UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MESTRADO EM DIREITO CONSTITUCIONAL SOPHIA FÁTIMA MORQUECHO NÔGA O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL NO BRASIL: UM NOVO MÉTODO INTERPRETATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NATAL/RN 2020 SOPHIA FÁTIMA MORQUECHO NÔGA O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL NO BRASIL: UM NOVO MÉTODO INTERPRETATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito Constitucional. Orientador: Prof. Dr. Walter Nunes da Silva Júnior NATAL/RN 2020 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas - CCSA Nôga, Sophia Fátima Morquecho. O estado de coisas inconstitucional no Brasil: um novo método interpretativo do Supremo Tribunal Federal / Sophia Fátima Morquecho Nôga. - 2020. 162f.: il. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Programa de Pós-Graduação em Direito. Natal, RN, 2020. Orientador: Prof. Dr. Walter Nunes da Silva Júnior. 1. Estado de coisas inconstitucional - Dissertação. 2. Superlotação carcerária - Dissertação. 3. Medidas alternativas - Dissertação. 4. Diálogo institucional - Dissertação. I. Júnior, Walter Nunes da Silva. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/UF/Biblioteca CCSA CDU 342 Elaborado por Eliane Leal Duarte - CRB-15/355 A Deus, por sua infinita misericórdia. Aos meus pais, Esperanza e Antônio, pelo amor incondicional e apoio em todas as atividades que me proponho a desempenhar. AGRADECIMENTOS Agradeço, primeiramente, a Deus, pela oportunidade que me foi dada. Aos meus amados pais, Esperanza e Antônio, pelo apoio incondicional. A Lucas, por ser meu grande companheiro nesta jornada. Ao Professor Walter Nunes, por todas as lições trazidas ao longo do mestrado e pelas contribuições valorosas na formação deste trabalho. Ao Professor Erick Pereira, que me encorajou desde a sua primeira aula, nos primórdios dessa trajetória. Aos meus familiares, pelo incentivo em continuar minha caminhada, sempre na torcida para que eu conquiste meus mais altos sonhos. Aos amigos de vida e da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, em especial os que integraram a turma ingressante de 2018, por terem tornado o Mestrado uma experiência leve e prazerosa. RESUMO O Supremo Tribunal Federal vem adotando uma nova técnica de julgamento para declarar a omissão do Poder Público face aos preceitos constitucionais, notadamente no sistema carcerário brasileiro. Trata-se da declaração do estado de coisas inconstitucional, de origem colombiana, utilizada na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347, bem como no Recurso Extraordinário nº 580.252. Com isso, emerge a necessidade de delinear um conceito e os moldes de aplicabilidade desta nova teoria, considerando a legitimidade de quem a declara e a sua eficácia prática. Este último ponto se revela como o grande desafio em se reconhecer o estado de coisas inconstitucional, em especial após a inserção do artigo 20 na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, pela Lei nº 13.655, de 2018. Com essa novidade legislativa, as decisões da esfera controladora, administrativa e judicial precisam analisar as consequências práticas, antes de se proferir qualquer decisão. Essa limitação legislativa se compromete em assegurar a efetividade das decisões por meio de uma expansão horizontal e vertical do dever de fundamentação – o maior obstáculo da teoria. Diferente da Corte Constitucional colombiana, que tem a prerrogativa de modificar a Constituição, o Supremo Tribunal Federal deve buscar a compatibilidade do âmbito normativo com o programa normativo, atribuindo efetividade as suas decisões. Considerando que em ambas as oportunidades que se aplicou a teoria do estado de coisas inconstitucional no Brasil se estava diante de problemas do sistema carcerário, é imprescindível buscar meios alternativos eficientes que desafoguem as penitenciárias. Neste ponto, há uma estreita relação entre a expansão do fenômeno criminalidade e o aumento da população carcerária. Além do pouco estudo com vistas a reduzir esse fenômeno, falta uma aplicação correta e mais alargada de medidas alternativas à prisão. É, ainda, passível de discussão se este método interpretativo se mostra como faceta de um ativismo judicial extrapolado, ou se de fato, é coerente com os demais institutos processuais do sistema normativo brasileiro. Nesse sentido, a pesquisa tem por objetivo abordar a aplicação da teoria do estado de coisas inconstitucional no Brasil, analisando os casos em que ela foi suscitada e o conjunto normativo em vigor. Para tanto, se adota o método hipotético-dedutivo, a abordagem qualitativa e a pesquisa aplicada, através de dados estatísticos, estudo de caso, da pesquisa bibliográfica, documental e análise da jurisprudência, incluindo a exploração da doutrina, legislação e decisões judiciais, tanto brasileiras, como internacionais, em especial, da Colômbia. Levando em consideração a figura do estado de coisas inconstitucional no Brasil, enquanto método interpretativo de declarar uma inconstitucionalidade material por omissão, é compatível com o Estado Democrático de Direito, consagrado pela Constituição da República de 1988. Todavia, para o uso adequado desta teoria, o operador do direito deve considerar as consequências práticas desta decisão – consoante o artigo 20, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – o prévio estímulo a um diálogo institucional e o princípio da separação dos Poderes, em especial na alocação de verbas públicas. Palavras-chave: Estado de coisas inconstitucional; Superlotação carcerária; Medidas alternativas; Diálogo institucional. ABSTRACT The Supreme Court has been adopting a new judgment technique to declare the omission of the Public Power in relation to the constitutional precepts, notably in the Brazilian prison system. This is the declaration of the unconstitutional state of affairs, of Colombian origin, used in the Non-compliance with Fundamental Precept No. 347, as well as in Extraordinary Appeal No. 580,252. With that, the need to outline a concept and the applicability molds of this new theory emerges, considering the legitimacy of those who declare it and its practical effectiveness. This last point is revealed as the great challenge in recognizing the unconstitutional state of affairs, especially after the insertion of article 20 in the Law of Introduction to the Rules of Brazilian Law, by Law nº 13.655 of 2018. With this legislative novelty, decisions the controlling, administrative and judicial spheres need to analyze the practical consequences before any decision has made. This legislative limitation is committed to ensuring the effectiveness of decisions through a horizontal and vertical expansion of the duty to substantiate - the biggest obstacle in theory. Unlike the Colombian Constitutional Court, which has the prerogative to modify the Constitution, the Supreme Federal Court must seek compatibility of the normative scope with the normative program, attributing effectiveness to its decisions. Considering that in both opportunities that the unconstitutional state of affairs theory has applied in Brazil, if there were problems with the prison system, it is essential to look for efficient alternative means that relieve the penitentiaries. At this point, there is a close relationship between the expansion of the criminal phenomenon and the increase in the prison population. In addition to the little study aimed at reducing this phenomenon, there is a lack of a correct and broader application of alternative measures to prison. It is also open to debate whether this interpretative method is a facet of extrapolated judicial activism or whether, in fact, it is coherent with the other procedural institutes of the Brazilian normative system. In this sense, the research aims to address the application of the unconstitutional state of affairs theory in Brazil, analyzing the cases in which it has raised and the current set of regulations. For this, the hypothetical- deductive method, the qualitative approach and applied research are adopted, through statistical data, case study, bibliographic, documentary research and analysis of jurisprudence, including the exploration of doctrine, legislation and judicial decisions, both Brazilian, as well as international, especially from Colombia. Taking into account, the figure of the unconstitutional state of affairs in Brazil, as an interpretative method of declaring a material unconstitutionality by default, is compatible with the Democratic Rule of Law, enshrined in the 1988 Constitution of the Republic. However, for the proper use of this theory, the operator of the law must consider the practical consequences of this decision - according to article 20 of the Law of Introduction to the Rules of Brazilian Law - the previous stimulus to an institutional dialogue and the principle of the separation of Powers, especially in the allocation of public funds. Keywords: Unconstitutional state of affairs; Prison overcrowding; Alternative measures; Institutional dialogue. LISTA DE ABREVIATURAS ACP – Ação Civil Pública ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade ADO – Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental AI – Agravo de Instrumento APAC – Associação de Proteção e Assistência aos Condenados BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento CIOSP – Centro Integrado de Operações em Segurança Pública CF – Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 CNJ – Conselho Nacional de Justiça CNMP – Conselho Nacional do Ministério Público CPC – Código de Processo Civil CPP – Código de Processo Penal DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional EREsp – Embargos de Divergência em Recurso Especial FUNPEN – Fundo Penitenciário Nacional IDDD – Instituto de Defesa do Direito de Defesa – Márcio Thomaz Bastos IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IRDR – Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas LEP – Lei de Execução Penal MI – Mandado de Injunção OMS – Organização Mundial da Saúde ONU – Organização das Nações Unidas PIB – Produto Interno Bruto PNSSP – Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário PSOL – Partido Socialismo e Liberdade RE – Recurso Extraordinário RE-AGR - Agravo em Recurso Extraordinário RESP – Recurso Especial SEDH – Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República SUS – Sistema Único de Saúde STA – Suspensão de Tutela Antecipada STF – Supremo Tribunal Federal STJ – Superior Tribunal de Justiça SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 11 2 DA PROJEÇÃO DE GUARDA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS PELO ESTADO AO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL .......................................................... 19 2.1 TEORIAS DO ESTADO .................................................................................................... 20 2.2 PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O PAPEL DO INTÉRPRETE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS ............................................................................................ 27 2.3 REQUISITOS PARA A CONFIGURAÇÃO DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL ........................................................................................................... 34 2.4 CONCEITO DE ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL ................................... 39 2.4.1 A origem da teoria ......................................................................................................... 43 2.4.2 Estado de coisas inconstitucional no Brasil ................................................................. 45 3 A EXPANSÃO DO FENÔMENO DA CRIMINALIDADE E O AUMENTO DO ENCARCERAMENTO NO BRASIL ................................................................................... 49 3.1 CONTRIBUIÇÕES PARA O AUMENTO DA CRIMINALIDADE ................................ 49 3.2 A APLICAÇÃO REDUZIDA DE MEDIDAS ALTERNATIVAS A PRISÃO ................ 60 4 O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL E A OMISSÃO ESTATAL NO SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO ......................................................................... 81 4.1 A PROTEÇÃO OFERECIDA PELO ORDENAMENTO JURÍDICO AO CUSTODIADO .................................................................................................................................................. 82 4.2 A APLICAÇÃO DA TEORIA DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ....................................................................................... 97 4.2.1 As decisões liminares na Arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 347 ............................................................................................................................................ 97 4.2.2 A declaração do estado de coisas inconstitucional na sentença condenatória do Estado no Recurso extraordinário nº 580.252.................................................................... 105 5 RESPALDO JURÍDICO PARA A ACEITAÇÃO DA TEORIA DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL ....................................................................................... 115 5.1 A COMPATIBILIDADE DA TEORIA DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL COM A LINDB .............................................................................. 116 5.1.1 A constitucionalidade do artigo 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro ............................................................................................................................... 120 5.1.2 As consequências do recurso extraordinário 580.252 e o artigo 20 da LINDB ..... 122 5.2 LEGITIMIDADE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA DECLARAR O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL ................................................................... 127 5.3 O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL COMO SUBSÍDIO PARA DECLARAÇÃO DE OMISSÃO ESTATAL ......................................................................... 131 6 CONCLUSÃO .................................................................................................................... 134 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 141 11 1 INTRODUÇÃO Com a incorporação dos preceitos basilares do Estado Democrático de Direito pela Constituição da República de 1988, o Brasil alinha-se com a tendência internacional de inclusão jurídica do pós-positivismo. Após o domínio do positivismo, que serviu de respaldo para o acometimento de tantas atrocidades na Segunda Guerra Mundial pelo regime fascista, a ordem internacional percebeu que a concepção formal do Estado de Direito em consonância com o Estado Ético de Hegel não podia perdurar. A Carta Magna brasileira trouxe proteção para além da legalidade (art. 5º, inciso II, CRFB/88), da divisão dos poderes (art. 2º, CRFB/88), do enunciado e garantias de direitos individuais (art. 5º, CRFB/88), ela preconiza a busca pela igualdade material, consubstanciada no conceito de equidade. Diante desse cenário, em que se promove a efetividade dos direitos constitucionalmente previstos, a figura da Corte Constitucional, enquanto guardiã da Constituição, adquire ainda mais importância. Em uma análise do panorama brasileiro, é garantido a todos o acesso à justiça - regulado no art. 5º, inciso XXXV, da CRFB/88. Mais do que a faculdade de se recorrer à tutela jurisdicional, esse direito assegura ao litigante receber uma tutela adequada, que, para tanto, deve ser justa, tempestiva e, principalmente, efetiva. Sendo assim, em razão da ineficiência dos outros poderes em concretizar as normas constitucionalmente previstas, percebe-se uma crescente demanda de procura ao Judiciário para a resolução dessas ilegalidades. Os operadores do direito passam a assumir um papel muito além do de ser a “boca da lei” do Estado Liberal. Agora, numa realidade pós-positivista, com o Estado Democrático de Direito, o ativismo judicial ganha forma, na busca para que as normas constitucionais passem a sair do papel. Uma das possíveis razões para se justificar a ausência de efetividade de determinadas normas constitucionais seria alegar a programaticidade1 de muitas delas, com o intuito de evitar a plena realização de todos os seus efeitos. É vítima comum dessa interpretação o artigo 3º da CRFB/88, que traça os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. Dentre os quais, pode-se citar, a busca por se construir uma sociedade justa e solidária, a norma do salário- 1 A programaticidade ora referida, faz alusão à classificação desenvolvida por José Afonso da Silva, adotada por parcela doutrinária, que classifica as normas constitucionais de eficácia limitada em normas definidoras de princípio institutivo ou organizativo – também conhecidas como normas constitucionais institutivas – e normas definidoras de princípio programático – também denominadas de normas constitucionais programáticas. Por esta ótica, considera-se que a Constituição da República é composta de normas de eficácia plena, normas de eficácia limitada e normas de eficácia contida. (SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 39ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016). 12 mínimo, o direito à moradia e à segurança pública. É dizer que, em virtude de o Constituinte ter se limitado a traçar diretrizes e programas que os órgãos estatais devem trilhar, estes poderiam não as executar, tendo em vista que a concretização dos programas contidos nessas normas estaria submetida a vontade de efetivação pelos órgãos estatais. Esse entendimento será desconstruído ao longo do presente trabalho, considerando que a Constituição não é uma mera carta de intenções, sem falar que as normas ora violadas nos casos que serão expostos são dispositivos constitucionais de eficácia plena. Por esta razão, não necessitam de edição de norma posterior que venha a regulamentá-las para ter eficácia. A sua eficácia ocorre desde já. São, pois, autoaplicáveis. Nos casos em que se está diante de normas constitucionais de eficácia limitada, é notável que o Supremo Tribunal Federal tem se posicionado mais ativamente, com vistas a suprimir a omissão dos outros poderes, seja do Legislativo em regular uma lei específica, e até mesmo do Executivo em realizar determinada ação. Podemos atentar para esse fato, quando da declaração de ausência de norma especifica que regule tal matéria, o STF se vale da analogia para aplicar norma semelhante a situação ora em análise, além da fixação de prazos para que seja elaborada a norma faltante. Foi esse posicionamento o adotado no Mandado de Injunção nº 795, de relatoria da Ministra Cármen Lúcia, que em maio de 2009 aplicou ao servidor público, no que coubesse, as regras do regime geral da previdência social sobre aposentadoria especial, previsto no artigo 40, § 4º, inciso III da Constituição da República, até a edição de lei complementar específica. Tal julgado deu origem a súmula vinculante nº 33. Ocorre que, a ausência de efetividade das normas constitucionais não se resume a carência de edição de lei regulamentadora em dispositivos de eficácia limitada. Levando isso em consideração, em virtude da necessidade de um Supremo Tribunal Federal mais proativo, que desde 2007 - na ação direta de inconstitucionalidade por omissão nº 3682 - passou a adotar posições concretistas, a teoria do estado de coisas inconstitucional passou a adquirir maiores proporções no Brasil. A origem da teoria do estado de coisas inconstitucional remete a uma construção jurisprudencial desenvolvida pela Corte Constitucional da Colômbia no ano de 1997, tendo sido também adotada, posteriormente, em decisões no Peru e na Argentina. A Corte Constitucional colombiana ao fazer uso, pioneiramente, da referida expressão, na Sentencia de Unificación nº 559, constatou um descumprimento reiterado e sistemático de determinada norma constitucional, além de uma vulneração massiva de direitos fundamentais, em decorrência da 13 inércia do Poder Público em solucionar o problema, consubstanciando, pois, um estado de coisas inconstitucional. Nesse sentido, a Corte colombiana concluiu que a única a saída para a resolução dessa conjuntura perenemente violadora de direitos fundamentais demandava transformações estruturais, tanto na atuação das autoridades, como de órgãos governamentais, necessitando dessa colaboração plural para sanar tais inconstitucionalidades materiais por omissão. Seguindo essa linha intelectiva, o Supremo Tribunal Federal se deparou, em setembro de 2015, com a primeira decisão de demanda envolvendo a declaração do estado de coisas inconstitucional. Na petição inicial da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347, o requerente, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), pediu que fosse declarado estado de coisas inconstitucional, em face às irregularidades do sistema penitenciário brasileiro. O fim último dessa ação consiste em que o Judiciário atue de maneira a imiscuir-se na tarefa de concretizar o papel do Estado enquanto provedor dos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados, determinando que a União e os Estados-membros tomem providências, com vistas a sanar a violação aos direitos dos apenados. Esse método de interpretação constitucional concretista busca solucionar um dos maiores problemas do constitucionalismo. Com ele, quebra-se com a ideia de um elenco numerus clausus de intérpretes constitucionais, ao passo em que propõe um espaço aberto e público para que haja a publicização da constituição. A interpretação constitucional deve ser encarada como elemento dessa sociedade aberta que é a República Federativa do Brasil. Através desse método, a Constituição se realiza não apenas como norma, mas sim como efetividade. Há a transição de uma constituição jurídica para uma constituição real, que vai buscar o efeito e concretização da sua essência. Para garantir a integralidade de um texto constitucional, há necessidade dessa abertura das normas, como é o caso da declaração do estado de coisas inconstitucional, quando há violação a direitos constitucionalmente assegurados. Todavia, é imprescindível uma autocontenção do Judiciário, na consecução de um autocontigenciamento na aplicação desse método. Dessa maneira, na pretensão de reparar a situação inconstitucional, se mostra pertinente um diálogo e colaboração com o Executivo, para que aquele posicionamento ativista do Judiciário obtenha sucesso no que tange ao cumprimento de suas decisões. Eis que é contraproducente a Corte Constitucional decidir um rol de políticas públicas a serem implementadas pelo Executivo para solver os problemas suscitados, se o próprio Executivo demonstrar ao longo do processo a total impossibilidade de comprometimento. 14 Além do mais, outra ressalva a declaração do estado de coisas inconstitucional diz respeito ao princípio da independência e da harmonia entre os poderes. Cabe refletir o limite em que as políticas públicas podem ser influenciadas pelo Judiciário, bem como se a fixação desses limites se justificaria pelo sistema de freios e contrapesos entre os Poderes. Outro ponto a ser estudado concerne à própria definição do objeto do controle de constitucionalidade, quando se busca a declaração do estado de coisas inconstitucional. É mister esclarecer que o objeto de controle não é a realidade empírica, mas sim as normas jurídicas, nada obstante que a compreensão da realidade dos fatos é fundamental para a aplicação da norma concreta. Dito isto, é pertinente notar os métodos hermenêuticos e de interpretação já existentes que são empregados pela Corte Constitucional quando do reconhecimento da omissão estatal, com o fito de desvendar se estes já seriam suficientes, restando, pois, despicienda ou demasiada prolixa, a declaração do estado de coisas inconstitucional. Sendo assim, este estudo pretende abordar as nuances da declaração do estado de coisas inconstitucional, originário da Corte Constitucional Colombiana, ressaltando a pertinência ou não do emprego dessa tese pelo Supremo Tribunal Federal, considerando-se as peculiaridades do Brasil. Ademais, serão analisadas as oportunidades em que o Supremo Tribunal Federal se deparou com essa expressão, notadamente para tratar das irregularidades no cenário do sistema prisional brasileiro. O posicionamento da Corte Constitucional brasileira será estudado de modo a levar em consideração o ativismo judicial que lhe faz presente, a fim de concretizar as normas constitucionais para além da folha de papel, sem olvidar, contudo, do bom uso da hermenêutica constitucional. Dessa forma, em resumo, a proposta principal do presente trabalho consiste em analisar e constatar a aplicação da teoria do estado de coisas inconstitucional no Brasil, notadamente, nas decisões do Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347 e no Recurso Extraordinário nº 580.252, que tratam do sistema carcerário brasileiro e da superlotação carcerária. Intenta-se, ainda, estabelecer quais as repercussões da adoção dessa teoria no sistema jurisdicional pátrio, considerando a existência de limites no qual o Estado pode ser responsabilizado, bem como a autonomia do Poder Executivo na execução de políticas públicas. Diante disso, buscar-se-á, então, definir a coerência da adoção do estado de coisas inconstitucional com os preceitos normativos contidos na Constituição de 1988, especificamente, os garantidores de direitos fundamentais. 15 Será ponderada a necessidade ou não desta declaração, à luz da hermenêutica constitucional e dos demais métodos já utilizados pela Corte Constitucional, refletindo se o reconhecimento da omissão estatal não seria bastante satisfatório. Dessa forma, serão discutidas formas de atuação positiva do Poder Judiciário, com vistas a tutela das normas constitucionais que preveem o cárcere digno ao preso, e se a melhor saída consiste no reconhecimento do estado de coisas inconstitucional ou não. Posta assim a questão, é imperioso salientar que o tema “A teoria do estado de coisas inconstitucional no Brasil: um novo método interpretativo do Supremo Tribunal Federal” trata- se de matéria nova, em virtude de o Supremo Tribunal Federal ter apreciado, pela primeira vez, um caso que envolva tal matéria em agosto de 2015 – no julgamento de cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347. Por esta razão, são poucos – para não dizer muitíssimos raros – os trabalhos científicos que se debrucem sobre a análise da declaração dessa falha estrutural no país. Dentre todas as teses e dissertações de todo o Brasil – o que compõe um total de 1.213.947 trabalhos – disponíveis no catálogo da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), apenas 21 possuem como tema o estado de coisas inconstitucional. Sendo assim, tal fato faz desse tema campo fértil a ser explorado, seja pelo sentimento inovador de enveredar por um caminho pouco conhecido e que carece de discussão, seja pelas consequências acarretadas pela repercussão geral da matéria que demanda atitudes de diversas autoridades, com o intuito de mudar a conjuntura política e social. Academicamente, torna-se relevante este estudo, pela sua importância prática e científica, tendo em vista que o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional pela Corte Constitucional implica uma mudança no modus operandi do judiciário brasileiro, que deve buscar o emprego de técnicas que melhor atribuam efetividade as normas constitucionais relativas a direitos fundamentais. Intenta-se conferir, pois, contribuições teóricas para o estudo e pesquisas bibliográficas acerca dos mencionados assuntos, de tal modo que este trabalho possa servir de fonte, no tocante ao relevante tema, que é o papel do Estado e do Judiciário diante de uma situação contrária a própria Constituição, como é o caso no sistema penitenciário brasileiro. Além disso, a pesquisa a ser desenvolvida promove a verificação do papel da Corte Constitucional brasileira na busca pela proteção da dignidade da pessoa humana, quando da declaração do estado de coisas inconstitucional. Para tanto, possui como núcleo a análise dos Direitos Fundamentais resguardados pela Constituição de 1988, em seu título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais – notadamente, aqueles previstos no artigo 5º. 16 É dizer que, com a declaração do estado de coisas inconstitucional, diante de uma violação generalizada e sistêmica desses direitos fundamentais, busca-se proteger aqueles direitos constitucionalmente previstos e que devem ser assegurados a todos os que estiverem em solo brasileiro. Sendo assim, de início, o capítulo 2 irá contextualizar e servir de base teórica para o que será abordado nos capítulos seguintes. Nesse sentido, esse capítulo base delineará o papel atual de um estado democrático de direito, o que inclui o Estado Brasileiro, regido pela Constituição de 1988, na proteção dos direitos fundamentais, e o papel do julgador na sua efetivação. Neste traçado, será feita a análise que remonta desde as teorias do estado, perpassando a escolha do Constituinte pela incorporação de direitos fundamentais pela Carta Constitucional, e que, nada obstante essa constitucionalização, culminou com uma realidade fática divergente do programa normativo: um estado de coisas inconstitucional. Dessa maneira, o cerne da questão e imprescindível para este trabalho se revela em conceituar o que vem a ser um estado de coisas inconstitucional, considerando o modo que ele tem sido empregado. Com essa fundação consolidada, o capítulo 3 afunilará a discussão para o tema crucial em que já se deparou o estado de coisas inconstitucional, qual seja, o grande número de prisões que gera a superlotação carcerária. Esse aumento de prisões tem relação com a expansão do fenômeno da criminalidade, o que promove, por conseguinte, um aumento dos níveis de encarceramento. Posta assim a questão, será realizado um apanhado dos motivos ensejadores dessa ampliação da criminalidade, salientando, inclusive, medidas de sucesso já empregadas para conter eventos como esse. Dessa forma, alinhando a busca por soluções ao que já dispõe o ordenamento jurídico pátrio, se dedicará a pesquisa, também, a aplicação de medidas alternativas à prisão, o que ainda é pouco utilizada. Seguindo essa linha intelectiva, o capítulo 4 adentra numa discussão mais específica da aplicação da teoria do estado de coisas inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, o que ocorre em razão da omissão do Poder Executivo em concretizar os direitos constitucionais que garantem condições dignas de encarceramento ao apenado. Neste espectro, é imprescindível se ter em mente o âmbito protetivo ofertado pelo ordenamento jurídico brasileiro, para pontuar se, de fato, havia violação a direitos do custodiado. Isso será feito com base em casos concretos em que o STF reconheceu a existência dessa teoria, quais sejam a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347 e o Recurso Extraordinário nº 580.252. 17 No capítulo 5 será efetuado um aprimoramento teórico, com vistas a compreender se o uso da teoria do estado de coisas inconstitucional, do modo em que já foi empregada, é compatível com o sistema normativo brasileiro. Em outras palavras, verifica-se se há ou não respaldo jurídico para a aceitação dessa teoria. Para tanto, a pesquisa realizada neste capítulo irá abordar três vertentes distintas: a primeira diz respeito à conformidade da declaração do estado de coisas inconstitucional com a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, com um especial olhar para as modificações trazidas pela Lei nº 13.655, de 25 de abril de 2018. Neste ponto, é imprescindível considerar a inovação legislativa que introduziu a necessidade de se levar em conta – em qualquer decisão das esferas administrativa, controladora e judicial – as consequências práticas da decisão. Será discutido, então, se ao declarar o estado de coisas inconstitucional, a Corte estaria em consonância com aquele dispositivo. Na segunda vertente, será examinado se o Supremo Tribunal Federal detém legitimidade para declarar o estado de coisas inconstitucional. É dizer que, se verificará se existe substrato constitucional e legal para que se coadune com as funções da Corte Constitucional essa decisão que tem um viés ativista, quando implica o reconhecimento do fracasso do Executivo na concretização de determinada política pública, situação que necessita ser revertida. Pela terceira vertente, se buscará entender a finalidade da declaração do estado de coisas inconstitucional. Posta assim a questão, é essencial perquirir se a utilização dessa teoria pelo STF se mostra como um simples subsídio para a declaração de que o Estado está sendo omisso na concretização de um dever seu. Aqui, será avaliada a importância e necessidade dessa teoria pela jurisdição brasileira ou não. A metodologia empregada para a realização desses fins, no que concerne aos procedimentos, será a pesquisa bibliográfica da doutrina, legislação pátria e internacional, notadamente, levando-se em conta, os países Brasil e Colômbia. Ademais, será feito uso da pesquisa documental, particularmente, no que tange à análise da jurisprudência, sobretudo de decisões exaradas pelo Supremo Tribunal Federal e pela Corte Constitucional colombiana, além de estudo de caso. Há de se destacar, ademais, que o arcabouço referencial do presente trabalho é fomentado, especialmente, pelos dados coletados e pesquisados no curso do engajamento com os grupos de pesquisa “Criminalidade violenta e diretrizes para uma política de segurança pública no Estado do Rio Grande do Norte” e “O Direito Criminal como corpo normativo 18 construtivo do sistema de proteção dos direitos e garantias fundamentais, nas perspectivas subjetiva e objetiva”, ambos sob a coordenação do Professor Walter Nunes. A reunião de informações relevantes tanto na seara da segurança pública como do espectro protetivo ao presidiário aqui abordados se devem, especialmente, à extração dos dados que foram possíveis, em virtude dos citados grupos. Em relação ao objetivo desse trabalho, o método utilizado visa proporcionar uma pesquisa explicativa desse novo modo de atuação do Supremo Tribunal Federal, mais ativo, quando da declaração do estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro. Para tanto, far-se-á o uso do método hipotético-dedutivo para alcançar as conclusões, seguindo as etapas sugeridas por Karl R. Popper. Dessa maneira, partindo-se de uma abordagem qualitativa acerca da teoria do estado de coisas inconstitucional, em especial, pelo conhecimento prévio da sua aplicação pela Corte Constitucional colombiana, avalia-se a problemática que envolveu sua aplicação pelo Supremo Tribunal Federal no cenário do sistema carcerário brasileiro. Com isso, torna-se possível a formulação de conjecturas acerca das consequências advindas do modo que foi aplicada essa teoria no Brasil, servindo de substrato para a responsabilidade civil do Estado, em razão de conduta omissiva face aos custodiados. Neste particular, será estudada a viabilidade desta declaração pelo Supremo Tribunal Federal nos mesmos moldes em que se deu na experiência colombiana, a partir de uma análise empírica. Com isso, serão suscitadas hipóteses que não comportam determinados aspectos originais da teoria na realidade brasileira, o que culmina com uma definição própria da teoria do estado de coisas inconstitucional no Brasil. Sendo assim, a natureza que predomina é de pesquisa aplicada, tendo em vista o intuito primordial de gerar conhecimentos que sirvam para a aplicação prática, voltados ao problema da efetividade das normas constitucionais, notadamente, no âmbito de proteção dos presos custodiados do Estado. 19 2 DA PROJEÇÃO DE GUARDA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS PELO ESTADO AO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL No presente Capítulo, por se tratar da primeira parte do trabalho, haverá breve apanhado da doutrina que trata das teorias do Estado e da discussão em torno da proteção aos direitos fundamentais, notadamente, pela Constituição da República. Nessa senda, não poderia deixar de abordar o conceito do que vem a ser um estado de coisas inconstitucional, bem como trazer à lume como a teoria do estado de coisas inconstitucional foi aplicada pela primeira vez na Colômbia e a sua introdução no Brasil. Ressalte-se que o intento não é aprofundar ideias incontroversas ou amplamente aceitas, mas sim contextualizar a proteção que é dada aos direitos fundamentais2 e que, pelo descumprimento deles, há o ensejo para declaração do estado de coisas inconstitucional. Estando ciente disso, torna-se possível, nos capítulos seguintes, o estudo do aumento da criminalidade, diretamente ligado ao crescimento da população carcerária que, em contrapartida, vem acompanhada da omissão estatal na busca pela solução efetiva do problema e de uma crescente judicialização de demandas pela concretização de políticas públicas. Somente tendo isto consignado, é viável um detalhamento dos casos que a nossa Corte Constitucional fez uso da declaração de estado de coisas inconstitucional; em ambos3, se esteve diante da busca pela concretização dos direitos dos apenados, em face dos problemas estruturais, advindos da superlotação carcerária. Nessa senda, considerando a violação de direitos fundamentais de parcela do povo – dos submetidos à superlotação carcerária – é pertinente uma busca pela interpretação constitucional pela sociedade aberta de intérpretes, sugerida por Häberle. Partindo dessa premissa, é forçoso compactuar com o pensamento do citado autor de que não há como defender a existência de um poder constituinte do povo, se o poder4 contempla o povo em alienação, de 2 A abordagem dada a proteção dos direitos fundamentais, no presente trabalho, prioriza uma análise centralizada na conquista do povo pela proteção de seus direitos – tanto de primeira, segunda e terceira categorias de direitos fundamentais – à nível Constitucional. É mister notar que tal labor é feito com uma particular dedicação ao estudo da legitimação dessas Constituições pelo povo, a que ela visa dar proteção. Esse ponto é fundamental quando tratarmos do nível de proteção dado pela Constituição da República de 1988, que apesar de ser analítica, não reduz o seu grau de eficácia. Um dos fundamentos para se obter essa conclusão é justamente a legitimidade dada pelo povo ao Constituinte e ao Estado Democrático de Direito. 3 Na arguição de descumprimento de preceito fundamental n° 347 e no recurso extraordinário n° 580.252. 4Aqui, Häberle se refere ao Estado, e nós fazemos alusão ao Estado em suas múltiplas interfaces, notadamente, o papel do Estado-Juiz não só na função jurisdicional, mas também como limitador dos excessos, ou omissões, do Executivo. 20 modo que o povo não encontra a realização dos seus objetivos pelo governo, a ponto de ser configurada uma violência do Estado que mantém um povo para si5. Passando por esta problemática da legitimidade da proteção dada aos direitos fundamentais pela Constituição, seguiremos para uma análise da legitimidade do Supremo Tribunal Federal6 para declarar o estado de coisas inconstitucional, sem olvidar de um exame sistemático do direito brasileiro de compatibilidade deste instituto7 com a própria Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, recentemente alterada pela Lei nº 13.655, de 25 de abril de 2018. 2.1 TEORIAS DO ESTADO Atualmente, vivemos a era do Estado democrático constitucional. Estado é constitucional porque o poder público é juridicamente constituído e limitado através de princípios constitucionais materiais e formais: Direitos Fundamentais, Estado Social de Direito, Divisão de Poderes, independência dos Tribunais - em que ele é controlado de forma pluralista e legitimado democraticamente. E mais que isso, é um Estado democrático, o que equivale a dizer que consiste em um estado constitucional, aliado aos princípios e valores da democracia8. O Estado Constitucional é o tipo ideal de Estado da sociedade aberta9, que compreende uma sociedade ampliada dos destinatários, colaboradores e intérpretes da Constituição. É de direito, já que o poder é limitado pelas leis e pela Constituição. Por fim, é democrático, ao passo em que o povo detém o poder soberano de gerir o Estado, seja diretamente, seja de maneira indireta, pela escolha de seus representantes. Nesse contexto, é imprescindível notar que a própria Constituição também é legitimada pelo povo, tendo em vista que o Poder Constituinte obtém sua legitimidade através do procedimento, que espelha a vontade popular. Ademais, a Constituição vige legítima, uma 5 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da constituição. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1997. 6 MORAES, Alexandre de. Legitimidade da justiça constitucional. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 40, n. 159, p.47-59, jul. 2003. Disponível em: . Acesso em: 16 maio 2018. 7 Estado de coisas inconstitucional. 8 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Curso de processo penal: teoria (constitucional) do processo penal. 2. ed. atual., rev., ampl. OWL: Natal, 2015. 9 HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Trad. Marcos Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 06. 21 vez que provém de uma vontade direcionada, que manifesta, de fato, um modelo de ordenamento a ser abraçado, que corrobora as necessidades do povo a quem se destina10. Neste atual Estado constitucional democrático de direito, nada obstante se dizer que consiste em uma obtenção da soberania popular, seria equivocado acreditar que a vontade de todos estaria abarcada pela escolha do governo. Isso porque sempre irá predominar a escolha da maioria. Esse raciocínio se aplica tanto a democracia direta como a indireta, já que a maioria irá suprimir a vontade da minoria. Destaque-se que a maioria ora referida se trata de maioria quantitativa, já que, seja nas eleições para o Legislativo, seja nas eleições para o Executivo, apesar das suas distinções, leva-se em conta uma maioria numérica. No cenário brasileiro, os membros do Legislativo e do Executivo são eleitos pela vontade da maioria – pelo sistema majoritário ou proporcional. Aqueles representantes eleitos por parcela considerável da população que compartilha dos seus mesmos ideais estão naquela função com a obrigação de concretizar a vontade daqueles que lhe elegeram. É importante ressalvar, contudo, que esse princípio majoritário, tal qual os demais direitos, não é absoluto. Isso porque os membros do Executivo e do Legislativo, pelo fato de terem sido eleitos por uma maioria qualitativa, não estão livres do dever de observância à Constituição11. Daí que surge a imprescindibilidade do papel contramajoritário do Judiciário, para satisfazer as necessidades daqueles que não tiveram sua voz reproduzida na mesma frequência da maioria. Este é o cerne da questão e o ponto de partida para entendermos a declaração do estado de coisas inconstitucional pelas Cortes Constitucionais. Dessa forma, essas Cortes possuem o dever de transcender a vontade da maioria quantitativa e lançar o olhar de maneira qualitativa para a proteção dos direitos de quem lhe recorre. Com isso, busca-se evitar o que se denomina de despotismo da multidão12, de maneira que não prevalecerá, invariavelmente, os interesses dos setores numericamente maiores, em detrimento daqueles numericamente menores. O Supremo Tribunal Federal, enquanto Corte Constitucional, detém a prerrogativa de exarar decisões contramajoritárias13 e o dever de proteger os direitos constitucionalmente assegurados a todas as camadas da população, inclusive a parcela minoritária. É isso que torna possível o respeito à pluralidade, presente em 10 MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, 2004. 11 MEDEIROS, Morton Luiz Faria de. Jurisdição constitucional exercida pelas cortes constitucionais: sua importância para a consolidação do Estado Democrático de Direito. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 42, n. 167, p.339-350, jul. 2005. Disponível em: . Acesso em: 14 nov. 2020. 12 Ibid. 13 BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. 22 uma sociedade complexa como é a brasileira, valorizando-se todo e qualquer destinatário de direitos, o que fortalece, em última análise, a própria diversidade que advém da democracia. Sem espaço para esse pluralismo, ao forçar uma unanimidade utópica, se comprometeria o principal valor democrático14. Todavia, nem sempre foi assim a constituição dos Estados. Se a maior evolução alcançada até hoje foi justamente o poder soberano do povo, não há maneira mais adequada de se analisar a teoria do Estado que não pela progressão de direitos do povo. Nesse sentido, cabe esclarecer, desde logo, que o termo povo aqui utilizado se refere ao sujeito político empírico, destinatário e agente de controle e de responsabilidade, ponto de partida da legitimação do Estado15. Não vamos nos ater a concepções filosóficas como as de Rousseau, de que o povo ainda há de ser criado por medidas políticas16, questionando se a eles17 compreende a massa de cidadãos comprometidos com o bem-estar da coletividade ou não. Para o presente trabalho, povo será mencionado enquanto cidadãos de uma nação. No modelo de Estado absolutista, não havia participação do povo na escolha do poder soberano. Ao contrário disso, a legitimidade do governante deveria ser inquestionável, já que se fundava em critérios divinos. Nesse tipo de Estado, era comum existir tão somente uma Constituição de fato ou sociológica, sem, contudo, uma Constituição jurídica. A doutrina sustentou por muito tempo que o direito constitucional e a Constituição eram distintos, considerando a existência de Estados sem Constituição ou apenas com uma Constituição de fato, sendo estes tidos como ausentes de direito constitucional. Já um Estado que possuísse uma Constituição jurídica, além da fática, caracterizaria um Estado Constitucional18. A Constituição, no Estado Constitucional de Direito, surge para limitar o poder governamental. Essa ideia de limitação remete desde o Estado de Direito, fruto dos princípios ideológicos advindos da Revolução Francesa, que visava acabar um governo galgado em um demasiado autoritarismo, através da limitação dos poderes e do estabelecimento expresso de cada função nesse novo governo19. 14 GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do Direito. 30. Ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 2001. 15 MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, 2004. 16 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2013. 17 O povo. 18 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 28. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2013. P. 40- 41. 19 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 28. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2013. P. 38- 39. 