UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA ANA CRISTINA PINTO BEZERRA DE VENCEDORES A VENCIDOS: O DESMONTE DA IDENTIDADE NACIONAL NA PROSA DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES NATAL – RN 2018 ANA CRISTINA PINTO BEZERRA DE VENCEDORES A VENCIDOS: O DESMONTE DA IDENTIDADE NACIONAL NA PROSA DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Estudos da Linguagem (PPGeL) do Departamento de Letras, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN para obtenção do título de Doutor em Estudos da Linguagem, área de concentração em Literatura Comparada. Orientador: Prof. Dr. Andrey Pereira de Oliveira NATAL – RN 2018 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA Bezerra, Ana Cristina Pinto. De vencedores a vencidos: o desmonte da identidade nacional na prosa de António Lobo Antunes / Ana Cristina Pinto Bezerra. - Natal, 2018. 329f. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem. Natal, RN, 2018. Orientador: Prof. Dr. Andrey Pereira de Oliveira. 1. Os Cus de Judas - Tese. 2. Identidade nacional - Tese. 3. Deterioração - Tese. 4. Dialogismo - Tese. I. Oliveira, Andrey Pereira de. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 801.73 Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710 FOLHA DE APROVAÇÃO BEZERRA, Ana Cristina Pinto. De vencedores a vencidos: o desmonte da identidade nacional na prosa de António Lobo Antunes. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (PPGeL) do Departamento de Letras, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN para obtenção do título de Doutor em Estudos da Linguagem, área de concentração em Literatura Comparada. Defendida e aprovada em 27 de julho de 2018. _______________________________________________ Prof. Dr. Andrey Pereira de Oliveira Orientador (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) ________________________________________________ Profa. Dra. Maria Elvira Brito Campos Examinadora externa (Universidade Federal do Piauí) __________________________________________________ Prof. Dr. Pedro Fernandes de Oliveira Neto Examinador externo (Universidade Federal Rural do Semi-Árido) __________________________________________________ Profa. Dra. Marta Aparecida Garcia Gonçalves Examinadora interna (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) _______________________________________________________ Prof. Dr. Mauro Dunder Examinador interno (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) DEDICATÓRIA Aos meus alunos, dos quais sou uma aprendiz para me reinventar como professora. AGRADECIMENTOS Agradeço ao Professor Andrey Pereira de Oliveira por, novamente, fazer parte de mais uma longa trajetória de escrita, compartilhando sugestões, realizando questionamentos e abrindo espaço para o diálogo, de fato, sem impor um fechamento à liberdade de escrita. Sou grata à Professora Marta Aparecida Garcia Gonçalves e ao Professor Mauro Dunder pela leitura pertinente e pelas válidas contribuições conferidas a este estudo durante o processo de Qualificação. Agradeço ao meu querido NULIC, Núcleo de Linguagens e Códigos do IFRN, campus Apodi, do qual faço parte e, em especial, aos colegas, Carlos Fran, Sabrina Guedes, Helena Fernandes e Lucifrance Figueiredo, que me incentivaram bastante durante a feitura deste trabalho, motivando-me sempre com a amizade a mim dispensada. Aos meus familiares, que suavizaram quaisquer dificuldades que possam ter acontecido nesse caminho e a Eugênio Paccelli que partilha comigo essas muitas aventuras da vida. “no fim do mundo todas as coisas trocariam de lugar” José Eduardo Agualusa “Nenhum povo pode viver em harmonia consigo mesmo sem uma imagem positiva de si” Eduardo Lourenço “Assim se faz a história: com a agressividade de poucos, com a ingenuidade de muitos e a dialética dos tolos” Affonso Romano de Sant´Anna BEZERRA, Ana Cristina Pinto. De vencedores a vencidos: o desmonte da identidade nacional na prosa de António Lobo Antunes. RESUMO A fim de analisar o processo de deterioração de um dado modelo de identidade nacional portuguesa, nesta pesquisa focaliza-se o segundo romance publicado por António Lobo Antunes, Os cus de Judas (1979). Dessa maneira, retoma-se o período da Guerra Colonial e o cenário de castração das liberdades individuais no Estado Novo em Portugal, evocados nessa prosa, a fim de compreender, a partir das experiências vividas pela personagem central da obra, de que modo nessa narrativa fora refratado o discurso nacionalista e, por essa medida, fora corrompido nas visões de um presente em ruínas que o texto literário apresenta. Por conseguinte, inerente ao estudo de uma narrativa na qual predomina um amplo processo dialógico, edificado, principalmente, pela atitude contestadora dos discursos oficiais nos textos, é que a fundamentação teórica desta pesquisa realiza-se, substancialmente, a partir dos postulados do Círculo de Bakhtin (Mikhail Bakhtin; Valentin Volochínov; Pavel Medviédev). Nesse sentido, o dialogismo é evidenciado em sua contribuição para o entendimento da conexão estabelecida entre o desmantelamento da identidade nacional e a formalização estética do romance. Além disso, outros estudos que versam sobre a questão da identidade nacional, por exemplo, Stuart Hall (1997), Bauman (2005), além das considerações de Eduardo Lourenço (2001; 2016; 2018) sobre o contexto lusitano, de forma mais específica, entre outros diálogos com autores pertinentes para esta pesquisa, são observados, a exemplo das leituras de Seixo (2002), Arnaut (2009), Cardoso (2011; 2016) no tocante a uma crítica especializada sobre a obra antuniana. Destaca-se, assim, um conjunto de vozes que auxilia a entender como o desmonte do sentimento de nacionalidade é processado para que as suas marcas sejam sentidas pelo/no viés narrativo do texto literário em foco. PALAVRAS-CHAVE: Os Cus de Judas; identidade nacional; deterioração; dialogismo. BEZERRA, Ana Cristina Pinto. From winners to losers: the dismantling of national identitiy in the prose of António Lobo Antunes. ABSTRACT In order to analyze the process of deterioration of a given model of Portuguese national identity, this research focuses on the second novel published by António Lobo Antunes, Os Cus de Judas (1979). In this way, the period of the Colonial War and the castration of individual liberties in the Estado Novo in Portugal are recalled, to understand, from the experiences of the central character of this work, how in this narrative the nationalist discourse had been refracted and, to that extent, had been corrupted in the visions of a ruined present that the literary text presents. Therefore, inherent in the study of a narrative in which a broad dialogical process prevails, mainly due to the contentious attitude of the official discourses in the texts, is that the theoretical basis of this research is carried out, substantially, from the postulates of the Circle of Bakhtin (Mikhail Bakhtin; Valentin Volochínov; Pavel Medviédev). In this sense, the dialogism is evidenced in its contribution to the understanding of the connection established between the dismantling of the national identity and the aesthetic formalization of the novel. In addition, other studies that deal with the question of national identity, for example, Stuart Hall (1997), Bauman (2005), besides the considerations of Eduardo Lourenço (2001, 2016; 2018) on the Portuguese context, in a more specific way, among other dialogues with pertinent authors to this research, are observed, like the readings of Seixo (2002), Arnaut (2009), Cardoso (2011; 2016) regarding a specialized critique of Antunian’s work. In this sense, a set of voices is highlighted so that helps us understand how the dismantling of the nationality feeling is processed so that its marks are felt on and by the narrative bias of the literary text in focus. KEY WORDS: Os Cus de Judas; national identity; deterioration; dialogism. BEZERRA, Ana Cristina Pinto. De vencedores a vencidos: el desmonte de la identidad nacional em la prosa de António Lobo Antunes. RESUMEN Con la finalidad de analizar el proceso de deterioro de un determinado modelo de identidad nacional portuguesa, en esta pesquisa se focaliza la segunda novela publicada por Lobo Antunes, Os Cus de Judas (1979). De esta manera, se retoma el período de la guerra colonial y el escenario de la castración de las libertades individuales en el Estado Nuevo en Portugal, evocados en esa prosa, a fin de comprender, a partir de las experiencias vividas por el personaje central de la obra, de qué modo en esa narrativa se refractó el discurso nacionalista y, por esa medida, fuera corrompido en las visiones de un presente en ruinas que el texto literario presenta. Por consiguiente, inherente al estudio de una narrativa en la que predomina un amplio proceso dialógico, edificado, principalmente, por la actitud contestadora de los discursos oficiales en los textos, es que la fundamentación teórica de esta investigación se realiza, sustancialmente, a partir de los postulados del Círculo de Bakhtin (Mikhail Bakhtin; Valentin Volochínov; Pavel Medviédev). En ese sentido, el dialogismo es evidenciado en su contribución al entendimiento de la conexión establecida entre el desmantelamiento de la identidad nacional y la formalización estética de la novela. Además de eso, otros estudios que versan sobre la cuestión de la identidad nacional, por ejemplo, Stuart Hall (1997), Bauman (2005), además de las consideraciones de Eduardo Lourenço (2001; 2016; 2018) sobre el contexto lusitano, de forma más específica, entre otros diálogos con autores pertinentes para esta investigación, son observados, a ejemplo de las lecturas Seixo (2002), Arnaut (2009), Cardoso (2011; 2016) en lo que se refiere a una crítica especializada sobre la obra antuniana. Se destaca, así, un conjunto de voces que auxilia a entender cómo el desmonte del sentimiento de nacionalidad es procesado para que sus huellas sean sentidas por el/en el sesgo narrativo del texto literario en foco. PALABRAS CLAVE: Os Cus de Judas; identidad nacional; deterioro; dialogismo. SUMÁRIO 1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS .............................................................................. 12 2. ANTÓNIO LOBO ANTUNES E O CONTEXTO DO ESTADO NOVO EM PORTUGAL ................................................................................................................... 22 2.1. Um escritor imbricado ao ambiente da Guerra Colonial ..................................... 41 3. O DESTECER DA ÉPICA LUSITANA NA COMPOSIÇÃO DE OS CUS DE JUDAS ............................................................................................................................ 54 3.1. A decomposição da mitologia do mundo colonial português.............................. 60 3.1.1. O perfil insólito de uma personagem: a “cara amiga” do “eu narrador” ...... 85 3.1.2. O fluxo desestruturante do movimento temporal na narrativa antuniana ..... 99 3.1.3. O desmantelamento da escrita na rememoração da Guerra Colonial ....... 128 4. A ATITUDE DESSACRALIZANTE DO NARRADOR ANTUNIANO NO PLANO DISCURSIVO DO ROMANCE .................................................................... 154 4.1. O jogo heterodiscursivo da (des)construção do “eu” no curso da “aprendizagem da agonia” ................................................................................................................. 158 4.1.1. A imagem desvirtuada do “homem de família” ......................................... 166 4.1.2. Depois da “Sagrada Família”: a degradação do perfil hierático ................. 175 4.1.3. A desventurada “metamorfose da larva civil” ............................................ 183 4.2. Quebrando as amarras de um “universo diminuto”: a corrosiva ação da ironia e do humor no(s) discurso(s) fomentados pelo “eu” ................................................... 206 5. AS METAMORFOSES VIVENCIADAS NA DUALIDADE PECULIAR DE UM MUNDO INCONGRUENTE ....................................................................................... 237 5.1. A presença do “outro” nos diálogos constitutivos do “eu” ............................... 240 5.1.1. Os múltiplos reflexos do espelho deformante do “eu” ............................... 249 5.2. As nuances simbólicas de uma metamorfose animalesca ................................. 257 5.3. A evocação de uma matriz intelectual em um contexto de guerra .................... 289 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 307 REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 318 12 1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS o futuro é um nevoeiro fechado sobre o Tejo sem barcos. António Lobo Antunes. Os cus de Judas. A questão identitária encontra-se, cada vez mais, sendo estudada de forma distanciada de um parâmetro de estabilidade definido e unificado, capaz de fornecer ao indivíduo uma ancoragem estável no mundo social. Nessa sistemática, os modos pelos quais os sujeitos são representados tornam-se alvos de questionamentos em construções que, outrora tidas como sólidas, se apresentam fragmentadas por novas formas de compreender esse processo. Dessa condição, não se furtam as identidades ditas nacionais, construtos que, longe de se fecharem em epítetos geográficos, compõem um repertório de representação cultural com o qual os sujeitos dialogam. Não à toa, ao focalizar esse repertório específico, Hall observa-o a partir da sua relação com as “identidades culturais – aqueles aspectos de nossas identidades que surgem de nosso ‘pertencimento’ a culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais” (1997, p. 8). A própria noção de “pertencimento” modificou-se nesse processo até desaguar na cena contemporânea, em que a ideia de fazer parte de uma dada nação ou de outra não parece estar vinculada, prioritariamente, a padrões rígidos e estanques. Anteriormente à estruturação do Estado moderno, o entendimento sobre a identidade era balizado pela sensação de pertencimento a uma dada comunidade, o que era definido, principalmente, por questões de proximidade, compondo o que Bauman denominou de “sociedades de familiaridade mútua” (2005, p. 25). No entanto, com o alargamento das fronteiras territoriais, tornou-se um imperativo a criação de uma ordem que, indo além de aspectos de um contexto de vizinhança, fomentasse um alicerce capaz de fazer com que os indivíduos se identificassem com seu espaço de nascimento, já que, desde o princípio, segundo essa leitura de mundo, cada sujeito já estaria relacionado a uma dada bandeira nacional. Esse aspecto, entre outros expedientes utilizados, foi percebido como um instrumento para garantir a soberania e a legitimidade da união entre Estado e nação. Aquele “buscava a obediência de seus indivíduos representando-se como a concretização do futuro da nação [...]. Por outro lado, uma nação sem Estado estaria 13 destinada a ser insegura sobre o seu passado, incerta sobre o seu presente e duvidosa de seu futuro” (BAUMAN, 2005, p. 27). Nesse sentido, cada organização política procurou dar forma ao seu projeto de nação, ou seja, foi necessário construir um determinado modelo de identidade nacional, amparado na remissão a certas tradições, na escolha de um dado dialeto, na seleção dos mitos fundadores 1 , para compor o elo afetivo que consolidaria uma coesão nacional. Em outras palavras, “a identidade precisava de muita coerção e convencimento para se consolidar e se concretizar numa realidade (mais corretamente: na única realidade imaginável)” (BAUMAN, 2005, p. 26). Uma ideia de nação era transmitida sistematicamente às pessoas que não participavam apenas de uma conjuntura política, enquanto cidadãos de um determinado país, mas interagiam com uma dada versão da cultura nacional (conforme HALL, 1997, p. 53), elaborada, como visto, a partir de uma série de recursos. Em linhas gerais, a identidade nacional compreende, assim, um “processo de construção de significados com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos inter-relacionados, o(s) qual(ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significado” (CASTELLS, 2018, p. 54). É justamente quando “esses atributos” passam a ser contestados, quando há um entendimento de que a construção desse paradigma identitário torna-se evidente e em relação a ele há uma espécie de crise de representatividade, que a atenção recai sobre a questão identitária. Para fazer uma alusão novamente às considerações de Bauman, este percebe que, há algumas décadas, a identidade não fazia parte dos motivos centrais do estudo sociológico e que a razão para essa mudança de posição se dá pela compreensão de que “você só tende a perceber as coisas e colocá-las no foco do seu olhar perscrutador e de sua contemplação quando elas desvanecem, fracassam, começam a se comportar estranhamente ou o decepcionam de alguma forma” (BAUMAN, 2005, p. 23). Em certa medida, tal situação pode ser associada a um contexto específico, focalizando aqui o cenário português no qual (aos fins do século XX) se vivia um momento de redefinição política, econômica e social, em que um dado modelo identitário, visto, durante um extenso período, como um sustentáculo de um regime de governo ditatorial, passava a ser alvo de profundas ponderações. Dessa forma, repensar 1 “Fundamentalmente, um mito fundador remete a um momento crucial do passado em que algum gesto, algum acontecimento, em geral heroico, épico, monumental, em geral iniciado ou executado por alguma figura ‘providencial’, inaugurou as bases de uma suposta identidade nacional” (SILVA, 2000, p. 85). 14 a identificação existente com uma dada representação nacional portuguesa acabou fazendo parte de uma série de leituras de mundo que se debruçaram sobre a problemática referida, focalizando aspectos como a dinâmica colonial, as consequências de uma luta em defesa da manutenção do imperialismo luso e as especificidades do processo de descolonização. Entre as leituras mencionadas, sobressai aqui a que fora produzida por uma série de literatos, os quais refletem sobre a questão identitária no interior de suas obras em uma relação com os discursos que fazem parte do contexto no qual aqueles estão inseridos. Desse modo, a reflexão sobre essas questões envolve contextos de criação que ficcionalizam, por vezes, mais do que o conjunto de vozes sociais que originam um discurso nacional, a forma como este se apresenta fragmentado, desmontado pela própria “arena discursiva” que tais obras encenam. Tal embate dinâmico promove a compreensão de que a identidade nacional fixa, coesa e una não passa de uma criação que já não condiz com a realidade para a qual foi elaborada. Nesse sentido, é que a pesquisa aqui empreendida versa sobre a obra Os cus de Judas (1979), do português António Lobo Antunes. Por meio de uma ironia refinada, esse escritor possibilita a reflexão sobre um tema que, se outrora teria sido fonte de integração nacional, apoio ideológico de um regime de governo, figura, no contexto de criação do texto literário elencado para este estudo, como uma questão incômoda sobre a qual impera, por vezes, o silêncio, a ocultação, a superficialidade. Leituras que, vivificadas no interior do romance em destaque, são desarticuladas, postas em causa, sugerindo um universo caótico, em desordem, sentido esteticamente pela configuração estrutural da prosa em foco. Levando-se em consideração que no texto em destaque é possível observar a relevância do pensamento nacionalista, manifesto a partir da atuação de diversas instituições que divulgam os valores do governo português aliado a um sentimento de apego à pátria, o cenário de guerra presente nessa narrativa provoca um redimensionamento desses mesmos valores. Isto é, ao contrário da apresentação de uma luta em que se dignificam os ideais da nação a qual se representa em batalha, o relato do ex-alferes-médico da tropa portuguesa reverte os sentidos que enalteceriam a imagem do ser nacional, avaliando o quanto esses sentidos ainda seriam válidos na realidade que se descortinava no país. Em síntese, vai-se do pensamento legitimador da imagem gloriosa de Portugal, enquanto pátria expansionista, uma grande nação portuguesa que se estendia para além do Atlântico, até a revisão desse olhar por um sujeito que retorna 15 da guerra em África e não enxerga na ex-metrópole os antigos atributos a esta conferidos: “e eu pensei, fitando as trevas desabitadas e murchas que uma aurora improvável desbotava, Afinal é isto Lisboa” (ANTUNES, 2010, p. 87) 2. Nesse ínterim, a linha central desta tese concentra-se no entendimento de como o perfil do vencedor – plasmado, por exemplo, na figura do nobre conquistador português – foi dissolvido na urdidura romanesca da prosa alvo desta pesquisa, dando lugar à imagem melancólica do vencido. Este compõe um ser apequenado, objeto das imposições do Estado que, desde cedo, procurou regular a sua formação, ao que o ex- combatente responde, no presente, com a crítica ao “falso patriotismo de estuque e gesso” (ANTUNES, 2010, p. 175), o que qualificaria, segundo o narrador, a ideologia nacionalista portuguesa. Por essa compreensão, o que é explorado nesta pesquisa são as formas utilizadas na narrativa para proceder ao desmonte de um dado modelo de identidade nacional. Assim, não seria o entendimento de pátria portuguesa, enquanto uma entidade política, que estaria sendo observado, essencialmente, no romance em estudo e, sim, o deslocamento de uma “ideia de nação tal como representada em sua cultura nacional” (HALL, 1997, p. 53, grifo no original) por um determinado pensamento dominante. Ademais, como a “cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos” (HALL, 1997, p. 55), analisa-se, no enunciado literário em foco, como o discurso nacionalista é confrontado com outros discursos na prosa antuniana, sejam aqueles que, reforçando dados valores, auxiliam a construção de um protótipo de identidade nacional, sejam aqueles que desestabilizam tal modelo, desvalorizando os significados ali expressos. O próprio entendimento de que o sujeito constrói-se a partir de seu contato com o mundo, o que é mediado pela linguagem, possibilita a compreensão de que a identidade, de fato, corresponde a uma elaboração e, enquanto tal, está passível de revisões, de avaliações e de discordâncias. Além disso, pela linguagem, manifestam-se os mais diversos valores que orientam as práticas sociais de 2 Todas as referências utilizadas com relação ao texto literário são extraídas da edição ne varietur da obra estudada. Tal edição é resultado de um projeto desenvolvido por um grupo de pesquisadores, coordenado por Maria Alzira Seixo, dedicado ao exame da ficção antuniana. Desse modo, faz-se menção à seguinte referência: ANTUNES, António Lobo. Os Cus de Judas. 29ª ed. Lisboa: Dom Quixote, 2010. A razão atribuída para a realização desse estudo nos livros de António Lobo Antunes ocorreu devido a incorreções existentes nas edições anteriores, de forma que na edição compreendida como definitiva, buscou-se manter as uniformizações determinadas pelo autor, como apagamento (tanto quanto for exequível) de itálicos, das maiúsculas e dos hífens, tentando manter apenas a palavra como centro da escrita peculiar de Lobo Antunes. 16 cada grupo, até mesmo, de agrupamentos maiores, como as comunidades nacionais, o que caracteriza a noção de discurso e, de forma mais específica, de um discurso sobre uma dada nação. Para entender melhor essas questões e como é processada a relação entre leituras de mundo diversas no texto literário em estudo, esta pesquisa é fundamentada a partir do pensamento dialógico do Círculo de Bakhtin 3 . Os princípios formulados por um grupo de intelectuais, surgido no início do século XX, oferecem os elementos para uma reflexão sui generis sobre o signo em uso e as relações edificadas na/pela linguagem que são constitutivas dos sujeitos, das sociedades, das culturas. De um modo geral, as ideias, as ideologias, os significados produzidos sobre cada ação no mundo são elaborados a partir da interação entre diversas vozes que se esbatem em um mesmo enunciado, representando diferentes interesses que atravessam a enunciação. A esse fenômeno, atribuiu-se o conceito de dialogismo, como algo que faz parte de toda e qualquer relação humana 4 , ocorrendo apenas pela via das palavras, o que faz delas “signos ideológicos” (de acordo com VOLOCHÍNOV, 2010, p. 126) no interior de uma relação social: As concepções de mundo, as crenças e mesmo os instáveis estados de espírito ideológicos também não existem no interior, nas cabeças, nas “almas” das pessoas. Eles tornam-se realidade ideológica somente quando realizados nas palavras, nas ações, na roupa, nas maneiras, nas organizações das pessoas e dos objetos, em uma palavra, em algum material em forma de signo determinado. Por meio desse material, eles tornam-se parte da realidade que circunda o homem (MEDVIÉDEV, 2012, p. 48-49). Portanto, de acordo com os pensamentos do Círculo, o texto, de uma forma geral, “é constitutivamente dialógico; define-se pelo diálogo entre os interlocutores e pelo diálogo 5 com outros textos (da situação, da enunciação) e só assim, 3 Partilha-se aqui da mesma compressão de Carlos Alberto Faraco quanto à questão da autoria nos textos atribuídos aos pensadores do Círculo de Bakhtin, reconhecendo a lavra das edições ditas originais, quando possível, pois mais importante que recair na aporia que envolve tal questão, é “não perder a diversidade de pensamentos do grupo, suas múltiplas e inegáveis inter-relações e sua apreciável riqueza” (FARACO, 2009, p. 12). Por mais que outros intelectuais sejam citados como nomes que fizeram parte do Círculo, a remissão às ideias desse grupo, nesta tese, concentra-se nas figuras de Mikhail Bakhtin (1993; 1997; 2010; 2013; 2015; 2016), Valentin Volochínov (2010) e Pável Medviédev (2012). 4 Na visão de Bakhtin, as “relações dialógicas – fenômeno bem mais amplo do que as relações entre as réplicas do diálogo expresso composicionalmente – são um fenômeno quase universal, que penetra toda a linguagem humana e todas as relações e manifestações da vida humana, em suma, tudo o que tem sentido e importância” (1997, p. 42). 5 A noção de diálogo, como conceito central do Círculo de Bakhtin, é compreendida em um sentido amplo “isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja” (VOLOCHÍNOV, 2010, p.127), principalmente, quando 17 dialogicamente, constrói-se a significação” (BARROS, 1999, p. 24). Dessa sistemática, faz parte o texto literário, enquanto uma realização de múltiplas linguagens, incluído, assim, em uma cadeia discursiva, a qual, por exemplo, ilustra a “imensa série literária, composta de muitos outros discursos que pensaram e pensam o homem e o mundo” (BERNARDI, 1999, p. 50). Por essa lógica, entende-se o texto literário como um discurso entre outros, constituído dialogicamente pela relação com as várias vozes sociais com as quais o texto interage. Nessa interação, sobressaem os valores que cada voz social carrega, ou seja, o modo como cada grupo social, por exemplo, avalia determinada visão de mundo e, assim, reforça, acentua, contrapõe, responde às demais posições com as quais entra em contato nesse universo dialógico. As observações feitas motivam duas questões, de suma relevância, para o olhar sobre a obra literária, aspectos que, de uma forma ou de outra, auxiliarão nas interpretações a serem realizadas sobre o romance antuniano. O primeiro caso diz respeito à compreensão de que há, entre o sujeito e a realidade à qual ele se refere em um texto, uma mediação produzida pelos discursos sobre essa mesma realidade. Partindo das concepções de Medviédev, para o qual a “consciência humana não toca a existência diretamente, mas através do mundo ideológico que a rodeia” (2012, p. 56), o olhar sobre um mesmo contexto pode dar origem a enredos diversos, tendo em vista que cada autor perceberá de forma diferente esse cenário de acordo com a posição ideológica em que se situa no mundo. Por essa medida, “qualquer enredo como tal é uma fórmula de vida refratada ideologicamente. Essa fórmula é constituída pelos conflitos ideológicos, por forças materiais já refratadas ideologicamente” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 61). Por exemplo, uma leitura sobre o cenário do conflito colonial pode dar origem a enredos diversos se for considerado o horizonte do colonizador ou o do colonizado, dado que essa leitura já se relaciona com outros discursos que, fora do âmbito literário, exprimem sua valoração ideológica sobre a questão. As reflexões apresentadas configuram o conceito de refração, uma noção bastante presente na teoria formulada pelo Círculo e que, nesta pesquisa, faz parte da compreensão sobre o modo como o discurso de um nacionalismo exacerbado (na esfera lusitana) fora refratado na narrativa em estudo e, assim, subvertido na visão desalentadora cultivada pelo narrador. Se a ligação que o texto literário estabelece com se entende que o sujeito constrói-se no diálogo, na interação que responde a um já dito, mas que também antecipa o ainda não dito, constituindo sua identidade nesse diálogo vivo. 18 o contexto com o qual se relaciona não ocorre sem ser permeada por uma série de discursos, interligando o primeiro caso ao segundo, faz-se necessário, no estudo do romance em questão, instituir o contato com a situação extraliterária. Isto é, como um imperativo analítico para realizar a leitura da narrativa em foco, encontra-se a necessidade de entender o universo social no qual a prosa está inserida como algo que faz parte da constituição do sentido do próprio texto. Isso significa dizer que, para aproximar-se das questões que fazem parte da composição de Os Cus de Judas, é fundamental compor um diálogo com outros discursos, com outros saberes, com outras disciplinas, buscando evitar igualmente tanto o perigo de uma fetichização da obra e sua transformação em objeto sem sentido, convertendo a percepção artística na “sensação” descarnada dessa coisa – como no nosso formalismo –, quanto o perigo oposto da transformação da literatura em simples serva de outras ideologias, perdendo a obra literária em sua especificidade artística (MEDVIÉDEV, 2012, p. 71). Por um lado, não se ignora a relevância da interação com outras leituras, enfim, com outros saberes, já que esse diálogo faz parte da constituição do texto literário. Por outro lado, essa relação vem a ser orientada, nesta tese, a partir do próprio romance, ou seja, os discursos políticos, históricos, sociológicos (no tocante, por exemplo, à reflexão sobre a questão identitária) são explorados nesta pesquisa mediante a necessidade de substanciar a análise de determinado aspecto da prosa estudada. Em outras palavras, não se realiza, por exemplo, um panorama acerca de como a identidade foi concebida ao longo do tempo 6 , ou ainda, embora reconheça-se a relevância de estudos com tal foco, não é dada primazia à questão identitária a partir de uma ótica mais subjetiva que evidencia, entre outros aspectos, as dimensões de um sujeito envolvido em um contexto pós-colonial. Na verdade, a prevalência recai aqui sobre o desmonte de um certo modelo de identidade e, nesse sentido, a necessidade do diálogo com o discurso 6 Em sua análise sobre a questão identitária no contexto da pós-modernidade, Hall (1997, p. 10) apresenta três concepções de identidade distintas: o sujeito do Iluminismo; o sujeito sociológico e o sujeito pós- moderno. O primeiro corresponde à imagem do indivíduo como alguém centrado, que possuía um “núcleo interior” (HALL, 1997, p. 11) no qual se concentrava a sua identidade. O segundo compreendia a noção de que a identidade era construída no contato com a sociedade e que o “núcleo interior do sujeito não era autônomo e autossuficiente” (HALL, 1997, p. 11). Já o último caso caracterizava-se pela visão de que o “sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes, contraditórias e ou não-resolvidas” (HALL, 1997, p. 12). 19 sociológico ocorre como uma forma de auxiliar o entendimento de como uma dada representação do ser nacional português é deteriorada no romance. De igual forma, não se sobrepõe aos aspectos inerentes à prosa focalizada os conceitos formulados pelo Círculo de Bakhtin. Tais noções (a exemplo do heterodiscurso, da bivocalidade, da refração, da questão carnavalesca e do próprio dialogismo, de um modo geral) são exploradas, nesta pesquisa, de forma a respeitar as particularidades apresentadas pelo próprio texto literário, em que este surge como ponto de partida das reflexões elaboradas. Sem que se perca de vista as singularidades da obra romanesca em destaque e entendendo que a “linguagem peculiar do romance é sempre um ponto de vista peculiar sobre o mundo, que aspira a uma significação social” (BAKHTIN, 2015, p. 125), é que se deslinda como o ponto de vista cultivado na prosa em foco é formado a partir da dialogicidade constitutiva do esfacelamento de uma dada posição sobre a pátria no momento singular da enunciação na narrativa. Ademais, fugindo de uma leitura na qual se perceba o texto artístico distanciado de qualquer diálogo com as questões sociais (em um enaltecimento dos aspectos estético-formais a partir dos quais se daria a relevância do fazer literário), o mote desta pesquisa compreende o questionamento de como se dá a conexão entre o desmonte de um modelo de identidade nacional e a estética do romance. Isto é, percebe-se a narrativa citada como uma realidade axiológica na qual as marcas do processo de desmobilização de uma dada representação da identidade portuguesa são trazidas pelo/no viés narrativo da arte literária em evidência. A fim de refletir sobre os diálogos que o próprio romance incita, o estudo sobre a narrativa de António Lobo Antunes encontra-se organizado, essencialmente, em quatro momentos distintos de reflexão, mas que se integram à análise do movimento característico, presente no texto literário, que converte a imagem gloriosa do herói lusitano em um vencido. Portanto, diante da necessidade de conhecer melhor o meio social no qual Os Cus de Judas se insere, construindo uma interação com o discurso histórico que se refere ao período de vigência do Estado Novo em Portugal, aos acontecimentos relacionados à Guerra Colonial e ao processo de descolonização dos territórios africanos, é que se discute tais concepções no capítulo intitulado de “António Lobo Antunes e o contexto do Estado Novo em Portugal”. Além disso, uma vez percebendo a guerra como evento motivador do desmonte (já referido) operado na narrativa, salienta-se a relação tecida entre a construção do perfil do autor empírico (em sua trajetória de vida) e os episódios inerentes ao conflito colonial, de modo que surgem 20 entrelaçados o processo de formação de Lobo Antunes, até mesmo, enquanto escritor, e a participação dele na guerra em África. A partir do capítulo “O destecer da épica lusitana na composição de Os cus de Judas”, a análise concentra-se no modo como a narrativa antuniana refrata o tradicionalismo português, evidenciando, assim, os meios pelos quais o “eu narrador”, em seu processo formativo, desarticula a validade do pensamento nacionalista. Nesse sentido, a épica de nação e a memória das grandes conquistas do país são ridicularizadas por um indivíduo que foi obrigado a sobreviver nas “Terras do Fim do Mundo” (ANTUNES, 2010, p. 121) – nomeação atribuída ao cenário angolano – em nome de ideais que não seriam mais coerentes com o contexto vislumbrado pelo narrador- personagem. Por esse viés, predomina, de forma consistente, uma ruptura com o que é considerado padrão, seja de um modelo de narrativa de nação 7 , seja, no âmbito da estética do texto, de uma dada espécie de personagem, de uma composição temporal linear, ou ainda, de uma variante linguística regida pela norma. Neste momento da análise, é evidenciado, principalmente, como o processo de rompimento com dadas leituras de mundo realiza-se também pela formalização estética do texto a partir da configuração singular de três aspectos destacados na narrativa: a composição da enigmática personagem feminina (acompanhante do ex-alferes), o complexo movimento temporal desencadeado pela atitude rememorativa do narrador e a excêntrica estrutura linguística construída na prosa. Em seguida, no capítulo “A atitude dessacralizante do narrador antuniano no plano discursivo do romance”, são desvendadas as vias pelas quais o sujeito que evoca a experiência traumática da guerra desqualifica as visões de mundo que o levaram a padecer em um “país que ardia” (ANTUNES, 2010, p. 176). Por meio de um discurso irônico, que recai, por vezes, na erupção de um humor ácido, o narrador desfaz o projeto formativo das instituições empenhadas em fazer daquele indivíduo um homem segundo os atributos definidos pela Família, pela Igreja e pelo Estado. Essa tríade discursiva, que impera sobre o “eu” uma voz autoritária, determinava os caminhos que deveriam fazer parte do percurso educativo a ser trilhado pelo sujeito a fim de que, ao final do processo, ele correspondesse ao nobre perfil do ser português almejado por tais vozes. No entanto, 7 A ideia de narrativa de nação é entendida como algo que é contado e recontado nas histórias e nas literaturas nacionais, na mídia e na cultura popular. “Essas fornecem uma série de estórias, imagens, panoramas, cenários, eventos históricos, símbolos e rituais nacionais que simbolizam ou representam as experiências partilhadas, as perdas, os triunfos e os desastres que dão sentido à nação” (HALL, 1997, p. 56). 21 a vivência na guerra possibilitou ao “eu narrador” uma desaprendizagem desses valores que são subvertidos no interior do enunciado literário, sendo confrontados com outros pensamentos de orientação contraditória em relação àqueles, o que faz do discurso do narrador um espaço, profundamente, dialógico. Por último, no capítulo “As metamorfoses vivenciadas na dualidade peculiar de um mundo incongruente”, descortina-se a constituição do narrador protagonista a partir do contato que ele realiza com um “outro”, o qual assume diversas formas no romance antuniano. Desfazendo-se dos discursos que fundamentaram seu processo de crescimento, o “eu” elabora a sua identidade a partir da relação com um “outro” que, em dadas circunstâncias, caracteriza-se como um “outro” de si mesmo e, em outros momentos, abolindo as distâncias do que poderia ser visto como afastado do próprio ex- combatente das tropas lusas, sucede a ligação com um “outro” colonizado, o qual se torna alguém mais próximo ao narrador devido à partilha da vivência tortuosa na guerra. Ligada a essas questões, destaca-se a compreensão de que a personagem principal da prosa enxerga-se como alguém deslocado, até mesmo, deformado diante da imagem que lhe devolve, por exemplo, o espelho, algo que auxilia no entendimento do próprio tom melancólico com o qual tal homem narra as suas agruras no presente. Além disso, esse contato com o “outro” traz à tona as transformações das quais o sujeito foi alvo, principalmente, aquelas que foram resultado da experiência agônica em Angola. Tais metamorfoses auxiliam na composição de um mundo dual presente no romance, um mundo fragmentado não só por um “eu” dividido, por exemplo, entre o perfil de homem esperado pelas instituições citadas e aquele que, de fato, retornou ao país de origem, mas também pela imagem animalesca que configura o ex-alferes-médico na guerra ao mesmo tempo em que sobrevém uma série de referências culturais que contrastariam, à primeira vista, com o ambiente de selvageria revelado na narrativa. Enfim, quer seja pela imagem da épica de nação desfeita, quer seja pela desconstrução 8 dos discursos que sustentavam uma dada versão do ser patriótico, quer seja, ainda, pela imagem degradada dos soldados convertidos em animais, a visão gloriosa do país é desmontada no romance e surge, assim, como algo irreal, uma ficção, ou ainda, uma “invenção e azulejos” (ANTUNES, 2010, p. 96) que não encontraria espaço para ancorar na realidade nacional. 8 Nesta pesquisa, o uso do termo “desconstrução” envolve um sentido amplo, correlacionado à ideia de desmontar, de desmanchar algo. Embora não seja possível ignorar o peso que esse vocábulo possua para a teorização de Jacques Derrida, não se elabora aqui um diálogo explícito com tal pensamento. 22 2. ANTÓNIO LOBO ANTUNES E O CONTEXTO DO ESTADO NOVO EM PORTUGAL a pálida alegria colonial tinge de tristeza cada gesto. António Lobo Antunes. Os cus de Judas. Uma vez que se busque adentrar no universo que envolve “o monólogo do indivíduo reduzido ao resto que a guerra colonial fez de si” (SEIXO, 2002, p. 500), o que caracteriza o segundo romance de Lobo Antunes, torna-se necessário perscrutar um período específico da história portuguesa, referente ao fim do século XX, fase em que se alterou profundamente o itinerário da nação traçado até ali. Há, desde o primeiro contato com o mundo romanesco em foco, a premência de que se estabeleça uma zona de diálogo com outros saberes, fugindo de qualquer restrição que determine uma leitura do texto voltada “apenas” para os fundamentos da teoria literária. Assim, entendendo a prosa dentro de uma cadeia de discursos com os quais aquela acaba relacionando-se, ocorre o reconhecimento da relevância da dimensão contextual para a análise do referido romance. Desta feita, sem considerar os aspectos que fizeram parte da Guerra do Ultramar, do regime salazarista e dos caminhos que levariam ao fim da era ditatorial no solo português, muitos questionamentos, muitas temáticas presentes no tecido romanesco ficariam na sombra. Em outras palavras, deixaria de ser elucidada uma série de relações dialógicas (lembrando as teorizações de BAKHTIN, 1997, p. 183) nas quais são constituídos os valores em jogo na época à qual a narrativa se refere, principalmente, as concepções de mundo ligadas à defesa de uma nação imperialista ou, contrapondo-se a isso, as posições favoráveis à luta independentista nas antigas colônias portuguesas. Nesse sentido, entender os acontecimentos que envolvem Os Cus de Judas requer que se institua um entrelaçamento, comum ao estudo historiográfico, entre o universo colonial da África portuguesa e as dinâmicas inerentes ao contexto da metrópole. O exposto encontra razão de ser pelo fato de que os eventos sucedidos nas mencionadas terras africanas impulsionaram mudanças no país localizado no extremo sudoeste europeu, da mesma forma que as políticas empreendidas em Portugal influenciaram as revoltas surgidas naqueles territórios por tanto tempo explorados. Apesar disso, na pesquisa realizada por muitos historiadores sobre esse momento da história lusitana, torna-se regra geral a visão de que “os académicos que estudaram o 23 salazarismo concentraram-se exclusivamente na análise da realidade metropolitana, que foi entendida isoladamente da realidade colonial” (PIMENTA, 2013, p. 189). De maneira a superar essa dicotomia e assim aproximar-se do trânsito que o próprio texto literário apresenta entre Angola e Portugal, a análise a ser desenvolvida a partir deste momento compreende essas duas realidades de forma conjunta, inter-relacionadas. Por essa via, a dissolução de um dado modelo de identidade nacional portuguesa associa-se a uma realidade na qual o anseio dos colonizados de construir a sua própria versão do ser nacional torna-se patente, um momento em que ocorreu a derrocada do que ficou conhecido como o Terceiro Império colonial português. Este é marcado, a princípio, pela perda do domínio português sobre a América, de sorte que esta passou a ser procurada “na África (Novo Brasil), quando em verdade só se desejava buscar (e reencontrar) a Europa. E o fim desse mesmo império foi marcado pela perda da África e o suposto reencontro da Europa” (SECCO, 2004, p. 25). Logo, todo esse percurso histórico fora construído a partir de um sensível trânsito entre continentes, uma circulação, principalmente, de ideias lançadas sobre esses espaços com a finalidade de configurar o ambiente do colonizador e o do colonizado. Um significativo defensor da manutenção do Terceiro Império citado caracterizou-se pelo regime de governo instaurado a partir da queda do experimento republicano em Portugal. Pela ação de líderes militares, frente à instabilidade política e à crise econômica da época, ocorreu a implantação no país de uma ditadura. Para tanto, tais militares “recorreram em 1928 a um obscuro professor de economia chamado António de Oliveira Salazar” (MAXWELL, 2006, p. 34). Este comandou a pasta de finanças, buscando atingir o equilíbrio das contas nacionais, assumiu, em 1930, a administração colonial, defendendo a supremacia da metrópole sobre os territórios conquistados e foi nomeado, em 1932, presidente do Conselho de Ministros. Contudo, o papel que mais desperta a atenção (que fora desempenhado por Salazar) foi determinado pela sua proclamação como um líder nacional, uma imagem mitificada que, aproximada ao povo português, resgatou o vínculo tanto com o mundo rural quanto com a burguesia do país, tornando-se uma entidade com a qual havia uma identificação, porventura, ainda não alcançada por nenhum homem de Estado. O exposto ainda é justificado quando se observa que em um só homem, durante décadas, uma parte do povo português (bem mais extensa do que a oposição sempre gostou de imaginar) viu reunidas 24 duas condições opostas, cuja estrutura faz parte da tipologia dos contos populares mais clássicos: a do “príncipe e do pobre”, que para a beata e hipócrita burguesia nacional se traduzia na dualidade também exemplar do “ditador e do asceta”, ou do “professor e do monge” (LOURENÇO, 2016a, p. 69-70). O perfil ilustre elaborado acerca da figura de Salazar ancorou-se na propagação consistente, durante o Estado Novo, de um discurso nacionalista, cuja força incitava a visão de um país unido, grandioso, capaz de englobar as diversas faces de seu povo, exemplificadas pela postura de seu próprio líder, redundando na composição de uma “lusitanidade exemplar” (LOURENÇO, 2016a, p. 38). Tal discurso compunha a via necessária para justificar um governo autoritário e, ao mesmo tempo, reforçar a sistemática colonial pela defesa das conquistas de um passado já distante que definiriam o imaginário nacional e as posições assumidas em pleno século XX. Por conseguinte, substituindo uma leitura mais adaptada à realidade portuguesa e, de um modo geral, ao próprio cenário internacional, a política conservadora do regime passou a ver em qualquer lampejo de modernização um perigo para as instituições tradicionais em um Estado condicionado pelas demandas da ruralidade. Ademais, ignorando os inúmeros ataques praticados contra o regime 9 , houve o cultivo, cada vez mais, de uma imagem irrealista da nação portuguesa, caracterizada pela visão de um “país sem problemas, oásis da paz, exemplo das nações, arquétipo da solução ideal que conciliava o capital e o trabalho, a ordem e a autoridade com um desenvolvimento harmonioso da sociedade” (LOURENÇO, 2016a, p. 38). Para sustentar tal panorama, a ditadura salazarista valeu-se de uma engrenagem “composta de intelectuais conservadores e semifascistas, uma brutal polícia política e um punhado de grandes empresas familiares monopolistas” (MAXWELL, 2006, p. 35- 36). A base de apoio do regime incluía, assim, grupos responsáveis por difundir a ideologia do governo, algo que se iniciava desde o reduto familiar, com o enaltecimento dessa instituição como promotora da harmonia social, até a relação com a Igreja Católica (embora o catolicismo não tenha sido declarado como a religião oficial do 9 Muito embora as ações surgidas contra o Estado Novo tenham sido logo abafadas pelo sistema autoritário, durante a ditadura, incontáveis atos contra o regime aconteceram até os anos 40, sendo arrefecidos na década de 50 para regressarem nos anos 60. Entre as sublevações ao salazarismo, é possível citar o levante operário em 1934, a revolta dos marinheiros em 1936, além da tentativa da oposição de realizar um golpe militar que libertasse o país de um governo no qual um só partido existia legalmente, a União Nacional. Nessa época, vários movimentos foram criados, com destaque para o Movimento de Unidade Democrática (MUD), instituído em 1945. Para maiores informações sobre as conjurações e a manifestação de movimentos contrários a Salazar, ver Lincoln Secco (2004, p. 54). 25 Estado) na defesa de um sistema de governo corporativo que seria avalizado pela benção religiosa, a qual permitia propalar a fé pelas colônias. Não é possível descartar também nesse quesito a existência de associações organizadas para apoiar Salazar, valendo-se de delações, de espionagens, de coações como forma de auxiliar o aparelho repressivo do Estado. O grupo paramilitar intitulado de Legião Portuguesa foi um exemplo disso; criado em 1936 com o intuito de salvaguardar a ordem, a Legião combatia pela força qualquer ameaça comunista, anarquista. A fundação de tal grupo significou um endurecimento da política governamental, o que foi visto por alguns historiadores como um passo relevante para a implementação da alcunha de fascista ao salazarismo 10 . A estrutura governamental ainda dispôs de mais recursos no tocante ao seu forte aparato repressivo, por exemplo, as Forças Armadas que foram submetidas ao Conselho de Ministros e passaram a ser regidas pela Lei da Reforma Militar, promulgada em 1937, a qual acelerava as promoções e, com isso, promovia a adesão da oficialidade jovem ao regime (conforme SECCO, 2004, p. 54). Além disso, havia a Polícia de Segurança Pública (PSP), a Guarda Nacional Republicana (GNR) – responsável por combater as greves – e a Guarda Fiscal (aduaneira). No entanto, nenhum órgão teria deixado uma reputação tão amarga perante o povo português quanto a Polícia Interna e de Defesa do Estado (PIDE) 11 , a qual, formando um “grotesco estado dentro de um estado” (MAXWELL, 2006, p. 104), fora criada em 22 de outubro de 1945 com o objetivo de perseguir, de prender e de interrogar qualquer indivíduo que fosse visto como inimigo ao salazarismo. Os opositores ao regime eram levados para prisões em Portugal, como as dos Fortes de Caxias e de Peniche, ou ainda, para a Colônia Penal do Tarrafal, na ilha de Santiago, no arquipélago de Cabo Verde. Tais espaços serviram ao Estado Novo como 10 A natureza ideológica do sistema de governo comandado por Salazar não é um assunto consensual entre os historiadores que se dedicaram a observar esse período, exigindo cautela dos estudiosos, por exemplo, no emprego da acepção fascista ao referir-se à ditadura portuguesa. Segundo Pimenta, “há uma ‘interminável’ discussão académica sobre a classificação e a integração da ditadura salazarista na categoria histórica-política do fascismo. A este respeito, há duas perspectivas principais: a primeira de que o Estado Novo foi um regime fascista; a segunda de que o Estado Novo foi um regime autoritário de direita, mas não propriamente fascista” (2013, p. 183). A segunda perspectiva concebe o salazarismo como uma matriz política própria, erigida a partir do duo nacionalismo e colonialismo, de maneira que a aproximação com o fascismo italiano e espanhol (a inspiração em Mussolini e Franco, respectivamente) seria dada ao nível da formação de um Estado corporativista, sustentado por uma série de instâncias de repressão, como a Legião Portuguesa, considerada uma milícia fascista. 11 Com a chegada ao poder de Marcelo Caetano, em 1968, o recente líder dissolve a PIDE. Entretanto, em 24 de novembro de 1969, foi oficialmente criada a DGS (Direção Geral de Segurança), a qual manteve as mesmas características da antiga PIDE. 26 um ambiente de tortura, isolamento e privação dos seus inimigos, locais convertidos em instrumentos para a manifestação do controle que detinha o governo ditatorial. A PIDE também foi incumbida de fortificar uma rede de espionagem, cujo trabalho possibilitava antecipar-se às ações dos adversários de Salazar 12 , além de ser uma entidade importante na execução da censura, tendo em vista que vários artigos da imprensa e obras de arte foram editados ou proibidos de serem publicados a partir das determinações desse órgão. Estava decretado um clima de terror, nada era possível fazer contra a vigilância constante que o sistema ditatorial impunha sobre a população, de sorte que como “o perigo espreitava em cada conversa de teor político, as pessoas tornaram-se furtivas, desconfiadas e caladas” (MAXWELL, 2006, p. 35). Com relação à estrutura política do governo, destacava-se a existência de uma câmara corporativa e uma Assembleia Nacional. Desta despontava o Conselho de Ministros e, por último, havia também “um presidente da República com poderes decorativos de chefe de estado” (SECCO, 2004, p. 55). No cenário econômico, a intervenção estatal primava pela estabilidade, de modo que se buscava o equilíbrio orçamentário a partir de uma atitude imobilista, tradicionalista do governo. O sistema político aludido adotava uma postura protecionista, refreando os interesses desenvolvimentistas da indústria com o objetivo de não afetar os benefícios do mundo agrário, não alterando, por exemplo, a estrutura fundiária. Em linhas gerais, o regime sobrelevava o alcance do equilíbrio, da segurança, mesmo que isso ocorresse à custa do avanço industrial, tecnológico, já passível de ser observado em outros países do próprio continente europeu. É possível asseverar, então, que “nunca se tratou [...] de adaptar genuinamente o Estado Novo a ‘novos ventos’, modernizando-o política e economicamente, mas sim de aguentar, mesmo que cedendo à imprescindibilidade da industrialização e dos seus efeitos” (ROSAS, 1998, p. 240). A natureza reacionária do Estado Novo fez com que esse período da história portuguesa fosse marcado por uma tensão entre as forças que defendiam o conservadorismo e aquelas que ansiavam por um progresso que reconectasse o país com o contexto capitalista internacional. A percepção de um mundo perdido no tempo, o qual parecia configurar a visão romântica do império português, alcançou um aspecto central no regime circunscrito à 12 Uma vez terminado o regime, pôde-se ter em vista a ampla extensão dos poderes da PIDE e de sua profícua rede de espiões, já que “os documentos descobertos na prisão fortificada de Caxias, nos arredores de Lisboa, revelaram que talvez um em cada quatrocentos portugueses recebesse pagamento por informações dadas à polícia secreta” (MAXWELL, 2006, p. 104). 27 política colonialista empreendida por Portugal. “O império era uma forma política ultrapassada pelo próprio desenvolvimento das forças produtivas, que reclamava os laços europeus, relações de produção e trabalho modernas e técnicas de exploração neocolonial ou imperialista que Portugal não tinha condições de desenvolver na África” (SECCO, 2005, p. 12). Enquanto outros países europeus, também partidários de uma herança colonizadora, já haviam caminhado para outras vias de relação com as antigas colônias, estabelecendo uma espécie de comunidade política, o país de Salazar ainda mantinha-se insistente na defesa da dominação formal dos territórios colonizados. Dois motivos basilares podem ser descortinados para que não fosse possível à pátria lusa bancar o neocolonialismo em relação, principalmente, às colônias localizadas no território africano. A primeira justificativa, de alguma forma, já foi elucidada, dado que para manter a fraqueza econômica da metrópole, o atraso frente a outros mercados, Portugal necessitava valer-se de sua soberania nas terras colonizadas. Desse modo, o país obtinha vantagens com as matérias-primas baratas, com a preservação de mercados consumidores para os produtos portugueses e com a exportação de minérios oriundos, precipuamente, da região da África Austral. Aliás, tal espaço havia sido convertido em uma zona de interesses para as grandes potências mundiais, de maneira que cada vez mais a metrópole transferia a exploração de suas colônias a empresas estrangeiras (de acordo com SECCO, 2005, p. 11). A segunda causa que impedia a ocorrência de um processo de descolonização diferente do que sucedeu com as colônias africanas sob o domínio luso deveu-se ao fato de que, nessas localidades, não houve a implementação de uma política de desenvolvimento e, sim, de uma administração colonial pautada pela exploração tanto da terra quanto do homem que nela vivia. Isso foi amplificado pelo recrudescimento do discurso nacionalista que, arraigado ao pensamento colonial durante o Estado Novo, fundamentou a defesa da colonização como o cerne da nação portuguesa, o que justificaria o papel civilizatório de que a pátria lusa estaria imbuída frente aos colonizados. Tal papel outorgava aos interesses metropolitanos a decisão sobre os rumos daqueles que seriam subservientes ao império. Para tanto, alguma ações políticas foram executadas, a exemplo do Ato Colonial, publicado em 1930 e incorporado ao texto da Constituição em 1933, em que essa lei-padrão legitimava a visão de Portugal como um império ao qual estaria ligada toda e qualquer deliberação a ser tomada acerca das colônias. De um modo geral, com a mística imperial reafirmada, o que se buscava era defender a ocupação desses territórios conquistados frente aos demais países, 28 resultando em uma ligação indissociável, já apontada antes, entre as colônias, a nação portuguesa e o regime que “confundem-se nessa construção mítica, que passa, aliás, a ter consagração constitucional” (ROSAS, 1998, p. 255). Tratados como elementos de posse da empresa colonial, os habitantes nascidos nas colônias eram relegados aos trabalhos forçados quando não se tornavam, ainda, mercadorias vendidas para a labuta nas minas de ouro na África do Sul. De um lado, a dominação imperialista almejava convencer os colonizados de que “a proposta colonial nada mais era do que banir a escuridão da inexistência da cultura na sua vida e esclarecê-los sobre a única cultura, a europeia, que eles, quisessem ou não, teriam de assimilar” (BONNICI, 2012, p. 36). Do outro lado, havia uma parca abertura para que ocorresse, até mesmo, o processo de assimilação, de incorporação dos nativos na vida civil do colonizador. A explicação para isso deveu-se à presença, nesse contexto, de uma ideologia de cariz racista, uma prática social que determinava a maneira com a qual o mundo colonial era estratificado, inclusive, mediante o uso de aparatos jurídicos. Nessa medida, a divisão social do povo das colônias portuguesas fora expressa linguisticamente por meio do Estatuto do Indigenato (decreto de 23 de outubro de 1926), o qual estabeleceu a separação entre os civilizados (população branca das colônias) e indígenas (pretos e até mestiços). Nessa conjuntura, a população negra, “despossuída” de qualquer cultura, deveria provar a sua civilização às autoridades coloniais, com o intuito de que, ao menos, pudessem dispor do título de assimilado. Na condição a priori de incivilizados, os nativos não dispunham de direitos cívicos nem políticos, afastados, dessa maneira, do alcance da cidadania portuguesa. A aproximação com o universo africano fazia com que, até mesmo, a população branca assentada em Angola, por exemplo, fosse observada de um modo distinto na hierarquia social construída com base em critérios rácicos. As autoridades portuguesas consideravam apenas aqueles que eram naturais da metrópole como colonos, pois eles ainda possuíam uma “pureza racial” não contaminada pelo lugar de nascença. Logo, tal diferenciação provocava um distanciamento entre esses estratos sociais que não gozavam dos mesmos direitos, das mesmas possibilidades de atuação, por exemplo, na administração colonial cujos cargos eram distribuídos entre os metropolitanos. Nesse horizonte social, o sentimento de desintegração com os valores impostos pelo universo do colonizador incutiu nos sujeitos (alvos de uma discriminação por tanto tempo difundida como uma missão civilizadora) uma centelha de inconformismo com o 29 quadro apresentado. À lógica de uma sociedade colonial dividida por uma série de castas começava a se impor a formação de uma oposição política que nascia, inclusive, entre a população branca, “sendo disso um reflexo evidente a formação de uma corrente nacionalista euro-africana favorável à independência da colónia entre os brancos naturais de Angola” (PIMENTA, 2013, p. 191). Em resposta a esse panorama e às pressões internacionais, em especial da Organização das Nações Unidas, que estimulavam o avanço de um processo de autonomização das colônias e a consequente descolonização desses territórios, Salazar implantou uma política integracionista que nasceu na década de 50 e chegou até os idos de 1974. Tal atitude resultou na revogação do Ato Colonial, de modo que as colônias passaram a ser designadas de “províncias ultramarinas”, incorporadas, por essa medida, à grande nação portuguesa que deixava a alcunha de império para assumir o título de “Ultramar Português”. A mitologia colonial valeu-se de um discurso que revelava uma autopromoção da capacidade colonizadora de Portugal, arvorando a unidade que haveria, segundo esse pensamento, entre as terras ultramarinas. Para tanto, o caso brasileiro compreendia uma referência utilizada pelo governo do Estado Novo para demonstrar a aptidão portuguesa em gerir um espaço com vários povos, dentro de uma fraternidade inter-racial que a ditadura salazarista, em sua propaganda, buscava ver representada em África. Alardeava-se uma unidade mística que fora “ainda há pouco juridicamente explicitada como da ordem da subordinação e não da igualdade” (LOURENÇO, 2016b, p. 60), transmitindo a ficção criada tanto à comunidade internacional quanto à sociedade portuguesa. Para esta, difundia-se uma imagem que não seria mais, fazendo uso novamente das considerações de Eduardo Lourenço, “que a duplicação daquela que o Regime tenta impor do próprio País e à sua história, mesmo no plano interno” (2016b, p. 65). No entanto, essa lógica discursiva do salazarismo não foi o bastante para fazer frente às tensões passíveis de serem observadas tanto externamente quanto no plano interno do país diante da política colonialista ainda defendida no final da década de 50. Dentro de um contexto saturado de valores dissonantes, Portugal estava subordinado à sistemática do capital oligopolista internacional, de modo que os interesses das grandes potências (entre elas, Estados Unidos e a antiga União Soviética) inscreviam-se na disputa pela hegemonia política e econômica dos territórios da Ásia e da África. Nesse cenário, a arena política mundial estava envolvida pela disputa ideológica do capitalismo versus o socialismo. Por esse motivo, os movimentos independentistas que 30 foram surgindo nas antigas colônias acabavam absorvendo as influências de um ou de outro enfoque valorativo no desenvolvimento de seu programa nacionalista. No que diz respeito às dinâmicas internas da metrópole, dois aspectos essenciais insuflavam as contrariedades enfrentadas pelo regime colonialista naquele momento. De um lado, como consequência do panorama internacional descrito antes, os movimentos de oposição ao governo de Salazar, impregnados do substrato ideológico do socialismo e do comunismo, defendiam abertamente a descolonização. Do outro lado, a necessidade de desenvolvimento das forças produtivas impulsionava a demanda por uma renovação no campo político, como uma via para ajustar o país aos ritmos europeus e, em maior escala, mundiais, uma saída já almejada por industriais e comerciantes portugueses. Enfim, o que ficava visível, àquela altura, é que “a sobrevivência do império, como superestrutura jurídico-política da sociedade metropolitana, tornava-se cava vez mais vital para a manutenção do regime, mas não das suas economias e da sua infraestrutura” (SECCO, 2004, p. 90). Assumindo a assertiva de Hobsbawm de que “o nacionalismo vem antes das nações. As nações não formam os Estados e os nacionalismos, mas sim o oposto” (1990, p. 19); cada grupo que surgiu, em África, em prol da independência das colônias procurou fomentar a luta contra o imperialismo a partir de um programa de governo nacionalista que incentivasse a construção de pátrias, verdadeiramente, africanas. Com esse objetivo em foco, houve a busca por parte desses grupos de uma tradição que antecedesse à presença do colonizador nas colônias, observando nesse passado distante as marcas que dariam origem às identidades de cada nação, a qual brotaria com a libertação do domínio português. Diante do conservadorismo da ditadura salazarista, logo ficou evidente que, para alcançar tal emancipação, seria necessário empreender uma ação mais efetiva, recorrendo à luta armada. Dessa forma, em fevereiro de 1961, ocorreu o início da Guerra Colonial (ainda denominada de Guerra de Libertação ou Guerra do Ultramar) em Angola, com um ataque à prisão de São Paulo em Luanda e a uma esquadra da polícia, uma ação promovida pelo Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA). No norte do território angolano, por sua vez, sucederam ações contra os colonos, desencadeando uma espécie de guerrilha rural, organizada pela União das Populações de Angola (UPA) 13 . Os massacres ocorridos na região citada, em março de 1961, dizimaram 13 Posteriormente, a UPA transformou-se na Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), sob a liderança de Holden Roberto, usufruindo do apoio concedido pelos Estados Unidos para a manutenção da 31 milhares de pessoas, brancos e negros que trabalhavam nas fazendas destruídas por revoltosos da etnia dos bakongos 14 . O terror maciço que esse episódio causou, devido à amplitude da barbárie que ceifou a vida de homens, mulheres e crianças, ocasionou uma série de consequências, incluindo o estabelecimento de um clima de pânico entre os indivíduos em Angola, colonos ou não, o que gerou um número considerável de refugiados que procuravam deixar a região, até a reposta do regime a esse evento, com as operações das Forças Armadas portuguesas contra a UPA, o que se prolongou até outubro do mesmo ano. O envio de tropas lusas para o solo africano tornou-se consistente a partir desse momento, em que a reação aos anos de jugo colonial redundou em uma carnificina. Enfim, a violência rebentara e a partir dela, conforme afirma Eduardo Lourenço, descobriu-se de repente aos olhos aterrados e virgens da Metrópole uma realidade de que ela não suspeitava. Qual? A de uma população que lhe é descrita, após quatrocentos anos de presença (teórica), nos termos mais soezes, mais eivados de superioridade imbecil branca, como primitivíssima, infantilíssima, desmunida do essencial, atrasada, bárbara, alcoolizada, fanatizada, etc (2016b, p. 74, grifos no original). A explosão do conflito trouxe à tona as contradições do discurso colonial veiculado pelo Estado Novo, já que se as populações africanas já faziam parte, de fato, da cidadania portuguesa, por que responderiam com hostilidade ao comando da metrópole? A partir daquele momento, o destino do império e, consequentemente, do próprio regime estava associado aos rumos das lutas travadas em várias frentes no cenário africano, o que demandava um esforço militar considerável por parte da metrópole para conter o avanço dos guerrilheiros pelas colônias. As dificuldades iniciais enfrentadas por Portugal correspondiam ao confronto com a causa independentista em Angola, Guiné, Moçambique e, até mesmo, houve, nesse período, a defesa de territórios lusitanos na Índia. No último caso citado, a derrota da intolerância salazarista, que se negou a negociar a saída portuguesa da Índia, culminou, em dezembro de 1961, com a perda de Goa e com a reintegração do Estado Português da Índia ao restante do país já guerrilha. Tal grupo participou da disputa pelo poder em Angola depois de alcançada a independência política desse país, porém logo se retirou desse conflito e acabou por, gradualmente, perder força no cenário angolano. 14 Um dos nove grandes grupos etnolinguísticos em Angola de origem bantu, sendo ocupante da Cabinda e do nordeste do país, entre o mar e o rio Cuango. Os demais grupos são o Quimbundo, Lunda-Quioco, Mbundo ou Ovimbundo, Ganguela, Nhaneca-Humbe, Ambó, Herero e, enfim, o grupo Xindonga. As informações apresentadas foram retiradas de Palanque (1995). 32 independente. Tal episódio contribuiu para abalar as condições da metrópole que seguia lutando no continente africano, já que a rendição do general do exército português e de seus homens não foi bem recebida por Salazar, o qual ordenava que as Forças Armadas do país deveriam lutar até a morte. A organização geográfica da guerra pelos portugueses consistiu na construção de aldeamentos estratégicos, com o propósito de observar o deslocamento das ações dos movimentos em favor da libertação das colônias. Visando o controle da população nativa de cada colônia, as tropas lusas fixavam-se no território e os naturais daquela terra acabavam sendo obrigados a abandonar suas moradias, formando novas aldeias que passavam a ser vigiadas pelos militares. Por sua vez, a liderança da luta independentista, por parte dos colonizados, era realizada pelos filhos de família burguesa, indivíduos educados em Portugal, frequentadores de cursos universitários e atentos aos discursos que pregavam a autodeterminação dos espaços dominados e a igualdade entre os povos. Durante o ano de 1961, muitos desses estudantes fugiram da metrópole para juntar-se àqueles que lutavam pela libertação da África portuguesa, tornando-se figuras centrais nesse processo, muitos chegaram a alcançar postos relevantes na conquista da independência de seus países, a exemplo dos ex-presidentes de Cabo Verde e de Moçambique, respectivamente, Pedro Pires e Joaquim Chissano. Nos anos seguintes, o confronto armado chegou, com efeito, a outras localidades do solo africano. Em 1963, o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), sob a liderança de Amílcar Cabral 15 , realizou um ataque a um quartel policial no sul da Guiné-Bissau ao que as forças portuguesas responderam de forma defensiva, procurando mais salvaguardar as posições já conseguidas nesse ambiente que conquistar o apoio das populações. Um fator a ser considerado nessa contenda é, justamente, o suporte conseguido pelos movimentos nacionalistas, por exemplo, do povo colonizado, o qual chegou, até mesmo, a participar mais efetivamente da guerra, sendo recrutado para o conflito. No ano posterior, Moçambique também se tornou um palco de disputas armadas, sob o gerenciamento da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). De um modo geral, a batalha pela libertação das colônias envolveu tanto a organização 15 Considerado um dos mais singulares líderes africanos, Amílcar Cabral nasceu na Guiné-Bissau e, desde cedo, participou ativamente da luta pela libertação dos povos africanos, fundando, juntamente com outros colaboradores do movimento, o PAIGC e denunciando, por meio de conferências e de vários escritos, a violência que caracterizava a dominação colonial portuguesa em África. Assim como Eduardo Mondlane, presidente da Frente de Libertação de Moçambique, que fora assassinado em 1969 em um atentado com uso de explosivo, Amílcar Cabral foi assassinado em 1973 por agentes a soldo de colonialistas portugueses, o que compôs mais uma faceta da Guerra do Ultramar, correlacionada à eliminação de líderes dos grupos favoráveis à independência das colônias. 33 e a efetivação de uma série de ofensivas à administração colonial quanto o exercício da propaganda política entre as etnias que habitavam as zonas nas quais cada movimento concentrava-se. Para o desenvolvimento das operações, os dois lados do front usufruíam de alianças diversas, o que só pressupunha a existência de um jogo de interesses econômicos e políticos inerentes aos auxílios oferecidos. Do lado da metrópole, é possível destacar a cooperação estabelecida com as forças sul-africanas e rodesianas, buscando anular o potencial de guerrilha dos grupos independentistas. Havia entre os comandantes portugueses, posicionados mais ao sul de Angola e Moçambique, estreitos vínculos diplomáticos e militares com as forças citadas, além da ligação estabelecida, no caso de Angola, com as empresas que exploravam os recursos econômicos do território referido (conforme MAXWELL, 2006, p. 54). Do lado dos movimentos favoráveis à independência da África portuguesa, o auxílio armamentista, por exemplo, advinha tanto dos soviéticos e seu suporte dado ao PAIGC quanto dos americanos que colaboravam com as ações de Holden Roberto e o FNLA em Angola. No final dos anos 60 e começo dos anos 70, alguns acontecimentos cruzaram os destinos da guerra com as pressões que foram intensificadas contra a permanência no poder do regime estadonovista. O contexto do enfrentamento armado revelava que Portugal perdera bastante espaço na Guiné e, naquela altura, a esperança concentrava-se na tentativa das tropas lusas de reaver terreno para abrir a possibilidade de um acordo que permitisse uma saída digna dessa colônia, algo que estava condicionado também a uma mudança de postura do governo ditatorial. A expectativa em relação a alterações no regime, mesmo mitigada, decorreu diante da saída de Salazar do comando do governo português, já que o líder da nação portuguesa sofrera, em 1968, um derrame cerebral, falecendo dois anos após esse acontecimento. Marcello Caetano subiu ao poder, tornando-se ministro também em 1968. No horizonte político do país, calculava-se, menos uma continuação da administração salazarista, que a esperança de uma abertura no sistema de governo, algo que podia determinar uma solução menos drástica no cenário colonial. No entanto, logo a esperança deu lugar à desilusão e o maior defensor das negociações com os guerrilheiros da Guiné, o general António Spínola, não logrou que Caetano aprovasse o prosseguimento de qualquer diálogo com os movimentos de libertação. Da mesma forma que Salazar no caso do Estado Português na Índia, o novo ministro argumentava que os exércitos existiam para lutar, não sendo impossível que 34 houvesse uma derrota, mas que ela seria preferível para a honra de um país que, no caso em questão, uma tentativa de conciliação com os que eram considerados pelo governo como terroristas. Caetano justificava sua visão ao alegar que, mesmo perante uma inevitável perda do território guineense, as possibilidades de continuar preservando as demais colônias permaneciam. Distante de qualquer via de entendimento entre o governo do Estado Novo e as ações guerrilheiras em África, as tropas portuguesas viram-se obrigadas a suportar o isolamento sentido em relação ao seu próprio país, recebendo apoio logístico escasso para enfrentar o aparato militar utilizado pelos grupos revoltosos. Regidos pela ordem de resistir até as últimas consequências, os soldados portugueses padeciam em regiões inóspitas, diversas do ambiente vivenciado na metrópole e sentiam que sua superioridade militar acabava frente à entrada na guerra dos mísseis antiaéreos, em 1973, utilizados pelos grupos contrários à opressão colonial. Contudo, nesse momento, “não eram as armas o essencial. [os guerrilheiros] Eram superiores porque o Império estava em inferioridade. Os móveis de sua existência desagregavam-se” (SECCO, 2004, p. 105). A decomposição do império tornou-se ainda mais evidente quando, em setembro de 1973, a independência da Guiné-Bissau foi proclamada pelo PAIGC. Enquanto isso, o isolamento português citado antes, manifesto em uma esfera também internacional, ficou ainda mais evidente, já que a independência da Guiné recebeu reconhecimento diplomático de 86 países, um número maior, segundo Lincoln Secco (2005, p. 30), do que a quantidade de nações que possuíam relações diplomáticas com Portugal na época. O clima de insatisfação com o prolongamento do conflito colonial já era audível tanto internamente quanto, para utilizar a terminologia da lógica imperial, nas províncias ultramarinas. Em Portugal, a guerra passou a ser vista como algo que minava as chances de conectar a realidade do país com o restante da Europa, diminuindo a possibilidade de crescimento de uma sociedade que estava enredada nos cultos vultosos que a manutenção do confronto provocava. Por essa medida, tornava-se cada vez mais oneroso sustentar a presença de um exército de 170 mil homens em solo africano, além do fato de que os jovens portugueses eram obrigados a deixar suas famílias para alistar- se e servir, ao menos, dois anos em uma das colônias em guerra, situação que ampliava o desagrado da população com o regime. Na zona colonial, o dissabor com a guerra e, por extensão, com as deliberações tomadas pelo regime era sentido pelos militares que se viam obrigados a vigiarem uma 35 ampla dimensão de terra, dispondo de poucos homens para enfrentar uma guerra de guerrilhas, em que um pequeno grupo de revoltosos movimentava-se com facilidade em um território pouco conhecido pelas tropas portuguesas. Sujeita a emboscadas e, muitas vezes, à falta de anuência da população local, também esta uma vítima do cenário bélico, a tropa portuguesa vivenciava uma situação bastante complicada, pressionado “pelo repúdio internacional, pela impossibilidade de vencer militarmente os rebeldes e com a perspectiva aterradora de ter de assumir sozinha a culpa de uma possível derrota humilhante” (SECCO, 2004, p. 103). Outro fator que contribuiu com a inquietação que eclodiu entre os militares e preparou o clima de insurreição que nascia entre eles correspondeu à contrariedade dos oficiais de aceitarem as medidas adotadas por Marcello Caetano para ampliar o efetivo de soldados em África 16 . Recorrendo à presença de combatentes que não faziam parte do quadro permanente do exército e dando a eles a possibilidade de fazer parte do quadro da ativa em pouco tempo, Caetano afrontou a hierarquia militar, já que, pelo decreto aprovado em 1973 17 , os milicianos poderiam ultrapassar o grau hierárquico dos seus próprios ex-comandantes nas colônias. Essa conjuntura provocou cada vez mais entre os militares a certeza de que não haveria uma saída, pela força das armas, para que se resolvesse o caos experienciado, era necessário buscar uma solução política para a situação. Logo, chegou-se à conclusão de que, para dissolver o mundo colonial, era fundamental destituir o regime, já que tal sistema era profundamente sustentado pela ideologia que erigia a imagem de Portugal como um “reino” em pleno século XX: A mitologia do império, tanto quanto sua realidade, enredava os portugueses. O etos da velha ditadura estava tão envolto em um romantismo histórico cuidadosamente fabricado que Portugal não podia rejeitá-lo sem rejeitar algo que era essencial à existência do regime. Tampouco Portugal tinha condições, no final, de carregar os fardos que poderiam dar substância ao sonho imperialista (MAXWELL, 2006, p. 57-58). 16 Diante das dificuldades impostas pela Guerra do Ultramar e o número de baixas e deserções dos soldados, Marcello Caetano estimulou o aumento do número de milicianos no exército, os quais, devido à ausência de oficiais do quadro permanente, passaram a presidir a formação de novos soldados nas primeiras etapas da instrução em um período de qualificação menor do que era realizado antes nas escolas práticas do exército. Assim, o número de oficiais aumentou de 3.305, em 1965, para 4.164, em 1973 (consoante com SECCO, 2004, p. 103). 17 Em 20 de agosto de 1973, sofrendo a oposição dos oficiais regulares das Forças Armadas, Marcello Caetano abrandou as disposições apresentadas no primeiro decreto sobre a questão dos milicianos e, com o aumento da participação de vários militares na contestação do regime, o presidente do Conselho de Ministros suspendeu os dois decretos em outubro do mesmo ano. 36 A consciência de que era preciso demover o marcelismo deu origem à Revolução Portuguesa, algo que foi produzido pelo Movimento das Forças Armadas (MFA), inicialmente conhecido como o Movimento dos Capitães, uma reação corporativa ao desprestígio de que foram alvos os militares, mas que acabou transcendendo para um projeto de nação com tons democráticos e, em dado momento, até socialistas. O movimento nascido entre os oficiais subalternos ganhou força e tornou-se audível, nos inúmeros encontros propostos pelo grupo, o desejo de substituir o governo de Caetano por meio de um golpe que pusesse fim aos anos intermináveis de guerra. A ideia de revolução tomava forma, “mantida por tanto tempo nos subterrâneos da história, aparecia de forma igualmente vaga, subsumida à ideia de democracia. Era o instrumento para chegar-se a esta, portanto igualava-se mais a uma técnica militar (o golpe de estado)” (SECCO, 2005, p. 34). O dia decisivo para a história do país aconteceu no 25 de abril de 1974, por meio de uma ação orquestrada por diversas instâncias do corpo militar português. Vários órgãos da administração foram ocupados pelos militares, como os fortes de Caxias, de Peniche (cadeias onde se encontravam presos políticos), o Banco de Portugal, a casa da moeda (alvos devido à tentativa de conter uma ocasional fuga de capitais). Além disso, houve uma sensível preocupação por parte dos oficiais de controlar os meios de informação (rádio e emissoras nacionais de televisão) com o intuito de repassar as informações sobre as ações ocorridas durante o exercício do levante e, ao mesmo tempo, motivar o apoio da opinião pública 18 . Com a renúncia formal de Marcello Caetano, o golpe, o qual fora denominado de Revolução dos Cravos, “mostrou como um exército, que foi o sustentáculo de quase 50 anos de fascismo em Portugal, acabou tendo suas demandas específicas de solução do problema colonial cruzadas com as demandas democráticas” (SECCO, 2005, p. 23-24). A abertura política propiciada pelo advento da revolução deu margem para que surgissem as mais variadas expectativas frente ao novo período iniciado na história portuguesa. A partir de um golpe de estado que ocorreu sem maiores violências, duas questões estavam postas aos militares: a primeira compreendia o caminho político a ser traçado a partir daquele momento em Portugal, uma vez que o MFA carecia de líderes 18 As emissoras de rádio foram utilizadas como meios transmissores de senhas combinadas entre os membros do MFA para o andamento das ações da Revolução. As senhas mencionadas eram canções que se tornaram símbolos daquele dia emblemático na história do país. Maiores detalhes sobre o desenvolvimento do golpe, de um modo geral, e os principais atores desse processo são encontrados no estudo feito por Lincoln Secco (2004; 2005), ou ainda, por Rosas (1998). 37 civis reconhecidos pela população e de uma linguagem própria que fundamentasse o discurso a ser adotado a partir daquele momento; a segunda dizia respeito à situação da guerra colonial, já que os movimentos independentistas não cessaram suas ações diante da queda da ditadura. Na verdade, as duas questões estavam interligadas, já que na agenda dos vários governos provisórios (constituídos na pátria lusa a partir do 25 de abril), ao menos, até o final de 1975, os aspectos inerentes ao processo de descolonização das colônias sempre estiveram em pauta. As opiniões divergentes no seio do MFA, na chefia dos governos provisórios assumidos pelos militares, com os grupos políticos que buscavam alguma representatividade, depois de anos de totalitarismo, em relação à forma como seria gerida a questão colonial serviram para demonstrar as fissuras da estrutura administrativa montada após o Estado Novo. Enquanto ocorrera o princípio de um novo espaço comunicativo em Portugal, com a derrocada da polícia secreta e seus instrumentos de censura, ao mesmo tempo em que foi resgatada a ideologia da esquerda, em que os comunistas ascenderam ao centro da cena política, ainda havia a defesa da manutenção das colônias dentro de um espaço federativo lusófono 19 . De um modo geral, o antagonismo característico desses primeiros anos após a Revolução dos Cravos devia-se à oposição “entre a mudança revolucionária e a mudança evolucionária na Europa, e entre a descolonização imediata e a saída gradual de África” (MAXWELL, 2006, p. 139). O fosso criado entre uma postura mais moderada e outra mais insurreta provocou intensas reflexões sobre as esperanças criadas com a revolução e o que, de fato, foi concretizado. No entanto, o interesse recai, neste momento da análise, sobre a relação entre esse cenário de dissensões e o processo de descolonização que poria fim ao conflito colonial e, por consequência, à visão de Portugal como metrópole colonizadora. A viragem política do país para a esquerda forneceu o campo favorável para que se reconhecesse formalmente a independência da África portuguesa, algo que se combinava com as pressões externas que não deixaram de impor sua visão contrária à permanência, ainda, de um domínio colonial. Por conseguinte, em julho de 1974, sob a regência do primeiro-ministro Vasco Gonçalves, foi publicada uma lei que estabeleceu o direito das colônias à independência. Mesmo enfrentando a resistência de Spínola, a vitória da postura 19 Posição defendida pelo general António Spínola que assumiu o primeiro governo provisório e, devido às tensões políticas, deixou o poder em 28 de setembro de 1974. 38 subversiva encaminhou o processo de descolonização. Tal realidade já era ansiada pelos oficiais de médio-escalão que ainda permaneciam em África e achavam-se esgotados, não demorou, assim, para que o cessar-fogo fosse combinado em várias localidades. O reconhecimento da independência da Guiné-Bissau, por sua vez, ocorreu em agosto do mesmo ano. Em setembro, o governo português assinou um acordo com a FRELIMO, representada pelo futuro presidente de Moçambique, Samora Machel, em que ficou reconhecido o direito à autodeterminação do povo de Moçambique e a progressiva transferência dos órgãos da administração desse espaço para o movimento em prol da libertação desse território. O acordo de Lusaka definia que a independência completa de Moçambique seria finalizada em 25 de junho de 1975, data em que oficialmente deu-se a independência dessa ex-colônia. Tais negociações, que propiciaram avanços na descolonização da Guiné-Bissau, Cabo Verde e Moçambique, atestaram, naquele período, o poderio que o MFA possuía e sobre o qual Spínola e seus apoiadores de um processo paulatino de descolonização não puderam se impor, o que resultou na saída de Spínola do governo pouco tempo depois. A situação de Angola requereu do Estado português uma atenção especial em virtude da disputa interna que havia pelo controle da colônia, envolvendo a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) e os já citados FNLA e o MPLA. Este grupo, especificamente, foi bastante próximo das autoridades portuguesas, devido a sua postura ideológica (ligado à União Soviética e a Cuba) e à ascendência da esquerda em Portugal. Em janeiro de 1975, decorreu uma reunião entre os líderes dos três movimentos independentistas – Agostinho Neto (MPLA), Holden Roberto (FNLA) e Jonas Savimbi (UNITA) – e o governo português representado pelo presidente na época, o general Costa Gomes, entre outros membros da estrutura política de Portugal, com o intuito de avançar com as negociações para a legitimação de Angola como país independente. Ficou estabelecido o Acordo de Alvor no qual se definiu a data para a emancipação de Angola: 11 de novembro de 1975. Até esse momento, aquele território seria administrado por um governo composto por membros dos três movimentos citados e portugueses. No entanto, além dos problemas inerentes à hostilidade existentes entre as três forças que agiam no solo angolano, Portugal não conseguiu lograr êxito no controle da situação até que a transferência de poder fosse finalizada. O acordo firmado não sucedera da forma como foi planejado, já que na antiga metrópole começava um período de muitas discordâncias entre os que faziam parte, de alguma forma, do 39 governo, principalmente, entre os comunistas e os socialistas. O próprio MFA estava repleto de dissidências que terminariam por determinar a sua dissolução 20 , em vista disso, sem a observação dos portugueses sobre Angola, voltados como estavam para as suas próprias contendas, explodiu o conflito entre os três grupos nacionalistas, dando origem a uma longa guerra civil 21 , o que tornaria ainda mais caótico o cenário da ex- colônia. Na data estipulada no acordo, o MPLA decretou, de forma separatista, a independência do país, porém a luta fratricida estaria longe de acabar. No cenário português, um ano após a Revolução dos Cravos, foram realizadas as primeiras eleições livres, com sufrágio universal, ocorridas nos últimos 50 anos. Esse fato em si já seria mais que suficiente para simbolizar que, com efeito, o contexto do Estado Novo havia sido encerrado por meio de uma revolução que ainda não tinha apresentado todos os resultados que, porventura, prometera, mas que teria decretado o fim de uma era na história do país: o encerramento do período de dominação colonial. Sem que seja possível esquecer, ainda, da Guerra do Ultramar 22 que consumiu entre 7 a 10% da população portuguesa e mais de 90% da juventude masculina, chegando a durar em Angola treze anos, ficaria a lembrança da imagem, tão difundida pelo discurso nacionalista do governo ditatorial, da nação portuguesa expansionista, atravessando o Atlântico para constituir-se como um império. Não à toa, o golpe que pôs termo ao regime é também designado como uma “revolução atlântica” por Lincoln Secco (2004, p. 58), devido à relação, que fora observada aqui, entre o destino de Portugal e o de suas ex-colônias. De acordo com o autor referido, a Revolução dos Cravos é 20 O processo que culminou com o fim do período revolucionário, por assim dizer, em Portugal será mais bem explicitado na próxima subseção desta pesquisa. 21 O conflito interno em Angola acabou durando mais de um quarto de século, sendo finalizado apenas em 2002 e definindo as nuances do poder político no país até a atualidade. Competindo pelo apoio popular, de um lado figurava a UNITA, “apresentando-se como uma força autóctone” (PEARCE, 2017, p. 263) que se concentrava na região do planalto central; do outro lado destacava-se o movimento que permaneceu apenas no início da contenda correlacionado ao FNLA e, em outra posição, encontrava-se o MPLA que se concentrava na planície litorânea e acabou sendo reconhecido internacionalmente como representante oficial do governo angolano. Entre divergências ideológicas, apoios internacionais e interesses econômicos, a guerra foi finalizada apenas com a morte do líder do partido da UNITA, Jonas Savimbi, acontecimento que fragilizou esse partido, determinando o cessar-fogo e o fim de uma guerra que deixou “um saldo trágico de meio milhão de mortos, cerca de 4 milhões de refugiados e uma multidão de mutilados, vítimas de minas terrestres” (OLIC, 2004, p. 116). Para uma discussão mais detalhada sobre a guerra civil em Angola, ver Pearce (2017). 22 Em números gerais, sucumbiram mais de 8 mil homens e ficaram feridos ou incapacitados cerca de 100 mil portugueses na Guerra Colonial. De acordo com os dados fornecidos pelo Estado-Maior General das Forças Armadas (EMGFA), morreram de várias causas 8.831 militares portugueses. O número de baixas sofridas pelas estruturas militares portuguesas foi de 3.455 em Angola, 3.136 em Moçambique e 2.240 na Guiné. Quando os números consideram os angolanos, os moçambicanos e os guineenses, eleva-se a quantidade de mortos para 100 mil, 200 mil deficientes físicos e 1 milhão e 400 mil de neuróticos de guerra. Entretanto, esses dados não são consensuais e a quantidade mais provável corresponde a uma cifra em torno de 300 mil mortos. 40 atlântica sim. Porque ampla nas suas consequências ou nas suas origens. Mas serviu para apagar o império e o mar do horizonte histórico do país. Ainda assim a compreensão da conjuntura crítica que medeia o pós-guerra e a eclosão do 25 de abril seriam incompletas sem a análise do império e sem voltar os olhos à África e à guerra colonial. Sem voltar os olhos para aquilo que Portugal perdeu: o Atlântico (2004, p. 58, grifos nossos). Do estatuto da grande nação portuguesa, sobrevivera, assim, seja a lembrança de um tempo áureo que servira para identificar os cidadãos com a identidade de nação propagandeada pelo regime, seja a recordação traumática do terror da Guerra Colonial, principalmente, para aqueles que vivenciaram os anos de conflito ou que dele puderam escapar, retornando à pátria anos depois. Por conseguinte, as memórias que permanecem desse “horizonte perdido” motivaram outros tipos de escrita, sobretudo, literárias, afastadas da épica que vangloriava os feitos de uma nação que se aventurava ao cruzar o Atlântico. Em sentido inverso, a observação de um retorno melancólico à terra natal, motivaria uma nova geração de escritores portugueses, entre eles, a figura singular de António Lobo Antunes. Saindo do escopo de uma literatura produzida pelos “retornados de guerra” ou pelos seus filhos, no tocante à imagem dos colonos que regressaram a Portugal devido à descolonização, Lobo Antunes posiciona-se, ao que parece, em uma zona intervalar quando são observadas as dimensões características do romance português a partir da segunda metade do século XX. No estudo realizado por Miguel Real (2012) sobre a narrativa lusa nesse período, sublinha-se um triplo enquadramento estético que estabelece o romance português contemporâneo, marcado por certo retorno aos lugares do realismo, entre os pares: nacionalismo versus cosmopolitismo; classicismo versus contemporaneidade e realismo versus psicologismo. De um lado, há um apego aos valores espirituais manifestos no decorrer da história do país e, com isso, há uma valorização do vernáculo, bem como se dá uma aproximação da realidade externa ao texto; enquanto, do outro lado, aflora uma reivindicação do legado filosófico e estético da Europa, o que se sintoniza com uma escrita que toma a língua de forma mais pragmática, apreciando uma singularidade linguística que se associa, por último, a um processo de “desnacionalização ideológica” (REAL, 2014, p. 28) das letras portuguesas. Assim, justificando o que foi afirmado anteriormente, Lobo Antunes ergue seu lugar de fala em uma zona de interstícios nesses polos apresentados pelo crítico, dialogando com 41 uma vertente nacionalista, mesmo que seja para desvirtuá-la em sua prosa, ao mesmo tempo em que se relaciona com uma escrita que subverte o que é considerado canônico devido à familiaridade com a linguagem mundana, captada no cotidiano. Tais aspectos que surgem, muitas vezes, nas narrativas desse autor literário por meio das confissões caóticas das consciências dos sujeitos narradores são despertados a partir da vivência tortuosa da guerra, uma realidade da qual o literato em questão parece não se afastar. 2.1. Um escritor imbricado ao ambiente da Guerra Colonial Se a compreensão da história portuguesa no final do século XX deve bastante à relação nutrida entre a ex-metrópole e o contexto colonial, o mesmo é possível de ser afirmado no tocante a um conjunto de obras literárias que surgiram no país recém-saído da era salazarista, as quais focalizavam, particularmente, a Guerra Colonial. Em contraposição a produções artísticas manifestas durante a vigência do regime, em que algumas possuíam um forte cunho laudatório dos feitos inigualáveis do soldado português, um corpus específico de obras ficcionais que floresceu no final da década de 70 no país apresentou uma leitura de mundo que refutava essa visão idealizada da nação ao focalizar o desengano sentido diante da experiência bélica. A estagnação sentida após a Revolução dos Cravos no campo literário deu lugar a um sentimento, mesmo adiado por algum tempo, de reflexão sobre o que fora vivenciado nas ex-colônias 23 . Pesando o risco de expor um tema considerado incômodo para os compatriotas, vários escritores, em sua maioria, participantes do conflito colonial, elaboraram textos em que se observa, primeiramente, uma espécie de testemunho sobre as condições desfavoráveis que os militares portugueses encontraram em África. Tal atitude não seria algo incomum naquele cenário em que o foco recaiu sobre o fim do império, já que “a maior parte da historiografia acerca do período ainda é composta de relatos jornalísticos, memórias e análises políticas de pessoas envolvidas no processo” (SECCO, 2005, p. 55). Essa situação permite revelar o caráter plural dos discursos aflorados no país, dado que o olhar construído sobre a guerra em questão, por exemplo, tanto nos depoimentos dos militares quanto nas ficções que exploraram esse processo, 23 Nas demais artes, ao contrário do que ocorreu com a literatura, a exemplo do cinema, da pintura e do teatro, António Pedro Pita observou o imperativo da imediaticidade, após o 25 de abril de 1974, o “aqui e agora, o momento histórico a recuperar-se como criatividade, a tomar conta das subjetividades daqueles mesmos que por vezes se contestam como artistas e a exprimir-se por elas” (2011, p. 13). 42 possibilita refletir sobre as múltiplas facetas de tal contexto a partir de variadas óticas, distanciando-se de uma única versão apregoada no escopo do pensamento dito oficial 24 . Retirando a camuflagem que essa leitura de mundo apresentava sobre a realidade da Guerra do Ultramar, o universo literário, em especial o campo romanesco (conforme DIAS, 2001, p. 385), foi invadido pela publicação de obras 25 que passaram, até mesmo, a questionar a legalidade do conflito a partir de um enfoque afetivo de quem se sentiu, ainda, abalado perante as atrocidades nele cometidas. Se a identidade nacional compreendera algo que por muito tempo envolveu “uma noção agonística e um grito de guerra” (BAUMAN, 2005, p. 27, grifo no original), a chamada “literatura da Guerra Colonial” caracterizava-se como um espaço singular para que fosse possível entender os caminhos que fizeram do “grito de guerra” entoado algo vazio, rasurando a imagem do ser português e de suas conquistas após a luta citada em África. Uma consciência pós- colonial 26 foi ganhando forma nas ficções que remontavam à guerra quanto à percepção da engrenagem que alimentava a sistemática colonial. De igual maneira, “o redesenho das fronteiras nacionais estimulou uma reflexão identitária (incluindo-se nela a velha questão da relação com a Europa) a que a literatura, naturalmente, não ficou alheia” (REIS, 2004, p. 4). Fazendo parte dessa geração de escritores que fora marcada pelo contexto bélico em África encontra-se a figura de António Lobo Antunes, um literato que iniciou a sua longa trajetória de escritor, reverberando no seu fazer literário as suas experiências enquanto médico do exército português em Angola, durante vinte e sete meses, de 1971 a 1973. Com efeito, a vivência na guerra compõe o elemento impulsionador tanto de 24 É válido ressaltar que a historiografia sobre o fim do domínio colonial e a Revolução dos Cravos foi considerada como incipiente, em que as principais escritas sobre os acontecimentos citados “não foram feitas por historiadores profissionais, mas por pessoas ‘interessadas’, ex-participantes da Guerra Colonial e do processo revolucionário. São mais memórias que histórias” (SECCO, 2005, p. 54, grifo no original). Somando-se a essa questão, é preciso reconhecer que o “caráter relacional, contextual e plural de qualquer acontecimento histórico elimina a possibilidade de uma argumentação que tome, como ponto de partida, um ponto fixo, revelando a própria relatividade da realidade” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 58). 25 A ressalva é necessária, neste momento, para enfatizar que o olhar sobre a geração da Guerra Colonial substancia aqui o entendimento da formação estética e ética de António Lobo Antunes, de maneira que não será dada primazia a outras obras literárias dessa geração. No entanto, recomenda-se o estudo realizado por Eduardo Mayone Dias (2001), o qual apresenta um conjunto de obras que fazem parte do que o autor denomina de uma “novelística” da Guerra Colonial, incluindo escritores como João de Melo, Manuel de Seabra, Lídia Jorge, Cristóvão de Aguiar, entre outros, sem deixar de fazer uma referência aos textos de Lobo Antunes. 26 Observando as implicações de um entendimento que perceba qualquer sociedade marcada pelo colonialismo como pós-colonial, Benjamin Abdala Junior (2011) destaca a importância de se considerar, nessa perspectiva crítica, o local de fala do sujeito e de sua historicidade, pois a dinâmica colonial interfere de modo diferente em cada corpo social. Ao citar o caso de Lobo Antunes, o estudioso comenta a presença de um “pós-colonialismo do ex-colonizador”, em que se “vai desconstruir mitos e fazer de sua memória individual um depoimento que se quer história” (2011, p. 32). 43 uma escrita amplamente influenciada tematicamente pela estadia traumática na ex- colônia portuguesa quanto da própria construção do sujeito, como um homem diferente após aquela situação, duas dimensões, profundamente, inter-relacionadas e sobre as quais o foco desta análise recai a partir deste momento. Nas muitas entrevistas que serviram de substrato para a leitura edificada aqui, o próprio Lobo Antunes afirma a sua filiação 27 , se assim se pode dizer, a uma linhagem de escritores entre os 30 e os 40 anos, no início da década de 80, que foram instigados pelas feridas abertas com a estrutura salazarista, com a visão engessada do domínio colonial e, sobretudo, com as consequências provocadas pela luta armada. Tais questões fomentaram um conhecimento ímpar, indiscutível para aqueles que, conforme assevera o autor citado, sentiram na pele essa vivência: Eu penso que essa experiência se tornou decisiva para nós sob vários aspectos. Primeiro porque provocou um corte na nossa vida, que deixou cicatrizes que, muitas delas, não sararam. Depois, porque permitiu à nossa geração e àqueles que ainda não tinham uma consciência aguda (como em grande parte era o meu caso) aperceber- se de uma determinada problemática social e política 28 . A ausência de discernimento sobre o contexto social no qual o indivíduo estava inserido é atribuída, pelo próprio autor, à criação do filho de família burguesa no reduto protetor erguido em Benfica, uma freguesia de Lisboa. A “vida entre algodões” 29 propiciou ao homem em crescimento o distanciamento das questões mais relevantes que 27 Em entrevista à Clara Ferreira Alves, em 1986, compilada por Ana Paula Arnaut (2008, p. 85), Lobo Antunes afirma: “A minha geração é a da guerra, da abertura, da mudança, passámos por muitas experiências diferentes”. O acesso às opiniões, aos depoimentos do autor em questão dá-se, nesta pesquisa, a partir de um apanhado de entrevistas feitas com esse literato desde 1979 até 2009, boa parte delas foram referidas aqui a partir da obra Entrevistas com António Lobo Antunes 1979-2007: confissões do trapeiro (2008), sob a organização de Ana Paula Arnaut. É necessário salientar que, embora alguns posicionamentos mais incisivos defendidos pelo escritor sejam atenuados por ele no decorrer do tempo, deixando, muitas vezes, de serem mencionados, a exemplo da maneira como Lobo Antunes vê, inicialmente, os demais autores literários portugueses, outras concepções permaneceram sem maiores alterações, por exemplo, a forma como é percebida a questão da guerra em África por Lobo Antunes nas entrevistas consultadas nesta tese. 28 Em entrevista a Rodrigues da Silva. “António Lobo. António Lobo Antunes (Memória de Elefante), citando Blaise Cendrars: ‘Todos os livros do mundo não valem uma noite de amor’”. Diário Popular/Suplemento Letras-Artes. 18 de outubro, 1979, p. I, VI-VII. In: ARNAUT, Ana Paula (Org.). Entrevistas com António Lobo Antunes 1979-2007: Confissões do Trapeiro. Coimbra: Almedina, 2008, p. 25. Em virtude da publicação citada conter diversas entrevistas realizadas em anos distintos com Lobo Antunes, optou-se por, ao citar essa produção, mencionar a referência por meio de nota de rodapé e, em caso de repetição da mesma entrevista, fazer uso do vocábulo “ibidem”. 29 Em entrevista à Blanco, o autor declara: “Antes da guerra pode-se dizer que eu vivia entre algodões e foi ali que compreendi que existiam os outros, que o mundo não se circunscrevia à minha pessoa. Isso foi bom, sem dúvida, mas o preço que paguei por esse ensinamento creio que foi demasiado alto. Não há dúvidas que tudo nos afecta e as experiências tão radicais ainda mais” (2002, p. 117, grifos nossos). 44 fizeram parte da história do país, principalmente, quando se leva em consideração que António Lobo Antunes nascera em meio ao contexto ditatorial, precisamente, em 1942. O esteio familiar e, mais que isso, a classe social da qual aquele sujeito fazia parte garantia-lhe benefícios que boa parte da população não possuía, afastando-o, assim, da sensação de se viver oprimido, uma condição que despertou em muitos o desejo de atuar mais ativamente contra o regime. Tal leitura é exposta pelo autor ao ser entrevistado por María Luisa Blanco: “tinha vivido numa bolha porque a ditadura era boa para a minha família. Éramos uma família privilegiada [...]