticar o presente como inferior ao passado, como se lê em Evolução: “Antes, quase todo mundo passava a vida em salas de espera. Mas, agora, em vez daquele abafamento, é nestas longas filas de espera, ao ar livre, em plena rua.” (QUINTANA, 2005, p. 497), ou para criticar uma possibilidade de futuro inferior ao presente, como também lemos no poema homônimo, Evolução: “O que me impressiona, à vista de um macaco, não é que ele tenha sido nosso passado: é este pressentimento de que ele venha a ser o nosso futuro.” (QUINTANA, 2005, p. 322) Nesse último caso, o macaco não é considerado inferior ao homem, é apenas figura que indica ausência de trejeitos humanos; não é a animalidade que espanta o eu-lírico, mas sim a ausência de civilização. A possibilidade de involução, que é a subtração das últimas qualidades incorporadas no processo evolutivo, que não se pode ser revertido, de acordo com a Lei de Dollo, é a possibilidade de negar o passado. Porque o que acontece em Quintana não é a defesa do retorno pleno ao passado, mas a defesa de um retorno, de uma possibilidade de regresso. Ao defender o presente, Quintana está defendendo uma forma de retorno ao passado. Alterando-se o presente, por salvar traços de um passado considerado melhor, modificam-se também as configurações do futuro. De toda forma, recuperemos que o atavismo é, em Quintana, a abertura de retorno a um passado primitivo, ancestralmente selvagem, natural, condicionado pelo instinto, que é a marca da criança e do louco, e deve ser também a do poeta. Devemos concentrar-nos na importância do instinto, enquanto essência do conceito de atavismo em Quintana. […] Enquanto isso, Deus, que afinal é clemente, Põe-se a cogitar na criação, em outro mundo, De uma nova humanidade - sem livre arbítrio Principalmente sem livre arbítrio… 52 Mas com esse puro instinto animal Que o homem do botão atribuía apenas às espécies inferiores. (QUINTANA, 2005, p. 581, O homem do botão) Militar pelo atavismo é preciso para Quintana. É preciso retroceder, voltar, recuar, reverter os valores, recuperar traços antigos, tudo isso até que uma atmosfera humana ideal seja reencontrada. Quando isso acontecer, então, já não será mais necessário retornar, a selvageria não mais será chamada; o primitivo, não mais convidado; o caos, não mais convocado. Isso não porque os atributos atávicos não sejam mais necessários, ou que tenham sido excluídos, mas, porque se encontram harmonizados, como em Está na mesa: Vem de dentro um rumor de pratos e talheres. Alguém põe a mesa. Vovô enrola um último cigarro, ao sereno. Lili vem brincar mais perto da porta. De misteriosas andanças, aponta, à esquina, o cachorro da casa. “Está na mesa!” Agora todos se reunirão em torno à sopa fumegante. E em vão a noite apertará o cerco primitivo. E em vão o antigo caos, nos confins do horizonte, ficará rondando como um iguanodonte esfomeado… (QUINTANA, 2005, p. 178) No poema, a harmonia. Homem e tecnologia estão equilibrados, os utensílios da cultura são bons. O ser atávico convive com o não atávico; o infantil, com o senil; a desrazão, com a razão. O humano convive com o animal – há um cão no poema. Nada falta, a vida está completa. Há alimento para o físico e para a alma. O poema nos desperta para o belo. Atavismo não é retornar gratuitamente ao selvagem ou abandonar a civilização, mas relegar as configurações não propícias ao homem, porque não humanas. Atavismo é retorno ao primitivo quando humano, mesmo quando essa humanidade for desconhecida. O primitivo, o selvagem, o caótico e o não humano podem permanecer ao lado, como um dinossauro feroz, mas isso não mais importará. 53 Figura 4: Il poeta delinquente Fonte: Acervo do autor 54 1.3 Uma tradição atávica Os quintanares têm antipatia ao Surrealismo25, especialmente a Salvador Dalí. Neles, as obras de Dalí são consideradas calão artístico, porque transferências mecânicas: “[…] Em vista disso, alguns me aconselham a escrita automática, que é afinal de contas o que os surrealistas consideram poesia pura. Mas isto me lembra, e muito, o baixo espiritismo, de tão pífios resultados… […]”. (QUINTANA, 2005, p. 823) Enquanto no baixo espiritismo as entidades se manifestariam efusivamente, incorporadas sem controle, no alto espiritismo o médium controlaria a possessão, e o efeito disso seria um diálogo misterioso de aspectos técnicos e diplomáticos. Mario Quintana é poeta, não médium espírita. O espírito de que fala Quintana é da alma, que é esfera ética e estética do homem, que pode ser controlada em partes pela “mediunidade” técnica do poeta. A depreciação do movimento tornada em acusação do automatismo lançada sobre os surrealistas ainda pode ser percebida em Picasso e Dalí (QUINTANA, 2005, p. 840), quando o quintanar acusa Dalí de agressivo e incomplacente: “Picasso é mais espontâneo: nunca procurou espantar o burguês.”. Podemos perceber que Quintana configura um grande grupo, formado por ele, Picasso e Dalí, mas aponta uma predileção o método de Pablo Picasso (1881-1973) em detrimento do surrealismo. O subgrupo exclui Dalí. Mas isso não significa que Quintana não concordasse com as ideias de distorção e transgressão propostas por Dalí e por seu círculo surrealista. A ojeriza que lança é contra a forma de concepção e expressão dessas ideias, ou seja, como os surrealistas pensavam, abordavam e anunciavam a questão. A grande atração do circo (QUINTANA, 2005, p. 840), que é o poema imediatamente anterior a Picasso e Dalí, faz ecoar a mesma mensagem da incomodada voz lírica: “Salvador Dalí? Espantoso, sim…, mas que espantosa falta de imaginação!”; mas, dessa vez, o poema se explica. A aversão a Dalí não diz respeito ao teor da mensagem do surrealista. Mario Quintana é antimoderno, tanto quanto os surrealistas. A aversão é contra o trato que Salvador Dalí dá aos temas. Para Quintana, o problema com o Surrealismo é que o movimento artístico não produz o 25O Surrealismo não se presta a simples definição, por isso, recorremos a um dicionário de literatura para recobrar alguns traços peculiares do movimento: “[...] “SURREALISMO: s.m. Automatismo psíquico puro por cujo intermédio se procura expressar, tanto verbalmente como por escrito ou qualquer outro modo, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, com exclusão de todo controle exercido pela razão [...] Além disso, os seus aficionados confessavam repulsa pelo “reinado da lógica”, pelo “racionalismo absoluto”, em favor de Freud, da imaginação liberta, dos sonhos, da fusão destes e da realidade numa super-realidade, mas de forma que o sonho predominasse, pois guarda “traços de organização”, em favor dos estados alucinatórios, mediúnicos, expressos numa “linguagem automática”, livre de qualquer censura ou coerção da inteligência, de molde a transferir diretamente os conteúdos da mente para o papel, sem buscar socorro na lógica ou na gramática. [...]” (MOISÉS, 2004, p. 441-443). 55 belo, as obras surrealistas terminam por abrolhar fealdade. Tal asserção pode ser assim interpretada ao conectarmos a palavra “circo” – inserida no título do poema – e “espantosa” – contida no interior do poema; termos que indicam, assim, um espetáculo de variedades baseado no espanto, isto é, em um circo de horrores. Dalí, que tanto defendera a supremacia do império onírico sobre a vigília, se distingue de Quintana, que prezava pelo câmbio contínuo entre vigília e sono. Uma deixa importante para a compreensão de certas nuanças nos quintanares, “espantar o burguês” em Picasso e Dalí (QUINTANA, 2005, p. 840), publicada em Porta-giratória (1988), é exatamente o que investiga A estrela da manhã (2000) de Michael Löwy (1938-). De acordo com A estrela da manhã, o louvável trunfo dos surrealistas foi justamente o de desenvolver uma estética transgressora, agressiva contra o capitalismo, “[…] um protesto contra a racionalidade limitada, o espírito mercantilista, a lógica mesquinha, o realismo rasteiro de nossa sociedade capitalista industrial, e a aspiração utópica e revolucionária […]” (LÖWY, 2002, p. 9). Eis um plano de subversão dos valores burgueses. Nesse sentido, temos a poética de Mario Quintana como sonsa; construtora de uma estrutura estética, que finge fazer vista grossa à questão social, que se disfarça de simplória e aparenta alienação; isso tudo por benevolência e compaixão ao que há de homem por trás do burguês. Um projeto estético não misericordioso com o capitalismo, mas compassivo com o burguês. Podemos até dizer que toda a estética quintaniana tem um fim específico: envolver o braço no ombro do burguês e reconduzi-lo a uma perspectiva não utilitarista da vida; tentativa de asilo pela estética e, desse amparo, um resgate estético, resgate dos sentidos. Quando Mario Quintana diz em A grande atração de circo que o Surrealismo é carente de imaginação, o poeta parece se deliciar com seu próprio esquema, plano altivo, que se propõe como de maior imaginação, portanto, mais sofisticado, que é o de agarrar o burguês de um modo imperceptível, não simplesmente se opondo à burguesia de uma maneira agressiva. A acusação de circo dos horrores indica que o movimento surrealista é arte fraca, técnica vulgar, estética barata, teatro vaudeville. Nisso tudo, vemos o aprendiz gaúcho de feitiçaria exercendo sua magia. Um plano hipnótico, diferente do surrealista, para salvar o burguês. A indicação de leitura do Surrealismo como circo de horrores, retirada de A grande atração do circo, também pode ser explicada pelo poema imediatamente posterior a Picasso e Dalí, em Não olhe para os lados (QUINTANA, 2005, p. 840): “Seja um poema, uma tela, ou o que for, não procure ser diferente. O segredo está em ser indiferente”. Ora, através desse último poema, fica clara, para o leitor, a acusação que fez o eu-lírico dos três quintanares: Dalí não teria se mostrado indiferente, mas sim apenas diferente. Essa observação apontada pelo eu-lírico no quintanar não deve ser negada, antes de se verificar a mesma constatação feita por estudos recentes sobre a obra 56 de Dalí (LIMEIRA, 2010; ROBERTS, 2012). Neles, lemos que o pintor teria transposto o discurso evolucionista e darwinista para a arte. Tentando reproduzir o conteúdo psicanalista (LIMEIRA, 2010), que seria adaptação freudiana da teoria evolucionista (ROBERTS, 2012), Dalí se esqueceu de ressignificá-lo, reproduzindo esteticamente o conhecimento científico. A insinuação de fealdade feita pelos quintanares pode indicar que Dalí esteticamente recriou ipsis litteris26 o conhecimento freudiano sem o transpor para outro campo de significação, sem dar aos conceitos darwinistas ali presentes um segundo olhar: “[…] – Essas coisas que parecem/ não terem beleza/ nenhuma/ é simplesmente porque/ não houve nunca quem lhes desse ao menos/ um segundo/ olhar!” (QUINTANA, 2005, p. 859); as transposições sem ressignificação eliminam o mistério: “[…] O mistério faz parte da beleza.” (QUINTANA, 2005, p. 278). Assim sendo, a arte não atingiria seus limites, ou aparentaria alguma dificuldade, quando fosse simples aplicação de teoria. O assunto também discutido no poema Da conturbada beleza: “O que mais me revolta nas matemáticas são as suas aplicações práticas” (QUINTANA, 2005, p. 369). A arte deve ser um fenômeno singular: “Único./ Ferido de mortal beleza.” (QUINTANA, 2005, p. 197); feitos “cheios da beleza única.” (QUINTANA, 2005, p. 199). Ao censurar o modus operandi27 surrealista, Quintana poderia estar indicando perpetrações científicas na arte, isto é, o Surrealismo estaria endossando concepções físico-naturalistas de deformidade, expandindo-as, através do freudismo, no que compreende distorções psíquicas. O resultado da arte surrealista seria a exploração sensacionalista da noção de defeitos, como já vimos em A grande atração do circo e, também, em Picasso e Dalí. Tal análise se sustenta ainda mais quando encontramos um jogo linguístico muito peculiar no poema 8 Object 2 : […] Em Picasso, em certos Picassos, a boca, a face, o perfil, as orelhas reajuntam- se não arbitrariamente e sim para formar uma harmonia nova, de maneira que o seu arreglo final não nos amedronta como um monstro, mas tranquiliza-nos como uma obra clássica. Na poesia há muito já acontecia assim, como na montagem de imagens aparentemente heteróclitas e anacrônicas da “Salomé” de Apollinaire e que, no entanto, serviam para formar a atmosfera dançante, luxuosa, versátil e aérea daquele poema. E foi preciso quase cem anos para que o cinema, como no “8 ½” de Fellini, se integrasse também na poesia. Em resumo: não o desprezo da lógica, mas a aceitação da lógica imagista - o que, como todo verdadeiro 26“[...] nos mesmos termos; tal como está escrito.” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p.1648) 27“[...] modo pelo qual um indivíduo ou uma organização desenvolve suas atividades ou opera.” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p.1943) 57 modernismo, é tão velho como o mundo, porque usa apenas a velha linguagem dos sonhos e das histórias de fadas. (QUINTANA, 2005, p. 254, grifo nosso) Mas antes de apontarmos o jogo linguístico que pretendemos debater, recuperemos no dicionário o sentido da palavra surrealismo: HIST. ART movimento literário e artístico, lançado em 1924 pelo escritor francês André Breton (1896-1966), que se caracterizava pela expressão espontânea e automática do pensamento (ditada apenas pelo inconsciente e, deliberadamente incoerente, proclamava a prevalência absoluta do sonho, do inconsciente, do instinto e do desejo e pregava a renovação de todos os valores, inclusive os morais, políticos, científicos e filosóficos. f. pref. e menos usual.: supra-realismo. ETIM fr. Surréalism (1918) ‘sobrenaturalismo’. […]. (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 26) O empreendimento lúdico-linguístico acontece primeiramente entre os termos “arbitrariamente” de 8 1 2 e “deliberadamente” da dicionarizada definição de surrealismo. Para Quintana, o trabalho artístico de Picasso é um processo seletivo, não deliberado, isto é, de escolha não apriorística, não conceitualmente fechado, por isso, harmônico. Lembremos que Pablo Picasso passa por várias fases estéticas, sem medo de abandonar aquela que o tornaria célebre, o cubismo. Bem-sucedido nos seus intentos, o trabalho de Picasso é pelo poema considerado um modernismo verdadeiro, como podemos ler no final de 8 Object 6 . A segunda parte do jogo de mensagem em 8 1 2 é o fato de o poema omitir o nome de Salvador Dalí, mas, ao mesmo tempo, referenciar as pinturas do surrealista, caracterizando-as como o oposto de Picasso. Ora se o oposto de Picasso é amedrontador e monstruoso, podemos facilmente comprovar o disfarçado apontamento ao recuperarmos a noção de circo dos horrores, discutido há pouco, em A grande atração do circo: “Salvador Dalí? Espantoso, sim… mas que espantosa falta de imaginação!” (QUINTANA, 2005, p. 840) e em Picasso e Dalí “Picasso é mais espontâneo: nunca procurou espantar o burguês.” (QUINTANA, 2005, p. 840). Na definição de surrealismo dada pelo dicionário, temos que o movimento tem uma função deliberada, isto é, ser incoerente. Nesse sentido, Salvador Dalí é fechado e não deixa de ser indiretamente acusado de modernidade banal e automaticamente de receber, em 8 , a própria crítica desenvolvida pelo próprio pintor contra o movimento modernista em Libelo contra a arte moderna (DALÍ, 2008). 58 Carente de beleza, o onirismo daquilo que é oposto a Picasso ainda pode ser observada ao final de 8 1 2 ·, que nos leva à constatação de Quintana acerca de um império linguístico dos sonhos, um surrealismo velho e bom, que seria o de Picasso. Dessa maneira, compreendemos que o onírico, a deformidade heteróclita e o anacronismo em Picasso são um retorno bom, clássico, como o retorno do filho pródigo (BÍBLIA, 2010, p. 947). Ainda verificamos essa possível vantagem da arte de Picasso sobre a de Dalí no aforístico poema Picasso: “Famoso precursor da Talidomida.” (QUINTANA, 2005, p. 305) A talidomida é um termo farmacêutico: “substância C13H10N2O4 freq. us. em medicamento sedativo e hipnótico (Por seus efeitos teratogênicos28, deve ser evitada durante a gravidez, pois não raro causa má-formação ou ausência de membros no feto.)” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 2664, nota de rodapé adicionada). Como podemos perceber em Picasso, a obra do pintor induz ao sono ou a estado de sono criteriosamente induzido, a hipnose. Nesse sentido, sua pintura funciona como uma espécie de feitiço benéfico, a sedação traz alívio. Caderno H (1973), livro onde primeiro aparece Picasso, conglomera poemas bem- humorados, brincalhões, de uma ironia leve, sem acidez. O uso dessa palavra é jocoso. O perigo eminente da formação de monstros deve ser lido como inversão burlesca. As distorções oníricas e deformidades heteróclitas são características de um Picasso vanguardista, que pensa o deslocamento dos perfis humanos, criados e regidos pela sociedade. Para Quintana, está no processo inicial de educação ontológica da criança, amiúde repassada pela mãe, a possibilidade da geração e aceitação da diversidade de aspectos humanos. A figura da mãe sedada pela arte, que compreende o deslocamento de perfis (QUINTANA, 2005, p. 202), gera uma nova prole, desfigurada social, psicológica, política e, em especial, esteticamente em relação aos primeiros contatos formadores da psique. Da mãe hipnotizada pela arte, descendem mutações da perspectiva de mundo humano e social. Na tela Duas Mulheres lendo (1934), de Picasso, podemos ver bem ilustrada a insinuação da proposição quintaniana. Como derradeiro apontamento do jogo linguístico montado em 8 , recuperamos uma qualidade positiva em Picasso: “não o desprezo da lógica” (QUINTANA, 2007, p. 254), graça que Quintana não concede, assim, ao espantoso circo dos horrores do Surrealismo, cuja função é 28“1 especialidade médica que se dedica ao estudo das anomalias e malformações ligadas a uma perturbação do desenvolvimento embrionário ou fetal 2 p. sin. os monstros como um conjunto; a monstruosidade [...] Etimologia grega teratología, as ‘narração de fatos espantosos, relato de coisas monstruosas, estudo de monstruosidades [...]” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 2699). 59 inverter todos os valores, inclusive a lógica. O funcionamento dessa escola estética é regido pela sua entrega total e absoluta à incoerência automática. Para o senso de valor de 8 , a arte deve, sim, entregar-se à inversão, ao delírio, ao onírico, ao heteróclito, ao anacrônico, mas sem se deliberar, sem arbitrariedade, sem abandonar o trabalho pela lógica, uma lógica diferente. Atentemos ainda que os principais poemas que ferem a dinâmica do Surrealismo – Mau Humor (QUINTANA, 2005, p. 823), Picasso e Dalí e A grande atração do circo (QUINTANA, 2005, p. 840) –, aliados ao poema sobre consideração estética, Não olhe para os lados (QUINTANA, 2005, p. 840), aparecem todos no livro Porta giratória, publicado em 1988. Porta giratória é, como todo termo que Quintana criteriosamente elenca, imensamente sugestivo. Ao selecionar os títulos dos seus poemas e, mais ainda, os nomes para seus livros, o poeta gaúcho está indicando com essas palavras uma espécie de mônada estética, resumo da totalidade estética, poética e filosófica; dito de outra maneira: os títulos na obra de Mario Quintana são uma prévia do nível das discussões e do teor dos versos/poemas. O vocábulo “porta-giratória” não se encontra dicionarizado, todavia, descrever o objeto a que se refere não é difícil. Podemos encontrá-las em quase todos os bancos, em muitos hotéis e em alguns restaurantes, em 1) lugares onde se resolvem negócios ou necessidades; metaforicamente, o livro de poemas também é um desses locais onde interesses, de outra natureza, são discutidos. 2) A porta-giratória é desenhada para ambientes onde haja grande fluxo de pessoas, assim, o livro se torna lugar de curso social, tem o interesse de se difundir, de atender a um grupo numeroso. 3) O artefato é uma variação da porta comum, e, como toda porta, dá acesso ao interior de algum lugar. A partir disso, já fica claro que o livro e seus poemas visam possibilitar a entrada do leitor em determinados ambientes, inclusive ao interior individual. 4) Basicamente, a porta-giratória foi projetada para um acesso organizado aos ambientes; a entrada e a saída são reguladas, não se consegue entrar de todo jeito, só se passa nela uma pessoa por vez. O livro, então, prevê uma organização de modo a permitir o acesso ao teor das mensagens, mas o acesso só pode acontecer de forma individual, ou seja, cada leitor terá sua própria visão individual do ambiente coletivo. 5) A porta-giratória não pode ser fechada nem aberta, ao mesmo tempo em que ela está também fechada e aberta. Móvel, é necessário um pequeno empurrão para frente, para que ela se mova, como um carrossel, abrindo-se para frente e se fechando automaticamente para trás. Por isso, entendemos que o empurrão no livro-porta seja o esforço de leitura e/ou interpretação. A compreensão do livro estará sempre à disposição do leitor e, ao mesmo tempo, a mensagem hermeticamente selada, em um movimento que não acaba nunca. 6) Uma porta-giratória, ao mesmo tempo em que é uma única porta, é também a união de várias portas ligadas em um eixo. Dessa forma, o livro adquire o valor de conjunto, de uni-verso. 7) Apesar de fixa em um mesmo local, o movimento de entrada e de 60 saída nunca é o mesmo. Com isso, Quintana assume que, depois de entrar no livro, é impossível que o leitor saia da mesma maneira que chegou. O mais importante, todavia, que não pode deixar de ser analisado na concepção do título é que 8) a porta comum está circunscrita em um limite espacial – ombreira, padieira e soleira demarcam nitidamente o que pertence ao lado externo e o que pertence ao lado interno; com a porta-giratória, esse limiar não acontece, pois a verga não pertence à porta, mas ao edifício; a ombreira, quando existente, perde sua força limitadora, porque as abas – ou portas componentes da porta-giratória – estão sempre transitando pelos dois ambientes, o externo e o interno. O chão da porta-giratória é o mesmo do lado externo e interno. Quando há soleira, esta é uma peça única, geralmente feita de pedra, que liga o externo ao interno. É possível permanecer dentro da própria porta-giratória, e também, andar nela em círculos; mas o fato é que, estando-se nela, não se pertence mais ao externo nem ao interno, simultaneamente em ambos os ambientes possuem o sujeito. Temos, dessa maneira, que Porta giratória assume uma postura estética que visa coincidir o coletivo com o individual, o universal com o particular; postura muito parecida com aquela tomada em A vaca e o hipogrifo. Destarte, entendemos que os poemas de Porta giratória, ao criticar o Surrealismo, o fazem não a respeito do entorpecimento dos sonhos, nem do asilo do sujeito dentro de si. Os poemas em Porta giratória se contrapõem à supervalorização do hipogrifo e do interior do edifício, uma supervalorização que oblitera a vaca e o exterior do prédio. Vejamos esse jogo que tenta reequilibrar vacas e hipogrifos em outro poema de Porta giratória: Ora, Maria! o meu mundo é de temperaturas tenções fulgurações… Eu nada tenho a ver com os sentimentos humanos! Por que tu não és uma vaca, Maria? Por quê? Ficaria tudo mais simples e verdadeiro… (QUINTANA, 2005, p. 781, A vida simples) Podemos apontar dentro de A vida simples uma tensão entre o natural, representado pela vaca, e o artificial, ligado a Maria. A voz lírica diz preferir a vaca por ela ser verdadeira, e, de acordo com o poema, simplicidade e verdade andam lado a lado. Na concepção não poética dos termos simples, temos tudo aquilo que não oferta graça, que é elementar. Todavia, no poema, há uma inversão de valores. É, através do simples, que a voz lírica vivencia experiências extraordinárias. Mario Quintana dá à vaca do poema o status grandioso do hipogrifo 61 A verdade, que é o melhor caminho sugerido por A vida simples, consiste em vivenciar o admirável na simplicidade. Isso nos leva a ler Maria como algo não simples, logo, não verdadeiro e que, por sua vez, incapaz de maravilhar a voz lírica. Maria é humana, oposta à vaca, e, por isso, não fulgura. Logo, ela representa o não verdadeiro que se quer excepcional. O não verdadeiro não possibilita o retorno, o atavismo. Ele se configura como movimentos: movimentos de temperaturas, tenções e fulgurações. A voz lírica sugere que ela deveria ser uma vaca, retirando de Maria a pretensão de hipogrifo, que não lhe é de direito. Essa discussão parece se desviar do nosso foco, mas ela é necessária, uma vez que uma ideia específica era obsidente no surrealismo de Dalí: o atavismo. Em 1963, Salvador Dali publica El mito tragico del Angelus de Millet29, um tratado sobre o atavismo. Nele, o pintor discorre sobre a insistente reaparição em forma de reproduções, no sentido de remissão intertextual advogado por Julia Kristeva (1941-), da tela Angelus (1858) de Jean- François Millet (1814-1875), da arte visual formal à decoração de utensílio. Para Dalí, a reaparição não é reflexo estético originado do Zeitgeist30. Em Millet, haveria um símbolo universal, projeção do inconsciente, de uma tendência à psíquica reversão, atavismo psíquico generalizado. Se esse símbolo estético do inconsciente passa ignorado por quase toda a sociedade, à exceção de poucos artistas plásticos, como o escultor Alberto Giacometti (DALÍ, 1989, p. 48), Dalí procura reconhecer, compreender e trabalhar a insistência de retorno da tela ancestral no seu fazer artístico particular. Já neste ponto, podemos anotar que, ao intitular um dos seus poemas com o termo “atavismo”, Mario Quintana não estava apenas se inserindo em uma tradição, que agora chamamos de tradição atávica – tradição no sentido de inserção e o diálogo nos/com valores específicos (BORNHEIM et al., 1987, p. 20). Uma vez que há um diálogo divergente estabelecido entre Quintana e Dalí, isso que chamamos de tradição atávica, se não se ramifica em várias tradições, ao menos se bifurca em duas que são conflitantes. Surrealismo, que significa além do real, sobrerreal, além do material e do natural, inclusive sendo também chamado de sobrenaturalismo, não é uma ideia que desagrada de todo a Mario Quintana. Recuperemos o título de outro trabalho do poeta, o irônico: Apontamentos de história sobrenatural (1975), o que nos levaria automaticamente a apontar Quintana como um surrealista. Mas, como temos visto até aqui, não podemos encaixar o poeta em uma escritura surrealista, nem 29Roberts (2007, p. 7) nos diz que se assume esse texto escrito já nos anos 30, mas que ele teria sido extraviado por volta dos anos 40, sendo reencontrado em 1962 e, finalmente, publicado em 1963, na França. 30Expressão alemã para designar o conjunto de traços que podem ser percebidos em dada época: Espírito do tempo. Características próprias de um período histórico. 62 em uma realista. Mario Quintana se quer transitando nos dois mundos, entre a vaca e um hipogrifo, nem fora nem dentro, mas sim em uma porta-giratória. A dinâmica que estamos tentando atribuir à porta-giratória de Mario Quintana se revela similar àquela de 1956, em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa (1908-1967): “Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.” (ROSA, 1994, p. 85). O atavismo proposto por Quintana difere do de Dalí especificamente em um ponto: “Em resumo: não o desprezo da lógica, mas a aceitação da lógica imagista - o que, como todo verdadeiro modernismo, é tão velho como o mundo, porque usa apenas a velha linguagem dos sonhos e das histórias de fadas.” (QUINTANA, 2005, p. 254, grifo nosso). Com isso, entendemos que o atavismo de Dalí prevê a perda da lógica e utiliza uma linguagem mais recente, não só a dos sonhos e das histórias de fadas. Quintana se posiciona em favor de um atavismo mais próximo daquele encontrado em O’Hara e em London. Vejamos que em Atavism, no hilota, há um retorno ao primitivo, mas não é prevista a perda da lógica; pelo contrário, sua consciência se amplia como podemos conferir no terceiro verso da sétima estrofe: “Mais uma vez consciente do verde” (O’HARA, 1902, p. 229, tradução nossa). Em O chamado da floresta, o cão Buck responde ao chamado atávico, abraça sua ancestralidade e se transforma em “um bicho do mato”]31 (LONDON, 1997, p. 254, tradução nossa), mas sem incorrer na perda da consciência. Para chacinar os índios Yeehats, o selvagem Buck permitiu que isso momentaneamente acontecesse: “Pela derradeira vez na vida ele permitiu que paixões usurpassem astúcia e razão, e isso foi por causa de seu grande amor por John Thornton que ele perdeu a cabeça.”32(LONDON, 1997, p. 266). A criança, o poeta e o louco de Atavismo (QUINTANA, 2005, p. 575) não são a compreensão de outro mundo que não este, são a lógica deste mundo, embora lógica incompreendida. Além do que, assim como O’Hara e London, Quintana ressignifica o conceito do termo biológico em um nível artístico. Dalí leva seu conceito de atavismo ao extremo. O pintor não reconhece o Angelus como simples influência na obra surrealista, nem repercussão generalizada na cultura popular através das reproduções, também não julga seu trabalho uma reversão à estética de Millet. Mas vai além. Utiliza o Angelus como caso de estudo para desenvolver seu método paranoico-crítico, que visa entender o Angelus como uma prototeoria da mente humana. 31 “a thing of the wild” 32“For the last time in his life he allowed passion to usurp cunning and reason, and it was because of his great love for John Thornton that he lost his head.” 63 Segundo o pintor (DALÍ, 1989, p. 94), a tela de Millet é uma indicação inconsciente de um fenômeno “muito ligado ao complexo de Édipo”. A tela narraria, na verdade, um ritual canibal de cunho sexual, no qual a mãe devora sexualmente o filho. O homem pintado por Millet seria o filho, e a mulher, a mãe. O chapéu que segura o homem esconderia seu estado de excitação e o carro de mão ao lado da mulher indicaria o corpo feminino durante a cópula. Esse seria um tormento que assola a humanidade de forma inconsciente até os dias de hoje. A humanidade viveria em função desse estado de agitação inconsciente. Esse medo seria atávico, transferido à raça humana, remonta ao tempo em que homens e insetos tinham o mesmo ancestral. O medo é uma espécie de síndrome do louva-a-deus: a mulher no quadro de Millet estaria representada na posição de ataque dos mantídeos, cujos machos são devorados pelas fêmeas depois da cópula. O pintor pretendia adentrar no inconsciente, parte mais antiga da humanidade, para averiguar essa questão atávica. Tal acepção é abertamente declarada no livro como sendo de base psicanalítica e não passa de um rearranjo ideológico que adapta o discurso darwinista, isto é, um passado primitivo de fato retorna no homem e remete às teorias biológicas da mente propostas por Sigmund Freud (1856-1939), especialmente as que se referem ao inconsciente e a pulsão sexual (FREUD, 1989, 1996). Freud, que também se ocupara em estudar os sonhos foi a principal influência do Surrealismo. Dessa forma, em Dalí, o hipogrifo – o sonho – é a vaca – a realidade. O interior sai para o exterior e vice-versa, a posição intermediária opcional não é possível. O homem está abaixo do mecanismo biológico e psíquico. Dalí apoia, então, a estratificação humana proposta pela psicanálise freudiana, que não são “[…] hipóteses ou instrumentos de explicação, mas como realidades absolutas, de natureza metafísica.” (ABBAGNANO, 2007, p. 949) A vaca, o hipogrifo, a porta-giratória, Picasso-enquanto-símbolo-poético, a criança, o poeta e o louco não nos permitem adotar o mesmo procedimento de Dalí para a leitura dos quintanares. Como temos visto, Quintana não concebe o engessamento dos tempos, dos espaços, nem das possibilidades que existem neste mundo, incluindo a manutenção de uma lógica. Enquanto a biologia evolucionista, seguida pela psicanálise e, agora, por Dalí enfocam uma possibilidade de atavismo real, Quintana indica que o atavismo que ele compreende diz respeito a um retorno temporal do indivíduo e do coletivo em relação ao convívio consigo e com a sociedade; não se trata especificamente de um atavismo biológico, apesar de Quintana não o negar. Podemos dizer até agora que em Quintana parece que “A inovação [incompreendida da criança, do poeta, do louco] aparece em uma sociedade sob a forma de um regresso ao passado: é a ideia-força das ‘renascenças’.” (LE GOFF, 2003, p. 217) 64 Posteriormente, neste trabalho, voltaremos mais detalhadamente ao pensamento teórico de Freud. Por ora, discutiremos outro ponto que contraria a concepção do inconsciente absoluto descrito por Dalí, mas que, dessa vez, não começa em Quintana. Em 1927, Mikhail Bakhtin publica um estudo lúcido e agressivo, no qual os próprios conceitos de dialogismo e polifonia são levados ao extremo: é só pela linguagem que o homem enquanto ser humano se faz. O Freudismo não nega o império dos sonhos, nem as distorções geradas pelo conceito de inconsciente defendido por Freud e pelos surrealistas. O que faz Bakhtin é atacar severamente a pretensão de estabelecimento de uma verdade única para o homem e a autoproclamação da biologia e da psicanálise como arautos de tal verdade. Para Bakhtin, nem o darwinismo nem o freudismo dão conta de explicar o poder da linguagem na formação de tudo que é biológico no homem. A ênfase dada a uma mente pré-linguística, isto é, a uma mente não social é exagerada (BAKHTIN, 2012, p. 45, 84). Para o filósofo russo, há coisas mais poderosas operando na mente humana, o contexto social: Aquilo que denominamos psiquismo humano e consciência reflete a dialética da história em proporções bem maiores que a dialética da natureza. Naquela a natureza é dada numa interpretação econômica e social. O conteúdo do psiquismo humano, o conteúdo dos pensamentos, sentimentos e desejos é dado em uma forma pela consciência e, consequentemente numa forma pela palavra humana. A palavra – é claro que em seu sentido não restritamente linguístico, mas no sentido sociológico amplo e concreto – é o meio objetivo em que no é dado o conteúdo do psiquismo. (BAKHTIN, 2012, p. 84) A posição de Bakhtin nos interessa, porque entendemos que o hilota no Atavism de O’Hara é um ser social, e assim também é o cão atávico de London. Buck, além de tornar a partilhar do convívio coletivo em uma nova sociedade, a alcateia, seu atavismo selvagem não o impediu de uma tradição anual: revisitar um vale que é símbolo da sociedade com John Thornton (LONDON, 1997, p. 278). No seu Atavismo, Quintana igualmente deixa claro que a criança, o poeta e o louco, além de por si mesmos já comporem uma microssociedade atávica, são eles quem mais se adéquam ao mundo coletivo (QUINTANA, 2005, p. 575), que é um mundo além do biológico, é mundo histórico, jurídico, religioso, artístico, cultural, político, social. Salvador Dalí entra na tradição atávica e nela se insere vigorosamente, sendo um dos seus ativistas mais influentes. Todavia, a ótica de Dalí é nitidamente oposta a de Quintana. O pintor espanhol se baseia em uma noção de atavismo enquanto psiquismo biológico. O poeta gaúcho se reserva de assumir a postura darwinista literalmente e acusa debilidade no esquema mental proposto por de Freud, como podemos perceber no pungente 14 de agosto: 65 A dona Izar, que também está seguindo aqui no Kur Hotel um regime naturista, aproveita os jazeres do tratamento para escrever uma tese de doutorado sobre o mais recente discípulo de Freud. Discípulo e dissidente. Como o seu predecessor Adler, diz ele que é apenas um anão montado sobre os ombros de um gigante, mas que, por isso mesmo, enxerga mais longe. Com discípulos assim, cada qual enxergando mais longe, eu gostaria de saber, daqui a uns sessenta ou setenta anos, o que restará da doutrina do Velho Mestre… (QUINTANA, 2005, p.753) Pelo poema, vê-se a crítica feita a Freud da seguinte forma: O freudismo é desenvolvido em círculo fechado, ambiente elitista, o hotel Kur é o símbolo da alta sociedade gaúcha, do que há de mais fino e sofisticado. Além disso, o regime para emagrecer baseado em alimentação orgânica, chamado de “naturista”, não é mais que uma refinada ironia, indicadora do naturalismo biológico, no qual se apoiam a noção de atavismo darwinista e a estética atávica de Dalí. 14 de agosto não explicita qual o dissidente de Freud que a personagem Izar estuda, mas certamente não é o primeiro, já houve um, Adler. Os próprios dissidentes de Freud, igualmente psicanalistas, enfatizam que a visão de Freud é limitada. A conclusão do eu-lírico é reticente. Ela aponta para um possível resultado: que, se o número de dissidentes aumenta, da visão de Freud nada mais restará. O que Quintana trabalha em 14 de agosto é, na verdade, não um ataque à psicanálise, mas sim uma exposição do inacabamento da teoria, para que se evite aceitar de imediato o freudismo como verdade derradeira, tal qual fizera Dalí. Os apontamentos do poema estão também presentes em Bakhtin (2012, p. 92). O mundo físico que se dissolve e os relógios que se derretem na obra do pintor espanhol não são mais que a aceitação biológica e psíquica de uma reversão atávica extrema, reversão feita não a um passado anterior, mas reversão à atemporalidade, ancestralidade pré-histórica, quando o tempo não existia, consequentemente, quando a sociedade inexistia. Dalí abraçando a filosofia freudiana nega o conceito de tempo: A importância atribuída ao passado pela psicanálise foi, no entanto, negada, por exemplo, por Marie Bonaparte, citando Freud: ‘Os processos do sistema inconsciente são atemporais; Isto é, não são ordenados temporalmente, nem são modificados pelo tempo que passa, não têm relação nenhuma com o tempo. A relação com o tempo está ligada ao trabalho do sistema consciente.’ Jean Piaget faz outra crítica ao ‘freudismo’: o passado que a experiência psicanalítica apreende não é um verdadeiro passado, mas um passado reconstituído […]. Concluindo, a psicanálise freudiana inscreve-se num vasto movimento anti- histórico que tende a negar a importância da relação passado/presente e que tem, paradoxalmente, as suas raízes no positivismo. (LE GOFF, 2003, p. 225) 66 Diferentemente da concepção de tempo em Dalí, Mario Quintana não nega o conceito, mas o reafirma; como lemos em Dar cor: “Há uma cor que não vem nos dicionários. É essa indefinível cor que têm todos os retratos, os figurinos da última estação, a voz das velhas damas, os primeiros sapatos, certas tabuletas, certas ruazinhas laterais: - a cor do tempo…” (QUINTANA, 2005, p.181), em Coisas do tempo: “Com o tempo, não vamos ficando sozinhos apenas pelos que se foram: vamos ficando sozinhos uns dos outros”. (QUINTANA, 2005, p.237) e em Tempo perdido: Havia um tempo de cadeiras na calçada. Era um tempo em que havia mais estrelas. Tempo em que as crianças brincavam sob a claraboia da lua. E o cachorro da casa era um grande personagem. E também o relógio de parede! Ele não media o tempo simplesmente: ele meditava o tempo. (QUINTANA, 2005, p.323) A reafirmação do conceito de tempo em Mario Quintana não acontece porque ele concorde com questão abstrata do termo, mas porque o poeta também ressignifica o étimo. Para Quintana o tempo só existe na relação, o tempo é relacional, ele se estabelece entre os indivíduos, é um bem coletivo. Consequentemente, o retorno no tempo, o atavismo em Quintana, é uma atividade social. Mas esta não pode ser apenas compreendida como atividade de discussão exclusiva da influência das diversas ideologias financeiras. As relações de poder existem, mas Quintana quer ampliar a discussão social, sem resumi-las à questão socioeconômica. Leiamos a sua flamejante carta a James Amado, transformada em poema intitulado Documentário: […] Há outras coisas, as coisas eternas, que não se resolvem nunca, graças a Deus: estrelas, grilos, penas de amor, saudades, anjos, nuvens, mortos, amadas, todas as paisagens, alegrias e tristezas deste e do outro mundo. Há outras coisas…, como aliás já dizia o nunca assaz citado Shakespeare: ‘There are more things in heaven and earth, Horatio, than are dreamt of in your philosophy’, o que, trocado em bom português atual, dá o seguinte: ‘Há mais coisas no céu e na terra, ó James, do que sonha o materialismo dialético’. […]. (QUINTANA, 2005, p. 730) Percebemos que, para Mario Quintana, a sociedade vai além das relações de poder, não se resumindo a elas. É preciso pensar o homem sempre social, político, relacional, mas também observar especificamente os limites do domínio do capital nas relações sociais, que não devem ser resumidas à luta das classes pelo poder. Vejamos que palavras-chave de Documentário implicam relações sociais como a saudade, só existe saudade entre; a morte de entes, a influência da morte só pode se dá quando ao menos outro permanece vivo, as pessoas amadas. Ora, para haver a pessoa amada é necessário quem ame, um amante; as penas de amor precisam de um indivíduo que inflija e ao menos outro que delas padeça. Com esses conceitos, Mario Quintana implica que tais relações 67 humanas, portanto, as questões sociais, têm uma regência que extrapola, ultrapassa, o socioeconômico, que simplesmente não dá conta de explicá-las. Tal posicionamento ainda pode ser lido em Por dentro e por fora: A coisa mais parecida com a censura é certa crítica que andam fazendo por aí. Um poema trata da questão social? Ótimo! Ótimo! Não trata? Alienação! Eu só pediria licença para lembrar que os alienados são precisamente os que têm uma ideia fixa. (QUINTANA, 2005, p. 723) Nesse sentido, ao enfrentar a questão social por meio da sua negação, isto é, pela fuga a outro plano, discussão pelo silêncio, ou “ideia fixa”, como intitula Por dentro e por fora, constitui o ponto fraco do Surrealismo. Não fugir da questão social, mas expandi-la, portanto, situa os quintanares numa posição de crítica e análise da sociedade mais politizada que a do Surrealismo. Lembramos que o conceito de tempo, por exemplo, como temos visto em todos os poemas analisados até aqui, é uma posse social e se manifesta nos quintanares através dos retratos, das indumentárias, nos relógios de parede, das construções urbanas, das cadeiras nas calçadas, isto é, da relação humana. A posição de Quintana dentro da tradição atávica se distância, assim, do “circo” puramente biológico e psicanalítico dos surrealistas que é estética social, porque antes biológica. Ao desprezar o atavismo tal como trabalhado por Dalí, o poeta gaúcho não se encontra sem apoio: Como devemos tratar o tema central da filosofia dos nossos dias? Tem fundamento a tentativa de deduzir imediatamente toda a criação cultural das raízes biológicas do organismo humano? Efetivamente, não existe o indivíduo biológico abstrato, aquele indivíduo biológico que se tornou o alfa e o ômega da ideologia atual. Não existe o homem fora da sociedade, consequentemente, fora das condições socioeconômicas objetivas. Trata- se de uma abstração simplória. O indivíduo humano só se torna historicamente real e culturalmente produtivo como parte do todo social, na classe e através da classe . Para entrar na história é pouco nascer fisicamente: assim nasce o animal, mas ele não entra na história. É necessário algo como o segundo nascimento, um nascimento social. O homem não nasce como um organismo biológico abstrato, mas como fazendeiro ou camponês, burguês ou proletário: isto é o principal. Ele nasce como russo ou francês e, por último, nasce em 1800 ou 1900. Só essa localização social e histórica do homem o torna real e lhe determina o conteúdo da criação da vida e da cultura. Todas as tentativas de evitar esse segundo nascimento – o social – e deduzir tudo das premissas biológicas de existência do organismo são irremediáveis e estão condenadas ao fracasso: nenhum ato do homem integral, nenhuma formação ideológica concreta (o pensamento, a imagem artística, até o conteúdo de um sonho) pode ser explicada e entendida sem que se incorporem as condições socioeconômicas. Além do mais, nem as questões especificas da biologia encontrarão solução definitiva sem que se leve plenamente em conta o espaço social do organismo humano em estudo. Porque ‘a essência humana não é o abstrato 68 inerente ao indivíduo único. É o conjunto das relações sociais em sua efetividade’. (BAKHTIN, 2012, p. 11, grifo do autor) Destarte, tratar questões sociais é algo positivo e impreterivelmente uma marca dos quintanares. O problema seria, então, confundir questões sociais com questões socioeconômicas, obrigando as palavras “social” e “socioeconômico” a serem sinônimos, quando, para Mario Quintana, tal correspondência não é verdadeira. Assim sendo, nos quintanares, toda questão socioeconômica é social, mas nem toda questão social precisa ser socioeconômica. Da mesma forma, outro erro seria confundir a questão biológica com a humana, porque nem toda daquela espécie é desta e vice-versa. Ambos, Dalí e Quintana, compuseram sua arte em uma época cuja ocupação quase que única era a “gestão integral da vida biológica, isto é, da própria animalidade do homem” (AGAMBEN, 2013, p. 126). Os dois dialogaram com seus meios, através da mesma estética, embora com propostas diferentes. Ao utilizarem o atavismo, esses artistas estavam sobrepondo vida animal e vida humana, antenados entre si e no seu tempo, como nos explica Giorgio Agamben (1946-): Caso vida animal e vida humana se sobrepusessem perfeitamente, nem o homem nem o animal – e, pois, nem mesmo o divino – seriam mais imagináveis. Por isso o funcionamento da pós-história implica necessariamente a reatualização do limiar pré-histórico no qual aquela fronteira é definida. (AGAMBEN, 2013, p. 42) Walter Benjamin (1892-1940), em O Surrealismo (BENJAMIN, 2012), nos indica que os surrealistas tinham grande apreço pelo uso e representação de objetos antigos e apego ao passado, e isso podemos constatar em Quintana. Para Benjamin, a mobilização tendo em vistas à embriaguez também era uma resposta estética à sociedade específica de uma época. O abandono surrealista do olhar histórico foi, na verdade, uma intervenção política: “E isso deve ser notado, mesmo que apenas para afastar o inevitável mal-entendido do l’ art pour l’ art. Pois o l’ art pour l’ art foi raramente tomado em sentido literal […]” (BENJAMIN, 2012, p. 27). O crítico de arte nos informa que essa atitude omissa frente à história e à política, por si só, já era uma atitude histórica e política, porque a omissão é uma atitude. Se, para Quintana, Dalí espantava o burguês, Benjamin diz que isso aconteceu em resposta à “hostilidade da burguesia”. (BENJAMIN, 2012, p. 29) Se Quintana deixa claro aquilo em que se quer distinto de Dalí, a negação do freudismo, nada nos impede de observarmos no poeta e no pintor semelhanças de concepção sobre o atavismo. Os discursos de Quintana e Dalí não são tão dissonantes assim. Em primeiro lugar, assim como o 69 poeta, o poeta compreende o conceito de atavismo como reaparição de traço ancestral no presente, depois de um período de latência, como podemos constatar pelas suas próprias palavras: Em junho de 1932 apareceu subitamente em meu espírito, sem nenhuma recordação próxima nem associação consciente que permitisse uma explicação imediata, a imagem do Angelus de Millet. Essa imagem constitui uma representação visual muito nítida e colorida. É quase instantânea e não cede lugar a outras imagens.33(DALÍ, 1989, p. 25, tradução nossa) Depois, podemos dizer que Quintana e Dalí elegem um símbolo atávico por excelência: o crepúsculo. O pintor merece o crédito pela sagacidade em primeiro ter observado o crepúsculo como signo correspondente daquilo que desaparece e torna a reaparecer dentro do tempo. É, através de sua análise do crepúsculo no Angelus de Millet, que Dalí elabora seu método psicanalista. Na tela, de fato, podemos perceber uma atmosfera nostálgica, como a de uma perda. Há um desejo pelo passado transmitido pela imagem que causou obsessão no pintor, fazendo que este pedisse à administração do Louvre uma bateria de exames por raios-x, para conferir o que Dalí apenas suspeitava, que a cesta entre o casal foi pintada para disfarçar um plano prévio de Millet, o caixão de uma criança. (DALÍ, 1989, p. 15) Millet comunicara a sua mensagem através da preponderância das luzes no quadro. Dalí faz observar que o melhor termo para descrever a obra é crepúsculo. Vejamos que foram preteridos dois outros. Dalí nem utilizou a alvorada, que é o crepúsculo matutino, nem o pôr do sol, que é o crepúsculo vespertino, em consonância com o título da obra, que é Angelus. Ora, o título da obra também não nos permite dizer se é cedo de manhã ou final da tarde. O fato da gradação da luz partir da esquerda para a direita não permite dizer que seja o final do dia, porque, mesmo assim, faltam coordenadas geográficas que garantam que se trata de uma iluminação de oeste a leste. O Ângelus (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 217) é a oração em latim que se faz ao raiar do dia, ao meio-dia e no fim da tarde em saudação à Maria, mãe de Jesus. Dessa forma, a palavra se torna o substituto perfeito para o fenômeno do atavismo. Porque o crepúsculo, elemento que existe em dado tempo, desaparece pela separação criada pelo período do dia ou pelo da noite, e, finalmente, volta a reaparecer. Não podemos dizer que o sol seja atávico, nem que o dia seja atávico, nem a noite. Durante o dia, a treva entra em latência; por toda a noite, é a luz que o faz. Podemos dizer que o crepúsculo é atávico, porque nele há a união de dois tempos, união do dia com a noite, união 33“En junio de 1932 se presenta de súbito em mi espíritu, sin ningún recuerdo próximo ni asociación consciente que permitiera uma explicación inmediata, la imagen del Angelus de Millet. Esa imagen constituye uma representación visual muy nítida y em colores. Es casi instantânea y no da lugar a otras imágenes.” 70 da luz com as trevas, do passado com o presente. Na alvorada, é a treva quem ainda insiste para ficar; no fim da tarde, são os raios solares que ainda querem permanecer. Não é assim que enxergamos também o crepúsculo nos quintanares? Não é o crepúsculo também um recurso utilizado por Mario Quintana para estabelecer uma aliança, um elo entre passado e presente? Vejamos uma primeira defesa do atavismo através da palavra crepúsculo em O passeio: …mas não vi o crepúsculo - onde aqueles crepúsculos de Porto Alegre, de uma beleza pungente até o grito? Sim, cadê o crepúsculo? - O gato comeu! O gato se chama hoje arranha-céu, que aliás, ao que parece, ninguém mais chama desse jeito. Esvaziou-se o espanto. (QUINTANA, 2005, p. 736) Observemos o atavismo transcrito por crepúsculo em outro poema. Desta vez, em Para Telmo Vergara: Era uma rua tão antiga, tão distante que ainda tinha crepúsculos, a desgraçada… Acheguei-me a ela com este velho coração palpitante de quem tornasse a ver uma primeira namorada em todo o seu feitiço do primeiro instante. E a noite, sobre a rua, era toda estrelada… havia, aqui e ali, cadeiras na calçada… E o quanto me lembrei, então, de um amigo constante, dos que, na pressa de hoje, nem se usam mais como essas velhas ruas que parecem irreais e a gente, ao vê-las, diz: “Meu Deus, mas isto é um sonho!” Sonhos nossos? Não tanto, ao que suponho… São os mortos, os nossos pobres mortos que, saudosamente, estão sonhando o mundo para a gente! (QUINTANA, 2005, p. 462) Esse uso também fez Dalí nas numerosas composições em torno do Angelus de Millet. Vejamos que em Atavismo (DALÍ, 1916), a figura masculina é pintada com um buraco no lugar do coração, podendo ser interpretado com o mesmo sentido da ausência do crepúsculo no O passeio de Quintana. 