23 Além disso, a Constituição possui, de maneira implícita, uma ideia-força de legitimidade suprema do povo, representada pelos valores ideológicos, políticos, doutrinários ou filosóficos do pensamento liberal. Afinal, o Poder Constituinte do povo é quem dá legitimidade ao Estado. O Poder Constituinte do povo passa a ser um conceito de combate do terceiro estado contra o antigo regime20. No liberalismo, percebe-se a elaboração de um conceito universal, genérico dessa Constituição, perdurando-se assim até o século XX com as novas Declarações de Direitos, quando cada uma passou a ter um caráter peculiar21. Todavia, há de se fazer uma ressalva quanto à ausência de contemporaneidade dessas conquistas. O modelo dominante de pluralismo constitucional dá a entender que acontece uma evolução linear da sociedade mundial, levando em conta tão somente o desenvolvimento do direito na modernidade central. Com isso, ele deixa de ponderar que o Estado liberal, tampouco o Estado social, se realizou na maior parte dos contextos geográficos e demográficos de comunicação da sociedade moderna. Seria descabido, por conseguinte, falar de uma crise do Estado social ou do welfare state em situações como aquelas22. Feitas tais observações, no contexto brasileiro atual, tendo sido institucionalizados os direitos de primeira, segunda e terceira dimensão – ou mais propriamente denominados categorias ou espécies de direitos fundamentais, segundo lição de Leonardo Martins e Dimitri Dimoulis23. A Constituição da República de 1988 foi analítica na sistematização dos direitos sociais, ressaltando um viés garantista que demanda, consequentemente, uma maior proteção desses direitos que compõem a segunda categoria24. Eis que se nota, então, uma dificuldade constante de se garantir efetividade a esses direitos, do qual se extrai a problemática da pesquisa aqui delineada, necessitando, pois, de um posicionamento mais ativo do judiciário, especialmente, da Corte Constitucional, enquanto guardiã da Constituição. Neste momento, é minoritária a doutrina que discute a primazia da Carta Magna em face das demais leis25, restando esse entendimento consolidado desde 1959 20 MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, 2004. P. 38. 21 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 28. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2013. P. 38-39 22 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. 23 MARTINS, Leonardo; DIMOULIS, Dimitri. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2014. 24 ABRAMOVICH, v.; COURTIS, C. Los Derechos Sociales como Derechos Exigibles. 2. ed.Madrid: Editorial Trotta, 2004. 25 Destaque, neste ponto, para parcela doutrinária dedicada ao estudo do Direito Internacional, que diverge acerca da primazia entre o direito internacional (tratados incorporados ao direito brasileiro na forma de leis) e o direito nacional (o que inclui, notadamente, a Constituição do Estado soberano). Essa diversidade de concepções se divide, em especial, nas correntes do dualismo, dualismo moderado, monismo internacionalista e monismo nacionalista. 24 com “A força normativa da Constituição”, de Konrad Hesse26. O desafio que ainda resta indefinida sua solução diz respeito a como dar efetividade àqueles direitos já formalmente garantidos. Com o objetivo de sanar esse problema, de atribuir força prática aos direitos constitucionalmente instituídos, surge a teoria do estado de coisas inconstitucional que, além de denunciar às Cortes Constitucionais a omissão na realização de determinados direitos, também exige, em contrapartida, uma solução efetiva ao Judiciário. Pela origem colombiana e pelo emprego desta teoria em diversos outros países, percebe-se que não raro a demanda finda por ser ineficiente na solução do problema27. A doutrina dedicada ao estudo da teoria do estado de coisas inconstitucional atribui demasiada importância a um diálogo institucional para o sucesso do emprego desse recurso28. Resta ausente, contudo, um olhar mais realista e sobre outro espectro acerca do problema da efetividade das decisões estruturantes, em especial, no tocante ao sistema carcerário. Aqui, é pertinente aplicar a analogia à cooperação internacional sugerida por Häberle29. Por esta linha de raciocínio, a realização cooperativa dos direitos fundamentais é uma das consequências do Estado constitucional cooperativo e do Direito geral de cooperação30. Da experiência internacional, percebe-se uma cooperação internacional quando da criação da teoria do estado de coisas inconstitucional, sem, contudo, uma interligação no que tange à interpretação dessa teoria. É dizer que não existe uma orientação uniforme sobre como essa teoria deve ser aplicada no caso concreto. Esse fator, que carece de aplicação no âmbito regional dos estados que apresentam problemas estruturais contrários as suas Constituições, possui fundamental importância na superação dos maiores desafios concernentes à efetividade da concretização dessa teoria. Marcelo Neves propõe uma nova concepção do estudo das Constituições. O autor sugere a existência do transconstitucionalismo, que comporta o desenvolvimento de problemas (MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.) 26 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991. 27 A teoria do estado de coisas inconstitucional já foi experimentada, com desafios, pelo Judiciário da África do Sul, Índia, Colômbia e Indonésia. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 580.252. Brasília,. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2018. 28 CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconstitucional. Bahia: Editora Juspodivm, 2016. 29 HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Trad. Marcos Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. 30Ibid., p. 65. 25 jurídicos que transcorrem por variadas ordens jurídicas e, por esta razão, demandam uma comunicação transversal31. Reconhecendo como existente essa nova proposição de realidade transconstitucional, é válido sugerir um novo paradigma do estado de coisas inconstitucional, mais abrangente. Considerando que os direitos humanos fundamentais estão constitucionalizados por cada Estado que faz uso da declaração do estado de coisas contrário à constituição32, e que os direitos humanos são considerados universais pela doutrina majoritária33, não há descumprimento à Constituição de um Estado, mas da ordem jurídica internacional. Vivemos uma nova fase do Estado Constitucional de Direito, com o entrelaçamento das relações entre vários Estados34. Levando isso em consideração, aliado à concepção da universalidade dos direitos humanos e pela incorporação dos direitos humanos fundamentais pela Constituição da República, essa interligação se mostra proeminente. Os direitos humanos não se cingem às fronteiras. Podem ser entendidos como um amálgama de direitos indispensáveis para a plenitude da vida humana, guiado pelos valores da liberdade, igualdade e dignidade35. Esses direitos servem de defesa contra excessos tanto no aspecto privado como também de atos advindos do poder público. Adota-se, pois, a concepção dominante de que apesar de os direitos humanos não encontrarem seu fundamento de positivação nas suas normas, já que sua marca distintiva é a universalidade36, estes, ao serem positivados nas Cartas Constitucionais, passam a ser incorporados, solenemente, pelo Estado. E essa comunhão, no que tange a validade universal desses direitos, os quais foram constitucionalizados por cada Estado, atribuem uma marca comum àqueles que enfrentam um estado de coisas inconstitucional. Ademais, independentemente do valor restritivo, a dignidade humana é universal. Nesse sentido, de acordo com Leonardo Martins, o direito fundamental pode ser restringido, mas a dignidade humana jamais37. 31 NEVES, Marcelo. (não) solucionando problemas constitucionais: transconstitucionalismo além de colisões. Lua Nova, São Paulo, p. 201-232, 2014. 32 Porque se não o fosse, não haveria sentido em declarar que determinada conjuntura é contrária à Constituição. Não há que se falar em violação constitucional do que não está constitucionalmente protegido. 33 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 44. 34 HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Trad. Marcos Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. P. 02. 35 RAMOS, André Carvalho. Curso de Direitos Humanos – Editora Saraiva 2ª Edição. 36 São marcas distintivas dos direitos humanos, além da universalidade, a essencialidade, enquanto valores indispensáveis que devem ser protegidos por todos, e a reciprocidade, ao passo em que são direitos de todos e não sujeitam apenas o Estado e os agentes políticos, mas comportam a coletividade como um todo. 37 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2014. 26 Essa violação internacional, pelo transconstitucionalismo, exige uma pretensão normativa de uma racionalidade transversal entre ordens jurídicas, pela busca de um método interpretativo alinhado que torne eficaz a declaração do estado de coisas inconstitucional. Essa cooperação internacional intensificada já provou render bons frutos, a exemplo da criação e interpretação jurídica na Comunidade Europeia, que indica a direção de um possível avanço continuado também à nível global. É assim que a sociedade aberta dos intérpretes constitucionais assume uma posição internacional38. Esse tipo de reflexão à nível internacional de maneira transversal se torna mais relevante ao passo em que a ordem constitucional se torna mais aberta, plural e política39, bem como fortalece a própria normatividade da Constituição, essencial para a sua duração, dado o processo constante de legitimação constitucional40, que supera a Constituição como mera folha de papel41. Aliado a esse processo reflexivo à nível internacional, não há como se esquivar o olhar dos desafios que o Judiciário vem enfrentando para manter a respeitabilidade das suas decisões. Ao analisar essa conjuntura sob o aspecto cultural, nota-se uma dificuldade de compreensão da origem dessa importância que se é atribuída àquele poder. Uma das possíveis razões para tanto diz respeito à maneira abrupta de transição de uma comunidade para Estado Democrático de Direito que é o Brasil. É dizer que apesar de o STF retirar seu fundamento diretamente da Constituição e do Constituinte que assim o nomeou, há, ainda, uma relutância em se atribuir a legitimidade do Judiciário pelo procedimento. Sendo assim, para que haja a efetividade das decisões judiciais, é imprescindível o resgate da respeitabilidade da instituição que a exara. O cuidado com o procedimento e o diálogo entre os envolvidos na demanda se revelam como peças chaves nessa empreitada. 38 HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Trad. Marcos Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. P. 63. 39 HÄBERLE, Peter. Pluralismo Y Constituicion, Cap. II. Requisitos, Condiciones, etc., Madri, Tecnos, 2013. P. 63-64. 40 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991. 41 LASSALLE, Ferdinand. O que é uma constituição?. 3.ed. São Paulo, SP: Editora Minelli, 2006. 27 2.2 PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O PAPEL DO INTÉRPRETE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS Não é necessária mais de uma leitura da Constituição da República para afirmar que os direitos fundamentais são fim, fonte e fundamento do ordenamento jurídico brasileiro. Esses direitos encontram respaldo normativo não somente no artigo 5°, mas encontram-se espalhados por toda a Constituição, que é estruturada de modo que esses direitos sejam plenamente resguardados, fruto da organização política constituinte42. Ademais, podem ser titulares desses direitos qualquer pessoa humana43, seja brasileiro, seja estrangeiro. Todavia, há uma certa complexidade na aplicação desses direitos. Especialmente porque há titulares diferentes para categorias de direitos diferentes. Isso não significa dizer que um direito terá proteção objetiva diferente para uns enquanto é aplicado para outros, mas simplesmente que determinadas pessoas receberão proteção subjetiva diferente de outros titulares de direitos. Neste momento, é imprescindível trazer à memória alguns conceitos essenciais para uma melhor compreensão da conclusão dada acima, como: titularidade, proteção subjetiva e proteção objetiva dos direitos fundamentais44. Em síntese, podemos resumir que a titularidade nada mais é senão o âmbito de proteção pessoal ou subjetiva dos direitos fundamentais em oposição à área de proteção material ou objetiva desses direitos. E na aplicação desses direitos, há de se diferenciar a sua titularidade para a concretização da igualdade material. Esta se distingue da igualdade meramente formal, já que além dos aspectos objetivos constantes na lei, analisa os subjetivos, o que importa, ao fim e ao cabo, no modo de tratar de forma desigual os desiguais, na medida de suas desigualdades45. É conveniente exemplificar esse raciocínio com o âmbito de proteção subjetiva das pessoas jurídicas, que pela essência de determinados direitos acaba não sendo possível ser titular de alguns por incompatibilidade; em compensação, se mostra perfeitamente resguardada por outros. 42 MARTINS, Leonardo; DIMOULIS, Dimitri. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2014. 43 MAZZUOLI, Valério de Oliveia. Direitos humanos e cidadania: uma nova concepção introduzida pela Constituição Federal de 1988: (estudo em homenagem ao prof. dr. josé afonso da silva). Justitia – Matérias Aprovadas Para Publicação Futura, São Paulo, p. 1-47, 2020. Sem revisão. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_publicacao_divulgacao/doc_gra_do utrina_civel/civel%2033.pdf. Acesso em: 01 jun. 2020. 44 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direitos humanos & relações internacionais. Campinas: Agá Juris, 2000. 45 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na constituição federal. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. 28 Superadas essas discussões pelas diferentes titularidades para direitos distintos, um desenlace é inexorável: o direito fundamental pode até ser restringido – a depender do titular ou da ponderação –, mas a dignidade da pessoa humana jamais será. Independentemente do valor restritivo, a dignidade da pessoa humana é universal46. Há de se notar, em um paralelo, a existência de diversas disposições legislativas em que estão presentes indícios do pensamento possibilista, sendo equivalente dizer que há casos em que a própria norma atribui margem para a discricionariedade administrativa. Essa problemática surge ainda mais aparente quando se está diante do espaço não legislado ou espaço livre de regulação no âmbito administrativo. É mister salientar, nesse contexto, o chamado direito de estabelecer as próprias tarefas dos entes municipais47. Sendo assim, pela concepção tradicional, a discricionariedade administrativa tem lugar tão somente quando a lei explicitamente confere liberdade para o administrador atuar dentro de limites bem definidos. Num viés doutrinário moderno, a possibilidade de atos discricionários é estendida para além daquelas situações legalmente previstas expressamente. Nesta noção moderna, inclui-se os casos em que a lei faz uso de conceitos jurídicos indeterminados ao descrever o motivo que ocasiona a prática do ato administrativo. São exemplos deste último caso, o uso de conceitos como boa-fé, conduta escandalosa e moralidade pública. Nestas situações, quando o gestor se depara com conceitos jurídicos indeterminados, cabe a ele exercer juízo privativo de oportunidade e conveniência administrativa. Equivale a dizer que o administrador, levando em conta o princípio do interesse público, irá decidir se na situação analisada, o fato se enquadra ou não no conteúdo do conceito jurídico indeterminado presente no antecedente da norma. Com isso, após a decisão, praticará, ou não, o ato disposto no respectivo consequente normativo. É importante destacar, nesse contexto, que a discricionariedade administrativa pode importar em um embasamento mínimo e, neste caso, se for externada sua motivação, os motivos apresentados devem ser verdadeiros. Caso contrário, o ato administrativo estará viciado. Ocorre que, com relação à dignidade da pessoa humana, notadamente as condições dignas de encarceramento, não há espaço para discricionariedade administrativa pela aplicação ou não do direito, pois, como já dito, a dignidade humana não pode ser alvo de restrições48. O 46 MARTINS, Leonardo; DIMOULIS, Dimitri. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2014. 47 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta de intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Sergio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 2002. P. 73-74. 48 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2014. 29 que ainda pode ocorrer é a disponibilidade dos entes federativos em fixar como irá ser alcançado aquele propósito de proteção. Pontualmente, aí pode-se dizer que existe o “direito de estabelecer as próprias tarefas” referido por Häberle49, contanto que, por fim, todos os meios escolhidos convirjam para a concretização dos direitos constitucionalmente assegurados. Essa observação é de extrema importância para entendermos que cabe ao intérprete constitucional tão somente se manter adstrito à avaliação da concretização ou não dos direitos fundamentais do preso. Por esta razão, seria inoportuna a apreciação por um juiz da conveniência e oportunidade do gestor administrativo no modus operandi50, desde que concretize o fim último da proteção dos direitos fundamentais. Somente tendo isto consignado, podemos estipular os limites da aplicação da teoria do estado de coisas inconstitucional. Nesse diapasão, é pertinente estabelecer a diferenciação entre a discricionariedade administrativa, outrora referida, e o livre convencimento motivado do juiz51, como no caso em que a Corte Constitucional declara o estado de coisas inconstitucional. Nesta última situação, o juiz tem a liberdade para decidir dentro dos limites legais, podendo inclusive valorar a prova, desde que o faça justificando com argumentos técnico-jurídicos, esgotando-se todos os pontos relevantes suscitados que porventura poderiam refutar a decisão52. O Código de Processo Civil de 2015 reafirmou e manteve essa sistemática, pelo que se observa no disposto nos seus artigos 370 e 371. No que tange à atuação do intérprete constitucional, percebe-se que a função de proteção aos direitos fundamentais assume maior notoriedade, considerando o caráter aberto das normas contidas na Constituição da República de 1988 e a sua necessidade de interpretação em cada caso concreto53. Dessa sentença podemos constatar dois fenômenos. Primeiro, a escolha pelo legislador constituinte de atribuir caráter aberto às normas constitucionais, com o intuito de saciar a necessidade de uma norma superior que se dedique a regular o maior número de assuntos possíveis, bem como poder abarcar as mais diversas situações no contexto de uma sociedade plúrima como a brasileira. Segundo, há de se notar que nos últimos tempos, as decisões judiciais têm sido alvo de maior publicidade e discussão 49 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da constituição. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1997. 50 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Ato Administrativo e Direitos dos Administrados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981. 51 Também denominado de princípio da persuasão racional. 52 LEBRE DE FREITAS, José. Introdução ao processo civil: conceito e princípios gerais à luz do código revisto. Coimbra: Coimbra Editora, 1996. 53 COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997. 30 popular, garantindo não somente uma maior participação da sociedade no processo constitucional, como também colocando em análise pública as discussões da Suprema Corte54. Atualmente, no contexto pós-positivista, o operador do direito busca exercer seu papel imbuído de um valor de justiça e em prol de atender os interesses não só da maioria, mas também, inclusive, da minoria. O princípio da equidade e a proteção dos direitos das camadas sociais historicamente excluídas são, indubitavelmente, uma das maiores características desta virada constitucional. Todavia, não se pode deixar de notar a existência de uma busca por mecanismos de controle da discricionariedade daquele intérprete, com vistas a ter garantida a segurança jurídica. Para atingir tal fim, o uso da hermenêutica constitucional se faz imprescindível no curso do processo de construção da norma de decisão, desde a análise do evento em questão, até o estudo do texto normativo. Tendo isso em conta, e reconhecendo que o juiz, mais que um intérprete, é um ser social, é possível concluir que uma teoria pura do direito com ares positivistas é deveras insuficiente diante da realidade prática, considerando a sua incompletude, já que foge da análise dos fatores sociais de decisão, que incluem os fatores internos – do próprio operador do direito – e os fatores externos – opinião pública –, e não tão somente as normas puras do direito. É importante esclarecer, desde logo, que não há pretensão de se estabelecer com esse reconhecimento que as decisões judiciais devem fugir da técnica. Ao contrário disso, intenta- se, aqui, desvendar e estabelecer quais os critérios mais adequados a serem levados em conta pelo operador do direito no curso da sua atividade judicante, sem desviar a análise de uma paleta de fatores determinantes daquela decisão, mais ampla e condizente com a realidade normativa. Direito, aqui, é analisado enquanto ciência social aplicada, que tem por finalidade resolver problemas concretos a partir de normas fundamentadas. A dinâmica do direito deve ser vista por meio de uma concepção metodológica, de tal modo que a decisão judicial - como ato normativo concreto - seja previsível. Esse é um dos desafios a serem enfrentados pelo aplicador do direito. Em última análise, trata-se de um método que viabilize contar com um determinado resultado. A jurisdição constitucional tem uma peculiaridade, que é o controle de constitucionalidade55. 54 MEDEIROS, Morton Luiz Faria de. Jurisdição constitucional exercida pelas cortes constitucionais: sua importância para a consolidação do Estado Democrático de Direito. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 42, n. 167, p.339-350, jul. 2005. Disponível em: . Acesso em: 14 maio 2018. 55 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2014. 31 Além disso, o Direito visa atribuir uma resposta para o que seja um problema jurídico. Para tanto, deve-se criar condições para que a decisão judicial seja previsível, o que ocorre através de um dever de colaboração do Judiciário como um todo56. Já o produto do controle de constitucionalidade remete ao direito constitucional material. Significa que houve uma verificação se o poder constituído está, de fato, cumprindo com o poder constituinte. Com isso, é possível então dar uma resposta convincente a um problema de compatibilidade57. Interpretar nada mais é do que atribuir sentido a algo58. Uma palavra, a depender do seu posicionamento na sentença, pode adquirir inúmeros significados. Toda norma precisa ser interpretada, seja ela texto legal, seja a própria Constituição. Sendo assim, podemos afirmar que não há texto sem contexto59. Vale dizer que a interpretação constitucional requer um cuidado ainda maior, tendo em vista o caráter geral e abstrato do seu objeto de estudo e, ainda, uma necessária análise global e sistemática das suas normas como um todo. O significado de uma norma deve ser obtido em consonância com as demais normas constitucionais, considerando que a Carta Magna não se contradiz60. Dizer que uma norma é clara já é um modo de interpretação61. A necessidade de interpretação se sobreleva ao passo em que nos deparamos com normas constitucionais imprecisas ou com os hard cases62, nos quais dois ou mais direitos são colocados em conflito. É imprescindível esclarecer que isso não significa que a aplicação de uma norma invalidará o direito de outra; trata-se de uma questão de primazia, e não de validade. A escolha por qual norma dar primazia vai depender da situação em testilha, ou seja, a interpretação existirá para analisar o evento, realizar a ponderação de valores, e por fim chegar a uma decisão que pode ser diferente de outra anterior que colocou em questão o conflito dos mesmos direitos. Dessa maneira, percebe-se que uma interpretação constitucional deve ser diferente da interpretação dos outros ramos do direito. Ao se tentar abstrair a ideia de uma norma constitucional, é imprescindível entender que nada obstante seja uma interpretação legal, tem que ter a forma especial dada pela interpretação ativa. Essa singularidade vai ocorrer a partir da 56 Ibid. 57 Ibid. 58 LEITE, Marcelo Santos. A influência dos grupos de pressão na interpretação constitucional. Revista de Direito Constitucional e Internacional: Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, Brasília, v. 48, n. 12, p.187-211, jul. 2004. p.187-211. 59 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Traduzido por João Baptista Machado. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 60 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. 61 PEREIRA, Erick Wilson, Interpretação e Aplicação das Normas Constitucionais-Eleitorais, Saraiva, São Paulo, 2010. 62 Casos difíceis. 32 estruturação das normas. Para tanto, a hermenêutica constitucional vem auxiliar nesta tarefa, propondo um modelo processual de interpretação63. Em se tratando das peculiaridades do texto constitucional que promovem a demanda por uma interpretação diferenciada – há de ser notado o caráter aberto das suas normas –, temos na literalidade a possibilidade de fazer surgir novas normas constitucionais. Existe uma inicialidade fundante e uma função determinante heterônoma dos preceitos constitucionais. Uma multiplicidade de problemas gera uma multiplicidade de soluções. Dessa forma, a Constituição brasileira demanda um esforço jurídico árduo do intérprete, não somente pelo seu caráter aberto, com uso de termos gerais e abstratos, conforme assinalado supra, mas também pela existência de um elevado teor de abstração, em virtude da presença de diversos conceitos de caráter axiológico. Cabe ao intérprete da norma realizar a atividade inversa da desenvolvida por quem a criou64. Enquanto o legislador constituinte teve o cuidado de redigir com terminologias que abarcassem o maior número possível de situações, para que elas encontrassem respaldo na Carta Constitucional, o magistrado busca reduzir a aplicabilidade do texto ao caso concreto em específico, sem, contudo, fugir por completo das hipóteses de sentido fixadas. Para qualquer interpretação, há uma necessária interligação com a linguagem do legislador, e essa linguagem precisa ter multiplicidade, ser plurissignificativa. A interpretação é mais do que a intenção de conhecer o conteúdo da norma, possui também a função modificadora. De acordo com Elísio Bastos, a ideia de liberdade de interpretação do intérprete constitucional está diretamente ligada a perenidade da Constituição. Há de se ressaltar, todavia, quanto ao risco de quebra do princípio da supremacia da Carta Magna, quando se dá maior liberdade criadora ao operador65. Nesse contexto, é imprescindível notar que persiste a necessidade de compatibilização do programa normativo com o âmbito normativo66. Hoje, muito além da vontade do legislador, busca-se interpretar de acordo com a vontade da Constituição. Não se trata aqui da Constituição folha de papel67, mas sim de escolher, dentre os sentidos possíveis a serem dados ao texto, o que melhor se adequa com a realidade do caso em testilha. Temos uma interpretação que se 63 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. P. 247. 64 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. Rio de Janeiro: Ibdc, 1997. P. 53. 65 BASTOS, Elísio Augusto Velloso. "Pregão - Limitação ao âmbito da União - Inconstitucionalidade manifesta - Possibilidade de sua utilização imediata por todos os membros da Federação". Revista de Direito Constitucional e Internacional, ano 10, jan.-mar. 2002, São Paulo: RT. P. 242. 66 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. Trad. Peter Naumann; Eurides Avance de Souza. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. 67 LASSALLE, Ferdinand. O que é uma constituição?. 3.ed. São Paulo, SP: Editora Minelli, 2006. 33 aproxima da Constituição material, tornando a norma de decisão mais condizente com a concretude e a solução dada ao caso, por conseguinte, mais adequada. Sob esse viés inovador do constitucionalismo contemporâneo68, não se pode imiscuir de reconhecer a importância do papel do intérprete nessa jornada pela busca da interpretação do texto constitucional, especialmente no que tange à concretização dos direitos fundamentais. É sobremodo importante assinalar que entre a norma texto e a norma de decisão existe um espaço onde há de se promover a hermenêutica e a interpretação. Esse espaço nada mais é do que a própria discricionariedade69. O pensamento, nesse espectro, difere de uma pessoa para outra, para se ter a discricionariedade de ser moral ou jurídico. O intérprete deve buscar analisar o plano do conteúdo, tendo em vista que o plano da expressão já está positivado. Dessa maneira, cada operador jurídico pode extrair conteúdos diferentes da norma. O hermeneuta precisa buscar a essência do efeito prático da norma. Independentemente do método, ele precisa buscar um efeito prático para aquilo que interpretou. Tudo que for produzido impende a existência de uma função, um uso, a ideia de função social da norma. É necessário pensar não para si próprio; esse pensar deve ser exposto, de modo a ser direcionado para outro indivíduo ou para o coletivo. É imperioso, pois, um procedimento de liquidificação70 de todas as hipóteses de interpretação para que, ao final, se encontrem apenas aquelas que se mostrem mais adequadas ao caso ora em questão. Nesse diapasão, não é demais reiterar que o juiz é um ser social. Tal como qualquer indivíduo que componha a sociedade, ele também está incluído em determinados grupos sociais e tem sua vida norteada por diversas instituições. Ademais, esse ser possui querência própria, ele possui vontades resultantes das suas experiências que geram, por conseguinte, a criação e absorção de conceitos dos quais acredita ou rejeita. A querência é algo que contamina de modo a revelar o que o ser é71. A discricionariedade diverge da querência72. A discricionariedade possui limites, que se encontram arrolados na nossa Constituição da República. Já a querência é uma vontade 68 FERREIRA, Francisco Gilney Bezerra de Carvalho. A Evolução da Teoria Constitucional e as perspectivas para o Constitucionalismo do Futuro. Disponível em: . Acesso em: 14 maio 2018. 69 PEREIRA, Erick Wilson, Interpretação e Aplicação das Normas Constitucionais-Eleitorais, Saraiva, São Paulo, 2010. 70 AMARAL, Rafael Caiado. Breves ensaios acerca da hermenêutica constitucional de Peter Häberle. 2003. Disponível em: . Acesso em: 29 nov. 2018. 71 PEREIRA, Erick Wilson, Interpretação e Aplicação das Normas Constitucionais-Eleitorais, Saraiva, São Paulo, 2010. 72 Ibid. 34 natural do ser humano e, por esta razão, é necessário que ela seja convertida em discricionariedade para que se submeta aos limites constitucionalmente impostos. Posta assim a questão, estando o juiz inserido em uma sociedade caracterizada por determinados valores morais, tendo sido reconhecido que este operador do direito é um ser social e possui querência, é possível subsumir que o magistrado também se acha guiado por aqueles preceitos. Isso não significa dizer que as fundamentações das decisões judiciais são embasadas por esses fatores internos, mas que, por nem sempre o magistrado conseguir transformar a querência em discricionariedade e limitá-la, estes possuem influência ao longo do procedimento de aplicação da norma. Tendo isto consignado, emerge a necessidade de um controle intrasubjetivo para limitar a discricionariedade. Em outros termos, no processo de análise dos três planos da linguagem – sintático, pragmático e semântico –, que se inicia com o evento e segue até a norma de decisão, a discricionariedade deve ser limitada, de modo que a opinião pública, enquanto fator externo, não se incorpore de maneira infundada à norma. Sendo assim, a linguagem vai ser a responsável por produzir esse contexto comunicacional. O antecedente de contextualização e a aplicação efetiva do antecedente que finda com o contexto comunicacional permite que fatores externos, como a opinião pública, exerçam influência sobre o texto. Seguindo essa linha de raciocínio, é de sobremaneira importante ressaltar o que Wittgenstein73 enumerou como um dos grandes desafios do magistrado: a função de determinar o sentido e o alcance dos termos. É precisamente no momento em que o juiz exerce essa função que a discricionariedade – de selecionar qual o sentido mais adequado dentre o espaço amostral possível e o limite de alcance daqueles – atinge seu auge, de modo que a opinião da maioria, se for aceita pelo operador do direito, pode ser facilmente incorporada à decisão. 2.3 REQUISITOS PARA A CONFIGURAÇÃO DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL Com o intuito de evitar divagações supérfluas e contraditórias sobre a aplicabilidade da teoria do estado de coisas inconstitucional para certos casos e para outros não, é 73 WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultural, 1999. 35 imprescindível a consignação dos requisitos para que esta seja declarada, em cumprimento ao primado da segurança jurídica74. A Corte Constitucional colombiana não propõe a declaração do estado de coisas inconstitucional de maneira ilimitada. Há um autocontrole do ativismo que deve ser observado. Para tanto, enumerou, na sentença T-153 de 1988, cinco quesitos que devem estar preenchidos para que haja a configuração do estado de coisas inconstitucional, quais sejam75: a) a incompatibilidade do programa normativo com o âmbito normativo76, no caso, da execução penal; b) a superlotação carcerária; c) a ausência de proteção aos direitos relacionados ao trabalho, à alimentação, à saúde e à família dos reclusos; d) a demanda por uma ação estruturante por parte do Estado; e) problemática que carece de soluções sistêmicas77. Tendo esses preceitos delineados, originariamente pela Corte colombiana, é possível estabelecer um ponto de partida para quando seria cabível a declaração do estado de coisas inconstitucional no Brasil, em especial, nos casos que remetam a uma conjuntura violadora dos direitos dos apenados. Neste aspecto, a Corte Constitucional colombiana, por ser um dos tribunais constitucionais mais ativistas da América Latina, é referência na aplicação da teoria do estado de coisas inconstitucional. Curioso notar, inclusive, que em razão da complexidade e dificuldade de se atribuir efetivação às decisões em que se declarou o estado de coisas inconstitucional, a Colômbia tem abandonado, gradativamente, o seu uso. Enquanto isso, no Brasil, a ascendência dessa teoria está ocorrendo tão somente nos últimos anos78. É característico da Corte Constitucional colombiana o uso constante da técnica da ponderação. Importante notar, nesse contexto, a concepção de Leonardo Martins de que o uso da ponderação pelo magistrado deve ser previamente autorizado pelo legislador79. Isso porque 74 GRAU, Eros Roberto. Direito, Conceitos e Normas Jurídicas. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1988. 75 COLÔMBIA. Corte Constitucional Colombiana. Sentença T-153/198. Manuel José Duque Arcila. Ministerio de Justicia y del Derecho, Instituto Nacional Penitenciario y Carcelario - INPEC. Relator: Juiz Eduardo Cifuentes Muñoz. Establecimento Carcelario: Condiciones de hacinamiento. Santa Fé de Bogotá, 28 abr. 1998. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2018, p. 89-90 76 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. Trad. Peter Naumann; Eurides Avance de Souza. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. 77 SOARES, Renata Araújo. O Estado de coisas inconstitucional e a calamidade do sistema penitenciário: diretrizes constitucionais para uma política transversal de segurança pública. 2018. 151f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2018. 78 SILVA, Paulo Maycon Costa da. Jurisdição constitucional na Colômbia e o poder político do cidadão diante da Corte Constitucional. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 203, n. 51, p. 185-204, 2014. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/51/203/ril_v51_n203_p185.pdf. Acesso em: 22 nov. 2020. 79 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2014. 36 é vedado ao juiz sem mandato ponderar os interesses e princípios ou bem jurídicos para decidir qual o que deve prevalecer. Para realizar tal tarefa, necessitaria de mandato, ser político. Os magistrados da Corte Constitucional colombiana possuem legitimidade para realizar essa ponderação, pelo que se extrai da própria Constituição da Colômbia. Todavia, no caso de decisões estruturantes, necessita-se mais do que ponderação; de um concretismo que oportunize o diálogo institucional, e o fim último, da efetividade das decisões judiciais. Desse modo, a apreciação de uma demanda pelo Tribunal Constitucional colombiano pode resultar muito além da decisão judicial que vincula o próprio Judiciário e a Administração em geral. Há uma facilidade maior, se comparado ao Brasil, de modificação da própria Constituição colombiana. É dizer que, pelo modelo de Constituição rígida80 que é a brasileira, a edição de emenda constitucional perpassa por um procedimento de votação em dois turnos, nas duas Casas do Congresso Nacional, e aprovação de pelo menos três quintos dos integrantes das Casas Legislativas81. A outro giro, a modificação da Constituição colombiana não faz exigência dessa ordem, podendo a própria Corte Constitucional promover essa alteração constitucional. Detém, esta última, o poder reformador constitucional. A legitimidade, para tanto, decorre da própria estrutura orgânica da Corte Constitucional colombiana. Os magistrados que compõem essa cúpula são nomeados para mandatos temporários, ao contrário dos ministros do STF, que possuem o privilégio da vitaliciedade. Dessa maneira, pode-se dizer que a Corte Constitucional da Colômbia tem a atribuição de um poder constituinte temporário. Constituinte, porque pode modificar a qualquer momento a Constituição. É temporário em virtude de o mandato dos magistrados eleitos pelo Senado da República da Colômbia ser de oito anos. Há, ademais, vedação expressa à reeleição82. 80 É rígida, de acordo com o entendimento majoritário, por exigir um procedimento especial mais dificultoso para a modificação da Constituição - através das emendas constitucionais -, do que os procedimentos pelos quais se modificam as demais leis. Importante fazer menção ao entendimento minoritário de que a Constituição da República de 1988 seria super-rígida. Esta última classificação foi adotada pelo Ministro Alexandre de Moraes, pela qual entende-se que há um núcleo intangível na Constituição – as cláusulas pétreas –, e o restante das normas poderiam ser alteráveis por processo legislativo diferenciado, mais dificultoso que o ordinário. 81 Vide art. 60, §2º, da Constituição da República. 82 Artigo 239, da Constituição Política da Colômbia: O Tribunal Constitucional terá o número ímpar de membros determinado por lei. Na sua integração serão abordados os critérios de nomeação de magistrados pertencentes a diversas especialidades do Direito. Os Magistrados do Tribunal Constitucional serão eleitos pelo Senado da República para mandatos individuais de oito anos, a partir de três listas apresentadas pelo Presidente da República, pelo Supremo Tribunal de Justiça e pelo Conselho de Estado. Original: La Corte Constitucional tendrá el número impar de miembros que determine la ley. En su integración se atenderá el criterio de designación de magistrados pertenecientes a diversas especialidades del Derecho. Los Magistrados de la Corte Constitucional serán elegidos por el Senado de la República para períodos individuales de ocho años, de sendas ternas que le presenten el Presidente de la República, la Corte Suprema de Justicia y el Consejo de Estado. 37 Ademais, diferente do STF, quando a Corte Constitucional colombiana declara a existência de inconstitucionalidade de determinada norma, manda remessa para o congresso nacional, com vistas a sanar essa incompatibilidade83. Há, pois, naquele país, um controle misto a ser exercido pelo Judiciário de controle de constitucionalidade84, ao passo em que há uma junção do sistema concentrado austríaco e do sistema difuso norte-americano, também conhecido como uma expressão do judicial review85. Tendo consignado essas peculiaridades da Corte Constitucional colombiana, a adequação da teoria do estado de coisas inconstitucional para a realidade brasileira se torna mais produtiva. Sendo assim, da decisão específica para o caso de declaração do estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário, é conveniente extrair da sentença T-153 aspectos gerais comuns para a aplicação da referida teoria em uma demanda que envolva objeto distinto. Sendo assim, são condições genéricas para a configuração do estado de coisas inconstitucional: a) violação reiterada de Direitos Fundamentais; b) omissão duradoura por parte do Estado na solução do problema; c) demanda que exige atuação conjunta de diversas autoridades; d) problema estrutural, objeto de ações repetitivas86. Como o STF reconheceu o estado de coisas inconstitucional em dois pleitos envolvendo exclusivamente o sistema prisional, é pertinente o enfoque específico e pormenorizado dessas premissas para o emprego dessa teoria, tendo em vista que foram elaboradas em meio às discussões do sistema carcerário colombiano. Na oportunidade, a Corte Los Magistrados de la Corte Constitucional no podrán ser reelegidos. 83 Assim ordena o artigo 241, no seu parágrafo: Art. 241. Ao Tribunal Constitucional compete a proteção da integridade e supremacia da Constituição, nos termos estritos e precisos deste. Parágrafo. Quando o Tribunal constatar vícios processuais retificáveis na formação do ato sujeito ao seu controle, mandará devolvê-lo à autoridade que ele proferiu para que, se possível, corrigisse o defeito observado. Corrigido o vice, procederá para decidir sobre a exequibilidade do ato. Original: Artículo 241. A la Corte Constitucional se le confía la guarda de la integridad y supremacía de la Constitución, en los estrictos y precisos términos de este. Parágrafo. Cuando la Corte encuentre vicios de procedimiento subsanables en la formación del acto sujeto a su control, ordenará devolverlo a la autoridad que lo profirió para que, de ser posible, enmiende el defecto observado. Subsanado el vicio, procederá a decidir sobre la exequibilidad del acto. 84 SILVA, Paulo Maycon Costa da. Jurisdição constitucional na Colômbia e o poder político do cidadão diante da Corte Constitucional. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 203, n. 51, p. 185-204, 2014. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/51/203/ril_v51_n203_p185.pdf. Acesso em: 22 nov. 2020. 85 Revisão judicial da Constitucionalidade realizada pelo controle difuso. Tem como paradigma histórico o caso Marbury vs. Madison, de 1803. 86 ARRUDA, Andrey Stephano Silva de. Estado de Coisas Inconstitucional: uma nova fórmula de atuar do STF. Âmbito Jurídico, São Paulo, v. 145, p. 1-17, fev. 2015. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-constitucional/estado-de-coisas-inconstitucional-uma-nova- formula-de-atuar-do-stf/amp/#_ftnref16. Acesso em: 02 jun. 2020. 38 colombiana descreveu que prisões colombianas87 eram o contrário de um ambiente ressocializador. Predominava o império da violência, da extorsão e da corrupção. E essa inconstitucionalidade dos fatos não era pontual, mas se estendia por penitenciárias de todo o país. Retomando os quesitos que devem existir para que se possa declarar o estado de coisas inconstitucional, a incompatibilidade entre o programa normativo e o âmbito normativo equivale a dizer que há uma incongruência entre a norma posta e a realidade fática, nomeadamente, aos direitos dos submetidos ao regime penitenciário brasileiro. Esse ponto é de fácil constatação, e por conseguinte, já leva ao segundo requisito, que seria a superlotação carcerária. Seria melhor dizer que em razão da superlotação carcerária, torna-se impossível o respeito aos direitos fundamentais dos custodiados, que, a priori, cada cela deveria ter, no mínimo seis metros quadrados para cada apenado88. À contrassenso, em penitenciárias como o Presídio Professor Barreto Campelo, situado na Ilha de Itamaracá, vizinha de Recife, onde a capacidade total era para 370 presos, findava por comportar 1.032 pessoas89. Não é só a superlotação que viola as condições dignas de sobrevivência desses seres humanos. Mais que isso, há desrespeito a outros direitos, como a alimentação básica, ambiente com higiene que favoreça a saúde dos custodiados, e o trabalho, que deveria ser proporcionado e raramente o é. Pela omissão reiterada por parte do Estado, a dimensão do problema se extrapola da alçada de apenas um ente. Dessa maneira, é imperiosa a adoção de uma solução sistêmica intersetorial que culmine como uma ação estruturante solucionadora. A experiência colombiana demonstrou a necessidade por um diálogo institucional. A doutrina costuma citar esse diálogo entre instituições como fundamental ao sucesso da aplicação da teoria do estado de coisas inconstitucional. Neste trabalho, propomos um olhar inovador no tocante ao tão aclamado diálogo institucional. Para melhor compreensão dessa proposta, é necessária uma breve digressão ao conceito trazido por Marcelo Neves de diálogo constitucional, em um âmbito internacional. 87 Não somente as prisões Bellavista e Modelo, localizadas, respectivamente, em Medellín y Santa Fé de Bogotá, que eram objeto da inicial. Isso porque a Corte Constitucional colombiana reconheceu que se tratava de um problema estrutural que afetava a maioria das penitenciárias da Colômbia. 88 Vide art. 88, alínea b, da LEP. 89 Vide . Acesso em: 02 jun. 2020. 39 O citado autor, ao explicar os problemas enfrentados pelo fenômeno do transconstitucionalismo, esclarece que quando houver o diálogo, com vistas ao entendimento entre cortes de ordens jurídicas diversas, ele não deve ser entendido como um instrumento tão somente para uma conciliação ou consenso. Esse diálogo constitucional assume uma dupla contingência, ao passo em que, antes de tudo, serve como meio para uma comunicação que priorize a absorção do dissenso90. Sendo que Neves propõe uma evolução com relação ao modelo de dupla contingência proposto na teoria da ação91, ao passo que destaca a dinâmica entre os interessados, onde um observa o outro, de maneira que essa comunicação teria um potencial modificador e influenciador92. Levando isso em consideração, não há melhor acepção para diálogo institucional que usarmos a linha intelectiva seguida por Neves. Diálogo institucional, no debate da teoria do estado de coisas inconstitucional, assume, portanto, um potencial cambiante93. Cada instituição envolvida na demanda manifesta sua perspectiva, e a partir dessa perspectiva, faz surgir uma limitação proposta, bem como um papel modificador latente do pensamento da outra parte. A adoção desse raciocínio não exclui, ainda, a possibilidade de obtenção de um consenso. Contudo, o papel da Corte Constitucional não finda na disponibilização de um ambiente promissor do entendimento entre as partes. Primeiramente, em obediência ao princípio da inafastabilidade de jurisdição. Segundamente, como guarda da Constituição, cabe a Corte Constitucional velar pela aplicabilidade daquela, exarando uma decisão independente do que for conveniente aos olhos dos representantes de cada instituição. Por fim, é imperioso insistir em um diálogo extramuros entre Estados que compactuam do estado de coisas inconstitucional, na busca pelo aperfeiçoamento do instrumento. Esta acepção adotada de diálogo institucional é fundamental para fomentar a discussão, de modo que as partes reúnem materiais relevantes, colocados à disposição do intérprete constitucional, que os levará em consideração na tomada de decisão, dando-lhe maior legitimidade. 