. Nós não sofremos a repressão e talvez por isso nunca tive uma atitude política, mas na guerra sim, ali comecei a compreender muitas coisas” (2002, p. 50). A ideologia manifesta, no que foi considerado pelo escritor como um ambiente fechado, fez com que a ciência sobre determinadas questões apenas chegasse mais tarde para aquele homem em formação. A escolha do curso universitário, por exemplo, não foi motivada por uma predileção do indivíduo que já, naquele momento, sentia a verve artística. Na verdade, diante da autoridade paterna, a matrícula na Faculdade de Medicina era mais uma forma de responder satisfatoriamente à disciplina que, desde cedo, lhe fora posta. Dessa maneira, longe de associações de estudantes, de movimentos contra a ditadura, António Lobo Antunes tornou-se alguém reservado, preocupado “apenas” com o seu anseio por escrever. Por essa visão, o conflito colonial foi o espaço encontrado, diante das barbaridades nele ocorridas, para que o escritor aprendesse, de forma pungente, sobre a dor, o sofrimento e a morte. Em seu depoimento à Blanco, Lobo Antunes deixa patente a relevância da sua estadia em Angola, já que foi isso que lhe permitiu expandir sua visão de mundo, ao final, “todo aquele erro foi importante” (2002, p. 79) para ele. O menino do coro de igreja havia deixado o invólucro familiar e, uma vez inserido no ambiente colonial, pôs em suspensão alguns discursos que não se conectavam com a realidade que observou, por exemplo, em Angola. Nesse local, o médico militar pôde evidenciar a veracidade do colonialismo de “brandos costumes”, o qual, segundo Salazar, qualificava as ações imperialistas da metrópole como uma nação amiga dos povos colonizados e, por isso, distanciada do tipo de colonização implementada por outros países europeus. Opondo-se a essa leitura, a imagem da grande nação lusitana é criticada pelo autor literário que entendeu a ditadura como um “bonapartismo de 45 sacristia” 30, sustentado, principalmente, por um repertório ideológico que mascarava a violência utilizada como recurso primordial para manter a conjuntura do colonialismo português e, com isso, os interesses das classes dominantes do país, conforme se observa no posicionamento expresso a seguir: No fundo, o que se passou foi o Império da sacanice, da filhadaputice encapotado sob a aparência de brandos costumes. Mas não há nada mais cruel do que a Pide, ou do que os campos de concentração de Cabo Verde, ou aquilo que se passava nas antigas colónias, onde se faziam as piores atrocidades. Portanto, os brandos costumes eram apenas aparentes, não é? Como em todas as sociedades vitorianas. Eu penso que foi, sobretudo, isso que se passou, que era muito mais um fenómeno de superfície, muito mais uma aparência, porque de facto sob esse verniz, que me parece extremamente superficial, a violência continuava [...]. Portanto, eu penso que a brandura dos costumes foi sempre aparente, fazia parte de todo um sistema hipócrita em que era baseado 31 . O que seria um artifício, na concepção de Lobo Antunes, para disfarçar um cenário atroz verificado no solo africano tornou-se uma invenção criada com o objetivo de escamotear o tipo de relação, verdadeiramente, travada entre o colonizador e aqueles que foram colonizados. Essa questão compreendia desde a crueldade com as populações locais, relegadas a uma situação miserável, até o pensamento ideológico que estipulava as posições hierárquicas do opressor e do submisso, “em que o oprimido é fixado pela superioridade moral do dominador. É a dialética do sujeito e do outro, do dominador e do subalterno” (BONNICI, 2012, p. 26). Tal “superioridade moral”, de alguma forma, é sentida pelo próprio autor que confessa que, ao chegar a Angola, o seu olhar para os hábitos do outro africano era balizado por uma leitura eurocêntrica do mundo 32 , cuja força não permitia reconhecer, inicialmente, o colonizado como alguém que possuísse uma cultura, um saber a ser conhecido. Esse comportamento seria condizente, porventura, com a percepção manifesta por aquele sujeito, anos depois, ao comentar em entrevista ao também escritor Miguel Sousa Tavares, a maneira como teria ocorrido a presença portuguesa no continente africano: “os portugueses nunca estiveram em 30 Expressão observada na entrevista citada anteriormente a Rodrigues da Silva (ibidem, p. 18). 31 Trecho retirado da mesma entrevista a Rodrigues da Silva (ibidem, p. 17-18). 32 Lobo Antunes afirma que os soldados portugueses chegavam ao território angolano com “toda uma carga de coisas europeias...” ao ser entrevistado por Sara Belo Luís. “Angola nunca saiu de dentro de mim”. Visão. 27 de novembro, 2003, p. 194-200. In: ARNAUT, Ana Paula (Org.). Entrevistas com António Lobo Antunes 1979-2007: Confissões do Trapeiro. Coimbra: Almedina, 2008, p. 429. 46 África, estiveram sempre em Portugal, levaram Portugal para África e voltaram com esse Portugal interior, mítico”33. Ao julgamento realizado sobre a estrutura colonial portuguesa 34 , acrescenta-se a avaliação que é feita do acontecimento que incitaria as opiniões de António Lobo Antunes expostas até o momento, correspondente à Guerra do Ultramar. Esta, vista como uma experiência pedagógica e, por esse sentido, algo positivo, também é entendida como algo traumático, aterrador, capaz de causar ojeriza àquele que combate sem saber ao certo o motivo pelo qual estaria realizando tal ação. O absurdo do evento em si correspondia, segundo o literato, à sensação de fazer parte de “uma situação esquizofrenizante, uma guerra de fantasmas” 35, um aspecto que era explicado, em parte, pela maneira como se desenrolavam as ações armadas. Estas ocorriam por meio de emboscadas, estratégia típica das guerrilhas que caracterizavam o confronto colonial, conforme fora discutido em momento anterior desta pesquisa. Além disso, a ideia de se lutar contra espectros, inimigos que não estariam ao alcance dos soldados portugueses compreenderia também uma forma alegorizada, utilizada pelo autor, para aludir aos verdadeiros adversários dos jovens militares em África, ou seja, os responsáveis por mover as engrenagens da guerra e, assim, decidir o destino dos seus subordinados. Dessa maneira, na posição de quem fora um desses subalternos na hierarquia militar portuguesa, Lobo Antunes nomeia cada um desses “fantasmas”, refiro-me concretamente à União Nacional, à A.N.P 36 , essas merdas, aos Salazares, aos caetanos, às multinacionais, a todas essas entidades que não tinham uma existência concreta, que eram entidades vagas e sem nome, mas que, de facto, nos matavam realmente, provocaram em nós rupturas muitas vezes irreversíveis e que cicatrizes que não sararão mais. E é bom que não sarem e que a gente não esqueça embora, de facto, o País tenha esquecido que isso existiu 37 . 33 Trecho retirado da entrevista intitulada de “António Lobo Antunes: ‘Bolas, isto é um país que se leva a sério’”. Semanário. 31 de março, 1988, p. 20-21. In: ARNAUT, Ana Paula (Org.). Entrevistas com António Lobo Antunes 1979-2007: Confissões do Trapeiro. Coimbra: Almedina, 2008, p. 104. 34 Ao refletir sobre a questão colonial e as tradições africanas ignoradas pelos europeus, Lobo Antunes expressa: “Queremos impor a África os padrões europeus” em entrevista concedida à Maria Augusta Silva. “Quem lê é a classe média”. Diário de Notícias. 18 de novembro, 2003, p. 2-5. In: ARNAUT, Ana Paula (Org.). Entrevistas com António Lobo Antunes 1979-2007: Confissões do Trapeiro. Coimbra: Almedina, 2008, p. 414. 35 Ideia apresentada na entrevista já mencionada a Rodrigues da Silva (ibidem, p. 25). 36 A Acção Nacional Popular era uma organização política portuguesa durante o Estado Novo, já sob a vigência de Marcelo Caetano, compondo uma nova denominação para a União Nacional da época salazarista, pois se mantinham os mesmos moldes que esse partido possuía. 37 Comentário tecido em entrevista citada anteriormente a Rodrigues da Silva (ibidem, p. 26-27). 47 A aguda realidade nacional penetrou na consciência do cidadão português que saíra do cenário bélico e, violando a fachada construída pelo antigo sistema de governo, incomodava-se com a força do esquecimento seletivo na sua pátria. O desagrado com essa última questão adquire razão de ser em um contexto no qual muitos estudos que versaram sobre a instauração de um governo definido pela vontade popular no país camuflaram a existência desse período conflitante da história portuguesa. Nesse ínterim, muito “do que se escreveu sobre a democracia portuguesa tende a refletir uma amnésia autoimposta; começa-se com frequência a história em 1976 com o estabelecimento do governo constitucional” (MAXWELL, 2016, p. 16). De toda forma, se, conforme afirma Lobo Antunes, os resultados do conflito foram cicatrizes que jamais sarariam, estas repercutiram, intensamente, não mais na figura do médico propriamente, mas na do escritor que iniciou sua trajetória ficcional com romances extremamente imbricados à Guerra Colonial 38 . Seguindo o testemunho do autor sobre a sua produção artística – “A minha vida confunde-se com os livros”, no depoimento dado à Blanco (2002, p. 202) –, é possível destacar, neste momento, o quanto o contexto bélico se faz presente na obra antuniana. A temática em questão instigou uma recepção favorável dos leitores no país e, ao mesmo tempo, favoreceu o acolhimento da crítica estrangeira aos primeiros textos publicados 39 . No entanto, a experiência na guerra em África não se restringiu a uma fase inaugural do texto antuniano, tal abordagem prolongou-se, de forma latente ou não, nas demais obras desse escritor, compondo uma esfera de resistência a um horizonte político português marcado pela repressão. Assim, nos 29 romances publicados até este instante, nos volumes de crônicas reunidas e, mesmo não fazendo parte do universo literário do escritor, no livro em que se recolhe a correspondência que o médico Lobo Antunes enviara à sua esposa enquanto estava no conflito colonial, Cartas de Guerra (2005), é comum perceber o impacto causado pela luta armada. 38 As obras referidas são Memória de Elefante e Os Cus de Judas, as quais foram publicadas no mesmo ano, em 1979. É válido salientar que o ano de publicação das produções literárias de Lobo Antunes será mencionado apenas quando a obra for mencionada pela primeira vez neste estudo. 39 Em contrapartida, em Portugal, o autor literário em questão manteve uma relação conflituosa com a crítica, a qual foi vista por ele, em dadas situações, como uma crítica política. No caso da publicação de As Naus (1988), por exemplo, Lobo Antunes afirma, no diálogo com Blanco, que houve “grande polémica nacional. A direita atacou-me porque, na sua opinião, eu falava mal das grandes figuras históricas que tinham feito a Pátria. A esquerda, porque atacava o que eles diziam: a descolonização... foi um enorme escândalo. A crítica foi implacável mas era apenas uma crítica política” (2002, p. 206). Houve resistência, ainda, para que ocorresse a publicação de Os Cus de Judas, o qual foi, segundo o autor, “boicotado por duas ou três tipografias”, um comentário realizado na entrevista já sublinhada antes a Rodrigues da Silva (ibidem, p. 25). 48 A afirmação é justificável pelo entendimento de que “de uma ligação referencial extratextual directa e explícita nos primeiros romances, a guerra torna-se num elemento inextricável, até porque muitos temas posteriores só podem ser inteiramente apreendidos se ancorados ao seu sentido original”, de acordo com as considerações de Cardoso (2011, p. 24) sobre a obra de António Lobo Antunes. O sentimento de perda, por exemplo, de ruína, nas suas mais variadas formas, seja na organização política do país, seja na estrutura familiar (aspectos presentes em diversas narrativas do autor citado), relaciona-se à escuta, desde as primeiras escritas, de um “coro de vencidos”. Estes, incialmente, saídos da guerra – já que dela, conforme o autor afirma na entrevista a João Céu e Silva, não sobressaem vencedores, “toda a gente perde e não são só os mortos” (2009, p. 34) – assumem outras facetas nas produções que vêm sendo publicadas desse escritor literário. Assim, muitas personagens provenientes desse mundo fictício não conseguem adaptar-se à ex-metrópole, figurando como sujeitos solitários, doentes, suicidas, sobreviventes, ora da guerra em si, ora da Revolução dos Cravos e do seu “pós” conturbado. Tal compreensão, por exemplo, é demonstrada por Alexandre Montaury que, ao analisar os textos antunianos, verifica “que grande parte deles se organiza a partir das perspectivas dos que perderam com a revolução; e, em sentido mais amplo, a partir das consequências de todo o processo político que culminou na virada dos anos de 1970” (2011, p. 75). Retomando o estudo realizado por Norberto do Vale Cardoso (2011) quanto ao tratamento da temática da guerra nas obras de Lobo Antunes, observa-se uma divisão na abordagem dessa questão em três níveis distintos. No primeiro, são realçadas as prosas em que a situação bélica é vista de modo fulcral, a exemplo de Memória de Elefante, Os Cus de Judas, Conhecimento do Inferno (1980) e Fado Alexandrino (1983). Nelas, de acordo com Cardoso, “o tema está presente a nível tópico (microestruturas) e a nível transtópico (macroestruturas)” (2011, p. 26). Isto é, tanto na organização da superfície textual dessas narrativas, por exemplo, nos arranjos estilísticos apresentados, quanto no núcleo semântico que elas possuem, a questão bélica torna-se um elemento fundamental. Em outras palavras, a guerra abarca o conflito dramático nuclear da história narrada e interliga-se à maneira como a narração é construída formalmente, aspecto que será mais bem detalhado nos próximos capítulos desta tese no que diz respeito ao romance Os Cus de Judas. No segundo nível, muito embora não na mesma intensidade do primeiro, Cardoso sublinha a presença do tema citado, “seja pela vivência dos retornados, ex- 49 combatentes e ex-colonizados na antiga metrópole, seja pela nostalgia e desejo de regresso a África, seja ainda por contínuos recuos ao passado de combatentes” (2011, p. 26). Para exemplificar essa questão, são mencionadas as obras As Naus (1988), Tratado das Paixões da Alma (1990), Manual dos Inquisidores (1996), O Esplendor de Portugal (1997), Boa Tarde às Coisas Aqui Em Baixo (2003), Eu Hei-de Amar Uma Pedra (2004) e Meu Nome É Legião (2007). Nesse circuito, poderiam ter sido incluídos, por exemplo, os romances O Arquipélago da Insónia (2008), Comissão das Lágrimas (2011) e Não É Meia Noite Quem Quer (2012). Neles, o signo da perda, da decadência e do desencanto com a realidade atravessa gerações de portugueses, fazendo-se notável, até mesmo, pela memória do contexto ditatorial e pelas lembranças traumáticas daqueles que regressaram do conflito 40 . Por último, o terceiro nível focalizado por Cardoso diz respeito a uma escrita paralela aos romances, desenvolvida por Lobo Antunes, no tocante às crônicas 41 , pois há uma referência expressiva à questão da guerra também nesse gênero. No caso focalizado, tanto ocorre uma ligação significativa com a temática colonial, em especial, o conflito que deu origem à independência das colônias portuguesas quanto há uma referência apenas contextual ao período em foco. De um modo geral, chega-se à conclusão de que, conforme afirma Cardoso, “a guerra se imiscui em toda a obra antuniana como um substrato de teor autobiográfico, e que, quando este se torna menos evidente para o leitor, parecendo ocultar-se e estar esquecido, reemerge sub- repticiamente ‘penetrando’ nos espaços mais inesperados” (2011, p. 29). O texto antuniano não foge, assim, ao confronto discursivo que a imersão na realidade político-social vivenciada em Portugal, no final do século passado, instiga. Dito de outra maneira, o mundo ficcional em questão realiza-se a partir de uma palavra que lança um olhar, por exemplo, sobre o cenário bélico por meio de um diálogo com as 40 É necessário, neste momento, fazer a ressalva de que explorar a presença da guerra, com maior acuidade, em cada romance do autor em questão excederia, em muito, este momento da pesquisa, indo além, assim, dos propósitos delimitados para esta subseção da tese. No entanto, tratando-se de um escritor bastante reconhecido como Lobo Antunes, muitos estudos que versam sobre a sua obra têm focalizado a temática bélica, ou ainda, a partir dela, aspectos como o humor, a memória, entre outros. As referências de algumas dessas pesquisas encontram-se no final desta tese. Desde já, é válido deixar claro que os trabalhos referenciados não esgotam, de forma nenhuma, todos os estudos acadêmicos que se voltaram para as obras daquele autor, refletindo sobre tais questões, porém optou-se por mencionar aqueles aos quais se teve acesso e que se aproximam, de forma direta ou não, das discussões aqui construídas. 41 Nessa oportunidade, Norberto do Vale Cardoso (2011, p. 26-27) realiza um levantamento das crônicas publicadas por Lobo Antunes em quatro livros que fariam parte desse repertório de guerra que aqui vem sendo deslindado. Desse modo, apresentar cada crônica transporia os limites desta análise, porém isso pode ser consultado no estudo desenvolvido pelo crítico em questão cuja referência completa encontra-se no final desta pesquisa. 50 vozes que também se reportam a esse contexto, significando-o a partir da leitura de mundo que cada uma carrega. Com base na promoção desse diálogo, é que resulta, talvez, aquilo que António Lobo Antunes considerava como, de um modo geral, o valor principal de um escritor: o fato de ser este uma espécie de “contrapoder” 42. Tal figura seria manifesta, no âmbito da literatura, quando o livro abrisse “portas e janelas que muitas vezes os poderes instituídos gostariam que permanecessem fechadas” 43. Valendo-se dessa imagem de “contrapoder”, é que se deseja resgatar, por último, o processo de formação de uma consciência política por António Lobo Antunes, algo que, segundo ele, também está relacionado ao que fora vivenciado em África. Se antes da guerra as questões políticas passavam ao largo do escritor, o que seria “um reflexo de má consciência do menino burguês” 44 que um dia aquele sujeito diz ter sido, os valores da cultura, da democracia, da liberdade e do progresso foram despertados para ele a partir da vivência em Angola. Isso ocorreu, sobretudo, devido à relação tecida entre o autor e o seu capitão na guerra, um ideólogo da Revolução dos Cravos, Ernesto Melo Antunes 45 . Este propiciou ao médico das tropas lusas uma aprendizagem de caráter social e político naquele período turbulento da história portuguesa, além de compartilhar com Lobo Antunes da euforia do movimento revolucionário do qual o capitão fazia parte. A proximidade com um dos participantes do Movimento dos Capitães permitiu a António Lobo Antunes acompanhar a evolução desse processo que poria fim ao regime ditatorial e, com isso, ponderar sobre os erros e acertos que tal mudança poderia conter. A visão apaixonada da época pelo desejo de garantir a soltura das amarras do Estado deu lugar, tempo depois, a uma visão crítica fruto, talvez, da amplitude dos sonhos construídos que não se realizaram. A ruptura com o Estado Novo, projetando uma nova fase na história do país, também reservava em si um futuro de desapontamento, pois 42 Aspecto mencionado na entrevista já citada à Maria Augusta Silva (ibidem, p. 424). 43 Tal posicionamento foi expresso na mesma entrevista à Maria Augusta Silva (ibidem, p. 424). 44 A reflexão recortada encontra-se na entrevista concedida a Baptista-Bastos. “Lobo Antunes a Baptista- Bastos: ‘Escrever não me dá prazer’”. Jornal de Letras, Artes & Ideias. 19 de novembro, 1985, p. 3-5. In: ARNAUT, Ana Paula (Org.). Entrevistas com António Lobo Antunes 1979-2007: Confissões do Trapeiro. Coimbra: Almedina, 2008, p. 68. 45 Considerado um militar intelectual, Ernesto Melo Antunes nasceu em 1933 e faleceu em 1999. Ingressou no exército em 1953, cumpriu três comissões de serviço em Angola (1963-1965; 1966-1968; 1971-1973) durante a Guerra do Ultramar. Alcançou a patente de major em 1972 e fez parte do Movimento das Forças Armadas, chegando a atuar como ministro durante a sequência de governos provisórios após o 25 de abril. António Lobo Antunes faz uma referência ao seu antigo capitão na guerra no romance Os Cus de Judas, principalmente, ao inserir nesse texto um dos ensinamentos mais relevantes que havia recebido de tal militar: “Ernesto Melo Antunes, o meu capitão, dizia que a revolução se fazia por dentro”, comentário presente na entrevista já citada à Sara Belo Luís (ibidem, p. 428). 51 “como não há revolução sem esse imaginário de começo absoluto, o futuro de qualquer uma parece ser incumprimento, desvio, frustração ou traição às aspirações revolucionárias” (PITA, 2011, p. 12). A excitação bloqueava, de alguma forma, a capacidade de refletir sobre os passos realizados, um ponto vista do qual o autor literário comunga, já que, em entrevista à Blanco, ele afirma: “Tínhamos de ser livres, mas no afã de o sermos, muito de nós actuamos sem pensar muito nas coisas, por mimetismo e por moda” (2002, p. 62). A utopia reverteu-se em um quadro de insegurança, segundo António Lobo Antunes em seu depoimento dado à Blanco, “nos anos 74 e 75 vivemos um período de inquietação e incerteza muito grandes [...] havia atentados, mortes e uma violência tremenda, o norte contra os comunistas, o sul dominado pelo Partido Comunista, que tentava tomar o poder, não foi nada fácil” (2002, p. 154). Os anos de transição para a consolidação democrática foram marcados por uma agitação política não só fomentada pelo movimento de descolonização, mas também pela cisão existente no país entre “comunistas e militares e civis da esquerda radical, por um lado, e moderados tanto de esquerda como de direita, por outro” (PINTO, 2013, p. 34). A radicalização política 46, assumida pelo grupo que estava no poder, confrontou-se com um discurso, por parte dos moderados, de reconciliação nacional, de reestabelecimento de uma ordem em um “clima permanente de risco de guerra civil, com uma enorme insegurança por parte da população, tão depressa entusiasmada como morta de medo e, até certo ponto, com nostalgia da ditadura”, de acordo com as considerações de Lobo Antunes em entrevista à Blanco (2002, p. 61). Depois do resultado das eleições livres para a Assembleia Nacional Constituinte, o Partido Comunista perdeu espaço frente à ala moderada, processo que culminou com o 25 de novembro de 1975, data em que a esquerda radical fracassou em sua tentativa de golpe de Estado. Tal episódio simbolizou o fim do período revolucionário e, ao mesmo tempo, determinou a saída dos militares ligados ao Partido Comunista do poder, já que os partidos moderados assumiram o controle da institucionalização da democracia, o que foi considerado por alguns como uma espécie de viragem à direita 47 . Por conseguinte, para muitos, a Revolução Portuguesa resultou em um profundo desencanto, principalmente, para aqueles que cultivaram, conforme afirma Lobo 46 Durante o período de supremacia da esquerda no poder, apoiada militarmente pelo MFA, foram adotadas algumas medidas de teor nacionalista, como a estatização de bancos, o controle de empresas do setor financeiro e a expropriação de latifúndios, consoante com Secco (2004, p. 138). 47 Ver Secco (2004, p. 173). 52 Antunes na sua conversa com Blanco, “tantos e tão altos ideais sociais... Eu estava muito próximo da esquerda, claro, mas não havia democracia nos partidos, a comunicação era estabelecida sempre de forma vertical, não era horizontal, era sempre autoritária” (2002, p. 59). Considerando-se “um órfão da esquerda” 48, o autor literário que fez parte do Partido Comunista desiludiu-se; primeiro, porque não viu um diálogo concreto dentro da estrutura partidária – “É uma igreja, com a sua fé, as suas tradições e a sua hierarquia autoritária. Não mudou”, conforme o próprio literato afirma em depoimento à Blanco (2002, p. 191) –; segundo, porque passou a nutrir-se de uma sensível desconfiança com a classe política. Tal visão era justificada, novamente, pelo literato a partir de dois motivos basilares que, na verdade, convergem para uma única questão: a luta pelo poder. De um lado, o escritor acreditava que a “esquerda devia fazer o discurso do contrapoder, deviam ter imaginação e criatividade, mas eles faziam o discurso do poder. É terrível as pessoas não terem um sonho político” 49. Do outro lado, o médico que passou a se dedicar apenas à sua escrita entendeu, afinal, que a “gente não vive em democracia, como é evidente. Não vive. Há algumas quase democracias – a Holanda, a Bélgica, a Suíça (com) aquele arranjo federal complicado. A democracia implicava um constante referendar pelo povo das decisões do poder” 50. Na concepção de Lobo Antunes, o povo estava distanciado dos políticos e, enxergando-se como um membro dessa sociedade, chega à conclusão de que “servimos para votar e, nos intervalos, com extrema arrogância, falam em nosso nome. É possível que esteja a ser injusto. São tão diferentes de mim que, se calhar, não os compreendo muito bem” 51. Com uma visão pessimista acerca da política, porém alimentando um profundo orgulho dos portugueses, António Lobo Antunes vê na sua escrita um caminho para dar voz àqueles que não a possuem 52 , tornando possível, talvez, a imagem do escritor como um “contrapoder” de que se falou anteriormente. Para tanto, essa voz permanece, muitas 48 Expressão retirada da entrevista já referida à Maria Augusta Silva (ibidem, p. 420). 49 Em entrevista concedida à Luísa Machado. “Se Dom João II fosse vivo”. O Independente. 11 de janeiro, 1991, p. 3-4. In: ARNAUT, Ana Paula (Org.). Entrevistas com António Lobo Antunes 1979-2007: Confissões do Trapeiro. Coimbra: Almedina, 2008, p. 139. 50 Em depoimento dado a Adelino Gomes. “Um quarto de século depois de Os Cus de Judas. ‘Acho que já podia morrer’”. Público, 9 de novembro, 2004, p. 2-6. In: ARNAUT, Ana Paula (Org.). Entrevistas com António Lobo Antunes 1979-2007: Confissões do Trapeiro. Coimbra: Almedina, 2008, p. 441-442. 51 Opinião expressa em entrevista já referida à Luísa Machado (ibidem, p. 144). 52 Em entrevista concedida a Adelino Gomes, já citada nesta pesquisa, o autor literário declara: “A gente deve também deve escrever pelas pessoas que não têm voz. Quem é que liga aos camponeses lá da minha Beira Alta? Quem? E eles dizem-me: ‘Escreva sobre nós’” (ibidem, p. 445). 53 vezes, em um trânsito constante, ou melhor, em um regresso constante ao cenário africano. Por essa leitura, pensar tal escritor e as suas letras não seria exequível sem a conexão com a guerra em Angola, sem ampliar o horizonte para além da casa portuguesa. Para além do que já foi comentado, a relação tecida aqui adquire maior respaldo diante, por exemplo, do último romance publicado até este momento, Até Que as Pedras Se Tornem Mais Leves Que a Água (2017). Nessa narrativa, mais uma vez a Guerra Colonial vem a ser realçada em meio a uma relação familiar bastante especial, constituída por um alferes que participara do conflito colonial e adotara um órfão de guerra enquanto o próprio soldado seria responsável pela morte dos pais da criança. Assim, a temática da guerra adquire variadas nuances na vida e na obra de um autor que explora, intensamente, algo inexplicável, o que, talvez, ironicamente, justifique para si esse eterno retorno: “Não sei explicar bem, mas a maior parte do que sou continua lá. Foi uma experiência tão radical, tão violenta. Os meus sentimentos estão misturados”53. Por conseguinte, seria em meio ao caos que o cenário bélico provoca que se ergue uma escrita bastante peculiar, capaz de deslocar aquilo que seria considerado sólido, ajustado de uma vez por todas, como a concepção de um dado modelo de identidade nacional portuguesa. É na destruição da guerra que nasce uma nova leitura sobre o império luso, é na demolição dos discursos por tanto tempo alardeados que se edifica uma nova aprendizagem do mundo. Por fim, é no olhar lançado sobre o aniquilamento da vida, definida entre voltas de arame, que se observam as transformações operadas naquele que vivenciou tal situação, aspectos que inter- relacionam o autor à sua obra 54, dentro de mais um retorno sintomático às “Terras do Fim do Mundo” (ANTUNES, 2010, p. 39), um caminho que será percorrido a partir deste momento. 53 Depoimento de Lobo Antunes na entrevista à Isabel Lucas, em novembro de 2017. A referência completa encontra-se no final desta tese. 54 No caso da prosa em estudo, não é possível negar que as impressões do literato que participou da Guerra Colonial tornam-se matéria do trabalho artístico, de maneira que a voz narrativa ficcional é atravessada pelo que é possível chamar aqui de “fagulhas de uma biografia”, ou seja, lembranças de episódios que nasceriam para além dos limites da estrutura romanesca. É válido ressaltar que, quando necessária ou para iluminar determinada questão na análise, a relação entre os traços da biografia do autor empírico e o texto literário estudado será construída, seguindo o entendimento formulado por Maria Alzira Seixo no que se refere à obra, em geral, de Lobo Antunes: “Não se trata, portanto, de introduzir na leitura dos textos reconhecimentos específicos da existência do escritor enquanto factores decisivos de um saber, num estabelecimento forçado de relações de coerência, mais ou menos utilizadas pelas tendências de investigação movidas por um biografismo mecanicista; trata-se, antes, de tentar entender um texto a partir do seu modo de evocar e de provocar o real, já que a escrita oferece garantias de materialidade e de consistência quais esse real as não dá” (SEIXO, 2002, p. 475). 54 3. O DESTECER DA ÉPICA LUSITANA NA COMPOSIÇÃO DE OS CUS DE JUDAS A revolução faz-se por dentro. António Lobo Antunes. Os cus de Judas. O segundo romance de António Lobo Antunes compõe-se de uma atividade de rememoração ativada por um narrador não nominado na trama, um ex-combatente na Guerra Colonial em África que, após “vinte e sete meses de angústia e de morte [...] nos cus de Judas” (ANTUNES, 2010, p. 194), regressa à sua terra natal. No momento da enunciação, decorridos oito anos do período da guerra, o “eu” põe-se a recordar a tortuosa trajetória de sua vida para uma ouvinte enigmática em um espaço propício para os devaneios incitados no relato do “eu narrador”. Indo de um encontro no bar até findar a noite no apartamento do ex-alferes, o presente é atravessado pelas lembranças de um tempo que fez parte do desenvolvimento da personagem central da obra, o que faz com que seja possível acompanhar, mesmo de forma desordenada, as etapas que ajudariam a formatar o perfil de indivíduo que assume a narração. Por essa visão, em termos de fábula 55 , a prosa em questão nutre-se, principalmente, do processo de crescimento do narrador, ou seja, dos estágios que constituem o itinerário traçado da infância até a velhice do sujeito, aproximando-se, em certa medida, do que foi denominado de romance de educação (Erziehungsroman ou Bildungsroman). Tal leitura, seguindo a tipologia histórica do gênero romanesco elaborada por Bakhtin (2010), consiste no olhar lançado sobre a construção da imagem da personagem principal e como isso está vinculado “a um determinado tipo de enredo, 55 Com o intuito de evitar qualquer equívoco em relação aos termos utilizados, foi preferível empregar, nesta tese, os conceitos de fábula e de trama ao invés da nomenclatura usada por Gerard Genette, a qual apresenta as concepções de história (ou diegese), de narração (ato produtivo do narrador) e da narrativa propriamente dita. Esta, por sua vez, compreende o “discurso ou texto narrativo em que se plasma a história e que equivale ao produto da narração” (REIS & LOPES, 1988, p. 49). A adoção da terminologia elaborada pelos Formalistas russos deveu-se ao fato de evitar-se aqui qualquer imprecisão de sentido em relação ao uso do vocábulo “discurso”, o qual é bastante presente nesta pesquisa, focalizando o significado que essa noção possui na teorização do Círculo de Bakhtin. No entanto, isso não impede que outros conceitos narratológicos discutidos por Genette sejam destacados, quando necessários, na análise feita do romance antuniano. Caso isso aconteça, tais noções serão explanadas neste estudo a partir de Reis e Lopes (1988). Neste momento, é relevante destacar que a fábula “compreende os acontecimentos ou fatos comunicados pela narrativa, ordenados, lógica e cronologicamente, numa sequência nem sempre correspondente àquela por meio da qual eles são apresentados, no texto, ao leitor” (FRANCO JUNIOR, 2009, p. 36). Já a trama diz respeito ao “modo como a história narrada é organizada sob a forma de texto” (FRANCO JUNIOR, 2009, p. 36), ou seja, tal conceito corresponde à própria construção do texto narrativo a partir de dados processos de elaboração estética. 55 a uma concepção de mundo, a uma determinada composição do romance” (BAKHTIN, 2010, p. 205). Não à toa, o texto literário em foco faz parte daquilo que o próprio Lobo Antunes denominou de “ciclo da aprendizagem” 56, uma vez que é descortinada a jornada de um sujeito, filho de uma tradicional família portuguesa, a contar da fase inicial de sua existência. Dessa época, recupera-se o “sopro de epopeia da infância” (ANTUNES, 2010, p. 87), o que é representado pela visão grandiosa que o “eu infante” atribuía, ao menos a partir de uma dimensão territorial, ao seu mundo. Tal universo era composto pela vida na casa de Nelas (uma vila portuguesa situada na província da Beira Alta), pelos passeios no Jardim Zoológico, pelo natal em Benfica na casa do avô, “com o seu jardim de estátuas de loiça, o lago de azulejos e a estufa em que a sala de jantar se prolongava” (ANTUNES, 2010, p. 117). Ao olhar para essa etapa introdutória de sua formação, o adulto via sua aprendizagem do mundo ser determinada pela supervisão dos familiares, o que se originava da convivência com os parentes idosos, principalmente, as tias que viviam nos edifícios da “Rua Barata Salgueiro, triste como a chuva num recreio de colégio” (ANTUNES, 2010, p. 15). O modelo de pessoa que a família encarregou-se de moldar logo se confundiu com o contexto civil do país no tocante à imagem do ser português esperado, uma identidade condizente com os ideais apregoados pelo regime. De início, o projeto da instituição familiar aliou-se ao ambiente escolar para depois ser aprofundado no contexto militar, em que “tudo decorria entretanto na atmosfera de colégio interno que os quartéis subtilmente prolongam, com os seus segredos, os seus grupos iniciáticos, os seus estratagemas de perversidade primária” (ANTUNES, 2010, p. 20). O olhar sobre a juventude é, assim, edificado a partir do rigor e da disciplina respirados nos quartéis, algo que é visto de forma crítica por aquele que narra e analisa o quanto os acontecimentos de sua vida alteraram não só o seu destino, mas também o seu caráter. O exposto é justificado pela visão de que, longe de uma personagem que é tratada como “aquele ponto fixo em torno do qual se realiza qualquer movimento no romance” (BAKHTIN, 2010, p. 219), o que se vislumbra não são apenas as transformações ocorridas na trajetória do sujeito, mas também o quanto tal indivíduo torna-se um ser mutável em face dessas circunstâncias. 56 Tal ciclo apresenta, ainda, os romances Memória de Elefante e Conhecimento do Inferno. Informação apresentada no texto “A confissão exuberante”, em uma entrevista concedida a Rodrigues da Silva. Jornal de Letras, Artes e Ideias. 13 de abril, 1994, p. 16-19. In: ARNAUT Ana Paula (Org.). Entrevistas com António Lobo Antunes 1979-2007: Confissões do Trapeiro. Coimbra: Almedina, 2008, p. 214-215. 56 Relembrando a epígrafe escolhida para introduzir este capítulo, a máxima proferida pelo capitão que comandava a companhia da qual o médico alferes fazia parte, é possível ratificar que as mudanças operadas durante o período de aprendizagem manifestaram-se, principalmente, no próprio “eu”. Este, fora do reduto familiar, começou a vivenciar, potencialmente, o peso das expectativas lançadas sobre ele, as quais, aos olhos do “eu narrador”, configuram uma sina da qual o sujeito em desenvolvimento não pôde escapar. Por esse motivo, a rotina militar é observada com um tom de amargura pelo narrador, alguém que figura descontente com as escolhas que a si foram destinadas: “Os relógios de cuco davam lugar a cornetas igualmente irritantes, a farda e a pele convergiam numa carapaça única de quitina militar, os cabelos rapados e as formaturas traziam-me à memória as colônias de férias da infância” (ANTUNES, 2010, p. 20). A “carapaça única de quitina militar” simboliza o entrelaçamento do que é considerado de ordem mais íntima do homem em crescimento com a esfera coletiva de um país que vivia um tempo de sensíveis transformações. Desse modo, assistir ao processo de desenvolvimento do sujeito também compreende, em larga medida, o olhar sobre a formação de um novo sistema de governo em Portugal e sobre a derrocada do império colonial. A “farda e a pele convergiam” nesse percurso de vida, principalmente, quando o narrador é designado para servir na guerra em Angola, acontecimento que marcaria toda a sua existência. Tal notícia é considerada um ultimato para aquele que, à época, era recém-casado e via seus sonhos serem interrompidos devido à iminência da partida indesejável para um país distante: “o director do Hospital Militar de Tomar mandou chamar-me e anunciou O meu amigo foi mobilizado para Angola, [...] Pai, fui mobilizado para Angola num batalhão de Artilharia, na voz pequenina com que comunicava as reprovações na Faculdade” (ANTUNES, 2010, p. 66). A partida para África é considerada pela voz narrativa um infortúnio, um retrocesso na vida de um jovem que, a partir daquele momento, deveria dedicar-se ao exercício da violência, à aquisição de saberes que garantissem a sua sobrevivência e a dos demais companheiros de tropa em um cenário inóspito. Assim, a rememoração da estadia na ex-colônia trouxe à tona uma série de imagens que machucaram o “eu” profundamente. As situações incluem desde o primeiro morto entre o exército português, o suicídio do soldado de Mangando, a perda da perna do Ferreira, o assassinato do oficial com a alcunha de Macaco por uma mina, em que tal homem fora transformado em um “corpo mole e de repente sem ossos” (ANTUNES, 2010, p. 104), 57 até a violência contra Sofia, uma personagem na qual o sujeito destroçado por uma guerra sem razão encontra, de certa forma, um refúgio. Além do mais, os meses vividos ao redor do arame tornaram-se um tempo de reflexão, em meio ao caos, do narrador- personagem sobre sua própria vida, uma vez que a presença sanguinolenta da morte converteu-se em uma experiência habitual nesse contexto: obrigaram-me a confrontar-me com uma morte em que nada havia de comum com a morte asséptica dos hospitais, agonia de desconhecidos que apenas aumentava e reforçava a minha certeza de estar vivo e a minha agradável condição de criatura angélica e eterna, e ofereceram- me a vertigem do meu próprio fim no fim dos que comiam comigo, dormiam comigo, falavam comigo, ocupavam comigo os ninhos das trincheiras durante o tiroteio dos ataques (ANTUNES, 2010, p. 118). As atrocidades observadas no ambiente bélico, a exemplo do olhar diferenciado com o qual o indivíduo observa a presença da morte ao enxergar no fenecimento do outro a certeza precária de ainda estar vivo, fazem da Guerra Colonial um “espaço pedagógico” insólito, porém bastante eficaz para que seja edificado um homem distante daquele que havia deixado a antiga metrópole. A agonia experienciada modificou a percepção do sujeito sobre o papel que deveria cumprir naquela situação, confluindo-se com um clima de animosidade, captado pelo narrador ao evocar o sentimento de revolta que emanava do exército português. A inquietação deveu-se à junção do pânico da morte (sempre à espreita) às péssimas condições de ação de que os militares dispunham para sobreviver naquele contexto. Em Angola, predominava uma atmosfera de desistência pelos soldados lusitanos que se consideravam vencidos pela falta de alimentação, pela falta de um alojamento adequado, ou ainda, do ponto de vista do alferes médico, pela falta de higiene, de meios para garantir um tratamento adequado aos feridos. Enfim, proliferava-se uma carência que, em tudo, sugere uma ausência mesma de vida. Esta parece surgir no relato apenas nos momentos em que se estabelece um paralelo com as situações transcorridas em Portugal, a exemplo do natal na Benfica da infância justaposto ao natal no Chiúme em 1971, ou ainda, quando o “eu” fora informado do nascimento de sua filha em 22 de junho de 1971 enquanto o narrador protagonista se encontrava imerso em um espaço miserável e isolado. Episódios como os citados projetam as metamorfoses vivenciadas pelo protagonista, algo que, indo das alterações provocadas pela ação do tempo, 58 configura uma mudança de atitude, de olhar sobre a sociedade na qual o homem se vê inserido, um aspecto que orienta o romance como um todo. Entre as nuances que fazem parte da trajetória deslindada por esse narrador- personagem, destacam-se as fases de que se compõe a sua história (da infância à velhice), bem como, indo além de uma leitura mais superficial, focalizam-se os acontecimentos que provocaram sensíveis transformações nesse sujeito, o que faz parte do seu processo de autoconhecimento, projetando uma formação diferente daquela que fora elaborada pelo clã familiar, por exemplo. Inerente ao processo citado, o tempo surge como uma dimensão interiorizada, o que faz com que as situações já vividas sejam significadas na narração de acordo com a maneira pela qual cada episódio fora sentido pelo “eu”. Por consequência, os eventos que perfazem a jornada do narrador não são apresentados seguindo uma cronologia, em que as etapas da vida são vistas por meio de um ciclo organizado, sobressaindo, de modo regular, os passos do crescimento do indivíduo. Na verdade, a prosa em questão é marcada pela erupção na trama de tempos vários que assaltam o “eu narrador”, invadindo o narrado com uma série de referências de momentos mais remotos ou mais recentes. Por esse motivo, a aproximação tecida com a tipologia do romance de educação deu-se em termos de fábula, já que, distante de uma prosa na qual os estágios da vida da personagem principal são apresentados de forma linear, o tempo surge de forma fragmentada na trama antuniana, seguindo o movimento confuso da memória. Tal movimento transparece, inclusive, na linguagem, visto que ela é esfacelada pela evocação caótica de vários eventos da vida do ex-combatente no tecido textual. Nessa sondagem das vivências do “eu”, este recupera, ao sabor do sofrimento vivido, os acontecimentos que fizeram parte da história de seu país e para além dele, já que o depoimento construído sobre o ontem acompanha, mesmo distanciado, os passos que desencadeariam um conflito civil em Angola. A abordagem realizada dos fatos relevantes para o entendimento do contexto português no final do século XX não ocorre de modo a exaltar nem o regime salazarista, nem a própria sistemática colonial que, claramente, figurava em colapso. Na verdade, a partir da experiência traumática da guerra, o narrador deturpa a imagem do “europeu com oito séculos de infantas de pedra às costas” (ANTUNES, 2010, p. 148) e, assim, subverte a alienação de que foi alvo no decorrer de seu longo processo educativo. Por conseguinte, ao romper com o modelo de homem esperado que retornaria triunfante da guerra contra os inimigos da soberania nacional, o narrador-personagem 59 efetiva também sua “deseducação”, tomando de empréstimo aqui um termo utilizado por Ferreira Gullar (1967, p. 251) em ensaio sobre a obra Quarup (1967), de Antônio Callado. Dito de outra maneira, quando o ex-alferes-médico questiona os valores que fizeram parte de sua trajetória, “deseduca-se”, libertando-se, para fazer uso novamente das palavras de Gullar, das “concepções idealistas, alheias à realidade nacional, para poder encontrar-se” (GULLAR, 1967, p. 256). Assim, o indivíduo desaprende, desconstruindo as ideias opressoras do Estado Novo, as coibições da Igreja e o modelo de homem esperado pela Família, aspectos que, juntos, compunham a imagem “perfeita” do ser lusitano naquele contexto. O ex-combatente descortina a falência desses ideais no solo português, tendo em vista que os vê distante de um cenário nacional no qual aqueles que administravam a matemática da guerra tratavam os soldados como meros objetos a serem deslocados no mapa das antigas colônias. Além disso, a postura da própria sociedade portuguesa frente à situação do conflito colonial é alvo de crítica, já que aqueles que estavam inseridos na capital lisboeta, muitas vezes, eram alheios à tragédia que ocorria em África, instigados, porventura, pela propaganda alardeada pelo regime para justificar aos que se mantiveram no continente europeu o apoio à guerra. Paradoxalmente, a “vida contra a corrente” (ANTUNES, 2010, p. 128) do “eu narrador” revela que, ao desmontar os ensinamentos impostos, o sujeito “deseduca-se” para aprender com a sua vivência, até mesmo, com a experiência singular da guerra, como alguém que não deve ser apresentado “como algo acabado e imutável, mas como alguém que evolui, que se transforma, alguém que é educado pela vida” (BAKHTIN, 1993, p. 402-403). Ao retornar, em definitivo, à sua cidade natal, o ex-combatente não se sente inserido em um contexto animador. Na verdade, o indivíduo acaba sendo julgado pelas pessoas ao seu redor como alguém que não se encaixa naquele cenário, irremediavelmente, inadequado. Dessa maneira, o “eu” confina-se à solidão de seu apartamento, observando a dissolução de alguns relacionamentos que, à medida que são enunciados, parecem figurar distantes no tempo: “os amigos afastaram-se pouco a pouco de mim, incomodados pelo que consideravam uma ligeireza de sentimentos vizinha da vagabundagem libertina. A família recuava diante dos meus beijos como de um acne peganhento” (ANTUNES, 2010, p. 128). Isolado, o indivíduo reflete sobre a passagem do tempo, com sua corrente inexorável, a qual aproxima o ex-alferes-médico da imagem de si obtida nos espelhos, impondo a constatação da chegada da velhice. 60 A solidão experienciada que povoa o presente associa-se a uma visão de desencanto com o destino do país, sentimentos que atravessaram anos para desaguar na noite densa, “lenta e pesada como uma nuca adormecida” (ANTUNES, 2010, p. 184), o que configura o momento da enunciação. A noite compreende o símbolo de um tempo congelado, em que os sujeitos imersos em uma letargia intensificada pela lembrança do sono e o entorpecimento produzido pelo álcool relacionam-se com uma condição social, de certa forma, característica de uma sociedade que aspira um futuro com olhos presos no passado, permanecendo, por essa via, na inércia. Tal marasmo também poderia ser advindo dos sonhos não concretizados após a Revolução de Abril que marcou o fim do regime salazarista, já que, de acordo com as considerações de Eduardo Lourenço, o “futuro-outro que ela prometera, à parte (e não é pouco...) o triunfo e a consolidação, na metrópole, da democracia de tipo europeu que não conhecêramos durante meio século, não se cumpriu” (2016a, p. 14). Enfim, a Revolução dos Cravos ocorreu, todavia ela não desencadeou uma mudança mais efetiva nas mentalidades dos indivíduos, não fomentou uma transformação no corpo social para que os antigos mitos fossem superados ou substituídos por outros. A imagem ilusória da grandiosidade do ser lusitano subsiste, tornando-se o alvo da desconstrução empreendida na narrativa antuniana, o que acaba por violar as amarras nacionalistas ao projetar, talvez, outra leitura sobre o ser nacional no presente. A desilusão proveniente do contexto histórico-político descrito compõe o cenário em que “um eremita que encontra outro eremita” (ANTUNES, 2010, p. 129) – qualificação atribuída ao narrador e a sua ouvinte – analisa os caminhos percorridos até aquele momento, avultando um tom crítico pelo qual se desmobiliza preceitos até então considerados sólidos. O didatismo presente, até mesmo, no abecedário que estrutura o romance é alvo da ironia que configura um mundo caótico, característico de um tempo de guerra em que as coisas, as ideias, as pessoas parecem estar fora do lugar. Assim, por toda a narrativa, a “revolução” empreendida pelo sujeito que questiona a via pedagógica que lhe fora imposta (construindo outro aprendizado entre as ruínas do conflito colonial) converte-se em uma deseducação que, operada em várias frentes, acaba pondo em xeque a mitologia balizadora de uma dada imagem do ser português. 3.1. A decomposição da mitologia do mundo colonial português 61 O processo constitutivo da (des)aprendizagem do sujeito no contexto de Os Cus de Judas desenvolve-se, pela singularidade desse cenário educativo, de uma forma confusa, intricada, algo que na trama não se restringe ao plano temático explorado no enredo (o qual será alvo de maiores observações em outros momentos deste estudo), plasmando-se, de igual modo, na configuração estilístico-formal da prosa. Ao contrário do que preconizava uma visão mais clássica da estética, a qual primava por uma unidade, uma compreensão mais totalizante do mundo e, dessa maneira, por uma relação mais harmônica entre os elementos constituintes do texto literário, o romance de Lobo Antunes, ilustrando as particularidades desse gênero em evolução, apresenta uma série de aspectos heterogêneos, inconciliáveis uns aos outros. Tais aspectos distribuem- se tanto no âmbito do conteúdo em que se destacam, por exemplo, dualidades, como a presença do sacro e do profano no texto, quanto na forma do romance marcada por aspectos problemáticos, se assim se pode dizer. O exposto é justificado pela visão de que o tempo, a personagem e, até mesmo, a estrutura linguística não são fatores claramente definidos na prosa. Inicialmente, é lícito destacar que os aspectos mencionados se, à primeira vista, seriam considerados plenamente antagônicos, na verdade, contribuem com uma atitude desmobilizadora cuja força é característica da narrativa em estudo. Tal atitude, recorrente no texto, é capaz de deteriorar estruturas “com uma ossatura dura e já calcificada” (BAKHTIN, 1993, p. 397), como o mundo épico português e a mitologia peculiar que balizou o entendimento sobre a imagem sublimada da nação lusitana. Por essa perspectiva, cabe analisar a partir deste momento as nuances que fazem dessa prosa uma espécie de “mito desfeito” (ANTUNES, 2010, p. 36), em que as particularidades que foram valorizadas pelo mundo referido tornam-se objetos de uma sensível ruptura no relato do ébrio narrador. Se o mito caracteriza-se como algo que se processa via linguagem, um modo de significar a leitura que os sujeitos fazem do mundo (cuja visão é avalizada socialmente para que possa ser concebida a partir de um caráter mitológico), o que se analisa, neste momento, é a forma como essa mensagem passa a ser vista menos como um fruto da “natureza das coisas” (BARTHES, 2003, p. 200) e mais como uma “fala excessivamente justificada” (BARTHES, 2003, p. 221, grifo no original) que perdeu sua razão de ser no momento da enunciação na narrativa. Para tanto, faz-se necessário também ter em vista as propriedades mais gerais desse universo épico, avaliado por Bakhtin como algo “já profundamente envelhecido” (BAKHTIN, 1993, p. 397), para que se possa perceber em 62 que medida opera-se o desmonte dessas características na composição romanesca em foco. Evidentemente, não se defende, nesta tese, que haveria no romance um paralelo explícito entre os elementos que perfazem o gênero épico (a forma da poesia clássica) e o modo com o qual o “eu narrador” relata as suas desventuras em solo angolano. Na verdade, a ligação se faz de uma forma mais sutil, não sendo, por causa disso, menos importante, compreendendo, com efeito, um produto das estratégias de demolição do mundo épico em uma narrativa que possui como foco a derrocada do império lusitano. Assim, alguns fatores que fazem parte desse mundo são revisitados como um meio para discutir sobre a ideia de grandiosidade de que se serviu o discurso nacionalista do regime para justificar a existência de um reino português. Ao mesmo tempo, são relembradas algumas características do próprio gênero épico, como uma forma de aviltar, pela via textual, o modelo desses textos que são tomados, muitas vezes, como “narrativas de nação”, as quais são utilizadas, em certa medida, para compor dada identidade nacional. Na gênese do processo realizado neste estudo, encontra-se a relação construída entre o homem e o mundo configurada no universo épico, situação que se constituía pela afinação entre o ser e a realidade na qual o sujeito estava inserido. Tal harmonia era balizada por um mundo que, nessa ótica, seria explicado, isto é, nele o sentido das coisas achava-se concluso, capaz de clarificar a experiência do indivíduo, recorrendo-se, para esse fim, ao filão mitológico. No entanto, uma vez apartada desse ambiente que parecia revestir-se de uma extrema solidez, a perspectiva romanesca concentra-se na percepção de um tempo vivo no qual o sentido não seria imanente, em que o sujeito já não se encontra plenamente integrado ao mundo. De fato, “da cisão apontada é que nasceria a necessidade de buscar a explicação, de buscar o sentido, como tentativa, sempre falhada, de recompor uma integridade para sempre perdida” (GOBBI, 2011, p. 14), pois as certezas que mantinham o ser incorporado ao mundo foram dissolvidas, reinando a instabilidade tão bem presentificada na forma romanesca quando comparada à organicidade do contexto épico. Concatenado às transformações vivenciadas, o romance não poderia confinar-se a uma forma fixa. Nesse gênero, é possível traduzir as modificações da realidade, pois, como bem defende Bakhtin em sua metodologia de estudo do romance, só “o que evolui pode compreender a evolução” (BAKHTIN, 1993, p. 400). Contudo, é possível afirmar que mais do que buscar um dado sentido perdido, uma explicação para a realidade 63 vivida, a ficção contemporânea de Lobo Antunes provoca, sobretudo, a destruição do substrato que, de alguma forma, sustentou o imaginário social 57 português, principalmente, quanto ao perfil erigido de povo conquistador. Nesse sentido, utilizando-se de uma série de recursos diferentes, a narrativa em foco enseja o questionamento da mitologia lusíada, possibilitando, com isso, a reavaliação de um dado modelo identitário. A assertiva feita baseia-se no entendimento de que o discurso das culturas nacionais, mesmo movido, muitas vezes, pelo desejo de avançar em direção à modernidade, é tentado, igualmente, “a se voltar para o passado, a recuar defensivamente para aquele ‘tempo perdido’, quando a nação era ‘grande’; [...] a restaurar as identidades passadas. Este constitui o elemento regressivo, anacrônico, da estória da cultura nacional” (HALL, 1997, p. 61). Por sua vez, a atitude inquisidora, se assim se pode dizer, longe de ser uma exclusividade do texto antuniano vem fazendo parte, de acordo Márcia Zamboni Gobbi, da literatura contemporânea “que, nesse sentido, e em grande medida se coloca como o próprio outro de sua tradição” (GOBBI, 2011, p. 16). Na posição elencada, a revisão dos preceitos dessa tradição 58 do mundo épico na narrativa em estudo centra-se, profundamente, no modo como o passado vem a ser configurado: seja pelo fato de que ele passa a compor um espaço de trânsito ininterrupto com o presente, tempo característico do inacabamento romanesco; seja pelo fato de que o pretérito perde o seu caráter imaculado e passa a ser alvo de um sensível destronamento na prosa em questão. Considerando o último aspecto citado, ocorre no discurso do “eu narrador” uma quebra do convencionalismo presente no universo citado, o qual determina a valorização de um dado acontecimento da história nacional. O exposto é justificado diante da visão de que, enquanto o “mundo da epopeia é o passado heroico nacional, é o mundo das ‘origens’ e dos ‘fastígios’ da história nacional, o mundo dos pais e ancestrais, o mundo dos ‘primeiros’ e dos ‘melhores’” (BAKHTIN, 1993, p. 405), o domínio romanesco em destaque põe em curso um 57 O conceito de “imaginário social” é concebido como um sistema de representações construído pelos agrupamentos coletivos de acordo com a forma como eles atribuem sentido aos elementos que perfazem o tempo vivido, desde as experiências realizáveis até o panorama mítico por aqueles criado. Esse entendimento está embasado na abordagem de Tedesco (2004) sobre a referida questão. 58 É interessante deixar claro que leitura está embasando o entendimento sobre o conceito de tradição, por isso são válidas, neste momento, as observações de Bornheim quando afirma que a tradição compreende um “conjunto de valores dentro dos quais estamos estabelecidos; não se trata apenas das formas do conhecimento ou das opiniões que temos, mas também da totalidade do comportamento humano, que só se deixa elucidar a partir do conjunto de valores constitutivos de uma determinada sociedade” (BORNHEIM, 1987, p. 20). 64 sensível questionamento sobre um traço singular da historiografia portuguesa, correspondente ao apanágio imperialista dessa nação. Por essa ótica, avulta uma leitura depreciativa que assim considera o espaço colonial enquanto um produto da ação portuguesa no mundo: “o mundo-que-o-português-criou são estes luchazes59 côncavos de fome que nos não entendem a língua, a doença do sono, o paludismo, a amebíase, a miséria” (ANTUNES, 2010, p. 124). Na passagem citada, a conhecida expressão cunhada por Gilberto Freyre (1940) traz à tona a imagem mítica de um reino imperial espalhado em vários continentes, constituindo, na configuração de um vasto povo português, uma universalidade simbólica que, utilizada pelo discurso do regime, atestava a soberania da pátria e justificava sua ação colonizadora. No entanto, ao mesmo tempo, sobressai na apresentação do “mundo-que-o-português-criou” a visão de um espaço marcado pelo abandono. Nessa situação, os nativos daquele território, longe de fazerem parte da representação camoniana da grande nação lusa – “uma só alma pelo mundo em pedaços repartida” (LOURENÇO, 2001, p. 111) –, surgem isolados, esquecidos em suas adversidades, afastados, assim, dos que seriam os legítimos portugueses 60 . O projeto colonial é, por essa medida, alvo de críticas que visam demonstrar o resultado da ação portuguesa em África, de forma que, distante do triunfo entoado que fora condicionante de uma imagem honrosa sobre Portugal, o discurso da lenda nacional é fissurado pela valoração que recebe de seus próprios compatriotas. O modo de ser e de ver o mundo pelos portugueses em seus tempos de glória torna-se alvo de uma revisitação sarcástica que o romance configura, assim sendo, para o “eu narrador”, a “lusitanidade se nos afigurava tão problemática como a honestidade de um ministro” (ANTUNES, 2010, p. 27). Nessa senda, o olhar sobre os acontecimentos de outrora não se resume a uma atitude de veneração, conforme a visão sobre o “passado absoluto” (BAKHTIN, 1993, p. 408) do cenário épico determinaria. Tal pretérito impõe um distanciamento que impede qualquer tipo de releitura, algo que seria dispensável, pois o passado compreenderia um tempo “fechado, como um círculo, e dentro dele tudo está integralmente pronto e concluído” (BAKHTIN, 1993, p. 408). 59 Os luchazes são habitantes da província do Moxico, em Angola, fazendo parte do grupo étnico Balutxazes (Luchazes ou Luxazes), que sofreram as investidas militares dos grupos que disputavam o controle do país, inicialmente, com a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola) e depois com o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola). 60 É possível fazer uma referência, neste momento, à ideologia de cariz racista que fundamentou a política colonial empreendida pelos colonizadores portugueses em África, algo que foi comentado no capítulo anterior deste estudo. 65 Por sua vez, na perspectiva romanesca, a reverência dá lugar à experiência pessoal do sujeito na guerra e é essa situação que possibilita uma espécie de reescritura da épica nacional, a qual surge convertida na saga de um indivíduo que, antes de defender a luta de seu país, busca sobreviver às intempéries que lhe foram impostas. Se o mundo do “passado absoluto” épico “é dado somente enquanto lenda, sagrada e peremptória, que envolve uma apreciação universal e exige uma atitude de reverência para consigo” (BAKHTIN, 1993, p. 408), tal passado evocado no romance em questão perde seu caráter monológico e passa a interagir com as formas pelas quais esse tempo é reacentuado no presente. Em outras palavras, a memória do epos nacional, com os triunfos coletivos que lhe são característicos, paira sobre a narração de mais uma tentativa de manter a soberania do Estado português. Nesse movimento, o contexto do romance fomenta o que Bakhtin denominou de “molduragem interpretativa” (2015, p. 133), em que o dizer do outro, recuperado das homéricas batalhas lusitanas, sofre a influência do cenário no qual foi emoldurado, isto é, passa a dialogar com outras visões de mundo correlacionadas a essa nova conjuntura e, assim, modifica-se. Por essa razão, foi possível perceber também, na apreciação pessoal do ex- combatente sobre a dolorosa trajetória por ele enfrentada, a ruptura com uma voz única (monológica) de caráter universal e sagrado. Na verdade, estabelece-se o diálogo e, a partir dele, passa-se a se considerar o passado a partir de vários pontos de vista que fizeram parte do processo de instrução do “eu”. Obviamente, no caso de Os Cus de Judas, não se chega a um questionamento do epos nacional da mesma forma como isso é realizado, também por Lobo Antunes, no romance As naus 61 . Nesta narrativa, o tom parodístico potencializa uma revisão contundente dos anos dourados do contexto imperial português. Contudo, a ressalva elaborada não retira a importância da leitura que vem sendo desenvolvida, pois, consoante com as declarações de Eduardo Lourenço sobre a necessidade de se repensar Portugal, nada é mais necessário do que rever, renovar, suspeitar sem tréguas as imagens e os mitos que nela se encarnam inseparáveis da nossa relação com a pátria que fomos, somos, seremos, e de que essas 61 O romance projeta no retorno dos heróis descobridores um profundo desajustamento entre as figuras recuperadas dessas personagens do discurso historiográfico oficial e aquelas que são oriundas de uma paródia corrosiva e satírica, configurando o que vários críticos denominam como uma “escrita às avessas”, vista por Ana Paula Arnaut como uma forma de “desmistificação da grandiosidade da História e da raça de um conjunto de heróis portugueses – uma e outra esvaziados de honra e glória e proveito histórico” (ARNAUT, 2009, p. 34, grifo no original). 66 imagens e mitos são a metalinguagem onde todos os nossos discursos se inscrevem (LOURENÇO, 2016a, p. 88, grifos no original). Seguindo esse caminho, é que se observa o desmonte, no romance, do imaginário tradicional da guerra e das imagens de união nacional em prol de um mesmo objetivo. Sob a disputa armada, há a construção de uma leitura, pelos discursos oficiais, em que tal acontecimento é tido como um momento propício para o enaltecimento do herói que seria um representante das necessidades coletivas. Nesse panorama, a violência torna-se o caminho para o usufruto de uma situação mais proveitosa, sendo assim considerada de forma benéfica. No legado da antiguidade e do mundo medieval, por exemplo, imagens da guerra eram inseridas em formas épicas. O gênero épico era caracterizado pela afirmação positiva do herói, em sua capacidade de enfrentamento de inimigos e realização de conquistas. Essa tradição não está destituída de heranças, inclusive na indústria cultural. A configuração épica aponta para uma necessidade de guerra, que se justificaria por consolidação de soberania social, estabelecimento de fronteiras, ou ainda por sobrevivência frente a um risco de dominação (GINZBURG, 2011, p. 31, grifos nossos). Defender a necessidade da Guerra Colonial fez parte do discurso oficial do regime, todavia, ao mesmo tempo, na narrativa do médico das tropas portuguesas o conflito perde sua carga enobrecedora do homem para atuar como um instrumento educativo na realidade atroz vivenciada em África. Isto é, a guerra permitiu ao narrador enxergar a crueldade dos homens e as vítimas de um processo violento que, longe de conseguirem perceber qualquer aspecto favorável nessa experiência, vislumbram um ambiente traumático, circunscrito, independente dos descaminhos dessa luta, a um “novo círculo de arame” (ANTUNES, 2010, p. 131). Além disso, enquanto o “heroísmo antigo articula imagens sublimes, de harmonia e elevação” (GINZBURG, 2011, p. 31), não há no semblante dos oficiais representados pelo narrador-personagem qualquer dignidade. Ao contrário, há o apagamento da destreza militar substituída por uma leitura disfórica que conduz os indivíduos a um nível excessivo de abjeção, a ponto de, como será evidenciado em outro momento desta análise, serem simbolizados como animais. Assim, os soldados surgem “minúsculos, vulneráveis, ridículos, estranhos, sem passado nem futuro, a flutuar na estreiteza assustada do presente, coçando a flor-do-congo dos testículos” (ANTUNES, 2010, p. 45). Diante de um tempo de incertezas, os heróis 67 portugueses são configurados como sujeitos que perderam a referência do passado de glórias e caminham na instabilidade da guerra sem ter claro o propósito das suas ações, apenas inseridos, a contragosto, numa atmosfera que faz da violência um ritual perturbador: morríamos nos cus de Judas uns após outros, tocava-se um fio de tropeçar, uma granada pulava e dividia-nos ao meio, trás, o enfermeiro sentado na picada fitava estupefato os próprios intestinos que segurava nas mãos, uma coisa amarela e gorda e repugnante quente nas mãos, o apontador de metralhadora de garganta furada continuava a disparar (ANTUNES, 2010, p. 104). Em um estado de desregramento pungente, constrói-se uma visão da guerra que, de nenhuma forma, dignificaria a pátria perante a massificação da morte daqueles que defenderiam os ideais de Portugal. No contexto representado, predomina o que Yves Michaud (2001, p. 23) qualifica como uma racionalização da violência, aspecto próprio da cena moderna e da militarização estratégica das nações, de forma que a própria percepção do ambiente bélico modifica-se enquanto os valores outrora balizadores das batalhas travadas são dissipados e cedem espaço à busca por novas tecnologias de destruição em massa 62 . Por essa visão, a morte também não apresenta maior relevância, na verdade, ela faz parte dessa violência institucionalizada, intrínseca à ordem imposta que torna os oficiais rasos vítimas anônimas desse processo. Pouco se sabe dessas pessoas para além da função que desempenhavam no conflito, a exemplo da composição degradante do enfermeiro que “fitava estupefato os próprios intestinos” e do apontador de metralhadoras que mesmo “de garganta furada continuava a disparar”. Diante da instabilidade da situação, o destino deixa de ser algo pré-definido para o sujeito, mais que isso, o indivíduo não consegue ajustar-se à realidade na qual está inserido, permanecendo insatisfeito com o mundo no qual não se acha integrado. Lembrando o que afirma Bakhtin, um “dos principais temas interiores do romance é justamente o tema da inadequação de um personagem ao seu destino e à sua situação. O homem ou é superior ao seu destino ou é inferior à sua humanidade” (BAKHTIN, 1993, p. 425). No caso elencado, a tropa apresenta-se, na caracterização do narrador, com o desejo, por muito tempo renegado, de não participar da guerra, de sobreviver ao 62 Além disso, Michaud destaca a sutileza do emprego da violência, o qual “tira-lhe boa parte do que constituía sua antiga especificidade: seu caráter imprevisível. Entrar em confronto foi por muito tempo considerado a hora da verdade, o tempo da prova no qual a sorte das armas decide. Isso já não é mais inteiramente válido: o imprevisível da violência dá lugar ao cálculo” (2001, p. 46). 68 conflito, de evadir-se daquela situação calamitosa. A complexidade desse mundo instiga a revisão do próprio sentimento identitário, pois o que antes configurava uma fórmula de unificação dos indivíduos pertencentes a uma mesma comunidade figura na narrativa com a marca do “despertencimento” a essa mesma terra que mantém seus compatriotas em uma situação tão aviltante. De um modo geral, incentiva-se a consciência “de que o ‘pertencimento’ e a identidade não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos por toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis” (BAUMAN, 2005, p. 17). Dito de outra forma, a falta de confiança no dever a ser realizado em prol dos desejos coletivos da nação desencadeia no indivíduo a mesma ausência de identificação com o seu espaço de origem e com o seu papel nessa trajetória da pátria. Com efeito, a realidade elaborada “ao nível dos padrões estabelecidos pela ideia” (BAUMAN, 2005, p. 26) – a qual recupera, para fundamentar-se, vários temas e personagens de um imaginário épico – passa a ser alvo de questionamentos, fissuras que põem em causa a aceitação de um dado modelo de identidade nacional. Esse paradigma possuía, em suas bases, uma série de elementos que, antes de pertencerem à história oficial do país, eram recobertos por um filão mitológico, o qual ajudava a ornamentar, assim, a já referida narrativa de nação. Tais elementos são rememorados no romance de Lobo Antunes, mas surgem deslocados, esvaziando o sentido mais uma vez da lenda nacional. Dessa forma, o passado não compreende algo ilibado. Tal momento é revisto em várias circunstâncias, por exemplo, na referência feita aos “Campos de Ourique perdidos, com a sua constelação de capelistas manhosas em torno da Igreja do Santo Condestável 63, gótico estilo Mãos de Fada para casamentos de tecnocratas” (ANTUNES, 2010, p. 144), em que o espaço de uma freguesia bastante conhecida em Lisboa por evocar um episódio memorável da história portuguesa (correspondente à Batalha de Ourique 64 e ao nascimento da nação eleita que surge aliada à imagem do 63 Tal igreja é situada no Campo de Ourique, conhecido bairro e freguesia de Lisboa. Foi projetada em estilo neogótico em honra do Condestável D. Nuno Álvares Pereira, também designado como São Nuno de Santa Maria, nobre e general português do século XIV, figura histórica que foi reconhecida pelas suas estratégias militares, tornando-se patrono da infantaria portuguesa. A igreja foi projetada pelo arquiteto português Vasco Regaleira e inaugurada em 14 de agosto de 1951. 64 A Batalha de Ourique ocorreu em 25 de julho de 1139, sendo travada devido às incursões que os cristãos realizavam nas terras dos mouros, defrontando-se com estes em número significativamente maior que as tropas cristãs sob o comando de D. Afonso Henriques. Mesmo em número menor, os cristãos venceram e, mediante a isso, D. Afonso Henriques proclamou-se rei de Portugal. Para sustentar a formação da pátria em questão, adiciona-se a esse fato o que ficou conhecido como o Milagre de Ourique. Este, segundo Ana Isabel Buescu, apresenta a lenda de que o novo rei teria recebido a visão de Cristo legitimando-lhe como líder do império lusitano, o qual não poderia seguir apartado da mão divina, de forma que a “intervenção pessoal de Deus era a prova da existência de um Portugal independente por vontade divina e, portanto, eterna” (BUESCU, 1993, p. 15). Na sacralização da figura de Afonso 69 sagrado) figura no presente apenas com a função de ambientar o casamento de tecnocratas. Há, ainda, a alusão frequente à temática das experiências náuticas portuguesas, resgatando a “filigrana manuelina dos Jerónimos65, Reboleira dos Descobrimentos” (ANTUNES, 2010, p. 142), em que o espaço do Mosteiro dos Jerônimos, construído sob o mando do rei D. Manuel I, representava o período de ouro vivido pelo país com relação à época da expansão ultramarina. Na verdade, opera-se pelo desalinho criado entre essas referências e o contexto em que elas são mencionadas pelo narrador aquilo que Bakhtin qualifica como “uma dessacralização, isto é, exatamente a retirada do objeto do plano distante, a destruição da distância épica e de qualquer plano longínquo em geral” (BAKHTIN, 1993, p. 414). Imagens da história portuguesa destronadas são bastante comuns no romance em análise, de forma que, por uma via ou por outra, ou mesmo, para focalizar as mais diversas questões, serão mencionadas frequentemente nesta pesquisa. A atitude de rebaixar o que é considerado elevado (a exemplo do espírito da épica) relaciona-se, em certa medida, com as questões que fazem parte de uma cosmovisão carnavalesca. Esta faz parte da transposição para a linguagem literária de certas formas carnavalescas que se “converteram em poderosos meios de interpretação artística da vida” (BAKHTIN, 1997, p. 158, grifos no original), algo que foi discutido por Bakhtin quando ele observa a influência das formas citadas em algumas obras literárias, em especial, os romances de Dostoiévski. Nessa visão de mundo, o absolutismo das formas é posto em xeque, reduzindo-se a seriedade decretada pelas posições sociais dominantes. Na situação em destaque neste momento, destrói-se a hierarquia imposta por esse passado distante para conceber flashes desse enredo nacional dentro de uma conjuntura em ruínas que apenas retoma as imagens desse outro tempo por oposição, como uma forma de acentuar ainda mais a desordem vivida no momento da Guerra Colonial. Por essa ótica, ocorre a rasura da “palavra primordial (a origem perfeita)” (BAKHTIN, 1993, p. 419), pois, diante de um mundo no qual o momento em que se vive é a única base na qual mal se assenta o sujeito, a volta ao passado longínquo origina mais perguntas que respostas. Nesse sentido, a identificação ou, para se utilizar Henriques, apresenta-se a formação de uma imagem que fomentaria a coerência da ideia de nação portuguesa, um sentido que se constitui “evidentemente, como instrumento ideológico da afirmação da nacionalidade e de legitimação da independência” (GOBBI, 2011, p. 62). 65 O mosteiro ficava localizado à entrada de Lisboa, nas margens do Rio Tejo. A partir dessa orientação, os navios partiam para desbravar o que ficou denominado como Novo Mundo, além da procura por novas rotas para o comércio marítimo. Na década de 1980, o mosteiro foi tombado como Patrimônio Mundial da UNESCO, sendo considerado, atualmente, como uma das atrações turísticas de Portugal. 70 mais uma vez das considerações de Bauman, “o ‘pertencimento’ teria perdido o seu brilho e o seu poder de sedução, junto com a sua função integradora/disciplinadora” (2005, p. 28). A atuação de uma força coercitiva que possibilitava o agrupamento dos cidadãos ao redor de uma dada representação do ser nacional decai nesse processo, de modo que o olhar sobre o país torna-se um “olhar outro” frente a uma cultura tradicional extensamente cultivada: sou homem de um país estreito e velho, de uma cidade afogada de casas que se multiplicam e refletem umas às outras nas frontarias de azulejo e nos ovais dos lagos, e a ilusão de espaço que aqui conheço, porque o céu é feito de pombos próximos, consiste numa magra fatia de rio que os gumes de duas esquinas apertam, e o braço de um navegador de bronze atravessa obliquamente num ímpeto heroico (ANTUNES, 2010, p. 35, grifos nossos). Qualquer sentimento de grandiosidade fora deixado para trás, o que se evidencia é a imagem reduzida de um mundo cuja dimensão, outrora floreada de forma a representar a superioridade de um povo, fulgura convertida em um espaço “estreito”, atravessado por uma “magra fatia de rio que os gumes de duas esquinas apertam”. O descontentamento com o país resulta em uma apreciação que reprova a idealização do passado, um tempo que aos olhos do narrador projeta uma dinâmica ambivalente no tocante ao destino da pátria. Da mesma maneira que é possível recordar-se do poderio que a imagem de um “navegador de bronze” evoca, o “ímpeto heroico” torna-se oblíquo frente a um presente estagnado de uma “cidade afogada de casas que se multiplicam e refletem umas às outras”. Em outras palavras, a vocação imperial, uma força intensa que fez parte da atividade histórica da nação, permanecendo como uma marca que sempre definiu o ser português (conforme LOURENÇO, 2016a, p. 49), conduz a uma leitura incessante do ontem e, com isso, retoma-se a lembrança fugidia de um tempo dourado. No entanto, é esse eterno retorno que revela a retração desse mesmo universo de glórias no presente, de modo que o tom nostálgico é realçado a fim de propor o fim do encantamento com essa fase longínqua da história portuguesa. A caracterização do navegador ajuda, ainda, a reforçar a construção desse mundo dual pela referência a um metal que, simbolicamente, se origina “da união de contrários” (CHEVALIER & GHEERBRANDT, 1989, p. 144), sendo compreendido na mitologia grega com um representante de uma terceira raça de homens, a raça de bronze, a qual possui uma força 71 vigorosa, mas que acaba sucumbindo, habitando a morada de Hades. Por conseguinte, ao que parece, a dimensão axiológica desse passado remoto, uma vez quebrado o isolamento que não permitia a sua avaliação, produz no momento em que se vive a consciência do retrocesso experienciado e o estranhamento decorrente da incompatibilidade dessa visão com as lembranças de dantes, acarretando “a ilusão de [um] espaço” que naquele momento o narrador diz conhecer. O processo de desmantelamento do mundo épico não se encerra no romance em análise com a ruptura feita em relação a uma dada perspectiva heroica. Em verdade, o aspecto mencionado compreende “apenas” o início para que outra instância desse domínio seja lembrada como algo desfigurado na prosa em foco. Nessa perspectiva de análise, tem-se em vista aqui o caráter oficial de gêneros como a épica, no tocante ao tratamento de um pretérito já concluído, o que faz com que tais textos sejam considerados como um modo de expressão de uma verdade dominante. Por esse motivo, a tarefa de dar forma a essa palavra, que se manifesta como um símbolo de poder, torna- se um ofício árduo para o qual o artista sente que precisa de um auxílio, uma espécie de estímulo que, na forma da poesia épica, se constitui como o espaço da invocação. Esta compreende “um recurso de efeito retórico relacionado a uma pretensa disparidade entre a dimensão do texto que vai ser escrito e o fôlego do poeta para realizá-lo. Assim, invocando a ‘musa’, registra o poeta seu pedido de inspiração, amparo, energia e clareza” (RAMALHO, 2013, p. 374) a fim de que, ao final, possa ser elaborado um texto adequado à matéria épica em destaque. A força impulsionadora do fazer artístico pode assumir variadas formas no gênero em foco, incluindo desde as divindades da mitologia pagã, as figuras históricas de um dado povo até o envolvimento da proteção divina inerente à religiosidade cristã, no caso, do épico camoniano, por exemplo. Destarte, independente da forma apresentada por esse ser a que fora feito o apelo, a presença do destinatário da invocação potencializa tanto o olhar sobre a relevância do conteúdo narrado quanto a dificuldade de se penetrar na temática proposta. Devido à responsabilidade que o dito a ser exposto exige, a voz do poeta reconhece o quanto sua tarefa é árdua, recorrendo a certo amparo para que se possa transcorrer sobre as façanhas de um herói e, de forma mais geral, sobre o destino de um povo. Por sua vez, o reconhecimento da complexidade do espaço a ser desbravado por aquele que contará uma atribulada experiência coletiva também faz parte da compreensão do “eu narrador” presente no texto literário em estudo. No entanto, 72 seguindo a visão de que “o romance está ligado aos elementos eternamente vivos da palavra e do pensamento não oficiais (a forma festiva, o discurso familiar, a profanação)” (BAKHTIN, 1993, p. 411), o elemento que possibilita a inspiração para que o ex-combatente relate as situações vividas durante a guerra foge de um contexto de sobriedade, correlacionando-se aos variados tipos de bebidas alcoólicas ingeridas por aquele indivíduo no momento de sua enunciação. Por essa interpretação, não só o contexto narrado desvia-se de um olhar sagrado que regeria o dito, motivando a laboriosa ação narrativa, mas também não impele o portador da voz a qualquer mudança de comportamento, já que os únicos triunfos alvos da atenção do ex-alferes-médico são aqueles alcançados por meio do delírio provocado pelo álcool: Quer um uísque? Este banal líquido amarelo constitui, nos tempos de hoje, depois da viagem de circum-navegação e da chegada do primeiro escafandro à Lua, a nossa única possibilidade de aventura: ao quinto copo o soalho adquire insensivelmente uma agradável inclinação de convés, ao oitavo, o futuro ganha vitoriosas amplidões de Austerlitz, ao décimo, deslizamos devagar para um coma pastoso, gaguejando as sílabas difíceis da alegria (ANTUNES, 2010, p. 124). Em uma visão inicial, o álcool atua como um elemento propulsor da imaginação, única via capaz de conferir uma saída para um contexto menos balizado pela concretude da vida. Na circunstância elencada, o uísque torna-se a substância revigorante de uma vida austera, contida e prosaica. O “banal líquido amarelo” acompanha o narrador em sua “única possibilidade de aventura”, já que, ao que parece, no momento vivido as façanhas do homem cessaram e só resta aos sujeitos imaginar aquelas que já foram experienciadas. Por esse motivo, seguindo o processo de inebriamento do “eu” que, ordenadamente, sinaliza os estágios de sua invenção, surge a relação, primeiramente, com o cenário das navegações. A grande aventura portuguesa é revivida, por força de um travestimento, à medida que o indivíduo alcoolizado não consegue manter o próprio equilíbrio e o “soalho adquire insensivelmente uma agradável inclinação de convés”. O delírio intensifica-se e, depois das oscilações sentidas no figurativo deque, atinge-se o êxtase ante a um futuro que ganha contornos utópicos, sendo caracterizado pelas “vitoriosas amplidões de Austerlitz” 66 em uma referência à bem-sucedida batalha 66 Embora com um sentido diverso do que fora citado, a referência ao Austerlitz ainda é apresentada na trama quando o narrador incita a lembrança de um trecho do poema “Portugal em Paris”, do poeta português Manuel Alegre (1967), na seguinte passagem do romance: “Apertado contra os outros no único banco comprido do avião, entre caixotes, fardos, sacos e malas (‘o meu país na gare de Austerlitz’), eu, 73 travada pelas tropas de Napoleão Bonaparte contra o exército russo e austríaco. Nesse estágio, o narrador idealiza, retomando a referência mencionada, um porvir glorioso para a nação, algo distanciando da realidade vivida, alcançando, ao décimo copo, o sossego aguardado e a lembrança ainda mais fugidia, nessa trajetória de sofrimento, correspondente à sensação inconfundível da alegria. Assim, o álcool funciona como uma fonte inesgotável de deleite, um líquido mantenedor das aventuras possíveis diante do contexto vivido, consistindo no meio dessacralizante para que se possa imaginar outra realidade, já que, segundo o próprio médico alferes afirma, “sabe como é, o vodka confunde os tempos e abole as distâncias” (ANTUNES, 2010, p. 48). O distanciamento em relação ao passado é, assim, dissolvido mais uma vez, ocorrendo, na relação tecida aqui entre a memória do material épico e a prosa em questão, uma espécie de substituição das musas. No caso português, as tágides, ninfas locais do universo camoniano são destituídas de seu papel nessa nova aventura marítima da qual o narrador de Lobo Antunes fez parte. Tendo em vista as vicissitudes características de um presente como tempo inacabado, a leitura romanesca em destaque produz outra versão de um “passado absoluto”, do qual fazem parte deuses, semideuses, heróis e musas. Nessa releitura, tal passado “‘atualiza-se’: rebaixa-se, é representado em nível de atualidade, no ambiente dos costumes da época” (BAKHTIN, 1993, p. 412). Por esse raciocínio, a invocação correspondente a um dado “paradigma épico” dilui-se, restando menos a ideia de uma súplica a alguém que atuaria como proteção divina para o narrador que o sentido de fragilidade sentido pelo ex-combatente quando se põe a enfrentar as suas próprias lembranças. Tal enfrentamento só seria possível para esse sobrevivente da guerra quando ele se ampara no álcool, o qual lhe provê o estado mais adequado para vencer a desordem da realidade, passando, “gole a gole, para o outro lado da angústia, emigrante forçado da guerra de regresso ao bidonville do arame, olhava pelas janelas estreitas do avião a Ilha de Luanda a encolher-se na distância” (ANTUNES, 2010, p. 101). No poema, o verso relembrado corresponde à contemplação melancólica do eu-lírico frente aos inúmeros imigrantes que chegavam à capital francesa pela Estação de Austerlitz devido à situação preocupante que se vivenciava em Portugal: “Vi minha pátria derramada/ na Gare de Austerlitz” (ALEGRE, 1974, p. 15). A situação referida no texto poético ocorreu no país por causa de uma crise econômica, de modo que da década de 50 ao ápice na década de 70 houve uma sensível emigração de portugueses em direção aos países da Comunidade Econômica Europeia (CEE). Segundo Maxwell, as “condições dos trabalhadores portugueses na França estavam muito longe de ideais, mas o salário mínimo mensal pago ali na década de 1970 era maior que o recebido por 92% da população portuguesa em seu próprio país. Novecentos mil portugueses emigraram entre 1960 e 1971, a maioria na faixa de dezoito a 35 anos” (2006, p. 44). Dessa forma, a condição de “emigrante forçado”, seja para o território da guerra, seja para outro país no qual se buscava a sobrevivência, aproxima esses dois textos literários, em que o verso evocado, de certa forma, explica a situação vivenciada pelo narrador a caminho do front. 74 alcançando uma espécie de serenidade polar, vizinha da morte, é certo, mas que a ausência de esperança e do frenesi ansioso que ela inevitavelmente traz consigo torna quase apaziguadora e feliz” (ANTUNES, 2010, p. 130). Paradoxalmente, a embriaguez é o que concede ao “eu narrador” a lucidez necessária para encarar o caos proveniente das memórias do conflito colonial, já que, com “olhos embriagados”, o “eu” desvencilha-se de uma sobriedade enganosa que mascara a desordem da realidade na qual falsamente tudo estaria em seu lugar. Essa situação, por mais intolerável que seja para aquele que confessa suas agruras – “A lucidez que a segunda garrafa de vodka me confere é de tal maneira insuportável que, se não se importa, passamos à claridade tamisada do cognacs que tinge a minha mediocridade interior do lilás de uma solidão aflita” (ANTUNES, 2010, p. 75) –, de certa forma, justifica a existência desse indivíduo que consegue um espaço de fala, uma clarividência improvável para que sejam revistos os eventos decorridos no solo africano. Dessa maneira, a voz narrativa confessa, inicialmente, uma incapacidade de contar, de evocar as experiências de dantes, algo que só seria aplacado pelo combustível que o álcool representa, estimulando a necessidade de expressão do sujeito. Diante da natureza do conteúdo alvo da explanação do narrador, a bebida surge, enfim, como um recurso que auxiliaria a composição da tragédia a ser explorada. Nesse sentido, o uísque, a vodka, a aguardente compreendem, de forma simbólica, um artifício metatextual que permite, mesmo causando uma confusão naquele que se vale desse expediente, penetrar no indizível, naquilo que ainda afeta o ex-alferes e o seu desejo de esquecer: “Outro vodka? É verdade que não acabei o meu mas neste passo da minha narrativa perturbo-me invariavelmente, que quer, foi há seis anos e perturbo-me ainda: descíamos do Luso para as Terras do Fim do Mundo, em coluna, por picadas de areia” (ANTUNES, 2010, p. 39). A confusão referida plasma-se, inclusive, no plano linguístico quando se observa a falta de concordância entre os termos empregados pelo narrador-personagem. A narrativa segue, assim, o curso do álcool, o qual determina o horizonte de expectativas do ex-combatente quanto à possibilidade de atenuar um pouco a dor sentida e inflamar, de súbito, o ânimo para que se adentre novamente nas “Terras do Fim do Mundo”: Não quer passar ao vodka? Enfrenta-se melhor o espectro da agonia com a língua e o estômago a arder, e esse tipo de álcool de lamparina que cheira a perfume de tia-avó possui a benéfica virtude de me incendiar a gastrite e, em consequência, subir o nível da coragem: 75 nada como a azia para dissolver o medo ou antes, se preferir, para transformar o nosso passivo egoísmo habitual num estrebuchar impetuoso, não muito diverso na essência mas pelo menos mais ativo (ANTUNES, 2010, p. 28, grifos nossos). Coerente com o cenário no qual o dito é construído, a saga desse herói destronado, perfil que caracteriza o narrador da trama em foco, sustenta-se no ânimo que só “esse tipo de álcool de lamparina que cheira a perfume de tia-avó possui”. Por um lado, novamente, compõe-se uma imagem patética dos pertencentes à tropa portuguesa vencida na guerra, sujeitos que, da mesma maneira que o protagonista do enredo, enxergariam a bebida como a única possiblidade de conseguir as “mais loucas ou doces aventuras” (ANTUNES, 2010, p. 28-29). Por outro lado, sobressai, como resultado dessa situação, uma palavra que não deseja ascender à condição de verdade última, compreendendo, quando muito, o “discurso da solidão grandiosa dos bêbados, para quem o mundo é um reflexo de gigantes contra os quais, inutilmente, se encrespam” (ANTUNES, 2010, p. 187). A “grandiosidade”, nesse caso, acentua apenas o estado degradante a que chegou o “eu”, imerso em uma época na qual o olhar sobre o que poderia ter sido um passado de deferência é transmitido por alguém que, para vencer “o espectro da agonia”, converte-se na figura, também deslocada, de um ébrio narrador. No interior do processo subversivo que vem sendo desenvolvido, outra questão que faz parte do mundo épico revisitado nesta análise desperta a atenção devido ao simbolismo que apresenta. A questão mencionada diz respeito à nomeação recebida por algumas epopeias clássicas que tecem entre o título dessas obras e a valorização de uma dada lenda nacional uma linha de contiguidade. Nesse sentido, a designação de alguns desses poemas enaltece o passado longínquo de um dado povo, personagem central da história a ser contada, seja pela referência ao espaço no qual são desenvolvidas as ações principais da épica, seja pela alusão às figuras pioneiras na formação daquela sociedade. De uma forma ou de outra, o foco recai na valorização de um dado espaço coletivo no qual são erigidas as memórias dos antepassados e onde se funda a história nacional. Um exemplo característico dos aspectos levantados corresponde à Ilíada, (datando possivelmente do século VIII a.C.) de Homero. O título dessa epopeia deriva, na transliteração do grego antigo, de Ílion (ou Ílios, de acordo com BRANDÃO, 1993, p. 166), outra denominação para Tróia, o que revela um traço peculiar dos poemas homéricos no tocante à maneira singular com a qual são conectados linhas de 76 parentesco e acontecimentos de um dado povo aos vocábulos que fazem parte da nomeação dos poemas referidos, como uma forma de perpetuar uma dada nomeação. Assim, Ílion seria imortalizado nos episódios narrados na Ilíada, ou ainda, seria conservado, na nomeação de um dos fundadores da cidade, a exemplo de Ilo (Illus) que, juntamente com seu pai Tros, fez parte da formação do espaço troiano. No terreno mitológico que engendra o nascimento desses sítios onde é ambientado o mundo épico, a carga simbólica que os nomes carregam é fundamental para alimentar esse “passado absoluto”, de forma que um evento acaba ligando-se ao outro por meio da afinidade estabelecida no grau de descendência que define a forma como dado ser será denominado. Para exemplificar o aspecto comentado, recorre-se ao emprego do vocábulo “Ília”, transliteração do grego (Ilía), sendo também um derivado de Ílion, como um “nome forjado para designar Réia Sílvia, mãe de Rômulo e Remo, em função do mito da origem troiana de Roma” (BRANDÃO, 1993, p. 166). Tal leitura foi considerada por alguns mitólogos que, nas versões do mito de fundação de Roma, adotavam a cognominação Ília como a mais adequada pela significação nela impressa: “a troiana, a mulher de Ílion” (BRANDÃO, 1993, p. 166), filha de Enéias e Lavínia67. É necessário salientar, ainda, a simbologia presente nos títulos de epopeias em sua relação com os predecessores de dadas nações, entendendo que narrar as conquistas dessas figuras significa valorizar, por consequência, a história desses agrupamentos sociais. Para tanto, destaca-se a Eneida (poema composto no século I a. C.), de Vergílio, cuja nomeação advém da relação com Enéias – em grego Ainéias e que “os latinos simplesmente transliteraram sob a forma Aeneas” (BRANDÃO, 1993, p. 97, grifo no original) –, herói troiano que esteve na batalha do cerco a Ílion e peregrinou, após a sua fuga dessa cidade, até alcançar os litorais da Itália. Nesse país, o herói vergiliano estaria predestinado a reinar sobre uma “nova Tróia”, sendo considerado o “ancestral maior da raça latina” (BRANDÃO, 1993, p. 98). Filho da deusa Afrodite, Enéias, como um protegido dos deuses, seria responsável por guiar os sobreviventes da batalha para uma nova terra, de forma que o mito construído ao redor dessa figura “não apenas teve o mérito de conferir títulos de nobreza às mais antigas famílias romanas, cujos ancestrais se diziam descender de Júpiter, Vênus [...], mas igualmente de reconciliar no seio do império romano duas raças inimigas: troianos e gregos” (BRANDÃO, 1993, p. 104). 67 Junito Brandão destaca que, embora haja versões diferentes para a nomeação de Réia-Ília, “o mito permanece o mesmo, seja qual for a filiação” (1993, p. 166). 77 Dessa maneira, o vínculo entre as designações de alguns textos épicos e a simbologia presente nessa relação reforça certos atributos que, como vistos até o momento, fazem parte da construção do que pode ser denominado de “epicidade”. Nesta, a escolha do título, ao menos nos exemplos citados, repousa em um arcabouço mitológico bastante válido para sustentar, em uma linha de descendência, o perfil heroico de um povo e a consagração dos feitos que pertencem a um tempo remoto, um momento que surge como uma fonte a partir da qual se ergueria a história da pátria. Não à toa, para a visão do mundo épico, o “começo”, o “primeiro”, o “fundador”, o “ancestral”, o “predecessor”, etc., não são apenas categorias temporais, mas igualmente axiológicas e temporais, este é o grau superlativo axiológico-temporal que se realiza tanto pela atitude das pessoas, como também pela atitude de todas as coisas e fenômenos do mundo épico (BAKHTIN, 1993, p. 407). Por sua vez, concernente com a postura destrutiva que vem sendo deslindada no romance de Lobo Antunes, observa-se um “deslocamento radical do centro axiológico temporal” (BAKHTIN, 1993, p. 416) na prosa em destaque. Isso ocorre quando se tem em vista que, se na configuração do mundo épico há uma extremada valoração do contexto inicial de uma sociedade, das aventuras realizadas por seus ancestrais, o universo em ruínas antuniano sugere, desde o elemento paratextual mais significativo presente no romance em foco, a elaboração de uma imagística do fim. Isto é, desde a escolha do título da narrativa, há uma inversão de valores em relação às atitudes preconizadas no âmbito da épica, já que, antes de uma exaltação dos primórdios da história portuguesa, predomina em vários aspectos de Os Cus de Judas a sensação de que se assiste ao desfecho de um determinado ciclo dessa história. Por essa lógica, as dimensões constitutivas desse “epílogo” alcançam a sugestiva nomeação da obra cuja complexidade é sublinhada pela ambiguidade que lhe é peculiar, sobressaindo sentidos diferentes, mas que integram o enfoque negativo do qual, substancialmente, o texto é nutrido. A partir de uma dada perspectiva, recupera-se o pensamento religioso e, nessa leitura, a presença de Judas vincula a ideia da traição 68 , da 68 Segundo Maria Alzira Seixo, a expressão que denomina o segundo romance de Lobo Antunes “remete também para a designação dada pelo MPLA aos traidores e bufos” (2002, p. 42). O vocábulo “bufo”, por exemplo, dentro de um contexto mais popular, refere-se à ideia de delator, de informante e, por isso, fazia parte do modo como os angolanos chamavam os indivíduos que eram desleais com a luta pela independência das colônias e entregavam dados privilegiados à PIDE. Em outra perspectiva, nas análises 78 hipocrisia manifesta nos atos menos suspeitos, em que a evocação de tal representante da deslealdade também indicia as marcas de um desfecho, o que no caso da tradição cristã compreende a crucificação de Cristo. Em outra acepção, a expressão é entendida no solo português como uma forma de significar um lugar miserável, inóspito, esquecido no tempo, distante, assim, de qualquer imagem de progresso. Nesse sentido, o sintagma que possui uma vertente escatológica, aspecto que adquire uma profunda relevância no romance em relevo, retoma a concepção de fim do mundo, algo que qualifica o ambiente da guerra, um sítio perdido no meio do nada que assim é apresentado pelo narrador: “As Terras do Fim do Mundo eram a extrema solidão e a extrema miséria, governadas por chefes de posto alcoólicos e cúpidos a tiritarem de paludismo nas suas casas vazias, reinando sobre um povo conformado” (ANTUNES, 2010, p. 121). A grafia em letra maiúscula confere certa distinção, ironicamente, a um cenário que faz jus à nomeação recebida, já que nele tudo parece ter cessado, proliferando o desamparo e o esgotamento, inclusive, da indignação diante da imagem de chefes gananciosos que reinavam “sobre um povo conformado”. O espaço que caracterizava a conquista portuguesa e que fazia parte da grande nação lusitana surge representado, no texto literário em destaque, como algo que desqualifica a própria ação colonial. Em outras palavras, o local que seria palco de uma sensível mudança na história da nação torna-se o centro da saga de um soldado português, no entanto essa posição e a distinção citada servem a uma atitude desmobilizadora que se vale de uma ironia sutil para demover a versão mitológica do “mundo-que-o-português-criou” (ANTUNES, 2010, p. 124). Assim, a ironia “não simplesmente afronta o mito, mas exacerba-o ou desloca-o de tal maneira, usando os mesmos truques que o configuram” (GOBBI, 2011, p. 43-44). Em outras palavras, destaca-se, à primeira vista, o ambiente da luta de um país para desvirtuá-lo dentro desse processo, uma prática bastante repisada na trama e que será mais bem exemplificada em outros momentos deste estudo. O cenário da luta portuguesa é, por essa medida, rebaixado já no título do romance, movimento que metaforiza um olhar que avança de modo descendente no enredo, acompanhando o declínio do império luso ao mesmo tempo em que o homem feitas por Cardoso (2011) sobre a obra em foco, é atribuída sensível relevância à personagem bíblica citada, de tal forma que é apresentada a seguinte conclusão: “o soldado português acabou por ser um Outro, ‘um Judas’, aquele que estará numa ‘porta giratória’, ou seja, que será ambos os lados e nenhum, algures entre a inclusão e a exclusão” (CARDOSO, 2011, p. 30). De alguma forma, o termo “Judas” e a carga semântica que ele carrega podem ser atribuídos ao narrador, um combatente pela pátria lusa que, ao invés de validar uma imagem heroica, prefere dedurar a face negativa do discurso colonial. 79 decai no horror do front de batalha: “descíamos para as Terras do Fim do Mundo, a dois mil quilómetros de Luanda, janeiro acabava, chovia, e íamos morrer, íamos morrer e chovia, chovia” (ANTUNES, 2010, p. 39, grifos nossos). Como resultado da verticalidade das relações tecidas na trama, sobrevém o escatológico, vocábulo que, etimologicamente, origina-se de um composto de éskatos (o que se encontra na extremidade, último) e lógos no sentido de tratado, doutrina (conforme BRANDÃO, 1993, p. 105). Em uma primeira leitura, o enfoque dado ao plano da extremidade surge representado no título da obra pela referência ao ânus, orifício pelo qual, do ponto de vista do indivíduo, se encerra biologicamente o processo digestivo. A referida parte do corpo humano é percebida, ainda, como algo que é ideologicamente valorado de forma negativa, caracterizando, nesse movimento ínfero que a trama suscita, a antítese do que possui virtude. Tal termo, mesmo não sendo considerado necessariamente ofensivo em Portugal, manifesta um tom pejorativo e grosseiro em variadas circunstâncias, o que é justificado pelo entendimento de que o vocábulo “cus”, geralmente, é associado à composição de uma imagem vexatória, depreciativa, a qual condiz com a atitude destrutiva tão cultivada no romance. Saindo de uma visão mais superficial e avançando no entendimento acerca da presença do escatológico na narrativa, é necessário ter em vista que, na etimologia consultada, sobressai também a concepção de uma doutrina acerca do “fim do homem e da humanidade. Em termos mais simples, escatologia é o que aguarda o ser humano após a morte, o seu destino final” (BRANDÃO, 1993, p. 105), de forma que, seguindo esse pensamento, no filão mitológico que faz parte de algumas épicas clássicas, o embate do homem com esse “destino final” é traduzido pelo contato do herói com o mundo dos mortos, com a descida ao inferno. Este, na derivação latina de inferna, relaciona-se com o vocábulo inferus que significa “‘o que está embaixo’, donde inferna, ‘infernos’, são as mansões dos Di Inferi, e dos inferi, isto é, dos deuses subterrâneos e das almas que as habitam. Inferi [...] opõe-se a superi, ‘os que estão em cima’, donde Di Superi são as divindades do Olimpo” (BRANDÃO, 1993, p. 106, grifos no original) 69. Nas epopeias clássicas, esse movimento declinante em direção ao inferno é denominado de catábase (no grego, katábasis), algo que compreende “toda e qualquer descida às regiões subterrâneas” (FERNANDES, 1993, p. 347). O sentido que envolve 69 É válido acrescentar, ainda, nessa raiz etimológica, que “inferus e seu superlativo infimus correspondem ao sânscrito ádharah, adhamáh, ‘que está embaixo e mais abaixo’” (BRANDÃO, 1993, p. 106, grifos no original). 80 tal movimento nesses textos apresenta uma espécie de encontro do herói com os já falecidos, o que propicia, mesmo em um cenário de tribulação, um sacrifício para obter um determinado conhecimento, já que o reino dos mortos é visto como o lugar “onde a verdade pode ser encontrada ou, pelo menos, ouvida, porque as almas dos que desapareceram da terra a podem contar livremente” (FERNANDES, 1993, p. 347). Esse seria o caso observado, por exemplo, no canto XI da Odisseia (obra que data provavelmente do século VIII a. C.), de Homero, já que Ulisses desce ao reino de Hades a fim de aconselhar-se com o adivinho Tirésias, o qual recomenda que o herói realize sacrifícios a Poseídon, com o intuito de evitar a perserguição deste. Assim, descer ao inferno caracteriza-se, para o herói épico, como uma via para alcançar um saber que, na vida terrena, não lhe seria dado, ou ainda, para cumprir, de acordo mais uma vez com as considerações de Rosado Fernandes, “qualquer missão de importância (Hércules), em geral em favor de qualquer pessoa ou comunidade humana” (1993, p. 347). Nesse sentido, a volta do herói ao convívio terreno, ou melhor, a sua subida (no grego, anábasis) para o mundo dos vivos integrava uma conquista de um estado superior da consciência, ou ainda, o alcance da sensação de um dever cumprido. O triunfo conseguido dignificaria todo o suplício vivenciado pelo indivíduo que padeceu no inferno, com todo o “sentido de angústia e de opressão, que uma descida aos fundões da terra significa” (FERNANDES, 1993, p. 354). Por sua vez, a “descida às Terras do Fim Mundo” confunde-se com o declínio do sujeito que chegou ao ambiente de trevas no qual ocorreu a Guerra Colonial. Nesse reduto de sofrimento, o caminho para o conflito assemelhava-se a uma viagem que não abriria a possibilidade de regresso, de modo que os indivíduos figuravam atormentados pelo prenúncio do fim que parecia definir o destino das tropas – “janeiro acabava, chovia, e íamos morrer” (ANTUNES, 2010, p. 39). Não à toa, a sensação de conviver com espectros fazia parte das vivências do ex-alferes-médico na terra angolana. Por um lado, havia o embate constante com a morte dos demais, avultando um “eu” assustado por “fantasmas de furriéis” (ANTUNES, 2010, p. 20). Por outro lado, saltava a compreensão de que a tropa portuguesa, de um modo geral, não possuía mais vitalidade naquele cenário de desolação. Os soldados surgiam como seres esvaziados, convertendo-se em sombras que se corporificariam apenas no regresso a Portugal: “O avião que nos traz a Lisboa transporta consigo uma carga de fantasmas que lentamente se materializam, oficiais e soldados amarelos de paludismo, atarraxados nos assentos, 81 de pupilas ocas, observando pela janela o espaço sem cor, de útero, do céu” (ANTUNES, 2010, p. 194). O segundo romance de Lobo Antunes parece compor, assim, uma outra “longa travessia do inferno” (ANTUNES, 2006, p. 21)70. Nessa experiência, o herói antuniano decai, amarga um doloroso sacrifício em nome de interesses que não lhe pertenciam, consegue regressar à sua terra enquanto tantos não lograram esse destino, porém, diferente do resultado da catábase na epopeia clássica, não há qualquer enobrecimento, na concepção do “eu narrador”, em relação à sua atividade militar nos “cus de Judas” (ANTUNES, 2010, p. 194). Muito embora o narrador-personagem adquira um conhecimento singular a partir de sua vivência na guerra, isso não exclui a visão de que ele não valora positivamente a missão que lhe foi imposta, não saindo dessa tarefa como um herói virtuoso. É lícito frisar também que, de alguma forma, a atividade memorial desenvolvida pelo “eu” projeta um retorno ao inferno à medida que, novamente, aflora o sofrimento vivido e, dessa experiência, alcança-se uma lucidez, uma espécie de “verdade” sobre esse momento do país, o que vem a ser aclarado aos que não participaram de tal situação. Na longa jornada pelo inferno bélico, os valores antes apregoados pelo pensamento colonial sofrem sensíveis alterações. Para exemplificar a assertiva feita, é possível citar o olhar lançado sobre a capital angolana, a qual deixa de ser concebida como um “paraíso tropical” (GARCIA, 2016, p. 28) 71 para compor as “Terras do Fim do Mundo”, uma cidade que “começou por ser um pobre cais sem majestade cujos armazéns ondulavam na umidade e no calor” (ANTUNES, 2010, p. 25). No entanto, seguindo a própria indicação do narrador, “a guerra é nos cus de Judas, entende, e não nesta cidade colonial” (ANTUNES, 2010, p. 188), dado que o lugar que melhor 70 Não se deseja, de forma nenhuma, ignorar a relevância da imagística do inferno na obra de Lobo Antunes, principalmente, no romance Conhecimento do Inferno, pois nele, desde o título, tal temática se faz presente. Na verdade, a dimensão do “conhecimento” implicado na obra citada potencializa a ampliação da simbologia envolvida nessa questão que, além do trauma da guerra, abrange “a condenação, a irremissibilidade, o sofrimento, a destruição, a maldade sinistra e a intolerabilidade” (SEIXO, 2002, p. 69). Tais aspectos fazem parte, principalmente, da vivência em um outro “inferno” que seria correlacionado ao hospitais psiquiátricos, situação que já seria apontada desde Os Cus de Judas: “o gigantesco, inacreditável absurdo da guerra, me fazia sentir na atmosfera irreal, flutuante e insólita, que encontrei mais tarde nos hospitais psiquiátricos, ilhas de desesperada miséria de que Lisboa se defendia cercando-as de muros e de grades” (ANTUNES, 2010, p. 53-54). 