71 Em Atavismo do crepúsculo (DALÍ, 1934) – onde Dalí veria também pernas femininas partindo da cabeça da figura masculina e um falo partindo das costas da figura feminina –, podemos também ler a mesma cavidade no lugar do peito da figura masculina como o sentido de ausência, de saudade, de algo que falta e, nessa mesma figura, em decorrência de uma sistema opressor análogo aquele do hilota no poema de O’Hara, que pode estar representado em Dalí pelo carro de mão na cabeça da figura masculina. Na figura feminina, sai do lado esquerdo, que é o lado do coração, algo em direção ao que está atrás, é o sentimento do coração que se projeta ao passado. O órgão palpitante do hilota e do eu-lírico em Telmo Vergara. Chama-nos particular atenção uma charge (DALÍ, 1989, p. 47), sob a qual o pintor anota: “O passageiro e o imutável”. Nela, Dalí conclui que existem coisas que passam e outras que insistem em permanecer. Estabelece intelectualmente, na figura, um contraste entre dois planos econômicos, um capitalista, o outro agrário; duas realidades, uma urbana e outra rural; duas épocas, a antiguidade e a modernidade. Sátira que fez Quintana no uso de um gato comedor de crepúsculos e com a ruazinha antiga, que só por um milagre consegue preservar o pôr do sol. Dalí e Quintana acusam a modernidade de tentar desintegrar o passado. Constatemos como a modernidade se configura como fuga para o artificial e o novo e como esquecimento do natural e do antigo, quando Quintana, à semelhança da anotação na charge feita por Dalí, brinca com as duas palavras em Decadência e esplendor da espécie: Não sei o que terá acontecido com a espécie humana. Esta ausência de pêlos… Para os outros mamíferos a nossa nudez pode parecer repugnante como, para nós, a nudez dos vermes. E, depois, a nossa verticalidade é antinatural. Estas mãos pendendo, inúteis, são ridículas como as dos cangurus sentados. Se fôssemos veludos e quadrúpedes, ganharíamos muito em beleza e, sem a atual tendência à adiposidade, poderíamos ser quase tão belos como cavalos. Felizmente, inventou-se a tempo o vestuário, que, pela variedade e beleza (a par de sua utilidade em vista do fatal desabrigo em que ficamos), redime um pouco esta degenerescência. E acontece que inventamos também o mobiliário, os utensílios: no caso vigente, esta cadeira em que escrevo sentado a esta mesa, à luz artificial desta lâmpada. E ainda este ato de escrever, isto é, de expressar-me por meio de sinais gráficos, é mais uma prova da nossa artificialidade. Mas quem foi que disse que eu estou amesquinhando a espécie? Quero apenas significar que, em face das suas miseráveis contingências, o homem criou, além do mundo natural, um mundo artificial, um mundo todo seu, uma segunda natureza, enfim. O homem, esse mascarado… (QUINTANA, 2005, p. 275) 72 Enquanto símbolo, o crepúsculo seria a representação da verdade do devir atávico, do retorno ontológico submetido às perspectivas biológicas, em Dalí, e, às históricas e sociais, em Quintana. Outra similaridade entre Quintana e Dalí está no uso de outro símbolo em particular, os artrópodes. Não só Dalí, mas os surrealistas em peso, tinha obsessão pelos insetos. Vejamos uma passagem onde Dalí aborda o tema: Mas nada há de mais revelador acerca dos possíveis ‘atavismos do crepúsculo’ que a análise, incluindo as mais superficiais, da literatura desse ‘carteiro Cheval’ da entomologia que era Fabre. Nele as descrições do crepúsculo adquirem uma importância poética afetiva. Amiúde me havia sentido intrigado, muito antes de entrar no plano das constatações atuais e desde a primeira leitura das obras de Fabre (isso já tem uns seis a sete anos), pela complacente repetição em sua obra do tema crepuscular, em tom panteísta que levava a sonhos cósmicos, a nostalgia e o sentimento de elegíaco pesar. Está sempre nas analogias atávicas: ‘Que mundo tão singular o dos locustídios, um dos mais antigos animais sobre a terra firme e, como a escolopendra e o cefalópode, um representante ‘atrasado’ dos antigos costumes!’. A existência dos ‘atavismos do crepúsculo’, independentemente dos dados complementares que se seguirão, nos parece de acordo com a noção de ‘processo relativo’ do devir, segundo o qual ‘a aurora do mundo só pode nos aparecer ‘dialeticamente’ como crepuscular’. Essa noção vem corroborada pela real ‘extinção’ do verdadeiro crepúsculo da fauna e da flora dessa aurora, de modo que o sentimento de extinção domina tudo.”34 (DALI, 1989, p. 67, tradução nossa) Antes de comentarmos a semelhança, indiquemos que a diferença entre Dalí e Quintana reaparece na citação acima quando o primeiro recorre ao atavismo por causa do medo de extinção e decadência, sentimento inexistente em Quintana, que prefere a intersecção das coisas. A postura dos quintanares frente à decadência se assemelha mais à de Le Goff que elege cambiar esse conceito pela caracterização de outra perspectiva ou fenômeno: “[…] o que se impõe como fenômeno fundamental da história é a continuidade, não uma continuidade imóvel, mas uma continuidade atravessada por transformações, mutações, e crises.” (LE GOFF, 2003, p. 414). 34“Pero nada hay más revelador acerca de los posibles ‘atavismos del crepúsculo’ que el examen, incluso sin excesiva profundidad, de la literatura de esse ‘cartero Cheval’ de la entomologia que era Fabre. Em el las descripciones del crepúsculo adquieren una importancia poética afectiva. A menudo me había sentido intrigado, mucho antes de entrar em el orden de las constataciones actuales y desde la primera lectura de las obras de Fabre (hará uns seis o siete años), por la complaciente repetición en su obra del tema crepuscular, el tono panteísta que arrastraba a sueños cósmicos, la nostalgia y el sentimiento de la pesadumbre elegíaca. Está claro que la descripción de un insecto evoca siempre en él analogias atávicas: ‘Que mundo tan singular el de los locustinos, un de los más antiguos animales sobre tierra firme y, como la escolopendra y el cefalópodo, un representante ‘retrasado’ de las antiguas costumbres!’.La existencia de los ‘atavismos del crepúsculo’, independientemente de los datos complementarios que seguirán, nos parece en acuerdo con la noción de un ‘proceso relativo’ del devenir según el cual ‘la aurora del mundo solo puede aparecérseno ‘dialécticamente’ como crepúscular’. Esa noción viene corroborada por la real ‘extinción’ del verdadero crepúsculo de la fauna y de la flora de esa aurora, de modo que el sentimiento de extinción lo domina todo.” 73 Mas prossigamos: algumas classes de animais são utilizadas pictoricamente como símbolo da dinâmica da vida, em William Blake (1757-1827), por exemplo, os Zoas são inspirados nos antozoários. Em Dalí e em Quintana, são os artrópodes. Os ancestrais dos artrópodes (CAMPBELL; REECE, p. 2011, p. 692), os carcinoides, foram o que desencadeou em Darwin o interesse de desenvolver sua teoria da evolução e, consequentemente, discorrer sobre o atavismo. Artrópodes podem ser encontrados em todo habitat da biosfera. Pela diversidade, por sua distribuição no planeta, pela sua abundante quantidade, são a mais bem-sucedida classe de animais na terra planeta (CAMPBELL; REECE, p. 2011, p. 684). Quintana faz uso deles como símbolos atávicos, em especial os grilos: “Sozinho, que pode um grilo/ Quando já tudo é revoada?/ E o Dia rouba o menino/ No manto da madrugada…” (QUINTANA, 2005, p.138) e a lagosta: “[…] A lagosta tem a cor, o frescor, o sabor das antigas moringas de barro.” (QUINTANA, 2005, p.496) A lagosta também é frequente em Dalí como símbolo do atavismo. Geralmente indica a distorção dos tempos, como podemos ver em Gala e o Angelus de Millet precedendo a chegada da anamorfose cônica (1933). O pintor deixa clara a intenção de representar a distorção temporal ao trazer o conceito de anamorfose, que é a distorção da perspectiva da imagem. Ela implica em dizer que as coisas só podem ter uma configuração estável quando vistas de uma perspectiva preestabelecida. A percepção delineada dos objetos só pode ser feita quando escolhido um ponto de vista, um padrão de olhar fechado. A lagosta, em Quintana, é representação desse presente distorcido que recupera o passado. Em Dalí, esse crustáceo também exerce tal função. Vejamos que, em Gala e o Angelus de Millet precedendo a chegada da anamorfose cônica, a figura artrópode, com uma lagosta na cabeça, apresenta o interior das coisas. Essa figura distorcida está no limiar de acesso a uma câmera, implicando que primeiro a passagem por uma câmara inicial é necessária. Na antecâmara, está o passado, representado, ao topo, pelo Angelus de Millet. Em Quintana, é o sabor da lagosta que recupera o passado. Em Dalí, são as luzes crepusculares à porta que indicam o retorno. Como temos visto neste trabalho, em Quintana, o novo deve conter traços do antigo. Dalí também estabelece essa necessidade atávica, das situações presentes induzidas pelo passado, como a reexpressão do Angelus de Millet em O Angelus de Gala (1935) e na reapresentação do antigo como novidade, elemento trazido pelo adulto à criança em Vestígios atávicos depois da chuva (1934). O diálogo dessa tradição atávica, todavia, não se resume apenas a O’Hara, London, Dalí e Quintana. José Paulo Paz, por exemplo, nos aponta, em seu importante artigo (1992) intitulado 74 Augusto dos Anjos ou o evolucionismo às avessas, que Augusto dos Anjos (1884-1914) também se preocupou em se inserir em uma tradição que versava sobre o atavismo. De fato, Augusto dos Anjos foi o primeiro artista brasileiro a utilizar o conceito, apenas dez anos depois do estadunidense O’Hara. Todavia, comete um engano que compromete a leitura do termo. Depois de misturar as noções de evolução e evolucionismo, Paz (1992, p. 97) aponta atavismo como sinônimo de involução e degeneração. Pensamos que a palavra “eu”, no título Eu e outras poesias (1912), deva ser lida como um eu atávico que tem consciência de algo revertido em si e que se reconhece confortavelmente dentro do fenômeno atávico. Ele é voz lírica que se sabe provinda do ancestral mais antigo da vida na terra, reconhecimento dramatizado no poema Monólogo de uma sombra: Sou uma Sombra! Venho de outras eras, Do cosmopolitismo das moneras… Pólipo de recônditas reentrâncias, Larva de caos telúrico, procedo Da escuridão do cósmico segredo, Da substância de todas as substâncias! A simbiose das coisas me equilibra. Em minha ignota mônada, ampla, vibra A alma dos movimentos rotatórios… E é de mim que decorrem, simultâneas, A saúde das forças subterrâneas E a morbidez dos seres ilusórios![...] (ANJOS, 2004) Sombra equivale ao cão Buck, que se sabe atávico, e ao hilota que despertou para os antigos desejos nômades. A sombra em Augusto dos Anjos está mais próxima da criança, do louco em Atavismo/Q. Devemos levar em consideração que, observado o estudo feito até aqui, o termo “atávico”, que aparece nos versos: “Era (nem sei em síntese o que diga)/ Um velhíssimo instinto atávico, era/ A saudade inconsciente da monera/ Que havia sido minha mãe antiga!” (ANJOS, 2004) não é bem lido enquanto sinônimo de involução, nem do inconsciente freudiano, como Paz defende (PAZ, 1992, p. 97). Percebamos também que o eu-lírico, chamado Sombra, rememora as suas origens. Temos até aqui utilizado o termo inglês “atavism”, para designar o poema escrito por O’Hara em 1902, isso para diferenciá-lo de Atavismo, poema de Quintana. A partir de agora, sempre que nos referirmos a poemas homônimos, isto é, intitulados atavismo, grafaremos a letra do sobrenome do autor em maiúscula seguida de uma barra, por exemplo, Atavismo/Q corresponde ao poema de Quintana. 75 Em 1921, nove anos depois de Augusto dos Anjos, Elinor Wylie publica um poema sobre o medo, que é princípio atávico, instinto selvagem, remanescente no homem contemporâneo: Sempre senti medo da Lagoa de Somes: Não da lagoazinha, em volta das quais há salgueiros, Onde meninos risonhos pescam sáveis com as mãos Em poças marrons e brilhantes; mas é daquela além. Lá, quando a geada queima as bétulas, Tornando-as amarelas como nenúfares, e o pálido céu brilha Como concha polida entre o negro abeto e os pinheiros, Algumas coisas estranhas nos seguem, virando onde viramos. Dirás que sonho, sendo a verdadeira filha Daqueles que em tempos antigos suportaram tal medo. Vejam! Onde as hastes dos lírios parecem vermelhas Um remar silencioso sob a água, Uma forma escorregadia a agitou como em sopro; Altos penachos superam uma máscara pintada de morte. (WYLIE, 2000, p. 16, Atavismo, tradução nossa)35 Em Atavismo/W, a poetisa trabalha com um eu-lírico que não consegue ser razoável frente ao perigo. O incompreensível aflora seu lado irracional e desencadeia o medo. Há um ponto de exclamação que alardeia algo escorregadio que se movimenta sob a água. Essa é uma questão da fuga da razão. Desnecessário dizer que, na criança e no adulto ou na criança dentro do adulto, a razão se paralisa por instinto: “Pois quando o medo é muito, faz-se um silêncio na alma. E nada mais existe.” (QUINTANA, 2005, p. 544). Entretanto, ao repararmos bem, Atavismo/W nos apresenta o medo como uma espécie de memória, memória irracional, mas benéfica, porque pressagia o perigo, memória enquanto instinto de sobrevivência, o irracional a serviço da vida. O potiguar Othoniel Menezes36, vinte e três anos depois de O’Hara, três depois de Wylie e cinquenta e dois antes de Quintana, também reaproveita o evolucionismo e se insere na tradição atávica, ao escrever um poema sobre o retorno de um fantasma. O poema foi publicado em 1925 e dedicado a seu amigo Jorge Fernandes: I 35Publicado primeiramente na revista Poetry em abril de 1920. O poema pode ser encontrado em: WYLIE, E. Atavism. In: Selected words of Elinor Wylie. Ohaio: Kent State University, 2005. p. 16. I always was afraid of Somes's Pond:/ Not the little pond, by which the willow stands,/ Where laughing boys catch alewives in their hands/ In brown, bright shallows; but the one beyond./ There, when the frost makes all the birches burn/ Yellow as cow-lilies, and the pale sky shines/ Like a polished shell between black spruce and pines,/ Some strange thing tracks us, turning where we turn.// You'll say I dream it, being the true daughter/ Of those who in old times endured this dread./ Look! Where the lily-stems are showing red/ A silent paddle moves below the water,/ A sliding shape has stirred them like a breath;/ Tall plumes surmount a painted mask of death. 76 Tic-tac! Tac-tac! – Rrac… crac… Olá, amigo vento, velha alma familiar e chorosa de Cassimiro! velha gargalhada noctâmbula do salafrário Bocage! Avejão!… (rrac!) vulto branco!… (crac!) Tic-tac… Ferve, a cem léguas, o mar… uma zelação que desabou no mar! II Crac!… Crac! abriram a minha porta! Quando chega a hora aziaga e o horror no coração primitivo do primeiro pastor que viu a primeira estrela no céu, enorme, tic… tic… o coração é um relógio – tic… tic… tic…! a hora sem nenhum pavor dos corujões rasgando a mortalha das horas sobre o sono dos pequeninos, centos de filisteus com plumagens índias, carregando uma urna de esmeralda, enflorada de corais e algas, a cabeça luminosa e gotejante de Gonçalves Dias, Berram, mudos, epopéias americanas… Ferve, a duzentas léguas para o Ocidente: o mar! e foi quando os espectros de todas as poesias abriram a minha porta! III E morri no meu corpo imortal, e voei pela transparência da noite morta! Tudo morto! Para o Ocidente, para dentro da plaga imensa, ferve o mar! … mas, o meu irmão moinho, acordado ainda, geme no ermo: crac… crac… Era um mar morto, o mar diferente do mar que referve, e onde o último romântico, absorto, navegava, com um santelmo de saudade fátua iluminando a lira grega! IV E o meu ágil fantasma, – rrac… rrac… rrac… – assustando os burgueses insones, de tanto ouro honesto e principal na vida, – canalha cosmopolita, céu dos judeus dos miseráveis! – tic-tac… Hora boa dos miseráveis! 36Othoniel Menezes de Melo nasceu em Natal, no dia 10 de março de 1895 e faleceu no Rio de Janeiro em 19 de abril de 1969. A pesquisadora Águeda Zerôncio ouviu de familiares que a mãe previra seu destino, rebatendo comentário da parteira, que o considerara franzino, ao nascer, com a frase “Mas é um HOMEM e será o POETA da família”. Acertou duplamente: Othoniel foi um homem decidido e cheio de orgulho – o que, aliás, lhe custou graves dificuldades na vida – e poeta de notável talento. Adepto declarado do parnasianismo, o seu espírito irrequieto sempre pendeu para os voos românticos de Itajubá, a quem admirava. Tem a poesia marcada pelo uso reiterado de imagens mitológicas. Publicou Gérmen (1918), Jardim Tropical (1923), Sertão de Espinho e de Flor (11952), A canção da Montanha (1955). Deixou esparsos e inéditos, alguns já resgatados por Cláudio Galvão. Ara de Fogo, Abismos e Esparsos (num só volume, editado pela Clima Artes Gráficas em 1969) e A cidade Perdida/Desenho Animado/Esparsos, numa edição da UFRN/CCHLA, 1995. (GURGEL, 2001, p. 189). 77 V O meu fantasma arrastando uma braçada fria de horas, tac… uma! tac… duas! tac z multiplicando, vai deixando cair uma hora boa à porta dos miseráveis! beija um faminto filho de vagabundo que não sabe das horas, e traz um vagalume, para alumiar dez beijos nos meus filhos ressonando… VI Rrac… rac… rac… abriram a minha porta, aqueles suaves fantasmas que são os meus pensamentos, numa eclosão constante de música, dentro de uma noite morta… VII Eu estou vivo no meu corpo, e o meu fantasma sensitivo radiografa para a estação circular do meu cérebro – tic… tic… – todas as impressões musicais das horas que morrem cantando. E eu sinto no estuário do meu coração a convergência, a refração da inquietação comum… VIII Tic… tac… Tictac: dez! tac – onze! tac – doze!… Às constelações mais belas, muito móveis no mostrador ciclópico da matriz do zodíaco. so… no… ra… men… te gotejam: tic-tac… tic-tac: – luz maior que a luz do século, sobre os páramos dos sertões fetichistas e esquecidos: a! as reticências de Euclides da Cunha: o Caçador de Esmeraldas de Bilac! Tic-tac… IX E eu, dentro da cidade que dorme, vigiada pela vigília inexorável das horas assombradas, e pelo cão danado do vento sul, que é um bandido e devasta o peito dos meus irmãos varredores das ruas, eu estou vivo! e vejo o FANTASMA! tic… tac!… o fantasma!… 78 crac! crac!… o fantasma! dos meus próprios pensamentos. (MENEZES, 1925, Atavismo) O Atavismo/M se assemelha muito ao Noturno II: “Os fantasmas rasgaram as fimbrias no tic-tac dos despertadores […]” (QUINTANA, 2005, p. 436), ambos os poemas estão brincando com a onomatopeia do tempo: tic-tac, para simbolizar o período que o fantasma permanece latente, desaparecido. Menezes faz uso de outra onomatopeia, o crac-crac, para indicar o reaparecimento, som daquilo que se quebra ou que se racha, como ovo depois de chocado. Atavismo/M assume, em si mesmo, a função de demonstrar estruturalmente como acontece o atavismo: aparece – desaparece – reaparece. Há tempo de latência, tic-tac, reaparecimento, crac-crac, manifestação via linguagem e novo desaparecimento com outro tic-tac. Tanto em Menezes quanto em Quintana, o fantasma, que é memória há muito desaparecida, retorna ao mundo, interrompe o tempo que estava em andamento. Podemos inferir de Atavismo/Q que o fantasma será de nosso interesse, uma vez que crianças têm medo de fantasmas, poetas trabalham com a figura do fantasma – e de fato percebemos com frequência essa figura em Quintana, como símbolo do retorno do passado ao presente – e, ainda, que os loucos veem fantasmas. Assim, como Atavismo/W, Atavismo/M também fala, no quinto verso da segunda estrofe, de suspense, que faz o coração bater como um relógio, palpitação como o coração em Atavismo/O. Afora isso, ainda notemos que Atavismo/M se estrutura de forma livre e, como poema modernista metalinguístico, se explica como forma desorganizada e selvagem, contrária à organização das figuras da civilização organizada, como Olavo Bilac. Vejamos a estrutura sem forma de Atavismo/M e suas referências positivas à natureza por meio de adjetivos – o poema quer a forma livre, porque natural, e não o mecanicismo do compassado do relógio. Menezes, assim, explica, que Atavismo/M retoma um passado primitivo, natural, no qual o poema deve ser um encontro subjetivo e espontâneo, não mecânico. A figura de Bilac, por exemplo, seria esse período de latência durante evolução poética, que será surpreendido pelo reaparecimento de traços selvagens. Onze anos depois de Othoniel Menezes, em 1936, o italiano Cesare Pavese (2008) lança seu poema homônimo. Nele, desenham-se o menino, o rapaz, o homem e o velhote. Atavismo/P brinca com as relações entre tempo e corpo pensadas por uma figura masculina na puberdade. Formas físicas do corpo são analisadas. É um poema sobre adolescência, entrada humana nos hormônios e 79 na sociedade, moço que já se esboça homem, mas que ainda se percebe menino. No poema, também existe um medo, que é instintivo, do olhar do outro, que é social: Mas a rua é deserta. Se alguém a cruzasse, lá do escuro o rapaz ousaria fitá-lo e pensar que as pessoas escondem um corpo. Mas quem passa é um cavalo de músculos fortes, e a calçada ressoa. O cavalo demora a partir, nu e sem pejo, debaixo do sol: vai marchando no meio da rua. O rapaz, que queria ser forte e moreno como ele e quem sabe puxar a carroça, ousaria mostrar-se. Se há um corpo, é preciso exibi-lo. O rapaz não percebe que cada um tem um corpo. O velhote enrugado que passava de dia não pode ter corpo assim pálido e triste; não pode haver nada de tamanho pavor. Nem sequer os adultos ou as mães que oferecem o peito aos meninos estão nus. Têm um corpo somente os rapazes. O garoto não ousa mirar-se no escuro, mas bem sabe que deve afogar-se no sol e habituar-se aos olhares do céu, para ser depois homem. (PAVESE, 2009, p. 200, Atavismo) Helena Kolody, treze anos depois de Pavese e vinte e oito anos antes de Mario Quintana, entra na tradição atávica com seu poema Atavismo (1949): Quando estou triste e só, e pensativa assim, É a alma dos ancestrais que sofre e chora em mim. A angústia secular de uma raça oprimida Sobe da profundeza e turva a minha vida. Certo, guardo latente e difusa em meu ser, A remota lembrança dos dias amargos Que eles viveram sem a ansiada liberdade. Eu que amo tanto, tanto, os horizontes largos, Lamento não ser águia ou condor, para voar Até onde a força da asa alcance a me levar. Ante a extensão agreste e verde da campina, Não sei dizer por que, muitas vezes, senti Saudade singular da estepe que não vi. Pois, até o marulhar misterioso e sombrio Da água escura a correr seu destino de rio, Lembra, sem o querer, numa impressão falaz, O soturno Dnipró, cantado por Tarás... Por isso é que eu surpreendo, em alta intensidade, 80 Acordada em meu sangue, a tara da saudade. (KOLODY, 1950, p. 30) Atavismo/K recupera as origens da vida no mar, nas águas escuras, tema tão caro ao atavismo quintaniano. Remete ainda à dicotomia opressão-libertação, lembrança de Atavismo/O, indicando-nos que a criança, o poeta e o louco em Atavismo/Q podem ser uma possibilidade de liberdade. A penúltima estrofe de Atavismo/K também versa sobre o sombrio em Atavismo/W, sobre amedrontador fantasma de Atavismo/M e o receio do rapaz em Atavismo/P. Se junta a todas essas vozes mais um poema: Às vezes, a céu aberto, ergues teu olhar para cima Onde os pássaros passam ou simplesmente nada, e esperas. Surge uma opaca sensação. Já fostes antes assim, havia ar, sereno; em volta do lago ou, talvez, de um rio. Ficavas alerta como uma lontra e eras subitamente concebido como a estrela da manhã nos vastos mundos inertes como este que encontraste. Novamente, por um momento, a céu aberto. Algo está sendo dito nos bosques: alas de sombras desviam; um galho acena; um raio de luz solar vagarosamente viaja seu caminho. Uma presença retida quase fala, mas, depois, recua, cicia remendo de feixes. Podes senti-lo. Os séculos murmuram gerações de andanças, descobertas, perdas e encontros, comendo, morrendo, nascendo. Percorrer a floresta acaricia teu pelo, o Pelo que tu não mais tens e teu olhar fixo, para baixo, à ala florestal, é um estranho e longo mergulho; profunda procura pelo lar. Durante deliciosos minutos podes sentir tuas vibrissas mais amplas que tua mente, escapando de tudo além.37 (STAFFORD, 1991, Atavismo, tradução nossa) 37“Sometimes in the open you look up/ where birds go by, or just nothing,/ and wait. A dim feeling comes/ you were like this once, there was air,/ and quiet; it was by a lake, or/ maybe a river you were alert/ as an otter and were suddenly born/ like the evening star into wide/ still worlds like this one you have found/ again, for a moment, in the open.// Something is being told in the woods: aisles of/ shadow lead away; a branch waves;/ a pencil of sunlight slowly travels its/ path. A withheld presence almost/ speaks, but then retreats, rustles/ a patch of brush. You can feel/ The centuries ripple generations/ of wandering, discovering, being lost/ and found, eating, dying, being born./ A walk through the forests strokes your fur,/ the fur you no longer have. And your gaze/ down a forest aisle is a strange, long/ plunge, dark eyes looking for home./ For delicious minutes you can feel your whiskers/ wider than your mind, away out over everything.” 81 No Atavismo/S, podemos perceber a sintonia que estabelece Stafford com o Atavismo/O, um presente desconfortável e opressor do hilota é recuperado pela memória que se abre. A libertação é trazida pelo antigo. Recupera também o romance de London, no momento em que as vibrissas de Buck voltam a funcionar plenamente, quando ele atende ao chamado da floresta. Nesse sentido, traz um discurso dramático sobre os pelos desaparecidos no homem, que Quintana trata com ironia em Decadência e esplendor da espécie (QUINTANA, 2005, p. 275). Ainda faz lembrar a atmosfera quintaniana estabelecida em Passeio pela mata (QUINTANA, 2005, p. 360) e em Evolução (QUINTANA, 2005, p. 481). Os séculos que murmuram em Atavismo/S são o mesmo mundo antigo da criança, do poeta e do louco em Atavismo/Q. Percebendo todos esses diálogos, podemos iniciar nossa conclusão para este capítulo dizendo que, ao escrever o seu Atavimo, Quintana tinha em volta de si uma rica tradição. Resgatando o caráter histórico do termo atavismo, que foi cunhado em torno das discussões biológicas, que acabaram por entrar no diálogo social e desembocaram na arte. Em 1902, no poema de O’Hara, outros artistas, inclusive Quintana, passaram a recorrer ao conceito, ora o adotando literalmente, ora o retransformando, mas o tendo sempre como referência. Apontamos também que Quintana tem interesses particulares na construção de uma estética que alia o todo ao individual, que esteja sempre aberta. Para isso, prima por não se encerrar em caminhos únicos, como fez Salvador Dalí. O método estético do poeta Gaúcho não tem o interesse em definir especificamente o que é o homem. A arte, para Quintana, não deve funcionar como uma das máquinas de fazer homens, as máquinas antropológicas descritas por Giorgio Agamben (AGAMBEN, 2013) em O aberto (2002). Por utilizar o termo atavismo, Quintana não visava definir os contornos do homem, mas expressar que criança, poeta e louco se instauram em um estado movediço importante, diferente das máquinas antropológicas criadas pela sociedade, que preveem a deliberação do que é humano, mas que não conseguem localizar exatamente onde o homem se articula e se separa do animal, amiúde adiando essa localização (AGAMBEN, 2013, p. 65). Nessa indefinição do homem, está sua relação com o presente, que se quer em um tipo de retorno ao passado. Porta giratória, ao representar os poemas estudados aqui, nos confirma que não está na perda da lógica nem do presente, mas na intersecção de lógica/presente e incompreensão/passado que a estética Quintaniana se quer filha. Atavismo/Q não ampara nem o selvagem nem o civilizado, mas une um ao outro, a exemplo do cão Buck e do hilota atávico de O’Hara. Essa nos parece uma possibilidade correta de ler a recuperação do termo biológico por Atavismo/Q, leitura da natureza humana preferível também para Agamben: 82 O que significa ‘domínio da relação entre natureza e humanidade’? Que nem o homem deve dominar a natureza nem a natureza o homem. E tampouco que ambos devam ser superados em um terceiro termo que representaria a síntese dialética. Acima de tudo, segundo o modelo benjaminiano de uma ‘dialética em estado de paralisia’, decisivo aqui é, sobretudo o ‘entre’, o intervalo e quase o jogo entre os dois termos, a sua constelação imediata em uma não coincidência. (AGAMBEN, 2013, p. 136) Atavismo por si só já implica memória. É uma herança legada, que permaneceu em latência. Em termos biológicos, a amostragem da população geral, que apresenta o atavismo descrito por Quintana, é composta pela criança, pelo poeta e pelo louco. O atributo herdado que se encontra especificamente revertido, ou seja, o que é atávico, nessa amostragem tripla simultaneamente, é a memória. Compete-nos observar, em Atavismo/Q, essa aparente redundância atavismo-memória, ou seja, memória-memória, partindo do pressuposto do poema que nos diz que há memórias não atávicas. Já apontamos, em estudo anterior (BARATA, 2010), que Quintana seria melhor lido enquanto antimoderno (COMPANGNON, 2010). Nessa perspectiva proposta por Antoine Compagnon (1950-), não entendemos o poeta gaúcho como reacionário. Em Quintana, o que há é um amálgama de tempos. O retorno do passado no presente, ou a presença do presente no passado, é sempre uma dinâmica constante. Dessa maneira, percebemos o caráter de restolho que tem a criança, o poeta e o louco nos quintanares, no sentido utilizado por Friedrich Nietzsche em “Aquilo que numa época parece mau, é quase sempre um restolho daquilo que na precedente era considerado bom, o atavismo de um ideal já envelhecido.” (NIETZSCHE, 2001, p. 90). Sendo a criança, o poeta e o louco da mesma natureza atávica, e a parte deles que se reverteu é a mnemônica, o estudo da memória atávica de cada uma dessas figuras nos permitirá descrevê-las melhor, uma vez que o que está ausente em uma pertence automaticamente à outra. A leitura que já empreendemos até aqui nos permite anunciar que a memória da criança, do louco e a do poeta é atávica no sentido da relação que estabelece com seu meio. Como nos elucida Ecléa Bosi, a memória se configura no convívio: Nessa linha de pesquisa, as relações a serem determinadas já não ficarão adstritas ao mundo da pessoa (relações entre o corpo e o espírito, por exemplo), mas perseguirão a realidade interpessoal das instituições sociais. A memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a igreja, com a profissão; enfim, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo. […] Se lembramos, é porque os outros, as situações presentes nos fazem lembrar: ‘O maior número de nossas lembranças nos vem quando nossos pais, nossos amigos, ou outros homens, no-las provocam’. O caráter livre, espontâneo, quase onírico da memória é, segundo 83 Halbwachs, excepcional. Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. (BOSI, 1994, p. 54-55) Em Atavismo/Q, existem ao menos duas memórias, uma ordinária e outra atávica. Logo, o que temos são duas memórias operando desfechos diferentes no mesmo meio relacional. Daremos no próximo capítulo um olhar mais aproximado a essa proposição quintaniana. 84 Figura 5: Lili Fonte: Acervo do autor 85 2 MEMÓRIA No capítulo anterior despendemos algum tempo na tentativa de entender o termo atavismo, termo esse tão precioso para nossa análise, que visa compr eender a loucura tal como a obra de Quintana nos apresenta. Dizemos precioso, porque o termo, em sua forma adjetival, atávica, caracteriza a memória, tornando-a um tipo específico; e esse tipo específico de memória é a causa da loucura, de acordo com Mario Quintana. Manifestamente, o desafio que se tornou o eixo desta pesquisa é compreender a concepção da loucura dentro da obra quintaniana como um todo. Isso porque, como já assinalamos, poesia e loucura são fenômenos análogos para Mario Quintana. Pensamos que, dessa maneira, ao analisar e fazer deduções em torno da loucura na obra do poeta gaúcho somos levados necessariamente a um entendimento mais claro do engendro poético quintaniano, isto é, somos levados a entender uma visão de mundo e uma visão de mundo que se quis estetizada. Confiamos que o entendimento dessa memória específica proposta por Quintana se oferece enquanto chave para uma compreensão eficaz da loucura e, consequentemente, da poesia, tal qual pensada pela poética do escritor gaúcho. Enquanto estudantes de literatura, lançamos um olhar mais apurado sobre a poética de um autor específico porque esse olhar nos leva inevitavelmente a um alargamento de compreensão sobre a própria literatura, que é, além de mera técnica estetisante, um diálogo aberto com a condição humana, esta sendo um questionamento ainda não respondido plenamente acerca do que é o homem em sua relação consigo mesmo e com o mundo. Por isso aqui o nosso método principal é compreender a loucura nos quintanares, porque ela se oferece como passagem para alguma compreensão da própria literatura como um todo. Para tanto, ler o poema Atavismo/Q tornou-se um processo, uma estratégia, um método dentro do método principal. Elegemos o início de toda loucura e poesia, tais quais concebidas por Quintana como o exato ponto de partida de nossa análise No capítulo anterior, chegamos a termo de que a característica capital da memória valorizada pelos quintanares, a atávica, funde os tempos, determina a atemporalidade das coisas, criando um impasse entre selvageria e civilização. Percebemos que a arte de Quintana manipulava esteticamente um termo científico para (re)significá-lo socialmente, filosoficamente e 86 psicologicamente; uma atividade que, convém apontar, não é estratagema original do escritor gaúcho, que apenas se inseriu em uma já consolidada tradição estética. Apesar do termo atavismo ser ele próprio um marcador do fenômeno da memória, somos tentados a aprovar a convidativa e conformada perspectiva de que, já que todo atavismo é uma memória, então, a recíproca seria verdadeira, isto é, de que toda memória seria atávica. Mas isso seria um engano. Seria um engano porque só quem detêm a memória atávica sãos as crianças, os poetas e os loucos. Atavismo/Q menciona um mundo que não é composto apenas por essas três figuras. Se apenas essas três figuras têm uma memória atávica, e havendo no mundo outras figuras, há, portanto, outros tipos de memória, as outras figuras do mundo não sofrem de amnésia, essa palavra não existe na obra de Mario Quintana. Sobretudo, vejamos que, de acordo com Atavismo/Q, nem toda memória é atávica. Já seguros do que significa o temo atavismo nos quintanares, seguimos nessa linha de raciocínio para agora entender o que Quintana entende por memória, mais especificamente por essa memória inerente às crianças, aos poetas e aos loucos. Nas próximas páginas, pretendemos averiguar como a memória se processa especificamente nessas três figuras. Por assim fazer, por detectar neles três as dinâmicas fundamentais da memória que é atávica, estamos consequentemente expondo, pelas vias negativas, aquilo que é o oposto da memória atávica. Dito de outra forma: nas páginas desse segundo capítulo ao evidenciarmos a memória das crianças, dos poetas e dos loucos, descobrimos também a antonímia de tudo que for atávico, a memória dos adultos, do apoético e da razão. Na primeira frase de Atavismo/Q, "As crianças, os poetas, e talvez esses incompreendidos, os loucos, têm uma memória atávica das coisas." (QUINTANA, 2005, p. 575), notamos a presença de sujeito composto a indicar um agrupamento em que cada elemento é detentor de uma propriedade (de uma memória atávica). Nesse tipo de construção de sujeito a linguagem quotidiana geralmente não atribui um valor maior ou menor ao elemento anterior nem ao seguinte, todos os elementos possuem o mesmo valor que o verbo conferirá; a ordem dos fatores não altera o produto. Porém, estamos lidando com um poema, modalidade linguística onde cada detalhe é crucial. A disposição do sujeito, "As crianças, os poetas, e talvez esses incompreendidos, os loucos" (QUINTANA, 2005, p. 575) não anula a validade de múltiplas possibilidades de leitura que todo poema necessariamente oferece. Por que ordenar? Por que não deslocar o termo louco para a frente de tudo e colocar o termo criança no meio, deixando a palavra poeta para o final? Algumas dessas possibilidades poderiam ser: 1) a ordenação dos elementos apenas mostra os três graus de frequência e acessibilidade do mesmo conceito. A criança sendo um signo mais 87 frequente, mais acessível ao leitor, o louco sendo uma experiência menos frequente/acessível. De fato, a figura da criança é mais frequente que a do louco na conjuntura dos quintanares, mas ambos representariam o mesmo conceito. A criança é mais preferível ao poeta para representar a dinâmica da memória atávica, pois a infância é um campo de conhecimento de todos os leitores. Nem todo leitor de poemas será íntimo das dinâmicas inerentes à poesia, da mesma forma que nem todo leitor de poema teve alguma experiência direta ou indireta com a loucura; mas todo leitor poderá manusear a infância enquanto conceito, isso porque cada leitor teve a sua própria infância. No primeiro poema da obra de Mario Quintana a criança, por exemplo, não aparece para auxiliar na significação, mas os termos poeta e o louco estão presentes lá, exatamente nessa sequência. Outras vezes o poeta não lança mão nem dos termos poeta nem do louco enquanto signos poéticos, substituindo ambos somente com a figura da criança. 2) a ordenação dos três elementos do sujeito composto tal qual ocorre em Atavismo/Q indicam alguns estágios evolutivos pelas quais percorreu um mesmo ser; 3) os três elementos são três espécies diferentes de ser. Poemas como Simultaneidade: "[...] - Você é louco? / - Não, sou poeta." (QUINTANA, 2005, p. 535) não nos permite adotar uma única explicação para a escolha da ordem dos elementos do sujeito composto em Atavismo/Q. Seguramente, não podemos excluir as possíveis intencionalidades do esteta gaúcho na seleção ordinal dentro do verso, sob pena da quebra de simultaneidade que ele propõe. Se trabalhamos só com a possibilidade 2 ou somente com a 3, ou se as unirmos, isto é, tratando esse trio como três estágios de um ser e como três espécies diferentes ao mesmo tempo, chegaremos à mesma conclusão que esperamos acerca da memória atávica. Entretanto, ao trabalharmos as possibilidades 2 e 3 em conjunto, estaremos levando em conta o desejo de Quintana em a jogar linguisticamente com as escalas de evolução, mais abertamente com o atavismo, e com uma condição importante: a simultaneidade. A teoria da evolução das espécies ao pregar que uma coisa se transforma necessariamente em uma outra, sendo esta derivada necessariamente de uma anterior, (um mamífero só é possível porque há milênios se modificou um anfíbio e, antes deste, uma monera), o atavismo se abre como possibilidade de retorno no mamífero de alguma característica há muito desaparecida no ancestral direto, o anfíbio, mas presente na monera. Está aberta a possibilidade de leitura que, transposta para o social, defenda uma quebra absoluta, um progresso, evolução direta de criança em poeta e, posteriormente, a mutação de poeta em louco. Nesse caso evolutivo, o atavismo no louco, por exemplo, se caracterizaria apenas por vestígios provindos essencialmente de uma espécie social anterior, a criança, espécie social anterior não direta, esta sendo o poeta. 88 Todavia, como vimos no capítulo anterior, o mecanismo responsável pela evolução chama- se seleção natural, ou, transposto como desejamos neste estudo, seleção social. Dessa forma, vistos como um único ser ou como três espécies distintas, não importa, há estágios, forças, dinâmicas ausentes entre os três termos do sujeito composto de Atavismo/Q (criança, poeta, louco). O mecanismo de seleção está ausente! Sem ele não podemos explicar as mudanças de uma espécie em outra, não podendo, assim, explicar suas origens. Vejamos que, de acordo com a teoria da evolução das espécies, a criança não pode surgir do nada. Mas no sujeito composto, antes da criança, não temos absolutamente nenhum termo! Também entre os termos criança e o poeta falta ao menos algum fator/espécie/estágio evolutivo que desapareceu pelos processos de seleção (natural=social). Há também peças dessa dinâmica faltando entre o poeta e o louco. Ainda mais: de acordo com a coda biológica que agora transpomos para o social, o louco é um devir, ele não pode se configurar pelo evolucionismo, como derradeiro estágio de uma progressão. Da mesma forma que desconhecemos o ancestral da espécie criança, desconhecemos a espécie social que advirá das transformações na espécie louco. Com efeito, estamos lidando também com três formas de ser no mundo, formas in(ter)dependentes, compartilhantes de um mesmo atributo, oriundas de um ancestral desconhecido. Qual seria a ancestralidade que se ramificou nessas três espécies que Quintana nos apresenta? Crianças, poetas e loucos eram originalmente uma única espécie que se dividiu em três. Nesse caso, a poesia não leva necessariamente à loucura, nem o louco advêm de forma direta diretamente de um processo poético anterior. O poema Simultaneidade nos pede para ver possibilidades concomitantes: (1) a memória atávica é um fenômeno simultâneo à criança, ao poeta e ao louco enquanto um único ser ou três espécies distintas, depois, (2) que a memória atávica na criança, no poeta e no louco é um fenômeno simultâneo a outra memória, à não-atávica, e (3) que o passado ou se funde com o presente, ou de que não existe passado. Vejamos em Cronologia, como isso se dá: "Se a infância ajudou o poeta?", indaga-me uma entrevistadora. "Sim, o menino faz parte do adulto." Já a misteriosa sabedoria do povo, por exemplo, nunca achou nenhum absurdo na devoção simultânea a Jesus Cristo e ao Menino Jesus. Deve ser por isso mesmo que escrevi, num poema de 1945: "Jesus Cristo encontrou o Menino Jesus." E, vinte anos mais tarde, me aconteceu este verso: "Vem Jesus Cristo com o Menino Jesus ao colo". Impossível maior coexistência. E nesse extraordinário poema autobiográfico que é o "Oito e meio" de Fellini, o menino e o adulto confundem-se. Porque, no fim de contas, a cronologia deve ser um truque do calendário para efeitos de computação histórica. Temos todas as nossas idades ao mesmo tempo. (QUINTANA, 2005, p.724) 89 A partir de Cronologia, podemos resolver alguns destes pontos interligados acerca da ordem dos elementos no sujeito composto de Atavismo/Q e acerca da simultaneidade. Primeiramente atentemos para a construção estética do próprio poema, construção que visa plasmar o próprio conteúdo e sua forma. O poema é de teor reminiscente e sua forma reflete essa concepção. Os versos de Cronologia retrazem quintanares antigos e ainda, mais remotos quintanares. Cronologia incorpora a simultaneidade em sua estrutura. As citações do quintanar sobre de si mesmo e pela ordem que aparecem em Cronologia são: I- A entrevista não foi localizada, podendo as aspas indicadoras do discurso direto serem apenas criação poética que previram um futuro em 1979. Cronologia, poema em questão, foi publicado em Da preguiça como método de trabalho em 1987. Todavia, o mesmo(?) poema foi publicado em uma versão anterior em Caderno H (1973). Praticamente igual, a não ser pelo câmbio inicial de discurso indireto para o discurso direto e uma leve paragrafação tríplice, O menino Jesus e outros meninos (QUINTANA, 2005, p. 357) traz exatamente os mesmos versos de Cronologia: De uma entrevista: - Se a infância ajudou o poeta? Sim, o menino faz parte do adulto. Já a misteriosa sabedoria do povo, por exemplo, nunca achou nenhum absurdo na devoção simultânea a Jesus Cristo e ao Menino Jesus. Deve ser por isso mesmo que escrevi, num poema de 1945: "Jesus Cristo encontrou o Menino Jesus". E, 20 anos mais tarde, me aconteceu este verso: "Vem Jesus Cristo com o Menino Jesus ao colo". Impossível maior coexistência. E nesse extraordinário poema autobiográfico que é o "8 1/2" de Fellini, o menino e o adulto confundem-se. Porque, no fim de contas, a cronologia deve ser um truque do calendário para efeitos de computação histórica. Temos todas as nossas idades ao mesmo tempo. (QUINTANA, 2005, p. 357. O menino Jesus e outros meninos) Se a entrevista de que fala Cronologia realmente aconteceu anteriormente a 1973, a reforma, inda que pequena, pode ter se originado e reaparecimento do poema incentivado depois da famosa entrevista com Edlan Van Steen, publicada em 1979: "[...] O que significam na sua obra os livros infantis? / Fazem parte do menino que faz parte de mim. [...] (STEEN, 2008). " Os livros para a infância escritos por Quintana começaram aparecera em 1948, com O Batalhão das Letras. No mínimo é possível apontar a confusão dos tempos, proposital, em Cronologia de 1987. II- O verso "Jesus Cristo encontrou o Menino Jesus" de Cronologia é nos assegurado como concebido em 1945, o que nos leva a inferir que a ordem cronológica de concepção dos poemas não corresponde à ordem cronológica de publicação. Isso porque o verso em questão só pode ser encontrado em um quintanar a partir de 1950. O poema é chamado Boca da noite, publicado em Aprendiz de Feiticeiro, livro posterior a Sapato Florido (1948). Mais uma vez Quintana burla nossa 90 percepção de tempo, confundindo-o propositalmente: o poema de 1987 é atávico, pois, embora herdeiro direto do poema de 1973, contém em si um verso vestigial composto em um passado mais remoto (1945) que permaneceu em latência em 1948 (isto é, não foi publicado em Sapato florido), vindo a lume somente em 1950. Em Boca da noite, o encontro dos distantes ainda se manifesta além das datas. Esses encontros mais uma vez estão emoldurados pela luz e escuridão comum ao crepúsculo: No espelho roto das poças dágua O céu entristece... Jesus Cristo encontrou o Menino Jesus. Houve uma leve hesitação no ar... Houve, de fato, qualquer cousa no ar... Meu amigo morto me pediu um cigarro. O que seria que aconteceu? Todas as vitrinas de repente iluminaram-se... E há uma estrela morta em cada poça dágua... (QUINTANA, 2005, p. 203) Vejamos que a ambivalência simultânea dos opostos não se encontra presente apenas na imagem do crepúsculo em Boca da noite. Nele temos também o céu refletido nas poças d'água no chão, união do sublime e do grotesco; o morto que não consegue descansar e volta à vida para um cigarro; o comércio que antes só fazia sentido de dia e estranhamente ganhou uma nova compreensão à noite; a perda de um brilho superior que se apaga no agora do poema no chão. O presente se encontra com o passado e o passado com passados mais antigos ainda. O Jesus anunciador se encontra com o Jesus anunciado. O mártir se encontra com o recém-nascido. III- Outra marcação em Cronologia, é a datação de um verso que, Quintana assegura em "E, vinte anos mais tarde, me aconteceu este verso", foi composto em 1965: "Vem Jesus Cristo com o Menino Jesus ao colo". Mas este verso não remete a nenhum outro poema em nenhum outro livro de Quintana, pois só passa a aparecer em Cronologia de 1973, que não necessariamente foi composto em 1973! Isso significa que até a produção poética é concebida residualmente: os quintanares são vestigiais. Se o verso em questão foi de fato composto em 1965, agregando-se a Cronologia em algum momento depois, sendo publicado apenas em 1973, estamos diante de uma manifestação estética do atavismo, que ludicamente submete a forma do poema ao seu teor. Curiosamente, estamos diante de uma estrutura artística que se insiste reverberante, como imagem infinita de espelhos, porque Cronologia é projetado ao futuro, na republicação de 1987 e, ainda, nesta análise presente. IV- Em Cronologia (1987), o diretor italiano Fellini é mencionado; mas há justamente poucos poemas imediatamente anteriores a Cronologia, na própria obra Da preguiça como método 91 de trabalho, Quintana já compusera um poema agrupado sobre o diretor cinematográfico explicitando a simultaneidade. Da mesma forma que o poema O menino Jesus e outros meninos ocorre logo após o mesmo apontamento sobre Fellini em Caderno H (1973). Cronologia termina apontando a criação de Fellini, mas está na verdade remetendo a si mesmo enquanto malha de intermináveis relações que ligam explicitamente vários poemas entre os anos de 1945, 1950, 1965, 1973, 1987 e diretamente três de seus livros: Aprendiz de feiticeiro, Caderno H e Da preguiça como método de trabalho. Vejamos que Da preguiça como método de trabalho não é uma nova edição de Caderno H. Apesar de Da preguiça como método de trabalho recuperar muita coisa de Caderno H, ele é um livro com poemas novos. Cronologia é um poema que se constrói passo a passo sempre no encalço da memória. Não é só a forma que se curva ao teor. Poeta e voz lírica também lá se confundem ao lembrar. Mario Quintana sugere que é ele mesmo, pessoa-indivíduo-poeta, quem fala através dos versos, o próprio poeta não se nega o papel de voz lírica. Quintana aponta o próprio poeta enquanto parte da criação. Cronologia, entendida em seu sentido usual é formação de origem grega dos étimos Χρόνος, tempo, e λόγος, palavra, esta no sentido de análise, observação, apontamento, conhecimento, narrativa, contagem e estudo. Cronologia de Mario Quintana é, assim, um estudo estético sobre o tempo; e como temos visto, tanto no teor como na forma, Cronologia aponta o tempo como signo posto à defesa da coexistência dos valores. Outro ponto digno de nota em Cronologia é a tensão existente no verso "Porque, no fim de contas, a cronologia deve ser um truque do calendário para efeitos de computação histórica." (QUINTANA, 2005, p.724). Cronologia sublinha o arremate que se quer na História, entre contas e computação. Computação, contas e calendários, tal qual aparecem no poema remetem a ação de registrar. Computação tem origem latina, e seu significado original era podar, aparar. A ação de computar consiste na separação e discriminação dos dados, que são aparados em termos dicotômicos. Nos dias atuais a ação de computar foi entregue a máquinas eletrônicas chamadas computadores, que utilizam uma linguagem amplamente conhecida como código binário (arquitetada sempre no jogo de oposição entre apenas dois dígitos, 0 e 1). De fato, através de uma simples oposição, essa poderosa ferramenta é capaz de exercer quase todas as funções linguísticas humanas, exceto uma: a criação poética. O calendário rege a sociedade, impõe suas normas e organiza o tempo em funções. No calendário há a divisão do dia em horas, em turnos; há macroformas (milênio, século, década) e microformas (anos, meses, semanas). O calendário se organiza em geral em torno da necessidade de produção básica. Servimo-nos principalmente da alteridade de nosso planeta em relação com os 92 astros. Há o calendário solar, o calendário lunar, etc., todos eles preocupados com as dinâmicas cósmicas de relação entre temperatura, movimentação das águas, estações propícias à agricultura e reprodução das bestas. Até mesmo a tabula de maré serve de orientação à segurança e à produção. Há ainda de se mencionar que nas arenas onde digladiam culturas poderosas o calendário próprio é arma identitária, lança e brasão personalizados. Basta ver a observância intransigente de vários calendários na atualidade: o judaico, os cristãos, o chinês, etc. Contudo, uma palavra chama atenção em Cronologia: contas. É verdade que ela pode ser apreendida de imediato como apenas uma associação com os termos computação ou calendário também presentes no poema. "Contas" por si só é uma palavra insólita porque andrógina: une algarismos e letras. Contar com algarismos é discriminar valores, acentuar diferenças, separar quantidades, calcular. Contar com letras é unir valores, mesclar diferenças, misturar quantidades, calcular! A expressão "no fim das contas" pode significar um balanço aritmético geral de transformações numéricas resultantes de operações que incluem a subtração ou a divisão, por exemplo, mas, também, pode significar 'para resumir' uma narrativa, uma história (ou estória) e, em uma interpretação arrojada e ácida, para criticar uma noção de História. Dessa maneira, Cronologia se aproxima muito das perspectivas de Walter Benjamin (2012) e Jacques Le Goff (2003). Para Jacque Le Goff, a diferença entre História e Historiografia existe, mas ambas são importantes, o que se tornaria indesejável em ambas seria a apreciação do passado por apenas um viés, desconsiderando assim as relações inerentes ao próprio método histórico, que necessariamente passa por interesses individuais, coletivos, entre o saber e o poder. Le Goff em História e Memória procura detectar os pontos frágeis da visão histórica tradicional e critica a historiografia hermética. Assim como Le Goff, Benjamin critica a perspectiva de presente imutável e de passado tão somente irrevogável e explicativo do presente. Benjamin em Sobre o conceito de história nos diz que é impossível estabelecer uma visão neutra do passado, onde as necessidades do presente não interfiram nem imponham sobre o transato. Benjamin diferencia a legítima História da historiografia, a primeira é aberta infinitamente à análise, a segunda fecha-se em análises em concatenações tendenciosas. Michel Löwy (2005, p. 147), discorrendo sobre as visões de tempo, memória e História, descreve a perspectiva de Walter Benjamin da seguinte maneira: Na história das ideias do século XX, as "Teses" de Benjamin parecem um desvio, um atalho, ao lado de grandes autoestradas do pensamento. Mas enquanto essas são bem delimitadas, visivelmente demarcadas e conduzem a etapas devidamente classificadas, a pequena trilha benjaminiana leva a um destino desconhecido. As teses de 1940 constituem uma espécie de manifesto filosófico - em forma de alegorias e de imagens dialéticas mais do que de silogismos abstratos - para a 93 abertura da história, ou seja, para uma concepção do processo histórico que do acesso a um vertiginoso campo dos possíveis, uma vasta arborescência de alternativas, sem, no entanto, cair na ilusão de uma liberdade absoluta: as condições "objetivas" são também condições de possibilidade. Podemos tomar a descrição feita sobre Benjamin algo não muito distante de Quintana, que também projeta sua "estética" no mesmo ano das "teses" de Benjamin; já o primeiro soneto de A Rua dos Cataventos (1940), lançado durante um mundo em agonia de guerra, advoga a mesma abertura aos possíveis: " Escrevo diante da janela aberta. / Minha caneta é cor das venezianas:/ Verde! E que leves, lindas filigranas/ Desenha o sol na página deserta! [...]"