2.4 CONCEITO DE ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL 90 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. 91 LUHMANN, N. Introdução à teoria dos sistemas. Petrópolis, RJ:Vozes, 2010. 92 FEYERABEND, P. K. 1991. Three dialogues on knowledge. Oxford: Basil Blackwell. 93 NEVES, Marcelo. (não) solucionando problemas constitucionais: transconstitucionalismo além de colisões. Lua Nova, São Paulo, p. 201-232, 2014. 40 Estado de coisas inconstitucional é uma terminologia genérica que admite diversas acepções. A priori, remete a um estado de coisas contrário, materialmente, à Constituição94. As variações não residem na definição própria de cada termo, mas sim ao sentido que é atribuído ao conjunto terminológico, bem como a finalidade com que se emprega essa constatação. Seguimos, neste primeiro momento, para a análise do sentido dos termos. Pontualmente, podemos nos deparar com variadas situações que despertam um sentimento de que a conduta é contrária a preceitos constitucionais. Quando é retirado de uma criança o direito de estudar, porque não existe vaga na rede pública de ensino – seja pela carência de escolas, falta de professor ou de estrutura –, não há como negar que tal fato é contrário à Constituição95. Do mesmo modo, em uma situação em que, por mais que o Estado oferte vagas suficientes em escolas, uma criança seja obrigada a trabalhar ao invés de estudar, sob o pretexto de contribuir com o sustento de sua família96, também é o oposto do que propõe a Constituição. A gama de exemplos de situações semelhantes é extenso, e não cabe maiores divagações neste momento, mas cumpre com o propósito de demonstrar que não basta que determinado fato vá de embate à Constituição para ser considerado estado de coisas inconstitucional. Para considerarmos que se trata de verdadeiro estado de coisas inconstitucional, a situação violadora de direitos constitucionalmente assegurados deve ser constantemente reiterada, culminando com uma conjuntura que necessita de maiores intervenções para se tornar condizente com o sistema normativo pátrio. Neste segundo momento, é pertinente delinear a finalidade com a qual o estado de coisas inconstitucional é empregado. Para a Corte Constitucional da Colômbia, essa teoria deve ser usada como medida para delimitar o alcance da matéria. Essa ideia foi explicitada na Sentença T-153. Através da fundamentação ora empregada, é possível extrair que a figura do estado de coisas inconstitucional deveria ser utilizada nos casos em que envolvam violações a direitos fundamentais e que isso afete um grande número de indivíduos. Seriam, portanto, demandas 94 EMAGIS. Estado de coisas inconstitucional: origem e pressupostos. Disponível em: . Acesso em: 21 maio 2018. 95 Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (CRFB/1988) 96 Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...]XXXIII - proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998) 41 que necessitam de ações estruturais. E, em razão da quantidade de pessoas afetadas em semelhantes situações, se não houvesse uma decisão que valesse para todas e cada uma recorresse de maneira individual, haveria um congestionamento do Judiciário. A declaração do estado de coisas inconstitucional pela Corte Colombiana seria então a solução para esse problema.97 A intenção primordial, com essa definição, seria evitar a proliferação de demandas semelhantes que tratassem da mesma matéria. Todavia, despicienda se faz a utilização dessa figura com tal propósito no Direito brasileiro. Ora, o meio adequado para a unificação de uma tese para demandas em massa, ao mesmo tempo em que confere celeridade processual, é o incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR), trazido pelo Código de Processo Civil de 2015 nos artigos 976 a 987. Nesse pórtico, um tribunal, quando se deparar com demandas semelhantes em grande escala, com o fito de evitar resultados diferentes para casos semelhantes e proporcionar agilidade processual, pode, preenchidos os requisitos legais, instaurar o IRDR, como maneira de garantir os princípios da segurança jurídica e celeridade processual. Não há que se falar em utilização da declaração do estado de coisas inconstitucional, conceito sem respaldo legal e concreto, como substitutivo do IRDR. Ademais, pelo primado da celeridade e segurança jurídica, o Código de Processo Civil expandiu a possibilidade de conexão de processos por simples prejudicialidade ou preliminaridade98, adotando-se a teoria materialista. Além da conexão entre duas ações com base na identidade do pedido ou da causa de pedir, podem ser conexas em virtude de outros fatos que liguem uma demanda a outra, a depender da relação jurídica de direito material que é 97 ESTADO DE COSAS INCONSTITUCIONAL-Alcance Esta Corporação utilizou a figura do estado de coisas inconstitucional para buscar soluções para situações de violação de direitos fundamentais de natureza geral - enquanto afetam uma multidão de pessoas - e cujas causas são de natureza estruturais, ou seja, em regra, não se originam exclusivamente da autoridade demandada e, portanto, sua solução requer a ação conjunta de diferentes entidades. Nestas circunstâncias, o Tribunal considerou que, uma vez que milhares de pessoas estão na mesma situação e que, se todas recorressem à tutela, poderiam congestionar desnecessariamente a administração da justiça [...].ESTADO DE COSAS INCONSTITUCIONAL-Alcance Esta Corporación ha hecho uso de la figura del estado de cosas inconstitucional con el fin de buscar remedio a situaciones de vulneración de los derechos fundamentales que tengan un carácter general - en tanto que afectan a multitud de personas -, y cuyas causas sean de naturaleza estructural - es decir que, por lo regular, no se originan de manera exclusiva en la autoridad demandada y, por lo tanto, su solución exige la acción mancomunada de distintas entidades. En estas condiciones, la Corte ha considerado que dado que miles de personas se encuentran en igual situación y que si todas acudieran a la tutela podrían congestionar de manera innecesaria la administración de justicia, lo más indicado es dictar órdenes a las instituciones oficiales competentes con el fin de que pongan en acción sus facultades para eliminar ese estado de cosas inconstitucional. COLÔMBIA. Corte Constitucional Colombiana. Sentencia T-153, de 28 de abril de 1998. Disponível em: http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/1998/t-153-98.htm. Acesso em: 18 de maio de 2017. 98 AMARAL, Guilherme Rizzo. Comentários às alterações do Novo CPC. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 116 42 discutida. Desse modo, pode haver conexão se ambos os processos discutirem uma mesma relação jurídica, ou se, apesar de serem diversas as relações jurídicas, existir entre elas um vínculo de prejudicialidade ou preliminidade99. Há de se observar ainda que se o que pretende é levar a discussão à Suprema Corte, tendo reconhecida a repercussão geral da matéria, já existe o Recurso Extraordinário. O mesmo raciocínio cabe para a interposição de Recurso Especial no âmbito do Superior Tribunal de Justiça. Neste contexto, não há como se deixar de notar que a ação direta de inconstitucionalidade, a arguição de descumprimento de preceito fundamental (inclusive a arguição de descumprimento de preceito fundamental incidental) e o mandado de injunção já cumprem a função de declarar a omissão normativa. Todavia, não se pode escapar um ponto importante que distingue a aplicabilidade da teoria do estado de coisas inconstitucional no Brasil desses mecanismos supracitados que visam declarar uma conduta omissiva. Tal ponto consiste que enquanto a ADPF e o MI se prestam a suprir a omissão de normas de eficácia limitada, a declaração do estado de coisas inconstitucional não possui essa limitação. Dessa maneira, normas de eficácia plena, mas que não possuem eficácia prática podem ser levadas a conhecimento da Corte Constitucional, através do uso da presente teoria. Ademais, é imperioso destacar ainda que a declaração do estado de coisas inconstitucional não tem o fito de suprir uma omissão legislativa, mas sim uma omissão de implementação de políticas públicas e política positiva de exercício do Estado em garantir os direitos fundamentais. Por essa razão, questiona-se qual a finalidade prática da declaração do estado de coisas inconstitucional. Sabe-se que a declaração do estado de coisas inconstitucional tem o condão de demonstrar uma situação violadora da Constituição que se repete reiteradas vezes, e justamente por isso, tornou-se um panorama inconstitucional100. O que se busca com isso é reconhecer que violar a norma constitucional, naquela circunstância, virou hábito, e essa prática deve ser firmemente repreendida e cessada pelas autoridades responsáveis pelo descumprimento101. 99 DIDIER, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Juspodivm, 2015, p 233. 100 CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconstitucional. Bahia: Editora Juspodivm, 2016. 101 CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Devemos temer o "estado de coisas inconstitucional"? Consultor Jurídico, São Paulo, 15 out 2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-out15/carlos-campos-devemos- temer-estado-coisas-inconstitucional. Acesso em 25 abr 2018. 43 Poder-se-ia dizer que se trata de um recurso de interpretação, sem, contudo, ser requisito essencial para a declaração da omissão do Estado, tampouco pode-se considerar a declaração do estado de coisas inconstitucional como eficiente, de per si, para que se corrija a situação inconstitucional. As experiências anteriores já ressaltaram que de nada adianta declarar o estado de coisas inconstitucional sem antes haver um diálogo entre instituições que serão atingidas pela decisão de mérito. Neste ponto, já se obtém duas conclusões: que a declaração do estado de coisas inconstitucional tem natureza jurídica de método interpretativo, a qual serve para constatar que o Estado foi omisso na realização de sua obrigação. Ademais, a simples declaração do estado de coisas inconstitucional não tem funcionalidade na eficiência da reversão do próprio estado de coisas inconstitucional que ela reconhece, sem que seja acompanhada de determinações elegidas após um diálogo entre instituições envolvidas, na busca pela efetividade. 2.4.1 A origem da teoria Como precursora da teoria do estado de coisas inconstitucional, a Corte Constitucional colombiana a fez constar pela primeira vez na Sentencia de Unificación nº 559 (Sentença de Unificação n° 559) em 1997, em ação movida por 45 (quarenta e cinco) professores dos municípios de María la Baja e Zambrano, na Colômbia102. O objeto em discussão era a violação dos direitos previdenciários desses profissionais, que pediam o cumprimento do Decreto nº 196, de 1995, que determinava a filiação dos professores ao Fundo Nacional de Benefício Social do Magistério, consistente em uma entidade de seguridade social que, com fundamento no princípio da solidariedade, é organizada com vistas a financiar benefícios destinados àquela categoria103. Tendo sido inobservada aquela previsão normativa, os autores alegaram que estaria configurado um estado de coisas contrário à Constituição. Considerando que eram poucos os professores filiados ao Fundo Nacional de Benefício Social do Magistério, a Corte verificou a natureza generalizada das irregularidades, que não se cingia aos municípios de Zambrano e 102 LYONS, Josefina Quintero; MONTERROZA, Angélica Matilde Navarro; MEZA, Malka Irina. La figura del estado de cosas inconstitucionales como mecanismo de protección de los derechos fundamentales de la población vulnerable en Colombia. Revista Mario Alario D'filippo, Cartagena, v. 3, p.69-80, 2011. Disponível em: . Acesso em: 16 maio 2018. 103 EMAGIS. Estado de coisas inconstitucional: origem e pressupostos. Disponível em: . Acesso em: 21 maio 2018. 44 María la Baja, alistados, a priori, na inicial. Dos 1.061 (um mil e sessenta e um) municípios e quatro distritos existentes na Colômbia, tão somente 126 (cento e vinte e seis) municípios e a capital de Santa Fé de Bogotá tinham formalizado a filiação de seus professores ao fundo104. Sendo assim, a Corte colombiana exarou decisão procedente para todos que se encontravam em situação semelhante, e do mesmo modo, responsabilizou as autoridades e entidades públicas que contribuíram com essa infração. Tendo em vista essa declaração de reiterada violação aos direitos fundamentais dos docentes, o Tribunal em questão se limitou a estabelecer mandamentos a serem cumpridos pelo Executivo, no propósito de se ver sanada a questão ora posta. Um ano mais tarde, a Corte Constitucional da República da Colômbia, por meio da Sentença T-153, em 1998, trouxe a teoria do estado de coisas inconstitucional para o âmbito do sistema carcerário, declarando que as penitenciárias da Colômbia eram cenário de um estado de coisas contrário à Constituição105 daquele país. Essa decisão teve origem em demandas individuais sobre duas penitenciárias específicas. Todavia, ao considerar que a superlotação e que as condições desumanas de encarceramento eram problemas generalizados, a Corte concluiu que a violação massiva de direitos fundamentais era uma constante nos presídios ao longo de toda a nação106. Diante disso, para superar esse estado de coisas, determinou-se que fosse adotada uma série de medidas por parte de diversos órgãos do Poder Público, notadamente, a construção de novos presídios. Há de se notar, contudo, que a decisão na Sentença T-153 não foi a mais acertada, por ser demasiada restrita, já que caberia terem sido consideradas a complexidade orçamentária e a demografia da população carcerária colombiana. Nada obstante, houve a criação de mais de 20.000 (vinte mil) vagas nos presídios; contudo, esta obra demorou a ser concluída, e o contingente de apenados expandiu exponencialmente com o decorrer dos anos, necessitando de mais celas além daquelas. Nesse sentido, observa-se que o posicionamento da Corte careceu de uma interação com os demais órgãos públicos. É mister salientar, outrossim, que tal fato não afasta a 104 COLÔMBIA. Corte Constitucional Colombiana. Sentencia nº SU-559, de 6/11/1997. Disponível em: http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/1997/SU559-97.htm. Acesso em: 6 de maio de 2017. 105 LASSALLE, Ferdinand. O que é uma constituição?. 3.ed. São Paulo, SP: Editora Minelli, 2006. 106 VANEGAS, Farid Samir Benavides. A global zero tolerance? Colombian prisions from a world historical perspective. Pensamiento Jurídico, Bogotá, n. 23, p.173-202, 2008. Disponível em: . Acesso em: 16 maio 2018. 45 importância daquela decisão107. Foi a partir dela que se lançou um novo olhar quanto ao papel dos tribunais na apreciação da crise prisional. Dessa maneira, percebe-se que o que não se esboçou à época da decisão, culmina como uma aparência de Judiciário108, ineficiente no seu dever de buscar eficácia material aos seus julgados. A ausência de facticidade e de um estudo aprofundado do tema com a participação da sociedade civil – tão preconizado por Häberle, na sua obra Sociedade Aberta de Intérpretes da Constituição109 – somada à colaboração dos demais poderes instituídos, findou no fracasso dessa decisão, marco da Teoria do Estado de Coisas Inconstitucional. Posteriormente, em 2004, a Corte Colombiana alcançou maior sucesso na efetividade de suas decisões por meio da sentença T-025. Nesta causa, intentou-se resguardar os direitos das vítimas de deslocamento interno, bem como dos indígenas expulsos de suas terras, em decorrência de atos de violência perpetrados contra eles. A ação foi intentada contra diversas autoridades – dentre os quais, a Rede de Solidariedade Social, o Departamento Administrativo da Presidência da República, o Ministério da Fazenda e Crédito Público, o Ministério da Proteção Social, o Ministério da Agricultura e Ministério da Educação –, que falharam no dever de oferecer suporte à população deslocada110. O Tribunal Constitucional colombiano reconheceu uma vulneração aos direitos de acesso à moradia, a um projeto produtivo, à educação, à saúde e à assistência humanitária. Nesta senda, é possível constatar uma evolução na constituição de requisitos para a declaração do estado de coisas inconstitucional, ao passo em que se deu primazia ao diálogo institucional, resultando em um esforço conjunto para a mudança da conjuntura do país. 2.4.2 Estado de coisas inconstitucional no Brasil Em um ambiente em que decisões estruturantes dominam o cenário do atual Judiciário – no qual ainda persiste a luta incessante pela concretização de normas outrora consideradas meramente programáticas, e em que o ativismo judicial é apregoado como sinônimo de 107 CAPELLETTI, Mauro. Repudiando Montesquieu? A Expansão e a Legitimidade da 11 Justiça Constitucional''. Revista da Faculdade de Direito da Ufrgs, Porto Alegre, v. 20, p.261-286, out. 2001. Fernando Sá- advogado em Porto Alegre. Disponível em: . Acesso em: 14 maio 2018. 108 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. 109 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição : contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da constituição. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1997. 110 COLÔMBIA. Corte Constitucional República de Colombia. Direito de Vítimas de Deslocamento Interno nº Sentença T-025/04. Bogotá, DC. Disponível em: . Acesso em: 21 maio 2018. 46 eficiência111 –, a teoria do estado de coisas inconstitucional encontra campo fértil para ser explorada. Sob o espectro doutrinário, um dos nomes que se debruçou, pioneiramente, ao estudo da teoria do estado de coisas inconstitucional no Brasil é o de Carlos Alexandre Azevedo Campos112. A maioria dos pesquisadores do tema se atém ao estudo dos campos em que seriam compatíveis a aplicação da declaração do estado de coisas inconstitucional113 ou à polêmica da efetividade das decisões fundamentadas nessa teoria114, sugerindo, quase que de maneira unânime, um diálogo institucional, que se realizado, seria o ápice do sucesso daquela declaração. A ciência do Direito necessita ir além. Mais que um diálogo institucional interno, necessita-se de uma correspondência transversal115 entre Estados que se assemelham pelo uso da teoria do estado de coisas inconstitucional, se a intenção é aperfeiçoar esse instituto. A análise acerca da inovação prática dessa teoria no contexto prático brasileiro será tratada no capítulo 5, mais especificamente no item 5.3. Nada obstante a necessidade de um olhar além, ainda assim, é pertinente notar os espaços em que se faz presente um estado de coisas inconstitucional. Na seara do Direito Penal, mais especificadamente da Execução Penal, há uma gama de situações possíveis de se constatar a contrariedade aos mandamentos constitucionais. Lançando um olhar para a análise dos precedentes, é imprescindível trazer à lume a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347 e o Recurso extraordinário nº 580.252 ora discutido. É possível notar que em ambas as demandas apreciadas pelo Supremo Tribunal Federal – vale dizer, as únicas demandas em que o STF fez uso da teoria do estado de coisas inconstitucional –, o objeto diz respeito à execução penal, especificamente, à crise do sistema penitenciário brasileiro. A ADPF nº 347 trata-se da primeira demanda envolvendo a mais nova teoria no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Na exordial, protocolada em maio de 2015, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) pleiteou a declaração do estado de coisas inconstitucional, tendo em vista 111 STRECK, Lenio Luiz. Estado de Coisas Inconstitucional é uma nova forma de ativismo. Disponível em: . Acesso em: 16 maio 2018. 112 CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconstitucional. Bahia: Editora Juspodivm, 2016. 113 DANTAS, Eduardo Sousa. Ações estruturais, direitos fundamentais e o estado de coisas inconstitucional. Revista Constituição e Garantia de Direitos, Natal, p.155-176, out. 2016. 114 CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Devemos temer o "estado de coisas inconstitucional"? Consultor Jurídico, São Paulo, 15 out 2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-out15/carlos-campos-devemos- temer-estado-coisas-inconstitucional. Acesso em 25 abr. 2018. 115 NEVES, Marcelo. (não) solucionando problemas constitucionais: transconstitucionalismo além de colisões. Lua Nova, São Paulo, 2014. 47 as irregularidades do sistema penitenciário brasileiro. A intenção consistia em fazer do Judiciário o ator capaz de concretizar uma obrigação que o Executivo falhou em cumprir, mas que não deixa de ser responsabilidade do Estado, e assim garantir os direitos fundamentais resguardados pela Constituição da República. Desse modo, pugnou o autor que fosse determinado que a União e os Estados-membros tomassem providências, com vistas a sanar a violação aos direitos dos apenados. Em setembro de 2015, o Supremo Tribunal Federal concedeu parcialmente a liminar solicitada, deferindo os pedidos “b” e “h” e decidindo pela implementação das audiências de custódia pelos juízes e tribunais – em observância aos artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos –, de modo que fosse viabilizado o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária num prazo de até 24 (vinte e quatro) horas, a contar a partir do momento da prisão. A Corte também determinou a liberação do saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN) para que fosse usado consoante a sua finalidade primeira, proibindo a realização de novos contingenciamentos. Nada obstante não tenha sido apreciado o mérito da referida ADPF, as sustentações orais a favor e contrárias aos pedidos da inicial, inclusive os próprios ministros, reconheceram que o sistema carcerário brasileiro é caracterizado por um quadro de violação reiterada de direitos fundamentais dos apenados, que necessita da tomada de soluções imediatas. Levando isso em consideração, tem-se que essa é a premissa que consubstancia o ponto de partida para que seja declarado o estado de coisas inconstitucional e, por conseguinte, a aplicação de medidas que visem uma tutela estrutural. Sob uma ótica processualista penal, em uma análise contemporânea, há de se observar que o Estado possui um dever-poder de punir aquele que praticou uma atividade ilícita. Entretanto, importante destacar que se trata mais de dever do que poder, levando-se em consideração os direitos fundamentais na perspectiva objetiva - atinentes ao dever de proteção do estado - de um lado, e os direitos fundamentais na perspectiva subjetiva - o respeito aos direitos fundamentais do réu no exercício desse dever-poder de punir - de outro116. Em apreciação mais recente, nos autos da ADPF nº 347, por decorrência da pandemia da Covid-19 e da persistência do estado de coisas inconstitucional nos presídios ao longo de todo o país, o STF sugeriu medidas a serem implementadas pelos Juízos de Execução, com apoio dos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais, que se resumem a substituição 116 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Curso de processo penal: teoria (constitucional) do processo penal. 2. ed. atual., rev., ampl. OWL: Natal, 2015. 48 da pena privativa de liberdade em regime fechado por outros regimes, bem como a aplicação de medidas alternativas à prisão117. Além da ADPF nº 347, o Supremo Tribunal Federal suscitou novamente o estado de coisas inconstitucional no Recurso Extraordinário n° 580.252. Nesta oportunidade, a Corte concluiu que estaria configurada, no sistema carcerário do país, uma situação que se enquadrava em um estado de coisas inconstitucional, considerando a vulneração massiva de direitos fundamentais constitucionalmente assegurados e internacionalmente protegidos pelos tratados de direitos humanos adotados pelo país, especificamente, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, o Pacto de São José da Costa Rica e a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Por fim, restou fixado pela Corte – saliente-se que em sede de repercussão geral – que cada preso que se submetesse a tratamento desumano ou degradante, de modo a ser possível considerar que a inserção em cela superlotada, de per si, já configura aquela situação, mereceria ser indenizado no montante de R$ 2.000,00 (dois mil reais) a título de danos morais. Tendo em vista a repercussão geral do tema, que envolve todos os estados brasileiros sem exceção, que mantém seus custodiados em condições sub-humanas, além dos variados aspectos que envolvem essa decisão, foi dedicado um capítulo próprio para seu estudo118. 117 De imediato, conclamo os Juízos da Execução a analisarem, ante a pandemia que chega ao País – infecção pelo vírus COVID19, conhecido, em geral, como coronavírus –, as providências sugeridas, contando com o necessário apoio dos Tribunais de Justiça e Regionais Federais. A par da cautela no tocante à população carcerária, tendo em conta a orientação do Ministério da Saúde de segregação por catorze dias, eis as medidas processuais a serem, com urgência maior, examinadas: a) liberdade condicional a encarcerados com idade igual ou superior a sessenta anos, nos termos do artigo 1º da Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003; b) regime domiciliar aos soropositivos para HIV, diabéticos, portadores de tuberculose, câncer, doenças respiratórias, cardíacas, imunodepressoras ou outras suscetíveis de agravamento a partir do contágio pelo COVID-19; c) regime domiciliar às gestantes e lactantes, na forma da Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016 – Estatuto da Primeira Infância; d) regime domiciliar a presos por crimes cometidos sem violência ou grave ameaça; e) substituição da prisão provisória por medida alternativa em razão de delitos praticados sem violência ou grave ameaça; f) medidas alternativas a presos em flagrante ante o cometimento de crimes sem violência ou grave ameaça; g) progressão de pena a quem, atendido o critério temporal, aguarda exame criminológico; e h) progressão antecipada de pena a submetidos ao regime semiaberto. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tutela Provisória Incidental na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347. Diário Oficial da União. Brasília, 17 mar. 2015. 118 Remetemos ao capítulo 4, no item 4.1 A aplicação da teoria do estado de coisas inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. 49 3 A EXPANSÃO DO FENÔMENO DA CRIMINALIDADE E O AUMENTO DO ENCARCERAMENTO NO BRASIL O percentual de criminalidade do Brasil e o encarceramento aumentou exponencialmente nos últimos anos119. No ano 2000, a taxa de aprisionamento ao ano correspondia a 137. Na última coleta, em 2019, esse número quase triplicou, para 359,40120. Entretanto, nem todos aqueles que cometem crimes são devidamente punidos conforme a lei; isso decorre de diversos motivos, dentre os quais, a ausência de denúncia por parte da vítima ou pela morosidade das investigações que carecem do aparelhamento necessário. Se todos os crimes que fossem cometidos, na prática, fossem punidos, aquele número de custodiados pelo Estado seria consideravelmente maior, o que geraria um colapso do sistema prisional, além das proporções já existentes121. Dessa forma, para que isso seja evitado, é indispensável a análise de dois fatores. Primeiro, as causas do aumento da criminalidade. Somente entendendo o ponto fulcral ensejador do crime é que se torna possível evitá-lo com medidas mitigadoras. Segundo, deve- se procurar reduzir o número de apenados em regime fechado. Equivale a dizer que, se os órgãos gestores da Administração não conseguem, em tempo hábil, com a receita disponível, aumentar o número de celas, que sejam observadas as medidas alternativas à prisão e as normas de execução penal, quando assim o dever ser. 3.1 CONTRIBUIÇÕES PARA O AUMENTO DA CRIMINALIDADE De um ponto de vista penal, existem duas vertentes para conceituar o crime. Sob o viés formal, o crime consiste na contrariedade da conduta delituosa em face da norma positivada. A 119 NACIONAL, Departamento Penitenciário. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias dezembro de 2019. 2019. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiZTlkZGJjODQtNmJlMi00OTJhLWFlMDktNzRlNmFkNTM0MWI3Ii widCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9. Acesso em: 25 jun. 2020. 120 NACIONAL, Departamento Penitenciário. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias dezembro de 2019. 2019. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiZTlkZGJjODQtNmJlMi00OTJhLWFlMDktNzRlNmFkNTM0MWI3Ii widCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9. Acesso em: 25 jun. 2020. 121 Atualmente, de acordo com os dados coletados em dezembro de 2019 pelo DEPEN, o déficit total de vagas nas penitenciárias subiu para 312.925, enquanto em 2002, o déficit estava em 82.913 vagas. Vide INFOPEN 2019. 50 vertente material usa para sua definição os elementos que compõem o crime, delineando o conteúdo punível e a norma penal122. Com esse destaque, há de ser esclarecido, desde logo, que o conceito de crime, objeto do presente estudo, não vai se ater aos quesitos supracitados. Ademais, o intento é ultrapassar o conceito ontológico do crime, que transige a definição invariável de ser um mal, pela sua própria natureza123. É imperioso notar que apesar de por um olhar de relance parecer que este capítulo é dedicado ao estudo do crime em sua perspectiva etiológica – já que se busca analisar as causas para o fenômeno da criminalidade –, o propósito maior deste trabalho é gerar um arcabouço teórico que torne capaz a compreensão da criminalidade, e por conseguinte, a sua prevenção a partir de um tratamento adequado por parte do Estado, notadamente no sistema carcerário. Sendo assim, faz-se uma análise da reação da Administração ao delito, sem, contudo, renunciar a uma exploração etiológica do assunto. Feitas tais considerações, é possível seguir adiante com o exame dos motivadores do comportamento criminoso. São diversas as correntes que atribuem os motivos para o aumento da criminalidade, mas é invariável que essa chaga causa relevantes prejuízos aos cofres públicos. Sob um viés monetário, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) estima que o impacto financeiro do crime no Brasil equivale a cerca de 10% do PIB nacional124. De acordo com o Relatório de Conjuntura “Custos Econômicos da Criminalidade no Brasil”, lançado em 2018, pelo Governo Federal, os custos econômicos da criminalidade saltaram de 113 bilhões de reais em 1996, para 285 bilhões de reais em 2015125, equivalente a um incremento real, em média, de 4,5% ao ano126. Para esse cálculo, foram levados em consideração inclusive prejuízos materiais, tratamentos médicos e horas de trabalho perdidas. Também incorporam esses custos a redução 122 FRAGOSO, Luís Heleno. Lições de Direito Penal, Parte Especial, 1º vol., 9º edição. Rio de Janeiro: Forense, 1987. 123 FERNANDES, Newton e Valter. Criminologia integrada, 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 124 INTERESSANTE, Redação Super. A origem da criminalidade: sem contar as vidas perdidas, o crime custa ao brasil mais de 100 bilhões de reais. Para curar essa chaga, é preciso primeiro entender como ela é fabricada. Disponível em: https://super.abril.com.br/ciencia/a-origem-da-criminalidade/. Acesso em: 16 jun. 2020. 125 BRASIL, Governo Federal da República Federativa do. Governo Federal apresenta os custos econômicos da criminalidade no Brasil. Disponível em: https://www.gov.br/secretariageral/pt-br/noticias/governo-federal- apresenta-os-custos-economicos-da-criminalidade-no-brasil. Acesso em: 25 jun. 2020. 126 LÖPER AIRES, CINTIA HELENICE; COLLISCHONN, ERIKA. Criminalidade e espaço: mapeamento de registros criminais e referências teórico metodológicas para sua contenção em pelotas (rs). XIII Enampege, São Paulo, p. 1-13, 2 set. 2019. Disponível em: https://www.enanpege2019.anpege.ggf.br/resources/anais/8/1561813781_ARQUIVO_CRIMINALIDADEEESP ACOMAPEAMENTODEREGISTROSCRIMINAISEREFERENCIASTEORICOMETODOLOGICASPARAS UACONTENCAOEMPELOTAS(RS).pdf. Acesso em: 2 jul. 2020. 51 do estoque de capital humano, na qualidade de vida, no turismo e o desinteresse de investidores no local127. Para fixar um parâmetro comparativo, nos Estados Unidos, que é o país com maior número de encarcerados do mundo128, esse dispêndio com o crime fica na cifra de 4% do PIB129. Ter em mente os impactos econômicos do crime é essencial, mas mais importante ainda é desvendar como reduzir a dimensão desse problema. Uma das formas mais contempladas pelos estudiosos130 é buscar, nas condições econômicas dos infratores, uma relação com a potencial ruptura com a lei. Para os adeptos dessa teoria, a desenvoltura de um estudo por parte de um economista sobreleva o seu grau de credibilidade à medida em que ele detém habilidades para coleta e manipulação de dados, além de dispor de fundamentos teóricos131. Dessa fusão, resultaria uma conclusão diferenciada das demais áreas. Há de se notar, todavia, que essa teoria econômica do crime se mostra mais eficaz na análise de determinados crimes, em detrimento de outros. Percebe-se então uma maior eficiência dessa linha de raciocínio quando se estar a tratar de crimes contra a propriedade, ao passo em que nos crimes contra a vida, é mais viável se valer de outras teorias, como a teoria da tensão e desorganização social132. Nada obstante a maior facilidade em se atribuir uma objetividade às causas da criminalidade partindo de uma premissa em que a situação econômica do infrator é determinante para o cometimento do delito, e o seu alto grau de eficiência quando se envolve crimes contra o patrimônio, não há como olvidar que o maior número de sub-registros é exatamente neste tipo específico de crime133. Dito isto, de pouco adianta a definição de uma causa que valha tão somete para definir determinado tipo de crime, que, por sua vez, não é devidamente computado nos bancos de dados 127 SANTOS, Marcelo Justus dos; KASSOUF, Ana Lúcia. Estudos Econômicos das Causas da Criminalidade no Brasil: Evidências e Controvérsias. Revista Economia, Brasília, v. 9, p. 343-372, maio 2008. Disponível em: file:///C:/Users/Sophia%20Morquecho/Documents/Mestrado/Dissertação/Materiais/Estudos_Econ_micos_das_C ausas_da_Criminalidade.pdf. Acesso em: 10 jun. 2020. 128 WATCH, Human Rights. Estados Unidos Eventos de 2017. Disponível em: https://www.hrw.org/pt/world- report/2018/country-chapters/312941. Acesso em: 21 jun. 2020. 129 INTERESSANTE, Redação Super. A origem da criminalidade: sem contar as vidas perdidas, o crime custa ao brasil mais de 100 bilhões de reais. Para curar essa chaga, é preciso primeiro entender como ela é fabricada. Disponível em: https://super.abril.com.br/ciencia/a-origem-da-criminalidade/. Acesso em: 16 jun. 2020. 130 Becker (1968) e Ehrlich (1973) foram os precursores na análise teórica da investigação econômica do crime. 131 SANTOS, Marcelo Justus dos; KASSOUF, Ana Lúcia. Estudos Econômicos das Causas da Criminalidade no Brasil: Evidências e Controvérsias. Revista Economia, Brasília, v. 9, p. 343-372, maio 2008. Disponível em: file:///C:/Users/Sophia%20Morquecho/Documents/Mestrado/Dissertação/Materiais/Estudos_Econ_micos_das_C ausas_da_Criminalidade.pdf. Acesso em: 10 jun. 2020. 132 KELLY, M. Inequality and crime. The Review of Economics and Statistics, 2000. 82(4):530–539. 133 SANTOS, Marcelo Justus dos; KASSOUF, Ana Lúcia. Estudos Econômicos das Causas da Criminalidade no Brasil: Evidências e Controvérsias. Revista Economia, Brasília, v. 9, p. 343-372, maio 2008. Disponível em: file:///C:/Users/Sophia%20Morquecho/Documents/Mestrado/Dissertação/Materiais/Estudos_Econ_micos_das_C ausas_da_Criminalidade.pdf. Acesso em: 10 jun. 2020. 52 das autoridades. O espaço amostral estando comprometido, invariavelmente influenciaria também na definição do resultado. Trocando em miúdos, equivaleria a dizer, à título ilustrativo, que de fato foram cometidos 100 crimes contra o patrimônio. Contudo, só teriam sido levados à registro pelas autoridades 30 deles – pelas mais diversas causas, principalmente pela ausência de prestação de queixa. Desses 30 crimes computados, se notaria que 20 deles teriam uma relação com a situação econômica do infrator. Dos outros 70 crimes não registrados, o motivo predominante poderia ser outro que não aquele. Mas não há como ter uma definição precisa, já que não foram anotados todos os crimes e suas respectivas causas. Uma das possíveis razões para essas vítimas não levarem a registro as violações sofridas tem relação com as circunstâncias sociais134, econômicas135 e grau de confiabilidade nas instituições públicas136. Um indivíduo que é descrédulo da eficiência do trabalho dos policiais na investigação inquisitorial137 e do Judiciário na persecução penal, não enxerga propósito em efetuar a queixa, que lhe trará um desgaste emocional ou, no mínimo, de tempo útil. Apesar desse sub-registro poder gerar alguma variação nos estudos que definem a teoria econômica do crime, não há de se relegar a importância científica desse tipo de análise, que tem sido eficaz dentro daquele espectro. O que merece ressalva é que a limitação desse tipo de abordagem deve ser notada e levada em consideração. É válido mencionar ainda que, a depender de cada instituição nos diferentes estados da federação, o cômputo das informações criminais pode ocorrer de maneira divergente. Em regra, a prática de um crime resulta no registro de um boletim de ocorrência. Entretanto, em algumas unidades federativas, como o Distrito Federal, o acometimento de um delito pode ensejar a abertura de mais de uma ocorrência138. Dessa maneira, além do fator sub-registro, as 134 Até o advento da Lei nº 13.718 de 2018, em que todos os crimes contra a liberdade sexual e crimes sexuais contra vulneráveis passaram a ser de ação pública incondicionada à representação, o estigma de ser vítima desse tipo de crime contribuía, significativamente, para um sub-registro das ocorrências, já que a maioria dos tipos penais eram de ação pública condicionada à representação. 135 Santos, M. J. (2006). Uma abordagem econômica do crime no Brasil. Master’s thesis, Escola Superior de Agricultura Luis de Queiroz, Universidade de São Paulo, Piracicaba. 136 Myers Junior, S. L. (1980). Why are crimes underreported? What is the crime rate? Does it really matter? Social Science Quarterly, 61(1):23–43. 137 Craig, S. G. (1987). The deterrent impact of police: An examination of a locally provided public service. Journal of Urban Economics, 21:298–311. 138 É possível vislumbrar essa prática a partir do exemplo do roubo de um carro. A depender do que se encontrava dentro daquele automóvel, que foi roubado conjuntamente com ele, pode haver mais de um registro policial. Exemplo trazido por: SANTOS, Marcelo Justus dos; KASSOUF, Ana Lúcia. Estudos Econômicos das Causas da Criminalidade no Brasil: Evidências e Controvérsias. Revista Economia, Brasília, v. 9, p. 343-372, maio 2008. Disponível em: 53 variações locais no modo de operar essa contagem são influenciadoras do índice da criminalidade no Brasil. Partindo da ótica da investigação econômica do crime, os maiores desafios enfrentados pelos adeptos dessa teoria são: o alto grau de sub-registros – notadamente, dos crimes contra o patrimônio, a diversidade local na contabilidade das ocorrências e a dificuldade de se fixar a probabilidade de punição139. Considerando que as taxas de sub-registro são mínimas no que concerne aos crimes contra a vida, que necessariamente envolvem registro no Instituto Médico Legal140, é mais verossímil se valer dos dados referentes a esses crimes, e buscar, a partir daí, as possíveis motivações desses delitos. Apesar de as causas que movem um indivíduo a executar um crime patrimonial serem distintas daquelas que o instiga a infligir contra a vida de outrem, não é raro que o agente de um deles influencie ou até mesmo cometa o delito da outra alçada. Subsiste uma estreita relação entre os crimes contra a pessoa e os crimes contra o patrimônio. Essa conexão é facilmente visível quando se nota o crime organizado e sua associação141, diretamente proporcional, ao índice de homicídios, à exemplo das cidades mexicanas fronteiriças aos Estados Unidos142. Essa realidade também é perceptível no Brasil, especialmente no seio das organizações voltadas para o tráfico143, que concorre para a elevação das taxas de homicídio, seja de maneira direta entre os mercadores, seja indiretamente, através dos usuários144. Se valer do uso ostensivo file:///C:/Users/Sophia%20Morquecho/Documents/Mestrado/Dissertação/Materiais/Estudos_Econ_micos_das_C ausas_da_Criminalidade.pdf. Acesso em: 10 jun. 2020. 139 SANTOS, Marcelo Justus dos; KASSOUF, Ana Lúcia. Estudos Econômicos das Causas da Criminalidade no Brasil: Evidências e Controvérsias. Revista Economia, Brasília, v. 9, p. 343-372, maio 2008. Disponível em: file:///C:/Users/Sophia%20Morquecho/Documents/Mestrado/Dissertação/Materiais/Estudos_Econ_micos_das_C ausas_da_Criminalidade.pdf. Acesso em: 10 jun. 2020. 140 SANTOS, Marcelo Justus dos; KASSOUF, Ana Lúcia. Estudos Econômicos das Causas da Criminalidade no Brasil: Evidências e Controvérsias. Revista Economia, Brasília, v. 9, p. 343-372, maio 2008. Disponível em: file:///C:/Users/Sophia%20Morquecho/Documents/Mestrado/Dissertação/Materiais/Estudos_Econ_micos_das_C ausas_da_Criminalidade.pdf. Acesso em: 10 jun. 2020. 141 RENÉ, Cabral Torres René e ANDRE, Mollick V. & Saucedo Eduardo. The Impact of Crime and Other Economic Forces on Mexico's Foreign Direct Investment Inflows, Working Papers 2018-24, Banco de México. 2018. 142 ALBUQUERQUE, Pedro H. Shared Legacies, Disparate Outcomes: Why American South Border Cities Turned the Tables on Crime and Their Mexican Sisters Did Not. Law and Economics 0511002, University Library of Munich, Germany. 2005. 143 SANTOS, Marcelo Justus dos; KASSOUF, Ana Lúcia. Estudos Econômicos das Causas da Criminalidade no Brasil: Evidências e Controvérsias. Revista Economia, Brasília, v. 9, p. 343-372, maio 2008. Disponível em: file:///C:/Users/Sophia%20Morquecho/Documents/Mestrado/Dissertação/Materiais/Estudos_Econ_micos_das_C ausas_da_Criminalidade.pdf. Acesso em: 10 jun. 2020. 144 Araújo Junior, A. F. & Fajnzylber, P. O que causa a criminalidade violenta no Brasil? Uma análise a partir do modelo econômico do crime: 1981 a 1996. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, CEDEPLAR, 88p. Texto de Discussão 162. 2001. 54 e intimidador da violência física para manter os trabalhos regulares dentro da própria organização é prática usual145. Além do mais, o cliente que faz uso daquela substância entorpecente se mostra propício a cometer delitos, haja vista os efeitos que a droga causa no organismo humano, tornando-o mais violento e menos racional. Desse modo, o liame entre o mercado de drogas e a criminalidade não-droga146 demonstra que um dos fatores que contribuem para o aumento dos crimes contra a vida é a persistência de outros crimes. Além disso, é passível de estudo os efeitos da educação básica sobre o comportamento criminoso. Há indícios de que quanto maior o grau de instrução de determinada pessoa, menor a probabilidade de ela cometer um homicídio doloso147. Em contrapartida, o ensino passa a ser um fator de incremento para o narcotráfico148. Esse resultado sugere que, para um indivíduo instruído, o fator recompensa do crime é crucial. Ele tende a ponderar os ônus e bônus provenientes da atitude que vai escolher. Sendo assim, considerando que o tráfico de drogas traz uma certa rentabilidade financeira momentânea, os ilícitos praticados pelos mais cultos geralmente envolvem esse tipo penal149. Ademais, dentre as possíveis causas da criminalidade, a mais popular é a que estabelece uma relação pela idade e sexo. A despeito de a população prisional feminina ter aumentado nos últimos anos no Brasil, 95,06% dos encarcerados do país são indivíduos do sexo masculino jovens150. Para estudiosos do assunto, se houver uma elevada taxa de natalidade em determinado ano, 15 a 20 anos depois é possível notar uma elevação na taxa de crimes151. 145 Carneiro, Loureiro e Sachsida (2005), se valendo de dados coletados a partir de uma população determinada de presos, concluíram que as chances de um indivíduo usuário de drogas cometer um homicídio ou roubo aumenta em 10,22% e 7,26%, respectivamente. 146 Termo utilizado por Kopp (1998) para distinguir crimes de tráfico, uso e porte de drogas das demais categorias de crimes. 147 Carneiro, Loureiro e Sachsida (2005), se valendo de dados coletados a partir de uma população determinada de presos, concluíram que as chances de um indivíduo usuário de drogas cometer um homicídio ou roubo aumenta em 10,22% e 7,26%, respectivamente. 148 SANTOS, Marcelo Justus dos; KASSOUF, Ana Lúcia. Estudos Econômicos das Causas da Criminalidade no Brasil: Evidências e Controvérsias. Revista Economia, Brasília, v. 9, p. 343-372, maio 2008. Disponível em: file:///C:/Users/Sophia%20Morquecho/Documents/Mestrado/Dissertação/Materiais/Estudos_Econ_micos_das_C ausas_da_Criminalidade.pdf. Acesso em: 10 jun. 2020. 149 BECKER, H. Conferência A Escola de Chicago. In: Mana – estudos de Antropologia Social, vol. 2, n. 2, p. 177-188, out/ 1996. 150 NACIONAL, Departamento Penitenciário. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias dezembro de 2019. 2019. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiZTlkZGJjODQtNmJlMi00OTJhLWFlMDktNzRlNmFkNTM0MWI3Ii widCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9. Acesso em: 25 jun. 2020. 151 Ibid. 55 Em 2003, o Brasil teve um pico na taxa de aumento populacional de 28,81%; neste ano, a população privada de liberdade correspondia a 308.304 indivíduos152. Em 2018, quinze anos mais tarde, a população prisional atingiu a marca de 744.216 pessoas. Por esta linha intelectiva, acredita-se que os elevados níveis de criminalidade vivenciados nos Estados Unidos, na década de 1960, possuem um vínculo com a entrada na adolescência da geração baby boom, pós Segunda Guerra Mundial153. Para mais da investigação da idade como fator do aumento da criminalidade, repara- se que a desigualdade social favorece o cometimento de atividades. Em um estudo do crescimento da criminalidade na grande São Paulo, apurou-se que o desemprego e a desigualdade de renda possuem relação positiva com as taxas de crimes154. Há quem investigue mais a fundo155 e sugira que o próprio crime também possa ser um fato gerador da criminalidade, ao passo em que também provoca a desigualdade. É exemplo disso a distribuição de investimentos que tende a ocorrer em áreas não violentas, tornando as áreas violentas cada vez mais abonadas. Todavia, existe atualmente uma tendência de superação da pobreza enquanto fator da criminalidade. Testes estatísticos usando a medida de Granger e testes econométricos, realizados por Sapori e Wanderley156, usando como base o Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre, não constataram indícios suficientes para afirmar que as variações nos índices de desemprego implicassem variações, presentes ou futuras, nas taxas de criminalidade. Ademais, Cano e Santos157 afirmam não ser possível identificar clara influência da renda sobre as taxas de homicídio. Importante mencionar, neste ínterim, que a maior parte dos crimes são cometidos nas cidades com maior número de habitantes, e que existem fatores que potencializam as taxas de homicídio, tais como a desestruturação familiar e uma rede de ensino básico deficiente158. 