71 Dentro da nostalgia que envolve as lembranças do contexto colonial, sentimento que parece fazer parte da sociedade portuguesa, Rita Garcia destaca – no livro Luanda como ela era (1960-1975), publicado em 2016 – o ambiente da cidade, seus bairros, os costumes dos colonos habitantes de Luanda, memórias do período anterior à guerra que, segundo a autora, “mudou para sempre a vida em Angola. Enquanto no terreno se somavam vitórias e derrotas, a Província desenvolvia-se a um ritmo nunca visto. Luanda encheu-se de arranha-céus e, em 1967, viu nascer o edifício mais alto do império” (GARCIA, 2016, p. 39). 82 condensa o abismo tenebroso vivido pelo “eu narrador” encontra-se distanciado de Luanda em cada um dos “pontos cardeais” (ANTUNES, 2010, p. 161) do conflito que são demarcados pela voz narrativa. É válido salientar que, apesar da constante indicação espacial dos momentos da batalha distribuídos no solo angolano, o que, de fato, se sente é a desorientação do “eu” inserido em um sítio do qual não consegue vislumbrar a saída, eternamente à espera do fim, sendo constantemente assombrado nessa “alucinante guerra de fantasmas” (ANTUNES, 2010, p. 43). Nesse ambiente de espectros, até mesmo, o percurso geográfico desenvolvido na trama sugere, simbolicamente, esse caminhar para as trevas, uma vez que, no entendimento de algumas crenças, chega-se “perto dos espíritos dos infernos quando se caminha do Oeste para o Leste, ou seja, no sentido inverso ao do percurso solar, que simboliza, ao contrário, o movimento vital progressivo” (CHEVALIER & GHEERBRANDT, 1989, p. 506). Tal compreensão, ironicamente, aclara a trajetória seguida pelas tropas no leste angolano, localização onde se concentram as situações vividas pelo “eu” e seu batalhão no desenvolvimento do confronto. Assim, quanto mais se avança pelas “Terras do Fim do Mundo”, mais se observa o declínio do sujeito, seu isolamento em um território marcado pela devastação, rodeado por destroços que ajudam a formatar a visão de um universo em ruínas. Nessa atmosfera, não há vida, apenas a lembrança desta, já que tudo está regido pela imagística do fim, a qual preenche a jornada no inferno que o ex-combatente apresenta: O Chiúme 72 era o último dos cus de Judas do Leste, o mais distante da sede do batalhão e o mais isolado e miserável: os soldados dormiam em tendas cônicas na areia, partilhando com os ratos a penumbra nauseabunda que a lona segregava como um fruto podre, os sargentos apinhavam-se na casa em ruína de um antigo comércio (ANTUNES, 2010, p. 70, grifos nossos). Contudo, esse espaço deteriorado, aos olhos do narrador, não se restringe ao solo africano, de forma que a ex-metrópole também passa a ser compreendida a partir de uma perspectiva soturna, em que se recolhem os restos do processo colonial e salta a repulsa com o estado de inércia vivenciado em Portugal. Nesse sentido, a imagística do fim vem à tona, seja na compreensão de um contexto imperial que terminou, deixando no presente uma “longa tradição de melancolia épica” (LOURENÇO, 2001, p. 10), 72 Cidade e comuna angolana que se localiza na província de Moxico, um dos “pontos cardeais” da guerra relatada pelo “eu narrador”. 83 produto de uma nostalgia perene; seja na constatação de que os resultados ignóbeis da atividade bélica cruzaram o Atlântico, fazendo também da terra natal do ex-combatente um mundo em decomposição, em que os excrementos são usados para definir a situação da pátria – “Merda de país de merda” (ANTUNES, 2010, p. 88). Nessa lógica residual, a dinâmica escatológica, por tudo que já foi comentado, sobressai mais uma vez, correlacionando-se, em primeiro plano, com a sensação de arremate provocada pela atmosfera belicista, algo que foi instaurado tanto pelo perecimento de muitas vidas em batalha quanto pelo fechamento da fase expansionista da história portuguesa. Por essa visão, a Guerra Colonial caracteriza-se como um evento antinostálgico, o qual põe termo ao sonho nacional, contribuindo com a desmistificação da grande pátria lusa por simbolizar a impossibilidade de restituição do império. Por sua vez, é necessário ressaltar que ainda permanece um sopro nostálgico dos momentos anteriores a esse fatídico episódio da narrativa nacional na sociedade lusitana, saudosismo que assoma de forma melancólica, projetando um passado evocado que, ao mesmo tempo, se faz ausente, pois não é possível ignorar os infortúnios decorridos posteriormente. Com efeito, a intensidade desse pretérito na conjuntura de um “povo-saudade”, para fazer uso das considerações de Eduardo Lourenço (2001, p. 58), não se restringe a esse olhar para o ontem, “constituindo antes uma espécie de eterno presente, por vezes tão excessivo que obscurece a nossa atualidade de povo do século XX, retornado desde a revolução dos cravos às suas fronteiras europeias exíguas” (LOURENÇO, 2001, p. 58). Já, em um segundo plano, a escatologia é sublinhada pela conversão da capital lisboeta a um universo no qual proliferam os detritos, os vestígios de um mundo do qual a vida foi ceifada. A “gasta e humilde cidade” (ANTUNES, 2010, p. 157) do narrador é percebida a partir do contraste existente entre o progresso sugerido pelas inúmeras construções observadas pela voz narrativa de seu apartamento – “moro numa Pompeia de prédios em construção, de paredes, de vigas, de escombros que crescem, de guindastes abandonados, de montes de areia, e de máquinas de cimento redondas como estômagos ferrugentos” (ANTUNES, 2010, p. 179) – e a ausência talvez de uma prosperidade esperada a partir dessas inovações. Tal leitura é justificada perante o revestimento metafórico que Lisboa recebe como uma “Pompeia de escombros”, uma cidade de cinza, de concreto, um espaço que, à lembrança da urbe romana, parece ter sido também soterrada: 84 Vivo num mundo morto, sem cheiros, de poeira e de pedra, onde o enfermeiro da policlínica do primeiro andar passeia, de bata, a barba surpreendida de fauno, buscando ao seu redor, em vão, relvas fofas de margem. Vivo num mundo de poeira, de pedra e de lixo, principalmente de lixo, lixo das obras, lixo das barracas clandestinas, lixo de papéis que virevolteiam e se perseguem, ao longo dos tapumes, sarjetas fora, soprados por um hálito que não há, lixo de ciganos vestidos de preto, instalados nos desníveis da terra, numa espera imemorial de apóstolos sabidos (ANTUNES, 2010, p. 180). Logo, seja no ambiente citadino de Lisboa, seja nos confins das “Terras do Fim do Mundo”, a sensação que, de algum modo, justifica as situações apresentadas tanto em um espaço como no outro se condensa em uma experimentação do fim. Isto é, o olhar agônico do narrador recolhe imagens que sentenciam a decadência do sujeito, do lugar onde se encontra e, de maneira geral, do corpo social no qual aquele se acha inserido. Uma visão última das coisas não abandona o ex-combatente, indivíduo que declinou, junto com seu povo, em um inferno na terra, o qual muito bem simbolizou a guerra em África, em que esse tártaro moderno surge como um “lugar das metamorfoses” (CHEVALIER & GHEERBRANDT, 1989, p. 505), provocando intensas transformações no “eu narrador”, aspecto que se caracteriza como uma constante altamente evocada neste estudo. Enfim, o título do romance ajusta-se a essa realidade extremada, servindo para designar um espaço de dejeção onde centenas de pessoas foram despejadas para lutar em uma guerra da qual não se contabilizaram, verdadeiramente, vencedores. Nesse território, sucedeu um acontecimento que se deseja esquecido por representar o que poderia ser considerado como um episódio humilhante da história portuguesa. Assim, o conflito colonial associa-se à imagem vexatória de que se falou anteriormente, produzindo, quando muito, os dejetos que as autoridades esperam ver escondidos. É possível afirmar que tais “excrementos sociais” assumem várias formas no texto em foco, pois ou correspondem aos mortos em batalha, ou aos soldados mutilados, indivíduos que regressaram à pátria sem qualquer glória, ou ainda, aos milhares de colonos excretados de uma extensão de Portugal que não mais existe. Em suma, essa interpretação alinha-se ao que motivou as análises sobre a denominação da prosa em questão, pois, longe de um cenário de ancestralidade, de origem da nação e, por essa linha, de sua deferência, “o ‘cu’ de judas onde ele [o narrador] se encontra é o lugar que representa, não o nascimento e a fertilidade, mas os dejetos, o que o corpo recusa. O ‘cu’ é o orifício da expulsão, prova da sua mortalidade e da sua existência agônica” 85 (CARDOSO, 2011, p. 112). Enquanto as epopeias clássicas (exemplificadas nesta tese) manifestavam, desde o título, a valorização da lenda nacional – seja pela referência aos predecessores de um dado povo, seja pela ligação com o próprio espaço que ambienta a história contada –, o romance em destaque apresenta uma nomeação axiologicamente repleta de uma simbologia negativa. Esta foi evidenciada por meio da composição de uma imagística do fim, edificada tanto pela remissão a um declive em direção ao inferno bélico no leste angolano quanto pela dimensão escatológica que simboliza a trajetória de um indivíduo que conseguiu sair das trevas da guerra, porém é tratado, no presente, apenas como um excremento, um resíduo oriundo dessa realidade agônica. Concernente com um período de profundas transformações na história portuguesa, a narrativa de Lobo Antunes provoca a releitura de certos valores e propaga o desmantelamento da épica de nação lusitana. Nesse ínterim, o mundo que, como visto até o momento, deixou de ser explicado, regido por uma ordem capaz de justificar e salvaguardar um todo harmônico, é marcado por elementos incongruentes que tornam a realidade observada algo complexo e instável. Por essa razão, a própria configuração formal do romance reforça a atitude característica desse cenário em que se abalam os arranjos considerados fixos, sobrelevando-se uma ruptura que faz parte das “adaptações estéticas capazes de incorporar o estado de fluxo e insegurança dentro da própria estrutura da obra” (ROSENFELD, 1996, p. 86). As certezas outrora cultivadas dissolvem-se e a ação desmobilizadora atinge outros aspectos que também surgem desordenados na narrativa, a exemplo da configuração de uma personagem amorfa, da experiência temporal fragmentada e de um multifacetado universo linguístico explorado no texto. Tais elementos adquirem uma outra versão, distante, por assim dizer, de uma concepção mais tradicional, todavia relacionada à contextura dessa épica desfeita que o romance representa. 3.1.1. O perfil insólito de uma personagem: a “cara amiga” do “eu narrador” Apartada das questões discutidas até o momento, porém fazendo parte da complexidade característica do romance aludido, encontra-se a forma como a personagem é configurada na trama. O “ser fictício” 73 apresenta uma elaboração singular no texto antuniano, afirmação cuja veracidade sustenta-se quando se constrói 73 Expressão elaborada por Candido (1976, p. 55) para se referir à personagem ficcional, sendo reiteradamente empregada nesta tese, será apresentada a partir deste momento sem a utilização das aspas. 86 um paralelo com a forma como essa categoria narrativa é percebida, por exemplo, em outros momentos da própria arte novelística. De início, é válido salientar que a personagem “só adquire pleno significado no contexto” (CANDIDO, 1976, p. 54-55), sendo assim, a forma particular que ela assume no texto literário conecta-se com a estrutura peculiar com a qual a prosa é urdida, de maneira que os tipos de sujeitos que se movem na narrativa em estudo condizem com o ambiente intrigante projetado na atmosfera de Os Cus de Judas. Nesse sentido, seria patente que o modelo de personagem presente, por exemplo, na manifestação orgânica da literatura e sua natureza harmoniosa, formada “por gêneros constituídos, com personagens fixados e definidos” (BAKHTIN, 1993, p. 398) fosse profundamente distante daquele proposto na narrativa de Lobo Antunes. Nesta rompe-se com uma configuração una, ou seja, com uma definição que ignora qualquer tipo de mudança, já que estaria pré-definida com traços monossignificativos, algo típico de um universo no qual se conhece “uma só e única concepção de mundo inteiramente acabada, igualmente obrigatória e indiscutível para os personagens, para o autor e para os ouvintes” (BAKHTIN, 1993, p. 423). Primeiramente, seguindo ainda as considerações de Bakhtin, a demolição do distanciamento imposto no mundo épico fez com que a imagem do homem fosse deslocada de um plano inacessível para uma zona de contato familiar ligada às modulações do presente e mesmo do futuro. Isto é, uma vez desmoronado o afastamento em relação ao passado longínquo, ocorre uma “reestruturação radical da representação do homem no romance (e, portanto, em toda a literatura)” (BAKHTIN, 1993, p. 424). A reestruturação citada proporciona que as vozes presentes no romance usufruam de uma “iniciativa ideológica” (BAKHTIN, 1993, p. 423), a qual no texto antuniano possibilita que o “eu narrador” disponha de uma capacidade de avaliar os demais. Em outras palavras, no texto elencado, a configuração dos seres fictícios é perpassada pela valoração que a voz narrativa atribui a si mesma, em seu percurso traumático, bem como às outras personagens, como parte da atividade crítica que o narrador realiza sobre o cenário no qual está inserido. Apenas esse aspecto já seria suficiente para desfazer qualquer concepção que percebesse a personagem a partir de uma perspectiva conclusiva, fixa e integral, dado que a capacidade de abranger o outro, de conhecer todas as suas nuances não é passível de ocorrer frente a um sujeito que também não se apresenta de modo integral. 87 A personagem possui “um interior, uma subjetividade, em tensão com seu exterior; não se pode descrever de fora o modo como ele se percebe” (MORSON e EMERSON, 2008, p. 441). Por esse motivo, o que o “eu narrador”, por exemplo, tem acesso sobre os demais seres fictícios na narrativa em estudo é apenas uma parcela do que compõe cada indivíduo (em uma dada situação, nem essa fração de conhecimento é facultada à voz narrativa). A noção construída sobre cada um é, nessa lógica, sempre incompleta, pois “o conhecimento dos seres é fragmentário” (CANDIDO, 1976, p. 56). Tal entendimento fez parte do que pode ser considerado o Zeitgeist da literatura na era moderna, em que a dimensão psíquica dos indivíduos tornou-se o foco da atenção de diversos escritores, desde Kafka, passando por Proust, até Joyce. A visão fragmentária dos sujeitos, elaborada no plano romanesco, ajusta-se às direções estabelecidas por cada escritor que procura conferir à personagem uma imagem, uma linha de coerência pautada, mesmo em face das mudanças do ser fictício na trama, pela determinação da natureza das atitudes assumidas por cada um no enredo. Essa “lógica da personagem” (CANDIDO, 1976, p. 58) tornou-se alvo de um processo, cada vez mais acentuado, de complicação do ser fictício. Dito de outra forma, a personagem vê-se construída a partir de uma dinâmica heterogênea que prima pela dificuldade, permitindo limitar a presença de um esquema pré-definido para tal criação, “de maneira a criar o máximo de complexidade, de variedade, com um mínimo de traços psíquicos, de atos e de ideias” (CANDIDO, 1976, p. 59). Por essa ótica, é possível entender o que foi afirmado antes quanto à singularidade da prosa de Lobo Antunes, já que tal autor parece ir além de uma dimensão segmentária para as personagens quando explora, no texto em análise, a possibilidade mesma de não se conhecer praticamente nada sobre um determinado ser fictício. A linha de coerência de uma personagem para a qual só há enigmas e nenhuma resposta faz parte, assim, do rol de rupturas constantes na trama em foco quando o olhar se volta para a ouvinte do ex-combatente, objeto das reflexões construídas a partir deste momento. Ao contrário do narrador que exibe uma profusão de informações sobre si, a figura receptora do dito é marcada por um anonimato, de modo que a voz narrativa não transmite nenhuma informação mais consistente sobre aquela mulher. Ao contrário do que seria comum nos romances do século XIX, por exemplo, em que as personagens eram acessíveis ao narrador que as enfocava “logo de dentro, logo de fora, conhecia- lhes o futuro e o passado empíricos, biográficos, situava-as num ambiente de cujo plano de fundo se destacavam com nitidez” (ROSENFELD, 1996, p. 91), a mulher com a qual 88 o “eu” encontra-se no bar não apresenta essa configuração. Na verdade, o “eu narrador” vê-se impossibilitado de desvendar a psicologia individual desse ser fictício, condicionando-se a uma posição de quem fica à margem desse conhecimento. Partilhando dessa mesma conjuntura, acha-se, por consequência, também o leitor que não tem acesso a informações mais detalhadas sobre a paciente ouvinte em questão, de modo que, à maneira do ex-combatente em sua tentativa de se aproximar desse outro misterioso, permanece excluído desse universo mais íntimo no qual se situa o perfil dessa espectadora sui generis. Nesse panorama, resta apenas ao leitor ficar à cata de qualquer traço que possa servir para atribuir alguma lógica à personagem destinatária da confissão do “eu”, uma investida que demonstra cada vez mais a improbabilidade de algum resultado satisfatório. A incapacidade para aperceber a natureza do modo de ser da mulher com quem o “eu” partilha a noite infindável decorre do fato de que aquela personagem parece compor, quando muito, um projeto inacabado, um “vir a ser” que surge esvaziado de qualquer orientação sobre sua identidade. Figurando sem nome, a mulher em questão surge restrita, ainda, ao tempo paralisante da espera que caracteriza o período no qual são ouvidas as considerações da voz narrativa. Assim, a figura feminina em destaque converte-se em um enigma para o qual o narrador não dispõe da “chave” necessária para solucionar o mistério: “por dentro da sua cabeça giram pensamentos indecifráveis de que me sinto expulso, condenado a permanecer, de pé e à espera, no capacho da entrada dos seus soslaios irónicos, à maneira, sabe como é, de uma lata de conservas de que se não tem a chave” (ANTUNES, 2010, p. 84). Se na trajetória do gênero romanesco vários escritores desconsideraram uma apresentação precisa dos aspectos que compunham o ser fictício e “tentaram, justamente, conferir às suas personagens uma natureza aberta, sem limites” (CANDIDO, 1976, p. 60, grifo no original), na prosa em evidência, a natureza da acompanhante ocasional do narrador manifesta a impressão de que, para além de um espaço ilimitado, aquela seria profundamente impenetrável. Não vem a ser perceptível uma lógica de composição que permita ao leitor identificar muitos caracteres da personagem em destaque, mesmo quando se busca observar apenas a exterioridade dessa mulher e, com essa visão, elaborar algum delineamento para essa figura, salta a obliquidade dos traços que os “soslaios irónicos” e o “perfil sarcástico desprovido de amor” (ANTUNES, 2010, p. 175) ajudam a insuflar. 89 De igual forma, a aparência dessa acompanhante silenciosa é apresentada de modo bastante entrecortado, focalizando, muitas vezes, o fragmento em detrimento do todo. Isso se dá talvez pela dificuldade inicial de, ante a penumbra do bar, enxergar com nitidez o corpo do qual o narrador se acerca, o que ele avista da destinatária são “suas mãos paradas no copo, [...] seus olhos de pescada de vidro boiando algures na minha calva ou no meu umbigo” (ANTUNES, 2010, p. 13). Em raras circunstâncias, é possível recuperar alguns traços da acompanhante do protagonista que ajudam a compor o intrincado quebra-cabeça que caracteriza aquela personagem. Para exemplificar o que foi exposto, sublinha-se o entendimento de que o “eu” constrói com essa figura feminina uma proximidade devido à reflexão de que o tempo já havia, de alguma forma, penalizado os dois. Essa leitura é realizada a partir da focalização de alguns aspectos fragmentários da aparência dessa mulher enigmática, quer seja pelo olhar lançado sobre os seus dedos “que principiam a envelhecer sob os anéis” (ANTUNES, 2010, p. 140); quer seja pela reflexão do ex-alferes de que “será sempre tarde para nós, o excesso de lucidez impede-nos os estúpidos e calorosos impulsos da paixão, o meu cabelo ralo e os seus pés-de-galinha, impossíveis de disfarçar sob a delicadeza do sorriso, defendem- nos do entusiasmo de estar vivos” (ANTUNES, 2010, p. 140, grifos nossos). A linha de contiguidade tecida pelo ex-combatente em relação à sua ouvinte é elaborada por meio de elementos que indicam o suposto estágio de vida da personagem feminina, porém ela continua sendo um enigma, pois muitas peças do quebra-cabeça referido permanecem sem ser aclaradas no romance. Visceralmente distante da representação do homem, por exemplo, nos gêneros criados à época da Antiguidade Clássica e da Idade Média, em que aquele é integralmente exteriorizado e “está todo ali, do começo ao fim, ele coincide consigo próprio e é igual a si mesmo” (BAKHTIN, 1993, p. 423), o que se verifica sobre a prosa em análise é que, assim como não há uma leitura sobre o percurso de vida dessa ouvinte anônima, não há uma visão mais completa de sua fisionomia. Todas as facetas de tal desconhecida mulher volvem-se em uma ambiguidade desmedida e, definitivamente, ela não “está toda ali”. Na verdade, a falta de esclarecimentos sobre tal personagem poderia fomentar, à primeira vista, o questionamento se ela realmente estaria ao lado do narrador em sua rememoração ou seria, quando muito, um produto de um devaneio alcóolico. De toda forma, os elementos que fazem parte dessa apresentação superficial da personagem ouvinte realçam não só uma falta de conhecimento sobre essa pessoa, 90 devido à vagueza das informações expostas, mas também incitam a apreensão de um ser fictício que, naquele contexto, parece não ter vida. A interpretação justifica-se por dois motivos essencialmente. Em primeiro lugar, a aparência da mulher em relevo compreende um corpo sem expressão que a sua postura estagnada ajuda a fomentar. Desse modo, o “perfil nu e imóvel de defunta” (ANTUNES, 2010, p. 160) com o qual o narrador descreve a sua parceira sexual confere a esta uma imagem espectral. Tal aparição seria condizente com uma figura que se move como uma sombra a acompanhar o “eu narrador” noite adentro, sem que seja possível esperar desse vulto enigmático qualquer ato mais expressivo: “eu penso que a minha mão, a afagar insistentemente a sua mão imóvel, não conseguirá mais que uma rápida noite sem ternura” (ANTUNES, 2010, p. 72). Em segundo lugar, a falta de substância com a qual essa personagem feminina é vista no romance contribui para que se observe o referido apagamento da vitalidade, já que não há em sua atitude uma demonstração mais convincente de qualquer desejo sentido, uma avidez que salte vigorosamente em algum de seus gestos. Mesmo no campo sexual, ao que parece, as reações da parceira casual do narrador servem apenas como um mote para a expressão da expectativa do ex-alferes- médico quanto a uma possível avaliação do desempenho deste – “Queria falar-lhe de Malanje, agora que me portei mais ou menos, não é verdade, você gemeu mesmo, uma ou duas vezes, latidos de cadelinha contente” (ANTUNES, 2010, p. 180). Analisando por outra perspectiva, até mesmo a lembrança da personagem Sofia, por exemplo, que interrompe o depoimento endereçado à destinatária até o momento, possui maior consistência do que a figura feminina que se move no presente. A imagem de Sofia com sua “gargalhada de prisioneira livre” (ANTUNES, 2010, p. 150) provoca em sua ausência, causada pela violência do sistema colonial, a sensação de que, paradoxalmente, aquela continua viva ao lado do indivíduo solitário que seria o narrador ao contrário da figura esmaecida que caracteriza a mulher desconhecida do bar. Neste momento, torna-se relevante destacar que, junto dessa espécie de anulação de uma força vital da personagem ouvinte, advém o apagamento de uma capacidade dialógica, a qual, por exemplo, o “eu narrador” possui. A interpretação elaborada sustenta-se no entendimento de que não é possível captar em relação à figura feminina destacada qualquer posição mais veemente dela sobre si e sobre o mundo. Em outras palavras, a interação que o ex-combatente constrói com os demais discursos que fizeram e fazem parte de sua trajetória de vida é, substancialmente, mais dialógica do que a 91 ligação que ele tece com a mulher não identificada que encontrou no bar. Nessa medida, é possível asseverar que o ser fictício, destinatário do relato do ex-alferes, seria o inverso da personagem na obra de Dostoiévski, observada por Bakhtin (1997), visto que a “personagem interessa a Dostoiévski enquanto ponto de vista específico sobre o mundo e sobre si mesma, enquanto posição racional e valorativa do homem em relação a si mesmo e à realidade circundante” (BAKHTIN, 1997, p. 46, grifos no original). Em contrapartida, no cenário antuniano, não se torna audível “o que o mundo é para a personagem e o que ela é para si mesma” (BAKHTIN, 1997, p. 46) no tocante à figura peculiar da “cara amiga” (ANTUNES, 2010, p. 129) do ex-militar. Em síntese, a anulação da voz da figura feminina em relevo traduz-se, assim, como uma impossibilidade de perceber qual seria, de forma mais consistente, a ideia que essa mulher fazia, por exemplo, das questões apontadas pelo narrador, algo que o leitor não tem acesso, pois, para fazer uso novamente da leitura de Bakhtin sobre a personagem de Dostoiévski, a “vida autêntica do indivíduo só é acessível a um enfoque dialógico, diante do qual ele responde por si mesmo e se revela livremente” (1997, p. 59, grifo no original). Se a personagem compreende o que “há de mais vivo no romance” (CANDIDO, 1976, p. 54), a ausência de qualquer ação mais efetiva dela na trama parece anular a presença da mulher anônima do bar, principalmente, devido ao fato de que a atenção se volta para o dito do narrador que “guia” tal espectadora noite adentro. No entanto, em dados momentos, é possível pressupor a interferência dessa destinatária no relato quando ela se põe a conduzir as respostas dadas pelo “eu” em suas confissões, por exemplo, no início do quarto capítulo, no qual se sugere um questionamento anterior da acompanhante ao narrador, uma possível indagação que ele responde da seguinte forma: “Não, não me dói nada, talvez um pouco a cabeça, uma insignificância, uma impressão, uma tontura” (ANTUNES, 2010, p. 33). Tal situação é perceptível, ainda, quando a opinião da ouvinte se faz presumível perante o estado do apartamento do ex-alferes- médico, lugar onde o encontro acidental entre esses dois sujeitos se finda: “Um pouco nu, o andar? Tem razão, faltam-lhe quadros, livros, bibelots, cadeiras, a sábia desordem de revistas e papéis, de roupa ao acaso sobre a cama, de cinza no chão, em suma, que nos asseguram continuarmos a existir” (ANTUNES, 2010, p. 127). Embora a atuação da personagem feminina esteja presente no desenvolvimento da narração, não é possível descartar o efeito decorrente do fato de que essa atividade só ocorre de forma latente, situação que não acontece com boa parte dos demais seres 92 fictícios que fazem parte do romance. Mesmo que a participação “mais atuante” da destinatária em foco ocorra a partir de algumas inferências observadas no texto, isso não é suficiente para reverter o quadro exposto anteriormente com relação à impossibilidade de perceber, a partir dela, alguma valoração mais consistente sobre o contexto apresentado no romance. A negação de voz à mulher que divide com o “eu” o momento da enunciação instiga o interesse do leitor quando se observa que a outros indivíduos, mesmo sob o crivo do narrador, é facultada a possibilidade de expressão, a exemplo da aeromoça que demonstra a sua inquietação ante a angústia do amante – “O que é que não vai bem, Olhos Azuis?” (ANTUNES, 2010, p. 100). Por sua vez, a sentença proferida pelo tenente, “– Sopeira em que o patrão não se ponha nunca chega a criar amor à casa” (ANTUNES, 2010, p. 43), compreende um exemplo que pode ser citado para demonstrar que, apesar de figurarem a partir do exame do “eu narrador”, algumas personagens na narrativa interagem com o ex-combatente, apresentando alguma leitura sobre o mundo. Em outras palavras, a partir do olhar irônico do “eu” sobre o que fora transmitido por aquele oficial como um conselho, uma espécie de adágio, o “produto sintético das meditações de uma vida” (ANTUNES, 2010, p. 43), salta um ponto de vista com o qual o sujeito que narra essa situação dialoga 74 . A apropriação da voz feminina, no caso da “cara amiga” (ANTUNES, 2010, p. 26) do narrador, sugere que a posição de tal personagem é diferenciada na prosa, constituindo-se como um eco dos traumas contados pelo ex-combatente, uma instância de apoio que garantiria a confirmação de uma companhia efetiva durante a noite prolongada. Dessa maneira, a mulher em questão surge como uma espécie de repositório para as tensões do “eu narrador”, atenuando a solidão da qual ele não pode fugir e atendendo, assim, à carência, inclusive sexual, desse homem melancólico. Tal situação coloca a destinatária, como bem declara Maria Alzira Seixo em sua leitura sobre o romance em questão, “numa situação de mulher fácil, de declarado repouso do guerreiro ou de guerreira também à procura de seu repouso, para além do mais em falência e sem vitória” (SEIXO, 2002, p. 41). 74 A leitura construída sobre o romance em análise não apresenta a visão de que, no caso exemplificado, o tenente seria, potencialmente, próximo da concepção de personagem que fora apresentada por Bakhtin no estudo da obra de Dostoiévski, o que se justifica quando se observa que a personagem para este autor, segundo as considerações bakhtinianas, possuiria uma sensível autonomia, sendo capaz de focalizar “a si mesma de todos os pontos possíveis” (BAKHTIN, 1997, p. 48), tão importante, nesse sentido, quanto o narrador. Na verdade, a personagem tenente foi ilustrada, unicamente, como uma forma de demonstrar o grau de apagamento que a mulher misteriosa do bar possui enquanto um ser que se distancia de um enfoque dialógico. 93 A compreensão referida encontra respaldo, por exemplo, no paralelo estabelecido pela voz narrativa entre a sua companheira do bar e a lembrança das prostitutas de sua juventude, “decrépitas bonecas insufláveis, ancoradas nas manchas de esperma seco das colchas” (ANTUNES, 2010, p. 175). Contudo, não seria também uma relação comercial, se assim se pode dizer, que significaria o vínculo temporário que reúne fortuitamente o ex-médico da tropa portuguesa e uma completa desconhecida. Não há a estipulação de um preço por qualquer serviço prestado, pois, na verdade, mesmo a personagem feminina figurando à mercê da voz do narrador, este não se reveste da posição de cliente que possui a certeza da presença da acompanhante durante o tempo contratado. Com efeito, o “eu” apenas nutre a esperança de ser ouvido enquanto a noite dura, apelando para a sua capacidade de convencimento a fim de tentar desfrutar de qualquer experiência mais íntima com sua ouvinte, conseguindo talvez algum resultado na identificação que busca construir com essa mulher enigmática, em que os dois surgem reunidos na “melancólica tristeza de um destino comum” (ANTUNES, 2010, p. 138). A distinção alcançada pela personagem feminina em destaque sucede, até mesmo, pelo apagamento da imprevisibilidade das ações desse ser fictício, visto que, diante da ausência de maiores informações sobre tal figura, seria natural que fosse alimentada uma expectativa concernente à revelação de algum traço surpreendente sobre essa personagem no decorrer da narrativa. No entanto, durante todo o enredo, não há nenhuma alteração significativa na apresentação feita pelo narrador dessa mulher que personifica o mistério, a dúvida. Frente a essa situação, o leitor tenta, inutilmente, recolher as características dessa personalidade desconhecida (da qual se ignora a motivação para assistir ao solilóquio do “eu narrador”), buscando preencher os vazios de uma existência que permanece inextricável. Essa atitude também é assumida pelo próprio narrador que lança uma série de conjecturas sobre a sua destinatária, o que constitui, porventura, o único recurso para que o ex-combatente possa aproximar-se dessa mulher enigmática diante da incapacidade que ele possui para construir e manter laços afetivos com outras pessoas: E você como faz? Imagino-a, sabe como é, num cenário a meio caminho entre a filosofia oriental e a esquerda ponderada e lúcida [...]. De chinelos, na cozinha, você prepara um café forte como um electrochoque que a projecte para fora do seu invólucro de sono na direcção do emprego, ao volante de um R4 creme, de traseira amachucada por um táxi colérico. Habitantes da mesma cidade, 94 passámos talvez anos e anos um pelo outro sem nos vermos, frequentámos os mesmos cinemas, lemos os mesmos jornais, assistimos ambos, pontualmente, aos episódios da telenovela, na mesma irritação interessada. Somos, se assim me posso exprimir, contemporâneos, e as nossas trajectórias paralelas vão finalmente encontrar-se em minha casa (ANTUNES, 2010, p. 95-96). A ocasionalidade do encontro reforça o nível de desconhecimento que cada um nutre um pelo outro, algo que o narrador trata de sanar, mas essa possibilidade não é admitida para a mulher que, emudecida, torna-se restrita ao nível da imaginação daquele que assume o relato. Desse modo, a personalidade dessa enigmática personagem surge associada a uma pessoa com hábitos comuns, em um ritual repetitivo, marcado temporalmente pelo café no início da manhã e pela ida ao trabalho. Ao mesmo tempo, são vislumbradas as posições ideológicas dessa coetânea do ex-alferes, as quais, distantes de qualquer tradicionalismo, estariam “num cenário a meio caminho entre a filosofia oriental e a esquerda ponderada e lúcida”. A fim de estabelecer algum tipo de contato mais duradouro com a secreta dama (já que a chegada da manhã sentenciaria o fim desse encontro) ou ao menos sentir a possibilidade de conectar-se com alguém depois de um longo período de isolamento, o “eu” elabora um rol de proximidades entre eles, aspecto citado em outro momento deste estudo. Tais semelhanças talvez não correspondessem, de fato, ao perfil dessa mulher nebulosa, porém servem de substância para a fantasia criada, a qual estimula a vontade que o “eu” confessa de enfim chegar a ver que duas “trajetórias paralelas vão finalmente encontrar-se”. As hipóteses criadas pelo narrador sobre a identidade da sua acompanhante só intensificam o desconhecimento já sentido, nesse caso, pelos leitores da prosa, tendo em vista que as pressuposições lançadas não são confirmadas no decorrer da trama, permanecendo-se, assim, na incerteza, a qual parece ser o traço característico dessa destinatária anônima. Por essa ausência de um acabamento no tocante à composição da personagem em foco, o romance explora o não saber por parte do leitor, aquilo que Bakhtin, ao se referir ao universo romanesco, denomina de “categorias da ignorância” (1993, p. 421). Dessa forma, ao invés de um mundo conhecido com sujeitos com uma trajetória definida, apresenta-se, no caso do texto literário de Lobo Antunes, uma situação circunstancial, uma noite qualquer na qual se reúnem duas pessoas, em que a visão sobre um delas é construída com base em suposições, constituindo-se como um mundo isolado, o qual impossibilita a aproximação. O obscurantismo que faz parte da 95 representação do sujeito feminino em questão é potencializado pela incapacidade de se vencer a barreira da ignorância citada anteriormente. O leitor, tal qual o “eu narrador”, mantém-se à espera de um esclarecimento que não chega, em troca, o mistério é aguçado, principalmente, pela reiterada presença das dubitativas na montagem do perfil imaginado dessa enigmática personagem: “Talvez que finalmente me falasse de si. Talvez que atrás da sua testa de Cranach exista, adormecida, uma ternura secreta pelos rinocerontes” (ANTUNES, 2010, p. 13). Para reforçar a postura indiferente que caracteriza a ouvinte dos dramas narrados pelo “eu”, este elabora uma relação com os retratos femininos do pintor alemão Lucas Cranach, um renascentista que apresentava em seu projeto artístico imagens de muitas mulheres, focalizando em várias telas o jogo de sedução e a perversidade feminina oculta sob uma beleza aparente. Na cena recortada do romance, é possível inferir a posição do narrador que, não conseguindo penetrar no interior dessa dama enigmática, permanece mais uma vez na superficialidade de alguém que se faz distante, impassível, para o qual a presença da suavidade, do enternecimento surge como algo “adormecido”. Sem uma consistência, uma substância, a mulher silenciosa do bar acaba figurando como um retrato textual, uma projeção de todo e qualquer ouvinte dos dramas do narrador, isto é, uma criatura do tecido verbal dessa obra literária. O não conhecimento do “outro” impõe uma certa distância, situação que o narrador tenta, a todo custo, resolver. Para tanto, o ex-combatente recorre, como visto, a um conjunto de hipóteses sobre a sua acompanhante do bar. No entanto, a incógnita persiste, fazendo parte da dinâmica do enredo, já que, longe de uma estrutura pautada pela linearidade, o que faz parte da prosa em questão corresponde a um universo em desarranjo, de forma que a complexidade dessa personagem feminina não seria algo destoante desse contexto peculiar que o romance engendra. Nesse ínterim, o “eu” associa vestígios de suas recordações amorosas à imagem retraída da sua destinatária, buscando, nesse intento, suavizar a solidão que se agrava com a chegada da manhã. Nessa aproximação, confunde-se a acompanhante do protagonista com Isabel, uma das figuras femininas rememoradas pelo narrador. Isso provoca uma situação desconexa que atinge a estrutura do enredo, devido à impossibilidade, em dados momentos, de se reconhecer a quem se refere a voz narrativa nessa combinação figurativa de personagens, das quais ou se conhece pouco ou nada se sabe, em que a sintaxe do texto realça a própria semântica: 96 talvez que a Isabel ou você voltem um dia destes a visitar-me, eu oiça a voz ao telefone, a voz miudamente precisa pelos furos de baquelite do telefone, o Olá dela e o seu Olá a entrarem-me na orelha na oleosidade agradável e morna dos pingos de tirar a cera da minha infância, a vá buscar ao emprego, esperando dentro do carro numa impaciência de cigarros, a corrigir o nó da gravata, em bicos de nádegas, no espelho, ela ou você se instale ao meu lado no automóvel às escuras, me sorria, se debruce para colocar o cassete da Maria Bethânia no gravador, e me passe ao redor da nuca os firmes cotovelos da ternura. Deixa-me beijar-te. Deixe-me beijá-la (ANTUNES, 2010, p. 186). Na ilusão de um futuro imaginado, a mulher com quem por pouco tempo o ex- combatente, de alguma forma, se relacionou em um bar da cidade lisboeta funciona como um gatilho para que outras experiências amorosas malfadadas desse indivíduo venham à tona. O “eco em sinopse de uma conjugalidade malograda”, para fazer uso das considerações de Seixo (2002, p. 50) sobre o romance em análise, que a experiência desse encontro noturno vivifica faz com que, por um lado, se renove a esperança do narrador, mesmo escassa, de que seja possível compartilhar a vida com outrem. Enquanto, por outro lado, tal circunstância possibilita a reverberação dos abandonos já sofridos, da dissolução do casamento, o que, ao mesmo tempo, intensifica a miserável amargura sentida pelo ex-médico de guerra no presente. Por essa leitura, ocorre uma oscilação entre as destinatárias dos sofrimentos vividos pelo “eu narrador”. A via hipotética deixa entrever, na duplicidade existente nessa ocasião – “ela ou você se instale ao meu lado no automóvel às escuras, me sorria, se debruce para colocar o cassete da Maria Bethânia no gravador, e me passe ao redor da nuca os firmes cotovelos da ternura” –, que não haveria a cobrança de uma especificidade no papel de companheira daquele “eu” melancólico. Em outras palavras, perante a realidade vivida e a descrença quanto à efetividade de um convívio amistoso, o narrador protagonista fantasia com qualquer probabilidade de parceira, o que importaria, nesse âmbito, seria o alcance dessa realização. A volubilidade característica dessa situação dá sentido, assim, à falta de ambição do narrador, pois, uma vez nutrido de uma consciência derrotada também em sua incapacidade de manter qualquer relação amorosa, deixa aberta a posição de uma futura consorte, o que é percebido no texto pela própria indeterminação desse papel. Isso acontece seja pela alternância de destinatária do protagonista da trama, pois ela se desloca da mulher com quem se encontra no bar para a imagem de Isabel – “Bater a porta da rua, percebe, como bati a porta de África de regresso a Lisboa, a porta 97 repugnante da guerra. [...] A porta de África, Isabel” (ANTUNES, 2010, p. 187); seja pela instabilidade mesma desse homem solitário que provoca, em sua narração, a dúvida sobre o objeto da elucubração edificada – “a vá buscar ao emprego, esperando dentro do carro numa impaciência de cigarros, a corrigir o nó da gravata, em bicos de nádegas, no espelho” (ANTUNES, 2010, p. 186). Ademais, a suposição construída não se firma apenas em um caráter de exclusão entre as figuras femininas apresentadas, já que, em certo momento, elas figuram de modo conjunto – “o Olá dela e o seu Olá a entrarem-me na orelha na oleosidade agradável e morna dos pingos de tirar a cera da minha infância” (ANTUNES, 2010, p. 186). Nessa aglutinação, as mulheres são entendidas como símbolos de um desejo manifesto do narrador que vai além de um apetite sexual, tratadas como o amparo necessário para que seja possível evadir-se de uma condição deplorável. Tais personagens femininas surgem ligadas, ainda, pela composição de um perfil nebuloso, marcado pela vagueza das informações, aspecto que é reiterado na trama quando o olhar se volta para alguns seres fictícios, a exemplo de Isabel e de Maria José, mencionadas, respectivamente, no penúltimo e no oitavo capítulos do romance. Esses sujeitos, vistos de relance, fazem parte dos vestígios de um passado que é evocado pelo “eu narrador”, compreendendo, mais do que seres fictícios com uma identidade e com um destino particular explicitado na trama, indícios, em uma escala quantitativa, do fracasso do ex- combatente no que diz respeito à ruína das relações nas quais ele se viu envolvido. Dessa forma, à maneira da inusitada personagem com a qual o “eu” se encontra no bar, as outras mulheres citadas antes são apresentadas de forma superficial no enredo, já que são resumidas a esteio de uma vivência solitária que se refugia no álcool e a partir dele é que expressa alguma emoção: “o vinho segue o seu curso e daqui a nada peço-lhe para casar comigo: é o costume. Quando estou muito só ou bebi em excesso, um ramalhete de flores de cera de projectos conjugais desata a crescer em mim à maneira do bolor nos armários fechados” (ANTUNES, 2010, p. 29). Os vãos “projetos conjugais” fomentam a presença de indivíduos semelhantes à “cara amiga” do narrador na prosa em foco. Isto é, o anseio de simular uma conversa, de fato, uma relação, mesmo que breve, suscita a presença de alguém que é visto de forma lacônica, porém com essa pessoa, contraditoriamente, divide-se toda uma trajetória de vida. Outrossim, a tolerância com as fraquezas do “eu” e uma singela solicitude ao fim dessa noite interminável – “Eu? Fico ainda mais um bocado por aqui. Vou despejar os cinzeiros, lavar os copos, dar um arranjo à sala, olhar o rio” (ANTUNES, 2010, p. 98 196) – abrandam a debilidade desse homem melancólico. Entretanto, aquela acompanhante não deixa de figurar como uma desconhecida, da qual talvez não sobressaia, após a chegada da manhã, nenhuma lembrança, permanecendo remissivamente ligada a tantos outros encontros ocasionais que devem ter feito parte da existência do “eu narrador”. Assim, a posição assumida pela paciente personagem aqui analisada é o que possibilita a sensação tão almejada pelo “eu” de, enfim, ser ouvido, em uma comunhão momentânea, mas que atende, ao menos naquele instante, às necessidades do indivíduo que narra sua traumática experiência. Por último, é válido salientar que a imprecisão despertada pela personagem feminina em evidência torna-se coerente com uma narrativa plena de questionamentos. Em um texto no qual a ruptura compreende, ao que parece, a diretriz máxima a ser seguida, o ser fictício em questão foge de uma espécie de personagem mais facilmente delimitada para que a sua verdade dependa, acima de tudo, “da economia do livro, da sua situação em face dos demais elementos que o constituem: outras personagens, ambiente, duração temporal, ideias” (CANDIDO, 1976, p. 75). Em outras palavras, a forma como a destinatária do “eu” é construída na prosa faz parte da dinâmica sinuosa que a narrativa em análise engendra, como um traço que se alia aos demais para ampliar a obscuridade de uma estrutura já complexa, em que o processo memorial que move a trama por si só já indica a instabilidade que caracteriza esse relato. Destarte, uma vez que se entenda que “na arte, o significado é absolutamente inseparável de todos os detalhes do corpo material que a encarna” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 54), é possível atribuir algum sentido a uma personagem profundamente enigmática que possui a ardilosa tarefa de participar, mesmo como ouvinte, da caótica revivescência do passado desenvolvida pelo “eu”. A mulher anônima do bar, de certa forma, antecipa o trabalho a ser feito pelo leitor, caracterizando-se como o outro do texto à medida que naquela figura, de algum modo, o leitor vê-se representado e reconhece-se ao tentar estabelecer qualquer nexo aos rodeios que o trânsito temporal posto em curso pelo narrador apresenta. Longe da estruturação de um romance mais convencional, a presença de um passado revisto aos olhos do presente impõe um desafio à representação do tempo na forma romanesca e, nessa circunstância, as coordenadas temporais são submetidas também a uma sensível transformação. Nessa natureza inconclusa, os seres vagueiam sem uma orientação muito bem definida, conforme constata a própria personagem misteriosa do bar: “O quê? A guerra de África? Tem razão, divago, divago como um velho no jardim perdido no esquisito 99 labirinto do passado a mastigar recordações no meio de bustos e de pombos” (ANTUNES, 2010, p. 96). Assim, tanto a ausência, na acompanhante do “eu”, de traços nítidos e claros que impedem a contemplação de um perfil integralmente constituído quanto a observação do movimento temporal que não se qualifica como um todo coerente contribuem com as vicissitudes que fazem parte do romance antuniano em relevo. “Há, portanto, plena interdependência entre a dissolução da cronologia, da motivação causal, do enredo e da personalidade” (ROSENFELD, 1996, p. 85). A ordem fragilmente imposta à realidade, observada pelo “eu narrador”, decai e só resta aos leitores do texto literário em questão divagar, vagando pelo espaço, pelas personalidades indecifráveis e, neste momento da análise, pelo tempo. 3.1.2. O fluxo desestruturante do movimento temporal na narrativa antuniana O enfoque dado à experiência de vida relatada pelo ex-médico das tropas portuguesas está completamente interligado à leitura do tempo como um elemento significador da trajetória do sujeito narrador, já que tal percurso se efetiva no e pelo tempo. Desde o início, estabelece-se, assim, a relevância da leitura referida, principalmente, quando se observa a partir de Os Cus de Judas aquilo que Eunice Cabral afirma sobre os romances de António Lobo Antunes, de um modo mais geral 75 , os quais se realizam como “textos literários sobre o tempo” (CABRAL, 2009, p. 275). Este não é considerado restrito, na escrita desse literato, a um caráter objetivo, ou seja, à apresentação de um tempo marcado pela continuidade das ações que se sucedem cronologicamente. Ao invés disso, focaliza-se, no trânsito complexo que se edifica entre vários momentos nas prosas, a “evocação do passado a partir de um presente de malogro” (SEIXO, 2002, p. 440). Tal entendimento, no interior do segundo romance daquele escritor, corresponde a uma dinâmica temporal que se conecta à experiência subjetiva do narrador, o qual conta o que fora vivido por ele a partir do hoje no qual se encontra inserido. Como resultado desse movimento, sobrevém um tempo axiológico, pleno de valores, que foge às prerrogativas naturais do mundo físico, se assim de pode dizer, quanto à compreensão do tempo. 75 O trabalho realizado por Eunice Cabral concentrou-se na observação de doze romances de Lobo Antunes publicados entre os anos de 1979 e 2000, a começar com Memória de Elefante e finalizando com Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura (2000). 100 “Nunca estamos onde estamos” (ANTUNES, 2010, p. 120), afirma o “eu narrador” e nessa constatação notabiliza-se a sistemática que determina o fluxo temporal sentido no texto literário em foco. Da vivência no momento da enunciação, avulta uma série de acontecimentos que são julgados ao sabor da época em que se vive, período no qual o indivíduo continua existindo, sujeito à mudança que a passagem do tempo por si só imprime. Além da remissão feita, de alguma forma, à filosofia de Heráclito – no tocante ao exemplo construído sobre entrar e não entrar no mesmo rio pela segunda vez, estar e não estar, ao mesmo tempo, em um devido espaço –, o que se percebe é que o olhar sobre o passado invade o presente, de modo que “estar” no presente, nesse caso, também é “estar” no pretérito em certa medida. Por esse motivo, a maneira de expressar essa confluência de tempos no tecido narrativo não poderia deixar de ocorrer de uma forma diferenciada. O exposto se justifica, por exemplo, quando se tem em vista que se o “discurso sobre um morto, por seu estilo, difere profundamente do discurso sobre um vivo” (BAKHTIN, 1993, p. 412), torna-se ainda mais distinto um tipo de discurso que evoca um momento de outrora, deslocando-o para uma zona de contato e, nesse ato, o que se daria por encerrado se faz vívido novamente. Em outras palavras, o passado não compreende um tempo concluso, sendo intensamente manifesto pelas sensações do sujeito que o rememora. Nesse sentido, a urdidura temporal não se caracteriza pela atitude de documentar as situações ocorridas no âmbito da Guerra Colonial, perfazendo uma tentativa de se aproximar da realidade empírica de uma forma mais objetiva. No interior do universo memorial que o romance em questão possui, a realidade passa a ser vista a partir de uma nova orientação, a qual, segundo as considerações de Rosenfeld 76 , comporia uma característica dos romances do século XX no que se refere à negação do realismo. Isto é, tais obras começaram a desviar-se do interesse de reproduzir mimeticamente a realidade quando ela seria “apreendida pelos nossos sentidos” (ROSENFELD, 1996, p. 76). Destarte, a desorientação temporal advinda desse processo é sentida na prosa em estudo diante de um cenário no qual o que fora vivido vem à tona a partir das abstrações do narrador, do modo como este não se propõe a apresentar um 76 A mudança de orientação motivou o entendimento sobre o fenômeno da “desrealização”, termo que foi apresentado por Anatol Rosenfeld como uma segunda hipótese dentro das reflexões sobre a arte moderna. Dessa forma, a partir do seio da pintura, chegou-se a compreensão de que esta “deixou de ser mimética, recusando a função de reproduzir ou copiar a realidade empírica, sensível” (1996, p. 76). Segundo Rosenfeld, essa questão também poderia ser considerada na esfera das artes literárias modernas. 101 registro fiel do ontem e, sim, externar os efeitos dessas lembranças que afloram de forma iminente no texto: O passado, sabe como é, vinha-me à memória como um almoço por digerir nos chega em refluxos azedos à garganta, o tio Elói a dar corda aos relógios de parede, o mar feroz da Praia das Maçãs no outono esmurrando a muralha, os grossos dedos subitamente delicados do caseiro inventando uma flor. Pulara sem transição da comunhão solene à guerra (ANTUNES, 2010, p. 117-118, grifos nossos). A remissão ao pretérito não se constitui como uma atividade prazerosa para o protagonista, fazendo parte de uma ação desafiadora, algo a ser digerido que envolve o “eu” em um conjunto de imagens desordenadas, um mosaico confuso que caracteriza a trajetória de vida do ex-combatente. Esse percurso é percebido a partir da leitura de dois eixos temporais que são vistos de forma concomitante na narrativa. De um lado, há o tempo da história no qual o curso da vida do ex-médico das tropas portuguesas é explorado. Nesse eixo, sobrevêm não só as situações vivenciadas na guerra, mas também o período mais tenro dessa existência traumática, indicado, na passagem recortada, pelo revestimento temporal que o espaço citado apresenta pela alusão, por exemplo, ao “mar feroz da Praia das Maçãs no outono”. Do outro lado, há o tempo da narração que transcorre durante uma noite comum na qual o “eu narrador” se dirige à sua acompanhante anônima (presença marcada várias vezes no texto por meio de fórmulas que ativam a comunicação pressuposta entre o par citado, a exemplo de “sabe como é”, “percebe” e “escute”) para contar o que lhe havia acontecido e o que fazia parte da sua rotina em uma fase mais recente de sua vida. Tais eixos, sublinhados de modo apartado neste momento, fazem parte, simultaneamente, de um relato que, para fazer uso das considerações de Seixo sobre a obra em questão, “é híbrido na formulação, na organização diegética, na significação, nas questões que coloca” (2002, p. 55). No que se refere ao hibridismo da organização diegética, é possível afirmar que ele potencializa o desarranjo que ocorre entre a trama e a fábula no romance ou, para permanecer na terminologia empregada por Genette, entre a diegese e a narração. A afirmação é justificada pela ruptura existente na ordem de apresentação dos acontecimentos na obra em análise, de forma que o cruzamento contínuo entre planos temporais evidenciados no texto impossibilita que haja qualquer coincidência entre a sequência de situações que fazem parte da vida do “eu narrador” e o modo como elas 102 são apresentadas na prosa. A alteração na ordem dos eventos que fazem parte desse tempo da fábula quando são representados no tempo da trama, nas teorizações de Genette, denomina-se de anacronia (conforme REIS & LOPES, 1988, p. 229). Esse aspecto caracteriza bastante a dinâmica temporal do romance em foco, tendo em vista que em apenas um curto excerto retirado do texto literário é possível observar a referência a situações bastante recuadas no tempo em relação ao presente. Assim, à semelhança dos acontecimentos que fizeram parte do percurso de vida do “eu” quando ele observa que “Pulara sem transição da comunhão solene à guerra” (ANTUNES, 2010, p. 118), o fluxo de eventos apresentados no texto também não é disposto de uma forma mais ordenada na narração, algumas vezes, não há “transição” entre um episódio e o outro, uma lembrança e outra, expressos pelo ex-combatente em sua enunciação. Por essa leitura, analisar a constituição da dinâmica temporal no romance em estudo significa refletir mais detidamente sobre a forma como ocorre esse desajustamento entre trama e fábula no texto em questão, desafio que determina, a partir deste momento, a necessidade de uma leitura mais detalhada sobre esse aspecto. Fazendo parte de mais um dos aspectos em desarranjo na prosa, a “deformação temporal” (TODOROV, 1972, p. 232) produz um conjunto de efeitos de sentido singularmente configurados na narrativa. A dissolução do prosseguimento das ações ocorridas no presente, constantemente invadidas pela corrente de lembranças que o “eu” evoca, seria um desses efeitos presentes no romance. O tempo vivido desvela as particularidades da natureza mais íntima desse sujeito que se põe a reconstruir suas experiências, incluindo, por exemplo, a reminiscência de um espaço que reúne as imagens de uma fase pueril daquele indivíduo, correspondente ao cenário do zoológico. Tal ocasião, como tantas outras apresentadas na trama, surge sem uma referência mais explícita da ocorrência de um recuo mais incisivo no tempo, introduzindo, mesmo assim, o momento da narração: “Do que eu gostava mais no Jardim Zoológico era do rinque de patinagem sob as árvores e do professor preto muito direito a deslizar para trás no cimento em elipses vagorosas sem mover um músculo sequer, rodeado de meninas de saias curtas e botas brancas” (ANTUNES, 2010, p. 11). De igual forma, a sondagem das vivências do “eu” apresenta, no contínuo movimento do contexto da enunciação para o pretérito, o reflexo das ruínas de um conflito de grandes proporções que perfazem as memórias de guerra do narrador: 103 Como este bar e os seus candeeiros Arte Nova de gosto duvidoso, os seus habitantes de cabeças juntas segredando-se banalidades deliciosas na euforia suave do álcool, a música de fundo a conferir aos nossos sorrisos a misteriosa profundidade dos sentimentos que não possuímos nunca [...]. A proximidade da morte torna-nos mais avisados ou, pelo menos, mais prudentes: em Luanda, à espera de seguir dentro de dias para a zona de combate, trocávamos com vantagem a metafísica pelos cabarés safados da ilha, um pega de cada lado, o balde de espumante Raposeira à frente, e a pequena vesga do strip-tease a despir-se no palco no mesmo alheamento cansado com que uma cobra velha muda de pele (ANTUNES, 2010, p. 31). A justaposição de acontecimentos afastados na cadeia temporal sugere a elaboração de um paralelo entre as situações apresentadas, o qual adquire razão de ser dentro da atividade rememorativa do narrador. Em outras palavras, a reflexão sobre a realidade observada, sobre o fingimento que rege o comportamento dos indivíduos, simulando uma “misteriosa profundidade dos sentimentos” que jamais foram sentidos, desperta a relação com um espaço-tempo em que tais frivolidades não possuiriam relevância. No circuito característico da guerra, as elucubrações filosóficas davam lugar a demandas mais carnais, a metafísica era trocada “pelos cabarés safados da ilha”. A analepse ocorre, enquanto “movimento temporal retrospectivo” (REIS & LOPES, 1988, p. 230), e o seu alcance, ou seja, a distância em que se move o retrocesso operado no tempo, “é inspirado pela necessidade de fundamentar [...] a situação e características das personagens no presente da história” (REIS & LOPES, 1988, p. 226). No universo romanesco em destaque, o vivido compreende outra forma de observar o presente e, porventura, questionar o seu sentido, já que a substância das ações lembradas tornaria a realidade descortinada no bar algo que figuraria apenas como um simulacro de uma alegria que o álcool vem ajudar a formatar. Ao mesmo tempo, o paralelo estabelecido contribuiria para que o olhar sobre o presente seja visto como algo suspenso em favor da importância do evento relembrado, de forma que o tempo é apreendido em sua relatividade, inerente a um universo narrativo em que o curso da experiência rememorativa guia as situações apresentadas. A duração interior das memórias evocadas possui, assim, maior relevo e nela as referências temporais, a exemplo da falta de precisão com a qual dado estágio da guerra estaria sendo recordado – “à espera de seguir dentro de dias para a zona de combate”, o que colabora com a descontinuidade com a qual os episódios pertencentes ao passado seriam ressignificados diante de um presente interrompido. Enquanto no tempo do “agora”, instante da enunciação, ainda há uma tentativa de organização desse momento 104 em alguns capítulos do romance que indicam o avançar da madrugada pela sinalização das horas que passam 77 – aspecto que possui como efeito a intensificação do receio sentido pelo “eu” frente à chegada da manhã –, o tempo das reminiscências é marcado, essencialmente, pelas situações que, de forma aleatória, são reavivadas pelo “eu narrador”. Assim, a dimensão afetiva é o que determina o que deve vir à tona, já que “a vivência subjetiva do tempo nada tem que ver com o tempo dos relógios” (ROSENFELD, 1996, p. 82). De um modo geral, nesse cenário, a “emoção tem um papel preponderante no funcionamento da memória, o que se pode comprovar no fato de que, ao se explorar o passado, surgem sempre as mesmas imagens, justamente aquelas que tiveram uma carga emocional muito forte” (MELLO, 2013, p. 14). Não à toa, o ano de 1971, época em que o protagonista atuava no exército português, vai sendo composto com base nos episódios mais marcantes que decorreram naquele período, desde a notícia do primeiro morto em batalha, a ida do ex-combatente para Lisboa em novembro devido ao nascimento de sua filha até o natal no solo angolano e a constatação de que nada havia, de fato, mudado em virtude da data festiva. Seguindo essa perspectiva e aprofundando o desajustamento aqui analisado entre trama e fábula na prosa em foco, destaca-se a repetição de alguns acontecimentos narrados, o que faz parte da análise do aspecto da frequência temporal 78 do romance, já que a trama realça, em circunstâncias diferentes, determinados eventos que dizem respeito a situações específicas do tempo vivido na guerra. Tais acontecimentos teriam deixado impressões inolvidáveis no “eu”, de tal forma que esses eventos se convertem em estratégias para orientar o desenvolvimento do próprio relato: “E após alguns meses de guerra, que assinalava traçando cruzes raivosas em todos os calendários ao alcance, após a perna do Ferreira e a morte do cabo Paulo, [...] ocupava os fins de tarde assistindo aos arrancos exaustos da máquina de costura do soba” (ANTUNES, 2010, p. 72). 77 No capítulo “J”, o narrador afirma: “Há pouca coisa em que ainda acredito e às 3 da manhã o futuro reduz-se às proporções angustiantes de um túnel” (ANTUNES, 2010, p. 78). Já no ponto seguinte do andamento do alfabeto antuniano, o capítulo inicia-se com “Às quatro da manhã os espelhos são ainda suficientemente misericordiosos ou opacos para nos não devolverem o rosto amarrotado e encolhido das noites sem sono” (ANTUNES, 2010, p. 83). 78 A frequência corresponde a um dos elementos, observado por Genette, que fazem parte da sistematização e da representação do tempo nas narrativas. Nesse caso, o foco recai sobre a relação entre o número de eventos que fazem parte da história e o número de vezes em que eles são citados na narração, o que é definido como uma “relação quantitativa” (de acordo com REIS & LOPES, 1988, p. 258, grifos no original). 105 Novamente, a imagística do fim adquire centralidade no texto, simbolizada neste instante pela dimensão temporal que o trecho recortado apresenta. A memória do narrador filtrou determinados incidentes que são repisados na trama, fazendo do olhar sobre a guerra, por consequência, um espaço de encontro com a morte. Por esse motivo, relembrar a fase vivida nos amargos meses durante o conflito é reavivar, paradoxalmente, um tempo morto no qual a contagem dos dias é efetuada pela marcação de “cruzes raivosas em todos os calendários ao alcance”. Tais cruzes poderiam representar, metaforicamente, os inúmeros fenecimentos sofridos por aqueles que habitavam o tempo-espaço da guerra, a exemplo do óbito do cabo Paulo e a mutilação do Ferreira. O próprio crepúsculo torna-se um elemento a mais na composição de um olhar que só visualiza o desfecho da experiência colonial, o que é representado, sejam pelas imagens latejantes dos soldados portugueses que padeceram nesse processo, sejam pelas consequências desse modo de dominação para os povos nativos daquela região. Para explicar melhor esse último aspecto, o foco recai sobre o término de uma época em que as figuras de maior prestígio, nas sociedades africanas pré-coloniais, lideravam as tribos, sendo depois convertidas em elementos de pouca relevância para a sistemática colonial. No romance, para exemplificar essa questão, o soba é reduzido a guardião de uma máquina de costuras, em que esse artefato, como uma extensão do antigo chefe local, também estaria perto do fim. Se as “coisas lembradas são fundidas e confundidas com as coisas temidas e com aquelas que se tem esperança de que aconteçam” (MEYERHOFF, 1976, p. 20), a reiteração de eventos na trama em que predomina o definhar dos compatriotas do narrador sugere a amplitude do pavor sentido por ele de se ver refletido na condição fatídica de seus companheiros de farda. De igual forma, outra ocasião é depreendida na síntese dos acontecimentos que pertencem à fábula como algo repetido na construção da trama, uma situação que atormenta o narrador pela violência injustificável que engendra. O caso mencionado diz respeito à imagem impactante do tratamento dado aos indivíduos que foram detidos pela PIDE: a espera do jipe da Pide que semanalmente passava a caminho dos informadores da fronteira, trazendo consigo três ou quatro prisioneiros que abriam a própria cova, se encolhiam lá dentro, fechavam os olhos com força, e amoleciam depois da bala como um suflé se abate, de flor vermelha de sangue a crescer as pétalas na testa: 106 – O bilhete para Luanda – explicava tranquilamente o agente a guardar a pistola no sovaco. – Não se pode dar cúfia79 a estes cabrões (ANTUNES, 2010, p. 131). A perturbação do narrador diante do que parecia ser o modus operandi da polícia política em questão, já que a execução dos negros sucedia “semanalmente”, faz com que essa situação seja retomada diversas vezes na narrativa, fazendo parte da memória traumática desse indivíduo. A intensidade do episódio recordado é sugerida, até mesmo, pela apresentação em discurso direto da fala do agente do PIDE, o qual “manifesta com a consciência tranquila das forças da ordem” (FANON, 2005, p. 55) o massacre dos condenados, justificando sua ação ao afirmar que “Não se pode dar cúfia a estes cabrões”. O efeito estilístico provocado pela escolha desse tipo de discurso indicia a percepção da sentença proferida pelo agente como uma espécie de máxima que não só atribui verossimilhança ao rememorado, mas também desvela a incapacidade do sujeito de olvidar-se desse acontecimento diante dos sentimentos ali despertados. De um lado, há o constante sentimento de temor frente a um órgão de repressão do regime que, nessa atuação, usava da crueldade para afirmar frente aos demais a manutenção de um controle. Este, por sua vez, estaria prestes a ruir diante da proliferação dos movimentos independentistas na antiga colônia, de forma que a ação violenta “aparece onde o poder está em risco” (ARENDT, 2016, p. 73), a fim de responder previamente à insurgência de qualquer outra manifestação de autoridade. Do outro lado, há na recorrência desse episódio para o “eu narrador” o alimento de uma indignação com a condição daqueles que foram usurpados, tiranizados pelo sistema colonial. Dessa situação, de alguma forma, o ex-combatente também compartilha, como um entre tantos comandados na guerra. Por meio da ira que impede o esquecimento, constrói-se uma crítica à alienação dos sujeitos em dois momentos distintos desse contexto de guerra, os quais contribuem para justificar, ainda mais, o motivo da repetição constante de um mesmo evento na trama. No primeiro, o narrador protagonista constata, em uma das noites no leste angolano, a composição de um cenário profundamente incongruente que envolvia um “loto no meio da mata, dos tangos poeirentos do gira-discos, das toiletes patéticas das mulheres, [...] das dálias europeias aguareladas na parede, enquanto os condenados pela 79 O termo pode ser usado como um sinônimo para lenço, utilizado no trecho recortado para reforçar a posição do agente da PIDE quanto ao seu entendimento de que não se devia suavizar o tratamento destinado aos prisioneiros. 107 Pide se enrolavam como tentáculos inertes nos seus buracos” (ANTUNES, 2010, p. 134). O ex-combatente recorda-se, assim, de um universo dividido, “um mundo cortado em dois”, para utilizar de uma expressão de Fanon (2005, p. 54) sobre o mundo colonial, em que se apreende uma disposição geográfica na qual se plasmam os eventos que fazem parte da ordem da opressão: enquanto a vida de alguns prosseguia, outros morriam pela lógica da guerra. No segundo momento, a crítica volta-se para o desejo do narrador, ao retornar a Portugal, de que os demais não ignorem o que houve em solo angolano, uma questão da qual o ex-alferes não poderia esquecer diante de um sistema que queria ver ocultada a barbárie realizada: “Trazemos o sangue limpo, Isabel: as análises não acusam os negros a abrirem a cova para o tiro da Pide” (ANTUNES, 2010, p. 188). Inerente à dinâmica de um tempo psicológico em que a trama é constituída pela apresentação de vários acontecimentos já decorridos, encontra-se a atitude do “eu” de realizar uma associação entre as imagens que fazem parte do trânsito temporal posto em curso no texto. Em outras palavras, movido pela força emocional que influi no material a ser narrado, o ex-combatente elabora uma relação significativa entre uma série de eventos que atendem à necessidade desse indivíduo de expressar, mesmo de forma caótica, as suas experiências. De uma forma geral, a leitura construída sobre o romance parte do entendimento de que o mundo interior da experiência e da memória exibe uma estrutura que é causalmente determinada mais por “associações significativas” do que por conexões causais objetivas do mundo exterior. Transmitir essa estrutura peculiar requer, assim um simbolismo ou imagística no qual as diferentes modalidades do tempo – passado, presente e futuro – não sejam serial, progressiva e uniformemente ordenadas e sim sempre inextricável e dinamicamente associadas e mescladas umas às outras (MEYERHOFF, 1976, p. 22). Por essa leitura, como parte das “associações significativas” construídas pelo “eu narrador”, destaca-se a relevância da força sinestésica enquanto elemento impulsionador dessa mescla temporal que caracteriza o trânsito contínuo na trama entre passado e presente. Fugindo de relações de sentido mais tangíveis, a associação motivada pelos sentidos – os ruídos, os cheiros, os sabores – adquire razão de ser nas vivências do ex- combatente, de modo que uma circunstância improvável pode ativar uma determinada reminiscência: “o tilintar dos cubos de gelo trouxe-me à lembrança o sino que comprara para o berço da minha filha e que guitarrava vagarosamente uma melodia sem nexo; a 108 essa hora, em casa, a minha mulher aquecia o biberão da meia-noite” (ANTUNES, 2010, p. 99). A reunião de eventos já transcorridos é demarcada, primeiramente, pela presença de todos os verbos no passado, de maneira que o “eu narrador” não só evoca situações já vividas, mas também associa a estas outros eventos que, igualmente, fazem parte de um tempo pretérito. Ao gatilho memorial composto pelo “tilintar dos cubos de gelo”, associa-se, ainda, a hipótese, lançada pelo sujeito, do que estaria acontecendo em sua casa naquela época, o que provoca a sensação de que o trânsito temporal se amplia na narrativa, pois do passado é possível remontar a outros espaços, a outros tempos. Assim, pela “memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando com as percepções imediatas, como também empurra, ‘descola’ estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência” (BOSI, 2003, p. 36). Nessa posição central, o tempo vivido e o tumultuado processo de associação entre as situações mais díspares dão origem a dois aspectos específicos que contribuem bastante para a distorção temporal que o texto apresenta: a composição de uma narrativa de encaixe de memórias e a simulação de um tempo de outrora que se torna vivencial à medida que é evocado. O primeiro caso pode ser muito bem exemplificado pela citação do texto literário abordada anteriormente, visto que, ao reportar-se a uma experiência amorosa com a hospedeira da TAP no retorno ao continente africano, o narrador protagonista atrela a essa situação a lembrança da filha recém-nascida, tecendo, assim, uma intrincada teia memorial. Desse modo, a narração é constituída por uma rede de acontecimentos, selecionados pelo ex-alferes-médico, os quais interagem entre si pela valoração que tal sujeito atribui ao material recordado. Embora em vários momentos da trama não seja possível apreender uma relação mais clara entre as memórias que surgem em um mesmo segmento do texto (principalmente, diante da quantidade de aspectos rememorados de uma só vez), em outras passagens, é a exploração do passado em relação a um evento também pretérito que proporciona uma reflexão mais apurada sobre um episódio específico já vivido pelo “eu”. Para exemplificar melhor o que foi exposto, recorre-se ao seguinte trecho do romance: Bimbe e Caputo eram sanzalas fechadas na mata, policiadas por milícias e GE 80 , espiadas pelos informantes da Pide e pelos brancos da 80 Os Grupos Especiais (GE) fizeram parte do que ficou conhecido como “africanização da guerra”, o que corresponde à participação de forças locais dos países em conflito com Portugal atuando em favor da antiga metrópole. Tais grupos, bastante heterogêneos, ficavam sob o comando das autoridades 109 OPVDCA 81 , espécie de chuis laicos, fardados como os caçadores de hipopótamos e elefantes dos livros de gravuras da minha infância, livros do sótão do tio Elói com homens de botas altas e espingarda de dois canos risonhamente instalados sobre os enormes pedregulhos cinzentos dos animais inertes. Da janela do sótão avistava-se a prisão de Monsanto, que eu supunha repleta de criaturas simiescas, de barba por fazer, a abanarem as grades de olhos alucinados e cintilantes, e cuja respiração julgava escutar, colada ao meu ouvido, se acordava a meio da noite, e me paralisava de terror. O tio Elói dava corda aos relógios da parede, bebia-se anis Del Mono por cálices de vidro azul, uma doce paz intemporal descia do aparador, como do rosto de uma pessoa que se ama. O tio Elói, pensava eu aos saltos na picada a caminho de Mangando 82 , as tardes de Benfica no verão, pesadas como frutos rumorosos de luz, a voz de Chaby Pinheiro 83 no gramofone de campânula, a rouquejar versos entre estalos e silvos (ANTUNES, 2010, p. 161). A passagem recortada ilustra a descontinuidade existente entre os eventos narrados pelo ex-combatente, dado que a memória da guerra mescla-se aos acontecimentos que fariam parte da infância do indivíduo. Utilizando de uma estratégia recorrente na prosa, o “eu narrador” reforça as suas impressões sobre o vivido em batalha ao estabelecer um paralelo com outras situações de sua vida, encaixando, assim, uma lembrança na outra. Por essa senda, o discurso flui de modo entrecortado, em que a alusão ao período infantil esgarça-se e, por um momento, o leitor desorienta-se, perdendo a referência de qual momento estaria sendo relembrado pelo “eu”. As reminiscências apresentadas interligam-se pela valoração atribuída ao cenário de guerra no tocante à condição deplorável que se observa, durante a Guerra Colonial, nas cidades angolanas de Bimbe e de Caputo. Isto é, o olhar sobre as “sanzalas fechadas na mata”, sobre o estado desse cativeiro fortemente vigiado desperta, por exemplo, a lembrança de outro tipo de aprisionamento que também atemorizou o narrador, circunscrito à prisão de Monsanto em Lisboa. A memória afetiva condiciona a releitura desses vários “ontens” de que é feito o indivíduo, como alguém que “não vive apenas administrativas do poder colonial, da PIDE e de outras entidades, agindo na região em que habitavam, eram responsáveis por reforçar os batalhões e companhias portuguesas. A presença dessas forças seria mais um dos motivos para o descontentamento das tropas oficiais do exército português durante o período da Guerra Colonial, já que tanto “a ‘africanização’ quanto a ‘milicianização’ violavam a natureza das forças armadas, exteriormente identificadas com a ideologia de um Estado Nacional e interiormente com o princípio da carreira militar e da hierarquia” (SECCO, 2005, p. 28). 81 A Organização Provincial dos Voluntários de Defesa Civil de Angola (OPVDCA) correspondia a um grupo de voluntários, uma espécie de milícia, que prestava auxílio às Forças Armadas Portuguesas em defesa da população civil após os primeiros ataques dos grupos independentistas no solo angolano. 82 Local situado na província de Malange, sendo próximo do rio Cambo, e que abrigou destacamentos do Exército Português durante a Guerra Colonial. 83 António Augusto de Chaby Pinheiro (1873-1933) foi um destacado ator português que participou de mais de 60 espetáculos, conquistando o público pela sua veia cômica. 110 ‘no’ tempo, mas que é tempo, tempo não cronológico” (ROSENFELD, 1996, p. 82, grifo no original). Por essa visão, a imagem dos “homens de botas altas e espingarda de dois canos risonhamente instalados sobre os enormes pedregulhos cinzentos dos animais inertes” não surge de forma neutra no narrado, sendo associada a outro tipo de caçadores que, fardados, policiam e espionam as populações das referidas “sanzalas”. Nessa medida, é possível inferir que, à luz das circunstâncias vivenciadas no solo africano, as memórias de infância recebem outras nuances, colaborando com a edificação de um cenário profundamente negativo, alvo da reflexão melancólica do narrador. Assim, as “criaturas simiescas, de barba por fazer, a abanarem as grades de olhos alucinados e cintilantes” saem da esfera da imaginação aterradora do sujeito e corporificam-se anos depois nos indivíduos alvos da “caça” predatória empreendida pelo sistema colonial. Dentro do quadro de relações estabelecido pelo narrador, a própria leitura animalesca reveste-se de sentido perante a dinâmica racial que sustenta a lógica do colonizador versus o colonizado, situação que, no entrelaçamento de memórias observado, sugere a manutenção de uma violência que ainda submete, no final do século XX, as populações africanas ao jugo dos interesses do homem branco. Essa análise não figura de forma isolada no relato do “eu” tanto que será alvo de maiores reflexões em outros capítulos desta tese, surgindo aqui como uma forma de demonstrar que subjaz, no encaixe de lembranças apresentado, o trabalho interpretativo da voz narrativa. Tal trabalho é inerente ao universo da reminiscência, já que “a lembrança é também uma experiência continuamente interpretada, porque toda percepção se faz dentro de um quadro interpretativo, corrigido e transformado pelas novas experiências” (TEDESCO, 2004, p. 67, grifo no original). Dessa maneira, “as tardes de Benfica no verão, pesadas como frutos rumorosos de luz” adquirem outras matizes, compreendendo, em certa medida, uma válvula de escape para alguém que se sente também vitimado pelas forças castradoras do império. Por causa disso, a evocação do período de meninice do ex-combatente provoca a suspensão do tempo da guerra, e a imagem singular do tio Elói sempre a dar corda aos relógios da parede transporta o “eu” por um breve instante para um cenário distante do conflito. No entanto, a tentativa de encontrar na infância “uma doce paz intemporal” não se concretiza e as impressões sobre um passado ainda mais afastado no tempo são enunciadas a partir das implicações das experiências vividas em África. Tal é a intensidade desse estágio de vida do “eu narrador” que se chega, em dados momentos da prosa, a sentir-se que o protagonista estaria, na verdade, revivendo 111 os episódios do combate à medida que os narra. A encenação de um passado de luta possuiria mais consistência do que o presente no qual se encontra o narrador e, ao mesmo tempo, maior relevância que outros momentos dessa trajetória também alvos da rememoração do “eu”. Por um lado, o transcurso das ações nessa noite alongada compõe um tempo estagnado, regido pacientemente pelos eventos de outrora, já que para o agente principal da narrativa o “estar” no passado determina o seu olhar no presente e conforme aquele afirma: “eu continuo em Angola como há oito anos atrás, e despeço-me do soba-alfaiate junto à máquina de costura pré-histórica” (ANTUNES, 2010, p. 121). Por outro lado, se comparadas as ações decorridas antes da guerra com as que dela fazem parte, percebe-se que o momento anterior à estadia em Angola realmente assume a forma de uma recordação, de algo já sucedido. Enfim, sente-se que, diferentemente da leitura feita sobre o contexto da luta colonial, o olhar do narrador- personagem sobre a sua infância, por exemplo, realmente conduz a visão desse período como uma lembrança distanciada no tempo, vê-se o passado como passado 84 . Em contrapartida, a dinâmica da guerra faz-se vívida tanto que, à proporção que o narrador relata sua experiência, a impressão que se nutre é a de que a leitura se desloca da imagem de alguém que faz uma apreciação de um acontecimento já transcorrido de sua vida para a sensação de que aquele indivíduo estaria novamente sofrendo as intempéries do conflito. Essa circunstância contribui, sensivelmente, com a distorção temporal que a narrativa apresenta, já que a simulação da revivescência desse período tortuoso da trajetória do “eu” faz com que se dissolvam os limites entre os níveis temporais, ou seja, não há uma demarcação nítida entre passado e presente. Em outras palavras, fundamentalmente avessa a um “passado insulado, ao passado em si e para si, àquele passado que tanto encantava precisamente os românticos” (BAKHTIN, 2010, p. 235, grifo no original) e aprofundando a atuação de um passado que se faz criador e eficaz no presente (conforme observa Bakhtin na sua análise da obra literária de Goethe), encontra-se, no texto antuniano, a irrupção vertiginosa de uma memória traumática. Esta, por sua profundidade, invade o presente, tornando-o periférico frente à carga dramática que ela veicula. 84 É necessário fazer a ressalva de que a leitura feita sobre o período anterior à permanência do ex-alferes- médico em Angola não determina que tal passado não participe do movimento incessante que constitui o fluir de memórias em direção ao presente no texto literário em questão. Contudo, essa evocação, por vezes, ocorre de uma forma diferenciada quando contraposta aos eventos que fizeram parte do contexto bélico apresentado na obra. 112 Porventura, seria justamente devido à força da referida carga dramática, característica de uma explanação que focaliza a sobrevivência no ambiente inóspito da guerra, a forma como vem à tona esse período específico da vida do ex-alferes-médico. Isto é, como uma maneira de conferir autenticidade a uma situação tão aterradora e imprimir a agudeza daquele momento à palavra narrada, a estrutura do romance apresenta a vivência do pesadelo do “eu” em África de um modo singular na temporalidade construída. Para enfatizar a força dessa fase traumática da personagem principal do texto, rompe-se com qualquer delimitação entre a cena corrente e esse ontem específico, já que para que este ressurja “em toda a sua pujança, como presença atual, não se pode narrá-lo como passado” (ROSENFELD, 1996, p. 83). Se o combate em Angola acabou de fato, ele continua na mente do indivíduo que se sente, de alguma forma, paralisado nesse momento fatídico de sua trajetória: “Tão esquisito, entende, que me pergunto às vezes se a guerra acabou de facto ou continua ainda, algures em mim, com os seus nojentos odores de suor, e de pólvora, e de sangue, os seus corpos desarticulados, os seus caixões que me aguardam” (ANTUNES, 2010, p. 163). A persistência da situação beligerante provoca o relaxamento da conexão com os acontecimentos externos ao protagonista, fazendo com que o verdadeiro conteúdo do romance seja, efetivamente, o contexto de fatalidade respirado à medida que ainda se espera a morte que fora decretada outrora. Dessa maneira, em dadas circunstâncias, é possível questionar o que configura o tempo vigente, o hoje na narrativa, visto que, diante de trechos como o que é apresentado a seguir, chega-se à conclusão de que, de alguma forma, a “revivescência do passado no presente retira o presente do fluxo do tempo” (NUNES, 2003, p. 62): a minha avó mostrou-me um dia um pedaço de papel frágil como folha de herbário, telegrama em que o avô, na guerra de França, respondia ao parto da minha mãe, e lembrei-me, olhando uma fotografia onde uma rapariga e um cão se lambiam mutuamente o intervalo das coxas, de um homenzinho calado, de cabelos brancos e aparelho auditivo, sentado na varanda da casa de Nelas a mirar a serra, lembrei-me dos fins de tarde na Beira, em setembro, na época recuada em que a família se agrupava à minha volta e à volta dos meus irmãos numa espécie de retábulo enternecido e protetor, lembrei-me do sorriso da minha mãe, que tão poucas vezes vi sorrir depois [...]. E agora, encostado ao arame, sozinho, a fim de que me não vissem as lágrimas, encostado ao arame do Chiúme e assistindo ao descer do morro até à chana e, para lá da chana, à mata de morrer do Leste, à mata de morrer magra e pálida do Leste, pensava na minha filha desconhecida num berço de clínica, entre outros berços de clínica que se espiam através da vigia de navio (ANTUNES, 2010, p. 74). 113 Se “tradicionalmente coube ao narrador, como eixo em torno do qual revolve a narração, garantir a ordem significativa da obra e do mundo narrado” (ROSENFELD, 1996, p. 84), ocorre no romance em foco uma alteração desse papel quando se observa que aquele instaura a ruptura com qualquer ordem possível, algo que invade a dinâmica temporal. O exposto é justificado pela ambiguidade sentida diante do trânsito entre tempos que esvazia o presente, pois o “agora” torna-se o momento no qual o sujeito, “encostado ao arame do Chiúme e assistindo ao descer do morro até à chana e, para lá da chana, à mata de morrer do Leste”, pensava na filha recém-chegada ao mundo. Por essa senda, a orientação sobre o momento com base no qual o “eu narrador” conta as suas amarguras (por estar distanciado da família) passa a ser indicado pela localização não só temporal que define o período a partir do qual se fala, mas também geográfica, já que o “eu” explana suas dores como alguém que se encontra, de fato, na “mata de morrer magra e pálida do Leste” angolano. O tempo da guerra torna-se, assim, o marco para que se desdobrem outras situações, encaradas nesse momento, ao contrário da própria temporada em África, como lembranças verdadeiramente. Dentro do processo associativo, entre as inúmeras recordações da vida do ex-médico das tropas portuguesas, sobressai novamente o encaixe de reminiscências no texto, impulsionado dessa vez pelo modo como tal indivíduo se encontra ao se sentir apartado do convívio familiar devido à guerra. Em razão disso, a tristeza por não estar presente junto à filha recém-nascida motiva que outros episódios, tratados como passado em relação ao momento a partir do qual estaria falando o narrador, sejam rememorados. Para exemplificar tal leitura, é possível citar o paralelo, de alguma forma, estabelecido entre aquele que narra e a figura do seu avô, o qual, estando também em uma situação de conflito, não pôde participar do nascimento de sua filha. De maneira geral, a vivificação da luta colonial que a passagem recortada apresenta põe em destaque dois recortes temporais que se imbricam pela necessidade do sujeito de ter em vista uma época recuada na qual a família formava um “retábulo enternecido e protetor”. A série de situações elencadas do tempo infantil, desde o telegrama do avô e a imagem que parece ilustrá-lo enquanto “homenzinho calado, de cabelos brancos e aparelho auditivo, sentado na varanda da casa de Nelas” até os fins de tarde em um setembro distante, reforça a amplitude dramática do homem que, 114 desamparado entre voltas do arame, assiste à mata na qual enxerga um vaticínio, a predição da morte. Pela intensidade citada anteriormente, o que também faria parte do pretérito do protagonista ganha vida e, nesse movimento, aquilo que, de fato, pertence à cena de enunciação deixa de ser focalizado, ofuscado pela vivência sofrível do ex- militar em terras angolanas. A ambivalência sentida em casos como o destacado contribui, sensivelmente, com a distorção temporal que a narrativa apresenta, ampliando a dificuldade do leitor que se sente desorientado pelo esfacelamento de qualquer ordenação temporal. A complexidade faz-se perceptível, diante de obras literárias como a de Lobo Antunes, frente à hesitação do público para se adaptar a um texto que, para fazer uso mais uma vez das reflexões de Rosenfeld, contesta “o compromisso com este mundo empírico das ‘aparências’, isto é, com o mundo temporal e espacial posto como real e absoluto pelo realismo tradicional e pelo senso comum” (1996, p. 81). Tal entendimento torna-se evidente pelo fato de que o tempo linguístico, em dadas situações, instaura o embaraço do leitor que se questiona sobre qual seria a época a partir da qual o narrador fala, por exemplo, quando profere um advérbio como “agora”, citado anteriormente. Outrossim, perante a ruptura com o que é ditado por uma lógica tradicional, a narrativa instiga a desconfiança com interpretações que parecem ser oriundas de um procedimento intuitivo, ou ainda, assentadas em um consenso, já que, como visto, tais concepções surgem deslocadas no romance. Em outras palavras, quando aquele que entra em contato com a obra referida de Lobo Antunes guia-se por um entendimento do senso comum, cuja leitura determina, por exemplo, que os tempos verbais corresponderiam às fases do tempo, acaba desorientando-se novamente diante de situações da narrativa em que o narrador protagonista emprega tempos gramaticais distintos para se referir ao mesmo evento. Para ilustrar o caso exposto, é possível fazer menção à passagem na qual o ex-combatente remonta ao fim de seu matrimônio, o qual se iniciara quatro meses antes que embarcasse para Angola: ali dentro, diante de um juiz desinteressado, ocupado a palpar cautelosamente um furúnculo do pescoço, o meu casamento terminará sem grandeza nem glória, após vários meses lancinantes de reencontros e separações, que me retalharam de angústia os destroços de um longo inverno de aflição. Separamo-nos, sabe como é, numa paz feita de alívio e de remorso, e despedimo-nos no elevador como dois estranhos, trocando um último beijo em que morava ainda um resto indigerido de desespero (ANTUNES, 2010, p. 112, grifos nossos). 115 Saindo de uma compreensão que, à primeira vista, veria a aplicação do verbo no futuro circunscrita a ações apenas vindouras em relação ao presente, correspondendo, assim, a uma prolepse dos acontecimentos narrados pela antecipação de um acontecimento posterior ao presente da ação (consoante com as considerações de Reis e Lopes 1988, p. 283), o que se observa é a apresentação do divórcio de acordo com um local de fala amplamente subjetivo. A partir desse espaço, o efeito provocado pela afirmação realizada pelo “eu” de que seu “casamento terminará sem grandeza nem glória” caracteriza-se pela imagem de alguém que comenta uma situação enquanto parece revivê-la. Essa possibilidade permite ao sujeito que narra analisar o episódio citado por todos os ângulos, inclusive, percebendo o desdém do juiz, o qual figura mais concentrado em sua necessidade de “palpar cautelosamente um furúnculo do pescoço”. Ao mesmo tempo, ocorre uma alteração na perspectiva de locução adotada pelo “eu narrador”, dado que se observa um trânsito de um tempo que, segundo Benedito Nunes, reclama “uma tensão no uso da linguagem, que aproxima o locutor do objeto” (2003, p. 40), no caso do futuro, para um tempo que faz parte do mundo narrado, no tocante ao uso do pretérito perfeito. Uma vez consolidado o desquite, o “eu” retorna à posição de quem vê o acontecido como um caso já distanciado no tempo, algo que amplia o estado de solitude que o aflige pela constatação de que já não haveria nada a ser feito. Por tudo que fora comentado, torna-se patente que o texto literário em estudo apresenta uma temporalidade própria, proveniente, em suma, do fluxo de pensamentos que movimentam a consciência do narrador-personagem. Com efeito, o modo como as experiências são expressas na trama possui uma duração que é determinada pela forma como, subjetivamente, o “eu” sentiu cada experiência. Assim, mais um motivo, entre tantos que aqui foram deslindados, é destacado para a desagregação entre trama e fábula no romance, já que, ante a configuração singular que o sujeito que narra atribui ao dito, dados momentos são dilatados enquanto outros são reduzidos na narração. Em outras palavras, focaliza-se a anisocronia 85 , já que se percebe um descompasso entre a duração de um evento na fábula e o tempo que se emprega para apresentá-lo na trama. Esta pode ser desenvolvida em um tempo mais alargado do que o da própria história “(o narrador pode, por exemplo, demorar-se em descrições ou em digressões) ou, pelo contrário, num tempo muito mais reduzido do que o da história (quando, por exemplo, o 85 Conceito expresso de acordo com a teorização elaborada por Genette, citado a partir de Reis e Lopes (1988, p. 232). 116 narrador abrevia em poucas linhas o que ocorreu em vários dias, meses ou anos)” (REIS & LOPES, 1988, p. 232). De um lado, há a sensação (já tão citada nesta tese) de uma noite que fora ampliada, aspecto que, imbricado à vivência do médico alferes, parece fazer parte de sua rotina – “Cada vez mais fui prolongando as madrugadas e encurtando os dias” (ANTUNES, 2010, p. 128). Além disso, ocorre na trama uma espécie de pausa dos acontecimentos que fazem parte da história narrada, algo que se constitui como um dos procedimentos narrativos em que pode resultar a anisocronia citada antes. Na pausa, interrompe-se “momentaneamente o desenrolar da história, o narrador alarga-se em reflexões ou em descrições que, logo que concluídas, dão lugar de novo ao desenvolvimento das ações narradas” (REIS & LOPES, 1988, p. 273). No romance em estudo, é comum que, ao versar sobre alguma experiência do passado, o narrador suspenda essa situação para trazer à tona vários pensamentos manifestos nas frequentes intercalações de que se compõe o dito, um aspecto que será mais bem exemplificado na próxima subseção desta pesquisa. Do outro lado, há uma recapitulação de vários eventos do período inerente ao conflito citado de forma sumarizada, de maneira que são selecionadas as situações inerentes ao padecimento do sujeito e, por exemplo, um ano na guerra surge reduzido na narração a um lapso “durativo sensivelmente menor do que aquele que a sua ocorrência exigiria” (REIS & LOPES, 1988, p. 293). Tal questão pode ser exemplificada pela seguinte declaração do narrador: “durante um ano, morremos não a morte da guerra [...], mas a lenta, aflita, torturante agonia da espera, a espera dos meses, a espera das minas na picada, a espera do paludismo, a espera do cada vez mais improvável regresso” (ANTUNES, 2010, p. 131). O “eu narrador” sintetiza o sofrimento vivido, principalmente, a aflição relacionada à reiterada expectativa de que se nutre a sua experiência em Angola. O aguardar representa a imobilidade da tropa diante da impossibilidade de escapar daquele contexto absurdo, tornando os indivíduos inertes, seres que desfalecem nessa “espera” contínua. Por esse motivo, em contrapartida, a impressão que o ex-combatente transmite sobre o tempo da guerra envolve a leitura simbólica de um período que transcorreria lentamente, em que este “se imobilizava no poço dos calendários em teimosias de pedra com raízes e as tardes demoravam meses e meses em sestas enervadas” (ANTUNES, 2010, p. 141). Destarte, a descoincidência com as medidas temporais objetivas demonstra que o “tempo enquanto experimentado mostra a qualidade da relatividade subjetiva, ou é caracterizado por uma espécie de 117 irregularidade, não-uniformidade e distribuição desigual na medida pessoal do tempo” (MEYERHOFF, 1976, p. 13). A medida do tempo elaborada pelo “eu narrador” permite significar cada momento a partir do seu estado de espírito, chegando a influenciar a frequência com a qual as informações são manifestas no texto. Diante disso, a impressão de uma manhã que “não vai chegar nunca” (ANTUNES, 2010, p. 137) faz parte da forma melancólica com a qual o sujeito observa sua vida, pois se uma “hora pode parecer-nos tão curta quanto um minuto se a vivemos intensamente; um minuto pode parece-nos tão longo quanto uma hora se nos entediamos” (NUNES, 2003, p. 18). No entanto, mesmo diante do marasmo que caracteriza essa experiência, o espaço de tempo em que se dá a cena de enunciação é bastante significativo para o desenrolar do processo narrativo de um modo geral. A assertiva feita ganha sustentação diante do entendimento de que a noite compreende um tempo aberto ao devaneio, enfim, esse momento do dia seria propício à atividade rememorativa, o que, juntamente com o consumo de álcool pelo narrador protagonista, estimula as divagações presentes na prosa. Não à toa, com a chegada da manhã, tudo parece ganhar substância, imperam as demandas da práxis rotineira e a racionalidade parece ditar as ações a serem realizadas tanto que, durante o último capítulo do romance, o narrador passa a repetir várias vezes, como uma forma de elucidar as consequências dessa passagem do tempo, que, ao amanhecer, “Tudo é real agora” (ANTUNES, 2010, p. 191). O irromper do dia provoca o abandono do devaneio, já que a claridade impulsiona que a realidade e os seres que nela se movem sejam percebidos a partir de outra ótica. Nesta, as experiências tornam- se mais concretas, regidas por um pragmatismo que faz com que, de acordo com a visão do ex-combatente ao se dirigir à sua “cara amiga”, “o tilintar das suas pulseiras possui agora um som diverso, desprovido dos misteriosos prolongamentos e ecos que a noite lhes conferia, o som banal da manhã, que vulgariza o sofrimento e a exaltação, e os apouca perante as exigências práticas do quotidiano” (ANTUNES, 2010, p. 193). Enquanto a imponência da manhã reduz a importância do ato de contar as agruras que fizeram e fazem parte do “eu” e, nesse ínterim, antecipa a visão de um “longo relato que está chegando ao fim” (ANTUNES, 2010, p. 191), a noite é movida pela atividade narrativa e pela carga emocional que envolve essa explanação de si mesmo. Nesse instante, o inconsciente é liberado, dando margem a que sobressaiam todos os eventos que foram, por algum motivo, reprimidos na mente, já que, simbolicamente, “entrar na noite é voltar ao indeterminado, onde se misturam pesadelos 118 e monstros, as ideias negras” (CHEVALIER & GHEERBRANDT, 1989, p. 640, grifos no original). Por essa razão, essa extensão de tempo em que predominam as trevas torna-se adequada à expressão das angústias, da solidão, do degaste que rege o olhar que o narrador tem sobre si e sobre os demais, pois, conforme o “eu” revela, em noites como esta, em que o álcool me acentua o abandono e a solidão e me acho no fundo de um poço interior demasiado alto, demasiado estreito, demasiado liso, surge dentro de mim, tão nítida como há oito anos, a lembrança da cobardia e do comodismo que cuidava afogados para sempre numa qualquer gaveta perdida da memória (ANTUNES, 2010, p. 135). A “noite escura” abrange a circunstância a partir da qual se desenvolve o movimento introspectivo do sujeito. Tal movimento responde à organicidade do romance à medida que a via memorial, à qual o narrador recorre como centro de sua possibilidade de expressão, não corresponde a um “depósito organizado” 86 em que as lembranças acham-se dispostas em uma “qualquer gaveta perdida da memória”. Com efeito, é necessário sempre ter em vista que as lembranças fazem parte de um complexo processo de reelaboração do ontem sobre o qual interfere uma série de fatores de ordem mais íntima e, principalmente, coletiva no tocante ao universo social no qual o sujeito que recorda está inserido. A partir do “poço interior” no qual o ex-militar encontra-se retraído, a representação de um tempo que parece ter sido paralisado em várias situações da prosa acaba vinculando-se à forma como o narrador percebe a realidade a sua volta. Isto é, a visão de mundo construída pela voz narrativa é apresentada a partir da interdependência que se observa entre tempo e espaço e, principalmente, pela forma como são valoradas essas categorias que deixam de ser vistas apenas como aspectos abstratos no texto literário. O olhar sobre a situação de Portugal, por exemplo, é elaborado considerando- se a maneira como singularmente o tempo é experienciado no texto. O caso citado diz respeito à crítica que o “eu” elabora sobre a condição inerte que tal sujeito vê refletida no contexto português pós-revolução dos Cravos, já que, para o ex-militar, “os calendários deste país imobilizaram-se há tanto tempo que nos esquecemos deles, marços e abris sem significado apodrecem em folhas de papel pelas paredes, com os domingos a vermelho à esquerda numa coluna inútil” (ANTUNES, 2010, p. 193-194). 86 Ver Tedesco (2004, p. 57). 119 Destarte, na flutuação existente na narrativa entre o “eu” e o âmbito coletivo, a impressão tão cultivada pelo protagonista sobre a inércia do tempo vivido alastra-se, ou ainda, é alimentada pela própria estagnação da história portuguesa. Em vista disso, os momentos históricos correlacionados a um período de transformações na situação do país surgem, na avaliação feita pelo “eu narrador”, anos depois como “marços e abris sem significado [que] apodrecem em folhas de papel pelas paredes”, em uma referência possível às simbólicas datas de 25 de abril de 1974 e de 11 de março de 1975 87 . Tais datas históricas dizem respeito cada uma a momentos ligados à fase de revolução vivida no país, desde a saída do Estado Novo até a luta pela instauração de um sistema democrático que era balizado, fundamentalmente, pelos pensamentos apregoados pela esquerda 88 . Contudo, a promessa desses novos valores parece não ter resultado nas profundas mudanças outrora difundidas, e a referência à ideologia comunista figuraria, talvez, no presente desalentador da prosa, simbolicamente, apenas na marcação dos “domingos a vermelho à esquerda numa coluna inútil”. Nesse ínterim, a crítica realizada alcança também a apatia social que o sobrevivente das colunas de guerra em África observa em seu país pela forma com a qual se anseia pelo esquecimento da malfadada luta colonial, episódio incômodo para um povo que se mantém devoto de um passado longínquo, característico da formação da nação lusitana. Logo, a paralisia temporal presente na prosa por meio da relação traumática que o “eu” desenvolve com a passagem do tempo na guerra também resvala na pretensão de que esse período de luta na história do país seja suprimido e os atores, personagens desse relato de vencidos, sejam ignorados. O “tempo parou em todos os relógios” (ANTUNES, 2010, p. 188) e essa assertiva emblemática revela a crítica do narrador não só às reais conquistas das ideias divulgadas pela imagística da revolução após a queda da ditadura, mas também à falta de uma modificação mais significativa no modo como a sociedade portuguesa percebe a si mesma após a era salazarista. Para os dois casos, o que vem a ser depreendido na trama é uma ausência de uma atitude mais efetiva dos concidadãos, compondo um entorpecimento que conduz à eliminação de 87 Não sendo mais necessário comentar sobre o episódio do 25 de abril, diante do que já fora exposto no capítulo anterior desta pesquisa, destaca-se o 11 de março de 1975, dia em que oficiais que defendiam o general Spínola, destituído do cargo da presidência do país em 28 de setembro de 1974, tentaram um golpe contra o governo vigente à época, impetrando, inicialmente, um ataque ao Regimento de Artilharia Ligeira 1. No entanto, tal tentativa de golpe fracassou e serviu para radicalizar o governo (conforme SECCO, 2005, p. 47), com a imediata institucionalização do MFA (Movimento das Forças Armadas) e com a nacionalização de bancos, empresas de seguro, indústrias e meios de comunicação. 88 Destaca-se aqui a afirmação de Lincoln Secco de que a “Revolução dos Cravos obrigou todos os partidos a falar um linguajar socialista” (2005, p. 45). 