(QUINTANA, 2005, p. 85). Foi nos anos quarenta que também Octavio Paz estetiza em El girasol (1943-1949) o mesmo viés no poema Escrito con tinta verde: "[...] Deja que mis palabras, oh blanca, desciendan y te cubran/ como una lluvia de hojas a un campo de nieve [...]" (PAZ, 1989, 50). Vemos, assim, em Benjamin, Quintana e Paz, mais que contemporâneos, vemos contemporâneos sintonizados em abertura infinita um vertiginoso campo dos possíveis" (LÖWY, 2005, 147); justamente em tempos de embates ideológicos sangrentos. Nesse período da década de quarenta a literatura parece assumir um papel de desmantelamento de certezas, pois por elas a barbárie muitas vezes se instaura. A fuga à página em branco por parte de poetas como Quintana e Paz é só aparente alienação. Quando nos colocamos na posição do poder que se quer estático e imutável, e atentamos para Cronologia, nossa recepção de sua mensagem se configura como transgressora, ataque a nós mesmos, subversiva. Benjamin, Quintana e Paz se demonstram muito conscientes acerca da disputa de poderes quando sugerem com leveza a simultaneidade e a abertura, percebemos isso no trato que dão na década de quarenta a um tema tão denso. Cronologia fere a segurança do que se sabe, do poder que diz que sabe. No Jesus que mora no Egito e naquele que dialoga com os doutores do templo está a verdade em mônada do Cristo, símbolo do salvador amor ao próximo. Em 1945 Quintana decide ignorar o paradeiro do Jesus de Nazaré jovem. O jovem enquanto símbolo da certeza, da segurança, do sonho intransigente é uma figura que não povoa os quintanares e que não é cotado como causa imediata do homem adulto: Jesus Cristo estabelece laços mais apertados com o Jesus Menino, clara indicação atávica. Memória não é passado findo, nos quintanares ela equivale ao presente que se projeta ao passado. Na expressão "memória atávica" em Atavismo/Q, portanto, memória é o presente que se impulsiona a um passado mais remoto e ATÁVICA corresponde ao regresso legítimo de um passado longínquo e latente ao presente. Ao preferir dispor o adjetivo após o substantivo, isto é, compor o 94 termo memória atávica, Mario Quintana brinca com nossas concepções de linearidade, com as os conceitos de progressão e retorno, em um lúdico movimento horizontal com apenas dois termos. Memória, que deveria ocupar a posição subsequente, costumeiramente a do presente, desloca-se para trás de atávica em um movimento de retorno. Atávica, termo que, representando um passado remoto, move-se para a direita, deixando sua posição de anterioridade e migrando para A memória atávica para Mario Quintana é um fenômeno humano caracterizado pela simultaneidade de acontecimentos temporais não ligados a acontecimento imediato e retroativo, mas, sim, ligados a acontecimentos mais antigos. Por dedução, o oposto da memória atávica, a memória-não-atávica é uma memória que se projeta a um passado imediato e distinto do presente, que com o presente não estabelece mais nenhuma relação. A memória-não-atávica não crê que o Menino Jesus deva continuar operante em Jesus Cristo, nem que este deva se voltar para o menino. Memória atávica equivale a anulação de cálculos de causa (y) e efeito (z) onde o efeito seja necessariamente uma consequência de causa imediata, onde z seja necessariamente uma decorrência imediata de y. O que legitima a verdadeira memória é o atributo atávica. Por isso equações de causa e efeito, relações entre passado e presente, a partir de então, em Mario Quintana, só adquirem validade quando: {1} os conceitos expressos nos termos efeito e causa puderem ser abertamente intercambiados em um jogo de zig-zag infinito; quando z (o presente) puder também afetar y (o passado), isto é, quando y puder ser manuseado, influenciado, movido, modificado, interpretado por z e o movimento inverso tiver o mesmo valor; quando a História estiver sempre aberta ao desdobramento, aberta à nova compreensão, ao redescobrimento; quando, simultaneamente, z se permitir à alteração visto que sua configuração baseada em y é móvel; quando y for a base causal de z no mesmo pé de equivalência que z for a base causal de y; quando o passado aceitar as visões do presente na mesma medida que o presente aceitar as visões do passado. ou {2} quando y não for obrigatoriamente a causa direta de z, não podendo, assim, y explicar z, porque a causa legítima de z seria necessariamente atávica, isto é, x. Tempo, História, cronologia, memória, atavismo se dão em Quintana pela relação. Dessa forma, o sujeito composto de Atavismo/Q relaciona-se por meio da abertura dos valores consigo e com o outro. É no estabelecimento desse tipo de relação que a memória se quer configurada nos quintanares. 95 Figura 6: Decifra-me Fonte: Acervo do autor 96 2.1 À lembrança da lua Signo frequente nos quintanares, a dinâmica da criança é o instrumento estético mais acessível de Mario Quintana para expor sua proposição acerca da memória. Em Quintana é possível se encontrar um vasto campo semântico ligado à criança, de modo que não há livro algum do poeta gaúcho sem que palavras como menino, infância, brincadeira, etc. Um dos termos desse campo semântico é Lili, uma personagem que é mais bem apresentada pelo próprio Quintana em um poema que leva o nome da menina: Teu riso de vidro desce as escadas às cambalhotas e nem se quebra, Lili meu fantasminha predileto, Não que tenhas morrido... Quem entra num poema não morre nunca (e tu entraste em muitos...) Muita gente até me pergunta quem és... De tão querida és talvez a minha irmã mais velha nos tempos em que eu nem havia nascido. És a Gabriela, a Liane, a Angelina... sei lá! És a Bruna em pequenina E que eu desejaria acabar de criar. Talvez sejas apenas a minha infância! E que importa, enfim, se não existes... Tu vives tanto, Lili! E obrigado, menina, pelos nossos encontros, por esse carinho de filha que eu não tive... (QUINTANA, 2005, p. 490) No décimo sexto verso uma palavra chave explica Lili, essa palavra é "talvez". Ao utilizar o termo talvez, o próprio poema ao confidencia sua inaptidão para definir Lili, acaba por definir a menina. Lili é o talvez, criança enquanto símbolo da transformação, única certeza da obra de Mario Quintana: "As únicas coisas eternas são as nuvens..." (QUINTANA, 2005, p. 166). Lili é simultaneamente tratada em uma relação de identidade e alteridade. A menina é o outro e é a voz lírica, representando o próprio poeta Quintana. A voz lírica do poema de Lili se dirige à menina, mas monopoliza a conversa, tornando-a um solilóquio. O início de sua mensagem se preocupa em posicionar Lili em um plano imediatamente superior, a criança está acima, é do alto que ela lança suas gargalhadas ao plano inferior do adulto. O termo vidro, utilizado para caracterizar o riso da menina perde no poema as 97 propriedades quebradiças para significar apenas transparência. A dinâmica da criança é cristalina, não se turva por uma ótica que não a dela mesma. Enquanto signo rico, Lili é retorno do passado ao presente. Lili é um fantasma, símbolo que permeia toda a literatura. O diminutivo "inha" em fantasminha atribui a noção não do horror impactante que se espera em um encontro com seres que deveriam estar mortos à menina, mas, pretende significar o tom carinhoso com o qual o poeta se dirige à criança. O diminutivo "inha" ainda pode significar as aparições sempre rápidas que faz a criança ao poeta, estetizadas, inclusive na extensão dos poemas onde Lili aparece: todos eles são sempre muito curtos. Lili é um fantasma, um atavismo, entra em latência e sai do passado rumo ao presente. A criança, por si mesma é um símbolo da memória, de acordo com Lili. Apesar de ser uma construção do poeta, Lili " não morre nunca" e vive "tanto". Todavia, Lili não é o poeta em todos os momentos, porque se estivesse, não haveria a possibilidade de eles se encontrarem: " E obrigado, menina, pelos nossos encontros [...]". Lili se move até o presente e a memória do poeta se move até Lili, em algum lugar desse movimento eles se encontram. Jesus Cristo e o Menino Jesus são dois indivíduos diferentes e, ao mesmo tempo o mesmo indivíduo em duas fases, em dois tempos, que se interseccionam, como vimos em Boca da noite, como a luz e as trevas no crepúsculo, quando não é dia nem noite, mas ambos simultaneamente. Assim, o é encontro de Lili com o poeta, encontro em que Lili não é mais Lili e o poeta não é mais o poeta, mas ambos são simultaneamente uma intersecção. A memória atávica é um encontro. Das várias especulações que faz a voz lírica sobre o grau de relação entre o poeta e a criança, se são irmãos, antigos amigos, uma filha que não foi possível, é fato, de acordo com o poema que Lili é uma menina, uma criança, a infância (talvez a infância do próprio poeta). De tão especial personagem e querida pelo poeta, como podemos observar em Lili, Lili ganha um livro só seu. Em 1983, Mario Quintana reúni alguns poemas destinados à infância chamado Lili inventa o mundo. O título sugestivo põe a criança enquanto criadora de todas as coisas. Nada existe antes da criança. É através da vontade e ação da criança que todas as coisas vêm a existir. A vivência do adulto lhe permite afirme que conhece o mundo. Sem vivência ainda, a criança precisa descobrir tudo por si mesma em uma jornada rumo a maturidade. A criança significará o mundo, o adulto já o significou. Para a criança tudo é novidade, para o adulto as coisas se tornaram regulares. Em um plano não simbólico toda sociedade, a começar pela própria família, modifica-se com a entrada de um novo indivíduo. A entrada de cada nova criança será uma nova participação dos diálogos e das arenas, e, assim, o mundo se fará. A criança é responsável pela reconfiguração de 98 sua sociedade. Será ela a criadora de novas leis, que determinará novos valores, que governará, produzirá bens e, com algum grau de possibilidade, travará guerras. Em um plano simbólico, Lili é o princípio de uma sociedade, que se inventará pouco a pouco pela experimentação. Podemos ler a figura de Lili enquanto equivalência da infância, estágio onde as regras da sociedade não foram assimiladas pelo sujeito, período da vida em que o sujeito é considerado humano, mas ainda não autorizado a participar da vida social. Não tendo voz ativa no grupo, permite-se a criança uma vida em torno de si mesma, permite-se à criança à criação do mundo à sua imagem e semelhança. Localizando a criança no plano de evolução de criança-poeta-louco enquanto uma mesma espécie, o ancestral da criança é o mistério. Desprovida dos parâmetros social, de um elemento cultural ancestral e direto, a criança concebe o mundo à sua maneira, o mundo é o que criança vê, e assim ela o crê. O conhecimento da criança é sua única regra, a criança é soberana, como podemos ler em Princesa: Quando lhe perguntaram o nome, Lili espantou-se muito:/- ué! Mas todo mundo sabe..." (QUINTANA, 2005, p. 177). O jeito particular de ver o mundo de Lili é concebido como incompreensivelmente absurdo para o adulto, a criança é intimista e tem um código óptico só seu, que só faz sentido para si mesma, como o poema A última ilustra: "A última de Lili, que me apresso a anotar, para o meu Tratado de Liligrafia: - Não gosto de laranjas de umbigo porque são muito pretensiosas." (QUINTANA, 2005, p. 370). Enquanto ser incluído, mas não participante da decisões da sociedade, fato que a criança também desconhece, Lili não discerne aquilo que faz parte da sociedade daquilo que não faz, não distingue a seriedade do risível, não compreende relações de poder, como podemos observar em O cachorro: "Do quarto próximo, chega a voz irritada da arrumadeira: - Meu Deus! a gente mal estende a cama e já vem esse cachorro deitar em cima! Salta daí pra fora! E Lili, muito formalizada: - Finoca! o cachorro tem nome!" (QUINTANA, 2005, p. 177). O poema fala da vida doméstica e da cômica confusão causada por causa de um canino. Na casa, onde quem manda são os patrões, há um rápido e leve impasse existente entre Lili e a empregada doméstica, justamente aí os poderes se equivalem, porque nenhuma das duas exerce o poder na casa, e, simultaneamente, enquanto a empregada merece o respeito inerente aos adultos, principalmente ao executarem seus ofícios, a criança merece o respeito devido pelo elo com os patrões. Acima de tudo, perdoa-se a criança pelo absurdo. Indo mais profundamente em O cachorro, percebemos que é o adulto que separa o animal do humano, determinando o que ou quem faz parte da sociedade, Lili não gosta nada disso. A criança acolhe a animália, o não civilizado, o bicho enquanto parte do mundo, enquanto parte da 99 sociedade. O adulto nega ao animal os mesmos direitos (o cão não pode participar dos utensílios da cultura, da cama). Lili também não percebe a união do alto e baixo que ela faz, formalizada, isto é, escandalizada e séria, ao emitir o nome o cômico nome do bicho "Finoca". Interessantemente, é nesse momento cômico de união de opostos (adulto-criança), (animal-humano), (cômico-sério), que todos os leitores, e possivelmente a empregada que é participante da cena, percebem um grave questionamento: o que determina um status inferior ao cão? O que diferencia um ser humano de um bicho? Por que os bichos não podem participar da cultura? E quem é o responsável para trazer esses questionamentos? A criança! É a criança que nos faz recorda que o homem é um animal também. "Finoca! o cachorro tem nome!" é um lembrete. Lili quer relembrar a empregada de que, apesar de bicho, o cachorro merece as mesmas regalias e reconhecimento social dos humanos, informação fresca na memória de Lili, que, guardiã da memória, decide relembrar a arrumadeira. O leitor de O cachorro, se imagina a reação da empregada doméstica, provavelmente a visualiza rindo e/ou em introspecção trazida pelo lembrete de Lili, atitude que, apesar de ser sem cabimento, movimenta os sentidos e a cognição. A arrumação da cama remete ao ato de organizar a sociedade. Ofende-se Lili por essa organização não contemplar o animal. Para a arrumadeira, a ordem que segue o cão é diferente da humana, pensar diferente seria um contrassenso, ridículo. Para a menina, não. Nem Lili animaliza o homem, nem humaniza o cão. O que há é uma área de intersecção, onde o cão continua sendo cão, mas é convidado a participar da humanidade, recebendo um nome, apelido, que se harmoniza com o próprio da menina, ambos fazem parte do mesmo universo. Há uma licença à animalidade que também há no homem Mais um encontro da memória da criança que recepciona e compreende o animal pode ser visto em Noturno: O relógio costura, meticulosamente, quilômetros e quilômetros do silêncio noturno. De vez em quando, os velhos armários estalam como ossos. Na ilha do pátio, o cachorro, ladrando. (É a lua.) E, à lembrança da lua, Lili arregala os olhos no escuro. (QUINTANA, 2005, p. 179) O título do poema insinua a composição musical. Noturno é um tipo de composição que evoca a noite, uma obra inspirada em acontecimentos noturnos, ou uma obra concebida para ser 100 tocada à noite. Esse tipo de trabalho, muito comum no romantismo musical se caracteriza por aspectos que sugerem a meditação; são produções mais livres e soltas, despreocupas com a forma e mais interessadas na (re)criação da atmosfera noturna. Um noturno também estabelece relações com o Ofício Divino, também chamado de Liturgia das Horas, mais especificamente com a parte chamada Completas, divisão da prática de oração comum no credo católico apostólico romano. Noturno é uma das divisões de cântico ou recitação à noite. Essa é uma informação que muito nos interessa. Interessa a nossa análise porque as Completas são orações e cânticos de marcação de completude da jornada produtiva do trabalho que é executado durante o dia, mas o título do poema está sendo utilizado ironicamente, inversamente, para marcar justamente o começo de uma jornada de 'trabalho' infantil, a imaginação: "E, à lembrança da lua, Lili arregala os olhos no escuro", há um trabalho criativo ainda a ser cumprido. Bento de Núrsia (480 – 543) o responsável pela padronização da Liturgia das horas, na obra Regra (BENTO, 1875, p. 180), prescreve no capítulo XLII o silêncio absoluto e a quietude completa para o período, que se reservará à meditação ou ao sono. Se compararmos a prescrição de São Bento ao que acontece em Noturno, o que se percebe é uma tensão, pois o arregalar de olhos da menina, além de indicar movimentação mental, ameaça romper o silêncio. Outra prescrição de São Bento que merece aqui ser mencionada é: "Que se reúna todos juntos em um lugar e que se diga completas." (BENTO, 1875, p. 182, tradução nossa)" 38 . Transposto para a poesia de Quintana, a prescrição de São Bento, na proibição da fala, obriga o poeta a escrever. A linguagem continua ativa, mesmo no silêncio, para reunir vacas e hipogrifos, Jesus Cristo e o Menino Jesus, as luzes do dia e a escuridão da noite, a selvageria e a civilização, o animal e o homem, o interior e o exterior, o mundo individual e mundo social, como em Porta- giratória. Para Quintana, então, o poema é o lugar onde tudo deve ser reunido, e o poema não estará completo até que tudo lá se reúna. Lili assume o papel de colecionadora do tudo. Sua memória é desencadeada pela natureza, pela luz da lua, pelo animal, pelo instinto. Os reservatórios de memória, "armários" onde os adultos guardam as coisas, mesmo que há muito parados, em latência, rompem o silêncio "de vez em quando", "como ossos" postos em movimento. Noturno também nos apresenta Lili enquanto infância, passado, que volta à noite para a voz lírica, como a infância social, que se alumbra com os fenômenos da natureza e está em sintonia com o animal; e retoma também a própria noite como símbolo da germinação (CIRLOT, 2001, p. 228). 38Omnes ergo em compleant unum positi, compleant [...]"(BENTO, 1875, p. 182) 101 Desprovida de um ancestral direto, a criança parte do mistério, do escuro, da noite social, por isso sua imaginação equivale à luz da lua. É graças ao luar refletido nas formas escuras que o olho consegue discernir, mesmo com dificuldade, algum contorno. Sem a luz da lua seria impossível qualquer visão noturna. É graças à sua imaginação que a criança consegue apreender alguma forma do mundo. O mistério e a imaginação são vestígios atávicos na criança que faz uso deles para decifrar o mundo em noite. Lili arregala os olhos em surpresa. A criança é dionisíaca, o adulto é apolíneo. O trabalho do adulto se processa durante as horas bem delimitadas do dia, a forma que o adulto vê é diurna, solar, com as linhas das formas plenamente definidas, sem necessidade de recorrer a imaginação, que é a luz da noite para a criança. Dessa maneira, a imaginação infantil adquire um aspecto de sagrado, como aquele nas Completas. As Completas acontecem com orações, exames de consciência, leituras bíblicas e cânticos. Curiosamente, muitas passagens e cânticos sugeridos para as Completas envolvem versos onde a luz da noite é guia: Luz terna, suave, no meio da noite, Leva-me mais longe... Não tenho aqui morada permanente: Leva-me mais longe... [...] (LITURGIA, 2010, p. 65) Se me envolve a noite escura E caminho sobre abismos de amargura, Nada temo porque a Luz está comigo. (LITURGIA, 2010, p. 305) De noite descia a escada misteriosa Junto da pedra onde Jacob dormia. De noite celebravas a Páscoa com teu povo Enquanto nas trevas caíam os inimigos. (LITURGIA, 2010, p. 525) Esplendor que vem de Deus, Luz da Luz, fonte de vida: Brilhai sobre a humanidade Nas trevas escurecida (LITURGIA, 2010, p. 1376) Obviamente a Liturgia das horas trata a luz enquanto símbolo do deus cristão, salvador, mantenedor e guia da humanidade. Entretanto, se substituirmos o valor religioso pelo poético que desejamos aqui, luz por imaginação, essas passagens das Completas adquirem um valor exatamente correspondente àquele em Noturno. Inquieta, a criança deseja ir através de sua imaginação para 102 outro lugar, é graças a faculdade imaginativa da criança que seu medo de experimentação se desfaz, que Lili, assim como poeta entra em contanto com mensagens de outro plano (convém lembrar a narrativa da escada de Jacó, por onde transitavam anjos) angelical, que para Quintana são os pais dos legítimos poetas "[...] os Anjos do Senhor estuprando as mais belas filhas dos mortais/ Deles, nascem os poetas. [...]"(QUINTANA, 2005, p. 485). Nas passagens noturnas da Liturgia das horas há também referências à Páscoa, símbolo do renascimento, da recriação, bem como referências a uma condição da humanidade que está "Nas trevas escurecida" (LITURGIA, 2010, p. 1376). Em Noturno também é preciso observar que a memória da menina à noite não se projeta diretamente ao passado imediato, isto é, a memória de Lili não se projeta para o dia, mas se projeta em direção a outro passado mais antigo: à lembrança é de outra noite de luar. A memória de Lili é atávica. De alguma forma o luar afeta com o cão, a criança deduz pelo latido. Ela está sintonizada com o orgânico, afinada com o agir do animal. Lili entende o animal, se o cão late é por causa da lua. É o animal, através de seu latido, que desencadeia, via os sentidos (audição) a ação de Lili, que desencadeia suas lembranças, tal qual o bolinho de Proust. O animal foi isolado da civilização, da casa, não está dentro dela. Isola-se o animal no pátio, uma ilha, mas Lili está em sintonia com o pátio, não com o relógio no interior da casa. Relógio esse que desaparece na sua função mecânica de costurar o nada, o silêncio. A reação da menina é externa, ela arregala os olhos; e interna também, porquanto que, surpreendendo-se, seu interior se agita ao lembrar de outras noites de luar. O luar que move os instintos do cão no pátio, à semelhança de Buck em O chamado da floresta, é prontamente reconhecido pela menina. Em Lili a luz da lua impinge uma marca de emoção por outros momentos de aventura e/ou mistério vivenciados. É pela imaginação que Lili dentro do quarto sabe haver lunática beleza do lado de fora. A luz da lua disponível diretamente ao cachorro, que está no pátio, no lado externo, só chega a Lili via memória, Lili imagina a luz de outra data. No poema Memória encontramos exatamente a mesma proposição: "Em nossa vida ainda ardem aqueles velhos, aqueles antigos lampiões de esquina/ Cuja luz não é bem a deste mundo... / Porque, na poesia, o tempo não existe! Ou acontece tudo ao mesmo tempo..." (QUINTANA, 2005, p. 899). É pela faculdade criadora de imagens do passado, a imaginação, que o passado se faz presente enquanto vestígio. A dinâmica da memória, ocorrendo no presente mas se arremessando ao passado, encontra-se no meio do caminho com a experiência anterior, vestígio lunar, de Lili. É a imagem das luzes anteriores, latentes antes do cachorro agir, que chegam até a memória de Lili. A luz que brilha nos lampiões de esquina dentro do eu lírico em Memória é imagem anterior que atávica retorna. A imagem que sai do passado e chega até o presente é atavismo. A ação que sai do presente e se desloca para o passado é memória. 103 A memória atávica é a imaginação, capacidade de formação de novas imagens baseada em experiência anterior. Dessa forma, a história das sociedades e todo caminho pregresso do homem é um espaço aberto onde (re) criamos. Lili é uma invenção do adulto, como podemos ver no poema Álbum para colorir: Não, não foi por humor negro que pus no que leste acima o título de "Conto azul". Costumamos pintar sempre de azul tudo o que se passou nos nossos quinze anos - talvez por um instinto de compensação. Mas a infância, ó poetas, não é mesmo azul? Quanto a mim, eu venho há muito desconfiando de que a infância é uma invenção do adulto. E o passado, uma invenção do presente. Por isso é tão bonito sempre, ainda quando foi uma lástima... A memória vai tudo colorindo. (QUINTANA, 2005, p. 278) No poema acima, Mario Quintana fez uma deliberada escolha para descrever o passado: um álbum. Álbum tem etimologia latina, que significa alvo, branco. Os álbuns eram placas onde os romanos escreviam. Mas álbum hoje em dia também significa esse livros com páginas em branco onde depositamos nossas fotografias, esperando que elas nos sirva de recordação no futuro. Álbuns são também catálogos indicadores de imagens que faltam mas que devem ser preenchidas, como nos álbuns de figurinhas. Assim, o passado é uma local onde se imprime imagens. Em Álbum para colorir, o passado é branco, e transferimos a imagem (o colorido indica multiplicidade de visões) que quisermos a ele. Ao abrirmos um álbum, as imagens lá depositadas se projetam do passado e chegam até o presente da abertura. Mas o álbum é aberto em diferentes momentos, em diferentes presentes, contaminados de novas visões mais recentemente adquiridas. Logo, a cada nova abertura do álbum, aquelas imagens saltam do passado e chegam ao contemporâneo ressignificadas pelo presente, que reanalisa, reinterpreta. É por isso que o passado é um lugar aberto para o poeta gaúcho, pois é o presente que o colore. Para Quintana a imaginação tem um papel decisivo na mnemônica. Álbum para colorir, mais uma vez, discorre sobre a memória atávica. De um lado, a abertura do álbum é memória, do outro lado, as imagens de um passado remoto que chegam ao presente são atavismos. A memória atávica é esse momento exato de reacomodação de valores na relação passado-presente. Essa ação, dissolve o tempo cronológico, "Porque, na poesia, o tempo não existe! Ou acontece tudo ao mesmo tempo..." (QUINTANA, 2005, p. 899). Dessa maneira, todo 104 poema seria uma ação consciente de rememoração atávica, movimento de partida do presente em direção do passado que se quer também presente. Não é apenas a imagem do que foi feito que retorna para o presente, mas, também a imagem do que deixou de ser feito. A imagem em negativo também se constitui atávica, como podemos ler em Romance: Quando, ainda menino, briguei ainda uma vez para sempre com Adalgisa Não fui olhar a saída da missa de domingo, Como era costume naqueles ingênuos e queridos tempos, E fui passear pela rua da sua casa Ver a placa da esquina Despertar o costumeiro revôo dos pombos na calçada Não esqueci nada, nada daquilo... Tudo tão cheio da ausência dela! (QUINTANA, 2005, p. 897) Além do álbum, outro tempo que Quintana utiliza para designar o espaço onde homem para guardar suas imagens positivas e negativas é baú, depósito que homem reservava para conservar coisas com maior dimensão as quais ele atribui valor, julgando que devem ficar encerradas, mas que não cabem em tipos menores de caixa. A memória atávica é o fenômeno de abertura do baú, que quando aberto no presente trás espantosas coisas de outro mundo, o passado, como podemos ler no poema O baú: "Como estranhas lembranças de outras vidas, / que outros viveram, num estranho mundo, /quantas coisas perdidas e esquecidas /no teu baú de espantos... Bem no fundo" (QUINTANA, 2005, p. 480). A memória atávica é um relacionamento onde passado e presente mutuamente se encontram, deliberadamente ou à força. A memória atávica está na relação. Seja essa relação do indivíduo consigo mesmo, seja na relação da sociedade consigo mesma, do indivíduo com a sociedade ou da sociedade com o indivíduo. A relação é uma ação coletiva. Por isso utilizaremos o termo memória coletiva de acordo com o prescrito pelo sociólogo francês em Memória Coletiva (HALBWACHS, 2003), obra póstuma, publicada pela primeira vez em 1945. Isso significa assumir que "Não há lembranças que reaparecem sem que de alguma forma seja possível relacioná-las a um grupo [...]" 105 (HALBWACHS, 2003, p. 42). Tal assunção é nítida em Quintana quando nos deparamos com poemas como Os fantasmas do passado: - E não te lembras daquela vez em que...? Faço que me lembro. Rio. Solto saudosos suspiros e exclamações de puro gozo. Oh! que monstruosa e implacável memória a dos nossos companheiros de infância... E depois, como estão envelhecidos, os pobres diabos! É o que os torna ainda mais antipáticos. (QUINTANA, 2005, p. 183) Vejamos que a voz lírica é molestada pela memória de seus companheiros de outrora. A voz lírica até tenta suprimir a lembrança, que não expirou, porque é detida por um grupo, não pelo indivíduo. Sendo a memória em Quintana é relacional, a amnésia não é possível. Nos quintanares, esquecimento, deslembrança e olvido apenas reforçam o caráter irrevogável da memória, a quebra das relações. Esquecimento é a outra face da memória, ele nela contido, não sendo possível a relação contrária. A dinâmica do esquecimento como a outra face da memória, tem uma participação importante nos quintanares, pois implica que memória se transforma, não estática. Em Mario Quintana a memória obedece a Lei de Lavoisier39, ela é matéria, abstrata. O que o quintanar não permite é o monopólio de apenas um ângulo do passado. A voz lírica de Os fantasmas do passado não têm o direito de deter esse único ângulo. O campo da memória deve ser aberto e se mantém no coletivo. A memória é intangível em totalidade, como uma fita de Möbius40. A relação da voz lírica com seus antigos companheiros de infância revela a tensão da reacomodação dos valores que há na rememoração. 39 A Lei da conservação das massas estabelece que não existe perda nem criação, a matéria se transforma. (SILBERBERG, 2007, p. 34). Foi desenvolvida por Antoine-Laurent de Lavoisier (1743-1794). O sentido natural é transposto e lido da mesma forma, mas no plano social. 40Julio Cortázar (1914-1984) trabalha um plano topográfico (BOROWSKI; BORWEIN, 2005, p. 565), estrutura matemática que permite o contínuo, o conexo e o convergente), conhecido como Fita de Möbius (BOROWSKI; BORWEIN, 2005, p. 366) em um de seus contos intitulado O anel de Moebius, primeiramente publicado em 1980 em Queremos tanto a Glenda. O conto (CORTÁZAR, 2003, p. 979) lida com a recuperação do passado, baseado no movimento da Fita de Möbius que é eterno, assemelhando-se à leminiscata. O movimento nesse plano é o da mesma volta, mas uma volta diferente, um eterno retorno espiralar. O conto é aberto por uma epígrafe extraída de A viagem, em Perto do Coração Selvagem, da brasileira Clarice Lispector (1920-1977): "IMPOSSÍVEL EXPLICAR. Afastava-se aos poucos daquela zona onde as coisas têm forma fixa e arestas, onde tudo tem um nome sólido e imutável. Cada vez mais afundava na região líquida, quieta e insondável, onde pairavam névoas vagas e frescas como as da madrugada." (LISPECTOR, 1998, p. 112). 106 A memória atávica corrobora a precisão de uma alteridade. Lembramos porque o outro, a relação de si com o outro nos faz lembrar. Essa não é uma prática que implica em estabilidade, muito pelo contrário, ela envolve um desequilíbrio em si, seguida de equilibração, reacomodação dos valores. Uma das figuras que os quintanares utiliza nesse processo mnemônico passado- presente, mas também incluindo o devir é o do equilibrista de circo, como podemos ver em Os dançarinos do arame: "Dentro das atuais coordenadas do espaço e do tempo, aqui nos vamos equilibrando sobre este fio de vida... Que rede de segurança, pensamos nós, cheios de esperança e medo, que rede de segurança nos aparará? (QUINTANA, 2005, p. 258); e em Preto & Branco: " [...] Ah! os circos da minha infância, os meus palhaços.., a moça do arame... A moça do arame, meu Deus! Mas isto já é outro assunto." (QUINTANA, 2005, p. 363). Nesse processo de equilibração, o selvagem e a civilização conservam e desencadeiam a memória atávica, como vemos em Noturno e em Os fantasmas do passado. No jogo de Quintana, as cartas que ele põe sobre a mesa põe em xeque a fé de uma memória-não-atávica viva e não relacional. O esquecimento é uma das piores coisas que pode acontecer ao homem, como aponta Diálogo bobo: "- Abandonou-te?/ - Pior ainda: esqueceu-me..." (QUINTANA, 2005, p. 677). Uma alegria para sempre, publicado pela primeira vez em Baú de espantos (1986) ainda nos ajuda a reforçar alguns pontos nossa análise: As coisas que não conseguem ser olvidadas continuam acontecendo. Sentimo-las como da primeira vez, sentimo-las fora do tempo, nesse mundo do sempre onde as datas não datam. Só no mundo do nunca existem lápides... Que importa se depois de tudo tenha "ela" partido, casado, mudado, sumido, esquecido, enganado, ou que quer que te haja feito, em suma? Tiveste uma parte da sua vida que foi só tua e, esta, ela jamais a poderá passar de ti para ninguém. Há bens inalienáveis, há certos momentos que, ao contrário do que pensas, fazem parte de tua vida presente e não do teu passado. E abrem-se no teu sorriso mesmo quando, deslembrado deles, estiveres sorrindo a outras coisas. Ah, nem queiras saber o quanto deves à ingrata criatura... 107 A thing of beauty is o joy for ever41 - disse, há cento e muitos anos, um poeta inglês que não conseguiu morrer. (QUINTANA, 2005, p. 621) Percebamos no poema as ideias centrais que nos preocupa, não existe morte do transato: "Só no mundo do nunca/ existem lápides..."; “um poeta inglês que não conseguiu morrer", "continuam acontecendo"; "ao contrário do que pensas, / fazem parte da tua vida presente/ e não do teu passado.". Os acontecimentos passados entram no indivíduo "mesmo quando, deslembrado deles", tudo o que não pôde ser esquecido é atávico e retorna. O ser presente, consciente ou inconsciente desse retorno é moldado pelo passado atávico, da mesma forma que pensar uma explicação sobre como o passado moldou o presente é memória. Aqui, mais uma vez, assumimos, como Quintana o quis, a memória atávica como inalienável. A memória-não-atávica seria, portanto, a ação de alienar o passado, impedi-lo. Alienar o passado é evitar que luz e treva se encontrem no crepúsculo, apagar o Menino Jesus em Jesus Cristo, construir uma porta não giratória que oblitera os elementos externos e internos em tudo. Temos visto nos quintanares que a promoção do esquecimento é mais que o simples desejo de apagar o passado, promover o esquecimento é desestruturar o presente, tornando-o nulo, porque não atávico, não espontâneo e forçoso. Lili, como o poeta e o louco, é signo quintaniano da memória atávica. A infância vista nas ruas pelo poeta cotidianamente o impulsiona a desenvolver uma poética que lembra e quer lembrar ao leitor que o passado vivo não aceita impostação e controle. A memória deixa de ser atávica quando imposta por viés único, preto e branco, evitando a multiplicidade de cores, multiplicidade de perspectivas. A memória de Lili representa, então, a infância do homem, a infância da sociedade, a infância da vida, que está sempre por se fazer e se (re)descobrir em sua relação com o passado. Temos visto até o momento que a memória atávica na criança é a dinâmica do passado que se projeta para o presente e o presente que simultaneamente se lança ao passado. Esse fenômeno é o responsável por aniquilar perfis fixos, definições. A memória atávica localiza o homem em uma área de intersecção, longe dos traços sólidos que o querem demarcar. Tendo estudado como se processa a memória em Lili, entendemos que a criança se caracteriza por sua capacidade criativa, 41"Uma coisa de beldade é uma alegria eterna" (tradução nossa). Esse é o verso inicial do poema Endymion (Endimião, tradução nossa), publicado em 1818 (DRABBLE, 2000, p. 550) pelo poeta inglês John Keats (1895-1821). O poema se baseia no antigo mito grego de Endimião, um pastor eólio muito formoso. Ártemis o fez dormir para sempre. Transformado em imortal, sua beleza de jovem rapaz não evanesceu, para o deleite da deusa. (FERBER, 2001, p. 333). 108 pela abertura. Somos o que somos não a partir de uma perspectiva apenas, somos imagens simultâneas de múltiplas relações. Em "A recordação é uma cadeira de balanço embalando sozinha." (QUINTANA, 2005, p. 298. Da recordação) aprendemos que a memória atávica quer esvaziar a noção de bordas delimitadoras do homem, mostrar o ser humano como ser que oscila. Ora, a cadeira de balanço só se estabiliza, só para, só fica imóvel quando está vazia, que é justamente o contrário daquilo que Da recordação descreve! Se não há ninguém na cadeira de balanço, a cadeira não balança. Se a cadeira balança é porque há alguém sentado nela. E é exatamente isso que Da recordação quer nos dizer. Na verdade, a cadeira não está vazia. Há alguém sentado nela, mas esse alguém não é sozinho. Da recordação diz que a cadeira é sozinha, chamando atenção para aquilo que está dentro dela (o ser não é sozinho). Na cadeira de balanço está Jesus Cristo e o Menino Jesus, o animal e o homem, a luz e a treva, o sério e o cômico, a vaca e o hipogrifo, o lado de fora e o lado de dentro. Mai uma vez Quintana nos tange para a explicação de homem simultaneamente uno e múltiplo. A cadeira de balanço é um móvel projetado para uma única pessoa, geralmente para uso dos mais velhos, o móvel como representando a maturidade. A cadeira de balanço nunca se firma completamente no chão, ela está sempre suspensa; às vezes suspensa na frente (no presente), outras vezes é necessário suspender atrás (o passado). O movimento de suspensão oscilante não exige esforço. Além de não desgastar, o movimento de ir para trás e voltar para frente (ou ir para a frente e voltar para trás) é relaxante. Ainda não há resposta da física que explique o porquê do movimento suave da cadeira de balanço libera a tensão muscular, acalmando o corpo. Em língua inglesa, cadeira de balanço se diz rocker [embaladeira], ou rocking chair [cadeira de embalar]. Outra função da cadeira de balanço, da memória atávica, do poema é justamente essa, embalar, ação executada pelo adulto para diminuir o movimento da criança, causar sonolência, ou aliviar ritmicamente alguma agitação. A memória atávica segue a dinâmica aberta e criadora da cadeira de balanço, da porta- giratória e, também, da brincadeira de pular corda, como podemos ver em Família desencontrada: "O verão é um senhor gordo sentado na varanda e reclamando cerveja. O inverno é o vovozinho tiritante. O outono, um tio solteirão. A primavera, em compensação, é uma menina pulando na corda." (QUINTANA, 2005, p. 289), em matéria de tempo, temos mais uma vez a criança como fonte inesgotável de criação. Rodeada por todos os lados, Lili é a estação da novidade, onde o verde se reproduz, recria-se, renova-se entre os coloridos das flores. Para que haja a primavera, jogar a frente para trás e vice-versa se faz necessário. A única maneira de se alcançar tal resultado é pulando, isto é, mantendo os pés firmes no chão, em segurança, e, ao mesmo tempo, suspendê-los, 109 desprendendo-se das certezas. A corda de Lili representa sua inteireza. Com o ritmo da corda, a criança se cobre inteira, de cima a baixo, trançando em volta de si um halo nunca estável. 110 Figura 7: Mariomosyne Fonte: Acervo do autor 111 2.2 Quem não se lembra, inventa Tendo compreendido o porquê de a memória da criança ser atávica, descreveremos agora como se processa a memória do poeta, que não deve se processar diferente da memória da criança, como nos sugere Atavismo/Q. Começaremos a análise com o poema Memória: Minha memória é um puzzle: onde colocar essa esquina, esse olhar, aqueles dois pares de cotovelos na mesa quando Sérgio e eu "descobrimos" séculos depois de Aristóteles as civilizações sepultas nas lendas, de quem aqueles joelhos juntinhos onde a mão se insinuava insistente, onde e quando e por que esse cheiro bom de terra úmida, que diabo queria eu dizer esta frase achada num caderno antigo: "Hoje é o dia mais infeliz da minha vida?" O que eu não daria para sofrer de novo isso! Não, o melhor é compor uma sinfonia multissensorial, com o teu riso, com teu ressuscitado riso, ó Gabriela, alinhavando tudo. (QUINTANA, 2005, p. 571) Publicado em A vaca e o hipogrifo, o poema Memória se inicia com uma conclusiva metáfora: "minha memória é um puzzle". Existe uma palavra na língua portuguesa capaz de designar o puzzle como grupo, o termo é passatempo. Todavia, ao optar por utilizar o termo em Inglês, Quintana está sugerindo que mantenhamos a ideia em vernáculo, mas carregada, também do sentido importado: puzzle significa desconsertar, tornar perplexo, espantar e hesitante. A partir daí, devemos entender a memória do poeta como uma atividade desconcertante sobre a passagem do tempo. Não podemos confundir o puzzle/passatempo com um jogo, pois ao contrário deste o puzzle não tem regras, e o método para sua resolução é desenvolvido na hora da atividade. Os puzzles envolvem sempre um problema a ser resolvido. Alguns dos exemplos mais conhecidos são a palavra-cruzada, o caça-palavras, o enigma, os sete erros, o ligue os pontos, o labirinto. Quando tridimensionais o puzzle é um brinquedo, como por exemplo o quebra-cabeças. Charadas, trocadilhos, advinhas e trava-línguas também entram na classe do puzzle. Todos esses passatempos citados acima, exceto pelo labirinto, não tem um começo e seu fim está em aberto, tudo dependerá de como o agente do passatempo desenrolou sua astúcia durante a resolução do problema. O sentimento essencial de quem engaja em um passatempo é a dúvida, que só pode ser sanada depois de intensa atividade mental. Dificilmente o acaso ajuda na resolução de um puzzle. Quem inicia um puzzle parte do grau zero de conhecimento sobre seu fim. Quanto maior for o desafio, mais ignorante será o estado inicial do participante do puzzle acerca dos métodos. O puzzle é sempre incerto e misterioso. A única forma de se resolver um puzzle é pelo esforço mental. Quem produz um puzzle não tenta resolvê-lo, porque a resposta já é sabida. Um puzzle é feito para outra pessoa, que sente deleite no aceite do desafio, na tentativa de resolução e na própria 112 vitória dentro das pequenas atividades lúdicas. Os puzzles dependem da imagem, da construção, da montagem e demanda grande capacidade criativa e imaginação de quem tenta resolver. Ações como misturar e discernir, juntar e separar partes inúmeras, amiúde partes com muitos detalhes, são requisitadas de quem resolve. O puzzle transmite ele mesmo a sensação de que há uma chave para o mistério, de que cada parte é importante. Uma parte depende de outra parte e sem a parte faltando a atividade não é concluída. É preciso atenção nos detalhes, ver, extrair o que não se vê, eliciar, descobrir um segredo, descrever diferenças. Para tanto, a persistência é indispensável, senão o praticante abandonará a atividade, levando consigo a mesma confusão com a qual iniciou. Todos os passatempos envolvem imagem. Mesmo quando eles são puzzles de palavras, estas funcionam como ícones, símbolos, conceitos. Se são puzzles orais, há formação de imagens sonoras. No enigma, por exemplo, uma letra pode representar outra, como em um código; outras vezes um ícone representa uma letra, ou uma palavra inteira e a quebra do código só pode ser feita por meio da análise exaustiva da imagem, como ocorre no puzzle sete erros. O câmbio constante é fundamental. Movimentos oculares de vai e vem, troca de lugares, inversões. Trocar de lugares é algo comum nos passatempos, é preciso cambiar, inverter. Nos passatempos há uma busca, uma investigação, é preciso procurar, tentar delinear, perceber, tentar várias vezes. Em Memória, a voz lírica passa a explicar o porquê ele designa sua memória como puzzle. Observemos que Mario Quintana utiliza o singular, não o plural, porque as coisas que ele citará não fazem parte de puzzles diferentes, mas do mesmo. O poema exemplifica. É preciso resolver um problema, o puzzle é de encaixe de imagens, que devem retornar uma resposta ao poeta, como no enigma, tal qual no quebra-cabeça é preciso perceber onde é o encaixe exato, ou como uma palavra que dependerá da letra de outra palavra em uma palavra-cruzada. O puzzle que Quintana utiliza para exemplificar sua tese se consiste de seis imagens de diferentes passados que vão da infância à idade adulta. Essas imagens estão misturadas, aparentemente não estabelecem nenhuma relação e o problema está aí: elas têm um relação entre si, que precisa ser desvendada, descoberta, decifrada. As imagens do puzzle são: 1) "onde colocar essa esquina"; 2) "esse olhar"; 3) "aqueles dois pares de cotovelos na mesa quando Sérgio e eu 'descobrimos' séculos depois de Aristóteles as civilizações sepultas nas lendas"; 4) "de quem aqueles joelhos juntinhos onde a mão se insinuava insistente"; 5) "onde e quando e por que esse cheiro bom de terra úmida"; e 6) "que diabo queria eu dizer esta frase achada num caderno antigo: "Hoje é o dia mais infeliz da minha vida?" O que eu não daria para sofrer de novo isso!". Notemos que as imagens como estão ordenadas em Memória não estão dispostas na ordem cronológica, como em um puzzle, elas estão misturadas. Nós não podemos saber se a carícia afoita 113 que insiste entre as pernas fechadas da moça aconteceu antes ou depois da conversa produtiva com o amigo Sérgio. Possa ser que a conversa entre amigos tenha se passado na infância, e a carícia na adolescência. Talvez a voz lírica saiba a ordem cronológica dessas imagens, talvez não. Notemos que no caso da terra úmida ele não sabe identificar quando ele ocorreu, da mesma forma que ele também está esquecido de quando "Hoje é o dia mais infeliz da minha vida" ocorreu. Mas a ordem cronológica não é o que interessa no puzzle da voz lírica. O que está em questão é como um evento acaba por se relacionar com o outro para significar o presente no qual a voz lírica engaja na decodificação lúdica. As próprias imagens do puzzle nos interessa, a esquina por indicar cruzamento, um olhar incógnito, a (re)descoberta do conhecimento quando feita pelo próprio sujeito, o registro metal de imagem através da experiência com o outro (no caso da carícia), a memória que se lança ao passado por causa de um instinto primitivo, o olfato, registro animal que insiste em trazer do passado para o presente sensações anteriores. Todas essas imagens exigem do poeta uma explicação, esse é o puzzle. A voz lírica de Memória se martiriza pelo esquecimento, pois o decréscimo da memória é uma perda em significação do ser. Há até o desejo de se reviver na prática todos aqueles momentos. Todavia, interessantemente, no final de Memória, enquanto a voz lírica está na própria resolução do puzzle, ela consegue o desvendar. Nos últimos versos, finalmente a voz lírica de súbito consegue se lembrar exatamente o porquê a frase foi escrita, mas não nos confidencia: "Não, o melhor é compor uma sinfonia multi- sensorial, com o teu riso, com teu ressuscitado riso, ó Gabriela, alinhavando tudo." (QUINTANA, 2005, p. 571). Com um grau de comicidade, a resolução do puzzle é a seguinte: alguns daqueles momentos foram prazerosos, mas a experiência inteira foi traumática demais (notemos o riso como símbolo da crueldade que o poeta atribui a Gabriela e que ele recalcou), para ser revivida, por isso certos acontecimentos estavam mortos, mas, agora ressuscitada, chegou a hora daquela lembrança virar um poema. Este sendo uma síntese de todo o trabalho que se exerceu sobre a memória, inclusive sendo as conclusões descobertas durante tal trabalho. De acordo com Memória, a memória do poeta, adquirindo todos esses atributos do puzzle, não se diferencia, assim, da brincadeira de pular corda de Lili, da cadeira de balanço onde se embala a criança, da formalidade cômica em O cachorro, Lili enquanto policromia nos álbuns e primaveras, uma constante novidade antiga. Dessa forma, a memória do poeta é atávica, é presente que se quer passado e simultaneamente passado que se arremessa ao presente. Ao não utilizar a palavra passatempo, o poeta, ainda assim a utiliza, pela ausência, para que a visualizemos pelo espaço negativo, assim como quem esculpe pelo vazio uma forma na escultura. 