152 Ibid. 153 HUMPHFREYS, Keith. Young people are committing much less crime. Older people are still behaving as badly as before. The Washington Post, 7 set. 2016. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/news/wonk/wp/2016/09/07/young-people-are-committing-much-less-crime- older-people-are-still-behaving-as-badly-as-before/. Acesso em: 6 jul. 2020. 154 FERNANDES, Newton e Valter. Criminologia integrada, 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 155 CARNEIRO, F. G., Loureiro, P. R. A., & Sachsida, A. (2005). Crime and social interactions: A developing country case study. The Journal Socio-Economics, 34:311–318. 156 SAPORI, L. F. e WANDERLEY, C. B. A relação entre desemprego e violência na sociedade brasileira: entre o mito e a realidade. In: A violência do cotidiano. Cadernos Adenauer. São Paulo: Fundação Kinrad Adenauer, 2001, p. 42-73. 157 CANO, I. e SANTOS, W. Violência letal, renda e desigualdade social no Brasil. Rio de Janeiro: 7letras, 2001. 158 OLIVEIRA, Fernando Fróes. Finanças Públicas, economia e legitimação: alguns argumentos em defesa do orçamento autorizativo. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 64, p. 80-99, 2009. 56 A Escola de Chicago buscou estabelecer um liame entre o crime e a região, numa tentativa de se afastar da concepção retrógrada de fenótipo do criminoso159. Apesar do esforço, a Escola relacionou a existência dos crimes a determinada região que, coincidentemente, possuía população predominante de estrangeiros, negros e pobres160. A chave para dirimir a questão é compreender que nada obstante o maior índice de delitos ocorra nestas áreas, isto não significa que todo pobre ou desempregado vá delinquir161. Uma nova abordagem surge com a teoria das janelas quebradas. Trata-se de experimento produzido por Philip Zimbardo em 1969, psicólogo da Universidade de Stanford, que consistiu em abandonar dois automóveis idênticos em dois lugares diferentes162. Um carro foi estacionado no Bronx, em Nova Iorque – zona pobre – e o outro em Palo Alto, na Califórnia – zona rica. Em poucas horas, o carro deixado no Bronx foi destruído, sendo levadas a maioria de suas peças, enquanto o carro em Palo Alto se manteve intacto por uma semana. Após o pesquisador quebrar as janelas do carro da zona rica, aconteceu o mesmo que ocorreu na zona pobre. Concluiu-se, então, que não é propriamente a quantidade de recursos da região que vai definir a sua quantidade de crimes, mas sim a sensação de impunidade. Dessa forma, a desordem e falta de repressão se mostrou diretamente ligada ao cometimento de delitos, de modo que a repressão desses crimes menores acabam por evitar a criminalidade violenta163. Sob um viés do Direito Penal sancionador, é pertinente trazer à lume a doutrina que crer na fixação de sanções como método para redução dos crimes164. Equivaleria, por 159 COULON, A. A Escola de Chicago. Campinas, SP: Papirus, 1995. 160 BECKER, H. Conferência A Escola de Chicago. In: Mana – estudos de Antropologia Social, vol. 2, n. 2, p. 177-188, out; 1996. 161 LÖPER AIRES, CINTIA HELENICE; COLLISCHONN, ERIKA. Criminalidade e espaço: mapeamento de registros criminais e referências teórico metodológicas para sua contenção em pelotas (rs). XIII Enampege, São Paulo, p. 1-13, 2 set. 2019. Disponível em: https://www.enanpege2019.anpege.ggf.br/resources/anais/8/1561813781_ARQUIVO_CRIMINALIDADEEESP ACOMAPEAMENTODEREGISTROSCRIMINAISEREFERENCIASTEORICOMETODOLOGICASPARAS UACONTENCAOEMPELOTAS(RS).pdf. Acesso em: 2 jul. 2020. 162 LÖPER AIRES, CINTIA HELENICE; COLLISCHONN, ERIKA. Criminalidade e espaço: mapeamento de registros criminais e referências teórico metodológicas para sua contenção em pelotas (rs). XIII Enampege, São Paulo, p. 1-13, 2 set. 2019. Disponível em: https://www.enanpege2019.anpege.ggf.br/resources/anais/8/1561813781_ARQUIVO_CRIMINALIDADEEESP ACOMAPEAMENTODEREGISTROSCRIMINAISEREFERENCIASTEORICOMETODOLOGICASPARAS UACONTENCAOEMPELOTAS(RS).pdf. Acesso em: 2 jul. 2020. 163 ODON, Tiago Ivo. Tolerância Zero e Janelas Quebradas: Sobre o risco de se importar teorias e políticas. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisa/CONLEG/Senado, março/2016. http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/519162, acesso em 18 de fevereiro de 2019. Relatório de Custos Econômicos da criminalidade no Brasil, relatório de conjuntura nº4. Esta obra foi impressa pela imprensa Nacional. SIG, Quadra 6, Lote 80070610-460 Brasilia, DF 1.000 exemplares. 2018. 164 CORMAN, HOPE, and H. Naci Mocan. 2000. A Time-Series Analysis of Crime, Deterrence, and Drug Abuse in New York City. American Economic Review, 90 (3): 584-604. 57 conseguinte, a uma intimidação ao criminoso em potencial e um desmotivador ao reincidente, gerando efeitos de deterrence165. Nesse diapasão, a incredulidade na norma também pode ser vista como um fator estimulante à transgressão da lei. Esse é o ponto fulcral da Lei de Gérson, que muito se identifica com a realidade brasileira. Usa-se o exemplo clássico do cidadão honesto que está parado em um grande congestionamento na estrada. Ele percebe que vários carros estão invadindo o acostamento para “furar” a fila dos carros à sua frente. Ele sabe que isso é errado e que estes motoristas deveriam ser multados. Mas cada vez que um carro faz isso, aumenta a lentidão do trânsito e a quantidade de carros que sobem o acostamento vai aumentando com o passar do tempo. Após certo tempo, o cidadão honesto percebe que obedecer a lei só está lhe prejudicando, então sobe no acostamento e faz o mesmo que os outros. Nesse caso, ocorre um controle social informal, em decorrência da incredulidade na norma e nas instituições que, fazendo uso do exemplo supra, não houve qualquer fiscalização por parte das autoridades. Desse modo, percebe-se que a obediência às normas formais de conduta é diretamente proporcional à legitimidade dos governantes e das instituições, conferida pelo povo166. Com vistas a reduzir o fenômeno da criminalidade, também é imperioso explorar a sua causa a partir de uma inversão do questionamento supra. Ao invés de buscar o entendimento do porquê certas pessoas transgridem a lei, é igualmente necessário indagar os motivos pelos quais algumas pessoas optam por não delinquir. Assim, é viável progredir para uma análise das soluções para redução da criminalidade. Partindo da premissa sociológica do indivíduo enquanto ser social, suscita-se que a razão lógica para não ir contra a lei reside no fato que a humanidade prosperou, justamente, em razão da sociedade. E para uma vida ordenada em sociedade, é imprescindível o cumprimento das normas. Sem esses lações sociais, a humanidade seria caótica167; Há também quem use exemplos históricos para embasar a tese da necessidade de ordem social para prosperidade da população. Nesse sentido, convém trazer à lume a queda do regime comunista na União Soviética, em 1989. Após essa ruptura com as antigas normas, percebeu-se um incremento da criminalidade. Entre os anos de 1990 e 1994, a taxa de crimes 165 Efeitos de deterrence são fatores intimidadores ao indivíduo criminoso. 166 LASSALLE, Ferdinand. O que é uma constituição?. 3.ed. São Paulo, SP: Editora Minelli, 2006. 167 DURKHEIM, E. As regras do método sociológico. 13.ed. São Paulo: Nacional,1987. 58 em Moscou duplicou. Fato semelhante ocorreu na República Checa, em que houve, de 1990 a 1991, um acréscimo de 30,5% na taxa de crimes168. Para Beccaria, a efetividade das normas se concretizaria no sancionamento do indivíduo transgressor. A certeza de que será punido se cometer o delito seria mais eficiente que a instituição de normas extremamente rígidas, sem, contudo, um sistema que as resguarde169. Usando uma concepção da prática, que muito se aproxima da essência da teoria das janelas quebradas, é a teoria da tolerância zero em Nova Iorque, implantada na década de 1990. A desordem e a violência naquela cidade se encontravam em estado calamitante, notadamente na área dos metrôs170, de modo que se fez necessário um controle social dos pequenos atos de delinquência171. Essa nova estratégia, liderada pelo policial Willian Bratton, com apoio de George Kelling, implantou prisões nas estações de metrô, como maneira de inibir a prática criminosa, o que de fato ocorreu. Após o emprego dessa política de modo pontual nos metrôs, o recém-eleito prefeito Rudolph Giuliani decidiu estender essa ideia a toda a cidade de Nova Iorque. Para tanto, reestruturou o Departamento de Polícia municipal, incrementando o sistema informatizado, expandindo o número de policiais, bem como firmando um laço estratégico com a população, que passou a desenvolver uma espécie de policiamento comunitário, aumentando a vigilância172. É com essa maior vigilância, recuperação dos espaços públicos e repressão dos pequenos crimes, idealizada tanto na teoria das janelas quebradas, como na política de tolerância zero de Nova Iorque, que esta cidade evoluiu em termos de segurança173. Mas não 168 INTERESSANTE, Redação Super. A origem da criminalidade: sem contar as vidas perdidas, o crime custa ao brasil mais de 100 bilhões de reais. para curar essa chega, é preciso primeiro entender como ela é fabricada. Disponível em: https://super.abril.com.br/ciencia/a-origem-da-criminalidade/. Acesso em: 16 jun. 2020. 169 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas, São Paulo: 11ª Edição, Hemus, 1995. 170 Chegou a ponto de as pessoas pularem as catracas dos metrôs, com medo de possíveis assaltos. 171 VALLE, Nathália do. MISAKA, Marcelo Yukio e FREITAS, Renato Alexandre da Silva. Uma reflexão crítica aos movimentos de lei e ordem –Teoria das janelas quebradas. Revista Juris UniToledo, Araçatuba, SP, v. 03, n. 04, p.146-162, out./dez. 2018. ,http://www.secretariageral.gov.br/estrutura/secretaria_de_assuntos_estrategicos/publicacoe s-e- analise/relatorios-de-conjuntura/custos_economicos_criminalidade_brasil.pdf., acesso em 02 de Junho de 2018. 172 VALLE, Nathália do. MISAKA, Marcelo Yukio e FREITAS, Renato Alexandre da Silva. Uma reflexão crítica aos movimentos de lei e ordem –Teoria das janelas quebradas. Revista Juris UniToledo, Araçatuba, SP, v. 03, n. 04, p.146-162, out./dez. 2018. ,http://www.secretariageral.gov.br/estrutura/secretaria_de_assuntos_estrategicos/publicacoe s-e- analise/relatorios-de-conjuntura/custos_economicos_criminalidade_brasil.pdf., acesso em 02 de Junho de 2018. 173 LÖPER AIRES, CINTIA HELENICE; COLLISCHONN, ERIKA. Criminalidade e espaço: mapeamento de registros criminais e referências teórico metodológicas para sua contenção em pelotas (rs). XIII Enampege, São Paulo, p. 1-13, 2 set. 2019. Disponível em: https://www.enanpege2019.anpege.ggf.br/resources/anais/8/1561813781_ARQUIVO_CRIMINALIDADEEESP 59 foram somente essas atitudes as responsáveis pela redução da criminalidade naquela região, isso porque a política de tolerância zero não perdurou. Indo mais além, pode-se citar como fatores relevantes para a queda da criminalidade em Nova Iorque: o crescimento da economia norte-americana na década de 1990, aliado à queda do desemprego; a estabilização da conjuntura comercial do crack e sua oligopolização, o que culminou numa redução da violência entre as organizações criminosas; a redução da população jovem, em decorrência da epidemia de AIDS, overdoses de drogas174 e violência; a formação educacional de grande parte da população; a influência positiva exercida por Igrejas, instituições sociais e escolas e, também, a lei estatística da regressão, que conclui que os índices tendem a se aproximar da média com o decorrer do tempo175. Partindo de viés semelhante, foi desenvolvida a teoria do espaço defensável176, também conhecida como teoria da oportunidade do crime. Haveria uma oportunidade voltada à criminalidade quando existissem, concomitantemente, um potencial delinquente, um alvo conveniente, além da deficiência nos meios de controle que torne possível prever ou impedir a concretização do crime177. Com a convergência desses três fatores, a coexistência local entre a potencial vítima e o criminoso eleva o risco do cometimento do crime, isso porque a decisão do infrator em delinquir é baseada em uma certa racionalidade, fundamentada na sua provável impunidade. Por essa premissa, seriam instrumentos de controle do delinquente aqueles que visam proteger a possível vítima (equipamentos de segurança, iluminação etc.), rede de apoio do possível agressor (família e amigos), a segurança pública ou privada, e as instalações arquitetônicas, que podem inibir ou favorecer os crimes. Um exemplo dessa rede de colaboração com vistas a combater a criminalidade que vem sendo aplicado no Rio Grande do Norte é o implemento de um sistema de viodeomonitoramento pelo Centro Integrado de Operações em Segurança Pública (CIOSP). Através dele, são gerenciadas imagens de câmeras de segurança, com colaboração dos particulares e comerciantes, com o fito de inibir, prevenir e facilitar a punição do crime. ACOMAPEAMENTODEREGISTROSCRIMINAISEREFERENCIASTEORICOMETODOLOGICASPARAS UACONTENCAOEMPELOTAS(RS).pdf. Acesso em: 2 jul. 2020. 174 Notadamente, em decorrência da “epidemia do crack” na década de 1980, em Nova Iorque. 175 ODON, T. I. Tolerância Zero e Janelas Quebradas: sobre os riscos de se importer teorias e políticas. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, março/2016 (Texto para Discussão nº 094). Disponível em: www.senado.leg.br/estudos. Acesso em 21 de dezembro de 2020. 176 Também tendo Nova Iorque como cenário. 177 COHEN L.E.; FELSON M., 1979. Social Change and Crime Rate Trends: A Routine Activity Approach, American Sociological Review, vol. 44, n.4, p. 588-608. https://www.jstor.org/stable/2094589?seq=1#page_scan_tab_contents, acesso em 10 de jun. 2019. 60 Sendo assim, o que pretende a teoria do espaço defensável é, essencialmente, reconfigurar locais que, pela sua estrutura, se mostram mais favoráveis ao crime178. Busca-se uma prevenção situacional, com uma alteração das circunstâncias locais, de modo a inibir os delitos. 3.2 A APLICAÇÃO REDUZIDA DE MEDIDAS ALTERNATIVAS À PRISÃO Na busca por alternativas para a resposta à criminalidade, a comunidade internacional passou a exigir dos Estados, notadamente aqueles regidos por uma Constituição democrática, que fosse respeitado o imperativo do devido processo legal. Face a essa nova realidade, a Organização das Nações Unidas passou a recomendar o emprego de penas alternativas em vez de penas restritivas de liberdade179, e tal premissa foi incorporada pelo Brasil. Um dos primeiros estudos atinentes ao tema foi realizado em 1986 pelo Instituto Regional das Nações Unidas da Ásia e do Extremo Oriente para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente, em que foram estabelecidas as Regras Mínimas para a Elaboração de Medidas Não Privativas de Liberdade, também denominadas de Regras de Tóquio. Através deste foram prescritas diretrizes para se conduzir o estímulo às medidas alternativas ao cárcere, sendo estes benefícios tratados como decorrentes da garantia do devido processo legal. A Assembleia Geral das Nações Unidas, pela Resolução nº 45/110, aprovou as Regras de Tóquio em dezembro de 1990180. Posta assim a questão, ao princípio do devido processo legal, nesse contexto despenalizante, é atribuído uma acepção voltada a permitir a existência de institutos processuais que solucionem o caso concreto. Dessa forma, ao invés do cárcere, prima-se pela aplicação de penas restritivas de direitos, ou, prioritariamente, pelo emprego de medidas alternativas, se essas se mostrarem suficientes e eficazes, preenchidos os requisitos legais. O processo não é mais tão somente uma expressão do dever-poder do Estado de punir aquele que infringe a lei181. Nesta nova acepção, ele assume uma função política, qual seja a de 178 CUNTY, Claire; FUSSY, Fabrice; PEREZ, Pascale. Géocriminologie, quand la cartographie permet aux géographes d’investir la criminologie », Cybergeo : European Journal of Geography, Cartographie, Imagerie, SIG, document 378, 2007. https://journals.openedition.org/cybergeo/7058, acesso em 25 de fevereiro de 2019. IBGE. 179 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Curso De Direito Processual Penal: teoria (constitucional) do processo penal. 2. ed. Natal: Owl, 2015. 180 Instituto Latino Americano Das Nações Unidas Para Prevenção Do Delito E Tratamento Do Delinquente. Levantamento nacional sobre execução de penas alternativas. Brasília, 2006. 181 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Curso De Direito Processual Penal: teoria (constitucional) do processo penal. 2. ed. Natal: Owl, 2015. 61 evitar a pena de prisão, com o fim último de reduzir os agravos ao infrator, concomitante à busca pela redução da criminalidade. O devido processo penal pode ser visto sob duas óticas: uma abrangente e outra contida. Na abrangente, ele é o conjunto de todas as normas que fixam os limites do dever- poder de punir, englobando as cláusulas explícitas e implícitas, que constitucionalmente se debruçam sobre o assunto. Na contida, significa que não há flexibilização de direito fundamental (pena, medida de segurança ou qualquer outra manifestação) sem prévia apreciação do Judiciário182, resumido no brocardo jurídico nulla poena sine judicio183. Sendo assim, com o devido processo legal, a coação estatal passa a ser indireta. O que se mostra imperioso destacar, nesse diapasão, é que por mais que o acusado confesse o crime, ainda assim haverá um processo legal. Ademais, a confissão não importará, invariavelmente, na procedência da pretensão acusatória. Deve-se demonstrar, antes de mais nada, a culpabilidade por meio do processo, sob pena de ofender o devido processo legal. Dessa maneira, é mais contundente com a Constituição de 1988 abandonar aquela visão retrógrada de um processo individualista e lançar mão de um devido processo visto como garantia, não somente ao acusado, mas ao interesse geral. As normas que garantem esse princípio são, portanto, instrumentos de proteção, os quais vinculam e limitam a persecução criminal na fase pré-processual e processual184. Diante desse novo panorama, em que se busca por soluções mais efetivas à resposta da criminalidade, que não o cárcere, é imprescindível o conhecimento das penas e medidas alternativas para sua aplicação. Não raro, penas alternativas são utilizadas como sinônimo de medidas alternativas propriamente ditas. Erro crasso. Nada obstante possuírem o mesmo conteúdo, as primeiras consistem em espécie de sanções com o desiderato de substituir a pena restritiva do direito de liberdade, ao passo em que as segundas buscam a solução do caso em testilha, afastando a imposição de qualquer tipo de pena185. Nas medidas alternativas não se aplica sanção, não tem reconhecida a culpabilidade do autor e busca a despenalização da culpa do agente, que ao aceitar e posteriormente cumprir as condições do juiz, terá extinta a punibilidade, por meio de sentença absolutória. Cita-se como exemplos das medidas alternativas propriamente ditas, os processos dos crimes da alçada do Juizado Especial Criminal e a suspensão condicional do processo. 182 Ibid. 183 Não há pena sem crime, definida assim, por um processo que a antecede. 184 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Curso De Direito Processual Penal: teoria (constitucional) do processo penal. 2. ed. Natal: Owl, 2015. 185 Ibid. 62 A Lei nº 9.099 de 1995, conhecida como a lei que criou os juizados especiais criminais, trouxe importantes inovações no âmbito processual penal, não só pela instituição desses novos centros de resolução de conflitos para crimes de menor potencial ofensivo, mas também pela introdução de quatro medidas despenalizadoras – quais sejam, a composição dos danos civis, a transação penal, a necessidade de representação em crimes de lesões corporais leves e culposas, e a suspensão condicional do processo. Para uma utilização acertada de cada instituto, é fundamental o conhecimento aprofundado da sua adequabilidade. Por esta razão, é válida uma breve análise deles, e por conseguinte, da sua aplicabilidade concreta e da influência dessa prática na realidade do sistema penitenciário brasileiro. Partindo dessa linha intelectiva, percebe-se que neste novo ambiente proposto pela Lei nº 9.099 de 1995, estimula-se uma simplificação do processo, em concretização do primado da celeridade, oralidade, efetividade e efetivação processuais. Intenta-se que, a partir do consenso, as partes evitem a instauração de um processo ou que impeça o seu prolongamento186. Com essa inovação legislativa, a tendência à privatização do direito penal ganhou mais força. É dizer que, o papel da vítima, nessa seara, vem ganhando maior destaque187, de tal modo que a estabilização dos danos perpetrados a ela passa a ser o foco do processo, ao invés do puro interesse do Estado em punir. O uso da conciliação como instrumento em busca da reparação de danos à vítima, a transação penal, ou quando esta não for viável, a aplicação de pena diversa da privativa de liberdade, são pilares intrínsecos aos juizados especiais criminais188. Essa privatização do direito penal relaciona-se diretamente com o conceito de justiça restaurativa, consistente em uma nova perspectiva, oposta a ideia de justiça retributiva189. Essa teoria possui como base fundante a busca pela restauração do mal provocado pela infração penal. A justiça restaurativa se vale de conjuntos heterogêneos de iniciativas, com o intuito de criar um espaço voltado ao diálogo entre a vítima e o ofensor, como modo de alcançar a reparação do delito e seus efeitos psicológicos e materiais190. Trata-se, pois, de uma restauração além da dimensão meramente pecuniária. Tutela-se com maior intensidade a figura da vítima, historicamente relegada a um segundo plano no 186 AVENA, Norberto. Processo Penal. 12. ed. São Paulo: Editora Método, 2020. 187 BRASILEIRO, Renato. Código de Processo Penal Comentado. Salvador: Juspodivm, 2019. 188 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Curso De Direito Processual Penal: teoria (constitucional) do processo penal. 2. ed. Natal: Owl, 2015. 189 RAMÍREZ, Sérgio García. En búsqueda de la terceira via: la justicia restaurativa. Revista de Ciencias Penales. Iter Criminis. Cidade do México: Inacipe, n. 13. Abr./Jun 2005. 190 JUSTIÇA, Conselho Nacional de. Justiça restaurativa: horizontes a partir da Resolução CNJ 25/Coordenação: Fabrício Bittencourt da Cruz - Brasília: CNJ, 2016. 63 Direito Penal, que, classicamente, se direcionou ao criminoso e a punição como resposta a sociedade. A justiça restaurativa tem fundamento nos chamados três “R”: restauração, responsabilização e reintegração191. Essa nova ordem também é denominada como jurisdição consensual. O instituto da composição dos danos civis192 tem como característica principal a renúncia por parte da vítima do direito de queixa ou representação em decorrência de acordo firmado entre ela e o autor do fato, gerando por efeito, em regra, a extinção da punibilidade do agente. A partir deste ajuste, que tem eficácia de título executivo judicial193, o autor se compromete a ressarcir os danos infligidos, e tal arranjo é possível para os crimes de menor potencial ofensivo, onde se privilegia o reestabelecimento do status quo ante ao invés da mera punibilidade. Percebe-se, inclusive, uma tendência à composição dos danos civis quando esta medida, de per si, se mostra eficaz, para além da lei dos juizados especiais. A lei nº 9.605 de 1998, conhecida como lei dos crimes ambientais, dispõe do referido instituto194 para quando cometido o crime ambiental de menor potencial ofensivo, mesmo sem vítima direta, dando-se preferência à reparação in natura. Nesta situação em particular, a composição dos danos, salvo comprovada impossibilidade, é pré-requisito para que haja a transação. Retomando à realidade dos juizados especiais, a composição de danos civis origina consequências diferentes, a depender da espécie da ação. É dizer que, em se tratando de crime de ação penal pública incondicionada, o efeito gerado vai ser distinto para quando se compõe os danos em face de crime de ação penal pública condicionada à representação, tampouco será o mesmo para crime de ação penal privada. No caso do crime de ação penal pública incondicionada, a composição não culminará com a extinção da punibilidade. Nesta situação, a relevância prática desse instituto consiste em dar a certeza ao agente sobre o valor da indenização, podendo este ser imediatamente executado no juízo cível. É mister salientar que mesmo havendo essa celebração de acordo, exatamente por não extinguir a punibilidade, ainda é possível que o Ministério Público ofereça proposta de transação penal. Se esta for oferecida e aceita, em virtude do princípio da discricionariedade regrada, ao se comprometer com as condições, o Parquet deixa de oferecer a ação penal e encerra-se o processo. 191 BOONEN, Petronella Maria. A Justiça Restaurativa, um desafio para a educação. Tese de Doutorado (USP). Orientação: Flávia Schilling. São Paulo: s.n., 2011. 192 Art. 74, da lei n° 9.099/95. 193 Caso descumprido o acordo, é capaz de ser executado no juízo cível. 194 Em seu art. 27. 64 Já em sendo crime de ação penal pública condicionada à representação, a celebração do acordo entre autor e ofendido proporciona a extinção do processo, e por conseguinte, não há punição. Isso porque, em termos práticos, a composição equivale à renúncia ao direito de representação. Nos crimes de ação penal privada, a composição dos danos implica a renúncia ao direito de queixa, extinguindo assim a punibilidade do agente. Há, todavia, uma particularidade nesta espécie processual. Quando se celebra acordo com apenas um dos coautores e partícipes, a renúncia ao direito de queixa passa a ser estendido a todos eles, mesmo não tendo participado da audiência preliminar, em obediência ao princípio da indivisibilidade195. Dessa forma, se o querelante propuser na queixa-crime composição civil de danos para apenas alguns querelados, a acusação deve ser rejeitada na sua integralidade196. Ademais, é oportuno ressaltar que conforme dito alhures, o acordo proveniente da composição de danos civis consiste em título executivo judicial, apto a ser executado no juízo cível. Dito isto, se o infrator não honrar com os termos acordados, não se restaura o direito de queixa ou representação da vítima, cabendo a esta se valer da execução do título, tendo em vista que a punibilidade já foi extinta. Muito embora a lei faça menção apenas a ação penal pública incondicionada e a ação penal pública condicionada à representação, em todas as três espécies de ações supracitadas, no âmbito dos juizados especiais, não sendo possível ou tendo sido rechaçada a composição de danos civis, é ainda viável, posteriormente, a proposição de transação penal197. Este instituto nada mais é do que um acordo firmado entre o titular da ação penal e o querelado, por meio do qual se pretende aplicar, desde logo, multa ou outra espécie restritiva de direitos. Nos crimes de ação penal pública – condicionada ou incondicionada –, a oferta da transação penal caberá ao Ministério Público198; já no que concerne a ação penal de iniciativa privada, entende-se que cabe ao querelante a iniciativa da proposta. 195 Codificado nos artigos 48 e 49, do Código de Processo Penal. 196 "Caso o querelante proponha, na própria queixa-crime, composição civil de danos para parte dos querelados, a peça acusatória deverá ser rejeitada em sua integralidade – isto é, em relação a todos os querelados. Isso porque a composição pelos danos, sendo aceita e homologada judicialmente, implica a renúncia ao direito de queixa, nos termos do disposto no art. 74, parágrafo único, da Lei 9.099/1995, tratando-se a renúncia, expressa ou tácita (art. 104 do CP), de causa extintiva da punibilidade, sendo irretratável (art. 107, V, CP). Por força do princípio da indivisibilidade, a todos se estende a manifestação do intento de não processar parte dos envolvidos, de modo que a renúncia beneficia a todos eles" HC 29.861-SP, Quinta Turma, DJ 25/2/2004. AP 724-DF, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 20/8/2014. 197 BRASILEIRO, Renato. Código de Processo Penal Comentado. Salvador: Juspodivm, 2019. 198 ACS. Transação Penal. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e- produtos/direito-facil/edicao-semanal/transacao-penal. Acesso em: 12 jul. 2020. 65 Impende observar que essa proposta pode ser feita tanto pela via oral como de forma escrita. De certo que, apresentada oralmente, será constada em ata. O fato é que pelo meio em que for apresentada, deverá conter exposição minuciosa das medidas restritivas de direitos ou multas a serem aplicadas imediatamente. Ademais, é curioso pontuar que é perfeitamente concebível a oferta da transação para apenas alguns dos coautores ou partícipes da conduta delituosa, tratando-se de concurso de agentes. Todavia, ao contrário do que ocorre na composição dos danos civis, se a proposta da transação for aceita por um dos coautores, não haverá extensão dos efeitos para os demais. À frente de tudo, para sua perfectibilização, deve-se preencher determinados pressupostos de modo que seja admissível a transação penal. Há de se ressaltar que antes de mais nada, se houver fundamento para o arquivamento199 de termo circunstanciado, não se deve propor a transação e relegar o arquivamento, hipótese em que não é cabível sequer a instauração de um processo judicial. Somente é cabível a transação penal se, presentes as circunstâncias judiciais favoráveis200, a infração201 for de menor potencial ofensivo, sendo a pena máxima não superior a dois anos, cumulada ou não com multa, independentemente de o procedimento ser especial ou não, exceto nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher202. O autor do fato não pode ter sido condenado, com decisão transitada em julgado, por crime punido com pena restritiva de liberdade. Desse modo, conclui-se que se o infrator já houver sido condenado a pena restritiva de direitos ou multa, ou ainda por contravenção penal, este fato não será óbice à proposta da transação penal. Ademais, a transação deve ser aceita pelo autor da infração e seu defensor, não sendo admissível se o querelado tiver se favorecido nos últimos cinco anos do mesmo instituto. Entretanto, havendo divergência entre posicionamentos do infrator e seu advogado, o Superior Tribunal de Justiça, no Habeas Corpus nº 17165, entendeu que deverá prevalecer a vontade do primeiro; e não poderia ser diferente, à luz de toda a sistemática processual penal. De mais a 199 Notadamente, a ausência de pressuposto processual ou de condição para o exercício da ação penal; falta de justa causa para o exercício da ação penal; atipicidade da conduta; existência manifesta de causa excludente da ilicitude; existência manifesta de causa excludente da culpabilidade, salvo a inimputabilidade; existência de causa extintiva da punibilidade. 200 Aqui, circunstâncias judiciais devem ser interpretadas no sentido mais amplo do termo. É dizer que devem ser levados em consideração os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias (aqui específicas). Esses fatores devem demonstrar ser necessários e suficientes a adoção da transação. 201 Fazemos uso do termo infração, ao invés de crime, porque engloba tanto as contravenções penais, como os crimes que a lei comina pena máxima não superior a dois anos. 202 Súmula nº 536, STJ: A suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha. 66 mais, é indubitável que independentemente dos posicionamentos expressos, a presença do advogado junto ao autor do fato é obrigatória para a formalização da transação. A ausência de defensor, neste ato, é causa que enseja nulidade absoluta. Em sendo aceita a proposta de transação, passará a apreciação do juiz que, a acolhendo, irá aplicar as medidas restritivas ou multa, sem, contudo, importar em reincidência para o querelado. A formalização do registro acontece tão somente para servir de impedimento à concessão do mesmo benefício em lapso inferior a cinco anos. Ademais, se a multa for a única medida aplicada, ela pode ser reduzida até a metade pelo juiz203. A sentença que concorda com a transação penal é homologatória, não há que se falar em ser absolutória, tampouco condenatória. Por efeitos, essa decisão não gera reincidência, nem maus antecedentes. Também não consiste em título executivo judicial a ser executado no juízo cível. É imperioso notar que a celebração do acordo não suspende ou interrompe a prescrição, justamente porque as consequências jurídicas extrapenais do artigo 91, CP derivam de uma sentença condenatória, e a que homologa a transação não o é204. Da sentença que homologa a transação, desafia recurso de apelação em dez dias. Se não forem cumpridos os termos do acordo, sem justificativa plausível, este poderá ser declarado insubsistente, surgindo a possibilidade de oferecimento de denúncia pelo Ministério Público ou de queixa pelo ofendido, se não houver prescrito o delito. Isso ocorre em virtude de a transação não possuir o atributo da coisa julgada material205. Ainda assim, jamais há que se falar em conversão em pena privativa de liberdade. Nessa senda, é imprescindível notar que, ao homologar a sentença na transação, o juiz não reconhece a culpabilidade do autor do fato. Em razão da reforma tópica de 2008, o que há é uma prolação de sentença absolutória. Por esta razão, é comum ouvir que o processo no 203Art. 76, § 1º, da Lei n° 9.099/95. 204CONSTITUCIONAL E PENAL. TRANSAÇÃO PENAL. CUMPRIMENTO DA PENA RESTRITIVA DE DIREITO. POSTERIOR DETERMINAÇÃO JUDICIAL DE CONFISCO DO BEM APREENDIDO COM BASE NO ART. 91, II, DO CÓDIGO PENAL. AFRONTA À GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL CARACTERIZADA. 1. Tese: os efeitos jurídicos previstos no art. 91 do Código Penal são decorrentes de sentença penal condenatória. Tal não se verifica, portanto, quando há transação penal (art. 76 da Lei 9.099/95), cuja sentença tem natureza homologatória, sem qualquer juízo sobre a responsabilidade criminal do aceitante. As consequências da homologação da transação são aquelas estipuladas de modo consensual no termo de acordo. 2. Solução do caso: tendo havido transação penal e sendo extinta a punibilidade, ante o cumprimento das cláusulas nela estabelecidas, é ilegítimo o ato judicial que decreta o confisco do bem (motocicleta) que teria sido utilizado na prática delituosa. O confisco constituiria efeito penal muito mais gravoso ao aceitante do que os encargos que assumiu na transação penal celebrada (fornecimento de cinco cestas de alimentos). 3. Recurso extraordinário a que se dá provimento. (RE 795567, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 28/05/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-177 DIVULG 08-09-2015 PUBLIC 09-09-2015) 205 Súmula Vinculante nº 35: A homologação da transação penal prevista no artigo 76 da Lei 9.099/1995 não faz coisa julgada material e, descumpridas suas cláusulas, retoma-se a situação anterior, possibilitando-se ao Ministério Público a continuidade da persecução penal mediante oferecimento de denúncia ou requisição de inquérito policial. 67 juizado especial converge para o objetivo da extinção da punibilidade. Dessa forma, pela exigência de um processo penal para, posteriormente, se for o caso, despenalizar, nos afastamos do guilty plea206 ou do plea bargaining207 do direito americano, nos quais se negocia e reconhece a culpa do agente. Há de se observar que essa busca por uma solução efetiva do processo penal não se restringe à competência dos juizados especiais. Também é possível a aplicação de certos institutos depenalizadores, quando se trata de processos atinentes à justiça comum, seja federal, seja estadual208 e ainda, que se trate de rito especial209, tendo em vista que se está diante de um direito constitucional. Indo mais além, partindo do princípio do favor rei, inclusive os tribunais quando se depararem com o processo de um réu detentor de prerrogativa de função, devem fazer valer certos institutos a ele favoráveis210, nada obstante a diferença do procedimento intrínseco ao tribunal. Apesar de todo esse arsenal normativo, o que se constata na prática é que essas alternativas ao cárcere raramente são utilizadas. Muito se deve as divagações quanto à natureza jurídica desses institutos, se trata de direito subjetivo do acusado ou de mera faculdade do Ministério Público ou do juiz, a depender do caso. É imperioso reparar que a proposição da transação se revela um verdadeiro dever do Ministério Público, contanto que estejam satisfeitas as condições previstas na lei. Dessa maneira, preenchidos os requisitos legais, o oferecimento da proposta de transação pelo Ministério Público não é uma mera faculdade, mas sim uma obrigação. Com isso, há de se reconhecer que este instituto consiste em um direito subjetivo do autor do fato, e com isso, surge a discussão quanto à possibilidade, inclusive, de se impetrar habeas corpus quando lhe fosse negado a fruição desse direito. De toda forma, na hipótese de o Ministério Público entender não ser o caso de oferecer a transação, deve explicitar suas razões, fazendo-a constar na denúncia, sendo esta exigência consectária do devido processo legal. Em outras palavras, ao atribuir a transação como direito subjetivo do autor quando preenchidos os requisitos em lei, extraímos, por conseguinte, duas consequências. Uma delas é a percepção de que se cuida de um direito de conteúdo material, já que com a decisão há extinção da punibilidade, através de sentença absolutória. Outra, é a possibilidade de 206 Do inglês declaração de culpa. 207 Do inglês barganha penal. 208 A exemplo do sursis processual e penal. 209 Como a transação penal e a suspensão condicional do processo. 210 AVENA, Norberto. Processo Penal. 12. ed. São Paulo: Editora Método, 2020. 68 impetração de habeas corpus quando o juiz não acolhe o pedido, fundamentando-o pelo constrangimento ilegal211. Desse modo, tanto a escolha por parte do Ministério Público em sequer oferecer a transação, como a decisão do magistrado pelo não acolhimento da proposta devem ser devidamente fundamentadas. É passível de discussão a possibilidade ou não de o juiz, diante da discordância do Ministério Público em oferecer a transação, reexaminar e dar a última palavra acerca do assunto. Questiona-se também se caberia colocar à apreciação do Supremo Tribunal Federal referida matéria. Para Walter Nunes, tal entrave deve ser resolvido no âmbito das turmas recursais do juizado especial, se assim requerer o autor do fato, e não pelo STF, considerando que não há relação direta com a Constituição, tampouco cabendo recurso extraordinário212. Defende-se a possibilidade de se recorrer ao magistrado para que, a pedido do autor, conceda a transação criminal, com base no direito de acesso à justiça213. A outro giro, critica- se esse posicionamento que atribui ao juiz a última palavra sobre a transação, sob o fundamento de que é um contrassenso se falar em transação quando uma das partes não concorda com a solução por essa via. Além do mais, na fase preliminar, na qual é debatida a transação, não existe processo, daí que, caso o juiz, diante da negativa do Ministério Público, conceda a transação, isso caracterizaria instauração do processo criminal de ofício214. Uma solução para não tornar inexorável a decisão do Parquet que não oferece a transação sem fundamentos é aplicar subsidiariamente o art. 28 do CPP, em analogia ao entendimento dado ao sursis processual pela súmula nº 696 do STF215. Desse modo, tanto no caso de recusa injustificada do Ministério Público, como tendo ocorrido o indeferimento da proposta pelo juiz em razão do seu conteúdo, um caminho prudente seria a remessa ao Procurador-Geral de Justiça, na esfera estadual, ou às Câmaras de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, na justiça federal, que poderia distribuir o caso a outro promotor de justiça, alterar ou ratificar o conteúdo da proposta de acordo216. 211 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Curso De Direito Processual Penal: teoria (constitucional) do processo penal. 2. ed. Natal: Owl, 2015. 212 Ibid. 213 AVENA, Norberto. Processo Penal. 12. ed. São Paulo: Editora Método, 2020. 214 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Curso De Direito Processual Penal: teoria (constitucional) do processo penal. 2. ed. Natal: Owl, 2015. 215 Súmula nº 696, STF. Reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o Promotor de Justiça a propô-la, o Juiz, dissentindo, remeterá a questão ao Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo Penal. 216 BRASILEIRO, Renato. Código de Processo Penal Comentado. Salvador: Juspodivm, 2019. 69 Dito isto, se faz imperioso observar que com a introdução da Lei nº 13.964 de 2019, houve uma alteração217 do texto do referido art. 28 do CPP. Enquanto antes da inovação, o Ministério Público determinava a promoção de arquivamento do inquérito policial e se o encaminhasse ao juiz, e ele não entendesse ser o caso de homologação, remeteria novamente ao órgão ministerial para as providências supracitadas. Agora, a figura do juiz não mais se faz presente na novel redação. Sendo caso de arquivamento do inquérito policial ou de outro elemento informativo de natureza similar, o Parquet tão logo ordena o arquivamento e os autos já seguem para a instância de revisão ministerial. Emerge, então, a dúvida se a Súmula nº 696 do STF ainda seria aplicável. Se considerarmos que se trata de direito subjetivo do réu a concessão destes benefícios da Lei nº 9.099/95, quando preenchidos os requisitos legais, e que, em última instância, caberia impetrar habeas corpus para ver esse direito satisfeito, de óbvio, poderia o juiz adotar posição menos invasiva em relação ao Ministério Público, mas que possibilitasse o gozo desse direito do autor do fato. Apesar de inexistir posição pacífica quanto a questão acima, fato é que além da transação penal, existem outras medidas despenalizadoras no arcabouço processual penal. São exemplos patentes a suspensão condicional do processo e o perdão judicial. Dessa forma, considerando o direito do réu em ter disponibilizada a oportunidade de despenalização do seu processo – quando preenchidos os requisitos legais -, o juiz deve, em um primeiro momento, avaliar se seria possível a aplicação de medidas alternativas propriamente ditas ou restritivas. Se não for o caso, aí sim deve buscar a aplicação de pena alternativa ou de multa, ao invés da pena restritiva de liberdade. De uma análise diminuta do artigo 76, caput e § 4º, da Lei nº 9.099, de 1995, percebe- se uma atecnia, passível de entender, erroneamente, que da transação penal, ocorre a aplicação de pena restritiva de direitos ou multa. Tal conclusão contraria inclusive o devido processo legal, posto que ninguém pode ser considerado culpado sem prévio processo que o condene, com garantia à ampla defesa. Sujeitar o autor a pena restritiva de direitos ou multa seria equivalente a declarar a sua culpabilidade, comprometendo o devido processo legal. Vale 217 Nova redação art. 28, CPP: Ordenado o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o órgão do Ministério Público comunicará à vítima, ao investigado e à autoridade policial e encaminhará os autos para a instância de revisão ministerial para fins de homologação, na forma da lei. § 1º Se a vítima, ou seu representante legal, não concordar com o arquivamento do inquérito policial, poderá, no prazo de 30 (trinta) dias do recebimento da comunicação, submeter a matéria à revisão da instância competente do órgão ministerial, conforme dispuser a respectiva lei orgânica. § 2º Nas ações penais relativas a crimes praticados em detrimento da União, Estados e Municípios, a revisão do arquivamento do inquérito policial poderá ser provocada pela chefia do órgão a quem couber a sua representação judicial. 70 destacar ainda que na transação, o não cumprimento das condições estipuladas pelo juiz não importa a sua conversão automática em pena restritiva de liberdade, de acordo com o Supremo Tribunal Federal218. Tendo isso consignado, o processo criminal do juizado especial tem duas fases. A preliminar, que visa a solução consensual do caso, e a de cunho contencioso, quando frustrada a fase anterior, que se inicia com o ajuizamento da ação penal. Na fase preliminar há um processo criminal de jurisdição voluntária. A figura da transação se encontra nessa fase. Do mesmo modo, a audiência preliminar precede a ação penal, mas isso não lhe retira a qualidade de ato processual. Nesta oportunidade, cabe ao juiz buscar uma solução pacífica para a demanda. Se o autor do fato ou Ministério Público não estiverem presentes ou o ato processual não poder ter sido realizado, a audiência preliminar passa para a segunda etapa, em que o caso será capaz de ser solucionado com a despenalização da conduta219. Outra inovação introduzida ao nosso sistema jurídico que vem proporcionar a existência de mais um instrumento de extinção de punibilidade é a suspensão condicional do processo, prevista na Lei nº 9.099, de 1995, cabível para os crimes cuja pena mínima não seja superior a um ano220. Tal como a transação criminal, a suspensão condicional do processo é um modo de despenalizar a conduta ilícita no caso concreto, com o fundamento de erradicar a marginalização. Dessa forma, havendo a suspensão condicional do processo, tem-se uma sentença absolutória. Por esta razão, nos casos em que há desclassificação do crime ou procedência parcial da pretensão punitiva, também é cabível a aplicação dessa benesse221, já que é mais interessante ao acusado. Ademais, não é equivocado dizer que o sursis processual é um direito subjetivo do autor do fato, que pode ser negociada ou acatada pelo juiz, conquanto que sejam satisfeitos os requisitos legais. Esta diferencia-se da transação, por ocorrer tão somente após o oferecimento da denúncia. 218 Súmula Vinculante nº 35, do STF: A homologação da transação penal prevista no artigo 76 da Lei nº 9.099/1995 não faz coisa julgada material e, descumpridas suas cláusulas, retoma-se a situação anterior, possibilitando-se ao Ministério Público a continuidade da persecução penal mediante oferecimento de denúncia ou requisição de inquérito policial. 219 RAMÍREZ, Sérgio García. En búsqueda de la terceira via: la justicia restaurativa. Revista de Ciencias Penales. Iter Criminis. Cidade do México: Inacipe, n. 13. Abr./Jun 2005. 220 O STJ firmou a seguinte tese, divulgada na Edição nº 96 da Jurisprudência em Teses, de 31 de janeiro de 2018: “A Lei n. 10.259/01, ao considerar como infrações de menor potencial ofensivo as contravenções e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, não alterou o requisito objetivo exigido para a concessão da suspensão condicional do processo prevista no art. 89 da Lei n. 9.099/95, que continua sendo aplicado apenas aos crimes cuja pena mínima não seja superior a 1 (um) ano.”. 221 Súmula nº 337, STJ: É cabível a suspensão condicional do processo na desclassificação do crime e na procedência parcial da pretensão punitiva. 