UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL ANDRESA KARLA SILVA CARVALHO O TRABALHO DOS CARROCEIROS NA CIDADE DE NATAL: cotidiano, política e emoções em torno de uma atividade ameaçada NATAL 2016 ANDRESA KARLA SILVA CARVALHO O TRABALHO DOS CARROCEIROS NA CIDADE DE NATAL: cotidiano, política e emoções em torno de uma atividade ameaçada Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Antropologia Social. Orientador: Prof. Dr. Carlos Guilherme Octaviano do Valle. NATAL 2016 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA Carvalho, Andresa Karla Silva. O trabalho dos carroceiros na cidade de Natal: cotidiano, política e emoções em torno de uma atividade ameaçada / Andresa Karla Silva Carvalho. - 2016. 249f.: il. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Orientador: Prof. Dr. Carlos Guilherme Octaviano do Valle. 1. Políticas públicas - veículos de tração animal. 2. Condutores de veículos de tração animal. 3. Animais. 4. Urbanização. 5. Carroças. I. Valle, Carlos Guilherme Octaviano do. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 351.765:629.313 ANDRESA KARLA SILVA CARVALHO O TRABALHO DOS CARROCEIROS NA CIDADE DE NATAL: cotidiano, política e emoções em torno de uma atividade ameaçada Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Antropologia Social. Orientador: Prof. Dr. Carlos Guilherme Octaviano do Valle Aprovada em: 13/12/2016 BANCA EXAMINADORA: ______________________________________________ Prof. Dr. Carlos Guilherme Octaviano do Valle Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) (Orientador) ______________________________________________ Profª. Drª. Lilian Leite Chaves Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) (Examinador Interno) ______________________________________________ Prof. Dr. José Sérgio Leite Lopes Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ) (Examinador Externo) ______________________________________________ Profª. Drª. Lisabete Coradini Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) (Suplente) Ao meu amado Cauê por me ensinar na prática que viver não cabe no lattes. AGRADECIMENTOS Utilizo desse espaço para demonstrar minha gratidão àqueles que foram importantes nessa jornada, compartilhando diversos momentos de angústias e dúvidas decorrentes do próprio trabalho acadêmico, mas que se somaram a um duro momento político nacional que cooptou minhas atenções quando esta dissertação precisava ser finalizada. Através delas consegui me fortalecer e persistir, concluindo então minhas responsabilidades com o mestrado. Mas, mais que isso, são companheiras das lutas diárias que precisamos enfrentar e temer jamais! Agradeço profundamente aos meus pais, Rossini Torres e Sebastiana Maria, pela presença constante e fundamental. Também por todo o esforço e sabedoria com que lidam com as dificuldades da vida para dar o melhor que podem a seus filhos. E aos meus irmãos, Anne Carvalho e Rossini Junior, parceiros da vida. A Francisca Francinete, minha segunda mãe, que muito me acolheu e apoiou. A Igor Maia, pelo suporte e incentivo desde quando decidi cursar o mestrado, inclusive me acompanhando no campo em alguns momentos. Mas agradeço especialmente aos cuidados que trouxeram paz no meio da turbulência e à possibilidade do crescimento compartilhado. A Carlos Guilherme do Valle pela orientação preciosa nas trilhas acadêmicas, permitindo-me seguir bons caminhos. Agradeço a dedicação, as trocas e apoio desde o início do campo até a avaliação minuciosa dessa escrita. Agradeço ainda pelo amadurecimento que tive e pelos momentos em que me instigou de várias maneiras a ser uma pesquisadora. Aos amigos que suportaram minha necessidade frequente de dividir as descobertas e novas vivências por quais eu passava. Assim, agradeço especialmente às amigas que muito me empoderaram e me empoderam no dia a dia: Marlla Suellen, pela amizade que se fortifica cada vez mais; Ana Costa Cores, pela alegria e lealdade; Simone Maria, pela força encorajadora; Erika Paiva, pelo carinho e leitura deste trabalho, e a Fabíola Araujo que me estimulou com muitos debates. E aos amigos igualmente inspiradores: Marcos Saiande Casado, pelas incontáveis situações a quem recorri, pelo ombro acolhedor, e pela admiração cotidiana. A Manoel Romão pela potência criativa. A Erik de Oliveira pela irmandade e pelo modo como consegue frequentemente me trazer um sorriso. A Marlécio Maknamara pela sensibilidade e pelas contribuições mais diretas a esta pesquisa. E a Alexandre Aguiar pelas trocas de saberes. À UFRN, ao Centro de Educação, e ao Departamento de Práticas Educacionais e Currículo, pela possibilidade do afastamento de minhas funções de secretária para realizar as atividades do mestrado. De modo muito especial e carinhoso, à amiga Karyne Dias Coutinho pelo incentivo e alegria com os quais sempre me recebeu, especialmente quando estava no difícil cargo de chefia. Ao PPGAS/UFRN, principalmente aos docentes com os quais tive um contato mais frequente através das disciplinas cursadas: Elisete Schwade, Lizabete Coradini, Juliana Melo, Francisca Miller, Julie Cavignac. De modo destacado a Jean Segata, cujas contribuições estenderam-se ainda ao momento da qualificação. Também à servidora técnica Gabriela Cunha, uma amiga que tive a sorte de reencontrar nesse novo momento e ao bolsista João Pedro. Ainda ao secretário do Departamento de Antropologia, Adriano Freire, e ao bolsista Thiago pelas conversas agradáveis que tivemos. Ao professor José Sérgio Leite Lopes pelo aceite em participar da banca de defesa deste trabalho e igualmente a Lilian Leite Chaves, que ainda contribuiu no momento de minha qualificação. Agradeço a oportunidade de aprender mais. Aos colegas de turma, especialmente aqueles que compartilharam mais de perto as dificuldades que um mestrado impõe e hoje são grandes amigos: Luciana Davi, por toda a acolhida e pela sinceridade que sacode. A Cleiton Vieira, por todas as noites beirando madrugadas que trocamos ideias e reafirmamos nossa vontade de fazer o melhor e nos fazermos melhores. De forma muito especial, agradeço aos carroceiros e seus familiares, que gentilmente permitiram minha entrada em suas vidas e a realização desta pesquisa. Através do compartilhamento de suas histórias e de seus conhecimentos possibilitaram-me valorizar ainda mais a beleza e importância da empatia. Por fim, às outras vozes dessa pesquisa, mesmo não desenvolvendo maior proximidade: às protetoras dos animais e aos servidores das instâncias públicas que do mesmo modo receberam-me bem em suas casas ou locais de trabalho. Espero que essa pesquisa possa servir para ampliar, assim como aconteceu comigo, as percepções sobre o uso dos animais e das carroças em Natal. RESUMO O processo contínuo de urbanização aparece como um elemento motivador de conflitos em torno do que pode ser permitido ou não nos espaços que constituem as cidades. É o caso do uso tradicional de carroças movidas à tração animal, que vem sendo fortemente questionado e inclusive progressivamente proibido em muitas capitais brasileiras. Em Natal (RN), ocorre o mesmo processo, cuja proibição está sendo determinada através da implantação da Política Municipal de Retirada de Veículos de Tração Animal (PMRVTA), que, até o momento desta pesquisa, ainda está em fase de discussão. A construção dessa proposta de política pública conta com a participação de uma relação extensa e bastante heterogênea de agentes e instituições que conflitam com uma diversidade de pessoas que fazem uso das carroças para diferentes fins, porém, destacando-se sobretudo o uso para o trabalho. Dessa forma, diante de um quadro onde esta forma de trabalho encontra-se ameaçada por questionamentos e denúncias de diversos segmentos, buscamos compreender: quais são as práticas, dilemas e impactos sociais que estão sendo vivenciados por carroceiros em Natal? Nesse sentido, pretendeu-se, através de pesquisa etnográfica (utilizando-se de observação participante, entrevistas e análise de documentos) apresentar o universo de experiências dessas pessoas, analisando os conflitos existentes em torno do uso de carroças e do trabalho a ele relacionado. Consideramos como se processam as dinâmicas de conflito a envolver os mais diversos agentes do poder público, além de especialistas e ativistas/ONGs de defesa dos animais, principalmente, e os carroceiros, que refletem disputas e relações de poder profundamente desiguais neste jogo que é a própria construção da PMRVTA. Percebemos como as moralidades e emoções, associadas às pretensões de modernidade e urbanidade, são elementos que se destacam neste campo, repercutindo de forma séria nas vidas de carroceiros, cuja máxima encontrada na elaboração desta política pública concorre para desestruturar profundamente um mundo social específico, no qual a relação entre os humanos e seus animais é elemento fundamental para especialmente sustento e deslocamento das famílias. Palavras-chave: Carroceiros. Trabalho. Animais. Urbanidade. Moralidade. Emoções. Política Pública. ABSTRACT The continuous process of urbanization seems to be a stimulus to conflicts in relation to what can be allowed or not in urban spaces. This is the case of traditional use of carts moved by animal traction, which has been strongly questioned and progressively banned in many Brazilian cities. In Natal (Rio Grande do Norte), the same process occurs and this prohibition is determined by the implementation of the Municipal Policy for the Removal of Animal Traction Vehicles (so called PMRVTA), which is still under discussion. The formulation of a public policy proposal has been developed with the participation of a large and very heterogeneous number of agents and institutions which get into conflict with a diversity of people who use animal carts for different aims, although many people drive animal carts as their main job. While we consider that this kind of work is threatened by complaints and public denunciations made by different social segments, this Master dissertation aims to understand the practices, dilemmas and social impact undertaken by animal cart workers in Natal. Conducting an ethnographic fieldwork, which was mostly based on participant observation, in-depth interviews and document analysis, we have intended to present the world of experiences lived by these cart workers. Meanwhile we analyze the conflicts related to the work with animal carts as well as the specificity concerning this job. We consider the dynamics of social conflict among many different public authorities and agents, specialists, above all animal protection activists and NGOs, besides the animal cart workers. All these conflict demonstrate disputes and deeply unequal power relations in regard to the discussion and formulation of the PMRVTA. In addition, we intend to understand how moralities and emotions, associated to claims for modernity and urban life, are highlighted in this social field and, therefore, they might strongly affect animal cart workers lives. Ideas related to this public policy disturb a particular social world, which is based on the profound relationship between humans and their animals through which family care and transport are conditioned. Keywords: Cart workers. Work. Animals. Urbanity. Morality. Emotions. Public Policy. LISTA DE SIGLAS ACP Ação Civil Pública ARENA Aliança Renovadora Nacional BO Boletim de Ocorrência CAERN Companhia de Águas e Esgotos do Rio Grande do Norte. CBTU Companhia Brasileira de Serviços Urbanos CEASA Centro de Abastecimento do Rio Grande do Norte CEMURE Centro Municipal de Referência em Educação Aluízio Alves CEV Carroça Elétrica Veiculável CHESF Companhia Hidrelétrica do São Francisco CIPAM Companhia Independente de Proteção Ambiental CNH Carteira Nacional de Habilitação CRAS Centro de Referência em Assistência Social DEM Partido Democratas DETRAN Departamento Estadual de Trânsito do RN EPI Equipamento de Proteção Individual. FGTS Fundo de Garantia do Tempo de Serviço IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis INSS Instituto Nacional de Seguro Social MDS Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome MOBRAL Movimento Brasileiro de Alfabetização MP Ministério Público ONG Organização Não Governamental PDS Partido Social Democrático PDT Partido Democrático Trabalhista PFL Partido da Frente Liberal PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro PMRVTA Política Municipal de Retirada de Veículos de Tração Animal PPB Partido Progressista Brasileiro PSB Partido Socialista Brasileiro PSDB Partido da Social Democracia Brasileira PSOL Partido Socialismo e Liberdade PT Partido dos Trabalhadores PTdoB Partido Trabalhista do Brasil RCC Resíduo da Construção Civil SEDA Secretaria Executiva dos Direitos dos Animais/Recife (PE) SEMOB Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana SEMSUR Secretaria Municipal de Serviços Urbanos SEMTAS Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social SEMURB Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo SEPLAN Secretaria de Planejamento do Estado (SEPLAN) SESI Serviço Social da Indústria STTU Secretaria de Transporte e Trânsito Urbano URBANA Companhia de Serviços Urbanos de Natal VTA Veículo de Tração Animal SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 13 A forma de caminhar e os caminhos percorridos ............................................................... 