114 A memória do poeta diz respeito ao próprio fenômeno passagem do tempo, que simplesmente não passa, ora porque ele deseja retornar, ora porque nós desejamos retornar a ele. A ausência do termo passatempo nos faz perguntar o porquê do poeta não a ter empregado, na verdade estamos sendo questionados pelo poeta que nos pergunta: e o tempo? Ele passa mesmo? Com um questionamento como esse, podemos perceber que há uma crítica velada no espaço negativo do poema reservado a passatempo, espaço que está sendo ocupado pela palavra em Inglês. Apesar da substituição ter o propósito de comunicar desafio e exercício mental, como já dissemos em parágrafos anteriores, a ausência de passatempo em Memória examina à nossa cultura do esquecimento, que não engaja das diligências mentais demandadas pela memória enquanto puzzle. Preferimos nos absorver em atividades de fuga, oposta àquela inquieta costura das relações entre passado e presente. Pegamos um caça-palavras ou um quebra-cabeças justamente para evitar o trabalho cognitivo da memória, para ocupar nossa concentração com coisas fora de nós mesmos, para evitarmos a porta-giratória. Não percebemos o quão importante é o movimento do tempo que passa por nós desejando ser apreendido, como um puzzle. Quando o passatempo não envolve a articulação e reavaliação das coisas no tempo, não há puzzle, não há memória atávica. Podemos perceber a mesma crítica em: "Decifrar palavras cruzadas é uma forma tranquila de desespero" (QUINTANA, 2005, p. 245. Mas seja lá como for); crítica desferida contra a fuga de nossas angústias internas: [...] Era num desses países tão venturosos que todo mundo só o conhecia por intermédio das Palavras Cruzadas..." (QUINTANA, 2005, p. 377. Bem que eu gostaria); e crítica a nossa fuga também de questões do exterior, fuga de nosso lugar no mundo: "E eis que ressurge agora o novo homem das Cruzadas, isto é, das palavras cruzadas..." (QUINTANA, 2005, p. 245. De como a História se repete), onde Quintana brinca acidamente com uma referência de Karl Marx (1818-1883) sobre a repetição da História nas sociedades: Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. (MARX, 2011, p. 25) A ideia original de Marx aproveita a concepção shakespeariana em Como gostais (SHAKESPEARE, 1997): a vida é um teatro, onde diferentes papeis são mera representação dramática, alguns trágicos, outros cômicos. Assim, Marx divide momentos na história humana que tiveram grande impacto sobre as sociedades que os vivenciaram. Marx diz que esses mesmos momentos são sempre, na verdade, a eleição exclusiva do papel trágico a ser encenada em cada 115 novo evento, inclusive pelo povo enquanto plateia. Sempre há sofrimento. As tragédias se caracterizam principalmente por algum tipo de conflito resolvível apenas com o derramamento de sangue. Tendo atores, as grandes figuras, e plateias, o povo, vivenciado ambos essa modalidade do drama, os povos decidem refazer a mesma apresentação, dessa feita na modalidade farsa. A farsa é o modo dramático onde a comédia é extravagante, exagerada ao limite, auxiliada pela comicidade em torno do corpo, tudo preparado para criticar o comportamento do corpo social. O cômico é atingido na farsa pelo desenvolvimento caricatural de suas personagens. É o agir das caricaturas que se envolvem em acidentes de percurso, que se envolvem seriamente em situações absurdas ou agem de forma grosseira que consegue provocar o riso, sempre imediato e espontâneo da plateia. Diferente de outras variedades da comédia, como a clássica, que joga com o intelecto e visa corrigir questões relacionadas ao homem consigo mesmo, a farsa é sátira que criticamente se lança contra o plano social. Nisso, Marx pretende caracterizar a sociedade, plateia do espetáculo, elege figuras para zombar de si mesma. Na farsa o povo se compraz em ser o próprio alvo do escárnio. De forma cômica, Mario Quintana usa o termo farsa dando-lhe uma leve ironia. Em De como a História se repete, o poeta está comparando dois momentos da sociedade, as Cruzadas, empreendidas durante a Idade Média, e a Modernidade. No primeiro momento houve muito sangue dos 'atores' e a plateia se comprazia na catarse. No segundo momento já não há divisão entre as grandes figuras da história e a própria plateia, que atora e espectadora ao mesmo tempo, opera o riso em direção a si própria. O pequeno poema é uma crítica à alienação social e individual. O homem moderno já não tem uma Jerusalém para conquistar, seus deuses são outros, o código de nobreza do cavaleiro já não faz sentido, absorve-se em fuga do social e de si mesmo em atividades desprovidas de significação coletiva e introspectiva. Ao equiparar o farsante ao homem da palavra-cruzada, Quintana nos sugere que vejamos esse tipo de atividade (o passatempo só, o passatempo que não é puzzle) como uma ação grosseira, caricatural, absurda de um povo que é ator e plateia, agentes do escárnio sobre si mesmo. Até a própria palavra 'cruzada' em palavra-cruzada é absurda, exploradora do corpo em detrimento do intelecto: percebamos que a cruz além de ser um símbolo jurídico do Império Romano, só crimes de grau máximo recebiam a cruz como punição, sentença de morte vergonhosa; a cruz também é o símbolo máximo do Cristianismo, bem como o emblema dos cavaleiros rumo à Terra Santa. Com sua palavra-cruzada o homem moderno não tem mais interesse pela lei, pelo numinoso, nem também por um projeto social, como o de Cristo ou o das Cruzadas. Quintana posiciona Cruzada e palavra-cruzada lado a lado para comparar a cruz do Cristo e a cruz de cruzada. A primeira é simbólica, a segunda não. As ações da Cruzadas eram impactantes e 116 aventurosas, completar uma palavra-cruzada não é. Os cruzados empreendiam expedições a terras distantes e misteriosas, dantes só imaginadas em livros, na Bíblia; o homem da palavra-cruzada não se preocupa nem mesmo com a própria terra onde vive. Enfim, a ação do homem da palavra-cruzada é trabalha termos e definições, utilizando as palavras que, nesse passatempo que não é puzzle, não adquirem sentido nenhum. Para Quintana, algo uma atividade vazia e desprovida de significado, logo, ridícula. Sobretudo, o homem da palavra-cruzada esquece o passado da própria palavra, de como a linguagem é ela mesma um histórico de significação e ressignificação do passado. Para o homem da palavra-cruzada, as palavras que ele busca em sua memória-não-atávica se juntam nos quadrados do passatempo sem necessidade nenhuma de uma articulação em um eixo semântico. São palavras soltas, articuladas em apenas uma camada superficial da linguagem, a do verbete e a definição. O poema seria o oposto da palavra-cruzada, o poema, para Quintana é uma Cruzada ele mesmo, empreendida pela memória atávica, que se borda em camadas infinitas de significação. Diferentemente da palavra-cruzada, no poema as palavras não se ligam apenas como nos cruzamentos de ruas perpendiculares. Os cruzamentos do poema sabem que em si a articulação das Cruzadas e das ruas corre sangue e mistério. Essa mesma observação se repete em outros poemas, como podemos constatar ainda em Relax (sic.): Aquele monstro que se chamou Champollion descansava de seus estudos de egiptologia escrevendo uma gramática chinesa. Porém, nós outros, os (relativamente) normais, que havemos de fazer? Palavras cruzadas? No entanto, o perigo das palavras cruzadas é nos inocularem às vezes, para todo o sempre, os mais estapafúrdios conhecimentos. Por exemplo, há duas semanas sou sabedor de que "rajaputro" significa "nobre do Hindostão, dedicado à milícia". Espero, o quanto antes, esquecer tal barbaridade. O problema é substituir as preocupações pela ocupação. Quanto ao exercício da poesia, nem falar! Qualquer poeta sabe como dói, como é preciso virar a alma pelo avesso para fazer um verdadeiro poema salvo se você for um poeta concretista, porque, na verdade, não há nada mais abstrato. Pois bem, falando em coisas sérias, o problema, seu poeta, é ocupar o espírito sem ao mesmo tempo estraçalhá-lo. E problemas assim - puros problemas - só mesmo os problemas matemáticos. Já o velho Pinel recomendava o estudo das Ciências Exatas como preservativo dos distúrbios mentais. A Matemática é o pensamento sem dor. Mas infelizmente sucede que a Matemática ainda é pior do que chinês 117 para nós, nesta altura da vida, só não esquecemos as quatro operações e, quando muito, a regra de três e também a teoria dos arranjos, permutações e combinações - tão útil no jogo do bicho. Que resta, então? Oh! como é que eu não me lembrei disso antes?! Resta-nos um passatempo esquecido: o proveitoso, o delicioso vício da leitura. (QUINTANA, 2005, p. 503) Para reforça o que temos acabado de demonstrar, Relax sugere a leitura como uma atividade mais proveitosa que a palavra-cruzada. O título escrito em língua inglesa, da forma que está escrita indica o imperativo de to relax, relaxar, isto é, Relaxe! No meio do poema encontramos a expressão "falando em coisas sérias" que junto com o título fazem o mote dos versos, isto é, o poeta deseja discorrer sobre a necessidade do lazer, permitido muitas vezes como qualquer ocupação leviana, mas que deve ser tratada como algo sério. Percebamos essa intenção de se analisar primeiramente aquilo que nos ocupa no trocadilho que há em "[pre]ocupação pela ocupação". Para Quintana é importante fugir do pensamento sobre os problemas da vida prática, mas apenas se ocupar não é bom o suficiente. É preciso trocar a preocupação por outra coisa que não a ocupação irrefletida. Se por um lado não devemos deixar nossa parte sensível sofrer sempre, preocupar-se sempre, sentir dor sempre; é necessário ao mesmo tempo que não fujamos do sofrimento, da preocupação nem da dor. Isso só poderia se conseguir através do vício da leitura. A leitura é, como sugere o termo relax, uma atividade melhor, mais adequada, mais favorável ao homem. Relax, que têm a mesma origem do étimo relaxar em língua portuguesa, é formada pelo sufixo re, que significa mais uma vez, portanto um sufixo que podemos apontar como atávico, e lax, termos latinos que significa afrouxar, desapertar, soltar, liberar. Logo, podemos compreender que Quintana está sugerindo que não abandonemos nossa preocupação, nossa dor e nosso sofrimento, mas que sintamos o prazer de as desprender das amarras às quais nós mesmos as atamos. O poeta diz que a leitura é deliciosa, e delícia tem exatamente a mesma etimologia, ligando-se isotopicamente a relax: os termos latinos de e lax significam respectivamente tirar e laço, a amarra, a forca. Delícia é literalmente tirar da forca, alívio do medo da morte, prazer que desmantela. Assim, Quintana nos pede que desatemos os nós, as causas de nossas preocupações, que seja revisto aquilo que nos oprime. Em algumas partes do Brasil é comum alguém aconselhar com um "relaxe!" para outra pessoa que está intranquila ou irada ou vexada ou oprimida ou aborrecida. Entretanto, o mais comum ainda é se dizer, tenha calma, tenha paciência ou um simples "não se preocupe". Relaxe se tornou mais comum derivado do anglicanismo. O termo anglófono é a forma mais comum de se dizer o equivalente a "não se preocupe". A língua inglesa é utilizada como símbolo do poder global, poder econômico cultural, social e político. Portanto, o relax do título deve ser lido como termo que 118 realça a prática da leitura, transmitindo-lhe o poder mais legítimo sobre nossas preocupações em detrimento das amarras econômicas, culturais, sociais e políticas que costumam afligir nossa mente. O título em inglês sugere que o leitor veja suas aflições como comuns a outros povos (especialmente na literatura deles), pois as aflições não são apenas coisas que ocorrem exclusivamente ao leitor em um determinado tempo em uma determinada sociedade. Como há um tom cômico, irônico, bem-humorado em Relax, não podemos fugir da conexão com o baixo-corpóreo tal qual estudado por Bakhtin (2008) em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. A raiz de relaxar e delícia, lax, também é raiz de outra palavra em língua portuguesa, laxante. O laxante é um tipo de preparo farmacêutico que provoca a evacuação das fezes para pessoas que sofrem de prisão de ventre. A liberação de fezes provoca uma sensação de alívio ao paciente que sofrem com a obstrução do intestino. Ora, um dos sintomas da prisão de ventre é o mau humor, a ira, o aborrecimento, tanto que um sinônimo para essas palavras é o termo enfezado. Sendo uma das ações vitais do sujeito, quando a capacidade de defecar é impedida, é necessário que se encontre uma forma de sanar o problema. O laxante reverte o quadro da prisão de ventre, eliminando os resíduos. A literatura poderia, então, ser lida como o laxante no cômico Relax, ou seja, imperativo de defecar novamente. Para Quintana, ler nos auxilia a liberar, expelir resíduos desnecessários ao espírito; da mesma forma que as fezes são resíduos desnecessários ao corpo. Quando fazemos essas ligações, recuperamos uma longa tradição de pensamento que para Bakhtin indica a necessidade de queda para o renascimento: defecar indica devolver à terra os coisas ruins, para que sejam transformadas, regeneradas, reaproveitadas. Quintana lança suas setas de riso contra o homem da palavra-cruzada, pois para o poeta o estudo de cálculos, o jogo em loterias, a aprendizagem de regras linguísticas de culturas distantes e se ocupar com os passatempos que não são puzzles são todas elas atividades que requerem a memória-não-atávica, ações que não costuram tempos e lugares de forma criativa e significativa, que não permitem a um elemento o vestígio de outro, não admitindo a latência e o despertar, o animal e o humano, o individual e o social, a vaca e o hipogrifo, a luz e a treva. Se em Quintana entendermos o termo passatempo enquanto investigação prazerosa sobre a passagem do tempo, chegaremos à compreensão do funcionamento da memória do poeta, que é seu método de trabalho. Atavismo/Q descreve esse funcionamento como atávico, vestigial; como uma atividade incessante de colisão e mistura dos movimentos simultâneos do passado ao presente e do presente ao passado. Dessa forma, a memória do poeta não pode parar, porque seu movimento atávico é ilimitado, aberto ao mistério; como nos explica o poema Jogo eterno: "No dia em que já tiverem sido efetuadas todas as possíveis partidas de xadrez, ainda assim não se terão esgotado, neste mundo, os imprevisíveis jogos de imagem da poesia. (QUINTANA, 2005, p. 712.) onde a 119 poesia é comparada em grau de superioridade ao xadrez, mesmo este sendo uma fonte inesgotável de combinações. A criança tem a infância, o poeta tem a poesia, o louco tem a loucura. Infância, poesia e loucura são respectivamente a memória atávica da criança, do poeta e do louco: inexaurível combinação dos tempos. O adulto, o apoético e o lúcido não têm uma memória atávica, prescrevem o cálculo para o esgotamento de combinações, a memória-não-atávica equivale ao passado sem mistério, previsível, fechado e definido. A memória atávica é uma possibilidade, nunca uma certeza. A memória-não- atávica é conceitual, não se permite a dúvida. Essa é uma visão muito próxima daquela de William Blake (1757-1827) em O casamento do céu e do inferno (1793): "A cisterna contém: a fonte transborda." (BLAKE, 1981, p. 36. Tradução nossa), pois nesse caso a memória-não-atávica é a cisterna; a memória atávica é a fonte. Ainda em O Casamento do céu e do inferno, lemos "Cada coisa que possa ser crível é uma imagem da verdade" (BLAKE, 1981, p. 37. Tradução nossa). Oferecendo suas combinações enquanto possibilidade, a memória atávica desafia a noção de verdade exclusiva detida pela memória-não-atávica, que nada mais é que a memória/passatempo/adulto/apoético/lúcido, que divide, separa, conceitua e define. A memória- não-atávica busca anular o mistério, como podemos ler em A definição: No meu quebra-cabeça de hoje acabo de descobrir este admirável conceito: "Intervalo quadrado entre os tríglifos de um friso dórico." Paciência! não te direi o que seja... E é melhor assim. O mistério faz parte da beleza. (QUINTANA, 2005, p. 278. A definição) A definição é um metapoema, no qual Quintana faz uma analogia entre o momento da criação poética e a resolução do puzzle, no caso acima, um quebra-cabeças. O poeta pode está construindo seu poema em frente de uma palavra-cruzada, de um dicionário ou de uma enciclopédia, diante de conceitos e definições. Seu método de trabalho consiste em tomar um conceito e ressignificar por meio de combinações, dando-lhe nova configuração. O termo que Mario Quintana tomou como puzzle é "métopa". É "métopa" o conceito que o poeta diz que descobriu. "Métopa" não aparece no poema, mas está contido lá, pela via negativa (ausência) e por sua própria definição. Por fazer assim, Mario Quintana une o valor negativo ao próprio conceito de definição. A definição, então, é uma crítica a necessidade de definições, quando o que realmente interessa à poesia são as redefinições. O poema narra o processo que o poeta levou até que ele resinificasse "métopa". Primeiramente ele diz que não conseguiu ressignificar o termo, que não conseguiu completar o 120 desafio, porque não havia nada de admirável em "métope" que pudesse ser reutilizado no trabalho de ressignificação da poesia. Mas um desafio é um desafio, e o poeta não pode desistir de seu puzzle. É através da própria memória que o puzzle se completa. Lançando mão de sua memória atávica, Quintana finalmente consegue completar o puzzle ao ressignificar o termo "métope", que passa no poema a significar mistério. "Métopa" passa a valer como sinônimo de enigma. Quando distribuímos o processo de construção de A definição em estágios de evolução, encontramos três fases: 1 Total desconhecimento do conceito e da definição de "métopa". O poeta ignora tanto o conceito quanto a definição. Há mistério. 2 O poeta descobre o "admirável conceito". 3 O poeta toma conhecimento da definição do conceito, sabe de sua significação. 4 O poeta ressignifica A memória é um puzzle. O puzzle é ressignificação. A ressignificação precisa ser atávica. Logo, estando no estágio 4, no momento x em que é preciso ressignificar, Quintana sabe que é preciso fazer reaparecer em "métopa" um vestígio daquilo que essa palavra já fora no passado, mas que está completamente ausente no estágio de evolução 3. Retrocedendo ainda mais, passando pelo estágio de latência 3, Quintana traz ao estágio 4 o significado primitivo de "métopa", devolvendo- lhe a característica que ela possuía na fase 1 (e leva simultaneamente 4 a 1): o mistério. A essência do poema adquire uma forma, pois "métopa" de fato é um mistério para o leitor do poema que ficará sem acesso ao termo. Quintana diz que não revelará a palavra, e realmente não revela, porque não sãos nem os conceitos nem as definições que importam, mas, sim, as ressignificações, e isso ele soube fazer com "métopa". O mistério é o que deve definir as coisas. Nesse sentido, a concepção de poesia de Quintana é paradoxal, pois ela diz que só há uma certeza: a incerteza. Essa é a única coisa definida dentro do poema A definição: o mistério. No corpo do poema de fato o leitor encontra uma definição clássica entre aspas. Entretanto, Quintana não revela o conceito. O poeta mantém a definição intacta, mas ressignifica o conceito, chamando-o de mistério. Essa é uma estratégia de dar com uma mão e retirar com a outra. A proposta é garantir que o leitor aja de forma semelhante, sob o signo do mistério. Mario Quintana está sugerindo que, se por um lado recebemos conceitos seguidos de definições, é possível cambiarmos o conceito e manter a definição intacta, ao mesmo tempo em que é possível se manter o conceito, mas atribuindo a ele outra definição. 121 É preciso pensar mais vezes os conceitos, duvidar das definições, evitar o estanque. Nesse caso, o esquecimento trabalha junto com a memória, garantido o atavismo. É preciso esquecer, deixar de lado algumas vezes, para retornar sempre. É assim que esquecimento deve ser tratado na poética de Quintana; apenas como um movimento de escorregar, deslizar provisoriamente um termo da memória. Vemos isso no vocábulo "olvidando": "No mesmo instante olvidando/Tudo o de que te lembrares." (QUINTANA, 2005, p. 161). Criticado algumas vezes por se alhear de questões sociais, Mario Quintana se defende, explicando um ponto que nem todos entendem: "Quanto à arte engajada, eu só te pergunto: Que significação política tem o crepúsculo?" (QUINTANA, 2005, p. 301). Naquela época, Mario Quintana não poderia fazer uma única escolha, favorecer o comunismo ou o capitalismo, ou qualquer outro ismo político, econômico ou cultural; porquanto que na junção dos valores, no mistério da mistura, é que está a verdade. Não há nenhuma ingenuidade do poeta, ao indicar que as perspectivas políticas desvanecem quando misturadas ao ponto da indivisibilidade, como no crepúsculo. Seu método atávico confessa que nem o próprio poeta compreende de todo aquilo que ele faz, o absurdo é tão necessário como o lógico: "Os poetas são os únicos que não podem falar contra os absurdos da religião. Mesmo aqueles que se julgam materialistas devem estar ingenuamente iludidos: a poesia é um sintoma do sobrenatural." (QUINTANA, 2005, p. 359) Caso Mario Quintana tivesse interesse em realmente se alhear de questões políticas, ele teria escolhido qualquer outro termo para designar a 'coisa' atávica na criança, no poeta e no louco. Mas, não! Quintana selecionou o termo memória, que se liga às ciências que estudam os registros das sociedades e de suas relações de poder no tempo. Quintana poderia ter atribuído a ancestralidade do trio um coração atávico, um pé atávico, mas foi a memória o termo que o poeta julgou mais capaz de estetizar sua concepção. Ao escolher o termo memória atávica, Quintana pretende questionar as certezas justamente promovidas pela memória. É necessário arriscar o que já sabemos, questionar ousadamente as nossas certezas, ressuscitar as esfinges, ao invés de nos aventurarmos epistemologicamente no mais recente, como podemos ler em O aventureiro: Sempre que o homem conquista a certeza de alguma coisa - redondeza da terra, heliocentrismo, etc. ele acaba por se chatear soberanamente e, passando por cima das esfinges mortas, parte em busca de novos enigmas, de novas dúvidas, ante a indiferença das pedras, das velhas comadres e das estrelas... (QUINTANA, 2005, p. 323. O aventureiro) 122 Se em A definição, Quintana não preferiu fazer seu puzzle de ressignificação em torno de 'métopa', é pelo mesmo motivo que redondeza da terra, heliocentrismo também são desfavorecidos em O aventureiro; isto é, o enigma deve partir das coisas mais simples, mais conhecidas, por isso as mais primitivas, como a pedra, a velha comadre, a estrela. As coisas mais simples são tidas como as mais conhecidas e isso aumenta justamente o grau do puzzle de Quintana. O desafio de encontrar mistério no que já se sabe é maior, por sua vez, localizar um novo mistério no que já conhecemos é consequentemente mais delicioso. O puzzle do poeta é como o trabalho de um arqueólogo: "[...] Eu sou como um arqueólogo decifrando as cinzas de uma cidade morta. O vulto de um velho arqueólogo curvado sobre a terra... [...]. (QUINTANA, 2005, p. 471). O velho arqueólogo se aproxima o máximo possível sobre o que já se conhece. A sociedade está mesmo morta? De que são as cinzas? O que essas cinzas primitivas podem dizer ao arqueólogo? Por seu atavismo, a memória é um puzzle em que é preciso decifrar sempre. Por isso, de todas as formas de puzzle, a que mais representa Mario Quintana é o enigma, como podemos ler em Sonho de uma noite de verão: "[...] Eu não: eu me fico a encarar, com os olhos parados, o meu enigma de palavras cruzadas.[...] (QUINTANA, 2005, p. 370); e em Explicação parcial: "No fim, só me restou a poesia, outro enigma... (QUINTANA, 2005, p. 335). Outro poeta confidencia o uso do mesmo método estético. Em 1951 é publicado Claro enigma. Com esse título Carlos Drummond de Andrade (1920-1999) diz que há mistério naquilo que aparentemente já é claro em nossas mentes. Por isso a poesia de Claro enigma procura desdobrar o retorno, as formas antigas, o amor, a beleza e a memória, em poemas clássicos como Entre o ser e as coisas, Dúvidas; Memória, Rapto, Amar; Legado. Drummond também divide o livro que sugerem a memória atávica. Em I-Entre o lobo e o cão, vejamos a preposição "entre" a indicar intersecção de estágios. Vejamos que em III- O menino e os homens falta um estágio no meio, o do moço, no encontro da infância com a fase adulta. É nessa terceira parte de Claro enigma que Carlos Drummond dedica um poema a Mario Quintana. O poema é Quintana's Bar e descreve a poética de Quintana. Um dos versos da descrição que faz Drummond sobre Quintana é "Na total desincorporação das coisas antigas, perdura um elemento mágico: estrela-do-mar ou Aldebarã?" (ANDRADE, 2012). Isso é exatamente o que temos tentado argumentar nesta parte da tese: a reutilização do passado pelo poeta gaúcho para perdurar o mistério e desestabilizar nossas certezas. Com quatro termos Drummond faz dois interessante paralelos que se completam em 1) "desincorporação" e "estrela-do-mar" e em 2) "mágico" e "aldebarã". Vejamos como esses paralelos elucidam a nossa proposta de leitura. 123 No primeiro paralelo, "desincorporação" aparece como sinônimo de desintegração do passado. É preciso entender que desincorporar e desintegrar não são sinônimos de invalidar, anular, exterminar. Desincorporar ou desintegrar consistem na separação em partes, que continuam a existir, mas de uma forma dissociada da configuração anterior. Ao desincorporar o que antes era um corpo, a parte se une ao presente ̶ notemos que Drummond emprega o verbo no presente do indicativo ̶ a indicar que o passado não foi anulado, ele apenas é trazido em parte ao presente. De fato, como temos visto, o puzzle de Quintana consiste em desfazer as amarras que apertam as coisas antigas em uma definição única. É preciso ressignificar o passado. Por isso "Desincorporação" se associa com "estrela-do-mar", uma das formas de vida que ao perder uma de suas partes, além de ser capaz de reconstituir outra no mesmo lugar, de se regenerar (CAMPBELL, 2001, p. 662), cada parte dá origem a outra estrela-do-mar; em tipo de uma reprodução assexuada. A desincorporação que fala Drummond é essa: a perpetuação do passado através de suas próprias partes. A estrela-do- mar, curiosamente não se reproduz apenas assexuadamente, a forma sexuada também existe. Isso implica dizer que as coisas antigas também podem se unir a outras e dessa união resultar novas coisas. Mencionamos também a aparente incongruência do corpo da estrela-do-mar, único na natureza a desafiar nossa própria concepção de absurdo. Primeiro é um animal que em nada se assemelha aos outros, com uma parte central de onde se irradiam vários braços nos quais estão localizados centenas de pés. Os pés estão nos braços, a estrela-do-mar anda e pega ao mesmo tempo. Depois, é um animal marinho, com a forma de coisas que deveriam estar no céu, como a estrela, ou nos vegetais, como nas flores. O equinodermo tem uma forma que pertence ao céu, à terra e, também, a água. A estrela-do-mar ainda tem dois estômagos. Um desses estômagos é chamado cardíaco e ele é projetado para o exterior da estrela do mar, que faz a digestão do alimento fora de si, para depois recolher o estômago para dentro novamente. Tudo isso se assemelha muito com o método puzzle de Quintana. Se não fosse já um animal na natureza, não é difícil imaginar uma memória atávica criando uma imagem como a estrela-do-mar. O outro paralelo que fez Drummond, com "mágico" e "aldebarã" é sobre o mistério que repousa na possibilidade de junção de coisas tão distintas. Além desse último paralelo se ligar ao paralelo anterior (Aldebarã é uma estrela na constelação de touro, ocupando a posição do olho da constelação). "Mágico" e "aldebarã" se ligam pelo relacionamento entre o enigma e a revelação. Evocam também outros símbolos do mistério como a primeira letra do alfabeto hebraico, o Aleph, e a primeira carta do tarot, o Mago (CIRLOT, 2001). Refletindo sobre a própria posição de mago, Quintana rememora uma entrevista concedida: "[…] PB – Considerado feiticeiro e mágico, o que sente ante o mistério de criar? // MQ – Deslumbramento e susto. Digo susto, porque na verdade 124 nunca passei de um aprendiz de feiticeiro […]". (QUINTANA, 2005a, p. 738, O que a Patrícia queria saber). O poeta reflete sobre um método que ele pratica, mas que nem ele mesmo compreende em totalidade. A memória atávica é explorada porque ela mesmo é um enigma. Mas a intenção de Quintana é compartilhar seu método, sua forma de ver enigmaticamente as partes de coisas antigas resultando em novidade. É certo que Mario Quintana age sobre o puzzle, mas cada resolução do enigma só pode ser um novo enigma, oferecido ao leitor. Mario Quintana quer provoca a sua própria estabilidade do passado e quer provocar a nossa estabilidade também, como podemos ler em Pausa: E paira no ar o eterno mistério dessa necessidade da recriação das coisas em imagens, para terem mais vida, e da vida em poesia, para ser mais vivida. Esse enigma, eu o passo a ti, pobre leitor. E agora? Por enquanto, ante a atual insolubilidade da coisa, só me resta citar o terrível dilema de Stechetti: "lo sonno un poeta o sonno un imbecile?" Alternativa, aliás, extensiva ao leitor de poesia... A verdade é que a minha atroz função não é resolver e sim propor enigmas, fazer o leitor pensar e não pensar por ele. (QUINTANA, 2005, p. 528. Pausa) A memória atávica do poeta é responsável pelo sopro inicial, por resolver montar o enigma e resolvê-lo em primeira instância, mas o mistério não para no poema. O mistério deve se reproduzir no leitor de poesia, como uma parte da estrela-do-mar se reproduz. A memória atávica do poeta quer-se recriada em um novo enigma pela memória do leitor. O enigma do passado em relação com o presente é misterioso porque é a imagem do passado no presente ou do presente no passado que está sendo manuseado. Mario Quintana sabe que ele não lida com as coisas antigas propriamente falando, a memória atávica lida com imagens do passado e do presente. O puzzle é articulação de imagens de representação. São essas significações do passado que tornam a ressignificação possível. Um enigma geralmente tem uma chave, que precisa ser decifrada. Isso não equivale a dizer que a arte de versejar seja meramente a criação de um sistema de equivalências, onde um signo é sempre tomado por outro: "Cuidado! Não confundir o mistério poético com uma linguagem em código: a polícia pode desconfiar..." (QUINTANA, 2005, p. 641). Não adianta o escritor criptografar conceitos, insinuando, por exemplo, tomando toda vez a palavra pássaro para significar 125 liberdade. Isso não garante o surgimento da poesia e as leis internas desta denunciarão ("a polícia pode desconfiar") a pretensão. O enigma tem um funcionamento próprio. Ele demanda necessariamente a repetição de imagens enquanto valores conceituais. Um enigma muito rudimentar pode ser montado estabelecendo uma imagem para cada letra, como na disposição abaixo ao substituirmos cada letra por um símbolo Wingdings, por exemplo:           A B C D E F G H I J           K L M N O P Q R S T       U V W X Y Z         É preciso entender o enigma como uma repetição padronizada do sistema imagético para se decodificar a mensagem. Sem o conhecimento prévio da correspondência padrão, a mensagem acima só poderia ser decifrada depois de inúmeras e exaustivas combinações. Não é desse código enigmático que Quintana fala. Apesar do poeta também utilizar esse tipo de construção em seu trabalho, como proposto aqui (a criança, o poeta, o louco, a memória atávica são parte de uma correspondência enigmática que estamos tentando decodificar neste trabalho), da mesma forma que cada poeta cria seu próprio sistema, como os deuses/conceitos de Homero correspondem às pulsões físicas e psicológicas do próprio homem; como o mar de Fernando Pessoa se serve para representar à vida. Como temos visto até aqui, a questão é de outra ordem, mais sensível, não mecânica. O verdadeiro puzzle que garante o mistério, é um enigma que parte da correspondência zero dos valores, porque esses são deslocados de sua significação comum. É o mesmo que tirar a própria chave do enigma, ou seja, se a correspondência comum é a imagem a para a letra A, Mario Quintana sugere que façamos ligações inusitadas, trocando os valores. A imagem a passa a valer B, ou a imagem A passa a valer B. Entretanto, isso requer certa sensibilidade, astúcia, um olfato aguçado, um Nariz de vidro (1985). A solução e criação de enigmas exige que, embora absurdas as 126 ligações, elas se harmonizem, se equivalham. Há de se levar em consideração o como a passa a se relacionar harmonicamente com B. Esse é um processo que demanda muito mais esforço que um enigma vulgar e, claro, se torna um ato autoral, criativo. A proposta de Quintana equivale a utilizar os deuses de Homero para significar a vida ou o mar de Fernando Pessoa para significar as pulsões físicas e psicológicas (e quando paramos para fazer tal análise, percebemos que ela procede!). A troca de valores, a junção de elementos antes distantes, a criação de novas correspondências é tratada com um tom irônico em Quintana, quando afirma que o poeta é um sujeito que nunca se lembra das coisas, como podemos ler em Criatividade: Desconfiar da observação direta. Um romancista de lápis em punho no meio da vida - esse atento senhor acaba fazendo apenas reportagens. É melhor esperar que a poeira baixe, que as águas resserenem: deixar tudo à deriva da memória. Porque a memória escolhe, recria. Quanto ao poeta, que nunca se lembra, inventa. E fica mais perto da verdadeira realidade. (QUINTANA, 2005, p. 784) Em Criatividade observamos que Quintana é irônico ao dizer que o poeta nunca se lembra, é um desmemoriado, porque, escancaradamente no período anterior, ele nos informa que o atributo primeiro da memória é sua faculdade recriadora. Sendo a memória do poeta um puzzle, o puzzle é, portanto, um enigma de recriação. O vestígio criado que reaparece no presente, e simultaneamente o presente que demanda que sua recriação seja vestigial. Na ausência de certezas, onde tudo é um enigma, a "verdadeira realidade" é para Quintana uma recriação humana. Uma "verdadeira realidade" que não possa ser recriada, questionada, repensada, reavaliada é, portanto, falsa. Estamos discorrendo sobre a memória enquanto puzzles e recriação, ensejo propício para apontar o nexo com a palavra recreação. O prefixo re- indica repetição da ação, mas o que exatamente significa recrear? Vejamos um poema explicativo sobre a raiz de recreação: Costumava-se distinguir entre creação e criação. Exemplo: a creação de um poema, a criação de galinhas. Era limpo e nítido. Nada de confusões. Mas agora que tudo é um, como diziam os clássicos, ficou irremediavelmente perdido o que escrevi, um dia: "Deus creou o mundo e o diabo criou o mundo." E agora? Para explicar tudo isso em mais palavras o que seria um verdadeiro crime - imaginem os circunlóquios que eu teria de fazer... Não faço! (QUINTANA, 2005, p. 316) 127 O poema que acabamos de ler é Ortografia, ou seja, discorre sobre aquilo que se considera certo/errado na escrita. Há um trocadilho dentro do quintanar, entre 1) a ortografia de criação- creação e 2) aquilo que convém-não-convém a um poeta. Há um plano simultâneo de considerações sobre o que é certo e errado, mas ambas as considerações se unem ao final. 1) A voz lírica ironicamente diz não concordar com o acordo ortográfico que findou a distinção entre crear e criar porque confundem conceitos distintos em um quintanar anterior não publicado; e também diz que 2) não concorda em explicar a distinção, porque isso equivaleria a revelar um poema, algo errado para um poeta, um crime, que nós nos prontificamos a cometer aqui. Comecemos uma defesa da separação literal dos termos, a inflamada arguição do teólogo Huberto Rohden (1893 -1981): A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo moderno criar é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e dispensa esforço mental – mas não é aceitável em nível de cultura superior, porque deturpa o pensamento. Crear é a manifestação da Essência em forma de existência – criar é a transição de uma existência para outra existência. O Poder Infinito é o creador do Universo – um fazendeiro é criador de gado. Há entre os homens gênios creadores, embora não sejam talvez criadores. A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea e nada se aniquila, tudo se transforma”, se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa mas se escrevermos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa. (ROHDEN, 2008, p. 23) Observemos que Rohden prevê uma nítida separação entre os conceitos e ‘crear’ e ‘criar’. O primeiro conduz à uma espécie de concepção do sensível a partir do grau zero, o último especifica o trabalho de gerir técnicas para que um animal de criação se alimente, cresça e se reproduza com fins de se obter algo de útil da espécie ‘criada’, como couro, lã ou leite. Rohden dá ao primeiro uma aura mais preciosa, um tom intelectual e mais valorizado, um atributo quase transcendental; ao segundo termo ele diz apenas da característica mecânica da atividade do pecuarista ou ‘criador’ de outro animal qualquer. Todavia, o crítico entra em contradição aparente, ao corroborar a Lei de Lavoisier, atestando que nada se ‘crea’, quando há pouco menos de duas linhas ele menciona os gênios “creadores”, destacando, assim, uma divisão entre natureza e arte, como se a sociedade não estivesse contida dentro da natureza É justamente essa a querela que a irônica voz lírica de Ortografia quer nos chamar atenção. Ela quer nos questionar acerca da diferença entre ‘creação’ e ‘criação’, que o acordo ortográfico suprime na extinção da grafia ‘creação’. Poeta, Quintana lança um olhar sobre sua própria atividade, olhar metapoético: por um lado o poema nasceria da inspiração, da captura da essência de algo em forma; por outro lado, o poema seria fruto da técnica, do estudo árduo, do trabalho de se conduzir conceitos em signos, estudo da vida através de linguagem simbólica. 128 Ao não optar por uma conclusão, a voz lírica de Ortografia deixa em aberto a possibilidade de a concepção poética ser inexplicável, uma vez que o “Não explico” de Ortografia pode ser lido como uma confidência ou declaração de que a voz lírica é incapaz de explicar a poesia, que fica, desse modo, mista, entre o trabalho conjunto de Deus e do Diabo, cooperação entre o mundo das ideias e o mundo da forma, entre um mundo ideal e outro prático, cooperação entre luz e trevas, pureza e astúcia. A criação poética estaria entre o absolutamente novo, gestado no campo do idealismo, do nunca dantes tentado e o mundo dos homens, criado através do repasse, da reprodução, das transformações e do interesse em se obter algo de útil. O mundo do diabo, o mundo dos homens, da sociedade, como a dos bichos criados, à exemplo da apicultura. O fato é que para Mario Quintana a poesia instila no mundo dos homens, na sociedade, no mundo do Diabo, algo absolutamente novo; que abala as configurações. Isso porque o absolutamente novo não pode ser feito sem as configurações pré-existentes. Uma dinâmica paradoxal e escorregadia onde a criação poética se daria através da memória. Percebemos na irônica voz lírica de Ortografia uma defesa da confusão, nada estaria totalmente perdido na extinção de um dos termos creação/criação, porquanto que, ao restar apenas um dos vocábulos, a mistura de valores tão desejada por Quintana é alcançada por sua consequente impossibilidade de limpeza e nitidez. Para Mario Quintana, toda forma de memória é criatividade, que a tudo vai colorindo, mesmo quando somos nós agentes sobre o fenômeno da memória. Observemos que, brincando com o uso da colocação pronominal, Mario Quintana não se desfaz desses conceitos, como lemos em Me lembro (QUINTANA, 2005, p. 318): “É assim que se diz: "me lembro", quando uma lembrança vem vindo de muito longe; "lembro-me" é quando chega de repente. [...]”. No poema observamos que a utilização da próclise em “me lembro” cria uma unidade sonora [m’lembro] entre o sujeito que se mostra ativo na ação de relembrar, o sujeito se mostra ativo perante a memória. É ele que analisa, deduz, age sobre a memória. A unidade “me lembro” [m’lembro] é pronunciada com mais esforço, recordar é um trabalho mais lento, de pausas investigativas, uma digestão cognitiva demorada, memória no sentido de ruminação medieval. Em “me lembro” é o sujeito que parte do presente em direção ao passado. Já em “lembro-me” [lembr’me] a pronúncia é rápida, apressada, repentina, como um estouro, um estalo; nela observa-se que o sujeito consciente se mostra passivo à manifestação da memória, em consonância com a espontaneidade do primeiro tipo de memória, a natural, tal qual estudada por Cícero em Ad Herenium (in ROSSINGTON; WHITEHEAD, 2007, p. 43). O sujeito não mais produz esforço, não age em procura do passado, é este que se deflagra no presente. Nesse último caso o sujeito passivo no movimento da memória se faz observar na ênclise, quando o 129 pronome vem depois do verbo, para indicar que perante a memória o ser está em segundo plano, o sujeito é vassalo da memória que estala espontaneamente a qual ele já não consegue controlar. Percebemos que Mario Quintana dialoga com a tradição dos estudos sobre a memória, e não rejeita a proposição de que memória se caracterize por dois movimentos: 1) que ela nos aconteça sem causa aparente ou 2) seja compelida pelo individuao a se manifestar. A esses dois movimentos que Aristóteles (ARISTÓTELES, 2001, p. 607; ROSSINGTON; WHITEHEAD, 2007, p. 28, ABBAGNANO, 2007, p. 759) chamou respectivamente de 1) memória e 2) recordação/reminiscência em De memoria et reminiscentia, subdivisão de Parva naturalia. Todavia, para Quintana esses dois movimentos não são contrários em si mesmos, não se separam em absoluto. Conservam em si suas propriedades, mas na mistura, como ocorre na vaca e no hipogrifo, no crepúsculo, na porta-giratória. Ambos os movimento, o de ida ao passado, ou o de vinda ao presente se caracterizam pela invenção. A ação de especular, deduzir, investigar o passado presente no sujeito ativo de Me lembro só pode se configurar como invenção, se retomamos o verso de Criatividade: “Quanto ao poeta, que nunca se lembra, inventa, e fica mais perto da verdadeira realidade.”. Percebamos que o advérbio negativo “nunca” força o pronome reflexivo à passividade ou ao segundo plano, porque agir sobre a memória de forma plena “nunca” seria possível ao sujeito; isto é, é impossível ao ser retornar ao passado sem levar consigo vestígios do próprio presente. Essa presença vestigial do próprio presente que carrega o poeta ao passado Quintana nomeia invenção. Dessa maneira, qualquer tentativa de apreensão do passado via esforço do presente é invenção, criação, poesia. 130 Figura 8: Cliotana Fonte: Acervo do autor 131 2.3 Memória enlouquecida Percebamos que o eco do poema em O poema (QUINTANA, 2005, p. 202) não extingue os perfis; estes, apesar de serem deslocados42, continuam a existir. As linhas formadoras de perfis não são anuladas, são demovidas por elastecimento, fundição, diluição. Da mesma forma, o ser atávico é um ser novo, do presente, mas que carrega vestígios de insistente passado. A memória em Mario Quintana comunga com a porta-giratória, com a vaca e o hipogrifo, com o puzzle. Essa é a noção de verdade com a qual devemos abordar os quintanares: memória enquanto fonte infinita, multifacetada e persistente, da qual brota a realidade. No poema Realidade temos que a vida/realidade se estabelece além do factual: "O fato é um aspecto secundário da realidade". (QUINTANA, 2005, p.838). Ao tecer a proposição em volta de duas palavras chave: fato e realidade, Mario Quintana evoca imediatamente as palavras opostas: ficção e irrealidade. Para Realidade, o fato se empalidece frente do fictício: mais forte é a vida enquanto invenção, criação. A vida só recorre aos fatos em segunda necessidade. Ao afirmar que "O fato é um aspecto secundário", Realidade questiona também quando é que o fato deixa de ser aspecto secundário para ser um aspecto primário. Pensamos que uma resposta a esse questionamento possa vir do seguinte poema: "Ante o Herói, num sorriso o teu pasmo transforma:/ Ele que faça História, e a desfaça, à vontade... /Pobre bárbaro, entregue à mais grosseira forma /Da múltipla e infinita realidade!" (QUINTANA, 2005, p. 225, LXXXI. Da ação). Ao compararmos Realidade a LXXXI. Da ação, percebemos que o fato faz parte da realidade, mas é a testemunha "mais grosseira" dela, porque sendo a vida possibilidade de recriação, o fato fixa-se no exterior, distanciando-se e enfraquecendo o eixo da interioridade do indivíduo. O Herói, frente à possibilidade de recriação, recusa essa possibilidade só para si, preocupa-se em levá- la para o externo. A História, de acordo com LXXXI. Da ação, também é ficção, inventada; podendo ser criada e recriada, feita e desfeita. Para Mario Quintana (QUINTANA, 2005, p. 241), não é perceptível a diferença entre história, estória e História; os fatos podem ser fictícios. Temos então que o fato é só um tipo de ficção que recorre à exterioridade, ao invés de permanecer no interior do sujeito. A verdade interna é maior do que a verdade da ação. Para os quintanares, sentir vem antes do agir. Sentir também é sinônimo de experimentar. 42"1 tirar ou sair das juntas, desconjuntar (-se), desarticular-se 2 mudar (algo) tirando do lugar [...] 3 fazer a transferência de (uma ou mais pessoas); transferir, remover 3.1 remover de posto, função ou posição (uma ou mais pessoas); transferir 4 mover-se (de um ponto para outro) [...]"(HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 999). 132 Para Quintana a realidade parte da possibilidade de criação e nos indica a memória como um agente da experiência interna. Enquanto a memória permanecer interiorizada, ela será mais orgânica, mais refinada que a memória que alcançou as fronteiras do externo. Vejamos em Criatividade uma confirmação do que dizemos: Desconfiar da observação direta. Um romancista de lápis em punho no meio da vida - esse atento senhor acaba fazendo apenas reportagens. É melhor esperar que a poeira baixe, que as águas resserenem: deixar tudo à deriva da memória. Porque a memória escolhe, recria. Quanto ao poeta, que nunca se lembra, inventa. E fica mais perto da verdadeira realidade. (QUINTANA, 2005, p.785, Criatividade) Vemos em Criatividade a gradação de três classes: a) o relato, que é posição intermediária entre o indivíduo e a realidade – não verdadeira; criação acabada, por isso preterida; b) a memória, agente criativo que continuamente reinventa um referencial, por isso protegida; c) a poesia, que se pretende criadora sem ponto referencial, por isso preferida. Quanto mais interna, íntima, subjetiva, for a abertura para a possibilidade de mutação, mais verdadeira será a realidade: "Só é verdadeiramente vida a que tem um inquieto depois!" (QUINTANA, 2005, p. 593, O deixador). A experiência quanto mais for afastada do indivíduo e de sua força interna criativa menos real será. A memória enquanto fonte recria a vida/realidade/verdade espontaneamente, naturalmente; não é produzida; não é forçada, não se artificializa. A memória fica mais próxima do animalesco, não da civilização. Em Da saudosa distância, podemos perceber que através da memória o ser acessa nitidamente a diferença entre a vida/realidade/verdade e o não-vivo/irreal/falso: Agora Maria acaba de me telefonar do Rio. Não era a voz dela. Havia algo de mecânico, de metálico, de inumano naquela voz, como se fora a voz de uma maria- robô. Faltava-lhe esse calor humano que só a presença animal de uma pessoa nos pode transmitir... e que faz com que qualquer mentira tenha tanta verdade! (QUINTANA, 2005, p.335, Da saudosa distância) Compete-nos lembrar de que a mentira não é vista como danosa pelos quintanares; muito pelo contrário, ela é pró-vida/realidade/verdade, porque a mentira pode ser criação, possibilidade de acontecimento interior: "A mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer." (QUINTANA, 2005, p.178, Mentira). Nos Quintanares, o termo mentira não é o mesmo que inverdade. Em Mario Quintana, mentira é sinônimo de ficção: "Como é difícil, como é difícil, Beatriz, escrever uma/ carta.../ Antes escrever os Lusíadas!/ Com uma carta pode acontecer/ Que qualquer mentira venha a ser verdade...[...]" (QUINTANA, 2005, p.458, Carta desesperada). 133 A mentira não planeja suplantar a vida/realidade/verdade, ela planeja participar, interagir. O que Da saudosa distância nos apresenta com a figura de "maria-robô" é diferente da mentira, é um elemento que não deseja participar da vida/realidade/verdade, mas que deseja suplantá-la. Maria-robô não apresenta arestas nem possibilidade de novidade advinda da espontaneidade. Maria-robô se projeta, pretende atingir a perfeição. Seus ganhos em civilização custam a perda do animalesco. Maria-robô é símbolo do falso. Desequilibra-se o humano em Maria-robô, porque o humano exige o sentir, "Faltava-lhe esse calor [...] que faz com que qualquer mentira tenha tanta verdade!" (QUINTANA, 2005, p. 785, Criatividade). O referencial interno do indivíduo é estético, baseado no sentir e é esse referencial que delimitará sempre a esfera da vida/realidade verdade. O referencial estético dá salvo conduto para a mentira, desde que esta proporcione uma experiência legítima ao indivíduo: "E, sentados à sombra de uns olmeiros, trocaríamos falsas confidencias... cheias de sentimentos verdadeiros!" (QUINTANA, 2005, p. 609). O que o referencial estético não salvaguarda são as exterioridades que não atingem o âmago do indivíduo, que não interagem com ele, que com ele nada intercambiam o que: "[...] só a presença animal de uma pessoa nos pode transmitir...[...]" (QUINTANA, 2005, p. 785, Criatividade, grifo nosso). A vida/realidade/verdade advinda da memória engendra-se no dinamismo e no instinto do sentir, por isso recusa a apreensão definitiva e a mecanicidade. "Tudo pode sair muito mais bonito nas fotografias, mas sai muito mais verdadeiro nas pinturas." (QUINTANA, 2005, p. 320, A estranha verdade). O atributo 'estranha' de A estranha verdade indica que apesar de desejarmos uma verdade baseada nas faculdades mecânicas da fotografia, a verdade, diferentemente de nossas expectativas, manifesta-se em um processo análogo ao da pintura, onde corpo e a mente do homem são requisitados. Quando recuperamos os dois processos de apreensão de imagem, percebemos que na fotografia há a interferência mecânica, visando à apreensão definitiva e precisa. Percebemos que essa imagem tal qual apreendida pela máquina fotográfica é estática e não aceita manipulação, quer- se definitiva. Também notamos que o material onde se reproduz a imagem fotográfica, o papel, tem perecimento maior. O fotografar estabelece uma relação mais espaça, envolvem numerosos pontos de ligação: um fotógrafo, uma máquina, um filme fotográfico, um ser fotografado, o processamento da imagem por vias químicas, o papel. Convém lembrar que a técnica chamada de fotografia por Mario Quintana não é a mesma concebida em nossos dias. A estranha verdade foi publicado em 1973, a tecnologia dos 134 computadores ainda era embrionária, a fotografia colorida era obtida por meio de filtros, a impressão mais comum era a preto e branco, não existia a câmera digital. A fotografia, apesar de envolver um obturador que jogava fundamentalmente com a luminosidade, fotografia significa literalmente escrita pela luz, era, na verdade, um jogo maior de cura de imagem em uma câmara sombria, sem visibilidade nenhuma. Em 1973, as limitações de impressão eram grandes, tamanhos de papel para reprodução de imagem eram padronizados, as imagens precisam submeter aos padrões. A fotografia, mesmo nos dias atuais, por adotar a norma da definição, recusa o movimento, sob pena de obter-se uma imagem embaçada, lograda. Ao contrário da fotografia, a verdade personificada na pintura não se envolve com o mecânico, é uma atividade física, manual, baseada no jogo de fricção, de pressão do pincel sobre a superfície, jogo de movimento que precisa ser guiado pelo tato. O pintar estabelece uma relação mais estreita, envolvem menos recursos que a fotografia: uma mão, pincel e tintas, uma tela. Em geral, o processo de pintar envolve materiais mais duráveis que os da fotografia. Lembramos que as diversas técnicas de pintura datam dos tempos da pré-história e necessariamente não requer a presença do motivo a ser pintado, que pode ser recuperado via memória ou inventado. A fotografia é dependente da materialidade do ser fotografado, a pintura não exige contato direto com o exterior. A memória do pintor pode recriar e recuperar pela imaginação as nuanças de luz e o posicionamento dos motivos da pintura. A pintura possibilita a alteração do que foi observado. Além do que, seu resultado imagético não foi submetido à força a um processo de ausência de luz afim de se tornar definitiva. Essa possibilidade de alteração da imagem, manipulação ao gosto do pintor, que manobra o pincel a fim de criar o que melhor lhe apetece também se alia à criação imprevista de novas tonalidades oriundas da miscigenação das tintas, da diluição de linhas definidoras, criação causada pelo pintor, mais além de seu controle. O que A estranha verdade expressa ao atribuir verdade maior aos processos da pintura é que o referencial interno do indivíduo se rege pela capacidade de criação via estético: "Dizem eles, os pintores, que o assunto não passa de uma falta de assunto: tudo é apenas um jogo de cores e volumes. Mas eu, humanamente, continuo desconfiando que deve haver alguma diferença entre uma mulher nua e uma abóbora. (QUINTANA, 2005, p. 344, Da arte pura). Da arte pura nega a verdade advinda de qualquer técnica, "[...] jogo de cores e volumes [...]"(QUINTANA, 2005, p. 344), que não seja primariamente a técnica orgânica, "[...] eu, humanamente [...]"(QUINTANA, 2005, p. 344), do sentir, "[...] uma mulher nua [...]"