71 Sendo assim, através da aplicação desse instituto, o querelado se beneficia por ter seu processo suspenso, sob a contrapartida de um período de prova que varia de dois a quatro anos. São condições para o deferimento dessa medida, além de o crime ter pena mínima igual ou inferior a um ano222, não ser réu, não ter cometido outro crime e não ser reincidente em crime doloso. Em adição a esses requisitos, é necessário o cumprimento às exigências de ordem subjetiva preconizadas no art. 77, do CPP, de modo que a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, os motivos e as circunstâncias do crime autorizem a concessão do instituto223. Destaque-se que, os crimes abarcados pelo benefício podem tanto estar na Lei nº 9.099/95 ou não, desde que conclua com os requisitos correspondentes, exceto os delitos cometidos com violência doméstica ou familiar contra a mulher224. O art. 28 da Lei n° 9.605/98 oportuniza o emprego da suspensão condicional do processo nos crimes ambientais de médio potencial ofensivo, com algumas peculiaridades. No caso destes crimes, para que seja declarada a extinção da punibilidade, deverá ser juntado aos autos laudo que prove a completa reparação do dano ambiental, com exceção dos casos em que for comprovada a absoluta impossibilidade225. Se for demonstrado que a reparação foi incompleta, o prazo do sursis processual deverá ser prorrogado até o período máximo do instituto, mais um ano226, em que a prescrição também será suspensa. Na hipótese de mesmo após essa prorrogação, ainda não haver reparação integral do dano ambiental, o prazo 222 Atente-se que, pela Súmula nº 243, do STJ: “o benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de um (01) ano. ”. 223 RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. RÉU QUE OBTEVE O MESMO BENEFÍCIO EM OUTRO PROCESSO. NÃO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS SUBJETIVOS. INTELIGÊNCIA DOS ARTIGOS 89 DA LEI 9.099/1995 E 77 DO CÓDIGO PENAL. COAÇÃO ILEGAL INEXISTENTE. DESPROVIMENTO DO RECLAMO. 1. De acordo com o artigo 89 da Lei dos Juizados Especiais, para a concessão da suspensão condicional do processo é necessário, além do preenchimento dos requisitos objetivos, o atendimento às exigências de ordem subjetiva, dispostas no artigo 77 do Código Penal, referentes à adequação da medida em face da culpabilidade, antecedentes, conduta social e personalidade do agente, bem como dos motivos e circunstâncias do delito. Precedentes. 2. No caso dos autos, foram declinadas justificativas plausíveis para a negativa do sursis processual, uma vez que a existência de processo anterior, por crime idêntico, no qual o recorrente já havia sido beneficiado com a medida, revela que a benesse não se mostra adequada, consoante o disposto no artigo 77 do Código Penal. 3. Os fatos assestados ao recorrente no presente feito ocorreram em 18.8.2013, tendo a sua punibilidade sido extinta no processo anteriormente deflagrado ante o cumprimento das condições a ele impostas apenas aos 22.10.2014, o que reforça a impossibilidade de concessão do benefício, por analogia ao disposto no artigo 76, § 2º, inciso II, da Lei dos Juizados Especiais. Doutrina. Precedente do STJ. 4. Recurso desprovido. (RHC 63.767/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 17/11/2015, DJe 26/11/2015) 224 Súmula nº 536, STJ: A suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha. 225 Que pode ocorrer em razão da irreparabilidade do dano ambiental, quando este for incomensurável, atingindo proporções incalculáveis; ou no caso de ser impossível para o acusado solver, em termos financeiros, a reparação do dano ambiental. 226 Quatro anos mais um ano. 72 de suspensão deve ser prorrogado mais uma vez. Uma vez atingido o máximo de prorrogações permitidas em lei, poderá ser declarada extinta a punibilidade, desde que acompanhada de laudo em que se comprove que o querelado tomou todas as providências necessárias com o fito de reparar integralmente o dano. Outrossim, é importante notar que devem ser computadas as qualificadoras, privilégios, causas de aumento e de diminuição de pena no cálculo para conferir se o crime tem pena mínima igual ou inferior a um ano. Essa observação é essencial para que se amplie o número de querelados favorecidos por essa benesse, o que é vital para a redução do número de encarcerados nas penitenciárias brasileiras e é um passo no caminho de cessar o estado de coisas inconstitucional. Também merece atenção que a exigência de o agente não estar sendo processado ou não ter sido condenado por crime diverso não engloba a contravenção penal. Em outras palavras, não caberia negar a aplicação da suspensão condicional do processo, sob a simples justificativa de que o imputado está sendo processado por contravenção penal. Do mesmo modo, a condenação pretérita a pena de multa não pode ser um empecilho a obtenção deste benefício. Estando o sistema processual penal brasileiro comprometido com o primado da penalização como última ratio, em convergência com a necessidade de redução dos encarcerados, conclui-se que a proposta de suspensão condicional do processo é um dever- poder do Ministério Público, quando cumpridos os pressupostos fixados em lei. Partindo dessa premissa, quando o Parquet silencia acerca das razões pelas quais não propõe esse instituto, pode dar causa a nulidade relativa do processo, sujeita à preclusão e devendo-se demonstrar o prejuízo que, em verdade, é facilmente comprovado, em virtude do caráter favorecedor do instituto ao querelado. A referência aqui realizada vale para as ações em que o Ministério Público é legitimado como parte, sendo perfeitamente admissível que em se estando diante de uma ação penal privada, o querelante, titular da ação penal, opte por oferecer a aplicação desse instituto227. Posta assim a questão, fato é que, quando aceita a suspensão condicional do processo, o acusado será submetido a um período de prova, que consiste no cumprimento da obrigação de reparar o dano, salvo comprovada impossibilidade de fazê-lo, na proibição de frequentar 227 Ressalte-se que o Enunciado n° 112, XXVII FONAJE, se alinha ao entendimento de que também é possível que o Ministério Público ofereça a possibilidade de suspensão condicional do processo, mesmo se tratando de ação penal privada. 73 lugares determinados228, tampouco ausentar-se da comarca sem autorização judicial. Ainda deve o beneficiário comparecer mensalmente em juízo, não podendo ter instaurado um novo processo penal em decorrência de crime ou contravenção, além de outras condições que se fizeram necessárias, se adequadas ao fato e a condição pessoal do acusado. Esses requisitos que devem ser cumpridos durante o período de prova não podem ser confundidos com penas restritivas de direitos. Ou melhor dizendo, não se pode aplicar penas restritivas de direitos, como a imposição de prestação pecuniária, sob o pretexto de ser requisito a suspensão condicional do processo. Isso seria mais um empecilho à despenalização, não previsto em lei229. Outrossim, as limitações prescritas durante o período de prova mais se relacionam ao comportamento social do agente do que uma espécie de sanção. Todavia, o que se percebe na prática dos tribunais brasileiros é a aplicação de algumas medidas, também arroladas como penas restritivas de direitos, como requisito para o sursis processual, quando seja viável a sua adequação. A prestação de serviços à comunidade vem sendo pacificamente aplicada, conquanto que haja proporcionalidade, não sendo o mesmo de aplicação antecipada de pena, não configurando hipótese de constrangimento ilegal230. Ainda no tocante ao sursis processual, os tribunais vem aplicando231, por analogia à transação penal, o prazo de cinco anos do art. 76, § 2º, inciso II, da Lei nº 9.099/95 para que seja possível uma nova concessão da suspensão condicional do processo. Ademais, tão importante é o papel desse instituto enquanto medida alternativa da prisão que o Ministério Público na apresentação da denúncia deve justificar quando não for oferecido, se o crime possuir pena mínima abstrata inferior ou igual a um ano232, exceto nas hipóteses de violência doméstica ou familiar contra a mulher. Trata-se, então de requisito formal da denúncia, podendo-se concluir que se não for declarado os motivos pela não aplicação da suspensão condicional do processo, apesar de existentes os requisitos para tanto, a denúncia pode ser considerada inepta – se não o for, como já dito, ainda é caso de nulidade relativa a ser arguida – cabendo ao juiz devolver os autos ao Ministério Público, para que realize as devidas correções. 228 É válido distinguir que não se trata, aqui, da medida cautelar do art. 319, II, CPP. 229 Há precedentes da 6ª Turma do STJ nesse sentido. 230 É o entendimento predominante da 5ª Turma do STJ. 231 RHC 80170/MG, Rel. Ministro JORGE MUSSI, 5ª TURMA, julgado em 28/03/2017, DJe 05/04/2017. 232 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Curso de processo penal: teoria (constitucional) do processo penal. 2. ed. atual., rev., ampl. OWL: Natal, 2015. 74 Sem as correções, dá-se azo ao réu de peticionar ao juízo pelo encerramento do processo, o que pode, oportunamente, ser deferido, de modo que o autor do fato terá como consequência a despenalização da conduta imputada. É entendimento do Supremo Tribunal Federal, conforme explicitado na Súmula nº 696 que, havendo recusa do Ministério Público na aplicação do sursis processual, se o juiz entender que se fazem presentes os requisitos legais para sua concessão, aplicar-se-á, por analogia, o art. 28 do CPP. Aqui, são válidas as mesmas considerações feitas no tocante à transação penal, mesmo após a modificação trazida com a Lei nº 13.964 de 2019, sendo passível de discussão ainda o papel do juiz e da inafastabilidade de jurisdição, quando presentes os requisitos legais para o oferecimento dessas medidas alternativas ao cárcere. A revogação da suspensão condicional do processo pode ser obrigatória – nas hipóteses do art. 89, §3°, Lei n° 9.099/95 –, quando o acusado se recusa a reparar o dano, sendo possível fazê-lo, ou se ele for processado posteriormente por outro crime. Entende-se que a simples instauração de inquérito policial, da mesma forma que não obsta o oferecimento dessa benesse, também não é fundamento idôneo para a sua revogação233. Há, ainda, a revogação facultativa da referida lei, disposta no art. 89, §4°, que pode vir a se concretizar no caso de o acusado ser processado por contravenção penal ou se ele descumprir qualquer outra condição determinada. Importante observar ainda que essa revogação pode se dar até mesmo após o prazo do período de prova, até o momento da declaração da extinção da punibilidade234. Tendo em consignado cada uma dessas medidas despenalizadoras trazidas pela Lei nº 9.099/95, percebe-se que a sua aplicação é muito mais proveitosa tanto para o acusado como para a vítima, e ainda para a Administração Pública, que não terá que despender recursos com o prosseguimento de um longo processo, do mesmo modo que seria um custodiado a menos para inflar, ainda mais, o sistema carcerário. Ademais, pelo exame detalhado das peculiaridades de cada instituto, vê-se que o fim último deles é a busca pelo ideal da efetividade, de uma justiça restaurativa e concretista. Tirando por exemplo a suspensão condicional do processo, é possível realizar a composição civil dos danos sofridos pela vítima de maneira embutida na decisão, satisfazendo todas as 233O STJ firmou a seguinte tese, divulgada na Edição nº 96 da Jurisprudência em Teses, de 31 de janeiro de 2018: “A existência de inquérito policial em curso não é circunstância idônea a obstar o oferecimento de proposta de suspensão condicional do processo.” 234 O STJ firmou a seguinte tese, divulgada na Edição nº 96 da Jurisprudência em Teses, de 31 de janeiro de 2018: “Se descumpridas as condições impostas durante o período de prova da suspensão condicional do processo, o benefício poderá ser revogado, mesmo se já ultrapassado o prazo legal, desde que referente a fato ocorrido durante sua vigência. (Tese julgada sob o rito do art. 543-C do CPC/73 - TEMA 920)”. 75 partes envolvidas e ainda evitando o prolongamento da lide. Nesta situação, a vítima terá a garantia de que esse trato será cumprido, já que se consubstancia em título judicial apto a ser executado no juízo cível, se assim se fizer necessário235. Além dos institutos ora dissecados, também pode ser arrolada como medida descarcerizadora a exigência de representação para instruir processos referentes a crimes de lesão corporal leve e lesão culposa, decaindo esse direito após seis meses, contados da ciência do autor do crime. De igual modo, é alternativa que visa evitar prisão, quando o imputado comparece prontamente ao juizado ou se compromete em nele apresentar-se, depois de lavrado o termo circunstanciado. Nestes casos, não será o acusado submetido à prisão em flagrante, nem será dele exigida a fiança. Levando isso em consideração, não há dúvidas de que o legislador pátrio concretizou um vasto rol de medidas alternativas ao cárcere. Apesar disso, os tribunais pátrios, de modo geral, ainda mostram resistência na sua aplicação. Se não resistem, também não se vê uma promoção para o emprego dessas providências. São raros os tribunais que possuem varas especializadas na execução de medidas e penas alternativas à prisão236, e esse processo de implementação ocorre de maneira letárgica. A primeira vara especializada nestes casos foi instalada em Fortaleza (CE), em 1998237. Nos locais em que houve a sua criação, à exemplo do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, o Tribunal de Justiça do Ceará, o Tribunal de Justiça da Bahia Tribunal de Justiça de Pernambuco, percebe- se um aumento da aplicação dessas medidas despenalizadoras238. Curioso notar que o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, nada obstante ter sido um dos primeiros do Brasil a implementar Juizados Especiais Cíveis e Criminais, por intermédio da lei estadual nº 1.071, de 11 de julho de 1990, antes da própria lei nº 9099/95, ainda não possui uma vara especializada para a execução de penas e de medidas alternativas. A falta de estrutura proporcionada pelo próprio sistema judiciário, com poucos estados adotando um modelo com vara dedicada exclusivamente a execução de medidas e penas alternativas, enfraquece a concretização das garantias ao acusado. 235 Assim entende o STJ, de acordo com a Info 599. 236 INSTITUTO LATINO-AMERICANO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA PREVENÇÃO DO DELITO E TRATAMENTO DO DELINQUENTE. Levantamento nacional sobre execução de penas alternativas. Brasília, 2006. 237 Ministério da Justiça (org.). Dez anos da política nacional de penas e medidas alternativas. Brasília, 2010. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/dirpp/cgap/pesquisas/diagnostico10anospoliticanacionalpenasmedi.pdf. Acesso em: 13 ago. 2020. 238 Ibid. 76 Na tentativa de se desenvolver um estímulo e acompanhamento a aplicação e fiscalização dessas medidas despenalizadoras, foi criado, no ano 2000 a Central Nacional de Apoio e Acompanhamento às Penas e Medidas Alternativas (CENAPA), no âmbito do Ministério da Justiça239, resultado do Programa Nacional de Apoio e Acompanhamento de Penas e Medidas Alternativas. A maior parte das ações do CENAPA se consubstanciava na realização de seminários, com o fito de incentivar o emprego dessas alternativas, através da capacitação dos juízes240. Ademais, estimulou-se a criação, em cada estado federado, de Centrais de Penas e Medidas Alternativas, vinculadas às respectivas Secretarias Estaduais, através da formalização de protocolos de intenções241. De acordo com o Ministério da Justiça, em 2002 existiam 4 varas especializadas em penas e medidas alternativas e 26 Centrais de Penas e Medidas Alternativas em todo o Brasil. Em 2006, passaram a ser 10 varas e 213 centrais. Já no ano de 2009, fez constar um número de 20 varas e 389 centrais242. Nesse diapasão, partindo de uma pesquisa quantitativa, os dados fornecidos pela maioria dos estudos dedicados ao assunto243 não são específicos quanto ao número de acusados beneficiados com as medidas alternativas ao cárcere, o que torna mais árdua a tarefa de fiscalizar a aplicação desses institutos, de óbvio, quando preenchidos os requisitos legais. O que se nota é que muitos trabalhos244 englobam na contagem tanto as medidas despenalizadoras como a concessão de penas alternativas em um só resultado. A importância de se manter um banco de dados específico e atualizado dos casos em que se faz uso das medidas alternativas à prisão é, em essência, estimular cada vez mais o aumento desses números. As vantagens trazidas por essa ampliação vão desde o benefício ao 239 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA (org.). Dez anos da política nacional de penas e medidas alternativas. Brasília, 2010. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/dirpp/cgap/pesquisas/diagnostico10anospoliticanacionalpenasmedi.pdf. Acesso em: 13 ago. 2020. 240 INSTITUTO LATINO-AMERICANO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA PREVENÇÃO DO DELITO E TRATAMENTO DO DELINQÜENTE. Levantamento nacional sobre execução de penas alternativas. Brasília, 2006. 241 Ministério da Justiça (org.). Dez anos da política nacional de penas e medidas alternativas. Brasília, 2010. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/dirpp/cgap/pesquisas/diagnostico10anospoliticanacionalpenasmedi.pdf. Acesso em: 13 ago. 2020 242 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA (org.). Dez anos da política nacional de penas e medidas alternativas. Brasília, 2010. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/dirpp/cgap/pesquisas/diagnostico10anospoliticanacionalpenasmedi.pdf. Acesso em: 13 ago. 2020. 243 INSTITUTO LATINO-AMERICANO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA PREVENÇÃO DO DELITO E TRATAMENTO DO DELINQUENTE. Levantamento nacional sobre execução de penas alternativas. Brasília, 2006. 244 Ibid. 77 autor do fato até a redução da superlotação carcerária. Tornando-se, por conseguinte, uma tentativa válida na modificação do estado de coisas inconstitucional no âmbito do sistema penitenciário brasileiro. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) realizou um apanhado, que culminou com um relatório de pesquisa, exatamente sobre a aplicação de penas e medidas alternativas à prisão, tendo como parâmetro os processos com baixa definitiva até 2011245. O espaço amostral da pesquisa quantitativa compreendeu as seguintes unidades federativas: Alagoas (AL), Distrito Federal (DF), Espírito Santo (ES), Minas Gerais (MG), Pará (PA), Paraná (PR), Pernambuco (PE), Rio de Janeiro (RJ) e São Paulo (SP). Neste estudo, pela análise do perfil dos autores, constatou-se que 62,8% deles já haviam recebido algum benefício penal anteriormente ao fato pelo qual estavam sendo processados. Dos casos submetidos à análise, apenas em 9,3% deles foi oferecida a transação penal ou a suspensão condicional do processo pelo Ministério Público246. É dizer que em 90,7% das vezes não é oportunizado ao autor do fato esses institutos despenalizadores. Quanto às sentenças, apenas 6,0% foram exaradas para aplicar alguma medida alternativa, enquanto as que condenaram a pena privativa de liberdade correspondem a 46,8% do total. Ademais, partindo da observação dos sentenciados que em algum momento do processo foram submetidos à prisão provisória, percebe-se que 9,4% deles foram condenados a penas alternativas e 3,0% cumpriram medidas alternativas, 17,3% foram absolvidos, 3,6% foram arquivados, 3,6% prescreveram e 0,2% tiveram que cumprir medidas de segurança. Sendo assim, é possível concluir que 37% dos acusados responderam ao processo presos, sem, contudo, terem sido condenados a pena restritiva de liberdade ao final247. É intrigante perceber que, no que tange ao estudo do tempo do processo criminal, obteve-se uma média de vinte e dois meses entre o oferecimento da denúncia e o julgamento. Se incluir o tempo pré-processual, atinge-se uma média de 33,5 meses entre a instauração do processo e a prolação da sentença. Especificamente, essa média do fluxo total nos casos em que houve prisão provisória equivale a 21,4 meses248. Ou seja, o acusado fica 639 dias preso provisoriamente para que em 37% dos casos não venha ser condenado a prisão. 245 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). A aplicação reduzida de penas e medidas alternativas. Rio de Janeiro, 2015. 246 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). A aplicação reduzida de penas e medidas alternativas. Rio de Janeiro, 2015. 247 Ibid. 248 Ibid. 78 De um apanhado específico dos Juizados Especiais Criminais, o IPEA apurou que 86,2% dos réus não tinham recebido, anteriormente ao processo em análise, qualquer benefício como a transação penal, a suspensão condicional do processo, a suspensão condicional da pena, composição dos danos civis ou outro. Apesar de se esperar que os processos analisados no âmbito dos Juizados Especiais Criminais culminassem com a ampla aplicação das medidas alternativas, por julgarem crimes de menor potencial ofensivo, percebe-se que tão somente 8,4% dos imputados celebraram acordo de composição dos danos civis. Foi ofertada a transação penal em 25,5% dos casos, e a suspensão condicional do processo em 7,2% dos processos. Esse quadro delineado pela pesquisa do IPEA reflete a infeliz realidade da maioria dos tribunais do país. As consequências disso se refletem de maneira diretamente proporcional ao número de encarcerados no Brasil, ao passo em que não há suporte estrutural para tanto. A referência dada a suporte aqui reveste tanto o aspecto estrutural das penitenciárias, como também a busca pela ressocialização do condenado, na busca pela utopia de que ele sairá regenerado ao fim da execução. Ao invés disso, a maior parte dos processados são presos provenientes de determinada parcela da população, como já constatado no subtópico anterior, sendo estes jovens negros249. Nesse contexto, é importante mencionar um estudo desenvolvido pelo governo australiano, citado pela criminóloga Elena Larrauri, sob o viés da tendência da justiça restaurativa no mundo, em que se compara o nível de reincidência quando empregadas medidas alternativas. Para tanto, indivíduos que cumpriram alguma medida alternativa foram acompanhados por um ano, registrando-se se cometiam novos crimes, sendo que 60% dos 107 acusados analisados não reincidiram250. Apesar de ter tido a Austrália como parâmetro, percebe-se que também no Brasil o maior emprego de medidas alternativas à prisão está associado a uma melhor ressocialização, o que provoca, por conseguinte, uma redução no número de reincidentes. É digno de nota os resultados relatados pelo ILANUD em Recife (PE)251, no contexto da Vara de Execução de 249 PIMENTA, Victor Martins; SILVA, Fabio de Sá e. Alternativas à prisão. Desafios do Desenvolvimento, Brasília, p. 17-33, 31 dez. 2014. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=3114&catid=29&Itemid=3 4. Acesso em: 13 ago. 2020. 250 LARRAURI, Elena. Tendências actuales de la justica restauradora, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 51, p. 98. Revista dos Tribunais, nov-dez./2004 251 INSTITUTO LATINO-AMERICANO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA PREVENÇÃO DO DELITO E TRATAMENTO DO DELINQUENTE. Levantamento nacional sobre execução de penas alternativas. Brasília, 2006. 79 Penas Alternativas de Pernambuco (VEPA) que, apesar do nome ser restrito, também executa medidas despenalizadoras. Na VEPA, quando concedido o sursis processual ou penal, o beneficiado deve comparecer as reuniões mensais ou trimestrais, denominados grupos de sursis. Nestas ocasiões, são ministradas palestras, com a participação de juízes, sobre os mais variados temas, que vão desde a família à cidadania. Ademais, servem para informar acerca da existência de cursos profissionalizantes, fomentando uma formação de redes de solidariedade pelos participantes, incentivando, inclusive, o fortalecimento das relações familiares. Nessa experiência, há uma insistência pela designação àqueles que desfrutam das medidas alternativas de beneficiários, para que haja uma incorporação desse sentimento de que ele está, apesar dos percalços, sendo beneficiado, além de ser um modo de tratamento menos estigmatizante. Ademais, foi observado que os participantes das reuniões se identificam com a metodologia desenvolvida, ao mesmo tempo em que se integram a um ideal de grupo, através dessa política reintegradora252. Por este exemplo e pelas informações coletadas, é indubitável que a aplicação de medidas alternativas à pena, apesar de timidamente aplicadas pelos tribunais pátrios, possuem um papel importante na ressocialização do autor do fato, e ainda, evita a condução do imputado a uma cela superlotada. Dessa forma, o estímulo à ampliação dessas medidas, quando assim recomendar a lei ao caso concreto, é crucial na busca pela modificação do estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário. Além dessas medidas, no caso dos já condenados por crimes, é salutar trazer à lume o exemplo do método difundido pela Associação de Proteção e Assistência aos Condenados – APAC, instituição filiada à Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados – FBAC. Esta entidade civil de direito privado, idealizada pelo advogado Mario Ottoboni253, possui como um dos maiores objetivos a busca pela humanização das prisões, através de uma política de valorização humana, aliado a um viés evangelizador, que promove o senso de autorresponsabilidade do recuperando254. Destaque para a denominação de tratamento que é dada ao preso. Abandona-se as terminologias que já possuem uma carga pejorativa e a substitui pelo termo recuperando, a qual 252 INSTITUTO LATINO-AMERICANO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA PREVENÇÃO DO DELITO E TRATAMENTO DO DELINQUENTE. Levantamento nacional sobre execução de penas alternativas. Brasília, 2006. 253 OTTOBONI, Mario. Vamos matar o criminoso? Método APAC. São Paulo: Paulinas, 2001, 316 p. 254 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO MATO GROSSO. O que é APAC. Disponível em: https://www.tjmt.jus.br/INTRANET.ARQ/CMS/GrupoPaginas/105/1020/APAC.doc. Acesso em: 21 dez. 2020. 80 retrata mais francamente o caráter ressocializador que é perseguido pela entidade. Em síntese, o método adotado pela APAC é estruturado com base em doze elementos, quais sejam: a participação da Comunidade, o apoio mútuo entre recuperandos, o trabalho, a espiritualidade, a assistência jurídica, a assistência à saúde, a valorização Humana, a família, a formação de voluntários, a implantação do Centro de Reintegração Social – CRS, o mérito do recuperando e a Jornada de Libertação com Cristo255. O cumprimento de pena na APAC é individualizado e visa a ressocialização, evitando- se a reincidência. Para tanto, busca-se o engajamento dos recuperandos em cursos profissionalizantes e no trabalho. Segundo o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o índice de reincidência de egressos do método APAC é de 15%, enquanto nos demais presídios esse percentual sobe para 70%256. 255 FRATERNIDADE BRASILEIRA DE ASSISTÊNCIA AOS CONDENADOS. A APAC:: o que é?. o que é?. Disponível em: http://www.fbac.org.br/index.php/pt/como-fazer/apac-o-que-e. Acesso em: 21 dez. 2020. 256 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO MATO GROSSO. O que é APAC. Disponível em: https://www.tjmt.jus.br/INTRANET.ARQ/CMS/GrupoPaginas/105/1020/APAC.doc. Acesso em: 21 dez. 2020. 81 4 O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL E A OMISSÃO ESTATAL NO SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO A falta de estrutura do sistema penitenciário brasileiro não é novidade. O contingente de presos é bem superior à quantidade de celas ofertadas, o que finda no problema da superlotação. Consequentemente, o limite de presos por agente penitenciário também é extrapolado257. O recomendado pelo Conselho Nacional de Política Criminal é que se mantenha a proporção de um agente penitenciário para cada cinco presos258, mas, a exemplo do que ocorre no Rio de Janeiro com quinze sentenciados por funcionário259, essa meta está longe de ser atingida. Seguindo esse fluxo, onde se exala precariedade, não se poderia esperar conclusão diferente quanto ao fornecimento de condições de higiene ou alimentação adequadas. O ambiente carcerário é um antro de proliferação de doenças, com condições insalubres de sobrevivência. Um risco à saúde, além do risco aumentado à própria vida, haja vista a não rara forte presença das máfias nas penitenciárias, culminando em um ambiente favorecedor de violências, em um mundo paralelo ao sistema legal. Reflexo disso foram as rebeliões que ocorreram no ano de 2017 nos presídios do Amazonas, Roraima, São Paulo, Rio Grande do Norte e Curitiba, em que no total o número de mortes superou as do massacre do Carandiru, de 1992, em São Paulo260. Mais recentemente, no corrente ano, em Manaus, outra rebelião aconteceu, com cinquenta e cinco presos mortos261, sinalizando a continuidade dessa problemática ao longo do tempo. Tudo isso está a um giro copernicano do que se pretendia obter de um ambiente ressocializador, que deveria ser o presídio. Se mal existem condições mínimas de 257 HOLANDA, Agência O Globo - Portal do. Cadeias descumprem limite de presos por agentes penitenciários. Disponível em: . Acesso em: 17 jun. 2019. 258 BRASIL. Resolução nº 9, de 13 de novembro de 2009. Brasília, 16 nov. 2009. Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Disponível em: . Acesso em: 17 jun. 2019. 259 HOLANDA, Agência O Globo - Portal do. Cadeias descumprem limite de presos por agentes penitenciários. Disponível em: . Acesso em: 17 jun. 2019. 260 BRASIL, Bom Dia. Mortes em presídios do país em 2017 já superam o massacre do Carandiru: No dia 1º de janeiro, foram 56 mortos no Complexo Prisional Anísio Jobim. Crise no sistema prisional produziu números assustadores: 133 mortes.. Disponível em: . Acesso em: 17 jun. 2019. 261 PRESTES, Monica. Rebeliões deixam 55 mortos em presídios de Manaus em dois dias: Todos os casos têm indícios de asfixia, informa o governo do Amazonas. Disponível em: . Acesso em: 17 jun. 2019. 82 sobrevivência, que dirá a oferta de meios que oportunizem o ensino e o trabalho do custodiado. Nem sempre há meios para que ele possa optar em trabalhar ou estudar com o propósito de ter sua pena remida.262 O que o sistema se propõe a concretizar quando isola o condenado, ocorre o contrário. Estamos anos luz de alcançar o caráter ressocializador da pena. O que se constata, na prática, é um retrocesso, onde somente se enxerga o caráter retributivo da pena - prevenção especial negativa – e rechaça ao segundo plano – este que só sobrevive na doutrina – a busca pela correção do apenado para que reintegre ao seio social com uma nova conduta (prevenção especial positiva). Percebe-se, atualmente, que a pena resta banalizada e imbuída de um sentimento de vingança social. Trata-se, pois, de um retrocesso incompatível com o atual estágio de Estado Democrático de Direito adotado pelo Brasil. Esse cenário não só contraria o artigo 5º da Constituição, dentre outros, como também diversos tratados internacionais de direitos humanos, a saber, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, o Pacto de São José da Costa Rica e a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. 4.1 A PROTEÇÃO OFERECIDA PELO ORDENAMENTO JURÍDICO AO CUSTODIADO Não há como passar adiante para a análise dos julgados pelo Supremo Tribunal Federal em matéria que envolva o sistema penitenciário nacional, sem antes analisar como se dá o espectro protetivo de diretos do preso, que tem como punição sua liberdade cerceada, em detrimento do fim último ressocializador, sob a custódia do Estado. Como já explanado no subtópico 2.2, os deveres do Estado de proporcionar aos apenados que se encontram cumprindo pena sob sua custódia condições dignas de vida encontram-se amparados na própria Constituição, na legislação infraconstitucional263, incluindo documentos de cunho internacional. Dessa maneira, não há mais qualquer dúvida com relação à existência de vasto rol de direitos e garantias do indivíduo que tem sua liberdade cerceada, temporariamente, como resultado de um processo penal. 262 Art. 126. O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena. (Redação dada pela Lei nº 12.433, de 2011). BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Brasília. 263 Notadamente, a Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, mais conhecida como Lei de Execução Penal. 83 Dito de outro modo, é sabido o arcabouço normativo que assegura diversos direitos ao apenado. Todavia, não raro, esses direitos são violados por parte daquele que deveria prestar as melhores condições de sobrevivência ao seu custodiado, o Estado, culminando, no caso do sistema prisional, em um estado de coisas contrário, materialmente, ao que preconiza a Constituição. Levando isso em consideração, muitas vezes o preso que não teve seu direito consagrado no mundo dos fatos, sente-se lesado e busca a sua satisfação264 tardia por meio da tutela jurisdicional. A Lei de Execução Penal, em consonância com as normas internacionais, em especial, as Regras de Mandela265, elenca um rol de direitos e assistências que o sistema penitenciário deve ofertar ao presidiário. Compõe essa rede de proteção o direito à assistência material – que corresponde ao direito à alimentação adequada, vestuário e instalações higiênicas –, assistência à saúde, jurídica, educacional, social, religiosa, e ainda, na transição para o ambiente social ao egresso. As assistências educacional, social e religiosa são essenciais na consecução do ideal ressocializador. Isso promove que o preso possa realizar seus desejos e evoluir, enquanto segue no cumprimento da pena. Em última análise, o direito à assistência religiosa é uma consumação do direito à livre expressão e à liberdade religiosa. O direito à assistência jurídica é uma expressão do princípio constitucional da ampla defesa, que deve ser integral e gratuita para todo e qualquer preso. Há de se ressaltar, ademais, que em virtude de o próprio legislador constitucional determinar que a defesa é ampla, ela não deve ser meramente formal, mas efetiva266. Por esta razão, independente da análise prévia da disponibilidade de recursos pelo preso para financiar advogado particular, o Estado deve fornecer assistência jurídica gratuita para quem dela necessitar, o que a torna possível para todo presidiário. É importante observar que, no que tange a assistência à saúde, este direito engloba não somente tratamentos curativos, mas também preventivos, considerando que este preceito é um dos principais objetivos do Sistema Único de Saúde (SUS), que abrange também a população penitenciária267. Após a edição da Portaria Interministerial nº 1.777, de autoria dos Ministérios da Justiça e da Saúde, através do qual foi instituído o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP), não há mais espaço para questionamentos acerca da abrangência do 264 Ou melhor dizendo, recompensação ou ressarcimento. 265 Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento dos presos, após atualização em 2015. 266 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Execução Penal no Sistema Penitenciário Federal. Natal: Owl, 2020. 400p. 267 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Execução Penal no Sistema Penitenciário Federal. Natal: Owl, 2020. 400p. 84 SUS no sistema carcerário. Pelo PNSSP, todos os estabelecimentos penais devem constar no Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde. Sendo assim, esse direito assistencial à saúde do preso deve ser encarado da maneira mais ampla, de acordo com as necessidades que o corpo e a mente demandarem. É dizer que estão compreendidos os atendimentos médico, farmacêutico, psiquiátrico, psicológico, odontológico, social, de enfermagem, e ainda, de terapia ocupacional268. Todavia, nada obstante essa determinação, a maioria dos estabelecimentos prisionais não se reveste da forma legalmente adequada. O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) se encarregou de estabelecer, com as Diretrizes Básicas para Arquitetura Penal, por meio da Resolução nº 9, de 18 de novembro de 2011, os limites máximos de presos de acordo com a capacidade de cada espécie de estabelecimento penal269. Nesse sentido, deve-se ter em mente que estabelecimento prisional inclui qualquer unidade prisional, voltada ao abrigo, temporário ou definitivo, de presos, levando-se em conta todos os ambientes necessários para alocação em cada estágio de cumprimento da pena privativa de liberdade ou cumprimento de medida de segurança. Considerando a classificação da LEP dos estabelecimentos penais em penitenciária, sendo estes a colônia agrícola, industrial ou similar; casa de albergado e hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, o CNPCP fixou que ao menos dois por cento da capacidade bruta das penitenciárias deve comportar celas individuais270. Neste particular, é intrigante notar que a própria LEP, em consonância com o previsto no item 12, I, das Regras de Mandela, determina que todas as celas nas penitenciárias fossem individuais, e em contradição, o CNPCP admite271, sem maiores melindres, a não observância total dessa norma. Todavia, é patente o conhecimento de que grande parte das penitenciárias dos estados mal conseguem cumprir com o recomendado pelo CNPCP com uma pequena parcela de celas individuais, que dirá manter somente este tipo. Pelo modelo ideal adotado pelo legislador, a cela individual possuiria área mínima de 6 m², com uma estrutura que possibilitasse a correta circulação do ar, iluminação, além de temperaturas adequadas à sobrevivência humana272. Ao regulamentar o tema, o CNPCP atribuiu 268 Ibid. 269 Ibid. 270 Ibid. 271 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Execução Penal no Sistema Penitenciário Federal. Natal: Owl, 2020. 400 p. 272 Artigo 88, caput e parágrafo único da Lei de Execução Penal. 85 um mínimo de 13,85 m² para as celas coletivas, as quais deveriam observar um limite de seis presos cada. De maneira transitória, até cinco de maio de 2015, o CNPCP admitiu uma exceção para esse limite, estendendo a capacidade das celas coletivas para um máximo de oito pessoas. Ademais, possibilitou a acomodação de dois apenados em cela de no mínimo 7 m²; três apenados em uma estrutura de no mínimo 7,70 m²; quatro internos em um mínimo de 8,40 m², e cinco indivíduos em pelo menos 12,75 m²273. Nesse compasso, também foi objeto da Resolução nº 9 do CNPCP, a fixação do limite total de presos, de acordo com o estabelecimento penal. De maneira genérica, no que tange a cada estabelecimento penal, é possível notar que quanto maior a periculosidade e o risco de fuga envolvidos, menor é o limite de presos que a unidade deve suportar. Sendo assim, nas penitenciárias de segurança máxima, deve-se observar o número máximo de trezentos internos. Em se tratando de penitenciárias de segurança média, esse número sobe para oitocentos presos permitidos. Destaque-se que para cada módulo de celas, também conhecido por pavilhão, devem abrigar até duzentas pessoas. Entretanto, nada impede a construção aglomerada de diversos módulos em um único complexo arquitetônico, o que, apesar de permitido, não é o recomendável274. Além disso, o CNPCP fez constar que nas colônias agrícolas, industriais ou similares, para o cumprimento da pena em regime semiaberto, devem comportar até mil condenados. Neste caso, é importante observar, na prática, se essa espécie de estabelecimento penal cumpre com a função essencial que o distingue dos demais, que é a busca por uma maior reinserção social do preso, que se dá, dentre outras maneiras, pela viabilização do trabalho agrícola, industrial ou similar275. Para as casas de albergado, destinadas às penas privativas de liberdade em regime aberto e para penas restritivas de direitos na modalidade limitação de fim de semana, o máximo comportado pela estrutura deve corresponder a cento e vinte condenados. Já a cadeia pública, destinada aos presos provisórios, se assim existisse, deveria abrigar até oitocentos detentos276. Todavia, apesar da exigência de pelo menos uma cadeia pública em cada comarca, não é raro se deparar com presos provisórios em ambientes inadequados, como em delegacias de polícia. 273 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Execução Penal no Sistema Penitenciário Federal. Natal: Owl, 2020. 400 p. 274 Ibid. 275 Vide RE 641.320/RS, que determinou a impossibilidade de sujeição de apenado em regime mais gravoso, nada obstante a ausência de vagas em estabelecimento adequado. 276 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Execução Penal no Sistema Penitenciário Federal. Natal: Owl, 2020. 400p. 86 No caso dos presídios federais, que são de segurança máxima, comportando tanto presos com condenação transitada em julgado, como também presos provisórios, a Lei nº 11.671/2008 estipulou que a lotação máxima não fosse ultrapassada, e esse valor foi fixado de duzentos e oito custodiados, pelo Decreto nº 6.049/2007277. Sendo assim, é perceptível que, a partir do momento em que o Estado possui a obrigação de resguardar certos direitos ao apenado que se encontra preso sob sua guarda e vigilância, o eventual descumprimento dessa obrigação é fato gerador de responsabilidade civil. É dizer que, em sendo sujeito de direitos, o Estado não se isenta da possibilidade de promover danos a outrem, na esfera civil. A conclusão não poderia ser outra, considerando que a Constituição de 1988 firmou um Estado Democrático de Direito e a interpretação da responsabilidade civil do Estado passou a ser um axioma278, tendo em vista o elevado grau de importância atribuído aos direitos fundamentais – dentre os quais, a justa reparação pelo dano provocado por terceiro279. Tendo a Constituição se dedicado ao assunto em seu artigo 37, §6º, predomina-se a relevância dessa premissa, à vista da superioridade hierárquica das normas constitucionais. Dessa forma, em sendo pressuposto do Estado de Direito a necessidade de um sistema de checks and balances280 entre os Poderes281, é perfeitamente factível o controle jurisdicional do Poder Estatal, notadamente, no tocante à seara da responsabilidade civil. Nesse sentido, quando a Corte Constitucional se depara com situações envolvendo uma comunidade restrita, como no caso da população carcerária, diz-se que ela assume um papel contramajoritário, essencial e inerente à própria Democracia. Já que todos os brasileiros são acobertados pelo manto protetivo da Constituição, seria injusto que a alguns lhes fosse negado o direito, em prejuízo de outros. Por esta razão, o papel contramajoritário do Supremo Tribunal Federal se pronuncia quando este deixa claro que se preocupa não somente com os direitos da maioria, mas também, e principalmente, com a parcela minoritária da população e com os grupos vulneráveis282. É esse o ponto fulcral que distingue o Estado Democrático de Direito do Estado de Direito meramente formal. Se embasar em uma concepção formal de Estado de Direito já se 277 Ibid. 278 GUIMARÃES, Mário. Estudos de Direito Civil. São Paulo, Martins, 1947, p. 219. 279 Art. 5º, inciso V, da Constituição Federal. 280 Freios e contrapesos. 281 VASCONCELOS, Pedro Carlos Barbosa de. Teoria geral do controlo jurídico do poder público. Lisboa: Edições Cosmos, 1996. 282 MORAES, Alexandre de. Legitimidade da justiça constitucional. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 40, n. 159, p.47-59, jul. 2003. Disponível em: . Acesso em: 16 maio 2018. 87 mostrou incompleta, tendo em vista que esse modelo deu azo ao acometimento de atrocidades pelo regime fascista e nazista, por acreditar na completa separação entre direito e moral, sob o único viés do Estado Ético de Hegel283. Neste paradigma mais completo, a Constituição da República estende proteção para além da legalidade (art. 5º, inciso II, CRFB/88), da divisão dos poderes (art. 2º, CRFB/88), do enunciado e garantias de direitos individuais (art. 5º, CRFB/88). Busca-se um ideal maior de equidade, através da concretização da igualdade material284. Curioso notar que antes mesmo de a legislação trazer de maneira expressa esse resguardo aos direitos dos administrados em face do Estado, Amaro Cavalcanti aduz que já era entendimento frequente que o sistema jurídico brasileiro deveria conferir responsabilidade à Administração, em decorrência do cometimento de atos lesivos aos seus administrados, em oposição à sua irresponsabilidade285. Não há como tratar da responsabilidade civil do Estado em face do particular sem contar com a eficácia horizontal, bem como vertical, dos direitos fundamentais, decorrente da interpretação constitucional. Com foco nesta última, a eficácia vertical dos direitos fundamentais amolda-se como substrato para a salvaguarda do particular em face do Estado. Dessa forma, o Estado enquanto instituição garantidora dos direitos de cada indivíduo, o faz por meio de duas vertentes: uma quando se abstém de vulnerar o direito privado, e outra na oportunidade que deve fazê-lo ser respeitado pelos demais particulares286. Assim sendo, essa eficácia vertical é mais um balizador do Estado para concretização da busca pela máxima efetividade dos direitos fundamentais, dentre os quais se insere a dignidade da pessoa humana – chave da discussão em torno do estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro. Esse dever de guarda e proteção da dignidade do apenado, inclusive da disposição de um ambiente ressocializador, se enquadra no segundo grupo de direitos fundamentais287 que, apesar de genuinamente incorporados na Constituição, são os que mais se constatam uma 283 SISNANDO, Alessandra Uchôa. O conceito de Estado Ético e o problema do pensamento utópico na Filosofia Política de Hegel. 2015. 182 f. Tese (Doutorado em Filosofia)- Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2015. 284 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 31. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2015. 285 CAVALCANTI, Amaro. Responsabilidade Civil do Estado. Nova edição atualizada por José de Aguiar Dias, t. II. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1957, p. 617. 286 COSTA JÚNIOR, Ademir de Oliveria. A eficácia horizontal e vertical dos Direitos Fundamentais. Disponível em: . Acesso em: 11 jun. 2019. 287 MARTINS, Leonardo; DIMOULIS, Dimitri. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2014. 88 violação reiterada, notadamente, por uma falha na sua concretização, em virtude da omissão do Estado. Levando-se em conta esse fato, com vistas a fazer valer esses direitos fundamentais, o que se constata na prática é um crescimento do número de processos nos tribunais, pugnando por uma tutela jurisdicional que venha a concretizar aquele direito prestacional, gerando uma multiplicação de decisões estruturantes, muitas até mesmo conflitantes entre si. Ocorre que, não raro, a prestação jurisdicional não se mostra adequada, ou até mesmo – quando o juiz opta por um posicionamento mais ativista – ineficaz, diante da extensão do dano. Nesses casos, é mais oportuno o deferimento da recomposição dos danos. Da dicção do art. 37, § 6, nota-se que as condutas praticadas pelos agentes públicos, no sentido mais amplo do termo, deverão ser imputadas à pessoa jurídica da qual faça parte. É dizer que o Estado responde pelos atos praticados pelos seus agentes, que agem nessa qualidade288, incluindo aqueles que porventura venham a causar danos ao particular. Importante constatar que a vítima do dano provocado pelo Estado pode ser pessoa física, pessoa jurídica de direito privado, ou até mesmo pessoa jurídica de direito público289, nada obstante a maior parte das recorrências versem sobre o primeiro caso. Dito isso, extrai-se que a eficácia vertical dos direitos fundamentais fulmina qualquer óbice que negue a responsabilidade pela violação dos direitos do particular por ato ilegal estatal, como por exemplo, acontece com o preso que é submetido à cela superlotada. Além disso, é pertinente observar que o legislador constituinte, ao atribuir ao Estado a responsabilidade pelos atos praticados pela pessoa física de seus agentes, no exercício regular da função administrativa, adotou a teoria do órgão público290. Inclui-se no rol das funções administrativas todas as ações realizadas em nome e no âmbito do Poder Público, com exceção dos danos provocados pelo agente a outrem por motivação unicamente pessoal291. A aplicação da teoria do órgão se revela como uma verdadeira dupla garantia, tanto ao administrado, outrora lesado, como para o agente do Estado. Posta assim a questão, sob a ótica do particular, a adoção dessa teoria facilita o sucesso da pretensão do ressarcimento pelo dano ocasionado pelo agente estatal. Isso porque, considerando que a Administração irá ser 288 No exercício da função administrativa. 