18 Pesquisadora “em campo” ................................................................................................ 27 CAPÍTULO I - NATAL E SUAS CARROÇAS ................................................................... 37 1.1 Outra Natal: organização e apoio ao trabalho dos carroceiros ...................................... 46 1.2 A Associação dos Carroceiros de Natal ....................................................................... 52 1.3 Tecendo trajetórias: Carroceiros de ontem e de hoje ................................................... 64 1.4 Novos tempos, novas exigências: uma síntese ............................................................. 73 CAPÍTULO II - VIDA CARROCEIRA ............................................................................... 75 2.1 Ser carroceiro ............................................................................................................. 85 2.2 O bom-profissional ..................................................................................................... 97 2.3 Ampliando a pesquisa: três comunidades da Zona Oeste ........................................... 105 2.4 O trabalho como valor moral .................................................................................... 112 CAPÍTULO III – ANIMAIS .............................................................................................. 115 3.1 Criando uma rede de relações ................................................................................... 117 3.2 O “zelo” ................................................................................................................... 120 3.3 Roubos ..................................................................................................................... 124 3.4 Feira de cavalos ........................................................................................................ 128 3.5 O homem e o animal ................................................................................................. 134 CAPÍTULO IV - A CONSTRUÇÃO DE UMA POLÍTICA PÚBLICA ............................. 141 4.1 Etnografando uma audiência pública......................................................................... 146 4.2 O cadastramento ....................................................................................................... 152 4.3 Discutindo a mobilidade urbana ................................................................................ 158 4.4 Sobre o despejo (irregular) de resíduos ..................................................................... 162 CAPÍTULO V – EMOÇÕES, MORALIDADE E DIGNIDADE ........................................ 170 5.1 Controvérsias sobre o uso dos animais ...................................................................... 172 5.2 Moralidade, Emoções e Dignidade ............................................................................ 184 5.3 A fabricação da maioria ............................................................................................ 197 JOGANDO COM A “SOLUÇÃO” (Considerações finais) ............................................. 203 REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 232 APÊNDICES ..................................................................................................................... 241 ANEXOS ........................................................................................................................... 247 13 INTRODUÇÃO Nos últimos dez anos, surgiu socialmente um quadro desfavorável ao tradicional exercício dos carroceiros, o que muito se deve às pressões do ativismo dos direitos animais, que denuncia a ocorrência de maus-tratos aos animais usados na tração, apesar de virem à tona outras questões nos debates sobre o uso das carroças. Nesse sentido, muitas das proibições que vêm ocorrendo para esta forma de trabalho e de locomoção decorrem da dificuldade de aglomerados urbanos em lidar com essa prática. Assim, temos uma relação expressiva de capitais brasileiras1, que vêm se debruçando sobre esta questão2. Isso tem acontecido também em Natal, mas, em seu caso, é fundamental considerar os significados de sua urbanidade e o foco do caráter turístico em que a cidade se pauta. É pertinente entender como a própria imagem enquanto cidade turística, que se alavancou sobretudo a partir da década de 1990, mas que se acentuou na década anterior, voltada ao fluxo de estrangeiros e à recepção de capital externo, também contribuiu para criar um cenário de discussão em torno do impedimento do uso dos veículos de tração animal. Dessa forma, damos destaque à realização dos jogos da Copa do Mundo em Natal, no ano de 2014, que motivou também o início do debate e primeiras iniciativas para a proibição do uso das carroças em 20103, dentre as quais podemos destacar a tentativa de cadastramento dos carroceiros da cidade para “embasar uma política pública”. Entretanto, foi a partir de 2011, que as iniciativas se tornam mais intensas quando se estabeleceram mecanismos políticos e judiciais para a “extinção” da atividade na forma em que ela tradicionalmente ocorre, qual seja, o uso de carroças puxadas por um animal, culminando na elaboração de uma Ação Civil Pública pela Promotoria do Meio Ambiente. A 1 Alguns exemplos de capitais que discutiram, em torno da última década, a circulação de carroças: Vitória; Recife; Porto Alegre; Florianópolis; Belo Horizonte, Brasília; e Curitiba. A cidade do Rio de Janeiro regulamentou a atividade, com restrição do acesso, em 2001. E a cidade de São Paulo proibiu o trânsito de carroças desde 1995. 2 Em relação propriamente aos animais, é importante destacar alguns trabalhos que relacionam as proibições de algumas práticas que envolviam o uso de animais aos reflexos de uma crescente urbanização. Desse modo, além dos próprios carroceiros, encontramos a contestação da farra do boi, como aconteceu em Santa Catarina, sobretudo na década de 1980/90 (CHAVES, 1992; LACERDA, 1994) e a briga de galos (CORREA, 2012). 3 A decisão de escolha das cidades-sede para a realização da Copa do Mundo de 2014 foi dada em 31 de maio de 2009. Disponível em: http://globoesporte.globo.com/Esportes/Noticias/Futebol/0,,MUL1177312-9825,00- BRASIL+CONHECE+AS+CIDADES+QUE+RECEBERAO+PARTIDAS+DA+ COPA+DE.html, acesso em setembro de 2015. 14 Ação conduziu a um acordo entre o Ministério Público e o Município de Natal determinando o estabelecimento de um prazo de cinco anos, a partir da sentença do juiz, que foi expedida em setembro de 2013, para que o uso da tração animal fosse completamente proibido na cidade. Desde então, a Prefeitura de Natal vem concebendo, ajustando e definindo, sobretudo através de audiências públicas, sua Política Municipal de Retirada de Veículos de Tração Animal (PMRVTA). Tal política atualmente está sob a forma de minuta de lei a ser ainda apreciada pela Câmara dos Vereadores, onde deverá ser votada para, então, ter a sanção do prefeito. A política tem um caráter totalizante: ao passo que determina a proibição do uso de veículos de tração animal4, também visa proibir outras formas de trânsito de animais ungulados na cidade ao incluir o trânsito montado e o uso de carga em animais. Apesar de se voltar a quase todo o trânsito de animais ungulados na cidade, contando com algumas exceções, a Política claramente se direciona à situação da circulação de carroças, mobilizando diversos discursos, pronunciamentos e debates quanto a essa questão. Em alternativa ao fim do uso de carroças, a Prefeitura de Natal que inicialmente apoiou a substituição da carroça tradicional pela “Carroça Elétrica Veiculável (CEV)” passou, nos anos seguintes, a defender a “inclusão” através da promessa de cursos profissionalizantes e oportunidades de emprego5. Acompanhando as discussões em torno das atividades dos carroceiros em Natal, através de parte das audiências públicas realizadas, observamos diversos agentes que se posicionam em torno da formulação da PMRVTA. De um modo geral, para análise desta pesquisa, podemos dividi-los entre os interesses do poder público que, aliado às ONGs, definem-se como representantes da “sociedade natalense”, mostrando-se em tensão com aqueles que defendem os interesses de um grupo particular, no caso os carroceiros. Dessa forma, as questões que se estabelecem em torno do trabalho dos carroceiros refletem o debate entre aqueles que reivindicam um interesse coletivo e as liberdades de ser e estar de um grupo específico6, que pertence também à essa coletividade, tal como traz Lacerda “aqui e ali 4 Segundo o Código Brasileiro de Trânsito, em seu anexo I, são considerados veículos de tração animal a carroça (para transporte de carga) e a charrete (para transporte de passageiros). 5 De modo a facilitar a descrição no texto, por vezes nos referimos a uma “política de retirada de carroças”, entretanto compreendemos que ela abarca outros usos dos animais para além das carroças tradicionais. Embora conste na atual minuta da PMRVTA a possibilidade do uso de “veículos movidos por combustíveis não poluentes nas atividades de frete e coleta de resíduos recicláveis” também como alternativa aos carroceiros, ela não encontra uma posição de destaque como em 2011, aparecendo em menções bem rápidas e vagas nas últimas audiências frequentadas. 6 Apesar de estarmos cientes das diferenças existentes entre os que compõem esse grupo. 