(QUINTANA, 2005, p. 344). Ao comparar duas telas, um retrato e uma natureza-morta, uma mulher e uma abóbora, Mario Quintana indica que algo interfere na produção artística. Tal interferência criadora 135 presente na tela é tendenciosa, tem motivação arbitrária, humana. A volição humana não se pintaria uma mulher nua com a mesma sensação que se tem ao pintar uma abóbora. A mulher nua em Da arte pura não evoca somente o estético psicológico, mas o estético físico dos sentidos, tato, visão, olfato, paladar. Há implícita em Da arte pura que as experiências de pintar uma mulher nua ou tocá-la, visualizá-la, sentir seu cheiro, ou provar de um beijo, sejam experiências mais significativas sensorialmente, por isso mais verdadeiras do que passar pelas mesmas experiências com uma abóbora. O sentir responsabiliza-se pela criação da vida/realidade/verdade, na medida em que ele é um eixo que gira em torno da lei da equivalência estética. A lei da equivalência estética em Mario Quintana determina que duas coisas se tornam equivalentes quando se harmonizam à percepção. São os sentidos são os responsáveis por coletar informações que serão armazenadas na memória. Por esse parâmetro, mulher nua e abóbora não se equivalem, pois não se correspondem em harmonia aos sentidos humanos. Vejamos ainda outro exemplo onde os mesmos critérios são adotados: "[...] Quando digo que a lua vem andando esguia como um lírio, estou muito mais próximo da verdade do que se a comparasse a uma foice, uma gôndola, etc. [...]" (QUINTANA, 2005, p. 546, Sete variações sobre um mesmo tema, grifo nosso). Sete variações sobre um mesmo tema fala de equivalências, na parte citada entendemos que a lei de equivalência exclui foice e gôndola como correspondes da lua, porque lua & foice ou lua & gôndola não se harmonizam à percepção sensória. A lei de equivalência estética aprova como verdadeira a associação entre lua & lírio, porque os termos se correspondem aos sentidos, especificamente ao tato, à visão e ao olfato. Lua e lírio se revelam durante a noite, quando a temperatura é mais amena. A lua de cor leitosa corresponde ao branco pálido do lírio. A flor ainda proporciona aroma à percepção. Além disso, foice e gôndola são utensílios, elementos contrários à lua e lírio, que não possuem nenhuma outra utilidade humana a não ser a contemplação estética. Abóbora, foice e gôndola servem à necessidade material imediata, mais bruta: satisfação da fome, serventia instrumental, necessidade de transporte. Mulher nua, lua e lírio servem à outra necessidade, menos material, inda que imediata, mais refinada. Será mais real, mais verdadeiro aquilo que mais se aproximar do abismo, como a pedra em O poema (QUINTANA, 2005, p. 197). Irreal, falso, distante da verdade e contrário à vida será tudo aquilo que se afastar do núcleo interior, não orbitar no referencial interno do indivíduo, eixo estético, onde deve gravitar o sentido. O referencial interno do indivíduo instituidor da vida/realidade/verdade ainda pode ser verificado por oposição na figura do profeta que pode ser comparado com a figura do poeta, ambos 136 são videntes da verdade: "[...] O Profeta diz a todos: "eu vos trago a Verdade", enquanto o poeta, mais humildemente, limita-se a dizer a cada um: 'eu te trago a minha verdade." (QUINTANA, 2005, p. 342, Carta). O Profeta (QUINTANA, 2005, p. 342; 397; 449, 460; 467; 514; 552) às vezes é substituída pelo Arcanjo (QUINTANA, 2005, p. 100; 292; 800), são figuras que se prestam a representação irônica e crítica da mensagem ou dos mensageiros. Profeta e Arcanjo se diferenciam ainda de outra figura de mensageiro, a do Anjo que, quando não seguido de epíteto, que frequentemente equivale a poeta (QUINTANA, 2005, p. 342; 345; 485; 902; 923). Em Carta, a diferença essencial entre esses mensageiros reside no pronome possessivo 'meu/minha'. Desse pronome não devemos inferir que a voz lírica defenda o pensamento mais superficial de que cada ser, inclusive o poeta tem uma verdade tão válida como a dos demais seres humanos. Dizer que cada ser teria a verdade plena seria o mesmo que dizer que tudo é válido e a favor da vida, que tudo é real e verdadeiro, como temos estudado até o momento, esse pensamento não se sustenta. Existe a inverdade que prega a imobilidade com seus contornos delineados para todos. De acordo com Quintana, isso não representa a vida. É mais adequado interpretar o pronome possessivo como indicativo de que a verdade defendida pelo poeta é fundada a partir da experiência própria, interna, a verdade do poeta vem de dentro para fora. Atentemos que Profeta e poeta são grafados de formas distintas em Carta, isto é, profeta é marcado com inicial maiúscula. A intenção expressiva com o pê maiúsculo é irônica. Na medida em que se desenha o Profeta como mensageiro revestido de autoridade e portador de uma verdade, destrói-se essa imagem com o pê minúsculo do poeta, figura que se assume menor, sem autoridade, mas portador de uma verdade maior. Nesse caso, a verdade do poeta é maior porque ele a conhece, enquanto que a mensagem do Profeta não parte de seu interior, é externa, produzida por outrem. Assim, a voz lírica abre o questionamento acerca de qual mensagem é mais digna de crédito, a mensagem do Profeta, não possuída por ele, não intimamente ligada a ele, que não parte de seu próprio referencial interior, ou a mensagem do poeta, posse própria, intimamente produzida e provada, experiência que parte de seu próprio referencial interior. O profeta tem visões que não são suas e sobre um futuro alheio. A cultura popular, embasada na tradição judaico-cristã, tende a ver o profeta como mensageiro do deus Eu-Sou. A mensagem proferida pelo profeta é de origem superior, única, exata, de certo desfecho, um fato, marcada pela gravidade e pela maturidade da enunciação. Geralmente as 137 mensagens dos profetas demanda alteração comportamental que deverá ser cumprido, sob pena de punição frequentemente adendo nas mensagens proféticas. Mesmo quando tratam de boas-novas, elas trazem alguma relação com o trágico. Ao contrastar profeta e poeta, Mario Quintana ironiza as mensagens do primeiro, que possui voz "[...] bramidora e cava [...]" (QUINTANA, 2005, p. 461). "[...] tempestuosa [...]" (QUINTANA, 2005, p. 496), diferente da voz do poeta, que é "[...] um fluir de pura fonte oculta [...]"(QUINTANA, 2005, p. 461). A mensagem do poeta é branda, orgânica; constata o comportamento, não pede alteração; diz da relatividade, não de uma palavra-lei, que não poderá ser alterada. Anteriormente (BARATA, 2010), vimos que o humor em Mario Quintana não é satírico, mas concebe seu trabalho pelo humour43. O problema que coloca Quintana na verdade do Profeta é que ela não admite ter sido criada, inventada, produzida pelo próprio indivíduo a partir de suas próprias experiências internas e sensíveis, isto é, ficção, mas não por isso irrealidade. Mais agudamente, o trabalho do poeta, diz Quintana, é quase o mesmo da função do poeta, que é dar expressão à beleza, que é a vida/realidade/verdade, por meio das palavras: Para os homens, que eram cegos, Tu querias, Profeta, dizer a Verdade E os olhos dos homens iluminaram-se de êxtase: As tuas palavras estavam cobertas, ajaezadas, Como esses cadáveres floridos de algas e espumas que as dragas levantam do fundo do abismo... Tu quiseste dizer a Verdade e disseste a Beleza! E choraste. Mas os anjos sorriam-te... Porque a Beleza é a forma angélica da Verdade. (QUINTANA, 2005, p. 450, O profeta) Vemos em O profeta que há muito pouca distinção entre papel do poeta e do profeta, a distinção, como já dissemos, reside em assumir ou não a palavra como criação sensível sua, múltipla, não fixa. Em O profeta, a voz lírica conta de um ser frustrado por não ter atingido a verdade, não porque a verdade não exista, mas porque ela não é singular, única. A voz lírica consola o Profeta, dizendo que ele conseguiu, sim, atingir a verdade/realidade, uma vez que ele conseguiu atingir a beleza que é uma forma da verdade. No entanto, precisamos admitir que nesse poema a 43 "A comicidade do humour acontece quando o indivíduo toma para si, adiciona a si o que é risível do outro. Dessa maneira, aquele que ri através do humour ri do outro e ri de si mesmo." (BARATA, 2010, p. 131). O humour exige pé de igualdade entre aquele que rir e aquele de quem se ri. Aquele que rir não se considera melhor do que aquele de quem se ri. 138 verdade é carente do pronome possessivo ‘meu/minha’, presente em Carta (QUINTANA, 2005, p. 342). Para evidenciar que a verdade foi descoberta no próprio interior do profeta, a voz lírica expõe: "[...] As tuas palavras estavam cobertas, ajaezadas, / Como esses cadáveres floridos de algas e espumas que/ as dragas levantam do fundo do abismo..." (QUINTANA, 2005, p. 450, O profeta). Ou seja, o profeta arma as palavras que tira de si para o movimento, como quem prepara um cavalo para cavalgadura; a armação das palavras do Profeta é ornada, assim como os jaezes são arreios ornamentados. Mais uma vez um quintanar remete a palavra abismo: "cadáveres [...] que/as dragas levantam do fundo do abismo." (QUINTANA, 2005, p. 450, O profeta). O Profeta agiu como uma a draga, recuperando coisas antes imersas. O profeta ornou o que ele foi achando pelas suas pronfundezas em direção.palavra. A palavra do poeta trouxe à luz coisas que estavam inativas e mortas em direção ao movimento, devolvendo-lhes vida. Duas outras palavras chamam atenção em O profeta: cegos, no primeiro verso e iluminaram- se, no terceiro verso. Tal atenção se dá porque essas figuras reaparecem em outro poema, Carrossel: A coisa mais impressionante que existe são os olhos dos cavalos de carrossel, olhos que parecem estar gritando "avante!" - enquanto eles, nos altibaixos do galope, jamais podem sair do mesmo círculo. Já ouvi dizer que as tribos primitivas vazavam os olhos dos poetas... Também deviam ser assim os olhos dos Profetas, porque a sua luz não era deste mundo. E aos homens assustava-os a beleza e a verdade. Ah, meus pobres cavalinhos de pau que acabo de encontrar parados no parque deserto.., será que fiz um comício? Não há de ser nada... Em todo caso, do modo como falei, dir-se-ia que a beleza e a verdade são as duas faces da mesma moeda. Nada disso: elas são a mesma moeda. Tanto assim que, quando o sábio joga cara ou coroa, encontra a beleza e, quando o poeta joga cara ou coroa, encontra a verdade. (QUINTANA, 2005, p. 509). O carrossel um brinquedo feito de cavalos esculpidos para simular o trote. O movimento dos cavalos do carrossel é circularmente ritmado, retorna continuamente ao ponto onde iniciou seu trajeto. Os "altibaixos" de seu movimento circular evocam os movimentos da roda da fortuna44. A simbologia estabelecida no início de Carrossel é a de avanço, mesmo no retorno e nas alterações entre as posições do alto e baixo. Os olhos do cavalo do carrossel expressam persistência, olhos que irradiam um conhecimento não pertencente ao seu exterior. Os olhos do poeta e do Profeta são também como os 44 A roda da fortuna (CIRLOT, 1971, p. 372) expressa o equilíbrio de forças contrárias e alude ao mistério que há em todas as coisas. 139 do cavalo de carrossel: olhos como lanternas que prosseguem em avanço contínuo, iluminados pelo desejo curioso no interior de seu caminho, que nunca é para fora de seu eixo, mas para frente e para dentro. Avançar é o processo do Profeta e do poeta. Enquanto o primeiro avança em direção ao futuro, o segundo retorna ao passado. Enquanto o profeta utiliza a receita para descobrir a verdade, o poeta usa o mesmo procedimento para encontrar a beleza. Mas como a beleza é um tipo de verdade, podendo ambas se equivaler, tanto o profeta acaba por encontrar a beleza em sua busca pela verdade, como o poeta termina por encontrar a verdade. A menção da voz lírica acerca de poetas que tinham seus olhos vazados não é gratuita, ela entra em consonância com o "[...] Assassinemos o poeta [...]" de O poema (QUINTANA, 2005, p. 197). Há nesses poemas todos uma indicação de perda da visão exterior e ganho de uma visão interior. Procura-se iluminar o que está dentro do indivíduo. E não importa se nesse referencial interno do sujeito as coisas mais apartadas se encontrem como em um sonho: "[...] E é um sonho louco este nosso mundo..."(QUINTANA, 2005, p. 601, Os degraus); "A vida? Pode ser que seja um sonho. [...]" (QUINTANA, 2005, p. 327, A vida é um sonho). Isso só nos leva a assumir a realidade enquanto sonho. É a realidade que se submete às estruturas do sonho, não o oposto. Quando nos depararmos com expressões como "[...] A verdade do mundo poético não tem de dar satisfações à verdade do mundo real [...]", como no texto abaixo: Certa noite confidenciei com um homem sensível num daqueles saudosos cafés da volta do Mercado. Aliás, sempre nos encontrávamos com agrado da minha parte, porque ele era poeta mas inteligente, e suas libações não o tornavam monótono ou repetitivo. Seus sonetos me pareciam bons, tinham até um quê de clássico. Compusera um deles em memória de seu filho único, morto na flor da mocidade. Foi naquela noite que ele o recitou para mim, enquanto as lágrimas lhe corriam pelas faces. E aconteceu que, Tempos depois, numa espera de bonde, um jovem que estava fazendo o serviço militar apresentou-se como filho daquele angustiado poeta amigo. Senti-me ilaqueado em minha boa-fé, como vulgarmente se diz, e, na primeira vez que encontrei o poeta, fui logo dizendo: – Mas Oscar! Como é que tiveste a coragem de me impingires aquele soneto em memória de teu filho vivo? E ele, com toda a sinceridade: - Era pra que se morresse... A resposta, como se vê, foi num estilo nada clássico... mas que mundos e fundos havia nela! A verdade do mundo poético não tem de dar satisfações à verdade do mundo real - eis aí uma tese a defender. Mas fique o leitor descansado: eu não pretendo provar coisa nenhuma... Estou modestamente fazendo uma afirmação. (QUINTANA, 2005, p. 294, O filho morto) 140 Em O filho morto podemos apreender algumas concepções estéticas de Quintana. A primeira delas é que afirmações não são provas da verdade. Quando o poema afirma algo ele não se quer dono da verdade universal. O poema também indica a existência de dois mundos aparentemente distintos, o mundo poético e o mundo real. Esses mundos terminariam por se cruzar, percebemos isso na existência de um filho morto transformado em versos e na existência do mesmo filho vivo em serviço militar. Esses mundos seriam regidos por fatores próprios. No entanto, a única coisa que pode ser dita Em O filho morto é apenas que mundo da criação não se submete ao mundo factual. É possível se vivenciar mimeticamente a morte de um filho pela imaginação, mesmo que ele esteja em são e salvo. Se procuramos mais além em outros poemas, perceberemos que as duas realidades são uma só. Uma conhece a outra/conhece a si mesma, sem a necessidade de explicações uma a outra. Podemos confirmar esse apontamento em E por falar nisso: Depois do caso anterior, que pertence à realidade imaginária, lembrei-me de outro pertencente à realidade propriamente dita, ocorrido neste mundo onde estás lendo este livro. Acontece que escrevi um soneto que assim principiava: "Como essas coisas que não valem nada e parecem guardadas sem motivo (alguma folha seca, uma taça quebrada...), eu só tenho um valor estimativo." Pura afetação de modéstia, dirias... Mas tive a modéstia de mostrá-lo um dia a Cecília Meireles. Ora, minha amiga implicava com os "como" em poesia; dizia ela que a comparação dividia um verso em duas partes, ficando a realidade à esquerda e a sua aura poética à direita, quando ambas deviam estar fundidas. Pois bem, o meu soneto ainda tinha o agravante de ostentar o "como" logo no princípio. De modo que Cecília sorriu e comentou: – Mario, aonde é que você vai parar com esse regime alimentício, comendo folhas secas, taças quebradas, coisas assim...? Resultado: jamais publiquei o tal soneto, que aliás não era lá essas coisas e deve estar dormindo um merecido sono nos arquivos do Correio do Povo. (QUINTANA, 2005, p.687) O tom jocoso de E por falar nisso nos diz da necessidade de não separamos a criação poética dos fatores externos, mas antes aproveitá-los. A palavra “como” é múltipla e sua polissemia no mundo não pode passar despercebida na criação poética. “Como” pode ser utilizada enquanto comparativo, mas também como conjugação da primeira pessoa para o verbo comer no presente do indicativo, coisa que o poeta Quintana, enquanto voz lírica do próprio poema confidencia. Tantos outros poemas se ajuntam na obra quintaniana para ressaltar a indivisibilidade da imaginação e da realidade, como podemos ler em A cor do invisível: Certo autor famoso dividiu um livro seu em duas partes: na primeira, Contos reais; na segunda, contos fantásticos. Resultado: tem-se a frustrada impressão de que 141 ficou cada uma das partes amputada da outra, quando na realidade os dois mundos convivem. Por que chamar de invisível ou fantástico a esse mundo que por enquanto não conseguimos apreender, em contraposição a este mundo que está na cara - este mundo de que faz parte a esferográfica com que vou abrindo caminho pelo papel como um esquiador sobre o gelo? Este é o mundo que se vê... e no entanto pertence ao mesmo mundo espiritual que está movendo a minha mão. [...] (QUINTANA, 2005, p. 681, A cor do invisível) É com base nessas resoluções inerentes à obra de Mario Quintana como um todo constante que assumimos a premissa de que um quintanar, quando discorre metalinguisticamente sobre si, estará necessariamente discorrendo sobre a vida/realidade/verdade múltipla, visto que o poema não é realidade objetiva, nem realidade subjetiva, mas as duas. Sobre a formação da realidade de acordo com a percepção do tempo e sua armazenagem, isto é, a memória, a História se destaca dentre as várias áreas do conhecimento humano, ocupando- se em investigar e analisar o agir do homem no tempo. Os estudos da História têm se voltado para explicações sucessivas e consecutivas, de causas e efeitos. O estudo da própria História tem se mostrado pouco fiável quando as configurações do mundo se explicam por uma causa. Jacques Le Goff (2003, p. 20) nos adverte a desconfiar de causas únicas e originais. A percepção do tempo não deveria /ambicionar uma memória integral, acabada e perfeita (LE GOFF, 2003, p. 85). O darwinismo ou a memória eletrônica são apenas uma mostra de que há estruturas diferentes da memória. A memória nervosa, ou cerebral (LE GOFF, 2003, p. 85) diferencia-se de todas. A apreensão do tempo exclusivamente pelo sujeito individual não mais se sustenta, assim como não se sustenta visões explicativas que tornam a História um gênero literário. Para Le Goff, a memória coletiva é mais que um ganho recente, é mais que uma conquista. A memória coletiva é um objeto de poder (LE GOFF, 2003, p. 470) que deve ser utilizado para a libertação do homem, não para sua servidão (LE GOFF, p. 471). Para Maurice Halbwachs (2003), lembramos porque o outro nos ativa a memória. A memória coletiva insere o sujeito em uma malha social de vivência partilhadas ou não. Rememoramos aquilo que foi vivenciado pela relação em dada situação. É assim que o poema vai se configurar como um puzzle, em busca de respostas, tantas quanto forem possíveis; resposta aos enigmas, defesa contra esfinges. O poeta parte em direções de análises múltiplas do meio que o cerca, meio social, que vai de uma impressão após o encontro com um amigo em uma esquina até à crítica de uma notícia publicada no jornal. É função do poeta desdobrar seu foco de análise em prismas infinitos. Isso, claro, entrará em oposição à toda concepção mundo fechada. Se a realidade se quer acabada e definitiva, constituindo-se na memória única enquanto percepção de um tempo inquestionável; o trabalho do 142 poeta é enlouquecer a memória, isto é, imaginar causas e conclusões diferentes daqueles tidos como únicos. Imaginação e invenção, criação e poesia se tornam termos antagônicos à verdade instituída: “A imaginação é a memória que enlouqueceu.” (QUINTANA, 2005, p. 281, Imaginação...). A memória enlouquecida pode continuar sendo lúcida, mas, certamente, não será mais consciente, já não compartilhará dos mesmos arcabouços de ideias fixadas por um determinado grupo. Tais instâncias sociais em retaliação podem tentar desautorizar o discurso do poeta, classificando-o como desatinado e perigoso; como podemos ler em Com espanto: “Leio, com espanto, que uma senhora granfa, em depoimento contra o marido, afirma que este costumava conviver com poetas...” (QUINTANA, 2005, p. 812). Se a memória se quer imutável, única, inquestionável, compete ao poeta lançar sobre o olhar do outro inocência e perversidade, o fugido e o incessante, lucidez e dispersão, a unicidade e a diversidade, como podemos ver em O poeta canta a sim mesmo: O poeta canta a si mesmo porque nele é que os olhos das amadas têm esse brilho a um tempo inocente e perverso... O poeta canta a si mesmo porque num seu único verso pende - lúcida, amarga uma gota fugida a esse mar incessante do tempo... Porque o seu coração é uma porta batendo a todos os ventos do universo. Porque além de si mesmo ele não sabe nada ou que Deus por nascer está tentando agora ansiosamente respirar neste seu pobre ritmo disperso! O poeta canta a si mesmo porque de si mesmo é diverso. (QUINTANA, 2005, p. 488) O poema acima pertence ao livro Esconderijos do Tempo, que se inicia com uma epígrafe do próprio Mario Quintana, sete anos mais antiga, oriunda de Caderno H: “Um velho relógio de parede/ numa fotografia/ – está parado?” (QUINTANA, 2005, p. 467). Convém atentar para o título do livro onde o poema é encontrado, para a epígrafe deste livro e para o título do próprio poema e do livro no qual ele está contido. É possível se pensar o título do livro como apresentação sintética do seu conteúdo; ainda mais quando se trata de um livro de poemas: através da poesia, o signo já simbólico sofre tratamento para nova representação. 143 Temos no título do livro dois substantivos, ambos escritos com letras maiúsculas. A primeira palavra, ‘Esconderijos’, pode ter sido grafada com a inicial maiúscula por ser apenas letra inicial ou como sinal de deferência em virtude da individualização simbólica do substantivo. Entretanto, a segunda palavra, ‘Tempo’ também está grafada em maiúscula. Tendemos a crer que a escolha de maiúsculas para os nomes do título não é aleatória, haja vista que a obra quintaniana tem apreço pelo Simbolismo e por outras linguagens simbólicas como a de Federico Fellini (1920-1993). Dessa forma, as palavras que nomeiam o livro implicam na observação isolada de dois símbolos poéticos que representará dois conceitos, espaço e tempo, como duas entidades: Espaço e Tempo. Assim sendo, as palavras não são mera representação direta de noções funcionais das ideias convencionais de ‘esconderijo’ ou de ‘tempo’; são representações mais apuradas. Essas palavras representam questionamentos, convite ao pensamento acerca das acepções de um esconderijo e dá natureza do tempo. Mas indispensavelmente, o título da obra é polissêmico, estabelece leituras possíveis, pelo menos três: 1) a de que o tempo tem lugares onde ele se abriga para se proteger de alguma coisa; 2) a de que há lugares onde coisas/seres se escondem da ação do tempo; 3) também a de que o tempo esconde pertences seus em alguns lugares. Um esconderijo é necessariamente um canto, “lugar onde alguém se esconde ou esconde algo.” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1207). A principal característica desse tipo de local é seu afastamento, escolhido por estar fora da circulação física ou conjectural do algoz. É por temer prejuízo ao escondido que o canto é escolhido. Aquilo que se quer preservar num esconderijo não se quer perdido, subtraído, deseja continuar, permanecer. À leitura do esconderijo feita aqui é mais bem auxiliada por aquela feita por Gaston Bachelard (1884-1962) em A poética do espaço: Mas em primeiro lugar o canto é um refúgio que nos assegura um primeiro valor do ser: a imobilidade. A imobilidade irradia-se. O canto é uma espécie de meia-caixa, metade paredes metade porta. [...] Então, do fundo de seu canto, o sonhador recorda todos os objetos de solidão, os objetos que são lembranças de solidão e que são traídos unicamente pelo esquecimento, abandonados num canto. (BACHELARD, 2008, p. 146, 151, grifo nosso) Na tentativa de complementar o pensamento que se pretende aqui, retoma-se também o entendimento sobre o tempo conforme a contribuição de Alfredo Bosi (1936-) em O ser e o tempo da poesia: Vejo, nesta altura, o texto como uma produção multiplanamente constituída por vários tempos: a) os tempos descontínuos, díspares, rotos, da experiência histórico-social, presentes no ponto de vista cultural e ideológico que tece a trama de valores do poema; 144 b) o tempo relâmpago da figura que traz à palavra o mundo-da-vida sob as espécies concretas da singularidade; c) o tempo ondeante ou cíclico da expressão sonora e ritmada, tempo corporal do pathos, inerente a todo discurso. Nesse encontro de tempos heterogêneos dá-se a produção do poema. E dá-se, em outro momento de convergência, a sua reprodução pelo leitor para quem o ritmo, a figura e os sentidos historicizáveis devem se fundir na hora difícil da interpretação. [...] Só é possível ler o poema como um todo espácio-temporal por causa da forma coesa que recebe o conjunto dos significantes. (BOSI, p. 123 - 124) Se considero a poesia mítica em função do sentimento do tempo, vejo que nela se opera um circuito fechado: a evocação é um movimento da alma que vai do presente do ‘eu’ lírico para o pretérito, e daí retorna, presentificado, ao tempo de quem enuncia. (BOSI, 158, grifo do autor) Das contribuições de Bachelard e Bosi, abstraímos a densidade da proposição quintaniana em Esconderijos do Tempo. Há de ser levado em conta que o tempo, tal qual aparece no título, quer- se lido através de sua pletora de significados, resumidos na compreensão de dinâmica: não existe tempo sem movimento, da mesma forma que não existe esconderijo movediço. O tempo é a duração dos movimentos45 com os quais o ser humano se relaciona. Nos quintanares o tempo se quer atado, interligado: “Essas duas tresloucadas, a Saudade e a Esperança, vivem ambas na casa do Presente, quando deviam estar, é lógico, uma na casa do Passado e a outra na do Futuro. Quanto ao Presente - ah! -, esse nunca está em casa.” (QUINTANA, 2005, p. 310). Esconderijos é palavra plural não só por se tratar de espaços distintos, mas também porque o mesmo espaço é sempre outro: impermanente para se adaptar ao escondido que é mutante. O esconderijo não é imóvel, uma vez que o tempo não é imóvel. Das interpretações polissêmicas do título apresentadas a pouco, é possível se ler que o esconderijo do tempo seja o futuro, marcado na poética quintaniana através da imagética da esperança; algo que pode ser facilmente verificado em versos como “A loteria – ou o jogo do bicho, seu filho natural – jamais engana. Porque a gente não compra bilhete: compra esperança.” (QUINTANA, 2005, p. 510), isto é, o tempo se esconde ou esconde seus pertences no futuro, no escondemos no futuro. O caminho inverso também é possível: o tempo se esconde, esconde seus pertences e/ou nos escondemos contra a ação do tempo no pretérito. Basicamente diz-se mimético aquilo que imita. Sentido que prevaleceu no ocidente, mas não o único. A base etimológica de mimese é mimesthaí, que significa “dar expressão” (MOISÉS, 2004, p. 292). Destarte, as palavras ‘expressão’, ‘expressar’ e ‘exprimir’ denotam o sentido de manifestação mental mediada. O meio da expressão pode ser a palavra, o gesto ou a atitude (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1289; 1290). A mimese, portanto, requer um referencial e um meio. 45“mudança de um corpo (ou parte de um corpo) de um lugar (ou posição) para outro; deslocação.” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1207) 145 Dizemos que Esconderijos do Tempo é um trabalho mimético, porque Mario Quintana parte de referenciais: espaço e tempo. Um livro poético que versa sobre a temática espaço-tempo não visa mecanicamente copiá-los. Como já atentara Aristóteles (2005, p. 20), o artista age sobre seu referencial, pode melhorá-lo, piorá-lo, ou até mesmo tentar reproduzi-lo o mais fielmente possível; a arte é sempre recriação de um referencial real (ARISTOTLE, 2001, p, 239). Essa recriação requer objeto, maneira e meio (ARISTÓTELES, 2005, p. 19; 21). Em Esconderijos do Tempo, Mario Quintana elenca espaço e tempo como seu objeto, vinculação do espaço ao tempo como a maneira que seu objeto se configura e a poesia como meio. Sendo o tema da realidade um assunto fértil – por vezes, controverso, difícil porque denso – poder-se-ia problematizá-lo mais. Poder-se-ia inclusive questionar seu conceito e até mesmo negá- lo, como o fizeram o pintor René Magritte (1898-1967) e o filósofo Jean Baudrillard (1929-2007) e, mais recentemente Abbas Kiarostami46 (1940-) em Copie Conforme (2010). Meta possível, mas além do alcance do nosso estudo. Não pertence a este trabalho o interesse de resolver o problema do real, da existência das coisas. A preocupação aqui é a de partir de que existe uma realidade, percebida pelo homem como tangível e/ou factual, subordinada ao conhecimento disponível ao gênero humano que não é o mesmo em épocas diferentes, uma dessas formas de conhecimento é a poesia. Cada período tem uma forma diferente de apreender a realidade, ou cada período tem uma realidade diferente com sua própria tentativa de apreensão. Assim como para Erich Auerbach (1892- 1957), este texto entende que há tentativas de apreender uma realidade objetiva no transcorrer dos séculos (AUERBACH, 2009, p. 483) e na medida em que muda a relação homem-realidade, também muda a representação estética desse processo: a mimesis. Logo, partimos dos mesmos princípios elucidados por Susanne Langer (1895-1985) em Sentimento e Forma (1980): “Toda obra literária bem-sucedida é inteiramente uma criação, não importando quais as realidades que serviram como seus modelos, ou quais as estipulações que embasaram sua armação. É uma ilusão de experiência." (LANGER, 2011, p. 254, grifo da autora) Esconderijos do Tempo traz poemas cujos referenciais são a memória, o tempo, e a vida em movimento. Para tanto Mario Quintana se vale do controle semiótico rígido sobre a noite, a fauna, a flora, as artes, o retrato, o amor e a morte. 46Magrit, Baudrillard e Kiarostami negam a concepção de qualquer princípio de realidade. Para eles o real e o irreal são equivalentes. Não é possível partir de um princípio de realidade. Mais a frente tentaresmo demonstrar que Mario Quintana concebe um princípio de realidade. 146 A epígrafe que apresenta o teor do livro: “Um velho relógio de parede/ numa fotografia/ – está parado?” (QUINTANA, 2005, p. 467), traz em si a figuração do tempo, estampa do movimento, através de um velho relógio de parede. A essa representação, alia-se em cotejo a concepção do estatismo, evocado pela fotografia, signo quintaniano que representa uma tentativa de apreensão do tempo e do movimento e a repercussão de tal apreensão pretérita no presente. Ora, tal questionamento lançado pela epígrafe recebe réplica na própria obra, mais especificamente no poema Os retratos: “Os antigos retratos de parede/ não conseguem ficar longo tempo abstratos./ Às vezes os seus olhos te fixam, obstinados/ porque eles nunca se desumanizam de todo. [...]” (QUINTANA, 2005, p. 486) e em Noturno: “[...] Por trás de suas barbas, no retrato da parede, o olhar do avô indaga: Para quê?” (QUINTANA, 2005, p. 483). O retrato se nega à imobilidade e ao irreal. Há algo de humano na fotografia, ela está contida no homem, pertence ao seu interior, na memória. É a memória, e com ela a imaginação (YOKOZAWA, 2000, p. 187), a responsável por trazer o passado ao presente, assim como o bilhete de loteria é o signo quintaniano responsável por trazer o futuro ao presente ou vice-versa. A fotografia requer necessariamente um observador em tempo diverso daquele capturado. Mas na relação observador-fotografia, os dois tempos distintos, passado e presente, terminam por se encontrar, indicando a possibilidade da simultaneidade dos tempos. Os retratos, portanto, é resposta crítica à exclusão da capacidade de movimento pleno do tempo. Esconderijos do Tempo fala das experiências tangíveis ao homem. Ao conjunto dessas experiências chama-se vida ou realidade. A memória é parte constituinte dessas experiências. E agora já podemos classificar duas variações dela. A primeira é uma memória atávica, enlouquecida, que propicia a iluminação humana através da recriação dos valores. A segunda é uma memória linear, reta, sem imaginação: “Linha sem imaginação.” (QUINTANA, 2005, p. 667, Linha reta). Enquanto a memória das crianças e dos poetas é o elemento responsável pela fusão do tempo, pela atemporalidade das coisas e pelo embaço das linhas que separam selvageria da civilização; a memória dos adultos, do apoético e da razão seria, portanto, o elemento responsável por separar o tempo, estabelecendo relações cronológicas e de dependência, de causa e efeito, e dicotomizando nitidamente conceitos como selvageria e civilização. A poesia se faz graças a capacidade de imaginação, memória enlouquecida que se compõe por vestígios das experiências humanas: “A poesia pura? Coisa tão impossível como a imaginação pura. Ambas se compõem de resíduos, detritos, restos de maré vazante... [...]” (QUINTANA, 2005, p. 681. Da poesia pura). É papel do poeta buscar inéditas e estranhas formas através de incríveis combinações, como podemos ler em Estufa: “Que imaginação depravada têm as orquídeas! A sua 147 contemplação escandaliza e fascina. Vivem procurando e criando inéditos coloridos, e estranhas formas, combinações incríveis, como quem procura uma volúpia nova, um sexo novo...” (QUINTANA, 2005, p. 172); isto é, tentar explicações ainda não possíveis. Poesia é escape das barreiras circunscritas pelas construções sociais: “Poesia não é a gente tentar em vão trepar pelas paredes, como se vê em tanto louco por aí: a poesia é trepar mesmo pelas paredes.” (QUINTANA, 2005, p. 279, Ressalva). 148 Figura 9: O lúcido louco Fonte: Acervo do autor 149 3 LOUCURA Até este momento, temos visto o desabrochar de vários elementos na construção estética de Mario Quintana que remetem ao orgânico, ao selvagem, ao diverso, à mistura, à interação, à mudança, à simultaneidade, à alteração, à fluidez, às relações estabelecidas pelo ser consigo e pelo ser com tudo a sua volta. Todos esses elementos apontam para a existência do múltiplo. Há sempre um vestígio de um passado interrompido, um puzzle não resolvido inteiramente, um ângulo não visto do perfil deslocado. O aprendiz de feiticeiro produz seus poemas que falam sobre si mesmos enquanto poções mágicas, fórmulas encantatórias, que raptam o leitor de uma compreensão para outra, mais alargada, porque irrestrita. Produzir a ‘feitiçaria’ do múltiplo, da memória atávica não seria necessário, nem um grande entrave se não houvesse uma força oposta ao múltiplo: o uno absoluto; isto é, aquilo que se quer regente único tanto da vida íntima, quanto da vida coletiva do sujeito. A religião, a lei, a política, e os mais diversos tipos de ideários institucionais são mecanismos que se querem reguladores da vida, que ditam os padrões de normalidade do pensar e procuram organizar o agir do sujeito com vistas ao funcionamento de uma máquina coletiva. Essas forças exercem uma métrica que não comporta a desobediência, a anormalidade, nem o contraditório. Todos esses poderes estão ancorados em um conceito chamado de razão, faculdade de juízo e compreensão dos contextos. Explica-se a necessidade da manutenção dos poderes pelo propósito a se alcançar, pela lógica da sobrevivência e do bem-estar coletivo, pela fenomenologia, pelas inquestionáveis relações de causa e efeito. Desde o Iluminismo, o delegado da razão tornou-se o método científico. O louco é uma figura importante, pois sua condição ainda aponta para a prevalência dos poderes da natureza sobre os da civilização. É pela figura do louco que o conceito civilização oposto à selvageria não consegue se firmar como absoluto. O louco sempre esteve em posição inalcançável para o controle total da sociedade. Não existe cura conhecida para a loucura. A sociedade se conforma com o estado do louco por que ele misteriosamente advém da natureza. Nos quintanares, a poesia representada pelo símbolo de feitiçaria, da fórmula encantatória, da poção mágica é ironicamente apresentada como digna de morte, porque contamina as fontes da vida e desloca os perfis (QUINTANA, 2005, p. 202, O poema). Todo aquele que bebe de poção mágica perde sua faculdade de juízo e torna-se incapaz de obedecer às leis feudais e as obrigações esperadas de seu posto social (CIRLOT, 1971, p. 261). Para a irônica voz lírica de O poema, a poesia aliena o sujeito de suas obrigações sociais. Na ironia de O poema, o que estaria sendo negado não é a existência dos perfis, mas a legitimidade de suas configurações. Ou seja: o convite 150 feito pela voz lírica, “assassinemos o poeta”, não acontece porque o poeta nega a sociedade como um todo, mas se opõe contra as configurações atuais dela. Quando lemos em V: Eu nada entendo da questão social. Eu faço parte dela, simplesmente... E sei apenas do meu próprio mal, Que não é bem o mal de toda a gente, Nem é deste Planeta... Por sinal Que o mundo se lhe mostra indiferente! E o meu Anjo da Guarda, ele somente, É quem lê os meus versos afinal... E enquanto o mundo em torno se esbarronda, Vivo regendo estranhas contradanças No meu vago País de Trebizonda... Entre os Loucos, os Mortos e as Crianças, É lá que eu canto, numa eterna ronda, Nossos comuns desejos e esperanças!... (QUINTANA, 2005, p. 88, V) Percebemos novamente a ironia da voz lírica nos versos de V: “Eu sei apenas do meu próprio mal, / Que não é bem o mal de toda gente,”. Dizer que não reconhece as atuais configurações sociais não é o mesmo que desconhecer as configurações sociais. Nos versos de V: “Eu nada entendo da questão social. / Eu faço parte dela, simplesmente...”, Quintana confidencia a consciência de estar inserido em um dado contexto sociocultural que ele não compreende, não reconhece, não endossa. Ao contrário de se demonstrar alheio, o poeta se mostra sabedor de onde está inserido, preferindo a recusa de tal contexto para outro considerado legítimo, inserindo-se através da poesia em uma tradição que prefere analisar o homem “de todos os tempos e não apenas os de sua época” (QUINTANA, 2005, p. 742), como podemos ler em uma entrevista que o Mario Quintana concedeu a Edla Von Steen: P[ergunta]. - "Eu nada entendo da questão social. Eu faço parte dela, simplesmente..." Gostaria de comentar algo sobre a poesia de cunho social e político? R[esposta]. - A poesia engajada? Eis aí uma questão com que, em certas épocas, costumam ser assaltados os poetas. Impossível não levá-la em conta quando se pensa no que fez pela abolição da escravatura um poeta como Castro Alves. Mas querer obrigar todos a serem Castro Alves é forte. E, convenhamos, uma boa causa jamais salvou um mau poeta. Essa gente poderá fazer mais pelo povo candidatando-se a vereadores. É muito de estranhar essa campanha contra o lirismo, isto é, contra 95% da poesia de todos os tempos. Nem se pense que o poeta lírico está fora do mundo. Os sentimentos que ele canta pertencem a todo o mundo, 151 a toda a humanidade, são de todos os tempos e não apenas os de sua época independentes de quaisquer restrições de nacionalidades, raças, crenças ou partidos políticos. Se não é assim, depois de resolvidos os problemas, o que seria dos poetas? Ficariam simplesmente sem assunto. (QUINTANA, 2005, p. 742) Assim, cogitamos que a insistente aparição da figura do louco ao lado da do poeta se dá pelas semelhanças conceituais em direção ao múltiplo. Ao associar a criança, o poeta e o louco, Quintana está propondo que esse trio passe a representar a existência como misteriosa ciranda, um puzzle eterno. São três figuras indesejáveis a uma sociedade não atávica. A sociedade da razão não consegue apreender a memória do trio atávico. Criança, poeta e louco são equivalentes a figura do poeta para Platão em A República (CONFORD, 1968). O poeta é expulso da sociedade ideal porque a poesia “[...] enfrenta o enigma, ou melhor, o mistério da existência que a busca da sabedoria pelo filósofo não consegue de todo eliminar.” (VILLELA-PETIT, 2003). Enquanto o filósofo era preferível por se concentrar em aplicar à vida a equação tripla do que é simultaneamente belo-bom- justo, o trabalho do poeta se isenta do julgamento moral, definidor da justiça, e se engajava apenas no que seria bom-belo. Na tentativa de esquadrinhar o homem, a razão e seus agentes se deparam com a figura do louco e não conseguem completar um entendimento definitivo. O caminho mais curto para a manutenção do louvor da razão é a desautorização do louco enquanto portador de uma mensagem ao coletivo. Ao decidir dar voz à figura dos loucos, os quintanares parecem indicar uma fuga das configurações sociais vigentes. O que estamos tentando dizer é que o uso que Quintana faz da figura do louco análoga a do poeta se dá porque a loucura é símbolo da rejeição de valores específicos, como nos explica pode ser João Frayze-Pereira: Como diz Marcuse, pensador contemporâneo da chamada Escola de Frankfurt, ‘a fuga para a interioridade e insistência numa esfera privada podem bem servir como baluarte contra uma sociedade que administra todas as dimensões da existência humana’. Nesse sentido, se a loucura é uma experiência que selvagemente afirma a subjetividade, a imaginação, a fantasia, o louco é aquele que emerge da rede de relações de troca e dos valores de troca, retira-se da realidade da sociedade burguesa e faz sua entrada em outra dimensão de existência. Isto é, deslocando o indivíduo para fora do domínio do princípio da eficácia e da obtenção do lucro para a esfera dos recursos íntimos do homem, a loucura pode ser considerada uma força poderosa na invalidação dos mais caros valores burgueses. (FRAYZE-PEREIRA, 2008, p. 101) As figuras do louco e do poeta provém de um passado remoto e através das eras suas existências não puderam ser explicadas por uma visão única. O louco nunca foi explicado em 152 totalidade, a não ser que se queira impor uma única e absoluta perspectiva teórica. O mundo sempre se encontrou dividido em duas visões conceptuais sobre a loucura (FRAYZE-PEREIRA, 2008, p. 9): a primeira enxerga a loucura como uma forma de sabedoria; a segunda como uma falha. Essas duas visões podem se desdobrar em pelo menos outras sete teorias dominantes: 1) Um estado de perda da consciência de-si-no-mundo que condena a pessoa a existir à maneira de uma coisa. Por exemplo, ‘loucura é a perda da consciência do próprio ‘eu’. Uma pessoa chega à loucura a partir do momento em que vai perdendo a consciência de sua existência, do seu ser, do seu lugar no mundo e, vazia, se perda na realidade exterior”; ‘loucura é o estado no qual a pessoa vive quase como um vegetal e suas ações se processam ‘no escuro’. Não tendo nenhum controle de sua realidade pessoal consciente..., seu barco se desgoverna por completo’ etc. 2) Uma doença. Por exemplo: ‘ um estado físico mental, posto que o cérebro sofre danos, em que a pessoa passa a agir de forma descontroladamente agressiva, tornando-se perigosa no convívio com outras ou, o que é pior, que já não saiba mais discernir entre a realidade e seus devaneios...’; ‘ a loucura talvez seja a doença que existe há mais tempo na história dos homens’ etc. 3) Um ‘distúrbio orgânico’ ou um ‘desequilíbrio’ emocional’ do indivíduo cujo efeito é um desvio do comportamento em relação às normas sociais. 4) Distúrbios emocionais ou somáticos cuja origem é o desajustamento do indivíduo dentro da sociedade em que se encontra’. 5) Todo tipo de desvio do comportamento pessoal em relação a uma norma sancionada socialmente. O comportamento é desviante ou louco quando se afasta ‘do convencional, da rotina, das normas instituídas’. Por exemplo, ‘uma pessoa é considerada louca quando deixa de admitir e cumprir as funções, obrigações e atitudes que forma aprovadas, elaboradas e cumpridas por todos os indivíduos são de sua sociedade’ etc. 6) Um estado progressivo de ‘desligamento’ ou ‘fuga de uma realidade (‘objetiva’) para outra (‘subjetiva’) em decorrência de uma ‘insatisfação do indivíduo com o mundo normal e os problemas que nele enfrenta’. 7) Uma tomada de consciência de si e do mundo. Por exemplo: ‘loucura é a profunda tomada de autoconsciência. É a rejeição de um mundo pré-estabelecido e moldado normalmente’; ‘os loucos expressam seu verdadeiro ser. Não têm medo de demonstrar as verdades para o mundo. Os loucos são os que sabem olhar o mundo com os olhos da realidade. Por isso são reprimidos pela sociedade’ etc. (FRAYZE- PEREIRA, 2008, p. 9-10) Como podemos ver, todas essas visões dizem respeito à relação de funcionalidade que o sujeito estabelece dentro do grupo no qual está inserido. Não adotamos nenhuma dessas visões com exclusividade. Tentaremos ver como quaisquer uma delas se manifesta nos quintanares. A única guia que teremos para a leitura dos poemas é a relação sujeito-coletivo demandada pela loucura enquanto conceito. Isto é, procuramos enxergar como o louco se estabelece enquanto figura de rejeição de configurações do coletivo. 153 Observemos que os étimos da palavra consciência são de origem latina. Co, preposição latina correspondente à com, e cien, conhecimento. Ou seja, consciência é “conhecimento de alguma coisa em comum a muitas pessoas” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 806), saber compartilhado, ciência em comum. A palavra em Língua Portuguesa, no entanto, revela outras possibilidades; passando por conjunto moral de ideias, sistema de valores, coletividade de conceitos até chegar a senso íntimo, ou seja, percepção individual do ser. Assim sendo, da mesma forma que procedemos com os conceitos de atavismo e memória, continuaremos ao trabalhar também o conceito de loucura, ou seja, enquanto elemento relacional. A palavra consciência, em Português, não faz diferenciação entre conhecimento coletivo e individual, interno ou externo; mesmo quando a percepção é sobre si, esta é sempre em relação a outro ser; apontada, dirigida ao outro47. O antônimo de consciência é a palavra inconsciência, revelando que ─ por exemplo, no caso de trauma físico, quando um indivíduo se encontra desacordado ─ seu valor semântico é exclusivamente em relação ao contato com o exterior. Há ao menos quatro tipos de crença sobre a perda da consciência. A primeira delas diz respeito a um estado inconsciente, ausência temporária da consciência, sem necessariamente estar- se louco, como no caso de um acidente ou estado de coma. Depois, amparada pela leitura médica, a linguagem cotidiana utiliza termos vários, como surto, delírio, alucinação para momentos temporários de desrazão, como no caso induzido por substâncias psicoativas; o próprio Quintana lidou com o alcoolismo durante alguns anos, como é bem sabido pelos portalegrenses mais antigos. Ainda: crê-se na ausência permanente e definitiva da consciência, que seria loucura permanente, insânia, alienação, psicose (ABBAGNANO, 2007, p. 729). Finalmente, inserido em uma longa tradição, Quintana sugere que através da poesia é possível ser/estar louco e lúcido ao mesmo tempo: “A diferença entre um poeta e um louco é que o poeta sabe que é louco... Porque a poesia é uma loucura lúcida. ” (QUINTANA, 2005, p. 828, A diferença). A diferença nos sugere que no poeta colidem a capacidade de negação do coletivo, da consciência, e a afirmação da desrazão enquanto outra razão possível, outra consciência. A poesia é loucura enquanto possibilidade de outra razão. Os versos indicam que a loucura pode ser lúcida na poesia. Isso pode ser confirmado pela indicação de uma simples inversão do aforisma quintaniano. Se invertemos loucura lúcida para lucidez louca somos levados a outra compreensão, percebemos 47Em inglês, tal disposição semântica não acontece. Para representar o conhecimento do sujeito sobre sua individualidade, sua consciência de si e não para o outro, temos o substantivo consciousness. Como representação da consciência que o sujeito tem de si enquanto indivíduo inserido no coletivo, indivíduo que é para o outro, temos o substantivo conscience (OXFORD, 1990, p. 243). 154 que a lucidez pode ser louca em outras esferas. Isto é, não é porque uma consciência dominante estabeleça sua hegemonia na maioria que ela se legitime enquanto razão legitima e absoluta. Além disso, outra possibilidade de leitura que a expressão “loucura lúcida” pode nos remeter é a uma específica configuração da loucura: a loucura fingida. Mario Quintana pode estar aproveitando essa alternativa de leitura também. Ou seja, podemos estar diante de uma afirmação de que o poeta se permite a taxação de louco e age como tal, aparentemente se afastando de questões relevantes para sua sociedade, quando, na verdade, está atento ao que se passa à sua volta. Essa é uma possibilidade que não podemos excluir. O príncipe Hamlet (SHAKESPEARE, 1997, p. 1007), é um exemplo de loucura lúcida, de ser intimamente lúcido, mas que atua como externamente louco. No extremo oposto temos o rei Lear, enquanto figura da lucidez louca (SHAKESPEARE, 1997, p. 1053), lucidez desarrazoada. No meio do príncipe Hamlet e do rei Lear está Macbeth (SHAKESPEARE, 1997, p. 979), um homem comum, fissurado entre o moral e o imoral. Em Hamlet temos uma super-consciência ou uma pseudoloucura. Super-consciência porque sua observação pessoal e selvagem permitia-lhe perceber que por todos os lados seu contexto social era perigoso, e pseudo-loucura porque o príncipe percebe que se fingir de louco era a única alternativa vital. Assim, Hamlet poderia passar ileso, já que o discurso dos loucos era desautorizado. A loucura de Hamlet foi seu salvo-conduto. Mesmo assim, pretendendo loucura, Hamlet era capaz de comunicar mensagens subliminares e extremamente lúcidas. Quando Guildenstern vigiava Hamlet, o príncipe toma de flautistas passantes uma flauta barroca e entrega a Guildenstern. Hamlet pede que o vigia toque a flauta, Guildenstern responde que ele não sabe tocar flauta, ao que Hamlet responde: “Danou-se! Então, quer dizer que você acha que eu sou mais fácil de ser tocado do que uma flauta!”48 (SHAKESPEARE, 1997, p. 1032. Tradução nossa). A loucura lúcida não é novidade na literatura, Shakespeare não é o primeiro a utilizar esse artifício. O livro de 1 Samuel nos conta que o sábio rei Davi (c. 1000 a.C.) “[...] teve muito medo de Áquis, rei de Gate. Pelo que na presença deles fingiu-se doido; enquanto esteve com eles, riscava nas portas da cidade e deixava escorrer a saliva pela barba.” (BÍBLIA, 2010, p. 275). Os Cantos cípricos (c. VIII a.C.) também contam como o engenhoso Odisseu fingiu-se de louco (HERSHOKOWITZ, 2004, p. 152) para fugir de uma possível morte na guerra. Consciente de que as chances de voltar para casa depois de uma guerra eram quase nulas, Odisseu amarra um asno e um boi no mesmo arado e semeia sal no campo. Palamedes desmascara a farsa colocando a criança 48“Sblood, do you think I am easier to be played on than a pipe?” (SHAKESPEARE, 1997, p. 1032) 155 de Odisseu, Telêmaco no caminho do arado. Se Odisseu estivesse mesmo louco a criança seria despedaçada. Mas Odisseu para o arado, expondo seu estratagema; ele estava lúcido. Afora isso, a loucura sempre se estabeleceu na literatura em um espaço tenso, entre o extravio da razão e a forma mais alta de sabedoria. Por um lado, a perda da consciência foi condenada pela tradição judaico-cristã. O livro de Gênesis revela a desconcertante história do herói Ló, que se embriaga e estabelece intercurso sexual com suas filhas (BÍBLIA, 2010, p. 27). A embriaguez de Ló revela a perda do verniz do controle social e revela o instinto como guia da ação humana. Depois do código de lei estabelecido por Moisés, ele se põe como guardião da lucidez e chama seu povo de louco no capítulo trinta e dois do livro Deuteronômio (BÍBLIA, 2010, p. 198). Salomão, considerado pelos judeus como o mais sábio homem, critica duramente no livro de Provérbios (BÍBLIA, 2010, p. 573) a loucura, mas, depois, abandona suas receitas de conhecimento positivista e adota uma visão negativa da vida humana em Eclesiastes (BÍBLIA, 2010, p. 603), onde o conhecimento se configura como enfado e amargura. O livro de Marcos nos diz que às vezes o louco era visto como possesso por espíritos imundos (BÍBLIA, 2010, p. 908), doença espiritual que necessitava de cura. No outro extremo, o livro de Primeiro Coríntios aponta que toda razão humana é loucura (BÍBLIA, 2010, p. 1031; 1034). Nessa mesma tensão se estabeleceu a cultura greco-romana. A perda ou turvamento temporário da razão era denominada pela epopeia por atê (PESOTTI, 1994, p. 16), o termo mania era preferido pelos poetas trágicos (PESSOTTI, 1994, p. 19), “decretado pelos deuses” (PESOTTI, 1999, p. 16). Inclusive os próprios deuses poderiam ser afetados por estados alterados de consciência. Deméter (HINOS homéricos, 2003) torna-se melancólica, fazendo com que a vegetação e os animais parem de se reproduzir. A poesia grega clássica indica que a loucura trazida como punição causada por Hybris49. Aias, ou Ajax, recebe de Atena, sabedoria/razão divinizada, a loucura como punição por ambicionar além do que sua posição merecia. O nome do herói implica em sofrimento – ai ai é um gemido de dor – que a loucura pode causar. Somente aos deuses está permito o descomedimento, e Atena manifesta um extremo da crueldade ao punir Aias. A loucura pode ser obra da própria razão: 49Infração causada pelo descomedimento de alguma ação, análogo à noção de pecado da filosofia judaico-cristã e mulçumana, o termo é "[...] intraduzível para as linguas modernas, os gregos entenderam qualquer violão da norma da medida, ou seja, dos limites que o homem deve encontrar em suas relações com os outros homens, com a divindade e com a ordem das coisas. A injustiça nada mais é que uma forma de hybris, porque é a transgressão dos justos limites em relação aos outros homens. [...]" (ABBAGNANO, 2007, p. 604). Hybris pode ser vertido como “desmedida, excesso, violência” (DE OLIVEIRA in SÓFOCLES, 2008, p. 50) 156 ATENA: Eu o afastei – tendo atirado sobre seus olhos imagens extraviadoras – de incurável prazer e o desviei para os rebanhos [...] E eu, o barafustante homem em demente doença excitava, ativara-o para redes ruins [...] Mostrarei a ti, manifesta essa doença para que vejas e proclames a todos os argivos. Confiante, fica e não como uma desgraça recebas o homem: pois, desviado, eu impedirei que o brilho de seus olhos veja tua figura. Ei! Tu que as cativas mãos por trás com cordas amarras, chamo-te para que venhas! A Aias falo! Avança para diante das barracas! (SÓFOCLES, 2008, p. 59) A poesia grega nos apresenta o homem situado em uma esfera frágil, entre a razão e a desrazão. Ao escrever sua Oresteia, Ésquilo não se esquiva de contar da fragilidade da razão ao apresentar o matricida Orestes sendo punido pelas Erínias em Coéforas (ÉSQUILO, 2004). Medeia, por exceder os limites do ciúme humano, perde a razão e assassina seus próprios filhos para machucar seu marido (EURÍPEDES, 2009). Interessantemente, os estados alterados de consciência são desejáveis. Se não são deliberadamente procurados, e apenas à razão se presta culto, o deus também se vingará. Enquanto Atena pune Aias por não cultuar à razão, em As bacantes (EURÍPEDES, 2010), é a vez de Dionísio punir o excesso de razão do governante Penteu, que é assassinado cruelmente por sua própria mãe, Ágave. O numinoso não se configura apenas enquanto razão e lucidez: “CORIFEU: De muitas formas se reveste o divino; muitas vezes agem os deuses ao invés do que esperamos. O que esperávamos não foi cumprido; e para o inesperado a divindade descobre o caminho. Assim termina o drama.” (EURÍPEDES, 2010, p. 69). Em Fedro, Platão (2007, p. 69-81) divide a loucura em duas classes, mania, loucura indesejável, causada por fatores menos nobres e Theia Mania, que é sempre intervenção divina. Platão categoriza Mania de Theia como quatro dons valiosos. O primeiro deles, a razão, a capacidade de previsão do futuro, trazida por Apolo. A segunda mania seria o extravio da razão oriundo do rito místico e do vinho, dom de Dionísio, que seria uma espécie de recompensa ao homem, alívio do fardo de existir. A terceira mania é a inspiração poética, oriunda das Musas, filhas de Memória. Em Íon (PLATÃO, 2008, p. 33), Platão ainda assume a mesma perspectiva: “[...] o poeta é coisa leve, e alada, e sagrada, e não pode poetar até que se torne inspirado e fora de si, e a razão não esteja mais presente nele.”