120 qualquer expectativa por parte do ex-militar em relação ao futuro de sua terra natal, leitura que dialoga com as considerações de Eduardo Lourenço expostas a seguir: Treze anos de guerra colonial, derrocada abrupta desse império, pareciam acontecimentos destinados não só a criar na nossa consciência um traumatismo profundo – análogo ao da perda da independência – mas a um repensamento em profundidade da totalidade da nossa imagem perante nós mesmos e no espelho do mundo. Contudo, todos nós assistimos a este espectáculo surpreendente: nem uma nem outra coisa tiveram lugar (LOURENÇO, 2016a, p. 54, grifos no original). Fora da percepção de um tempo que é sentido como algo imobilizado, porém dentro da relação tecida pelo sujeito e o universo social no qual se insere, encontra-se o olhar que aquele indivíduo lança sobre o cenário da batalha, significando-o a partir das marcas ali presentes da passagem do tempo. Desse modo, o amálgama construído entre espaço e tempo fortalece a representação das transformações causadas pelas forças devastadoras da guerra, motivando, assim, a elaboração de uma visão de mundo feita sobre os escombros do que era o território angolano e a destruição a que fora relegado anos depois: Malanje, sabe como é, é hoje o monte de destroços e de ruínas em que a guerra civil a tornou, uma terra irreconhecível pela estúpida violência inútil das bombas, um campo raso de cadáveres, de costelas fumegantes de casas, e de morte. Talvez que nesse tempo, quando passei por ela de regresso ao meu país, pudesse adivinhar os destroços e as ruínas sob o perfil intacto dos prédios, as árvores do jardim, o café repleto de mulatos pretensiosos, cujos enormes carros de luxo apoiavam no passeio os narizes de esqualo dos faróis. Talvez que pudesse prever, sob a saúde aparente do sol, a sua morte próxima (ANTUNES, 2010, p. 177). A partir da configuração espacial da cidade de Malanje, formulada em momentos distintos, é possível captar como o tempo histórico é apreendido pelo narrador dentro da dinâmica peculiar que predomina em todo o romance, concernente ao contexto de guerra. No caso recortado, são os sinais de um território desolado que indicam as consequências da guerra civil em um país que já padecera por tanto tempo devido à duração da Guerra Colonial. Esses sinais, quiçá previstos pelo narrador quando ele contempla “o perfil intacto dos prédios, as árvores do jardim, o café repleto de mulatos pretensiosos”, ajustam-se à compreensão do movimento irremissível do tempo 121 e, nesse liame, sinalizam as ações desencadeadoras da ruína que viria a ser observada depois. Por conseguinte, é possível deduzir que perpassa os aspectos que vêm sendo apresentados a questão do cronotopo no sentido de como essa “categoria conteudístico- formal da literatura” (BAKHTIN, 1993, p. 211) é teorizada por Bakhtin89. Dito de outra maneira, o cronotopo se faz presente no romance antuniano em questão pela maneira como o “eu” percebe o tempo e o espaço no qual se encontra inserido, algo que é determinado pelos juízos construídos sobre as experiências vividas. Assim, o olhar de um sujeito sobre um local no qual se sente preso “por três fieiras de arame farpado numa terra que nos não [lhe] pertence” (ANTUNES, 2010, p. 58) incita a percepção de um tempo que se torna alargado devido à vivência em um cárcere delimitado por voltas de arame, algo que é sentido pela forma com a qual, negativamente, o sujeito valora essa experiência. A sensação de estar confinado em um ambiente estreito, mesmo contemplando a imensidão da terra angolana, estimula a visão de que a luta, além de ser contra o discurso colonial, pois, conforme afirma o ex-combatente, a terra angolana não lhe “pertence”, também é “contra os dias que se não sucedem e indefinidamente se alongam” (ANTUNES, 2010, p. 58). Enfim, se o “cronotopo é uma maneira de diferenciar e de classificar os modos segundo os quais a imagem do ser humano, inseparável, mas irredutível ao corpo que ocupa espaço e se move no tempo, é representado (mas não finalizado) no texto literário” (RENFREW, 2017, p. 145), na prosa em foco, tal conceito surge a partir da forma como o “eu” valorou a sua compreensão dos espaços diversos onde se viu situado e da passagem do tempo sentida a partir desses lugares de fala. Retornando à passagem do texto literário no qual foi destacada a destruição de Malanje, o entendimento exposto antes adquire razão de ser pela capacidade de ler no “monte de destroços e de ruínas” (ANTUNES, 2010, p. 177), que aquela província angolana se tornou, o produto da ação humana ao longo de um conflito que ainda permanece quando do momento de fala do narrador. Tal leitura motiva a reflexão sobre 89 É necessário fazer a ressalva, desde já, que a presença do conceito de cronotopo, entendido como a “interligação fundamental das relações temporais e espaciais, artisticamente assimiladas em literatura” (BAKHTIN, 1993, p. 211), nesta tese se dá “apenas” para elucidar melhor a unidade estabelecida entre tempo e espaço na trama de Lobo Antunes em algumas passagens do texto, de modo que não se deseja aqui exceder os limites desta análise e realizar um ostensivo estudo sobre a temporalidade do romance a partir da questão do cronotopo. Uma pesquisa com essas características pode ser exemplificada pela tese “A metaficção historiográfica no romance ‘Os cus de Judas’, de Antonio Lobo Antunes” (2007), produzida por Haidê Silva, pela Universidade de São Paulo. A referência completa da pesquisa citada encontra-se no final deste estudo. 122 o potencial dos indivíduos de transformarem o espaço pelo qual dizem lutar em “uma terra irreconhecível pela estúpida violência inútil das bombas” (ANTUNES, 2010, p. 177). Obviamente, não se restringe ao texto antuniano a formação de uma unidade entre as dimensões espaciais e temporais, determinando a maneira como a realidade vem a ser observada, já que em “literatura, o processo de assimilação do tempo, do espaço e do indivíduo histórico real que se revela neles, tem fluído complexa e intermitentemente” (BAKHTIN, 1993, p. 211). Para fazer um breve parêntese sobre esse aspecto, tal assimilação influiu na forma como cada gênero apresentou as marcas do processo de passagem do tempo em seus textos, o que gerou uma profusão de cronotopos. Essa diversidade é sublinhada por Bakhtin a partir da sua análise de uma variedade de gêneros do romance europeu, indo desde o romance grego até o romance de Rabelais, como uma forma de constatar “a existência em literatura de fenômenos de tempo profundamente variados, o que dificulta ao extremo o processo histórico- literário” (BAKHTIN, 1993, p. 212). No entanto, voltando às especificidades da prosa em foco, a relação com o conceito de cronotopo pode ser deslindada nesse texto mediante o revestimento de sentido que o espaço adquire em situações como a que fora recortada, sendo então descrito a partir da ação do tempo. Tendo em vista que o contexto no qual se ancoram a maioria dos eventos expostos na narrativa corresponde a um ambiente caótico, desestruturado pela conjuntura bélica, o traçado do território angolano é sensivelmente demarcado pela visão do narrador que compreende tal espaço a partir da presença histórica da sistemática colonial. Isto é, a voz narrativa concebe o espaço angolano e as personagens que nele se movem a partir das transformações históricas geradas no período anterior à colonização, no decorrer desta (com a luta que caracterizou a defesa pela manutenção de tal política) e, para além desse momento, na deflagração da guerra civil. Em qualquer uma dessas fases, o olhar sobre o ambiente observado capta em cada elemento ali evidenciado ou a nostalgia frente a uma época na qual os nativos ainda não estavam sob o jugo dos brancos, ou ainda, a continuidade das atrocidades vividas em um confronto armado, mesmo após a independência de Angola. Por esse motivo, mesmo alternando as regiões observadas no tocante à ex-colônia portuguesa, a leitura sobre esses locais surge delimitada por uma dimensão histórica que fundamenta uma percepção negativa do tempo. Tal percepção é compreendida ante as transformações operadas desde o início da colonização que projetaram um mundo em desordem, o qual 123 Malanje, por exemplo, ilustra uma vez convertida em um “campo raso de cadáveres, de costelas fumegantes de casas, e de morte” (ANTUNES, 2010, p. 177). Se o cronotopo “equivale à construção de mundo que está na base de todo texto narrativo, compreendendo uma combinação coerente de indicadores espaciais e temporais” (BEMONG; BORGHART, 2015, p. 17), no trecho realçado, aquele ajuda a compor o motivo da guerra que, dentro de uma perspectiva histórica, estabelece dois momentos distintos: a queda do império com o retorno das tropas para Portugal e a disputa de poder no país recém-independente. Tais marcos temporais são apresentados a partir do próprio trânsito que o “eu” realiza, pois é no movimento espacial de regresso daquele sujeito à terra natal que se decreta o fim da era ultramarina portuguesa e, ao mesmo tempo, prenuncia-se o início dos confrontos internos em virtude da defesa dos interesses de seletos grupos em Angola. A ambição dos “mulatos pretensiosos, cujos enormes carros de luxo apoiavam no passeio os narizes de esqualo dos faróis” (ANTUNES, 2010, p. 177), já indicava a luta pela manutenção de antigos privilégios enquanto a maior parte da população amargava não só as consequências da Guerra Colonial, mas também as implicações de uma sociedade profundamente desigual. Assim, o motivo da guerra ajusta-se à elaboração de um universo negativo no qual se enxerga a morte em vários aspectos, dado que a destruição da terra dos diamantes, uma “cidade devastada, desaparecida, um templo de Diana de paredes escuras e de muros derrubados” (ANTUNES, 2010, p. 178), simboliza, em uma extensão de sentido, o fenecimento dos indivíduos inseridos nesse processo. Enfim, diante da impossibilidade de segmentar a unidade espaço-temporal apresentada, a qual surge tingida de uma tonalidade emocional oriunda das impressões do “eu” sobre o cenário observado, o ex-alferes pôde refazer o percurso e, a partir dos escombros desse espaço destruído, reavivar a imagem anterior daquela cidade. Em um movimento que se desloca para frente e para trás, Malanje era percebida como uma terra de riquezas, embora elas não tenham pertencido a todos, apenas aos “que enriqueciam e engordavam à custa do contrabando dos diamantes, à custa da camanga 90 , do comércio furtivo das pedras” (ANTUNES, 2010, p. 178). Contudo, pela fusão dos índices espaciais e temporais, é possível afirmar que uma mesma leitura é passível de ser feita sobre a cidade referida dentro do transcurso temporal observado, já que, de uma forma 90 Vocábulo atribuído ao comércio clandestino de diamantes ou de pedras preciosas em Angola. 124 de outra, Malanje permanece explorada por interesses outros, com um destino construído a partir da ambição daqueles que defendem apenas os seus próprios interesses. Para finalizar a relação tecida com a questão do cronotopo no romance em estudo, o olhar desloca-se de um contexto social, com a intervenção do tempo histórico, para um cariz mais pessoal que envolve o processo de desenvolvimento do narrador. Nessa senda de foro mais íntimo, destaca-se o papel da casa na qual cresceu o médico alferes, como um “lugar da interseção das séries espacial e temporal, lugar de condensação dos traços do decurso do tempo no espaço” (BAKHTIN, 1993, p. 353). O antigo lar figura como um índice das transformações provocadas pela ação temporal, acrescentando-se a essa conjuntura o modo como tal ação é percebida pelas personagens que se movem no ambiente destacado: À medida que os filhos passavam a viver sozinhos e a abandonavam, a minha mãe ia transformando os nossos quartos em salas, os divãs sumiam-se, quadros desconhecidos surgiam nas paredes, a nossa presença apagava-se dos compartimentos que habitáramos [...]. Quando regressávamos de visita para jantar era como se a casa fosse simultaneamente familiar e estrangeira: reconhecíamos os cheiros, as cómodas, os rostos, mas em vez de nós encontrávamos os nossos retratos de infância espalhados pelas mesas, abertos em sorrisos de uma inocência inquietante, e afigurava-se-me que a minha fotografia de menino havia devorado o adulto que sou, e que quem de facto existia verdadeiramente ali era uma mecha de cabelos louros por cima de um bibe 91 às riscas, olhando acusadoramente para mim através do difuso nevoeiro de anos que nos separava (ANTUNES, 2010, p. 120, grifos nossos). De início, é válido salientar que, diante do trânsito espaço-temporal que a prosa apresenta, não seria possível observar no texto antuniano em questão uma única forma de se evidenciar a leitura construída pelo narrador sobre essas instâncias, algo que diz respeito à posição singular que o “eu” ocupa em relação a momentos e locais diferentes observados no texto. Ademais, “diferentes atividades e representações sociais dessas atividades presumem diferentes tipos de tempo e espaço. Tempo e espaço não são, pois, meras abstrações ‘matemáticas’ neutras” (MORSON e EMERSON, 2008, p. 384). Dito isso, em primeiro plano, avulta o entendimento de que a descrição da morada da família do ex-combatente, no decorrer do tempo, absorve os valores e as 91 O termo refere-se a uma espécie de avental, quase vestido, com mangas, utilizado para que as crianças não sujassem a roupa durante as refeições. 125 emoções sentidas pelos variados sujeitos que se defrontam com aquele espaço no interior da atividade rememorativa do “eu”. Por essa concepção, ao passo que o ambiente familiar esvaziava-se e a figura materna sentia que os filhos “a abandonavam”, o olhar sobre a casa para essa progenitora atestava o seu sentimento de solidão e, ao mesmo tempo, tornava evidente a chegada da sua velhice. Já para o outro ramo dessa árvore genealógica, a casa, vista de forma coletiva na voz do narrador que reproduz o pensamento dos filhos, figura “simultaneamente familiar e estrangeira”, já que desse espaço sente-se o saudosismo proveniente da recordação infantil, porém já não é possível reconhecer-se como um habitante desse lugar. Uma vez que se compreenda que o cronotopo “é uma ideologia modeladora da forma específica para a compreensão da natureza dos eventos e ações” (MORSON e EMERSON, 2008, p. 384), o foco sobre a casa do “eu narrador” torna-se um via, pela apreensão da passagem do tempo ali engendrada, para que seja possível entender a dissolução do plano familiar do ex-médico das tropas lusas. Tal situação é suscitada a partir das alterações realizadas na residência, na qual os cômodos que antes guardavam uma vivência contínua dos entes queridos tornam-se, anos depois, espaços de convivência passageira – “a minha mãe ia transformando os nossos quartos em salas”. Com essa atitude, percebe-se que as modificações oriundas do decurso do tempo provocam uma mudança de comportamento na figura materna, a qual deseja excluir a visão de que os filhos cresceram e a deixaram no lugar onde ela, de certo modo, foi esquecida. Por isso, as mudanças no cenário apenas concretizam uma experiência já vivenciada pela figura feminina em questão, o que corresponde à necessidade de não ter em vista a ausência dos filhos já adultos, por esse motivo, conforme afirma o narrador, à medida que o tempo avançava, “a nossa presença apagava-se dos compartimentos que habitáramos”. A lembrança mantida do ambiente familiar refere-se a um tempo no qual o lar ainda permanece unido, todos sob o mesmo teto, de modo que se apaga a constatação de que os filhos já não dormem junto à mãe, porém são preservados, em substituição, os “retratos de infância espalhados pelas mesas, abertos em sorrisos de uma inocência inquietante”. A casa reintroduz o contexto infantil e, ao mesmo tempo em que reduz o adulto que o narrador se tornou a “uma mecha de cabelos louros por cima de um bibe às riscas”, destaca a transformação operada naquele indivíduo pelo movimento temporal. O “difuso nevoeiro de anos” que separava o “eu” representado na foto do “eu” adulto permite inferir a distância existente entre cada versão dessa mesma pessoa, já que a 126 “concepção de tempo traz consigo uma concepção de homem e, assim, a cada nova temporalidade, corresponde um novo homem” (AMORIM, 2006, p. 103). Por essa medida, a casa do período infantil projeta no homem adulto um afastamento em relação a uma fase de si que já não lhe corresponde mais, de forma que, nesse espaço, o narrador protagonista sente-se como “uma espécie de gatuno [...] do universo doméstico de um outro” (ANTUNES, 2010, p. 120). Este acusa de maneira veemente seu espaço, pois naquele lar de outrora, nas palavras do narrador, “a minha fotografia de menino havia devorado o adulto que sou” (ANTUNES, 2010, p. 120). Por conseguinte, a experiência temporal que o romance em estudo desenvolve nutre-se de um vasto conjunto de micronarrativas que perfazem a história de vida do narrador-personagem, configurando-a fora de uma ordem objetiva ou cronológica. Com efeito, as “imagens e as coisas, que mudam com a passagem do tempo, são absorvidas pelo romance antuniano, que as faz ancorar e alijar, como ilhas autónomas que constituem, porém, um arquipélago” (CARDOSO, 2016, p. 179). Neste, o curso da vida do “eu” vem a ser percebido entre os inúmeros deslocamentos temporais que provocam no texto um efeito brumoso, mas que adquirem sentido, justamente, por meio da postura ativa do leitor que se põe a construir uma associação significativa entre os eventos distanciados no tempo. A fim de que tal ação vigore, não é possível ignorar a influência dos aspectos subjetivos, determinantes do fluxo memorial do “eu narrador”, para que a trama seja apresentada de uma forma ou de outra na obra em questão. Na verdade, seja no encaixe de memórias, seja na simulação projetada pela voz narrativa de um passado que se presentifica à medida que vem à tona, a experiência temporal é apresentada no romance de uma forma singular. Isso se torna uma consequência da leitura de mundo realizada por alguém que se sente ainda envolvido em uma memória traumática. Esta “aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora” (BOSI, 2003, p. 36) que dificulta, frente às circunstâncias vividas, a imposição de uma ordem, de uma organização a uma vida que se descortina em meio a um contexto de caos. Tal universo, em que predomina a ruptura, o rompimento com as certezas antes tidas como inquestionáveis, produz o esfacelamento da estrutura narrativa como uma estratégia criativa para a apresentação de “uma realidade que deixou de ser ‘um mundo explicado’” (ROSENFELD, 1996, p. 86). Por esse motivo, o desarranjo entre trama e fábula observado atinge um nível ímpar, chegando ao ponto em que a força das situações vividas irrompe o narrado, desestruturando a própria sentença. A deformação 127 temporal que a narrativa possui coaduna-se com a forma como o tecido verbal é elaborado, de modo que se fissura também a disposição das orações para atender ao fluxo memorial do “eu”: compreende o que é querer fazer amor e não haver com quem, a miséria de ter de masturbar-se a pensar em nada [...] limpar os dedos às cuecas subir a braguilha e sair para a parada, Marcha lento e à vontade nossos cadetes ordenava o alferes na instrução de Mafra, convento absurdo monstruoso idiota cretino, Damas e cavalheiros perdão senhores oficiais o conjunto Vera Cruz com o vocalista Tó Mané deseja a Vossas Excelências um resto de tarde feliz, o sujeito do microfone desafinava boleros poeirentos de 78 rotações a brilhantina das melenas cintilava o sapador 92 girou a cadeira para o capelão arreganhou a tacha e inquiriu A menina dança, a primeira anticarro estoirou numa coluna dele e fui à mata de helicóptero recolher-lhe os feridos, Médico e sangue médico e sangue médico e sangue pedia o rádio, dadores em bicha de braço arregaçado à entrada do posto, náufragos inertes nas macas de pálpebras descidas a respirarem de leve por um canto dos lábios (ANTUNES, 2010, p. 105-106). O denso fluxo de pensamentos que desponta em vários momentos na trama elimina a possibilidade de que se estabeleça uma linha de causalidade entre os eventos rememorados. A multiplicação de temporalidades, evidenciada por meio da pluralidade de situações evocadas, “não só modifica a estrutura do romance, mas até a da frase que, ao acolher o denso tecido das associações com a sua carga de emoções, se estende, decompõe e amorfiza ao extremo, confundindo e misturando” (para fazer uso das considerações de ROSENFELD, 1996, p. 83) os acontecimentos vividos. Por essa leitura, a ausência de pontuação e a presença de várias orações coordenadas, que são justapostas sem que seja possível atribuir a estas uma conexão mais palpável, fazem com que ocorra a ruptura com o que seria a base de um enredo tradicional no tocante ao encadeamento lógico dos motivos na trama. A ordem lógica do período composto desaparece frente à dificuldade de reconhecer no trecho citado, por exemplo, a presença da oração principal diante da eclosão de várias vozes que fraturam o discurso do narrador, sendo marcadas no tecido textual apenas pela presença da letra maiúscula (situação que é reiterada várias vezes na prosa). 92 O vocábulo é empregado com referência ao árduo exercício de desbravar a terra para dela retirar equipamentos de guerra ali plantados durante os anos de conflito em Angola. A figura do sapador torna- se, então, de fundamental relevância, pois dela depende a identificação de áreas que venham a conter em seu solo a presença de explosivos. 128 Destarte, a distorção temporal plasma-se na forma como são dispostas as palavras no texto, de forma que a experiência caótica reavivada não só significa o trânsito entre tempos analisado, mas também se traduz na desestruturação do que poderia ser considerado característico de uma escrita mais convencional. Seguindo essa perspectiva, o olhar aqui lançado permanece à cata de mais uma via pela qual a ação desmobilizadora é percebida no romance, entendendo que a reverberação de um mundo revolto e confuso não se restringe, conforme visto até agora, ao plano temático da narrativa. Nesse sentido, mais do que sinalizar os aspectos que fazem parte da escrita peculiar de Lobo Antunes na obra em questão, o foco recai, a partir deste momento, sobre os elementos que tornam a linguagem utilizada por esse escritor mais uma forma complexa de explorar a presença do absurdo no texto, deturpando linguisticamente uma ordem imposta. 3.1.3. O desmantelamento da escrita na rememoração da Guerra Colonial Não seria nada inusitado o entendimento de que a escrita de uma obra literária impõe tanto ao autor quanto ao leitor a experimentação de um desafio, uma luta com as palavras e com a maneira como elas são dispostas no papel. No caso específico da obra de António Lobo Antunes, não há nenhum desvio dessa compreensão, visto que, na perspectiva desse literato 93, “escrever é também tentar vencer-se a si próprio, é tentar ultrapassar os limites de uma constante insatisfação com o que escreve e, em particular, com o como escreve” (ARNAUT, 2011, p. 71). O modo singular com o qual os textos de Lobo Antunes são construídos também obriga ao leitor a uma postura diferenciada frente à tarefa que se descortina, aliás, seguindo o conselho do narrador da crônica “O passado é um país estrangeiro” 94, talvez fosse “um erro lê-los, parece-me. Devem-se farejar como os bichos e ir cavando, cavando” (ANTUNES, 2006, p. 283). 93 Em entrevista à María Luisa Blanco, Lobo Antunes comenta sobre os seus anseios relacionado à sua escrita e ao trabalho que envolve o seu ofício: “O que pretendo é transformar a arte do romance, a história é o menos importante, é um veículo de que me sirvo, o importante é transformar essa arte, e há mil maneiras de o fazer, mas cada um tem de encontrar a sua. [...] As emoções são anteriores às palavras e o repto é traduzir essas emoções, tentar que as palavras ‘signifiquem’ essas emoções. É um desafio impossível e aquele que creio que se deva tentar” (2002, p. 125). Em outro trecho da mesma entrevista, o autor declara: “Nunca conseguirei o romance que quero fazer porque, primeiro, se o fizer, para quê continuar a escrever?; depois, porque é uma luta constante com as palavras, com a resistência das emoções, mas esse é precisamente o encanto do meu trabalho” (2002, p. 128). 94 O texto citado faz parte do Terceiro Livro de Crónicas (2006). 129 A atitude proposta seria condizente com um universo narrativo como o que vem sendo deslindado em Os Cus de Judas, em que o dito surge, muitas vezes, entrecortado, e as conexões entre os pensamentos e os acontecimentos expostos são dissolvidas. Cabe, então, ao leitor assumir uma conduta mais ativa e, assim, procurar estabelecer um nexo entre as situações apresentadas, “cavando” um sentido, mesmo recôndito, para os aspectos que fazem parte dessa complexa estrutura textual. De início, o impacto diante da forma como se apresenta a escrita no romance em foco diz respeito à visão de que tais aspectos compõe “um singular caminho de fuga a um certo romance de índole tradicional, ou àquilo que se designa(va) por Literatura” (ARNAUT, 2011, p. 73). É justamente esse “caminho de fuga” que vem a ser esboçado na análise em questão, a fim de que, pela combinação verbal presente no romance, seja possível observar os traços característicos dessa peculiar forma narrativa. A complexidade dessa empreitada revela-se, sobretudo, pela tentativa de estabelecer um elo entre a maneira como o plano linguístico é apresentado e as relações de sentido que constituem esse cenário em desordem que caracteriza a prosa. Dessa maneira, parte-se do princípio de que o mundo fragmentário que a escrita possui seria uma extensão representativa do contexto social com o qual o romance se relaciona, o qual envolve um período de guerra, o desencadeamento de uma revolução no solo português, além das consequências da derrocada de um império. Contribuindo com a edificação desse mundo fragmentário, destaca-se na narração do “eu” uma profusão de imagens, as quais tornam a linguagem por ele utilizada algo que prima pelo excesso. Há no texto uma abundância de metáforas, comparações que fazem do dito uma espécie de caleidoscópio que ilustra os pensamentos do narrador, aproxima momentos distanciados no tempo e confere à prosa, em dadas circunstâncias, tons expressivos de lirismo. A overdose polissêmica citada qualifica o romance como um adepto a certo barroquismo linguístico, o qual é sugerido não só pela redundância com a qual várias imagens são expostas na obra, mas também pela extravagância que algumas delas possuem, a exemplo da comparação expressa a seguir: “Um sol alegre como o riso de um polícia toca xilofone nas persianas” (ANTUNES, 2010, p. 95). O paralelo criado entre elementos distantes, de acordo com uma lógica consensual, desvela a possibilidade de uma renovação do sentido, o qual, longe de configurar-se imutável na prosa, atende ao processo imaginativo que invade, por vezes, o relato do ex-combatente. Não obstante, é necessário reconhecer o fato de “as 130 inusitadas alianças vocabulares poderem apresentar, duplamente, um efeito de atracção e de repulsa, esta provocada por um sentido de estranhamento, logo de fuga, ou de mudança, em relação à arte tradicional de uma escrita lisa, clara” (ARNAUT, 2011, p. 75) 95 . O que pode ser concebido como um culto ao mau gosto, um problema na capacidade de equilibrar as estratégias linguísticas utilizadas, traduz-se na narrativa em questão como um desvio e, porque não, uma resposta construída esteticamente a um mundo em que as questões não estariam dispostas tão uniformemente. Dito de outra maneira, o afastamento de uma escrita mais precisa, quiçá, mais tangível talvez correspondesse melhor às necessidades expressivas de um sujeito envolto em um desarmônico fluxo de memórias e em um contexto repleto de mudanças. Tal questão faria parte, assim, do receio compartilhado pelos escritores modernos, segundo Auerbach, de “impor à vida, ao seu tema, uma ordem que ela própria não oferece” (1971, p. 481). O repertório de símiles que brota na narrativa por meio das várias expressões introdutórias dessas comparações (“como”, “tal”, “à maneira de”, entre outras) complementa os vazios que são inerentes à ação rememorativa. Por essa medida, as inúmeras imagens trazidas à tona acrescentam ao dito as emoções causadas no “eu” à medida que as lembranças são evocadas, compondo um recurso encontrado pelo narrador para conseguir converter em palavras o que fora vivenciado. O que desperta a atenção, nesse caso, é que tal expediente é bastante recorrente no texto, seja para ampliar a leitura de situações banais, a exemplo do revestimento de sentido dado às vozes ouvidas no alto-falante do aeroporto, com suas “sílabas de algodão que se dissolvem nos ouvidos à maneira de fins de rebuçado na concha da língua” (ANTUNES, 2010, p. 11); seja para reforçar a impossibilidade de apaziguar o isolamento vivido: Achamo-nos em condições, portanto, de fazer na cama lá do fundo um amor tão insonso como a pescada congelada do restaurante, de que a única órbita nos fita agonias vítreas de octogenário entre os verdes desbotados das alfaces. A sua boca possui o gosto sem gosto dos biscoitos antigos envoltos no açúcar do baton, a minha língua é um pedaço de esponja enrolada nos dentes, inchada pela espuma oleosa da saliva (ANTUNES, 2010, p. 140-141). 95 Ana Paula Arnaut, ao analisar a escrita antuniana, destaca que os primeiros romances do autor, apesar do sucesso junto ao público, despertaram uma crítica negativa sobre o que foi considerado por alguns como uma imperfeição na linguagem utilizada, a qual feria a “tradicional beleza” (ARNAUT, 2011, p. 75) da forma literária. 131 A predição negativa lançada sobre o ato sexual com a companheira enigmática do narrador é ampliada pela presença de várias metáforas e comparações que aludem ao universo marítimo, captando elementos desse ambiente que são inseridos em um clima de apagamento de qualquer excitação, a exemplo da metáfora elaborada com a língua do ex-combatente que é simbolizada como “um pedaço de esponja enrolada nos dentes, inchada pela espuma oleosa da saliva”. No trecho recortado, equaciona-se em um mesmo ângulo um olhar sobre o sexo aliado a uma sensação de fenecimento, já que a relação carnal não é percebida a partir de um prisma marcado pelo entusiasmo com a ação a ser praticada, com o alcance de uma possível harmonia entre os indivíduos. Na verdade, ao sexo imaginado pelo “eu” são associados signos que corroboram com um quadro de ruína, de decadência, em meio ao qual não se enxerga a chance de deleitar-se com nada. Apelando para uma atmosfera dos sentidos, em especial, para o campo gustativo, o “eu narrador” rompe com as sensações comuns a um contexto erótico, já que tudo é visto sem sabor – “A sua boca possui o gosto sem gosto dos biscoitos antigos” –, incluindo a própria relação sexual em si que é vista como “um amor tão insonso como a pescada congelada do restaurante”. Com efeito, a falta de libido é sublinhada a partir do desfastio que o sujeito revela diante das iguarias apresentadas – a pescada congelada, as alfaces e seu verde desbotado, além dos biscoitos sem gosto –, de modo que a ausência de apetite significa, pelos paralelos construídos, a falta de desejo do casal. Ao mesmo tempo em que a voz narrativa impregna o seu modo de expressão com uma variedade de imagens que fazem parte do universo polissêmico apresentado, há a presença no texto de um vocabulário que não seria considerado usual em um contexto literário. Uma vez que se entenda que a escrita antuniana “resulta de aspectos dispersos, fragmentários, que se encontram presentes na construção multifacetada deste mundo romanesco” (CARDOSO, 2016, p. 176), torna-se mais compreensível a leitura de que a linguagem empregada pelo “eu narrador” na prosa em estudo possui uma sensível variedade linguística. Esta é construída por meio do trânsito característico de uma escrita que vai de um trabalho artístico com as metáforas produzidas ao processo que retira a palavra do seu ambiente de fala mais comum, mais prosaico. A heterogeneidade linguística (aspecto característico da fala do narrador- personagem) exemplifica, de acordo com suas particularidades, a perda do “caráter de imutabilidade semântica do objeto” (BAKHTIN, 1993, p. 420), o que define o gênero 132 romance e seu contexto inacabado. Tal questão, no caso específico da prosa em análise, é observada pela variação de formas linguísticas que surgem na narrativa consoante com a movimentação temporal que o texto engendra. Em dados momentos, o olhar sobre o presente é construído por meio de uma crítica ao comodismo dos concidadãos, configurados, segundo a ótica do “eu”, como “os nossos conformados contemporâneos” (ANTUNES, 2010, p. 123). Já em outras circunstâncias, em que a tragicidade da situação influi na maneira como é relatado o acontecimento, este passa a ser exposto a partir de um posicionamento mais ostensivo no qual não haveria espaço para um sentido mais figurado frente à urgência do dizer. A estrutura romanesca multifacetada passa a ser visualizada com base em um conjunto de elementos que ajudam a formatar, por exemplo, a ambivalência de que se nutre o linguajar do médico alferes. Aprofundando o que fora comentado anteriormente, em certas ocasiões, o indivíduo que assume a narração não só se vale de metáforas, as quais deixam transparecer o tom eloquente daquele que fala, para simbolizar determinados aspectos de sua vida e da dos demais, mas também procura suavizar tais questões dentro desse movimento significativo. Para exemplificar o exposto, é possível sublinhar a forma como o “eu” floreia o dito acerca da masturbação realizada pelos majores que, no local destinado à refeição dos militares, saudavam a entrada de uma mulher, “deixando atrás de si, perceptível na tremura dos galões, um rastro cochichado de cio de caserna, que se cristalizaria em esquemas explicativos no mármore venoso dos urinóis, destinado à alfabetização dos faxinas” (ANTUNES, 2010, p. 19, grifos nossos). A metáfora elaborada que modera a forma com a qual o narrador se refere à “ginástica diária” (ANTUNES, 2010, p. 19) dos oficiais revela, mesmo que dessa ação sobressaia uma ironia refinada, um cuidado em demasia com a escolha dos vocábulos empregados, algo que passa a ser contraposto em outros momentos da trama pela obscenidade com a qual o mesmo ato vem a ser qualificado. Os “esquemas explicativos no mármore venoso dos urinóis” que aparecem no início da narração, quando se evoca a lembrança do indivíduo que se preparava para o conflito em África no campo militar de Santa Margarida em Portugal, cedem lugar à rudeza com a qual tal experiência passou a ser percebida no interior de um cenário de guerra. A dualidade que move a transição de uma forma de expressão para outra poderia ser explicada, em uma primeira hipótese, pela percepção de que quanto mais a noite avança e com ela o teor alcóolico do “eu”, mais este perderia o pudor na maneira como trata as situações vividas em seu relato. Como produto da primeira conjectura, advém a 133 segunda, nesta se esboça a leitura de que o fato do sujeito abandonar as suas reservas iniciais faria com que ele explorasse mais profundamente os acontecimentos do passado na guerra. Nessa perspectiva, a aspereza das situações vivenciadas determina que estas sejam vistas a partir de uma visão de mundo mais factual, ou seja, a partir da dimensão atribuída por alguém que, verdadeiramente, passou por essas experiências. Tal concretude, por sua vez, encontra sua via de representação na crueza que a linguagem do narrador assume, condizente com a dureza de sua vida: “há onze meses que só vejo morte e angústia e sofrimento e coragem e medo, há onze meses que me masturbo todas as noites, como um puto, a tecer variações adolescentes em torno das mamas das fotografias do cubículo de transmissões” (ANTUNES, 2010, p. 80). Diante da agonia sentida no cenário do confronto colonial que tanto a repetição da contagem do tempo quanto a presença do polissíndeto no trecho ajuda a intensificar, as escolhas lexicais do ex-médico do exército português revelam a presença no texto de uma linguagem ordinária que repercute, até mesmo, um vocabulário chulo na prosa. Assim, longe de uma imagem atenuada, ou ainda, ornada por um exercício metafórico, a masturbação é apresentada, nesse momento, dentro de um panorama mais objetivo e, por essa medida, mais rústico, configurado por meio do uso de uma variante informal de fala. A deturpação de um dado padrão linguístico inerente à manutenção de uma leitura mais reacionária da linguagem literária torna-se evidente perante uma escrita que faz ouvir a linguagem diária, fazendo uso de, para usar uma expressão de Ana Paula Arnaut 96 sobre o romance em questão, um “leque vocabular excêntrico e ex-cêntrico” (2011, p. 74). Nesse sentido, a escrita peculiar de Lobo Antunes destitui certos paradigmas no tocante ao trato com a palavra na obra literária, seja por reunir um conjunto variado de imagens por meio do recurso da metáfora e da comparação, seja pela relevância atribuída à oralidade do cotidiano no texto. É válido ressaltar que a atitude do narrador, ao trazer para o texto combinações atípicas de vocábulos, não estaria transgredindo apenas um dado modelo literário de escrita e, sim, ampliando essa ação, violando outras tantas ordens a que o sujeito estaria submetido enquanto ser social. Em outras palavras, não se ignora neste momento da análise o fato de que quando o indivíduo qualifica, por exemplo, a sua filha recém- nascida de “maçã do meu esperma” (ANTUNES, 2010, p. 74) não é somente certa 96 Arnaut (2011, p. 44) afirma que a expressão referida já foi utilizada para qualificar escritas como a de Álvaro de Campos da “Ode triunfal”. 134 sacralidade da forma literária que está sendo infringida. Ao retirar a singeleza dessa situação e inserir um filtro irônico sobre o que narra, o “eu” questiona a funcionalidade dos arquétipos sociais de boa conduta em um contexto de guerra, leitura que merece um exame mais detalhado, o que será feito no próximo capítulo desta pesquisa. Neste instante, cabe averiguar o alcance a que chega a crueza da linguagem empregada pela voz narrativa para se referir a alguns episódios traumáticos vividos no solo africano, principalmente, no tocante ao uso do palavrão. De início, é válido salientar que, frente ao impacto causado por tal vocabulário, faz-se necessário considerar a presença do tabuísmo na obra a partir de uma leitura contextual, como um efeito de sentido proveniente do cenário que estaria sendo explorado, o qual corresponde, essencialmente, ao ambiente do confronto colonial. Por esse motivo, as expressões, tomadas como um exemplo de vulgaridade, são observadas no texto literário em foco como uma manifestação, talvez a única possível, de uma revolta, da contrariedade com o absurdo que o sujeito se vê obrigado a suportar: sãos os guerrilheiros ou Lisboa que nos assassinam, Lisboa, os americanos, os russos, os chineses, o caralho da puta que os pariu combinados para nos foderem os cornos em nome de interesses que me escapam, quem me enfiou sem aviso neste cu de Judas de pó vermelho e de areia, a jogar as damas com o capitão idoso saído de sargento que cheirava a menopausa de escriturário resignado e sofria do azedume crónico da colite, quem me decifra o absurdo disto (ANTUNES, 2010, p. 44). A referência a um campo lexical, que poderia receber naturalmente a adjetivação de escatológico, recupera um aspecto comum ao aviltamento observado. Em outras palavras, resgatando a concepção de que os “rebaixamentos grotescos sempre fizeram alusão ao ‘baixo’ corporal propriamente dito, à zona dos órgãos genitais” (BAKHTIN, 2013, p. 126), tais elementos surgem na passagem recortada como uma forma de simbolizar a degradação à qual os soldados foram reduzidos. Assim, retoma-se uma leitura que faz parte do imaginário social desde a antiguidade a fim de compor um quadro negativo sobre a realidade vivenciada na guerra, em que a explosão da angústia sentida diante da impossibilidade de decifrar o porquê de tamanha barbaridade encontra no xingamento a sua via de expressão de uma ira silenciada. É necessário ter em vista que cada época desenvolve uma postura crítica diferenciada sobre o que é visto como vulgar e dada “a permanência, até os nossos dias, de limites muito precisos no que diz respeito às expressões que fazem referência direta 135 ou apenas aludem à zona e às funções dos órgãos genitais” (BRAIT, 1999, p. 83), é possível refletir sobre o efeito que o descumprimento desses “limites” em um contexto recém-saído de um período de repressão do Estado provoca. Se o clima relembrado pelo “eu” envolve uma política de censura, de imposição de poder sobre os demais, a constante alusão a uma forma linguística mais debochada caracteriza-se como uma réplica a esse sistema que calava nos indivíduos o seu ímpeto de insubordinação. Além disso, dentro de um panorama histórico no qual interesses econômicos externos influíam nos descaminhos da guerra – “sãos os guerrilheiros ou Lisboa que nos assassinam, Lisboa, os americanos, os russos, os chineses, o caralho da puta que os pariu combinados” –, o narrador encontra na transgressão linguística a forma de violar a hipocrisia desse contexto. Essa espécie de contravenção, aliás, está presente no texto a partir de uma série de procedimentos diferenciados, os quais, aos poucos, vêm a ser elucidados nesta análise. No trecho recortado, por sua vez, o “rompimento com os tabus linguísticos” (BRAIT, 1999, p. 85) sinaliza a reposta coletiva que os oficiais portugueses desejavam manifestar às engrenagens de um sistema que, ignorando a insatisfação dos indivíduos de se manterem em um “espanto de pólvora” (ANTUNES, 2010, p. 44), preocupava-se apenas com os dividendos que cada grupo lucraria com o prolongamento do conflito. Dessa maneira, a seleção de vocábulos que fogem a uma linguagem polida, ou mesmo, alusiva a um discurso de pompas militares produz o desvelamento de leituras que permitem pôr em causa a integridade da aparência venturosa da qual se reveste o regime estadonovista. Os questionamentos feitos pelo ex-combatente parecem assumir a roupagem de uma afirmação, devido à ausência da pontuação no penúltimo trecho citado do texto literário, o que denotaria a presença, de fato, de uma interrogação. Esta seria encenada a partir da hipótese de que o narrador assume apenas o tom de dúvida para as questões expostas quando, no seu íntimo, ele já saberia as respostas para as indagações que o afligem. Pela ira que as conclusões inferidas provocam no “eu narrador”, corporifica-se em sua linguagem um discurso extraoficial, firmado pela repercussão de uma indignação coletiva dos soldados da ex-metrópole. Por essa senda, dialogando com os demais companheiros de farda, o narrador insere em seu dito as vozes de outros que, da mesma maneira que ele, repudiam a ordem imposta, chegando a destinar a sua repulsa ao líder político maior do regime: “o comandante do pelotão assobiava de fúria, Prezado doutor Salazar se você estivesse vivo e aqui enfiava-lhe uma granada sem cavilha pela 136 peida 97 acima uma granada defensiva sem cavilha pela peida acima” (ANTUNES, 2010, p. 108). A fala grosseira insinua o desprezo com o qual os subordinados às exigências do sistema de governo português referem-se à memória do mais célebre defensor da política colonialista. Emprega-se, inicialmente, uma forma de tratamento respeitosa (“Prezado doutor Salazar”) para romper com o próprio grau de deferência utilizado, sugerindo que, diante da situação experienciada, a força inibidora que a figura de Salazar imprimia e, por extensão, a sua forma de governar já estava ruindo. A presença de vocábulos que são extraídos de um universo de fala distante daquele que seria admitido pela moralidade e pelos preceitos da ordem que o regime estabelecia compreende, portanto, uma forma de desobediência, de afrontamento, pela palavra, aos ditames oficiais. Tal aspecto adquire maior ressonância quando desperta-se a atenção sobre o papel social que os falantes desse linguajar desempenham nesse cenário enquanto militares, regidos por uma instituição que impõe a disciplina e a preocupação com o decoro. No entanto, ante ao quadro caótico experienciado, a norma, principalmente, a da língua parece perder o valor enquanto a ofensa compõe o meio de expressão de uma violência a quem se considera ser o maior responsável pela circunstância deplorável que o comandante do pelotão não consegue mais escamotear. Por tudo que fora exposto, compreende-se, assim, que o grotesco, o vulgar, aquilo que é de mau gosto no sentido ético ou até mesmo estético é, em geral, um discurso que se opõe a discursos oficiais, às diferentes normas reconhecidas e praticadas num dado momento. É aquilo que rompe a superfície da norma e põe à mostra seus latentes subterrâneos (BRAIT, 1999, p. 87). A ruptura com a variante padrão da língua e com a manifestação de uma linguagem mais condizente com o ideal de beleza defendido por uma concepção de cânone literário compreende, assim, uma manifestação inicial do conjunto de discursos que constitui o tecido romanesco em destaque. A assertiva adquire respaldo pela leitura de que, ao mesmo tempo em que se propaga uma violação das visões de mundo que regem os arranjos sociais, tais visões se fazem presentes no complexo de vozes que a trama suscita. Dessa maneira, o palavrão surge como uma ferramenta que expressa o clima de dissensão que o universo social português apresentava na época evocada, no 97 Tabuísmo utilizado em Portugal para se referir à região das nádegas ou ao ânus. 137 que se refere à formação de uma divergência entre as camadas dos setores militares e o controle político do Estado Novo. As críticas ao regime são desveladas, expondo as fragilidades desse sistema de governo, fraturando-se a imagem de uma única voz que determinaria o destino da nação, já que, “o que se tem é, pela transgressão, a exposição de diferentes formas de representar o interdiscurso, a heterogeneidade constitutiva da linguagem e de qualquer sociedade” (BRAIT, 1999, p. 86). À proporção que é intensificada a situação de angústia vivida no ambiente da guerra, o narrador amplia o uso de uma linguagem que compreende uma resposta natural à dor sentida naquele momento. Isto é, perde-se de vista qualquer comedimento para expressar a carga emocional que os episódios vivenciados na zona de combate em África possuem. Por esse motivo, a exemplo da última passagem retirada do texto literário, o desapontamento com a situação é demarcado linguisticamente não só pela presença dos tabuísmos, mas também pelo apagamento da pontuação, o que auxilia no entendimento do tom utilizado pelo comandante do pelotão para dar vazão à sua fúria. Em outras palavras, a supressão das vírgulas, no caso apontado, contribui com a leitura de como teria ocorrido o desabafo do oficial, em que os vocábulos, considerados um desacato a uma figura de autoridade, parecem rebentar de uma só vez, como uma explosão de cólera, na fala daquele sujeito. É necessário ressaltar também, neste momento da análise, a presença da repetição, a qual produz, como efeito de sentido, a amplificação da carga dramática que a circunstância focalizada possuiria. Em dados excertos da trama, a reiteração do tabuísmo chega a funcionar como um meio para enfatizar a degradação do indivíduo inserido naquele cenário de guerra: “Trazíamos vinte e cinco meses de guerra nas tripas, vinte e cinco meses de comer merda, e beber merda, e lutar por merda, e adoecer por merda, e cair por merda, nas tripas, vinte e cinco intermináveis meses dolorosos e ridículos nas tripas” (ANTUNES, 2010, p. 172). A reincidência de um vocabulário marcado pela alusão aos excrementos faz com que seja aguçado não só o sofrimento causado pela extensão do tempo decorrido no conflito (em que a referência à quantidade de meses ao invés de anos torna-se mais um estímulo para a exacerbação da agonia do “eu”), mas também o sentimento de inferioridade que o narrador demonstra ao simbolizar todo o sacrifício vivido em Angola por meio de dejetos. A repetição representa, assim, tanto a constatação do homem que se vê envolto em um confronto sem nenhum propósito, pois não haveria nada que o justificasse, nenhuma honra, afinal lutava-se e morria-se “por merda”, quanto o estado de deterioração dos soldados, 138 afastados de uma condição de vida saudável, submetidos a “comer merda, e beber merda”. A reiteração do tabuísmo pode ser compreendida, ainda, a partir da necessidade de manifestação, pela linguagem, da violência que cerca o narrador e seus companheiros de farda. Por essa ótica, o palavrão que é insistentemente repisado torna-se, paradoxalmente, a palavra de ordem daqueles que compartilham o mesmo destino trágico da guerra. Tal recurso reúne os seres que sobrevivem nesse universo por meio da simulação de uma voz de protesto que seria “audível”, devido ao contexto de repressão experienciado, apenas entre os que padecem ao redor do arame: o enfermeiro sempre a repetir Caralho caralho caralho veio acocorar- se ao pé de nós, todos dizíamos Caralho de boca fechada, o capitão segredava Caralho ao copo de uísque, o oficial de dia colocou-se em sentido diante da bandeira e os seus dedos, que ajeitavam a boina, gritavam Caralho, os cães vadios que nos roçavam os tornozelos gemiam Caralho nos implorativos olhos molhados (ANTUNES, 2010, p. 63). A recorrência de um léxico ligado à sexualidade retira o palavrão sublinhado no trecho em foco de um contexto de interdição para convertê-lo em uma espécie de coro ressoado como um rumor, em que a ira ali contida já seria presumível somente pelas expressões daqueles que diziam “Caralho de boca fechada”. É digno de realce nessa situação o fato do tabuísmo em questão ser marcado pelo uso da letra maiúscula, um emprego que não possui uma incidência considerável no romance como um todo. Por esse motivo, a ação transgressora é ainda mais ampliada, dado que se presta certa deferência, ironicamente – “o oficial de dia colocou-se em sentido diante da bandeira e os seus dedos, que ajeitavam a boina, gritavam Caralho” –, ao impropério utilizado. O que poderia ser visto como uma impertinência vocabular para alguém que confessa repetir a obscenidade com seu “sotaque educado de Lisboa” (ANTUNES, 2010, p. 62) compreende a palavra-chave para que seja externada a inquietação que corrói os indivíduos, homens obrigados a sair de um “país amordaçado para morrer em Ninda” 98 (ANTUNES, 2010, p. 62). Diante do que foi comentado, o recurso linguístico utilizado pelo narrador para conspurcar a dinâmica oficial converte-se em uma forma de ensaiar a ruptura com o 98 Comuna angolana que se localiza na província de Moxico e que faz parte, juntamente com Chiúme, dos seis municípios dos Bundas, localizando-se a 85 quilômetros da sede municipal (Lumbala-Nguimbo). 139 silenciamento imposto no contexto de autoritarismo experienciado. Para tanto, são recuperados outros universos de fala, retirando da mudez e da ocultação, a que fora destinado pelos arquétipos da sociedade, certo vocabulário considerado indecoroso para lhe conceder uma posição de destaque na linguagem empregada na trama. Por esse motivo, um estudo sobre a presença do tabuísmo no romance em foco constitui, para utilizar novamente das considerações de Brait 99, uma “entrada para as reflexões sobre a produção de sentido e de efeito de sentido, articuladas a partir de categorias linguístico- discursivas, enunciativo-interativas, que envolvem, ao mesmo tempo, padrões éticos, estéticos, sociais, culturais e também subjetivos” (BRAIT, 1999, p. 86). Em outras palavras, examinar o emprego do palavrão no texto literário em foco desperta uma série de aspectos que abrangem desde o cenário histórico-político português suscitado, o que torna o uso desses vocábulos de calão algo mais subversivo, até o julgamento da relação entre a moral e a estética na prosa, já que os modelos socialmente aceitos para uma e para a outra são postos em causa na narrativa. Enfim, fazendo parte de um ambiente no qual já se manifesta um clima de convulsão social (relacionado, principalmente, ao período que antecedeu o fim do regime estadonovista), a linguagem empregada pelo “eu narrador” vincula-se ao panorama histórico desse “triste país de pedra e mar” (ANTUNES, 2010, p. 62) e, assim, encena a sua própria “revolução” no território das palavras apresentadas no texto. No entanto, a percepção da existência de uma sensível crueza nas escolhas linguísticas presentes na obra não se esgota com o uso do palavrão focalizado até o momento. Com efeito, em dadas circunstâncias, o léxico selecionado no romance assume uma caracterização que pode ser denominada aqui de “linguagem da guerra”. Isto é, impregnado da violência que faz parte do contexto elucidado, o vocabulário acaba fazendo jus às situações observadas, em que episódios de intensa perversidade são apresentados com frieza a partir do emprego de uma variante linguística que é proveniente daquele cenário. Nesse sentido, algumas expressões são cultivadas de forma a simplificar o significado e, talvez, a relevância, das ações sucedidas no conflito, a exemplo da ocasião em que a comissária do MPLA, Sofia, é presa pela Polícia Política e tal evento é assim retratado pelo agente da PIDE: “O cabrão escorregou risos contentes de frade diante de um banquete de galhetas: – Era boa, hã? Estava feita com os turras100. 99 Brait (1999) alude à análise feita por Bakhtin sobre o vocabulário utilizado na obra de Rabelais. 100 Termo utilizado pelos militares portugueses em Angola para fazer referência aos combatentes independentistas africanos, aos quais, no início do conflito, o regime chamava de “terroristas”. Por sua 140 Comissária, topa? Demos-lhe uma geral para mudar o óleo à rapaziada, e, a seguir, o bilhete para Luanda” (ANTUNES, 2010, p. 156). Além da alcunha atribuída aos guerrilheiros que lutavam pela independência das colônias portuguesas, vistos como traidores do império lusitano, são perceptíveis, no trecho recortado, as marcas da violência que surgem manifestas na linguagem utilizada pelo oficial da PIDE. As ações que subjugam a mulher negra colonizada são exemplificadas, inicialmente, pelo abuso sexual que Sofia havia sofrido, o que é indicado pela expressão “Demos-lhe uma geral”. Em seguida, a comissária do MPLA foi exterminada quando se tornou uma prisioneira em Angola, o que foi sublinhado pelo dito, referido em outros momentos do romance, concernente ao famigerado “bilhete para Luanda”. Nessa conjuntura, o discurso do narrador, ao recuperar algumas vozes características desse ambiente, evidencia que “o intermediário do poder utiliza uma linguagem de pura violência. O intermediário não alivia a opressão, não disfarça a dominação” (FANON, 2005, p. 55). Por essa via, o texto literário em foco apresenta uma menção ao que poderia ser admitido como certa terminologia colonial, ou seja, um vocabulário característico do jugo a que foram submetidos os filhos da terra africana e da violência que envolve esse processo, ainda mais, quando os subalternos buscam libertar-se dessa situação. Para finalizar a análise da relação tecida aqui entre a exploração das atrocidades que compõem o cenário da guerra vivenciado pelo protagonista do enredo e as formas linguísticas que esse sujeito encontra para expor tal contexto, é possível aludir a uma configuração estilística peculiar, utilizada pela voz enunciativa para se referir, por exemplo, aos seus companheiros de farda. Dito de outra forma, a fim de ampliar o sentimento de degradação que acomete os indivíduos inseridos no ambiente do confronto colonial, torna-se uma atitude comum do narrador focalizar os demais de uma forma fragmentada em detrimento de um todo esvaziado. Este surge substituído por uma fração do sujeito que se move nas situações relatadas, por consequência, apenas sobressai, na apresentação dos seres na trama, o que havia restado dessa experiência fatídica. O revestimento de significados que distingue o trabalho estético do “eu narrador”, no caso citado, realça mais uma vez a ruptura com um sentido monossêmico vez, o vocábulo “tugas” diz respeito à forma como os defensores da independência das colônias portuguesas chamavam os portugueses brancos. 141 no texto literário em relevo, o que conduz, para fazer uso das concepções bakhtinianas, “a transformações radicais na estrutura da representação literária, que adquire uma atualidade específica” (BAKHTIN, 1993, p. 420). Nesse sentido, a eleição de um modo singular para se referir às personagens na prosa adquire uma valoração particular diante do quadro social recuperado na trama. Esta revela as escolhas textuais que o autor “fez para contar a história desta ou daquela maneira, criando este ou aquele efeito, afirmando um determinado conjunto de sentidos possíveis para a interpretação da história por meio da organização das palavras sob a forma de texto” (FRANCO JUNIOR, 2009, p. 36). A escolha textual em questão compreende o que se designa aqui de “condição metonímica”, aspecto inerente a um cenário no qual o “eu” relata a visão de que, enquanto sobreviventes, “cada um de nós, os vivos, tem várias pernas a menos, vários braços a menos, vários metros de intestino a menos” (ANTUNES, 2010, p. 124). A sensação de falta, ou melhor, de perda torna-se uma constante na narrativa, de modo que o arranjo feito para referenciar àqueles que ainda perduravam nesse ambiente auxilia na composição do efeito de sentido criado, ou seja, da sensação referida. O indivíduo passa a ser configurado a partir do que nele fora extinto nesse processo, a parte é evidenciada em favor de um todo disperso, exaurido em um tempo de privação, de angústia. Um dos casos mais ilustrativos do aspecto levantado corresponde ao modo pelo qual um dos componentes da tropa passa a ser nomeado, visto que a imagem do Ferreira aparece sempre atrelada, pela visão do narrador, à perna que aquele perdera. A ausência do referido membro é lembrada, até mesmo, como uma forma de demarcar os acontecimentos decorridos na trama, a exemplo do trecho a seguir: “Escute: antes disso houvera a perna do Ferreira, ou seja, a ausência da perna do Ferreira que uma antipessoal 101 transformou num saco agonizante” (ANTUNES, 2010, p. 62-63). O efeito de sentido decorrente desse arranjo linguístico potencializa o desvendamento dos resultados colhidos pela batalha em foco, isto é, o saldo de mutilados deixados pelo conflito, um número que, muitas vezes, não se deseja ver evidenciado, tornando-se um dito bastante repisado pelo narrador, como uma forma de não se esquecer do vivido. Embora o relato possa ser visto como o meio encontrado pelo “eu” para purgar- se dos males vivenciados e, assim, olvidar a tragédia de que fora também uma vítima – seguindo o entendimento de que “Narrar, escrever, enfim, poderá ser a estrada para o 101 Mina terrestre desenvolvida com a função de massacrar ou ferir várias pessoas que estiverem próximas a esse artefato após a sua explosão. As minas antipessoais podem ser divididas em duas categorias: de explosão ou de fragmentação. As primeiras atingem ao alvo, causando os maiores danos possíveis, enquanto que as segundas expelem grande quantidade de fragmentos em altíssima velocidade. 142 esquecimento; colocar as lembranças na forma narrativa pode ser também um distanciar-se delas” (TEDESCO, 2004, p. 125) –, a repetição apresentada do recurso estilístico focalizado neste momento sugere o desejo de criticar aquilo sobre o qual ninguém fala. A partir desse desejo, é possível enfatizar uma atitude política do escritor, algo que é, geralmente, negado a sua literatura, reconhecendo-se que, embora o literário não se preste a essa ordem, a escrita envolve um ato político à medida que permite aos sujeitos repensarem os seus modos de ser/estar no mundo pelo entendimento de que muitas verdades são defendidas enquanto produtos de variadas posições ideológicas que as acompanham e/ou as determinam. O enfoque dado ao fragmento em detrimento do todo converte-se em uma forma de negar o ensejo de escamotear essa situação para que tais “chagas” não fossem expostas de modo a abalar a moral do exército, ou mesmo, a imagem da pátria e sua posição na guerra. A voz rememorativa suscita, no exemplo observado, uma via de questionamento para que o massacre de outros indivíduos não seja visto como algo comum, atinente à dinâmica do conflito e, por isso, natural, para que não sejam apagados de vez “nem a perna do Ferreira no balde dos pensos, nem os ossos do tipo de Mangando no telhado de zinco” (ANTUNES, 2010, p. 188). Dentro desse quadro demonstrativo, é possível destacar ainda um caso já citado na última passagem retirada do texto literário, correlacionado à figura do soldado de Mangando. Este, como um símbolo do ápice de violência a que se chega no âmbito de uma guerra, suicida-se e passa a ser observado pelo narrador como o “tipo sem rosto”, o qual “agoniza numa agitação incontrolável, amarrado à marquesa de ferro que oscila, e vibra, e parece desfazer-se a cada um dos seus sacões, gemendo pela lepra de ferrugem das juntas. Ventas curiosas espreitam das janelas” (ANTUNES, 2010, p. 163). A aproximação do narrador (devido ao seu papel enquanto médico das tropas portuguesas) aos acontecimentos mais atrozes no contexto bélico, de forma habitual, faz com que ele perceba o outro antes como um corpo, um paciente sem identidade específica, o que, de certa forma, justifica a maneira como o ex-combatente refere-se às vítimas desse processo agônico. Por essa leitura, avulta a impessoalidade da matéria física, já que os sujeitos perdem a sua individualidade para serem qualificados a partir dos fragmentos de suas estruturas corpóreas, tornando-se apenas “Ventas curiosas [que] espreitam das janelas”. 143 Além disso, junto a essa questão, assalta a dessacralização da morte 102 , tratada como um evento próprio da rotina do confronto colonial, tendo em vista que o indivíduo, nesse meio, passa a ser visto apenas como um organismo do qual se identificam, quando muito, os restos mortais: “a metade inferior da cara desapareceu num estrondo horrível, o queixo, a boca, o nariz, a orelha esquerda, pedaços de cartilagem e de ossos e de sangue cravaram-se no zinco do tecto tal as pedras se incrustam nos anéis” (ANTUNES, 2010, p. 160). Por consequência, o olhar sobre os demais é construído de forma negativa, e as palavras utilizadas para identificar os companheiros de farda, na verdade, provocam muitas vezes a dispersão de tais figuras, compreendidos como mais um número, uma vítima a mais da luta ultramarina. Tal olhar chega a transcender o recorte geográfico no qual a guerra se concentra para caracterizar a maneira como o “eu” percebe o mundo lisboeta, nele as pessoas também surgem reduzidas nessa “condição metonímica” peculiar ao relato melancólico do ex-combatente. Destarte, o regressar à pátria não faz com que o narrador protagonista abandone o seu modo específico de enxergar os demais que são configurados de maneira fragmentada. Por essa ótica, há o predomínio de uma linguagem extremamente taciturna, a exemplo da forma com a qual os taxistas são representados no texto: “Uma fieira de táxis imóveis alongava-se diante do aeroporto, [...] solenes como nos cortejos de enterro, pilotados por cabeças que se distinguiam mal no escuro dos estofos, mas que deviam fungar as sinusites perpétuas dos infelizes resignados” (ANTUNES, 2010, p. 86). Mais uma vez a parcela é focalizada em detrimento do todo perante o desalento com o qual o narrador observa o cenário lisboeta, dado que a palavra “cabeças” substitui a imagem dos “infelizes resignados” a que foram convertidos os motoristas de táxi, inseridos em uma cidade onde a partida e a chegada tornam-se, naquela altura, eventos solenes “como nos cortejos de enterro”. Contudo, a presença de uma leitura fragmentada no romance não se restringe à forma como o narrador refere-se aos demais indivíduos, visto que outro tipo de desagregação torna-se perceptível na linguagem expressa na trama. Com efeito, a exploração do contexto bélico por alguém dedicado a resgatar as suas lembranças traumáticas constrói-se a partir de uma linguagem caótica, marcada pela fratura do dito, pela interrupção das ideias, pelas lacunas que surgem nos pensamentos expostos. Dessa 102 O aspecto citado ainda será mais bem discutido em outros momentos desta tese, inclusive, quando se sublinha o tom irônico com o qual o “eu narrador” observa, muitas vezes, o perecimento dos indivíduos em Angola. 144 maneira, o desmantelamento de um dado padrão linguístico realiza-se por meio de uma série de mecanismos que serão mais bem evidenciados a partir deste momento, compondo uma estética, dentro do que Arnaut (2009) definiu como um dos impulsos do pós-modernismo, de caráter mais celebratório que moderado. Assim, a ousadia antuniana, nesse processo de (re)inovação da forma romanesca, compõe uma escrita que “tenta avaliar o mundo sem, contudo, lhe impor uma ordem pré-estabelecida, caracterizando-se por longas e imbricadas frases, verbalizações delirantes, repetições, montagens e colagens” (ARNAUT, 2009, p. 25). O narrador da crônica “O passado é um país estrangeiro”, citada anteriormente, afirma, uma vez assumindo o papel de escritor, que seus livros são “Aparelhos de que não possuo o folheto de instruções” (ANTUNES, 2006, p. 283). Em larga medida, tal assertiva pode ser aplicada à obra literária em estudo, tendo em vista que ao leitor acostumado a um romance com uma estrutura mais linear impõe-se uma sensível dificuldade no processo de decifração dos sentidos presentes na narrativa. Essa complexidade constitui-se, entre outros motivos, pela compreensão de que a desordem interior que o “eu” sente ao reavivar seu passado torna-se manifesta na forma como a trama é apresentada, ou seja, no modo peculiar como o dito é (des)organizado no texto. Um dos mecanismos que fazem parte dessa (des)organização verbal diz respeito à justaposição de eventos relembrados sem que se estabeleça tanto uma conexão mais patente entre as situações aludidas quanto uma relação entre os sujeitos destacados pelo narrador-personagem. No último caso, ocorre uma alternância de foco entre os indivíduos observados pelo ex-alferes sem que isso seja alertado ao leitor, convidado a divagar pelos inúmeros desvios que a prosa apresenta, muitas vezes, no interior de uma extensa proposição, repleta de intercalações, conforme pode ser verificado no trecho exibido a seguir: Sempre que ponho um garrote morrem de embolia gorda no Luso de forma que comecei a procurar a artéria para a laquear, um furriel espreitava por cima do meu ombro como um puto atrás do muro que o protege, era difícil pinçar o vaso no meio de tanto músculo e tanto sangue, como é o teu corpo como é o teu sorriso como é o teu cabelo na almofada acordavas-me de manhã com o calor das torradas e as coxas entre as minhas quando andavas as tuas nádegas endoideciam- me de desejo a maneira de mover as ancas o modo lento de beijar Queridos pais aqui no Chiúme as coisas correm o melhor possível dentro do melhor possível que é possível não há motivo nenhum para se preocuparem comigo até engordei um quilo desde que cheguei e 145 principio a assemelhar-me fisicamente a um missionário irlandês ou a um médio de abertura do País de Gales (ANTUNES, 2010, p. 108). De início, a falta de um encadeamento entre as informações expressas ocorre devido ao fato de que os eventos que pertenceriam a momentos distintos da vida do sujeito são postos em uma relação de adjacência, a qual, muitas vezes, não se sustenta semanticamente, a não ser para reforçar as contradições que fazem parte da trajetória do “eu narrador”. Assim, ligada à fratura temporal analisada anteriormente encontra-se a ruptura com um dado modelo linguístico, sobressaindo nessa ausência de conectivos entre os episódios evocados a composição da ação memorial no texto. Isto é, seria o apagamento de um elo coesivo entre as orações que formam um longo período que possibilitaria a percepção do funcionamento do fluxo de memórias do protagonista, cuja força manifesta-se por meio de um amplo conjunto de digressões repletas de nostalgia. Não à toa, Arnaut, ao voltar-se para as especificidades da ficção antuniana, afirma que tal produção vive “muito de histórias e de tempos que engordam, isto é, de movimentos retrospectivos e laterais, de olhares que se estendem para trás e para os lados, e que são, sem dúvida, indispensáveis a uma melhor compreensão do mundo e das personagens do romance” (ARNAUT, 2011, p. 78, grifo no original). O mundo da personagem principal envolve o sofrimento vivenciado na guerra, com a luta pela manutenção da vida dos militares portugueses, mas, ao mesmo tempo, assalta ao ex-alferes a imagem de uma existência longe daquele cenário, em que a vitalidade de uma paixão deixada para trás contrasta com o ambiente de angústia respirado em Angola. A transição de foco, cujo impacto rompe com a continuidade do período composto, ilustra o pensamento conturbado do “eu” que se deixa arrastar pelas impressões que povoam a sua consciência, desde a lembrança da mulher amada até a mentira endereçada aos pais. O logro inventado buscava convencer aos parentes da tranquilidade respirada na ex-colônia, em que a repetição mais uma vez presente na trama se encarrega de conferir o tom escarnecedor ao dito – “no Chiúme as coisas correm o melhor possível dentro do melhor possível que é possível”. A reiteração citada faz parte de um traço comum da narrativa, também evidenciado na passagem em destaque, quanto à adaptação dos aspectos da oralidade à dinâmica narrativa, algo que é encenado, por exemplo, na remissão feita à estrutura do gênero textual carta. O vocativo é inserido (“Queridos pais”) e, contrariando as normas gramaticais, a ausência da 146 pontuação acaba contribuindo com a simulação de uma conversa entre o médico e os seus pais que aguardavam notícias da estadia do filho no continente africano. O apagamento dos sinais de pontuação faz jus a uma linguagem que tenta aproximar-se da corrente de reflexões projetadas pelo “eu” em seu “relato catártico”, para fazer uso de uma expressão de Rosângela de Melo Rodrigues (2013, p. 58) sobre a obra em questão. Não se busca apenas contar um determinado episódio da história portuguesa e, sim, expurgar o drama vivido no solo africano diante de uma mulher impassível que assume, de certa maneira, o papel de um “terapeuta”, funcionando como uma ouvinte das experiências rememoradas. Por esse motivo, a forma linguística não seguiria parâmetros de escrita definidos por regras gramaticais em face das representações subjetivas do protagonista que são trazidas à tona com toda a intensidade que o funcionamento da mente do “eu narrador” possui. Dessa maneira, o que parece ser um total desarranjo linguístico confere autenticidade à representação do vaguear de ideias, de memórias e de fantasias que a psique do ex-combatente apresenta. Esse conteúdo, para ser expresso, vale-se das intercalações, da repetição, da supressão de sinais gráficos, pois se tem em vista que “o caminho percorrido pela consciência é completado, por vezes, muito mais rapidamente do que a linguagem é capaz de reproduzir” (AUERBACH, 1971, p. 472). A tentativa de acompanhar o ritmo incessante da consciência produz, em certos momentos, os vazios de sentido que nascem da impossibilidade de tecer uma ligação mais explícita entre as situações expostas. No entanto, a composição de uma linguagem fragmentada na prosa não se encerra com os aspectos citados, sendo necessário ainda discutir alguns casos que fazem parte do que Maria Alzira Seixo denominou, ao se referir ao também romance antuniano Exortação aos crocodilos (1999), de uma “poesia do interstício” (2002, p. 384) que parece qualificar, feitas as devidas ressalvas, a narrativa aqui em estudo. A ponderação é válida, pois, muito embora no segundo romance do autor haja uma recorrência de uma série de lacunas na estrutura linguística, em outras narrativas de Lobo Antunes a ruptura do dito chega a um grau tamanho que alguns vocábulos figuram de modo suspenso, ou ainda, há a materialização no papel dos intervalos em branco presentes nas prosas 103 . Apesar de não ser possível identificar, no 103 Para fins de exemplificação das questões citadas, destaca-se aqui, primeiramente, um excerto de Exortação aos crocodilos: “recordo as abotoaduras, os objetos na secretária, o retrato da esposa, uma criança de óculos que o prolongava não bem nas feições, na pompa, e que deve ser o fi” (ANTUNES, 2001, p. 137, grifo nosso). Já quanto ao segundo caso, é possível fazer referência à obra Eu Hei-de Amar 147 tecido textual de Os Cus de Judas, aspectos como os que foram descritos sobre outras produções do autor, algumas situações devem ser consideradas e uma delas diz respeito à intervenção da voz do outro no dito do narrador, chegando a interromper o discurso que introduziria tal voz na narração. No exemplo citado, a fratura edificada na linguagem é tão abrupta que a frase é suspensa, sendo retomada em parágrafos posteriores: O serão trotava num langor de tosses dispersas e de amabilidades fatigadas, até a D. Áurea voltar a cabeça para a porta, erguer o queixo à laia de coiote prestes a uivar, encher os seios tristes numa inspiração de mergulhador e berrar – Bonifácioooooooooooo num ganido interminável e imperioso. Seguiam-se uns segundos de silêncio expectante que o mulato, despertado em tumulto, preenchia perguntando à roda – O que foi? O que foi? numa inquietação de jangada à deriva (ANTUNES, 2010, p. 132). O discurso citante é invadido pela força expressiva das vozes das demais personagens, o que ocorre também devido ao apagamento de determinados sinais de pontuação ao final de alguns segmentos na passagem recortada. A ruptura exposta adquire um caráter singular pela atenção que desperta tanto na estrutura textual quanto no evento narrado frente ao rompimento, nesse momento da trama, com o marasmo existente nas noites em Angola. Em outras palavras, o tédio alimentado diante da habitual distração oferecida no ambiente da guerra, correspondente ao loto praticado no prédio da administração, em que o enfado é simbolizado por uma noite que se arrasta “num langor de tosses dispersas e de amabilidades fatigadas”, apenas é interrompido quando seres fictícios, de alguma forma, alheios à ação bélica manifestam-se. A inquietação gerada pelo grito emitido por D. Áurea suspende o clima de monotonia, mesmo que, por alguns instantes – “Seguiam-se uns segundos de silêncio expectante” – da mesma forma que suspende o relato do médico alferes. A primazia dada a uma escrita repleta de fragmentos também passa a ser perceptível pelo fato de que, distante de uma matéria textual pré-definida, o relato do “eu” torna bastante patente a visualização do inacabamento romanesco. Entre tantos motivos que justificariam a afirmação feita e que já foram, de alguma maneira, discutidos nesta tese, destaca-se uma narração em que se manifesta uma linguagem Uma Pedra (2004), recortando o seguinte trecho: “Auxilia-me isto é auxiliem-me com um ch péu de palha com cerej s de feltro” (ANTUNES, 2004, p. 562, grifos nossos). 148 truncada, continuamente reajustada pela voz que assume o serão em um encontro incidental com uma mulher misteriosa. Nesse viés, as lacunas, os intervalos observados na trama compõem o resultado da revisão que o narrador realiza sobre o que explana, formando uma frase incompleta, uma leitura que pode ser constatada no excerto apresentado a seguir: Não sucede o mesmo consigo? Nunca teve vontade de se vomitar a si própria? À medida que envelheço e que a necessidade de sobreviver se vai tornando menos urgente e aguda, apercebo-me com maior nitidez de que... Mas aqui está o cognac: ao segundo gole, vai ver, a ansiedade principia a mudar de rumo, a existência recobra a pouco e pouco uma tonalidade agradável, recomeçamos lentamente a apreciar- nos, a defender-nos de nós mesmos, a ser capazes de continuar a destruir. Com este penso a 90 graus no esófago sinto-me livre para retomar a minha narrativa no ponto onde há momentos a deixei (ANTUNES, 2010, p. 75, grifos nossos). Os vazios explorados em um relato elaborado de forma processual são exemplificados não só pela falta de continuidade do dito, o que é marcado pela presença das reticências na passagem recortada, mas também pelo jogo, insistentemente edificado no texto, de perguntas sem que sejam audíveis as respostas. No primeiro caso, é patente a hesitação do ex-combatente que desvia o tema de sua fala, pois o que havia se tornado nítido para o “eu” com o passar dos anos acaba ficando em suspensão nesse momento da prosa. A imprecisão que paira sobre a matéria narrada é demonstrada pela desorientação do indivíduo que perdeu o seu rumo e enxerga no álcool a via para alcançar alguma direção ou, ao menos, para suavizar a realidade descortinada, já que é por meio do segundo gole de conhaque que “a existência recobra a pouco e pouco uma tonalidade agradável”. Dessa maneira, a bebida torna-se um substrato relevante para uma atividade narrativa constituída por uma série de idas e vindas, em que se “recobra” o conteúdo da exposição e, ao mesmo tempo, busca-se reaver um pouco de satisfação na vida. A regulação do dito provoca um abalo na estrutura textual diante de um narrador que vacila frente a certas informações e acaba tentando recuperar o fio da meada no emaranhado de acontecimentos que perfazem a sua trajetória numa espécie de, para fazer uso das palavras de Seixo sobre a obra antuniana, “recomeço constante, e insistente, que é ao mesmo tempo uma retomada e a sinalização da pulsação obscurecida da vida” (SEIXO, 2002, p. 311). Por conseguinte, até mesmo, a tentativa de 149 atar os pontos dessa história, o que é alcançado na citação literária em foco por meio da ação do álcool (“Com este penso a 90 graus no esófago sinto-me livre para retomar a minha narrativa no ponto onde há momentos a deixei”), surge de forma vaga. A afirmação é sustentada pela compreensão de que o movimento anafórico desenvolvido figura subordinado a situações já dispersas na confusa ordem dos acontecimentos expostos na trama, o que traz ao centro um aspecto mencionado anteriormente com relação às pausas do tempo da fábula que, algumas vezes, o romance apresenta. No caso em relevo, o ex-combatente recordava-se do seu isolamento no leste angolano quando havia recebido a notícia do nascimento de sua filha, passando a conjecturar as ações que seriam realizadas por esta futuramente – “Talvez que ela escrevesse um dia os romances que eu tinha medo de tentar” (ANTUNES, 2010, p. 75). A partir disso, o fluxo de pensamentos amplia-se e o olhar sobre o ontem é pausado, já que o “eu” vem a refletir no presente sobre outras questões, focalizando os seus próprios defeitos – “A pieguice, sabe como é, substitui com frequência em mim o desejo genuíno de mudar” (ANTUNES, 2010, p. 75) –, para depois retornar ao tempo pretérito, recuperando as informações já relatadas: “estamos em 71, no Chiúme, e a minha filha acaba de nascer” (ANTUNES, 2010, p. 75). Por tudo isso, as dobras e redobras do narrado parecem revelar um esboço de escrita, em que o leitor teria acesso aos “fios”, algumas vezes, soltos da tessitura memorial de um sobrevivente do conflito colonial. Além da frase descontinuada, é necessário comentar também o jogo de perguntas e silêncios frequentemente observado na prosa, algo que também fraciona o dito, tendo em vista que sobressai um vazio da indagação realizada, seja pela visão de uma ouvinte impassível aos questionamentos do narrador, seja pela presença de um conjunto de interrogações de cunho retórico. Na última situação, o sujeito realiza uma avaliação sobre si, intensificando tal ato pela reiteração do mesmo questionamento – “Há quanto tempo não consigo dormir?” (ANTUNES, 2010, p. 69) –, retomando-o depois como uma forma de propiciar uma reflexão sobre o assunto – “Há quanto tempo de fato não consigo dormir?” (ANTUNES, 2010, p. 70). A vontade de se expressar acima de tudo, de manifestar uma voz por tanto tempo calada por parte do ex-médico do exército português condiz com a existência de uma linguagem titubeante, em que a personagem narradora diz, repete e reajusta constantemente a sua fala. À força da emoção que a matéria narrada possui, seria natural a postura oscilante do “eu narrador” no momento da enunciação, principalmente, porque, conforme as considerações de Dalva Calvão sobre a obra antuniana, o mundo 150 representado nos textos de Lobo Antunes “é um mundo em crise, um mundo descentrado e fragmentado, de homens desassossegados e sem esperanças, contraditórios e inseguros” (CALVÃO, 2011, p. 174). A insegurança estimula a repetição incessante, o permanente conjunto de perguntas e silêncios, da mesma forma que promove a correção do que é exposto, seja pela omissão do pensamento, seja pela mudança de posicionamento à medida que a narração avança. A linguagem titubeante adquire, assim, outras variantes caracterizadas pela ambiguidade com a qual, em certos momentos do texto, a voz narrativa apresenta o seu relato. A indecisão é propagada mesmo em escolhas simples do cotidiano, em que o indivíduo, temerário ante a iminente volta da solidão frente à despedida da sua acompanhante, não consegue deliberar sobre uma questão simples, como querer apagada ou não a lâmpada: Pode apagar a luz: já não preciso dela (ANTUNES, 2010, p. 185). Pode apagar a luz: talvez não fique tão sozinho como isso neste quarto enorme (ANTUNES, 2010, p. 186). Não apague a luz: quando você sair a casa aumentará inevitavelmente de tamanho, transformando-se numa espécie de piscina sem água em que os sons se ampliam e ecoam, agressivos, retesos, enormes, batendo-me violentamente contra o corpo como as marés do equinócio na muralha da praia, rolando sobre mim espumas foscas de sílabas (ANTUNES, 2010, p. 187). Para além da falta de firmeza nas preferências banais da vida do ex-alferes- médico, o que só demonstra o grau de instabilidade que o romance apresenta, não é possível determinar uma segurança naquilo que fora narrado, devido ao entendimento, já claro a esta altura, de que perante o universo memorial os acontecimentos contados não correspondem aos fatos da mesma forma como estes sucederam. Isso se dá, conforme já asseverado, porque a “memória é constituída por uma dimensão dinâmica, um esforço de significação, não só de seleção, mas de reinterpretação sucessiva do passado” (TEDESCO, 2004, p. 94). Embora haja o esforço por significar os eventos pretéritos, persiste a falta de confiabilidade sobre as ações já decorridas e essa imprecisão, por vezes, incrusta-se à linguagem empregada para evocar o ontem. Em ocorrências especiais, correlacionadas a episódios dos quais o indivíduo que empreende a atividade rememorativa não participou, a ausência de convicção sobre o conteúdo narrado torna-se evidente, a exemplo do olhar cambiante lançado pelo ex-militar sobre os feitos de seu bisavô: “E foi precisamente esta criatura nefasta [...] que construiu, ou 151 dirigiu a construção, ou concebeu a construção, ou concebeu e dirigiu a construção do caminho-de-ferro em que seguíamos, de rebenta-minas 104 na dianteira” (ANTUNES, 2010, p. 38). A presença do conectivo “ou” estabelece, no levantamento das possíveis ações do antepassado da família do “eu narrador”, a impossibilidade de precisar qual informação, realmente, corresponde à veracidade dos acontecimentos. A disjunção apresentada acentua a compreensão de que o “campo da memória é um espaço de conflito/tensão de estratificação, de fragmentos diversos de memória, de traços ocultos, de testemunhos, os quais sobrevivem em imagens do passado” (TEDESCO, 2004, p. 159). Não há como esperar uma leitura fiel do passado se ele está sujeito às impressões construídas por aquele que empreende a atividade memorial. Por essa leitura, a linguagem utilizada faz jus ao movimento que a trama desperta na composição de um mundo romanesco erguido a partir de lampejos memoriais, de modo que o caminho percorrido na escrita analisada não poderia deixar de ser sinuoso, irregular e, como visto, fragmentado. Para finalizar as interpretações construídas neste momento, é necessário retornar ao penúltimo trecho recortado da obra literária em estudo para focalizar, por outro ângulo, a profusão de imagens de que se nutre o dito do “eu narrador”. Tal aspecto alonga a narração, pois, em um mesmo período, ao redor da oração principal gravita uma série de elementos acessórios que ampliam, demasiadamente, o olhar sobre o espaço que ativou essa carga de componentes qualificadores e, ao mesmo tempo, paralisam as ações realizadas, vistas em menor número diante da quantidade de adjuntos ativados pelo narrador-personagem. Assim, à oração principal, “a casa aumentará inevitavelmente de tamanho” (ANTUNES, 2010, p. 187), são associadas cinco orações subordinadas adverbiais reduzidas de gerúndio que atuam como uma espécie de suplemento no longo período formado, o qual ainda é dilatado por outros adjetivos utilizados para amplificar a sensação de vazio que contaminará a moradia do ex-alferes assim que a figura feminina for embora. Nesse lugar, os sons são vistos pelo “eu”, em sua divagação, como ruídos que “se ampliam e ecoam, agressivos, retesos, enormes” (ANTUNES, 2010, p. 187). Além disso, no rol de combinações de palavras pouco usuais presentes na trama, 104 Indivíduo responsável, no exército português, por detectar a presença de minas terrestres no solo angolano durante o conflito colonial, o que era considerado uma função extremamente arriscada, por causa disso, sorteava-se o soldado que desempenharia tal papel. 152 sobressaem as “espumas foscas de sílabas” (ANTUNES, 2010, p. 187) que invadiriam o lar do homem solitário para alargar, diante do mínimo barulho produzido, a certeza de que, realmente, o sujeito ficaria só. Essa característica do tecido linguístico do romance provoca, por vezes, a dispersão do leitor sobre a matéria narrada, visto que a atenção é desviada para as imagens elencadas pelo narrador e nem sempre há o exercício de retomada por parte deste, conforme se apresenta na passagem a seguir, do que havia sido enunciado anteriormente: tento desesperadamente fixar, nesta manhã de janeiro lavada pela chuva da noite, imersa numa claridade excessiva que dissolve os contornos e afoga na sua luz sem piedade os sentimentos delicados ou demasiado frágeis, tento desesperadamente fixar, dizia, o cenário que habitei tantos meses, as tendas de lona, os cães vagabundos, os edifícios decrépitos da administração defunta, morrendo a pouco e pouco numa lenta agonia de abandono (ANTUNES, 2010, p. 121, grifos nossos). A narrativa de Os Cus de Judas promove uma rebelião das formas, em que a atitude desmobilizadora determina, nesse ínterim, o rompimento com um dado padrão de escrita, o que contribui com a formação de um fazer artístico peculiar que caracteriza a liberdade criativa de Lobo Antunes. Vem à superfície textual uma “língua própria” no sentido de que se elabora uma forma de expressão adaptada ao universo desarmônico que a prosa apresenta perante a ruptura com uma ordem temporal, com um modelo de personagem, enfim, com um mundo inteiramente acabado em que o destino dos indivíduos já se encontra pré-definido. As adaptações estéticas citadas possibilitam que seja incorporada à estrutura da obra tanto a insegurança do sujeito que narra os seus dramas quanto a carga emocional que envolve esse processo, reunindo uma diversidade de estratégias que fazem parte do ensejo do referido escritor de renovar o gênero romance. Se renovar, em alguma medida, implicar também que ocorra um desmonte dos modelos já existentes, tal prática tornou-se comum no texto antuniano, já que reconhecendo a exaustão de procedimentos canónicos, isto é, relativos a uma prática claramente enraizada no paradigma realista do século XIX, o autor, este autor, procede a uma sistemática renovação do género. Para isso, assume novos modos de representar o real; instaura uma nova sintaxe dialógica, cultiva peculiares maneiras de compor os seres que habitam a narrativa; reequaciona a sua e a nossa relação com a linguagem; impõe, em suma, a prática de novas lógicas discursivas – numa mistura de arte e de vida, de poesia e de prosa, de sublime e de 153 grotesco – que, de facto, constituem uma nova arte romanesca (ARNAUT, 2011, p. 87-88). No interior das lógicas discursivas que o romance apresenta, faz-se necessário, a partir deste momento, observar como os aspectos linguísticos destacados fazem parte das relações dialógicas que são tecidas na prosa. A leitura é justificada pela concepção de que “apenas” reconhecer certas características da escrita antuniana não é suficiente para entender como diferentes vozes sociais tornam-se audíveis no texto e, seguindo uma prerrogativa corrente na narrativa, contrapõem-se. Dessa maneira, buscando complementar as questões já discutidas, será focalizado como a forma de expressão do narrador traduz-se em um olhar crítico que insufla a sua natureza no momento da enunciação e determina o seu modo de rever o ontem. Ao analisar o percurso formativo planejado para tornar o filho da tradicional família portuguesa, enfim, um homem a serviço de sua pátria, o narrador descortina as inconsistências dos discursos que se fizeram presentes em sua existência, o que é realizado, principalmente, pela presença constante da veia irônica no modo de recontar seu passado. Ao dialogar com o repertório cultural, histórico, religioso, político que fez parte de sua trajetória, o ex-combatente em solo africano assume uma posição “ativamente responsiva” (lembrando as considerações de BAKHTIN, 2016, p. 25) em sua linguagem, já que questiona, desloca, completa os significados implícitos desses discursos e, com isso, atualiza a imagem do ser português. A voz narrativa opera, nos discursos com os quais interage, uma revisão dos valores repercutidos por tais vozes sociais para a constituição de um dado modelo de identidade nacional e, com isso, percebe as linhas que culminariam com o processo de “deseducação” já citado. Tal revisão se inicia com a lembrança da partida para as Terras do Fim do Mundo e, por consequência, com o princípio da “dolorosa aprendizagem da agonia” (ANTUNES, 2010, p. 39) protagonizada pelo “eu narrador”, a qual será aprofundada a partir das análises a seguir. 154 4. A ATITUDE DESSACRALIZANTE DO NARRADOR ANTUNIANO NO PLANO DISCURSIVO DO ROMANCE O que seria de nós, não é, se fôssemos, de facto, felizes? António Lobo Antunes. Os cus de Judas. A incapacidade de se defender um padrão de estabilidade para o romance, com uma homogeneidade que se aplica à existência de uma “afinidade entre os elementos construtivos de uma dada criação artística” (BAKHTIN, 1997, p. 13), alia-se à impossibilidade mesma de, em um universo multifacetado, repleto de relações das mais variadas formas, não fazer parte dessa dinâmica relacional. Captando esses diálogos que se processam via linguagem, a estrutura romanesca varia, transforma-se, conforme foi evidenciado no capítulo anterior diante da série de rupturas construídas na prosa de Os Cus de Judas que fazem parte do domínio plural que o texto apresenta, contrastando com modelos pré-determinados para a forma literária. Na verdade, a pluralidade referida faz parte do próprio panorama discursivo que o romance em questão apresenta no qual, seguindo o mesmo modo de elaboração de um dado perfil de personagem, de um dado movimento temporal e, mesmo, de uma forma linguística singular, um dado discurso é construído em sua interação com outros tipos de discursos. Isto é, cada ideia exposta no texto é o pensamento de alguém que se situa em relação a outros pensamentos, construindo sua voz nessa relação. Assim, ao invés de posições absolutistas, em que se pese o quanto isso é relevante para o próprio contexto social no qual a narrativa se insere, o que se encontra é uma multiplicidade de pontos de vistas, os quais são assimilados pelo narrador-personagem que faz de sua palavra o local onde se esbatem várias intenções, vários horizontes de visão de grupos sociais diferentes. Bakhtin denomina de heterodiscurso 105 o reconhecimento dessa diversidade de discursos que se manifesta, de um modo geral, na língua, a qual é estratificada internamente devido à presença nela de variadas formas com as quais os sujeitos pensam o mundo, constituindo horizontes ideológicos diversos que originam os vários 105 O termo “heterodiscurso” está sendo utilizado aqui em substituição a vocábulos comumente utilizados, como “heteroglossia” e “plurilinguismo”. A adoção se dá pela escolha realizada pelo tradutor Paulo Bezerra na reedição de alguns escritos de Bakhtin, em que tal tradutor afirma que o vocábulo “heterodiscurso” parece ser mais adequado ao que corresponderia ao seu significado na língua russa. Para maiores informações, ver o prefácio da obra Teoria do romance I: a estilística (2015). 155 agrupamentos sociais, profissionais e geracionais. Tal conceito parte do entendimento de que todas “as palavras exalam uma profissão, uma corrente, um partido, uma determinada obra, uma determinada pessoa, uma geração, uma idade, um dia e uma hora. Cada palavra exala um contexto e os contextos em que leva sua vida socialmente tensa” (BAKHTIN, 2015, p. 69) pelo diálogo que estabelece com outras leituras de mundo, com outros grupos sociais. Em outras palavras, a perspectiva heterodiscursiva, de acordo com a teorização de Bakhtin, compreende a reflexão de que na/pela linguagem são expressas vozes socioculturais diversas que demonstram a leitura que cada classe social possui do mundo em um dado momento histórico, de forma que “os discursos são, por definição, ideológicos, marcados por coerções sociais” (BARROS, 1999, p. 34). Tal expressão realiza-se pela natureza dialógica da linguagem, pois nela uma voz constitui-se a partir da “tensa e essencial interação com outros grupos sociais” (BAKHTIN, 2015, p. 168), com outras vozes. Por consequência, deturpa-se o entendimento de uma língua unificada não só a partir da constatação de que, na verdade, a língua é estratificada em “camadas de dialetos no exato sentido do termo (segundo traços formalmente linguísticos, sobretudo fonéticos), mas também – o que é essencial para nós – em linguagens socioideológicas: linguagens de grupos sociais” (BAKHTIN, 2015, p. 41, grifos nossos). Nesse sentido, a própria linguagem literária é também uma das muitas linguagens que integram o heterodiscurso, sendo atravessada por várias vozes (de classes sociais distintas, de figuras de autoridade, de gênero, entre outras). “O autor de um romance, portanto, mais do que simplesmente desenvolver enredo, personagem ou tema utilizando todos os recursos estilísticos disponíveis, organiza e orquestra os estratos discursivos de uma língua heteroglota” (RENFREW, 2017, p. 132, grifo no original), em que a partir de cada palavra ressoam outras, pois o dito é construído como uma réplica a outros discursos ativados no texto. O heterodiscurso é introduzido no romance por meio de algumas unidades essenciais, como o “discurso do autor, os discursos dos narradores, os gêneros intercalados e os discursos dos heróis” (BAKHTIN, 2015, p. 30). Antes de dedicar uma atenção especial à maneira como o discurso do narrador da obra literária em estudo é elaborado a partir do diálogo tecido com outras vozes que interferem no processo educativo do sujeito que se constitui nesse diálogo, é necessário considerar no texto outra via pela qual o heterodiscurso se faz perceptível, algo que contribui para que seja aprofundada a pluralidade discursiva do romance em questão. De uma forma mais 156 explícita, se assim se pode dizer, é possível constatar a inclusão de alguns tipos específicos de enunciados, que são chamados na teoria bakhtiniana de “gêneros do discurso” (BAKHTIN, 2016, p. 12, grifos no original), na composição romanesca em foco 106 . Nesse ínterim, o universo romanesco é intercalado, em dados momentos, tanto por gêneros extraliterários quanto por literários, os quais inserem a sua linguagem na narrativa, estratificando “a sua unidade linguística e, ao seu modo, aprofundam a sua natureza heterodiscursiva” (BAKHTIN, 2015, p. 109). Para fins de exemplificação, destacam-se duas situações em que os gêneros intercalados tornam-se mais evidentes na constituição de Os Cus de Judas. No primeiro caso, há a formatação de uma espécie de discurso mostrado, em que a canção de Paul Simon, Fifty ways to leave your lover (“Cinquenta maneiras de abandonar o seu amor”), é citada pelo narrador, como uma forma de “assimilação verbal da realidade” (BAKHTIN, 2015, p. 109). Isto é, a integração do gênero textual referido, mantendo a “elasticidade de sua construção, sua autonomia e sua originalidade linguística e estilística” (BAKHTIN, 2015, p.108), à dinâmica narrativa substancia a atividade memorial do narrador-personagem que utiliza dessa referência textual para significar um momento específico de sua vida. A canção transcrita, de forma inalterada, no romance acentua as lembranças do “eu” sobre o seu divórcio e a sua dificuldade em reconhecer que o “desencanto do afastamento definitivo” (ANTUNES, 2010, p. 55) de sua ex-mulher permanece, mesmo depois de tantos anos. No segundo caso, diferentemente do anterior, a inserção do estilo dos textos publicitários no discurso do sujeito narrador realiza-se pela apropriação de algumas “expressões típicas” (lembrando as considerações de BAKHTIN, 2016, p. 52) daqueles gêneros com os quais o ex-combatente dialoga. Os enunciados extraliterários, representados pelos “prospectos desdobráveis” (ANTUNES, 2010, p. 169) que o ex- militar recebe, são transferidos para o romance em foco e, nesse movimento, são modificados pela leitura que o “eu” elabora sobre esse tipo de texto. Assim, dentro do domínio comercial, recupera-se um formato específico dessas “palavras dos outros” com as quais o protagonista interage, em que tais palavras, ao serem assimiladas à prosa 106 À luz do pensamento bakhtiniano, a noção de gênero e, assim, de gênero do discurso define os diversos usos comunicativos realizados pelos sujeitos por meio da linguagem, de maneira que o emprego da língua “efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana” (BAKHTIN, 2016, p.11). Cada enunciado, ou seja, cada gênero representa as condições específicas e os propósitos comunicativos de cada referido campo por meio da ligação entre o seu conteúdo temático, o estilo da linguagem apresentada e a sua construção composicional. 157 antuniana, são alvos da valoração atribuída pelo “eu narrador”, surgindo reacentuadas nesse processo: Em Sua Casa, Sem Aparelhos, Com Dez Minutos De Exercício Apenas, Torne-Se Um Homem; Ganhe A Confiança Dos Seus Chefes E O Amor Das Mulheres Graças Ao Método Culturista Sansão; Cresça Treze Centímetros Sem Palmilhas Com A Técnica De Prolongar As Tíbias Gulliver; A Loção Azevichex Fará O Seu Cabelo Recuperar A Cor Natural, Brilhante, Sedoso E Macio Com Uma Única Aplicação; É Ansioso? Vive Triste? O Magnetismo Astral, Em Cinco Lições, Dar-Lhe-Á Confiança No Futuro; Perca O Seu Ventre Incomodativo Pedalando A Domicílio Com A Bicicleta Abdomal; Não Consegue Arranjar Emprego? Combata A Calvície Com O Óleo Biológico Hirsutex (Rico Em Algas Canadianas) E Todas As Portas Se Lhe Abrirão (ANTUNES, 2010, p. 169-170, grifos no original). Em realce, figura a estratégia recorrente utilizada pelo narrador para entrar em contato com o discurso dos outros no que se refere à postura irônica apresentada na trama para deturpar o conteúdo que seria, comumente, observado nos textos de cunho publicitário. Dessa maneira, o que se faz presente no início do capítulo “U” já corresponde ao resultado da avaliação negativa feita pela voz narrativa sobre os artifícios que os folhetos recortados usam para promover suas mercadorias. Verifica-se uma crítica às promessas irrealizáveis presentes nesse tipo de gêneros textuais, nos quais se venderia a ideia da transformação instantânea dos homens em “hércules eficazes, bem penteados, bem barbeados, nodosos de músculos, cercados por um nuvem admirativa de raparigas maravilhadas” (ANTUNES, 2010, p. 169) a partir do consumo dos produtos divulgados. Além disso, a imagem dos “hércules eficazes”, ao mesmo tempo em que é sublinhada pelo melancólico “eu”, é posta em oposição ao reflexo que esse indivíduo possuiria de si mesmo, alguém insatisfeito com o que fora feito de si, algo que nenhum “Magnetismo Astral”, ou artigo similar, poderia modificar. Enfim, as duas situações apresentadas formam apenas uma via, no tocante aos gêneros intercalados, para demonstrar a heterogeneidade discursiva de que se constitui o romance em análise. Tal entendimento, em larga medida, não seria algo incomum, pois, conforme afirma Bakhtin, o discurso, “todos os nossos enunciados (inclusive as obras criadas) é pleno de palavras dos outros, de um grau vário de alteridade ou de assimilabilidade, de um grau vário de aperceptibilidade e de relevância” (BAKHTIN, 158 2016, p. 54). Nesse jogo heterodiscursivo do qual o texto literário em destaque faz parte, estabelece-se a sensibilidade de perceber em cada palavra a presença de uma segunda voz, seja a que foi evocada brevemente aqui por meio da referência a outros gêneros textuais, seja a que figura no processo educativo do “eu”, como símbolo dos discursos oficiais contestados por ele. Atrelada às demais, ressoa, ainda, a voz do sujeito narrador que polemiza com os demais ditos que a prosa apresenta, fazendo desse espaço um verdadeiro campo de batalha onde um sem número de vozes articuladoras de linguagens sociais de diferentes tons, movimentam-se ao embalo de diferentes estilos, convergindo para organizar a originalidade estilística do todo. É por esta movimentação constante, sempre aberto à atualização das linguagens sociais, à incorporação das mais diversas visões de mundo, que o romance enquanto gênero permanece inacabado, à espera do futuro (BERNARDI, 1999, p. 44, grifos nossos). Portanto, certo embate dialógico é instituído no romance em questão, ratificando a imagem desse gênero como algo não definido de uma vez por todas, disposto a mudanças, atualizações que interagem com os mais variados contextos sociais. Tal leitura compõe o jogo heterodiscursivo que o “eu narrador” apresenta, um aspecto que será mais bem desenvolvido a partir deste momento. 4.1. O jogo heterodiscursivo da (des)construção do “eu” no curso da “aprendizagem da agonia” Uma vez observada a narração de uma série de situações vividas pelo ex- combatente a partir da sua relação com os diversos discursos que permeiam/ permearam o universo social com o qual aquele se relaciona, torna-se possível destacar o intenso diálogo existente entre as inúmeras perspectivas ideológicas que constituem o romance. Tal diálogo faz parte da própria (des)aprendizagem do indivíduo, do caminhar desconfortável de outrora reavivado pelo presente, de modo que o “eu” se põe a realizar uma análise de si, em que essa atividade se dá a partir de uma dupla possibilidade. Em um primeiro plano, a observação de si é construída pelo vínculo com a própria destinatária anônima das confissões do narrador no presente. Já em uma segunda abordagem, mais ampla que a primeira, a vivificação do passado é construída pelo 159 diálogo com outras vozes, que se fazem audíveis, oriundas dos próprios cenários sociais dos quais o “eu” fez parte. Nessa perspectiva, é que a análise aqui empreendida vem a ser construída, uma vez que se tem como objetivo compreender como a “aprendizagem da agonia” (ANTUNES, 2010, p. 39) é elaborada a partir da multiplicidade de discursos que atuam sobre o sujeito em seu processo de desenvolvimento. Tal processo, já citado anteriormente, é descortinado, neste momento, como uma via pela qual se ratifica a visão do texto literário como um discurso entre outros em um universo ideológico repleto de mediações sociais, isto é, de formas várias de conceber a relação dos sujeitos com o universo social que os cerca. Assim, lembrando as observações de Medviédev, compreende-se que a literatura, em seu “conteúdo” reflete e refrata as reflexões e as refrações de outras esferas ideológicas (ética, cognitiva, doutrinas políticas, religião, e assim por diante), ou seja, a literatura reflete, em seu “conteúdo”, a totalidade desse horizonte ideológico do qual ela é uma parte (MEDVIÉDEV, 2012, p. 60). Imbuído dessa leitura, torna-se possível tecer uma ligação entre o romance em foco e o contexto histórico-social vivenciado em Portugal e nas suas antigas colônias africanas no final do século XX, de forma que a prosa se relaciona com os aspectos que dizem respeito a tal contexto, respondendo, inclusive, aos discursos que compunham uma versão da realidade vivenciada em tal cenário. Nesse escopo, é que dialogam com a formação do “eu narrado” no romance as visões acerca da composição da identidade do colonizador e, por consequência, do colonizado, da imagem da pátria expansionista e dos heróis que se constituem como pilares de uma dada identidade nacional. Dessa maneira, sublinha-se como ponto central da análise o encontro dessas várias vozes no texto literário em estudo, o que poderia parecer confuso, à primeira vista, quando se observa a organização da voz narrativa no romance, centralizada na enunciação de um “eu” que relata suas experiências como personagem principal da trama. Tal voz narrativa apresenta-se no plano da enunciação, conforme fora ressaltado anteriormente, inserido em um diálogo pressuposto com uma desconhecida, situação da qual o leitor tem acesso apenas ao que foi filtrado pelo narrador sobre esse momento. Por essa via, configura-se uma instância narrativa autodiegética, o que corresponde a uma personagem que “tendo vivido importantes experiências e aventuras, relata, a partir 160 dessa posição de maturidade, o devir da sua existência mais ou menos atribulada” (REIS & LOPES, 1988, p. 118). É compreensível, então, que o relato dessa “existência” seja tido, inicialmente, como algo que, aparentemente, se distancia do entendimento de que nesse romance haveria uma profusão de diálogos. No entanto, como resultado da própria análise realizada pelo “eu-narrador” sobre o que fora vivido, estruturando uma narração ulterior em relação aos eventos da história que relata, sucede uma distância temporal “mais ou menos alargada entre o passado da história e o presente da narração; dessa distância temporal decorrem outras: ética, afetiva, moral, ideológica etc., pois que o sujeito que no presente recorda já não é o mesmo que viveu os fatos relatados” (REIS & LOPES, 1988, p. 119, grifos no original). Nesse afastamento temporal 107 , reside o ponto de partida para as interpretações formuladas neste momento, já que é na fratura entre o que compunha o “eu da história” e o “eu da narração” que se torna possível perceber o processo de construção do indivíduo. Esse processo é guiado pela relação do sujeito com os discursos com os quais dialogava em um momento situado no tempo e também pela ruptura com tais visões, dando origem ao “eu” que revê suas lembranças a partir de outro prisma. O exposto pode ser explicado a partir do juízo no qual a memória compreende uma dimensão dinâmica, “um esforço de significação, não só de seleção, mas de reinterpretação sucessiva do passado. A imagem que o indivíduo tem de si mesmo é, portanto, o produto de sua experiência social e das formas de mediação simbólica dessa experiência” (TEDESCO, 2004, p. 94) 108. Destarte, a partir da “experiência social” vivenciada, o narrador passa a se enxergar “outro” em relação ao olhar pueril que detinha anteriormente, em que os símbolos da pureza e do encantamento com o mundo – reforçados, sobretudo, pela menção ao imaginário religioso – compreendem, no presente, o reflexo do desengano, da visão ingênua não mais passível de ser alimentada pelo “eu” que se põe a rememorar o passado, ressignificando o “ontem”: 107 É válido salientar que, conforme já evidenciado no capítulo anterior, também vem à tona no estudo do romance em questão o olhar sobre um passado que se faz presentificado a partir da encenação da revivescência do pretérito no qual o “eu narrador” está inserido. Assim, neste instante da pesquisa discute-se, por outro viés, a distância de tempo transcorrida entre a enunciação e o que fora narrado, o que não significa, necessariamente, um afastamento entre o “eu” e a memória traumática que aflora nesse cenário. 