15 aparecem conflitos ideológicos em que se põe de um lado valores tidos como universalistas e de outro formas e práticas culturais particulares” (1994, p. 124). Dentre os agentes que estão envolvidos nas interações, conflitos e negociações com os carroceiros, é possível elencar a Prefeitura de Natal e suas agências de administração pública: a Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana (SEMOB), sobre a questão do trânsito; a Companhia de Serviços Urbanos de Natal (URBANA), em razão da gestão dos resíduos sólidos; a Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo (SEMURB), sobre os assuntos voltados à gestão urbana, no sentido da adoção de medidas administrativas; a Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (SEMSUR), que também responde às questões urbanas, embora abarque um plano maior de operacionalização, que inclui, por exemplo, a apreensão dos animais e sua destinação ao Curral Municipal, ligado a esta Secretaria; o Centro de Zoonoses de Natal, pela questão epidemiológica; e a Guarda Municipal, para atuar na fiscalização e apreensão de animais. Nesse sentido, também citamos o Governo do Estado do RN, através de seu aparato policial: Delegacia Especializada em Proteção ao Meio Ambiente (DEPREMA) e a Companhia de Proteção ao Meio Ambiente (CIPAM), que é vinculada à Polícia Militar. Como já sinalizamos, está envolvido, sobretudo, o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte, através de sua Promotoria do Meio Ambiente, que denuncia a “degradação” causada pela atividade dos carroceiros na cidade e ao meio ambiente; e, por fim, de um modo geral, com os ativistas de direitos dos animais, especialmente protetoras7, pessoas ligadas à Organizações Não Governamentais (ONGs), que se fazem sempre presentes nas audiências, em virtude de denúncias de maus-tratos aos animais. Além disso, é preciso considerar a atuação da imprensa nesse cenário, como agente formador da opinião pública, que, em geral, adota posicionamento de denúncia perante a atividade dos carroceiros. Imediatamente nos chama atenção a dimensão desse conflito através de um conjunto extenso, heterogêneo e plural de agentes e instituições que mantêm relações e disputas com os carroceiros, evidenciando forte assimetria entre eles. Aqui damos destaque, em especial, a todo um aparato de controle, através de fiscalização e apreensão, entre outros, que apresenta- 7 Destaca-se aqui no gênero feminino pela esmagadora maioria de mulheres no exercício desta militância nas audiências. A título de exemplo, não houve, nas quatro audiências que analisamos para a elaboração deste trabalho, uma única fala de um homem se identificando enquanto protetor dos animais. Apesar disso, é um homem, médico veterinário, que assume representação de uma associação de proteção animal em Natal. Contudo, apenas o vi em uma reunião ocorrida na sede da Prefeitura mas o mesmo não se pronunciou. 16 se muito frequentemente aos carroceiros: trata-se do aparato policial. Para além desses agentes que citamos, há também que considerar o conflito entre os carroceiros e os policiais civis, embora esse tenha sido invisibilizado nas audiências. Assim, na tentativa de dar conta da complexidade dos diferentes agentes envolvidos nessas disputas, utilizaremos do aporte teórico de Pierre Bourdieu (1983), através da teoria dos campos, para pensar a formação de um campo social por meio do qual agentes e pessoas se posicionam e disputam através de relações de força e de poder diferenciados, especificando uma distribuição desigual de capital social, político e cultural. Para Bourdieu, um campo é definido através “da definição dos objetos de disputas e interesses específicos que são irredutíveis aos objetos de disputas e aos interesses próprios de outros campos [...] que não são percebidos por quem não foi formado para entrar nesse campo” (1983, p.01). Sua proposta foi inspiradora para muitas pesquisas, inclusive a minha8. Diante de um contexto em que o trabalho dos carroceiros é questionado por várias frentes, convém compreender: quais são as práticas e dilemas sociais que são vivenciados por parte dos carroceiros em Natal? Nesse sentido, pretende-se apresentar o universo de experiências dessas pessoas, compreendendo os conflitos existentes em torno desta atividade. Pretendemos ainda: acompanhar e discutir as transformações históricas da cidade de Natal que repercutiram no trabalho dos carroceiros; compreender as subjetividades e dinâmicas envolvidas nesta forma de trabalho, onde o trato com os animais se mostra uma questão especial; situar os conflitos que emergem através da elaboração e da definição de uma política pública voltada a uma alegada proteção animal, onde apresentamos diferentes percepções dos agentes envolvidos nesse contexto; e analisar diversas questões situadas nos campos da política, do conflito e das emoções que sobressaem dessas disputas societárias. Entretanto, entendemos que há uma complexidade que precisou ser enquadrada nesta dissertação, e desde já pontuamos que não há pretensão em apontar “soluções” para as demandas que aqui aparecem, e nem o poderíamos pois está muito além das nossas capacidades. 8 Essa teoria também inspirou Carrara (1996), embora tratasse de temática bem distinta desta pesquisa. Assim, ao tratar dos debates especializados para enfrentamento da sífilis, ele trabalha a ideia de campo, mas vai além daqueles campos “quase estruturais”, entendidos assim dada a permanência deles em nossa sociedade (como os científico, político, jurídico, entre outros). Detém, desse modo, em outro tipo que campo social, focando nas relações que se formam nas interseções de vários campos estruturais, constituindo o que o autor traz por “campo conjuntural” que, explica, é “voltado à discussão de um problema bastante específico e destinado a com ele desaparecer” (CARRARA, 1996, p. 19). 17 O que podemos nos deter e discutir é a relevância dessa pesquisa a partir da visibilidade a um “grupo”, apresentando algumas de suas experiências vividas na cidade, e que possui demandas urgentes pela ameaça do impedimento de seu modo de trabalho. Deve- se, porém, esclarecer a respeito da categoria “carroceiro”: há uma multiplicidade de pessoas, de relações, interesses, entre outros, que acabam englobados neste termo, que passamos a restringir a partir do uso tradicional das carroças, movidas por animais. Além disso, impõe-se questionar, através da situação particular desta pesquisa, especialmente, as construções do ideal e o projeto de cidade que, nesse processo, repercutem em violências como a que acontece aos trabalhadores de carroça em Natal. Violências que são reforçadas através de medidas governamentais como as políticas públicas, alegando-se, para tanto, o desejo coletivo e o bem-estar da maioria. Ou seja, as justificativas para retirar as carroças de Natal vão mais além do uso dos animais – é o que se alega, por exemplo, para o início dos debates nas audiências públicas – e também do trânsito e surgimento de “lixões”, embora sejam temas que demandam uma intensa mobilização. É a própria forma de trabalho que passou a ser alvo de tensões societárias na cidade, e que, portanto incomoda, pesando sobre ela diversos tipos de acusação. Busca-se, entretanto, extinguir não só uma forma de trabalho mas um mundo social que não mais é permitido coexistir no espaço “urbano”, “moderno” e “turístico” de Natal. Nesse sentido, a realização desta pesquisa se dá tendo como base uma reflexão que aproxima a disposição e organização do trabalho, mas também os modos de vida de um grupo que estamos aqui trazendo por “carroceiros” aos valores do mundo rural potiguar – que, no caso específico desta pesquisa, tornam-se conflitantes no espaço urbano em que acabam inseridos. Partimos do entendimento de que muitas das práticas que propiciam e geram esta forma de trabalho em muito se assemelham às que são instituídas por agricultores ou trabalhadores rurais, ou seja, elas remetem-se, em um nível societário específico, aos sujeitos e mundos sociais que comumente vêm sendo estudados a partir da categoria campesinato9. Essa especificidade se mostra através da continuidade histórica que pode ser resgatada em trajetórias individuais e coletivas de carroceiros e familiares que apontam para processos 9 Pesquisas nos mostram como há uma grande diversidade de populações que acabam englobadas nesse termo sejam cultivadores, agricultores ou extrativistas. Mas, para estabelecer uma simetria entre elas, Godoi, Menezes e Marin (2009) trazem o entendimento de possibilidades de objetivações de práticas que permitem compreender esta categoria. Sobre as práticas, as autoras esclarecem que são: “orientadas pelo universo simbólico dos agentes sociais em questão, pelas representações, pelas categorias e regras segundo as quais pensam e vivem sua existência” (GODOI, MENEZES e MARIN, 2009, p. 8). 18 migratórios do interior potiguar para Natal, ou seja, do campo para a cidade. Assim, acabamos por encontrar certa tradição que, podemos dizer, migra para a cidade e então se imiscui de valores das classes populares urbanas, situando-se nos meandros dessa interface entre o rural e o urbano. Estamos considerando, portanto, a coexistência de concepções culturais e mundos sociais em articulação, em especial para os carroceiros que acompanhei. A forma de caminhar e os caminhos percorridos É preciso tornar claro de que forma “caminhamos”, ou seja, percorremos a pesquisa, e qual a abordagem que buscamos. Segundo Velho, “o antropólogo lida e tem como objetivo de reflexão a maneira como culturas, sociedades e grupos sociais representam, organizam e classificam suas experiências” (1980, p.18, grifos do autor). Assim, o autor coloca que precisamos ir além da mera observação e perceber o arbitrário da vida social daquilo que é cotidiano. Faz parte, dessa forma, ao papel do antropólogo “procurar perceber como os indivíduos da sociedade investigada constroem e definem a sua realidade, como articulam e que peso relativo têm os fatos que vivenciam” (VELHO, 1980, p. 16). Entretanto, estamos cientes que lidamos com uma realidade, que é a vida cotidiana "subjetivamente dotada de sentido para eles na medida em que forma um mundo coerente" (BERGER E LUCKMANN, 1990, p. 35), de um mundo que se constitui de múltiplas realidades. Velho apontava também como a realidade (seja familiar ou exótica) "sempre é filtrada por um determinado ponto de vista do observador, ela é percebida de maneira diferenciada” (1978 p.9). Nesse sentido, ele coloca como a antropologia trabalha com uma objetividade relativa, pois ao lidarmos com uma interpretação, a subjetividade é parte presente na pesquisa e no trabalho acadêmico como um todo, embora construída a partir de uma experiência que pode ser em parte objetivada. Nesse sentido, trazemos Velho ainda para justificarmos, para esta pesquisa, o caráter relativo de familiaridade daquilo que Da Matta defende como uma dupla tarefa do etnólogo: “transformar o exótico em familiar e transformar o familiar em exótico” (1978, p. 4), para que possamos acrescentar aí noções de distância social e distância psicológica. Estarmos inseridos, meus interlocutores e eu, no mesmo espaço físico da cidade de Natal não significa 19 que a mim sejam familiares já que há “descontinuidades vigorosas” entre o meu mundo e o deles, embora eu estivesse familiarizada com o cenário e a situação social de um carroceiro sozinho ou com sua família nas ruas e conseguisse os classificar dentro de uma hierarquia de poder para a qual fomos socializados (VELHO, 1978). Desse modo, Velho alertava para a observação de uma “realidade bem mais complexa do que aquela representada pelos mapas e códigos básicos nacionais e de classe através dos quais fomos socializados” (1978, p.12). Defendia, além disso, como é possível o processo de estranhar o familiar quando “somos capazes de confrontar intelectualmente, e mesmo emocionalmente, diferentes versões e interpretações existentes a respeito de fatos, situações” (ibid). Diante desses pressupostos, realizamos um estudo etnográfico, entendendo a etnografia não apenas como texto descritivo, mas também interpretativo, num esforço intelectual em busca de significado (GEERTZ, 1978). Contudo, há clareza de que “o texto etnográfico em geral é uma redução brutal das inúmeras possibilidades de interpretação da experiência de campo e do difícil exercício de alteridade realizado entre o antropólogo e seus interlocutores” (SILVA, 2000, p.118). Até porque trabalhamos com dados que “são realmente nossa própria construção das construções de outras pessoas” (GEERTZ, 1978, p. 7). A etnografia que realizamos está sendo norteada por alguns dos fundamentos do trabalho de campo proposto por Malinowski. Um deles é o de buscarmos inspiração na teoria e desta forma “levar problemas ao campo, estar habituado a moldar suas teorias aos fatos e observar estes na relação com as teorias” (1976, p.23), com preocupação na descrição das “condições sob as quais as observações foram efetuadas e as informações recolhidas” (ibid: p. 18) e na “recolha de dados concretos sob uma vasta gama de fatos” (ibid: p.27). O que passa ainda pela atenção ao que o autor denomina de “imponderáveis do cotidiano”, pois são eles a nos fornecer dados significativos do modo de vida do grupo estudado, através de um “esforço de penetração na atitude mental” (ibid: p. 31) que esses fatos expressam. Nesse sentido, buscamos ainda interpretar e desvendar as evidências simbólicas, como mais uma das tarefas necessárias ao trabalho etnográfico (OLIVEIRA, 2007). Ainda segundo Cardoso de Oliveira, a compreensão da vida social só se realiza através do entendimento da dimensão simbólica pois é a partir do “foco em situações sociais empíricas concretas, e bem delimitadas geograficamente” que podem ser “discutidas questões de maior abrangência, em sintonia com aspectos universais da vida social” (OLIVEIRA, 2007, p.7). 