. A quarta mania descrita em Fedro é a faculdade sensual e afetiva, prazer físico e amor, provindo de Eros e Afrodite. É somente a partir de Hipócrates (480 a. C – 406 a. C) que os estados de consciência alterada passam da influência do nume para o desequilíbrio orgânico do corpo. Hipócrates institui a visão médica primeira, transformada e adotada pelo mundo contemporâneo. Para o médico grego, a loucura é causada pelas alterações dos humores corporais: “Enlouquecemos, como já disse no meu Tratado acerca da doença Sagrada, em função da umidade do encéfalo, no qual reside a atividade da alma.” (HIPÓCRATES, 2011, p. 65). A teoria dos humores foi desenvolvida mais tarde pelo 157 médico romano Galeno (130 – 200 d. C), que caracterizou toda loucura como lesão de áreas hipotéticas da alma (PESOTTI, 1999, p. 25), manifestando-se no sujeito ou como mania, ou melancolia. A visão de Galeno atravessa toda a Idade Média com alterações mínimas. O uso por Cesare Lombroso dos princípios científicos do atavismo para discriminar e criminalizar populações com determinados atributos físicos teve antecedentes. A Igreja Católica Apostólica Romana utilizou princípios religiosos para discriminar e marginalizar populações com determinados atributos psíquicos durante toda a Idade Média. Nesse período, a visão dominante era a de que a loucura se tratava de possessão demoníaca (PESOTTI, 1999, p. 31) e outras atividades místicas provocadas por entidades sobrenaturais (PESOTTI, 1994, p. 78). O Malleus Maleficarum, publicado em 1484 alcança grande fama na Europa e remete com frequência aos textos de Santo Agostinho e a Tomás de Aquino, misturados com a teoria dos humores de Hipócrates e Galeno. Ainda, em 1576, Hieronimus Menghius Vitellianensis (1529 – 1609) publica o Compendio dell’Arte Essorcistica, et Possibilita dele Mirabili et Stupende Operazioni delli Demoni, et de’ Malefici. Ambas as obras, foram utilizadas para perseguir e torturar os loucos, às vezes até a morte. (PESOTTI, 1994, p. 81-120). A doutrina demonista da loucura dura até a Renascença. Entre o final da Idade Média e o início da Renascença, um fenômeno peculiar começa a acontecer. O louco não era aceito, mas também não podia ser rejeitado. Embarcações começaram a transportar loucos de uma cidade a outra pelos rios europeus. Esse foi o último período ao se permitir que os loucos andassem soltos, como nos explica Michel Foucault: Mas de todas essas naves romanescas ou satíricas, a Narrenschiff é a única que teve existência real, pois eles existiram, esses barcos que levavam sua carga insana de uma cidade para outra. Os loucos tinham então uma existência facilmente errante. As cidades escorraçavam-nos de seus muros; deixava-se que corressem pelos campos distantes, quando não eram confiados a grupos de mercadores e peregrinos. (FOUCAULT, 2008, p. 9) Sebastian Brant (1458 – 1521) publica A nau dos insensatos (1494) e inaugura uma longa tradição entre barcos e loucos na literatura e em outros campos intelectuais. Na pintura, por exemplo, Hieronymus Bosch (c. 1450 – 1516 d.C.) pinta A nave dos loucos (1490-1500). Na obra de Brant, bem como na de Bosch, há uma inversão de valores. Brant retira da nave dos loucos os ditos realmente loucos e põe dentro dela os representantes das esferas do poder e da razão. Em A nau dos insensatos a ironia é lançada como crítica ao apego das coisas terrenas e aos prazeres do mundo. Brant satiriza também as esferas financeiros, acusando-lhes de grosseria intelectual e descomedimento. No capítulo Dos livros inúteis, por exemplo, o burguês é satirizado por ostentar 158 uma forma de saber vazio: “Eu tenho muitos livros, assim como ele, e pouco os leio. Por que eu haveria de dar tratos à bola e esforçar-me por aprender e ganhar conhecimento? Ora, quem muito estuda torna-se lunático.” (BRANT, 2010, p. 27). Os diagnósticos eclesiásticos da demonização do louco representavam a parte controladora da sociedade, em breve essa força de controle se reconfiguraria e os diagnósticos passariam as mãos da medicina quase que exclusivamente. No entanto, a Renascença era um período de transição para o louco. O advento do humanismo passou a enxergar a loucura como parte da natureza humana. Em 1509, Desidério Erasmo, ou Erasmo de Roterdã publica a sátira Elogio da Loucura, obra que mais bem representa a visão de mundo daquele período. Nessa obra, somente o homem simples, que vive sem expectativas e ilusões pode ter uma existência digna. Todas as outras atividades dos homens e seus anseios são filhos da loucura. Desidério Erasmo personifica a loucura e dá a ela uma voz orgulhosa, em monólogo que frequentemente questiona o leitor acerca dos benefícios da razão: Em primeiro lugar, se a prudência consiste na experiência, quem merece mais o título de prudente: o sábio que o temor ou a vergonha impedem de empreender alguma coisa, ou o louco que, não tendo vergonha e jamais vendo o perigo, empreende ousadamente tudo o que lhe passa pela cabeça? O sábio, como o nariz sempre colado nos livros dos antigos, aprende apenas palavras sutilmente combinadas; o louco, ao contrário, exposto constantemente a todos os caprichos da fortuna, aprende em meio aos revezes, penso eu, a conhecer a verdadeira prudência. Homero, por mais cego que fosse, percebeu isso muito bem quando disse: O louco aprende a ser sábio à sua própria custa. Pois há duas coisas, sobretudo, que impedem o homem de chegar a conhecer bem as coisas: a vergonha que ofusca sua alma, e o temor que lhe mostra o perigo e o desvia de empreender grandes ações. Ora, a loucura nos livra maravilhosamente dessas duas coisas. (ERASMO, 2006, p. 41, grifo do autor). Na língua portuguesa temos uma obra que se torna popular no período. Temos Gil Vicente (c. 1465 —1536 d.C) em Auto da barca do inferno (1517), que também dá voz a loucura para criticar sua configuração social vigente. Enquanto as esferas do poder se encontravam corrompidas, por negligenciar a razão, Vicente utiliza o louco enquanto peça neutra, que se benefício não traz à sociedade, mal nenhum também não traz: PARVO: Hou da Barca! ANJO: Tu, que queres? PARVO: Quereis me passar além? ANJO: Quem és tu? PARVO: Não sou ninguém. ANJO: Tu passarás se quiseres; Porque sem todos seus fazeres Por malícia não errastes. Tua simpleza te baste 159 Para gozar dos prazeres (VICENTE, 2008, p. 80-81) Entretanto, o humanismo não foi capaz de salvar a figura do louco, que continua sendo um porta- voz mudo para sua sociedade. Apesar dos prolíficos trabalhos em torno da loucura que, de uma forma ou de outra, caracteriza todas as ambições humanas; o discurso do louco era bem-vindo apenas em dados contextos, mas sua verdade era desautorizada na hora da tomada de decisões definitivas para o coletivo. Vejamos o que nos elucida Foucault sobre a tradição humanista acerca da loucura: De outro lado, com Brant, Erasmo e toda a tradição humanista, a loucura é considerada no universo do discurso. Aí ela se apura, torna-se mais sutil e também se desarma. Muda de escala; ela nasce no coração dos homens, organiza e desorganiza sua conduta [...] mas seu império será sempre mesquinho e relativo, pois ela se revela em sua medíocre verdade aos olhos do sábio. Para este, ela se torna objeto, e do pior modo, pois se torna objeto de seu riso. (FOUCAULT, 2008, p. 28) Os ponteiros do relógio correm em direção a Idade das Luzes e vamos encontrar o louco já sem nenhuma verdade. A passageira liberdade que ele tivera na Renascença é tolhida. As casas de saúdes mentais são agora as novas forças de controle social, as novas instituições de poder. O controle do ser louco passa da Igreja para a ciência. Estamos no império da razão soberana. O iluminismo e o cartesianismo se instituem como delegados da verdade. Essa modificação sobre a visão do louco que se quer definitiva gerará respostas algum tempo depois. Escritores como Edgar Alan Poe decidem retomar a tradição que localiza em uma zona fronteiriça e neutra da verdade. Em 1845, Poe (1984, pp. 699-716) publica o irônico conto O sistema do Dr. Tarr e do professor Fether, onde lemos sobre uma casa de saúde onde os internos sequestram os funcionários da casa, trocando de lugar com eles, que passam a ser os terapeutas dos supostamente sãos. Os que visitam a casa de saúde mental não percebem que houve alteração nas configurações da instituição. No Brasil, Machado de Assis, que era leitor e tradutor de Poe, publica O alienista em 1881. A história do brasileiro é original, mas revela muita proximidade com o conto de Poe. Um alienista chamado Simão Bacamarte volta à sua pequena cidade, Itaguaí, e funda um hospício, onde ele começa a internar praticamente todas as pessoas da cidade, que sua autoridade médica diagnosticou como portadores de distúrbios mentais. No fim do conto de Machado de Assis, todos os internos são liberados, e o médico internado no lugar deles. O texto do escritor carioca é uma crítica aberta aos 160 parâmetros que se querem único para analisar a loucura: “Se um homem era avaro ou pródigo ia do mesmo modo para a Casa Verde; daí a alegação de que não havia regra para a completa sanidade mental. (ASSIS, 2011, p. 68). Diz Michel Foucault que “A loucura fascina porque é um saber. (FOUCAULT, 2008, p. 20) e é assim que vemos tantos outros escritores mundo afora trabalhando a figura do louco. O fascínio da loucura pausa os tempos e os espaços, suscita dúvidas, questiona o saber e requere reexame sobre a causa. Em A doida, um dos textos Contos de aprendiz (1951) Carlos Drummond narra a história de um menino que entra em uma propriedade para machucar a dona, uma velha louca. No entanto, as intenções do menino são pausadas pelo apelo do mistério imanente da loucura: “Com o ar fino veio uma decisão. Não deixaria a mulher para chamar ninguém. Sabia que não poderia fazer nada para ajudá-la, a não ser sentar-se à beira da cama, pegar-lhe nas mãos e esperar o que ia acontecer.” (ANDRADE, 2007, p. 44). Em Felicidade Clandestina (1971); Clarice Lispector também suspende a razão como régua, desconsiderando o julgamento moral sobre o home. Lispector consegue costurar o mistério que há na desrazão, a ignorância, outro tipo de memória, rastros atávicos, a selva ancestral e o instinto primitivo no conto A criada: Os olhos castanhos eram intraduzíveis, sem correspondência com o conjunto do rosto. [...] Voltava, não se pode dizer mais rica, porém mais garantida depois de ter bebido em não se sabe que fonte. O que se sabe é que a fonte devia ser antiga e pura. Sim, havia profundeza nela. [...] É possível que, se alguém prosseguisse mais, encontrasse, depois de andar léguas nas trevas, um indício de caminho, guiado talvez por um bater de asas, por algum rastro de bicho. E – de repente – a floresta. Ah, então devia ser esse o seu mistério: ela descobrira um atalho para a floresta. Decerto nas suas ausências era para lá que ia. Regressando com os olhos cheios de brandura e ignorância, olhos completos. Ignorância tão vasta que nela caberia e se perderia toda a sabedoria do mundo. [...] Assim era Eremita. Que se subisse à tona com tudo o que encontrara na floresta seria queimada em fogueira. Mas o que vira – em que raízes mordera, com que espinhos sangrara, em que águas banhara os pés, que escuridão de ouro fora a luz que a envolvera – tudo isso ela não contava porque ignorava: fora percebido num só olhar, rápido demais para não ser senão um mistério. [...] No resto era serena. Mesmo quando tirava o dinheiro que a patroa esquecera sobre a mesa, mesmo quando levava para o noivo em embrulho discreto alguns gêneros da despensa. A roubar de leve ela também aprendera nas suas florestas. (LISPECTOR, 1998, p. 117-119) A criada é um texto sobre as relações sociais vigentes entre o individual e o coletivo, também é texto sobre e as configurações financeiras. O narrador onisciente não justifica as ações de Eremita, mas explicam suas origens: o pouco e, talvez, indesejado trato com a civilização. Os valores de 161 Eremita são outros e seu nome recobra tais valores. Somente no extrato que disponibilizamos a raiz ignora- aparece três vezes. A figura do eremita por si só já comunica a necessidade do afastamento social para se autoconhecer. O eremita procura lugar esmo, não habitado, não civilizado. É necessário cortar laços com as configurações sociais vigentes. Cirlot (1971, p. 147) nos diz que o eremita é o nono enigma do Tarot, e representa o controle sobre a serpente do instinto, a invisibilidade, a tradição, mas, também, o trabalho profundo e o tédio. A personagem de Lispector é atávica, pertence a um presente de trabalho e tédio, mas também a um passado mais completo. A ignorância de Eremita revela um saber maior que a própria sabedoria. O saber selvagem da criada é maior do que o da patroa civilizada. Todavia, as linhas de Lispector não negam a civilização nem o saber por parte da Patroa. A ignorância de Eremita e o saber da patroa se assimilam ao que Foucault nos revela sobre a relação estabelecida entre loucura e razão: A loucura torna-se uma forma relativa à razão ou, melhor loucura e razão entram numa relação eternamente reversível que faz com que toda loucura tenha sua razão que a julga e controla, e toda razão sua loucura na qual ela encontra sua verdade irrisória. Cada uma é a medida da outra, e nesse movimento de referência recíproca elas se recusam, mas uma fundamenta a outra. (FOUCAULT, 2008, p. 30) Mas se repararmos bem, e levarmos em conta todas a perspectivas quantas forem possíveis da loucura através das eras, chegaremos à mesma conclusão a que chegou Michel Foucault: em nenhum momento da história foi possível classificar a loucura de forma plena e definitiva. A figura do louco sempre achou uma forma escapulir dos limites que lhe são impostos, mas sem nunca se separar da razão, ambos os conceitos não se dissociam, estão ambos interligados. Isso nos importa porque agora caminhamos para a conclusão que queríamos para este estudo. Depois de termos percebido que a memória atávica é o movimento incessante do passado em direção ao presente e vice-versa, como uma cadeira de balanço se move para frente e para trás. No entanto, essa dinâmica é sempre em direção ao mistério, ao desconhecido. A memória em Mario Quintana é puzzle a ser resolvido, o tempo está escondido, precisa ser decifrado. Pensamos que ao equiparar a poesia ao funcionamento da loucura, Quintana esteja agindo pelos mesmos meios empregados na dinâmica da memória atávica. A criança, o poeta e o louco estão em uma zona híbrida, que não pertence apenas ao sujeito, mas também diz respeito aos interesses do coletivo. Para este capítulo a figura do louco funciona da mesma forma que a figura do atavismo, pois ao utilizar a figura do louco, Mario Quintana está expondo a poesia enquanto manifestação do hibridismo entre loucura e razão, hibridismo acentuado pelo quintanar já mencionado diversas vezes neste trabalho: “a poesia é uma loucura lúcida”. Ora, emparelhar dois termos opostos em 162 discussão social é demonstrar o amálgama que Bruno Latour expõe primeiramente em 1991, na obra Nunca fomos modernos: Aperte o mais inocente dos aeross6is e você será levado a Antártida, e de lá à universidade da Califórnia em Irvine, as linhas de montagem de Lyon, a química dos gases nobres, e daí talvez até à ONU, mas este fio frágil será cortado em tantos segmentos quantas forem as disciplinas puras: não misturemos o conhecimento, o interesse, a justiça, o poder. Não misturemos o céu e a terra, o global e o local, o humano e o inumano. ‘Mas estas confusões criam a mistura - você dirá -, elas tecem nosso mundo?" - "Que sejam como se não existissem", respondem as analistas, que romperam o no górdio com uma espada bem afiada. O navio está sem rumo: à esquerda o conhecimento das coisas, à direita o interesse, o poder e à política dos homens. (LATOUR, 1994, p. 8) Para Latour, o hibridismo é uma marca do moderno (LATOUR, 1994, p. 16) que age se alternando por dois mecanismos: tradução e purificação. A tradução é o processo de fundir gêneros diferentes de novos seres; mas, a purificação separa drasticamente áreas ontológicas. Em Jamais fomos modernos, o autor faz uma juntada de argumentos para explicar que o plano de modernidade nunca funcionou de verdade. O hibridismo é ao mesmo tempo conceito da modernidade e implosão dela mesma. A crítica que faz Latour é aos planos sócio-políticos que, ao gosto de seus interesses, hibridiza facilmente quando interessa e de forma igualmente fácil separa às áreas quando não é do interesse. Deixamos de ser modernos quando levamos em consideração simultânea ambos os processos de hibridizar e separar, sem submeter um ao outro por interesses de poder. Para Habermas (1983, p. 4), em Modernidade: um projeto incompleto, a modernidade é um projeto cultural, político, social e filosófico que visa romper com o passado, fazendo forte oposição entre o presente e o passado. Para o moderno o tempo é progressivo, linear. O passado só conta para o presente enquanto prova causal de efeito único e definitivo do presente. Ora, a criança, o poeta e o louco têm uma memória atávica, logo, os quintanares se configuram enquanto recusa do moderno. Dessa maneira, como todas as nossas leituras têm demonstrado, Mario Quintana não é um moderno, pois sua poética preza pela apreensão simultânea de valores. Não é só a loucura, não é só a razão. Ambas estão contidas na relação que estabelecem entre si. O hibridismo da memória atávica enquanto herança nas crianças, poetas e loucos é a própria implosão da modernidade acontecendo nos quintanares. Ao emparelhar poeta e louco, Quintana está emparelhando figuras cujas memórias desafiam o sistema social vigente. Passaremos agora a entender a memória atávica através de outro hibridismo: a loucura lúcida. 163 Figura 10: O louco lúcido Fonte: Acervo do autor 3.1 O eco do poema O leitor dos quintanares, que já percebia com clareza a insistência de Quintana na relação entre poesia e loucura, certamente já se incomodou com a leitura dos versos de O poema: [...] Para bem das águas e das almas/Assassinemos o poeta.” (QUINTANA, 2005, p. 202, O poema). Os versos apresentados acima foram publicados pela primeira vez em 1950 em O aprendiz de feiticeiro. O quarto livro de Quintana foi escrito em um mundo pós-guerra questionador dos próprios valores. Enquanto aquele mundo iniciava seus questionamentos, que perduram até hoje, O aprendiz de feiticeiro já tratava de providenciar respostas que, se não definitivas, não se queriam paliativas. 164 Assim, os poemas desse quarto livro dão menos destaque às interrogações e mais ênfase à assertividade. No início do que conhecemos por Pós-modernidade, a era do esvaziamento e fragmentação do indivíduo e do social, alguns escritores tomaram a decisão de pavimentar suas criações com verdades próprias, não obstante a crise de certezas no período. O aprendiz de feiticeiro é o livro de Quintana onde até podemos perceber uma agressividade velada no belo, versos cogentes em direção ao ser profundo, versos que tangem o leitor ao interior de si mesmo, constrangendo-lhes na/para a beleza. Verifiquemos, por exemplo, que o tempo verbal predominante nos poemas de O aprendiz de feiticeiro é o presente do indicativo em função atemporal. Essa força imperiosa na obra rendeu ao poeta a fama de fenômeno poético. Tal força não estava ausente nos três livros anteriores. Neles, apesar de já formada a estrutura básica do poeta, tal força expressiva era contida. É só em O aprendiz de feiticeiro que Quintana anuncia abertamente seu propósito: "[...] o terror de construir mitologias novas!" (QUINTANA, 2005, p. 195, Mundo). Nessa construção de uma nova ordem mitológica encontra-se O poema, responsável pelo estabelecimento do louco como signo simbólico para a perturbação do contorno. Dissemos que o que até então aparecia de forma alusiva, em O aprendiz de feiticeiro ganha status de símbolo consolidado. O poema é o responsável pela instituição simbólica do louco nos quintanares. É importante atentar para o surgimento cronológico desse símbolo em I (QUINTANA, 2005, p. 85), que é o primeiro poema do primeiro livro de Quintana, lançado em 1940; como também para o estabelecimento de fato do símbolo em O poema que, apesar da possibilidade de ter sido escrito antes de I, só aparece dez anos depois. É importante atentar para esse símbolo, porque é ele a chave para o teor lírico dos quintanares: a verdade como contradição. Quando lemos, por exemplo, na afirmação de Tudo quanto: "[...] se já nascemos geralmente com uma cabeça, as ideias vêm de fora. São adquiridas depois, como chapéus." (QUINTANA, 2005, p. 840) e entendemos que nós, leitores do quintanar, somos como caixa oca, que ganhamos movimento distinto de acordo com as ideias oriundas do externo depositadas em nosso interior, esse entendimento é veementemente negado em XLVIII. Das ideias (QUINTANA, 2005, p. 219): "Qualquer ideia que te agrade, /Por isso mesmo... é tua. /O autor nada mais fez que vestir a verdade/ Que dentro em ti se achava inteiramente nua...". Se em Tudo Quanto, somos vazios em ideários, que não são produzidos em nós, mas adquiridos; em XLVIII. Das ideias, não podemos ser preenchidos, porque em nós, apesar da carência de forma, já estão os ideários. Esse fato de uma poética cuja técnica é esmerar-se nos 165 contrários e nos paradoxos não é de ser negligenciada; porque é na contradição e no apagamento de fronteiras que estaria a única verdade possível para Quintana: Mas o que eles não sabem levar em conta é que o poeta é uma criatura essencialmente dramática, isto é, contraditória, isto é, verdadeira. E por isso é que o bom de escrever teatro é que se pode dizer, com toda a sinceridade, as coisas mais opostas. Sim, um autor que nunca se contradiz deve estar mentindo. (QUINTANA, 2005, p. 250, Contradições?) Se adotamos o viés sugerido em Contradições?, o de que a verdade está na contradição; logo, entramos em consonância com O poema, que nos fala exatamente da despolarização das coisas, do deslocamento dos perfis, isto é, da verdade. Por ora, ficaremos com O poema exatamente como a sua voz lírica o apresenta em primeira camada, como algo que não é bom, não procurando seu oposto. Inda que, claro, encontremos abundantes quintanares que contradigam a afirmação de O poema, como em: "[...] Quem faz um poema salva um afogado." (QUINTANA, 2005, p. 395, Emergência), tentaremos entender quem enuncia O poema e de onde ele é enunciado. Dissemos que a voz lírica de O poema nos apresenta o poema/o poeta/a poesia como coisas não desejáveis. Mas antes de tudo, quem é a voz lírica de O poema? Poderíamos especular e dizer que a voz lírica é o próprio escritor Mario Quintana, ou uma voz lírica que é também é poeta, ou o próprio O poema, ou qualquer metapoema, ou a poesia. Entretanto, é mais seguro dizer que não sabemos quem é a voz lírica. Mas podemos, sim, dizer que essa voz lírica acredita ter um conhecimento íntimo do funcionamento do poeta/da poesia/do poema. A voz lírica usa duas afirmações incisivas utilizando o verbo ser: "o poema é" (QUINTANA, 2005, p. 197). É possível que a voz lírica faça parte de um grupo que negue a poesia, por conhecer os poderes confusionais dela. De acordo com as afirmações da voz lírica de O poema, o poeta/a poesia/o poema é algo impróprio para duas coisas: "para o bem das águas e das almas", isto é, o poeta/a poesia/o poema molesta, faz mal às águas e as almas. 166 Por águas, para não termos que recorrer a abundante capacidade expressiva do termo50, podemos imediatamente concebê-lo como um dos bens básicos, do qual depende toda a vida na Terra. "Águas" equivale ao indispensável à vida. O poeta/a poesia/o poema, por sua vez, equivale à contaminação desse bem importante. Por Almas, recorremos aos sentidos gerais e dicionarizados: "1 princípio de vida no homem 2 conjunto formado por todas as atividades características da vida [...] 3 na modernidade, esp. A partir do ceticismo e kantismo, conjunto das atividades vitais, acessível esp. Através da introspecção, que não apresentam qualquer natureza substancial particular ou isolável da materialidade corporal, confundindo-se com a própria consciência pensante, psicológica, ou neuronal. [...] 6. fonte da vida, da vitalidade, da ação, personalidade, psique [...]" (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 160) E assim, pela explicitação desses dois termos, águas e almas, percebemos que o poeta/a poesia/o poema é danoso ao que há de mais caro ao ser humano, a um conjunto de funções necessárias a vida. Entender a carga semântica de "águas", justapondo-o ao termo "almas", que abrange também o conceito de totalidade do indivíduo e inteireza do ser, é afirmar que a necessidade da vida, inclusive a necessidade de uma inteireza subjetiva, é ameaçada pelo poeta/a poesia/o poema. Isso faz com que O poema adquira feições de mensagem pessimista, sombria, uma vez que, de acordo com a voz lírica de O poema, o poeta/a poesia/o poema tem o poder de corromper a vida. Em poema homônimo, dentro do próprio Esconderijos do tempo, lemos que o poema é prejudicial inclusive a ele mesmo, estando fadado à morte, "[...] Ferido de mortal beleza." (QUINTANA, 2005, p. 197, O poema [1]). O que chama a atenção nesse verso de O poema [1] – o algarismo entre colchetes será utilizado após o título, para distingui-lo de O poema, que é o que temos lido até então; uma vez que estão ambos dentro da mesma obra – é o adjetivo mortal, algo que cessa a vida, que traz fim à vida. 50Para fazer jus ao termo que aparece no formato de substantivo feminino plural, o dicionário explicita: "grandes extensões de água, como mares, lagos, rios, etc. [...] 20 as chuvas 21 nascentes de águas minerais ou medicinais; termas, estância hidromineral 22 substâncias orgânicas, esp. O líquido amniótico que envolve o feto na cavidade uterina, expulsas por ocasião do parto [...]"(HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 122) Além do sentindo de fluxo, curso, das coisas que precisam mover-se , podemos acrescentar que o termo nos dá margem para ler "águas" como "entre os ománguas (indígenas da tribo Tupi), indivíduo do sexo masculino, homem [...]"(HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 123). De acordo com Gênesis da Bíblia (2010) a vida se inicia na água. Á água também é símbolo de (re)nascimento no Novo Testamento (BÍBLIA, 2010). A teoria da Evolução das espécies, de C. Darwin (2003) também prega a água como sendo o início da vida na Terra. Dentre as várias informações concedidas por Cirlot (1971, p. 364-367), encontramos que a água para os egípcios antigos é a matéria-prima da vida, o começo de todas as coisas, uma concepção também compartilhada pelos primitivos chineses, hindus. Cirlot também compartilha o dado que, em muitas culturas, sendo a água a entidade primordial, ela já contém em si tudo o que deriva da vida. Em linhas gerais, Cirlot aponta que as águas simbolizam o ajuntamento universal de potencialidades, que precede todas as formas e toda criação. 167 Essa fatalidade sombria atribuída ao poeta/a poesia/ao poema é consecutiva de uma causa: "O poema é uma pedra no abismo,". A metáfora remete ao movimento de uma coisa impelida pela gravidade, no caso a pedra, que cai verticalmente e por tempo indefinido pela fundura indeterminada de uma depressão inexplorada. Cirlot (1971, p. 2-3) lembra que o potencial simbólico do termo abismo é mais rico e remete à simultaneidade do profundo e do inferior. Assim sendo, o poema seria algo que se lança em queda rumo às profundezas, às entranhas do ser. Essa profundidade do ser é indeterminada, o poema/pedra continua sua trajetória aleatória à procura de um piso que nunca chega, por vezes chocando-se com algo e mudando relativamente seu curso. Vejamos que O poema não diz que o poema/pedra está na iminência de uma queda, nem diz que ele já terminou de cair, mas indica que sua descida é permanente. Ao mesmo tempo em que percorre o caminho em direção ao interior desconhecido do ser, o poema perpassa as inferioridades, aquilo que no homem é nuvioso. Aí está, pois, o que faz do poeta/da poesia/do poema, algo a ser não desejado e exterminado: a faculdade de se tornar um portal contaminador, uma abertura para o insólito, um instrumento de abertura de visão para o lado tenebroso das profundezas humanas, um bilhete para viagem de auto/conhecimento àquilo que Sigmund Freud (1856-1939) chamou de Id51 . Nesse aspecto, O primeiro verso de O poema dialoga com Escadas: Escadas de caracol Sempre São misteriosas: conturbam... Quando as desce, a gente Se desparafusa... Quando a gente as sobe Se parafusa – o peito estreito – o teto descendo Descendo descendo como nas histórias de imortal horror! Mas de que jeito, Mas como pode ser, Morrer cair rolar por uma escada de parafuso? Além disso não têm, pelo que dizem, nenhuma acústica... Oh! não há como as escadarias daqueles antigos edifícios públicos Para ser assassinado... Porém não fiques tão eufórico, 51Em Freud (1996), no capítulo II, O Ego e o Id, encontramos que o Id é o ponto mais inconsciente da mente. Ele é regido pelo princípio do prazer, pelas paixões e também por desejos reprimidos e não se subordina ao princípio de realidade. Apesar de Freud apregoar que as movimentações do interior humano derivam do Id enquanto reservatório da libido, rejeitaremos sua proposição, aproveitando somente sua analogia da relação entre Ego e Id como a de um cavaleiro e um cavalo, tendo este último força superior. Dessa forma, o poema, para Mario Quintana é um querer visitar essa força instintiva e oculta, distinta da controlada, esta oriunda das forças sociais. 168 – nem tudo são rosas: Há, No sonho das velhas casas de cômodos onde moras, Passos que vêm subindo degrau por degrau em direção ao teu quarto E "sabes" que é um fantasma chamejante e fosfóreo – O corpo todo feito de inconsumíveis labaredas verdes! O melhor Mesmo É fechar os olhos E pensar numa outra coisa... Pensa, pensa – o quanto antes! Naquelas pobres escadas de madeira das casas pobres – escurinho dos teus primeiros aconchegos... Pensa em cascatas de risos Escada abaixo De crianças deixando a escola... Pensa na escada do poema Que tu comigo vens descendo agora... (Hoje em dia todas as escadas são para descer) Mas não! este poema não é Nenhum Abrigo Antiaéreo... Ah, tu querias que eu te embalasse?! Eu estava, apenas, explorando uns abismos... (QUINTANA, 2005, p. 601, Escadas) Além da versificação caótica de Escadas, da proposital falta de ordenação que comumente se espera do gênero poema, podemos apontar para a tentativa concreta do poema em representar a descida, especialmente nos versos: "Que tu/comigo/vens descendo, agora". Vemos em Escadas o eco do primeiro verso de O poema, "uma pedra no abismo". O poema/a poesia/o poeta, não é um lugar de asilo, mas, sim de movimento em direção ao desprotegido. A pergunta irônica do penúltimo verso: "Ah, tu querias que eu te embalasse?!" (QUINTANA, 2005, p. 601, Escadas), revela uma voz lírica provocadora, consciente de que um poema não se presta à piedade nem à anestesia, muito pelo contrário, ela se presta ao esquadrinhamento do que há de profundo e inferior no ser. Assim, ler um poema equivale ao trabalho árduo de procurar por si, sem reservas. Essa descida às profundezas de si, mediada pelo poema, é um mistério que conturba e "desparafusa" (QUINTANA, 2005, p. 601, Escadas), por isso não é bom: "Para o bem das águas e das almas," (QUINTANA, 2005, p. 197, O poema). Em relação a esse movimento de pedra/poema em direção a um abismo, outro poema, chamado Os degraus, também corrobora nossa leitura: 169 Não desças os degraus do sonho Para não despertar os monstros. Não subas aos sótãos onde Os deuses, por trás das suas máscaras, Ocultam o próprio enigma. Não desças, não subas, fica. O mistério está é na tua vida! E é um sonho louco este nosso mundo... (QUINTANA, 2005, p. 600, Os degraus) Os degraus aponta que é possível acessar o abismo, e de que a descida não é desejável. A palavra "sonho" em Os degraus, pode ser lida como a descrição de Ferber (2001, p. 35) sobre a técnica de Edgar Allan Poe: "[...] uma mais profunda e verdadeira realidade que o mundo da consciência e da razão [...]"52 . Entender o posicionamento do sombrio em Mario Quintana como o de Poe é plausível, uma vez que o escritor estadunidense é amiúde elogiado por Mario Quintana: "Gosto de Edgar Poe" (QUINTANA, 2005, p. 747). Ao procurarmos um correspondente do estilo de Poe no Brasil, encontramos no próprio poeta gaúcho a indicação: "[...] Exemplo? Um Edgar Allan Poe. E, entre nós, Machado de Assis. [...]" (QUINTANA, 2005, p. 278, O meio e os meios). Assim, chegamos à premissa de que a mensagem de O poema está em sintonia com a estética de Poe e Machado de Assis; estética que se reflete em um estilo técnico de sondagem das profundezas/inferioridades do ser. Se nesse aspecto aproximarmos Mario Quintana a Edgar Allan Poe e de Machado de Assis, poderemos dizer de Quintana o que disse Antônio Cândido (2012, p. 434, 453, 531) sobre Machado de Assis: um sondador de camadas profundas, não epidérmico, pesquisador da semente das ações via: [...] 'pesquisas psicológicas, que segundo Lúcia Miguel Pereira constituem o brasão de Machado de Assis e Raul Pompéia. Elas consistem, principalmente, em recusar o valor aparente do comportamento e das ideias, em não aceitá-los segundo a norma que lhe traçam o costume, ou os seus desvios mais frequentes. Há na pesquisa psicológica uma certa malícia e uma certa dor [...] (CANDIDO, 2012, p. 529) O que a voz lírica de O poema está comunicando é que o poeta/a poesia/o poema é um elemento de pesquisa psicológica que favorece a entrada no reino das profundezas e inferioridades do ser, contaminando os princípios da vida e que, portanto, devem permanecer assegurados na superfície, no visível, longe do profundo. Notemos que a voz lírica menciona o deslocamento de 52"[...] a deeper and truer reality than the world of conscience or reason [...]" (tradução nossa). 170 ideias. O termo utilizado é perfil, que se refere à cabeça, ao rosto, símbolos do raciocínio e identidade do sujeito. Ora, antes de dar voz ao extermínio do poeta, na conclusão, assumindo que a poesia é um malefício, a voz lírica nos apresenta dois motivos: a) porque vai de encontro à profundidade e b) porque desloca os perfis. Quando cruzamos esses dois primeiros versos de O poema, deduzimos que o oposto da busca pelo profundo, da pedra no abismo, é necessariamente a superfície, o perfil. Por aí que entendemos que a superficialidade do perfil é pregada como necessária à vida. De acordo com a voz lírica, O perfil/superficialidade não faria mal às águas, nem às almas. Apesar das superfícies poderem ser deslocadas, os perfis são considerados melhores quando inviolados, acabados, fechados. Tal compreensão ainda é amplificada quando nos deparamos com outras significações para águas e almas. Para águas ainda podemos ler "mostra, sinais exteriores" (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 122) e outra leitura para alma é: "O eu total de uma pessoa e sua inteireza [...]" (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 160). Assim, compreendemos que em O poema é necessário que o ser continue unificado em inteireza, possuidor de uma aparência externa. Logicamente tal desempenho não pode ser favorecido pela poesia, que desmantela a unidade das águas e não se gera no externo, mas no interno. Para O poema, a superficialidade é preferível, porque favorece a moldagem dos perfis. Expostos esses argumentos, haveremos ainda de atentar para outro ponto chave do poema em questão. Um elemento ainda dirime a compreensão que buscamos. Esse elemento é o verbo assassinar na primeira pessoa do plural, em imperativo afirmativo. Em língua portuguesa, o verbo assassinar significa causar a morte de um ser humano, geralmente de forma premeditada (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 319). Importa-nos pensar o porquê Mario Quintana inseriu na voz do eu lírico de O poema o verbo assassinar, ao invés de matar, que é outro verbo utilizado para expressar a mesma ação. Matar é largamente utilizado quando a morte do indivíduo não envolve relevância social, nem evoca noções de distinção à figura social do morto. Matar não chama à sua significação a imagem de sacrifício, do extermínio de uma peça relevante aos valores coletivos. Na morte da pessoa assassinada é agregado um valor de significação, de sentidos. Na morte da pessoa simplesmente morta, esse valor agregado não aparece. Em termos jurídicos, mais neutro e incomum, utiliza-se o verbo homicidiar. A língua inglesa, contudo, conserva de forma melhor essa valoração de significados do verbo assassinar, que pode ser 171 explicado por razões históricas. Em Inglês, to assassinate (THE CONCISE OXFORD, 1990, p. 64) significa matar, mas matar uma pessoa cara à sociedade, especialmente as de liderança política; to assassinate é cessar a vida de um indivíduo que exerce papel de peça importante ao grupo. Quando a morte da pessoa não implica a valoração do indivíduo pelo coletivo, diz-se to murder53 /to kill54 /to manslaughter55 , com variações de sentido e peculiaridades. A palavra assassinar é de etimologia árabe, haxxixin, (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 319), e desde então já era utilizado com cunho político, surgindo para designar um grupo que guerreava contra cristãos e sunitas durante as cruzadas, o termo deriva por extensão do haxixe, substância utilizado para narcotizar os combatentes durante as batalhas. A palavra assassinar remete à posições sociais antagônicas. Munidos com essas informações sobre a palavra assassinar em O poema, podemos agora caracterizar a voz lírica. Aprendemos que ela, a voz lírica, emite seu discurso de um posicionamento possível, mas não único. Através do uso do verbo no imperativo plural, percebemos que a voz lírica se porta como um orador a tentar convencer um público, semelhante a um antigo senador romano dirigindo-se à assembleia sobre algum caso emergencial; expondo argumentos e apresentado alternativas. A voz lírica expõe, mas aguarda reação do grupo. Sua iminência de ação, depois de previamente meditada, não se quer individual, mas coletiva. Os ouvintes do discurso da voz lírica podem ser ou um grupo simpatizante do discurso, ou um grupo não simpatizante com a voz lírica, mas que poderá ser convencido, e em qualquer um desses dois grupos encaixamo-nos nós, leitores de O poema. A retórica dessa oradora voz lírica de O poema apresenta uma realidade como melhor, para ela a única realidade, feita de perfis, superficial e sem poesia. A voz lírica de O poema não fala em solilóquio, dirige-se a um grupo acerca dos interesses de um grupo. A fala da voz lírica é uma fala política, uma vez que diz respeito à organização da vida em coletividade e a gestão dos interesses do social. Na assembleia na qual se delibera o futuro do poeta, a voz lírica apresenta como solução uma estratégia política extrema e comum em tempos de crise social: o assassinato do líder do grupo 53Ação de tirar a vida de um ser humano de forma premeditada (THE CONCISE OXFORD, 1990, p. 780, tradução nossa). 54Ação de tirar a vida de um ser (THE CONCISE OXFORD, 1990, p. 649, tradução nossa). 55Ação de tirar a vida de um ser humano de forma não premeditada (THE CONCISE OXFORD, 1990, p. 723, tradução nossa). 172 político de oposição, como no caso de Júlio César (100 a.C. – 40 a.C.) ou no regicídio francês durante a Revolução. Dessa assembleia, apreendemos o conflito de interesses existente entre a poesia e a voz lírica de O poema, que por sua exposição veemente, nos encaminha para uma informação oculta, mas não ausente nos versos: o interesse a/político da poesia, um mundo sem perfis e mais profundo. Compete-nos lembrar de que O poema é uma criação refinada de um poeta, que no ato de criação desenvolve uma posição de autoria (BAKHTIN, 2008), que necessariamente não precisa ser a sua própria. Isso equivale dizer que a voz lírica de O poema é uma personagem, que o poema não é mera confidência de um ser escritor para um ser leitor. O poema não se quer lido literalmente, mas, antes, provocar no leitor a busca pela posição antagônica a da voz lírica. Se só lido literalmente, O poema decerto seria empobrecido em arte. Observemos que o procedimento que acabamos de mencionar não é novidade na arte, nem totalmente original o engenho de Mario Quintana. Em A República, Platão (427 a.C. – 348 a.C.) já fizera a mesma coisa que o gaúcho. Há de ser reconhecida como sofisticada a técnica de Quintana que usa apenas quatro versos curtos para suscitar os mesmos questionamentos que Platão despendeu todo um livro para acender. Mas havemos de reconhecer que o procedimento intelectual é o mesmo. Os escritores (Mario Quintana/ Platão) 1 usam duas obras (O poema/A república), 2 criam uma posição de autoria (Assassinato do poeta/Morte social do poeta), 3 inserindo essa posição na fala de personagens (A voz lírica de O poema/Sócrates), 4 para suscitar o mesmo questionamento (O poeta faz mal à sociedade/ O poema faz mal à res publica 56), porque a poesia (desloca os perfis/usurpa a soberania da lei). Notemos que Sócrates, a personagem de Platão, não pretende exilar todos os poetas da República, mas somente aqueles que não se subordinam a um padrão social (CONFORD, 1968, p. 321), que deve restringir a função do poeta ao nível do superficial (CONFORD, 1968, p. 337; 339), para que o poeta só trabalhe com o nobre (CONFORD, 1968, p. 90) e não com a inferioridade do abismo. Na fala de Sócrates não há lugar para o poeta que corrompa a organização social (CONFORD, 1968, p. 90), na fala da voz lírica de O poema, não há lugar para o poeta que corrompe as águas e as almas. Sócrates pede confirmação daqueles que ele chama de Guardiões, que protegem a sociedade. A voz lírica de O poema também se comporta como uma guardiã das águas e das almas. Para o 56República tem origem latina, res publica, ou seja: coisa pública. 173 Sócrates de Platão, a capacidade nociva da poesia se origina no excesso de prazer que ela provoca (CONFORD, 1968, p. 91), para as vozes líricas de O poema e O poema [1], a beleza do poema causa a morte (QUINTANA, 2005, p. 197, O poema [1]). Ambas as posições de autoria, a de Platão e a de Mario Quintana, estão cientes dos custos da poesia à ordem instituída, para que a criação poética aconteça, é necessário o caos, à semelhança da criação de Eu-sou, deus do Gênesis (BÍBLIA, 2010), que precisa do disforme e do vazio. Esses juízos de valores emitidos pelas personagens apolíneas de Platão e Quintana também se assemelham as falas apolíneas de William Shakespeare no Hamlet (SHAKESPEARE, 1997, p. 1033), quando Polônio admoesta seu filho Laertes. Em passagens como essa, o que Shakespeare propõe não é um endosso da fala supostamente nobre que, semelhante a uma receita de bolo, prevê desfecho feliz aos homens que seguirem a fórmula passo-a-passo. O que Shakespeare faz é expor o posicionamento para julgamento de seu leitor/público, para que este aprecie e se questione acerca dos valores morais57. Além do que, se reparamos bem, Polônio não é uma personagem benigna na peça, apesar de ele emitir frases de alto teor moral. Podemos dizer a posição da voz lírica de O poema é rara nos quintanares, porque ela dialoga – em dissenso direto, mas em consenso velado pela ironia – com toda lírica predominante em Quintana. Essa lírica é aquela do ser em permanente des/construção, à semelhança do anônimo romance de cavalaria Sir Gawain and the Green Knight. O poema Escadas (QUINTANA, 2005, p. 601) está ciente de que a descida proporcionada pela poesia ao abismo, profundidade/inferioridade, humano é responsável por um tipo de morte do ser e do poeta, morte das aspirações de uma padronização do coletivo e social. Para VILLELA-PETIT (2003), Platão teria elevado o papel do filósofo sobre o do poeta, pois o filósofo seria capaz de nortear e até mesmo moldar a vida de sua comunidade, enquanto a poesia mimética, principalmente a trágica teria a capacidade de evocar a verdade em nível individual e subjetivo. A apresentação retórica da voz lírica de O poema situa a poesia em uma posição onde ela é alvejada por dois lados, pela visão absolutista de que a poesia é uma experiência caótica, e pela visão de uma sociedade que se quer absolutamente perfilada. Portanto, há tensão em O poema, 57Convém lembrar que moral é palavra de origem latina, evoca o conceito de costume (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1958) socialmente adquirido, não é essência ontogenética. Um ser moral é, portanto, aquele que teria adquirido e cultivaria bons hábitos para si e o para seu grupo. A imoralidade seria o cultivo de hábitos ruins para si e para o grupo. Em Ética a Nicômaco, Aristóteles desenvolve um estudo amplo sobre o tema sob a ótica da utilidade individual e pública (ARISTOTLE, 2001, p. 935) 174 que nos apresenta a oposição entre o dionisíaco e o apolíneo (NIETZSCHE, 2007), oposição simbólica da ordem do caos e do caos da ordem. 175 Figura 11: O aulos de Quintana Fonte: Acervo do autor 176 3.2 O aulos de Atena A mitologia grega é um sistema de linguagem e cálculo formado por signos simbólicos. Assim como ocorre na aritmética, um signo mitológico é justaposto a outro por adição, subtração, etc., ou mesmo em formas de equação complexa. Cada signo representa um fenômeno da natureza ou um estado psicológico. Apolo é signo que corresponde à ordem social e do sujeito, Dionísio pela desordem. Por vezes, esses signos podem ser alterados por equivalentes, sem que seja necessariamente alterada a implicação. Assim como em certas operações matemáticas a ordem dos elementos não altera o produto. O apolíneo é frequentemente substituído por Atena, e dionisíaco frequentemente representado pelo Sátiro. Nas dezenas de narrativas do mito de Marsias (CIRLOT, 1978, p. 674), por exemplo, ora o sátiro aparece estabelecendo contato com Apolo, ora com Atena, sem que, todavia, a implicação seja modificada. Para entender uma parte58 desse mito que interessa à leitura de O poema, faremos uma rápida análise por Atena e Marsias (470 a.C.? ), que é um grupo de esculturas de autoria atribuída a Míron59. O próprio título da escultura já diz de seu tema: um encontro de opostos, entre sapiência- guerra-estado-astúcia, divinizados na figura de Atena (CIRLOT, 1971, p.107) e o sátiro: "[...] ser natural fictício está para o homem civilizado, na mesma relação que a música dionisíaca está para a civilização." (NIETZSCHE, 2007, p. 52), [...] a proto-imagem do homem, suas mais altas e mais fortes emoções [...] diante dele o homem civilizado se reduzia a mentirosa caricatura [...] a existência de maneira mais veraz, mais real, mais completa do que o homem civilizado, que comumente julga ser a única realidade [...] O contraste entre essa autêntica verdade da natureza e a mentira da civilização a portar-se como a única realidade [...] incessante destruição das aparências [...] (NIETZSCHE, 2007, p. 54-55) 58A narrativa do mito se estende. Em quase todas as versões, em sumo, Marsias comete Hybris. A parte que nos interessa é só o início, o quadro pré-hybris, que desencadeia a narrativa. 59Míron produziu boa parte de suas esculturas utilizando bronze. O grupo de esculturas Atena e Marsias de Míron ficava no Partenon, na acrópole de Atenas. A escultura original está perdida. Há uma cópia romana em mármore de Atena no Liebieghaus, em Frankfurt. A outra metade, Marsias, encontra-se no Museu Laterano, em Roma. Uma reconstrução total das duas personagens juntas foi produzida para os Jardins do Liebieghaus. (KEESLING, 2003) 177 Observando o grupo de escultura da esquerda para a direita, vemos as duas figuras em pé e frente a frente. Atena com a cabeça protegida por um capacete, segurando sua lança na mão direita, com os olhos rebaixados e com a mão esquerda em atitude de desprezo e irritação. Como de costume, Atena é representada com roupas. Ao contrário de Atena, Mársias está desnudo. O sátiro apresenta um corpo de porte atlético e saudável, sua barba, contudo, apesar dos atributos inerentes à virilidade, está mais comprida que o comum, sem receber tratamento há já algum tempo. Mársias está com a cabeça curvada para baixo, com olhar focado em algo que lhe desperta interesse. Seu corpo expressa simultânea iminência de ação e hesitação. O sátiro prepara-se para o movimento. Ambas as esculturas estão posicionadas cada uma em uma base de concreto, totalmente juntas, dispostas proporcionalmente, de forma que uma linha limítrofe e nivelada é traçada pela separação entre as duas bases que, apesar de muito próximas, são intermediadas pela cavidade natural que as separa. A perna direita do sátiro se posiciona em direção à base de concreto, seu pé direito ameaça tocar a linha de separação de bases. O grupo de esculturas pretende representar o início do mito de Mársias, quando Atena, logo após ter inventado o aulos60, vira alvo do escárnio dos outros deuses, por causa de suas bochechas que inflaram muito durante o ato de soprar o instrumento no desejo de produzir música. As bochechas infladas de Atena alteram seu perfil do austero para o cômico. Irritada com os deuses, com o instrumento que criara, e irritada consigo mesma, a deusa lança fora o aulos. O sátiro Mársias deseja para si o instrumento que a deusa inventou e rejeitou. O aulos está representado de forma desmontada. Uma parte do instrumento está aos pés da deusa, na base de concreto que pertence a ela, a outra parte está aos pés do sátiro, na base de concreto que pertence a ele. Na decodificação do sistema simbólico, sapiência-guerra-estado-astúcia não admite que sua imagem seja alterada, mesmo à custa da perda de uma boa invenção, a música. Voltamos, assim, para o Sócrates de Platão, que bane o poeta por que altera a configuração da ordem social. Também voltamos para o nosso foco: a voz lírica de O poema, que recusa o poeta por causa dos malefícios advindos da poesia capaz de deformar perfis. 