289 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito Das Obrigações e Responsabilidade Civil. 12. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2017. 290 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito Administrativo. 30. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2017, p. 559. 291 Idem, p. 563. 89 demandada, presume-se que ela possui melhores condições de adimplir com o arbitrado ao fim do processo, além de ser mais facilmente qualificada. O outro aspecto da garantia dessa teoria se mostra vantajoso para o próprio agente público que cometeu diretamente a conduta lesiva, no cumprimento da função pública. Isso atribui maior proteção para o regular desenvolvimento do papel assumido pelo servidor público, que não responderá diretamente pelo dano provocado pelo Estado. Não podendo se olvidar, todavia, que esse agente poderá ser demandado, posteriormente, em eventual ação de regresso, na qual deverá responder pelos atos praticados somente por culpa ou dolo292. É dizer que a responsabilidade, neste caso, deixa de ser objetiva para se tornar subjetiva. Sendo assim, é imperioso reconhecer que essa teoria se mostra coerente, tendo em vista que o Estado, enquanto pessoa jurídica, é incapaz de agir diretamente no exercício de suas atividades. Dessa forma, ele se vale da figura do servidor público como intermediário, o qual não age pelos seus próprios desígnios, mas sim na consecução dos interesses daquele a que representa: a Administração Pública293. Por essa linha intelectiva, ao considerar que o órgão é uma divisão de pessoas que compõe o Estado, quando os agentes desempenham suas funções, pode-se dizer que eles estariam exercendo as atividades da própria pessoa jurídica pública294 a qual ele possua um vínculo, consubstanciando uma relação simbiótica una. Dito isto, a credibilidade dessa teoria é fomentada pelo princípio da imputação da impessoalidade e pelo princípio da imputação volitiva295, sendo possível, a partir da sua aplicação, inclusive, resolver os desafios enfrentados no tocante à validade do ato administrativo, quando praticado por pessoa que tão somente ostenta ser agente público, apesar de, na realidade, não ter sido legalmente investido no cargo ou função. Nesse contexto, cabe inclusive fazer referência à teoria da aparência, pela qual basta a aparência que determinado indivíduo ostenta qualidade de agente público para que o ato administrativo por ele praticado seja imputado ao Estado e igualmente válido. Isso decorre do princípio da boa-fé, in casu, do administrado. Dessa forma, pela aplicabilidade dessa teoria no ordenamento jurídico brasileiro, cabe à Administração fazer cessar qualquer uso ilegal de símbolos que simulem a condição de agente 292 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 33ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. 293 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 12. ed. São Paulo: Revista dos tribunais, 2016. p. 285. 294 Ibid. p. 287. 295JURÍDICO, Fundamento. Teoria do órgão. Disponível em: . Acesso em: 02 jun. 2018. 90 público296, com vistas a resguardar os princípios da boa-fé, da segurança jurídica, bem como da presunção de legalidade, legitimidade e veracidade dos atos administrativos297. Nesse diapasão, é mister fazer uma breve ressalva para esclarecer que a responsabilidade civil que aqui exploramos no âmbito da violação dos direitos dos apenados se distingue da obrigação que o Estado tem de indenizar o particular, quando a ordem jurídica o permite. Neste último caso, pode-se citar como exemplo a desapropriação, ocasião em que o dever de indenizar emerge do sacrifício individual em prol da sociedade, com fulcro no princípio da supremacia do interesse público298. A outro giro, se encontra a responsabilidade civil do Estado ora analisada. Esta consiste no direito ao ressarcimento que, ao contrário da indenização pela desapropriação, ocorre mais que um debilitamento do direito, mas sim uma comprovada violação299 do direito do administrado. Esse descumprimento provoca dano como consequência mediata da conduta estatal300, e por conseguinte, enseja compensação. Essa compensação pode ser arbitrada, e se dará por meio do pagamento de quantia certa em dinheiro, através de indenização por perdas e danos, que é a solução mais comum. Também é possível que esse ressarcimento ocorra de outra forma que não a monetária. A depender das peculiaridades do caso concreto, é admissível ao juiz cominar obrigações de fazer a serem cumpridas pelo Estado como maneira de atenuar o dano. Para uma melhor compreensão do que consistiria essa condenação em obrigação de fazer, ao invés do ressarcimento em dinheiro, é viável considerar, a título figurativo, a situação de um sujeito “X” na qual lhe foi imputado, falsamente e indevidamente, a prática de um ato ilícito. Em decorrência dessa conduta, o sujeito “X” sofreu dano moral. Nesse caso, pode o juiz considerar que seria mais condizente para compensar este dano que houvesse nova publicação de notícia na imprensa, a cargo dos cofres públicos, informando da inocência do sujeito, ao invés de um ressarcimento em dinheiro301. 296 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito Administrativo. 30. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2017, p. 559. 297 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 42ª ed. Atualizada e Revisada por José Emmanuel Burle Filho e Carla Rosado Burle. São Paulo: Malheiros, 2016. 298 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Ato Administrativo e Direitos dos Administrados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981. 299 ALESSI, Renato. Principi di Diritto Amministrativo – I soggetti Attivi e L’esplicazione della Funzione Amministrativa. Vol. I, 4ª ed., Milano: Giuffrè, 1978. P.128. 300 CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado. 2. ed. ampl., rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 10. 301 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 12. ed. São Paulo: Revista dos tribunais, 2016, p. 1730. 91 Tal conduta se mostra bastante plausível, e é factível a discussão dessa espécie de ressarcimento, inclusive no que concerne à responsabilidade civil do Estado pela submissão de apenado à condição de vida degradante, notadamente quando proposta a ação, ainda não houver sido extinto o cumprimento da pena302. Assim sendo, estando o administrado em posição de vulnerabilidade face ao Estado, a maneira que essa responsabilização ocorre se mostra peculiar, com um regime normativo próprio, diferente do que ocorreria em uma lide horizontal, composta por particulares. Com vistas a um delineamento sistematizado do assunto, é imprescindível rememorar que em virtude de uma lesão sofrida, o administrado pode pleitear a condenação por danos patrimoniais ou materiais e em razão de danos extrapatrimoniais ou morais. Dessa forma, em se tratando de lesões na esfera patrimonial, deve o Estado indenizar, em dinheiro, o particular por danos emergentes, se dessa conduta o indivíduo perdeu algo, bem como pelos lucros cessantes, por aquilo que se deixou de ganhar303. Ademais, se o ato atribuído ao Estado foi capaz de promover um sofrimento ou constrangimento no aspecto moral, psíquico ou intelectual da vítima, é pertinente a concessão de indenização304, com o intuito de reduzir aquele abalo, decorrente de ilícito. Aqui, a solução pode ser dada em pecúnia ou não. Tem-se o ideal de que a reparação de um dano deve ser capaz de restabelecer o status quo ante, de modo a volver as coisas a seu estado de origem. Entretanto, na maioria das vezes, não é possível concretizar plenamente essa premissa, considerando que, não raro, as consequências provenientes do dano são irreversíveis305. Nessas situações, quando não há outra alternativa – como uma obrigação de fazer – capaz de reconstituir o status quo ante, então, a indenização monetária se sobrepõe. O novo desafio se mostra na quantificação desse montante, que deverá ser calculado de acordo com as peculiaridades de cada situação. Muito embora não seja possível o restabelecimento da condição de origem, essa indenização tem o fim de amenizar as consequências da lesão do administrado, ao passo em que também exerce um caráter punitivo ao Estado. Deve-se considerar assim as consequências do dano para o lesado as condições da Administração, e também a repercussão do ato danoso no mundo fático, sem olvidar dos limites 302 Faz-se alusão, aqui, a sugestão proposta pelo Ministro Luís Roberto Barroso, no Recurso Extraordinário n° 580.252, através do qual propõe a remição da pena como compensação pelos danos sofridos pelo preso em cela superlotada. 303 GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo, FERNANDEZ, Tomas – Ramon, Curso de Derecho Administrativo, Madrid, Editorial Civitas, 1997. 304 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: responsabilidade civil. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2012. 305 Ibid. 92 da reserva do possível306 como parâmetro, não como salvaguarda da isenção da responsabilidade. Tendo consignado as multifacetas pelas quais o Estado pode indenizar a lesão provocada ao Administrado, resta trazer à baila como é entendida a responsabilidade da Administração quando demandada; notadamente, se é subjetiva ou objetiva. A adoção da teoria da responsabilidade objetiva do Estado remete à Constituição brasileira de 1946, que assim a previa em seu artigo 194, sendo essa concepção mantida pela Constituição da República de 1988. O artigo 37, § 6º, CRFB/88 assegura o direito à responsabilização das pessoas jurídicas de direito público e de direito privado prestadoras de serviços públicos em razão dos danos que seus agentes causarem a terceiros, no exercício das suas funções, sendo ainda possível ação regressiva contra o responsável direto, nos casos de dolo ou culpa307. Por esta acepção, para haver a responsabilização do Estado pelo cometimento de ato danoso ao particular, não se faz necessária a comprovação de dolo ou culpa nessa conduta, sendo suficiente que o demandante demonstre a existência do ato do Estado, do dano e o nexo causal entre esses dois elementos. É excluída da análise então o elemento volitivo ou psíquico. Só há que se falar em dolo ou culpa se o Estado intentar ação regressiva contra o agente em relação jurídica diversa308, isso porque, como regra, o Estado responde objetivamente quando se trata de conduta comissiva. As divergências surgem quando se está diante de um ato omissivo que cause danos ao particular. Para alguns seria o caso de aplicar a responsabilidade subjetiva, enquanto para outros, a depender das circunstâncias concretas, não haveria razão para deixar de empregar a teoria da responsabilidade objetiva. Segundo a teoria da culpa anônima do Estado ou faute du service309, as condutas omissivas da Administração que viessem provocar lesão a outrem deveriam se submeter ao regime da responsabilidade subjetiva310. Nessa situação, por esta linha de raciocínio, diante da omissão, a responsabilidade do Estado emerge de maneira genérica, diante da falta do serviço, de modo que haveria tão logo a necessidade de comprovação de dolo ou culpa, além dos demais requisitos. A culpa poderia se revelar como negligência, imprudência ou imperícia. 306 Ibid. 307 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 308 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito Das Obrigações e Responsabilidade Civil. 12. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2017. 309 Teoria da falta do serviço. 310 CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado. 2. ed. ampl., rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 34. 93 Data vênia, esse entendimento não se mostra razoável quando se está diante das diversas variações fáticas, onde, a depender, não haveria necessidade de se demonstrar dolo, tampouco a culpa. Sendo assim, pela interpretação constitucional e consoante doutrina dominante, prevalece que o Estado responde objetivamente não só pelos atos comissivos, mas também, inclusive, pelos atos omissivos que provocarem danos ao administrado, quando aquele se coloca na situação de garante. É dizer que a partir do instante que a Administração atrai para si o dever de guarda e proteção do particular, se ela fracassa nessa obrigação, abre-se margem para a responsabilidade objetiva, já que houve infração ao dever de boa administração311. Aqui se enquadra a situação abordada pelo presente estudo. Se o Estado se compromete em manter o apenado sob sua custódia e velar pelos seus direitos fundamentais, quando há a violação desse dever, ele deve ser responsabilizado pelo simples fato de ter rompido com sua obrigação, e ter com isso promovido lesões ao custodiado, sem haver que se falar em dolo ou culpa. Nesse sentido, importante considerar o entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto. A Corte Constitucional vem aplicando a teoria do risco administrativo nas hipóteses de omissão específica312. Ou seja, cabendo ao Estado prestar um dever específico, com uma atuação previamente determinada, se ele se omitir, surge então uma situação propícia a ocorrência do dano, havendo reponsabilidade objetiva. Além dessas situações, o Superior Tribunal de Justiça, em decisão recente proferida em 09 de junho de 2020, consignou o entendimento de que é possível a aplicação do art. 927, parágrafo único, do Diploma Civilista nos casos que versem sobre responsabilidade civil do Estado. Com esse julgado, não há mais celeuma para reconhecer que a responsabilidade civil do Estado em decorrência de atividade naturalmente perigosa, sendo então objetiva, independentemente de a análise da conduta do agente ter sido comissiva ou omissiva313. Por essa linha intelectiva, diz-se que o sistema normativo brasileiro adota e os tribunais pátrios devem seguir a teoria do risco administrativo, que tem teve suas raízes doutrinárias 311 Sob esse prisma, cabe apontar o pensamento inovador de Juarez Freitas no âmbito do direito brasileiro, ao destacar a existência de um direito fundamental à boa administração pública, o que importa amplos desdobramentos. Cf. a obra Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa Administração Pública, do referido autor. Sobre o tema, confira-se também RODRÍGUEZ-ARANA. El derecho fundamental a la buena administración em la Constitución española y em la Unión Europea. A&C - Revista de Direito Administrativo & Constitucional, n.40, p.117-149, abr./jun.2010. 312 Vide decisão do Recurso Extraordinário com Agravo 1.024.109 Minas Gerais, de Relatoria do Ministro Celso de Mello. 313 O art. 927, parágrafo único, do Código Civil pode ser aplicado para a responsabilidade civil do Estado: Aplica- se igualmente ao estado o que previsto no art. 927, parágrafo único, do Código Civil, relativo à responsabilidade civil objetiva por atividade naturalmente perigosa, irrelevante o fato de a conduta ser comissiva ou omissiva. STJ. 2ª Turma. REsp 1.869.046-SP, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 09/06/2020 (Info 674). 94 fincadas no Brasil por Amaro Cavalcanti314. Dessa maneira, por essa teoria, existem situações que demandam a mitigação da responsabilidade objetiva. É o caso, por exemplo, da culpa exclusiva ou concorrente da vítima. Com a primeira, a responsabilidade do Estado pode ser totalmente ilidida. Com a segunda, há uma diminuição da responsabilidade, e consequentemente, reduz-se o quantum indenizatório315. Dessa forma, apesar de por essa teoria haver a expansão da possibilidade de responsabilização objetiva por condutas omissivas imputadas à Administração, enquanto garante, admite-se, de igual modo, que se existir algum fator externo, seja ele concorrente ou exclusivo da vítima, de terceiro, ou até mesmo da própria natureza, pode ocorrer uma relativização da responsabilidade objetiva do Estado. Isso é possível, considerando que haveria uma ruptura do nexo causal apta a afastar a responsabilidade ou reduzi-la. Posta assim a questão, é imperioso notar que, em regra, adota-se a teoria do risco administrativo em detrimento da teoria do risco integral. Por esta última, a responsabilidade do Estado seria integral, não comportando quaisquer excludentes capazes de reduzir ou ilidir a responsabilidade estatal316. Essa teoria é admitida em situações restritas pelo ordenamento brasileiro, como por exemplo, no âmbito do Direito Ambiental e nos casos de acidente nuclear. Nessas situações, além de a Administração ser responsabilizada objetivamente, sem espaço para discussão de excludentes, também não há possibilidade de intentar, posteriormente, eventual ação regressiva em desfavor do agente público que cometer, a priori, o ato317. Por tudo isso, fica superada a tradicional ideia de que só caberia responsabilização do Estado por atos comissivos ou que a indenização estaria restrita às situações de licitude, por se inadmitir a hipótese de a Administração atuar de maneira ilícita. Pelas razões supracitadas, já restou firmado que há sim ato ilícito proveniente tanto de conduta comissiva como omissiva por parte do Estado, e o Direito existe para acompanhar essa realidade318. Dito dessa forma, se faz mister compreender melhor acerca da teoria que prevalece, qual seja, a teoria do risco criado. Já se sabe que ela admite a possibilidade de excludentes da responsabilidade objetiva. Entretanto, mais que isso, a teoria do risco administrativo entende 314 CAVALCANTI, Amaro. Responsabilidade Civil do Estado. Nova edição atualizada por José de Aguiar Dias, t. II. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1957. 315 Ibid. 316 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito Das Obrigações e Responsabilidade Civil. 12. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2017. 317 Ibid. 318 CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado. 2. ed. ampl., rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 46. 95 pela responsabilidade objetiva do Estado, sem necessidade de se auferir a sua culpa anônima, tampouco a sua falta do serviço319 que enseja o dano. Pode-se dizer, então, que há uma assunção pelo Estado da responsabilidade decorrente do risco por ele criado para desenvolver as atividades públicas. Em outras palavras, se o Estado comete ato danoso ou injusto a um administrado, e a imposição desse ônus não é suportada pelos demais – ou seja, não há uma absorção equânime pela sociedade do dano em prol da coletividade, mas uma enorme carga sobre única pessoa –, aquele que for lesado deve ser indenizado pela Administração. A base da fundamentação dessa teoria consiste em considerar o risco da Administração de lesar os particulares no decorrer do desenvolvimento das atividades normais ou anormais do Estado320. Dessa forma, a análise do supracitado dispositivo da Constituição da República não deixa dúvidas de que houve adoção da teoria do risco criado, devendo o Estado responder objetivamente pelas lesões provocadas a terceiros, estando-se diante de ato comissivo ou omissivo. Outrossim, essa linha de raciocínio atual se revela compatível com o caráter publicístico da responsabilidade civil estatal, de modo que ocorre uma despersonalização da culpa do Estado enquanto ente, imergindo para mais afundo. Essa condição é notável quando o Estado responde pelos atos danosos causados por seus agentes a outrem, no exercício da função administrativa321 – em virtude da teoria do órgão outrora explicitada. Desse modo, há uma absorção da pessoa física do agente público pela pessoa jurídica do Estado, quando este responde com seu patrimônio pelos atos diretamente ocasionados por aquele, no desenvolvimento de suas tarefas. Em última análise, pode-se afirmar que a teoria do risco criado tem fundamento no princípio da equidade e no princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais. Isto é, da mesma maneira que os benefícios promovidos pelo Estado devem ser desfrutados por todos os administrados, os prejuízos sofridos por apenas alguns deverão ser divididos322. Como resultado disso, a indenização arbitrada a quem se viu lesionado, com dinheiro proveniente do erário, serve como um caminho de a Administração restabelecer aquele equilíbrio, momentaneamente abalado. 319 Pressuposto essencial para a teoria da faute du service. 320 MEIRELLES, Hely Lopes et al. Direito administrativo brasileiro. 40. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2014. 321 CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado. 2. ed. ampl., rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 1995. 322 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 30. ed. Revista, atualizada e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2017. 96 Logo, a busca pelo ressarcimento do Estado por lesão provocada em razão de ato comissivo ou omissivo – quando se tratar de omissão específica – é instrumento idôneo ao restabelecimento do princípio da equidade que deve reger as relações sociais. É bastante, para tal, que seja comprovado o dano, o ato lesivo da Administração, e por fim, o nexo causal, sendo oportuno dizer que a noção de causalidade do ato administrativo substitui e transcende a da culpabilidade do agente323. Em se tratando do Recurso Extraordinário nº 580.252, oportunidade na qual pleiteou- se indenização por dano moral a preso submetido a condições degradantes, em razão do estado de coisas inconstitucional no âmbito do sistema penitenciário, é importante notar que cada parte pendeu para uma interpretação diferente acerca da responsabilidade do Estado diante de dano causado por sua conduta omissiva. No caso, houve omissão específica da Administração em ofertar condições dignas de vida aos apenados sob sua custódia. Dessa forma, para o recorrente, o artigo 37, § 6º da Constituição da República atribui tanto às condutas omissivas como às comissivas a responsabilização objetiva por parte do Estado, não havendo necessidade de na lide demonstrar dolo ou culpa da Administração para existir dever desta indenizar o preso que teve seu direito fundamental violado, em virtude de ato omissivo da União e dos Estados Federados. Em contraste, o recorrido argumentou que o legislador constituinte tão somente atribuiu responsabilidade objetiva da Administração no que tange os atos comissivos por ela praticados. Seria, portanto, descabida qualquer linha que levasse a cabo a responsabilidade do Estado de maneira objetiva no Recurso Extraordinário em análise, tendo em vista se tratar de conduta omissiva, havendo que, antes de mais nada, se provar o dolo ou ao menos a culpa do ente estatal. Para esta última, haveria que se demonstrar, in casu, a negligência da Administração em não prestar aqueles direitos, o que o recorrido justificou não ter restado comprovado. Enfim, o Supremo Tribunal Federal optou pelo acolhimento da linha argumentativa delineada pelo recorrente, decidindo pela responsabilidade objetiva do Estado, tal qual dispõe o art. 37, §6º, da Constituição da República, para as condutas ditas comissivas e também as condutas omissivas. Sendo assim, estando presentes o dano, a conduta omissiva estatal e o nexo causal entre ambos, deve o Estado indenizar, à título de danos morais, o preso que esteve sob custódia em condições degradantes de encarceramento, notadamente em cela superlotada, em razão da omissão quando havia o dever específico de cuidado, intrínseco à figura de garante. 323 MONTEIRO, Washington de Barros; MALUF, Carlos Alberto Dabus. Curso de direito civil. 44. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. 97 4.2 A APLICAÇÃO DA TEORIA DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL É imprescindível notar que a relevância temática da novel teoria do estado de coisas inconstitucional tem como um dos principais motivos o fato de no Brasil a discussão já ter transbordado o âmbito doutrinário. Em outras palavras, esse acúmulo de ideias já atingiu a realidade prática. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal já se deparou duas vezes com o enfrentamento dessa teoria, e em ambas as situações, percebe-se um ponto de interseção em comum: versam sobre situações no âmbito do sistema carcerário brasileiro. Levando isso em consideração, para uma real compreensão de como essa teoria tem sido incorporada pelos tribunais pátrios, se faz mister dissecar os posicionamentos adotados pela Corte Constitucional em casos de repercussão geral, notadamente, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347, bem como no Recurso Extraordinário n° 580.252. 4.2.1 As decisões liminares na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347 Como é sabido, o primeiro caso em que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência do estado de coisas inconstitucional no Brasil data de 2015. O enfrentamento do emprego dessa recente teoria se deu no bojo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347, protocolada em maio daquele ano. Através desta, o requerente, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), pleiteou a declaração desse estado de coisas inconstitucional, considerando as ilegalidades e atrocidades nas quais se submete o custodiado, no que tange ao sistema penitenciário brasileiro324. Essa atuação da Corte Constitucional se revela como uma tendência ativista, já que se trata de decisão que envolve, notadamente, a realização de políticas públicas e direitos prestacionais, função proeminente executiva. Por esta razão, se faz necessária a análise dos fundamentos que embasaram esse posicionamento, ainda que precário e liminar, do Supremo Tribunal Federal na ADPF nº 347. 324 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Voto do Relator. ADPF n.º 347. Rel. Min. Marco Aurélio, Brasília, 2015. Disponível em: . Acesso em: 02 jun. 2019. 98 Seguindo adiante nessa tarefa, é importante notar que, tendo em vista os argumentos apontados na inicial, era de intento do requerente que o STF se valesse da declaração do estado de coisas contrário à Constituição para que, tão logo, fosse possível a sua inclusão na tarefa de concretizar os direitos fundamentais325. Melhor dizendo, a finalidade consiste em dar efetividade aos direitos constitucionais dos presos pelos quais, em um momento anterior, o Estado não obteve êxito na sua concretização, nada obstante o mandamento constitucional assim ordenar. Dessa forma, dentre os pedidos, pleiteou-se que tanto a União como todos os Estados- membros fossem impelidos a instituir providências no sistema prisional, de modo que cessasse a constante violação dos direitos dos apenados326. Com isso, pretendia-se que o Judiciário se imiscuísse na função típica executiva de prover esses direitos327, como única saída para que não houvesse maiores danos. Como resultado, em sede liminar, em nove de setembro de 2015, O STF concedeu, parcialmente, a cautelar. Desse modo, foram deferidas duas dentre as oito medidas requeridas, quais sejam, os pedidos “b” e “h”. Assim demonstra o quadro sintético seguinte: QUADRO 1 - MEDIDAS CAUTELARES REQUERIDAS E MEDIDAS CAUTELARES 328 DEFERIDAS MEDIDAS CAUTELARES MEDIDAS CAUTELARES REQUERIDAS DEFERIDAS A) AOS JUÍZES E TRIBUNAIS – MOTIVAÇÃO B) AOS JUÍZES E TRIBUNAIS – QUE EXPRESSA PELA NÃO APLICAÇÃO REALIZEM, EM ATÉ 90 DIAS, DE MEDIDAS CAUTELARES AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA. ALTERNATIVAS À PRIVAÇÃO DE LIBERDADE. B) QUE REALIZEM, EM H) À UNIÃO – QUE LIBERE AS ATÉ 90 DIAS, AUDIÊNCIAS DE VERBAS DO FUNDO PENITENCIÁRIO CUSTÓDIA. NACIONAL. 325 CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconstitucional. Bahia: Editora Juspodivm, 2016. 326 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Voto do Relator. ADPF n.º 347. Rel. Min. Marco Aurélio, Brasília, 2015. Disponível em: . Acesso em: 02 jun. 2019. 327 STRECK, Lenio Luiz. Estado de Coisas Inconstitucional é uma nova forma de ativismo. Disponível em: . Acesso em: 16 maio 2018. 328 MAGALHAES, Breno Baía. O Estado de Coisas Inconstitucional na ADPF 347 e a sedução do Direito: o impacto da medida cautelar e a resposta dos poderes políticos. Rev. direito GV, São Paulo , v. 15, n. 2, e1916, 2019 . Available from . access on 29 Sept. 2020. Epub July 15, 2019. https://doi.org/10.1590/2317-6172201916. 99 MEDIDAS CAUTELARES MEDIDAS CAUTELARES REQUERIDAS DEFERIDAS C) QUE CONSIDEREM O C) CAUTELAR EX OFFICIO – QUADRO DRAMÁTICO DO DETERMINE À UNIÃO E AOS ESTADOS, E SISTEMA PENITENCIÁRIO NO ESPECIFICAMENTE AO ESTADO DE SÃO MOMENTO DE MEDIDAS PAULO, QUE ENCAMINHEM AO SUPREMO CAUTELARES PENAIS, NA TRIBUNAL FEDERAL INFORMAÇÕES APLICAÇÃO DA PENA E DURANTE SOBRE A SITUAÇÃO PRISIONAL. A EXECUÇÃO PENAL. D) QUE ESTABELEÇAM, QUANDO POSSÍVEL, PENAS ALTERNATIVAS À PRISÃO. E) QUE ABRANDEM OS REQUISITOS TEMPORAIS PARA A FRUIÇÃO DE BENEFÍCIOS DOS PRESOS, QUANDO AS CONDIÇÕES DE CUMPRIMENTO DA PENA FOREM SEVERAS. F) AO JUIZ DA EXECUÇÃO PENAL – QUE ABATA, DA PENA, O TEMPO DE PRISÃO, SE AS CONDIÇÕES DE CUMPRIMENTO FOREM MAIS SEVERAS DAQUELAS INICIALMENTE FIXADAS. G) AO CNJ – QUE COORDENE MUTIRÃO CARCERÁRIO. H) À UNIÃO – QUE LIBERE AS VERBAS DO FUNDO PENITENCIÁRIO NACIONAL. Assim sendo, em razão do deferimento do pedido “b”, a Corte Constitucional determinou que os juízes e tribunais passassem a implementar o procedimento, em até noventa dias, da realização de audiências de custódia em todo o país, em consonância com os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos, e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Por tal procedimento, entende-se que deveria ser ofertado àquele que teve sua liberdade cerceada, no prazo máximo de até vinte e quatro horas após a prisão, o seu comparecimento perante a autoridade judiciária competente, para que esta então decidisse acerca da viabilidade ou não da manutenção da prisão329. No que tange ao pedido “h” ora concedido, o STF determinou a liberação por parte da União das verbas atinentes ao saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN), sem qualquer ressalva ou limitação, havendo proibição para realização de novos contingenciamentos. Com isso, o Fundo cumpriria o desígnio para qual foi constituído, qual 329 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Audiência de Custódia. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario/audiencia-de-custodia/. Acesso em: 01 out. 2020. 100 seja o fim específico de proporcionar os meios e recursos necessários para custear as atividades e os programas no âmbito do sistema penitenciário brasileiro, com vistas a sua modernização e aprimoramento330. A importância dessa decisão expande seus efeitos benéficos para o futuro. É dizer que, com essa visibilidade para a correta destinação do FUNPEN, no ano seguinte à concessão da liminar na ADPF nº 347, foi firmado acordo de cooperação com o Ministério da Justiça, que incluiu várias entidades – tais quais a Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais e a Associação Nacional dos Defensores Públicos – e previu a emissão pelo CNJ de notas técnicas relativamente a aplicação das verbas do Fundo. Com esse aval e diante da pandemia da Covid-19, o CNJ e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) emitiram nota técnica, em 28 de abril de 2020, cobrando a destinação dos recursos do FUNPEN na contenção do avanço do coronavírus no sistema penitenciário nacional331. Para a consecução desse fim, sugere-se o investimento em itens básicos de saúde, especialmente a compra de equipamentos de proteção individual, produtos de higiene pessoal e limpeza, além de ser necessária, mais que em situações normais, de alimentação adequada332. Além desses efeitos já constatados, a ADPF nº 347 trouxe inovações interpretativas na ordem jurídica. Isso porque, nada obstante inexistir decisão de mérito para a presente demanda, é notável que das alegações e sustentações orais, bem como do posicionamento demonstrado pelo STF, o plenário reconheceu que há uma constante e manifesta violação aos direitos constitucionais dos apenados, dando azo a adoção da teoria do estado de coisas inconstitucional. Dessa maneira, para que haja a reversão desse quadro, se faz urgente a tomada de providências por parte do Estado. Dito isto, para que seja possível uma mudança nesse cenário, não há outra alternativa que não uma tutela estrutural. E se esta tutela não surge por ato livre e espontâneo do Executivo, 330 BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Governo Federal. Fundo Penitenciário - FUNPEN. Disponível em: https://www.gov.br/depen/pt-br/assuntos/funpen. Acesso em: 01 out. 2020. 331 BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Governo Federal. Mutirão inicia avaliação dos processos dos presos do Amazonas: integrantes da defensoria sem fronteiras dão assistência jurídica aos internos. Objetivo é reduzir a população carcerária. Medida é fruto de acordo de cooperação técnica assinado no dia 31 de janeiro. Integrantes da Defensoria Sem Fronteiras dão assistência jurídica aos internos. Objetivo é reduzir a população carcerária. Medida é fruto de Acordo de Cooperação Técnica assinado no dia 31 de janeiro. Disponível em: https://www.justica.gov.br/news/mutirao-inicia-avaliacao-dos-processos-dos-presos-do-amazonas. Acesso em: 01 out. 2020. 332 JURÍDICO, Revista Consultor. CNJ e CNMP cobram uso correto do Funpen para conter epidemia em presídios. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-29/cnj-cnmp-cobram-uso-correto-funpen-conter- epidemia. Acesso em: 01 out. 2020. 101 caberia, portanto, recorrer ao Judiciário para que seja rememorado aos administradores esse dever de tutela. Esse método de abordagem se coaduna com os limites para o ativismo judicial. Outra maneira de entender o estado de coisas inconstitucional, mas que permitiria a discussão acerca da violação da separação dos Poderes, seria acreditar na possibilidade de o próprio juiz determinar a tutela estrutural e seu modo de execução. Apesar de essa ser a intenção do Demandante na ADPF nº 347, o que se constata é um cuidado da Corte Constitucional em proferir suas decisões, sem, contudo, incorrer no erro de extrapolar suas funções, para se imiscuir nas políticas de governo. No que tange a essa ação constitucional propriamente dita, temos um vislumbre de qual será a opção adotada pelo STF, que desde logo já se inclinou para o reconhecimento de um estado de coisas inconstitucional. Todavia, quando se estiver diante de uma análise mais acurada dos argumentos suscitados no caso, a experiência já demonstrou333 que é imprescindível o estabelecimento de um diálogo constante e ativo com o Executivo e com todas as entidades que porventura sejam afetadas com a decisão de mérito, de modo a legitimar esse posicionamento jurisdicional ativista. Entende-se assim, tendo em vista que a compreensão de ativismo judicial ora narrado se submete aos moldes legais e deve se coadunar com a realidade fática para então poder se tornar efetiva e eficaz. Ativismo judicial não pode ser entendido, à luz da Constituição da República, como passe livre para o Judiciário tomar uma medida que caberia ser escolhida pelos administradores do Executivo, por ser esta função deste último. Ao contrário disso, Judiciário ativista deve ser visto como operadores do Direito engajados na concretização e efetividade das suas decisões, e para tanto, deve ser enaltecida a responsabilidade dos gestores na concretização dos direitos reconhecidos. Posta assim a questão, desde já é cabível advertir que a declaração do estado de coisas inconstitucional não é meio idôneo para justificar a extrapolação dos deveres do juiz que a reconhece, como fundamento para tomada de decisões que interfiram na liberdade governamental. O uso desse novo viés argumentativo é válido para estender uma organização dada ao processo que culmine, então, com uma decisão jurisdicional que, apesar de não precisar ser previamente concordada pelo Executivo, ser viável a sua execução, sem exorbitar a separação dos poderes. A chave para o êxito, neste caso, é o estímulo ao diálogo institucional. A partir dessa interação, além de ter valor fundamental para a efetividade do resultado da tutela jurisdicional, é pertinente constatar a sua relevância para a legitimidade da decisão 333 Aqui se faz referência a experiência da Corte Constitucional colombiana. 102 face ao princípio da independência e da harmonia entre os poderes. Dessa maneira, se superaria qualquer relutância concernente a uma invasão ilegítima nas funções executivas334, notadamente na concretização de políticas públicas. Por este diálogo entre instituições estar-se- ia realizando o princípio da necessidade de freios e contrapesos entre o Poder Executivo e o Poder Judiciário, no caso, na figura da Corte Constitucional. Partindo dessa perspectiva, entende-se que a declaração do estado de coisas inconstitucional – enquanto tradução do ativismo judicial335 – ressalta seu mérito, se usada como uma dentre as diversas importantes ferramentas iniciais do sistema de freios e contrapesos, como também assim o é o veto e o impeachment. No veto, apesar de o Presidente da República não fazer parte de um processo legislativo, ele poderá demonstrar sua oposição, impedindo que uma lei entre em vigor através do veto. O impeachment consubstancia-se um verdadeiro controle legislativo da função típica executiva. De uma análise mais aprofundada, em especial quando se verifica o papel contramajoritário do Supremo Tribunal Federal, pode-se dizer, inclusive, que a declaração do estado de coisas inconstitucional também funciona como instrumento jurisdicional, com vistas a dar efetividade a Constituição no meio social, nos casos em que o Poder Público é omisso. Trata-se, então, de um modo de se ver efetivada a própria Constituição formal que, apesar de refletir a Constituição material enquanto vontade do povo, em diversas situações336 não é, de fato, aplicada por ausência de medidas do próprio Estado instituidor que possibilitem a realização plena por parte dos sujeitos de direito. Daí, surge a necessidade de um pronunciamento jurisdicional, como aconteceu na ADPF nº 347 e no RE nº 580.252. Mais recentemente, a discussão envolvendo a ADPF nº 347 ganhou mais um capítulo, em virtude da pandemia da Covid-19 (Coronavírus) e os desafios que ela trouxe. Em 16 de março de 2020, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD - Márcio Thomaz Bastos), na figura de amicus curiae na respectiva ação, pleiteou, em sede de pedido de liminar incidental, o deferimento de medidas voltadas a reduzir o risco de expansão do coronavírus na população carcerária337. 334 STRECK, Lenio Luiz. Estado de Coisas Inconstitucional é uma nova forma de ativismo. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2019. 335 Afasta-se, aqui, qualquer acepção pejorativa de ativismo judicial, ou seja, considera-se o ativismo legítimo e constitucional, não aquele que dá ensejo a invasão dos Poderes. 336 Como no caso da superlotação carcerária, culminando no estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro. 337 VALENTE, Fernanda. Entidades vão ao STF por medidas para evitar contágio da Covid-19 nos presídios. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-29/entidades-stf-medidas-evitar-crise-presidios. Acesso em: 05 out. 2020. 103 Pode-se destacar, dentre os pedidos338, a concessão de livramento condicional para pessoas acima de sessenta anos, cumprimento da pena em regime domiciliar para os grupos de risco, além de medidas alternativas e progressão do regime de cumprimento da pena para apenados que se enquadrassem em determinados requisitos, afora aqueles já previstos em lei. Na oportunidade, o IDDD rememorou que, apesar de a Lei nº 13.979/2020 – que trata das medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública, em razão da pandemia do coronavírus – ainda não dispor acerca das medidas suscitadas, era cabível a utilização de uma interpretação extensiva e/ou analógica, na busca pela realização dos valores constitucionais postos em risco em razão da doença339. Em 18 de março de 2020, o Ministro Relator Marco Aurélio conclamou os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais a levarem em consideração a adoção de medidas alternativas em vez de prisão provisória para os crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, além de concordar com as sugestões apresentadas pelo IDDD340. Todavia, quando submetido ao plenário, o STF referendou em parte a decisão liminar ora proferida pelo Relator. Referendou, tão somente, o não conhecimento da legitimidade do terceiro interessado, de modo que não referendou a matéria de fundo, constante na conclamação do Ministro Relator Marco Aurélio341. O plenário decidiu, por maioria, que a figura do amicus curiae não detém legitimidade ativa para pedir em arguição de descumprimento de preceito fundamental, como em sede de 338 Pediu-se o deferimento do: “livramento condicional a presos insertos no grupo risco, notadamente encarcerados idosos, assim considerados aqueles “com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos”, nos termos do art. 1º da Lei 10.741/2003; (ii) regime domiciliar aos presos soropositivos para HIV, portadores de tuberculose, câncer, doenças respiratórias, cardíacas, imunodepressoras, para diabéticos e portadores de outras doenças cuja reexistência indique suscetibilidade maior de agravamento do estado de saúde a partir do contágio pela COVID- 19; (iii) regime domiciliar às gestantes e lactantes em respeito do Estatuto da Primeira Infância (Lei 3.257/2016); (iv) regime domiciliar aos presos por crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, na esteira do que restou decidido por essa C. Suprema Corte no julgamento do habeas corpus n. 143.641; (v) substituições das prisões provisórias pelas medidas alternativas do art. 319 do Código de Processo Penal, especialmente a prisão domiciliar, a todos os custodiados igualmente em virtude de crimes sem violência ou grave ameaça; (vi) medidas alternativas à prisão para os novos custodiados em flagrante por crimes sem violência ou grave ameaça; (vii) adoção de todas as cautelas devidas no encarceramento que for efetivamente necessário, com segregação da população prisional por 14 dias, de acordo com as orientações do Ministério da Saúde; (viii) progressão da pena àqueles que já fazem jus ao benefício pelo critério temporal, mas unicamente aguardam exame criminológico; (ix) progressão antecipada da pena aos submetidos ao regime semiaberto. 339 Vide petição incidental nos autos da ADPF nº 347, também disponível no link: , acesso em 05 de out. de 2020. 340 VALENTE, Fernanda. Marco Aurélio manda juízos analisarem condicional a presos com mais de 60 anos. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-18/juizos-analisar-condicional-presos-60-anos. Acesso em: 05 out. 2020. 341 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Referendo e M Tutela Provisória Incidental na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347 Distrito Federal nº 347. Diário Oficial da União. Brasília. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15343623422&ext=.pdf. Acesso em: 05 out. 2020. 104 qualquer ação de controle abstrato de constitucionalidade, a concessão de medida cautelar342. Isso porque, apesar de nestas ações, a causa de pedir ser aberta, o pedido constante na inicial há de ser certo e determinado, motivo pelo qual não é possível um amicus curiae pretender ampliar o objeto da demanda343. É importante notar que no cerne dessa decisão liminar advinda do pleito do IDD, ficou assentado que o STF, desde a decisão de 2015, reconheceu, de fato, o estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário brasileiro. Não há mais dúvidas de que houve o reconhecimento deste fenômeno no âmbito prisional, pelo que foi reafirmado nesta oportunidade. Posteriormente, em 28 de março de 2020, o PSOL, as Defensorias Públicas do Rio de Janeiro e de São Paulo, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e a Associação Direitos Humanos em Rede – Conectas Direitos Humanos - pleitearam a determinação ao Executivo, aos juízes de execução penal e Tribunais de medidas semelhantes a outrora formuladas pelo IDDD. Notadamente, peticionou a concessão de prisão domiciliar para os apenados que fazem parte de grupos de risco ao coronavírus, tais como grávidas, idosos e portadores de comorbidades344. No que tange aos pedidos direcionados a prestações por parte dos gestores administrativos, destaca-se a busca pela determinação de que os entes da federação se abstenham de racionar água nas unidades prisionais, bem como que seja prestada assistência material integral às necessidades dos presos, com o fornecimento adequado de produtos de higiene, limpeza, vestuário e de equipamentos de proteção individual345. 342 Ilegitimidade do amicus curiae para pleitear medida cautelar O amicus curiae não tem legitimidade para propor ação direta; logo, também não possui legitimidade para pleitear medida cautelar. Assim, a entidade que foi admitida como amicus curiae em ADPF não tem legitimidade para, no curso do processo, formular pedido para a concessão de medida cautelar. STF. Plenário. ADPF 347 TPI-Ref/DF, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 18/3/2020 (Info 970). Relator não pode, de ofício, na ADPF que trata sobre o Estado de Coisas Inconstitucional dos presídios, determinar medidas para proteger os presos do Covid-19 A decisão do Ministro Relator que, de ofício, na ADPF que trata sobre o Estado de Coisas Inconstitucional no sistema prisional, determina medidas para proteger os presos do Covid19 amplia indevidamente o objeto da ação. É certo que no controle abstrato de constitucionalidade, a causa de pedir é aberta. No entanto, o pedido é específico. Nenhum dos pedidos da ADPF 347 está relacionado com as questões inerentes à prevenção do Covid-19 nos presídios. Não é possível, portanto, a ampliação do pedido cautelar já apreciado anteriormente. A Corte está limitada ao pedido. Aceitar a sua ampliação equivale a agir de ofício, sem observar a legitimidade constitucional para propositura da ação. [...]. STF. Plenário. ADPF 347 TPI-Ref/DF, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 18/3/2020 (Info 970). 343 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Referendo e M Tutela Provisória Incidental na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347 Distrito Federal nº 347. Diário Oficial da União. Brasília, . Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15343623422&ext=.pdf. Acesso em: 05 out. 2020. 344 Vide petição incidental nos autos da ADPF nº 347, também disponível no link: < https://www.conjur.com.br/dl/entidades-stf-domiciliar-presos-grupo.pdf >, acesso em 05 de out. de 2020. 