108 Para uma leitura mais ampla sobre a questão da construção memorial, ou seja, sobre a compreensão da atividade da reminiscência ligada ao cenário social e dele nutrindo-se, sugere-se também a obra de Halbwachs (2006). 161 Por essa época, eu alimentava a esperança insensata de rodopiar um dia espirais graciosas em torno das hipérboles majestáticas do professor preto, vestido de botas brancas e calças cor-de-rosa, deslizando no ruído de roldanas com que sempre imaginei o voo difícil dos anjos de Giotto, a espanejarem nos seus céus bíblicos numa inocência de cordéis (ANTUNES, 2010, p. 14-15). Por essa visão, o passado que é trazido à tona na enunciação não corresponderia necessariamente ao que fora vivido pelo “eu” na época relembrada. A afirmação é sustentada a partir da compreensão de que o narrado passa pelo crivo que o próprio distanciamento temporal determina sobre a voz narrativa. O presente torna-se, nesse caso, momento de reflexão sobre a aprendizagem empreendida, um instante em que são expostos os percalços da malfadada trajetória do narrador, por meio do encontro com uma destinatária, em vários momentos, indiferente a tal relato. Essa reflexão, por mais que seja fruto da consciência de um indivíduo, acaba simbolizando uma intensa arena discursiva, evocada pelas vozes que entram em contato com o homem em desenvolvimento a ser recordado posteriormente. Tal interpretação pode ser explicada a partir da percepção do “eu” como um ser social, isto é, um sujeito que tem seu crescimento marcado pela interação com diversos discursos, por exemplo, as leituras do seio familiar. Em outras palavras, as visões de mundo edificadas pelo ser em crescimento não foram elaboradas em uma consciência fechada, distante do contato vivo com o pensamento dos outros, sendo, na verdade, frutos de uma comunicação com outras “vozes-consciências” (BAKHTIN, 1997, p. 86). Por consequência, as lembranças narradas deixam entrever a maneira com a qual o ex-combatente respondeu aos condicionamentos sociais recebidos, ou seja, sobressai a avaliação feita desses ensinamentos a partir da posição singular em que se encontra o narrador. Ademais, essa dinâmica interacional é reforçada pelo próprio contexto memorial, já que, para lembrar mais uma vez das reflexões de Tedesco, as “recordações que nos são mais pessoais são o resultado de um complexo processo de interseção de influência de grupos diversos, cada um tendo um tipo de influência específica sobre o resultado final” (2004, p. 155). Seguindo nessa leitura, é possível, a partir deste momento, analisar de forma mais detalhada como se constitui a relação entre esses vários discursos sobre os quais se falou antes. Inicialmente, é necessário ter sempre em vista a impossibilidade de se explorar a voz narrativa em Os Cus de Judas sem que, a partir dessa voz, ecoe várias outras, uma vez que nesse texto, para utilizar-se das reflexões de Bakhtin, “em todas as orientações, o discurso depara com a palavra do outro e não pode deixar de entrar numa 162 interação viva e tensa com ele” (BAKHTIN, 2015, p. 51). Contudo, que vozes outras seriam essas? No romance, elas assumem um ponto de vista ideológico marcado pela possibilidade de esculpir no “eu” a imagem do “perfeito português” (ANTUNES, 2010, p. 26), utilizando, para tanto, de uma linguagem própria, de um modo de ação e de visão que se funde, na obra de Lobo Antunes, formando uma diversidade de vozes, algo que é conceituado na teoria bakhtiniana como heterodiscurso. Este introduzido no romance é aí submetido a uma elaboração literária. As vozes históricas e sociais que povoam a língua fornecem-lhe percepções concretas, organizam-se no romance em um harmonioso sistema estilístico que traduz a posição socioideológica diferenciada do autor e de seu grupo no heterodiscurso da época (BAKHTIN, 2015, p. 78, grifo no original). A composição estilística da narrativa traduz-se nesse universo heterodiscursivo pela tensa relação construída entre o “eu” e a tríade: Família, Estado e Igreja. Tais dimensões, que representam discursos institucionalizados, retroalimentam-se no intuito de projetar uma versão de mundo que, nesse caso, institui, desde o berço, a imagem conveniente do indivíduo esperado, compactuando com a “evolução da metamorfose da larva civil a caminho do guerreiro perfeito” (ANTUNES, 2010, p. 20). Assim, como sons que se alinham e, aparentemente, parecem ecoar de forma conjunta, tais discursos atuam como instrumentos de poder que tentam estancar a contradição, o questionamento. A tríade referida relembra, assim, as forças centrípetas teorizadas por Bakhtin, caracterizadas como “uma expressão teórica dos processos históricos da unificação e centralização linguística [...]. A língua única não é dada, mas, no fundo, sempre indicada e em cada momento de sua vida opõe-se ao heterodiscurso real” (BAKHTIN, 2015, p. 39-40). Por essa dinâmica, as forças centrípetas que atingem o “eu” desejam impor “uma das verdades sociais (a sua) como a verdade; tentarão submeter a heterogeneidade discursiva (controlar a multidão de discursos); monologizar (dar a última palavra); tornar o signo monovalente (deter a dispersão semântica); finalizar o diálogo” (FARACO, 2009, p. 53). Como forças centralizadoras do discurso, ditam o destino, defendem a imagem do herói nacional português e, junto com tal visão, a manutenção do sistema imperialista, com “a benção divina” aliada às forças do império: 163 As tias instalavam-se a custo no rebordo de poltronas gigantescas decoradas por filigranas de crochet, serviam o chá em bules trabalhados como custódias manuelinas, e completavam a jaculatória designando com a colher do açúcar fotografias de generais furibundos, falecidos antes do meu nascimento após gloriosos combates de gamão e de bilhar em messes melancólicas como salas de jantar vazias, de Últimas Ceias substituídas por gravuras de batalha: – Felizmente que a tropa há-de torná-lo um homem. Esta profecia vigorosa, transmitida ao longo da infância e da adolescência por dentaduras postiças de indiscutível autoridade, prolongava-se em ecos estridentes nas mesas de canasta, onde as fêmeas do clã forneciam à missa dos domingos um contrapeso pagão a dois centavos o ponto, quantia nominal que lhes servia de pretexto para expelirem, a propósito de um beste, ódios antigos pacientemente segregados (ANTUNES, 2010, p. 16-17). O contato familiar caracteriza o ambiente, aparentemente, dócil, correspondente ao universo infantil, recriado entre “filigranas de crochê” e “poltronas gigantescas”, as quais indicam a posição do “eu narrado” em sua condição de poder diminuta, reiterada, de forma metonímica, pela imagem das “dentaduras postiças de indiscutível autoridade”. Ao lado dessa visão, apoiam-se outras duas, já que, de um lado, figuram as “custódias manuelinas” em uma clara referência ao contexto pomposo da pátria portuguesa, concernente ao período das grandes navegações e às conquistas que possibilitaram o título de pátria expansionista a Portugal. Do outro lado, por sua vez, abunda a presença do rito religioso, como uma forma de dignificar a família e a nação em uma só prece por meio da jaculatória, pois nela se torna audível o desejo da voz familiar de que o Estado torne o “eu narrado” um homem. As palavras dessas outras vozes presentes nas memórias enunciadas soam como uma sentença na medida em que ganham força e parecem simular um refrão a ser repetido, tendo em vista o poder inquestionável de quem o proferiria. Por isso, diferente de outras alusões ao discurso do “outro” que figuram entremeadas às palavras do narrador, a profecia vigorosa é apresentada de forma direta, reverberando o prolongamento do dito – “em ecos estridentes” – e, com isso, a afirmação de uma verdade. Nesta altura, é válido fazer um parêntese para ressaltar um entendimento errôneo acerca do conceito de heterodiscurso, o qual pode levar a conjecturas que tentem perceber Os Cus de Judas como um romance polifônico, ou ainda, entender que, ao se analisar a multiplicidade de vozes presentes nessa narrativa, a polifonia seria uma consequência a ser defendida na interpretação dessa obra. Na verdade, partindo da compreensão de que um romance polifônico, tal qual fora analisado por Bakhtin em seu 164 estudo dos romances de Dostoiévski, seria aquele em que há “uma profunda independência das ‘vozes’ particulares” (BAKHTIN, 1997, p. 33), não seria possível perceber tal situação no romance alvo desta pesquisa. A assertiva decorre do fato de que outras obras de Lobo Antunes aproximam-se muito mais dessa caracterização, a exemplo do romance O Manual dos Inquisidores, que apresenta uma rotatividade de vozes narrativas independentes umas das outras e, para dar outro exemplo, a prosa O Esplendor de Portugal na qual há também um revezamento de narradores que condicionam o narrado a partir de seus pontos de vista acerca do mundo. No entanto, caso se queira fazer uso das próprias concepções do autor, este afirma que: “A propósito dos meus livros, fala-se muito de escrita polifônica. Penso que não: é sempre a mesma voz que modula, que muda, que se altera. É uma única voz que habita o livro e tem uma densidade humana muito grande” 109. No caso da obra em estudo nesta tese, há a presença de uma variedade de vozes, entretanto elas estão condicionadas ao modo como o narrador, com sua “densidade humana muito grande”, as valora, não possuindo, dessa forma, a “profunda independência” comentada por Bakhtin. Ainda assim, é possível depreender no fluxo narrativo a atuação das forças centrípetas que figuram no romance ao mesmo tempo em que ocorre a atitude de desmonte dessas instâncias de poder, ocorrendo, por essa medida, o processo heterodiscursivo na trama. Em outras palavras, acontece, na prosa, uma releitura realizada pelo narrador dos valores que as forças centralizadoras defendem, o que permite refratar tais imperativos de força, ou seja, alterá-los, deformá- los nessa interação a partir da avaliação negativa que é feita da visão de mundo que tais forças carregam. Na mediação dialógica realizada pelo narrador-personagem frente às vozes que repercutem as crenças do regime ditatorial salazarista, não há o desejo de reproduzir tais vozes sendo-lhes fiel, na verdade, ocorre a ressignificação desses discursos que surgem, assim, refratados. Com efeito, expõe-se, pela mediação irônica utilizada, o quanto tais visões tradicionalistas no solo português já perderam sua razão de ser no presente que se enuncia (percepção que não pode ser vista como algo incomum nos romances de Lobo Antunes) 110 . 109 Em entrevista concedida a Rodrigues da Silva. “Mais dois, três livros e pararei”. Jornal de Letras, Artes & Ideias, 25 de outubro, 2006, p. 16-21. In: ARNAUT, Ana Paula (Org.). Entrevistas com António Lobo Antunes 1979-2007: Confissões do Trapeiro. Coimbra: Almedina, 2008, p. 511. 110 Faz-se alusão, por exemplo, à obra O Manual dos Inquisidores, cuja estrutura narrativa torna-se um mote para promover a pulverização do discurso monologizante, o que é representado no texto pela relação com o contexto ditatorial vivenciado em Portugal. No romance em questão, a voz destronada, exemplificada pelo Ministro, compreendia, em uma dimensão maior, a queda da centralização do poder 165 Uma vez que se observe, por exemplo, a última passagem recortada do texto literário em estudo, apreende-se, primeiramente, a quebra de expectativa quanto ao rito solene e glorioso que as fotografias dos generais – como instrumentos da rememoração, “presentificação de ausentes, mensagem visual e produtora de realidades” (TEDESCO, 2004, p. 49) –, indiciam. Junto à imagem dos militares, figura a qualificação que destrona qualquer posição gloriosa que aqueles possam ter ostentado, uma concepção antitética, demarcada pelo adjetivo “furibundo”. Além disso, a ruptura ainda ocorre frente aos combates que são trazidos à tona na narrativa, destoantes de qualquer remissão heroica, pois eles acham-se reduzidos a um universo, primeiro, de esquecimento e, segundo, de deboche. A afirmativa ganha respaldo pela forma, vale-se ressaltar, bastante reiterada de dissolução das forças centrípetas presentes no romance, pautada pela natureza da ironia da qual o “eu narrador” se utiliza. No uso desse instrumento estilístico, o ponto de partida torna-se o modelo virtual de texto empregado pelas forças que constituíam o alicerce ideológico do Estado Novo, de modo que o conhecimento sobre as enunciações anteriores em que esse modelo textual fora utilizado é, assim, ativado a fim de, pela ironia, modificar o sentido ali construído. Dito de outra forma, para expor a palavra que contrapõe o discurso do “outro”, parte-se do modelo discursivo dessa mesma voz a ser fissurada. Isto é, para ironizar a grandiosidade das forças que desejam formatar um modelo identitário para o “eu”, inicia-se reiterando a linguagem que tais vozes apresentam, ou seja, uma linguagem presente em várias situações comunicativas anteriores (orientando-se de acordo com um já dito), para destroná-las no interior de seu próprio discurso. Por essa razão, resgata-se a composição dos “gloriosos combates” dos generais para convertê-los em jogos de gamão e bilhar, esvaziando o sentido do sacrifício pela pátria presente no simbolismo inerente à figura do guerreiro que lutaria pela nação. O desgaste dos arquétipos virtuosos é potencializado pela forma como se é apresentado o ícone cristão, relacionado à imagem da Última Ceia (relembrando o afresco de Leonardo da Vinci), a qual se torna prosaica, comum, devido à utilização do plural no título, simbolizando algo que também viu seu sentido ser esvaziado a exemplo das “messes melancólicas como salas de jantar vazias”. ao redor de Salazar, o que é sugerido no romance por meio da existência de uma pluralidade de narradores, edificando uma “democratização da voz narrativa”. 166 A relação entre as instituições apresentadas também é alvo da ironia, tendo em vista que o uso da mediação irônica sugere a hipocrisia dos ritos religiosos encenados pelas “fêmeas do clã”. O valor simbólico das ofertas fornecidas na missa dos domingos é desqualificado, já que, longe de comporem o apanágio cristão, marcado pelos atributos da misericórdia, da solidariedade, as ofertas convertem-se, para as tias, em um “pretexto para expelirem, a propósito de um beste, ódios antigos pacientemente segregados”. Em outras palavras, a oferenda era tratada apenas como uma forma de avalizar o que realmente faria parte das prioridades dos pilares da família ali constituída. Neste momento, é interessante fazer a ressalva de que, embora tenha sido observada uma ação conjunta entre as dimensões institucionalizadas vistas antes – Família, Igreja e Estado –, chegando quase a compor um conjunto de forças homogêneo, ainda é possível destacar as particularidades de cada discurso. Entre as especificidades a serem analisadas, deseja-se evidenciar o modo como as forças centralizadoras incidem sobre a formação do “eu”, projetando um dado modelo de identidade, ao mesmo tempo em que são alvos do desmonte realizado pela voz narrativa. Dessa maneira, os passos dados nesta pesquisa seguirão conforme haja o diálogo entre os discursos da tríade citada e o ex-alferes na sua “epopeia de crescimento”: “a meio caminho entre o escuteiro mitómano e o soldado desconhecido de carnaval” (ANTUNES, 2010, p. 20), a fim de que, ao final deste trajeto, seja possível reconhecer o processo de (des)construção no qual está inserida a voz narrativa aqui focalizada. 4.1.1. A imagem desvirtuada do “homem de família” Em primeiro plano, é necessário retornar ao universo familiar, reduto no qual as noções iniciais sobre o mundo foram transmitidas ao “eu”, pois, para fazer uso das reflexões de María Luisa Blanco, se “o primeiro olhar sobre as coisas configura a visão do mundo, a infância é sem dúvida o território onde se gera essa cosmovisão” (BLANCO, 2002, p. 23). Tal contexto, que se encontra bastante presente na obra de António Lobo Antunes, seja nos romances, seja nas crônicas do autor, mobiliza, no caso de Os Cus de Judas, uma profícua ambiguidade, construída a partir de uma dupla perspectiva: a reação do narrador diante do que fora vivido na infância e o modo como decorria o tratamento do clã familiar em relação ao protagonista da trama no primeiro estágio de seu crescimento. 167 Seguindo na perspectiva do olhar do presente incidindo sobre o pretérito, surge a visão do adulto que, por um lado, reflete sobre a posição ingênua que um período de tolhimento e esperança projetava sobre o infante ao entender que o “tempo trouxe-nos a sabedoria da incredulidade e do cinismo, perdemos a franca simplicidade da juventude” (ANTUNES, 2010, p. 138). Por outro lado, o “eu narrador” sente a nostalgia dessa época dando lugar ao sentimento de um vazio que não se extingue perante uma fase que já não regressaria. Não há mais espaço (perante a experiência obtida, principalmente, na traumática vivência da guerra) para um olhar de encantamento com o mundo, sensação que é relembrada pelo ex-médico-alferes no momento em que ele sugere à destinatária anônima de seu depoimento a possibilidade de fuga do pragmatismo da vida: “E teríamos recuperado dessa forma um pouco da infância que a nenhum de nós pertence, e teima em descer pelo escorrega num riso de que nos chega, de longe em longe e numa espécie de raiva, o eco atenuado” (ANTUNES, 2010, p. 13). Assim, a imagem mítica da infância como “símbolo da inocência; [...] o estado anterior ao pecado” (CHEVALIER & GHEERBRANDT, 1989, p. 302, grifos no original), ou seja, o corolário de um tempo imaculado, repleto de lembranças que são, muitas vezes, utilizadas pelos adultos para justificar a existência de um momento de vida em que foram felizes passa a ser tido como um viés em questionamento no universo narrado. Em primeiro plano, o exposto é justificado pelo olhar já angustiado do narrador, contaminando as reflexões sobre o que foi vivido. Em segundo plano, os próprios relacionamentos travados nesse período pelo “soldado em miniatura” possibilitam a suspeita de que a infância em questão não seria um espaço de tempo sem maiores preocupações. Na verdade, como bem coloca Maria Alzira Seixo em suas interpretações sobre Os Cus de Judas, todo o livro desenvolve um processo verberável não apenas pela destruição, colonialismo, impostura ou crueldade que nele se exibe, mas também porque através dele se aniquilou o “frágil prazer da alegria infantil, do riso sem reservas nem subentendidos, embalsamado de pureza” que nele representa a emergência da figura da criança (SEIXO, 2002, p. 46). Dessa maneira, saindo do olhar do “eu narrador” que demonstra, ao mesmo tempo, um desalento frente aos anos que passaram e o discernimento de que a inocência anterior não seria condizente com o cenário do presente, parte-se para a ambivalência também sentida no modo como a relação com a família é observada. Essa situação é 168 marcada pelo misto de afeição e descrédito que o discurso do clã prolonga sobre a aprendizagem que se espera que o sujeito desenvolva. De um lado, sente-se a proximidade dos parentes em relação ao infante, algo que desperta ternura e nostalgia na personagem principal, principalmente, em momentos em que o desespero e a sensação de desengano abatem o indivíduo, por exemplo, quando ele se lembra de Sofia, o narrador declara: “sabia-me a infância estar contigo, sabia-me às unhas suaves da Gija nos meus rins, ao meu avô que se debruçava para o meu sono e me deixava na têmpora a violeta de um beijo, sabia-me ao modo como a minha tia Madalena me dizia Meu filho” (ANTUNES, 2010, p. 154). Do outro lado, o tom ameno adquire um ar de imposição, compõe-se de uma aura de poder capaz de determinar o destino do indivíduo, trata-se de uma voz que não espera resposta, porque não espera ser questionada, apenas obedecida. Assim, o “eu” passa a sentir-se conforme a sentença proferida pela “tribo”, a qual age com desdém diante da fraqueza que aquele apresenta, um aspecto que o distancia do modelo de homem ansiado como representante da família e, por extensão, da própria nação: As tias avançavam aos arrancos como dançarinas de caixinha de música nos derradeiros impulsos da corda, apontavam-me às costelas a ameaça pouco segura das bengalas, observavam-me com desprezo os enchumaços do casaco e proclamavam azedamente: – Estás magro como se as minhas clavículas fossem mais vergonhosas que um rastro de baton no colarinho (ANTUNES, 2010, p. 16). O discurso da família, relembrado mais uma vez pela referência às tias do “eu” em seu processo de aprendizagem, reveste-se de um tom de sentença. Por isso, essa voz é apresentada de forma direta, já que corresponde a um ato de proclamação no qual abundam termos que se distanciam, profundamente, de um ambiente maternal ou mesmo de qualquer sentimento afetuoso, dando lugar ao “desprezo”, ao “azedume”, à “ameaça” e à “vergonha”. Para tal leitura de mundo, a fraqueza assume a vez de um pecado, um infortúnio que determina o declínio, ironicamente, maior que a imagem do homem adúltero que um “rastro de baton no colarinho” indicia. Assim, no quadro familiar, elenca-se um “modelo de homem” que é ironizado pelo narrador por se observar distanciado de tal paradigma. No interior da “ética” defendida pelas tias, o “eu” simbolizaria algo impossível de se ignorar, uma vez que consiste em uma antevisão da derrota e esta já parece ser 169 prenunciada a cada sentença entoada pela proclamação do clã. Tal voz, por sua vez, relembra uma forma de discurso teorizada por Bakhtin, denominada de “discurso autoritário”, o qual “situa-se numa zona distante e está organicamente vinculado a um passado hierárquico. Trata-se, por assim dizer, da palavra dos pais. [...] Sua linguagem é uma linguagem especial (por assim dizer, hierática). Ela pode se tornar objeto de profanação. Um tabu” (BAKHTIN, 2015, p. 136). Por essa ótica, a “palavra dos pais” atuaria como um decreto que visa à reprodução de um dado comportamento cujo modelo advém de um passado tomado como norte para as futuras gerações. Assim, a sentença é cumprida e a derrota pré-anunciada concretiza-se: Uma bengala de bambu formou um arabesco desdenhoso no ar saturado da sala, aproximou-se do meu peito, enterrou-se-me como um florete na camisa, e uma voz fraca, amortecida pela dentadura postiça, como que chegada de muito longe e muito alto, articulou, a raspar sílabas de madeira com a espátula de alumínio da língua: – Estás mais magro. Sempre esperei que a tropa te tornasse um homem, mas contigo não há nada a fazer. E os retratos dos generais defuntos nas consolas aprovaram com feroz acordo a evidência desta desgraça (ANTUNES, 2010, p. 196, grifos nossos). Para condicionar o olhar do “eu” diante do mundo, o discurso com o formato autoritário necessita de ancorar-se em um dizer chegado “de muito longe”, conseguindo, dessa maneira, afirmar o seu poder. Nesse sentido, tal discurso é apresentado com um tom altissonante que crava no narrador a impressão de uma trajetória de desventura, em que a glória parece ser evocada apenas pelas imagens dos generais 111 , símbolos de uma memória que não se deseja esquecida, pois, em um tempo de fracasso, resta apenas a lembrança do que um dia foi frente à desonra do que poderia ter sido no presente desalentador. Não à toa, o “eu narrador” encerra seu relato reavivando, mais uma vez, o discurso tradicional da família, como uma forma de fechar um ciclo em que a expectativa incitada no início do percurso não logrou êxito. Uma espécie de palavra adâmica, etérea que, na passagem citada, surge por meio de uma entidade sugerida metonimicamente pela dupla “bengala de bambu” e “dentadura postiça”, é, portanto, desfeita. 111 Em estudo sobre a obra antuniana, Ana Paula Arnaut comenta sobre a presença das fotografias nas narrativas, observando que na “larga maioria das menções feitas à existência dos retratos, por exemplo, é possível verificar que eles interferem no relato dos episódios em que surgem integrados, ora pedindo ajuda, ora indignando-se com o desleixo, ora levando a supor que as coisas estão mudadas, ora dando ordens, ora, ainda, e sem esgotarmos os exemplos e as funções que desempenham, censurando comportamentos e modos de vida de personagens” (2011, p. 85). 170 Um aspecto importante a ser mencionado é que o caráter de repetição, outrora observado, presente no estilo desses discursos que fazem parte do processo de formação do “eu”, favorece o intuito de um pensamento que busca ser reproduzido e não questionado. Dessa maneira, ao reiterar-se, a sentença proferida pelas tias – “Estás magro” – adquire ares de verdade e semeia a aceitação de quem se faz ouvinte de tal profecia. Nessa perspectiva, as vozes de tom despótico que ecoam na narrativa, desde o universo familiar do sujeito, acabam reanimando a atmosfera social do autoritarismo vivido no Portugal rememorado pelo ex-combatente. Por sua vez, o condicionamento do “homem em crescimento” principia pela relação que o “eu” tece com as figuras femininas na trama. Por um lado, são apresentadas a Tia Tereza “negra gorda, maternal e sábia” (ANTUNES, 2010, p. 174) e Sofia, a comissária do MPLA e seu “riso de mulher liberta” (ANTUNES, 2010, p. 153), representantes de uma visão distinta de mundo da que fora exposta ao “eu” em relação ao espaço colonizado. Por outro lado, a aprendizagem é conduzida também pelo olhar das tias, das avós que delimitam a percepção do sujeito no seu “mundo em diminutivo” (ANTUNES, 2010, p. 35). Entretanto, seja em um direcionamento ou em outro, a imagem do “eu narrador” constitui-se pela negação da hombridade, ou seja, pela negação do estereótipo viril, másculo e, mesmo, heroico, algo apregoado desde a infância pelo discurso familiar, o que pode ser esclarecido quando o próprio sujeito se vê como um ser acovardado, alguém que “tolhia o menor gesto de revolta” (ANTUNES, 2010, p. 134) dentro de si. Assim, as imagens femininas, instrumentos de força dentro do romance, independente do viés ideológico que possibilitem entrever, contrastam com um homem adulto que se converteu em um “ser apequenado”, desprovido de ímpeto, proveniente de um contexto de censura, de espírito regrado, um perfil elaborado conforme as orientações político-ideológicas que, ao longo de seu percurso, foi recebendo: Nasci e cresci num acanhado universo de crochet, crochet de tia-avó e crochet manuelino, filigranaram-me a cabeça na infância, habituaram- me à pequenez do bibelot, proibiram-me o canto nono de Os Lusíadas e ensinaram-me desde sempre a acenar com o lenço em lugar de partir. Policiaram-me o espírito, em suma, e reduziram-me a geografia aos problemas dos fusos, a cálculos horários de amanuense cuja caravela de aportar às Índias se metamorfoseou numa mesa de fórmica com esponja em cima para molhar os selos e a língua (ANTUNES, 2010, p. 35). 171 A partir do que é possível perceber do olhar do narrador que consegue, ao rever suas memórias, identificar como agiam os discursos com os quais travou uma relação, destaca-se um “universo de negação”, já que nesse cenário predomina o descarte da curiosidade, do questionamento, de tudo que fugisse aos ditames da “epopeia do crescimento” do filho de família tradicional portuguesa. Nessa sistemática, o “eu narrado” corresponde a um ser inerte, sobre o qual agem as forças que determinam, de “forma centrípeta”, um modo específico de ver o mundo, o que é sugerido no trecho realçado pela presença constante da voz passiva – “filigranaram-me”, “habituaram-me”, “proibiram-me”, “ensinaram-me”, “policiaram-me”, reduziram-me”. Como “ser paciente”, o sujeito meramente recebia os aspectos que eram considerados relevantes para a constituição do imaginário de nação (do qual o seio familiar seria uma ressonância), de modo que as bases da identidade nacional firmavam- se sobre os eventos concernentes ao expansionismo luso e à aliança com a igreja católica, aspectos com os quais o narrador deveria identificar-se enquanto um participante do estado-nação português. Nessa senda, a assimilação tencionada apoiou- se em um conjunto de referências políticas e literárias para compor o viés ideológico defendido, dado que tal entendimento, retomando a concepção enfatizada anteriormente sobre o discurso autoritário, “procura determinar os próprios fundamentos da nossa relação ideológica com o mundo e do nosso comportamento” (BAKHTIN, 2015, p. 136). No que se refere ao universo literário, o poema épico Os Lusíadas (1572) fez parte do arcabouço de leituras que compunham o “meio ideológico”, para fazer uso de um conceito de Medviédev (2012, p. 56) 112, que circundava o “eu” em seu processo de crescimento. Dessa forma, seria um imperativo para o grupo familiar tecer o contato do sujeito a ser moldado com uma obra símbolo de um ideário de nação e de suas glórias, em que são entoadas as grandes vitórias de um povo, filtrando a descoberta do caminho marítimo para a Índia. Nesse cenário grandiloquente, reforça-se a excepcionalidade do povo lusitano, o que parece dialogar com o mesmo “acento ideológico” (BAKHTIN, 1997, p. 81, grifos no original) dos discursos tradicionalistas apresentados até o momento, voltados para, conforme é ressoado no I canto do referido poema, “As 112 “O meio ideológico é a consciência social de uma dada coletividade, realizada, materializada e exteriormente expressa. Essa consciência é determinada pela existência econômica e, por sua vez, determina a consciência individual de cada membro da coletividade” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 56). 172 navegações grandes que fizeram [...] /A fama das vitórias que tiveram” (CAMÕES, 2003, p. 14), enfim, para o canto do “peito ilustre Lusitano”. No entanto, mesmo nesse diálogo, encontram-se pontos de tensão, pois, por mais que ocorra a glorificação da fé cristã na épica citada, há, ainda, referências aos deuses greco-romanos e nisso sobressai a proteção de uma deusa pagã, Vênus, dada aos heróis nacionais. Tal situação deslinda certa liberdade facultada às personagens do enredo camoniano que não poderia ser possibilitada ao sujeito que se queira conformado às “orações ao Divino Espírito Santo” (ANTUNES, 2010, p. 15), ou ainda, ao ritual do “calendário de missões” (ANTUNES, 2010, p. 15). Além disso, a desaprovação da leitura do Canto IX pelo jovem filho do lar tradicional lusitano configura uma espécie de censura, comum ao contexto social relembrado, em que se nega o acesso ao prazer, representado pela remissão à Ilha dos Amores, por entender-se que a virtude, incluindo a do herói, repousa no distanciamento dos pecados da carne. Esses aspectos equivalem para o “eu narrador” com sua “teia de hábitos tristes” (ANTUNES, 2010, p. 35) a uma prisão, ironicamente, maior que a guerra, pois, mesmo nesse ambiente de profundas privações, era possível escapar das raízes que o prendiam “a resignações de almofada bordada” (ANTUNES, 2010, p. 36) e do “tédio à António Nobre 113 nascido da crença convicta de uma superioridade ilusória” (ANTUNES, 2010, p. 38). Por meio da última referência literária citada, por exemplo, faz-se sentir o desencanto do sujeito nascido nesse contexto com as vozes cerceadoras que ali ecoam. O narrador promove, então, a desestruturação dos discursos que reforçavam certo ideal de nação, resgatando a voz de um poeta simbolista, decadentista do final do século XIX, a fim de intensificar o enfado sentido com as visões de mundo (com as quais interagia) que se distanciavam, profundamente, da realidade vivenciada. Com tal atitude, ocorre a problematização dos ditos que se querem afirmados como verdades, pois passam a ser vistos pelo narrador como uma “superioridade ilusória”, uma crença calcada, inclusive, em modelos literários, narrativas fundadoras que funcionam como meios para “dar à identidade nacional a liga sentimental e afetiva que lhe garante uma certa estabilidade e fixação, sem as quais ela não teria a mesma e 113 António Pereira Nobre, nascido no Porto, em 1867, foi um poeta português cuja obra se insere nas correntes ultrarromântica, simbolista, decadentista e saudosista (sublinhando o interesse pela revivescência dos valores pátrios) da geração do final do século XIX português. A sua principal obra, Só (1892), é caracterizada pelo tom de lamento e saudosismo, em que o sentimentalismo ainda é suavizado por um fio de autoironia. Como uma marca de sua poesia, destaca-se a utilização de uma estrutura linguística mais coloquial e uma diversificação estrófica e rítmica dos poemas. Outras referências, inclusive, literárias, são mencionadas na narrativa de Lobo Antunes e serão mais bem analisadas no próximo capítulo desta pesquisa. 173 necessária eficácia” (SILVA, 2000, p. 85). Desse modo, seja pelo interesse despertado no “eu”, justamente, por aquilo que lhe é vetado do universo camoniano; seja pela apatia desse mesmo sujeito com a utilização de dadas referências para reavivar uma visão nacional que em nada parece coerente com o tempo vivido, sobressai na obra de Lobo Antunes uma atitude circunscrita à reavaliação da “épica nacional”. Tal dinâmica, já sublinhada em momento anterior deste estudo, é retomada aqui apenas para que se enfatize a força dessa ação desarticuladora presente no texto literário e o modo singular com o qual é tratado o próprio cenário de Guerra Colonial. A essa compreensão, ligam- se, portanto, as palavras de Carlos Reis no tocante às narrativas marcadas por esse período fatídico da história portuguesa: É num tal contexto que a literatura da guerra colonial constitui, em geral, uma espécie de anti-epopeia ou, no mínimo, de revisão do sentido da epopeia, tal como o salazarismo a impôs, particularmente na leitura “oficial” e imperialista a que sujeitou Os Lusíadas, como obra central do cânone (REIS, 2004, p. 20, grifos no original). Nesse sentido, levando-se em consideração o ano de publicação da obra alvo desta pesquisa e o fim do regime Estado Novo com o 25 de abril, o sentimento de uma trajetória gloriosa, na qual os discursos e as referências citadas no texto literário ancoram-se, é alvo de uma releitura sistemática, em que as afirmações, os desejos e os mitos relacionados à nação portuguesa são postos em suspensão. Para realizar tal releitura, o “eu” põe em questionamento não só os arquétipos trazidos pelo clã em contato com o universo social, mas também aqueles nascidos no interior desse pequeno reduto no qual o sujeito foi criado, desfazendo a solidez que eles poderiam possuir: Conhece o general Machado? Não, não se franza, não procure, ninguém conhece o general Machado, cem em cada cem portugueses nunca ouviram falar do general Machado, o planeta gira apesar desta ignorância do general Machado, e eu, pessoalmente, odeio-o. Era o pai da minha avó materna, a qual, aos domingos, antes do almoço, me apontava com orgulho a fotografia de uma espécie de bombeiro antipático de bigodes, dono de numerosas medalhas que tronavam no armário de vidro da sala juntamente com outros troféus guerreiros igualmente inúteis, mas a que a família parecia prestar uma veneração de relíquias. Pois fique sabendo que durante anos, aborrecido e pasmado, escutei semanalmente, em folhetins narrados pela voz emocionada da avó, as proezas vetustas do bombeiro elevadas na circunstância a cumes de epopeia: o general Machado envenenou-me anos e anos o bife introduzindo na carne o mofo indigesto de uma 174 dignidade hirta, cuja rigidez vitoriana me enjoava (ANTUNES, 2010, p. 37-38, grifos nossos). Na passagem anterior, extensa, mas importante para que, a partir dela, seja possível finalizar as análises sobre o discurso da família com o qual o “eu narrador” interage, sente-se uma “dupla presença”, ou seja, a partir da voz narrativa, se faz audível novamente a voz feminina que tenta defender um exemplo de heroísmo por meio da figura do general Machado. Assim, relembra-se a noção de bivocalidade discursiva estudada por Bakhtin, em que a palavra “serve ao mesmo tempo a dois falantes e traduz simultaneamente duas intenções” (BAKHTIN, 2015, p. 113). Nesse caso, de um lado, abstrai-se a voz de uma memória afetiva, personificada na imagem da avó materna, que rende homenagens às proezas do ilustre Machado; do outro lado, há a voz irônica que reduz a importância de um herói que ninguém conhece, utilizando, para tanto, um tom de troça – “o planeta gira apesar desta ignorância do general Machado”. A mediação realizada pela ironia entre os discursos apresentados na passagem recortada relaciona-se com a própria natureza discursiva que o romance, com sua diversidade de vozes, apresenta, já que a ironia é um caso típico de discurso bivocal. Nela, a palavra tem duplo sentido: volta-se para o objeto do discurso como palavra comum e para um outro discurso. A consideração pelo discurso de um outro implica, na verdade, o reconhecimento do segundo contexto como meio de perceber o significado de ironia (CASTRO, 2005, p.120). A presença do heterodiscurso, que vem sendo deslindada aqui, é mais uma vez exemplificada, em que tal noção é construída a partir de dimensões opostas que se esbatem na compreensão de um mesmo objeto. No último trecho retirado do romance, mais precisamente, no presumível discurso da avó, saltam categorizações de um cariz positivo, construído pelo “orgulho”, pela “veneração”, pela “voz emocionada”, ressoando, a partir da leitura feita pela matriarca, a compreensão do grupo familiar que parecia se “prestar a uma veneração de relíquias”. Já no discurso do “eu narrador”, as referências de mundo elaboradas durante anos eram convertidas em questionamentos, em zombaria frente à inutilidade com a qual aquelas poderiam ser caracterizadas. Enquanto sente-se uma voz que procura dignificar a “epopeia da família”, esta se torna alvo da ruptura provocada por outra voz que se vê no presente como um sujeito que assistiu a tudo pasmo, mais movido pelo tédio, no passado, que pela indignação ou 175 inquietude, as quais seriam originárias de uma vivência angustiante durante os vinte e sete meses que esteve em África. Dessa vivência, o indivíduo sai como um sujeito que, se não corresponde ao homem no qual a tribo desejava vê-lo transformado, tornou-se alguém capaz, “ao menos”, de identificar o conteúdo de um discurso que o castrou durante tantos anos, propagando uma versão de mundo tomada como única, com uma “rigidez vitoriana” deteriorada pelo tempo. Tal leitura pode ser sugerida, ainda, na passagem a seguir em que, mesmo não correspondendo aos ditames pregados pelos discursos da tríade apresentada, não se pode negar, de forma alguma, a sua interferência. Sublinha-se uma criação que, apartada do universo infantil e de sua inocência peculiar, mergulhou no contexto hipócrita dos discursos velados que guardam no não dito uma visão de mundo distinta de qualidades, como a honradez e a retidão, as quais rotulam a identidade a ser construída nesse processo. Seguindo nesse projeto, o adulto que cresce nesse ambiente vê-se, ironicamente, “tornado um homem”, compondo uma leitura adversa do que se podia esperar sobre o entendimento de tal conclusão: De facto, e consoante as profecias da família, tornara-me um homem: uma espécie de avidez triste e cínica, feita de desesperança cúpida, de egoísmo, e da pressa de me esconder de mim próprio, tinha substituído para sempre o frágil prazer da alegria infantil, do riso sem reservas nem subentendidos, embalsamado de pureza, e que me parece escutar, sabe, de tempos a tempos, à noite, ao voltar para casa, numa rua deserta, ecoando nas minhas costas numa cascata de troça (ANTUNES, 2010, p. 31, grifos nossos). Nessa passagem, a troça surge como um símbolo que ilustra a ironia com o projeto de formação de um indivíduo que termina por se desfazer em comentários debochados. Tal leitura não poupa nem mesmo a própria educação religiosa do sujeito e os discursos decorrentes dessa aprendizagem, aspectos sobre os quais o foco recai a parte deste momento. 4.1.2. Depois da “Sagrada Família”: a degradação do perfil hierático Inicialmente, é válido observar o modo de construção de uma visão de mundo pautada por um sentimento, primeiro de resignação com a realidade apresentada, segundo de imposição de um único caminho a ser seguido. À maneira do discurso da 176 instituição familiar, a religiosidade, nesse caso, católica, surge na obra como uma ordem a ser seguida, a qual faz parte da constituição de alguém que se enxerga como um “filho da Mocidade Portuguesa 114 , das Novidades e do Debate, sobrinho de catequistas e íntimo da Sagrada Família que nos visitava a domicílio numa redoma de vidro” (ANTUNES, 2010, p. 43-44). A moral religiosa compõe uma segunda família para o indivíduo e nela se busca estabelecer uma razão para o “ser” e o “estar” no mundo do sujeito, o que é edificado, nessa situação, por uma aliança que não se dissolve com os ditames do Estado. Nesse pacto, defende-se a manutenção da política expansionista lusa como uma causa com vínculos religiosos, em que o enaltecimento da civilização portuguesa difunde-se juntamente com o crescimento da fé católica. Dessa maneira, junto a um contexto de repressão e, por consequência, de silenciamento, a máxima religiosa também contribuía para a sensação de apequenamento do sujeito. Este se vê tocado por um sentimento de dependência, de submissão a algo maior do que si, o que caracteriza um aspecto comum dos homens que “projetaram seus desejos e seus temores em um Ser superior, capaz de satisfazê-los e defendê-los” (CHEVALIER & GHEERBRANDT, 1989, p. 333). Assim, o pequeno reduto, do qual o “eu” seria proveniente, adquire outro elemento substancial, em que a aprendizagem da moral católica sinalizava uma prática regida pela ameaça e pela atitude conformada diante do mundo. Tal interpretação poderia ser relacionada com a própria leitura de Lobo Antunes acerca de sua vivência religiosa, já que, em entrevista concedida pelo autor à Blanco, ele afirma: “Recebi uma educação religiosa que, ao mesmo tempo, me afastava da Igreja, porque era estúpida. O seu Deus nunca era um Deus de amor, era um Deus que castigava sempre, que enviava desgostos” (2002, p. 198-199). No cenário do romance, Deus surge também como uma forma de suportar as privações sofridas no contexto da guerra, em que a “certeza” da proteção divina seria um consolo capaz de justificar o horror da violência vivenciada no conflito, calando “para sempre a vozinha interior que na cabeça” (ANTUNES, 2010, p. 51-52) reclamava, teimosamente, ao “eu narrado” as “proezas de Zorro”. Ao invés de tal afronta, esperava-se outro comportamento do sujeito, um que correspondesse melhor à “galeria de chatos bondosos”, compilada no missal da avó: 114 “Movimento jovem da década de 1930, uma das instituições mais declaradamente fascistas do Estado Novo português” (MAXWELL, 2006, p. 67), que possuía como objetivo educar os jovens de acordo com a moral religiosa e cívica imposta pelo sistema de governo de Salazar, centrada, principalmente, na educação infantil, configurando “uma educação fortemente ideológica e nacionalista” (SILVA, 2012, p. 12). Nesse projeto educacional, propagava-se o lema do regime, o qual traduz a representação da tríade que vem sendo comentada nesta análise, correspondente ao conjunto “Deus, Pátria e Família”. 177 E ao termo de dolorosa enfermidade suportada com resignação cristã e confortado com os sacramentos da Santa Madre Igreja, ingressaria por meu turno no panteão do missal da avó a juntar-me a uma extensa galeria de chatos bondosos, apontado como exemplo a netos indiferentes, que considerariam com enfado a absurda mornidão da minha existência (ANTUNES, 2010, p. 52). Nessa passagem, é possível reconhecer como a autoridade do discurso religioso é contestada, algo que principia pelo tom dogmático com o qual o narrador reveste o seu dito, seguindo as referências exigidas pela “Santa Madre Igreja”. Ao mesmo tempo, a voz narrativa corrompe o olhar sagrado por sugerir, nesse movimento, o tédio frente à “bondade resignada” que, vista por gerações futuras, seria caracterizada como mais um componente do acovardamento do “eu”. A inércia, nesse caso, corresponde à aceitação da realidade como um sacrifício que, se posto em questionamento, resulta na descrença, na visão do sujeito em pecado, mais próximo, portanto, do castigo divino. Nesse sentido, o discurso autoritário faz-se mais uma vez audível e, diferentemente da versão apresentada pela Família, constrói-se em um patamar afastado da vida terrena. O discurso de autoridade, incluindo nesse âmbito a condição teleológica do pensamento religioso, “exige distância em relação a si mesmo (essa distância pode ter um colorido tanto positivo quanto negativo, nossa relação pode ser reverente e hostil)” (BAKHTIN, 2015, p. 137). Para compreender melhor a dinâmica dessa relação, recorre-se mais uma vez ao texto literário motivador desta análise: As senhoras do Movimento Nacional Feminino 115 vinham por vezes distrair os visons da menopausa distribuindo medalhas da Senhora de Fátima e porta-chaves com a efígie de Salazar, acompanhadas de Padre-Nossos nacionalistas e de ameaças do inferno bíblico de Peniche, onde os agentes da Pide superavam em eficácia os inocentes diabos de garfo em punho do catecismo (ANTUNES, 2010, p. 21). A distância imposta pelo discurso religioso caracteriza-se pela simbologia da proteção versus a da punição. A primeira é edificada pela referência às “medalhas da Senhora de Fátima”, com a benção protetora do Estado Novo, o qual, metonimicamente, a figura de Salazar representa. Já a punição surge representada pela aliança entre o 115 O Movimento Nacional Feminino (MNF) caracterizou-se como uma organização que procurava intermediar as relações entre os soldados em guerra e o regime, desempenhando um papel importante enquanto um incentivador ideológico das premissas desse sistema político, motivando a participação da sociedade e das mulheres em particular. 178 inferno bíblico e a prisão política sediada na cidade de Peniche durante o regime ditatorial. Nesse sistema, só há um caminho a ser seguido, um destino que parece já ter sido determinado pela dádiva divina e, portanto, não poderia ser desmobilizado. Fazendo parte das “forças de unificação verboideológica” (BAKHTIN, 2015, p. 40), as referências ao catolicismo unem-se aos ditames do regime, como representantes de uma doutrina alinhada à propagação de um discurso nacionalista. O dogma construído seria forçosamente reforçado, seja pelo catalisador ideológico que a organização do Movimento Nacional Feminino sugeriria, juntamente, com a imagem feminina da Nossa Senhora de Fátima e da própria composição maternal da Santa Madre Igreja de modo geral; seja pelo olhar patriótico pregado e, mais ainda, regulado pelos “Padres-Nossos nacionalistas”; seja, enfim, pelo simbolismo do inferno traduzido no espaço terreno por meio de uma prisão para aqueles que não estivessem dispostos a seguir tal “crença”. Na conjunção observada entre a moral religiosa e o discurso nacionalista do regime, ocorre entre essas forças discursivas uma “relação indissolúvel com os processos de centralização sociopolítica e cultural” (BAKHTIN, 2015, p. 40). A aliança firmada sustentava o “monologismo oficial que se pretende dono de uma verdade acabada” (BAKHTIN, 1997, p. 109, grifos no original), já que, no interior do Estado Novo, a Igreja Católica “difundia a ideologia da ordem, do status quo, da noção de dilatação da fé e do império como fatos coligados e indissociáveis; e, num país camponês quase economicamente estagnado, o salazarismo recorria frequentemente à sanção religiosa de seu poder” (SECCO, 2004, p. 56, grifos no original). Dessa maneira, esses discursos fazem parte da conjuntura de repressão vivenciada à qual o narrador responde com ironia, “descentrando” tais visões à medida que expõe o conteúdo que fora velado pelo pensamento conservador. Isto é, abre-se a possibilidade de entrever a instituição magnânima da Igreja sendo utilizada como um instrumento de reforço de um pensamento nacionalista esvaziado. Tal leitura é simbolizada por uma lógica absolutista alvo de críticas diante da remissão à PIDE, uma ferramenta de manutenção do Estado lusitano, como algo ainda mais perverso que a lembrança demoníaca deixada pela simbologia da maldade no catecismo. Da doutrina eucarística, o “eu narrado” não escolhe participar, isso, naturalmente, lhe era imposto sem que o “eu” fosse ciente de sua própria condição, devido à ausência em si de uma “maturidade suficiente” para discernir sobre tal cenário. 179 Por sua vez, na voz “descentralizadora” do “eu narrador”, a visão maniqueísta do mundo, sustentada, inclusive, pela compreensão religiosa (pautada na dicotomia bom versus mau) é posta em causa, já que ao lado da representação maligna encontra-se, conforme foi mencionado antes, um elemento que simboliza o Estado e o controle do poder deste. Por conseguinte, a postura do narrador questiona a aliança tecida entre os discursos da Igreja e do Estado, as contradições oriundas das versões de mundo que tais pensamentos defendem e a que foi vivenciada, de fato, no contexto de silenciamento imposto pelo regime salazarista. Em suma, questiona-se a representação nacional de um país que necessita do uso do medo, da ameaça para continuar a propagar o seu “patriotismo veemente e estúpido de pacotilha” (ANTUNES, 2010, p. 104). O narrador reverte, ainda, a ordem estabelecida quando, por exemplo, ao lado das representantes do seio familiar, da Igreja e do Estado – o Movimento Nacional Feminino –, o obsceno, o prazer sexual é ressaltado, algo que é destacado na seguinte conjectura: “Sempre imaginei que os pêlos dos seus [das senhoras do Movimento] púbis fossem de estola de raposa, e que das vaginas lhes escorressem, quando excitadas, gotas de Ma Griffe 116 e babas de caniche 117” (ANTUNES, 2010, p. 21). Tal visão não poderia ser pronunciada sem ferir os discursos que desejam ser tidos como sagrados, retirando deles, nessa reversão simbólica, qualquer aura de pureza para inseri-los em uma condição de vida mais terrena, mais concreta, mais efêmera, própria da atitude irônica tão cultivada no romance. Esse mecanismo torna-se a via pela qual o “eu” polemiza com essas visões de mundo autoritárias, já que, fazendo uso das observações de Lélia Parreira Duarte, essa atitude irônica “contesta o inaudito, o original, o sagrado; mostra que nada é eterno e duradouro, nenhum juramento é para sempre, o universo não é infinito. Suprema questionadora das premissas sacrossantas, por suas interrogações indiscretas ela arruína toda definição” (2006, p. 33), mantendo o diálogo e a possibilidade, a partir disso, de construir novos sentidos. As imagens cândidas e eternas assumidas pelo discurso religioso são postas em suspensão, sendo corroídas por perfazerem uma visão de mundo que não faz sentido quando se consegue enxergar mais de perto a realidade vivenciada. A afirmação pode ser explicada, por exemplo, pela descaracterização que é feita da filosofia de misericórdia e caridade de que se reveste o olhar da Igreja, como uma forma de propagar a “dialética da salvação” (COUFFIGNAL, 2005, p. 296). A partir dessa 116 Perfume Chipre Floral Feminino, lançado em 1946. 117 Raça de cães que apresenta o pelo bastante cacheado. 180 dialética, os sujeitos buscam regenerar-se, livrando-se do pecado original que abate a humanidade desde a criação do mundo, segundo a ótica cristã. Nesse sentido, a veia irônica mais uma vez é ativada e possibilita um olhar mais aguçado sobre um mundo em que a bondade, na verdade, seria uma farsa tal qual seria a compaixão da Família pelos mais desafortunados, sobre os quais o narrador comenta: “os pobrezinhos das minhas tias, a quem no Natal se ofereciam através do prior, demiurgo da caridade anual, fatias de bolo-rei, palavras evangélicas e medicamentos fora do prazo de validade, rodeados de filhos, de piolhos e de gritos” (ANTUNES, 2010, p. 87). A comiseração dá lugar, portanto, à voz teatralizada do ex-alferes que observa um universo mesquinho no qual o prior, um “demiurgo da caridade anual”, surge como uma personagem a representar os grandes atos da Igreja e da classe burguesa. De um lado, ressoa, implicitamente, a voz inflamada do discurso religioso, o qual não ignora a existência de uma conjuntura social bastante estratificada que propicia a redenção dos cristãos por meio de ações benevolentes com aqueles que delas mais necessitam. Já, do outro lado, a voz do narrador vocifera a hipocrisia que sente perante uma visão de mundo que parece desejar mais a manutenção de uma ordem social desigual que a alteração desse modelo, já que deste se alimenta, de alguma forma. Mais uma vez a dimensão religiosa apregoa, nesse cenário, uma visão conformada com a realidade vivida, em que qualquer possível mudança pareceria sem sentido. Em outros textos de Lobo Antunes, tal situação também acontece, por exemplo, em uma passagem, cujo tom irônico é sensivelmente percebido, sobre a personagem Sofia e sua imensa futilidade, “baseando-se nos ensinamentos religiosos”, de O Manual dos Inquisidores, esse ser fictício afirma: “como diz o senhor prior para que é que um pobre quer um andar na Lapa, para que é que um pobre quer um andar no Príncipe Real 118 , para que é que um pobre quer ar condicionado e talheres e elevadores se não sabe servir-se deles” (ANTUNES, 1998, p. 64). Nessa passagem, assim como no trecho apresentado logo a seguir de Os Cus de Judas, desmorona-se a imagem virtuosa da Igreja para relacioná-la mais uma vez aos interesses do Estado 119 , bem como aos desejos de uma família tradicionalista que vê na queda do regime uma porta aberta para a perda 118 Bairro nobre de Lisboa. 119 É válido salientar que, após a queda do regime de Salazar, muitos aspectos do sistema administrativo do antigo regime mantiveram-se, tal seria o caso da posição da igreja que, mesmo sendo “um dos mais importantes pilares ideológicos do Estado Novo, a Igreja Católica, foi poupada à contestação social e resguardou-se de qualquer processo de transformação interna” (SANTOS, 1990, p. 27). 181 de suas posses 120 . Assim, mais uma vez a tríade de forças centralizadoras une-se na composição do olhar do “eu” que a traz à tona e, ao mesmo tempo, a desmonta: O espectro de Salazar pairava sobre as calvas pias labaredazinhas de Espírito Santo corporativo, salvando-nos da ideia tenebrosa e deletéria do socialismo. A Pide prosseguia corajosamente a sua valorosa cruzada contra a noção sinistra de democracia, primeiro passo para o desaparecimento, nos bolsos ávidos de ardinas 121 e marçanos 122 , do faqueiro de cristofle. O cardeal Cerejeira, emoldurado, garantia, de um canto, a perpetuidade da Conferência de São Vicente de Paula, e, por inerência, dos pobres domesticados (ANTUNES, 2010, p. 17, grifos nossos). Mais uma vez é possível observar que o narrador apresenta na composição irônica dos discursos alvos de sua crítica traços do estilo de linguagem que deseja corromper. Assim, signos como “cruzada”, “Espírito Santo”, “perpetuidade”, “labaredazinhas” resgatam um corolário linguístico do campo ideológico cultivado pela Igreja, o qual figura atrelado a uma leitura, essencialmente, burlesca de tal universo. Nesse campo, a crença na imagem de um Deus sagrado e onipotente é conjugada, no romance, à dimensão de um modelo de governo no qual também a entidade maior tudo pode, no sentido de que a ela foi dado todo poder. De igual forma, à imagem divina, delega-se um espírito vigilante sobre o qual repousa a salvação dos indivíduos e a remissão dos pecados em contraposição à encarnação da maldade. Esta não pode ser vista de forma separada do seu correspondente benevolente, pois duvidar “dos atos do primeiro faz com que se duvide dos atos do segundo, dos milagres que ele [Deus] realizou precisamente para combater o Diabo” (VILLENEUVE, 2005, p. 815). Aos instrumentos do Estado, fora atribuído o papel de defender e salvar os fiéis de uma nova versão maligna, caraterizada pelo 120 O receio das famílias que, de alguma forma, se beneficiaram com o regime de perderem sua posição social tinha de razão de ser, pois, segundo Lincoln Secco, a Revolução dos Cravos “suscitou uma vaga de pedidos e exigências provenientes de baixo, o que as classes dominantes portuguesas consideraram perigoso. Aqueles que eram homens de bem e ‘de bens’ na época salazarista viram-se à mercê de massas que lhe pareceram enfurecidas e que ocupavam as fábricas, as propriedades rurais e urbanas” (2004, p. 126). 121 O ardina vendia jornais na rua, tal ofício começou a ser exercido por crianças esfarrapadas, descalças e mais tarde, mulheres e homens adultos também ingressaram na profissão, sendo conhecida como um dos tipos populares de Lisboa. 122 Aprendiz de caixeiro. 182 socialismo, a exemplo da PIDE que assume a intrépida missão, como “cavaleiros da Ordem” 123, de garantir a manutenção do mesmo regime de governo. Nesse circuito, várias leituras acerca do contexto social vivido em Portugal na época são sugeridas e, no meio delas, assalta a voz desestabilizadora do narrador. Este põe em causa o discurso dos homens do Estado, referindo-se ao “espectro de Salazar”, dos homens da Igreja, aludindo ao cardeal Cerejeira, e dos “homens de família” cuja “solenidade pomposa” fascinava o “eu” em seu processo de aprendizagem, quando este “não entendia ainda que os seus conciliábulos sussurrados, inacessíveis e vitais como as assembleias dos deuses, se destinavam simplesmente a discutir os méritos fofos das nádegas da criada” (ANTUNES, 2010, p. 17). Aliás, a figura do cardeal Cerejeira merece destaque devido ao papel que ele desempenhou frente à Igreja Católica portuguesa de 1930 a 1971, exercendo uma forte presença midiática no domínio dos meios de informação nacional utilizados pela religião citada. A mediação eclesiástica do cardeal procurou reorganizar a força do catolicismo no país ao mesmo tempo em que estabelecia uma ligação com Salazar, contribuindo com “um ‘Estado de Ordens’, no qual a Igreja emparceirava com as forças armadas e a administração pública para definir as regras básicas da circulação do poder [...]. A Igreja católica, sob a sua direcção [do cardeal Cerejeira], foi um dos fundadores do regime” (MATOS, 2001, p. 829-830). Voltando ao texto literário, a hipocrisia focalizada soma-se ao questionamento das intenções de um “Espírito Santo corporativo”. Os significados da “valorosa cruzada” contra a democracia (vista, por sua vez, como uma “noção sinistra”) são esvaziados. Nesse escopo, sobre a voz dos “discursos sagrados” que a tríade em questão representa, vibra a força contraditória do narrador que enuncia a falta de sentido de um sistema (ao contrário do que a personagem Sofia do Manual revisitado anteriormente defendia) ancorado na piedade e na irmandade religiosa, no qual o topo é sustentado por “pobres domesticados”. É possível concluir, ou melhor, reforçar a partir de tudo que já foi exposto até o momento que uma das formas fundamentais de edificar o caráter heterodiscursivo no romance de Lobo Antunes corresponde à veia irônica tantas vezes elucidada nesta pesquisa quanto à maneira utilizada pelo narrador para pôr em causa as vozes que fizeram parte de sua “aprendizagem da agonia”. O exposto é justificado quando se 123 Faz-se alusão aos grupos de cavaleiros que fizeram parte, por exemplo, da Ordem de São João de Jerusalém (Hospitalários) e dos Cavaleiros Templários, representantes de uma ordem militar cristã responsável por garantir proteção aos fiéis no território sagrado da Terra Santa. 183 compreende que uma “das mais fecundas formas de representação da ironia no texto literário é essa multiplicação de perspectivas e/ou vozes na narrativa, esse dialogismo que alterna sujeitos e receptores no plano do enunciado” (DUARTE, 2006, p. 48). Desse modo, ocorre um processo de complementaridade entre a ironia e o heterodiscurso na narrativa em questão, visto que a presença da multiplicidade de vozes no texto dá vazão ao jogo irônico que se põe a questioná-las, testando a validade do dito que carregam. Por essa leitura, tanto os ensinamentos provenientes de uma formação religiosa, conforme foi observado, quanto as obrigações políticas do cidadão que deveria atender às imposições do Estado (foco da análise a partir deste momento) são alvos da deterioração que a ironia provoca. Assim, por meio da potência “destruidora” presente na bivocalidade do discurso irônico, é que se torna possível perceber, muitas vezes, a presença de uma variedade de acentos, valores e visões de mundo que se esbatem e/ou concordam entre si, “respondendo” umas às outras no “terreno” discursivo de Os Cus de Judas. 4.1.3. A desventurada “metamorfose da larva civil” A fim de continuar analisando a aliança entre as vozes autoritárias, chega-se, enfim, ao último elemento estruturador da tríade referida, em que o discurso do Estado, já audível em tantos outros momentos desta pesquisa, torna-se central para que ocorra a aprendizagem do ex-alferes, fechando, assim, o processo agônico iniciado no leito familiar. Inicialmente, é necessário deixar claro que a presença de tal discurso é sentida a partir de uma dupla perspectiva. Esta é edificada, primeiramente, a partir da leitura que é feita da metrópole colonizadora e, assim, dos elementos condicionantes do seu imaginário nacional. Em segundo lugar, há a imagem que é construída do “outro” colonizado, representado pela visão da África portuguesa que é ilustrada como uma visão antitética em relação ao cenário da pátria lusa. Por meio dessa duplicidade, buscava-se formatar uma identidade para o “eu” que se constituísse pela separação com o “outro”, já que o “eu se afirma, em se opondo” (FANON, 1983, p. 180). A partir de tal oposição, é que seria possível entrelaçar ao perfil planejado para o “eu narrador” as matrizes da identidade nacional portuguesa sobre as quais se fundamentava a política do Estado Novo. Nessa empreitada, o contexto central torna-se a vivência na guerra, uma experiência estimulada desde cedo pela tribo que ansiava pela transformação do “soldado em miniatura” a ser convertido, finalmente, em um homem: 184 De modo que quando embarquei para Angola, a bordo de um navio cheio de tropas, para me tornar finalmente homem, a tribo, agradecida ao Governo que me possibilitava, grátis, uma tal metamorfose, compareceu em peso no cais, consentindo, num arroubo de fervor patriótico, ser acotovelada por uma multidão agitada e anónima semelhante à do quadro da guilhotina, que ali vinha assistir, impotente, à sua própria morte (ANTUNES, 2010, p. 17, grifos nossos). Novamente, o tom de troça tinge o que poderia ser caracterizado como um rito oficial no qual as tropas lusas estão sendo enviadas para África a fim de salvaguardar um Estado colonial que começa a ruir. Tal ritual equivale a uma ação que possibilitaria não só impulsionar o ego dos bravios soldados diante da missão que a eles se revela, como também fundar uma continuidade histórica baseada na recuperação do imaginário de nação, resgatando a imagem das naus das descobertas que partiam com seus destemidos guerreiros a fim de defender o brasão lusitano. Essa situação conecta-se àquilo que foi analisado por Hobsbawm e Ranger (1984) e denominado de “invenção das tradições”, o que se caracteriza pela “utilização de elementos antigos na elaboração de novas tradições inventadas para fins bastante originais. Sempre se pode encontrar, no passado de qualquer sociedade, um amplo repertório destes elementos” (1984, p. 14), incluindo o ritual formalizado, ao som de marchas marciais, hinos e todo o apanágio que faria parte de uma tradição nacionalista que visa, nessa atividade, ser perpetuada. Além disso, há também a necessidade constante da reiteração, a reprodução das práticas simbólicas, como uma forma de “inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado” (HOBSBAWM; RANGER, 1984, p. 9). Talvez, por esse motivo, é que a caracterização dos discursos que formam as forças centralizadoras, em relação ao estilo apresentado, sempre tenha vindo acompanhada da necessidade de repetição, estabelecendo, por essa lógica, o desejo de manter a autoridade imposta e a naturalização de uma tradição historicamente construída. Essa visão passa a ser elucidada com mais clareza à medida que o sujeito começa a experienciar o afastamento espacial em relação ao seu país. Isto é, a partir do momento em que a “aprendizagem da agonia”, de fato, havia sido iniciada, o “eu”, assim, reflete: “E depois, sabe como é, Lisboa principiou a afastar-se de mim num turbilhão cada vez mais atenuado de marchas marciais em cujos acordes rodopiavam os rostos trágicos e imóveis de despedida, que a lembrança paralisa nas atitudes de 185 espanto” (ANTUNES, 2010, p. 22). A partida confunde-se com um quadro de tragédia no qual os acordes nacionais ensurdecedores passam a dar lugar ao silêncio questionador, compondo um quadro melancólico destoante de qualquer júbilo que o cerimonial sublinhado no trecho literário em questão poderia apresentar. Na verdade, o ritual de despedida das tropas transforma-se em uma “aquarela” de “espanto” e de imobilidade, erguida pela visão inconformada do narrador com a euforia nacional de uma “tradição inventada”. Por sua vez, o momento da partida dos soldados no cais condensa o início de uma viagem que determinará o olhar construído pelo sujeito no presente ao sentir novamente o desencanto perante os dias vividos nas Terras do Fim do Mundo. Essa experiência possibilitou a si uma “metamorfose grátis” cujos reflexos adquirem vários significados no tecido narrativo (aspecto a ser mais bem elucidado no capítulo seguinte desta pesquisa), inclusive, significados que fugiram à composição do estereótipo do homem desejado pela Família. Tal reflexão é justificada pelo fato de que a vivência no contexto bélico, longe de potencializar a imagem do cidadão de acordo com os desígnios da tribo, compõe, com efeito, a salvação daquele indivíduo de um mundo de aparências. Isto é, foi suportando todo o suplício do conflito colonial que o “eu” pôde analisar a inconsistência dos discursos com os quais interagiu, algo que propiciou ao ex- combatente uma espécie de redenção de um “universo de cegueira”. Em outras palavras, o penar sentido pelo narrador-personagem permitiu-lhe “deseducar-se”, uma visão que, apontada aqui anteriormente, torna-se neste momento mais evidente, paradoxalmente, por meio de uma vivência aprisionada “em três voltas de arame cercadas de minas e de guerra” (ANTUNES, 2010, p. 144). O mundo de aparências, do qual o “eu” se vê distanciado assim como se vê alijado da multidão que vinha assistir naquele evento oficial “à sua própria morte”, abarca um panorama de discursos que vêm sendo alvos da ironia mordaz do narrador. Tal artifício é usado para desvendar a hipocrisia característica desse cenário social, de forma que, nesse momento, o romance em foco de Lobo Antunes, enfim, “a literatura fica como experiência de grito e de testemunha de uma sensibilidade subjetiva à beira do abismo, mas que luta contra o inferno da alienação” (D’ANGELO, 2014, p. 25). Não à toa, o narrador faz referência a uma tela na qual a imagem central corresponde a um cadafalso – “multidão agitada e anónima semelhante à do quadro da guilhotina” (ANTUNES, 2010, p. 17) –, lembrando, entre inúmeras referências que essa prosa apresenta, do uso de tal instrumento no período da Revolução Francesa. Nessa 186 época, a sociedade burguesa desejosa de se libertar do domínio absolutista da monarquia opressora lança-se a uma revolução que terminará com anos de terror e a morte, pela guilhotina, de alguns líderes do próprio movimento. No enredo antuniano, o quadro fora relegado ao esquecimento do sótão pelas lembranças do “eu” em um espaço de “inutilidades abandonadas” (ANTUNES, 2010, p. 17), como um indício atemorizante das “revoluções sociais” (a exemplo do socialismo e da democracia) para o grupo formado pela Família, pela Igreja e pelo Estado. Nesse ínterim, a tela ressurge no momento da despedida do lar português e sugere a alienação de uma sociedade que consente, em seu “arroubo patriótico”, na morte de diversos de seus filhos a fim de proteger um projeto de ideário nacional firmado, entre outros aspectos, pela bandeira imperialista. O primeiro passo para a formalização do referido projeto no romance é dado pela necessidade de justificar a pertinência da Guerra Colonial como única forma de resguardar a imagem da nação colonizadora e, com isso, do próprio regime. Pela pátria, os filhos portugueses deveriam ser convertidos em heróis nacionais, erguendo “a digna estátua de bronze do marido e do filho ideais, talhado segundo o modelo das pagelas dos mortos no missal da avó” (ANTUNES, 2010, p. 51), o que perpassava a metamorfose tão ansiada pela “tribo” e que só seria possível pela ação da tropa que, enfim, tornaria o “eu” um homem. Para tanto, os senhores de Lisboa disparavam contra a população “as balas envenenadas dos seus discursos patrióticos” (ANTUNES, 2010, p. 166), os quais foram instrumentos condicionadores de uma narrativa de nação que passaria a significar a relação do sujeito com o espaço onde vive. Essa narrativa criava, entre outros aspectos, uma conexão entre a ação a ser realizada no momento da Guerra Colonial em favor da terra portuguesa com o que fora feito outrora no passado nacional, visto que a imagem construída sobre o “ontem” passaria a dar sentido ao momento em que se vive. Por essa perspectiva, chega-se ao entendimento de que a imagem do projeto de nação, citada anteriormente, condiz com a compreensão de Hall ao afirmar que as “culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre a ‘nação’, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação” (HALL, 1997, p. 55, grifo no original). Logo, o formato de identidade nacional apresentado no romance constituiu-se sob o signo do imperialismo e, nesse contexto, buscava a “identificação” dos portugueses com a causa 187 expansionista, erigindo o modelo de soldados, de guerreiros a lutarem pelo país, os quais eram alimentados culturalmente pelo ramal da Beira Baixa, os rios de Moçambique e as serras do sistema Galaico-Duriense, espiados pelos mil olhos ferozes da Pide, condenados ao consumo de jornais que a censura reduzia a louvores melancólicos ao relento de sacristia de província do Estado Novo, e jogados por fim na violência paranóica da guerra, ao som de marchas guerreiras e dos discursos heróicos dos que ficavam em Lisboa, combatendo, combatendo corajosamente o comunismo nos grupos de casais do prior (ANTUNES, 2010, p. 104, grifos nossos). Nessa sistemática, o Estado agia por variadas frentes para instituir uma única versão sobre a pátria, uma percepção monológica da realidade que consegue se manifestar “até mesmo onde a questão gira em torno de uma coletividade, da diversidade de forças criadoras, a unidade é ilustrada pela imagem de uma consciência: do espírito da nação” (BAKHTIN, 1997, p. 80). Isto é, os sentidos expressos sobre o país, com os quais os cidadãos portugueses identificam-se, estão subordinados a um acento ideológico, a uma posição dominante, enfim, a uma consciência que determina os valores que fazem parte do “espírito de nação”. A defesa dessa unidade nacional pela valorização da imagem portuguesa cumpriu um “papel essencial no século XX, para ressaltar cada vez mais a suposta grandeza da pátria como justificativa de um governo autoritário e de um colonialismo ultrapassado. O nacionalismo seria o de um governo estabelecido e colonizador; portanto, conservador” (SECCO, 2004, p. 32). A submissão a um só pensamento, que tentava conter qualquer visão contrária ao regime, era sustentada, por exemplo, pelo olhar da censura e da repressão que a PIDE representava, delimitando o fazer e o agir dos sujeitos nesse universo. Mais uma vez sugere-se uma dimensão paciente na qual os indivíduos são “alimentados”, “espiados”, “condenados” e “jogados” em um destino traçado pelos interesses do Estado que descarta tais sujeitos como “filhos desprotegidos e frágeis, exaustos de lutarem dentro de si mesmos contra o que de si mesmos os revolta” (ANTUNES, 2010, p. 154). O exposto se explica perante o entendimento de que, enquanto discurso autoritário, este, conforme as leituras de Bakhtin, “exige de nós reconhecimento e assimilação, impõe-se a nós independentemente do grau que, para nós, tem sua persuabilidade interior: já se pré-encontra unido por natureza autoritária” (BAKHTIN, 2015, p. 136). 188 O discurso de cunho autoritário, como o que o Estado, aqui observado, veiculava, apoiava-se em uma condição pré-definida, buscando convencer aos demais de sua presença natural no seio dessa sociedade, o que é realizado pelo emprego de uma série de mecanismos que significam o vivido a partir das intenções de um grupo social bastante específico. Nesse sentido, é que se utilizava, para divulgar tal concepção, dos “sons de marchas guerreiras”, dos “discursos heroicos”, dos “louvores ao Estado Novo”. No entanto, esses mecanismos são transformados em cantos “melancólicos” pela atitude descentralizadora do narrador, ou ainda, são reduzidos ao “relento de sacristia” a partir de um olhar de troça que surge, irremediavelmente, diante da “bravura” dos que ficaram em Lisboa por uma causa maior: combater o comunismo “nos grupos de casais do prior”. A ironia utilizada pela voz de indignação do narrador desqualifica não só a ideia de “bravura” daqueles que ficaram em Lisboa, convertendo tal ideia em mais um sinônimo da hipocrisia da sociedade portuguesa, mas também fissura a imagem pré- definida de uma identidade nacional a qual, pelos mecanismos mencionados, corresponderia a uma dimensão unificada, naturalizada e, nesse sistema, pré- estabelecida. A fissura decorre do próprio movimento apresentado pela enunciação do protagonista de pôr em causa as “verdades” apresentadas pelo discurso do Estado. Em outras palavras, o discurso de suma autoridade que fez parte da aprendizagem do “eu” é traduzido pela voz que regressa da guerra como alguém esvaziado, um ser sem sentido, como a melancólica vida do ex-combatente parece ser: “acho-me tão farto de me sentir sozinho, tão farto da trágica farsa ridícula da minha vida” (ANTUNES, 2010, p. 184). Enfim, a “farsa” diz respeito a uma trajetória de vida na qual os valores ensinados e tratados como verdade não correspondem à prática vivenciada pelo sujeito. De igual forma, o “alimento cultural” dado à população para que ela cumprisse os ditames do Estado, sugere que, enquanto discurso, a voz autoritária não passa de uma elaboração, um logro projetado para atender a fins específicos, ou melhor, a grupos específicos: “os senhores sérios e dignos que de Lisboa nos apunhalavam em Angola, os políticos, os magistrados, os polícias, os bufos, os bispos, os que ao som de hinos e discursos nos enxotavam para os navios de guerra e nos mandavam para África” (ANTUNES, 2010, p. 152). Por esse motivo, é que o questionamento acerca do que compunha a realidade passa a circundar o “eu”, já que, à distância de sua terra natal e diante do absurdo da guerra, ele começava a entender que a “identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia” (HALL, 1997, p. 14). Nessa 189 perspectiva, o próprio narrador, perdido no labirinto de suas memórias e na tragédia vivenciada em Angola, evoca a ideia de que “a gente é que somos de verdade e o resto nunca que existiu, dizia o Luandino, a gente é que somos de verdade” (ANTUNES, 2010, p. 90). Nessa referência à obra No Antigamente, na Vida (1974), de José Luandino Vieira 124 , faz-se um paralelo entre duas atividades memoriais: aquela que é experienciada pelo narrador adulto de Os Cus de Judas e aquela que recupera a imagem infantil de Dinito na revivescência infantil da “Estória d’água gorda”, de Luandino. Nesta prosa, a indagação em relação ao que compreenderia a verdade perdura durante todo o texto diante de acontecimentos que não se sabem vividos, sonhados, ou mesmo, imaginados pelo narrador. No conto, busca-se o sentido da vida na época da infância, tempo dos “milagres do impossível, num antigamente, longe” 125 (VIEIRA, 1974, p. 14). Tal procura resulta, enfim, em uma ambiguidade constante, repisada pelo narrador em forma de refrão, o que é, igualmente, reiterado pela figura traumatizada da narrativa de Lobo Antunes. No romance, diante do relato contado à mulher anônima que acompanha o “eu” em uma noite incerta, nada parece adquirir a substância desejada, caminha-se na incerteza e o que talvez se saiba é que “a gente é quem somos de verdade resto tudo é mentira” (ANTUNES, 2010, p. 90). Dessa maneira, ancorado na voz ficcional das “Estórias”, o narrador antuniano reforça a visão de que tal discurso imaginativo teria mais a dizer do que as muitas vozes que o rondam na absurda realidade vivenciada. Dito de outra forma, a certo ponto, as personagens de Luandino tornam-se mais críveis, mais verdadeiras – “mas eu e Xana e tu chuva de sábado é que somos ainda a verdade” (ANTUNES, 2010, p. 90) – que o cotidiano tacanho respirado por um “eu” imerso em um universo de cegueira, em que a fala é silenciada e sente-se, intimamente, “um aperto que nem quê” (ANTUNES, 2010, p. 91). Além disso, diante de um ambiente de incertezas, principalmente, no tocante ao clima respirado na guerra, as crenças são abaladas e, ao que parece, dá-se crédito apenas ao que se vê, ao que se experiencia concretamente. Não há como validar as histórias de 124 Pseudónimo literário de José Vieira Mateus da Graça que apresenta em três estórias um universo infantil mergulhado na composição dos bairros pobres de Luanda, os musseques. Nessas narrativas, o tempo distante dos monandengues, nomeação atribuída à criança em quimbundo, surge como espaço de reflexão em uma linguagem, semelhante, até certo ponto, ao processo estilístico engendrado por Lobo Antunes no romance alvo deste estudo, marcada pela ruptura sintática, morfológica, semântica e estrutural. 125 Excerto retirado do conto “Lá, em Tetembuatubia”, primeira das três estórias presentes na obra de Luandino. 190 dantes – “o resto nunca que existiu” (ANTUNES, 2010, p. 90) – enquanto o que se tem em vista corresponde “apenas” ao hoje. A reflexão sobre a consistência daquilo que rodeia o ex-médico-militar impulsiona-o a uma transformação que, para um sujeito imerso no caos, passa a redefinir sua identidade. Esta, para fazer uso das análises mais uma vez de Maria Alzira Seixo, “emerge constantemente em termos de personalidade, de profissão, de família, de identificação amorosa, de terra, de país, e que é constantemente alijada em função do vazio” (SEIXO, 2002, p. 55) já tão destacado nesta leitura. Tal redefinição, cuja presença ocorre praticamente na metade do abecedário estruturante da obra, corresponde a uma espécie de epifania. Por um lado, essa revelação permite, no contato com o “outro” colonizado, problematizar as noções que foram construídas sobre este e sobre si mesmo. Por outro lado, o momento epifânico possibilita ressignificar as vozes que sustentaram a farsa desvelada anteriormente, em uma tensão capaz de destronar tais discursos e os mecanismos que são utilizados para manter determinados rótulos. Por essa perspectiva, é que vem a ser relembrado, ainda, outro expediente de que se serve o discurso estatal para firmar-se enquanto veículo perpetuador de uma determinada ordem. Para tanto, são destacados, nesta análise, aspectos que atuam como parte do fermento ideológico da identidade nacional e, assim, do modelo de soldado que a nação requer no momento conturbado da Guerra do Ultramar. Tais aspectos são pautados por um olhar para o passado, captando deste os passos a serem dados para constituir um porvir igualmente glorioso. Assim, “na ideologia dominante estabelecida, o signo ideológico é sempre um pouco reacionário e tenta, por assim dizer, estabilizar o estágio anterior da corrente dialética da evolução social e valorizar a verdade de ontem como sendo válida hoje em dia” (VOLOCHÍNOV, 2010, p. 48). A tentativa de conter a “corrente dialética” e abafar qualquer entendimento contrário à lógica conservadora é realizada pela reprodução dos pensamentos dos agentes do Estado, dedicados, a exemplo do “coronel optimista de camuflado engomado” (ANTUNES, 2010, p. 104), a estimular os militares com “boas palavras conselhos e ameaças” (ANTUNES, 2010, p. 104). Sobre tal procedimento, a atenção repousará a partir de agora, em que, por exemplo, mais uma vez o discurso do coronel invade a narração para proferir um decreto, algo apartado da capacidade de incentivar o brio dos homens massacrados pelo conflito. Essa situação surge na memória do narrador como algo repisado, marcado, em dadas circunstâncias, pela indicação da letra maiúscula, simbolizando uma autoridade que entra em tensão com a própria motivação 191 dos indivíduos para participarem de uma guerra que, ao ser narrada, parece fazer parte de um contexto ficcional, de uma invenção insensata que nasce em um tempo impreciso, um “amanhã distante”: médicos suecos trabalhavam no Chalala Nengo a poucos quilômetros de nós, o Chalala Nengo que os T6 bombardeavam de napalm e resistiam, Uma destas manhãs os meus amigos acordam bem dispostos chegam lá num rufo e destroem aquilo tudo (ANTUNES, 2010, p. 104). vamos todos acordar bem dispostos amanhã e ganhar a guerra vivaportugal, que importa o nevoeiro do cacimbo 126 até aos ossos se angolénossa e as senhoras do movimento nacional feminino se interessam desveladamente pela gente (ANTUNES, 2010, p. 105). Nesse cenário, os indivíduos tornavam-se descartáveis, peças jogadas ao bel- prazer dos “senhores sérios de Lisboa” que tanto manejavam os compatriotas, estimulando-os com uma versão de realidade que não se sustentava, quanto tratavam o espaço colonizado como algo sem identidade. A ex-colônia era vista como uma terra sem vida, objetificada, pois se “angolénossa”, com ela tudo seria possível fazer, inclusive, “destruir aquilo tudo”. No entanto, tal ideologia dominante não conseguiu lograr êxito, já que abundam no romance vozes dissonantes que contrastam com o discurso motivacional apresentado pelas autoridades. Nesse sentido, o narrador condensa mais uma vez a indignação nutrida pelos “prisioneiros do arame”, selecionando, por exemplo, a voz do tenente que reitera incansavelmente: “Estou farto desta merda pelo amor de Deus arranje-me uma doença qualquer” (ANTUNES, 2010, p. 105). Tal oficial representa no seu dito a ira dos soldados que, em seus olhos, “protestavam protestavam não entendiam e protestavam” (ANTUNES, 2010, p. 107). Outrossim, o próprio narrador desfaz o dito solene transmitido à população, expondo a violência e a crueza da guerra ao mesmo tempo em que desconcerta as mentiras contadas por atravessá-las com outra leitura dos fatos: “cobriram-se as bombas de napalm com oleado e o governo afirmou solenemente Em caso algum recorreríamos a tão cruel meio de extermínio, eu vi cobrir as bombas em Gago Coutinho” (ANTUNES, 2010, p. 107). Assim, não é possível deixar de admitir a esfera dialógica no texto de Lobo Antunes, já que se observa o “encontro sociocultural dessas vozes e a 126 Nomeação atribuída, no nordeste de Angola, à estação seca que ocorre nos meses de maio ao mês de agosto. É chamada de estação seca em contraposição à estação das chuvas, no período de setembro ao mês de abril, no entanto é bastante húmida. Na região citada, durante essa época, ocorre com frequência uma névoa intensa, que dá o nome a esse período. 192 dinâmica que aí se estabelece: elas vão se apoiar mutuamente, se interiluminar, se contrapor parcial ou totalmente, se diluir em outras, se parodiar, se arremedar, polemizar velada ou explicitamente assim por diante” (FARACO, 2009, p. 58), compreendendo o que Bakhtin (2015, p. 52) conceituou como a dialogização das vozes sociais. Na interação contemplada no início deste parágrafo, a voz narrativa, ao replicar o discurso oficial, marcado mais uma vez pela utilização da letra maiúscula, desmonta- o, tornando o descrédito com o governo explícito. Essa situação alcança uma sensível tensão quando a força dessacralizante da ironia torna-se intensa, sendo associada a um humor ácido cultivado no romance, o que deixa escapar uma profunda revolta que é possível de ser sentida, por exemplo, na passagem abaixo: Angolénossa senhor presidente e vivápátria claro que somos e com que apaixonado orgulho os legítimos descendentes dos Magalhães 127 dos Cabrais 128 e dos Gamas 129 e a gloriosa missão que garbosamente desempenhamos é conforme o senhor presidente acaba de declarar no seu notabilíssimo discurso parecida só nos faltam as barbas grisalhas e o escorbuto mas pelo caminho que as coisa levam eu seja cego se não lá iremos, e já agora e se me permite porque é que os filhos dos seus ministros e dos seus eunucos, dos seus eunucos ministros e dos seus ministros eunucos, dos seus miniucos e dos eunistros não malham com os cornos aqui na areia como a gente (ANTUNES, 2010, p. 107, grifos nossos). O desmanche do modelo de herói nacional ocorre novamente por força da atitude irônica diante do imaginário histórico que compõe os pilares da nação lusitana. Nesse cenário, não só a causa em curso é vista como algo digno de crítica, mas também o próprio passado é vítima de uma avaliação que corrói a “gloriosa missão” para a qual 127 Referência ao navegador português, Fernão de Magalhães (1480 - 1521), o qual se notabilizou por ter organizado a primeira viagem de circum-navegação ao globo de 1519 até 1522. Em 1506, Magalhães viajou para as Índias Ocidentais, participando de várias expedições militares nas Molucas, também conhecidas como as Ilhas das Especiarias. 128 Pedro Álvares Cabral foi um conhecido navegador português, nascido na propriedade da família em Belmonte. Como um nobre, ele atuou no conselho de D. Manuel I e recebeu o hábito da Ordem de Cristo. Pouco se conhece sobre suas atividades antes de 1499, quando Manuel nomeou-o comandante de uma frota a fim de que aquele estivesse preparado para navegar para a Índia, seguindo a rota marítima para o Oriente traçada por Vasco da Gama na sua viagem histórica de 1497-1499. Em uma colorida pompa, 13 navios com 1.200 homens navegaram a partir do rio Tejo, em 8 de Março de 1500, em rota para a Índia, chegando, ao invés disso, na terra que seria chamada de Brasil. No romance As naus, já mencionado nesta tese, retoma-se o “árduo tempo das oitavas épicas e de deuses zangados” (ANTUNES, 2011, p. 47), no qual a figura histórica é tomada de empréstimo para ser desempossada de qualquer aura mítica, convertida em mais um miserável que retorna de África. 129 Referência ao navegador conhecido pela viagem até a Índia durante o reinado de D. Manuel, o comandante Vasco da Gama era um “filho segundo de um funcionário régio que havia sido vedor da casa de D. Afonso V e depois alcaide de Sines. Era, portanto, um membro da pequena nobreza burocrática. É a primeira vez que um nobre é escolhido para comandar uma viagem marítima” (SARAIVA, 1984, p. 144). 193 são eleitos, ironicamente, os sujeitos com “as barbas grisalhas e o escorbuto”, qualidades fundamentais dos protagonistas da épica de nação desfeita, leitura sublinhada no capítulo anterior. Por essa senda, a autoridade do discurso histórico é também posta em causa. Isto é, os elementos que fazem parte da composição historiográfica da narrativa de nação são tidos como mais um discurso, portanto, também seriam uma construção, ou melhor, o resultado da refração de uma dada ideologia. Se o contato com o mundo, por tudo que já foi comentado aqui, é mediado por uma série de discursos e expresso via signo, a produção histórica elaboraria uma versão desse mundo entre outras versões, ou seja, a partir de um dado ângulo de visão, tal concepção edificaria sua interpretação acerca dessa mesmo universo em um diálogo com outros discursos sobre o mesmo aspecto. Esse entendimento realça o que vem sendo deslindando aqui no tocante à ideia de refração, de acordo com as proposições do Círculo de Bakhtin, como uma das características inerentes ao signo, pois este refrata outros signos, outras representações fabricadas sobre a realidade. Assim, ele “pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto é, se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc.)” (VOLOCHÍNOV, 2010, p. 32). Dessa maneira, o entendimento de uma visão de mundo firmada de uma vez por todas, a exemplo do que caracteriza o discurso de caráter autoritário já explicado antes, não seria coerente com um contexto que sugere mudanças, metamorfoses operadas não só no universo que cerca o indivíduo, mas também na própria aprendizagem desse “eu” afetado por tais transformações. O exposto é reforçado, ainda, pela concepção de que objetos “e sujeitos se desnaturalizam, deixam de ser metafísicos e passam, pois, a ser pensados como fabricação histórica, como fruto de práticas discursivas ou não, que os instituem, recortam-nos, nomeiam-nos, classificam-nos, dão-nos a ver e a dizer” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 21). A última passagem recortada de Os cus de Judas ilustra também o modus operandi, outrora comentado, para realizar a desnaturalização dos discursos definidos nesta análise como autoritários. Esse procedimento é realizado, inicialmente, pela remissão à voz solene de tais instituições de poder, representada pelo destinatário do depoimento do narrador, no caso, o presidente e seu “notabilíssimo discurso” com o qual o narrador conjectura esse diálogo. Em seguida, incorpora-se o estilo de tais produções discursivas, ou seja, do discurso político, envolvendo o tom palavroso, as frases de efeito, até mesmo, captando a oralidade do dito, a exemplo do “Angolénossa” 194 e do “vivápátria”, com o objetivo de, a partir disso, romper com tal visão de mundo. Aliás, o modo como é grafado, por exemplo, o que seria “Angola é nossa”, transformando a oração em um substantivo comum, da mesma forma que “vivápátria”, compreende mais uma forma de desvalorizar o tom ufanista presente no discurso nacionalista do regime dedicado aos militares portugueses. A fala autoritária é recortada e, em dados momentos, expressa, até mesmo, por meio de letras minúsculas, a fim de que, ao menos por meio da letra, seja possível responder aos desmandos do poderio salazarista, contestando, ao mesmo tempo, a grandiosidade da nação portuguesa defendida por esse sistema de governo, o que se inicia, simbolicamente, pela supressão presente nas frases de efeito citadas. Complementando o olhar tecido no capítulo anterior sobre a decomposição da épica de nação lusitana, se a imagem de herói nacional é atribuída aos ilustres navegantes do século XV, representantes maiores das conquistas da pátria e dos ideais do Estado Novo, explora-se a demolição desse perfil na figura do militar português que busca subsistir em Angola. Tal figura seria expansionista, como os modelos que o precederam, no entanto herdaria, em sua “legítima descendência”, apenas uma “barba grisalha” que, hiperbolicamente, acaba sugerindo o tempo de duração da guerra em África. Por sua vez, o “escorbuto” caracterizaria o resultado de uma sobrevivência marcada pela privação, pela falta, enfim, de um resquício de humanidade. A questão fica mais clara quando o narrador indaga na citação em análise o porquê dos “filhos dos seus ministros e dos seus eunucos, dos seus eunucos ministros e dos seus ministros eunucos, dos seus miniucos e dos eunistros não malham com os cornos aqui na areia como a gente” (ANTUNES, 2010, p. 107). No recorte apresentado, utiliza-se bastante tanto da repetição quanto da conjunção aditiva para reforçar o questionamento posto e, nesse processo, destronar a posição desses agentes do Estado. Primeiramente, realiza-se uma desqualificação simbólica desses sujeitos, pois é feita uma associação dos ministros com a figura dos eunucos, indivíduos castrados, significando também a imagem do acovardado, do impotente. Tal leitura seria coerente com a visão daqueles que, em um conflito em prol da nação, se omitem da luta, optando por permanecer apenas na disseminação dos discursos inflamados de propaganda nacional. Já em um segundo movimento, ocorre a destruição, no nível do próprio sintagma nominal, do poderio de tais entidades governamentais pela justaposição das palavras “ministros” e “eunucos”, resultando em “eunistros” e “miniucos”, o que 195 sugere, ironicamente, o apequenamento de tais poderes diante da ridicularização a que foram expostos pela zombaria do narrador. Por último, não é inválido destacar que a sensação desagregadora sentida pelo “eu” e identificada em seus compatriotas com relação ao entendimento de uma luta unificada em prol da nação não se exaure apenas quando o olhar é lançado sobre as altas esferas dos integrantes políticos do Estado 130 . O desapego com essa luta também é percebido em outras camadas da sociedade lusitana, a exemplo do empregado da alfândega que, ao vasculhar a bagagem do “guerrilheiro em embrião” (ANTUNES, 2010, p. 85) que retornava a Portugal, assim se refere ao narrador: “– Vocês vêm de Angola convencidos que são uns grandes homens mas isto aqui não é o mato, seu tropa” (ANTUNES, 2010, p. 86). Tal passagem revela não só a indiferença com o contexto vivenciado nas colônias portuguesas e com os rumos da metrópole, bem como sugere a descrença com os “heróis” da atualidade, os quais seriam apenas “convencidos” de que são uns grandes homens. É chegado o momento de abordar o outro lado da dupla perspectiva mencionada anteriormente, no que se refere ao discurso construído sobre a África portuguesa, já que o olhar sobre o “outro, o colonizado”, para adotar a nomenclatura utilizada por Thomas Bonnici (2009, p. 229) no tratamento dessa questão, compreendia também uma forma de justificar a manutenção do regime colonial. Tendo em vista que “o poderoso centro cria sua periferia” (BONNICI, 2009, p. 230, grifos no original), o colono para se estabelecer enquanto tal precisou criar todo um conjunto de discursos, ideologias, representações que garantissem a sustentação de um “mundo compartimentado” (FANON, 2005, p. 54), o qual caracteriza a empresa colonial entre o Outro colonizador e o outro colonizado, o nós e o eles, os brancos e os pretos. Neste momento, cabe, por essa medida, descortinar os instrumentos utilizados por aquela última instância da tríade apresentada, com o intuito de legitimar a ordem imperialista e, ao mesmo tempo, compreender como a reflexão construída pelo narrador, desmontando mais uma vez tal discurso, acaba por fissurar também a visão de mundo colonialista. Um primeiro ponto a ser destacado diz respeito às narrativas que, de alguma forma, fomentaram na aprendizagem do “eu” a sua visão de mundo sobre o universo 130 Em outra passagem da narrativa, o ex-combatente faz uma menção aos que desertaram, mas manifestariam sua luta pela nação portuguesa, segundo a leitura irônica do narrador, ao “fazer revoluções no café” (ANTUNES, 2010, p. 164). Tal crítica seria delegada às personalidades políticas que “não tinham experimentado no sangue o vivo e pungente medo de morrer, que nunca viram cadáveres destroçados por minas ou por balas” (ANTUNES, 2010, p. 164), porém regressariam ao país tempos depois para fazer parte do processo revolucionário desencadeado com o 25 de abril de 1974. 196 africano. Por meio delas, o sujeito edificou uma imagem gloriosa de um espaço capaz de fazer jus ao empreendimento colonial que o Estado, apoiado pela aliança consistente com a Igreja, defendia. Uma vez inserido no contexto africano, coube ao pupilo, que um dia o narrador fora, pôr à prova os discursos que havia recebido. Tal atitude mais uma vez incita a tensão entre as vozes aludidas pelas lembranças do protagonista e a imagem daquele que se põe a recordar o vivido após a experiência da guerra, a exemplo da citação a seguir: “a ideia de uma África portuguesa, de que os livros de História do liceu, as arengas dos políticos e o capelão de Mafra me falavam em imagens majestosas, não passava afinal de uma espécie de cenário de província a apodrecer na desmedida vastidão do espaço” (ANTUNES, 2010, p. 121). À primeira vista, parece que o projeto colonial por tanto tempo repercutido no processo educativo do indivíduo, seja pela posição dos políticos, seja pela matriz religiosa, ou ainda, seja pelo discurso histórico que os livros do liceu difundiam, alardeava uma visão de progresso para o território que faria parte do grande domínio português. Em outras palavras, fora reproduzida a ideia de que o avanço 131 , enfim chegara para aquele espaço colonial em desordem por meio da “tentativa de identificar a acção da Igreja em África com a acção histórica de Portugal” (LOURENÇO, 2016b, p. 51). Assim, o sistema colonial teria razão de ser, pois tanto a metrópole lucraria com a incumbência de tornar-se um reduto de civilização, de ciência e, mesmo, de fé cristã, quanto a outra margem desse processo poderia se desenvolver por meio da ingerência imperial, já que, afinal, os dois fariam parte do mesmo território, seriam regidos pela “mesma bandeira”. Contudo, longe do prospecto proclamado com ares de verdade, a realidade vivenciada no contexto de guerra desmistificou os “projectos de Olivais Sul” 132 (ANTUNES, 2010, p. 121) – citados pelo narrador para caracterizar o programa expansionista. Aqueles projetos são convertidos, na prosa antuniana, em uma metáfora que serve de base para a ironia, a qual ocorre quando se compara aquele contexto de modernidade com o plano malfadado da trajetória portuguesa em África. Tal empreendimento “apodrecia” enquanto o “capim e os arbustos rapidamente devoravam 131 Eduardo Lourenço destacou a participação da imprensa na divulgação da “Cruzada colonial” que o país assumia frente aos territórios africanos, alimentando “na atmosfera de cegueira oficial a confusão já de si bem trágica sobre a origem, causas e justiça diante do que sucede em África” (2016b, p. 48). 132 O título faz referência a uma das freguesias mais populosas e mais desenvolvidas de Lisboa que havia passado, nos anos 50, por um plano de reorganização urbanística. 197 [tal projeto], e o grande silêncio de desolação em torno, habitado pelas carrancas esfomeadas dos leprosos” (ANTUNES, 2010, p. 121). Assim, mais um discurso que seria um alimento para a composição da épica nacional, contando o relato dos vencedores, com a forma que lhe é peculiar na elaboração de uma imagem majestosa para o papel desempenhado pelo colonizador, é alvo do desmonte operado pelo narrador. O ex-combatente retira o véu da narrativa histórica, pondo-a em questionamento à proporção que a vê como uma forma de comentar sobre a realidade vivida entre outras formas de realizar o mesmo feito. Isto é, antes de entender o texto historiográfico como máxima a ser seguida, a compreensão dessa passagem parece suscitar que “hoje, temos que conviver, não apenas com a relatividade dos discursos, com a relatividade do saber histórico, mas com a relatividade da própria realidade” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 55). As assertivas construídas sobre essa realidade respondem ao “horizonte social” (VOLOCHÍNOV, 2010, p. 116) que determina as criações ideológicas veiculadas em dado período histórico. Nesse sentido, cada época apresenta seu conjunto de discursos específicos, seja na arte, na ciência, atendendo aos interesses em voga naquele momento que orientam as formas de “ler” dada realidade. No caso do colonialismo português, conforme afirma Eduardo Lourenço, “a sua realidade é a da implantação de interesses particulares bem precisos e a consciência deles é a forma verdadeira do colonialismo, de que a mitologia oficial é máscara ou diversão” (2016b, p. 64, grifo no original). Essa compreensão permitiria, por exemplo, que os interesses coloniais lusos de aumentar o território nacional fossem veiculados como uma forma de livrar o povo colonizado de uma vivência de atraso cultural e paganismo. Ao polemizar com as visões de mundo que lhe foram incutidas sobre o cenário africano, o narrador-personagem sugere, no ensejo que foi ponto de partida para esta discussão, qual seria o nível de confiabilidade das leituras que, de alguma forma, fizeram parte de sua formação enquanto cidadão português. Este, ao invés de enxergar o contexto ilustre configurado pela propaganda da dinâmica colonial, apreende, na verdade, um plano de visão em que tudo simboliza a ruína, a exemplo dos signos evocados nessa configuração do espaço colonizado: “apodrecer”, “devoravam”, “desolação”, “carrancas”, “leprosos”. Tal ruína não caracteriza algo somente pessoal do soldado que estava inserido naquela situação, mas também do próprio país, uma vez que, de alguma maneira, esse “herói romanesco”, carregando traços do herói épico, 198 constitui-se como uma metonímia de seu próprio povo, trazendo à luz um plano para a nação que não teria vingado como se desejava. Seguindo a análise dos meios utilizados para respaldar o discurso colonial e, por consequência, o poderio estatal, é necessário enfatizar que, ao edificar uma imagem sobre o cenário da colônia, a metrópole assumia, em contrapartida, um colorido diferenciado. Assim, um dos aspectos que faz parte da construção simbólica e discursiva da identidade nacional lusitana, transmitida à exaustão aos cidadãos portugueses, é, justamente, a oposição construída em relação ao contexto colonizado. Este surge como um universo primitivo, desvalorizado em vários sentidos, um espaço de apagamento do indivíduo que o habita, pois também este é ignorado nessa lógica, sendo considerado tão atrasado como o lugar onde nasceu, ambiente “que o condena ao desprezo e à pobreza, à eterna dependência” (MEMMI, 2007, p. 104). Enquanto isso, o império português erigia-se como um sinônimo de cultura, de civilização e de heroísmo (como um salvador das colônias africanas), algo que uma das instituições estatais, já mencionada anteriormente, tinha por objetivo reforçar desde a idade mais tenra dos “pequenos nacionalistas” em crescimento, incitando a diferença, pois nela, para lembrar mais uma vez de Tomaz Tadeu da Silva, “está presente o poder” (2000, p. 81): Angola era um rectângulo cor-de-rosa no mapa da instrução primária, freiras pretas a sorrirem no calendário das Missões, mulheres de argolas no nariz, Mouzinho de Albuquerque e hipopótamos, o heroísmo da Mocidade Portuguesa a marcar passo, sob a chuva de abril, no pátio do liceu (ANTUNES, 2010, p. 144). Angola fulgurava como uma memória distante e dela restava apenas uma marcação em um mapa, simbolizando um lugar desconhecido sobre o qual repousava certa gama de elementos que traduziam a visão de um mundo, originalmente, primitivo no qual, aos olhos do colonizador, o nativo “é descrito constantemente como sem roupa, sem religião, sem lar, sem tecnologia, ou seja, em nível bestial” (BONNICI, 2009, p. 230). Entretanto, ao mesmo tempo em que é possível abstrair um universo rudimentar do espaço colonizado, este é posto em contraposição ao panorama cortês da sociedade portuguesa. A disposição “nós” e “eles”, mais uma vez abordada aqui, compreendia o pilar sobre o qual se edificava o projeto colonial, reunindo, de um lado, a imagem das “mulheres de argola no nariz”, enquanto, do outro lado, apresentava a conversão religiosa, representada pelas “freiras pretas a sorrirem no calendário das Missões”. 199 Assim, um mundo dividido é mostrado, desde cedo, ao sujeito em aprendizagem que é estimulado tanto a reconhecer o contexto de barbárie e, nesse sentido, de selvageria que compreenderia o cenário habitado pelos nativos, quanto o papel heroico, cívico da nação que libertava aquelas pessoas dessa situação devastadora. Dessa maneira, surgem no mesmo plano, pela reminiscência fragmentada do narrador, “Mouzinho de Albuquerque e hipopótamos”. O primeiro foi considerado um herói português 133 por ter regido uma operação militar em Moçambique que acabou por pôr fim à revolta de tribos do sul daquele país, aprisionando seus líderes, feito pelo qual Mouzinho tornou-se bastante conhecido não só em sua terra natal, mas também internacionalmente. Já o segundo complementa a leitura da barbárie e do primitivismo comentada anteriormente e colabora para o enaltecimento da composição de uma personagem histórica a enfrentar um universo hostil em prol do imperialismo, dos interesses da nação. Por sua vez, a visão maniqueísta transmitida ao indivíduo em desenvolvimento torna-se, no momento da enunciação, alvo da reflexão aguda daquele que se pôs a vivenciar, na outra margem da história, em outras palavras, nos contornos do “rectângulo cor-de-rosa”, as consequências desse processo134. Nesse movimento, os “colonizadores basearam-se nas tradições inventadas europeias, tanto para definir quanto para justificar sua posição, e também para fornecer modelos de subserviência nos quais foi às vezes possível incluir os africanos” (HOBSBAWM; RANGER, 1984, p. 219). Destarte, diante da condição desfavorável que caracteriza a situação do colonizado, uma vez que o modelo de vida a ser seguido tornou-se o arquétipo europeu, justificava-se, ainda mais, a supremacia e, porque não, a 133 Em 1895, Mousinho de Albuquerque foi nomeado para comandar a força de cavalaria que partiu na expedição de Moçambique, “para obrigar a entrar na obediência os régulos das regiões do sul de África, entre os quais figurava o feroz e temido Gungunhana. Seguiram-se as gloriosas façanhas das nossas tropas, e Mousinho de Albuquerque, sempre no seu posto, com o sangue frio dos valentes militares, acompanhou os acontecimentos, prestando o seu valioso concurso em todas as acções. Estava, porém, reservado ao valente militar um acto de grande heroísmo, que o tornaria bem conhecido e respeitado. Era o fecho da campanha, a prisão do Gungunhana [...]