20 Assim, optamos pelo uso da observação participante para a busca de compreender (vivenciar) o cotidiano dos sujeitos aqui estudados, os carroceiros, a fim de melhor entender suas realidades – tratando aqui de considerar a dimensão do “indivíduo participante” que é o pesquisador, em uma busca por uma “participação parcial” de modo que não se torne unicamente um participante e nem acabe na participação inobservante (CABRAL, 1983). A partir dos primeiros contatos, fomos mapeando outros espaços de modo a ampliar a pesquisa. O trabalho de campo mais propriamente, excetuando os primeiros contatos em outubro e novembro de 2014, foi realizado a partir da segunda semana de junho de 2015 e continuou até a segunda semana de agosto do mesmo ano. Retornaríamos, depois, para finalizar algumas questões do campo e para a aplicação de entrevistas entre dezembro de 2015 a abril de 2016. Durante os intervalos, concentramo-nos especialmente na fundamentação teórica desta pesquisa. Além dos nomes dos carroceiros interlocutores, que aqui são todos fictícios10, entendemos a necessidade de manter sigilo quanto a alguns dos locais por mim visitados, embora saiba que alguns deles sejam de conhecimento das esferas de controle do poder municipal. Assim, optamos por não localizar precisamente os espaços frequentados de modo a tentar resguardar carroceiros e famílias de uma ação institucional que seja facilitada por nossa pesquisa. Portanto, podemos dizer que frequentamos alguns pontos de trabalho de carroceiros em Natal. Um deles, nomearei de ponto11 da praça, por estar localizado em praça pública em área nobre de Natal. Este foi o ponto que acompanhei com mais frequência. Outro, foi o ponto do depósito, nomeado assim por se encontrar dentro de um depósito de material de construção que está localizado em área comercial da cidade. Frequentamos ainda residências de carroceiros para realização de algumas entrevistas e conversas informais, além de uma visita a uma feira de cavalos, evento que reúne dezenas de carroceiros. Também comparecemos em audiências públicas nos dias 18 e 24 de junho de 2015 e 06 de abril de 2016, e em duas reuniões restritas, sendo uma na Prefeitura de Natal, no dia 08 de dezembro de 2015, onde carroceiros não estiveram presentes, e outra em comunidade na Zona Oeste, em 12 de março de 2016, quando acompanhei a organização de alguns 10 Optamos por não tornar anônimos os agentes dos poderes públicos quando encontravam-se em exercício de representação institucional, considerando, entretanto, apenas os momentos das audiências públicas. As entrevistas concedidas a mim por alguns deles permanecem sem a referência aos nomes verdadeiros. Da mesma forma, protetoras dos animais não têm seus nomes aqui divulgados. 11 Ponto é uma categoria encontrada "em campo", que iremos apresentar no 2º capítulo. 21 carroceiros frente à Política. Além da participação nesses espaços, também tive acesso a duas gravações de outras audiências públicas realizadas em 16 de setembro de 201112 e 17 de junho de 201513. As entrevistas que realizamos buscaram contemplar os diversos agentes sociais envolvidos, quais sejam: 11 carroceiros e 01 representante ligado à defesa dessa categoria; 03 protetoras dos animais envolvidas mais diretamente nas discussões e 05 agentes do poder municipal e do Ministério Público14. Em relação à pesquisa etnográfica entre os carroceiros, ao fazer as visitas in loco, utilizei inicialmente o caderno de notas em muitas idas ao ponto da praça, mas encontrei algumas dificuldades para seu uso. Se no começo eu entendia que o caderno estava sendo bem aceito, algumas situações mostrariam como o seu uso dificultava a aproximação. Surgiram algumas piadas como “cuidado que a menina vai anotar isso”. Outras vezes, em conversas com alguns carroceiros, nossos diálogos foram interrompidos para que eles enfatizassem um “anote aí”, além de sentir olhares curiosos sobre o que eu escrevia. De forma a comparar as situações em que fazia uso do caderno de notas e quando o não, em alguns dias passei a não utilizá-lo. Comecei a notar que assim havia uma abertura e uma liberdade maior em nossos diálogos. Apesar de não ter utilizado o caderno de notas em todas as visitas aos contextos de pesquisa, fiz o registro rápido desses encontros no diário de campo. Já nas audiências públicas, minha presença foi tranquilamente recebida, inclusive fazendo uso do gravador e do caderno de notas, afinal também havia vários jornalistas ali registrando as reuniões. Assim, passei despercebida, até mesmo pela quantidade de pessoas que estavam ali presentes. Apenas na audiência na Promotoria de Justiça, eu perguntaria à Rossana Sudário, Promotora do Meio Ambiente, sobre a possibilidade de colocar meu gravador em cima da mesa, e ela me responderia afirmativamente, pois “não estava fazendo nada errado”. Também todas as entrevistas foram gravadas. 12 Tive acesso ao áudio desta audiência através do site do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte. Disponível em: , acesso em setembro de 2015. 13 Acompanhei vídeo dessa audiência através da TV Câmara, que é responsável por filmar e transmitir todas as audiências que são realizadas na Câmara Municipal de Natal. Solicitei ainda à TV Câmara a disponibilização da audiência de 03 de setembro de 2012, mas me informaram não terem encontrado a gravação. 14 As entrevistas aconteceram em média de 25 minutos a 02 horas e 20 minutos. Em relação às entrevistas realizadas nos locais de trabalho de carroceiros, houve certa dificuldade quando uma grande parte delas foi interrompida por outros companheiros de ponto ou então para a realização de serviços. 22 Os primeiros contatos estabelecidos com meus interlocutores e com o mundo social que estou pesquisando surgiram a partir de uma proposta lançada pelo prof. Carlos Guilherme do Valle em nosso primeiro encontro de orientação, que me apresentou, de forma geral, algumas questões, dramas e dilemas sociais que os carroceiros15 estavam e estão vivenciando em Natal. Antes disso, tinha me interessado pelo estudo dos catadores de materiais recicláveis. Ao ouvir a proposta, fiquei de avaliá-la para decidir sobre a mudança de trabalho. De forma ingênua, acreditei por um momento que não estava lidando com grandes mudanças, já que os julgava de certo modo semelhantes aos catadores. Porém, o que logo veio a se revelar, através da pesquisa em materiais acadêmicos e jornalísticos, foram diferenças bastante significativas, o que levou à mudança efetiva de referencial teórico para contemplar alguns aspectos bem particulares dos carroceiros como as trajetórias históricas e a própria organização e disposição de um trabalho que enfrenta uma situação histórica de conflitos específica, em especial, com órgãos e autoridades públicas municipais. O que já não é tão marcado com os catadores de materiais recicláveis, quando muitos destes estão inseridos em programas governamentais de coleta seletiva, tal como apresentam Colombijn e Rial (2016). Dessa forma, esse novo “mundo” social logo me pareceu bem distante de tudo o que eu poderia imaginar a respeito dessas pessoas que fazem uso das carroças e me fez perceber o quão pouco os conhecia, se, de fato, podia falar que alguma coisa realmente conhecia através das imagens que construímos e categorias que aplicamos a determinados grupos, ou seja, quando lidamos com os nossos “mecanismos classificadores” de socialização, tal como explica Velho (1978). Meus enganos começaram a se revelar, por exemplo, quando eu lembro do espanto que tive ao saber através de Carlos Guilherme sobre a existência de um “sindicato” dos carroceiros já que a imagem que tinha era a de pessoas que atuavam de forma bem autônoma e individual. Inclusive, uma dimensão coletiva especialmente de “família” se mostraria bastante presente. Diante do interesse despertado, resolvi me envolver nessa pesquisa e passei a buscar informações sobre os carroceiros em Natal, considerando, em especial, em um primeiro momento, as informações sobre o “sindicato”. Com poucas informações disponíveis, pude encontrar através de pesquisa em internet apenas o endereço da Associação dos Carroceiros de Natal em bairro da Zona Oeste. Procurei em um mapa virtual, mas não conseguia localizar alguma imagem que me confirmasse a presença de uma “Associação”, como também não 15 Cientes da diversidade contida nesse termo. 23 encontrava informações mais aprofundadas se a entidade ainda estava funcionando no local. Assim, resolvi me dirigir até o endereço encontrado para realizar um primeiro reconhecimento e me certificar da existência da Associação. Foi em uma tarde de uma terça-feira, dia 14 de outubro de 2014, quando cheguei à frente da Associação, através do auxílio de moradores daquela rua. Vendo a porta fechada, contornei pela lateral, quando avistei Vavá, bem à vontade, conversando com outro homem. O breve diálogo que tive com Vavá foi iniciado por uma grata coincidência. Perguntei aos dois senhores pelo horário de funcionamento da Associação, que, até então, eu imaginava, equivocadamente, através de meus referenciais de instituição mais formal e burocrática. Foi, então, que Vavá perguntou o que eu queria. Disse que procurava pela direção para uma conversa e ele, então, respondeu - “pode falar” -, colocando- se para mim, desse modo, na postura de um representante da Associação. Então me apresentei, definindo-me como estudante da UFRN que estaria interessada em realizar uma pesquisa sobre os carroceiros em Natal, mas pontuei que retornaria em outro momento para explicar melhor a proposta e que estava ali apenas para conhecer o local e a Associação. Ele consentiu e me disse que quando eu voltasse, caso encontrasse a Associação fechada, procurasse uma casa vizinha, que era a sua filha Janaína, já me dando um indício do envolvimento familiar com a Associação. Compareci ao mesmo local mais duas vezes,16 acompanhada de meu orientador, para que pudéssemos nos apresentar e tratar de nossa proposta de pesquisa. Na primeira delas, estabelecemos diálogo com Janaína e com Joana, ex-esposa de Vavá, já que, ao nos depararmos com a Associação fechada, pudemos localizar, mais uma vez através de contato com a vizinhança, a residência delas. As duas mulheres moravam em uma casa que se avizinhava da Associação. Na visita seguinte, foi possível conversar com Vavá também em sua própria residência. Nas duas situações, tentamos marcar nossa posição de pesquisadores para nos diferenciar de agentes governamentais ou da imprensa, especialmente dos primeiros. Penso que esse momento nos favoreceu para o decorrer das conversas e nos foi possível obter informações relevantes que já nos permitiu apontar algumas estratégias de pesquisa. Desde esses primeiros contatos, algumas questões já começavam a surgir, mostrando sua complexidade, e elas estariam presentes durante o trabalho de campo, que iniciaria 16 Nos dias 31 de outubro e 11 de novembro de 2014. 