345 Ibid. 105 Argumentou que todas essas medidas peticionadas incidentalmente seriam imprescindíveis, diante dos possíveis impactos causados com a transmissão da Covid-19, perigo que ainda é mais latente considerando a vulnerabilidade de exposição dos encarcerados. Foi ressaltado, inclusive, a conformidade dessas medidas com as orientações do Conselho Nacional de Justiça, expressas na Recomendação nº 62, de 17 de março de 2020, como também com as diretrizes constantes na Convenção Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, da Organização das Nações Unidas e nas Regras de Mandela346. Nada obstante os esforços engendrados pelos peticionantes, o Ministro Relator Marco Aurélio, seguindo entendimento já consignado pelo colegiado quando da apreciação da primeira medida cautelar incidental proposta pelo IDDD, negou seguimento ao pedido desta segunda medida cautelar incidental, que entendeu inadequada a determinação de providências de urgência quando por este meio estivesse ampliando o objeto de pretensão já formalizado na inicial347. 4.2.2 A declaração do estado de coisas inconstitucional na sentença condenatória do Estado no Recurso extraordinário nº 580.252 A segunda oportunidade em que o Supremo Tribunal Federal se pronunciou acerca do estado de coisas inconstitucional ocorreu nos autos do Recurso Extraordinário nº 580.252, protocolado em 05 de março de 2008. Apesar de este recurso ter sido protocolado antes da ADPF nº 347, a Corte só veio se pronunciar sobre a aplicação dessa teoria no caso concreto em 16 de fevereiro de 2017, quando do julgamento do mérito348. Conforme brevemente explanado anteriormente, o RE nº 580.252 tem como origem ação ajuizada por preso condenado a vinte anos de reclusão, em razão do crime de latrocínio (artigo 157, § 3, Código Penal). O cumprimento da sua pena ocorreu no município de Corumbá. Devidamente representado pela Defensoria Pública do Estado do Mato Grosso do Sul, o demandante requereu a condenação do estado do Mato Grosso do Sul em danos morais, considerando a sua responsabilidade por submeter o autor em regime fechado, sem, contudo, 346 Ibid. 347 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347 Distrito Federal nº 347. Diário Oficial da União. Brasília. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15342858943&ext=.pdf. Acesso em: 05 out. 2020. 348 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 580252. Acompanhamento Processual. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2600961. Acesso em: 11 out. 2020. 106 fornecer as condições e requisitos estruturais mínimos de sobrevivência, tendo, por conseguinte, violado flagrantemente a dignidade humana do custodiado349. O pedido autoral foi julgado improcedente pelo juízo ad quo. O autor recorreu da sentença, sendo esta reformada pelo juízo ad quem, por maioria, condenando o Estado ao pagamento de indenização de dois mil reais, equivalente a danos morais ao demandante. Sendo assim, é mister notar que o acórdão consignou a teoria da culpa administrativa, passando a admitir que a demonstração de conduta culposa ou dolosa do respectivo ente seria requisito para a estruturação da responsabilidade civil do Estado por ato omissivo350. Sendo assim, restou configurada, no caso, a comprovação do elemento volitivo por parte do Estado, tendo em vista que a análise fática demonstrou que mesmo após significativo lapso temporal da formalização de laudo de vigilância sanitária, não houve qualquer ação voltada a resolução do problema da superlotação carcerária e outros dela decorrentes por parte da Administração Pública. Deste modo, nota-se uma violação frontal à Convenção Interamericana de Direitos Humanos e à Lei de Execução Penal. Sendo assim, o tribunal ad quem entendeu pela existência de conduta omissiva culposa do Estado, para dar provimento ao recurso351. Embargos infringentes opostos, foram acolhidos para restaurar a sentença que julgou pela improcedência. Naquela oportunidade, o juiz concluiu que a omissão do estado, referente ao dever prestacional em promover condições dignas nas penitenciárias, e por conseguinte, condições dignas de vida ao apenado, in casu, não seria ilícita. Em resumo, pode-se dizer que o Tribunal privilegiou o argumento do estado da aplicação da reserva do possível. Foi reconhecido que é dever do Estado executar prestações positivas352 de modo a adequar o sistema prisional nos moldes legais exigidos. Entretanto, o Estado teria de se submeter à concordância legislativa, além de não extrapolar limites disponíveis do erário. Dessa forma, não haveria como ultrapassar esses limites, e quando o 349 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 580.252. Brasília. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2018. 350 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 580.252. Brasília. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2018. 351 BRASIL. Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul. Apelação Cível nº 3179. Relator: Desembargador Hamilton Carli. Mato Grosso do Sul, 19 de maio de 2006. 352 SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos sociais a prestações em tempos de crise. Espaço Jurídico Journal of Law [EJJL], [S.l.], v. 15, n. 2, p. 271-286, nov. 2014. ISSN 2179-7943. Disponível em: . Acesso em: 16 mai. 2018. 107 Estado não puder concretizar prestações positivas, se não transpondo essa baliza, não haveria que se falar em ilicitude da omissão do Estado353. Ademais, o Tribunal trouxe à lume que a demanda consistiria em uma solução para o problema estrutural dos presídios354, de modo que não seria adequado manter a indenização de dois mil reais ao autor pelos danos morais a ele perpetrados, apesar de se reconhecer que há uma violação aos direitos fundamentais daquele – como o direito à dignidade, intimidade, higidez física e integridade psíquica355. Isso porque, em decorrência do princípio da equidade, cada custodiado em semelhante situação deveria ter seu dano comprovado, igualmente indenizado. Com isso, culminaria em um demasiado comprometimento do erário, apesar de ter reconhecido a violação aos direitos fundamentais deste, como o direito à dignidade, intimidade, higidez física e integridade psíquica356. Já em sede de Recurso Extraordinário de nº 580.252, analisou-se o argumento autoral de que nada – descabido seria a tese da reserva do possível – muda o fato de o Estado ter descumprido seu dever constitucional e legal de proporcionar as mínimas condições de sobrevivência aos seus custodiados, mantendo nas penitenciárias um regime desumano e degradante357. O Estado não assegurava o mínimo existencial do recorrente. Ademais, não foi difícil fazer a Corte Constitucional reconhecer de que se estaria a discutir um problema que transpassa as fronteiras do Mato Grosso do Sul, sendo um desafio, ainda, para toda a nação, incluindo os vinte e seis Estados federados e o Distrito Federal. Além disso, o STF reconheceu que diante dos fatos, estaria configurada transgressão ao artigo 5º do Pacto de São José da Costa Rica, bem como aos artigos 5º, III, X, XLIX; e 37º, § 6º, da Constituição da República. Levando isso em consideração, o recorrente demonstrou a repercussão geral da matéria358. Nesse sentido, suscitou que não somente ele, mas também outros detentos da mesma 353 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 580.252. Brasília. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2018. 354 VELASCO, Clara et al. Superlotação aumenta e número de presos provisórios volta a crescer no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 11 jun. 2019. 355 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 580.252. Brasília. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2018. 356 Ibid. 357 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 580.252. Brasília. Disponível em: . Acesso em: 18 jun. 2019. 358 O Ministro Teori Zavascki – Relator – propôs a seguinte repercussão geral: Considerando que é dever do Estado, imposto pelo sistema normativo, manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento jurídico, é de sua responsabilidade, nos termos do art. 37, § 6º da Constituição, a obrigação de 108 penitenciária já foram ou ainda estão sendo submetidos a tratamento desumano e degradante. Pontuou, ademais, que tal fato havia sido reconhecido no acórdão recorrido. Posta assim a questão, reconhecida a repercussão geral, o caso do RE nº 580.252 seria analisado sob o tema de nº 365, qual seja a “Responsabilidade do Estado por danos morais decorrentes de superlotação carcerária”359. Tendo sua participação no processo enquanto amicus curiae deferida, a Advocacia- Geral da União pleiteou que fosse afastado o argumento de que a Administração estaria sendo omissa, tendo em vista os diversos convênios celebrados pela União com os Estados federados, que tinham por objeto solucionar as questões que envolviam o sistema penitenciário no país, e justamente através desses convênios, haveria sido repassado um montante equivalente a 1,9 bilhão de reais do Fundo Penitenciário Nacional, com o intuito de proporcionar um aprimoramento e modernização do sistema carcerário360. Ademais, a Advocacia-Geral da União pontuou que até aquele momento não existia espécie normativa condizente em indicar a utilização das verbas para que fossem investidas, prioritariamente, na construção de penitenciária, o que, per si, faria cair por terra o direito do recorrente à percepção de danos morais, principalmente levando-se em consideração que em razão da reserva do possível, tais políticas públicas teriam sua realização limitadas à disponibilidade do erário. Postos assim os fatos, é digno de observação que a doutrina dominante e o entendimento jurisprudencial majoritário se inclinam de maneira contraposta a do Advogado- Geral da União no presente caso. Isso porque não há que se falar em reserva do possível quando estamos diante de direitos fundamentais, mais propriamente, direitos da dignidade da pessoa do preso361. O apenado sob custódia do Estado se encontra de per si em condição de vulnerabilidade, os direitos de liberdade dele foram suprimidos quando da execução penal. Dessa forma, resta claro que submeter o preso a condições degradantes equivaleria a uma dupla ressarcir os danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 580.252. Brasília. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2018, p. 156. 359 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 580.252. Brasília. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2018, p. 156. 360 Ibid. 361 MARTINS, Leonardo; DIMOULIS, Dimitri. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2014. 109 punibilidade, e a um possível retrocesso ao modelo inquisitivo, no qual se buscava a vingança estatal362. Nesse sentido, em decisão recente, o STF ressaltou a obrigação do Estado em tratar os custodiados tal como pessoas que o são, e não como animais, principalmente porque o encarceramento é tão somente uma modalidade de aplicação de pena, e não salvo-conduto, que permitiria o Estado impor sanções extrajudiciais ou extralegais, de maneira direta ou indireta363. Retornando a análise do ocorrido no RE nº 580.252, a Procuradoria-Geral da República arguiu pelo reconhecimento de que o Estado não deveria ser responsabilizado, uma vez que um requisito imprescindível para a responsabilização objetiva, bem como subjetiva não estaria comprovado, qual seja o nexo causal entre a conduta estatal e o dano. Ademais, a Procuradoria-Geral da República expôs que o dever constitucional de defesa ao direito à integridade física e psíquica do preso não impõe, necessariamente, que fossem construídos mais presídios a tempo. Sendo assim, nada obstante não ter sido solucionado o problema da superlotação carcerária, isso não implicaria, inexoravelmente, em um descumprimento do dever de obediência ao artigo 5º, inciso XLIX da Constituição da República. Levando tudo isso em consideração, o STF, por maioria, concluiu que restou configurada a responsabilidade objetiva estatal, tendo em vista a existência do ato do Estado que provocou a lesão, o dano moral sofrido por detento, além do nexo de causalidade entre a omissão estatal e o dano suportado pelo apenado em estabelecimento prisional, sob a custódia do Estado364. No que tange especificamente ao dano moral, o STF assentou que em todos os atos decisórios do processo – quando do julgamento da sentença de primeiro grau, da apelação e dos embargos infringentes – foi reconhecido e comprovado que o sistema prisional do município 362 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Curso de processo penal: teoria (constitucional) do processo penal. 2. ed. atual., rev., ampl. OWL: Natal, 2015. 363 A omissão injustificada da Administração em providenciar a disponibilização de banho quente nos estabelecimentos prisionais fere a dignidade de presos sob sua custódia. A determinação de que o Estado forneça banho quente aos presos está relacionada com a dignidade da pessoa humana, naquilo que concerne a integridade física e mental a todos garantida. O Estado tem a obrigação inafastável e imprescritível de tratar prisioneiros como pessoas, e não como animais. O encarceramento configura pena de restrição do direito de liberdade, e não salvo- conduto para a aplicação de sanções extralegais e extrajudiciais, diretas ou indiretas. Em presídios e lugares similares de confinamento, ampliam-se os deveres estatais de proteção da saúde pública e de exercício de medidas de assepsia pessoal e do ambiente, em razão do risco agravado de enfermidades, consequência da natureza fechada dos estabelecimentos, propícia à disseminação de patologias. STJ. 2ª Turma. REsp 1.537.530-SP, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 27/04/2017 (Info 666). 364 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Suspenso julgamento sobre responsabilidade civil do Estado por superpopulação carcerária. Disponível em: . Acesso em: 03 maio 2018. 110 de Corumbá, Mato Grosso do Sul, não fornecia os padrões mínimos de higiene e habitação necessários, afigurando um ambiente insalubre, propenso a disseminação de doenças365. É pertinente notar, inclusive, que da análise do Ofício nº 3.679/2004 – DEPEN/GAB, do Departamento Penitenciário Nacional e o próprio Governador do Estado do Mato Grosso, no Decreto “E” nº 41, de 18 de maio de 2006, publicado no Diário Oficial nº 6.731, de 19 de maio de 2006, reconheceram que aquele estabelecimento prisional que originou a demanda se encontrava em situação desordenada366, não havendo como refutar o tratamento degradante ao qual se inseria o demandante no presídio de Corumbá. Ao ser colocado em questão o conceito do que seria e como se poderia quantificar uma situação dita degradante, o Ministro Luiz Fux ilustrou seu voto com o exemplo de um caso julgado pelo STF que poderia servir como um parâmetro. Na oportunidade, foi apreciada demanda envolvendo apenado que se mantinha recluso desde oito de dezembro de 2003, em um espaço mínimo de cela, juntamente com mais cem presos, enquanto a previsão razoável era de somente doze presos367. Naquele caso, a Corte Constitucional reconheceu a existência patente de condição degradante que ensejava, por conseguinte, a condenação do Estado, civilmente responsável, em danos morais. Com essa referência, há de se notar que a situação vivenciada pelo recorrente do RE nº 580.252 narrada ao longo dos autos não é menos imprópria para não ser considerada degradante do que aquela, e é tão merecedora de indenização quanto. Dessarte, pelos elementos trazidos aos autos, entendeu o STF como inequívoca a conduta do Estado como provocadora de lesão não só ao demandante originário da causa, presidiário da penitenciária de Corumbá, mas como a todo e qualquer preso que fosse mantido em situação semelhante de ilegalidade. Consequentemente, o apenado que fosse mantido em circunstâncias tais, vulneradora de direitos fundamentais, haveria presunção de dano moral. Outrossim, a existência de nexo de causalidade entre a conduta omissiva da Administração e o dano suportado pelo administrado estaria configurada, enquanto o apenado estiver cerceado de sua liberdade de ir e vir, mas ainda ostentar qualidade de sujeito de direitos368. 365 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Suspenso julgamento sobre responsabilidade civil do Estado por superpopulação carcerária. Disponível em: . Acesso em: 03 maio 2018. 366 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 580.252. Brasília. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2018. 367 Ibid. 368 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. 11 ed. São Paulo: Hemus, 1995. 111 Neste ínterim, é mister ressaltar a lição imprescindível de Walter Nunes de que o Estado possui um dever-poder de punir o autor de uma atividade ilícita, todavia, é mais um dever do que poder. Tendo em vista a percepção dos direitos fundamentais de uma maneira mais ampla, de tal modo que os direitos fundamentais devem ser observados tanto na perspectiva objetiva – atinentes ao dever de proteção do Estado – de um lado, bem como sob uma perspectiva subjetiva – o respeito aos direitos fundamentais do réu no exercício desse dever-poder de punir – de outro369. Dito de outro modo, no atual Estado Democrático de Direito que estamos inseridos, é inconcebível que o Estado, na consecução do seu dever de punir o infrator, justificado no dever de proteção da sociedade, abandone o seu outro dever, não menos importante, de prezar pelos direitos fundamentais daquele que está cumprindo pena sob sua custódia370. Não deixando passar essa importante observação, o STF decidiu pela responsabilidade civil em razão de conduta omissiva, tanto do estado de Mato Grosso do Sul, como de todos os Estados federados e União que não concretizaram políticas públicas para a adequação das penitenciárias nos moldes da legislação brasileira. Ademais, considerou demonstrado o nexo de causalidade entre o ato de manter um apenado em cela superlotada, em nítida vulnerabilidade, ao passo em se perdurava uma inércia estatal, o que enseja, portanto, a indenização do dano moral371. A base normativa para alcançar esse resultado obtido pelo STF é consubstanciada pelo regramento do art. 37, § 6º da Constituição da República, sendo certo que se trata de norma constitucional autoaplicável372, e que deveria, portanto, ter sido aplicada desde o princípio, sem a necessidade de qualquer intermediação administrativa ou legislativa para a sua eficácia plena. Por esta razão, pela interpretação do referido dispositivo, o Estado deve responder pelos danos morais e materiais que provocar. E o que, de fato, foi exposto no presente recurso extraordinário é um exemplo concreto de lesão provocada pelo Estado em uma situação contrária à Constituição, quando manteve preso em cela superlotada, falhando no seu dever de 369 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Curso de processo penal: teoria (constitucional) do processo penal. 2. ed. atual., rev., ampl. OWL: Natal, 2015. 370 NÔGA, Sophia Fátima Morquecho. A responsabilidade civil do estado em face das deficiências do sistema carcerário brasileiro: uma análise da decisão do supremo tribunal federal no recurso extraordinário nº 580.252. 2018. 83 f. TCC (Graduação) - Curso de Direito, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2018. 371 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 580.252. Brasília. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2018. 372 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 4. ed. rev. ampl. São Paulo: Saraiva, 2012. 112 guarda e proteção do custodiado, fazendo nascer assim, a responsabilidade civil de ressarcir o demandado. Dessa forma, entendeu a Corte pelo estado de coisas inconstitucional em todo o sistema carcerário do país, em razão da situação degradante que se achava o recorrente. Esse dano existiria em qualquer situação semelhante de preso em cela superlotada. Mas também, é imperioso constatar que a situação é igualmente inconstitucional, em decorrência da violação à segurança dos presos à integridade física e moral (art. 5º, inciso XLIX, CRFB/88) e aos direitos à saúde, educação, alimentação, trabalho, previdência e assistência social (art. 6º. CRFB/88). Posta assim a questão, o STF esclareceu, desde logo, que o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional deveria vir acompanhado de uma imposição de respeito aos direitos fundamentais assegurados a todo e qualquer preso custodiado do Estado. E além disso, essa declaração deveria servir também como um meio de provocar o Poder Público a instituir medidas que possam, por fim, erradicar essa violação reiterada da Constituição373. Saliente-se ainda que a inovação deste decisum se revela, notoriamente, por um novo método interpretativo, qual seja a aplicação da teoria do estado de coisas inconstitucional para compreender as mazelas do sistema penitenciário brasileiro. Todavia, não é novidade que o STF já nutria entendimento de que quando se está em discussão a integridade física e psíquica dos seus custodiados, o Estado deve responder objetivamente quando deveria e podia evitar o dano374. Em última análise, é possível chegar à conclusão acima, entendendo a sistemática da aplicação da pena e a obrigação assumida pelo Estado, no momento em que atrai para si a figura de único responsável sancionador, após um devido processo legal375. No instante em que o Estado passa a executar essa pena376, o condenado passa a ser, agora, custodiado. Isso significa que mais do que ser privado do convívio em sociedade, o custodiado terá, em contrapartida, a garantia estatal de que serão resguardados o seu direito à vida, à 373 Neste ponto, é mister salientar o acréscimo do Ministro Luiz Fux em seu voto no RE 580.252, acerca da declaração do estado de coisas inconstitucional como uma versão ativista do Supremo Tribunal Federal: Num primeiro momento, poderia parecer que nós estamos aqui invadindo políticas públicas - que nós já assentamos de forma abstrata na ADPF que trata do estado de coisas inconstitucional -, mas, na verdade, não é a primeira, nem a última vez que um Tribunal, da eminência de uma Suprema Corte, vai atuar autorizando a exigibilidade e cumprimento dessas políticas públicas. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 580.252. Brasília. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2018. 374 Vide o Recurso Extraordinário nº 466.322 e o Recurso Extraordinário nº 272.839. 375 O qual também é responsável, em razão da unicidade da Jurisdição à cargo do Estado. Por isso, também é possível a responsabilidade do Estado por erro judiciário, a depender do caso concreto. 376 Notadamente, a pena restritiva de liberdade. 113 proteção, à saúde e ao bem-estar. Direitos que encontram respaldo em diversos diplomas legais já citados e, notadamente, na Constituição. Em resumo, significa dizer que o custodiado possui direito público positivo e individual a prestações materiais377. Tão complexo e completo deve ser esse âmbito de proteção oferecido pelo Estado ao apenado que ele inclui até mesmo o dever de proteção do custodiado contra atos atentatórios a si próprio, a exemplo, a tentativa de suicídio, quando esta poderia ter sido evitada por ato da Administração378. Sendo assim, na hipótese de o Estado ser negligente no seu modo de agir, incluindo, neste espectro, a sua falha em proporcionar as condições mínimas legalmente previstas para o cárcere, não há como negar que ele deve responder civilmente pelos danos outrora provocados pela sua conduta omissiva. Tendo isto consignado, é imprescindível lançar o olhar para a linha argumentativa adotada pelo STF, que culminou com a escolha do dinheiro como espécie indenizatória no RE nº 580.252 ao invés de outras soluções colocadas em mesa para consideração. Nesse sentido, reconhecido a existência de um estado de coisas inconstitucional latente no sistema carcerário nacional, foi trazido a menção que, em virtude da instabilidade econômica que vivia o Brasil, fosse o caso de decidir pela indenização dos danos morais através da remição da pena, ao invés da indenização em pecúnia. Ao fim, prevaleceu esta última espécie379. Da análise das espécies indenizatórias suscitadas, é pertinente salientar que é normativamente possível que esse ressarcimento fuja do tradicional pagamento em pecúnia, consideradas as peculiaridades e necessidades que demandam cada caso. Sendo assim, é perfeitamente admissível, e em alguns casos até mesmo recomendável, que seja determinado o cumprimento de obrigações de fazer pelo Estado, como resultado da responsabilidade civil da Administração. No tocante ao recurso extraordinário ora em questão, a pertinência da discussão acerca da aplicabilidade da remição da pena ao invés da reparação em pecúnia ganhou destaque, tendo em vista o argumento da reserva do possível, o qual limitaria a disponibilidade dos cofres públicos, e ainda considerando que os danos perpetrados possuem natureza coletiva, ampliando os gastos que o erário teria se o STF optasse pela indenização em dinheiro. 377 CANOTILHO, José Joaquim G. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Portugal: Almedina Brasil, 2003. 378 GARCIA, Fernanda Mathias de Souza. O dever de indenização e a superlotação carcerária no Brasil. In: Temas Contemporâneos do Direito – Homenagem ao Bicentenário do Supremo Tribunal Federal, obra coletiva. Coord. Luiz Guerra. Brasília, DF: Guerra Editora, 2011. 379 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 580.252. Brasília. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2018. 114 Foram, prioritariamente, esses pontos que levaram o Ministro Luís Roberto Barroso a sugerir que o Estado fosse condenado a reduzir os dias de prisão a serem cumpridos pelo apenado lesionado, proporcionalmente ao tempo em que ele foi submetido à situação degradante – cela superlotada. Entretanto, este não foi o entendimento que prevaleceu, apesar de ter sido acatado pelos Ministros Luiz Fux e Celso de Mello380. Nessa toada, o STF decidiu, por maioria, que o preso deveria ser indenizado em dinheiro, pago em parcela única, em decorrência do dano moral suportado381. Dito isto, a tutela repressiva de natureza cível, consubstanciada em indenização em pecúnia, deveria ser feita em observância ao disposto no art. 100 da Constituição, que disciplina a forma de pagamento das Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, de acordo com a ordem cronológica de precatórios. 380 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 580.252. Brasília. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2018. 381 Ibid. 115 5 RESPALDO JURÍDICO PARA A ACEITAÇÃO DA TEORIA DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL Este ponto a ser abordado no presente capítulo possui fundamental importância jurídica e prática acerca da aplicabilidade da teoria do estado de coisas inconstitucional. Isso porque, em sendo uma estrutura doutrinária nova e de origem estrangeira, a internalização desta teoria, em razão das peculiaridades do sistema normativo brasileiro, ocorreu de maneira sui generis, se considerarmos as duas experiências vividas pelo Supremo Tribunal Federal, no que concerne a ADPF nº 347 e o RE nº 580.252. Usando esses julgados como parâmetro e atentando ao uso dessa teoria prospectivamente, é imperioso notar que para que se mantenha uma consistência jurídica, o caminho mais acertado para o seu correto emprego seria tomá-lo como um instrumento de interpretação. Neste particular, longe se está de se tratar de um novo estado de coisas, de uma nova modalidade de reconhecimento de inconstitucionalidade pelo controle difuso. Existem diversas situações com problemas estruturais que descumprem preceitos fundamentais fixados pela Constituição, todavia, não é simplesmente declarando o estado de coisas inconstitucional em cada uma delas que estaria resolvido o caso. Essa declaração desacompanhada da determinação de soluções efetivas jamais será capaz de resolver a violação enfrentada, ao contrário disso, comprometeria a figura do Judiciário, bem como a força normativa da Constituição382. Tendo isso em mente, no estudo do bom uso da teoria do estado de coisas inconstitucional no âmbito brasileiro, se faz necessário ponderar, primordialmente, se tal teoria se encontra em consonância com a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Especialmente, no cenário atual, após as modificações trazidas pela Lei nº 13.655, de 2018, notadamente em seu art. 20, que desencadeou a necessidade de se levar em conta as consequências práticas quando as esferas administrativa, controladora e judicial vierem a proferir alguma decisão. Antes de mais nada, cumpre fazer uma breve análise acerca da constitucionalidade do dispositivo supracitado, em particular. Se houver conclusão de que através deste estudo, o presente artigo se revelou contrário à própria Constituição da República, prejudicado estaria qualquer exame posterior que pretendesse perfectibilizar a teoria em questão com a sua normativa. 382 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991. 116 Feitas tais considerações, ainda é relevante ponderar se o Supremo Tribunal Federal é apto a declarar o estado de coisas inconstitucional. O especial fim desta verificação consiste em manter a efetividade das decisões judiciais, porquanto meio idôneo para resolução de conflitos, e pelo princípio da inafastabilidade da jurisdição. Deste amplo cenário de casos que são submetidos à apreciação do Judiciário, incluem-se demandas que envolvem direitos prestacionais que deveriam ter sido consolidados pelo Executivo, como é o caso das duas demandas apresentadas no subtópico 4.2. Com isso, o juiz é obrigado a emitir uma decisão que, a depender, vai adentrar na função típica de outro Poder. O ponto fulcral é distinguir a legitimidade do STF em promover essa tarefa, e se, com a declaração do estado de coisas inconstitucional como se deu, não teria vulnerado esse preceito. Tendo isto consignado, verificadas as formalidades, é imprescindível lançar mão ao estudo da compatibilidade material e prática da teoria do estado de coisas inconstitucional. Neste espectro, não há como se deixar de discutir a viabilidade da incorporação dessa teoria, diante dos mecanismos jurídicos já existentes. 5.1 A COMPATIBILIDADE DA TEORIA DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL COM A LINDB Nesta primeira vertente de análise da compatibilidade da teoria do estado de coisas inconstitucional com o sistema normativo brasileiro, é imperioso o estudo da Lei nº 13.655, de 25 de abril de 2018, que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), inserindo dez novos artigos – do artigo 20 ao 30. O legislador, ao editar a lei supra, exprime o intento em evitar decisões fundamentadas tão somente em valores jurídicos abstratos, conquanto a própria Lei nº 13.655, de 2018 tenha feito uso dessa espécie normativa, no momento em que incumbiu ao administrador e ao operador do direito decifrar o sentido das consequências práticas da decisão, em face do caso concreto. Mas, como já dito alhures, a mudança legislativa veio para que se evite a multiplicação de decisões sem embasamento prático, nada obstante o legislador se eximir de tal mister. Não são raras as terminologias indeterminadas presentes no diploma, a exemplo de: dificuldades reais do gestor (artigo 22), orientações gerais da época (artigo 24), relevante interesse geral 117 (artigo 26), solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais (artigo 26, inciso I). Nada obstante tal crítica, não se pode deixar de notar o mérito do artigo 20, da LINDB, que consagra, primordialmente, o princípio da segurança jurídica. Dessa maneira, o ponto fulcral dessa mudança legal consiste em evitar o subjetivismo e a superficialidade das decisões pelos agentes estatais383. Tradicionalmente, o uso de termos jurídicos indeterminados no campo do Direito Administrativo de um lado, traz a ideia de discricionariedade, de outro. Em outras palavras, o administrador em geral tem a falsa perspectiva de que sempre que se deparar com uma normativa engendrada em conceitos abstratos, se contenta a agir discricionariamente. Sendo assim, o uso de conceitos jurídicos indeterminados, além da ausência de uma análise técnica e prática das circunstâncias in casu culminam, na maioria das vezes, no não cumprimento do que foi determinado em decisão judicial por parte do demandado, seja por interpretar o conceito abstrato da maneira que melhor lhe aprouver, seja pela inviabilidade da implementação do ordenado. A necessidade de uma limitação da discricionariedade do administrador, há tempos sugerida pelo Direito Germânico384, encontra respaldo jurídico no artigo 20, da LINDB. Isso é verdade, na medida em que o dito dispositivo direciona o agente estatal a efetuar uma análise do caso concreto, partindo de todas as alternativas possíveis de serem aplicadas, à luz da proporcionalidade, e somente após um diálogo institucional – se a questão exigir –, exarar uma decisão fundada em conceitos jurídicos determinados, proporcionando um juízo de certeza a todos os destinatários. Há de se observar, nesse diapasão, que a responsabilidade de considerar os efeitos práticos das decisões não se cinge apenas ao Judiciário, mas também às esferas controladora e administrativa. A redação do artigo 20 é cristalina quanto a responsabilidade dessas três searas pelo cuidado com o embasamento de suas decisões, sob uma análise prospectiva das possíveis consequências auferidas. Para tanto, imprescindível se faz proporcionar um diálogo dos interessados, opiniões de instituições que tenham pertinência sobre o assunto a ser apreciado para então, com o uso 383 JUSTEN FILHO, Marçal. Art. 20 da LINDB - Dever de transparência, concretude e proporcionalidade nas decisões públicas. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, p. 13-41, nov. 2018. ISSN 2238-5177. Disponível em: . Acesso em: 02 Jun. 2019. doi:http://dx.doi.org/10.12660/rda.v0.2018.77648. 384 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988, 2ª ed, São Paulo, Atlas, 2001, p. 107. 118 adequado da boa hermenêutica e proporcionalidade, proferir a decisão devidamente fundamentada. O art. 20, caput da LINDB, acrescentado pela Lei nº 13.655 de 2018, determina que: “Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. ”385. O legislador impõe que nas esferas administrativa, controladora e judicial, todas as vezes em que se decidir com base em valores jurídicos abstratos, há de ser feita uma análise prévia de quais serão as consequências práticas dessa decisão. E, claramente, os impactos provenientes da decisão que declarou o estado de coisas inconstitucional no Recurso Extraordinário nº 580.252 são alarmantes. Chega-se a essa conclusão, tendo em vista que a intenção do legislador em fazer uso de as “consequências práticas” foi a de atribuir acepção de consequências econômicas, que devem ser observadas pelo julgador antes de tomar a decisão. Nesse sentido, a partir de uma análise econômica do Direito386, é forçoso notar que não só a economia influencia o Direito, como também o Direito assume um papel de influenciador da economia. Levando em consideração essa premissa, para que uma decisão in concreto seja eficiente, é imprescindível que seja considerada as consequências econômicas dela provenientes. Tendo isso consignado, deve o juiz buscar a autocontenção, instituto que está estreitamente relacionado a busca por uma decisão que considera os efeitos econômicos. A autocontenção judicial (judicial self-restraint do direito norte-americano) implica o reconhecimento de que o princípio da reserva do possível não é apenas limitador do Poder Executivo, mas também é uma baliza enfrentada pelo Poder Judiciário. Com o mais novo advento do Decreto nº 9.830, de 10 de junho de 2019, há uma busca pela regulamentação do disposto nos artigos 20 a 30 da LINDB. Os apontamentos referentes a abstração e carência de especificidade dos termos introduzidos pela Lei nº 13.655 de 2018 são resolvidos com a edição recente do Decreto nº 9.830 de 2019. Sendo assim, é mais que providencial o esclarecimento quanto ao que corresponderia às consequências práticas da decisão do art. 20. Em seu artigo 3º, o citado decreto dispõe que toda e qualquer decisão baseada exclusivamente em valores jurídicos abstratos deve indicar das consequências práticas da decisão, que no exercício diligente do decisor forem passíveis de constatação, em decorrência dos fatos e fundamentos suscitados. Ademais, no que concerne à 385 BRASIL. Decreto-lei nº 4.657, de 04 de setembro de 1942. Brasília. 386 TABAK, Benjamin Miranda. A Análise Econômica do Direito: Proposições legislativas e políticas públicas. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 52, n. 205, p.321-345, jan. 2015. 119 motivação, ela deverá demonstrar a adequação e a necessidade da medida imposta. Para tanto, deve-se levar em conta os princípios da proporcionalidade, razoabilidade e adequação na análise de todas as alternativas viáveis387. Com isso, é de se constatar uma evolução do processo, tanto no âmbito civil como penal, já que a LINDB legisla de maneira genérica para as duas searas, com vistas à fundamentação das decisões não só judiciais, mas também as proferidas pelo Administrador e pelos controladores. Isto é, o Código de Processo Civil de 2015 inovou ao consagrar, como regra, a necessidade de fundamentação de toda e qualquer decisão judicial388. E agora, a LINDB reconheceu que este dever de embasamento deveria se estender para além do Judiciário. Depreende-se, então, uma expansão horizontal do dever de fundamentação das decisões, quando o legislador fez abranger as esferas administrativa, controladora e judicial. Mais do que isso, nota-se uma expansão vertical para baixo, relativa a profundidade dessa fundamentação. Por esta última espécie expansiva, compreende o valor jurídico e prático que é agregado ao embasamento. Isso significa que pela exigência da observância dos critérios de adequação, proporcionalidade e de razoabilidade na tomada da decisão, a fundamentação deve ser clara quanto à verificação de cada um destes fatores389. Com essa expansão vertical, o intento é se alcançar, a partir daquele juízo, um resultado mais efetivo que as decisões que não analisam esses três aspectos. Esse novo modelo de tomada de decisão é essencial para que haja uma reversão do estado de coisas inconstitucional, tanto por parte do administrador, enquanto gestor que decide onde alocar as verbas públicas, como também pelo operador do direito, quando judicializada a demanda. O Decreto nº 9.830 de 2019 trata ainda, mais especificamente, das normas que versam sobre gestão pública, afinando com a noção aqui adotada de que devem ser consideradas as consequências econômicas da decisão. Com isso, há uma preocupação de que na tarefa interpretativa das normas voltadas à gestão pública, sejam analisadas as reais dificuldades do 387 BRASIL. Decreto nº 9.830, de 10 de junho de 2019. . 111. ed. Brasília, 11 jun. 2019. Seção 1, p. 4. Disponível em: . Acesso em: 11 jun. 2019. 388 BARBOSA, Vitor Carvalho. A fundamentação de decisões judiciais no novo CPC. Anais do II Congresso de Processo Civil Internacional, Vitória, v. 2, n. 1, p. 255-265, 2017. Disponível em: file:///C:/Users/Sophia%20Morquecho/Downloads/19841-Texto%20do%20artigo-56701-1-10-20180510.pdf. Acesso em: 25 out. 2020. 389 MAZZEI, Rodrigo Reis. O dever de motivar e o “Livre Convencimento” (Conflito ou falso embate?): Breve análise do tema a partir de decisões do Superior Tribunal de Justiça e com os olhos no Novo Código de Processo Civil. In: Revista Judiciária da Seção Judiciária de Pernambuco. v. 8, 2015. p. 217. 120 agente público, os obstáculos, bem como as políticas públicas que lhe cabe realizar, sem olvidar, contudo, dos direitos dos administrados390. Sendo assim, cabe ao operador jurídico a tarefa de selecionar qual a alternativa possível que irá satisfazer o melhor direito e que será viável de ser cumprida pela outra parte, prezando pela efetividade da tutela jurisdicional. Para concretizar tal mister, é essencial que seja dada as partes a oportunidade de diálogo, não se cingindo meramente a exposição das razões de cada uma em apartado. Uma solução efetiva tem maiores oportunidades de ser ventilada quando as partes tentam convergir para um consenso, e não sendo este possível, que seja fomentado o diálogo para se expor as hipóteses que poderiam vir a serem empregadas no caso. Esse estímulo ao diálogo como meio para uma solução efetiva, na concretização dos preceitos da LINDB, se mostra não só compatível, mas imprescindível, na declaração do estado de coisas inconstitucional. Tem-se em vista, neste ínterim, que a maioria das demandas que envolvem o uso dessa teoria envolvem direitos prestacionais por parte do ente público, o que invariavelmente implica dispêndio do erário, seja através de investimento financeiro, seja por meio de investimento em pessoal capacitado. Consequentemente a isso, ao passo em que a decisão jurisdicional envolve questões econômicas, deve-se levar em conta as consequências práticas advindas de cada posicionamento possível, em respeito ao art. 20, da LINDB. Da análise do RE 580.252, percebe-se um insucesso no fomento de um diálogo institucional para que os envolvidos pudessem confluir para uma solução que fosse viável. Ao invés disso, com a simples determinação do ressarcimento em pecúnia, esquivou-se o olhar do impacto financeiro nos cofres públicos das futuras demandas, como também não atribuiu solução concreta para que resolvesse o problema estrutural do sistema carcerário brasileiro. 5.1.1 A constitucionalidade do artigo 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro É indubitável a relevância prática do artigo 20 da LINDB. Isso porque, na práxis brasileira, precisa existir uma norma mais específica para que determinado dever imposto em uma norma mais ampla seja efetivamente cumprido. Nesse sentido, a intenção do legislador ao 390 BRASIL. Decreto nº 9.830, de 10 de junho de 2019. 111. ed. Brasília, 11 jun. 2019. Seção 1, p. 4. Disponível em: . Acesso em: 11 jun. 2019. 121 inserir em 2018 esse dispositivo é reafirmar a necessidade de ponderação e cautela nas decisões da esfera administradora, controladora e judicial, em especial no que tange aos efeitos práticos. Não se olvida que o referido artigo tem conteúdo eminentemente de política administrativa, com o intuito de repercutir nas próximas decisões das esferas controladora, administrativa e judicial. Contudo, não há como se esquivar do questionamento quanto à constitucionalidade do artigo ora em análise. O princípio da separação dos poderes, consagrado logo no artigo 2º da Constituição, por meio da desconcentração, pretende dividir e racionalizar as funções típicas do Executivo, Legislativo e Judiciário. Ao passo em que o legislador determina como o juiz, administrador ou controlador deve agir no exercício das suas funções, ele está se imiscuindo em um campo que, a priori, diz respeito tão somente àquele Poder. Tão logo constata-se a relevância prática do referido dispositivo, paira no ar questionamentos acerca da sua inconstitucionalidade, se violaria a separação de poderes, e por conseguinte, se contrariaria o princípio do estado democrático de direito. Dessa maneira, se houvessem questionamentos acerca da constitucionalidade do artigo 20 da LINDB, se direcionariam ao aspecto material, no particular ponto da separação dos poderes, cláusula pétrea, constante no artigo 60, § 4, inciso III, da Constituição. Não há registros formais de se ter questionado a constitucionalidade do dispositivo ora em testilha, mas não há como se esquivar dessa análise, diante da influência que esse diploma exerce sobre o tema em estudo, a declaração do estado de coisas inconstitucional. Feitas tais considerações, de maneira clara e sucinta, sem mais rodeios, nota-se que o artigo 20 da LINDB não cria novas atribuições para outros Poderes. Ao contrário disso, o legislador enaltece a importância das funções administrativa, controladora e judicial, que mantém, cada qual, sua autonomia e independência. A inovação trazida pelo respectivo dispositivo consiste, notadamente, em demandar uma fundamentação mais aprofundada e que sejam levadas em consideração as consequências práticas da decisão. Seguindo essa linha de raciocínio, o Decreto nº 9.830, de 10 de junho de 2019, que regulamenta este artigo, corrobora com a conclusão dada acima, a de que não há interferência inconstitucional quando se demanda o uso dos outros Poderes de preceitos constitucionais. Isso porque, em verdade, já existia a obrigação de que o decisor levasse em consideração aspectos como a proporcionalidade, eficácia e eficiência de uma decisão. E isso já importava, por consequência lógica, a necessidade de lançar o olhar para os efeitos econômicos da ordem exarada. 122 Todavia, como foi dito, tratava-se de uma conjectura. Havia, antes da inserção do artigo 20 na LINDB, uma demanda por esforço intelectual do gestor, controlador ou juiz, que incluía uma análise global do ordenamento jurídico, e que se assim o concluísse e quisesse concluir, decidiria por levar em conta os preceitos já informados na Constituição da República no que tange à proporcionalidade, efetividade e eficiência. E, mesmo assim, não era certo que o decisor chegaria ao resultado de que deveria, antes de tomar qualquer decisão, refletir acerca dos impactos econômicos da decisão. Em termos materiais e práticos, a Lei nº 13.655 de 2018 se revela em consonância com o que já regrava a própria Constituição da República, mas que, na experiência, não era efetivamente notado por diversos responsáveis nas áreas administradoras, controladoras e judiciais. Há de se notar, ainda, que principalmente no que concerne as decisões judiciais, a Constituição impõe de maneira expressa que as decisões daquela esfera devem ser fundamentadas. Todavia, traz somente de forma implícita o princípio da proporcionalidade. Sendo assim, percebe-se que o artigo 20 da LINDB não só é constitucional391, no que tange ao aspecto material, mas se mostra necessário na busca pela efetividade das decisões, não só judiciais, mas também em outras searas, que envolvem, em especial, o direito administrativo, o direito tributário, o direito orçamentário e o direito financeiro392. 5.1.2 As consequências do recurso extraordinário 580.252 e o artigo 20 da LINDB No que concerne ao recurso extraordinário 580.252, percebe-se que não foram consideradas as consequências práticas da decisão. O foco da discussão se cingiu a relatar os problemas enfrentados pelos encarcerados brasileiros, por meio da declaração do estado de coisas inconstitucional, concluindo que essa reiterada violação estrutural de direitos fundamentais constantes na Constituição ocorre em virtude da omissão do Estado em fornecer condições mínimas de sobrevivência aos presos sob sua custódia. Foi fixado o entendimento que basta que o preso subsista em cela superlotada, para constatar violação ao direito à vida digna, gerando, por conseguinte, a responsabilidade civil do Estado, que deve indenizar esse dano moral em um quantum de R$ 2.000,00 (dois mil reais). 391 Especificamente na análise material da separação dos Poderes. 392 CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Breves comentários à Lei 13.655/2018 e ao Decreto 9.830/2019. 2019. Disponível em: https://www.dizerodireito.com.br/2019/06/breves-comentarios-lei-136552018-e-ao.html. Acesso em: 15 out. 2020. 