. Regressou a Lisboa em 15 de dezembro de 1897, onde teve uma recepção extraordinária, trazendo consigo os prisioneiros de Chaimite. Na sala Portugal da Sociedade de Geografia foram-lhe entregues, em sessão solene, as medalhas de ouro de valor militar e de serviços relevantes no Ultramar”. Tais informações estão presentes na seguinte referência, da qual alguns trechos foram retirados, a fim de ilustrar o tom utilizado para expor os feitos da figura histórica recortada: AMARAL, Manuel. Albuquerque (Joaquim Mousinho de). In: AMARAL, Manuel. Dicionário Histórico. Disponível em: < http://www.arqnet.pt/dicionario/albuquerquemoujoaq.html >. Acesso em 20 nov. 2016. 134 Obviamente, as consequências do processo colonial sentidas pelo narrador ao se encontrar no contexto de guerra em África não seriam as mesmas a serem vividas por aquele indivíduo que, de fato, fora colonizado, sendo objetificado por esse processo. No entanto, interessa neste momento “apenas” demonstrar que, ao refletir sobre os discursos recebidos, o ex-médico-militar consegue desvendar as engrenagens por trás dessa lógica colonialista e os resultados, mesmo aqueles não alardeados, de tal empreitada. 200 necessidade do ser colonizador nesse discurso. A posição de subalternidade do “outro”, construída nessa lógica, perante a aliança entre o Estado e a Igreja, era utilizada como mais um mecanismo para condicionar, outrossim, propagar o orgulho ante o poderio da nação, a qual, como observado aqui, serve-se de Comparações morais ou sociológicas, estéticas ou geográficas, explícitas, insultantes ou alusivas e discretas, mas sempre favorecendo a metrópole e o colonialista. Aqui, as pessoas daqui, os costumes deste país são sempre inferiores, e de longe, em virtude de uma ordem fatal e preestabelecida (MEMMI, 2007, p. 105, grifos no original). Não obstante, foi ouvindo o “outro” que o narrador passou a descortinar a violência que o projeto colonial engendrou, vendo-o sem o crivo dos discursos que gerenciavam tal plano de ação. Tais produções simbólicas são desnaturalizadas quando se expõe o outro lado da história na qual os anos de afirmação de uma inferioridade assumida como verdade suprema tornaram-se símbolos de um grito contido, prestes a ecoar, conforme se observa na passagem a seguir: “Um amigo negro da Faculdade levou-me um dia ao seu quarto no Arco do Cego, e mostrou-me o retrato de uma velha esquelética, em cujo rosto se adivinhavam gerações e gerações de petrificada revolta” (ANTUNES, 2010, p. 144). A reprovação aos anos de apagamento e desqualificação do espaço habitado explodira, por fim, na luta armada, pois diante de anos de silenciamento, a resposta não poderia ser outra, a não ser violenta, afinal, como bem coloca o amigo do “eu narrador”, “É a nossa Guernica” (ANTUNES, 2010, p. 145). A referência ao painel pintado por Pablo Picasso em 1937 (inserido no contexto da guerra civil espanhola e o bombardeio da cidade de Guernica pelas forças nazistas que, naquela altura, apoiavam os nacionalistas liderados pelo general Francisco Franco 135 ) compõe, na imagem da velha senhora e seu rosto petrificado de revolta, a crítica ao absurdo de um sistema de governo que havia condenado um povo a uma morte cotidiana. Assim, longe de uma visão eurocêntrica de mundo, a fotografia referida anteriormente sublinha as impressões, ou melhor, os resultados desse cenário 135 General e chefe de estado espanhol, Franco liderou um governo de orientação fascista na Espanha, no período de 1936 até sua morte, em 1975. Oficial de infantaria, Franco ganhou respeito entre seus pares no decurso das campanhas militares realizadas em África, destacando-se pela frieza no combate. Com o apoio significativo de Portugal, representado pela ditadura salazarista, Franco foi vitorioso na Guerra Civil Espanhola, iniciada em 1936. Além desse auxílio, o general em questão ainda conseguiria o apoio da Itália Fascista e da Alemanha Nazista, as quais experimentaram seus novos armamentos contra os rebeldes. Em 1938, Franco une os partidos de direita, instaurando um regime ditatorial marcado pela repressão, tortura e fuzilamentos. 201 colonial, elaborado com tons desoladores que sugerem, assim como a tela do pintor espanhol, o quão terrível é a degradação de pessoas a partir de interesses outros. De igual forma, a “Guernica” também seria uma resposta ao terceiro mecanismo elencado neste estudo, talvez o mais daninho, para sustentar a lógica de poder que aqui vem sendo analisada. Esse artifício é pautado pela própria construção da imagem do negro, do ser colonizado, algo que, segundo Albert Memmi, “resume e simboliza a relação fundamental que une colonialista e colonizado” (2007, p. 107, grifos no original), no que diz respeito ao racismo. Nesse sentido, outro instrumento utilizado para defender a lógica colonial foi marcado pelo estabelecimento de uma separação radical entre os povos a serem alvos da colonização e a imagem dos europeus colonizadores. Para justificar tal distanciamento, recorria-se, até mesmo, a critérios biológicos nos quais a imagem do negro assumia uma dimensão desumanizada, exposta, evidentemente, em uma escala inferior de evolução humana. O negro passou a ser tido ora como um ser débil, o qual carecia de um amparo, inclusive, religioso para que, só assim, pudesse ser visto como alguém apto para viver em sociedade; ora como um ser animalesco, destinado a trabalhos braçais e incapaz de um exercício mental mais apurado. “Para maior tranquilidade da consciência cristã portuguesa os termos são ainda mais simples: de um lado está o Bem, representado pelos portugueses e os ‘bons pretos’ do outro está o Mal, representado pelo Negro fanático e primitivo, rebelde sem razão” (LOURENÇO, 2016b, p. 43). Essa leitura também fez parte dos discursos inseridos no meio ideológico do qual o narrador em crescimento se recorda, uma visão que, como tantas outras analisadas até este instante, entra em tensão com as reflexões que chegam ao momento da enunciação narrativa: É preciso que entenda, percebe, que no meio em que nasci a definição de preto era “criatura amorosa em pequenino”, como quem se refere a cães ou a cavalos, a animais esquisitos e perigosos parecidos com pessoas, que no escuro da sanzala Santo António me gritavam – Vai na tua terra, português cagando-se nas minhas vacinas e nos meus remédios e desejando intensamente que eu quebrasse os cornos na picada porque não era a eles que eu tratava mas à mão-de-obra barata dos fazendeiros, dezessete escudos por um dia de trabalho, dez tostões para cada saco de algodão, quem eu tratava através deles era o branco de Malanje ou de Luanda, o branco ao sol na Ilha, o branco de Alvalade, o branco do Clube Ferroviário que recusava desdenhosamente conversar com a tropa. – Não precisamos de vocês para nada (ANTUNES, 2010, p. 145). 202 A explicação do que seria um preto, marcada entre aspas na passagem anterior, revela um olhar que impõe a diferença, que determina a exclusão pela supremacia de outro povo e, ao mesmo tempo, deixa entrever o desejo de dominação de um grupo social tido supostamente como enfraquecido. Nessa lembrança, vibra a linguagem do colono que, ao falar do colonizado, conforme assevera Fanon, vale-se de “uma linguagem zoológica” (2005, p. 59), tratando o negro como um ser animalizado, “como quem se refere a cães ou a cavalos, a animais esquisitos e perigosos”. A tensão entre as vozes potencializa a percepção da violência que envolve todo esse processo, já que a dicotomia sublinhada, desde o início da observação dos discursos voltados para a construção de uma África portuguesa, compõe-se de visões de mundo distintas que se esbatem, contradizendo-se umas às outras. Expresso de outra forma, de um lado, são verificados os discursos eurocêntricos e seu plano de objetificação do “outro”, conformando-o a um arquétipo resignado de indivíduo, “uma criatura amorosa em pequenino”; a isso, do outro lado, contrapõem-se as vozes que encontram sua humanidade, mesmo que ela seja encarcerada “no escuro da sanzala Santo António”, em um grito que ecoa toda a revolta com o mundo criado pelo português. A réplica dada pelos negros ao narrador vai de encontro ao sentimento de impotência manifesto por eles perante os anos de uma condição de vida escravizada, em que a aceitação da lógica animalesca impedia-os de se enxergar fora desse processo violentador. Assim, a resposta ressoa como uma ordem que mais se confunde com o desejo do fim da presença do branco numa terra que um dia fora considerada um lar no qual foram sepultados não só os antepassados, mas também toda uma tradição cultural que se tornou apagada por remeter, no entendimento do colonizador, ao pitoresco, ao animalizado. O desejo citado conduz os indivíduos subalternizados a agirem violentamente. Por essa razão, a desconfiança frente aos brancos permitia a compreensão de que, no tratamento médico do narrador-personagem e suas vacinas, residia, na verdade, o intuito de conservar uma massa trabalhadora sem maiores custos, uma mercadoria como outra qualquer nessa lógica comercial, convertida em “dezessete escudos por um dia de trabalho, dez tostões para cada saco de algodão”. Consciente das engrenagens dessa lógica, o “eu narrador” adulto deturpa o discurso colonial e, com isso, os interesses do Estado quando, longe de observar o preto como a “criatura amorosa em pequenino”, percebe o que este realmente significava para aquele pensamento: alguém que sustentava a posição de poder de vários brancos. Estes são exemplificados pelo narrador a partir do destaque atribuído aos beneficiários da 203 lógica colonial: “o branco de Malanje ou de Luanda, o branco ao sol na Ilha, o branco de Alvalade, o branco do Clube Ferroviário”. Para finalizar este momento da análise sobre a construção dos discursos acerca da África portuguesa, convém compreender qual seria a leitura ideológica assumida pelo “eu” diante da profusão de vozes que fariam parte da sua trajetória. Em primeiro plano, destaca-se a realização do reconhecimento da existência do “outro”, o qual, diferentemente do estereótipo que o caracterizou por tanto tempo, passa a ser visto como alguém com possibilidade de ação nesse processo, alguém com suas próprias lutas. O narrador afirma ter compreendido essa questão quando viu “os prisioneiros no quartel da Pide, a resignada espera dos seus gestos, as barrigas gigantescas de fome das crianças, a ausência de lágrimas no pavor dos olhos” (ANTUNES, 2010, p. 145). A partir desse reconhecimento, aflora a indignação com os discursos velados que fizeram parte não só da elaboração da imagem das colônias portuguesas no continente africano, mas também do próprio nativo, transformado em ser animalizado. Tal sentimento confunde-se com a própria sensação do médico militar de ser apenas mais um objeto nessa lógica colonial, uma ferramenta, como outras, que deveria agir para a manutenção da glória nacional e que se vê, ironicamente, “acossado como um bicho” (ANTUNES, 2010, p. 145) – percepção que será mais bem analisada no próximo capítulo desta pesquisa. É necessário, no entanto, fazer a ressalva de que a indignação sentida não dá lugar, de fato, a uma ação efetiva contra aquilo que afligia/aflige o sujeito. Ao contrário, o “eu-narrador” permanece em sua “solidão raivosa”, deglutindo os discursos ao seu redor e preso ao que ele intitula de “inconformação resignada” (ANTUNES, 2010, p. 189), uma questão que já foi pontuada em outros momentos neste trabalho. Por essa ótica, o sujeito protesta em silêncio, questiona os motivos da guerra e quem dela se beneficiaria, mas acaba divagando frente à inutilidade de um conflito que deteriorava os próprios representantes da nação lusa em Angola, reunidos na figura do médico que assim reflete: “e eu perguntava a mim próprio o que fazíamos ali, agonizantes em suspenso no chão de máquina de costura do navio, com Lisboa a afogar- se na distância num suspiro derradeiro de hino” (ANTUNES, 2010, p. 22). Como náufrago em terra estrangeira, condenado a uma morte sem sentido diante de um destino incerto, o soldado em marcha que o narrador, a contragosto, se tornou começaria a erigir, mesmo que no plano das ideias, a sua própria luta, dialogando com aqueles que há muito tempo já conhecem a sensação de aprisionamento de si. Por conseguinte, de 204 acordo com as reflexões do “eu”, este chega à conclusão de que “essa Guernica se transformou pouco a pouco na minha Guernica” (ANTUNES, 2010, p. 145). Tal luta, de certo modo, vem sendo acompanhada nesta leitura por meio do desmonte operado pela voz do narrador dos discursos de tom autoritário que fizeram parte de sua tortuosa existência. Por sua vez, a “Guernica” ressaltada decorreria da experiência vivida no cenário da guerra, pois é nesse espaço que o ex-combatente, ao refletir uma vez mais sobre o vivido, enxergando-se sem desejar, conforme ele próprio afirma, na “imagem fragmentária da minha própria derrota” (ANTUNES, 2010, p. 63), analisa os discursos vazios que, ironicamente, o preencheram durante a vida. “A guerra, a luta contra quem se não quer destruir; o sofrimento, a morte, a separação da família e da terra natal; o alheamento progressivo em relação a uma natureza humana em que o indivíduo se reconhecia e que parece depois abandoná-lo irremisivelmente” (SEIXO, 2002, p. 499) – fazendo uso dos comentários de Maria Alzira Seixo sobre as obras de Lobo Antunes – compõem um cenário de desconstrução da imagem do “eu”, a qual surge esfacelada por vários discursos. Estes, inseridos em uma tensa relação dialógica entre as forças centralizadoras de uma visão de mundo e a decomposição do dito realizada pelo narrador, estimulam, entre outros aspectos, a própria fragmentação narrativa. O fracionamento presente na estrutura narrativa adquire mais um elemento intensificador da série de rupturas que configuram o romance. Em um primeiro plano, sublinha-se uma narrativa situada entre tempos diversos, em que a rotura é advinda da conjunção de momentos distantes temporalmente dentro de uma mesma situação narrada, o que impulsiona o olhar de revisão do narrador sobre o que havia acontecido consigo e com os demais. Em um segundo plano, o fracionamento é proveniente do encontro de várias vozes no tecido textual, catalisadas pelas reflexões do “eu” em seu processo de aprendizagem agônico. Por último, tais rupturas, como uma consequência do que se comentou anteriormente, surgem configuradas na sintaxe do texto, na quebra do dito, na erupção de uma sentença de um dado grupo social, ou ainda, no eco de uma ordem proferida que parece ditar o destino da “larva civil” prestes a romper o “casulo”. Contudo, paradoxalmente, o efeito estético proporcionado, por exemplo, pela multiplicidade de vozes constituintes da tríade de discursos: Família, Igreja e Estado não conduz o romance à perda de uma unidade estilística, visto que a tríade referida compatibiliza-se com o ponto de vista ideológico defendido, inerente ao tradicionalismo português. Nesse sentido, cada instituição em foco acabava apontando para a seguinte, 205 isto é, no ecoar de uma dada voz nesse processo, já haveria a ressonância de outras vozes, criando uma convergência discursiva voltada para o exercício contínuo de domesticar o “eu”, torná-lo, por fim, um homem. Além disso, se a voz narrativa tem seu depoimento fissurado por uma série de julgamentos, referências, símbolos nacionais, modelos literários, entre outros aspectos detalhados anteriormente, é nesse processo que ela encontra o meio pelo qual sua trajetória progride. Isto é, a partir do conjunto de vozes sociais que fazem parte da confissão do “eu” em sua “noite perpétua” (ANTUNES, 2010, p. 128), torna-se possível perceber que ele se “reconstrói” na sua aprendizagem, reavaliando sua relação com as visões de mundo cujas perspectivas, muitas vezes, são dissonantes ao que o narrador compreende. Nesse jogo discursivo, as vozes que se esbatem surgem como um complemento, parte integrante de uma trajetória complexa, sobre a qual a voz narrativa chega ao entendimento de que a inocência, a justiça, a honra, conceitos grandiloquentes, profundos e afinal vazios que a família, a escola, a catequese e o Estado me haviam solenemente impingido para melhor me domarem, para extinguirem, se assim me posso exprimir, no ovo, os meus desejos de protesto e de revolta (ANTUNES, 2010, p. 123). No jogo heterodiscursivo deslindado no romance, observou-se, pela ação dos discursos autoritários, a necessidade destes de formatar a visão do “eu” em seu desenvolvimento, refreando questionamentos, minando qualquer voz que indagasse o motivo de tal procedimento. No entanto, frente a um integrante da “dolorosa classe dos inquietos tristes” (ANTUNES, 2010, p. 123), imagem na qual o narrador-personagem se reconhece, apresenta-se uma dimensão multifacetada de vozes que converge para um vértice de forças centralizadoras do discurso. Contudo, tais vozes são, ao mesmo tempo, fissuradas por uma voz irônica, trocista que percebe os “conceitos grandiloquentes, profundos e afinal vazios” que a Família, a Igreja e o Estado desejavam ver reproduzidos. Por conseguinte, desfez-se a imagem gloriosa do Estado, a composição honrosa da crença na Igreja, a inocência do seio da Família, para que fosse possível reaprender a viver no mundo com um novo olhar que, se não se abre a uma esperança de uma nova vivência, também não se restringe à aceitação do que se quer assumido como verdade. Rompendo o “mundo diminuto” a que fora confinado, o sujeito pôde enxergar além da 206 hipocrisia, das mentiras que se imaginavam críveis, desmontando-as por meio do tom de deboche com o qual observa o mundo, de modo que o ex-combatente encontra na “gargalhada fradesca, filha-da-puta, desprovida de júbilo” (ANTUNES, 2010, p. 157), o recurso, porventura, para libertar-se, enfim, do aprisionamento a que tais discursos o condenaram. Nesse sentido, a presença do humor no romance vem a ser analisada a partir da aliança construída com uma atitude irônica, manifesta constantemente pela voz narrativa. Dessa forma, descortina-se uma comicidade peculiar, entendida aqui como um efeito, uma consequência, um meio, quiçá, mais coerente para que seja enfrentada a realidade caótica experienciada, já que, conforme o próprio ex-alferes confessa “foi nisto que me transformei, que me transformaram [...]: uma criatura envelhecida e cínica a rir de si própria e dos outros” (ANTUNES, 2010, p. 157). 4.2. Quebrando as amarras de um “universo diminuto”: a corrosiva ação da ironia e do humor no(s) discurso(s) fomentados pelo “eu” A presença de uma vertente humorística no romance em foco de Lobo Antunes pode desencadear certa desconfiança sobre o funcionamento de um cariz cômico em uma prosa marcada, profundamente, pelas dimensões da angústia e do sofrimento mais lancinante. Contudo, uma vez que não se perca de vista a perspectiva dialógica vivificada na trama, parte-se do princípio de que o teor de comicidade e a ação da ironia compreendem, na narração do ex-combatente, elementos propulsores da interação existente entre as diversas vozes que se esbatem no discurso do “eu”. Dessa maneira, indo além de mais um dos tantos exemplos de binarismo presentes no romance (aspecto que será mais bem elucidado no próximo capítulo desta tese), centrado no par cômico versus trágico 136 , a leitura a ser deslindada nasce, justamente, de um movimento complementar entre esses dois aspectos. A afirmativa é justificada quando se vislumbra uma das vias pelas quais o sujeito, ao provocar uma veia cômica no texto, acaba desvelando uma forma de confrontar-se com a desumanização da guerra, enfim, com a trágica experiência vivida. 136 A oposição existente entre os elementos citados é fundamentada no contexto literário, por exemplo, por Aristóteles que, ao buscar definir a essência da comédia, concebeu a tragédia como sua versão oposta, pois, “na prática e na consciência dos antigos gregos, justamente a tragédia tinha um significado prioritário” (PROPP, 1992, p. 18). 207 É necessário, desde o início, deixar claro qual o tipo de humor que estaria presente na trama, de acordo com as análises apresentadas a partir deste momento, já que o que se manifesta no enredo desse narrador-personagem martirizado pela necessidade de expressar sua memória dolorosa, caracteriza-se como uma espécie de “humor sério”. Este não é entendido aqui como algo que se restringe a uma explanação, por exemplo, do estado de espírito do narrador, ou seja, um aspecto que advém, exclusivamente, de uma exteriorização dos sentimentos mais íntimos desse sujeito 137 . Na verdade, a presença da dinâmica humorística pode ser entendida como uma espécie de comportamento de análise utilizado pelo sujeito para significar as contradições nas quais está envolto, algo que vai além do indivíduo propriamente por se entender que “todo signo, inclusive o da individualidade, é social” (VOLOCHÍNOV, 2010, p. 60). Entendendo o humor como uma das formas da comicidade, esta é percebida na análise em questão a partir, principalmente, do modo com o qual o protagonista observa as situações mais negativas no enredo, provocando uma zombaria com a seriedade imposta pelo regime. No entanto, a atitude do ex-combatente não produz como resultado uma alegria solar, um universo de contentamento recreativo, ou mesmo, a motivação de um riso que se perde na ingenuidade com a qual se contempla a vida. Com efeito, a matéria cômica presente na trama deve-se muito mais à forma peculiar e obsessiva com a qual os acontecimentos mais aflitivos e as situações mais absurdas são explorados na narração. Embora o texto antuniano não possa ser considerado uma comédia de acordo com as características que uma obra desse tipo apresenta, conforme os exemplos desse gênero analisados por Propp (1992), é possível captar a presença desse humor corrosivo no processo dialógico que o romance apresenta. O humor presente no romance é visto, assim, como um recurso para que sejam expostas as incongruências do cenário narrado, ao mesmo tempo em que, aproximado ao nonsense, ao exagero e, assim, à tragicidade da experiência focalizada, aquele expediente revela, pela linha do absurdo, do grotesco, outra versão para a história nacional portuguesa, cujo núcleo refere-se ao contexto da Guerra Colonial. Nessa medida, é que se compreende o que afirma Bakhtin quanto à concepção, veiculada à 137 É necessário ressaltar o reconhecimento da pertinência do viés psicanalítico no exame das questões ligadas ao humor, de um modo geral, apesar desse viés não compor o caminho teórico elaborado para esta análise na qual a vertente humorística surge bastante associada aos discursos que são desmobilizados por meio de uma ação corrosiva. De toda forma, recorreu-se ao estudo da comicidade realizado por Propp (1992) e as leituras construídas por Bergson (1987) sobre o riso, percebendo a necessidade de se fazer as devidas ressalvas, em dados momentos desta pesquisa, no tocante ao entendimento dos teóricos sobre o que poderia motivar a presença da comicidade no texto literário e como isso se manifestaria na prosa em questão de Lobo Antunes. 208 época do Renascimento, sobre a força de uma perspectiva marcada pelo riso, em que somente este, “com efeito, pode ter acesso a certos aspectos extremamente importantes do mundo” (BAKHTIN, 2013, p. 57). O meio humorístico, com seu significado ampliado aqui, torna-se um mecanismo que permite o desvelamento de situações, de discursos autoritários, enfim, possibilita que se reexaminem determinados aspectos, utilizando-se de outro tipo de filtro, o que, de outra forma, poderia não se realizar. Em outras palavras, a partir dos caracteres apreendidos na tradição do sério- cômico no universo literário 138 , é estabelecida uma “zona de contato familiar” (lembrando as considerações de BAKHTIN, 1993, p. 424) com o que era considerado da ordem do sagrado, enfim, com os aspectos que não se achavam facilmente abertos ao diálogo. A força do humor possibilita eliminar o distanciamento imposto do que era considerado sublime, aproximando-o da esfera do grotesco, do tosco, mais acercado das situações experienciadas dentro do processo histórico vivo. Dessa maneira, os valores apregoados pela mítica nacional e, assim, pela ideologia dos discursos autoritários com os quais o “eu narrador” defronta-se, são avaliados à luz do presente, destruindo-se a distância épica outrora comentada, um julgamento do qual faz parte, substancialmente, a ironia. Fazendo parte da série de rupturas presente no romance, a ironia, um “discurso bivocal” (nas palavras de BAKHTIN, 1997, p. 108) por excelência, ultrapassa limites mais formais para atuar como uma força ideológica capaz de desautorizar os ditos sacralizados, estimulando o processo de ressignificação de uma dada imagem do ser nacional que vem sendo alvo desta análise. A via irônica possibilita, assim, estabelecer um diálogo bastante relevante para leituras como esta que aqui se empreende entre o texto e as vozes que fazem parte do meio social no qual o romance se insere. A afirmação é explicada pelo entendimento de que a ironia “acontece em alguma coisa chamada ‘discurso’, suas dimensões semântica e sintática não podem ser consideradas separadamente dos aspectos social, histórico e cultural de seus contextos de emprego e atribuição” (HUTCHEON, 2000, p. 36). 138 Bakhtin considera todos os gêneros reunidos pelo conceito de “sério-cômico” como “autênticos predecessores do romance” (2013, p. 412) e de sua linha de evolução, fazendo parte desse atributo podem ser citados os antigos “diálogos socráticos” enquanto gênero, a poesia bucólica, a fábula, a sátira romana, além da sátira menipeia (conforme BAKHTIN, 1993, p. 412). Nesta, há uma aguda proximidade com o folclore carnavalesco, o que determina o tratamento e a presença do elemento cômico no texto (de acordo com BAKHTIN, 1997, p. 112). Por essa via, alguns aspectos discutidos por Bakhtin na análise da comicidade presente, principalmente, na sátira menipeia são evocados, com as devidas ressalvas, aqui no estudo da obra antuniana. 209 De antemão, outro aspecto que não deve ser desconsiderado diz respeito ao entendimento de que não necessariamente todas as vias de manifestação da ironia no romance, observadas nesta análise, estão associadas à presença do humor. O exposto é justificado pela remissão mais uma vez às considerações de Linda Hutcheon no estudo que ela realiza sobre a ironia; segundo a autora, “Nem todo humor é irônico – embora algum seja. No entanto, ambos envolvem relações de poder complexas e ambos dependem de contexto social e conjuntural para que possam realmente existir” (2000, p. 48). Por essa razão, tais elementos podem ser percebidos de forma desassociada nesta tese, porém devem ser vistos, ao final, como “cúmplices” de um mesmo processo. Destarte, feitas as primeiras considerações sobre a presença da ironia e do humor nesta exploração do texto antuniano, cabe observar, inicialmente, a forma como a própria morte é percebida pela voz narrativa em algumas passagens da trama. Um momento fúnebre é focalizado e ele recebe, por vezes, um acento irônico, chegando, até mesmo, a provocar o que pode ser definido aqui como um humor ácido. Este sugere uma espécie de desdém pela vida humana, algo que não seria incomum em um cenário no qual ela não seria, de fato, valorizada. Tal situação pode ser analisada tanto pelo modo como o narrador adjetiva seus companheiros de farda, explorando a mutilação de um soldado de uma forma pitoresca, “bastou um estrondo para tornar o Macaco um fantoche de serradura e de pano” (ANTUNES, 2010, p. 63), quanto pela forma como o “eu” se dirige ao primeiro dos mortos em batalha. Nessa ocasião, a acepção do vocábulo “dormir”, menos que suavizar a condição do indivíduo que pereceu na guerra, trata a presença da morte como algo natural, como parte da sistemática violenta do conflito em que homens são meras peças a serviço dos ditames do Estado. No trecho destacado, a ironia reside na transformação de um ato involuntário em uma espécie de escolha, a ideia de que “não mais acordar” seria “apenas” uma opção a mais nesse ambiente de destruição, ao mesmo tempo em que, perante o contexto vivenciado, a noção de “não despertar” não parece ser a alternativa mais impensada a ser tomada nesse momento: fechei a porta declarei Dorme bem a sesta, cá fora os soldados olhavam para mim sem dizer nada, Desta vez não há milagre meus chuchus, pensei eu, fitando-os, Está a dormir a sesta, expliquei-lhes, está a dormir a sesta e não quero que o acordem porque ele não quer acordar (ANTUNES, 2010, p. 61). 210 A linha que perpassa a dimensão da catástrofe e aquela que dá origem a um humor mórbido 139 é bastante tênue no romance em estudo. Assim, não haveria meio de determinar que a imagem dolorosa da morte ou mesmo o receio atemorizador desse fim não possa redundar em um olhar provocativo por parte da voz narrativa. O que é considerado grave é alvo de uma postura trocista que não atenua o clima de barbárie experienciado, estimulando, com efeito, uma resposta agressiva, cáustica às concepções de mundo que buscavam mascarar a realidade do contexto colonial. Tal estratégia discursiva encontra sua razão de ser diante de uma época de repressão, um período em que o silenciamento fazia parte da estrutura governamental construída durante o regime estadonovista. O “eu”, símbolo de uma esperança declinada no passado por seus companheiros de farda que o viam como o porta-voz de uma reação mais incisiva aos desmandos do Estado, utiliza-se de uma linguagem que permite manifestar uma inquietação que fora emudecida anteriormente. É válido salientar, assim, que esse gesto de inquietação ainda permanece no presente sob o crivo de um medo que ainda perdura, como marca indelével do passado. As características desse material cômico cultivado na prosa afastam-se de um entendimento teórico que perceba o universo humorístico como algo delimitado pelo grau que os vícios, as fraquezas do objeto observado, motivador da zombaria empreendida, apresentariam, a exemplo do que defende Propp ao afirmar que as qualidades negativas “não devem provocar repugnância ou desgosto. Só os pequenos defeitos são cômicos” (1992, p. 135). Em um cenário no qual o olhar sobre a tragicidade alcança níveis extremados e de tal olhar sobressai um tom zombeteiro com o absurdo dessa situação, não seria possível limitar a experiência humorística do romance em foco a uma leitura que aqui poderia ser denominada, grosso modo, de “comportada”. Além disso, a comicidade sentida na narrativa atinge outra profundidade em sua relação com os acontecimentos que, de alguma forma, instigam uma visão debochada sobre a sobrevivência na guerra e sobre o que restou do sujeito que reanalisa seu passado, o que se origina da própria abordagem mais visceral, por assim dizer, que é realizada desse período de tensão. 139 A acepção destacada liga-se ao entendimento da noção de humor negro, um conceito introduzido pelo surrealista André Breton na obra Anthologie de l’humour noir (1940), sob a influência das concepções de Hegel, configurando uma noção pela qual se defende uma libertação maior do espírito. Nas obras em que se apresenta a temática do humor negro, é frequente a relação entre o humor alcançado e a morte ou a violência gratuita, situações transgredidas por esse humor que desconcerta. Vale salientar, por fim, a compreensão acerca do humor negro como algo utilizado para provocar uma reação contra a ordem social, aproximando-se, por essa via, das análises tecidas aqui sobre a obra de Lobo Antunes. 211 Dito de outra forma, a via encontrada para explorar a agônica impressão causada pelas experiências de outrora recai na veia humorística, um humor que, condizente com o contexto com o qual dialoga, não poderia deixar de ser agudo, intenso e, nesse sentido, violento. Tal explicação ainda é reforçada quando se refere mais uma vez a Propp e este afirma que cada “época e cada povo possui seu próprio e específico sentido de humor e de cômico, que às vezes é incompreensível e inacessível em outras épocas” (1992, p. 32). Em um romance no qual o cômico não corresponde a um fim e, sim, a um meio pelo qual se desenvolve outra lente para refletir sobre o absurdo vivido, o que vem à tona não pode ser visto como algo jocoso em sua simplicidade, preso aos “pequenos defeitos” dos indivíduos. Ao contrário, consoante com a época reavivada, até mesmo, a morte torna-se matéria pela qual o riso pode ser extraído no cenário caótico apresentado, o qual se configura como o riso invejoso, azedo, cruel dos defuntos, o riso sádico e mudo dos defuntos, o repulsivo riso gorduroso dos defuntos, e a apodrecer por dentro, à luz do uísque, como apodrecem os retratos nos álbuns, magoadamente, dissolvendo-se devagarinho numa confusão de bigodes (ANTUNES, 2010, p. 157). Nessa perspectiva, a decomposição dos seres reduzidos a fragmentos do que a guerra teria feito de cada um é perpassada por uma ação que associa, em um mesmo plano, a visão daquele que já se sente extinto diante das atrocidades do conflito – esboçando o “riso sádico e mudo dos defuntos” – ao estranhamento provocado pelo ensaio constante de “viver” a morte do outro como se fosse a sua. Diante desse fim sempre adiado, embora reencenado cada vez que um membro da tropa era alocado na urna a ser enviada de volta para Portugal, ao “eu narrador” coube a tarefa de expressar o inexplicável no tocante à reflexão sobre a finitude da vida em um contexto de massificação da morte. Como uma forma de sintonizar-se, ironicamente, com esse contexto em que a existência é vista em sua brevidade, o narrador retira a sutileza dos aspectos sobre os quais se volta seu olhar. Ao realizar tal ação, o ex-combatente, de modo irreverente, produz imagens nas quais o aniquilamento dos sujeitos é significado a partir de analogias que exploram, pela via humorística, a fugacidade da vida. Esta sofre um rebaixamento de qualquer condição etérea para uma dimensão mais orgânica e, por esse liame, mais banal, conforme se observa na passagem em que a voz narrativa relembra o 212 suicídio de um soldado e a redução dele a um ser fracionado. Tal aspecto traz à tona o que fora comentado anteriormente quanto à “condição metonímica” dos indivíduos inseridos no conflito: “um pequeno cacho acumula-se à porta para assistir, fascinado e em pânico, ao sangue e à saliva que borbulham pela garganta inexistente, aos sons indefiníveis que o que sobeja de nariz emite, aos olhos que a pólvora rebentou como ovos cozidos que explodissem” (ANTUNES, 2010, p. 163, grifos nossos). “Em geral visto como sinal de alegria, o riso pode revelar o sofrimento em toda a sua crueza” (DUARTE, 2006, p. 51), uma leitura que, dadas as devidas reservas no universo cômico criado no romance em foco, se relaciona com a tragicidade da batalha desvelada pelo narrador-personagem. Há no olhar lançado sobre a morte e a maneira característica de apresentá-la um traço comum à sátira menipeia referida anteriormente, uma vez que, na composição do aniquilamento dos militares em combate, a voz narrativa viola as “normas comportamentais estabelecidas e da etiqueta, incluindo-se também as violações do discurso” (BAKHTIN, 1997, p. 117) pelo modo como a extinção da vida é explorada no texto. O que deveria ser tratado com um grau de deferência e polidez, segundo uma “marcha universalmente aceita e comum dos acontecimentos” (BAKHTIN, 1997, p. 117) que predetermina as ações realizadas pelos indivíduos, é visto de uma forma excêntrica, a qual é bastante cultivada na narrativa. Além do humor explorado por meio da qualificação atribuída ao fenecimento dos soldados, outra via de desumanização também dá origem ao tom burlesco com o qual o ex-combatente filtra algumas cenas inolvidáveis de seu passado. No meio desses eventos, é possível frisar o modo como a voz narrativa compõe a observação da figura do catanguês, indivíduo que ainda ressurgirá nesta análise mais uma vez quando for destacado o diálogo entre o que seria visto como barbárie e como civilização no contexto aludido pelo “eu”. O catanguês emerge, neste momento, sob o matiz da ironia e do ácido humor antuniano que vem sendo deslindado aqui: “Um cão minúsculo [...] reteso de hostilidade azeda, veio ladrar-me, furioso, aos tornozelos, e eu pensei em levá- lo de presente ao alferes catanguês para o pequeno-almoço de domingo, no intuito amável de lhe variar a dieta” (ANTUNES, 2010, p. 97). A dimensão fisiológica destacada no excerto em questão sugere uma aproximação entre a iguaria a ser supostamente objeto da cortesia imaginada pelo narrador e o sujeito que receberia tal oferta. Nessa relação, o humor sobressai, incialmente, a partir da caracterização negativa realizada do alferes catanguês, o qual seria associado a um ambiente de selvageria pela ligação estabelecida entre os 213 elementos homem e animal, uma conexão que, em dadas circunstâncias, atingiria o próprio médico, aspecto a ser descortinado no capítulo seguinte desta tese. Nesse jogo, o ser humano assumiria as características do bicho, inclusive, pela ingestão de um alimento que corresponderia ao perfil do oficial catanguês construído previamente. De forma hiperbólica, o narrador realça a estranheza sentida diante de uma conjuntura de guerra, uma organização política que necessita do apoio de alguém, aos olhos daquele, tão animalesco e, por esse liame, tão rudimentar. Não se ignora, à primeira vista, o locus de fala dessa voz narrativa que põe em evidência as impressões de um indivíduo crescido no seio de uma sociedade ocidental, etnocêntrica, a qual tende a enxergar o universo colonial por um prisma inferiorizante. Assim, o olhar sobre esse “outro” edifica uma composição do disforme, do estranho que, nesse sentido, torna-o ridículo, visão que seria condizente com o contexto social do qual o narrador seria oriundo, algo que dialoga, até certo ponto, com a assertiva de Bergson quando este afirma que para “compreender o riso, impõe-se colocá-lo no seu ambiente natural, que é a sociedade; impõe-se sobretudo determinar-lhe a função útil, que é uma função social” (BERGSON, 1987, p. 14). Nesse panorama, a ironia funciona como um termômetro que diagnostica a subversão das relações de poder no contexto de guerra. Isto é, se por uma herança histórica esse “outro”, considerado primitivo e selvagem, compreendia um indivíduo subjugado frente ao branco europeu, na sistemática da guerra relembrada pelo ex- alferes-médico, o alferes catanguês sobrepõe-se à imagem do ex-combatente, o que determina que este refreie qualquer pensamento revelador da revolta com essa mudança de posição. O exposto adquire respaldo quando vem ao centro a passagem na qual o narrador entra em contato com o que ele definiria como uma “horda indisciplinada e petulante”, a qual perfazia o grupo do qual o catanguês fazia parte: Como eu mudei de cor quando, ao entrar de manhã na casa de banho, dei com o oficial catanguês a lavar os dentes, as gengivas, o céu da boca, a língua, a cara toda, com a minha escova: – Bonjour, mon lieutenant – borbulhou ele num riso enorme que lhe escorria, em baba cor-de-rosa, pelo queixo. Tinham arribado dias antes ao Chiúme, uma companhia inteira de negros pequeninos e cabeçudos, de lenço vermelho ao pescoço (ANTUNES, 2010, p. 78). Reunidos e armados pela Pide, constituíam uma horda indisciplinada e petulante a que a emissora da Zâmbia chamava “os assassinos a soldo dos colonialistas portugueses”; [...] eriçavam-se constantemente em exigências e amuos de hóspedes de luxo a esporearem de ameaças a 214 solicitude dos empregados, recusavam serviço numa arrogância de directores-gerais que se cuidam confundidos com o porteiro (ANTUNES, 2010, p. 79). Como “um modo de ver o mundo” (HUTCHEON, 2000, p. 15), a ironia perfaz um recurso utilizado pelo “eu” para expor a fúria contida anteriormente com a hierarquia decretada pela guerra e, ao mesmo tempo, o protagonista critica um sistema de governo para o qual nada importaria, a não ser a manutenção do título de imperialista. Para tanto, não causaria nenhum espanto, por exemplo, que fosse contratado um grupo de mercenários, “assassinos a soldo dos colonialistas portugueses”, dispostos a dizimar indivíduos com quem, ao menos por muito tempo, dividiram a condição de colonizado, convertendo a luta em um mercado violento. Peça diminuta desse negócio, o médico alferes vê-se transformado em um solícito empregado, assistindo, sem entender, à sua posição aviltada frente ao excêntrico catanguês que lhe descerrava um “riso enorme que lhe escorria, em baba cor-de-rosa, pelo queixo”. A essa condição, o narrador “responde” no presente, de forma irônica, envolvido pela cólera, a ira peculiar de alguém que deseja corresponder ao papel que lhe fora imposto, sugerindo um cão minúsculo para a alimentação do mercenário “no intuito amável de lhe variar a dieta”. Tal expressão potencializa a presença do viés humorístico nessa passagem do texto, uma vez que o vocábulo “dieta” apresenta um duplo sentido, referindo-se ao que se come, em uma acepção mais usual, e ao que, de fato, o catanguês devora, alguém que se alimenta de outra vida. Recobrando o entendimento de que a ironia compreende o expediente utilizado pelo “eu narrador” para analisar o que fora vivido, reexaminando o sentido atribuído aos acontecimentos passados, esse recurso estilístico permite deslocar a percepção sobre os ditos que, cristalizados, não admitiam questionamentos, ou mesmo, que fosse suscitado qualquer grau de incredulidade com as máximas divulgadas pelo regime, por exemplo. Dessa maneira, mesmo recuperando nesta pesquisa uma série de estudos sobre o tema, as compreensões sobre essa questão não repousam em um quadro teórico definido e preciso, já que tal conceito é visto como algo “vago, instável e multiforme. A palavra ‘ironia’ não quer dizer agora apenas o que significava nos séculos anteriores, não quer dizer num país tudo o que pode significar em outro, [...] nem para um estudioso o que pode querer dizer para outro” (MUECKE, 1995, p. 22). Por esse motivo, reconhecendo a diversidade de fases na análise da ironia, em que esta compreende desde uma atitude (na perspectiva filosófica) até a via pela qual se atualizava um sentimento de 215 contradição construído pela consciência da finitude do sujeito, da sua fragmentação e do seu desejo de totalidade 140 , cumpre refletir ainda mais sobre o espaço de atuação da ironia no texto focalizado, procurando, assim, caracterizar mais detidamente sua presença no romance. A resposta para as demandas apresentadas vem deixando seus indícios desde o início das leituras sobre a prosa em foco, tendo em vista que, ao se discutir sobre o desmonte dos discursos autoritários que fizeram parte da (des)aprendizagem do indivíduo enviado para África, recaiu-se, muitas vezes, na via irônica. Esta compreende a fonte propulsora pela qual o “eu” entra em atrito não com uma falsa imagem que ele poderia elaborar sobre si mesmo, mas com o perfil imaginado que as instituições pertencentes à tríade discursiva aludida anteriormente construíram para alguém que não correspondeu a um dado modelo de homem. Por esse liame, a ironia assume na obra em questão a forma de um mecanismo discursivo capaz de impulsionar a corrente dialógica presente na narrativa, o que ocorre por meio do contraponto de vozes que é sentido quando tal artifício surge como uma espécie de réplica a uma dada posição axiológica acionada por um grupo social na trama. Essa compreensão assemelha-se ao que foi analisado por Brait no tocante à presença de um interdiscurso irônico em textos literários e não literários selecionados pela pesquisadora, uma ligação que se torna mais palpável quando a autora afirma: Como elemento estruturador de um texto cuja força reside na sua capacidade de fazer do riso uma consequência, o interdiscurso irônico possibilita o desnudamento de determinados aspectos culturais, sociais ou mesmos estéticos, encobertos pelos discursos mais sérios e, muitas vezes, bem menos críticos (BRAIT, 2008, p. 17). O desnudamento citado atinge maiores proporções no enredo quando a ironia é convertida em uma forma de desmobilizar uma das vias de divulgação da ideologia do governo português, dessacralizando o dito, por assim dizer, ao retirar o “véu” de um 140 A ironia na perspectiva filosófica corresponde a uma estratégia para se vencer o oponente, exemplificada por Sócrates, enquanto modelo primeiro de comportamento irônico, devido às técnicas construídas por esse filósofo, técnicas que “consistiam basicamente em transformar uma frase assertiva em interrogativa com a finalidade de dar a entender ao interlocutor um desconhecimento ou a ausência de uma convicção em relação a um determinado tema” (BRAIT, 2008, p. 24). Já a ironia romântica, bastante presente na literatura da Alemanha no fim do século XVIII, apresenta a compreensão de que um “texto, [que] em vez de buscar afirmar-se como imitação do real, exibe o seu fingimento, revelando o seu desejo de ser reconhecido como arte, essência fictícia, elaboração de linguagem” (DUARTE, 2006, p.40). Muecke destaca a presença também de uma ironia relativista no século XX, compondo “uma forma de escritura destinada a deixar aberta a questão do que pode significar o significado literal: há um perpétuo diferimento da significância” (1995, p. 48). 216 discurso considerado sério como o religioso. Nessa perspectiva, chega-se ao segundo ponto deste momento da análise no qual o enfrentamento da realidade vivenciada na guerra cruza-se com a referência ao cristianismo, o que é visto sob o prisma de um olhar irônico do qual sobressai, por vezes, o humor, um aspecto passível de ser observado, por exemplo, no trecho apresentado a seguir: formávamos a cada jantar a anti-Última Ceia, o desejo comum de não morrer constituía, percebe, a única fraternidade possível, eu não quero morrer, tu não queres morrer, ele não quer morrer, nós não queremos morrer, vós não quereis morrer, eles não querem morrer (ANTUNES, 2010, p. 64). Um das ações que indica a presença da força irônica no trecho recortado diz respeito à escolha do narrador por tentar conferir a uma cena comum do cotidiano da guerra um ar mais sublime, nobre. Isso acontece pela lembrança feita a um momento de profunda relevância na tradição cristã, o que se refere à passagem do Novo Testamento em que Jesus e seus discípulos reúnem-se na “Última Ceia”. Entretanto, distante de qualquer aura sagrada, as personagens enredadas no cenário africano não se sentem imbuídas do sentimento de sacrifício por uma causa, no caso, pela defesa dos valores nacionais. Na verdade, o único traço que aproximava os sujeitos presentes nesse processo correlacionava-se ao “desejo comum de não morrer”. Dessa maneira, conforme o prefixo “anti” já sugere, a referência religiosa surge desconstruída, esvaziada de sentido, em que o uso da expressão “Última Ceia” parece insinuar apenas uma questão temporal, ou seja, uma forma de demarcar uma expectativa negativa dos soldados de não serem abatidos no conflito. A entonação assumida pelo “eu” para reavivar esse momento sofrível confere ao dito um tom de ladainha, por assim dizer, cujo pedido torna-se evidente devido à repetição realizada do anseio de “não querer morrer”, o que é edificado na prosa pela conjugação verbal de uma ação que os sujeitos não desejam ver efetivada. A “única fraternidade possível” decorre, contraditoriamente, de uma vontade de sobreviver, vendo no perecimento do outro a confirmação de que ainda se permanece vivo. A escolha por esse grau de formalidade, marcada pela conduta normativa da conjugação verbal, abre espaço para uma leitura debochada da situação, como se essa dinâmica linguística fosse convertida em uma espécie de brincadeira, um jogo a partir do qual seriam pressentidas as vítimas fatais do conflito, cujos desejos seriam, provavelmente, 217 ignorados pela sistemática da guerra. Nesse campo, se a ironia, algumas vezes, provoca um humor ácido, o qual já fora citado antes, aquela, para fazer uso novamente das considerações de Linda Hutcheon, “dá acesso a [um] material que não é, na verdade, muito engraçado” (2000, p. 48). O modo como os elementos referentes ao discurso do sagrado são corrompidos na narrativa perfaz duas circunstâncias diferentes e nelas se estabelece uma espécie de “profanação simbólica” de uma ordem moral que paira sobre os indivíduos pertencentes tanto ao pretérito reavivado quanto ao presente em que a cena enunciativa transcorre. Na primeira instância desse processo, predomina uma estratégia bastante utilizada pelo narrador-personagem para avaliar, ironicamente, como ocorre a “ressonância ideológica” (lembrando as considerações de VOLOCHÍNOV, 2010, p. 99) do discurso religioso que orienta uma determinada visão sobre o mundo onde aquele sujeito vive. Tal estratégia, de alguma forma, já fora apontada antes no momento do desmonte dos discursos que faziam parte das instituições interessadas no desenvolvimento do “eu”, no entanto, a tática citada surge agora de forma mais veemente, pautada pela recorrente inserção de aspectos referentes à esfera do divino nas situações mais inusitadas. Expresso de outra maneira, ocorre uma superposição de campos discursivos no interior do dito do “eu narrador”, de forma que a referência ao campo religioso é inserida nos momentos que seriam mais antagônicos ao que determina o pensamento hierático. Assim, conjugam-se, muitas vezes, o sacro e o profano no mesmo domínio, o que insufla o humor diante de uma quebra de expectativa, ou seja, da construção de uma situação atípica, insólita. Uma ocorrência singular é passível de ser observada, por exemplo, no excerto que apresenta a transcendência do ser humano sendo conquistada pelo via alcoólica: “sobre as nossas cabeças ungidas tombam as línguas de fogo de Johnny Espírito Santo Walker” (ANTUNES, 2010, p. 48). O gracejo construído na passagem envolvendo o nome da marca de um uísque escocês e parte da Santíssima Trindade traduz, muito bem, o artifício utilizado pelo narrador comentado anteriormente. O “eu”, frente à linguagem do sagrado, “não se solidariza com essas palavras até o fim e as acentua de modo especial – humorístico, irônico, paródico” (BAKHTIN, 2015, p. 76). O acento empregado pelo ex-alferes rompe com o tom austero do vocabulário da Igreja para reintroduzir esse mesmo vocabulário em um espaço mais terreno, mais próximo de figuras comuns como os bêbados, projetando uma pluralidade de vozes “pela fusão do sublime e do vulgar, do sério e do cômico” (BAKHTIN, 1997, p. 108). 218 Os indivíduos alcoolizados, distantes de qualquer grandiosidade ou de qualquer perfeição, conjugam sobre si um duplo ponto de vista, no romance em foco, marcado ora pela expressão de uma imagem melancólica, entediada com a realidade vivida que instiga o refúgio no álcool; ora pela composição de um quadro em que prevalece o ridículo, o excêntrico. Esse último aspecto é ampliado pela remissão a uma roupagem religiosa, o que insufla, por outro enfoque, a presença de uma situação bizarra na narrativa graças à combinação de elementos heterogêneos, provocando a fuga de uma seriedade unilateral frente ao discurso do sagrado. Um exemplo dessa questão encontra- se, por exemplo, pela forma como o narrador apresenta uma espécie de “santuário” no qual vê convertida a imagem do bar, conforme se observa na passagem a seguir: as lâmpadas votivas das luzes raras e o murmúrio de reza das conversas conferem uma tonalidade de religião sacrílega de que o barman é o bezerro de oiro, imóvel atrás do altar-mor do balcão, cercado pelos diáconos dos frequentadores do costume, que erguem em seu louvor black-velvets rituais. As cruzes do timol substituem os crucifixos, jejuamos pela Páscoa a fim de baixar as gorduras do sangue, comungamos aos domingos vitaminas purificadoras, confessamos ao grupanalista os atropelos à castidade, e recebemos de penitência a sua conta mensal; nada mudou, como vê (ANTUNES, 2010, p. 33, grifos nossos). O bar é apresentado de acordo com as configurações de um “destes templos exóticos” (ANTUNES, 2010, p. 33). Nessa configuração, o adjetivo utilizado ajuda a reforçar a atividade realizada pelo “eu”, o qual abstrai as características mais comuns do universo cristão para aproximá-las do ambiente descontraído, popularesco que essa categoria de botequim compreende. Para tanto, realiza-se um levantamento dos componentes do ritual religioso, recuperando elementos como a “reza”, o “altar-mor”, “o jejum na Páscoa”, o momento da comunhão, a confissão das culpas e a “penitência” atribuída aos pecadores para associá-los, respectivamente, à conversa no bar, ao balcão, ao excesso de álcool em detrimento do desejo de alimentar-se, à ingestão de “vitaminas purificadoras”, ao depoimento dado ao terapeuta e ao recebimento da conta por esse serviço. Por essa lógica, o narrador desrespeita as leis divinas ao reiterar os elementos da religiosidade católica para desestruturar a posição do sagrado nessa realidade em que os frequentadores do bar são vistos, ironicamente, como devotos, participantes assíduos que são dessa “religião sacrílega” concernente ao ambiente descrito. A mística-religiosa 219 é rebaixada, aproximada do “ambiente de submundo” (BAKHTIN, 1997, p. 115) que o bar exemplifica, reunindo aspectos contrastantes que associam o texto antuniano, em certa medida, à lógica carnavalesca e sua influência na linguagem literária, uma questão observada por Bakhtin, por exemplo, na obra de Dostoiévski. Bakhtin observa a “influência determinante do carnaval na literatura, especialmente sobre o aspecto do gênero” (1997, p. 122), intitulando esse processo de “carnavalização”. No estudo realizado sobre a lógica carnavalesca, são destacadas algumas particularidades dessa cosmovisão nos gêneros do sério-cômico até alcançar o romance com Dostoiévski. Fazendo parte das particularidades sublinhadas por Bakhtin, é possível citar a revogação de um sistema hierárquico que demanda um determinado conjunto de normas e “todas as formas conexas de medo, reverência, devoção, etiqueta etc.” (BAKHTIN, 1997, p. 123). Pela suspensão dessa forma específica de ordenação do mundo, advém a segunda característica, marcada pela liberdade de relação entre os homens que entram em uma zona de contato familiar, em que esta se estende “a tudo: a todos os valores, ideias, fenômenos e coisas” (BAKHTIN, 1997, p. 123). Por esse motivo, a presença da excentricidade não seria algo incomum nesse universo carnavalesco, permitindo que o que é visto como inoportuno em uma vida regrada no cotidiano não carnavalesco fosse, enfim, expresso, revelando os “aspectos ocultos da natureza humana” (BAKHTIN, 1997, p. 123). Por último, a profanação é realçada, sendo instituída pelas “indecências carnavalescas, relacionadas com a força produtora da terra e do corpo, e pelas paródias carnavalescas dos textos sagrados e sentenças bíblicas, etc.” (BAKHTIN, 1997, p. 123). Por tudo que já foi comentado, as propriedades da cosmovisão carnavalesca citadas dialogam com o universo no qual a austeridade das posições dominantes é posta em causa no romance antuniano. A ruptura com o dogmatismo sentido na dimensão religiosa é uma forma, por exemplo, de ilustrar a elaboração de um “jogo com símbolos do poder supremo” (BAKHTIN, 1997, p. 125). No entanto, isso não significa dizer que haveria na prosa em análise a manifestação da dinâmica carnavalesca enquanto rito festivo e alegre de celebração da vida e de sua constante renovação 141 . Com efeito, da mesma maneira que “cada autor tem a sua própria ironia, que não difere apenas em técnicas, estratégias ou estilo de época” (DUARTE, 2006, p. 18), distinguindo-se também pelas leituras que são suscitadas a partir da presença desse recurso no texto 141 Ver Bakhtin (1997, p. 125). 220 literário, o olhar sobre a linguagem carnavalizada adquire sua singularidade no romance em destaque, algo que é qualificado, principalmente, pelo destronamento das posturas conservadoras que ressoam no discurso do narrador. Por essa medida, retornando à última situação recortada da prosa em relevo, é possível tecer um questionamento sobre as reflexões advindas do modo como a presença do sagrado vem a ser percebida. Nessa passagem, há um estímulo para que se repense sobre o papel que a religião possuiria no momento em que o narrador encontra- se no bar com sua ouvinte. Em uma sociedade como a portuguesa na qual “o português teve sempre de se crer garantido no seu ser nacional mais do que por simples habilidade e astúcia humana, por um poder outro, mais alto, qualquer coisa como a mão de Deus” (LOURENÇO, 2016a, p. 27, grifos no original), a importância da religiosidade seria inegável, tanto que promover a ruptura com a crença religiosa significa desconstruir o invólucro que compreende um traço distintivo da identidade de nação, fabricado pelo Estado. Aos olhos do protagonista da trama, o sagrado teria perdido seu posto após o que se viveu na guerra, de forma que a voz narrativa ironiza o papel da igreja ao deixar claro que houve “apenas” uma troca, já que “nada mudou, como vê” (ANTUNES, 2010, p. 33). Na verdade, sobrevém o entendimento de que as crenças estariam perdidas no presente, seriam ineficazes no cenário em que o “eu” enuncia, sendo substituídas por outros artifícios. Outrossim, o narrador corrige sua fala, pois, de fato, algo mudou nessa sistemática, conforme ele afirma: “nos consideramos ateus porque, em lugar de batermos com a mão no peito, bate o médico por nós com o diafragma do estetoscópio” (ANTUNES, 2010, p. 33-34). Para concluir as análises dessa primeira instância voltada para o tratamento irônico da questão do sagrado no texto, faz-se necessário depreender a presença da estratégia comentada anteriormente também nas lembranças de guerra reavivadas pelo narrador. Nesse contexto, as cenas marcadas pelo horror da violência no conflito são balizadas, em dados momentos, por uma espécie de protocolo e nele afloram referências do cerimonial religioso. Tais referências fomentam um ar de formalidade que logo é desarticulado por se encontrar no mesmo plano da selvageria, da ausência de misericórdia, da decomposição dos sujeitos dos quais restam apenas os excrementos. O “ritual eucarístico para desenterrados vivos” (ANTUNES, 2010, p. 42), praxe que, segundo o ex-combatente, o enfermeiro Jonatão realiza ao distribuir as pastilhas para os feridos (relembrando aqui novamente o momento sagrado da comunhão), concatena-se 221 com um dos traços do discurso irônico comentados por Beth Brait, em que a ironia “geralmente descreve em termos valorizantes uma realidade que ela trata de desvalorizar” (2008, p. 64). A ação de desvirtuar os dogmas cristãos surge também na passagem em foco neste momento, por exemplo, quando se observa a própria configuração da personagem Jonatão. Este é descrito pelo narrador de forma sisuda, com uma fórmula de tratamento respeitosa que incita o ar de formalidade citado anteriormente para converter tal indivíduo, dessa maneira, em um tipo de sacerdote que atende ao conjunto de desvalidos da guerra, porém sem demonstrar qualquer compaixão pelo sofrimento dos demais. Tal sentimento teria sido esvaziado diante da ação mecânica e repetitiva de lidar com a morte nesse cenário, de forma que esse sacerdócio perderia sua razão de ser: “O senhor Jonatão, regiamente instalado numa cadeira desconjuntada, absolvia de tintura de iodo as feridas que lhe ofereciam pincelando-as de extremas-unções expeditivas, inúteis esconjuros contra a presença da morte” (ANTUNES, 2010, p. 42, grifos nossos). A partir dessa lógica, a componente religiosa, ao ser recoberta pela atmosfera bélica, é alvo da desestruturação irônica da voz narrativa que trata com desdém a liturgia católica dentro de um contexto no qual a própria vida é desvalorizada. O enaltecimento da fé perde espaço para uma situação em que a crueldade se faz tão palpável, tão materializada, de modo que se contrapõem duas realidades: uma mais etérea e uma mais terrena, em que esta se sobrepõe àquela diante das orações, por exemplo, que se convertem em “Padres Nossos militares” (ANTUNES, 2010, p. 114). As preces tornam-se, assim, mais pragmáticas, a serviço da organização do conflito. Por sua vez, o complexo de analogias tão presente na atividade expressiva do narrador (os vários “como” que evidenciam uma consciência ampliada pelas suas diversas formas de representação), para intensificar as imagens rememoradas do passado, também se insere nessa ação desnorteadora que o “eu narrador” realiza sobre a temática do sagrado, a exemplo dos oficiais paraquedistas que figuram “estritos e graves como seminaristas laicos” (ANTUNES, 2010, p. 114). A distorção presente no excerto em questão é sentida, inclusive, pela imagem incongruente dos “seminaristas laicos”, sugerindo, porventura, a própria descrença dos oficiais sobre os caminhos da guerra, como sujeitos que, contraditoriamente, defendem uma “religião”, mas nela não acreditam. Além da correlação estabelecida anteriormente, é possível ressaltar a presença da dessacralização no modo como são vistos os cadáveres dos quais o narrador parece 222 escutar um pedido de socorro, ouvindo “o apelo pálido dos defuntos nos caixões de chumbo, com a medalha identificativa que trazemos ao pescoço pousada na língua à maneira de uma hóstia de metal” (ANTUNES, 2010, p. 188). Novamente, o momento da eucaristia se faz presente na trama, pois a “hóstia de metal” simboliza o sacrifício de vários portugueses que pereceram em batalha. Porém, ao contrário do entendimento de que o corpo de Cristo representa a salvação do mundo, o corpo imolado dos soldados não garantiu essa salvação, essa vitória, se assim é possível dizer, restando apenas na memória de alguns, a exemplo do narrador, “o apelo pálido dos defuntos”. Os ditames cristãos, os sacramentos e a ótica expressa por esse discurso despertam no “eu narrador” a indignação com a promessa de uma realidade na qual a humanidade surge mais benevolente, mais caridosa, algo inconciliável com a imagem da guerra. Mesmo nas situações que permanecem apenas no plano imaginativo do “eu”, a religiosidade perde sua razão de ser frente à desesperança sentida no contexto bélico, em que aquela compreende, cada vez menos, um refúgio para as horas de desespero que um pensamento sobre o qual se manifesta a inconsistência do discurso da ordem do sagrado. Neste, a Igreja, aliada à política do Estado português, proclamaria o extermínio de uns “irmãos” por outros. Dessa maneira, a forma encontrada pelo narrador para expressar tal sensação é, muitas vezes, violenta, a exemplo de quando ele pensa “na ressurreição da carne do catecismo, como pedaços de tripas a erguerem-se dos buracos dos cemitérios num despertar vagaroso de ofídeos 142” (ANTUNES, 2010, p. 42). A comparação realizada manifesta a via irônica já tão comentada aqui pela leitura empreendida do discurso religioso, minando a sua vertente simbólica para rever o dito de forma quase literal, em que a “ressurreição da carne” significaria a volta dos fragmentos dos defuntos, compondo uma visão absurda, porém, ironicamente mais adequada ao cenário de guerra. Esse entendimento relaciona-se com o que foi expresso anteriormente sobre a ironia como um mecanismo discursivo, algo que “passa, necessariamente, tanto pelas questões que dizem respeito à dimensão ideológica, social, cultural, histórica, quanto pela questão da subjetividade e pela maneira como esses dois aspectos se tornam constitutivos do discurso” (BRAIT, 2008, p. 39). A ligação entre esses aspectos torna-se mais bem evidenciada, igualmente, na segunda circunstância analisada que faz parte do que foi nomeado antes como “profanação simbólica”. Neste segundo momento, a ruptura com a dimensão do sagrado 142 Animal pertencente à espécie dos répteis, semelhante a cobras ou serpentes. 223 ocorre pela junção, em uma mesma cena, de aspectos que dizem respeito tanto a uma situação que poderia ser considerada mais cândida quanto a uma mais carnal e, nesse sentido, mais pecaminosa em dada medida. A zona de familiaridade estabelecida entre esses dois polos faz com que se recobre aqui a lógica carnavalesca cuja dinâmica possibilita que elementos, antes distanciados, entrem em uma zona de proximidade, dado que tal lógica “reúne, celebra os esponsais e combina o sagrado com o profano, o elevado com o baixo, o grande com o insignificante, o sábio com o tolo, etc.” (BAKHTIN, 1997, p. 123). O narrador opera, por assim dizer, a conjunção de elementos heterogêneos em um dito fragmentado por fiapos de lembranças diversas, as quais vêm à tona de modo desconexo em um mesmo fluxo de memória ativado pelo “eu”. Contudo, esses momentos apartados pelo tempo confluem-se no tecido textual e produzem, na organicidade da narrativa, um humor corrosivo, o qual foi travestido em uma força libertadora, de maneira que, a partir dela, o sujeito inverte os valores da sociedade e, assim, das instituições. Aproximando-se, em dada medida, do riso carnavalesco analisado por Bakhtin, o humor antuniano é proveniente, em síntese, da dessacralização, da profanação, da derrocada da ordem vigente de quem o sujeito se sente, nesses instantes, afastado. Não obstante, a ressalva continua tendo sua razão de ser, já que o riso carnavalesco é, “antes de mais nada, um riso festivo” (BAKHTIN, 2013, p. 10), popular, que associa um aspecto jocoso a um olhar de burla e de sarcasmo, distanciando-se, por essa sensação de júbilo, da comicidade suscitada na narrativa em estudo. Não há espaço para essa sensação prazerosa em um universo no qual, em larga medida, as muitas situações que trariam ao indivíduo algum deleite também exalam uma leitura de seu apequenamento; uma dessas ocorrências pode ser observada na passagem a seguir, a qual ilustra, muito bem, a segunda circunstância de análise da questão do sagrado citada anteriormente: agora que me portei mais ou menos, não é verdade, você gemeu mesmo, uma ou duas vezes, latidos de cadelinha contente, agitou-se numa espécie de espasmo de coreia ou de desmaio, o seu rosto, de olhos fechados e de boca aberta, assemelhou-se por instantes ao das velhas que comungavam nas igrejas da minha infância, velhas de dentadura solta, arfando, de língua de fora, pelo círculo branco da hóstia. Eu, menino de coro, acompanhava o padre e contemplava, fascinado, o inacreditável comprimento das línguas das velhas que se empurravam e acotovelavam, armadas de guarda-chuvas de cabo de osso e de grandes terços semelhantes a colares de actrizes, defronte do prior, de taça na mão, resmungando arrotos místicos pela ponta dos beiços (ANTUNES, 2010, p. 180). 224 No trecho recortado, uma expressão realizada pela acompanhante do narrador- personagem durante o ato sexual torna-se o gatilho para que ele traga à tona a lembrança infantil das celebrações religiosas das quais participava enquanto “menino de coro”. De um lado, há a visão do coito em que o ex-combatente não demonstra uma satisfação com o seu papel na ação empreendida, buscando a avaliação de sua parceira sobre o seu desempenho. Do outro lado, há a reminiscência do contexto da eucaristia, surgindo como personagens principais as beatas que são alvos do escarnecimento do ser que recorda. Desse modo, destaca-se mais uma vez uma das dualidades da trama, pautada, nesse caso, pelo par sacro versus profano. Nessa dualidade, o sagrado não só é deturpado pela dimensão pecaminosa que o ato carnal possui na cena em questão, o que é intensificado, inclusive, pela configuração animalizada que a mulher recebe diante dos seus “latidos de cadelinha contente”, mas também pela qualificação distorcida, se assim se pode afirmar, que as beatas apresentam aos olhos do narrador. Fora de uma dimensão celestial, as beatas são caracterizadas, em todas as suas referências, como “velhas”, tornando-se sujeitos deformados. A partir da nomeação atribuída às beatas, elas se tornam objetos da troça produzida na situação, aspecto que relembra o que Propp 143 teorizou como “riso de zombaria”, pois nele a “comicidade costuma estar associada ao desnudamento de defeitos, manifestos ou secretos, daquele ou daquilo que suscita o riso” (1992, p. 171). Uma das maneiras utilizadas para explorar os “defeitos manifestos” das “velhas” pelo narrador caracteriza-se pela presença do exagero, o qual, de acordo com Propp, pode assumir dentro do âmbito da comicidade três formas principais: “a caricatura, a hipérbole e o grotesco” (1992, p. 88). No caso em questão, o modo como os traços das devotas são sensivelmente ampliados, a ponto de ser possível construir uma leitura sobre essas pessoas a partir dessas características aumentadas, incita a presença da hipérbole no romance. Ao contrário da caricatura que se centraliza em um pormenor do objeto alvo da zombaria para amplificá-lo (segundo PROPP, 1992, p. 88), a hipérbole exagera “o todo” da vítima a ser ridicularizada. Na passagem em questão, parte-se das “línguas das velhas” para compreender de forma avultada não só o exterior dessas personagens, com os seus “grandes terços semelhantes a colares de atrizes”, mas também os aspectos 143 Por mais que o romance em estudo não trate a questão do cômico como uma finalidade última, digna de uma comédia, por exemplo, sendo muito mais um aspecto oriundo das situações absurdas apresentadas, é possível estabelecer, quando necessário, uma relação com os conceitos discutidos por Propp (1992). 225 interiores dos sujeitos observados de forma negativa. O “inacreditável comprimento das línguas das velhas” despertou a atenção do infante que, à época, tentava acompanhar o movimento desse órgão em ação. Tal movimento observado indica, possivelmente, recorrendo a uma leitura de caráter popular, o tipo de postura que as devotas apresentavam, mesmo em um ambiente religioso, sugerindo uma fala maledicente, difamadora. Dessa maneira, longe de um perfil mais contemplativo e, por esse viés, introspectivo das religiosas, o que é elucidado compõe um quadro que fere o rito clerical por evidenciar um conjunto de aspectos disformes que vão desde a imagem rude das “velhas de dentadura solta, arfando, de língua de fora, pelo círculo branco da hóstia” até o comportamento espalhafatoso que essas mulheres apresentavam, pois “se empurravam e acotovelavam, armadas de guarda-chuvas de cabo de osso”. Tal comportamento ostensivo possibilitou a analogia tecida antes, aproximando, paradoxalmente, dois contextos bastante díspares. Ademais, a ruptura com o clima da solenidade por si só provoca a subversão da soberania religiosa, já que a comunhão eucarística é sublinhada mais uma vez e posta ao lado da união carnal. O ato eucarístico é, assim, esvaziado, sendo ainda mais distorcido pelo modo como os sujeitos (no caso das devotas) presentes nessa ocasião, aos olhos do narrador, comportam-se. Destarte, a manifestação do corrosivo humor antuniano na cena apresentada sugere, por outro viés, a forma como o narrador descortina aspectos inerentes à tradição religiosa na qual fora inserido, trazendo à tona, mesmo nesse cenário, a hipocrisia das relações construídas pelos indivíduos, uma leitura coerente com o que analisa Beth Brait acerca da propriedade significante do humor: O deslindamento de valores sociais, culturais, morais ou de qualquer outra espécie parece fazer parte da natureza significante do humor. Assim sendo, uma manifestação humorística tanto pode revelar a agressão a instituições vigentes, quanto aspectos encobertos por discursos oficiais, cristalizados ou tidos como sérios (BRAIT, 2008, p. 15). Outra passagem do romance que segue as mesmas prerrogativas da segunda instância de análise da questão do sagrado é a que concentra em um mesmo momento de narração duas situações distintas. De um lado, há a imagem cândida da filha do ex- combatente, ainda recém-nascida, em Lisboa e, do outro lado, há a tentativa sem sucesso do ex-alferes de conseguir, de fato, empreender uma relação sexual com a 226 assistente de bordo da companhia aérea quando o homem solitário, após um intervalo da guerra, volta a Luanda. Para além dos aspectos incongruentes que o episódio apresenta na composição do duo imagem pura versus situação libidinosa, o alvo da troça desloca- se e torna o “eu” vítima de seu próprio deboche, tendo em vista que se decai a representação masculina, a qual assoma, como em outros momentos da trama, potencialmente fragilizada: Entesa-te minha besta, ordenei-me eu dentro de mim, a minha filha suspendeu o biberão 144 para arrotar e os olhos dela fitavam para dentro, desfocados, toquei a vulva da rapariga e era mole, e morna, e tenra, e molhada, encontrei o nervo duro do clitóris e ela soltou um suspirozinho de chaleira pelo bico esticado dos beiços, Pela alminha de quem lá tens entesa-te, supliquei a mirar de viés a minha pila morta, não me deixes ficar mal e entesa-te, pela tua saúde entesa-te, entesa-te, foda-se, entesa-te, a minha mulher mudava fraldas de alfinete de ama na boca (ANTUNES, 2010, p. 99-100). A justaposição de imagens tão dissonantes provoca uma aguda tensão, pois o obsceno e a inocência infantil são fundidos em um mesmo plano, em que o corpo humano é vislumbrado a partir de duas perspectivas: a fase do crescimento corporal, da alimentação, sugerida pela referência ao infante que “suspendeu o biberão para arrotar” e a imagem desagregadora do próprio corpo que não atende aos desejos sexuais do indivíduo na masturbação apresentada. Perante uma situação que poderia ser qualificada como absurda, a sobreposição desses elementos responde aos discursos de ordem moral mais conservadores. Nesse viés, ocorre a fissura de tais leituras de mundo por meio da atuação de uma memória que realiza um embate entre o que pode ser visto como repugnante e o que é considerado sublime, fazendo com que o que é encarado como repulsivo faça parte da fugacidade da vida tanto quanto o que é apontado como belo. Se “em certas circunstâncias pode se tornar cômica a transgressão de normas de ordem pública, social e política” (PROPP, 1992, p. 60), é possível inferir, dessa maneira, a potencialidade da questão humorística no romance em estudo por tudo que vem sendo analisado. Ao expor o que é considerado disforme, o que é julgado como um defeito de acordo com dadas visões de mundo, a voz narrativa põe em questionamento a pertinência desses pensamentos, principalmente, em um contexto de guerra e desse confronto, desse nonsense imprevisível, sobressai o aspecto cômico. Associado a esses 144 Recipiente conhecido popularmente no Brasil como mamadeira. 227 aspectos, encontra-se a concepção de que a paridade entre as duas situações apresentadas na passagem anterior do texto literário evocam uma componente grotesca no episódio em foco. Na prosa em destaque, o grotesco aflora na narração como uma forma de denunciar a experiência insólita vivida e, assim, liberar-se de qualquer pensamento dominante que deseje suavizar o que teria sido essa vivência, assemelhando-se a uma réplica de um discurso que busca impactar uma “leitura comportada do mundo”. Tal atitude liberadora poderia incitar o entendimento de que aqui haveria uma ligação com o pensamento bakhtiniano no tocante ao modo como o pensador russo teorizou a questão do “realismo grotesco”. Entretanto, o modo como a imagem grotesca foi observada por Bakhtin, por exemplo, na Idade Média e no Renascimento, apresenta um caráter universal. Isto é, os excessos e o rebaixamento moral ou físico fazem parte da dinâmica das metamorfoses, a qual contem tanto a degradação da morte quanto o renascimento da vida. Em síntese, o conjunto de transformações evidenciado propicia uma atitude regeneradora desse mundo no qual o “terrível adquire sempre um tom de bobagem alegre” (BAKHTIN, 2013, p. 34), em que “o grotesco está impregnado da alegria da mudança” (BAKHTIN, 2013, p. 42) 145, um contentamento que não se faz presente, por motivos claros, no romance em relevo. O referido desejo de impactar se faz perceptível na passagem recortada do texto literário também devido ao exagero com o qual o narrador realiza o diálogo com o seu órgão genital, repetindo excessivamente ordens que logo se convertem em súplicas, invocações permeadas por uma escolha vocabular regida pela obscenidade. A “palavra inoportuna”, assim denominada por Bakhtin (1997, p. 118), torna-se algo bastante reiterável na linguagem empregada pela voz narrativa por meio do uso do palavrão, contribuindo para que seja desestabilizada certa norma comportamental. De acordo com o que afirma Bakhtin, ao elucidar mais uma característica da sátira menipeia, a “‘palavra inoportuna’ é inoportuna por sua franqueza cínica ou pelo desmascaramento profanador do sagrado ou pela veemente violação da etiqueta” (1997, p. 118). 145 Não há o interesse, nesta tese, de realizar uma ampla análise acerca da noção de grotesco nas mais diversas épocas ou de perceber como tal noção fora empregada por autores diversos, já que um estudo desse porte acabaria por exceder os objetivos traçados para esta seção da pesquisa. Entretanto, é importante elucidar o porquê desse conceito se fazer presente na análise da obra literária em foco e como ele é percebido no romance. A aproximação com a teorização bakhtiniana ocorre a fim de esclarecer em que momento as concepções do pensador russo sobre a questão do cômico, sobre o grotesco iluminam as interpretações construídas aqui e em que medida se afastam das observações feitas sobre o romance de Lobo Antunes. 228 No posto de subordinado às vontades da “besta”, o “eu narrador” assume uma posição ridícula, coerente, por sua vez, com o ser acovardado, diminuído e menosprezado que vivenciou o horror da guerra. Dessa imagem de apequenamento, até mesmo, os próprios objetos presentes no espaço em questão zombam, a exemplo do “umbigo de um buda pantagruélico [que] estremecia gargalhadas de loiça” (ANTUNES, 2010, p. 99) ao ser defrontado com o corpo franzino do narrador-personagem. A amplificação da debilidade do sujeito é simbolizada pela referência a um objeto que ajuda a reforçar, frente ao ex-combatente, a materialização de uma imagem fracassada, que assim é vista pelo “eu”: “Despi as calças, desabotoei a camisa, o umbigo do buda troçava da minha magreza pálida e aflita, estendi-me no colchão, envergonhado do tamanho do meu pénis murcho que não crescia, não crescia, reduzido a uma tripa engelhada” (ANTUNES, 2010, p. 99). Por essa medida, o deboche atingiu aquele que lançou o olhar sobre si mesmo. O aviltamento moral liga-se, nesse momento, a um rebaixamento também de ordem física que a descrição do sujeito, com sua “magreza pálida e aflita”, acentua demasiadamente. Em outro momento deste estudo, será comentado sobre o esvaziamento da força vital dos indivíduos quando eles são convertidos em seres animalizados no contexto da guerra. Tal situação também parece ser sugerida nos trechos analisados neste instante, já que o protagonista se vê sem fibra, sem viço algum, alguém, tal qual o órgão sexual descrito, “murcho” e, em dada medida, “morto”. Outro aspecto que pode ser sublinhado refere-se ao efeito de sentido provocado pela presença de um polissíndeto no seguinte trecho: “toquei a vulva da rapariga e era mole, e morna, e tenra, e molhada, encontrei o nervo duro do clitóris e ela soltou um suspirozinho de chaleira pelo bico esticado dos beiços” (ANTUNES, 2010, p. 99). A repetição da conjunção aditiva provoca uma tensão no momento apresentado devido à ênfase na descrição do órgão genital feminino e a resposta dada pela mulher às ações do narrador, o que sugere um possível alcance de uma satisfação sexual que, no final, não logra o êxito esperado. A quebra de expectativa e a impossibilidade de se conseguir o prazer é ainda mais realçada pela última imagem que o capítulo apresenta – “a rapariga parou de me beijar, apoiou-se no cotovelo como as figuras dos túmulos etruscos, passou-me a mão na cara e perguntou O que é que não vai bem, Olhos Azuis?, e eu encolhi os ombros, rodei até ficar de bruços no lençol e desatei a chorar” (ANTUNES, 2010, p. 100). 229 Longe da composição de um perfil mais másculo, por assim dizer, para um dos heróis da luta portuguesa, a forma caricata com a qual o “eu” apresenta o seu fracasso, inclusive, em um foro mais íntimo, favorece, sensivelmente, a análise da transformação do “eu” em um “ser vencido”. Este seria alguém que foi derrotado, até mesmo, pela versão imaginada que desejava para si, “alguém que se pudesse amar sem vergonha” (ANTUNES, 2010, p. 170). Essa versão que, não sendo alcançada, estimulava no narrador uma postura negativa em seu modo de apreciação do mundo, algo que ele entendia como uma “inexplicável necessidade de destruir os fugazes instantes agradáveis do quotidiano, triturando-os de acidez e ironia” (ANTUNES, 2010, p. 139). Para sobreviver à “chata amargura habitual” (ANTUNES, 2010, p. 139), a ironia compreende um artifício válido, impulsionando certa energia em um ambiente de profundo abatimento, chegando a deflagrar, para utilizar as considerações de Beth Brait sobre os efeitos de sentido irônico, “um humor cujas entrelinhas atualizam representações de uma dada mentalidade, valores característicos de um dado momento ou de uma dada cultura” (BRAIT, 2008, p. 46). Tal entendimento é passível de ser percebido, por exemplo, na passagem a seguir em que a rememoração de um dado conto infantil é atualizada na trama: – O que é que você toma, Olhos Azuis? – perguntou ela num sorriso carnívoro de acordeão que se desdobra e me trouxe à memória o livro, cheio de imagens assustadoras, do Capuchinho Vermelho da minha infância: É para te comer melhor minha netinha, e o Lobo, de touca, exibia dos lençóis, a babar-se, os dentes pontiagudos. Para te comer melhor minha netinha, para te comer melhor minha netinha, para te comer melhor minha netinha: a boca dela crescia na minha direcção, côncava, gigantesca, sem fundo (ANTUNES, 2010, p. 98). Mesmo sabendo que as primeiras versões do conto do “Capuchinho Vermelho” apresentavam, realmente, um enredo repleto de “imagens assustadoras” 146, as quais são reavivadas no momento do ato sexual em foco, o diálogo entre uma lembrança infantil e o contexto de uma situação carnal não deixa de suscitar a manifestação do viés irônico 146 O conto possui uma série de variantes, com interpretações diferentes em vários países, a exemplo da França, da Alemanha, da Áustria e da Polônia. Uma das versões mais sinistras do enredo da “Chapeuzinho Vermelho” ganhou popularidade a partir do francês Charles Perrault, sendo publicada em 1697. Nesse formato da narrativa, havia a referência a um cunho sexual por parte da personagem infantil e sua relação com o lobo na trama. Para mais informações sobre as primeiras variantes dessa estória, consultar Hueck (2016) ou, a partir de um viés psicanalítico, as análises de Bettelheim (2014). As referências completas desses estudos encontram-se no final desta tese. 230 do narrador antuniano. O exposto se justifica pela atualização de um conto que, consensualmente, faz parte do imaginário infantil, possuindo, muitas vezes, um caráter moralista, o qual é subvertido no interior de um ambiente libertino que descaracteriza qualquer concepção de pureza e de inocência simbolizada no livro da infância relembrado. No entanto, a justificativa mais categórica, nesse caso, para a presença da ironia no trecho em foco se dá pelo modo como a estória da infância, com todas as suas nuances, é focalizado na revivescência da cena sexual. Nesse episódio, o “eu narrador” assume a posição do Capuchinho Vermelho, um ser desprotegido, prestes a ser devorado pelo ser carnívoro, o “Lobo da história infantil” no qual a assistente de bordo é travestida, sugerindo uma inversão de papéis, condizente com a imagem diminuída que o ser masculino possui nesse cenário. O homem adulto é visto de forma acuada, em certa medida, “pequeno” novamente, já que é metaforizado pela imagem da “netinha” que logo seria deglutida pela mulher travestida em lobo, aparentemente, a única que poderia sentir prazer nesse contexto. A repetição de um trecho do conto intensifica a tensão sentida pelo “eu” e desse ínterim sobressai o humor. Uma vez que se leve em consideração as observações de Propp quanto este afirma que “um campo especial de escárnio é constituído pelo caráter de um homem, pelo âmbito de sua vida moral, de suas aspirações, de seus desejos e objetivos” (1992, p. 29), a atitude demonstrada pelo narrador no trecho recortado parece sugerir a visão de alguém que zomba de sua própria incapacidade de ação. Tal leitura é assumida a partir do movimento que o “eu” sugere ao “diminuir” a si mesmo nesse cenário ao mesmo tempo em que amplia a posição de força da mulher. Isso se torna perceptível tanto pela forma caricata com a qual a boca da parceira sexual é descrita – “a boca dela crescia na minha direcção, côncava, gigantesca, sem fundo” – quanto, seguindo ironicamente, a imagística do conto infantil, pelo olhar que o narrador desfere sobre o que enxergava das mãos do sexo oposto: “as unhas vermelhas aumentavam até me roçar a pele” (ANTUNES, 2010, p. 98). Saindo de uma perspectiva de natureza mais íntima atinge-se, neste momento, o último aspecto a ser destacado aqui que se torna alvo da ironia corrosiva do narrador: o discurso oficial do Estado e o imperativo nacionalista que emana dessa visão de mundo. Nesse estágio da narração, a aspereza da voz narrativa focaliza, significativamente, a vivência na guerra para criticar os valores defendidos por um grupo social que, distanciado de África, impunha a permanência dos soldados portugueses em Angola. A cólera sentida com um modelo de governo que torna os cidadãos portugueses meros 231 “fantoches” de um regime opressor encontra no dizer irônico a via mais adequada para manifestar o inconformismo com essa situação. A revolta silenciada no momento da guerra explode quando ocorre a enunciação, o “eu” acaba demonstrando o desprezo com o sacrifício infundado que o teria convertido em um “alimento” para a manutenção do conflito, o que é sugerido, por exemplo, pelo seguinte dito sarcástico: “o meu sangue no copo do capitão, tomai e bebei ó União Nacional” (ANTUNES, 2010, p. 62). No trecho destacado, são desvirtuados os discursos autoritários oriundos do campo religioso, outrora comentado, em sua relação com a ditadura salazarista, o qual é representado pela referência feita à organização política de apoio ao regime – “União Nacional”, uma estrutura governamental que se confundia com o próprio representante do Estado. Desse modo, a subversão do rito eucarístico e, assim, da aceitação do martírio imposto pelo Estado é elaborada a partir do exagero com o qual o narrador simula sua conformidade com o descomedimento das prescrições necessárias para se servir à nação lusa, imaginando-se como Cristo, alguém que teria servido à humanidade para promover a redenção dos pecados. O ideário de defender a nação acima de tudo, já que o sujeito está diante de uma causa da qual não poderia haver dissidentes, é, por essa leitura, esvaziado, compondo um embate recorrente na trama entre as vozes unificadoras de uma determinada leitura de mundo e a postura desagregadora da voz narrativa. Relembrando o que fora discutido antes sobre a atuação das “forças centrípetas” no romance, “ao lado da centralização verboideológica e da unificação desenvolvem-se incessantemente os processos de descentralização e separação” (BAKHTIN, 2015, p. 41, grifos no original), processos que, nesse caso, são elaborados a partir da força mordaz do dito irônico. Ao analisar a feição “transideológica” da política da ironia, Linda Hutcheon enfatizou que essa propriedade “significa que a ironia pode ser usada (e tem sido usada) ou para minar ou para reforçar ambas as posições conservadora e radical” (2000, p. 50). No caso do jogo dialógico presentificado no romance antuniano, a presença da ironia deturpa um entendimento de nação que procurava “monologizar” o dito, controlando as demais leituras que poderiam surgir sobre a imagem do ser nacional e o funcionamento da estrutura governamental. Isso é edificado na passagem aludida do texto literário pela remissão a um partido único que representava o monopólio da representação parlamentar no país durante o Estado Novo. A força irônica solapa o discurso defendido por um conjunto de vozes sociais que desejam salvaguardar o que Castells definiu como uma “identidade legitimadora”, 232 “introduzida pelas instituições dominantes da sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais [...] e se aplica a diversas teorias do nacionalismo” (CASTELLS, 2018, p. 24) 147. Tal conceituação pode ser muito bem atribuída ao cenário português, dado que nele as instituições dominantes divulgavam uma forte propaganda do exitoso momento vivido pelo país, época que, segundo Eduardo Lourenço, “foi a mais grandiosa e sistemática exploração do fervor nacionalista de um povo que precisava dele como de pão para a boca, em virtude da distância objectiva que separa a sua mitologia da antiga nação gloriosa da sua diminuída realidade presente” (2016a, p. 38). Destarte, em um ambiente no qual a “diminuída realidade presente” se faz tangível na dura experiência vivenciada na guerra, a publicidade desenvolvida pelo regime dissolve-se e a resposta dada às instituições promotoras dessa “campanha patriótica” acaba sendo irônica: estamos em 71, no Chiúme, e a minha filha acaba de nascer. Acaba de nascer e a essa hora as senhoras do Movimento Nacional Feminino devem estar pensando em nós sob os capacetes marcianos dos secadores dos cabeleireiros, os patriotas da União Nacional pensam em nós comprando roupa interior preta, transparente, para as secretárias, a Mocidade Portuguesa pensa em nós preparando carinhosamente heróis que nos substituam, os homens de negócios pensam em nós fabricando material de guerra a preço módico, o Governo pensa em nós atribuindo pensões de miséria às mulheres dos soldados, e nós, mal agradecidos, alvos de tanto amor, saímos do arame em que apodrecemos para morrer por perversidade de mina ou emboscada, ou deixamos negligentemente filhos sem pais a quem ensinam a apontar com o dedo o nosso retrato ao lado da televisão, em salas de estar onde tão-pouco estivemos (ANTUNES, 2010, p. 75-76). A passagem recortada reúne uma série de instituições representantes do Estado, outrora já citadas, pilares de um regime de governo que deteve um cuidado exponencial com a difusão de suas ideias para a sociedade portuguesa dividida em públicos-alvo 147 Uma vez entendendo o processo de construção de identidades inserido em um cenário marcado por relações de poder, Castells (2018, p. 56) focaliza, ainda, mais dois tipos de identidade nesse circuito: a identidade de resistência e a identidade de projeto. A primeira é criada por pessoas que se encontram em uma posição desfavorecida em relação aos discursos dominantes na sociedade, “construindo, assim, trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes do que permeiam as instituições da sociedade” (CASTELLS, 2018, p. 56). Um exemplo desse tipo de identidade é representado pelo autor na cultura queer, em algumas facetas do movimento LGBT. A segunda é percebida quando os “atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social” (CASTELLS, 2018, p. 56). Nesse caso, a questão do feminismo é concebida como um exemplo, pois esse discurso sai da posição de resistência para envolver toda “a estrutura de produção, reprodução, sexualidade e personalidade sobre a qual as sociedades historicamente se estabeleceram” (CASTELLS, 2018, p. 56). 233 específicos. Como uma forma de realçar a extensão do poder desse “pacto nacionalista”, o narrador reporta-se, didaticamente, em sua fala à atuação de cada um desses grupos sociais que, voltados para o bem da nação, deveriam “estar pensando” nas tropas portuguesas confinadas nos campos de batalha em África. Nesse ínterim, a ação conjecturada pelo narrador, no que se refere à preocupação que as instituições em foco teriam com os guerreiros lusos, é esvaziada. Isso sucede devido à junção feita entre a hipótese de realização do pensamento citado e os contextos mais banais dos sujeitos para os quais a vida continua sem maiores aflições, a exemplo das senhoras do Movimento Nacional Feminino, para elas a lembrança dos combatentes surgiria no espaço dos salões de beleza. Dessa maneira, assalta, em um primeiro plano de manifestação irônica do narrador, a sensação de ter sido relegado ao esquecimento diante da indiferença com a qual foram tratados os indivíduos condenados à morte “por perversidade de mina ou emboscada” no conflito colonial, defendendo os ideais de uma sociedade que sequer pensa, de fato, sobre essa situação. A compreensão acerca do “apagamento” a que foram sentenciados os combatentes é reforçada pela presença de signos que exploram a ideia de um ambiente em decomposição. Neste, as tropas “apodrecem” e carecem, assim, de serem substituídas, como peças descartáveis nesse sistema, pelos “heróis” fabricados “carinhosamente” pela Mocidade Portuguesa. Por esse olhar, o “eu narrador” questiona o processo de fabricação em massa dos destemidos guerreiros portugueses durante o Estado Novo. Tal questionamento é elaborado, primeiramente, pela forma dessacralizada com a qual o futuro defensor da causa colonial é confrontado pelo narrador: um “herói que apodrece”, o que anula a própria tentativa de elevar esse cidadão a uma condição transcendente, algo que só existiria na ideologia desse projeto nacionalista. Na verdade, longe dessa idealização improcedente, os indivíduos são percebidos pelo narrador de uma forma mais concreta, se assim se pode dizer, enquanto pessoas de carne e osso, homens que ao falecerem tornar-se-iam “apenas” um “retrato ao lado da televisão”. Em segundo plano, destaca-se a falta de validade de um discurso que se volta para a capacitação de novos valorosos soldados, mas a eles não se atribui o devido crédito, enxergando-os como meros objetos a serviço do Estado. A força subversiva da ironia explorada no trecho em questão potencializa a carga negativa com a qual o narrador desarticula o modo de construção do discurso nacionalista no cenário português, à época do Estado Novo. Nessa perspectiva, é que se descortina o alheamento dos militares na guerra, uma realidade sobre a qual as 234 instituições estatais não “pensariam”, além do desmonte da concepção de herói lusitano projetada por aquela ideologia. Assim, a ironia compreende uma estratégia a partir da qual o narrador manifesta a sua posição acerca dos valores com os quais veio a interagir, utilizando-se do poder destrutivo desse recurso linguístico 148 e da capacidade deste de “desafiar a hierarquia dos próprios ‘locais’ do discurso, uma hierarquia baseada em relações sociais de dominação” (HUTCHEON, 2000, p. 53). A visão dominante surge destronada nessa passagem pelo modo como as vozes sociais evocadas são expostas à hipocrisia dos valores por elas defendidos, a exemplo dos “patriotas da União Nacional” que pensariam no soldado português quando eles estivessem comprando roupas íntimas para as secretárias. A ordem moral defendida por essa voz conservadora é posta em xeque e o que vem à tona é uma voz de comando que determina o que realmente “importaria” nesse contexto. Para além de qualquer princípio ético, o que prevalece nessa sistemática é a lógica do capital, por meio da qual, segundo o narrador, “os homens de negócios pensam em nós [nos soldados] fabricando material de guerra a preço módico”. Além disso, ao mesmo tempo, é estabelecido o valor quantitativo que a perda da vida na guerra representaria, algo calculado pelo Governo a partir do pagamento das “pensões de miséria às mulheres dos soldados”. Nessa passagem, efetiva-se a estratégia de oposição irônica aos discursos com os quais o narrador não concorda. Essa tática, bastante presente no romance em estudo, é construída pela “intimidade da ironia com os discursos dominantes que ela contesta – ela usa sua própria linguagem como o seu dito – é sua força” (HUTCHEON, 2000, p. 54). Tal lógica, já sublinhada em outros momentos desta análise, possibilita o extravasamento irônico perante uma voz que recupera a leitura conservadora, finge uma anuência em relação aos valores apresentados e, nessa medida, refuta o já dito oriundo, nesse caso, do discurso político. O exposto é exemplificado pelo tom de zombaria com o qual o narrador adjetiva o conjunto de “mal agradecidos”, do qual o ex-alferes-médico também fez parte, indivíduos que, “negligentemente”, deixaram vários órfãos em Portugal e não souberam corresponder às apostas feitas pelo Estado, mesmo sendo considerados “alvos de tanto amor”. 148 Entende-se aqui que a “reflexão sobre a ironia leva-nos à compreensão de que, para o estudo da significação, importa tanto aquilo que é construção como o que é processo de autodestruição do sentido. Em outras palavras: a destruição do sentido também é um processo constitutivo da linguagem” (ORLANDI, 1986, p. 67, grifos no original). A capacidade destrutiva da ironia, frente aos sentidos que são subvertidos por ela, compreende uma forma bastante relevante no texto antuniano para promover uma rebelião com o que é considerado norma, uma prática que faz parte da linguagem peculiar que o romance em foco apresenta. 235 Por conseguinte, diante de um universo hostil no qual imperava o silenciamento, a rigidez das ordens militares e a difusão de pensamentos que não encontravam sustentação no caos experienciado, a voz narrativa realiza uma atitude contestadora da ideologia que ousara justificar a dinâmica colonial. A compulsão por desmontar o conjunto de discursos fomentadores de uma leitura mais regrada da vida, mais séria, por assim dizer, correlaciona-se com um cenário no qual a morte tornou-se algo comum, o protocolo religioso compreendia um elemento dissonante e a defesa de um interesse nacional converteu-se em uma vantagem apenas para um grupo muito específico. No panorama em que os elementos surgem deslocados, até mesmo, o “eu” percebe-se desconexo, alheio aos demais e incapaz de sentir qualquer prazer. Nessa circunstância, o narrador recorre à via irônica, encontrando nesse mecanismo discursivo o meio para que a sua voz possa, enfim, ser contraposta às demais visões, democratizando o dito tão cerceado pela postura opressiva que se fez bastante presente na sociedade portuguesa. Por essa senda, o narrador edifica um modo diferenciado de olhar para o contexto no qual está inserido e dessa atitude rompe um humor, o qual não poderia deixar de ser, controverso, áspero, essencialmente, ácido, disposto a corroer os discursos mais tradicionais. Em síntese, a comicidade é estimulada no texto, mas ela compreende mais um elemento desarmônico nesse processo, um mote para que seja possível enfrentar o sofrimento experienciado. Por esse motivo, a gargalhada que salta nesse ambiente de profunda agonia não é alegre, pois é originária de uma situação tortuosa, mais especificamente, do tempo em que se buscou a sobrevivência na guerra, conforme o próprio protagonista esclarece: vinte e cinco intermináveis meses dolorosos e ridículos nas tripas, de tal jeito ridículos que, por vezes, à noite, no jango 149 de Marimba, desatávamos de súbito a rir, na cara uns dos outros, gargalhadas impossíveis de estancar, observávamos as feições uns dos outros e a troça escorria-nos em lágrimas de piedade, e de escárnio, e de raiva, pelas bochechas magras (ANTUNES, 2010, p. 172, grifos nossos). O riso dos soldados advém da “contemplação” do caos e da vivência contínua nessa confusão, sugerindo a tragicidade inerente a uma experiência de guerra da qual não se vislumbra uma saída possível. Dessa maneira, o riso torna-se uma das respostas 149 Tipo de construção realizada de forma rápida que não apresenta paredes, geralmente, é circular e coberta por vários caules de plantas, usada para abrigo ou como ponto de encontro. 236 passíveis, ativada pelo narrador, de serem expressas frente à dor vivida, à desumanização experienciada e à falta de sentido dos discursos patrióticos que tentavam justificar tal situação. O sofrimento compilado em “vinte e cinco intermináveis meses dolorosos” encontra nesse humor violento e na irradiação irônica manifesta pelo “eu” uma forma de expressão, talvez a única possível para o enfrentamento desse tipo de realidade. A ironia torna-se a forma mais encontrada para expressar o incongruente, o ininteligível e, a partir disso, insuflar certo humor, o qual se converte em uma forma de suportar o vivido e, assim, resistir. A resistência faz-se necessária em um ambiente que impulsiona as mais diversas transformações no sujeito que, ironicamente, converteu o espaço bélico em um cenário educativo. Enfim, partiu-se do “mundo diminuto” ao qual o “eu” estava relegado para compor nessa empreitada uma “reaprendizagem” de si e do “outro”, com toda a complexidade que tal situação envolve. Adentra-se, assim, nas metamorfoses do “eu”, que passa a ser visto a partir de um novo redimensionamento do olhar, imerso em uma dualidade que explora tanto a selvageria inerente ao conflito colonial quanto a matriz intelectual suscitada pelo “eu narrador” em uma relação singular, característica do universo dialógico de Os Cus de Judas. 237 5. AS METAMORFOSES VIVENCIADAS NA DUALIDADE PECULIAR DE UM MUNDO INCONGRUENTE há derrotas, percebe, que a gente sempre pode transformar, pelo menos, em vitoriosas calamidades. António Lobo Antunes, Os Cus de Judas. O entendimento acerca do processo de transformação, de mudança e do próprio “crescimento” do protagonista da trama em análise não se trata de algo incomum nem de um aspecto que provoque estranhamento frente ao acompanhamento realizado até esta altura da trajetória sinuosa de sua “aprendizagem da agonia”. Na verdade, tais alterações já seriam esperadas, resultantes do homem em formação que o projeto da Família, do Estado e da Igreja desejava ver concretizado. Contudo, longe da identidade pretendida no projeto aludido, o “eu narrador” encontra-se envolto em uma série de mudanças que promovem antes o desmonte do “eu”, fragmentando-o, que a configuração de uma personalidade una e definida de uma vez por todas. A interpretação suscitada encontra sua razão de ser quando são observadas as metamorfoses sofridas pelo narrador-personagem, algo que compõe tanto a reminiscência do momento traumático experienciado nas terras angolanas quanto as reflexões daquele que vivencia um presente desanimador. Inicialmente, não se pode perder de vista a compreensão de que o significado do vocábulo “metamorfose” remonta à ideia da transformação de um ser em outro, uma mudança de forma, uma espécie de transfiguração. Com as devidas ressalvas, é possível afirmar que essa transformação ocorreria na reaprendizagem de si empreendida pelo “eu narrador”, o qual, em certos momentos, não se reconhece na “paródia triste” (ANTUNES, 2010, p. 187) do que um dia foi, enxergando-se “outro” nesse processo150. Tal situação concentra-se, no caso estudado, em um plano simbólico, metafórico no tocante às diversas vias de transmutação atravessadas pelo narrador durante seu percurso de desenvolvimento. Essa leitura não seria incomum, uma vez que “pode-se dizer que quase todas as personagens importantes da literatura sofrem um certo grau de metamorfose no decorrer da ação em que desempenham seu papel” (SHAW, 1982, p. 296). 150 A presença da questão da metamorfose no escopo literário estende-se desde a linhagem helênica de Ovídio até a tradição dos contos de fadas, de tal modo que dada a amplitude do tema exceder-se-ia este estudo caso pretendesse mencionar obras que apresentem tal temática. Assim, longe de se pretender o exame do conceito em si, focaliza-se sua presença no texto em questão de Lobo Antunes. 238 Dessa forma, para compreender o “grau de metamorfose” sofrido pelo ex- combatente em seu processo de crescimento, é necessário ratificar a compreensão de que o contato que o sujeito possui com o mundo que o rodeia é mediado por uma série de discursos, os quais acabam fazendo parte da sua própria constituição. Em outras palavras, se se entende que a identidade, enquanto processo, “está ligada a estruturas discursivas e narrativas” (SILVA, 2000, p. 96-97) que fazem parte desse diálogo do indivíduo com o meio ideológico que o cerca, é possível afirmar que perpassa na composição daquele ser uma relação constante entre o “eu” e o “outro” 151. Em síntese, a proposição básica defendida aqui focaliza a imprescindibilidade de se levar em consideração o papel crítico que o “outro” exerce sobre o “eu”, já que, tomando de empréstimo as afirmações de Bakhtin, “o homem tem uma necessidade estética absoluta do outro, do seu ativismo que vê, lembra-se, reúne e unifica, que é o único capaz de criar para ele uma personalidade externamente acabada; tal personalidade não existe se o outro não a cria” (2010, p. 33). O “outro” assume na narrativa em estudo uma diversidade de formas, de tonalidades que, de modo conjunto, concorrem para que o “eu” possa refletir melhor sobre si mesmo. Por essa via, a dinâmica “eu” e o “outro” faz parte da construção das metamorfoses alvos da análise a partir deste momento. Dito de outra forma, a recorrente condição de duplicidade evocada pelo narrador-personagem potencializa o universo em mutação que se faz perceptível na trama. Nesse universo, o “outro”, em dados momentos, compreende uma espécie de outra versão do “eu”, o “outro de si”, cujo surgimento ocorre mediante o transcurso da atividade memorial. Em tal processo, ora o sujeito que enuncia vivifica o “outro” do passado, o qual auxilia na tentativa de entender o que aconteceu para que o resultado fosse a imagem do ex-combatente no presente; ora o “eu” assume uma “nova” roupagem ao simbolizar a experiência vivida na guerra e para além dela a partir, inclusive, da relação significativa com um “outro animalesco”. As múltiplas facetas do “eu”, com as quais o sujeito, por vezes, não se identifica, fazem parte da dinâmica de alguém que se transmuta em “vários” no decorrer de uma existência que se configura, ao final, como fragmentada e, por esse motivo, múltipla. 