24 efetivamente meses depois. Uma delas era o uso intermitente da Associação17 pelos próprios carroceiros, o que nos levou à preocupação em ter uma indicação de um local por onde partiríamos para o trabalho de campo. Foi, então, que Vavá nos disse que “fazia ponto”18 em uma praça, e que poderíamos “chegar junto”. Ao retomar os contatos e efetivamente o trabalho de campo, a primeira vez que fui ao ponto da praça, foi através de um encontro marcado com Vavá por telefone. Combinamos que nos encontraríamos pela manhã do dia 16 de junho de 2015. A praça é ampla, com a manutenção de limpeza e pintura em dia, um pouco arborizada, possui diversos bancos espalhados por ela, além de uma quadra de esportes que fica mais afastada do ponto. Em seu entorno, há vários estabelecimentos comerciais. O principal deles para esta pesquisa é o depósito de material de construção que fica imediatamente em frente ao ponto dos carroceiros. Próximos ou ladeando alguns desses estabelecimentos, havia uma maioria de casas de classe média/média alta, embora algumas poucas residências fossem das camadas populares. Ao me aproximar, avistei uma carroça estacionada na frente da praça, alinhada ao meio-fio. Tive um misto de certa alegria e surpresa em ver essa carroça, pois ela me apareceu como a imagem da confirmação de um ponto de carroceiros que eu, natalense e moradora da cidade desde meu nascimento, desconhecia completamente. Isso confirmava as ponderações aludidas por Gilberto Velho e Roberto da Matta. Vi ali dois homens conversando. Um deles organizava umas sacolas dentro da carroça. Este seria João, o carroceiro mais velho da Praça. O outro homem que o acompanhava era Jurandir, que logo nesse primeiro contato me afirmou que não era carroceiro, embora todos pensassem que fosse. Na verdade, ele era encanador, mas dividia aquele ponto com os trabalhadores de carroça. Ele me afirmava ter sido seu avô um dos primeiros moradores daquela região, quando, segundo ele “Natal ia até a Praça Cívica”. Disse ainda que fazia ponto na praça há mais de trinta anos, antes dos carroceiros passarem a trabalhar ali. Ter iniciado contato com Jurandir foi, de fato, muito importante para facilitar minha aceitação pelos carroceiros daquele ponto, pois ele atuou 17 Diante dessa ameaça, que é a aproximação do prazo final para a proibição do uso urbano de carroças em Natal, a mãe de Janaina contou-nos, na época, que tentaram reunir os carroceiros, mas sem sucesso, não dando mais detalhes de como essa mobilização tinha ocorrido. Ela justificaria com uma afirmação, que também ouviria de vários carroceiros e seus familiares, que os carroceiros eram “desunidos”. Entretanto, no decorrer da pesquisa mobilizações aconteceram e algumas eu pude acompanhar. 18 “Ponto” e “fazer ponto” são expressões encontradas nas falas de meus interlocutores que serão apropriadas neste trabalho. 25 muitas vezes como uma espécie de mediador entre nós. Quando eles conversavam algo que eu não entendia, especialmente sobre cavalos, Jurandir, ao perceber, fazia questão de me esclarecer. E aos carroceiros que iam chegando ao ponto, ele nos apresentava e tentava explicar a minha presença ali, falando de minha pesquisa de uma forma bem natural e corriqueira que simplificava toda a minha apresentação, embora muitas vezes eu me questionasse se os carroceiros dali e o próprio Jurandir tinham compreensão de que minha pesquisa não chegaria a mudar o quadro político que envolvia a atividade dos carroceiros. Fora isso, a forma com que Jurandir se colocava diante de mim, naturalizando e facilitando as comunicações, parecia que realmente passava confiança aos demais e, assim, não tive maiores dificuldades em minha inserção neste ponto, assim como também nos demais, sendo sempre bem recebida, especialmente a partir das referências de carroceiros que eu dava pelos contatos que ia estabelecendo. O apoio de Jurandir se deu, de fato, em minhas primeiras visitas, já que depois ele se voltou mais para seu próprio trabalho, quando apareceram mais serviços nas casas dos seus clientes19. Na minha primeira ida à Praça, Vavá não compareceu ao encontro, o que encarei de forma até positiva, pois pude conhecer melhor Jurandir e João o que me possibilitou ficar mais à vontade para voltar ao ponto sozinha, sem nenhum mediador. Também conheci Leandro, com quem conversei mais brevemente, e avistaria outros carroceiros que conheceria depois: Cleantro, Luciano e seu irmão Luiz (que se identifica enquanto ajudante do irmão carroceiro). Nas outras idas ao ponto, conheceria mais outros carroceiros: Bola, Reginaldo e Alvinho. Também seria apresentada a Binho, filho de João, que, embora carroceiro do ponto, trabalhava mais na rua, pois, segundo o pai, Binho gostava mais de estar circulando na carroça. Conheci também Moisés, que foi carroceiro do ponto, mas abandonara este trabalho, vendendo sua carroça e animal. Foi na minha segunda ida à praça que conversei com Vavá, também depois de um encontro marcado. Descobriria que Vavá não era de fato do ponto, mas vez por outra aparecia por lá para conversar com os amigos e trocar cavalos. Ele me alertou da realização das audiências públicas que retomaram nesse período. Estar presente nessas audiências foi muito importante para eu visualizar as relações de força que nelas se 19 Jurandir foi uma pessoa que demonstrou interesse pela pesquisa também. Logo em nosso primeiro contato, quando coloquei as razões que me levavam ali, ele declararia “você escolheu o tema certo”. Outras vezes, ele sentaria ao meu lado para que eu contasse como estava caminhando minha pesquisa. 26 apresentaram, envolvendo um processo social mais amplo, que apresentaremos no decorrer desta pesquisa. Segundo informações dos carroceiros da praça, especialmente Jurandir, que enfatizava esse dado e me pediu inclusive para anotar, aquele ponto existe há quase trinta anos. A primeira impressão que tive foi que ali havia uma intensa movimentação de carroceiros, que no começo me angustiou, pois ficava um pouco perdida para tentar acompanhar falas e seus comportamentos no lugar. De fato, havia dias em que o fluxo era grande. Os carroceiros chegavam e, em pouco tempo, já saiam do ponto para realizar serviços. Essa impressão se ampliava, inclusive, pela quantidade de carroceiros naquele ponto: sete (excetuando Binho, que poucas vezes o vi na Praça, e Luiz, que acompanhava seu irmão na carroça). Mas depois vivenciaria com eles períodos menos intensos de atividade, especialmente quando os serviços ficavam mais escassos. Foi através de indicação dos carroceiros do ponto da praça que soube da existência de outros pontos de carroceiros que trabalham junto a depósitos e assim fui ampliando meus contatos e conhecendo outros importantes personagens. Nesse sentido, quando fui, pela primeira vez20, ao ponto do depósito21 e chegando ao portão que dava acesso ao terreno, pude ver homens sentados em cadeiras e um sofá, quase em círculo e, mais ao fundo, avistei três carroças. Aproximei-me do grupo e qual foi a minha surpresa e alívio quando encontrei Vavá entre eles. A presença de Vavá ali foi muito oportuna para mim. Comentei logo da coincidência do encontro não esperado. Expliquei, então, que buscava conhecer este outro ponto e a história dos carroceiros dali. Vavá me ofereceu um assento e me perguntou se eu conhecia o homem que estava sentado ao meu lado. Era um senhor de idade já bem avançada, de olhos bem claros, que me sorria de modo singelo. Quando respondi negativamente, Vavá sorriu e me disse que ele era Borges. Esta foi mais uma surpresa agradável que tinha naquele dia, pois, comentei com Borges, eu tinha interesse em conhecê-lo ao saber, por outras pessoas, de sua atuação como representante dos carroceiros. Ele confirmaria mas alegou que pela idade avançada não queria mais assumir esta atuação. Contudo, desde esse dia, mostrou-se muito disposto a contribuir com a pesquisa, recebendo-me várias vezes em sua casa, apesar de que 20 No dia 11 de agosto de 2015. 21 A fachada desse depósito possuía uma divisão semelhante ao outro depósito localizado em frente ao ponto da praça: de um lado, havia uma sala para atendimento e, do outro, um portão grande que dava para um terreno onde ficavam materiais como telhas, tijolos, cimentos. Só que o primeiro estabelecimento mostrava-se bem mais modesto do que o da praça. 27 parte disso se deveu a um entendimento errado a respeito das minhas intenções com esta pesquisa. Ainda no ponto do depósito, fui apresentada ao senhor Adailton, outro carroceiro que eu também gostaria de conhecer, já que alguns carroceiros da praça me falaram ser ele um dos mais velhos que conheciam em atividade e que dois de seus filhos e um neto seguiam o trabalho nas carroças. Dentre os filhos, havia Diego que um dia me mostraria como é feita uma coleta de capim para seus cavalos. Pesquisadora “em campo” A ida de um pesquisador a campo se efetiva como uma nova relação social, sempre em processo de negociação. Cardoso de Oliveira já apontava esse caráter de relação dialógica na pesquisa com seres humanos já que se trata de um empreendimento que vai ser sempre negociado com as pessoas desde a definição do objeto, seus problemas, passando pela experiência em campo, até mesmo na escrita do trabalho, mesmo que, para esse último caso, esse seja um diálogo simulado. (OLIVEIRA, 2004). Contudo, consideramos aqui que o antropólogo não desempenha apenas um papel, mas sim vários, assumindo várias identidades e que, apesar dos seus esforços, acaba prevalecendo uma identidade à sua revelia (OLIVEIRA, 2004), inclusive porque a posição ocupada pelo pesquisador depende, em boa parte, dos seus interlocutores (LABURTHE-TOLRA e WARNIER, 1997). Seguindo Whyte, tentei estabelecer uma relação de confiança buscando mostrar “aceitação interessada pelas pessoas e pela comunidade em minha participação cotidiana em suas vidas” (WHYTE, 2005, p.302), aprendendo a participar de certas discussões, com o cuidado de não realizar julgamentos morais. Dessa forma, uma das condições essenciais que nos dedicamos para permitir as trocas e possibilitar uma relação de confiança entre o pesquisador e o grupo a ser estudado foi a da sinceridade em relação à proposta de estudo, explicando os objetivos e a legitimidade do trabalho na tentativa de obter um mínimo de adesão (LABURTHE-TOLRA e WARNIER, 1997). Mas, obviamente, considerando as negociações necessárias, esta apresentação tem de ser medida com cautela e cuidado, não sendo necessário explicitar todas as hipóteses de pesquisa (BERREMAN, 1975, p.142). Assim, sempre tive preocupação de estar esclarecendo, de modo honesto e dentro das possibilidades, o intuito de estar frequentando os pontos dos carroceiros e de me mostrar interessada em conhecer suas rotinas e suas histórias. Essa explicação muitas vezes teve de ser 28 simplificada para que fosse melhor entendida. Era difícil explicar o que era minha pesquisa, e principalmente para o que ela serviria e o que eu fazia com aquilo que eu observava e por vezes anotava. “O que você faz com o que está escrevendo da gente?” foi uma pergunta que eu tive que encarar. Foi difícil tentar convencer que eu estava escrevendo um “livro” sobre o modo de vida dos carroceiros, se