123 Oportuno se torna dizer que foi trazida à baila a discussão acerca da viabilidade econômica e da efetividade desse ressarcimento em pecúnia, já que a tendência contemporânea, de forma acertada, é tentar restaurar o status quo ante da lesão sofrida pelo demandante. Para tanto, o mais coerente é sugerir uma indenização in natura, ao invés de em dinheiro. Nesse sentido, nada obstante ainda não vigesse o artigo 20 da LINDB, a discussão que norteou o fundamento da motivação do Supremo Tribunal Federal trouxe à lume as consequências gravosas da concessão da indenização in pecúnia aos apenados que tiveram seus direitos constitucionais violados. Além da análise das consequências práticas da decisão, o dispositivo citado exige que haja, na motivação, a demonstração da necessidade e da adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, considerando as alternativas disponíveis. No caso em testilha, não há que se negar que existe a necessidade da medida imposta, já que o dano sofrido pelo apenado em cela superlotada deve ser indenizado. Contudo, inexiste adequação da escolha pela indenização no quantum ora estipulado, diante de outras medidas possíveis, tão idôneas quanto e que poderiam, inclusive, serem mais eficientes. Sendo assim, é forçoso notar que as consequências do recurso extraordinário 580.252, em razão da repercussão geral, são exemplos do que o legislador com a edição do art. 20 da LINDB, quis evitar. Considerando que o citado artigo se aplica às decisões do Judiciário, sem prejuízo das esferas controladora e administrativa, deveria ser estudado, pormenorizadamente, cada hipótese de solução possível no espaço amostral fornecido por cada parte interessada, com análise especial para as soluções ofertadas pelo responsável. Em outros termos, o que aqui se propõe é que nessa declaração de estado de coisas inconstitucional fosse estimulado um diálogo institucional, onde para cada entidade atingida pela decisão fosse ofertado espaço para que apresentasse soluções viáveis sob sua perspectiva, e ao longo desse processo, cada possibilidade seria amplamente discutida para que, ao fim, o operador do direito decida pela opção necessária e que seja a mais adequada, sob o aspecto satisfativo da demanda, que para tanto, depende de um impacto financeiro inversamente proporcional. Todavia, o que de fato se nota do decisum no RE 580.252 é que se priorizou a satisfação do dano moral suportado pelo preso em condições degradantes, em detrimento dos que ainda se mantém neste estado constante de violação aos seus direitos fundamentais. Não há dúvidas do interesse legítimo do apenado que cumpriu pena em cela superlotada em pleitear ressarcimento pelos danos morais sofridos. Contudo, teme-se que diante da continuidade dessa 124 situação nos presídios do Brasil, essa demanda se torne cada vez mais comum, culminando no que a doutrina e o Superior Tribunal de Justiça denominam de “pedágio de masmorra”. Essa expressão foi popularizada pelo STJ quando a 1ª Seção julgou os embargos de divergência em recurso especial nº 962.934, em 2012, que versava exatamente acerca da responsabilidade civil do estado pela submissão de preso à cela superlotada. Na oportunidade, a Defensoria Pública da União apresentou os presentes embargos, considerando as divergências entre a 1ª Turma, que entendia pela procedência da indenização por danos morais individuais a preso que se achasse neste tipo de situação, e a 2ª Turma, que rechaçava esta hipótese de reparação, justificando pela irrazoabilidade. Por fim, a 1ª Seção do STJ decidiu que a condenação do Estado que perpetrou maus-tratos à presidiário, em danos morais individuais, enquanto solução isolada, poderia culminar com a instituição de um “pedágio-masmorra” ou “bolsa-indignidade”393. Esses termos trazidos no voto do ministro Herman Benjamin significam que se houver a concessão de dano moral a cada preso em individual, se instituiria a impressão de que ao invés de a Administração garantir os direitos fundamentais invioláveis, inalienáveis e imprescritíveis de todos os presidiários, bastaria pagar a alguns apenados que tivessem a vantagem de ter um advogado, uma espécie de “pedágio de masmorra”, pela ofensa diária aos seus direitos constitucionais. Enquanto isso, aqueles que não tivessem um advogado ao seu dispor, para pleitear esse direito no Judiciário, restaria suportar a perpetuidade dessa situação constantemente violadora. A 1ª Seção decidiu 393 ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. DETENTO. SUPERLOTAÇÃO. DANO MORAL. RESSARCIMENTO INDIVIDUAL POR DANO OLETIVO INCABÍVEL. PROBLEMA LÓGICO. RETIRADA DE CUSTOS PARA SUPRIR INDENIZAÇÃO INDIVIDUAL QUE MAJORA O GRAVAME COLETIVO. IMPOSSIBILIDADE DE EQUIVALÊNCIA COM CASOS MAIS GRAVES. MORTE. INDENIZAÇÃO INDIVIDUAL COMO MEIO INVIÁVEL DE SOLUÇÃO DO PROBLEMA PRISIONAL. 1. Cuida-se de embargos de divergência opostos contra acórdão da Segunda Turma que deu provimento ao recurso especial para determinar a impossibilidade de obrigar o Estado a indenizar, individualmente, um detento em unidade prisional superlotada. 2. O que se debate é a possibilidade de indenizar dano moral que foi consignado pelas instâncias de origem; logo, o que se discute é a possibilidade de punir o Estado com tal gravame pecuniário, denominado no acórdão embargado como "pedágio masmorra"; a divergência existe, pois há precedentes da Primeira Turma no sentido da possibilidade de indenização: REsp 1.051.023/RJ, Rel. Min. Francisco Falcão, Rel. p/ Acórdão Min. Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, DJe 1º.12.2008; e REsp 870.673/MS, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 5.5.2008. 3. O voto condutor do Min. Herman Benjamin – havido do recurso especial, cujo acórdão figura como embargado - deve ser mantido em seus próprios fundamentos, a saber que: a) não é aceitável a tese de que a indenização seria cabível em prol de sua função pedagógica; b) não é razoável - e ausente de lógica - indenizar individualmente, pois isto ensejará a retirada de recursos para melhoria do sistema, o que agravará a situação do próprio detento; e c) a comparação com casos que envolveram a morte de detentos não é cabível. 4. Como bem consignado no acórdão embargado, em vez da perseguição de uma solução para alterar a degradação das prisões, o que acaba por se buscar é uma inadmissível indenização individual que arrisca formar um "pedágio masmorra" ou uma "bolsa indignidade"; em síntese, o tema em debate não trata da aplicação da doutrina da "reserva do possível" ou do "mínimo existencial", mas da impossibilidade lógica de que a fixação de uma indenização pecuniária e individual melhore o sistema prisional.Embargos de divergência conhecidos e improvidos. (STJ, EResp: 962.934 MS 2011/0136470-6. Relator: Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, Data do Julgamento: 14/03/2012, 1ª Seção, Data de Publicação: Dje 25/04/2012) 125 que tal posicionamento não seria razoável, sendo descabida a indenização individualmente requerida394. Nesse sentido, foi fundamentado que na decisão não se estava aplicando a cláusula da reserva do possível, nem o argumento de se assegurar o mínimo existencial. O que pesou foi a urgência de um aprimoramento das condições do sistema penitenciário, e a obtenção desse fim somente é possível com um planejamento adequado e estruturação física, e não com uma condenação em dinheiro apenas para determinado preso. Ademais, os ministros consideraram que a própria Defensoria Pública da União, que patrocinou a causa, poderia se valer de mecanismos mais efetivos e eficientes, com vistas a sanar problemas do sistema penitenciário. Neste caso, citou-se, à título exemplificativo, que a instituição poderia, inclusive, ajuizar ação civil pública em prol daqueles presos395. Dessa forma, considerando o RE 580.252, que concedeu danos morais a cada preso que se achasse em cela superlotada, conveniente seria aliar os preceitos do artigo 20 da LINDB, no que tange às consequências práticas deste tipo de decisão, a um diálogo institucional. Isso porque, ao se declarar o estado de coisas inconstitucional, notadamente em sede de repercussão geral, há uma transcendência de interesses a serem analisados, não cingindo apenas ao pedido da origem. Sem falar que a constante violação de direitos constitucionais dos presidiários que não recorreram ao Judiciário não mudou com a decisão do recurso extraordinário ora em análise. Posta assim a questão, com esse novo método decisório proposto pelo art. 20 da LINDB, deve o ambiente jurisdicional se prestar a proporcionar uma resolução efetiva, que após uma dialética estimulada entre os responsáveis, se obtenha um denominador comum, ou ao menos compatível e possível de ser efetivado, com vistas a sanar essa reiteração do problema. Em se tratando do Recurso Extraordinário 580.252, é forçoso reconhecer que não foi dada primazia à solução que considerasse as consequências práticas da decisão. Caso tivessem sido levadas em conta tais consequências, o Supremo Tribunal Federal tão logo concluiria que - em virtude da repercussão geral da matéria, considerando o orçamento pátrio, bem como a grande quantidade de presos que se achem em celas superlotadas – a receita não comportaria a solução proposta. 394 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de Divergência em Resp nº 962.934. Diário Oficial da União. Brasília. 395 Ibid. 126 Ora, se cada preso em cela superlotada pleiteasse o seu direito ao ressarcimento por dano moral, sendo esse presumido, conforme conclusão do STF, fixado em um quantum de R$ 2.000,00 (dois mil reais)396, valor esse também definido pela Egrégia Corte, seria computado um montante estratosférico. Segundo dados do CNJ397, são 701.663 presos para 418.701 vagas, com um déficit de 282.962 vagas. Considerando os 1.435 estabelecimentos prisionais espalhados no país, percebe- se que em todos os estabelecimentos estaduais há deficiência de vagas. Em uma análise matemática superficial, se cada um desses 701.663 presos em más condições ajuizar ação com fundamento no decidido no RE 580.252, e a cada um for dado a quantia de R$ 2.000,00 (dois mil reais) a título de dano moral, a quantia devida por parte do Estado alcançaria a cifra de R$ 1.403.326,00. Isso, sem considerar os presos que já foram colocados em liberdade e que ainda podem ajuizar ação indenizatória, nem aqueles que ainda serão inseridos nas unidades prisionais e que se submeterão as mesmas condições degradantes. Ademais, trazendo um breve exemplo do direito comparado, em uma análise da experiência do país que inaugurou a teoria do estado de coisas inconstitucional, na decisão T- 153, de 1998, a Corte Constitucional Colombiana se limitou a expedir diversas ordens398. Ocorre que, sem a promoção de um diálogo institucional ou de qualquer instrumento fiscalizador da execução, a Corte Colombiana não obteve o resultado desejado, já que, anos 396 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 580.252. Brasília. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2018. 397 CNIEP, Relatório Mensal do Cadastro Nacional de Inspeções nos Estabelecimentos Penais. DADOS DAS INPEÇÕES NOS ESTABELECIMENTOS PENAIS. Disponível em: . Acesso em: 17 jun. 2019. 398 a) ordenou a notificação dos Presidentes da República, do Senado, da Câmara, da Turma de Direito Penal da Fernando Melo Valverde dos Santos e João Dias de Sousa Neto 516 Corte Suprema de Justiça, das Turmas Administrativas e Jurisdicional Disciplinar do Conselho Superior da Judicatura, o Fiscal Geral da Nação, os Governadores e Prefeitos, os Presidentes das Assembleias e Departamentos e dos Conselhos Municipais, acerca do Estado de Coisas Inconstitucional; b) incumbiu ao Instituto Nacional Penitenciário e Carcerário – INPEC, ao Ministério da Justiça e do Direito e ao Departamento Nacional de Planejamento a criação, dentro do prazo de três meses, de um plano de construção e reforma das unidades prisionais colombianas, de modo a garantir condições minimamente dignas aos presos; c) ordenou que o Governo Nacional tomasse as medidas orçamentárias necessárias para a execução do plano; d) incumbiu a Defensoria do Povo e a Procuradoria Geral da Nação de supervisionarem a execução do plano; e) determinou que o INPEC promovesse, dentro do prazo máximo de 4 anos, uma triagem e separação dos presos provisórios daqueles já condenados; f) ordenou que o Instituto Nacional Penitenciário e Carcerário – INPEC e aos Ministérios da Justiça e do Direito e da Fazenda a tomada de providências necessárias para solucionar a carência de pessoal capacitado nas prisões; g) ordenou aos líderes do executivo, em todas as esferas, Presidentes das Assembleias dos Departamentos e Conselhos Municipais que criassem e mantivessem presídios próprios; h) notificou o Presidente da República e o Ministro da Justiça e direito para que, enquanto estivessem sendo executadas tais medidas estruturantes, fossem tomadas as medidas necessárias para assegurar a ordem pública e o respeito dos direitos fundamentais dos detentos nos cárceres colombianos. (I CONGRESSO ACADÊMICO DE DIREITO CONSTITUCIONAL, 1., 2017, Porto Velho. Anais Do I Congresso Acadêmico De Direito Constitucional. Rondônia: Faculdade Católica de Rondônia, 2017. 789 p. Disponível em: . Acesso em: 18 jun. 2019.) 127 mais tarde, apesar de terem sido criados novos presídios, esse novo número de vagas não acompanhou o aumento da demanda de presos, persistindo, assim, o déficit carcerário. No RE 580.252 não somente foi cometido o erro da Corte Constitucional Colombiana de não estimular um diálogo entre instituições, mais ainda, optou o Supremo Tribunal Federal por atribuir indenização em pecúnia pelo dano moral do preso em cela superlotada, sem considerar os aspectos econômicos advindos dessa decisão. 5.2 LEGITIMIDADE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA DECLARAR O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL Na segunda vertente de análise da compatibilidade teórica do estado de coisas inconstitucional com o sistema normativo brasileiro, há de se estudar a legitimidade de quem a emprega. Quando da declaração do estado de coisas inconstitucional, não há como se esquivar de questionamentos que vão desde a interferência do Judiciário em políticas públicas, atributo tipicamente do Executivo, até a legitimidade da Corte Constitucional em determinar que o gestor aja de determinada forma, o que é o cerne da declaração do estado de coisas inconstitucional. Ademais, é merecedor de destaque a percepção que o poder atribuído ao Judiciário de sobrepor suas decisões às do Legislativo e do Executivo, aliado a uma tendência de ativismo judicial, tem provocado indagações quanto à legitimidade da instituição jurisdicional. Uma das consequências do Estado Democrático de Direito em que vivemos é que as instituições constituídas de modo diverso do processo eletivo – incluindo-se os órgãos jurisdicionais – são constantemente colocadas à prova quanto a sua adequação democrática. Muitas vezes, isso acontece sem levar em consideração a peculiaridade dos papeis de cada instituição399. Emergem diversas discussões, notadamente, quanto à legitimidade do Supremo Tribunal Federal enquanto instituição não eleita diretamente pelo voto do povo. Ademais, tendo em vista que os políticos estão para servir a vontade do povo, coloca-se em xeque os motivos para se ter confiança nas escolhas dos juízes e desconfiança da capacidade dos políticos e porque a decisão daqueles deveria se sobrepor às escolhas destes. 399 MEDEIROS, Morton Luiz Faria de. Jurisdição constitucional exercida pelas cortes constitucionais: sua importância para a consolidação do Estado Democrático de Direito. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 42, n. 167, p.339-350, jul. 2005. Disponível em: . Acesso em: 14 maio 2018. 128 Oportuno se torna dizer que a legitimidade da Justiça constitucional tem seus sustentáculos básicos na complementariedade entre Democracia e Estado de Direito. Isso porque, é através do Estado Democrático de Direito da contemporaneidade que foi promulgada a Constituição de 1988, e por meio dela se atribuiu como papel fundamental do Supremo Tribunal Federal, enquanto Corte Constitucional, o dever de velar pela observância da própria Constituição. E é isso que se fez quando se declarou o estado de coisas inconstitucional. Sendo assim, a vontade da maioria que foi revelada quando escolheu o regime democrático deve se coadunar com a superioridade hierárquica das normas constitucionais, a obediência aos direitos fundamentais por ela assegurados, e ainda, o que a Constituição da República dispõe acerca do controle jurisdicional de atos emanados de outros poderes. É imperioso notar, neste contexto, que foi a própria maioria democrática que instituiu o Constituinte. Sendo assim, a vontade do Constituinte, que se expressa por meio da Carta Constitucional é, em última análise, a própria vontade do povo, o que atribui assim a legitimidade do Supremo Tribunal Federal, constante na Constituição da República, de emitir decisões que gerem consequências para o Poder Executivo, por exemplo. Destaque-se que muito se falou da vontade da maioria, mas enquanto papel contramajoritário400 do STF, essa consagração da Democracia imprime a necessidade de se proteger os direitos também da minoria e dos grupos de vulneráveis, como é o caso da população carcerária brasileira401. Nesse sentido, Walter Berns salienta que a regra criada pela maioria só é legítima se, na prática, aquela maioria respeita os direitos da minoria402. Ademais, essa função contramajoritária403 é peculiar do Judiciário, já que os Poderes Legislativo e Executivo são compostos de representantes eleitos diretamente pelo voto do povo, e portanto, servem aos interesses da maioria. Esses questionamentos acerca da legitimidade da justiça constitucional, quando analisados juntamente com a experiência histórica de outros países como os Estados Unidos e França, ressaltam que no Brasil contemporâneo, há uma justiça constitucional legítima, enquanto na Europa do século XVIII, em especial, na França, a Constituição era um documento 400 BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. 401 MORAES, Alexandre de. Legitimidade da justiça constitucional. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 40, n. 159, p.47-59, jul. 2003. Disponível em: . Acesso em: 16 maio 2018. 402 BERNS, Walter. A Constituição assegura esses direitos? In: Vários autores. A Constituição norte-americana. Rio de Janeiro: Forense Universitária,1986. P. 285 403 BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. 129 político, uma simples carta de intenções, e não vinculante, configurando uma supremacia do Parlamento, ao invés da supremacia constitucional. Nos Estados Unidos ocorreu o inverso; a Constituição detém supremacia sobre o Parlamento. E isso finda por demonstrar que, consequentemente, na experiência estadunidense, nota-se um Judiciário mais forte, ao contrário do que se observa na França. Dito isto, assim como ocorreu nos Estados Unidos, no Brasil, a sua Constituição revela vontade da maioria, e a sua Corte Constitucional, o Supremo Tribunal Federal, retira seu fundamento de legitimidade formalmente da Constituição. Nesse sentido, percebe-se que o Poder Constituinte Originário, que detém a vontade soberana do povo que exprime sua vontade através de Assembleia Nacional Constituinte404, instituiu, formalmente, através de uma Constituição Democrática, que as decisões da Jurisdição Constitucional deveriam prevalecer sobre a dos políticos, eleitos diretamente. Seguindo essa linha de raciocínio, sob o espectro visual de uma hierarquia de legisladores dentro do Estado, é possível notar que a Assembleia Constituinte, que detém poder em razão da vontade do povo, se encontra no ápice, ao passo em que as demais funções legiferantes ficam sob àquela e, portanto, devem a ela se sujeitar405. Ademais, relativamente ao aspecto da legitimidade material, a Justiça Constitucional retira seu fundamento de validade da necessidade de proteção ao Estado de Direito e de consagração aos direitos e princípios fundamentais básicos, constitucionalmente previstos. Dito isto, é da competência do Supremo Tribunal Federal velar pela integridade e higidez dos princípios da igualdade material e da legalidade, que são bases do modelo de Estado contemporâneo. Nesse sentido, percebe-se que a democracia, em verdade, não consiste apenas na participação do povo no poder político, mas, primordialmente, no respeito às liberdades civis406. Dessa forma, é o Supremo Tribunal Federal o responsável em resguardar a correspondência entre âmbito normativo (realidade social) e programa normativo (interpretação da norma)407, em uma análise contemporânea, nada obstante a similitude com a conceituação dos fatores reais de poder408. 404 Trata-se de posicionamento moderno que se diferencia da clássica posição do abade Emmanuel Sieyès (1748- 1836), em sua obra Qu’’est-ce que le tiers État? (O que é o Terceiro Estado), para quem o titular do poder constituinte era a nação. 405 SCCHWARTZ, Bernard. Direito constitucional americano. Rio de Janeiro: Forense, 1966. P. 26. 406 BOBBIO, Norberto. Igualdade y libertad. Barcelona: Paidós, 1993. P. 117. 407 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. Trad. Peter Naumann; Eurides Avance de Souza. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. 408 LASSALLE, Ferdinand. O que é uma constituição?. 3.ed. São Paulo, SP: Editora Minelli, 2006. 130 Relativamente aos direitos sociais, com especial atenção àqueles atinentes a garantia de ressocialização no sistema carcerário, sem olvidar o dever de guarda e proteção da dignidade da pessoa humana - rainha de todos os direitos fundamentais -, constata-se uma reiterada violação e displicência governamental com relação a esses direitos. É pertinente a lição de Mauro Capelletti de que “a justiça constitucional é uma das mais importantes e promissoras respostas que um crescente número de nações tem procurado dar ao problema da opressão governamental”409. Essa “justiciabilidade”410 na busca pela efetividade dos direitos sociais tem se revelado como um marco importante no processo judicial brasileiro411. Todavia, não raras vezes se constata na prática o mau uso dessa função contramajoritária e da busca pela concretização da justiciabilidade – pelo Judiciário em geral, seja pelo excesso, seja pela quebra da estreita linha que distingue o ativismo judicial do que pode chamar de invasão dos Poderes. Quando esse limite se rompe, as consequências podem ser drásticas. A demanda pelo Judiciário paternalista aumenta, o diálogo entre as instituições é deixado para segundo plano – se existir, ineficiência na execução e, por conseguinte, a perda de confiança nas instituições. Esse breve esboço cumpre a função de ressaltar que o ativismo, nada obstante a sua importância no Estado Democrático de Direito, se empregado em excesso ou de maneira não deliberada, compromete fatalmente a legitimidade da Corte Constitucional, ao passo em que gera descrédito quanto às outras instituições, transpassando que estas somente cumprem os deveres a que se propõem sob a pressão de uma decisão judicial. 409 CAPELLETTI, Mauro. Repudiando Montesquieu? A Expansão e a Legitimidade da 11 Justiça Constitucional''. Revista da Faculdade de Direito da Ufrgs, Porto Alegre, v. 20, p.261-286, out. 2001. Fernando Sá- advogado em Porto Alegre. Disponível em: . Acesso em: 14 maio 2018. 410 COURTIS, Christian. Editorial - Democracia, administración pública y derechos sociales. Espaço Jurídico Journal of Law [EJJL], [S.l.], v. 16, n. 1, p. 7-16, fev. 2015. ISSN 2179-7943. Disponível em: . Acesso em: 16 Mai. 2018. 411 SARAIVA, Paulo Lopo. Garantia Constitucional dos Direitos Sociais no Brasil. 18. ed. Brasília: Forense, 1983. 131 5.3 O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL COMO SUBSÍDIO PARA DECLARAÇÃO DE OMISSÃO ESTATAL Na terceira vertente de estudo da compatibilidade da teoria do estado de coisas inconstitucional com o sistema normativo brasileiro, é imprescindível constatar a funcionalidade e se há relevância prática dessa declaração. Ao se ter em conta que o estado de coisas inconstitucional possui natureza jurídica de técnica de interpretação, o fato de se declarar a existência de uma situação de reiteradas violações à Constituição da República é compatível com o ordenamento jurídico brasileiro. Todavia, não se pode deixar de notar a existência de normas que limitam o emprego desse método, isso porque não há coerência em se reconhecer o estado de coisas inconstitucional sem considerar também outras regras e princípios incidentes, que irão variar em cada caso concreto. Nada obstante a necessidade de uma análise individualizada para se determinar quais normas limitadoras da declaração do estado de coisas inconstitucional, o artigo 20 da LINDB incide sobre todos os casos. Dito isto, a análise das consequências práticas da decisão é uma obrigação adstrita a qualquer operador do direito. E é exatamente a partir do exame das várias posições sugeridas pelos interessados que culminarão na consequência lógica da decisão, que o julgador irá optar pela aplicabilidade ou não da técnica da declaração do estado de coisas inconstitucional. Outro balizador da aplicabilidade da teoria do estado de coisas inconstitucional é o artigo 37 da Constituição, trazido pela Emenda Constitucional nº 19 em 1998, que consagra o princípio da eficiência, inclusive a processual. Isso porque a Administração Pública tal qual se refere o dispositivo não se resume tão somente ao Executivo, já que o Poder é uno, mas o que Montesquieu propôs é a divisão de funções, entre Executivo, Legislativo e Judiciário, que coexistem de maneira autônoma e harmônica412. Sendo assim, o dever de obediência aos princípios resguardados pelo artigo 37 da Constituição, dentre os quais o princípio da eficiência, é dirigido também ao juiz. Cabe, portanto, ao operador do direito que faz uso da declaração do estado de coisas inconstitucional, considerar se esse reconhecimento sem quaisquer propostas e determinações concretas, seria eficiente na resolução do caso em discussão. Nesse contexto, é importante trazer à tona a tendência que vem sendo fortemente adotada pelo Supremo Tribunal Federal de proferir decisões concretistas, com vistas a satisfazer 412 AFONSO, João Tércio Silva. Os princípios da eficiência, celeridade processual e o poder judiciário. Artigo científico (Especialização em Direito Público) - Processus Faculdade de Direito, Taguatinga, DF, 2009. 132 o ditame do artigo ora em análise. Pode-se citar como exemplos disso o mandado de injunção nº 708, no qual a Corte aderiu à corrente concretista geral; os mandados de injunção nº 721, nº 728 e nº 795, em que se adotou a corrente concretista individual; e o mandado de injunção nº 232, partindo da concepção da corrente concretista intermediária. Desse modo, a teoria do estado de coisas inconstitucional, marca dessa tendência ativista do Judiciário, se revela como um mecanismo utilizado com vistas a subsidiar uma interpretação que permita a intervenção da Corte Jurisdicional em processos que versam sobre falhas estruturais, que violam direitos constitucionais, em razão do descumprimento por parte de diversas instituições. Para toda disposição ativista, há de se ter cautela. In casu, em sendo o estado de coisas inconstitucional instituto do qual o Brasil está pouco familiarizado, o cuidado deve ser redobrado, sob o risco de se proferir decisões inócuas, sem efetividade, decisões de plástico.413 Considerando os posicionamentos concretistas já tomados pelo STF, abre-se margem para questionar se esta declaração de estado de coisas inconstitucional seria tão inovadora assim, ou se o que de fato ocorria trata-se uma transmudação do que tradicionalmente já acontece na declaração de ato omissivo do Estado com uma sentença concretista. Um exemplo desse posicionamento já adotado pelo Supremo Tribunal Federal é o Mandado de Injunção nº 795, que em decisão de maio de 2009, decidiu pela aplicação ao servidor público, no que couber, das regras do regime geral da previdência social sobre aposentadoria especial, previsto no artigo 40, § 4º, inciso III da Constituição da República, até a edição de lei complementar específica. De fato, é notável a existência de saídas que podem ser adotadas pelo Judiciário para atribuir efetividade a certos direitos. Em um primeiro olhar, pode-se até dizer que elas colocam em xeque a relevância e eficácia da própria declaração do estado de coisas inconstitucional. Todavia, não se pode dizer que a ação direta de inconstitucionalidade por omissão ou o mandado de injunção é uma delas. Isso porque ambos visam dar efetividade à norma constitucional de eficácia limitada, isto é, dependem da edição posterior de normas que visem lhe dar eficácia plena. Dessa forma, a aplicabilidade dessa espécie normativa é mediata, indireta e reduzida414. 413 Remete à alusão dos crimes de plástico, os quais são criados sem a necessidade real de tipificação, mas como meio de resposta aos anseios da coletividade, em dado momento histórico, notadamente quando há pressão popular ou midiática. Esses novos tipos penais culminam, como a Lei 12.737 de 2012, com uma mínima ou nenhuma efetividade. 414 COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997. 133 O mandado de injunção é cabível quando se mostra ausente norma regulamentadora de direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes a nacionalidade, a soberania e a cidadania. A ação direta de inconstitucionalidade por omissão é cabível quando falta norma regulamentadora relacionada com qualquer norma constitucional de eficácia limitada415. Já a declaração do estado de coisas inconstitucional pode ser usada como método interpretativo em qualquer ação que demonstre o descumprimento reiterado de quaisquer normas constitucionais416. Dessa maneira, os casos em que se pode usar da declaração do estado de coisas inconstitucional são mais amplos do que o rol de possibilidades de se ajuizar uma ADO ou impetrar um MI. Inclusive, no caso da ADPF 347 e do RE 580.252 não se tratam de violações às normas constitucionais de eficácia limitada, ao contrário disso, as normas que preveem condições dignas de vida e de cumprimento de pena são de eficácia plena. 415 BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. 416 DANTAS, Eduardo Sousa. Ações estruturais, direitos fundamentais e o estado de coisas inconstitucional. Revista Constituição e Garantia de Direitos, Natal, p.155-176, out. 2019. 134 6 CONCLUSÃO Através desta pesquisa científica, entende-se que a introdução da teoria do estado de coisas inconstitucional no Brasil se revelou como uma modalidade de o Supremo Tribunal Federal demonstrar a sua tendência ao ativismo judicial, com vistas a preservar direitos fundamentais constitucionais. O sentido prático do tema analisado consiste em sintetizar a adequada utilização dessa teoria pelos operadores do direito no Brasil, para que ela desenvolva uma função de atribuir efetividade às decisões judiciais, na realização de direitos constitucionais. Imprescindível notar que a conjuntura política e social exerceu um papel estimulante nesta nova espécie de posicionamento do Judiciário. Tendo em vista o Estado Democrático de Direito, consagrado pela Constituição de 1988, o Brasil atribuiu força normativa constitucional aos direitos fundamentais, o que inclui o direito a uma vida digna, à saúde e ao cumprimento de pena sob os moldes legais. Neste sentido, ressalta-se o banimento a penas cruéis e a qualquer ato que venha configurar tortura. A própria Constituição da República imprime também a responsabilidade civil do estado pelos eventuais danos que possa causar a terceiros, seja agindo de maneira direta, seja de modo indireto, quando por intermédio de seus agentes. Ademais, a referida responsabilização não se cinge apenas às condutas comissivas, mas também aos atos omissivos, através dos quais o Estado provoca danos a outrem, quando possui obrigação específica de evitar. É nesta última situação que se insere o presidiário que é obrigado a cumprir sua pena em espaço mínimo de cela, juntamente com tantos outros presos em situação semelhante. Um ambiente insalubre, sem higiene ou alimentação adequada. Não há dúvidas de que tal cenário configura um estado de coisas contrário ao que prevê a Constituição da República, o que demanda a responsabilidade objetiva do Estado. Diversamente do que acontece, a pena deve ter o condão de retribuir de maneira proporcional o mal provocado pelo agente e de servir de instrumento ressocializador. Todavia, a realidade fática se revela cruel, desumana e degradante. Há flagrante violação a diversos artigos da Constituição da República, da Lei nº 9.455 de 1997, da Lei nº 12.874 de 1913, como também em fontes normativas internacionais adotadas pelo Brasil, como a Convenção da ONU contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984. Tendo como objeto a análise desse cenário, as duas oportunidades em que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de um estado de coisas inconstitucional, na Arguição 135 de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347 e no Recurso Extraordinário nº 580.252, ocorreram em virtude de violações reiteradas no sistema penitenciário nacional. Antes da declaração do estado de coisas inconstitucional no Brasil, a teoria já havia sido aplicada em outros países. De origem colombiana, já havia sido utilizada como meio para declarar omissão inconstitucional do Estado colombiano em diversos seguimentos, além do sistema penitenciário, como para assegurar os direitos previdenciários dos professores e direitos concernentes aos indígenas. Todavia, nem sempre as decisões que o utilizaram na sua fundamentação obtiveram sucesso. Da experiência colombiana, é possível extrair que se for ofertado um ambiente propício ao diálogo entre as instituições envolvidas na demanda, as chances de se alcançar o êxito do resultado são muito elevadas. A outro giro, nas ocasiões em que essa interação entre os interessados não foi considerada – inclusive quando a Corte Constitucional colombiana declarou o estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário daquele país –, a eficácia do julgamento foi um fracasso. Isso se deve ao fato de que pela realidade atual de uma sociedade aberta de intérpretes constitucionais, se aquela decisão proferida pela Corte Constitucional vai atingir determinadas instituições, é incongruente negá-los o direito de realizar a experiência interpretativa da Constituição, ao expressar seu ponto de vista. Através da análise de cada exposição, na busca pela solução da controvérsia, o julgador detém maior legitimidade para proferir a decisão. Além do mais, esta será mais factível e passível de ser efetivada, em razão do método concretista da Constituição aberta de Häberle, que deve ser empregado. Dessa forma, para que o emprego da teoria do estado de coisas inconstitucional no Brasil obtenha um resultado diferente, e melhor sucedido, que o da Colômbia, o reconhecimento precoce da necessidade de seguir determinados procedimentos na realização desse método interpretativo é essencial. Deve-se extrair dessas experiências transversais entre os países que a fizeram uso os pontos cruciais que devem ser seguidos, em especial, a necessidade de se considerar os impactos econômicos da decisão e se estimular, antes de tudo, um ambiente propício ao diálogo entre os interessados. Especificamente no cenário brasileiro, no Recurso Extraordinário nº 580.252, o Supremo Tribunal Federal se valeu da citada teoria para condenar o Estado ao pagamento de R$ 2.000,00 a título de danos morais suportados pelo presidiário que foi obrigado a cumprir pena em espaço mínimo de cela superlotada. Dessa forma, pelo reconhecimento da repercussão 136 geral da matéria, cada presidiário que se encontre em situação semelhante, pode pleitear a referida indenização ao Judiciário, basta que tenha um advogado disposto a executar sua defesa. Isso finda por favorecer alguns presos, em detrimento de tantos outros que não têm conhecimento dos seus direitos, tampouco um advogado a seu dispor. Importante destacar, neste julgado, que foi superada a dúvida acerca da maneira que o Estado deveria ser responsabilizado no caso de conduta omissiva. A responsabilidade do Estado por ato omissivo, quando este possuía dever específico de guarda e vigilância do preso, assegurando os seus direitos fundamentais respectivos, é objetiva. Isto é, o presidiário, estando sob a custódia do Estado, têm sua liberdade cerceada em prol da coletividade, e em contrapartida, cabe ao Poder Público resguardar o seu devido cumprimento de pena. Dessa forma, a responsabilidade do Estado, e consequente indenização se comprova, neste caso, pela demonstração do dano, da conduta omissiva e o nexo causal entre elas. Não é necessária a demonstração de dolo ou culpa da administração. Ao contrário do Recurso Extraordinário nº 580.252, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347 ainda não teve decisão de mérito proferida. Apesar disso, pelas manifestações já exaradas pelo Supremo Tribunal Federal, não há mais espaço para se questionar a aplicação do estado de coisas inconstitucional. Isso porque aberta novamente as discussões no decorrer desse processo, em virtude da pandemia da Covid-19 e dos possíveis impactos por ela causados aos presos, com os recentes pronunciamentos da Corte Constitucional, não resta dúvidas de que foi reconhecido um cenário penitenciário contrário à Constituição. Levando em consideração as particularidades da aplicação da teoria do estado de coisas inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, em comparação com o seu emprego pela Corte Constitucional da Colômbia, o próprio conceito deste estado de coisas é diferente no Brasil, tendo em vista o sistema jurídico e normativo que nos é característico. Ao contrário da Corte Constitucional colombiana, a brasileira não possui a facilidade de promover alterações na Constituição. Por isso, há de se ter um cuidado com a finalidade do uso dessa teoria no Brasil, sob pena de reduzir a força normativa da Constituição. Por isso, entende-se que na realidade brasileira, o estado de coisas inconstitucional consiste em um método interpretativo, que tem o condão de ampliar as possibilidades em que a tutela jurisdicional pode servir para atribuir eficácia e efetividade às normas constitucionais existentes, notadamente aquelas classificadas como de eficácia plena e que, nada obstante essa classificação doutrinária, não o são na prática. 137 Dessa maneira, a aplicação da teoria do estado de coisas inconstitucional é meio hábil para se concluir pela existência de uma violação constante e reiterada de direitos fundamentais, constitucionalmente assegurados. Por isso, emerge a necessidade de intervenção judicial, de modo a fazer cessar essa vulneração de direitos. Todavia, antes da decisão final, deve ser possibilitada uma ampla participação das partes afetadas, já que não é papel do Supremo Tribunal Federal resolver políticas públicas. Deve-se oportunizar o diálogo, e através das sugestões ora postas, se torna possível exarar um posicionamento que comporte uma solução dentre as suscitadas. Ademais, ao contrário do que ocorre na Colômbia, o estado de coisas inconstitucional no Brasil não concerne, meramente, a evitar proliferação de demandas semelhantes que tratam da mesma matéria. Isso porque no ordenamento jurídico nacional já existe mecanismo específico para tanto, qual seja o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Do mesmo modo, também não se pode relegar a importância da declaração do estado de coisas inconstitucional, sob a alegação que já existem soluções normativas que almejam, de igual modo, declarar uma omissão do Estado em dar eficácia a direitos constitucionais, citando- se o Mandado de Injunção e a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão. Todavia, há dois pontos relevantes que devem ser considerados para refutar a alegação supra. Em primeiro lugar, há de se notar que o Mandado de Injunção e a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão se prestam a reconhecer omissão do Estado no que tange às normas de eficácia limitada. Já o uso da teoria do estado de coisas inconstitucional, enquanto método de interpretação, não se limita tão somente a atribuir efetividade a esta espécie de normas. Com essa teoria, há uma ampliação do espectro normativo que pode se referir a qualquer norma constitucional, podendo ser inclusive de eficácia plena. É o caso da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347 e do Recurso Extraordinário nº 580.252, em que se discutiu a violação ao direito fundamental à vida digna, saúde e banimento de penas cruéis, que são de eficácia plena e deveriam ser observadas na prática. Em segundo lugar, enquanto o mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão cuidam da omissão legislativa, a declaração do estado de coisas inconstitucional tem o caráter precípuo de reconhecer a omissão administrativa, notadamente do gestor público em concretizar determinados direitos fundamentais. Sendo assim, o Supremo Tribunal Federal possui legitimidade para proferir esta declaração do estado de coisas inconstitucional, bem como o Judiciário como um todo. A própria sociedade, através do constituinte, quando da elaboração da Constituição da República 138 de 1988, escolheu atribuir à Corte Constitucional a função de resguardar os preceitos constitucionais. Dessa maneira, uma situação perenemente violadora de direitos fundamentais constitucionalmente assegurados, mesmo que esse agente violador seja o Poder Executivo, deve se submeter à apreciação do Supremo Tribunal Federal, não havendo que se falar em interferência ilegítima e vulneração da separação dos Poderes. Além disso, em virtude do Estado Democrático que institui a Constituição da República, cabe ao Supremo Tribunal Federal exercer função contramajoritária, de velar pelos direitos não só da maioria, mas também e principalmente da minoria que necessita da sua proteção. Aqui se enquadram os presos, camada marginalizada da população e que merece, sob o aspecto da igualdade material, um olhar atento da Corte para ter seus direitos fundamentais efetivados. Ademais, no que concerne ao respaldo jurídico da teoria do estado de coisas inconstitucional, há compatibilidade desta com a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, alterada pela Lei nº 13.655 de 2018. Mais que isso, após a introdução do artigo 20 do referido diploma, passou a ser essencial a conjugação desta lei no auxílio da concretização do uso da citada teoria, na busca pela consideração das consequências práticas da decisão pelo juiz, controlador e administrador. A declaração do estado de coisas inconstitucional, para obter resultados, já prezava por uma ponderação dialética entre todos os impactados pela demanda. O artigo 20 da LINDB reforça essa necessidade, atribuindo notoriedade a análise das consequências econômicas advindas da decisão. Há de se esclarecer, outrossim, que não há qualquer inconstitucionalidade do citado dispositivo no tocante ao princípio da separação do Poderes, tendo em vista que o legislador não criou dever que já não existisse no programa normativo. O dever de observância à proporcionalidade, eficiência e eficácia das decisões são máximas que culminam com o estudo das consequências práticas da decisão. O artigo 20 da LINDB apenas ressaltou esse olhar responsável e comedido que todo juiz, gestor e controlador deve ter. Posta assim a questão, a declaração do estado de coisas possui, em síntese, três balizadores: o artigo 20, da LINDB, o prévio estímulo ao diálogo institucional, e a separação dos Poderes, que distingue o ativismo judicial da invasão ilegal em outra esfera de Poder. Apesar da imprescindibilidade desses limitadores, eles não foram totalmente observados no Recurso Extraordinário nº 580.252, nada obstante o delicado tema que é a falha estrutural do sistema penitenciário. 139 Nessa perspectiva, notadamente no Recurso Extraordinário nº 580.252, a decisão final que concedeu R$ 2.000,00 para indenizar os danos morais sofridos por presidiário que se submeteu a cela superlotada não deu primazia ao aspecto das consequências econômicas dela advindas. A partir dela, um número exponencial de presos pode demandar igual valor, reduzindo os recursos disponíveis para investimento estrutural das penitenciárias, sem falar que essa indenização pode ser banalizada como um “pedágio de masmorra”. Não há dúvidas de que o custodiado que teve seu direito fundamental desrespeitado merece justa indenização. Entretanto, essa não foi a escolha mais condizente com a premissa do artigo 20, da LINDB. Neste diapasão, mais eficaz que estipular um valor para um dano constante sem solucioná-lo, é expandir a correta aplicação de medidas diversas da prisão – como a composição dos danos civis, a transação penal, a necessidade de representação em crimes de lesões corporais leves e culposas, e a suspensão condicional do processo –, com vistas a reduzir o número de condenados encarcerados, desafogando as penitenciárias brasileiras. Mais que se buscar alternativas de retribuir o infrator pelo seu desvio, demonstrou-se a utilidade de se desvendar os fatores que colaboram para o aumento da criminalidade. Nesse sentido, ao notar que a impunidade e sub-registros de crimes, a idade dos infratores e o abandono estrutural em determinados pontos da cidade se revelam como fatores diretamente relacionados ao fenômeno da criminalidade, é possível buscar meios para reduzir a dimensão desse problema. É possível expandir métodos já utilizados com a colaboração dos particulares, como o uso de câmeras de monitoramento, já utilizado pelo CIOSP, e criar novos, tendo como exemplo locais como Nova Iorque, no qual foi implantada a teoria de tolerância zero. Sendo assim, levando em consideração todo o exposto, o maior desafio da declaração do estado de coisas inconstitucional no Brasil é atribuir efetividade às decisões que se valem do uso desse método interpretativo. Uma decisão deve ser justa, mas também exequível, e para tanto, é imperioso considerar os efeitos econômicos atraídos por cada saída possível. O papel do magistrado que declara o estado de coisas inconstitucional não é exercer um ativismo indiscriminado e sem critérios na realização de políticas públicas. O direito, através da declaração do estado de coisas inconstitucional, deve ser usado enquanto técnica para que se concretize uma organização da sociedade, nos moldes previstos na própria Constituição. Ao trazer essa teoria para a realidade brasileira, em especial ao cenário do sistema carcerário, abre-se espaço para observações que remetem a necessidade de contenção da criminalidade pela implementação de políticas públicas por parte do administrador, como também do dever do próprio magistrado em atribuir a pena restritiva de liberdade como ultima ratio. 140 É imprescindível, portanto, uma rede de colaboração comprometida em ampliar seu campo de visão, já que decisões judiciais que ordenam a prisão quando podia ser aplicada alguma medida alternativa vão impactar nos investimentos despendidos pelo administrador. Ao passo em que, a ausência de políticas públicas faz nascer demandas judiciais na busca pela concretização daqueles direitos não concretizados. 141 REFERÊNCIAS ABRAHAM, Marcus. Curso de Direito Financeiro Brasileiro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, 411 p. ABRAMOVICH, Victor E. Linhas de trabalho em direitos econômicos, sociais e culturais: instrumentos e aliados. 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