151 É válido salientar aqui o devido reconhecimento da relevância dos estudos de cariz psicológico no tocante ao tratamento da questão do “eu dividido”, da presença de um “outro” na constituição de si e do próprio estilhaçamento do “eu”. No entanto, a fim de não se desviar do propósito desta pesquisa, tais leituras não foram alvos desta análise, muito embora não seja inusitado na crítica literária relacionada ao texto antuniano a presença de tais referências, a exemplo, das análises de Sérgio Guimarães de Sousa (2015) que se refere a Lacan ao focalizar, na prosa de Lobo Antunes, “a deslocação do sujeito de si mesmo” (2015, p. 37). 239 Sem a presença do “outro”, o sujeito não consegue construir uma visão mais completa de si, no entanto isso não significa dizer que aquele não seja assimétrico em relação a este, compondo um complemento entre “outros” da multifacetada personalidade do indivíduo. Seguindo essa leitura, as primeiras concepções acerca de quem seria esse “outro” que faria parte da formulação do próprio “eu”, para fazer uso das considerações de Sérgio Guimarães de Sousa (2015) no estudo da obra antuniana, sugerem que aquele tanto pode ser um outro incompreensível dentro de nós mesmos, uma espécie de substância enigmática que as convenções sociodiscursivas reprimem, como pode mais não ser do que o outro do passado (em geral, o da infância), que em nós perdura apesar do avançar dos anos (SOUSA, 2015, p. 27). Além disso, o “outro” assume na prosa em estudo diversas possibilidades de manifestação concentradas na relação a ser tecida com o que parece ser visto, à primeira vista, pelo narrador como o diferente, como o elemento que põe em xeque, em dadas circunstâncias, a percepção do “eu” sobre a presença da alteridade nessa sistemática. Primeiramente, sobrevém o “outro feminino” diante da tentativa de cumplicidade com o sexo oposto, citado neste momento a partir da figura da ouvinte misteriosa, a qual complementa o momento da enunciação e com a qual o “eu” busca uma integração, ao menos, pela via carnal. Em seguida, é destacado o olhar de estranhamento desferido pelo narrador sobre o “outro” colonizado, uma visão que, aos poucos, sofre uma alteração, convertendo-se em uma perspectiva que percebe mais semelhanças, em dada medida, que diferenças na vivência conjunta desenvolvida entre os pares referidos no cenário colonial. A partir das interações construídas, o “eu narrador” acaba percebendo- se como alguém distinto após esse processo. A reanálise de si mencionada, a qual envolve a presença dos muitos “outros” citados anteriormente, pode ser entendida de acordo com o que Seixo (2002) – no estudo de Os Cus de Judas – denomina de “declinação”, em que esta “é, neste caso, uma espécie de queda real em si mesmo, assim como na terra onde se encontra, que, não sendo a sua, e afundando-a ele também, acaba por alterá-lo, torná-lo outro” (SEIXO, 2002, p. 49). Nesse sentido, o acompanhamento das metamorfoses pelas quais o “eu” passa em seu processo de “aprendizagem do mundo” envolve uma relação com esses vários “outros” citados anteriormente, uma relação que culminaria com a percepção do quão 240 diverso resultaria o “eu”, distante, por exemplo, da personalidade imaginada pela “Trindade” (Família, Estado e Igreja) observada antes. Por essa leitura, as transformações vividas por esse ex-combatente poderiam ser sintetizadas pela análise de Norberto do Vale Cardoso sobre o romance em questão, em que tal autor apresenta “uma experiência de construção do ‘outro’ e do ‘outro de si’” (CARDOSO, 2016, p. 104). Assim, o reconhecimento de um cenário dual em muitos aspectos na obra de Lobo Antunes torna-se o ponto de partida para que seja possível compreender, primeiramente, as mutações decorrentes do próprio movimento cronológico da vida. Nessa dinâmica, o sujeito está inserido em uma confrontação com vários “outros” nesse processo, o que vem a ser potencializado, na análise, pela presença do espelho. Este, como um dos motivos literários da narrativa, possibilita uma reflexão sobre as imagens dos indivíduos que, transformados nesse decurso, surgem deformados pelo tempo, pela guerra, pela melancolia característica do olhar daquele que “filtra” tais visões e as condensa no tecido narrado. Em um segundo momento de análise, amplia-se tal cenário e atinge-se com mais intensidade o período da guerra, provocando uma metamorfose no narrador que daria origem a um “outro” que, diverso da experiência anterior, seria o resultado da tragédia vivenciada durante o conflito em Angola: o “outro animalesco”. Por último, entrelaçado ao universo dual que a trama apresenta, sobrevém o questionamento de como coexiste na narração do “eu” um vasto repertório cultural que vem à tona em um cenário permeado pelas lembranças da atrocidade da batalha, em um contexto no qual predomina a selvageria. Tal aspecto faz parte dessa complexa “aprendizagem” desenvolvida pelo “eu”, o qual, por esse liame, torna-se fragmentado, disforme, complexo, múltiplo e, assim, “outro”. 5.1. A presença do “outro” nos diálogos constitutivos do “eu” A fim de elaborar a base inicial das mutações sofridas pelo “eu”, é lícito resgatar o que já fora comentado em outro momento deste estudo quanto à encruzilhada temporal que configura o romance. Dos aspectos já observados, é necessário recuperar o processo de elaboração da identidade do “eu narrado” a partir do momento da enunciação, algo que, aludindo a uma conceituação de Bakhtin (2015, p. 138), poderia ser qualificado como uma “dupla acentuação”. Em outras palavras, o perfil do 241 protagonista seria construído por meio de um duplo ponto de vista sobre os momentos narrados, já que ressoaria no presente a impressão do “eu” no momento em que viveu dado episódio, mas, ao mesmo tempo, tal contexto é exposto a uma ininterrupta avaliação daquele que recorda o que já foi vivido. A posição em que se encontra o “eu narrador” confere-lhe a possibilidade de julgar as situações experienciadas pelo “eu narrado” a partir de um conhecimento que apenas aquele que retornou da guerra já teria alcançado. Isto é, o lugar no mundo no qual se localiza o “eu enunciador” e como este se encontra situado em relação às circunstâncias vivenciadas, principalmente, no tocante aos acontecimentos relevantes da história portuguesa no final do século XX, fazem com que a voz narrativa detenha um “excedente de visão” (lembrando as teorizações de BAKHTIN, 2010, p. 11, grifo no original) sobre os eventos ocorridos em relação ao “eu narrado”. O excedente consiste, assim, em um excesso de visão que o sujeito narrador possui de si no passado, permitindo-lhe enxergar a sua realidade e os valores ali repercutidos quando ainda estava em crescimento (algo que o indivíduo em desenvolvimento não teria captado), dado que já possuía uma compreensão mais alargada dessa trajetória até chegar ao presente em que se encontrava. Dessa maneira, a análise que o “eu” edifica sobre si realiza-se pelo fracionamento desse indivíduo em um “outro” – “o outro de si”. O olhar sobre esse “outro” é gerido a partir do “excedente de visão” de que usufrui o “eu narrador”, um excedente que, segundo Bakhtin, só funcionaria quando o “eu” assume que deve “ver axiologicamente o mundo de dentro dele [outro] tal qual ele o vê, colocar-me no lugar dele e, depois de ter retornado ao meu lugar, completar o horizonte dele com o excedente de visão que desse meu lugar se descortina fora dele” (BAKHTIN, 2010, p. 23). Dito de outra forma, o “eu enunciador” sente a “necessidade de tornar-se outro em relação a si mesmo, para ver-nos [vê-se] a nós [si] mesmos através dos olhos do outro e, na sequência, ‘voltar’ a nós mesmos [si mesmo]” (RENFREW, 2017, p. 65). Em resumo, o “eu narrado” é situado em uma relação de exterioridade na perspectiva daquele que relata seu percurso de vida, compondo, nesse enfrentamento do passado, do próprio “outro”, sua identidade, uma versão de si atualizada de acordo com as transformações que vivenciou. De uma maneira mais superficial, a consciência da metamorfose vem à tona perante a irrevogável passagem do tempo. Este provoca a imagem do sujeito dividido entre épocas, entre lembranças, em alguns momentos, entre o “ser adulto” e o “ser infante”, entre o sujeito que relembra e aquele que é, nessa sistemática, relembrado, 242 chegando ao presente para se enxergar, ao final, como um indivíduo fracionado, que vê a si mesmo como um “outro”, fruto do inflexível avançar dos anos, com o qual não consegue se identificar: e envelheço sem graça num andar demasiado grande para mim, observando à noite, da secretária vazia, as palpitações do rio, através da varanda fechada cujo vidro me devolve o reflexo de um homem imóvel, de queixo nas mãos, em que me recuso a reconhecer-me, e que teima em fitar-me numa obstinação resignada (ANTUNES, 2010, p. 59-60, grifos nossos). Mais uma vez sob o signo do apequenamento do “eu”, o qual se sente diminuído, até mesmo, pelo espaço que atua como um elemento amplificador da sua solidão e da sua fraqueza, a degradação motivada pelo transcurso temporal reforça uma condição de derrota, de perda de referência, enfim, de negação daquilo que não se deseja ser: um reflexo de uma desditosa vivência. O olhar sobre o envelhecimento do ex-alferes possibilita que haja “a consideração do ‘outro’, um ‘outro’ que se faz o mesmo e um eu que se muda num ‘outro’” (CARDOSO, 2016, p. 97). É a si que a personagem principal enxerga, no entanto, nesse olhar, só se consegue apreender uma sombra de si mesmo, isto é, só se obtém uma imagem reversa daquilo que, porventura, desejava-se ver representado, conforme o próprio “eu narrador” declara: “Afasto-me dos retratos do ano passado como um barco do cais, e parece-me às vezes assemelhar- me a uma esquisita caricatura de mim próprio, que as rugas deformam de um arremedo de trejeitos” (ANTUNES, 2010, p. 186). O estranhamento diante da forma apresentada advém, além disso, do encontro com uma face “oculta” do “eu”, algo obscurecido pelo desejo do indivíduo de não se confrontar com a finitude de sua existência. Assalta ao sujeito a impressão de ser irreconciliável a ligação entre o ser que aspira à vida, mesmo já tendo vivido entre tantas mortes, e a consciência de um último desmonte, dessa vez, de seu próprio corpo. A antevisão do término da viagem, simbolizada metaforicamente na passagem anterior do romance pela chegada do “barco ao cais”, se caracteriza um momento a ser adiado pelo sujeito, ao mesmo tempo, pode significar também uma abertura para o autoconhecimento, para uma mudança condicionada pela realidade com a qual o “eu” agora se defronta. Nessa situação, aflora o “despertencimento” da pessoa em relação a si mesma, o que é marcado no trecho a seguir pela transferência do desgaste sofrido pelo ser para o objeto que traz à luz tal realidade, a exemplo do que ocorre no romance O 243 Esplendor de Portugal 152, encaminhando a percepção sobre um “outro” que, inicialmente, negado, aos poucos, passaria a ser tido como símbolo de uma existência mutável, sendo, por isso, símbolo de outro tempo: Quando à noite me sento ao toucador para tirar a maquiagem pergunto-me se fui eu que envelheci ou foi o espelho do quarto. Deve ter sido o espelho: estes olhos deixaram de me pertencer, esta cara não é a minha, estas rugas e estas nódoas na pele serão manchas da idade ou o ácido do estanho a corroer o vidro? (ANTUNES, 1999, p. 48). A leitura construída anteriormente é reforçada também pela compreensão de que “a esquisita caricatura de si” faria parte do “eu”, propiciando que ele edifique seu lugar de fala próximo da composição de um ser enlutado em ruínas, cuja formação a passagem do tempo intensifica, ou ainda, próximo da construção de um entendimento mais plural acerca de quem se é. Uma vez explicitado de outra maneira, o que se defende é que a descoberta do “outro” implica, sobretudo, no afastamento de uma visão engessada sobre a identidade do sujeito, o qual muda, já que isso faz parte da dinâmica da vida, do “processo contínuo e aberto da constituição do eu em diálogo com o outro e seu(s) contexto(s) mútuo(s)” (RENFREW, 2017, p. 67). Tal vida surge, assim, moldada entre “o sonho e a vigília, a razão e a loucura, o presente e o passado revivido” (BRAVO, 2005, p. 275). Nessa senda, os pares que fazem parte da composição binária que aqui vem sendo tecida emergem como facetas de uma personalidade mutável, inerentes à composição de “um homem para mais tarde” 153: Esta espécie de jazigo onde moro, assim vazio e hirto, oferece-me aliás uma sensação de provisório, de efémero, de intervalo, que, entre parêntesis, me encanta: posso ainda considerar-me um homem para mais tarde, e adiar indefinidamente o presente até apodrecer sem nunca haver amadurecido (ANTUNES, 2010, p. 127, grifos nossos). Nesse sentido, reitera-se uma questão analisada anteriormente quanto ao desmoronamento das imagens e dos discursos autoritários que circundam a voz narrativa diante de um cenário no qual predomina um continuum, a sensação recorrente 152 É válido salientar, nesta altura, que a observação da presença do “outro” no texto antuniano não se restringe, de forma alguma, ao romance aqui estudado, traduzindo-se, muitas vezes, como um índice da fragmentação que as personagens presentes nas narrativas do autor apresentam. 153 Passagem análoga ao trecho recortado está presente na crônica, mencionada anteriormente, “O passado é um país estrangeiro”. Na prosa citada, o “eu” acha-se, igualmente, fragmentado por suas memórias, pelos “episódios desfocados que regressam” (ANTUNES, 2006, p. 282), culminando, enfim, na “certeza mais ou menos trémula de ser ainda um homem para mais tarde” (ANTUNES, 2006, p. 282). 244 de algo em construção, imerso no “provisório”, na efemeridade da vida. Dentro desse contexto, não seria incomum que, tal qual o narrador da crônica “O passado é um país estrangeiro”, o ex-combatente assim justificasse sua constante transformação: “porque sou outro sempre” (ANTUNES, 2006, p. 282) 154. Afinal, é na fragmentação do “eu” coexistente, por exemplo, no (não) reconhecimento da presença do “outro” dentro de si que se evidencia, por outro viés, a inexistência de uma entidade estável, de uma configuração absoluta para o sujeito. Este, “um homem para mais tarde”, elabora-se a cada encontro com o “outro”, de maneira que a sensação de apagamento de si passível de ser percebida nesse embate, de acordo com as análises de Sérgio Guimarães de Sousa no estudo dessa questão na obra antuniana, “constitui o reverso de uma acentuada presença (porque plural): a de todos aqueles que o habitam” (SOUSA, 2015, p. 38). As múltiplas vozes comentadas em outro momento deste estudo assumem, a partir deste ponto da análise, outra tonalidade na medida em que passam a ser tidas como elementos representantes da duplicidade presente na narrativa em foco. Por conseguinte, destaca-se o desejo de entender de que forma no texto de Lobo Antunes se constata a presença de vários “outros” implicados na composição da identidade de um “eu” intimamente dividido. O intuito de tal leitura reside não só na verificação das metamorfoses ocorridas que surgem como resultados desse processo, mas também na percepção mais apurada do fracionamento do sujeito que, saindo de uma condição de natureza mais intimista, por exemplo, do olhar construído sobre a velhice presente na narrativa, atinge, como se verá, o universo social do qual tal indivíduo, de alguma forma, faz parte. Nessa medida, compõe-se, por exemplo, o que é intitulado aqui de uma “dualidade enigmática”, formada pela relação tecida em uma “noite sem fim, espessa, densa, desesperante, desprovida de refúgios e saídas, um labirinto de angústia” (ANTUNES, 2010, p. 137) entre o “eu narrador” e a sua ouvinte misteriosa. Esta se caracteriza como um “outro” no qual ressoam os dramas narrados por alguém perdido em suas memórias, em seu devaneio que o álcool intensifica. A remissão ao ser fictício da mulher misteriosa do bar ressurge aqui com o intuito de que seja explorada a sua composição enquanto um “outro” na interação com o “eu”. Com essa mulher anônima, o narrador divide o seu relato diante de um “outro” silenciado, almejando dilatar as 154 Para exemplificar estudos nos quais o olhar sobre o “eu” e suas várias facetas é realizado em algumas crônicas de Lobo Antunes, indica-se o texto “Eu, às vezes – As labirínticas complexidades da alma”, de Paula Morão (2011). 245 proporções desse encontro, algo que simboliza, em outras palavras, um encontro consigo próprio pela análise à qual a voz narrativa se expõe sobre o passado vivido. Para esclarecer tal interpretação, é necessário tornar mais clara a leitura de como seria edificado tal esforço por ampliar as dimensões desse encontro, experienciado pelo sujeito frente à impassível figura feminina que o acompanha em uma travessia “noite adentro”, o que se relaciona, inicialmente, com uma disputa, um jogo de forças na trama. O exposto adquire substância perante a posição de poder que o “eu”/homem deteria diante de uma mulher desconhecida, a qual, embora não possuindo uma voz mais efetiva na trama, parece colaborar, ainda mais, para a sensação de apequenamento nutrida pela personagem masculina, inclusive, frente ao sexo oposto, situação outrora já abordada neste estudo. Assim, o anseio pelo encontro acaba sendo traduzido, primeiramente, por um discurso que procura tecer semelhanças entre o “eu” e o “outro”, mesmo que se tenha ciência da indiferença manifesta pelo ser feminino com quem se vê condenado a uma noite interminável, unidos por uma “cumplicidade de tuberculosos num sanatório” (ANTUNES, 2010, p. 138). Nesse movimento, busca-se uma afinidade com a dama misteriosa, até mesmo, pelo álcool, isto é, a embriaguez surge como elemento integrador entre dois indivíduos que partilhariam de um desengano comum, de uma solidão, enfim, de um abandono que principia, por exemplo, entre corpos que, ao “eu narrador”, parecem idênticos: “Se nos observarmos bem, aliás, podemos principiar a entrever já o perfil dos nossos ossos, que as vírgulas das olheiras e o acento circunflexo da boca disfarçam de sorrisos melancólicos de que pendem restos murchos de ironia” (ANTUNES, 2010, p. 47). Outro aspecto envolvido nessa dinâmica corresponde à reiterada necessidade demonstrada pelo “eu” de ser ouvido, algo que no oitavo capítulo do romance torna-se bastante evidente. Nesse segmento, cada parágrafo é introduzido pela presença do verbo “escutar” no modo imperativo. Essa escolha vocabular, longe de sugerir um exercício de poder apresentado pelo homem em questão em relação a uma mulher em um contexto de flerte, na verdade, diz respeito a uma súplica desesperada de alguém que procura um último recurso para o seu desalento: “Escute. Olhe para mim e escute, preciso tanto que me escute, me escute com a mesma atenção ansiosa com que nós ouvíamos os apelos do rádio da coluna debaixo de fogo” (ANTUNES, 2010, p. 61). Por fim, destaca-se o anseio pela comunhão com o “outro” por meio de uma experiência sexual, o meio restante para que se promova o encontro citado. A metáfora construída por meio da referência à relação carnal entre o homem e a mulher, nesse 246 caso, simbolizaria a possibilidade de regeneração desse “eu” dilacerado, fragmentado entre várias instâncias, vários “outros”. Contudo, tal possibilidade figura como uma utopia não concretizada, pois, ao final da experiência, permanece o vazio, persistindo, quando muito, a consciência de uma “esperança envergonhada” 155 (ANTUNES, 2010, p. 182) frente ao desejo externado anteriormente: Espere mais um pouco, deixe-me abraçá-la devagar, sentir o latir das suas veias no meu ventre, o crescer de onda do desejo que se nos espalha pela pele e canta, as pernas que pedalam nos lençóis, ansiosas, à espera [...] e tome-me dentro de você quando do redondo das minhas pupilas espantadas, enodoadas da vontade de si de que sou feito agora (ANTUNES, 2010, p. 166-167). Enfim, o encontro com o “outro” feminino atua como um elemento intensificador do isolamento sentido pelo ex-combatente, amplificando a sua leitura do quanto se vê destoante de um universo no qual pouco consegue acomodar-se. O olhar do “outro” sobre si auxilia na composição da imagem da “angústia carregada de ódio de homem só, com o peso insuportável da própria morte no dorso” (ANTUNES, 2010, p. 150), da qual o “eu” se aproxima. Em outras palavras, a tentativa de edificar uma conexão, mesmo que pela via sexual, com essa mulher enigmática e a dificuldade em alcançar esse intento intensificam a sensação do indivíduo como um ser deslocado, alguém que sente uma vontade confessa de travestir-se, de completar, enfim, sua metamorfose: Quereria desesperadamente ser outro, sabe, alguém que se pudesse amar sem vergonha e de que os meus irmãos se orgulhassem, de que eu próprio me orgulhasse ao observar no espelho da barbearia ou do alfaiate o sorriso contente, o cabelo loiro, as costas direitas, os músculos óbvios sob a roupa, o sentido de humor à prova de bala e a inteligência prática. Irrita-me este invólucro inábil e feio que é o meu (ANTUNES, 2010, p. 170, grifos nossos). A consciência de ser alguém dividido entre a expectativa tecida sobre si e o “invólucro inábil e feio” que o representa, como um resultado de sua experiência fatídica, compõe a imagem do vencido. Isto é, a compreensão da ruptura com o estereótipo do herói (versão organizada pelo discurso familiar), sobre o qual repousa o 155 O “eu narrador” utiliza tal expressão para simbolizar o falo, o que reforça o aspecto comentado anteriormente no que diz respeito à negação de um perfil de hombridade, de masculinidade, um tipo erigido pela sociedade e repercutido por variados tipos de discurso. 247 orgulho e a aceitação dos demais, auxilia no reforço de uma condição degradada para a qual converge uma ruína moral e física. Desse modo, no paralelo erguido pelo “eu”, vem à tona, por um lado, a imagem de um “homenzinho derrotado” (ANTUNES, 2010, p. 171), enquanto, por outro lado, surge, o “outro”, marcado por uma personalidade convincente, alvo de apreço, que exala um perfil altivo, com um “sorriso contente, o cabelo loiro, as costas direitas, os músculos óbvios sob a roupa” (ANTUNES, 2010, p. 170), no qual o “eu narrador” gostaria de se enxergar. Nessa lógica, ao imaginar um novo perfil para si a partir de um ontem já distante, simbolizado na passagem recortada pelo uso do verbo “quereria”, o narrador parece realizar o que se denomina aqui de um “inventário de si”. Por esse “levantamento”, o sujeito focaliza os saldos de um processo de aprendizagem que se imbrica, profundamente, tanto ao universo de relações travadas nas dualidades recorrentes na trama, vistas aqui durante este momento de análise, quanto às transformações causadas no “eu”, as quais são consequências dessa conjuntura dual. É válido reiterar que as conclusões a que chegou o protagonista e as mudanças de que foi alvo, em suma, dependiam de seu vínculo com esse “outro” que se transmutou em muitos, permitindo um autoconhecimento daquele que se fez capaz de reconhecer seus medos e suas limitações. Em resumo, relembrando as considerações de Bakhtin sobre as relações intersubjetivas que fazem parte da constituição dos indivíduos, o que se percebe é que “espreitamos tensa e permanentemente, captamos os reflexos da nossa vida no plano da consciência dos outros” (BAKHTIN, 2010, p. 14). Saindo de uma perspectiva mais intimista, a condição de dualidade alastra-se a ponto de abarcar o universo social no qual está inserido o ex-alferes-médico, partindo esse cenário, de forma constante, entre dois planos de visão. Uma das formas de configuração desses planos, já delineada neste estudo, corresponde ao par colonizador versus colonizado, fruto da experiência colonial que não só tornou nítida a separação construída entre dois agrupamentos sociais, mas também serviu para trazer à tona os discursos elaborados sobre dois espaços dissonantes: a metrópole e a colônia, Portugal e Angola. Não obstante, seguindo os mesmos passos trilhados aqui em relação ao modo como decorre, muitas vezes, esse contato com o “outro”, a oposição inicial e o estranhamento tornam-se vias de aprendizagem para o “eu” que acaba tecendo uma linha de contiguidade com aquilo que outrora imaginava distanciado. Há uma aproximação seja de um espaço hostil, seja daquele que padecia de uma mesma situação de aprisionamento que o narrador, provocando, segundo as leituras de Maria Alzira 248 Seixo sobre o romance em estudo, uma “alteração profunda sofrida pelo jovem que atravessou a guerra, viajou pela alteridade do lugar, do tempo e de si próprio” (SEIXO, 2002, p. 43). “Quem veio aqui não consegue voltar o mesmo” (ANTUNES, 2010, p. 124), afirmava o narrador sobre a vivência em África, expressando uma visão consciente das transformações oriundas da ida às “Terras do Fim do Mundo, a dois mil quilômetros de Luanda” (ANTUNES, 2010, p. 39). O medo da morte, a sobrevivência em “quimbos156 cercados de arame farpado em torno dos pré-fabricados dos quartéis, o silêncio de cemitério dos refeitórios, casernas de zinco a apodrecer devagar” (ANTUNES, 2010, p. 39) moldou o início da “dolorosa aprendizagem da agonia” (ANTUNES, 2010, p. 39). A viagem empreendida pelo ex-combatente substanciou não só o contato com o “outro” em suas variadas formas, mas também fortaleceu o entendimento de que a identidade, conforme vem sendo comentado, não passa de uma elaboração. A compreensão aludida respalda-se na concepção de que a viagem “é tomada como metáfora do caráter necessariamente móvel da identidade” (SILVA, 2000, p. 88), pois o deslocamento possibilita a quem viaja perceber-se como um forasteiro, alguém estranho ao espaço em que se encontra e, nessa medida, implica a sensação de estar também, mesmo que de forma passageira, na condição de um “outro”. A identificação, em certa medida, com a situação do “outro colonizado” permite pôr em causa instâncias que, no caso do discurso colonial, seriam vistas como naturalizadas, demarcadas pelo antagonismo elaborado entre a identidade e a diferença (de acordo com SILVA, 2000, p. 76). Estas, na verdade, surgem como produções socioculturais edificadas pela linguagem do pensamento imperialista, sendo exploradas na configuração do “outro-para-mim”. Nessa relação, o “outro” nativo da terra africana não deixa de ser percebido pelo narrador a partir da posição que este ocupa, do seu “horizonte ideológico” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 60) enquanto filho da metrópole portuguesa, da mesma forma que o colonizado, tendo em vista também o seu grupo social, enxerga o soldado em questão dentro do contexto de valores que perfaziam a lógica colonial. No entanto, é justamente nessa relação que o “eu”, conforme destacado no capítulo anterior, reconhece o “outro” e, assim, passa a conhecer mais sobre si mesmo, questionando, para fazer uso das considerações de Seixo sobre a obra em foco, 156 O vocábulo em quimbundo diz respeito a uma pequena povoação, aldeia. 249 “fundamentalmente os lugares da guerra, os lugares do colonizado e do colonizador” (2002, p. 68). Destarte, a questão da duplicidade retorna, como não poderia deixar de ser no livro sobre o qual o próprio autor afirmou ser “um livro binário, com aquele jogo entre mulher-guerra…”157 e atinge outras nuances a serem observadas a partir deste momento. Antes disso, é necessário deixar claro que não interessa aqui recair em uma repetição de aspectos já comentados no tratamento da questão colonizador versus colonizado. No entanto, foi relevante mencionar, neste espaço, tais instâncias duais como uma forma de não perder de vista os resultados da vivência no conflito armado, os quais fazem parte da composição narrativa, erguida, como visto, basicamente entre dois planos: Lisboa e África, o presente e o passado, a infância mítica e a juventude desenganada, o conforto amoroso e a solidão singularizante, quase sempre numa ordem de intercalação binária, embora alternando em combinatórias complexificadas e em irradiações recíprocas de fulgor ou pesadelo (SEIXO, 2002, p. 39). Por conseguinte, na conjuntura do romance de Lobo Antunes, “o eu se diz, diz o outro e se diz o outro” (BRAIT, 1999, p. 91) no interior das diversas relações que o sujeito tece, seja pelo espelho figurativo em que o olhar do “outro” é convertido, já que a partir deste o “eu” enxerga a si mesmo; seja pela superfície especular, cuja forma varia no romance, em que a partir de tal objeto, associado à passagem do tempo, o indivíduo vê-se deformado. Com efeito, antes de adentrar na principal metamorfose do narrador- personagem, é necessário focalizar as múltiplas nuances que envolvem o que o ex- combatente denominou de um “jogo de espelhos sem fim” (ANTUNES, 2010, p. 128), construído, por exemplo, no espaço mais reservado do apartamento do protagonista. Assim, as imagens produzidas pelos espelhos e suas variantes na narrativa produzem uma leitura complexa desse indivíduo, o qual surge esfacelado, dividido, em certa medida, inidentificável na relação singular entre o “eu” que se mira no espelho e aquele que lhe figura como um reflexo. 5.1.1. Os múltiplos reflexos do espelho deformante do “eu” 157 Em entrevista concedida à revista Ler. A referência completa encontra-se no final desta tese. 250 Excessivamente repetida na trama, a superfície especular foi utilizada como um instrumento de reflexão pelo narrador, pois permitia a ele a confrontação com uma imagem que lhe instigava uma sensação de estranhamento, ao mesmo tempo em que atuava como uma instância reveladora não só do “outro”, tantas vezes repelido nesse ensejo, mas também do próprio movimento de transformação no qual, de alguma forma, o sujeito estava inserido. Não à toa, a circunstância que põe em cena o desejo de ser “alguém que se pudesse amar sem vergonha” (ANTUNES, 2010, p. 170) e a constatação de não corresponder a esse plano é revelada, justamente, quando ocorre a decepção frente ao “espelho da barbearia ou do alfaiate” (ANTUNES, 2010, p. 170). Como parece ter sido uma tônica também desta análise, as observações sobre a simbologia do espelho na prosa em questão são orientadas a partir de um duplo viés. Este é edificado ora pela defesa de que o objeto referido age como instância ampliadora da ambivalência na trama, ora pela visão de que a presença do espelho possibilita que o olhar sobre o “eu” resulte em uma imagem múltipla. Inicialmente, o reflexo projetado evidencia a metamorfose, já que “o espelho é a miragem solar das manifestações; ele simboliza a sucessão de formas, a duração limitada e sempre mutável dos seres” (CHEVALIER & GHEERBRANDT, 1989, p. 394). Essa situação torna-se perceptível, consoante com o que já foi citado no início deste capítulo, perante a verificação da passagem do tempo por alguém que vê no seu corpo aquilo que sua mente já determinava: o sentimento de desistência, de apequenamento frente à força inevitável do tempo. O próprio “eu” constata o resultado de sua mudança: “olhando no espelho o meu rosto que irremediavelmente envelheceu, as falanges amarelas dos cigarros, os cabelos brancos, que eu não tinha, as rugas, Sofia, que me vincam a testa do mole cansaço dos que em definitivo desistiram” (ANTUNES, 2010, p. 153). Tal situação, como tantas outras na prosa de ficção de António Lobo Antunes, repete-se e quando se vê outra personagem interroga-se diante do espelho; como acontece com a personagem Isilda na prosa O Esplendor de Portugal: o que se nota no espelho é uma tremura de ausência, um eco de nada, o poço onde uma cara de afogado que não é a minha retira com um pedaço de algodão o lápis de pálpebras que me não pertencem buscando-se entre as manchas da idade e o ácido do estanho que corroeu o vidro. Foi o espelho a envelhecer (ANTUNES, 1999, p. 49, grifos nossos). 251 Novamente, o que se descortina diante do espelho é o não reconhecimento do “outro” que surge diante de si, principalmente, porque, nesse caso, tal imagem emerge rodeada pelo signo do apagamento do indivíduo, uma ação que o tempo, silenciosamente, decreta. Dessa forma, abundam na construção desse “novo eu”, com o qual o sujeito não se identifica, signos que remontam à ideia de vazio, à certeza de um fim – “ausência”, “afogado”, “corroeu”, “envelhecer” – , estimulando uma transferência de sentidos entre a personagem e o objeto especular que, segundo a voz feminina, havia envelhecido. Ao mesmo tempo, a expressão “um eco de nada” traz à tona a perda de vitalidade de Isilda, caracterizada por uma ausência de imagem que é complementada com uma carência de voz. Dito de outra forma, à frente do espelho, Isilda reafirma um “despertencimento” em relação ao reflexo projetado, este só poderia ser “outro”, pois corresponde a “uma cara de afogado que não é a minha [que] retira com um pedaço de algodão o lápis de pálpebras que me não pertencem”. Nessa dinâmica, em dado momento, para confortar- se com a visão de um “outro” a desvanecer, distante, por essa via, de si mesma, a personagem atribui ao espelho as consequências da passagem do tempo. O objeto, na verdade, revela uma comunhão com as mudanças de Isilda, pois se “o ácido do estanho corroeu o vidro”, “as manchas da idade” sugerem que o tempo corrói tal mulher. As últimas passagens retiradas dos textos literários apresentados aqui sugerem muito bem as funcionalidades do elemento especular no texto antuniano, um meio que “promove a constituição de uma posição reflexiva e, mais, afigura-se como um espaço reflector da alteridade” (SOUSA, 2015, p. 30)158. A posição reflexiva alinha-se à simbologia presente em um objeto tido como “instrumento da Iluminação [...], símbolo da sabedoria e do conhecimento” (CHEVALIER & GHEERBRANDT, 1989, p. 394, grifos no original) que, ao revelar o “outro”, estimula, com efeito, o encontro do indivíduo consigo mesmo, a exemplo do que ocorre no trecho a seguir: “eu era só essas pupilas espantadas que fitavam e que hoje reencontro, mais velhas e descoloridas, no espelho do quarto de banho, após o arrepio nos ombros da primeira urina, vociferando para o próprio reflexo um apelo mudo sem resposta” (ANTUNES, 2010, p. 114). A “crueza implacável dos espelhos” (ANTUNES, 2010, p. 129) incide sobre o homem, partícipe de uma guerra sem fundamento, motivando naquele, ainda que paradoxalmente, a lucidez diante de um cenário que projetava nos seres uma “condição 158 Sérgio Guimarães de Sousa, ao analisar essa questão nas prosas de António Lobo Antunes, ainda dirá que, nos “romances, o espelho é muito frequentemente o lugar privilegiado da alteridade” (2015, p. 30). 252 metonímica”. De tal condição, presente na penúltima citação, é possível apreender a linha de interpretação seguida aqui, dado que as “pupilas espantadas” compõem o que resistiu desse contexto, escapou o olhar a que o “eu” foi reduzido quando dessa situação conflituosa “saiu” silenciado, convertido em “um apelo mudo sem resposta”. Combinam-se o reflexo fragmentado do homem que se mira no espelho ao apagamento de qualquer sonoridade do indivíduo, como uma forma de acentuar a obliteração simbólica a que fora sujeito o ex-soldado português, restando dele apenas um invólucro sem substância ou, quando muito, o olhar atemorizado de suas “pupilas espantadas”. O reencontro do presente com o passado possibilita ao ex-combatente, ainda que melancolicamente, compreender a extensão da tragédia na qual se viu envolvido, entendendo, ademais, os efeitos dessa situação em si, pois de imagem vívida e, possivelmente, luminosa, as pupilas, que o representam, tornaram-se “mais velhas e descoloridas”. Em igual medida, ao espelho é atribuída, simbolicamente, a capacidade de transmutar o “eu”, o qual é reduzido na prosa em destaque a um sujeito paciente. A dimensão exterior do indivíduo, captada nessas múltiplas variantes da superfície especular, é vista como um resultado da “ação” desse objeto que apresenta uma imagem definhada do ex-médico-militar – “eu aqui acocorado na sanita diante do espelho que implacavelmente me envelhece, sob esta luz de aquário e estes azulejos vidrados, estes metais, estes frascos, estas louças sem arestas” (ANTUNES, 2010, p. 155). Os diversos meios citados para projetar os reflexos do narrador insistem em demonstrar uma versão deste com a qual ele não se identifica, pois se o espelho, de um modo geral, enforma o sujeito, oferecendo-lhe um enfoque externo de si, do qual o indivíduo sozinho não dispõe, ao mesmo tempo, conforme afirma Bakhtin, “vemos o reflexo da nossa imagem externa mas não a nós mesmos em nossa imagem externa; a imagem externa não nos envolve ao todo, estamos diante e não dentro do espelho” (2010, p. 30). Nesse sentido, a imagem do sujeito produzida a partir de sua exposição frente ao espelho é de outra ordem daquela imagem que o “eu” constrói de si em sua relação com o “outro” em uma dinâmica intersubjetiva. No primeiro caso, frente ao reflexo superficial do ser ante ao espelho, o indivíduo torna-se objetificado enquanto que, no segundo caso, a interação entre consciências faz com que aquele se constitua enquanto sujeito. Por sua vez, a revelação de uma verdade com a qual, muitas vezes, não se sabe lidar induz o narrador ao enfrentamento de uma realidade que não pode ser mais mascarada pela penumbra de uma noite espessa. A “água vazia dos espelhos” 253 (ANTUNES, 2010, p. 99) evidencia, para o indivíduo que nela se mira – tal qual Narciso que encontrou no reflexo de si mesmo “um espelho aberto sobre as profundezas do eu” (CHEVALIER & GHEERBRANDT, 1989, p. 630) –, que não foi apenas esse sujeito que se enxergou transformado nesse processo, mas também o tempo, o espaço configurado pela terra natal, bem como os conterrâneos que surgiram indiferentes, incólumes ao que havia sucedido em África. Tal situação pode ser exemplificada pela passagem apresentada a seguir na qual o espelho – em uma de suas variadas formas presentes na narrativa – deforma a imagem nele refletida: “– Merda de país de merda – declarei eu para o chofer, o qual me respondeu com um soslaio desconfiado no retrovisor que lhe reduzia o rosto a um par de pupilas miúdas e hostis, a que o espelho conferia a agudeza protuberante dos reflexos metálicos” (ANTUNES, 2010, p. 88). O aspecto vislumbrado no retrovisor compreende aquilo que o sujeito que regressa de seus infortúnios na antiga colônia portuguesa percebe da sociedade ao redor. Isto é, esse universo apresenta-se de acordo com a medida atribuída pelo “eu” para observar o mundo, dessa maneira, não seria inusitado o retorno da imagem filtrada do chofer observado, em que este é reduzido “a um par de pupilas miúdas e hostis”. Nessa circunstância, ocorre também o que já foi apontado nesta tese no tocante a uma transferência de sentidos entre a pessoa focalizada e o objeto especular 159 . Nesse caso, coube ao espelho conceder ao motorista em questão um “reflexo metálico”, algo que ampliava o endurecimento sugerido na postura do chofer frente ao narrador, pois a frieza daquele estaria proeminente na composição de um encontro impregnado de desconfiança e hostilidade. “Na superfície especular surge a contraposição de um Outro com o qual se afiguram por vezes difíceis, senão mesmo totalmente impossíveis, projecções (imaginárias) identificatórias” (SOUSA, 2015, p. 34). Consoante com tal análise, recorta-se um momento da trama em que o encontro do “eu” consigo mesmo é impedido pelo excesso de luz que ofusca a confrontação com uma projeção imaginada de si. A opacidade dos espelhos, a qual surge diante de um “rosto amarrotado e encolhido das noites sem sono, que os olhos baços animam de desânimo pisco”, possibilitava que a aparência – com a qual o sujeito não se identifica, mas dela tem ciência – não seja exteriorizada para o “eu” e, com isso, não seja reafirmada para ele: 159 Para ressaltar a questão exposta, focada na defesa de que o espelho não possui apenas a função de refletir uma imagem, reafirma-se aqui a extensão simbólica de tal objeto, já que nela existe “uma configuração entre o sujeito contemplado e o espelho que o contempla” (CHEVALIER & GHEERBRANDT, 1989, p. 396). 254 Às quatro da manhã os espelhos são ainda suficientemente misericordiosos ou opacos para nos não devolverem o rosto amarrotado e encolhido das noites sem sono, que os olhos baços animam de desânimo pisco: o excesso de luz do aeroporto impedia-me de me confrontar nos vidros com a minha silhueta hesitante, inclinada como uma cana de pesca para o peixe gordo da mala, com a gravata que as muitas horas de avião haviam decerto desviado da bissectriz dos colarinhos, transformando-a num trapo mole como os relógios de Dali, com as rugas que se acumulavam em torno das pálpebras, à maneira dos vincos concêntricos de areia dos jardins japoneses; entre o homem que voltava sozinho da guerra à sua cidade e caminhava através de cachos de estrangeiros indiferentes (ANTUNES, 2010, p. 83, grifos nossos). Por conseguinte, o espelho configura-se como um elemento instaurador de rupturas no enredo em estudo, tendo em vista que as imagens afloradas no tecido narrativo provocam, na maioria das vezes, uma quebra de expectativa do “eu” consigo mesmo e deste em relação aos demais. Isso se torna perceptível no trecho exposto anteriormente quando o quadro composto pelo retorno tão esperado à pátria assume tons melancólicos, construído pelo “homem que voltava sozinho da guerra à sua cidade e caminhava através de cachos de estrangeiros indiferentes”. Nesse sentido, a impressão que se tem é a de que o universo construído na narrativa é perpassado por uma dupla realidade, não só aquela concretizada pelas vivências em dois planos temporais diversos: passado e presente; mas também aquela que se deslinda na dupla concepção de mundo captada pelo narrador. A ruptura mencionada antes auxilia no entendimento dessa questão, já que, de um lado, ressoam um conjunto de vozes empenhadas em construir uma versão favorável da realidade, pautada, por exemplo, na arquitetura do herói nacional, enquanto, por outro lado, há o desmonte dessa visão perante a situação atroz que o sujeito havia experienciado. Assim, há a consciência de se viver em uma aparência de realidade, leitura que abrange desde o olhar sobre o “eu” e as versões imaginadas de si mesmo até a sociedade ao redor e sua propagação de discursos. No final, alcança-se a conclusão de que “tudo não passa de aparência, a verdadeira realidade está fora, noutro lugar; tudo o que parece ser objetivo é na verdade subjetivo” (BRAVO, 2005, p. 270). Uma interpretação semelhante é elaborada pela voz enunciadora, a qual se vê imersa em uma ficção, pois, afinal, “tudo não passa de uma mistificação óptica, de um engenhoso jogo de espelhos, de uma mera maquinação de teatro sem mais realidade que a cartolina e o celofane do 255 cenário que a enformam e a força da nossa ilusão a conferir-lhe uma aparência de movimento” (ANTUNES, 2010, p. 30-31). A dúvida permanece: em que acreditar nesse processo? Até essa ação é alvo de dubiedade no contexto de “uma mera maquinação de teatro”. O álcool torna-se apenas mais um artifício capaz de, como confessa o narrador, “conferir aos nossos sorrisos a misteriosa profundidade dos sentimentos que não possuímos nunca” (ANTUNES, 2010, p. 31), criando mais uma possibilidade entre outras de existir na ilusão de que a realidade é embebida nesse “engenhoso jogo de espelhos”. No entanto, menos que procurar neste momento fiar-se em uma resposta para o questionamento lançado no início, o foco recai sobre a fratura provocada em um cenário de “mistificação óptica” e as consequências dessa ruptura para a construção identitária do narrador que observa tal situação. Essa leitura é justificada pelo entendimento de que, concordando novamente com as reflexões de Sérgio Guimarães de Sousa, “talvez nesse defasamento esteja o reencontro do eu consigo mesmo. Trata-se de um eu que não se resume à unidade de uma imagem, é complexamente múltiplo e inapreensível” (SOUSA, 2015, p. 35, grifos no original). O descompasso que, nesse caso, tanto pode ser percebido em relação ao viver numa aparência de realidade quanto em relação ao “outro” que, de quando em vez, surge e neste o “eu”, muitas vezes, não se reconhece, proporcionou, sobretudo, o conhecimento de como agir nesse cenário múltiplo. Em outras palavras, o olhar edificado diante do espelho oportunizou ao indivíduo que este não só ampliasse a visão que possuía do mundo ao redor, mas também de si mesmo. Da mesma forma que o espelho revelou uma face que não se desejava ver, suscitando a reflexão sobre a efemeridade da vida no estágio de envelhecimento do narrador-personagem, tal objeto também desvelou a profundidade daquilo que, geralmente, o ser humano é tentado a esconder no que se refere às suas debilidades, ao temor de uma solitude infinita. Tal situação não é atenuada pelo encontro do “eu” consigo mesmo “no espelho cego do quarto de banho”, pois isso reforça a condição de se criar um “outro” para fugir da visão de um “Carnaval que acabou”: Sempre que abro a porta e tusso o fim do corredor devolve em eco o meu pigarro e vem-me como que a sensação esquisita, percebe, de me dirigir ao meu próprio encontro no espelho cego do quarto de banho onde um sorriso triste me aguarda, suspenso das feições como a grinalda de um Carnaval que acabou (ANTUNES, 2010, p. 93). 256 Aliado à imagem produzida no espelho, salta mais um reflexo do próprio “eu” no tocante à presença do eco na narrativa. Tal aspecto compreende mais uma via pela qual o narrador-personagem realiza um encontro consigo mesmo, como uma das poucas alternativas, no presente, para preencher o vazio de sua existência, mesmo com uma “sombra que imita, redundante, as palavras dos outros” (GRAZIANI, 2005, p. 291), ou melhor, as suas próprias palavras. Por esse liame, à maneira de uma leitura mitológica na qual Narciso busca uma substância, uma materialidade para a voz que repete os últimos sons por ele emitidos, correspondente à figura da ninfa Eco 160 , o narrador antuniano procura alguma consistência para os sons que o corredor lhe devolve. Chega- se, tal qual a personagem mitológica que contempla a si própria nas águas convertidas em um espelho de si, ao estranhamento proveniente do contato tecido entre o “eu” e o seu reflexo, conforme o próprio narrador afirma: “vem-me como que a sensação esquisita, percebe, de me dirigir ao meu próprio encontro no espelho” (ANTUNES, 2010, p. 93). A proximidade edificada entre o som e a imagem na passagem em destaque contribui para o entendimento do eco, em uma leitura simbólica, como mais uma dimensão fragmentada do “eu”, mais uma representação do sujeito que busca ir além da sua aparência desvanecida, a qual surge tanto nos reflexos dos espelhos quanto na audição vazia de sentido que essa reverberação configura. A sensação de que se está diante desse “outro” que, afinal, faz parte de si mesmo redunda na compreensão infeliz de que, no final, o que se “ouve” é o “o gigantesco eco dos passos de ninguém nas salas desertas” (ANTUNES, 2010, p. 22). Por consequência, isso amplia o isolamento sentido no presente desalentador, conforme o narrador explica: “Como quando se tosse nas garagens à noite, pensei, e se sente o peso insuportável da própria solidão, nas orelhas, sob a forma de estampidos reboantes, idênticos ao pulsar das têmporas no tambor do travesseiro” (ANTUNES, 2010, p. 22). O ruído provocado pelo próprio sujeito para simular a existência de um “outro” resulta na reflexão de que, saindo da órbita do simulacro criado, o “eu” decai em uma visão de si mesmo, ou seja, enxerga-se ainda 160 A observação do mito de Eco em relação ao de Narciso é realizada aqui a partir da versão de Ovídio, recortada por Françoise Graziani (2005). Para Ovídio, “a ninfa Eco é um duplo ou um reflexo de Narciso; a maneira como ela repete, mutilando as palavras que ouve, é análoga à maneira como lhe chega a imagem de Narciso, incompleta porque sem realidade, refletida pela superfície espelhada da água” (GRAZIANI, 2005, p. 289). Eco, de acordo com essa versão, perde sua substância corporal, reduzindo-se a uma voz apenas, pois desfalece. De igual forma, Narciso também se abate devido ao sofrimento causado pela impossibilidade de realização amorosa com a ninfa. Para maiores detalhes sobre essa leitura em particular da mitologia e outras versões atribuídas à figura de Eco, ver Graziani (2005, p. 289). 257 mais diminuto. Em outras palavras, a ressonância de si – o “eco ténue de uma sombra” – compreende uma imagem mutilada da qual a vida, em certa medida, se dissipou (lembrando-se novamente da referência ao mito de Eco em relação ao de Narciso), algo que deságua na confrontação do sujeito com o que restou de si: Em casa, a alcatifa bebe o som dos meus passos reduzindo-me ao eco ténue de uma sombra, e tenho a impressão, ao barbear-me, que quando a lâmina me retirar das bochechas as suíças de Pai Natal mentoladas da espuma, apenas ficarão de mim as órbitas a boiarem, suspensas, no espelho, indagando ansiosamente pelo corpo que perderam (ANTUNES, 2010, p. 113, grifos nossos). Por fim, com o intuito de avançar o olhar sobre as transformações sofridas pelo ex-combatente, a leitura desloca-se, a partir deste momento, dos reflexos obtidos sobre esse indivíduo por meio das superfícies especulares para uma das sequelas da Guerra Colonial. A “evolução da metamorfose da larva civil” (ANTUNES, 2010, p. 20) adquiriu “outros contornos” em conformidade com a visão de um sujeito dilacerado pela solidão, pelo sofrimento, pelo temor frente a uma morte diária durante o período de estadia nas terras africanas. Aliás, a configuração de uma “larva civil” compõe o indício de uma nova situação de duplicidade apresentada na narrativa, na qual a reflexão sobre a metamorfose cruza-se com a imagem simbólica que o “eu” edifica para si e para os demais no tocante à manifestação na trama da figura animalesca. Esta se encontra presente desde o primeiro capítulo do romance, “nas primeiras letras da aprendizagem”, nas quais pulula uma variada quantidade de referências de um campo zoológico no tecido do texto. A alusão ao universo animalesco constituiria, em dada medida, um “outro” ao qual estão expostos os indivíduos imersos nesse cenário em desarranjo. Assim, os contornos citados antes tomam forma a partir de agora na composição de uma “outra” faceta do narrador que surge imersa no “mundo dual” característico da trama, pois se vai de um cenário de selvageria e animalização até um conjunto de referências artísticas que povoa o contexto no qual o “eu narrador” encontra-se inserido. 5.2. As nuances simbólicas de uma metamorfose animalesca Constituindo uma das muitas versões assumidas pelo “eu” em seu processo de reanalisar o que foi vivido, o “outro animalesco” parece surgir no enredo como um 258 resultado do caos proveniente na Guerra Colonial, alcançando, por consequência, os indivíduos jogados à própria sorte no caudal de experiências provenientes dessa época traumática. Nessa medida, o que pode ser designado aqui de uma “metamorfose animalesca” funda-se sob a estruturação de um significativo movimento alegórico, firmado a partir de duas instâncias basilares. Em uma delas, é simbolizado um “zoológico humano”, construído a partir da campanha militar em África, reduzindo o ser a uma procura instintiva pela sobrevivência, como mais uma particularidade, quiçá, a mais relevante, da degradação moral e, muitas vezes, física dos sujeitos. Já na segunda instância, como uma extensão da primeira, representam-se os reflexos de outro tipo de aprisionamento do ser, dessa vez perfilado pelos limites de um “aquário de azulejos” (ANTUNES, 2010, p. 147) no qual a versão animalesca persiste como um símbolo de uma contínua atitude de domesticação, de maneira que, a partir dela, “eu” surge domado, convertido em uma figura inerte nesse contexto. A fim de analisar melhor como ocorreria a composição do “zoológico humano”, é necessário frisar a presença de alguns estágios evolutivos desse processo que culmina com a “metamorfose animalesca”. Primeiramente, a ação memorial encarrega-se de evocar a imagem do Jardim Zoológico de Lisboa onde, até aquele momento, “os bichos eram mais bichos” (ANTUNES, 2010, p. 11). Nesse lugar, caso se deseje realizar um inventário da fauna ali presente, seriam catalogados, por exemplo, “rinocerontes”, “ursos brancos”, “mandris” 161, “camelos”, “raposas”. Entretanto, tal fauna se expande e passa a fazer parte da série de metáforas e comparações realizadas pelo narrador (aspecto aludido no terceiro capítulo desta tese). Para integrar esse repertório imagético, outros animais são trazidos à baila, incrementando a caracterização feita, por exemplo, dos “orangotangos dependurados das suas argolas à laia de enormes aranhas congeladas” (ANTUNES, 2010, p. 14), ou ainda, incluindo espécimes imaginários, como os bestiários 162 medievais, na remissão feita à figura do “unicórnio” (ANTUNES, 2010, p. 13). De “bicho em bicho” (ANTUNES, 2010, p. 13), a reminiscência infantil do espaço pelo qual o narrador afirma ter uma afeição parece substanciar a leitura desse 161 Macaco africano (Mandrillus sphinx), grande e robusto, de pelagem espessa, esverdeada ou acinzentada, cauda curta e focinho comprido, cujos machos adultos têm face e nádegas coloridas, geralmente de cor azul e vermelha. 162 O bestiário compreende um gênero literário medieval em que se encontram vários animais de um modo geral, “para com eles dar lições de moral, apoiar doutrinas religiosas e fornecer ensinamentos de história natural. Um bestiário típico versa, inclusivamente, os hábitos e as reacções de criaturas fabulosas, tais como o unicórnio, a fénix ou a sereia” (SHAW, 1982, p. 67). 259 ambiente como um signo prenunciador da decomposição da figura humana, o que acontecerá na prosa, principalmente, durante a revivescência da Guerra Colonial. Tendo em vista que a descrição da fauna, mesmo nessas primeiras páginas do romance, não se restringe ao zoológico, alastrando-se ao universo familiar do indivíduo, a inserção no ambiente animalesco por parte do “eu narrador” já estaria decretada desde o início de sua “aprendizagem do mundo”. Nesse estágio, os dois ambientes referidos confundem- se, ou seja, para retratar as situações narradas no lar do infante, sucede, muitas vezes, uma correspondência com um dos elementos catalogados na fauna presente na prosa antuniana, a exemplo das “mãos de cera e bustos do padre Cruz, que os uivos nocturnos dos tigres faziam vibrar de terror artrítico nas prateleiras da montra” (ANTUNES, 2010, p. 14), chegando-se, em dada medida, a escutar “o ronronar dos aparelhos” (ANTUNES, 2010, p. 14, grifo nosso). Dessa forma, não à toa “o inventário animalesco” adquire outras espécies, como os “tucanos”, os “gatos”, o “fastio pegajoso das moscas” (ANTUNES, 2010, p. 12). Além disso, aos animais considerados selvagens, é atribuída uma comparação que acentua, a princípio, a aproximação com o universo doméstico, a exemplo dos “leões, roídos de traça, como casacos velhos” (ANTUNES, 2010, p. 13). Essa situação deságua em um processo constante em toda a narrativa, o qual corresponde ao segundo estágio de evolução da “metamorfose animalesca” e nele há um paralelo entre o animal e a figura humana no texto. Assim, determinada característica apresentada pelos elementos da fauna citados na prosa sugere uma relação com os participantes do universo social descrito pelo “eu narrador”. O modo como o “eu” valorava o seu ambiente e as pessoas que o rodeavam é metaforizado pela fisionomia dos bichos que habitavam o zoológico, pois, ao que parece, esse habitat estendeu-se para além das “águias de pedra da entrada do Jardim” (ANTUNES, 2010, p. 13), fazendo parte do cotidiano daquele que compõe o seguinte quadro: a solidão de esparguete da girafa assemelhava-se à de um Gulliver triste, e das lápides do cemitério dos cães subiam de tempos a tempos latidos aflitos de caniche. Cheirava aos corredores do Coliseu ao ar livre, cheios de esquisitos pássaros inventados em gaiolas de rede, avestruzes idênticas a professoras de ginástica solteiras, pinguins trôpegos de joanetes de contínuo, catatuas de cabeça à banda como apreciadores de quadros: no tanque dos hipopótamos inchava a lenta tranquilidade dos gordos (ANTUNES, 2010, p. 11-12). 260 Na passagem recortada, é possível compreender o paralelo referido anteriormente. Se de um lado assomam a “girafa”, as “avestruzes”, os “pinguins”, as “catatuas” e os “hipopótamos”, do outro lado, respectivamente, há o “Gulliver triste” em uma clara referência à obra literária Viagens de Gulliver (1726), as “professoras de ginástica solteiras”, o “contínuo”, representando um funcionário de empresa ou de repartição pública, os indivíduos “apreciadores de quadros” e, por fim, “a lenta tranquilidade dos [homens] gordos”. A comparação feita vem a ser construída por meio do tom melancólico que caracteriza o modo como são vistos os animais nesse momento inicial da trama, em que predomina uma sensação de ruína, de sofrimento, por exemplo, pela presença reiterada de signos que reforçam tal sensação. Desse modo, são observados a “solidão da girafa”, os “latidos aflitos de caniche” e os “pinguins trôpegos de joanetes”, de forma que o Jardim Zoológico, longe de configurar um espaço de memórias repletas de júbilo concernentes ao tempo infantil, serve de metáfora agônica do cenário que aguardaria o “eu” posteriormente, outro tipo de campo de batalha, porém, em alguma medida, próximo daqueles “corredores do Coliseu ao ar livre”. A angústia sentida diante da imagem que é feita dos animais assume um tom lamurioso pela visão de uma voz narrativa que resgata os passos de um destino do qual não pôde fugir. O ex-combatente via no sofrimento animalesco o seu próprio pesar, ou ainda, dito de outra maneira, o “relato reconstrutor proclama, alegoricamente, a sua dor pela dor do ‘animal’” (CARDOSO, 2016, p. 104). Por esse motivo, as representações dos tipos que o médico encontraria no contexto colonial tomariam forma no inventário melancólico dos bichos que o narrador já observava desde a sua infância, realizando, assim, um “movimento sinestésico aflitivo”. Nesse movimento, encontram-se os “lamentos viúvos do boi-cavalo” (ANTUNES, 2010, p. 12), da mesma forma que os “lamentos das focas” (ANTUNES, 2010, p. 14) e os gemidos do “lumbago do elefante desdentado”, bem como a visão dos “cães esqueléticos” (ANTUNES, 2010, p. 12), imagem reiterada em outros dois momentos do romance, como: “os primeiros cães, esqueléticos como galgos do Escorial, farejavam nas molduras vazias dos umbrais a ideia de um osso” (ANTUNES, 2010, p. 87); e a visão das “pupilas magoadas e acusadoras dos esqueléticos cães vadios do quartel” (ANTUNES, 2010, p. 166). É válido enfatizar, a esta altura, que a aproximação citada anteriormente entre o homem e o animal não se furta, de forma alguma, à visão que “eu” tem de si mesmo. Nesse sentido, em vários momentos da prosa, tanto o “eu narrador” quanto a sua misteriosa ouvinte são incluídos no processo de animalização que inunda a trama com a 261 imagem de um ser humano e a de sua possível versão animalesca, conforme se percebe na conjectura a seguir: “Se fôssemos, por exemplo, papa-formigas, a senhora e eu” (ANTUNES, 2010, p. 13). A acompanhante do narrador, em dados momentos, chega a ser concebida também como um sujeito em transformação na hipótese construída pela voz narrativa ao tentar edificar o perfil de sua “cara amiga”. Para ilustrar tal situação, a referência animalesca é sugerida para alguém que “deve acordar de manhã num torpor de crisálida titubeante eternamente entre a larva e a borboleta” (ANTUNES, 2010, p. 59). A propósito, a ligação estabelecida com o animal referido nesse último trecho do romance já fora introduzida desde o capítulo premonitório desse intercâmbio homem versus bicho, dado que, pela imaginação do narrador, a figura feminina seria apresentada com os seus “braços espantados de borboleta” (ANTUNES, 2010, p. 13). Por sua vez, o processo de animalização simbólica no qual o “eu” se vê incluído compreende uma ampla variedade de espécies com as quais o protagonista tece uma relação, de modo que cada comparação, cada metáfora construída, reunindo duas instâncias que possivelmente estariam apartadas, surge como uma forma de realçar as sensações vivenciadas por aquele que as narra. Assim, em determinados instantes, ao se defrontar com o céu de África em mais um momento de apequenamento do sujeito, este se sente “como um grande pássaro extasiado” (ANTUNES, 2010, p. 36), ou ainda, destacando as metamorfoses de que foi alvo, simboliza-as por meio da “aparência equívoca de um camaleão desiludido” (ANTUNES, 2010, p. 49) que a “farda de camuflado” sugere na linha de aproximação homem versus bicho. Dessa forma, o processo de animalização avança e, em mais uma imagem rememorativa do zoológico, o narrador realiza uma elucubração sobre o que corresponderia a sua transformação, enfim, finalizada: Se eu fosse girafa amá-la-ia em silêncio, fitando-a de cima da rede numa melancolia de guindaste, amá-la-ia com o amor desajeitado dos exageradamente altos, mastigando o chiclets de uma folha pensativa, ciumento dos ursos, dos papa-formigas, dos ornitorrincos, das catatuas e dos crocodilos, e desceria trabalhosamente o pescoço pelas roldanas dos tendões para esconder a cabeça no seu peito em trêmulas marradas de ternura (ANTUNES, 2010, p. 34). Por essa leitura, a desejada comunhão entre o “eu narrador” e a sua parceira silenciosa, envolvidos em uma incursão no ambiente do Zôo, atinge outra possibilidade de manifestação, caracterizada pela declarada animalização que os associa “numa 262 cumplicidade de trombas inquietas farejando a meias no cimento saudades de insectos que não há” (ANTUNES, 2010, p. 13). Nesse ínterim, conforme já se tornou possível presumir, a fauna que povoa o romance ultrapassa o tempo narrado, fazendo parte do momento de enunciação. Por esse motivo, o olhar sobre o contexto da cidade lisboeta seria também simbolizado pela construção do que foi nomeado antes aqui de “novo zoológico”, o qual não se restringe ao espaço do conflito colonial e estabelece-se na antiga metrópole a partir do regresso do que fora feito da incipiente “larva civil”. Esta, em seu retorno, parece enxergar em seu novo habitat uma extensão do universo animalesco com o qual teria convivido anteriormente. Com os olhos ainda marcados pela tragédia que havia vivido, o ex-alferes- médico passa a observar nos demais, com os quais vivencia o presente, uma semelhança com os exemplares que preenchem o catálogo animalesco por ele imaginado. Por essa via, se o processo de animalização for tido como um símbolo do retrocesso para uma civilização que se vangloriava de seu refinamento frente ao ser colonizado – visto como exótico e primitivo de acordo com o discurso colonial –, aquele modo de configuração inunda o cenário citadino, como um reflexo possível do desastroso empreendimento em África. O exposto é justificado quando se entende que a correspondência aludida com os animais é utilizada como um reforço significativo de uma situação de melancolia, de desânimo, expressão vista pelo narrador em seus compatriotas. Ao aproximar a realidade portuguesa de um modo configuração que era relegado aos povos africanos, o narrador subverte, por outro viés na trama, o contexto de valores que a empresa colonial apregoava, desmistificando o pensamento transmitido ao “mais desprovido homem branco de pertencer, ele, pessoalmente, a um mundo e a uma civilização superiores, o que lhe assegura o direito, pensa, de efectivamente se impor para civilizar” (LOURENÇO, 2016b, p. 70, grifos no original). Os signos utilizados para defender uma posição de inferioridade para os colonizados, recuperando o que foi discutido no capítulo anterior, são aplicados, no romance antuniano, para descrever a situação dos portugueses tanto em Angola quanto na pátria lusa. A animalização surge, assim, como um elemento percebido no texto literário a partir de horizontes ideológicos distintos: ora o do discurso colonial, ora o da visão que, de alguma forma, se contrapõe a essa leitura expansionista, sendo expressa na voz do narrador-personagem. Dentro da dialogicidade que a narrativa apresenta, tal dinâmica não seria incomum, até mesmo, porque, “no horizonte ideológico de qualquer época e de qualquer grupo social não existe uma única verdade, mas várias verdades 263 mutuamente contraditórias, não apenas um caminho ideológico, mas vários divergentes” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 63). No olhar axiológico sobre o cotidiano português, a contínua sensação de fastio é ampliada pela associação feita entre as pessoas que fazem parte da rotina do “eu”, a exemplo da porteira do prédio, e as imagens que delas são feitas, apoiadas nas referências construídas a outros seres vivos, consoante com o que se observa no trecho a seguir: “De manhã, a porteira, intratável e gorda, recolhe os caixotes do lixo vociferando insultos silenciosos pelas sobrancelhas pesadas de buldogue” (ANTUNES, 2010, p. 95). Outras passagens que ilustram muito bem a questão esboçada antes compreendem, por exemplo, a similitude edificada entre a juventude lisboeta moradora da parte baixa da cidade e um bando de aves, de modo que a debilidade vai de um ponto a outro da comparação estabelecida com os “jovens frágeis do Rossio, [...] jovens parecidos com aves doentes do Rossio, coxeando em volta dos repuxos num vagar tímido e perverso” (ANTUNES, 2010, p. 175). Assim, a “mocidade portuguesa” surge configurada com os seus desígnios de voo pela voz narrativa, no entanto tal visão dá lugar a uma ruptura produzida pelo aviltamento dessa juventude, o que é traduzido pelo prospecto infeliz das “aves doentes do Rossio”, condição que melhor significaria a apatia social sentida pelo narrador. Em outro momento da prosa, para que seja possível finalizar por agora o aspecto levantado, destaca-se a imagem do porteiro do recinto no qual o relato se inicia. A figura do indivíduo em foco possibilita, entre outras questões, avivar uma das tensões presentes no romance, correlacionada ao par selvageria versus civilização. De um lado, há a leitura da voz enunciadora que põe em cena a reminiscência do zoológico e isso se imbrica a um cenário de barbárie, de violência que poderia ser ligado também ao contexto de guerra; enquanto, do outro lado, salta a vivência urbana e com ela as implicações do estar em sociedade. As dimensões contrastantes, outrora exploradas em outros excertos do texto literário, são sublinhadas a partir de uma composição ambivalente que, relembrando uma configuração carnavalesca, prima pela reunião de aspectos destoantes, os quais “se encontram, se olham mutuamente, refletem-se um no outro, conhecem e compreendem um ao outro” (BAKHTIN, 1997, p. 179), formando a complexidade desse mundo caótico que é evidenciado pelo ex-alferes-médico. No presente, ao que parece, a mínima lembrança de uma situação de estupidez, de grosseria vivida pelo “eu”, o que ocorre “junto ao porteiro do bar simultaneamente intransigente e obsequioso que exige a gorjeta numa subserviência peremptória de 264 assalto à mão armada” (ANTUNES, 2010, p. 89), traz à tona a condição animalizada dos indivíduos, seja por meio da lembrança infantil, seja pela releitura da estadia em África. Na passagem em relevo, faz-se referência, ao mesmo tempo, a um estilo estético bastante influenciador das artes plásticas e que, em Portugal, era movido, sobretudo, pela ação da burguesia urbana, a qual aplicava, por exemplo, a inspiração francesa à construção de edifícios na cidade lisboeta, em que neles era ilustrado o estilo apregoado pela Arte Nova. Desse modo, dois universos cruzam-se na vivência cotidiana do ex- combatente, capaz de reconhecer o trabalho artístico das “hastes sabiamente oxidadas dos candeeiros” enquanto analisa a transformação do funcionário do bar em um paquiderme em cólera, que curva para si os galões da manga à maneira do elefante do Jardim Zoológico a estender a tromba mole para o molhe de cenouras do tratador. É difícil, compreende, tanto mais que não encontro no bolso uma moeda sequer para satisfazer os apetites autoritários da criatura que principia a franzir as sobrancelhas na hostilidade sem nuances dos grandes animais irados, pronto a espezinhar-me com as patas enormes dos sapatos numa fúria elementar de paquiderme, e a transformar-me os braços em arabescos torcidos Arte Nova idênticos às hastes sabiamente oxidadas dos candeeiros, capazes de arrancarem das calvícies cintilações lunares (ANTUNES, 2010, p. 89). É válido fazer uma ressalva neste ponto da análise no que diz respeito ao entendimento de que embora tenha sido comentada a presença das referências animalescas também no presente, elas referem-se, substancialmente, à revivescência memorial realizada dos anos de conflito em Angola. Antes de se aprofundar mais nesse cenário, é interessante observar de que modo o paralelo entre o indivíduo e o bicho que lhe seria correspondente é realizado na trama de Lobo Antunes. Para tanto, o uso de uma série de onomatopeias é tratado como um recurso para introduzir a versão animalesca na composição dos traços dos sujeitos apresentados pelo narrador, inclusive, na sua própria construção enquanto ser que, embalado pelo sofrimento inesgotável que suporta, manifesta-se “mugindo, boi ferido que não entende, que não entende, que não logra entender e acaba por enterrar o triste focinho molhado nos ossos de frango com esparguete do rancho” (ANTUNES, 2010, p. 44). Mais uma vez, o ser diminuto vem à tona, confessando a sua incapacidade de reagir nesse cenário, reduzido a um “boi ferido” que perde a fala e apenas exala a sua dor pela via da onomatopeia, de sorte que, 265 diante da impossibilidade de entender o propósito da guerra, brame e, assim, reconhece a sua desistência, ocultando “o triste focinho molhado”. Como um efeito estilístico bastante reiterado na narrativa, a presença dos sons dos animais serve para instituir o que foi denominado aqui de “novo zoológico”. Neste espaço, uma vez que do sujeito é comprimida a sua condição social, isto é, a sua prática em se relacionar com os demais, algo que ocorre, principalmente, durante os meses vividos ao redor do arame, a comunicação se esgota e é substituída pelos guinchos, pelos balidos, pelos cacarejos que, de quando em vez, o narrador escutaria. O encontro casual no bar com a mulher misteriosa só revela a necessidade do ex-combatente de expressar “um pouco” do fardo que ele carrega, porém isso não esvai o eco do inventário animalesco. Na verdade, a voz narrativa deixa clara a presença desses sons invadindo suas lembranças, seu presente e, até mesmo, seus sonhos, a exemplo do trecho que se segue no qual o narrador-personagem recorda dos “apelos das mulheres das barracas de tiro do Parque Mayer 163 , cujas vozes roucas me povoaram os sonhos, na adolescência, de crocitos apavorantes” (ANTUNES, 2010, p. 97). Não tarda para que a acompanhante do “eu”, outrora já vista aqui fazendo parte do processo de animalização, também seja ouvida a partir do conjunto de ruídos que afloram na trama, suscitando a leitura do homem transformado simbolicamente em bicho. Em mais uma passagem na qual o narrador tece a hipótese de como transcorreria a união carnal entre ele e seu misterioso par, retirando o véu de qualquer leitura pudica que pudesse haver sobre tal situação, ocorre o extravasamento da condição biológica do indivíduo, ou ainda, sobressai uma aprendizagem que visa reconhecer o animal que já estaria dentro de si. Seja dito de passagem, não há espaço para atenuações, para eufemismos de nenhum tipo, o sexo, assim como outras questões inerentes às experiências do ser vivo apreciadas pelo “eu narrador”, é focalizado a partir de uma lente rigorosa que expõe a crueza das situações, realçando ainda mais aquilo que um discurso moralista, porventura, desejasse encobrir. Tal afirmação pode ser exemplificada, por sua vez, no trecho a seguir: “Unir-nos-emos, percebe, como dois monstros terciários, eriçados de cartilagens e de ossos, balindo ganidos onomatopaicos de lagartixas imensas” (ANTUNES, 2010, p. 141). Nessa passagem, o tom palavroso do narrador não é 163 Espaço construído em 1901 na cidade de Lisboa, sendo considerado um recinto que abrigava os teatros de revista, dotado de restaurantes, carrosséis, esplanadas, pavilhões, casas de fado, barracas de tiro e outras atividades. O Parque era visto, essencialmente, como um local de boêmia onde tanto se faziam presentes os populares quanto a elite política ou os intelectuais da cidade. 266 esquecido, mesmo nessas circunstâncias, sendo utilizado como um recurso a mais para, ironicamente, revestir uma situação banal e íntima de um discurso quase que filosófico, existencial. Nessa ocasião, dois indivíduos “abandonariam” sua racionalidade, uma vez convertidos em “monstros terciários”, voltados apenas para os seus próprios instintos, sendo metaforizados por “lagartixas imensas” das quais seriam escutados, meramente, os “ganidos”. O atendimento aos instintos resulta no fim último de uma vivência que parece, em muitas direções, ter perdido sua razão de ser, em que a obediência aos desejos, ainda sentidos, conferiria ao indivíduo um último sopro de existência. Desse modo, uma das formas de explorar as vontades remanescentes do “eu” recai no tino sexual que, no evento em questão, configura-se pelo encontro fortuito entre o narrador e sua ouvinte. Essa experiência interessa a este momento da análise pelo fato de, a partir dela, ser possível irromper o zoomorfismo presente na narrativa, a exemplo do trecho a seguir no qual mais uma versão animalesca do casal que vaga pela infindável noite é sugerida durante a imaginada cópula: “Quem sabe se acabaremos a noite a fazer amor um com o outro, furibundos como rinocerontes com dores de dentes, até a manhã aclarar lividamente os lençóis desfeitos pelas nossas marradas de desespero?” (ANTUNES, 2010, p. 29). Em um “concerto de guinchos de ódio e de parto” (ANTUNES, 2010, p. 29), o coito é descrito sem qualquer componente aparente de erotismo, pois o que é explorado é a correspondência do casal com um par de paquidermes que se acasalam, como se essa ação fosse mais uma, entre outras, das atividades a fazerem parte do ciclo de vida que lhes seria correspondente. O “fazer amor um com o outro” surge, assim, como um exemplo do tom irônico cultivado demasiadamente pelo narrador no texto em análise, visto que os discursos de ordem moral são esvaziados diante de uma experiência carregada de uma carga animalesca. O homem enxerga em si uma natureza que se, por um lado, tem sido a todo custo refreada, domada pelas “aprendizagens” vivenciadas no decorrer de sua trajetória, por outro lado, parece ter sido o que restou dessa experiência. De igual forma, como parte da condição biológica do ser e inserida nessa lógica das sobras de uma vivência (a qual ganha algum significado justamente a partir da redução do “eu” a uma versão animalesca), encontra-se a observação do narrador sobre os seus próprios dejetos, simbolizando a prostração de alguém que se sente vivo apenas quando se realiza com seus “contentamentos de poedeira”. Em uma linguagem escatológica, o olhar sobre os excrementos ressalta, neste momento, a sensação de 267 finitude que acompanha o ex-alferes desde o período da guerra. Tal compreensão é justificada quando se entende que, por esse olhar, afloram vários aspectos, compreendendo tanto o saldo de uma trajetória que, em muitos instantes, se imaginou encerrada quanto o apequenamento do ser que se reconhece vivo apenas no atendimento natural às demandas do animal no qual parece se ver refletido. Enfim, destaca-se a consequência de uma vida esvaziada que nada tem de singelo, de pueril, ou ainda, em uma escala maior a depender da acepção do vocábulo, de humano. Assim, a depreciação do herói português é representada de variadas formas, de acordo com o que o narrador confessa a uma das figuras femininas mais importantes da trama, Sofia: Sofia, instalo-me na sanita como uma galinha a ajeitar-se no seu choco, abanando as nádegas murchas das penas na auréola de plástico, solto um ovo de oiro que deixa na loiça um rastro ocre de merda, puxo o autoclismo 164 , cacarejo contentamentos de poedeira, e é como se essa melancólica proeza me justificasse a existência (ANTUNES, 2010, p. 148, grifos nossos). As situações elencadas anteriormente sugerem uma espécie de retorno a uma condição orgânica a partir da qual o homem se vê reduzido ao conjunto de funções vitais que mantém, de alguma forma, sua sobrevivência. Seguindo uma perspectiva evolucionista, a qual defende a existência de uma linha progressiva sendo determinante do andamento de cada povo, sociedade, de um modo geral, o cenário construído no romance sugere uma regressão desse crescimento, uma volta a uma fase anterior do desenvolvimento humano, marcada, substancialmente, por um ambiente de selvageria que a vivência na guerra potencializa. Dessa maneira, é que se chega ao último estágio da composição do “zoológico humano” aqui elucidado e nele a metamorfose animalesca atinge grau máximo. Tal conversão, longe de se restringir a uma experiência de natureza mais íntima, é vista pelo narrador como algo que se alastra, alcançando “uma carga de fantasmas que lentamente se materializam, oficiais e soldados amarelos de paludismo [...], de pupilas ocas” (ANTUNES, 2010, p. 194). Logo, “o testemunho antuniano desdobra-se: da subjetividade ferida e angustiada a uma experiência coletiva, sinfônica” (D’ANGELO, 2014, p. 48) da qual, consoante com o que foi visto antes, seriam “audíveis”, quando muito, as expressões ininteligíveis de um conjunto de recursos onomatopaicos. 164 Válvula da descarga. 268 A trajetória do narrador-personagem funde-se ao destino do grupo coletivo que caminha rumo a uma intensa desumanização, a qual se inicia com o envio das tropas para a ex-colônia portuguesa, pois os compatriotas, segundo a voz narrativa, teriam “embarcado à força numa arca de bichos com cólicas, que arrancaram às florestas natais das suas repartições, das suas mesas de bilhar e dos seus clubes recreativos, para os lançar, em nome de ideais veementes e imbecis” (ANTUNES, 2010, p. 28) em um território de sofrimento e de caos. Diante de uma viagem às Terras do Fim do Mundo, a imersão no contexto apocalíptico é prenunciada, inclusive, pela referência bíblica realizada à passagem da arca de Noé, uma clara alusão ao Gênesis (6:1-22). No entanto, distante de se configurar como um espaço de salvação para a espécie humana perante o fim iminente, a arca já indicia o primeiro nível de aprisionamento a ser vivenciado por aqueles que sofreram no solo angolano “dois anos de angústia, de insegurança e de morte” (ANTUNES, 2010, p. 28). Durante o transcurso para o continente africano, os homens já são convertidos em bichos retirados de outra selva, arrancados “às florestas natais das suas repartições, das suas mesas de bilhar e dos seus clubes recreativos”, como animais enjaulados em prol de uma causa sem sentido, guiados por um “Noé perplexo” (ANTUNES, 2010, p. 28), incapaz de justificar a violência oriunda daquela situação. A sensação de viver em um contínuo apocalipse é amplificada pela espera diária do fim da vida, uma preparação para a morte, algo que Biagio D’Angelo denomina de “experiência de entrelugar165 da morte” (2014, p. 48) sobre a prosa alvo deste estudo. O crítico aludido analisa a presença no texto literário de “momentos de quase morte: violência, medo, ódio, torturas psicológicas, impossibilidade de esquecer o mal, a imobilidade do tempo e sua ausência de significação, a falta de profundidade dos relacionamentos, a brutalidade da guerra” (2014, p. 46, grifos no original). Tais elementos fazem parte dessa condição de “quase morte” que potencializa a desumanização mencionada anteriormente. Sobreviver a todo custo passa a ser a única meta nesse contexto no qual o olhar sobre a morte do companheiro de farda pode indicar a morte de si: “No fundo, claro, é a nossa própria morte que tememos na 165 O termo em questão relembra o conceito de “entre-lugar” cunhado por Silviano Santiago (2000) em texto intitulado de “O entre-lugar do discurso latino-americano”. Neste, é analisado como se constrói o discurso literário entre a tradição europeia e as marcas próprias das criações “ao sul do Equador” – “entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão” (SANTIAGO, 2000, p. 26). 269 vivência da alheia e é em face dela e por ela que nos tornamos submissamente cobardes” (ANTUNES, 2010, p. 28). O excerto sublinhado possibilita que sejam discutidos dois aspectos específicos que evocam a teorização bakhtiniana presente nesta análise. Primeiramente, há a importância da relação dialógica com esse “outro”, até mesmo, em face da morte, já que é em vista do fenecimento do “outro” que se teme, por um lado, e se enxerga, por outro, a própria extinção. Esse aspecto colabora para que se entenda o quanto a “alteridade define o ser humano, pois o outro é imprescindível para sua concepção: é impossível pensar no homem fora das relações que o ligam ao outro” (BARROS, 1999, p. 26, grifo no original). Além disso, a expectativa em relação à morte projeta nessa situação ambivalente uma vivência no limiar, algo que, retomando a dimensão carnavalizada da sátira menipeia, caracteriza-se pela visão de que “os participantes da ação se encontram no limiar (no limiar da vida e da morte, da mentira e da verdade, da razão e da loucura)” (BAKHTIN, 1997, p. 148, grifo no original). A guerra, enquanto um evento insólito, fez com que fossem descortinados os estados de espírito dos indivíduos que não mais se prendiam, diante da morte aguardada, às mentiras proferidas pelos discursos oficiais. Logo, na “metamorfose animalesca” que configura os militares, o que se observa é a revelação de uma face mais autêntica, se assim se pode dizer, desses sujeitos. Nesse sentido, os soldados se veem imersos em um processo de desnudamento que culmina com o abandono das pessoas que um dia teriam sido. À espera do fim, não caberia qualquer trivialidade, pois se convive com um ambiente extremamente nocivo, trágico que, aos poucos, redimensiona não só o olhar que o sujeito possui sobre si mesmo, mas também sobre o seu entorno que é configurado como uma profunda desordem. Enfim, em “situação de guerra, impera o instinto de sobrevivência, que se sobrepõe a qualquer princípio moral” (PERRONE-MOISÉS, 2016, p. 229), o qual, sobretudo, é abalado em uma escala maior, na narrativa em foco. Isso ocorre quando se observa que, aos olhos do narrador, ocorreria uma alteração do papel desempenhado pelos heróis da pátria portuguesa, os quais são vistos como “guerreiros de passagem, em trânsito para o arame farpado e para a morte, pobres bichos fardados escondidos nas gaiolas de madeira das casernas” (ANTUNES, 2010, p. 98). Dessa maneira, a figura do guerreiro lusitano é mutilada e dela sobressai a composição desumana dos “pobres bichos fardados” no interior de um movimento característico da atmosfera do desencanto, aspecto inerente a uma ficção prenhe de distopia. 270 Por essa medida, a frustração observada surge como uma forma de deixar ainda mais evidente que o processo de animalização contribui, sensivelmente, com a queda de qualquer pensamento grandioso ligado à imagem da antiga metrópole colonizadora. Para a composição desse quadro, não só a metáfora que traveste o homem em uma das criaturas presentes na fauna do texto antuniano é utilizada, mas também há a predominância de um tom disfemístico para descrever, justamente, o horror experienciado nas terras angolanas. Em um cenário de catástrofe, a crueldade da guerra é traduzida por meio de um olhar ofensivo, depreciativo, que sugere a abjeção dos envolvidos no conflito. Por essa lógica, o cenário apocalíptico é construído, pois o que se experiencia é a vivência dos seres em uma contínua dissolução: A pouco e pouco a usura da guerra, a paisagem sempre igual de areia e bosques magros, os longos meses tristes do cacimbo que amareleciam o céu e a noite do iodo dos daguerreótipos 166 desbotados, haviam-nos transformado numa espécie de insectos indiferentes, mecanizados para um quotidiano feito de espera sem esperança, sentados tardes e tardes nas cadeiras de tábuas de barril ou nos degraus da antiga administração de posto, fitando os calendários excessivamente lentos onde os meses se demoravam num vagar enlouquecedor, e dias bissextos, cheios de horas, inchavam, imóveis, à nossa volta, como grandes ventres podres que nos aprisionavam sem salvação (ANTUNES, 2010, p. 103, grifos nossos). A consciência da transformação operada constitui a base da ruína moral a que estão expostos os sujeitos inseridos em um “quotidiano feito de espera sem esperança”. O tempo alargado hiperbolicamente, repleto “de dias bissextos”, provoca ainda mais a sensação de clausura, a qual realça nos guerreiros lusitanos convertidos em “insectos indiferentes” uma linha de semelhança com os animais encarcerados nas jaulas do Jardim Zoológico tão relembrado pelo narrador. Designados apenas para cumprir ordens, os soldados agiriam de forma “mecanizada”, sem muito espaço para reflexão, somente executam os ditames impostos pela hierarquia militar e aguardam que o término da guerra suceda antes que ocorra o fim das suas vidas. Nesse sentido, o tempo inoperante torna-se um inimigo para aquele que se vê encurralado pelos dias intermináveis, prolongando a situação de “quase morte”, aludida anteriormente, pois 166 Equipamento utilizado para a produção de uma imagem fotográfica sem a utilização de negativo. Foi desenvolvido em 1837 por Louis Jacques Mandé Daguerre, proveniente daí o nome daguerreótipo, sendo apresentado ao público apenas em 1839. Em Lisboa, a primeira experiência com o daguerreótipo realizou-se com a presença da rainha Maria II de Portugal. 271 não se viveria humanamente nesse cenário, no entanto, de alguma forma, ainda se permanece vivo. Por essa razão, é lícito reafirmar que a metamorfose animalesca faz parte do que se pode denominar de “via-sacra traumatizante”, uma experiência sofrida pelo “eu” durantes os meses de permanência em África. Tal metamorfose é sugerida a partir de uma série de aspectos elucidados a partir deste momento, como um rol de características que o grupo descortinado pela voz narrativa passa a assumir, atributos que, se por algum motivo já foram citados nesta análise, são vistos agora no interior do contexto da Guerra Colonial. Esse cenário impulsionou as transformações apresentadas na prosa, algo que é focalizado por Maria Alzira Seixo sob o conceito de anamorfose, visto pela autora, uma vez presente na obra antuniana, como uma “marca adquirida da distorção do mundo através da guerra e da experiência negativa que ela supõe, e da abjecção humana como fase do comportamento que remete para uma mutilação de origem exterior, de ordem política e também moral” (2002, p. 509). Mantendo aqui o epíteto de metamorfose, passa a ser considerada a partir deste momento, com maior acurácia, a amplitude da mutilação coletiva presente no romance. Em primeiro plano, destaca-se a presença de um cenário marcado por uma excentricidade inerente ao nível das situações grotescas evocadas pelo narrador, a exemplo do olhar lançado por este sobre o oficial português e “seu desejo porco de velho” (ANTUNES, 2010, p. 178) que havia violentado uma prisioneira no Chiúme, soprando “pelo nariz uma asma repelente de bode” (ANTUNES, 2010, p. 178). A descrição do militar está em consonância com a derrocada da imagem dos heróis portugueses exposta anteriormente. Distante de enaltecer a imagem do colonizador que exerce seu poder sobre o “outro” colonizado, a visão construída sobre a ação apresentada no banheiro dos sargentos, que a caracterização do espaço ajuda a reforçar – uma “pocilga eternamente inundada e nauseabunda a que se chamava quarto de banho dos sargentos” (ANTUNES, 2010, p. 178) –, sublinha o grau de repugnância com o qual os responsáveis pela manutenção do título de metrópole lusitana são descritos. A imagem ilibada dos defensores do regime é violada perante as excentricidades expostas que fazem parte do contexto da guerra, elas “destroem a integridade épica e trágica do mundo, abrem uma brecha na ordem inabalável, normal (‘agradável’) das coisas e acontecimentos humanos e livram o comportamento humano das normas e motivações que o predeterminam” (BAKHTIN, 1997, p. 118). 272 Seguindo esse entendimento, é que, por exemplo, a preferência dada a certos animais para realizar a analogia observada no caso em questão é motivada, potencialmente, pela apreciação dos defeitos relacionados ao rebaixamento moral com o qual é descrito o oficial lusitano e, por extensão, todos aqueles que fizeram parte de um conflito sem razão. A fim de explorar, mais uma vez, a imagem do homem subjugado a seus instintos, saindo de uma leitura de mundo determinada por comportamentos previamente aceitos, conclui-se que “para as comparações humorísticas e satíricas são úteis apenas os animais a que se atribuem certas qualidades negativas que lembram qualidades análogas do ser humano” (PROPP, 1992, p. 66-67). No trecho recortado, muito mais que um viés satírico no desmonte da nobre imagem do guerreiro a serviço de sua pátria, o que assume maior relevo é a composição de um evento no qual se aliam o bizarro ao escatológico, o último com um sentido coprológico. Dentro de um ambiente de caos e desordem, as reações ao que se experiencia no conflito armado não poderiam ocorrer de outra maneira. Isto é, as situações não poderiam ocorrer dentro de um curso de normalidade, quando isso não faz, essencialmente, parte do contexto apresentado. Desse modo, não seria incomum, nesse cenário, a resposta imaginada pelo narrador à cena que ali assistia: “e apeteceu- me, entende, tirar também a minha pila para fora e urinar sobre eles, urinar demoradamente sobre eles, como em pequeno mijava para os sapos do quintal, abrigados no meio de dois troncos numa aflição de pedras que respiram” (ANTUNES, 2010, p. 179). Novamente, os excrementos são utilizados para significar a revolta sentida com esse panorama de destruição. A obscenidade torna-se o caminho trilhado para ilustrar um contexto de desilusão, permeado pela negação da moralidade e pela intensificação da violência, enfim, um contexto de “urgências”, de “falta” e, ao mesmo tempo, de “excessos”. Por esse liame, faz-se necessário, de algum modo, dialogar outra vez com a noção de grotesco, pois parte-se do entendimento de que “o fabuloso, o aberrante, o macabro, o demente – enfim, tudo que à primeira vista se localiza numa ordem inacessível à ‘normalidade’ humana – encaixam-se na estrutura do grotesco” (SODRÉ, 1978, p. 38). É válido deixar claro, neste momento, que essa noção não é percebida como uma forma de afirmar a presença de uma dimensão fantástica na realidade rememorada pelo ex-combatente; deseja-se, quando muito, demonstrar que o processo de animalização aflorado no romance é oriundo de um espaço de absurdo, de irracionalidade. 273 Nesse sentido, tal espaço assumiria uma componente grotesca, já que, partindo da leitura de Propp, compreende-se que sua “condição sine qua non é uma certa relação estética com os horrores apresentados” (1992, p. 92, grifos no original). Nessa sistemática, a guerra impulsiona o sentimento de ojeriza, asco da barbárie experienciada, algo que é manifesto, claramente, pela voz narrativa, uma vez convertida em um “triste bicho rancoroso”. Tal criatura padece, pois se vê sem a possibilidade de responder, verdadeiramente, aos ditames que lhe foram impostos, mantendo-se em uma posição de passividade, compartilhada pelas demais espécies desse “acervo zoológico”, de acordo com o que se observa na passagem a seguir: Mas não podíamos urinar sobre a guerra, sobre a vileza e a corrupção da guerra: era a guerra que urinava sobre nós os seus estilhaços e os seus tiros, nos confinava à estreiteza da angústia e nos tornava em tristes bichos rancorosos, violando mulheres contra o frio branco e luzidio dos azulejos, ou nos fazia masturbar à noite, na cama, à espera do ataque, pesados de resignação e de uísque (ANTUNES, 2010, p. 179). Por essa medida, não seria um deslize acentuado considerar no romance em questão de Lobo Antunes a presença de uma espécie de “escala moral” a partir da qual são medidas as situações relembradas pela voz enunciadora. Desse modo, quanto mais imerso o “eu” se encontra nas experiências traumáticas da guerra, mais ele se afasta dos rituais que outrora lhe foram incutidos pelos ensinamentos da Família, da Igreja, bem como do espaço escolar. Nesse panorama, torna-se ainda mais evidente a existência do grotesco no universo descortinado entre as trincheiras do conflito em Angola, dado que, tomando de empréstimo as reflexões de Muniz Sodré sobre tal conceito no contexto da comunicação em massa e realizando as devidas ressalvas, é possível delinear novamente o mundo dual erigido no romance, em que “o miserável, o estropiado, são grotescos em face da sofisticação da sociedade de consumo” (1978, p. 39). De um lado, há a imagem da sociedade lisboeta que, vista pelo narrador, compreende “Todo um universo de que me achava cruelmente excluído prosseguia, imperturbável, na minha ausência, o seu trote miúdo ritmado pelo coraçãozinho ofegante do despertador” (ANTUNES, 2010, p. 99); enquanto, do outro lado, sussurra a voz saturada da tentativa de sobreviver nesse espaço em desarranjo, “farto de ser larva entre larvas” (ANTUNES, 2010, p. 150). 274 Nesse ínterim, referindo-se à subversão feita de um determinismo biológico 167 , a componente grotesca rasura uma concepção de mundo etnocêntrica. A subversão citada ocorre no momento em que são aos “irmãos de farda”, aos companheiros da tropa lusitana que são atribuídas, essencialmente, as designações de fundo grotesco, o qual, em síntese, configura-se como “o mundo distanciado, daí a sua afinação com o estranho e o exótico” (SODRÉ, 1978, p. 39). Dessa maneira, a metamorfose animalesca suscitada na vivência da Guerra Colonial permitiu reconhecer o “exótico”, o “estranho” muito mais próximo do que o próprio “eu” poderia imaginar, o que faz parte de um movimento de desalienação presente no texto. Isto é, aproximado da tragédia do “outro colonizado” e partilhando do infausto destino da guerra com os demais soldados, transformados em “sapos coxos fabricados pela estupidez do Estado Novo” (ANTUNES, 2010, p. 86), o narrador-personagem discorda das referências morais, históricas, outrora lhe transmitidas, porque com elas não haveria mais identificação. Dessa maneira, a “orientação dialógica” (BAKHTIN, 2015, p. 58) do romance em estudo é novamente exemplificada à medida que se verifica que o simbolismo inerente à componente animalesca evocada na trama compreende um meio pelo qual se rechaça, por exemplo, a propaganda do regime sobre os valorosos soldados que lutavam em Angola, em defesa da nação portuguesa. O exposto sustenta-se a partir do entendimento a que chega o “eu-narrador” sobre as atrocidades da guerra que não foram reveladas nos discursos oficiais. Por meio do aprisionamento sofrido no âmbito colonial, o ex-alferes-médico pôde enxergar-se como um produto de uma forma de governo que se servia dos seus compatriotas para manter-se em África, de maneira que essa vivência revelou para si não só qual imagem era feita dos oficiais portugueses na guerra, mas também do próprio povo que foi vítima da colonização. A imersão em um ambiente impregnado pela “absurda paralisia do sofrimento” (ANTUNES, 2010, p. 102) culmina com a transformação zoomórfica que, de certa maneira, aglutina as tropas lusitanas sob uma mesma linha de ação. Nesse plano, a tribulação dá lugar à brutalidade, tendo em vista que, uma vez estabelecidos em um cenário de violência e degradação, os militares passam a reagir em consonância com os estímulos recebidos pelo habitat que compartilham. Dessa maneira, apreende-se o segundo aspecto aqui levantado sobre a metamorfose coletiva no romance em foco, 167 Tal conceito é entendido a partir das concepções de Roque de Barros Laraia, o qual afirma que são “velhas e persistentes as teorias que atribuem capacidades específicas, inatas a ‘raças’ ou a outros grupos humanos” (1995, p. 17). 275 correlacionado ao grau de selvageria assumido pelos combatentes que são simbolizados, hiperbolicamente, como “cães raivosos”. A referência a essa espécie da fauna romanesca já foi realizada anteriormente, compreendendo uma forma de demonstrar o quanto a presença do referido animal seria possível de ser observada na narrativa 168 . Tal referência ultrapassa o tempo relembrado para fazer parte do momento da enunciação em que o protagonista confessa: “sou estupidamente e submissamente terno como um cão doente, um desses cães implorativos de órbitas demasiado humanas que de quando em quando, na rua, sem motivo, nos colam o focinho aos calcanhares gemendo torturadas paixões de escravo” (ANTUNES, 2010, p. 34). Contudo, a imagem do “cão doente” na qual o “eu” se traveste corresponde ao resultado do passado vivido pelo “eu” e por seus compatriotas dentro das fronteiras do conflito em Angola. O retrocesso emerge diante de um ambiente de fúria, de apagamento de qualquer ética no qual, impregnadas pelo obscurantismo da guerra, as tropas são convertidas em “uma matilha de cães ignorantes a ladrarem furibundos no escuro” (ANTUNES, 2010, p. 72). Em um cenário onde o conveniente é exterminar para não morrer, os oficiais transformam-se em “feras”, representações coerentes com o relato de sofrimento e de atrocidade construído pelo narrador. No trânsito pelas “estações da guerra em Angola” – “os pontos cardeais da minha angústia” (ANTUNES, 2010, p. 161), conforme a voz narrativa afirma –, a transformação zoomórfica aqui analisada torna-se inerente a esse contexto, de maneira que o “material [do texto] vai sendo organizado de modo ominoso, que torna naturais as coisas espantosas” (CANDIDO, 1976, p. 77). Por conseguinte, o destino atroz que o conflito colonial reservava acarretou no sujeito a constatação do alcance a que chegou a metamorfose coletiva experienciada. Esta, se assim se pode afirmar, embruteceu os indivíduos, fazendo dessa ação uma prática contínua, cujos resultados não mais surpreendiam, apenas eram ecoados pela voz narrativa que definhava perante a leitura da violência e da ferocidade evocada nessa conversão animalesca: “a guerra tornou-nos em bichos, percebe, bichos cruéis e estúpidos ensinados a matar” (ANTUNES, 2010, p. 124). Após um ano nas Terras do Fim do Mundo, as “chagas” eram evidentes e simbolizavam mais que a crueldade da guerra, pois se maculou a imagem dos heróis portugueses que figuravam como “cães 168 Norberto do Vale Cardoso afirma que a “presença dos cães parece indiscutível no bestiário da obra de António Lobo Antunes. Esse animal representa, em alguns romances do autor, nomeadamente em Os Cus de Judas, seu segundo livro, publicado em 1979, a doença, o vazio, a miséria humana, a guerra e, em último caso, a morte” (2016, p. 180, grifos no original). 276 raivosos”, compreendendo uma ameaça à pátria, pois a ela não mais respondiam conforme o esperado. Tratados como bichos, os oficiais padeciam pelo alheamento sobre aqueles impingido, restando, em um dado momento, uma voz de revolta, permeada por certa dose de sonho, a qual não se resigna diante do rótulo recebido: “Nós não somos cães raivosos, berrava o tenente de cabeça perdida para o enviado do comando de zona, diga a esse caralho do catano 169 que nós não somos cães raivosos” (ANTUNES, 2010, p.125). Não obstante, o grito de fúria do tenente é retificado pelo narrador que, ao alterar o tempo verbal da afirmação proferida, modifica a condição dos soldados jogados à própria sorte nesse cenário, rememorando uma trajetória na qual são compilados os passos da degradação coletiva que aqui vem sendo analisada: Nós não éramos cães raivosos quando chegámos aqui disse eu ao tenente que rodopiava de indignação furiosa, não éramos cães raivosos antes das cartas censuradas, dos ataques, das emboscadas, das minas, da falta de comida, de tabaco, de refrigerantes, de fósforos, de água, de caixões, antes de uma Berliet 170 valer mais do que um homem e antes de um homem valer uma notícia de três linhas no jornal, Faleceu em combate na província de Angola (ANTUNES, 2010, p.125, grifos nossos). Nessa passagem, mais uma vez os homens surgem reduzidos à proporção de miniaturas, tendo em vista que na busca pela manutenção de um poder, os sujeitos possuem pouca importância nesse processo. Na verdade, o narrador parece suscitar um questionamento, o qual ele mesmo responde: qual valor teria a humanidade em um contexto de guerra? Seja no espaço lusitano onde o aviso da morte dos soldados portugueses renderia “uma notícia de três linhas no jornal”, seja no ambiente truculento do conflito em Angola, no qual o horror alia-se à vivificação de situações bizarras – a exemplo de “quando se amputou a coxa gangrenada ao guerrilheiro do MPLA apanhado no Mussuma 171 os soldados tiraram o retrato com ela num orgulho de troféu” 169 Designação vulgar empregada para fazer referência ao membro sexual masculino, popularmente utilizada também para manifestar surpresa ou contrariedade. 170 Um dos veículos mais utilizados pelas forças armadas portuguesas nos anos 60 e 70, particularmente, na Guerra Colonial. Tratava-se de um veículo de transporte pesado, adequado para terrenos e climas extremos, de modo que muitos países envolvidos em conflitos nas suas colônias fizeram uso desse produto, entre eles, Portugal. Em uma tentativa de baixar o custo da Guerra Colonial, o veículo em questão passou a ser produzido a partir de 1964 pela Metalúrgica Duarte Ferreira, sob a licença da Berliet, na vila portuguesa do Tramagal, de onde deriva a nomeação Berliet Tramagal. 171 Cidade e comuna angolana que se localiza na província de Malanje. 277 (ANTUNES, 2010, p. 124), o ser humano é visto meramente a partir de um duplo enfoque: ora assume a posição de presa, ora torna-se o predador. Dessa maneira, em dadas circunstâncias, comemora-se qualquer triunfo sobre os grupos que exerciam resistência à presença portuguesa em solo angolano. Já em outras situações, o sujeito enxerga, na sua passividade recorrente e na dos demais que o cercam, as “presas” de um sistema em que “nos mentiam e nos oprimiam, nos humilhavam e nos matavam em Angola” (ANTUNES, 2010, p. 152). Convertidos em animais aprisionados, os soldados tornavam-se os meios pelos quais os “generais nos gabinetes com ar condicionado de Luanda” (ANTUNES, 2010, p. 188) poderiam continuar deslocando os “pontos coloridos no mapa de Angola” (ANTUNES, 2010, p. 188). Ao mesmo tempo, permanecendo o conflito, as tropas favoreciam os negócios dos “cavalheiros que enriqueciam traficando helicópteros e armas em Lisboa” (ANTUNES, 2010, p. 188). Nesses momentos, aflora a condição do soldado enquanto ser objetificado, o que corresponde ao último aspecto analisado aqui sobre a metamorfose coletiva. A coisificação do ser compreende uma outra forma de simbolizar a imagem do indivíduo travestido em mercadoria, submetido a uma lógica econômica que determina a importância de se matar e de se morrer pela continuidade da bandeira imperialista, sendo regrado pelos antigos ideais patrióticos. Com efeito, tais ideais surgem modificados no contexto relembrado pelo narrador, determinados pela ótica do capital em que, como foi visto antes, uma Berliet vale “mais do que um homem”. Em resumo, consoante com as observações de Marshal Berman sobre o que ele definiu como a terceira fase dos tempos modernos (circunscrita ao século XX), destaca-se que “as velhas formas de honra e dignidade não morrem; são, antes, mudadas, incorporadas ao mercado, ganham etiquetas de preço, ganham nova vida, enfim, como mercadorias” (1986, p. 108). Nesse sentido, as “balas envenenadas” dos discursos nacionalistas atuariam conforme os ditames da lógica capitalista, já que, a partir dela, o soldado é convertido em um número, uma “peça a mais no tabuleiro da guerra”, ou seja, surge reificado, subjugado à visão de um poder dominante. Remetendo-se ao sentido elencado pela conceptualização marxista, o homem e suas ações passam a ser concebidos de acordo com um valor econômico do qual disporiam ou não nesse mercado. O questionamento incitado anteriormente pelo narrador parece encontrar, enfim, sua resposta, já que os valores, as relações entre o sujeito e o mundo, as leituras histórico-sociais que 278 legitimam a sociedade são ajustados segundo um índice de lucratividade do qual estariam ou não imbuídos. O ex-alferes-médico adquire, dessa forma, a consciência do aniquilamento a que estaria ligado, convertido em “um bicho acossado, branco de vergonha e de pavor” (ANTUNES, 2010, p. 135), o qual descortina mais uma vez a desvalorização do ser humano frente ao discurso do general e às necessidades armamentistas do conflito: As Berliets são ouro piquem o trajecto inteiro de modo que três homens de cada lado exploravam a areia adiante dos carros porque uma camioneta era mais necessária e mais cara do que um homem um filho faz-se em cinco minutos e de graça não é verdade uma viatura demora semanas ou meses a atarraxar parafusos, aliás havia ainda montes de gente no país para mandar de barco para Angola mesmo descontando os filhos das pessoas importantes e os protegidos pelas amantes das pessoas importantes que não viriam nunca o paneleiro172 do rebento de um ministro foi declarado psicologicamente incompatível com o Exército (ANTUNES, 2010, p. 106). As prioridades do regime são expostas, os custos elevados do conflito são postos em primeiro plano, principalmente, quando se leva em consideração a crise econômica vivida por Portugal, a qual era ampliada pelo arrastar da guerra. Reavivando esse panorama historiográfico neste momento da análise, observa-se que, de acordo com Fernando Rosas, em “1972 e 1973 a situação deteriorou-se dramaticamente e, na prática, cessaram as condições de crescimento [...]