muitos me disseram ser semi ou analfabetos e, assim, muito pouco entendiam das dinâmicas acadêmicas22. Igualmente difícil foi o entendimento da área de conhecimento, quando eu me apresentava, pois Antropologia não parecia dizer muita coisa para eles. Muitas vezes, acabei sendo associada a uma jornalista, mas Borges, por exemplo, um dia me questionou se eu tinha interesse em me candidatar a algum cargo político. Tive que negar, obviamente. Ele, que também, por vezes, me associava ao jornalismo, ainda perguntou se eu fazia o curso de Direito. Suas perguntas indicavam claramente algo: as esferas que atingiam diretamente os carroceiros – a política, a justiça e a imprensa. Como eu frisasse meu vínculo com a UFRN, fui muitas vezes definida como a estudante da Universidade que estava “pesquisando”. Dessa forma, eu acabaria tendo a pesquisa como o principal referencial a meu respeito. Se no começo da pesquisa de campo no ponto da praça, havia um distanciamento que se traduzia pelo uso do termo de tratamento “senhora”, o que muito me estranhava, já que não sou tratada com este tipo de formalidade no meu dia a dia, e nem me vejo enquanto tal, com nossa aproximação, eu me tornaria “a menina” ou mais comumente apresentada e chamada como “a menina da pesquisa”. Logo me apropriei do termo e muitas vezes, quando telefonava, para que me reconhecessem logo, dizia meu nome e, em seguida, acrescentava que era “a menina da pesquisa”. Assim, foi fundamental considerar como minha imagem repercutia na pesquisa, pois é necessário lembrar que o pesquisador introduz na situação de campo parâmetros específicos que compõem uma espécie de equação pessoal como sexo, idade, origem nacional ou etnia, status social (se solteiro ou casado, com filhos ou não), a aparência física, a língua, a maneira de se expressar e a experiência adquirida (LABURTHE-TOLRA e WARNIER, 1997). Goffman (1975) nos mostra como a conduta e aparência se tornam importantes quando na frente de desconhecidos, pois elas são utilizadas pelas pessoas a fim de resgatar e comparar a 22 Por exemplo, um dia João chegou a me dizer que eu procurasse outros pontos de carroceiro porque eu “já sabia da história de todos eles”. Isso me deixou um pouco desconfortável, pois, a princípio, entendi como se ele me indicasse explicitamente que eu não tinha mais razão de estar ali presente, já que eu já sabia o suficiente. Na ocasião, ignorei o desconforto e acabei aproveitando para perguntar quais pontos a mais eu poderia conhecer. Horas depois, refletindo sobre isso, comecei a enxergar como uma sensação equivocada; pois esta fala de João pode ter revelado, na verdade, uma pouca compreensão da pesquisa e quem sabe até uma tentativa de me ajudar. 29 experiências anteriores ou ainda para aplicar estereótipos não comprovados. Dessa forma, também me mostrar vinculada à Universidade lançou certas imagens aos interlocutores que foram, segundo penso, positivas. O vínculo institucional com a UFRN acabou sendo fundamental para me diferenciar dos outros agentes que disputavam social e politicamente com os carroceiros. Por isso, tinha de explicar a pesquisa que eu estava realizando a fim de evitar associações, especialmente, com os jornalistas (mesmo que muitas vezes sem sucesso), mas também com os protetores dos animais ou com servidores municipais. Consegui, assim, facilitar nossa comunicação, já que são esses dois agentes que se posicionam, em sua grande maioria, de forma contrária aos carroceiros: os protetores e os agentes da Prefeitura. Contudo, a associação com a Universidade acabava por reforçar nossas diferenças pessoais. Por exemplo, cheguei a ouvir cobranças de um dos representantes dos carroceiros que reclamava dos projetos do “pessoal” da Universidade que não tinham prosseguimento. Apesar disso, acredito que eu tenha conseguido uma boa inserção no “campo”, dividindo com os carroceiros diversos momentos de trabalho, família e lazer. Por exemplo, vale comentar sobre um dia quando Vavá me explicou que minha presença entre os carroceiros foi aceita porque eu “não tinha jeito de quem era da Universidade”. Ao sorrir e perguntar o que ele queria dizer, Vavá explicava que eu não era “besta”, o que depois me fez refletir sobre os projetos e as abordagens oriundas da Universidade. Deve-se salientar, entretanto, que não pude acompanhar os carroceiros em seus serviços, percorrendo com eles os trajetos nas carroças. Parecia haver um constrangimento em chamar-me para acompanhá-los, apesar de eu me colocar à disposição para tanto. A princípio, julguei que isso talvez se devesse a uma preocupação com os clientes dos carroceiros que estranhariam minha presença, talvez criando um mal-estar entre nós. Mas depois entendi que talvez fosse o cuidado em não acelerar a velocidade na carroça, se eu estivesse junto. Ainda assim, cheguei a acompanhar algumas vezes carroceiros em seus veículos. Uma questão que muito me afligia antes de iniciar o campo era o fato de eu ser mulher. As diferenças de gênero apareciam claramente. Fiquei a me questionar em que grau estas diferenças seriam um entrave para uma relação mais próxima com meus interlocutores, a grande maioria homens. Nesse aspecto, as idas ao ponto da praça, em especial, que foi o ponto em que mais me detive, foram tranquilas, pois acredito ter conquistado certa confiança e aceitação por parte deles, apesar de supor que, em algum nível, a diferença de gênero tenha 30 também limitado nossa relação. Essas diferenças, por exemplo, me fizeram passar por situações que me causaram profundo desconforto, tal como quando tive que ouvir uma vez que uma moça que ali passava “dava pra jogo”, e que “uma boa égua tem que ser como as mulheres”, o que seria, “ter o quadril largo”, além de outros comentários que surgiam quando falavam de suas ex ou atuais companheiras. Nessas ocasiões, eu me silenciava e tentei não demonstrar qualquer sentimento de mal estar, tentando mostrar, por vezes, indiferença. Também foi preciso contornar as diferenças de classe e de capital cultural envolvidas em nossa relação, que transpareciam em minha aparência e na forma de me expressar. Foi nesse sentido que, algumas vezes, presenciei as dificuldades econômicas que alguns carroceiros passavam. Certa vez, Diego chegou a me dizer que precisava pegar uma “mistura” (sobras de alguns cortes de carne) que um açougueiro separava semanalmente para ele. Ao almoçar em sua casa, observei a precariedade dos móveis e do lugar. Outra vez essa diferença evidenciou-se entre nós. Chegando no período natalino, resolvi presentear os carroceiros da praça com cartões de chocolate temáticos. Um deles comentou de forma franca que esperava que eu trouxesse um “sacolão”, referindo-se a um tipo de cesta básica. Depois, estive a refletir como seria ofensivo se eu recebesse um sacolão de presente. Diante dessas diferenças, tentava sempre me manter em uma postura de humildade a fim de prevalecer sempre o respeito, colocando-me enquanto aprendiz (WOORTMANN, 2009). Tentava também buscar uma adequação da linguagem, consciente de que ainda há posturas que devem ser resguardadas até mesmo para poder sustentar a minha própria representação (GOFFMAN, 1975). Assim, é importante trazer algumas considerações de Goffman sobre interação social, que se mostraram, de fato, importantes para a pesquisa, especialmente o modo em que o indivíduo se apresenta diante de outros, mostrando-se sob uma luz favorável: “é uma exigência moral que exerce sobre os outros” (GOFFMAN, 1975, p.21). Segundo Goffman, o encontro com o outro pode ser entendido como um contexto de interação e representação, pois há um "tipo de jogo de informação, um ciclo potencialmente infinito de encobrimento, descobrimento, revelações falsas e redescobertas" (ibid: p.17). Aqui trago uma situação de maior projeção que passei concretamente, “em campo”, quando estava em jogo manter uma representação consciente de mim mesma, enquanto pesquisadora. Como já coloquei antes, acredito que isso tenha me permitido maior acesso aos meus interlocutores. Por ser vegetariana, não ingeria carne vermelha em especial há mais de dois anos e meio. Assim, quando fui convidada para o almoço na casa de Borges, aceitei com 31 prazer, considerando como isso ajudaria na aproximação com aquela rede de carroceiros, só que serviram-me carne vermelha. Claro que eu tinha considerado a chance de almoçar um prato de carne, antes de chegar na casa do carroceiro, mas não imaginava o quão desconfortável isso seria no momento, o que decorreu tanto pela quantidade servida como pelo tipo de carne colocado no prato. Ao avaliar que se eu me negasse a comer, poderia gerar uma situação de desconforto com meu interlocutor e sua família, que gentilmente tinha preparado a refeição, servi-me apenas de dois pedaços pequenos de “carne de panela”, pois imaginava que apenas um poderia causar desconfiança. Sem pestanejar, a filha de Borges, vendo que eu colocara pouca carne, de modo bem rápido, acrescentaria mais uma concha de carne no meu prato, pois eu tinha colocado “muito pouco”, não me dando chance de falar qualquer coisa. Tentei comer, apesar da grande dificuldade, e, ao mesmo tempo, busquei (talvez sem sucesso) me mostrar natural. Borges parecendo perceber algo, comentou: “parece que você não está gostando”. Tive de me justificar que eu comia devagar e, além disso, comia também muito pouco. Acabei deixando mais da metade da carne no prato. Como um caso parecido, é interessante trazer aqui a experiência vivida por uma antropóloga vegetariana, Cláudia Moreira da Silva, que mostrou a sensibilidade dos contatos que se estabelecem nas pesquisas etnográficas: Haroldo logo me apresentou à chefe da família e, em pouco tempo, ela nos serviu pratos de macaxeira com carne bovina cozida. Não tive como esconder minha preferência alimentícia e pensei não ser interessante, para quem pensava em fazer uma longa pesquisa no local, deixar de expressá-la. Falei-lhes que não costumava comer aquele tipo de carne, agradeci a refeição e recusei. Todos da casa se voltaram para minha direção. A senhora sentiu-se ofendida e logo esboçou uma opinião acerca das pessoas que não consumiam carne vermelha. Ficamos alguns minutos em tensão, todos em silêncio. (SILVA, 2007, p.26) Outras situações como essa se repetiram ao longo da pesquisa. Mas tive de encarar seriamente tais momentos, pois, de fato, ser associada à proteção animal me traria enormes dificuldades. Um exemplo, nesse sentido, foi quando Diego acreditou por um momento que eu fosse justamente vinculada aos defensores dos animais. Contou que um casal, que o acusara de maus-tratos, era “do mesmo lugar” que eu, como se todos nós fizessemos parte de uma ONG. Sorrindo, tive de explicar que não tinha intenção de fiscalizá-los, reafirmando que não pertencia a nenhuma instituição de defesa animal. 