60"1 Na Grécia antiga, instrumento semelhante a um oboé duplo 2 entre os antigos gregos, termo que abrangia diversos tipos de flauta [...]"(HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 344). 178 A voz lírica de O poema está vestida pelo pudor, pela recusa do indecoroso, assim como está movida pelo mesmo desejo o ideal da república de Sócrates. Atena, ápice da razão, é virgem, não se imiscui, não se despe. A simbologia de suas roupas diz menos da vergonha da nudez física, diz do decoro em não se despir moralmente, em não se permitir a vergonha das ações. O pudor em O poema recusa a nudez do sátiro, a falta de decoro nas ações instintivas, naturais. A voz lírica de O poema envergonha-se diante da possibilidade do erro, assim como as personagens do Gênesis (BÍBLIA, 2010), Adão e Eva, sentem vergonha da nudez de seus corpos, que é, na verdade, representação da vergonha psicológica diante da exposição ao coletivo de uma violação ao padrão moral. No sentido de que ser um homem/uma mulher de vergonha é vexar-se diante de sua infração às normas da sociedade. A civilizada polis deve ser regida pela compostura e respeito aos limites impostos ao todo, sem permissão de espaço maior ao individual. O poeta excluído em O poema é como o sátiro de Atena e Mársias, impulsivo, não está preocupado com a aparência, nem preocupado em ter seu perfil deformado, preocupação que afligira a deusa. O poeta e o sátiro estão desnudos, prontos para estabelecer intercursos. Ambos diferentes da razão personificada em Atena e da voz lírica de O poema, o sátiro e a voz lírica de O poema representam a desrazão. Ainda nos resta dizer que o próprio engenho técnico do poeta Mario Quintana responde à questão que ele mesmo lança através da fala da voz lírica de O poema. A mensagem estaria incompleta se não notarmos que o questionamento e nossa ponderação sobre ele foi proposto pelos próprios versos, através de extremo controle semiótico. Percebamos a paradoxal ironia contida em O poema, que sugere a extinção do poeta. A poesia deve acabar. Poemas não devem mais existir. Entretanto, a mensagem é comunicada poeticamente e em versos! Assim, O poema se coloca em uma posição intermediária, ao mesmo tempo razão e desrazão. A favor e contra águas e almas. Propõe-se como verdade mais verdadeira que a verdade instituída. O poema, ao apresentar o poema/a poesia/o poeta em posição extremamente oposta à de sua própria voz lírica, torna-se arte ao chamar atenção para si mesma, obra de arte, que não se anula diante das polarizações, mas faz parte confortavelmente delas: "[...] de que seu desenvolvimento está ligado à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco." (NIETZSCHE, 2007, p. 24), da mesma 179 forma que o aulos, apesar de deformar o perfil, não deixa de ser invenção da razão, de estar sob seus pés, ao mesmo tempo em que já não pertence só a Atena, mas também à esfera do sátiro. Metade razão, metade desrazão. O poema não se encerra, pertence ao sátiro. O poema é tecnicamente trabalhado, pertence à Atena. A poesia é, pois, a linha formada pela cavidade da base entre Atena e Mársias, formada pelo aulos partido ao meio entre Atena/A voz lírica – sapiência, decoro, benevolência, aparência, regramento, perfil etc.– e o sátiro – abismo, indecência, malevolência, espontaneidade, desregramento, diluição. "Porque a poesia é uma loucura lúcida." (QUINTANA, 2005a, p. 828, A diferença). Observamos que o que resulta da repercussão da poesia, mensagem poética, o eco do poema, não é o extermínio dos perfis, mas sua mudança, seu deslocamento, da mesma forma que Pablo Picasso não exterminou os perfis de suas figuras, mas os alterou suas simetrias por deformação. O aulos de Atena, a poesia como citada em A diferença, é loucura, mas é lucidez. Configura-se entre classes de loucuras, no caso de O poema, a dionisíaca e a apolínea (PLATÃO, 2007, p. 106). O estado de alteração mental causada pela desrazão mística nas desordens da celebração dionisíaca contrapõe-se ao clímax da razão que se quer organizadora de todas as coisas, inclusive do porvir, loucura apolínea da pré/visão. Outro Sócrates, o de Fedro (366 a.C. ?), nos descreve a poesia bebendo dessas duas fontes, mas torna-se distinta delas: Há ainda uma terceira espécie de delírio: é aquele inspirado pelas Musas. Quando ele atinge uma alma virgem e pura, transportando-a para um mundo novo e inspira-lhes odes e outros poemas que celebram as gestas dos antigos e que servem de ensinamento às novas gerações. Mas quem se aproxima dos umbrais da arte poética, sem o delírio que é provocado pelas Musas, julgando que apenas pelo intelecto será bom poeta, sê-lo-á imperfeito, pois que a obra poética inteligente empalidece perante aquela nascida do delírio. (PLATÃO, 2007, p. 81). Para O poema e para o Fedro, a poesia a) não é só intelecto/razão/conhecimento socializado, mas também sentidos/desrazão/transgressão social; b) insere-se em um jogo do coletivo, a tradição, reminiscência e instrução, que c) acontece no transporte para "um mundo novo". Mas que é esse mundo paralelo, novo que nos fala o Sócrates de Platão e enxergamos em O poema? 180 Augusto dos Anjos procura responder exatamente a mesma questão. Ao criar uma personagem analítica, a Sombra, voz lírica de Monólogo de uma sombra (1912), para contrapor os ideários sociais da apolínea figura do Filósofo Moderno à figura dionisíaca do Sátiro Peralta, o poeta paraibano estabelece que só a arte, ao transitar por esses dois mundos, transcende tais realidades de onde deriva, criando uma terceira e ideal realidade. A arte é criação de uma nova ordem, de um mundo melhor e distinto. Em Atena e Mársias, Míron chama atenção para a criação poética, que nasce a partir de duas unidades pré-existentes, assim como o faz Quintana: "O poema é um objeto súbito:/ Os outros objetos já existiam..." (QUINTANA, 2005, p. 285, O poema). O aulos partido ao meio conjuga-se entre duas alter/nativas, a razão e a desrazão. Poesia cria-se na harmonia dos caminhos de duas forças aparentemente contrárias e anteriores a ela. O poema nem assume o posicionamento de sua voz lírica, nem confirma o caos total, apresenta-se antes, como detentor das duas posições. A poesia recria em si a dualidade de sua natureza apolínea e dionisíaca, acolhe em seus próprios versos aquilo que a faz ser o que é. Da mesma forma que O aulos foi criado, o poeta Mario Quintana diz que o poema é criação construída com palavras: "[...] nisto de criação literária cumpre não esquecer - guardada a infinita distância - que o mundo também foi criado por palavras." (QUINTANA, 2005, p. 805, Fantasia & Realidade). O objetivo da poesia não é imitar a vida, mas em si expressá-la. O poema não é cópia análoga à vida, não é imitação, nem reflexo da vida: "[...] a indiscriminação entre a poesia e a vida: um poema era um amigo. Nada de superposição entre vida e criação literária [...]" (QUINTANA, 2005, p. 728, O Augusto). Para Mario Quintana, o poema não parte da premissa que a vida é uma tábua rasa: "[...] E paira no ar o eterno mistério dessa necessidade da recriação das coisas em imagens, para terem mais vida, e da vida em poesia, para ser mais vivida." (QUINTANA, 2005, p. 528, Pausa). A poesia é invenção, novidade: "[...] Porque a poesia não é apenas a verdade... É muito mais! A Poesia é a invenção da Verdade." (QUINTANA, 2005, p. 328, Natureza), mas é invenção, novidade, a partir de coisas que já existem: "E eis que, tendo Deus descansado no sétimo dia, os poetas continuaram a obra da Criação." (QUINTANA, 2005, p. 239, Versículo inédito do Gênesis). 181 O poeta para Quintana entra em sintonia com a descrição feita no Fedro, onde reminiscência, memória, recordação, e lembranças são atributos do sábio, tido por louco pela multidão, que é movida pelo esquecimento (PLATÃO, 2007, 85-86). A atividade de recriar é feita através da reordenação de elementos de uma disposição inicial. Há um retorno ao elemento inicial, mas há produção sobre ele. A criação objetiva o arranjo de uma nova estrutura de equivalência. Recriação é ação intermediária de dois estágios, um antigo, outro novo. Ao deslocar os perfis, O poema apresenta o poema/a poesia/o poeta desrazão ou contra-razão. Contraria a ideia de prejuízo às águas e as almas. 182 Figura 12: Piu Fonte: Acervo do autor 183 3.3 A canção da vida A vida é louca a vida é uma sarabanda é um corrupio... A vida múltipla dá-se as mãos como um bando De raparigas em flor e está cantando em torno a ti: Como eu sou bela, amor! Entra em mim, como uma tela de Renoir enquanto o mundo não poluir o azul do ar! Não vás ficar não vás ficar aí... como um salso chorando na beira do rio... (Como a vida é bela! como a vida é louca!) (QUINTANA, 2005, p. 489, A canção da vida) O poema acima foi publicado em 1980, quando o poeta já avançava em idade: 74 anos. A canção da vida pertence também ao livro Esconderijos do tempo. No título do poema, a palavra canções aparece e pode significar a associação da palavra com a música visando um fim, o encantamento, que é “fórmula mágica” (QUINTANA, 2005a, p. 807, Fórmula mágica) destinada ao “despertar” (QUINTANA, 2005a, p. 334, O berço do terremoto). A canção é signo poético quintaniano que comunica a capacidade que tem a arte de operar no ser através das suas propriedades estéticas. A isso somamos o conhecimento de que antes da escrita a palavra cantada era um meio de armazenagem e transferência do conhecimento. A esse significado que assume a palavra canções, adiciona-se outro menos imbuído de simbolismo: a ação material, sonora, de aspectos físicos diferentes sobre a palavra comum. Ao ponderar sobre o porquê o ser humano musica a palavra, mesmo na sua privacidade, tirando a palavra do seu curso comum, adicionando-lhe carga emotiva via ritmo, altura e intensidades, defrontamo-nos com a aparente falta de sentido prático que é tal ação. A canção é executada muitas vezes sem causa racional. Quanto a isso, o mais seguro é afirmar que se sabe muito pouco acerca da natureza dessa manifestação, cujo fenômeno é desconhecido em sua maior parte. Não se pode afirmar com certeza o que viria a ser uma canção em sentido pleno, mas, no viés da canção enquanto intervenção 184 material distinta na sonoridade habitual, pode-se isolar um atributo dela: vínculo direto com a expressão. Se cantada em grupo, expressa sentimento/ideia coletiva. Se cantada para espectadores, mais que comunicar a mensagem da letra, é expressão e reconstrução estética de/para a transferência do sentimento que se canta. Esse tipo expressão mimetizada pelo intérprete é distinta de outra forma da palavra cantada, a ária: o canto coral, diferente do que fora nas tragédias gregas. O canto coral é impessoal e avesso à predominância do sentimento sobre a música. Se cantada individualmente, exceto por ensaio do profissional, a canção é fuga da racionalidade, fenômeno caracterizado como suspensão voluntária da convenção social da palavra; suspensão que se mostra mais natural que a convenção; suspensão voluntária, mas regida por um impulso que se quer manifesto, exteriorizado. Em situação atípica, diga-se em um mercado, ou no meio de uma rua e ainda, durante discussão verbal agitada; se um dos integrantes dessas situações se põe inesperadamente a cantar, no mínimo causará estranhamento, fascinação, desmantelamento da situação que ganhará novo fluxo. Logo, a canção é ação de centrifugação do eixo da normalidade, do comum. Para Susane Langer (2011), a canção está atrelada ao sentir, é mais música que palavra, não que a última adquira o valor de mero som, mas é que a palavra quando musicada cede à predominância da música, muitas vezes sendo embaçada pela construção melódica. A canção não é o casamento perfeito de palavra e música, muito pelo contrário: “Estetas eminentes têm declarado repetidamente que a forma mais elevada de composição de canções é uma fusão de poesia perfeita com música perfeita. Na realidade, porém, um poema muito vigoroso pode chegar a militar contra toda música.” (LANGER, 2011, p. 159). Dessa forma, diz-se que a canção é um fenômeno mais dionisíaco, aos sentidos, que ao apolíneo, ao intelecto (NIETZSCHE, 2007). Não há música estática, nem som infinito. Sendo o tempo a matéria-prima da música, utilizam-se ritmos, compassos, cadências, alterações de sons, ruídos, pausas e alturas para se atingir a representação do movimento. Quando submetida à música, a palavra é necessariamente submetida ao tempo; e o tempo é o que legitima a realidade, segundo seus agentes: a Física, a Química, a Biologia, a Astronomia, a História, a Psicologia. Segundo essas áreas, apreendemos o tempo porque as coisas se movimentam. A origem do tempo é o movimento. A vida opera como uma canção, através do tempo fluido comunicado pelo gerúndio em A canção da vida: “está cantando”. A relação tempo-realidade-canção continua em toda extensão do poema, que já no segundo verso afirma: “a vida é uma sarabanda”. O termo sarabanda designa uma dança renascentista de origem hispana ou hispano-americana e seu estilo musical. Compete lembrar que o pensamento 185 filosófico dominante na Renascença era o Humanismo, que é a tentativa de valorizar e compreender o homem em seu mundo – simultaneamente natureza e a história (ABBAGNANO, 2007, p. 602). A simbologia dessa dança é muito valiosa para a leitura que se faz no momento, porque a sarabanda é executada em compasso ternário. O compasso é a divisão do todo coeso da música em tempos, essa divisão se dá através do agente do compasso: o ritmo (MED, 1996, p. 114), principal manipulador do movimento que, em imaginação musical, reproduz as sensações naturais como o palpitar do coração e situações como andar ou correr. O ritmo é a alternância do tempo determinado pelo compasso, é a substituição de um som específico por outro que o sucede. O compasso Object 12 , lê-se três por quatro, já foi chamado de “compasso perfeito” (MED, 1996, p. 119) e sua antiga notação na partitura era indicada por uma circunferência: ○. O compasso ternário não divide o tempo como os outros compassos, ele determina que o tempo deve ser dividido em três, onde o primeiro tempo é forte e os dois últimos são fracos. Este tipo de compasso está longe de ser o mais preferido pelos compositores ou musicistas por ser considerado quebrado. Observamos isso espelhado em A canção da vida pela quebra observada nos enjambements, que transmitem ideia de assimetria. O poema procura seguir a estrutura da sarabanda o poema quanto a sarabanda e seu compasso ímpar, que não se emparelha. Quando se diz “a vida é uma sarabanda”, não se está só comparando a vida/a realidade com a sarabanda, porque não se trata de semelhanças, mesmo que intensas; mas de equivalência. Dizer os atributos da vida é necessariamente dizer os atributos da sarabanda e vice-versa. Logo, a metáfora “a vida é uma sarabanda” é uma afirmação segura e correspondente daquilo que se quer comunicar. Quando retomamos a epígrafe de Esconderijos do tempo: “Um velho relógio de parede/ numa fotografia/ – está parado?” (QUINTANA, 2005, p. 467), percebemos a insinuação de que o tempo não esteja proporcionalmente tripartido em passado, presente e futuro, o que corresponde à divisão do compasso ternário. Na sarabanda o primeiro tempo é forte e os outros dois são fracos. Assim como ocorre no atavismo, lemos preponderância do passado em relação ao presente e futuro. A sarabanda, assim como o atavismo cria o efeito da ciclicidade, do retorno; tão bem representado por sua grafia musical: uma circunferência. 186 A canção da vida quer o tempo de algum modo cíclico, espiralar, de retornos, dinâmico, interativo. Essa relação de três materializa-se na estrutura tríplice: há três rimas, três versos com pontos de exclamações e três reticências, sinal gráfico que por sua vez é formado de três pontos. Em todos os versos onde as reticências aparecem elas podem ser interpretadas como afasia por emoção demasiada, entrando em conjuntura em torno da excitação; leitura facilmente comprovada pela existência de outros três versos onde se localizam pontos de exclamação. Outra interpretação interessante para esta análise é a mobilidade indicada pelas reticências, possibilitando a existência do fluido e de um além. Ao indicar continuidade, retoma-se a leitura do tempo da seguinte maneira: as reticências, no que diz respeito à sua forma, são um recurso gráfico formado um único sinal de pontuação composto de três pontos exatamente iguais. Se considerarmos a ideia de tempo como unidade, veremos que ele também pode ser decomposto em três: passado, presente e futuro. Mas as reticências são um trio formado pelos mesmos caracteres, nesta leitura indicam pé de igualdade dos tempos. O tempo nos quintanares é uno, uma coisa só, mas dividida em três partes ativas e cíclicas, não inertes, que se mesclam, retornando em vaivém. Passado, presente e futuro se ajuntam em um todo que não para – observe-se que o poema se isenta de utilizar pontos finais. Essa é a mesma dinâmica do ativismo que funde os tempos. Ulterior a Mario Quintana, a linguagem do cinema utilizou as mesmas propriedades simbólicas da sarabanda com os mesmos fins do poeta gaúcho. Em Sarabande (2003), Ingmar Bergman (1918-2007) retoma a história de um casal já utilizada anteriormente em outras produções do diretor. No enredo da película, a temporalidade é avançada em trinta anos, mas mantendo suas relações com o passado e o futuro. Em um momento de tensão, quando a filha está em conflito acerca de seus planos, o pai pede que ela toque uma sarabanda ao piano – estilo onde o primeiro tempo, o passado é o mais forte – ela então pergunta se o pai quer que ela toque a música naquele momento – o presente do enredo – ele afirma que sim. Nessa cena sintética do enredo temos, pois, as três divisões do tempo miscíveis. Na linguagem musical, o impressionista Claude Debussy (1862-1918) também reaproveitou a sarabanda com as mesmas propriedades em Sarabande na peça Pour Le Piano, que apesar do estilo mais lento, ainda resguarda suas influências do Simbolismo. O que causa surpresa, contudo, é que compositores sacros como Sebastian Bach (1685-1750) e George Händel (1685-1759) tenham feito uso desse estilo considerado degradado porque sensual demais. A sarabanda também comumente faz uso do ritornelo, que “é uma barra dupla, sendo uma grossa e outra fina, com dois pontos (um abaixo e outro acima da terceira linha.” (MED, 1996, p. 187 237), símbolo da volta. O ritornelo, na pauta, no poema, na vida, fada o tempo a algum retorno. A preocupação de fundir passado, presente e futuro está presente já no início da obra de Mario Quintana: “[...]Fora, um realejo toca para mim/Valsas antigas, velhos ritornelos.//E esquecido que vou morrer enfim,/Eu me distraio a construir castelos...[...]” (QUINTANA, 2005, p. 112. XXVIII, grifo nosso). Existência e acontecimento só entram em relação com o homem através do conceito de tempo. A realidade requer o tempo, sem este não há possibilidade daquela. O tempo é o determinante da realidade. Ele impõe limites, regra, organiza os fenômenos. É possível conceber o tempo apartado da realidade, mas o contrário não é possível; argumento baseado no empirismo: voltar ao passado ou viajar ao futuro são ações irreais, só encontram espaço em teorias físicas pouco consolidadas ou na ficção científica. Mario Quintana pensa o contrário ao unir as três divisões do tempo em uma coisa só, como no caso das reticências. A vida, isto é, o que existe/acontece: o real é fluido, dinâmico, mas cíclico, como o atavismo, a porta-giratória, a canção, como a sarabanda e seu compasso em 1 2 . Pensamento que persiste no terceiro verso, “é um corrupio...”. Corrupio é termo que designa qualquer tipo de brinquedo ou tipo de brincadeira que envolva o movimento giratório. Enunciar via metáfora que vida é lúdica se contrapõe à realidade da cultura, regida pela circunspecção, pela seriedade. O lúdico é fenômeno anterior à própria cultura (HUIZINGA, 2007, p. 11). Entretanto, não se trata de qualquer brinquedo, de qualquer brincadeira; o corrupio se constitui pelo giro que é rotação, movimento circulatório. A voz lírica enuncia a vida como circuito. Enquanto brinquedo o corrupio consiste em uma caixa de ressonância presa ao centro de um barbante que ao ser rodado, tensionado e distendido, faz com que a caixa de ressonância gire, produzindo um zunido peculiar. No Seridó potiguar há uma variação de corrupio chamada de rói- rói, engenho que segue os princípios físicos similares: uma caixa de ressonância é presa em uma das extremidades de um barbante de agave, enquanto a outra extremidade do barbante está amarrada numa pequena haste de pau que, ao ser rodada, faz com que a caixa de ressonância gire produzindo um som característico. A vida como brinquedo não se associa à deliberação. Não está na capacidade do ser humano modificar uma realidade que emana do movimento. A vida do ser, assim como o brinquedo, sofre tensões, distensões e giros resultantes dos fenômenos naturais e sociais, para se produzir, para produzir seu som específico. Enquanto houver movimento haverá zunido/vida. 188 O teor do poema não expressa simples convite ao câmbio de realidades, as afirmações dos três primeiros versos não proporcionam alternativas para escolha; a voz lírica busca a remoção61, como quem diz ao companheiro triste ‘venha’, ‘vamos!’. A canção da vida se aproxima como voz amistosa que visa confortar um amigo, pedindo-lhe que se conforme com o movimento, tentando lhe mostrar como realmente são as coisas e o lado excitante delas. Por outro lado, se a vida é brinquedo, deve-se aproveitá-la como solaz, dando-lhe movimento e extraindo dela um som: a poesia Enquanto jogo ou brincadeira, o corrupio consiste no rodopio, que pode ser feito por um único indivíduo, mas também com dois ou mais. No corrupio individual, o sujeito escolhe um dos lados para girar com vigor, geralmente os braços são abertos para dar maior estabilidade ao movimento. Uma cena genuína como essa adquire o simbolismo de espontaneidade, alegria natural, liberdade, independência, alforria e entrega plena à fruição. Quando a brincadeira é feita em par, os dois indivíduos geralmente se dão as mãos frente a frente, inclinam-se um pouco para o lado de trás – para aumentar a força centrífuga das viradas – e começam a girar. Não importa o número de participantes no corrupio, o efeito da atividade é a fruição que resulta principalmente da alternância ligeira das posições dos corpos e da sensação centrífuga. Novamente, não se trata de simples movimentos finitos, trata-se de movimentos cíclicos. Entretanto, há outra interpretação do terceiro verso que pode ser mais rica para a leitura que se faz agora. O corrupio musicado: a ciranda. Interpretação cabível, haja vista o poema abordar manifestações sonoras, o que é confirmado entre os versos quatro e nove: “A vida múltipla dá-se as mãos como um bando/de raparigas em flor/e está cantando/em torno a ti:/Como eu sou bela, /amor!”. Comecemos a observar esses versos com mais acuidade: O quarto verso afirma a vida como sendo múltipla. Dele se pode extrair a ideia de multiplicidade como grande número, abundante complexidade, que possui inúmeras facetas ou variedades, que não pode ser uma só porque plural. Mas também é possível se extrair a ideia de multiplicação que é “produzir de novo; reproduzir” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1978, grifo nosso). Destarte, tem-se a vida que prolifera, que irradia seus predicados, mas que estes estão de mãos dadas, isto é, os fenômenos relativos à vida/à realidade estão interligados. Mas os predicados 61“Tornar a mover” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 2426) 189 da vida não estão somente unidos, eles estão agregados pelo natural, pelo animalesco: bando é ajuntamento de animais. Ou ainda: o bando alude à ilegalidade, à atividade criminosa, antissocial. A vida mimetizada no quintanar se contrapõe à sociedade, à organização. Entretanto, esse bando de mãos dadas e múltiplo tem uma composição característica: ele é feito por indivíduos do sexo feminino no ápice da sua juventude, que é o auge da beleza física, do vigor. Estar em flor é estar “no período de maior brilho” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1357), fértil, fecundo e suas relações com a libido. O quinto verso poderia ter sido continuado no quarto, mas não foi. O enjambement sutil da mensagem foi dado para enfatizar o grau de excitação frente à vida: o erotismo foi a escolha que o poeta julgou como a melhor forma de expressar o desejo intenso. Estar em flor é, assim como o é para os vegetais, apresentar-se pela primeira vez, estar desabrochado, aberto, vicejante, pronto para a reprodução. A flor recém-aberta desperta o desejo por causa da textura, formato e coloração de suas pétalas. Flores implicam reprodução, elas são os órgãos reprodutivos da maioria das plantas, logo, o prazer de vê-las é voyeurístico e pode estar ligado aos tempos primitivos, quando o homem poderia calcular a safra. O bando criminoso de mulheres no auge de sua beleza está cantando “como eu sou bela”, o que amplifica ainda mais a sensualidade da vida. Ao apresentar um grupo de moças que canta, o sexto verso, aliado ao sétimo – que traz a expressão “em torno a ti”, o poema ainda explica que o convite ao sensível que está à volta, à roda. Ciranda significa mais que “movimento giratório à volta de um centro; giro” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 2738). O termo também dá nome a uma dança lasciva, o que confirma a leitura de erotismo desses versos e suas implicações com a sarabanda, que também carrega em si a marca da sensualidade. Sendo um poema de extremo controle coesor, a palavra torno também confirma nossa leitura de que A canção da vida trata da ciclicidade do tempo/da realidade. O sétimo verso ainda traz um interessante uso dos dois pontos. Os dois pontos, sendo introdução da fala de um interlocutor, precedem o discurso direto. Baseado nisto, entende-se que o poema tem ao menos duas vozes líricas, gerando algumas possibilidades de leitura doravante: i) Do primeiro ao sétimo verso uma voz lírica funciona como apresentadora de um espetáculo musical prestes a acontecer. Esta primeira voz se comunica com o leitor utilizando a segunda pessoa do singular do presente do indicativo e anuncia a chegada da cantora, a vida: segunda voz lírica do poema. Para o anuncio, a primeira voz lírica utiliza a terceira pessoal do presente do indicativo. A segunda voz lírica também faz uso da segunda pessoa do singular do presente do indicativo. Na fala da vida enquanto segunda voz lírica observa-se que “entra” é imperativo afirmativo e se relaciona com o imperativo negativo “não vás”. A segunda voz lírica 190 continua até o penúltimo verso. Neste caso, as vozes em discurso poderiam ser lidas assim: {(1ª voz [1, 2, 3, 4, 5, 6, 7]) + (2ª voz [8, 9, 10,11,12,13,14, 15, 16, 17, 18, 19, 20])}. ii) Do primeiro ao sétimo verso acontece a mesma coisa, mas a primeira voz lírica retoma o discurso já no décimo verso, sendo somente o oitavo e o nono verso pertencentes ao discurso direto da segunda voz lírica, da vida. Neste caso, o discurso da vida termina no primeiro ponto de exclamação do nono verso. “Entra” é recurso narrativo da primeira voz lírica que descreve um fenômeno utilizando a terceira pessoa do singular do presente do indicativo. Assim, o imperativo negativo “não vás” se relaciona com o pronome “ti”. Neste caso, as vozes em discurso poderiam ser apresentadas assim: {(1ª voz [1, 2, 3, 4, 5, 6, 7]) + (2ª voz [8,9]) + (1ª voz [10,11,12,13,14, 15, 16, 17, 18, 19, 20])}. iii) Do primeiro ao sétimo verso acontece a mesma coisa, mas a primeira voz lírica só retomará seu discurso no décimo sexto verso. Dessa forma, “entra” é imperativo afirmativo da segunda voz lírica enquanto “não vás” é imperativo negativo pertencente à primeira voz lírica. {(1ª voz [1, 2, 3, 4, 5, 6, 7]) + (2ª voz [8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15]) + (1ª voz [16, 17, 18, 19, 20])}. Para prosseguirmos nossa leitura, adotaremos a primeira possibilidade. O vigésimo primeiro verso é parentético, podendo indicar: a) que se trata da primeira voz lírica que retoma o discurso; b) é a segunda voz lírica, a vida, que termina seu tom de forma mais enfática – os parênteses são utilizados para reforçar a ideia de realce discursivo; c) é uma terceira voz lírica que interfere no final do poema; d) no sentido matemático, os parênteses do poema servem para acomodar os participantes de uma mesma operação, logo, o último verso é enunciado por ambas as vozes líricas: a voz apresentadora e a própria vida em enunciação simultânea. Dentre as possibilidades de leituras do último verso, é essa derradeira a que adotaremos. Há pelo menos doze formas diferentes para continuarmos a ler A canção da vida. Essas doze formas podem inclusive ser lidas simultaneamente. Por necessidade de chegarmos à intenção proposta nesta parte, como também por fins de concisão, elegemos somente umas das leituras possíveis. Todavia, que a complexidade oferecida por essas possibilidades nos sirva para demonstrar que a própria estrutura do poema acompanha seu conteúdo: o movimento, o giro, o retorno, a unidade que é múltipla. Prossigamos a leitura, tendo em vista a ciranda como variante do corrupio e analisadas as integrantes dessa brincadeira. A ciranda nada mais é do que um grupo de pessoas que se dão as mãos formando uma circunferência e cantam uma cantiga de roda. Enquanto cantam retiram um dos seus integrantes da circunferência e a posicionam no centro. Os integrantes da ciranda continuam a girar até que haja 191 número insuficiente de pessoas para continuar o giro, pois a maioria dos participantes está dentro da circunferência. No Seridó potiguar uma dessas brincadeiras é conduzida pela seguinte canção: Tingo- tilingo-tingo/ É de carrapicho/ Bota * na lata do lixo. O asterisco deve ser preenchido sucessivamente com o nome dos integrantes da ciranda cada vez que a toada é reiniciada. A escolha do nome para sair da roda não tem regra específica, é repentina e aleatória, mas as crianças tendem a pôr dentro da ciranda aquele colega com quem estão um pouco chateados. A canção é repetida continuamente até que quase todos estejam do lado de dentro e os braços dos que ainda estão a girar e a cantar, do lado de fora,não sejam mais capazes de conter aqueles do interior. Quando isso acontece, a ciranda é dissolvida com o grito de alegria, pulos e a repetição da frase “A lata se furou”. A canção é cantada com animação, com nuança traquinas, com alternâncias na velocidade do giro, que vai do mais lento ao mais ligeiro. A simbologia desse acontecimento lúdico é muito valiosa. Ela representa a circularidade, o movimento, o retorno, aquilo que passa, mas volta, as diferentes faces que os participantes do interior assistem em alternância em fração de segundo, a leveza inerente ao tom de brincadeira aliada com um pouco de malícia na travessura de pôr um colega dentro da ‘lata de lixo’ e o perdão/reconciliação – visto que a ‘lata de lixo’ não dura para sempre, ela se dissolve no momento em que os integrantes da ciranda se tornam poucos: símbolo lúdico de que a solidão não é interessante: no fim, todos estão juntos novamente. É assim que se pensa o corrupio e o “bando de raparigas em flor” do poema. Falta agora juntar a sensualidade da dança sarabanda com a ciranda. Aliás, seria mera especulação falar que os dois termos se ramificaram de uma mesma origem, mas a etimologia espanhola de ambas é curiosa62. O poema permite tal aproximação entre os versos dois e sete. O quinto verso já anunciara que a ciranda é composta por jovens sedutoras – que despertam extraordinário desejo, extrema atração, logo, tende-se a crer que no interior da ciranda esteja um indivíduo do sexo masculino, representação ontológica da humanidade em geral, homens ou mulheres. A tentativa dos versos é representar o desejo ardoroso que provoca a vida. Dessa forma, imagina-se que a vida – “raparigas em flor” – passe pelo homem que, no centro da roda, deseja cada uma de faces a ele apresentadas e variadas ao mesmo tempo: a mais alta, a mais encorpada, a ruiva, a morena, a loira, a de olhos castanhos, etc. A imagem é completada pelo apelo das integrantes da 62“zaranda” para ciranda e “zarabanda” para sarabanda (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 725 ; 2519), entretanto a raiz etimológica de ambas está perdida no tempo, a origem etimológica para essas palavras é obscura. 192 roda que cantam a si mesmas, tentando o indivíduo no centro da ciranda: “Como eu sou bela”, cantiga que intensifica a dúvida do ser a respeito de qual daquelas faces ele deve escolher. Dúvida aumentada pela demonstração de desejos da parte delas também: todas as faces chamam o indivíduo que está no centro de “amor!”, vocativo utilizado no nono verso. Esse tipo de leitura, onde a vida é análoga à fêmea e o ser no centro da ciranda ao macho, não soa descabida, visto que em diferentes regiões do Brasil a ciranda acontece em rodas concêntricas, onde se organizam os “homens por dentro e mulheres por fora” (CASCUDO, 2001, p. 141). De acordo com a leitura proposta, a vida metamorfoseada em ciranda continua seu discurso do verso onze até o penúltimo. E ela pede para que o ser entre na ciranda, faça parte do coro, penetre em sua tessitura: a tela é feita de tecido, juntura de fios. A segunda pessoa do singular em um imperativo afirmativo não deixa dúvidas: trata-se de pedido íntimo. A vida/ciranda quer que sua malha seja impressa pelo ser, que o ser se desenhe no seu trançado. Mas que o ser, agora tinta, não se pinte de qualquer forma. O ser, ao entrar na ciranda, deve ingressar com características específicas: o estilo de Renoir. Pierre-August Renoir (1841-1919) foi um pintor francês do Impressionismo e sob a influência desse movimento procurou figurar a alegria que é representada pela luminosidade e pela sensualidade feminina. Seu trabalho adquire formas embaçadas, mas não só por causa da luz, o Impressionismo é “caracterizado pelo interesse em efeitos fugazes de luz” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1584), mas porque a luz está em constante transformação e ele pretendia capturar o movimento, por isso também preferia pintar ao ar livre. Como resultado, suas telas não têm linhas nítidas e as cores não apresentam muita mistura: é o que se vê no momento que não é estático. O Impressionismo se negava a fazer cópia fiel da realidade, buscava “retratar as sensações e não as coisas [...]” (MOISÉS, 2004, p. 239), a impressão que se tem da vida, que é mutável. A sombra no impressionismo adquire às feições da coisa refletida, não existe reflexo sem o matiz do que é refletido. Renoir também se empenhava em apreender a sensualidade feminina. Sua tela de maior fama é justamente sobre o argumento que se expõe aqui, chama-se O baile no Moulin de la Galette (1876) de onde se observa figuras em movimentos, cortadas, como a se completar em dinâmica cena ao ar livre feita com movimentos de dança, em uma perspectiva infinita, linhas sem solidez, luzes distintas, casais, a beleza feminina cortejada por homens de tons azulados. Renoir está posicionado exatamente no undécimo verso, que é exatamente o centro do poema. Pelo encaminhamento do poema até ali, percebe-se que a mensagem já deva está compreendida, sendo Renoir o clímax, apoteose da proposta estética. O que se sucede do undécimo verso em diante é confirmação e fechamento da proposição. A alusão à forma de enxergar a realidade por Renoir deve ser adotada como faculdade de se 193 plasticizar, pois que a vida não deixa outra opção. A precisão de aceitar o movimento é intensificada quando “enquanto é primavera”, décimo segundo verso, é lido como atributo de Renoir. Não podendo ser qualquer tela do pintor francês, mas as telas pintadas enquanto é primavera, quando há mais efervescência de novas formas de vida e a luz é crescente, o que torna a assimilação do quadro a ser pintado na tela uma atividade ainda mais múltipla. Lemos “de Renoir” como o fim de um período poético, enunciado pela segunda voz lírica, ainda que não haja indicadores como pontuação e verso inicializado por letra maiúscula. “de Renoir” é a conclusão de uma enunciação, não encerramento do pensamento do mesmo enunciador. A vida/a realidade, segunda voz lírica continua seu discurso através do décimo segundo e décimo terceiro versos: “enquanto é primavera! ”, subordinada adverbial temporal do imperativo negativo que a segue. A primavera faz parte da ciclicidade da natureza e está associada ao re/nascimento. Com a pouca exceção dos trópicos, a primavera é quando os animais se acasalam para dar a luz no verão, é quando as folhas reaparecem nas árvores desgastadas pelo inverno e seus ramos florescem e quando o homem planta esperando amadurecimento no verão e a colheita no outono. É preciso sempre levar em conta que A canção da vida é um diálogo ente o leitor e própria vida. Já fora anunciado no sétimo verso que a própria vida do interlocutor está próxima a ele, e que ela está “em flor”, desabrochada. A primavera é sinônimo do agora da vida/realidade, do tempo em que se vive, do presente: “[...] A Primavera mora no País do Agora! [...]” (QUINTANA, 2005, p. 408, Encantação da primavera), “Primavera?! A primavera, entre nós, é uma licença poética.” (QUINTANA, 2005, p. 273, Primavera scapigliata). Esse diálogo específico foi projetado para acontecer cada vez que o poema é acessado. O tempo do poema é o tempo da leitura, o agora. O tempo desta redação acadêmica é um agora, o tempo da leitura desta pesquisa é um agora, logo, o agora é móvel e o agora é a primavera, por conseguinte a vida é móvel. Destarte, a vida e o presente requerem a circularidade e o quebradiço da sarabanda, o giro do corrupio, a alegria da ciranda, o desejo e a beleza das raparigas em flor: o movimento: “[...] A primavera, em compensação, é uma menina pulando na corda.” (QUINTANA, 2005, p. 289, Família desencontrada) que é solaz: “As águas riem como raparigas [...]” (QUINTANA, 2005, p. 858, Primavera). A primavera se caracteriza também pela multiplicidade das cores de suas flores. Logo, o agora não pode ter uma única cor definitiva. Isto é, o presente é composto pela mistura dos tempos como já discutido anteriormente no início da nossa exposição. Também já se discutiu a simbologia do verde (BARATA, 2010) como representação do devir, do que está em processo de mutação. O décimo quinto verso de A canção da vida fala sobre o azul que está no ar e lemos esse azul como o 194 pretérito, mas especificamente como a memória: “Não, não foi por humor negro que pus no que leste acima o título de "Conto azul". Costumamos pintar sempre de azul tudo o que se passou nos nossos quinze anos - talvez por um instinto de compensação. Mas a infância, ó poetas, não é mesmo azul?[...]” ”(QUINTANA, 2005, p. 278, Conto azul) . O poema Primavera também confirma nossa leitura: “As águas riem como raparigas/ À sombra verde-azul das samambaias” (QUINTANA, 2005, p. 858). A primavera é o produto de uma ação coletiva – “riem” é terceira pessoa do plural do presente do indicativo – que é amparada – “À sombra das” é locução adverbial de lugar, a preposição da crase pode ser substituída por sob. A primavera é a vida que é sempre um agora que se movimenta sob duas cores, o verde que é o futuro e o azul, que é o passado. A samambaia está entre as plantas mais antigas do planeta, sobreviveu catástrofes e nos dias atuais ela não só abunda na natureza como é cultivada para fins ornamentais. Planta muito adaptável e resistente, parece querer perpetuar-se a todo custo. A água além de amorfa, adaptando sua forma ao recipiente, foi o primeiro espelho do homem. Sua superfície mostra a imagem ligeiramente deformada e a luz refletida por prismas oriundos do movimento. Não necessariamente o azul nos quintanares vá representar o passado. Todavia, aqueles que o fazem são mais abundantes. O azul é a cor que marca a infância nos quintanares: “[...] Longe, no céu azul da tua infância!” (QUINTANA, 2005, p. 118, XXXII), “Havia um tempo em que o céu mirava-se nos meus olhos e não meus olhos no azul do céu, o que não é nenhuma novidade, porque todo mundo já passou por essa fase: só que nem todos se lembram...” (QUINTANA, 2005, p. 284, A fase azul), mas também se liga às horas anteriores à primavera: “Porque todas as coisas que estavam dentro do balão azul daquela hora” (QUINTANA, 2005, p. 432); igualmente arranjado em Tarde antiga: “Era a mais suave, a mais azul das tardes...” (QUINTANA, 2005, p. 406). Mas essas horas passadas, principalmente a infância, são ativas no presente, insistem em travar relações com o agora, exemplificado pelo poema Quem seríamos? – episódio de um indivíduo que se encontra, via memória, com uma versão sua mais antiga, observa-se que essa variante anterior do ser é de cor azul: “Veio um instante, partiu de novo, /Leve, sem nome.../Para que nomes? Era azul e voava.../No véu das horas punha o seu motivo.[...]” (QUINTANA, 2005, p. 463). É pela importância que o poeta gaúcho dava a memória, que ele utiliza o azul para criticar o cânone literário que é tido por trabalhar somente a relação presente-futuro por intermédio de matiz sombrio: “[...] Por que é que esses Arcanjos neurastênicos/Só usam névoa em seus efeitos cênicos? /Nenhum azul para te distraíres...” (QUINTANA, 2005, p. 100, XVI). Nos quintanares a figura do anjo recupera sua simbologia quase perdida, anjo é mensageiro, poeta. Os arcanjos são os grandes poetas, que em seus poemas negligenciam o azul, a memória, o 195 passado, essa negligência se dá pelo desassossego, talvez causado frente ao desconhecido futuro. De acordo com o quintanar, tentar trabalhar o passado é preferível, porque o azul “distrai”, é divertido e, metaforicamente útil por “afastar o pensamento de (trabalho, preocupações, tristezas, obsessões etc.)” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1061). Essas considerações sobre o azul de A canção da vida foram necessárias para continuarmos a ler a relação que tem essa cor com a primavera. E não é só em A canção da vida que tal relação aparece: “Oh! este vento azul de primavera!/E o céu tão límpido, lá - alto...[...]” (QUINTANA, 2005, p. 871, Poema datado). Entre os versos doze e quinze, Mario Quintana toma emprestado da preocupação ambientalista de seu tempo a expressão ‘poluição do ar’, dando-lhe acabamento estético para nova significação. O automatismo da leitura nos faz perguntar o porquê de o mundo não poluir o ar, mas o azul dele; é então que procuramos entender as acepções de mundo, azul e ar. Ao ter descoberto uma possibilidade de leitura para o azul, discernimos o ar em A canção da vida como tudo o que envolve o ser. Do ar fazem parte a vida/realidade e o imaginário: “[...] Tudo é tão atmosfera, o gesto, a cor, o movimento. [...]” (QUINTANA, 2005, p. 439, Retrato no parque); “Como são belas/ indivisivelmente belas/ essas estatuas mutiladas.../ Porque nós mesmos lhes esculpimos/ – com a matéria invisível do ar – [...]” (QUINTANA, 2005, p. 881, Do ideal). Apesar de o ar ter nos quintanares maior recorrência significativa como espaço aberto, indefinido, pensa-se que a leitura que se faz agora também é possível e a mais coerente para o poema. Ocorre que o azul do ar, isto é, o passado que envolve ou o envolvimento pelo passado, pode ser ameaçado pelo mundo. Portanto, têm-se o mundo como sendo diferente da vida, estabelecendo, inclusive, posição antagônica a ela, apesar da possibilidade de ele ter-se derivado dela. O antônimo da vida – sarabanda, corrupio, ciranda, desejo, movimento – só pode ser o estático, a pré/determinação, o premeditado. O mundo, pois, baseia-se na pré/ordenação, no estável, no controle. O mundo sugerido no verso quinze é a vida coletiva, “a vida em sociedade” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1980). O mundo é a cultura e seu establishment. A vida se mostra ao mesmo tempo superior e frágil em relação à cultura, porque pode ser ameaçada por esta. É a possibilidade de um embate entre o natural e espontâneo versus o artificial e mecânico. Outro quintanar explica que o mundo não é possível sem a vida, é esta quem move aquele: XXIV Para Lino de Mello e Silva 196 A ciranda rodava no meio do mundo, No meio do mundo a ciranda rodava. E quando a ciranda parava um segundo, Um grilo, sozinho no mundo, cantava... Dali a três quadras o mundo acabava. Dali a três quadras, num valo profundo... Bem junto com a rua o mundo acabava. Rodava a ciranda no meio do mundo... E Nosso Senhor era ali que morava, Por trás das estrelas, cuidando o seu mundo... E quando a ciranda por fim terminava E o silencio, em tudo, era mais profundo, Nosso Senhor esperava.., esperava... Cofiando as suas barbas de Pedro Segundo. (QUINTANA, 2005, p. 871, Poema datado) Dessa maneira, a ideia entre os versos doze e quinze de A canção da vida pode ser a seguinte: enquanto o passado, a infância e o intercâmbio de tempos não forem poluídos, corrompidos pelo artificial, alterando a primavera/o agora, causando embaço no movimento/na luz ininterruptamente mutante como as das telas de Renoir, enquanto a vida for capaz de cirandar, haverá infinidade de possibilidades para o ser. Mais uma vez a própria estrutura do poema demonstra a coexistência simultânea dos tempos/da vida/da realidade: “enquanto é primavera [o agora, presente]/enquanto o mundo/não poluir [possibilidade de futuro]/ o azul do ar! [passado que persiste]”. Observe-se também o refinado convite expresso entre os versos dezesseis e vinte, que é ideia principal à qual os últimos três versos se subordinaram: “Não vás ficar/ não vás ficar/ aí.../ como um salso chorando/ na beira do rio...”. Nota-se relação semântica embebida em uma única isotopia, a da mobilidade-imobilidade. Dessa forma, o imperativo negativo duplicado nos versos dezesseis e dezessete utiliza o verbo ficar, que expressa permanência, continuação de estado. O verso dezoito é composto de apenas um advérbio e reticências. Aí é advérbio de lugar para indicar local que não o mesmo daquele de onde se enuncia, aí equivale a nesse lugar. Aí indica posição fixa, portanto o significado que mais se adapta a nossa leitura é “anexado, apenso”. Aí também exerce função dêitica de alteridade ou de confinamento, que faz fronteira, mas está à margem. As reticências dispostas que seguem a palavra “aí” terminam por exercer função adversativa do lugar imóvel; as reticências tanto podem indicar a elipse de ‘nesse lugar parado’ ou de ‘sozinho’, como podem também ser estratégia concretista para indicar o movimento: os três pontos transmitem a ideia de deslocamento, de avanço, de fluxo. 197 A isotopia da mobilidade-imobilidade é completada pelo antepenúltimo e penúltimo verso: “como um salso chorando/ na beira do rio”, ilustração de uma grande árvore que, como todos os outros vegetais, não pode caminhar. Além disso, a imobilidade da árvore é reforçada pela solidão na qual ela se encontra: a água no rio corre, no entanto, o salgueiro permanece, ficando solitário por não pode mover-se, distinguindo-se, pois, da sarabanda, da ciranda. Os versos dezesseis ao vinte são um convite ao movimento. Uma vez que o salso expressa a eminência da participação, que chega a tocar o movimento, mas termina por não fazer parte dele. Salso é substantivo utilizado para designar o Salix. Estas árvores, contudo, são mais comumente chamadas de salgueiros. Devido ao posicionamento do verbo chorar no gerúndio após a palavra salso, interpretaremos o salso como a espécie específica Salix babylonica, mais conhecido por salgueiro-chorão, que é árvore de “galhos elásticos, folhas lineares, flores pálidas [...]” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 2500). De origem chinesa, o salgueiro-chorão foi disseminado no mundo inteiro por causa do efeito ornamental que ele produz, principalmente à beira de lagos e rios, como também pela qualidade de sua madeira, que por ser extremamente maleável, produz o melhor dos vimes. O salgueiro-chorão tem copa abundante e a abundância de suas folhas produz uma massa que se distribui em ramos finos e flexíveis, oriundos de galhos mais rijos. Sob a ação da gravidade, o peso das folhas arria os ramos, dando a impressão de que infinitos pêndulos verdes foram amarrados nesses ramos ou de que a planta mesmo está escondida por trás de uma cortina como se fosse chuva verde que cai sobre árvore. Plantada junto à água, seus ramos pendulifoliados tocam a superfície líquida. O salgueiro-chorão é a representação do destinatário da mensagem do poema, o interlocutor com quem as vozes líricas – a primeira voz no início do poema e a própria vida – se comunicam. Representação porque o destinatário é feito de matéria flexível, mas não pode mover-se, está imóvel. O salgueiro-chorão vê de perto o movimento da água, da vida, da primavera, chega até a tocar nesse movimento, a senti-lo em suas folhas, mas ele não flui com a água. Pelo contrário, o salgueiro se fixa ainda mais perto da vida porque está triste. Notemos que o gerúndio do verso dezenove pode ser uma oração subordinada adjetiva explicativa reduzida de particípio, o que indicaria ação; entretanto, a possibilidade do gerúndio ter sido utilizado simplesmente como função de adjetivo, igual a choroso/chorão, na variante coloquial parece mais adequada. A árvore do poema reaparece nos quintanares como símbolo da impossibilidade do movimento, principalmente por causa do cansaço, da tristeza: “[...] E há uns salgueiros a pender de sono/ Sobre um fundo de pálida aquarela./ E há (está previsto) este abandono... [...]” (QUINTANA, 2005, p. 116, XXXI); “[...] Paraste enfim junto a um salgueiro doente,/Um salgueiro que espiava sobre o rio [...]” (QUINTANA, 2005, p. 118, XXXII). Representa, pois, a imobilidade, tempo 198 estático. Mas é também verdade que o direcionamento à água dos ramos pendentes do salgueiro- chorão, apesar de toda a sua acinesia, expressa a iminência de interação. Ora por receio, ora por tristeza, ora pela visão de si como ser imóvel, ainda há no salgueiro- chorão uma chama de desejo em relação ao rio – o movimento está tão próximo, a correnteza passa ao lado. O convite ao movimento feito entre os versos dezesseis ao vinte de A canção da vida se dirige às coisas vivas, o salgueiro-chorão, apesar da imobilidade, ainda está vivo, ainda pode desabrochar, é primavera. Apesar de toda a tristeza do salgueiro-chorão resultar na imobilidade, ainda há tristeza maiores que, claro, só poderia se tratar da imobilidade plena, da acinesia definitiva: “A imagem daqueles salgueiros nágua é mais nítida e pura que os próprios salgueiros. E tem também uma tristeza toda sua, uma tristeza que não está nos primitivos salgueiros.” (QUINTANA, 2005, p. 171, Parábola63), de onde se lê que a tristeza da imagem do salgueiro é maior que a do próprio salgueiro, porque o salgueiro da imagem está acabado, encerrado, como a tinta numa tela – não pode ser completado/complementado. A imagem está fixada, não (se) permite desestabilização, porque aí não seria imagem, perderia solidez. A motivação do poema foi a de mostrar que a vida faz frente à imobilidade por tristeza, que é contrária à alegria do movimento. Para tanto, o poema se desenhou alegoricamente em torno de agentes dinâmicos. A apreensão da vida por Mario Quintana é heraclitismo64: “Nunca dês um nome a um rio:/Sempre é outro rio a passar.” (QUINTANA, 2005, p. 145, Canção do dia de sempre). As reticências do último verso de A canção da vida também desempenham um papel em confirmar essa leitura. Indicando elipse, elas significariam “na beira do rio [que corre]”, mas pensamos também que Mario Quintana as tenha utilizado por concretismo: o sinal gráfico divido em três expressa fluxo, movimento do tempo que é uno mais diverso. A complexidade das ideias sugeridas no poema é sintetizada pela apresentação do primeiro verso: “A vida é louca”. O que se advém dos versos posteriores é a tentativa de explicar essa afirmação. Afirmação esta que obedece ao princípio do giro: voltando no último verso – que também obedece ao princípio de movimento: está recuado à direita, expressando avanço – para revisar em novo resumo: “(Como a vida é bela! como a vida é louca!)”