. No fundo, desaparecida a confiança, praticamente paralisado o investimento produtivo, o sistema perdera condições de funcionamento” (1998, p. 421). Nessa medida, a desvalorização do homem é sentida frente aos cálculos da balança comercial da guerra e nela “uma camioneta era mais necessária e mais cara do que um homem”. Para essa dinâmica, a resposta do narrador não seria outra a não ser a estratégia discursiva mais utilizada na prosa em questão para desfazer, ou melhor, desmontar os discursos de autoridade. A ironia é, por essa medida, acionada, sugerindo, até mesmo, a via do humor para ridicularizar o pensamento político-mercadológico que a voz do general representa. Para tanto, o “eu narrador” amplia, de certo modo, a visão de mundo defendida pelo general, justificando-a, afinal, “um filho faz-se em cinco minutos e de graça não é verdade uma viatura demora semanas ou meses a atarraxar parafusos”, com o intuito de subverter a validade dessa afirmação. Por essa tonalidade irônica, o narrador- 172 Tal vocábulo pode ser considerado um tabuísmo em Portugal, sendo utilizado para referir-se a características de cunho pejorativo associadas à homossexualidade. 279 personagem critica o quão disparatada seria a lógica que determina a permanência de milhares de portugueses em Angola, por exemplo, sofrendo os horrores da guerra, enquanto o mais importante seria salvaguardar as Berliets, consideradas ouro nessa sistemática. Nesse caso, o “enunciado irônico é interpretado, então, como uma pluralidade de vozes orientadas nos eixos da contrariedade e/ou da contradição” (CASTRO, 2005, p. 120), já que a voz do ex-combatente deturpa o pensamento do oficial ao qual estava subordinado. Inserido nas relações de poder, o tom irônico do narrador incita a avaliação sobre o valor de mercado de cada sujeito, visto que, para determinar quais são os indivíduos que poderiam ser enviados para Angola, há que se fazer um desconto, retirar dessa aritmética, desse jogo de influência, “os filhos das pessoas importantes e os protegidos pelas amantes das pessoas importantes que não viriam nunca”. Destarte, a ironia do narrador põe em xeque a nobreza, a ética, a honra de uma nação pela qual nem todos foram “convidados” a lutar. Escolhida a “vítima”, se assim é possível afirmar, o que sobressai são as marcas de um sistema corrompido no qual o valor de si é atribuído pela posição de poder que cada um ocupa: seja o “rebento de um ministro [que] foi declarado psicologicamente incompatível com o Exército”, sejam os protegidos pelas amantes das pessoas importantes. A esta altura, essa qualificação é digna de questionamento, já que, em um universo de carnificina, de espera pela morte, o “importante” tornou-se o custo de uma Berliet, ou ainda, ter sido alguém prestigiado na cotação estabelecida pelo jogo de influências mencionado anteriormente. É chegado o momento em que se poderia questionar a quem a animalização característica do cenário de guerra observado, de fato, acomete, isto é, poder-se-ia indagar se a metamorfose coletiva estaria restrita apenas aos companheiros de tropa mais próximos do “eu narrador”. Com efeito, é possível perceber que a transformação imagética dos sujeitos atinge proporções cada vez mais significativas, se os soldados considerados rasos são convertidos em cães raivosos, à Polícia Política não se é atribuído um destino diferente. Enquanto agente repressor do Estado, a PIDE é configurada como mais um predador no ambiente da guerra, atuando como um censor que se mantinha por meio da violência de um sistema que oprimia não só os filhos da terra portuguesa, mas também aqueles que foram brutalmente colonizados, entre outras formas, “pelos rostos triangulares de lagartos furiosos dos pides” (ANTUNES, 2010, p. 149). 280 Dessa maneira, entre tantos elementos da fauna simbólica presente no romance de Lobo Antunes, a PIDE assume, por exemplo, uma imagem correspondente a um instrumento de força do regime. Em Angola, essa força coercitiva tratava de “devorar” a todos que se impusessem frente às suas determinações, conforme salienta a própria voz narrativa: “No dia seguinte, a caminho do hospital civil, passei pelo quartel da Pide onde os prisioneiros sachavam a lavra dos agentes sob a vigilância feroz de um carcereiro armado, encostado à sombra da casa como uma hiena retesa antes do salto” (ANTUNES, 2010, p. 156). Sob a “cadência furtiva das hienas” (ANTUNES, 2010, p. 14) – leitura evocada a partir dos augúrios colhidos no estágio inicial das lembranças do Jardim Zoológico –, o ex-alferes-médico adivinha a hierarquia existente na “cadeia alimentar” formada entre as voltas do arame. A estratificação do comando militar é configurada pela escolha das espécies que perfazem a “metamorfose animalesca” presente na trama. Ademais, tal entendimento ainda é captado pela figura do soba que, com sua sabedoria ancestral, evidencia que: “– Sôr pide manda mais que os tropa – verificava o soba numa incredulidade desolada, apontando os paisanos brancos que vinham de tempos a tempos conspirar com os catangueses 173 nos cantos do arame” (ANTUNES, 2010, p. 79). Nesse sentido, no topo dessa cadeia, em que a batalha colonial acaba por dizimar a todos, encontram-se “os senhores da guerra de Lisboa” (ANTUNES, 2010, p. 165), os quais são representados pelos olhos vorazes da PIDE, encarregada de vigiar, de punir e de gerenciar as ações decorridas no conflito, “descerrando os dentes enormes numa satisfação de hiena” (ANTUNES, 2010, p. 157). Em um segundo patamar, ancoram as tropas, amargando as mazelas de uma luta desacreditada, além de sofrerem os excessos do comando de guerra, por meio de seus brigadeiros, da PIDE, os quais, autoritariamente, traçavam os caminhos do combate e o modo como ele seria desenrolado. Para esse universo de poder, aqueles que perdiam suas vidas no confronto não eram relevantes, como a voz indignada do tenente avaliava: “– Tão cabrões são uns como os outros, doutor, e quem anda aqui a foder o coiro somos nós” (ANTUNES, 2010, p. 79-80). Na última posição, por sua vez, encontram-se os povos subjugados pela dinâmica colonial e pelas consequências de uma luta que daria origem a uma guerra fratricida, a exemplo dos luchazes, impedidos “de pescar e de caçar, sem lavras, 173 Conhecidos também como “Forças Tigres”, os Katanguenses, originários do Congo, adentraram em Angola após a morte de seu líder, Moisés Tchombé. Formando uma força militar, aqueles indivíduos “eram utilizados pelos militares portugueses contra os Movimentos de Libertação” (CASCUDO, 1979, p. 25). 281 prisioneiros do arame farpado e das esmolas de peixe seco da administração, espiados pela Pide, tiranizados pelos cipaios 174 , os luchazes fugiam para a mata, onde o MPLA, inimigo invisível, se escondia” (ANTUNES, 2010, p. 43). De um modo geral, consumindo os envolvidos com esse cenário de caos figura a vivência nesse cerco. Isto é, a guerra termina, por fim, desmobilizando a todos, restando apenas o desejo contínuo de sobreviver em um espaço que finda também sendo convertido em uma selva na qual, como visto até o momento, é apresentada ao homem a sua outra face, irreconhecível, à primeira vista, quando comparada à sua vida de outrora. Nessa outra versão, reúnem-se os aspectos comentados aqui anteriormente, ligados à manifestação do instinto, da irracionalidade e, finalmente, da selvageria, resultados da tragédia experienciada, a qual novamente o narrador evidencia na passagem que segue: Trazíamos vinte e cinco meses de guerra nas tripas, de violência insensata e imbecil nas tripas, de modo que nos divertíamos mordendo-nos como os animais se mordem nos seus jogos, nos ameaçávamos com as pistolas, nos insultávamos, furibundos, numa raiva invejosa de cães, nos espojávamos, latindo, nos charcos da chuva (ANTUNES, 2010, p. 172). A fim de condensar a metamorfose animalesca e, assim, finalizar este momento da análise, é pertinente elencar os representantes mais significativos da fauna construída no romance em questão de Lobo Antunes. As espécies em questão perfazem o que se denomina aqui de uma “tríade simbólica”, a qual confere ao “eu” e ao seu universo coletivo a expressão das sensações experimentadas no decurso da luta colonial por meio de uma conversão animalesca. Fazendo parte da referida tríade, acha-se o que foi comentado anteriormente quanto à transformação zoomórfica dos sujeitos em “cães raivosos”, destituídos de qualquer civilidade para, de forma bestial, encenarem o jogo no qual o narrador confessa que “nos ameaçávamos com as pistolas, nos insultávamos, furibundos, numa raiva invejosa de cães, nos espojávamos, latindo, nos charcos da chuva”. A fúria representada por essa transmutação encontra na figura canina uma forma de eclodir os “vinte e cinco meses de guerra nas tripas, de violência insensata e imbecil nas tripas”, vivenciados pelos prisioneiros do arame. 174 Nas antigas colônias ultramarinas portuguesas, os cipaios eram conhecidos como os policiais, isto é, eram militares indígenas recrutados, geralmente, para o policiamento local ou rural, presentes, com maior número, em Moçambique, sendo comandados por oficiais europeus. 282 O segundo exemplar da tríade citada corresponde a um animal bastante presente na prosa de Lobo Antunes, embora não se possa afirmar que, em termos quantitativos, se comparado a outros romances do autor, tal espécie possua o mesmo grau de referência do que é manifesto na narrativa de Os Cus de Judas. No entanto, o grau de relevância do simbolismo presente na figura do pássaro é algo bastante apreciado no relato agônico do ex-alferes-médico. Em alguns textos antunianos, o pássaro configura a via para que um exercício crítico seja realizado, de modo que o seu aparecimento torna-se uma forma instigante de refletir sobre o vivido e sobre as ações das personagens nesse circuito. Para citar apenas um exemplo, assalta, no Manual dos Inquisidores, o “sarcasmo dos pássaros” (ANTUNES, 1998, p. 75) frente aos indivíduos que perderam suas posições de poder quando ocorrera o declínio do regime salazarista. Já na narrativa em análise, os pássaros surgem, conforme leitura de Seixo 175 , “valorizados em beleza e em dignidade, são por vezes relegados a um estado de truncagem, dilação ou impotência” (2002, p. 61). Compreendendo um dos motivos da narrativa, o pássaro é tido, paradoxalmente, como um reflexo da imobilidade, da impossibilidade de reação dos sujeitos na trama. Por esse motivo, o paralelo construído entre homens e bichos, nesse caso, remete constantemente a um estado de abatimento, a exemplo das “corujas cansadas dos guarda-nocturnos” (ANTUNES, 2010, p. 29), ou ainda, ao retrato de estagnação que a visão da destinatária intratextual do relato compõe, “inalteravelmente imóvel” (ANTUNES, 2010, p. 45), como um “pássaro de pálpebras pintadas pousado no ramo do banco a tilintar as pulseiras indianas na música precisa dos seus gestos” (ANTUNES, 2010, p. 45). Em uma perspectiva simbólica, ao pássaro relaciona-se, comumente, a noção de alforria, de libertação da alma que se desprende do corpo (de acordo com CHEVALIER & GHEERBRANDT, 1989, p. 687), de distanciamento de uma condição terrena pela sublevação característica da ave, traduzida, inclusive, como um símbolo do vínculo entre céu e terra. Na elaboração zoomórfica do romance em foco, ocorre uma ruptura com essa unidade de sentido. Em outras palavras, se o simbólico “é necessariamente regido pelo princípio de integridade, de reencontro das partes, de redescoberta da 175 Fazendo parte dos motivos predominantes da narrativa em estudo, encontram-se os insetos elencados por Maria Alzira Seixo, o que possibilita a leitura da “agressividade reactiva mediana, mesmo seca e incapaz, por vezes afloradamente doce” (2002, p. 61) no texto. A presença desses animais não foi desconsiderada nesta pesquisa, entretanto apenas elencaram-se para a “tríade simbólica” referida as espécies que mais bem ilustrariam a degradação a que foram submetidos os sujeitos observados pelo narrador, algo que melhor interage com a atmosfera de desilusão e de fracasso que se analisa no romance. 283 harmonia pela reconstrução da totalidade” (GOUVEIA, 2003, p. 163), a narrativa antuniana parte dessa reunião de elementos simbólicos ligados ao pássaro para, paradoxalmente, fundar na leitura desarmônica, se assim se pode dizer, desses elementos outra dimensão significativa para tal animal, condizente, por sua vez, com o espaço onde ele está inserido. Por essa lógica, é que na conversão animalesca apresentada, os soldados em sua solitude são observados “apontando ao teto narizes agudos de pássaros que apodrecem” (ANTUNES, 2010, p. 155). Longe da imagem próspera de liberdade, o que se propaga é o aprisionamento do pássaro frustrado, contemplado em sua ruína pelo impedimento de fugir daquela condição, “apodrecendo” diante da impossibilidade mesma de ter seu voo alçado. Tal situação ainda pode ser sentida no trecho a seguir, recortado para reforçar as leituras construídas sobre a presença simbólica desse animal na trama: Em Mangando e Marimbanguengo 176 , vi a miséria e a maldade da guerra, a inutilidade da guerra nos olhos de pássaros feridos dos militares, no seu desencorajamento e no seu abandono, o alferes em calções espojado pela mesa, cães vadios a lamberem restos na parada, a bandeira pendente do seu mastro idêntica a um pênis sem força, vi homens de vinte anos sentados à sombra, em silêncio, como os velhos nos parques (ANTUNES, 2010, p. 162, grifos nossos). O voo malogrado amplia-se perante um ambiente em dissolução. Nesse espaço, a voz narrativa gradativamente focaliza a “inutilidade da guerra” diante do que parece ser um cortejo do caos no qual são expostas as dores, a desolação e a descrença com a possibilidade de um futuro perante os “olhos de pássaros feridos dos militares”. A derrota envolve o contexto apresentado, o que não está relacionado apenas à ausência de um triunfo militar e, sim, à própria sensação de descalabro a que se confinou a humanidade, propagando o fim de si mesma, pois já não havia mais esperança de suplantar essa situação. A imagem do falo sem força intensifica a perda do brio, do vigor que faz os sujeitos almejarem, em sua espera interminável, uma fuga possível desse absurdo. Já não há mais coragem para tentar o voo, tal qual a juventude portuguesa que foi representada como “aves doentes”, os “pássaros feridos” em que, metaforicamente, travestem-se os militares, aterrissam, decaem e, assim, acedem. A tropa, dentro de um sentimento de desencanto, encarava a vida como alguém que só 176 Cidade localizada na província de Malanje (Angola), sede de um dos destacamentos de Exército Português. 284 aguardava o seu fim. Enfim, os soldados taciturnos são vistos pelo narrador, em mais uma comparação tecida, como “homens de vinte anos sentados à sombra, em silêncio, como os velhos nos parques”, imagem que simboliza mais uma vez a distopia que o texto encarna. A partir deste momento, é possível deter-se à análise do último elemento que compõe a tríade simbólica citada, chegando, enfim, à elucidação de uma das metáforas mais importantes presentes no romance, circunscrita à filosofia propagada a partir de um “aquário de azulejos”, tomada como segunda instância da metamorfose animalesca que aqui vem sendo explorada. Nessa instância, o sujeito converte-se, finalmente, na figura de um peixe, apresentando nessa transformação o aprofundamento da sensação de aprisionamento. Uma vez enclausurado, o “eu” torna-se alguém submisso à sua sina que o impele a aceitar a constatação de que, partilhando dessa característica com os demais, de fato, “Éramos peixes, somos peixes, fomos sempre peixes, equilibrados entre duas águas na busca de um compromisso impossível entre a inconformidade e a resignação” (ANTUNES, 2010, p. 103). O jogo verbal deslindado pelo narrador suscita a compreensão de que a morbidez inerente ao estágio de metamorfose coletiva observada tem feito parte da vivência dos indivíduos para além, simplesmente, das trincheiras da guerra em África. Por mais que tal espaço tenha dilatado as impressões já existentes sobre o enquadramento do olhar a que foram circunscritos os seres, oscilantes “entre duas águas na busca de um compromisso impossível entre a inconformidade e a resignação”, o tom confessional da voz narrativa assevera que não é de seu conhecimento outra forma de vida que não aquela. Como “marionetes” a serviço de algo com o qual não concordavam e não encontrando meios para se impor perante tal determinação, os indivíduos permaneciam “nadando” a esmo, regidos por “coordenadas” com as quais não se sentiam orientados, ou mesmo, protegidos. Ao afirmar “fomos sempre peixes”, o narrador amplia na trama a presença do assujeitamento, tão bem conhecido por ele desde o tempo infantil e o projeto do clã familiar de vê-lo, enfim, transformado em um homem. O alargamento dessa condição ocorre, porque o “eu narrador” percebe nos demais o mesmo exercício de apagamento de qualquer atitude, uma prática que os peixes, preenchendo a imagística do texto, sintetizam. Assim, de acordo com a análise de Seixo sobre a prosa em foco, o animal aquático produz a “função de desmerecimento da acção” (SEIXO, 2002, p. 105), aspecto passível de ser analisado também no trecho apresentado a seguir: 285 Éramos peixes, percebe, peixes mudos em aquários de pano e de metal, simultaneamente ferozes e mansos, treinados para morrer sem protestos, para nos estendermos sem protestos nos caixões da tropa, nos fecharem a maçarico lá dentro, nos cobrirem com a Bandeira Nacional e nos reenviarem para a Europa no porão dos navios, de medalha de identificação na boca no intuito de nos impedir a veleidade de um berro de revolta (ANTUNES, 2010, p. 103). Os contornos de um “aquário de pano e de metal” representam outras formas de encarceramento, de modo que tanto a farda do soldado português quanto o navio que o transporta para a luta em África compreendem redutos minúsculos, como “aquários”, prisões, que sufocam os indivíduos dentro de uma realidade atroz, impedindo-os de manifestarem “a veleidade de um berro de revolta”. Em uma dimensão ainda mais trágica, o aquário serve de metáfora do próprio caixão, cadeia perpétua do soldado que retorna à Europa, com sua “medalha de identificação na boca”, a qual decreta o silenciamento final do peixe mudo que havia se tornado. Tal leitura é reforçada pelo que Maria Alzira Seixo denominou de “domesticidade inócua dos instintos e relações” (2002, p. 61) quanto ao entendimento possível de ser construído acerca da presença dos peixes no romance, o que pode ser observado pela reiterada presença, comum nessas circunstâncias, do emprego linguístico de um sujeito paciente. Os indivíduos tornam-se alvos das ações desenvolvidas por aqueles que exercem seu poder sobre os demais, de forma que os peixes mudos são “treinados para morrer”, são fechados a maçarico em seus caixões, cobertos com a Bandeira Nacional e reenviados à Europa nos porões dos navios. Se paradoxalmente os peixes são “simultaneamente ferozes e mansos”, ao final do processo, o que se verifica é a extinção de qualquer possibilidade de ação. O acovardamento, já comentando antes, persiste e a indignação termina abafada entre tantas formas de contenção do sujeito, as quais juntas só intensificam uma condição vivenciada, de um modo geral, pelo lusitano que se achava governado pelo regime salazarista. Dessa maneira, a amplitude da infeliz constatação do narrador – “fomos sempre peixes” – torna-se ainda mais justificável, pois simboliza o contexto de estagnação vivenciado em Portugal no sentido de que esse país, à época do Estado Novo, estava distante da marcha dos acontecimentos, da política econômica que se instaurava no restante da Europa. Nesse panorama, a triste percepção da realidade dos portugueses consiste em um julgamento negativo sobre a imobilidade dos indivíduos, 286 imersos em um marasmo que termina por convertê-los em animais domados, conformados com o cotidiano em que se acham inseridos. Apesar de, no imaginário simbólico inerente às figuras dos peixes e do meio no qual eles se inserem, a água, a presença da fluidez e do movimento associado ao nascimento e à restauração do ser compreender algo bastante manifesto (de acordo com CHEVALIER & GHEERBRANDT, 1989, p. 15), no romance predomina, quanto ao enfoque dessa questão, a imobilidade. A água é represada e essa conjuntura estimula o estado de inércia, enfim, de conformismo, salientado anteriormente. Ao mesmo tempo, a clausura promove no sujeito tornado um “peixe mudo” um maior contato com o seu mundo interior, ou seja, abre-se um convite a mais à introspecção para alguém que se põe a refletir sobre a tragédia vivida e as consequências dela em seu entorno. Esse ambiente que inspira um quadro de resignação dialoga com a imagem dos peixes cultivada no universo alegórico do “Sermão de Santo António aos Peixes”, pregado em 1654, pelo Padre António Vieira, no Maranhão. Nesse texto, os seres aquáticos correspondem a símbolos das virtudes e dos vícios humanos, de forma que, enquanto os últimos são censurados no momento do “Sermão”, as primeiras são apreciadas, principalmente, a obediência e a quietude dos peixes, características que os fariam ser dignos da salvação pela fé, pois isso os afastaria da maldade terrena. Assim, a retidão esperada na figura dos soldados portugueses na narrativa antuniana, os quais deveriam atender aos desígnios da pátria aliados aos propósitos divinos, encontra uma ressonância na subserviência dos peixes que nadam com a corrente imposta a estes, pois, como bons ouvintes que são, apenas “ouvem e não falam” (VIEIRA, 2014, p. 8). A “condição aquática” do indivíduo propicia a reflexão sobre os discursos que ecoam no contexto social no qual ele está inserido a partir de outro tipo de “lente”, motivando um redimensionamento desse olhar que surge condizente com as fronteiras do aquário imagético onde o “eu” se instaura. Imerso em um suplício em prol de interesses que não compartilha, o “eu” enxerga em tudo e em todos a presença de uma irrevogável distopia, uma sensação de finitude que se inicia dentro de si mesmo: assalta-me por vezes a certeza esquisita de ser um peixe morto neste aquário de azulejos, cumprindo um ritual diário entre o espelho e o bidé no desânimo com que os defuntos se movem, talvez, por sob a terra, fitando-se uns aos outros com pupilas de inexprimível terror (ANTUNES, 2010, p. 148, grifos nossos). 287 Junto da imagem, por assim dizer, apocalíptica presente no romance, marcada pela sensação de fechamento de um ciclo, o que historicamente poderia indicar o processo de independência iniciado nas antigas colônias e, com isso, o fim do império expansionista português, assalta a reflexão sobre o que corresponderia o destino da antiga metrópole a partir daquele momento. Longe de oferecer uma solução para o questionamento posto, já que a “resposta cabe aos leitores, que não encontrarão nas obras literárias nenhuma autoajuda formulada como mensagem, conselho ou receita, mas um poderoso estímulo à sua própria percepção do real e à reflexão” (PERRONE- MOISÉS, 2016, p. 237), à indagação soma-se a necessidade primeira de reconhecer o insucesso de um projeto político que dava sinais de seu esgotamento, terminando por vitimar os que dele fizeram parte. Ao final, a volta ao passado é concluída com a leitura de que se havia um rumo, um norte a ser seguido, este fora perdido enquanto ocorria o “esvaziamento do aquário” não mais repleto de seus “peixes domesticados”, eliminados na guerra, “evaporados numa espumazinha viscosa à tona, como decerto os peixes morrem no rio, de órbitas apodrecidas a boiarem” (ANTUNES, 2010, p. 147). Por essa lógica, os homens são valorados como excrementos sociais que, à maneira dos peixes em decomposição a boiarem no rio, são tidos como elementos descartáveis, os restos de um espaço em desarranjo que insistem em vir à tona quando é desejo de muitos que estejam para sempre submersos, apagados do relato oficial da história portuguesa. O presente surge, diante desse panorama, como “um porão à deriva, um enorme armário de que se perdeu a chave, um aquário sem peixes naufragado numa ausência de pedras, e apenas percorrido pelas sombras na água de um desassossego informe” (ANTUNES, 2010, p. 138). Nesse momento, a sensação de vazio é intensificada e a solidão, única certeza recorrente na vida do infeliz sobrevivente da guerra, atinge o seu ápice, uma vez ampliada pela condição traumática revivida a partir do dimensionamento peculiar das memórias no interior de um “odioso aquário de azulejos” (ANTUNES, 2010, p. 153). O espaço aludido por meio da metáfora em questão é atualizado na narrativa como um ambiente que propicia o reenquadramento do sujeito dentro de uma situação de confinamento. Em igual medida, tal microcosmo provoca nesse indivíduo um retorno a uma dimensão animalizada, tornado peixe novamente, enquanto dirige-se à sua ouvinte mais habitual, a comissária do MPLA, Sofia: “Quando ensaboo a cara, Sofia, sinto as escamas vítreas da pele nos meus dedos, os olhos tornam-se salientes e 288 tristes como os dos gorazes na mesa da cozinha, nascem-me barbatanas de anjo dos sovacos” (ANTUNES, 2010, p. 147). Não à toa, a metáfora aludida faz referência a um espaço de transição entre o passado e o presente, sendo mencionado apenas quando a memória evoca um dos episódios mais marcantes da trajetória do ex-combatente, circunscrito ao encontro com a personagem Sofia. A comissária do MPLA, uma vítima da violência da PIDE, acaba deixando a sua condição de mulher liberta para tornar-se mais uma prisioneira a sofrer os horrores da guerra. Dessa maneira, a lembrança de Sofia, alguém que possibilitou ao “eu-narrador” a sensação de estar vivo, mesmo em um contexto repleto de destruição, surge como um contraste inicial frente a um indivíduo cercado por um ambiente sombrio, cuja leitura os espelhos intensificam, ao indicarem o envelhecimento desse homem. De igual forma, os azulejos do banheiro – convertido em aquário – ampliam a imagem da figura inerte, do “náufrago submerso” (ANTUNES, 2010, p. 15) no qual o “eu” havia sido transformado: “ao fim de tantos anos de deixar-te permaneço vivo, durando, Sofia, neste aquário de azulejos que o foco do teto obliquamente ilumina, peixe morto à tona, de órbitas apodrecidas a boiarem” (ANTUNES, 2010, 148). Por fim, diante da impossibilidade de evadir-se desse “aquário de azulejos”, uma vez refém, nesse momento, de suas próprias memórias, o narrador assume a postura daqueles que, realmente, perderam sua vida em África, permanecendo impassível frente à realidade que o cerca, agindo com a indiferença comum aos que olham para sua existência e se veem apenas “durando”. Nessa sistemática, prisioneiro de suas trágicas lembranças como fora também do arame, o “eu animalizado” acabar propiciando um trânsito profícuo entre dois universos que participam da elaboração dessa voz fragmentada sobre a qual se falou anteriormente. Isto é, trazendo para o centro mais uma vez a questão binária na prosa em estudo, a voz narrativa apresenta, de um lado, um complexo zoológico inter-relacionado às metamorfoses que a vivência na guerra impulsionou nos seres enquanto, do outro lado, ocorre a reunião de um conjunto de referências artísticas que, constantemente, são mencionadas na trama. Próprio das dimensões fragmentadas do “eu”, destaca-se mais um dos pares característicos da narrativa, formado pela imagem animalizada exposta anteriormente versus a composição de um homem “civilizado”, imerso em uma carga extensa de referências que, compiladas, formam um vasto repertório intelectual do “eu”. 289 5.3. A evocação de uma matriz intelectual em um contexto de guerra Em um cenário no qual a duplicidade assume o aspecto de fio condutor do texto, percebe-se que a oposição construída, muitas vezes, entre alguns pares presentes na trama, a exemplo do passado e presente, nascimento e morte, Angola e Lisboa, chegada e partida, apoia-se em um encontro de uma série de elementos considerados incongruentes no enredo. Dito de outra forma, em um contexto de caos, em suma, de morte, reavivado pelo “eu”, alguns aspectos surgem deslocados na trama, a exemplo do repertório de aspectos culturais e de requinte evocado no texto em contraposição ao clima de barbárie reencenado a partir das lembranças trazidas à tona. Por essa razão, o tecido textual, de acordo com o que foi sublinhado no terceiro capítulo desta tese, é caracterizado como uma conjuntura fragmentada, principalmente, devido à presença de uma série de elementos contrastantes que, muitas vezes, ajudam a compor o universo em desarranjo que o narrador apresenta. Nesse sentido, no relato de um ex-combatente atravessado pelos horrores da guerra, sobressaem, constantemente, outras vozes que, neste momento, potencializam a projeção, até certo ponto, de Os Cus de Judas como um “romance enciclopédico”, repleto de referências históricas, literárias, lusitanas ou não, pictóricas e artísticas, em sentido lato, já que se destacam no enredo desde obras consideradas clássicas até artistas e produções do cinema americano 177 . Faz-se a ressalva, inicialmente, de que a presença de tais referências no romance em foco de Lobo Antunes não é, de forma nenhuma, vista como algo incomum, de tal maneira que já foi destacada anteriormente, neste estudo, a alusão feita, por exemplo, a Camões, a Picasso e a Leonardo da Vinci entre as vozes que compõem todos os “ontens” (ANTUNES, 2010, p. 66) a fazerem parte do vasto repertório do “eu”. Dessa maneira, cabe analisar como ocorre o cruzamento entre esses dois universos que são introduzidos nas lembranças do sujeito habitado por vários “ontens”, contribuindo com a fragmentação narrativa característica da prosa em relevo. Em um 177 Devido ao número de artistas, obras e datas correspondentes à historiografia de Portugal e para além dela presentes na narrativa, não será possível, comentar todos os exemplos que fazem parte desse “arcabouço enciclopédico”, de modo que, na análise empreendida, o foco recai sobre os aspectos que reforçam o trânsito do “eu narrador” entre o universo da guerra e o espaço da cultura, em linhas gerais, da produção artística humana. Entre as categorias que fazem parte do repertório cultural apresentado no texto literário, encontram-se as referências pictóricas, a exemplo de Cézanne, Magritte, Salvador Dali, Van Gogh; literárias, englobando Proust, Tolstói, Fernando Pessoa, Eça de Queirós; musicais, sob a melodia de Chopin, Vidalie e o contexto cinematográfico no qual surgem nomes como Al Capone, Humphrey Bogart, Lauren Bacall, Fritz Lang, Buñuel e Hitchcok. 290 primeiro movimento, é necessário ter em vista, de modo mais superficial e quantitativo, que o número de referências apresentadas no texto passa a rarear a partir do capítulo “N”. Coincidentemente, esse momento da prosa corresponde à passagem em que ocorre o regresso ao Chiúme e, ao mesmo tempo, compõe, na narração do pânico da morte, o ápice do processo de animalização. No capítulo referido, a transformação dos soldados em “insectos indiferentes” (ANTUNES, 2010, p. 103) implica no distanciamento do universo citadino de Lisboa, enfim, do que o narrador poderia considerar como um ambiente mais próximo da civilidade. Por essa via, a hipótese elaborada diz respeito à visão de que quanto mais imerso o narrador encontra-se nas agruras reavivadas a partir de sua estadia em solo angolano, menos o conjunto de elementos que formam o “acervo enciclopédico” presente na narrativa se faz expresso. De igual forma, as etapas da aprendizagem exercidas pelo “eu narrador” que concentram o maior número de exemplos desse cenário de intelectualidade referem-se, principalmente, aos capítulos nos quais a voz narrativa vagueia pelo contexto lisboeta. Mesmo relembrando a vivência colonial, o ex-combatente, ao idealizar sua vida em Lisboa, seu quadro familiar, a figura do marido e do filho ideal, bem como a figura do escritor que poderia ter sido, intensifica essa visão com uma série de referências que, à maneira das fantasias citadas, surgem deslocadas, perdidas como símbolos remanescentes de uma vida da qual o indivíduo enxerga-se cada vez mais afastado. Assim, fruto decerto do já referido “sotaque educado de Lisboa” (ANTUNES, 2010, p. 62), a alusão feita a escritores, pintores, músicos, atores, entre outros, se amplia quando, de alguma forma, o imaginário lusitano é observado. O exposto é substanciado seja pela relação com o devaneio produzido pelo álcool, capaz de fazer emergir os sonhos malogrados (a exemplo do que ocorre nos capítulos “A”, “D”, “F” e “G”); seja pelo desejo de retorno ao espaço da terra natal, o que é elucidado quando se observa que os trechos do romance, cuja vivência na guerra apresenta uma espécie de intervalo, também encerram um número considerável de exemplos do repertório que aqui se deslinda (aspecto apresentado nos capítulos “J” e “L”). Em resumo, quer seja por uma via, quer seja por outra, a imagem do sujeito divide-se entre o ser que não escapa às experiências traumáticas da guerra e aquele que tenta atravessar esse período sendo alheio aos acontecimentos decorridos no país. O contexto da guerra em África é visto por Lobo Antunes, como alguém que participou dos anos de luta, com a estranheza comum a um cenário no qual se buscava acudir a vida dos indivíduos e logo após eles poderiam tornar-se vítimas de seus 291 próprios salvadores, o que tornava toda a situação ainda mais incompreensível. Em entrevista a María Luisa Blanco, o autor declara que viu “homens realmente bondosos e generosos que faziam as coisas mais violentas. Em mim coexistiam os sentimentos mais contraditórios” (2002, p. 154). Por essa razão, a matriz cultural evocada compreenderia um reforço para o clima de antagonismo que o conflito por si só gerava, contendo, de um modo mais geral, o entendimento de que, enquanto havia um profundo extermínio em Angola, a vida, talvez, pudesse continuar em Portugal. Destarte, o conjunto de referências compõe, à primeira vista, uma imagem inconciliável com o homem que o “eu” se tornou após a sua participação na guerra. Com aquela configuração, o próprio narrador ironiza ao insistir com sua acompanhante para assumir os gastos no bar, primeiro cenário para o relato construído pelo ex-combatente: tome-me pelo jovem tecnocrata ideal português 79, inteligência tipo Expresso, isto é, mundana, superficial e inofensiva, cultura género Cadernos Dom Quixote, ou seja, prolixa, esquisita e fininha, opção política Fox-Trot, Pedras d’El-Rei e Casa da Comida, uma gravura de Pomar, uma escultura de Cutileiro e um gramofone de campânula no apartamento (ANTUNES, 2010, p. 77). Na passagem recortada, os signos que fazem parte do complexo de referências ativado no romance em estudo potencializam a elaboração de um modelo “ideal” de cidadão português, composição que, à maneira de outras situações vivenciadas na prosa de Lobo Antunes, é alvo de crítica pelo narrador. Nesse modelo, sobressai o olhar sobre uma sociedade pós-guerra que desejava ver obliteradas as lembranças inerentes ao fim do período colonizador português em África, sentindo-se, por sua vez, aproximada do restante do mundo, cosmopolita, globalizada, adepta, nesse sentido, de uma visão nova de governo. Esse olhar nutre-se de uma matriz cultural que seria representativa dos anseios de uma nação que se imagina atualizada, apartada, desse modo, do obscurantismo do regime salazarista vivenciado. Contudo, aos olhos do narrador, essa sociedade portuguesa ainda restringe-se a uma visão de mundo apequenada, provinciana, alimentada pelas notícias corriqueiras, manifestando, em uma relação com um jornal de grande circulação em Portugal 178, uma “inteligência tipo Expresso, isto é, mundana, superficial e inofensiva”. 178 O jornal Expresso é um periódico semanal português, fundado em 1973, possuindo uma escala considerável de leitores pertencentes, em sua maioria, às classes média e alta da sociedade lusa. Tal periódico apresenta, em seu conteúdo, desde matérias ligadas à economia do país até cadernos voltados para aspectos como lazer e atualidades. 292 Aos moldes de uma leitura considerada pelo “eu narrador” como uma visão de mundo marcada pela ingenuidade, o “jovem tecnocrata ideal português 79”, incluindo tudo o que faz parte de suas predileções, simbolizaria a chegada de novos tempos, um sinônimo de avanço para um país por tanto tempo adormecido pelo conservadorismo do Estado Novo. Dessa maneira, figurando como uma reação aos anos de censura e de repressão, são trazidos à baila dessa matriz cultural nomes como o do escultor João Cutileiro, o do pintor e escultor português Júlio Pomar, além das publicações apontadas como exemplos de subversão na época em que a imprensa era alvo de forte vigilância, os Cadernos Dom Quixote. No entanto, longe de significar uma revolução no cenário social lusitano, os elementos citados atuam, de acordo com a posição trocista do narrador, como símbolos de uma sociedade que silencia sobre os pesares sofridos, as consequências da Guerra Colonial, ao mesmo tempo em que se alheia às cicatrizes deixadas pelo conflito, mantendo um cariz nacionalista. Tal viés figura delimitado, por um lado, pelo apreço aos artistas portugueses e, por outro lado, pela relação com representações espaço- temporais do universo lusitano, a exemplo da região turística de Pedras d’El-Rei e da tradição gastronômica do país marcada pela Casa da Comida. Em suma, a crítica à sociedade portuguesa pós-1974 é fundamentada nessa passagem da narrativa a partir da inobservância da realidade do país por um grupo que, preso às veleidades nacionalistas, prega o futuro com os olhos arraigados a um dado passado. As referências citadas nesse trecho fazem parte de um “mundo ideológico” (para fazer uso de uma expressão de MEDVIÉDEV, 2012, p. 56) a partir do qual os indivíduos, criticados pelo “eu”, elaboram um olhar sobre a nação lusitana, o que constitui, nesse primeiro movimento do repertório cultural presente no texto, um mundo apartado das memórias relatadas no cenário da guerra pelo narrador-personagem. Antes de adentrar no segundo movimento que o acervo cultural presente no romance produz, é válido observar, primeiramente, o modo de apresentação desses elementos que se tornam mais uma voz entre tantas outras na prosa em estudo. Uma das formas de ocorrência dessa matriz cultural no texto se dá pela inserção constante de outros discursos artísticos na voz do narrador, algo que acontece, muitas vezes, sem a devida demarcação dessa referência, a exemplo da declaração do “eu” frente à constatação do primeiro morto na guerra de um verso do poema “Ode Marítima” 179, do 179 Considerada uma das obras mais significativas do modernismo, chegando a ser tida como o poema mais importante da literatura portuguesa, a “Ode marítima” foi publicada, inicialmente, no segundo 293 heterônimo pessoano, Álvaro de Campos, “na realidade todo o cais é uma saudade de pedra, Maria José, e aí começamos a perder-nos” (ANTUNES, 2010, p. 66). Tal passagem recortada é simbolicamente introduzida no dito do ex-alferes quando este se põe a refletir sobre a transitoriedade da vida, sobre uma existência fugaz que finda em uma emboscada na mata. O “eu” medita sobre o súbito término de uma trajetória de vida, de modo que acaba restando a angústia, o silêncio e o questionamento do motivo da empreitada empreendida ao mesmo tempo em que assalta o temor de, inserido nessa penosa travessia, não se chegar a “cais” nenhum. Dessa forma, estabelece-se o diálogo com a voz do outro que colabora com as sensações vivificadas pela voz narrativa, principalmente, com a dimensão de apequenamento do sujeito perante o “mar revolto” que a guerra simbolizaria, compreendendo o princípio das muitas derrotas experienciadas pelo “eu” – “aí começamos a perder-nos”. A interação é importante quando se tem em vista que o poema desenvolve um devaneio que perpassa o paradigma das grandes navegações lusitanas para a África e para a Ásia, envolvendo, no sonho de uma viagem nunca executada, a relação com os nativos, enquanto a narrativa, por sua vez, entoa os descaminhos desse histórico do país, expressando a morte dos compatriotas que ainda lutavam pela manutenção do arquétipo imperialista. Por essa leitura, a mítica lusitana permanece apenas sob a forma de uma ficção, uma ilusão que se esgarça no regresso à realidade do “cais”, ou seja, na confrontação mesma da inconsistência desse imaginário diante do cenário de guerra exposto e para além dessa situação. Essa visão, de acordo com as considerações de Eduardo Lourenço (2016a), reside no irrealismo existente na imagem que os portugueses fazem de si. Isto é, a elaboração coletiva acerca do perfil do ser português ignoraria as fragilidades dessa mesma construção, alimentando o discurso da grande nação à qual aquele país europeu corresponderia. Quando, na visão de Lourenço, “Nós éramos grandes, dessa grandeza que os outros percebem de fora e por isso integra ou representa a mais vasta consciência da aventura humana, mas éramos grande longe, fora de nós, no Oriente de sonho ou num Ocidente impensado ainda” (LOURENÇO, 2016a, p. 28, grifo no original). número de Orpheu em 1915 e encontra-se na obra Poesias de Álvaro de Campos (1944). A passagem recortada no romance refere-se à seguinte estrofe: “Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!/E quando o navio larga do cais/E se repara de repente que se abriu um espaço/Entre o cais e o navio,/Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,/Uma névoa de sentimentos de tristeza/Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas/Como a primeira janela onde a madrugada bate,/E me envolve como uma recordação duma outra pessoa/Que fosse misteriosamente minha” (PESSOA, 1980, p. 207). 294 De igual forma, seguindo nessa perspectiva de apresentação dessas vozes outras que interagem com o relato do narrador, é que uma passagem do poema “Morte ao meio-dia” 180 vem à tona nas observações do “eu” sobre a sua pátria – “o meu país, Ruy Belo, é o que o mar não quer” (ANTUNES, 2010, p. 81). Novamente, não há nada que demarque a presença de um discurso citado na narrativa, o que pode ser relacionado à apropriação realizada da leitura ideológica feita sobre Portugal no texto poético. Na voz do ex-combatente, relembrando o momento em que ele retornava de Lisboa após um intervalo da guerra, sobressai, a partir do verso referido, o questionamento quanto ao nível de identificação do sujeito com a sua terra natal. O exposto é explicado quando se percebe que, mesmo desqualificando o ambiente colonial sentido na capital angolana, esta parece conter, paradoxalmente, mais vida que a terra natal, a qual, assumida como objeto de contemplação, é figurada sob uma atmosfera de letargia e reprovação. Nesse sentido, o poeta torna-se o destinatário da constatação elaborada pela voz narrativa sobre Portugal. Este, por sua vez, é tomado como um mote nas duas situações literárias, como se elas comungassem do mesmo julgamento, próximas uma da outra, na atualização realizada de um verso publicado em 1966 e que parece se adequar, com o mesmo tom de melancolia e de crise na busca por uma “nação possível”, ao contexto evocado pelo narrador nos meandros do conflito colonial. Desta feita, o jogo heterodiscursivo comentado anteriormente emerge, neste momento, no diálogo tecido entre as vozes que reverberam um único fim: o “pensar Portugal”. Entendendo o romance antuniano dentro de uma corrente discursiva, “a reprodução do texto [do outro] pelo sujeito (a retomada dele, a repetição da leitura, uma nova execução, uma citação) é um acontecimento novo e singular na vida do texto, o novo elo na cadeia histórica da comunicação discursiva” (BAKHTIN, 2016, p. 76). Expresso de outra maneira, a palavra do outro é atualizada de acordo com a orientação ideológica do texto no qual ela é inserida, já que acaba fazendo parte de um novo contexto, de uma nova e singular interação com outros discursos. Por conseguinte, o universo dialógico da prosa em questão é edificado a partir de uma série de enunciados 180 “No meu país não acontece nada / à terra vai-se pela estrada em frente / Novembro é quanta cor o céu consente / às casas com que o frio abre a praça […] / O meu país é o que o mar não quer / é o pescador cuspido à praia à luz do dia / pois a areia cresceu e a gente em vão requer / curvada o que de fronte erguida já lhe pertencia / A minha terra é uma grande estrada / que põe a pedra entre o homem e a mulher/ O homem venda a vida e verga sob a enxada / O meu país é o que o mar não quer” (BELO, 1984, p. 110- 111). Tal poema faz parte da obra Boca Bilíngue, publicada em 1966, do poeta português Ruy Belo, considerado um escritor de destaque nos finais do século XX no país. 295 heterogêneos que se relacionam no interior do dito da voz narrativa, uma dimensão repleta das “palavras conscientizadas dos outros” (BAKHTIN, 2016, p. 89) que, ao se encontrarem no romance, auxiliam as reflexões tecidas pelo “eu” sobre a conjuntura sociopolítica da qual ele não deixa de se enxergar como mais uma vítima. Ao mesmo tempo, abre-se a possibilidade de que o complexo de referências instigado na prosa também constitua uma espécie de complemento das experiências narradas no âmago da luta colonial, perfazendo uma profusão de imagens que, dispostas no universo linguístico do romance, ajudam na tentativa de traduzir as vivências traumáticas da guerra. Em outras palavras, ligando-se ao que se define aqui como o segundo movimento característico da matriz intelectual evocada no texto, as analogias tecidas entre as situações relembradas do período vivido em África e as remissões a obras artísticas, de um modo geral, atuariam como um meio possível para suscitar a reflexão sobre esse processo agônico. Assim, novamente, a exposição do narrador surge como uma arena na qual interagem diversos discursos, diferentes épocas, distintas ideologias, sugerindo, por outro viés, a pluralidade de vozes presente no romance. Uma vez que se leve em consideração a dificuldade do enunciador de expressar o tormento vivenciado na experiência por demais incompreensível que a guerra configura, as alusões realizadas a outras esferas artísticas tornam-se um incremento válido do que a palavra, muitas vezes, não conseguiria exprimir nesse contexto, “pois não parece ser possível colocar em palavras o inominável” (CARDOSO, 2016, p. 183). Tal entendimento é condizente, por exemplo, com a gama de quadros e pintores de diversas épocas que são trazidos ao momento da narração, compondo, no texto literário em foco, mais um recurso expressivo. Este, inserido no discurso do narrador em uma intersemiose própria da estilística do texto antuniano, representa menos um exibicionismo daquele sujeito que uma maneira de extravasar um sentido, uma visão sobre o que foi vivido, estabelecendo relações semânticas entre a letra e a tela. Por essa razão, há entre essas duas linguagens uma negociação de sentidos, o que é descrito a partir da adaptação realizada, por exemplo, de uma obra como a Guernica, citada anteriormente. A pintura focalizada, enquanto produto de um dado imaginário coletivo, é encaixada em um contexto axiológico distinto no qual passa a simbolizar um novo exemplo de luta, um pormenor emblemático para o desejo de libertação do povo negro. Segundo Compagnon, o “mesmo objeto, a mesma palavra, muda de sentido segundo a força que se apropria dela: tem tanto sentido quantas são as forças suscetíveis de se apoderar dela. [...] O sentido da citação seria, pois, a relação instantânea da coisa 296 com a força real que a impulsiona” (1996, p. 48). A força desse novo contexto no qual a citação é inserida instiga que o objeto recortado passe a ser visto sob uma nova perspectiva, tornando “singular”, inerente ao cenário destacado, o que antes era universal, como bem ilustra a visão do “eu narrador” ao afirmar que “essa Guernica se transformou a pouco e pouco na minha Guernica” (ANTUNES, 2010, p. 145). No trecho sublinhado, a apropriação da pintura, indicada pelo uso de um pronome possessivo, intensifica o entendimento de que o elemento visual surge como uma instância de significação inegável no romance, transformando-se em uma via auxiliar para que o desejo de reavivar o ontem não seja esquecido e, nesse ínterim, silenciado. Quando as palavras já não seriam os elementos mais adequados para se referir ao vivido, o universo pictórico possibilita ir além do que se pode chamar aqui de “obstáculos da voz”, convertendo-se em uma via possível para o dizer. Tal via acaba sendo necessária diante de uma situação na qual, como afirma o narrador, “Nunca as palavras me pareceram tão supérfluas como nesse tempo de cinza, desprovidas do sentido que me habituara a dar-lhes, privadas de peso, de timbre, de significado, de cor” (ANTUNES, 2010, p. 49). Se as palavras perderam a substância necessária e o colorido adequado para traduzir as experiências “nesse tempo de cinza”, em que o dito é censurado pelas forças do Estado, o narrado passa a apoiar-se, por sua vez, na composição de um plano sinestésico do qual a pintura, citada por meio de seus vários representantes, seria um dos principais expedientes. Assim, naquilo que o eu denomina de “desordenado Museu Grévin 181 interior” (ANTUNES, 2010, p. 57), perfilam-se figuras variadas que vem à tona ora como um meio para elucidar o mundo compartimentado que o contexto da colonização evoca, entre o ambiente animalesco e o discurso do “cidadão português moderno”; ora como alternativa restante para apresentar a figuração do horror e da desumanização do conflito, conforme se observa no trecho a seguir: os cães vadios que nos roçavam os tornozelos gemiam Caralho nos implorativos olhos molhados, olhos de cães tão suplicantes como os desta gente aqui, húmidos de resignação e de estúpida meiguice, olhos flutuando à deriva acima dos cognacs, olhos acusando os próprios rostos defuntos, desertos e sem nuvens como os dos quadros de Magritte (ANTUNES, 2010, p. 63). 181 Museu de cera localizado em Paris, um espaço onde podem ser observadas várias representações de cera das personagens que marcaram o rumo da história mundial, além de algumas personagens bastante conhecidas na França, sendo inaugurado em 1882. 297 O plano sinestésico emerge na situação apresentada por meio da dimensão ótica desencadeada a partir de um duplo ponto de vista. De início, assalta novamente a imagem do universo animalesco e são pelas órbitas dos “cães vadios” que se deixa entrever uma realidade agônica na qual padece a “gente” que assume o olhar de súplica encenado pelos animais, mas que acaba resignada em sua “estúpida meiguice”, murmurando apenas a sua indignação contra o ambiente de desordem vivificado. Este é ampliado pela comparação estabelecida com a experiência visual dos quadros de René Magritte 182 . Esse pintor surrealista é convertido em um outro olhar que a voz narrativa incita a fim de traduzir a instabilidade da experiência da guerra por meio de um paralelo, por exemplo, com a tela O espelho falso, implicitamente presente na passagem “olhos acusando os próprios rostos defuntos, desertos e sem nuvens como os dos quadros de Magritte”. No quadro em questão, impera uma troca na fusão de visões do interior versus o exterior, pois o olho apresentado na tela, em uma proporção ampliada, ao invés de referir-se a uma dimensão interna do homem, acaba propiciando uma imagem externa ao ser: um céu repleto de nuvens. A comparação construída resulta, enfim, em uma transferência de sentido entre as linguagens analisadas, pois, se a tela citada conduz o sujeito a uma experiência do fora, do que está além, compondo, por esse motivo, um “falso espelho”, a narrativa sugere, a partir de uma vivência exterior, uma representação da dinâmica interior dos indivíduos, das amarguras sofridas que “os próprios rostos defuntos” sinalizam. A experiência de uma visão do avesso (sugerida pela correlação com o universo pictórico) propicia, em larga medida, o reforço de uma condição já bastante evidenciada na prosa, marcada pela aproximação de planos antitéticos que interagem formatando o “mundo incongruente” suscitado pela vivência na guerra. Esse aspecto resvala também nas próprias questões intrínsecas ao “eu narrador”, o que é simbolizado, por exemplo, pela imagística do espelho. A relação tecida ganha razão de ser quando, à maneira “dos quadros de Magritte” cuja realização não se limita às aparências de uma realidade, já que a paisagem representada surge, por vezes, distorcida, os espelhos, consoante com a leitura de Seixo sobre a narrativa em foco, “devolvem ao narrador imagens 182 Pintor belga, considerado um dos principais artistas plásticos do Surrealismo, dedicado ao que ficou conhecido como “pintura dos sonhos” na qual a “imagem era conscientemente escolhida e pintada com realismo. A fim de ‘fotografar’ imagens da ‘irracionalidade concreta’, sugestivas de um estado onírico” (BRADLEY, 2001, p. 33). 298 desenganadas e descoincidentes, integradas no processo de anamorfose” (SEIXO, 2002, p. 62). A referência ao universo artístico possibilita, indo além da superfície especular 183 , a visão de um ambiente deturpado, em que as imagens afloram de modo desconexo, uma leitura que dialoga com o próprio desarranjo que a escrita antuniana apresenta por meio da ruptura com dado modelo de linguagem literária da mesma forma que as telas de Magritte rompiam com um dado paradigma de linguagem pictórica. O exposto adquire razão de ser quando se observa que, distante de uma pintura que procura ser mimética em sua tentativa de projetar uma cópia da realidade empírica, a arte de Magritte compunha um jogo entre a realidade e a imaginação, captando o que estaria oculto, desestabilizando a percepção e embaralhando os sentidos. Por consequência, frente às telas desse artista, torna-se constante uma sensação de estranhamento, uma vez que elas estimulam um novo olhar sobre os objetos, algo que estaria fora, muitas vezes, do que preconizaria o senso comum. Em uma “atmosfera irreal, flutuante e insólita” (ANTUNES, 2010, p. 53), a absorção de mais um exemplo do “museu interior do eu” vem à tona, como uma forma de complementar o dito e, ao mesmo tempo, provocar a laboriosa reflexão de que tal atmosfera bélica é produto da criação humana tal qual qualquer um dos elementos que constituem o acervo cultural que faz parte do romance em questão. Se antes o olhar permaneceu apenas, nesta análise, sob a égide da animalização, a voz narrativa proporciona o reconhecimento de que esse processo tortuoso é fruto da ação humana, do animal rationale que apresenta o ódio e a violência como “emoções humanas naturais” (conforme ARENDT, 1985, p. 35). Assim, a guerra seria o resultado de uma ação conjunta de homens que orquestram um conflito intercontinental em prol da manutenção de um império. Dessa maneira, apropriando-se das reflexões de Walter Benjamin (1987), é que a ligação entre “o gigantesco, inacreditável absurdo da guerra” (ANTUNES, 2010, p. 53) e a matriz intelectual em relevo realiza-se em uma clara aproximação entre esses dois universos, já que “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura” (BENJAMIN, 1987, p. 225, grifos 183 Quando mais uma vez é capturado pela superfície especular, o reflexo obtido do “eu” não escapa à desarmonia característica desse cenário: “O espelho do camarote devolvia-me feições deslocadas pela angústia, como um puzzle desarrumado, em que a careta aflita do sorriso adquiria a sinuosidade repulsiva de uma cicatriz” (ANTUNES, 2010, p. 22). 299 nossos). Tal relação será analisada a partir do trecho recortado a seguir do qual saltam novas referências no “museu” antuniano: Você, por exemplo, que oferece o ar asséptico competente e sem caspa das secretárias de administração, era capaz de respirar dentro de um quadro de Bosch, sufocada de demónios, de lagartas, de gnomos nascidos de cascas de ovo, de gelatinosas órbitas assustadas? Estendido numa cova à espera que o ataque acabasse, olhando as hirtas silhuetas de chapéu alto dos eucaliptos idênticas a fúnebres testemunhas de duelo, de G3 inútil no suor das mãos e cigarro cravado na boca como palito em croquete, descobri-me personagem de Beckett aguardando a granada de morteiro de um Godot redentor (ANTUNES, 2010, p. 54-55). Com o objetivo de representar uma situação tão irreal, alucinante e, como afirmado pelo próprio narrador em outro momento, “absurda”, a linguagem pictórica é acionada mais uma vez, propiciando o olhar sobre um cenário que parece ter sido oriundo de uma experiência imaginativa, fantasiosa, dado que seria um custo acreditar que tal contexto bélico faria parte do que se compreende como realidade. Dessa forma, o recorte de um episódio de guerra recebe nuances mais significativas quando, para ser descrito à ouvinte que surge indiferente ao vivido em África, com seu “ar asséptico competente e sem caspa das secretárias de administração”, a voz narrativa faz referência ao pintor holandês Heronymus Bosch 184 . A experiência caótica do conflito é sentida pela aclimatação que a pintura transfere para o tecido textual de um momento de decisão, de desfecho, a exemplo da tela Juízo Final (de autoria de Bosch) cujo tríptico apesenta figuras míticas, seres monstruosos, sugerindo o sofrimento humano e a luta contra o horror do inferno e as forças malignas de um modo geral. Destarte, tal qual a mulher anônima do bar, o leitor é convidado a entender a sensação do estar na guerra, percebendo-se como alguém que experimentaria a contínua 184 Pintor holandês que viveu na época da Renascença, entre os séculos XIV e XV. Foi considerado um precursor do movimento surrealista, “com seus temas prodigiosos, dragões e figuras híbridas” (REBOUÇAS, 1986, p. 71), apresentando, dessa maneira, em suas obras uma relação com a temática religiosa ao mesmo tempo em que incita o mistério sobre crenças e tradições, a exemplo do mito da criação e a simbologia acerca do espaço das trevas, o inferno. É lícito sublinhar aqui a constante presença nesse acervo cultural que figura no romance de Lobo Antunes de artistas que se aproximam ou fizeram parte da estética surrealista. Esse aspecto, embora seja bastante importante, excede o recorte analítico proposto para esta pesquisa, de sorte que é possível “apenas” reconhecer a relevância de um diálogo dessa natureza para um texto literário que apresenta uma leitura sobre uma série de situações, a princípio, ilógicas, aparentemente desconectadas pelo trânsito empreendido entre passado e presente na narrativa, principalmente, se for levado em consideração, com as devidas ressalvas, o que Bradley determina sobre o alcance dos preceitos surrealistas: “qualquer obra de arte, literatura ou cinema que seja desarticulada, alucinatória ou desconexa, pode ser classificada de ‘surreal’” (2001, p. 74). 300 noção de assistir ao seu fim, ou ainda, esperar por este, como “personagem de Beckett 185 que aguardava a granada de morteiro de um Godot redentor”. A referência alegórica, constituída pela alusão à peça Esperando Godot (1952), alia-se ao universo de mistério e de incerteza já suscitado pelo clima de “julgamento final” que o quadro de Bosch potencializa, tendo em vista que, diante do homem, assomaria a dúvida se haveria um destino após a morte. Uma vez inserido em uma temática de cariz religioso, sobressai a imprecisão de como tal destino seria: figurando entre a entrada no painel glorioso do paraíso ou o padecimento eterno no inferno. Contudo, na concepção do “eu”, a morte corresponde, paradoxalmente, menos a uma instância de temor e mais a uma expectativa, uma centelha de esperança, já que, de alguma forma, o homem já estaria padecendo no inferno que a guerra simboliza. O declínio do sujeito já havia acontecido, de forma que o fim é aguardado, embora não se saiba se este chegaria afinal, enquanto força capaz de libertar o soldado do contexto violento do combate. O desengano coaduna-se com a tensão de uma cena na qual o tempo parece ter sido estagnado, sugerindo a contemplação do ocaso, algo que atinge, inclusive, a paisagem de África, lugar descrito constantemente como um ambiente que exala vida, mas que é simbolizada nesse momento pelas “hirtas silhuetas de chapéu alto dos eucaliptos idênticas a fúnebres testemunhas de duelo”. A relação tecida entre a narrativa e o acervo cultural que o narrador consulta, a fim de traduzir as suas experiências, compreende uma saída para que se tente apreender uma realidade incompreensível. Por meio da menção à tela de Bosch, repleta de “demónios, de lagartas, de gnomos nascidos de cascas de ovo, de gelatinosas órbitas assustadas”, constrói-se a imagem do quadro de violência, ou melhor, amplia-se a dimensão da babel que comporia as lembranças narradas pelo ex-combatente sobre o período de sobrevivência na antiga colônia portuguesa. A partir dessa leitura, torna-se possível, ainda, compreender o processo de animalização do “eu” que a “amargura e o sofrimento da guerra” impulsionou, o que resulta, ao final desse transcurso, em um indivíduo transformado em uma “espécie de bicho desencantado e cínico, procedendo mecanicamente ao acto do amor nos gestos indiferentes e alheios dos comensais 185 Considerado um revolucionário da linguagem teatral, o dramaturgo e escritor irlandês Samuel Beckett escreveu a peça Esperando Godot (1952), sendo, a partir dela, possível refletir sobre os dramas e aspirações decorrentes do período após a Segunda Guerra Mundial. Em um momento de incertezas, a espera por alguém que não chega traduz-se como um símbolo dessa época em meio à existência ou não da esperança nesse contexto. 301 solitários nos restaurantes, olhando para dentro de si próprios as sombras melancólicas que os habitam” (ANTUNES, 2010, p. 153). A consciência daquele que se viu transmutado e se vê irreconhecível após anos de desventura, tornando-se alguém incrédulo frente às verdades antes repercutidas e indiferente ao que antes lhe daria algum prazer, alia-se à dificuldade de trazer à tona e tornar inteligível uma fase que fora adjetivada como algo “irreal, flutuante, insólito e absurdo”. A recorrência de imagens acionadas ao nível do narrado, muitas vezes, pela via da comparação torna mais ostensivo o olhar sobre a crueza da guerra, de tal forma que o leitor sente-se envolto em “tudo aquilo, a tensão, a falta de comida decente, os alojamentos precários, a água que os filtros transformavam numa papa de papel cavalinho indigesta” (ANTUNES, 2010, p. 53). A fim de sublinhar a atrocidade do momento, como uma forma de salvaguardar essa memória incômoda ou, ao menos, externá-la de alguma maneira, a voz narrativa adiciona novamente ao dito as pinceladas trágicas de Bosch. Tal referência realça um cenário em decomposição no qual os indivíduos surgem metamorfoseados enquanto “larvas informes [que] principiavam a surgir, manquejando, arrastando-se, trotando, dos arbustos, das árvores das palhotas, dos contornos indecisos das sombras” (ANTUNES, 2010, p. 41). No diálogo tecido entre o romance e a experiência pictórica, o simbolismo das telas do pintor holandês amplifica um contexto de involução humana, se assim se pode afirmar, em que o narrador se defronta com uma visão tão desconcertante – “larvas de Bosch de todas as idades em cujos ombros se agitavam, como penas, franjas de farrapos, avançando para mim à maneira dos sapos monstruosos dos pesadelos das crianças, a estenderem os cotos ulcerados para os frascos do remédio” (ANTUNES, 2010, p. 41) – que, aparentemente, parece ter sido originária de uma tela surrealista. Entretanto, desde que se compreenda, conforme Vargas Llosa, que a “vida da ficção é um simulacro, no qual aquela desordem vertiginosa se transforma em ordem: organização, causa e efeito, fim e princípio” (2004, p. 19), o conjunto de referências evocado aleatoriamente no enredo, fazendo parte do repertório de imagens de que a trama se constitui, contribui para a organicidade da trama. Tal entendimento vem a ser explicado a partir da pluralidade de imagens que, justapostas, compreendem uma experiência estética pautada não só pela apresentação de um tempo vivido no seio do conflito em África, mas também pelo modo como tal cenário é elaborado no discurso literário. Assim, para lembrar novamente das reflexões de Vargas Llosa, mesmo nos romances “mais informes e espasmódicos, a vida adota um 302 sentido que podemos perceber, já que eles nos oferecem uma perspectiva que a vida verdadeira, na qual estamos imersos, sempre nos nega” (2004, p. 19). Dessa maneira, o complexo de analogias, de interações presentes na prosa em foco, observados até o momento, fazem parte de uma tentativa de adentrar no nonsense da guerra. Em outras palavras, a remissão constante a um lastro cultural simboliza a imagem de um homem dividido entre a sua realidade anterior em Portugal e a brutalidade percebida em Angola, valendo-se de outras linguagens, para conseguir comunicar o que foi essa experiência fatídica. Portanto, a estrutura narrativa apresenta uma composição que dialoga com o drama interior do ex-combatente, o qual se sente imbuído de toda a angústia característica dessas “ilhas de desesperada miséria” (ANTUNES, 2010, p. 53) com as quais o “eu” se relaciona, seja na sua passagem por África, seja no retorno a Portugal. Não obstante, o acervo cultural evocado no enredo não se restringe à necessidade de buscar algum significado para esse momento tortuoso, pois se ultrapassa, em dada altura da prosa, a experiência de ampliar esses momentos de tragédia do romance, recorrendo a outros signos para expressar o que as palavras não foram suficientes para enunciar. Com efeito, outros cenários artísticos entram em cena no texto, como uma forma de restituir a voz daqueles que foram silenciados nesse contexto colonial. Em outras palavras, o “outro” colonizado com o qual o narrador, de alguma forma, também se identifica, assume por meio das referências culturais observadas na trama, um espaço de fala, ou mesmo, de reconhecimento de sua existência por tanto tempo negada. Dessa maneira, o narrador-personagem reflete sobre o “meio ideológico” formador do jugo colonial que o havia submetido a um ambiente de prisão no solo africano. Tal situação aproximou o “eu” dos demais cativos desse sistema, por exemplo, das lavadeiras de Gago Coutinho que conversavam, segundo o ex-alferes, “numa esquisita linguagem que eu entendia mal, mas se aparentava ao saxofone de Charlie Parker quando não grita o seu ódio ferido pelo mundo cruel e ridículo dos brancos” (ANTUNES, 2010, p. 148-149). A ligação estabelecida com um saxofonista e compositor do jazz nos Estados Unidos, símbolo de uma época em que se pregava maior liberdade de expressão, a Geração Beat, sugere essa outorga da voz a um mundo do qual o “eu”, de certa forma, se acha apartado, porém sente a inevitabilidade e a necessidade de que se enxergue, finalmente, a presença de um povo por tanto tempo massacrado. De igual forma, sobressai o desejo de que se escute, por meio da referência ao movimento 303 negro e a luta pelos direitos civis – da qual o jazz comporia uma das formas de expressão 186, o grito de “ódio ferido pelo mundo cruel e ridículo dos brancos”. Por essa via, a dimensão estética sobrepõe-se à brutalidade do horror colonial, resgatando a visão desse outro lado da guerra e, com isso, o universo cultural que melhor traduziria esse desejo de luta, de libertação vem à tona, mesmo em um romance que é historicamente inserido no contexto do colonizador. Tal atitude proporciona uma visão menos alienada desse período, sem ficar restrita apenas ao que aconteceria dentro dos contornos do arame onde se encontra confinado o “eu narrador”. Nesse sentido, é possível depreender, na prosa de Lobo Antunes, uma atitude considerada usual em algumas obras que possuem o decorrer de uma guerra como contexto central, no tocante à prática “de designarem permanentemente o ‘outro’ e o outro lado da ‘sua’ guerra; de irem ao encontro da dignidade desse outro, dos seus enigmas, do seu mistério e da sua identidade” (MELO, 1998, p. 22). Uma das formas de promover o encontro com esse “outro”, algo que perpassa o encontro consigo mesmo, caracteriza-se pela inserção no texto de elementos que fazem parte do universo cultural desse povo que, ignorado, fora tratado como símbolo das benesses do império português em África. Se o dado histórico demonstraria uma empatia com a ótica do colonizador, escamoteando a presença do colonizado, a voz narrativa encontra no universo artístico o meio pelo qual se propõe a recontar o vivido a partir de outro ângulo, realizando um desvio que permite a conexão com aqueles que desejavam não mais corresponderem ao papel de dominados. O vínculo estabelecido vem à tona, inclusive, pela ligação com as terras de África, de maneira que a referência musical mais uma vez atua como um complemento do cenário evocado e da sua gente: Parece-me ouvir o rumor das folhas das mangueiras de Marimba 187 e o seu imenso perfil contra o céu enevoado do cacimbo, parece-me ouvir o riso súbito e orgulhosamente livre dos luchazes, que estala junto de 186 Considerado um dos ritmos populares de origem negra e escrava, o jazz desenvolveu-se, principalmente, no final do século XX, relacionando-se a uma época de luta pela inserção do negro na sociedade de classes nos Estados Unidos. Além disso, a configuração desse ritmo teria raízes no longo período de escravidão dos negros no sul do país, compondo uma forma de resistência por meio das canções que expressavam a dura jornada de trabalho dos escravos nas colheitas, caracterizadas, assim, como canções de trabalho e, ainda, cantos de lamento. Dessa maneira, o jazz apresentava-se como uma válvula de escape, uma espécie de manifesto que mais tarde viria a se firmar no cenário afro-americano, como uma música de protesto contra o racismo nesse contexto. Para maiores leituras sobre esse aspecto, ver Hobsbawn (2004). 187 Marimba corresponde a uma vila e município da província de Malanje, em Angola. O termo também é conhecido no quimbundo como um instrumento de percussão que, de forma semelhante a um xilofone, produz um som doce e melodioso. 304 mim como o trompete de Dizzie Gillespie, esguichando do silêncio num ímpeto de artéria que se rasga (ANTUNES, 2010, p. 188). O imaginário da negritude, empregando esse termo em sentido lato, é integrado à observação do narrador, mais uma vez, por meio da analogia feita com o jazz, sobressaindo um dos expoentes desse estilo musical na figura de John Birks Gillespie, conhecido como Dizzy Gillespie. O plano sinestésico comentado anteriormente emerge desta vez pela fusão de sons provenientes da atitude integradora que a voz narrativa põe em curso em seu estado de rememoração, já que “o rumor das folhas das mangueiras de Marimba” acomoda-se à audição do “riso súbito e orgulhosamente livre dos luchazes”, confluindo, em harmonia, para uma melodia que “reivindica” sua escuta. Isto é, tal som, como elemento ativador da memória, impõe seu espaço, sua resistência e rebenta a quietude, o que de forma aguda é ampliado pela relação com “o trompete de Dizzie Gillespie, esguichando do silêncio num ímpeto de artéria que se rasga”. Para simbolizar o ímpeto da luta dos luchazes em uma correlação com as várias etnias africanas subjugadas a um sistema de escravidão no solo angolano, o repertório artístico construído no romance sintoniza-se com as referências já citadas do jazz 188 . Por essa correlação, ocorre na trama o que Bakhtin denominou de “relações dialógicas”, de alguma forma, já observadas aqui pelo embate entre as vozes que fizeram/fazem parte do processo de aprendizagem do “eu”. Tais “relações” não podem ser reduzidas a um contexto “apenas” de dissensão, já que “não se pode interpretar as relações dialógicas em termos simplificados e unilaterais, reduzindo-as a uma contradição, luta, discussão, desacordo. A concordância é uma das formas mais importantes de relações dialógicas” (BAKHTIN, 2016, p. 102-103, grifo no original). A “concordância” citada surge entre o romance e a referência musical não só pela representação do enfrentamento do racismo e da violência contra os negros, de um modo geral, vítimas das mazelas do imperialismo em diversos lugares no mundo, mas também pela forma de elucidar a vivacidade da terra africana, mesmo diante dos infortúnios de que esta foi alvo. Tal aspecto surge na narrativa por meio da paisagem descrita com toda sua intensidade, bem como pela energia suscitada pelo “trompete solar de Louis Armstrong [outro nome expressivo do jazz no cenário americano], 188 Além da referência a Louis Armstrong, considerado a “personificação do jazz”, o romance de Lobo Antunes (2010, p. 78) ainda apresenta a figura de Bem Webster, saxofonista de jazz norte-americano que detinha um estilo bastante peculiar, com um ritmo mais rápido e enérgico em suas composições. 305 expulsando a neurastenia e o azedume com a musculosa alegria do seu canto” (ANTUNES, 2010, p. 51). Por essa via, se o acervo de referências apresentadas na prosa concentra-se, em sua maioria, na ampliação do olhar sobre o cenário de guerra, o contexto musical evidenciado nesta análise propiciou que se estabelecesse o resgate do humano (em um sentido magnânimo), mesmo em uma situação de barbárie. O caleidoscópio de imagens desencadeadas por essa matriz cultural que o romance trouxe à tona coaduna-se com o espaço caótico que a composição narrativa formaliza na conjunção de tempos, de vozes e de espaços que regem esse mundo compartimentado que o “eu” vivifica no seu depoimento memorial. Nesse espaço em desarranjo, o narrador-personagem acompanhou a sua metamorfose e, ao mesmo tempo, compartilhou tal processo com os demais em um movimento que percorria o “eu” e o “outro”, estimulados por essa relação a empreender “uma penosa reaprendizagem da vida” (ANTUNES, 2010, p. 54). Tal atividade perpassou a busca por entender o vivido e, nessa procura, elementos, à primeira vista, inconciliáveis fizeram parte do universo imagético destacado na narrativa. Por meio desse universo, o olhar sobre as ações ocorridas no ambiente hostil da guerra e para além dela é aprofundado. Isso ocorre seja por meio do paralelo estabelecido com o inventário animalesco que ultrapassou as memórias do zoológico de Lisboa, seja por meio das inúmeras referências culturais que, complementando o dito, possibilitavam a reflexão sobre a extensão da ação humana, produzindo “efeitos de cultura e de barbárie” justapostos nessa realidade incongruente. O cruzamento entre os dois planos citados produz o que Maria Alzira Seixo definiu como um “efeito de cultura e requinte deslocados” (2002, p. 52), aprofundando a ambivalência desse cenário, pois se vai da necessidade de atender aos instintos em uma luta constante pela sobrevivência até a exposição de uma série de obras de arte. Tal exposição se, por um lado, faz parte da tentativa de atribuir algum sentido a uma realidade que não o possui, por outro lado, acentua o mundo binário no qual o “eu” acha-se dividido, ou melhor, fragmentado, a observar, de um lado, a rudeza de um catanguês interessado no “encontro de um churrasco de ratos” (ANTUNES, 2010, p.114), enquanto, do outro lado, O leitor de cassetes do alferes Eleutério tocava a 4.ª Sinfonia de Beethoven, e era como se a música soasse numa sala deserta para lá de cujas janelas sem cortinas a chana desdobrava interminavelmente as pregas do seu lado, uma música que se prolongasse no eco de si 306 própria do mesmo modo que nos pianos cerrados teimam em morar ainda os compassos ténues de uma valsa antiga, tão velha e hesitante como os relógios de parede do corredor (ANTUNES, 2010, p. 103, grifos nossos). O mundo dual surge e nele se propaga a visão indigesta do catanguês ao mesmo tempo em que a Quarta Sinfonia prolonga-se “no eco de si própria”, expressando, na sua perfeição de forma, em seu ritmo cadenciado, uma espécie de contentamento com a vida. Tal leitura, inserida no cenário descrito pelo narrador, instaura mais um elemento dissonante em uma situação já concebida como irreal, insólita, absurda. A composição melódica indicia uma saída, mesmo que distante, para que se enxergue outra realidade além daquela que se experiencia no contexto de guerra. Dito de outra forma, destoante do cenário de caos, a sinfonia possibilita a lembrança do que já parece configurar-se como outra vida, tão deslocada estaria das metamorfoses sofridas pelo “eu” durante os “vinte e sete meses de escravidão sangrenta” (ANTUNES, 2010, p. 157), sobrevividos a custo na ex-colônia portuguesa. O mundo inarmônico que o romance apresenta é constituído de uma série de elementos destoantes que colaboram com a realização da atitude mais manifesta na trama, no tocante à ação desmobilizadora que o texto possui. Nesse sentido, rompe-se com um modelo de épica de nação da mesma forma que sucede a ruptura com dado padrão de linguagem literária. No caminho tortuoso da (des)aprendizagem ou da (des)educação do narrador, efetivada a partir do confronto com vários discursos, o “eu” se depara com muitos “outros” e, assim, desmonta o repertório ideológico de uma certa identidade nacional que surge rasurada, ridicularizada tanto no olhar que se volta para a queda do epíteto de metrópole portuguesa quanto na reflexão sobre uma cidade lisboeta que surge travestida em uma “uma quermesse de província” (ANTUNES, 2010, p. 96). Enfim, a deterioração de um dado modelo de identidade de nação permitiu reconhecer, na trama antuniana, que a imagem veiculada pelos discursos que sustentavam as engrenagens do Estado Novo em Portugal não era sentida nem nas antigas colônias, alvos da exploração sistemática lusa, nem no cenário da capital da ex-metrópole, pois a imagem gloriosa desse espaço compreenderia, afinal, “uma terra que não existe” (ANTUNES, 2010, p. 96). 307 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Aqui espero o fim do mundo. António Lobo Antunes, O Esplendor de Portugal. O segundo romance do escritor António Lobo Antunes compõe, com um relato conduzido por um narrador-personagem, uma “arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores sociais de orientação contraditória” (VOLOCHÍNOV, 2010, p. 67). De um lado, reverbera uma representação específica do ser nacional português, ancorada em uma imagem enobrecedora do Estado lusitano, enquanto, do outro lado, vibra uma voz que relega ao descrédito, ao deboche tal paradigma identitário por vê-lo como algo destoante do cenário observado no país. A atitude incorporada pela voz narrativa realiza-se no texto por meio de uma série de artifícios tanto no nível da estrutura textual quanto no plano conteudístico da prosa, congregando-se, assim, na violação que se verifica do que é considerado tradicional, seja de um determinado modelo de obra de arte, seja de um ideal de herói português. De um modo geral, o enredo antuniano estudado celebra a dissonância, instaurando o confronto com instâncias de poder que se veem como organizações sólidas, ditando normas, condutas e padrões, algo que atinge a própria dimensão do que caracterizaria, em larga medida, fazer parte da nação lusitana. No processo de construção de uma dada identidade de um país, os pensamentos dominantes em uma sociedade influenciam o formato da cultura nacional, a qual produz sentidos sobre a pátria, a fim de promover a identificação dos indivíduos com o perfil erigido para esse agrupamento social. Tais sentidos fazem parte dos símbolos, dos mitos, das narrativas que são contadas sobre a nação, “memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas” (HALL, 1997, p. 55). Por essa visão, para aglutinar as diversas camadas da sociedade portuguesa em prol de um projeto de nação que equilibraria a economia do país e centralizaria o controle do Estado sob a administração, inicialmente, de Salazar e depois de Caetano, a estrutura política da ditatura estadonovista serviu-se de um aparato discursivo pautado na defesa das conquistas do passado. Isto é, uma das bandeiras principais do regime para ostentar a força da pátria lusa correspondeu à manutenção do império ultramarino, reforçando tanto a memória do conquistador português quanto a relevância do status de nação 308 colonizadora. Tal imagem, já bastante perpetuada no decorrer do tempo, parecia definir o traço característico do ser português: Durante séculos, nem para nós nem para os outros era Portugal mais do que “um país que tinha um império”. E esse estatuto, que foi – e continua sendo na nossa memória – o identificador supremo de Portugal, convertera-nos na ilha histórica mítica por excelência da Europa (LOURENÇO, 2018, p. 16). Para um país que “vivera nos últimos séculos a condição de um império ultramarino acostumado a ver-se com lentes dilatadas e não tal qual um pequeno retângulo na ponta extremada do Velho Mundo” (SECCO, 2005, p. 6), a eclosão do conflito colonial provocou sensíveis consequências. Estas compreenderam desde a dissolução do regime, por meio da ação arquitetada pelos militares culminando com a Revolução dos Cravos, até a necessidade de uma revisão, de uma reflexão sobre as implicações da ausência desse traço significador da história portuguesa. Se durante a ditadura uma certa versão da realidade da grande nação portuguesa era construída e sistematicamente transmitida não só internamente, mas também para uma conjuntura mais global; após esse período e diante do processo de descolonização, rever essa versão de Portugal converteu-se em uma questão substancial. Reconsiderar as visões de mundo que fizeram parte desse ontem, do qual o país não se sentia apartado, foi fundamental, principalmente, para aqueles que viveram a experiência da guerra nas ex-colônias africanas e, ao retornar à casa lusitana, perceberam o quanto tal experiência havia marcado sua existência. Desse panorama, destacou-se a figura de António Lobo Antunes, um autor que viu sua trajetória de vida, incluindo sua formação como escritor, cruzar-se com o período vivido a custo no solo angolano. O cenário bélico possibilitou para o filho de família tradicional portuguesa uma aprendizagem diferente daquela que a ex-metrópole teria propiciado a um indivíduo que, até aquele momento, viu-se distante das questões políticas que inquietavam os que eram contrários às imposições do regime. Fazendo parte de uma geração de literatos para os quais a guerra assumiu uma posição central em suas reflexões, Lobo Antunes imprimiu um traço salutar à sua escrita a partir da incessante presença do “tema de África (progressivamente diluído, mas nunca ausente) e, por extensão, da guerra colonial e dos seus efeitos e consequências” (ARNAUT, 2011, p. 85). 309 Dessa maneira, ocorreu uma reavaliação dos discursos sobre a história do país a partir da captação de um evento bastante incômodo para a memória nacional e, nesse movimento, descortinou-se outra imagem do ser português, a qual brotava do ambiente de destruição no continente africano. Ao focalizar a desastrosa experiência da luta armada em África, obras como a de Lobo Antunes provocam uma releitura do próprio espaço português, fora das lentes ofuscantes projetadas, por exemplo, pelo discurso produzido pelo regime. Em outras palavras, em textos como Os Cus de Judas, sobressai a árdua tarefa de se mirar no espelho revelador que a guerra edifica e descobrir-se distante do perfil que fora imaginado para a nação. Nessas obras, a exemplo da narrativa antuniana, a imagem portuguesa “recebe ou anuncia uma perturbação qualitativa de tal natureza que é afinal e apenas no seu espelho que só nos damos conta do outro que somos, da pátria diferente que devimos” (LOURENÇO, 2016a, p. 84-85, grifos nossos). Por essa medida, a leitura diferente sobre o país nascia, sobretudo, do desmonte operado em uma dada configuração da identidade nacional, a qual não seria mais condizente com a realidade de uma ex-metrópole que via seu passado imperial ficar para trás na tentativa de fazer parte da comunidade europeia. Tal atitude compreende a linha central do romance analisado, visto que, no desejo de expor os traumas sofridos na dura sobrevivência em território angolano, o narrador-personagem deturpa, reiteradamente, os discursos enobrecedores da nação portuguesa, considerando-os sem sentido, tal qual a guerra da qual fora obrigado a participar. Para revogar a consistência desses pensamentos considerados rígidos e, nesse sentido, inatingíveis (uma vez sustentados pelo poderio do conservadorismo ditatorial), faz-se uso de uma série de recursos no romance, os quais se integram ao processo de deseducação experienciado pelo “eu narrador”. Este apresenta seu percurso formativo de acordo com os desígnios estipulados pela tríade de vozes centrípetas – Família, Igreja e Estado –, instituições coligadas, reunidas pela propaganda que realizavam dos ditames do Estado Novo, instrumentalizando o tipo de aprendizagem que estaria destinada ao sujeito em desenvolvimento. Entretanto, a vivência na guerra faz com que o “homem esperado” por essas forças centralizadoras do discurso nacionalista torne-se “outro”, um ser metamorfoseado devido ao sofrimento sentido naquele cenário caótico. Por isso, o “eu” deseduca-se das leituras de mundo transmitidas pela tríade citada e apreende uma nova realidade na sua “aprendizagem da agonia” (ANTUNES, 2010, p. 39). A deseducação observada confunde-se com um processo de desalienação frente aos valores ideológicos apresentados por essas vozes de cunho autoritário que ressoam 310 no romance, sendo estabelecida, ainda, a partir da ressignificação que o “eu narrador” realiza dos acontecimentos vivenciados pelo “eu narrado”. Nesse movimento, ocorre a ruptura com as referências recebidas pelo sujeito em crescimento, as quais surgem rebaixadas na trama, sendo, até mesmo, ridicularizadas, aspecto que faz parte dos recursos focalizados pela voz narrativa para proceder ao desmonte de um dada imagem de identidade portuguesa. Para tanto, se tais referências nutrem-se de uma versão gloriosa do passado da nação lusitana, tal lembrança figura desvalorizada pelo ex- combatente, o qual macula esse tempo longínquo por inseri-lo em uma “zona de familiaridade”, desfazendo o isolamento do “passado absoluto” da épica nacional, pois esta, como tantos outros aspectos no texto em questão, surge desfeita: em toda a parte do mundo a que aportamos vamos assinalando a nossa presença aventureira através de padrões manuelinos e de latas de conserva vazias, numa subtil combinação de escorbuto heróico e de folha-de-flandres ferrugenta. Sempre apoiei que se erguesse em qualquer praça adequada do país um monumento ao escarro, escarro- busto, escarro-marechal, escarro-poeta, escarro-homem de Estado, escarro-equestre, algo que contribua, no futuro, para a perfeita definição do perfeito português: gabava-se de fornicar e escarrava (ANTUNES, 2010, p. 26, grifos nossos). Seguindo uma perspectiva degradante que termina aliada a uma remissão aos excrementos, o narrador recupera elementos do imaginário nacional português, a exemplo da “presença aventureira” e dos “padrões manuelinos”, aspectos relacionados à consagração do perfil expansionista do país, para promover no dito uma força contraditória a esses aspectos. Por meio do mecanismo de maior incidência utilizado pela voz narrativa, o discurso irônico, o “eu” subverte a mitologia cultural lusíada, desvalorizando a presença portuguesa em outros territórios, pois ela seria assinalada pela combinação desonrosa de “escorbuto heróico e de folha-de-flandres ferrugenta”. Desse arranjo, sobressai, por um lado, imagens contrastantes – recuperando uma característica da dinâmica carnavalesca observada por Bakhtin (1997, p. 126) –, propostas na qualificação gloriosa dos intrépidos navegantes e na forma utilizada para referir-se, de forma aviltante, a tais personagens da épica nacional por meio da doença a que foram reduzidos – “escorbutos heroicos”. Por outro lado, limita-se a ação colonizadora portuguesa a uma lógica residual, pois o foco recai sobre o que parece ter restado da ação expansionista, destacando as “latas de conserva vazias” transformadas 311 pela ação do tempo em folhas de flandres enferrujadas, além do perfil do bravo herói marítimo do qual sobraria apenas o “escorbuto”. A lógica residual ainda se faz presente por meio da linguagem peculiar utilizada pelo narrador no apego, reiterado no texto literário, a uma dimensão escatológica, tratada como uma via para decompor os símbolos nacionais, ou mesmo, a relevância da existência de tal simbolismo. Longe de dignificar a “perfeita definição do perfeito português”, o dito irônico desfaz essa composição, já que os grandes feitos do modelo padrão de ser português resumem-se a duas ações de caráter meramente biológico: “gabava-se de fornicar e escarrava”. A crítica mordaz que salta dessa passagem explora, no sentido construído para o adjetivo “perfeito”, uma leitura, axiologicamente, mais aproximada ao que faria parte do perfil lusitano na realidade. Tal visão seria mais coerente, segundo o “eu narrador”, com a representação do que teria restado da “aventura portuguesa”, algo que, de fato, contribuiria com a imagem fiel do ser nacional na posteridade, alguém que estaria distante de qualquer honraria. A partir da ruptura com o que seria considerado usual, é possível sentir as nuances do tipo de humor que se encontra presente na prosa, algo que se realiza, no trecho recortado, pela repetição do estilo de monumento apoiado pelo ex-combatente em sua atitude trocista de render memórias ao escarro. No romance, a via humorística compõe uma forma de responder tanto à tragicidade experienciada na guerra – única forma, porventura, de expressar-se diante das situações traumáticas vividas – quanto à seriedade imposta pelo regime, recorrendo à zombaria para demonstrar as contradições nas quais o indivíduo estaria inserido. As imagens desarmônicas elaboradas, as quais formam, no trecho em foco, o rol de exemplos a serem expostos sobre o escarro, compreendem o meio utilizado pelo sujeito para caçoar de inúmeras figuras da sociedade portuguesa transformadas em “escarro-marechal, escarro-poeta, escarro- homem de Estado”. Por conseguinte, institui-se, na imagem inusitada de um “escarro- equestre”, uma forma de remeter-se aos marcos da história portuguesa, concernente às ações expansionistas no Novo Mundo, para demonstrar o quão irreal seria esse discurso por meio de uma leitura ainda mais improvável. Uma vez corrompida a memória da épica nacional, o protagonista ironiza o “currículo de fabricantes de pátrias lusas” (LOURENÇO, 2016a, p. 55) que Portugal detinha. Elimina-se, assim, qualquer deferência ou obediência à ordem de valores imposta, aspectos oriundos de um passado de grandes realizações para o povo lusitano, por alguém que não consegue enxergar a aplicabilidade dessa leitura de mundo no 312 ambiente onde fora esquecido, um “Cu de Judas”. O ex-alferes-médico expõe, assim, a sua saga sem que dela consiga, mesmo retornando ao seu país de origem, salvar-se, caracterizando-se como um indivíduo apartado da marcha guerreira dos conquistadores portugueses, um ser exterior à cultura nacional, um sujeito que não coincide nem com o cenário onde está, nem consigo mesmo. Tal herói subversivo concentra sua complexidade na reunião de vozes que atravessam o seu dito, construindo um universo dialógico, como uma resposta, porventura, a um contexto no qual apenas uma única voz era permitida e as demais eram censuradas, inerente ao Estado Novo. Por essa medida, a natureza heterodiscursiva do texto é sublinhada em um enunciado estratificado por orientações ideológicas diversas, as quais são percebidas na bivocalidade que o discurso do “eu” apresenta: o corpo do morto crescia no quarto até rebentar as paredes, alastrar pela areia, alcançar a mata em busca do eco do tiro que o tocou, o helicóptero transportou-o para Gago Coutinho como quem varre lixo vergonhoso para debaixo de um tapete, morre-se mais nas estradas de Portugal do que na guerra de África, baixas insignificantes e adeus até ao meu regresso (ANTUNES, 2010, p. 62). A dupla orientação é perceptível diante da inserção da voz do Estado nas reflexões do “eu narrador” sobre os mortos em batalha. Tal aspecto fratura o dito, uma dimensão já esfacelada de diversas maneiras na narrativa: seja pela repetição que o ex- combatente realiza do que já fora expresso em momentos diferentes da enunciação; seja pela presença constante de um repertório de imagens que inundam o relato, deslocando o foco sobre o evento que estava sendo contado; seja, enfim, pela ausência de elementos conectivos entre as questões expostas pelo “eu”, de modo que as informações surgem justapostas, reunidas, algumas vezes, a partir do campo ideológico a que se referem. O último aspecto sublinhado corresponde ao caso da passagem recortada, pois à crítica elaborada pelo narrador-personagem quanto às inúmeras baixas dos soldados em batalha – elementos a serem esquecidos ou ignorados, “como quem varre lixo vergonhoso para debaixo de um tapete” –, contrapõe-se a voz do discurso oficial que mascara a carnificina que ocorria em solo angolano. Tal discurso impõe uma versão dos acontecimentos que minimiza as atrocidades cometidas em nome do Estado – “morre-se mais nas estradas de Portugal do que na guerra de África, baixas insignificantes”. Ao revelar as mentiras defendidas pelo regime para sustentar a necessidade de Portugal continuar em África, mesmo a custo da vida de vários militares, o “eu” 313 desmonta, por outro viés, o modelo de nação portuguesa que a ditadura estadonovista divulgava. Para a população que ficou em Portugal, o discurso do Estado transmitia uma visão que atenuava as situações ocorridas, por exemplo, em Angola. Já, para os militares a serviço da continuidade da existência do império, “os senhores de Lisboa” (ANTUNES, 2010, p. 154) determinavam a necessidade de combater e de morrer lutando “em nome de cínicos ideais em que ninguém acredita, um batalhão destroçado para defender o dinheiro das três ou quatro famílias que sustentam o regime” (ANTUNES, 2010, p. 125, grifos nossos). A matemática da guerra é descortinada diante dos interesses escusos que não vêm à tona no dito oficial. Por essa razão, a via encontrada pelo “eu narrador” para contestar o discurso autoritário caracteriza-se pelo ato de, para utilizar as considerações de Barros, “recuperar externamente a polêmica escondida, os confrontos sociais, ou seja, contrapor ao discurso autoritário um outro discurso, responder a ele, com ele dialogar, polemizar” (1999, p. 36). A dialogicidade constitutiva da elaboração da voz narrativa nutre-se, assim, da polêmica, da ironia que faz parte da atividade do “eu” de rever o que foi vivenciado, as concepções de mundo que lhe foram transmitidas, desvelando nelas as leituras subjacentes à superfície do que fora, de fato, expresso. Nesse sentido, responde-se ao não dito, por exemplo, na expressão “baixas insignificantes” (ANTUNES, 2010, p. 62), recortada do discurso oficial, em que as perdas dos militares seriam (indo além de um aspecto, simplesmente, quantitativo), realmente, irrelevantes para o Estado, como peças descartáveis em um jogo velado para defender a posição econômica de algumas poucas famílias em Lisboa. Essa atitude de revisão do passado, algo edificado a partir do “excedente de visão” que o “eu narrador” possui em relação ao “eu narrado”, configura- se na narrativa por meio do descompasso existente entre o tempo da fábula e o tempo da trama. Nessa perspectiva, a dinâmica temporal na prosa é formada pela referência a situações diferentes que invadem o momento da enunciação em uma noite incomum na qual o narrador relata suas agruras a uma personagem também bastante singular, já que dela pouco se sabe, não se consegue apreender qualquer lógica para esse ser fictício com o qual o narrador divide suas lembranças. De um lado, opera-se o desmonte de um modelo de personagem, no tocante à mulher enigmática que acompanha o “eu” noite adentro, nos moldes como esta é configurada, por exemplo, nos romances realistas do século XIX. Do outro lado, a sentença proferida pela voz narrativa é fraturada pela conjunção de tempos díspares em uma mesma situação narrada, sem que, muitas vezes, 314 a frequente remissão ao pretérito seja demarcada no texto. Na verdade, fazendo jus ao intenso movimento rememorativo que qualifica o relato do ex-combatente, alguns eventos encaixam-se noutros, imersos como estão em um tempo psicológico em que a duração de cada acontecimento é determinada na trama não pelo tempo do relógio, mas pela componente traumática de que estaria ou não imbuída na rede de episódios evocados pelo sujeito. Destarte, determinados períodos da vida do ex-alferes-médico são acelerados na narração enquanto outros são prolongados simbolicamente no texto, alvos de uma estagnação que, principalmente, no que se refere aos momentos vividos em Angola, sugere a forma como o indivíduo percebe a passagem do tempo nesse ambiente caótico. Tal aspecto pode ser sentido no texto literário em questão por meio de uma série de elementos, até mesmo, pela maneira como a decomposição de um cadáver é assistida pelo narrador em um tempo inchado, “dolorido e pesado como um furúnculo, abrigando dentro de si um pus de relógios e cansaço” (ANTUNES, 2010, p. 173), conforme se observa na imagem do “corpo do morto [que] crescia no quarto até rebentar as paredes, alastrar pela areia, alcançar a mata em busca do eco do tiro que o tocou” (ANTUNES, 2010, p. 62). O tempo do apodrecimento do defunto é congelado, ao contrário de um tempo físico, pois, de acordo com o que afirma Cardoso sobre o romance em questão, “a putrefacção e inchamento do corpo são, na verdade, um modo de a narrativa dar a notícia real, e de sobrepor o tempo psicológico ao meramente linear” (2011, p. 214). De igual maneira, a sensação de um tempo estagnado constitui a narrativa, fazendo parte tanto do período histórico, de um modo geral, em relação à sensação de atraso vivenciado na época do Estado Novo, visto pelo narrador como uma “aberração por defeito ou por excesso” (ANTUNES, 2010, p. 38), quanto das percepções de um sujeito que também se “sentia apodrecer demais na inércia do arame” (ANTUNES, 2010, p. 141). Com efeito, tal impressão não seria incomum, já que a revivescência dos meses vividos em Angola traz à tona um momento em que o “eu” partilhava com a tropa o infortúnio de ser um prisioneiro em voltas de arame. Enquanto animal enjaulado, preso no “novo zoológico” que a guerra havia projetado, o ex-combatente, junto com os demais soldados, torna-se alvo de uma metamorfose coletiva da qual sobressai o seu “outro” animalesco, proveniente do sofrimento na guerra diante da busca incansável daquele indivíduo de sobreviver em uma situação atroz. Dessa experiência, sobressai a tríade simbólica animalesca, a qual foi edificada pela referência a três espécies específicas dentro da fauna que o texto apresenta. Assim, os “cães 315 raivosos” simbolizariam a fúria desmedida dos militares e o apagamento de qualquer racionalidade pela violência que impregna as ações realizadas no conflito. Por sua vez, os pássaros configurariam a incapacidade de alçar voo e sair daquele contexto miserável. Por fim, os peixes seriam vistos como um símbolo da domesticidade imposta aos homens, reduzindo o ser a uma condição paciente, ou seja, alguém silenciado pela polícia política, pelos “senhores da guerra” (ANTUNES, 2010, p. 165) e, de maneira mais ampla, pelo regime ditatorial. Aliás, essa última posição atribuída ao indivíduo acompanharia o narrador em seu regresso à pátria, já que, depois da barbárie vivida, o “eu” não consegue se identificar com o espaço de onde teria partido para padecer em África e sente-se mais uma vez confinado, não mais em voltas de arame, porém perfilado pelos limites de um “aquário de azulejos” (ANTUNES, 2010, p. 147). Em suma, a dimensão simbólica explorada por meio da presença no romance de uma “metamorfose animalesca” perfaz uma outra via para que o perfil glorioso da nação portuguesa seja deteriorado, já que os seus guerreiros, longe de apresentarem um semblante impávido, carregavam um “aroma de cadáver que traziam consigo desde o navio de Lisboa, homens tornados larvas de espingarda assassina nas patas, por um Portugal de esbirros” (ANTUNES, 2010, p. 149). Na verdade, os soldados portugueses abeiravam-se da leitura negativa que o discurso colonial fez do “outro” colonizado, convertido em um ser incivilizado, miserável, desprovido de cultura, portanto, alguém que necessitava da tutela do colonizador para desenvolver-se. Ademais, a linha de contiguidade tecida entre o colonizado e o militar português nasceria da própria condição de subalternidade que acabava relacionando-os, prisioneiros, cada um à sua maneira, de um mesmo sistema de governo. Por conseguinte, questionar os discursos que respaldavam a relevância do domínio colonial português consiste em outra forma de rasurar a imagem bem-sucedida do império lusitano, tendo em vista que, de acordo com as reflexões do “eu narrador”, os povos colonizados, inflamados por anos de opressão, lutavam pela independência de uma grande nação da qual não teriam, realmente, feito parte. O contato do protagonista com o “outro” auxilia a percepção das dualidades que constituem o romance, sobressaindo, de forma mais particular, as contradições que caracterizavam o contexto do conflito armado. Em uma leitura mais ampla, o mundo incongruente que o texto literário em questão apresenta pode ser exemplificado pela presença da selvageria que qualificaria as ações humanas no front (de tal maneira que o soldado português seria confrontado com sua versão animalesca) e, ao mesmo tempo, de 316 uma matriz intelectual, com várias referências artísticas, evocada pelo “eu” e que acaba dialogando com o caos proveniente da guerra. Esta, mais especificamente, perfaz um cenário absurdo, uma realidade incompreensível que impõe ao sujeito que relata o passado a dificuldade de expressar o que não seria possível explicar, algo que envolve desde o olhar sobre a paisagem angolana, um ambiente sinônimo de vivacidade, porém destruído por anos infindáveis de guerra, até o estranhamento provocado quando são expostas as muitas facetas de uma luta sem sentido: Você não calcula (um dedo, se faz favor, perfeitamente, basta) a sensação esquisita daquele loto no meio da mata, dos tangos poeirentos do gira-discos, das toiletes patéticas das mulheres, das mesuras dos homens, das dálias europeias aquareladas na parede, enquanto os condenados pela Pide se enrolavam como tentáculos inertes nos seus buracos, os soldados tremiam de paludismo nos beliches das casernas, os generais no ar condicionado de Luanda inventavam a guerra de que nós morríamos e eles viviam (ANTUNES, 2010, p. 134). Ampliando a leitura de uma passagem do texto literário já citada anteriormente, a estratificação observada pelo narrador entre as situações vivenciadas no conflito sugere a existência de dois mundos isolados, os quais dividem o mesmo espaço colonial, porém é com naturalidade que se vê edificada a diferença entre esses universos. De um lado, a crueza da violência que extermina o negro é tratada como algo trivial, faria parte de um sistema de dominação em que “os generais no ar condicionado de Luanda inventavam a guerra” para salvaguardar uma posse sobre a terra africana e sobre a gente que nela vivia. Para tanto, a estrutura colonial manifestava seu poder sobre o seu próprio povo, enviando, para o padecimento nos destacamentos distantes em Angola, os soldados que acabavam sofrendo com o “paludismo nos beliches das casernas”. Do outro lado, todo um contexto social movia-se pela ignorância do tormento dos demais, de forma que, caminha, ao lado da crueza da guerra, um mundo de superficialidade, de mesuras sem sentido, como a “loto no meio da mata” parece representar. Tal alheamento atinge maiores proporções quando o ex-combatente retorna a Lisboa e percebe que o esquecimento fora a resposta encontrada pela sociedade portuguesa para não confrontar-se com a imagem de alguém que fora vencido, já que figura desapossada do império que lhe conferia ares de grandeza. Assim, compondo uma voz que reconhece a derrota vivida, algo que vai além de uma questão militar, o “eu” questiona a sedutora desoneração do passado (conforme 317 WEINRICH, 2001, p. 19) de que se vale o povo lusitano para esquecer, de forma seletiva, certos acontecimentos pretéritos que não deveriam fazer parte, segundo essa leitura, da história da nação. Tal dinâmica redundaria na visão, afinal, de que a guerra “não existiu nunca: jamais houve colónias, nem fascismo, nem Salazar, nem Tarrafal, nem PIDE, nem revolução, jamais houve, compreende, nada” (ANTUNES, 2010, p. 193). No entanto, no romance antuniano estudado, a atividade memorial do narrador- personagem possibilita a desocultação do vivido e, nesse sentido, é que a imagem áurea do ser português surge, por fim, desmontada. Essa visão da ex-metrópole arruinada, se assim se pode dizer, é sentida pela própria desestruturação narrativa em que a composição do tempo, da linguagem e, até mesmo, do olhar sobre uma determinada personagem não respondem a uma ordem, pois, no universo criado no romance, isso não teria mais lugar. Ao ex-combatente, resta apena indagar-se e, como tantas outras interrogações observadas na narrativa, não chegar, em definitivo, a uma resposta: “eu perguntava ao capitão O que fizeram do meu povo” (ANTUNES, 2010, p. 58). Ao final da prosa, dialogando com a irrealidade dos discursos que inundaram sua trajetória de vida e que se fazem audíveis novamente no presente, o “eu” regressa ao seu cotidiano tacanho, talvez, com a impressão amarga de que já não haveria muito a fazer. 318 REFERÊNCIAS A) Bibliografia literária consultada de António Lobo Antunes ANTUNES, António Lobo. Os Cus de Judas. 29 ed. Lisboa: Dom Quixote, 2010. ______. Conhecimento do Inferno. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. ______. Explicação dos Pássaros. Lisboa: Veja col. O Chão das Palavras, 1981. ______. As Naus. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. ______. O Manual dos Inquisidores. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. ______. O Esplendor de Portugal. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. ______. Exortação aos crocodilos. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. ______. Eu Hei-de Amar Uma Pedra. 2 ed. Lisboa: Dom Quixote, 2004. ______. Terceiro Livro de Crónicas. Lisboa: Dom Quixote, 2006. ______. O arquipélago da insónia. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010. ______. 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