32 Apesar desses esforços, minha auto-representação para os carroceiros foi seriamente ameaçada, sem querer, quando estive etnografando uma reunião realizada na Prefeitura de Natal, em dezembro de 2015. Seria avisada por amigos e familiares de algumas reportagens da imprensa em que eu me encontrava no meio da rede de protetoras, que, inclusive, foram fundamentais para que eu pudesse participar da reunião. Sair nessas reportagens gerou preocupação de que os carroceiros pudessem me associar a alguma protetora. Contudo, voltaria a frequentar os pontos e realizar entrevistas com carroceiros sem maiores problemas, sem nada ter sido comentado a esse respeito. Pelo contrário, os carroceiros nada pareciam saber sobre sua ocorrência, apenas um dos seus representantes me disse ter sabido da reunião tempos depois, mas a pauta e as decisões deste encontro eram totalmente desconhecidas. Voltemos agora mais propriamente às questões subjetivas que a realização de uma pesquisa etnográfica traz ao pesquisador, conforme disseram Oliveira (2007) e Zaluar (2000). Nesse sentido, Zaluar, por exemplo, descreve como aprendeu “a duras penas, a cultivar o envolvimento compreensivo, isto é a participação afetuosa e emocionada nos seus dramas diários, sem me deixar levar pela piedade que desemboca no paternalismo e na recusa à dignidade deles” (ZALUAR, 2000, p. 11). Assim, irei considerar aqui algumas questões que mais me afetaram subjetivamente durante a pesquisa. Creio que as situações que envolviam o uso dos animais tenham sido as que, de fato, demandaram mais esforços de relativização para mim. Antes de iniciar meu trabalho de campo, o que eu mais me questionava era sobre como eu reagiria ao ver os “maus-tratos” aos animais, pensando sob uma ótica relativamente próxima aos valores e concepções do protecionismo animal, que estavam nos debates do uso de carroças em Natal. Preocupava-me bastante uma questão que eu julgava ética: terei que presenciar os “maus-tratos” e naturalizá-los? Isso também me entristecia pois não conseguia imaginar uma forma tranquila de lidar com isso. Foi assim que comecei a frequentar o ponto da praça. Ao reler as notas em meus diários, percebi como estava muito atenta a observar os animais. A sensação que tive depois foi a de que parecia que eu estava de certa forma fiscalizando, embora não conscientemente, a relação dos carroceiros com seus animais. Com o decorrer da pesquisa de campo, fui me tornando bem mais tranquila em relação a isso (embora não totalmente), pois o que via quase sempre eram animais calmos e, na grande maioria das vezes, o “zelo” dos carroceiros para com eles, o que incluía estratégias para diminuir o desgaste físico dos animais. Além disso, acabei sendo levada também pelos dramas dos carroceiros, que até chegaram a me causar comoção. Por exemplo, quando alguns 33 narraram os abusos sofridos em abordagens policiais, o que, inclusive, quase custou a vida de um deles. Assim, comecei a me envolver muito nas dinâmicas de suas vidas, fortemente marcadas pelo uso dos animais, e em parte de seus dramas, guardadas as proporções obviamente. Uma deles foi a sensação de “aperto” que os carroceiros da Praça declaravam, especialmente quando surgia o aparato governamental para exigir que se adequassem à Política Municipal de Retirada dos Veículos de Tração Animal (PMRVTA). Foi assim quando me contaram da ida ao ponto de uma assistente social do Município para insistir na realização de um cadastramento de todos os carroceiros dali. A mulher teria alegado, segundo me contaram, que eles poderiam perder suas carroças e seus animais, se não portassem o comprovante do cadastramento, quando a PMRVTA for implantada. Talvez foi por isso que até a circulação frequente de viaturas da polícia no bairro (que provavelmente faziam rondas rotineiras) causavam-me comoção, o que se somava, ainda mais, aos relatos de conflitos com os policiais. Da mesma forma, também me preocupei quando me contavam sobre as ligações telefônicas dos assistentes sociais, que propunham que eles buscassem novas formas de trabalho. Diante dessas situações, inquietava-me, pois percebia como as questões levantadas nas audiências estavam mesmo se concretizando, inclusive de modo rápido após a realização dos eventos, embora esses contatos não fossem mais relatados depois, tornando-se aos poucos mais raros. Nessa direção, noto como nas entrelinhas dessa pesquisa é possível acompanhar a minha própria mudança, a partir do momento que passei a “estranhar o familiar”, observando outras realidades e ampliando minha percepção sobre o próprio uso dos animais. Principalmente, meus amigos próximos chegaram a notar essa gradativa mudança pessoal, alguns também se surpreendendo com meus relatos, embora outros ainda se mantivessem bastante contrários ao uso dos animais em qualquer circunstância. Uma amiga chegou a me dizer, inclusive, de forma bastante irônica, que eu estava conhecendo “os carroceiros mais maravilhosos do mundo” e que estava me tornando defensora dos carroceiros. A princípio, sorri, mas não deixei de considerar suas observações como importantes para que pudesse exercitar mais ainda um olhar crítico sobre a situação. Dessa maneira, acredito que não seja o caso de estar em uma defesa irrefletida, mas creio ser necessário apontar e desvendar as injustiças e desigualdades sociais que podem até ser reforçadas pela bandeira da defesa animal. Considerando essas questões, afirmamos que há sim uma preocupação, neste trabalho, de não compor um quadro de acusações que recaiam sobre os carroceiros, corroborando, 34 dessa maneira, com o sofrimento social que eles também têm de encarar em seu cotidiano. Mesmo porque é minha intenção me afastar de abordagens sensacionalistas, tais como as da imprensa. Compreendo como este campo é minado e como muitas vezes foi difícil caminhar por ele, especialmente pelas sensibilidades que estão envolvidas. Foi, portanto, consciente do “jogo de informação” que interfere na relação com meus interlocutores, que algumas questões, especialmente delicadas, tal como a mobilidade urbana e, principalmente, os maus- tratos aos animais, foram abordadas com cuidado, apesar de ter que revelar o que considero ter sido o maior de meus deslizes que cometi no campo. Confiante na minha proximidade com o carroceiro João, eu me antecipara e perguntei, de forma curiosa e sem avaliar a delicadeza da questão, como era feita a castração dos animais. João se mostrou contrariado com a pergunta e logo me respondeu que nunca tinha castrado animal. Senti-me muito constrangida nesse momento e, depois de um breve momento de silêncio, ele explicaria, que, de fato, chegou a ver a castração de animais. Diante desse deslize, fiquei mais vigilante sobre as perguntas que fazia e a postura que eu tinha em “campo”, evitando não apressar demais a obtenção de dados (WHYTE, 2005). As sensibilidades envolvidas também chegaram a me tocar, quando, ao ter mais contato com a visão e a perspectiva das protetoras e dos agentes do poder público, ouviria relatos, reforçados até por imagens, de grande violência contra os animais, que seriam praticadas, segundo diziam, por carroceiros. Essas informações conseguiram me impressionar bastante, atingindo os objetivos pretendidos por tais demonstrações. Esse tipo de denúncia me captava tanto emocionalmente que eu chegava ao ponto de esquecer por um momento aquilo que eu tinha observado na própria experiência do campo junto aos carroceiros. Por exemplo, acabava esquecendo da relação dos carroceiros e seus animais baseada em orgulho, honra, sociabilidade, entre outros, para depois lembrar como isso mesmo acabava por agir como uma garantia da não ocorrência de “maus-tratos”. Tudo isso me conduzia a incertezas e angústias, sendo estas situações, de fato, o aspecto mais difícil que eu encarava. Exigiam de mim uma vigilância constante para não cair, como colocamos, no reforço das acusações e das imagens construídas a respeito dos carroceiros. Tentei, desse modo, manter-me consciente dos aspectos que concorrem nesse campo político, pensando, inclusive, sobre a delicadeza de minha posição nos bastidores. Foi assim que ao apresentar a pesquisa aos mais variados agentes, eles, obviamente, concorriam pelas 35 suas versões o que, por vezes, acabava por implicar uma tentativa de obter também minha adesão. Assim, os carroceiros chegaram a me convidar para intervir diretamente na Associação a fim de mobilizar os carroceiros. Isso também ocorreu, por exemplo, quando uma liderança me levou a reunião de articulação dos carroceiros na Zona Oeste e, sem qualquer comunicação prévia comigo, pediu para que eu falasse em defesa dos carroceiros e sugerisse caminhos que eles poderiam tomar. A respeito da Associação dos Carroceiros de Natal, ela também merece destaque pois está relacionada a algumas dificuldades de comunicação que tive com vários carroceiros. Em campo, acompanhei o surgimento de certos boatos, que, naturalmente, acabaram por me envolver já que suposições começaram a ser feitas sobre minha presença entre eles. Chegou até mim que eu queria promover determinado carroceiro a presidente da Associação, e que também eu iria investigar a entidade. Este último boato também motivou um convite de alguns carroceiros para que eu tomasse essa iniciativa, o que obviamente recusei. Outra vez, fizeram outro convite que ainda mais me surpreendeu. Sugeriram que eu assumisse, de fato, a presidência da Associação e a representação dos carroceiros, além de organizar reuniões para articulá-los. Pode ser que esses boatos e os convites tenham surgido para testar meu verdadeiro intuito de estar entre os carroceiros, ou ser mesmo situações de brincadeira, mas sempre me posicionei diante deles, rejeitando estas sugestões e convites, pois me preocupava que eles pudessem me indispor com algumas das lideranças mais antigas dos carroceiros, especialmente Vavá e Borges, que eram as pessoas mais próximas da Associação. Contudo, o próprio Borges, por vezes, tratou-me como alguém que poderia ajudar a fortalecer politicamente a Associação, o que mostra um paralelo com o histórico de criação da entidade, surgida com apoio e intermediação de agentes externos, tal como discutirei no primeiro capítulo da dissertação. Por exemplo, os carroceiros da praça me fizeram a proposta de representá-los e organizar uma convocação. Deixei bem claro que não tinha esse interesse e cheguei a argumentar que eles precisavam de um carroceiro para os representar. Responderam que eu não precisaria ser carroceira. Divertindo-se com a cena, Jurandir chegou a justificar: “mas você já é da família dos carroceiros”. Frisei do meu interesse de pesquisa e fui enfática ao dizer que não tinha a mínima condição de representá- los. Além dos carroceiros, de modo menos incisivo, protetoras pareciam demonstrar que esperavam também uma posição minha de denúncia da atividade dos carroceiros. Uma delas chegou até mesmo a me apresentar a colegas como uma nova "protetora", o que logo corrigi. 36 Mais ainda, elas também esperavam que eu me somasse à cobrança das autoridades municipais quanto ao desenrolar do processo de retirada das carroças, até porque meu contato com algumas protetoras se iniciara justamente na reunião ocorrida na Prefeitura. Os agentes do poder público também chegaram a enfatizar como esperavam que minha pesquisa pudesse trazer novos apontamentos e perspectivas para a questão. De modo até simpático, um deles comentou como achava importante a proximidade das instituições acadêmicas com as governamentais, contrariando, ele diria, o “estranhamento” que parece existir entre elas. Por isso, ele pediria para ter acesso à pesquisa quando finalizada. Enfim, pude vivenciar um quadro de grande complexidade societária e política que se desenvolve na cidade de Natal quase silenciosamente, saltando aos olhos daqueles natalenses das camadas médias, especialmente, apenas de forma pontual e superficial; mas que incide diariamente e de maneira intensa na vida dos carroceiros, diretamente atingidos e alvos de uma política que pretende transformar radicalmente as suas vidas. Assim, minha experiência nesse campo me levou a conhecer outra realidade de Natal, conhecer um mundo que é invisibilizado23 e que foge às regulamentações morais e governamentais que procuram hegemonizar-se e hegemonizam na cidade. Pude entender o que é ser carroceiro, o que fiz principalmente através das visitas aos pontos de trabalho. Mas, no decorrer do “campo”, pude complementar essa percepção e entendimento, quando fui conhecendo outros carroceiros, bem poucos, é verdade, que não fazem da carroça uma forma de trabalho, já que a grande maioria que conheci depende da carroça como sustento, muitas vezes único, para toda a família. Assim, compreendi que apesar de ser carroceiro majoritariamente implicar em trabalho, existem aqueles que a utilizam somente por afinidade com a atividade e/ou como meio de transporte24, aspectos que obviamente não se excluem daqueles que se utilizam das carroças como fonte de renda, como reforçarei no decorrer deste trabalho. 