. 63 “narrativa alegórica que transmite uma mensagem indireta, por meio de comparação ou analogia” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 2126), mas uma possibilidade para entender a estética quintaniana como mimética, recriação do real. 64“Indica-se, com este termo, o ponto mais relevante da doutrina de Heráclito de Éfeso (séc. V a.C), ou seja, o princípio do devir incessante das coisas, expresso no famoso fragmento: ‘Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio, nem tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo estado; graças à velocidade do movimento, tudo se dispersa e se recompõe novamente, tudo vem e vai.’ (Fr. 91, Diels). Heráclito, todavia, admitia um princípio único, subjacente ao movimento, que era o fogo; admitia, outrossim, uma ordem rigorosa nas mudanças, que garantia um retorno constante e periódico.” (ABBAGNANO, 2007, p. 579, grifo nosso) 199 Lê-se que o último verso está entre parênteses porque ele é a mensagem primordial do poema. Os parênteses podem ter sido utilizados para juntar as vozes líricas que participam no poema – uma única voz lírica enfraqueceria a mensagem do poema – e elas com ênfase reafirmam que a vida é bela e louca. Resultamos com dois adjetivos: bela e louca. De todas as possíveis compreensões acerca do adjetivo bela65, podemos ficar com três que reforçam nossa leitura: desejável; notável pelo número; difícil de prever, e precisar, inesperado (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 428). Para louca66, mais três: não segue uma direção previsível; brincalhão; que vai contra o que seria esperado. A vida é o tempo e o tempo é o movimento, ambos se escondem no ser fadado a ser um que é sempre outro. O movimento é brincalhão, o tempo não segue uma direção previsível, a vida vai contra o que seria esperado: tem-se a loucura como verdade; têm-se homem igual a louco. 65 "1 que tem formas e proporções esteticamente harmônicas, tendendo a um ideal de perfeiçõa; que tem beleza; lindo [...] 2 que produz uma viva impressão de deleite e admiração [...] 2.1 que provoca uma sensação de serenidade ou de aprazibilidade [...] 3 cujas qualidades, presentes em alto grau, o tornam destacado entre os seus congêneres [...] 6 que revela bondade; generoso [...] 7 feito com apuro e proficiência ; bem projetado e/ou bem construído [...] 9 que oferece proveito; apreciável; lucrativo [...] 10 notável pelo número [...] 11 difícil de prever, de precisar [...]"(HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 428) 66"1 que ou aquele cujo comportamento ou raciocínio denota alterações patológicas das faculdades mentais 2 p. ext. que ou aquele cujos atos e palavras parecem extravagantes, desarrazoados [...] 3 de aparência estranha, anormal, fora do habitual; tresloucado [...] 4 fora de si, transtornado, em razão de algo que é excessivo, custoso, que ultrapassa o limite do suportável e que leva ao estado de loucura [...] 5 absurdo, incompreensível, irracional [...] 6 desprovido de bom senso, que vai contra o que seria esperado, razoável ou prudente [...] 7 que não segue uma direção previsível, descontrolado [...] 8 cuja sensação, sentimento, emoção, etc. atingiu o paroxismo, o seu limite máximo 9 o que gosta demasiadamente de (pessoa ou animal) ou que tem forte predileção por alguma coisa [...] 10 falto de seriedade, de siso, que se mostra demasiadamente irreverente, atrevido, brincalhão 11 fora do comum, extraordinário, colossal [...]"(HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1785). 200 Figura 13: Narrenschiff Fonte: Acervo do autor 201 3.4 Cortinas de Tule Temos A canção da vida como parte de um referencial de realidade que é chamado de vida. É a esse referencial que Mario Quintana almeja dar expressão por meio do verso. A canção da vida não tem dúvidas, apesar de jogar com elas. Nesse seu jogo de duvidar, o verbo 'ser' no indicativo do presente faz surgir a verdade do poema, que é a não permanência dos valores. O verbo 'ser', submetendo-se ao controle dos versos que lemos, denota o verbo 'estar', a impermanência. Essa posição ainda pode ser verificada em outros versos, como em Hamletiana: "Ser ou estar... eis a questão!" (QUINTANA, 2005, p. 344). Entender a loucura como o fenômeno poético de coexistência entre opostos, Atena e Marsias, parece adequado. Quando lemos em A diferença: "A diferença entre um poeta e um louco é que o poeta sabe que é louco... /Porque a poesia é uma loucura lúcida." (QUINTANA, 2005, p. 828), poderíamos adequadamente responder que, em A diferença, a poesia está para o aulos, assim como loucura está para Marsias e lucidez para Atena. Contudo, achamos que A diferença queira dizer mais que isso. Falta ainda responder as seguintes perguntas: como o poeta sabe que é louco? O que é um louco sem lucidez? Perguntas que se juntam a outras levantadas em Memória de Paulo Corrêa Lopes: Tua poesia não leva à loucura; Poeta... Porque sempre voltaste com uma voz mais pura, Não a voz bramidora e cava dos profetas Mas um fluir de pura fonte oculta Na mata... E é como se ir andando descalço sobre a relva E descobrir de súbito o Trevo de Quatro Folhas De que nem se sabia que andava à procura E fica-se um tempo olhando, olhando, sem colhê-lo. E a tua voz é mansa como quem acaricia o pêlo De um animal doente... Mas a verdade é que Tua poesia faz bem à gente... (QUINTANA, 2005, p. 461, Memória de Paulo Corrêa Lopes). Se a poesia diz respeito ao interior humano, porque ela se quer um bem para o coletivo: "[...] Mas a verdade é que/ Tua poesia faz bem à gente..." (QUINTANA, 2005, p. 461)? Se a "[...] poesia não leva à loucura [...] (QUINTANA, 2005, p. 461)" aonde ela leva, afinal? Apesar da expressão latina non plus ultra não ser amiúde utilizada nos dias atuais, ela sempre significou o ponto mais alto, culminância ou perfeição de uma ação ou estado. Antigamente, 202 porém, ela era de uso específico da cartografia eurocentrista, para indicar que, depois de sua específica marcação no mapa, o navegador não poderia prosseguir adiante, pois não havia mais nada além daquele ponto. Tal crença proibitiva só foi definitivamente desmanchada na Era das Grandes Navegações, quando o Atlântico pôde ser amplamente explorado. Mesmo diante da expansão marítima, porções enormes do globo não puderam ser exploradas, e a cartografia continuou assinalando o desconhecido através de outra sentença em latim: Terra Incognita, ou seja, terra da qual nada se sabe. Às terras imaginárias, que talvez até existissem, mas esquecidas em decorrência de erros cartográficos anteriores, ganhavam corpo nos mapas do século XVI. Exemplos Atlântida, ilhas fantasmas, Hiperbórea, Eldorado, dentre outros. Tule67 era uma dessas terras incógnitas, ora marcada a norte, ora a oeste. Local desenhado pela mente, assim como Avalon e Sambala, terminou por despertar o interesse de conhecidos entusiastas pela relação sujeito-espaço-tempo, como os poetas – Mario Quintana dentre eles, como podemos observar no poema Teoria do esquecimento: A taça do Rei de Tule / Dorme no fundo das ondas. / Ele agora tem um bule:/ Lisinho, quente, redondo... (QUINTANA, 2005, p. 248, Teoria do esquecimento). No entanto, a palavra tule aparece em outras ocasiões da poética de Quintana, como podemos ler nos versos abaixo: O vento vinha ventando Pelas cortinas de tule. As mãos da menina morta Estão varadas de luz. No colo, juntos, refulgem Coração, âncora e cruz. Nunca a água foi tão pura... Quem a teria abençoado? Nunca o pão de cada dia Teve um gosto mais sagrado. E o vento vinha ventando Pelas cortinas de tule... Menos um lugar na mesa, Mais um nome na oração, Da que consigo levara Cruz, âncora e coração 67Já citada desde a antiguidade, pelo grego Píteas (circa 350 a.C - 285 a.C) em Sobre o Oceano, obra extraviada, somente conhecida através de citações por Políbio (circa 200 a.C - 118 a.C.) em Histórias e por Estrabão (circa 64 a.C - 24 d.C) em Geográfica. Ambos, Políbio e Estrabão acusam Píteas de embusteiro, sua viagem a Tule não teria sido possível. Dentre tantas menções à terra de Tule, citamos também Virgílio (70 a.C. - 19 a. C. ) nas Geórgicas (circa 29 a.C.) e Petrarca (1304 - 1374) em Epístolas Familiares (1359). 203 (E o vento vinha ventando...) Daquela de cujas penas Só os anjos saberão! (QUINTANA, 2005, p. 128). O poema que acabamos de ler acima chama-se Canção em um dia de vento e apareceu pela primeira vez em 1946, em Canções, segundo livro do escritor gaúcho. O poema foi dedicado ao argentino Maurício Rosenblatt (1906-1988), uma das peça-chave do mundo editorial sul-americano. Não se sabe ao certo o motivo da dedicatória. As relações entre Quintana e Rosenblatt passam do simples cotidiano laboral na livraria do Globo, onde o poeta era desempacotador; passa também pela tradução em 1934 de Em busca do tempo perdido (1913), de Marcel Proust (1871-1922), comissionada por Rosenblatt; até a acomodação do Espaço Maurício Rosenblatt na ala oeste do terceiro piso da Casa de Cultura Mario Quintana. Uma das expressões utilizadas no poema, especificamente nos versos dois e doze, "pelas cortinas de tule", nos chama particular atenção pelo seguinte motivo: "cortinas de tule" é um sintagma nominal com função referencial para duas coisas aparentemente distintas; e se pretendemos ler Canção em um dia de vento propriamente, devemos atentar para essas referências. "De tule" em relação à "cortina" se estabelece enquanto indicativo de matéria. Temos que as cortinas de que nos fala a voz lírica são feitas de tule, tecido leve, de trama fina, originalmente com fios de seda da melhor qualidade. Esse tipo de pano chega a alcançar preços altos hoje em dia, a média é meio salário mínimo por cada metro. O tule é um tecido esvoaçante, vaporoso e delicado, tem a transparência do véu. Sua coloração mais comum é o branco, que lembra a escuma do mar e o drapejado dos redemoinhos de vento. Sua característica de rede, renda, foi desenvolvida pelos habitantes de Tula, comuna francesa e capital de Corrèze. Esse tecido é empregado em diversas constituições ornamentais, inclusive na do vestuário do balé. Tula é palavra da língua occitana, derivada de Tutela, deusa protetora galo-romana. Por outro lado, se lemos a expressão "de tule" como locução adjetiva, seu valor equivalerá ao de um adjetivo pátrio: tuliano, de Tule, uma terra incógnita. Nesse caso o gentílico foi utilizado sem capitalização para indicar o local, que não é real68. De acordo com Guadalupi e Manguel, Tule69: 68Geograficamente, Tule designa hoje uma das ilhas que compõe o arquipélago chamado de Tule do Sul. A ilha pertence é território britânico. 204 Às vezes chamada de Última Thule, é uma ilha no Atlântico Norte, cerca de seis dias de barco Orkney. Thule é uma vasta ilha, dez vezes o tamanho da Grã-Bretanha. A maior parte do seu solo é infértil e o ar que circunda Tule é uma mistura de água do mar e oxigênio. Todo ano um estranho fenômeno acontece em Tule. Na época do solstício de verão, o sol nunca se põe; ao invés disso, permanece no céu até que chegue o solstício de inverno. Então, por um período de quarenta dias e quarenta noites ele permanece escondido. Os habitantes da ilha essa longa noite adormecidos, já que eles não podem fazer nada no breu. Entre as diversas tribos que habitam Tule há aquela chamada de scritifines. Os scritifines levam uma vida similar àquela das bestas. Eles nunca se vestem nem se calçam, não bebem vinho nem aram a terra. Como animais selvagens eles caçam as grandes criaturas que vivem nas florestas de Tule. Às vezes, no inverno, os stritifines se cobrem com a pele daquelas criaturas selvagens, e eles extraem tutano dos ossos dessas criaturas para alimentar seus recém-nascidos, que nunca recebem leite. Assim que uma criança nasce, ela é dependurada em uma árvore em um berço de couro, um pedaço de tutano é posto na boca dela e sua mãe parte com seu marido para se juntar aos caçadores. Os membros de outra tribo são conhecidos por sua adoração a vasto número de deuses e espíritos, que, dizem eles, habitam cada seixo, rio e árvore. Para tais seres eles oferecem sacrifícios humanos, matando a vítima no altar ou por empalamento em uma árvore ou o atirando a vítima em uma crevasse. Outra tribo, mais amigável é conhecida por seu delicioso hidromel, preparado com o mel abundante produzido por suas abelhas. (GUADALUPI; MANGUEL, 2000, pp. 648-649, tradução nossa) Torna-se um desafio tentar compreender a escolha que fez Quintana por esse termo muito específico. Ao tentar juntar essas concepções aparentemente distintas contidas no termo tule, tal como aparece nos poemas Teoria do esquecimento e Canção em um dia de vento, ainda nos deparamos com outro poema, que traz o termo Tule para designar uma taça específica. O poema é A canção do suicida: De repente, não sei como Me atirei no contracéu. À tona d’água ficou Ficou dançando o chapéu. E entre cascos afundados, Entre anêmonas azuis, Minha boca foi beber Na taça do Rei de Tule. 69Thule, sometimes known as Ultima Thule, is an island in the North Atlantic, some six days’ sail from the Orkneys. Thulge is a large island, ten times the size of Great Britain. Its soil is for the most part infertile and the air around Thule is a mixture of sea-water and oxygen. Every year a strange phenomenon takes place in Thule. At the time of the summer solstice, the sun never sets; rather, it stays in the sky until the winter solstice is reached. Then, for a period of forty days and nights, it remains hidden. The inhabitants od the island spend that long night asleep as they cannot do anything in the pitch-dark. Among the several tribes that inhabit Thule is once called the Scritifines. The Scritifines lead a life similar to that of beasts. They never dress or wear shoes, drink wine or till the earth. Like savage animals they hunt the large creatures that inhabit the forests of Thule. Sometimes in winter the Scritifines will cover themselves with the skin of wild creatures, and they extract marrow from the creatures’ bones to feed to their babies who are never given milk. As soon as a child is born, he is hung from a tree in a leather cradle, a piece of marrow is stuck in his mouth and his mother leaves with her husband to join in the hunt. The members of another tribe are known for the large number of gods and demons they worship, which they say inhabit every stone, river and tree. To these beings they offer human sacrifices, by slaughtering the victim at the altar, impaling him on a tree or throwing him down a crevasse. Another, more friendly tribe is noted for its exquisite hydromel, or mead, prepared from the abundant honey made by its bees. (GUADALUPI; MANGUEL, 2000, pp. 648-649) 205 Só minh’alma aqui ficou Debruçada na amurada, Olhando os barcos.., os barcos!... Que vão fugindo do cais. (QUINTANA, 2005, p. 147, Canção do suicida) A chave de leitura do termo Tule nos trê poemas de Mario Quintana está em Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), em sua célebre obra, O Fausto (1808). Mais especificamente, na Cena III, do Quadro IX da Parte I. Em uma noite, representando a ausência da razão, entre a sensualidade do despir-se antes de dormir e a alegria ao encontrar um baú de joias, Gretchen, a amada de Fausto canta a seguinte canção: Reinava, em Tule, algum dia Um bom rei, tão fino amante, Que, até morrer, foi constante À dama com quem vivia. À hora do passamento Deixou-lhe ela um vaso de oiro, Que foi do real tesoiro O mais falado ornamento. Punham-lho sempre na mesa; Só por aquele bebia; E o choro que então vertia Causava a todos tristeza. Vendo o seu termo chegado, Repartiu pelos herdeiros, Os bens 'té aos derradeiros, Excepto o vaso adorado. Foi isto em jantar de mágoas Que el-rei deu à fidalguia, Em torre herdada que havia Ao rés das marinhas águas. Como el-Rei houve bebido O seu último conforto, Co braço já quase morto Levanta o vaso querido. E por não deixá-lo ao mundo Da janela ao mar o atira; Ondeia o vaso revira, Enche-se, e desce ao profundo. No mesmo triste momento Em que o vaso se abismava, O rei seus olhos cerrava, Soltando o último alento. (GOETHE, 1948, pp. 146-147) 206 O rei de tule é o nome da canção de Gretchen, uma figura importante para a leitura da loucura nos quintanares porque Quintana também aborda o lado sombrio da loucura. É baseado nesse lado sombrio que procuraremos o equivalente sombrio para a poesia. Ao retomarmos a configuração da Tule imaginária, temos habitantes selvagens vivendo em um lugar isolado, onde não há navegação. É um povo sanguinolento, agente dos instintos. Os tulianos se agrupam em uma sociedade de caça, sua civilização não prevê cortesias ou gentilizas. Devido ao solo infértil eles precisam conseguir alimento abatendo feras. O período curto do solstício de verão, quando o sol nunca se põe, pode indicar momentos de zênite da razão. Por outro lado, os quarenta dias de escuridão indicam que o tuliano age desprovido da razão, tal qual Eremita em A Criada (LISPECTOR, 1998). O poema de Goethe, musicado por muitos compositores, nos diz de um grupo de tuilianos, cuja civilização já envolvia mais leis sociais e valores. O poema conta a história de um amor interrompido entre um rei e sua rainha. A canção de Goethe é construída com as mesmas propriedades dos contos de fada. Antes de morrer, a mulher lega a seu marido uma taça, pertence que ele manterá e guardará por toda a vida, como símbolo de um sentimento verdadeiro e enternecedor. A taça é de ouro, significando que o sentimento é duradouro, valioso, forte e verdadeiro. O copo ou taça, um vaso na tradução de Castilho, é também um símbolo da vida íntima do sujeito. O copo é um utensílio próprio, cada indivíduo tem o seu, de onde solve líquidos necessários à manutenção da vida. A taça de ouro funciona como um seio materno em negativo, de onde não se suga, mas se solve. Implica na lembrança da rainha, que ajuda o rei a viver. Ao perceber que sua hora de passamento estava próxima, o rei partilha seus bens. São valores que poderão ser herdados. No entanto, a taça de ouro tem outro valor, símbolo de uma vivência íntima, que não pode ser repassada. A solução encontrada pelo rei é lançar a taça ao mar. Morrendo ele, a taça deverá ser esquecida. Ninguém mais deve utilizá-la. Enquanto a taça afunda no mar, o rei vai simultaneamente morrendo também. O encontro da taça com o mar e do rei com a morte é simbólico também, porque o mar é considerado a fonte da vida, mas, também da morte, as coisas devem voltar às correntezas marítimas (CIRLOT, 1971, p. 281). Goethe passa boa parte da vida para dar forma ao O Fausto, obra que recebe o nome de seu protagonista: um acadêmico que procura a todo custo o conhecimento, pensando que pela razão apenas se apreende o mundo. A peça é trágica, porque na sua ânsia pelo saber Fausto está disposto a todo tipo de ação inescrupulosa. Ele é ajudado sempre por Mefistófeles, um espírito maligno, que representa seu próprio interior malévolo. Fausto se apaixona por Gretchen, que é uma jovem 207 burguesa extremamente bela e inocente. Enquanto Fausto é também movido pela volúpia, Gretchen nutre em si desejos de encontrar o grande amor de sua vida, de viver uma relação tal qual a canção que ela entoa de forma inconsciente. Os valores de Fausto são um, os de Gretchen, outro. Fausto pede ajuda a Mefistófeles para conquistar Gretchen, e uma das soluções encontradas é plantar um baú de joias na casa da moça. A natureza demoníaca do baú é um símbolo que implica a necessidade de compra, Fausto crê ser possível comprar o sentimento da moça. O baú é uma tentativa de corrupção da ideia da taça de ouro. A princípio Gretchen não se corrompe e entrega o baú à sua mãe, que o doa para a Igreja. Contudo, mas além, nova investida é feita, e Gretchen se deixa iludir por Fausto, os presentes sendo um dos motivos da ilusão criada pelo acadêmico. Visando manter relações mais íntimas com a moça, Fausto pede que ela administre uma poção para que a mãe dela adormeça, no entanto, sem querer, Gretchen acaba dando à mãe uma dose letal, outra imagem da corrupção do valor simbólico da taça do rei de Tule. Gretchen engravida de Fausto, e mantém a gravidez escondida de seu irmão, que ao descobrir tudo chama Fausto para um duelo. Fausto mata o irmão de Gretchen. A vida dela está se tornando cada vez caótica, em nome de um sentimento corrompido. Ainda absorvida por esse amor, Gretchen enlouquece quando Fausto a deixa. Ela afoga o bebê, que é encontrado no rio. A jovem, antes pura, é, então, condenada à execução, por matricídio e infanticídio. Permitiu-se ser enganada, fraturou-se emocionalmente e tem sua morte causada por um sentimento totalmente distinto daquele que ela cantara. Enquanto rainha imaginária de Tule, Gretchen se depara com a realidade selvagem de seu reino, nele há habitantes extremamente bestiais; Fausto sendo o mais selvagem de todos. O desvario de Gretchen se deu por sua inabilidade de se conformar com a realidade selvagem que lhe cercava. Não havia escapatória nem auto perdão, ela havia destruído sua família inteira e, perdendo Fausto, ela admitiu que só haveria uma alternativa: assassinar também o bebê. É nesse sentindo que devemos ler A canção do suicida. Mario Quintana decide dar voz àquele para quem o confronto com a realidade se tornou insuportável. O suicida toma a decisão repentina de se jogar no mar, sua proteção psíquica, o chapéu, já não lhe protegia mais. O mar no poema representa também a vastidão de situações limítrofes que o humano precisa enfrentar. O mar também representa a não escapatória para o homem, animal terrestre. No entanto, o que teria faltado a Gretchen, como também ao suicida do quintanar é o conhecimento de que o corpo humano pode se acabar, mas a alma eventualmente percebe que contra o mar existem as embarcações, que poderiam simplesmente levá-lo a outras terras, a outras paisagens desconhecidas, misteriosas e, talvez, menos inóspitas que daquele cais de onde ele se joga: Olhando os barcos..., os barcos!... Que vão fugindo do cais. (QUINTANA, 2005, p. 147, Canção do suicida). Esses derradeiros versos remetem à necessidade de se fugir de dado contexto, embarcando para outra 208 localidade, tal qual o poema de Fernando Pessoa, Navegar é preciso (PESSOA, 2004, p. 841) que recupera o ditado antigo “navegar é preciso, viver não é preciso”. É nesse sentido tríplice, 1) da inocência evocada pelo poema de Goethe, 2) da tragédia por trás da personagem iludida de Goethe, 3) do tecido, que devemos unir a leitura em Canção de um dia de vento: O vento vinha ventando Pelas cortinas de tule. As mãos da menina morta Estão varadas de luz. No colo, juntos, refulgem Coração, âncora e cruz. Nunca a água foi tão pura... Quem a teria abençoado? Nunca o pão de cada dia Teve um gosto mais sagrado. E o vento vinha ventando Pelas cortinas de tule... Menos um lugar na mesa, Mais um nome na oração, Da que consigo levara Cruz, âncora e coração (E o vento vinha ventando...) Daquela de cujas penas Só os anjos saberão! (QUINTANA, 2005, p. 128). O poema expõe uma mistura de tristeza e conformação. Claramente é sobre as circunstâncias de uma criança morta, o lugar dela e a situação daqueles que com ela conviviam. O poema fala de um evento que traz revelação. O vento é símbolo do movimento, da mudança que este traz, das coisas que são levadas. O vento atravessa cortinas de tule. A cortina sendo símbolo de uma divisão móvel entre dois ambientes, às vezes dois ambientes internos, com fins de privacidade e intimidade; às vezes um ambiente interno e outro externo, nesse último caso, além da privacidade, a cortina protege contra a entrada de luz excessiva. O tule sendo um material translúcido evoca o véu, e, mais especificamente, a sutil divisão entre o humano e o sagrado. Havia um véu divisor no Templo de Salomão (BÍBLIA, 2010, p. 923) que separava delicadamente o espaço humano e o sagrado. As cortinas de tule podem representar a separação entre a menina e sua família, separação absolutamente delgada. O vento atravessando as cortinas de tule também implica em entendimento acerca das relações humanas com a morte: a textura do tecido evoca o mar, a mente se encontraria 209 exposta também ao caso de forma delicada. Não obstante, as cortinas de tule também remetem ao valor da taça de ouro do rei de Tule. Valor que, diferentemente do que pensa Fausto, não pode ser trocado por dinheiro. A delicadeza do tecido também evoca a inocência anterior da jovem, bem como a inocência da criança que ela depois assassina. Ainda, a cortina de tule remete a pouca quase-separação entre um ambiente real e outro fictício. Crê-se que a criança a criança está protegida, como vimos, a origem do nome do tecido vem da deusa Tutela. A serenidade dos familiares à mesa se dá por imaginar que a criança está em outro lugar, no céu, um lugar tão mítico como Tule. Os familiares imaginam a vida em outro local, com habitantes próprios, os anjos. Sabemos disso através dos versos seis e dezesseis, cujas três palavras se reconfiguram no poema: coração, âncora, cruz. O coração demonstra a integridade do ser, seu vivo sentimento, e a cruz representa o sagrado, a âncora remete à salvação (CIRLOT, 1971, p. 9). Utilizado como pingente cristão, a cruz e âncora são combinados em uma única peça. Apesar de triste, a cena em Canção de um dia de vento não é trágica, como o suicídio em Canção do suicida, nem sombria, como a morte de Gretchen em o Fausto. Antes, é serena, como a morte do rei de Tule. Isso porque os familiares da menina conseguem fugir para outro lugar, para um lugar imaginário e sagrado. O desfecho é tranquilo em Canção de um dia de vento porque “Um lugar só é bom quando a gente pode viajar para outro lugar.” (QUINTANA, 2005, p. 792, O citadino). A existência precisa de um escape frente à situações limítrofes, trágicas, perturbadoras, a fuga para outro lugar se torna vital. Gretchen e o suicida terminam fugindo de seus contextos automaticamente, não procuram alternativas. A lucidez não precisa se extraviar frente ao insólito, como no caso dos estados febris oriundos de remorsos: [...] Ele furou cuidadosamente os olhos de todos os retratos. Pronto! Agora, ninguém mais para espionar os seus mínimos atos...Um suspiro. E desistiu, mas uma vez, do “tresloucado gesto”. (QUINTANA, 2005, p. 558, Conto do Tresloucado). Por isso a poesia é para Quintana uma loucura lúcida, porque nela podemos escolher deliberadamente pelo extravio da razão. Loucura lúcida e apenas loucura não são sempre a mesma coisa para Mario Quintana. A arte, para Mario Quintana teria a função de propiciar uma fuga, viagem a outro lugar, lugar imaginário, espécie de antídoto contra o horror: “ [...] E tu, leitor, não vejas nisto um sentimento mórbido. Em teu mundo, neste mundo, há mais horror do que nessas minhas velhas histórias, mas é um horror em bruto, não sublimado pela arte.” (QUINTANA, 2005, p. 553, Cinema). Essa é uma atitude benevolente da poesia, porque, no caso de Gretchen ou do suicida, se outros lugares tivessem sido procurados, em nenhum dos dois casos, a situação teria sido tão dolorosa. Viajar através da arte é um movimento claro para os Quintanares: “[...] Mas sossega, 210 coração inquieto. Não vês? Sob o azul cada vez mais azul, a cidade lentamente está zarpando para / um porto fantástico do Oriente.” (QUINTANA, 2005, p. 582. Sei que choveu à noite). A sugestão de Quintana é a mesma adotada pelo cavaleiro Dom Quixote (CERVANTES, 2000), que vê dragões em moinhos, um cavalo de bom sangue quando se trata animal desvalorizado comercialmente, uma bela mulher, quando na verdade a que ele ama é uma mulher comum. Dom Quixote é considerado louco por alguns, mas, simultaneamente, é portador de uma verdade que defende a reinvenção e reinterpretação dos valores. Algo que possa ser chamado de realidade pura e única não é preferível pelos quintanares: “Lida no doido afâ! / Vamos! Investe, vai contra os moinhos de vento! / Um dia tu verás que tudo é sombra vã, / Tênue fumo que a morte assopra num momento... (QUINTANA, 2005, p. 226, LXXXII Da agitação da vida). Os lugares imaginários de Quintana não precisam ser grandes terras míticas. Eles se configuram nos bairros de sua cidade, em países que já não mais existem, em partes distantes geograficamente de onde ele vive e produz sua lírica, mas que ganham vida pela imaginação. Sobretudo, o passado se transforma de tempo em espaço, no qual os seres mais diversos passam a coexistir. Comenta Tânia Carvalhal sobre os mundos imaginários de Quintana: [...] busca a infância como paraíso eleito, a cidade antiga de pequenas ruas sossegadas, dos bondes, um mundo que, preservado em certos cantos da cidade provinciana, na verdade não existe mais. Daí a necessidade de criar um espaço próprio, uma espécie de Pasárgada tal qual a imaginada por Manuel Bandeira, como se lê no Soneto V: "E enquanto o mundo em torno se esbarronda,/ Vivo regendo estranhas contradanças / No meu vago País de Trebizonda..." Por vezes a sua Pasárgada será não um país mas uma rua especial, síntese das ruas da infância e daquelas por onde o poeta ainda nem andou, mas que imagina, tal como está no poema "A minha rua", de A vaca e o hipogrifo (CAVARLHAL in QUINTANA, 2005, p. 18). Viajar pela imaginação não significa fuga permanente de sua própria sociedade. Pelo contrário, ao navegar por seus lugares imaginários o poeta explica que essa atividade, apesar de parecer loucura, é uma forma de lucidez: “Pensam que estou dormindo. Mas, do meu velívolo, / eu avisto a cidade. /Em cada janela acesa (umas poucas) / um poeta, noite alta, poetando... / Tu dirás que imagino coisas loucas! [...]” (QUINTANA, 2005, p. 595, Noturno II). Quintana sugere que tomar o velívolo da poesia é aproveitar uma forma de analisar o homem e sua sociedade. A poesia se torna uma nau onde é possível visitar e revisitar a cidade. Noturno II diz que aqueles que estão desacordados não são os poetas. Enquanto a grande maioria aproveita o descanso para a razão que traz o sono, o poeta está com suas luzes acesas, poetando o mundo. 211 O poeta em seu velívolo é um viajante, assim como o louco na nau, visita lugares diferentes. O louco andarilho, nômade, também é representado na carta de tarô. O louco vaga por terras desertas. O louco do tarô também se veste com uma roupa policromada (CIRLOT, 1971, p. 110), denotando o múltiplo. Para representar o diverso, o poeta também usaria uma roupa colorida. No tarô, o louco é a única carta sem número, significando que ele está presente nas franjas de todos os outros sistemas, por mais contraditórios que possam parecer. No tarô os opostos em nível profundo não existem. ser. Explica Murilo Mendes que o poeta se configura da mesma maneira: “Todas as contradições se resolvem no espírito do poeta: o poeta é ao mesmo tempo um ser simples e complicado, humilde e orgulhoso, casto e sensual, equilibrado e louco.” (MENDES, 1994, p. 834). Outra figura andarilha e que estabelece ligação direta com o louco é o palhaço, o bufão, o bobo da corte. De acordo com Cirlot (1971, p. 111), as origens do palhaço estavam nas cerimônias e ritos medicinais, onde a dança frenética e o extravagante era usado para se inverter uma ordem má: “A lógica do processo é suficientemente clara: quando o normal ou consciente aparenta estar ficando enfermo ou perverso, para recobrar saúde e bem-estar é necessário se voltar para o perigoso, o inconsciente e o anormal.”70 (CIRLOT, 1971, p. 111. Tradução nossa). Essa relação ritual parece perfeitamente explicar dois poemas de Quintana sobre os palhaços: [...] Quando é que os diretores de filmes descobrirão que os pesadelos são em preto-e- branco? Imagine-se o Frankenstein (aquele maravilhoso monstro da primeira versão) todo pintado como uma corista de antigo café-concerto. Faria rir. Pois um dos velhos processos da arte circense é apresentar os palhaços maquiados em cores berrantes. (QUINTANA, 2005, p. 553, Cinema) [...] O fato é que, se acaso eu fosse ator e me visse enredado, ao representar Hamlet, naqueles seus dramas tremendos, não me apresentaria de preto, como o obrigam os diretores de cena, mas sim com as vestes coloridas e os guizos do seu amado bufão Yorick. Ah! tudo isso porque tudo comporta o seu contrário; e a nossa alma, por mais que esteja envolvida nas coisas deste mundo, nunca deixa de estar do outro lado das coisas... (QUINTANA, 2005, p. 502, Hamlet e Yorick) Mas que ordem má estaria Mario Quintana tentado repelir através de seus loucos e palhaços? A resposta agora nos parece mais simples: qualquer ordem que não permita a saída de si mesma, que não permita a viagem, a dúvida, a reconstrução, a simultaneidade dos valores. Contra essa ordem o louco se estabelece nos quintanares: 70The logic of the process is clear enough: when the normal or conscious appears to become infirmo or perverted, in order to regain health and goodness it becomes necessary to turn to the dangerous, the unconscious and the abnormal. (CIRLOT, 1971, p. 111) 212 – Eu amo o mundo! Eu detesto o mundo! Eu creio em Deus! Deus é um absurdo! Eu vou me matar! Eu quero viver! – Você é louco? – Não, sou poeta. (QUINTANA, 2005, p. 535, Simultaneidade). Mais apropriadamente, a ordem que Mario Quintana recusa é a que dita sua própria configuração social. A ordem da modernidade. Para Habermas (1983, p. 9) a modernidade é um projeto formulado no século dezoito pelos pensadores do Iluminismo. Ela se constitui pelo esforço de desenvolver a moralidade e ciência objetiva, a lei e uma proposta estética de acordo com suas próprias ideologias. O plano da modernidade é racionalizar a vida. Nessa tentativa de racionalização dos saberes, era necessário desafiar outras áreas, como a arte (HABERMAS, 1983, 11). Incluída no campo artístico a poesia, essa é uma proposta Quintana não endossaria. Todas as leituras feitas nesta tese comprovam essa afirmação, principalmente quando a arte, ainda diz Habermas (1983, p. 12), deveria servir como utensílio às aspirações burguesas. Como qualquer outro produto comercial. Não é que, como temos visto, Quintana especificamente recuse a razão ou a técnica, ele se põe contrário à alienação. O plano moderno previa o conhecimento apenas como formação da força produtiva de trabalho (HABERMAS, 2014, p. 140). O atavismo do louco quintaniano se ergue contra aquilo que Habermas (2013, p. 18) aponta como sendo o princípio mais perturbador da modernidade: a irreversibilidade. O plano moderno precisa de autoafirmação e não pode negar a si mesmo (HABERMAS, 1987, p. 3). A proposta da modernidade parece uma máquina, e “toda máquina é corte” (DELEUZE; GUATARRI, 2010, p. 55), algo totalmente avesso ao orgânico, natural e fluido que temos observado em Quintana. Quando lemos o poema sobre outro híbrido quintaniano, o louco simétrico, percebemos que Quintana se esmera na tentativa de favorecer uma visão aberta do homem. Verificamos isso em E quando se aproximou a hora: E quando se aproximou a hora, o Anjo da Encarnação perguntou-lhe: – Que queres ser na face da Terra? – Um polígono regular estrelado. – O quê?! – Um polígono regular estrelado – repetiu imperturbavelmente a alma do nascituro. “Mais um...” – pensou o Anjo. Mas, como os anjos e os poetas são os únicos que não riem dos loucos, limitou-se a objetar: – E por que não um poliedro? Vais viver num mundo de três dimensões e bem sabes que um polígono apenas tem duas. Lá só existirias na face do papel... e não propriamente na face da Terra. – Por isso mesmo. O anjo desta vez não compreendeu muito bem e retirou-se, dando de asas. E foi assim que, quando chegou a hora, veio ao mundo mais um louco. E um “louco simétrico”! 213 Chamou-se, entre os homens, Edgar Allan Poe. (QUINTANA, 2005, p. 255, E quando se aproximou a hora). Ora, o polígono regular estrelado é uma figura geométrica que se equipara à figura do louco simétrico. Diferente de outras figuras geométricas, o polígono regular estrelado é formado pela ligação de pontos, fazendo com que as linhas se perpassem para se conectar as extremidades. É uma figura que lembra uma estrela, ou uma estrela-do-mar. O polígono regular estrelado é simultaneamente múltiplo por causa de suas extremidades que parecem tentáculos, mas, também, é uno. O poliedro estrelado remete também ao entrelaçamento na construção do nó górdio, que Bruno Latour acusa a modernidade de romper com espada afiada (1994, p. 8). O nó górdio é símbolo também do pensamento não submetido a dogmas. O louco simétrico é dono de um conhecimento mais rico porque interconecta saberes. É por esses motivos que os quintanares recusam a visão médica da loucura enquanto verdade absoluta. Quintana emparelha a figura de Freud a da opressão exercida na Inquisição e na censura. Espirituoso, o poeta ainda compartilha da visão médica enquanto coisa incômoda e indesejada, como as entrevistas de jornalistas. A criança, assim como o poeta e o louco se recusam a seguir os planos de Dona Programática, como constatamos em De um diário íntimo do século trinta: Tenho 9 anos. Meu nome é Gavrilo. Meu professor só hoje me permitiu uma ida ao Jardim Botânico, por causa da minha redação sobre a fórmula de Einstein. Elogiou em aula o meu trabalho porque, disse ele, em vez de dar-lhe uma interpretação, como fazem todas as crianças, eu me limitei a dizer que aquela simples fórmula era uma coisa tão absurda e maravilhosa e inacreditável como as lendas pré-históricas, por exemplo a “Lâmpada de Aladino” ou a “Vida de Napoleão e seu cavalo branco”. Por isso começo hoje o meu diário, que eu devia ter começado aos 7 anos. [...] . Dona Programática nos explicou a necessidade desses diários porque, “para higiene da alma e preservação do indivíduo, todos têm direito a uma vida secreta, ao contrário do que acontecia nos tempos da Inquisição, da censura, dos sucessores do Dr. Sigmund Freud e dos entrevistadores jornalísticos”. Isto diz a Dona Programática. Mas o nosso professor de Redação, que não é tão cheio de coisas, diz que estes nossos diários secretos servem para a gente dizer besteiras só por escrito em vez de as dizer em voz alta. Na próxima vez tratarei de fazer uma boa redação sobre a Árvore para ver se ganho o prêmio de uma visita ao Zôo – onde está o Cavalo. Andei indagando dos grandes sobre este nosso cavalo e me disseram que não, que ele não era branco. Uma pena... (QUINTANA, 2005, p. 540, De um diário íntimo do século trinta). 214 Figura 14: Puzzle Fonte: Acervo do autor 215 CONCLUSÃO Neste momento, quais os frutos podem ser colhidos da pesquisa que temos cultivado? Criança, poeta e louco são portadores de um conhecimento oposto programado pela razão instituída. A poesia é loucura lúcida porque reconhece que a dinâmica da memória é atávica, autoriza a legitimidade da figura do selvagem como termo contrário à figura da civilização ilegítima. Como nos diz Dana Seitler (2008, p. 7): “Deveras, podemos dizer que o atavismo suspende a narrativa moderna do tempo sendo um movimento contínuo no qual um evento sucede e suplanta outro” 71. A memória atávica é valorização do tempo enquanto ferramenta de auxílio para o homem. Questões do presente individual e coletivo podem ser solucionadas ao se procurar respostas em passados múltiplos. Há mistério no passado, no qual reside sempre o presente. Não há presente sem passado, diz Paul Ricoeur recuperando Agostinho: “Como o tempo pode ser se o passado não é mais?” (RICOEUR, 1997, p. 23). Esta tese se dispôs a aceitar o alvitre proposto na conclusão da nossa dissertação (BARATA, 2010), cujo apanhado sugeriu afunilamento investigativo em direção à loucura, no sentido de procurar investigar quais são essas semelhanças conceituais entre loucura e poesia. A quantidade de poemas indicadores do termo e a hipótese de que Mario Quintana intencionalmente trabalha a palavra loucura com um valor específico foi o fator que nos fez adentrar neste trabalho. Localizamos e exploramos focos estéticos, lançando sobre eles um olhar comparatista. Olhar, sobretudo hermenêutico, mas também comungante com outras ciências humanas; ou seja, preferir-se-á a ilustração dos argumentos através da análise dos quintanares, o que, entretanto, não excluiu leituras comparatistas via outros poetas e decisivos textos teóricos. De modo muito generalizante, ligamos a literatura de Quintana à literatura francófona, de linha intimista, e não à anglófona, com aspectos do fantástico. O intimismo em Quintana é por vezes percebido em poemas como: [...] Isto porque os novos não leem francês. É que eles, em consequência da última Guerra Mundial, abandonaram a luz mediterrânea, não pelo fog londrino, mas pelos tremeluzentes letreiros de Los Angeles. [...]" (QUINTANA, 2005, p. 555, Uni-Versos). Também podemos ver essa mesma apreciação em Não façam isso: Ao que consta, pretendem retirar a língua francesa do currículo escolar. Isso me faz lembrar uma amiga minha que foi para a Alemanha apenas sabendo francês. Como eu lhe 71Tradução nossa de “Indeed, atavism can be said to suspend the narrative of modern time as a continuous forward movemen in which one event is thought to succedd and supersed another.” (SEITLER, 2008, p. 7) 216 observasse que era pouco, ela retrucou: - Não vale a pena conhecer alemães que não saibam francês. Na verdade, o que devemos à França não é a cultura francesa, é a cultura universal. Toda obra, para universalizar-se, teria de passar pelos tradutores franceses. Se não fosse a França, o mundo ocidental teria perdido Dostoievski. Imagina só o que teríamos quanto ao conhecimento da alma Senão conhecêssemos Dostoievski. Nada. Ou quase nada, acrescento a tempo. Pois acabo de lembrar-me de Shakespeare. A minha queixa, porém, é contra os americanos. Já disse e repito que, se há males que vêm para bem, há bens que vêm para mal. Exemplo: os Estados Unidos ganharam a guerra. Resultado: o povo, em geral, só lê os best-sellers americanos que eles nos impingem. São tão ruins que chego a desconfiar que sejam apenas literatura de exportação. (QUINTANA, 2005, p. 331). No entanto, devemos perceber que essas linhas dizem respeito à uma posição política do poeta: recusa do capitalismo e da ordem moderna que institui o baú de joias no lugar da taça de ouro. Os best-sellers é um termo que Quintana utiliza para provocar uma leitura da massificação pelo capitalismo e do projeto moderno, cujo quartel general é os Estados unidos. A França é utilizada apenas enquanto signo também, símbolo de antigas ordens sociais, no caso, a monarquia. No segundo capítulo, Memória, vimos a relação de Quintana com um tempo orgânico, não determinado por convenção geral, mas, sim, pertencente ao sujeito, no relacionamento com o outro. Quando lemos em "[...] Porque o tempo é uma invenção da morte:/ não o conhece a vida – a verdadeira/ em que basta um momento de poesia/para nos dar a eternidade inteira. [...]" (QUINTANA, 2005, p. 876, Ah, os relógios), percebemos que o signo 'tempo' como símbolo do movimento, como lemos em Esconderijos do tempo. A poesia se oferece como puzzle, jogo de armar, tentativa de decodificar incessantemente fatos e relações que ocorrem no tempo individual ou coletivo, trazendo consequências infinitamente misteriosas. Os quintanares posicionam a poesia como meio de decifrar, mas não concluir os questionamentos do homem sobre si e sobre aquilo que o cerca. A poesia é para Quintana aquilo que explica Murilo Mendes: chave do conhecimento como a ciência, a arte ou a religião (MENDES, 1994, p. 82), é necessário revirar o tempo, como fez Marcel Proust em A busca do tempo perdido. No terceiro e último capítulo, Loucura, a poesia aceita a possibilidade daquilo que a pudica voz dualista de O poema (QUINTANA, 2005, p. 197) julga impossível. Portanto, a poesia não pode propor ordenação, solução, os perfis são aniquilados e somos levados a observar tudo que pertence ao homem como criação da cultura. É papel do poeta deslocar os perfis, revisar o homem. Mario Quintana desenvolveu uma equação para propor que a realidade humana corresponde à poesia, isto é, que entre Atena e Mársias, a poesia é a única responsável pelos seres humanos que vivem de fato. Para tanto, observamos o poeta calcular a equivalência entre poesia e vida, entre vida e beleza, entre beleza e verdade e entre verdade e realidade. A poesia produzida por Quintana não poderia ser diferente da realidade, precisa versar sobre a loucura, pois o poeta vê o próprio mundo como louco: 217 Querias que eu falasse de “poesia” um pouco mais... e desprezasse o quotidiano atroz... querias... era ouvir o som da minha voz e não um eco – apenas – deste mundo louco! Mas quê te dar, pobre criança, em troco de tudo que esperavas, ai de nós: é que eu sou oco... oco... oco... oco... como o Homem de Lata do “Mágico de Oz”![...] (QUINTANA, 2005, p. 591, Querias que eu falasse de “poesia”). O que a poesia propõe é o sentir, que [dará sentido] ao corpo do Homem de Lata, oco sem ela. Nesse sentir, seu perfil é deslocado – a imagem precisa ser deformada: "[...] Poesia/ Ó teus espelhos deformantes e límpidos [...]"(QUINTANA, 2005, p. 429, O menino louco). Está na valorização do desejo pela vida viva que a poesia se configura: “As moças sorriem fora de você. Dentro de você há um desejo torto.” (DRUMMOND, 2013, p. 41. A sombra das moças em flor). A poesia não poderia oferecer expressão diferente daquela oferecida pela vida, uma vez que são equivalentes. Não há mistério na poesia, tudo nela pode ser encontrado no cotidiano. Um poema é oco sem a vida cotidiana, sem a poesia. A poesia é a vida sentida no interior humano. Não se deve esperar nada em um poema além da manifestação da vida que exige a união dos opostos, de Atena e Mársias. Louca é a vida, louca é a poesia. Inegociavelmente, há nos quintanares a compreensão de que tudo é realidade, mas essa pode ser uma verdadeira ou falsa, um conceito do que está vivo em oposição ao do que está morto. Como lemos em A canção da vida, só é vida/real/verdade aquilo cujos limites sejam de difícil apreensão, que se transforma ao submeter-se ao fluxo. Mas mesmo o imóvel, o estático, como o salgueiro chorão, pode entrar em movimento. Os limites do que é vida/realidade não são fechados, apesar de circunscritos, são transponíveis. A poesia é uma porta para o que está morto/irreal/falso entre em movimento, a poesia é um "Invitation au Voyage72" (QUINTANA, 2005, p. 593). Ainda no último capítulo, Loucura, o modo de viver que é considerado loucura pela sociedade recente pode ser encontrado nela mesma, em tempos remotos. Tanto o poeta como o louco têm a mesma procedência, ambos procedem de um mundo anterior. O louco/poeta, por infringir o estabelecido socialmente, assemelha-se aos estágios ‘selvagens73’ contrários à ‘civilização’: 72 "Convite à Viagem" (tradução nossa) 73 218 O louco desvenda a verdade elementar do homem: esta o reduz a seus desejos primitivos, a seus mecanismos simples, às determinações mais prementes de seu corpo. A loucura é uma espécie de infância cronológica e social, psicológica e orgânica, do homem […]. A loucura começa com a velhice do mundo; e cada rosto assumido pela loucura no decorrer do tempo diz a forma e a verdade dessa corrupção. (FOUCAULT, 2008, p. 512, grifo nosso). Desrazão, loucura e aculturação não devem ser vistos com desconfiança nos quintanares. Porque o selvagem em todos os poemas que temos lido até aqui é “[...] atemporal; ele quer apreender o mundo como totalidade simultaneamente sincrônica e diacrônica.” (Lévi-Strauss, 1989). É desejo da obra quintaniana religar passado e presente. O pensamento selvagem, no que se refere a mitos e rituais estabelece uma relação peculiar entre passado e presente [...]” (LE GOFF, 2003, p. 214). Duas possibilidades de estudo futuras partem desse trabalho. A primeira parte da necessidade de se ler a obra quintaniana como crítica da razão, mas de forma diferente desta pesquisa, sem recorrer à figura do louco. Isso pode ser feito na procura pela procura de elementos irônicos, busca pela procura de insinuações contrárias a referências como o filósofo, o sábio, o cientista. A segunda possibilidade de estudo é pesquisar a natureza do tempo, em especial as relações do presente com o futuro, isto é, o presente como representação do futuro. A teoria de Henri Bergson em Duração e Simultaneidade parece ser um primeiro encaminhamento. Partimos desse princípio porque observamos primariamente, através de nossas considerações sobre a memória em Quintana aquilo que defende Maurice Halbwachs: Uma análise mais vigorosa da ideia de simultaneidade nos leva a descartar a hipótese de durações puramente individuais, uma impenetrável `à outra. A sequência de nossos estados não é uma linha sem espessura, cujas partes nada têm a ver com as que as precedem e as que vêm depois. (HALBWACHS, 2003, p. 123) Por fim, arrematamos: enquanto houver o movimento de uma pedra no abismo ou dragas que revelam cadáveres ajaezados, isto é, enquanto houver o movimento do indivíduo em torno de seu próprio eixo, haverá vida, haverá uma verdade e a existência em uma realidade. É necessário que através de si o indivíduo se re/signifique. Quando não há esse movimento, então, já não se fala do domínio da vida/da realidade/da verdade, fala-se no avesso da vida, na morte. A morte é o avesso do mistério. Não há escapatória para o homem, a não ser a procura por um lugar misto, que misture imaginação, beleza com as coisas cotidianas. Um quintanar adverte mais precisamente sobre a urgência de se manter em torno de si através da re/criação de si mesmo, como Dom Quixote se re/criava: "Lida no doido afã!/Vamos! Investe, vai contra os moinhos de vento!/Um dia tu verás que tudo é sombra vã, / Tênue fumo que a morte assopra num momento..." (QUINTANA, 2005, p. 226, 219 LXXXII Da agitação da vida). Este trabalho finaliza com a esperança de ter contribuído com alguma informação sobre a natureza da poesia de Mario Quintana. 220 REFERÊNCIAS ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. trad. Alfredo Bosi. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ADAMS, J.; SHAW, K. Atavism: embryology, development and evolution. Nature, New York, n 1, p. 131, 2008. AGAMBEN, G. O aberto: o homem e o animal. trad. Pedro Mendes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. ADORNO, T. Educação e emancipação. 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Figura 1: Quintarwin............…………….......….............................................................................. 25 Figura 2: Quintanodonte.................................................................................................................... 29 Figura 3: Mariodáctilo....................................................................................................................... 38 Figura 4: Il poeta delinquente........................................................................................................... 53 Figura 5: Lili.............................…......................................................................................................84 Figura 6: Decifra-me......…............................................................................................................... 95 Figura 7: Mariomosyne................................................................................................................... 110 Figura 8: Cliotana.............................................................................................................................130 Figura 9: O lúcido louco.................................................................................................................. 148 Figura 10: O louco lúcido................................................................................................................ 163 Figura 11: O aulos de Quintana....................................................................................................... 176 Figura 12: Piu…………………….................................................................................................. 182 Figura 13: Narrenschif......................................................................................................................200 Figura 14: Puzzle............................................................................................................................. 214