23 Um momento interessante, nesse sentido, ocorreu quando o carroceiro João me repreendia ao tentar me orientar percursos através de seus referenciais espaciais e eu não conseguia acompanhá-lo. Ele diria que eu “não sabia onde era nada em Natal”, causando risos em todos que ouviam. 24 Por isso que, além do uso dos animais na carroça, há também em charretes que são veículos com a finalidade própria para passeio. 37 CAPÍTULO I - NATAL E SUAS CARROÇAS Nossos gestores deixaram isso no esquecimento: que carroça, o animal em si, a tração animal, ele foi um dos fundadores da nossa cidade, do nosso povo. A gente começou com animal, a gente não começou com carro. - Carroceiro, em audiência pública, 2015. Foi a partir da década de 1940 que o processo de urbanização de Natal começou a se fortalecer, bastante relacionado à Segunda Guerra Mundial, quando ocorre na cidade a instalação de tropas militares estadunidenses tendo em vista a localização geográfica estratégica do Rio Grande do Norte, em termos geopolíticos25. Até então, Natal apresentava lento progresso de formação urbana, abrigando uma concentração baixa de atividades econômicas e de população (OLIVEIRA, 2006). A cidade dispunha de um isolamento relativo em relação ao restante do Estado, o que, segundo Lopes Jr (1997), conformava duas faces: de um lado, a abertura para o mar, através de seu porto, em contraste com o provincianismo e dependência do Estado. Em 1942, a chegada das tropas norte-americanas exigiu que houvesse uma oferta urgente de infraestrutura e serviços. Foi assim que a urbanização da cidade passou a se intensificar, surgindo importantes obras, o que “redesenhou a malha viária da cidade” (LOPES, 1997, p. 22), tal como a abertura da Parnamirim Road, que corresponde atualmente à Avenida Senador Salgado Filho e ligava o porto de Natal à base militar de Parnamirim. Em consequência disso: ... observa-se a intensificação do fluxo migratório, em decorrência, por um lado, da seca no interior do estado, e por outro, da oportunidade de emprego civil e militar e da grande circulação de dinheiro na cidade, conformando um significativo aumento populacional (OLIVEIRA, 2006, p.64) Câmara Cascudo (1999) chegou a descrever a cidade, no ano de 1946, a partir de três zonas clássicas: 1) a urbana, que “termina na Avenida Antônio Basílio, no Alecrim”; 2) a suburbana, que “segue depois da Avenida Antonio Basílio até a Capitão-mor Gouveia”; e, por fim, 3) a rural que correspondia “a parte além desta avenida”. Era uma época, que, em suas palavras, “a história da cidade se passa na Ribeira e na Cidade. Não há história nos bairros 25 Pode-se explicar, assim, como Natal comportou, inclusive, várias instalações militares brasileiras, que foram estabelecidas especialmente ao longo do século XX. 38 novos, mas a vida neles se fixou” (Cascudo, ibid: p. 15). Com a saída dos militares estrangeiros após o fim da guerra, “Natal vivenciou uma crise de emprego e de oportunidades de negócios” (OLIVEIRA, 2006, p. 66). Mas a cidade continuou a ter desenvolvimento urbano nas décadas seguintes, repercutindo em progressivo crescimento populacional, destacando-se aqui os primeiros conjuntos habitacionais que surgem inicialmente na década de 1960 e se intensificam nas décadas seguintes. No início da década de 1990, Natal se abria ao turismo nacional, logo depois da construção da Via Costeira, em 1985. A partir de então, inicia-se com mais intensidade uma preocupação com a produção de sua “imagem de cidade ‘aberta’ e ‘moderna’. Imagem essa trabalhada fortemente no processo de promoção turística de Natal” (LOPES JR, 1997, p. 32). Segundo esse autor, Natal foi sendo divulgada e visibilizada como uma “cidade do prazer”, destacando como a urbanização da cidade esteve, assim, fortemente atrelada à expansão do turismo. SILVA (2007b) também apresenta como os empreendimentos turísticos assumem uma “posição privilegiada”, através de políticas públicas e de investimentos em infraestrutura por parte do poder público e da iniciativa privada, concentrando-se em especial na orla da cidade. Apesar disso, pondera Lopes Jr: Em Natal, a urbanização turística não chega a moldar toda a cidade, nem redefinir completamente sua vida econômica. No entanto, é ela que fornece as imagens e lugares-mito com que os atores sociais locais disputam a construção de sua atual identidade urbana. (LOPES JR, 1997, p. 43) Nesse contexto de desenvolvimento, é interessante dar destaque ao sistema de transporte, que, aliado aos avanços urbanísticos e arquitetônicos, configura-se enquanto elemento “preponderante ao imprimir uma nova dinâmica no meio urbano” (MEDEIROS; FERREIRA e DANTAS, 2012). Conhecemos, então, uma cidade que depende exclusivamente de tração animal até meados de 1911, ano que surgem os bondes elétricos para a locomoção. Na História da Cidade do Natal de Câmara Cascudo (1999) podemos acompanhar as mudanças em relação aos meios de transporte e algumas de suas repercussões. Assim, encontramos na locomoção terrestre uma dependência de bois, burros, e especialmente cavalos, que além da simples montaria, também eram utilizados nas carruagens26, o meio de locomoção das classes mais abastadas. Além disso, é descrita também a existência de trem 26 Cascudo (1999) comenta sobre o surgimento de uma empresa de carros de aluguel movidos à tração animal. Segundo ele, esta empresa não durou doze meses, apresentando com um dos motivos o alto valor cobrado. 39 movido a vapor para deslocamentos maiores. No entanto, a grande maioria da população andava a pé27. Uma primeira iniciativa mais concisa28 surgiu no ano de 1908 e pretendia configurar um transporte coletivo da cidade de forma mais ágil para a época, foram os bondes de burro, que estiveram presentes em outras cidades brasileiras do mesmo período29. Segundo Cascudo (1999), essa tecnologia movida à tração animal foi implantada por uma empresa chamada Ferro Carril, e apesar de suas poucas linhas e da “marcha vagarosa”, como diz o autor: “a 7 de setembro de 1908 os bondes de burro começaram a subir e descer a ladeira que distanciava a Cidade da Ribeira. A facilidade da comunicação imediata, fácil, barata, aproximou os dois núcleos de população” (CASCUDO, 1999, p. 235). Citando ainda a construção do calçamento da Avenida Junqueira Aires, como outro fator importante, os bondes de burro coexistiram com o surgimento, assim, do que seria, segundo Cascudo, de uma nova identidade urbana: “Misturaram-se, confundiram-se, uniformizaram-se. Xarias e Canguleiros30 morreram. Ficou o natalense...” (CASCUDO, ibid). Aqui é interessante um parêntesis para discorrer sobre as mudanças nas concepções sobre a utilização de animais. Tomando o caso dos bondes de burros, estes, longe de serem descritos como condenáveis, mostra-nos Câmara Cascudo (1999), se constituíam em “assunto absorvente” da cidade. Quando este tipo de transporte de tração animal foi iniciado, de lotação em 24 passageiros, contou com um passeio de autoridades políticas como o governador Alberto Maranhão, o senador Ferreira Chaves, o deputado Juvenal Lamartine e o presidente da Intendência Municipal, Joaquim Manuel Teixeira de Moura, todos eles aparentando estar “satisfeitíssimos”31. Cascudo descrevia uma intensa movimentação popular, 27 Na página da Secretaria de Transporte e Trânsito Urbano (STTU) encontramos um breve relato de autoria de Guto de Castro onde também são descritos as caronas em carros de bois como forma de deslocamento. In: Dos bondes à cidade que não pode parar. Disponível em: , acesso em 02 de maio de 2016. 28 Segundo Guto de Castro “É bem verdade que a história do trânsito e do transporte coletivo em Natal nasce bem antes da circulação dos bondes na cidade. No tempo da circulação dos primeiros carros de boi e carroças puxadas a burros – entre os séculos XVI e XVII”. Disponível em: , acesso em 02 de maio de 2016. 29 Assim como Natal, este foi um tipo de veículo que fez parte da história de outras capitais também, enquanto primeira forma de transporte coletivo, como Rio de Janeiro, São Paulo e Recife, implantado em décadas anteriores a Natal. 30 Moradores dos bairros de Cidade Alta e da Ribeira, respectivamente. 31 Um relato interessante do escritor Pedro Nava no livro “Baú de Ossos”, de 1972, descrevia como era andar no bonde de burro: “O essencial é que me lembro dos bondes de burro com seus poucos bancos, com o condutor e o cobrador, os dois sem farda, de terno velho, colarinho duro, chapéu de lebre, ou chile, ou bilontra — e a 40 movida pela curiosidade com aquela inovação: “muita gente foi ver os dois primeiros bondes recém-chegados [...] Gente correndo atrás dos bondes” (1999, p. 309). Então mostrava, através do recorte de um jornal da época, as percepções reinantes: “A República, órgão oficial, noticiando, dava pormenores [...] tomando lugar nos dois carros que percorreram a linha, pela primeira vez, entre alas de povo que aclamava esse grande melhoramento da nossa capital” (idem). Ignorando por ora as condições diversas de trânsito, concentrando-nos no que compete ao uso dos animais, a bandeira da proteção animal que se levanta atualmente para discutir a retirada de carroças muito provavelmente leria os bondes de burros como um “grande abuso” assim como são encaradas agora as primeiras. É o que discutirei, sobretudo, no capítulo cinco. Retomando o desenvolvimento urbano da cidade de Natal, contudo, mudanças significativas ocorrem quando houve a substituição dos bondes de burro pelos elétricos, em 1911, que foi, nas palavras de Cascudo, um “ano milagroso”, ao se imprimir um novo ritmo à capital, acelerando o tempo de deslocamento e sendo mais vantajoso nas questões técnicas. Na década seguinte se iniciaria a popularização dos automotores que, assim como os bondes, cobravam passagens a um preço que restringiam, nesse momento, o acesso das classes mais populares (MEDEIROS; FERREIRA e DANTAS, 2012). É importante, nessa direção, recuperar as modificações na malha viária de Natal, obviamente, parte do planejamento urbano da cidade, que buscaram atender, conforme explica Galvão, ao “crescente interesse do grande capital em construir objetos técnicos que garantissem facilitar suas relações mercantis” (2011, p. 82), que destacam-se a partir da década de 1970. Também há que se considerar, na mesma década e na seguinte, a política habitacional intensa que “implicou em significativos vazios urbanos”; a cidade ampliava-se ao norte a partir da ocupação de camadas mais populares e, ao sul, através das mais abastadas, localizando-se serviços e comércios em áreas mais centrais, o que tornava a cidade “extremamente dependente de veículos motorizados” (NATAL, 2004: 42). Assim, mudanças significativas ocorrem na estrutura viária de Natal, dando origem às principais vias de circulação predominante ainda hoje, que podemos acompanhar em Costa bigodeira solta ao vento carioca. O primeiro governava os burros a chicotadas mais simbólicas que propriamente para valer e, principalmente, com a série de ruídos que tirava dos beiços, da língua, das bochechas, das goelas, e que eram muxoxos e chupões, assovios e estalos, brados monossilábicos e gritos churriados — a que as adestradas alimárias respondiam com o passo, a marcha, o trote, a andadura e a parada”, disponível em: http://literaturaeriodejaneiro.blogspot.com.br/2016/02/ bondes-de-burro.html, acesso em 28 de abril de 2016. 41 (2014) e Galvão (2011). Um primeiro marco, em 1970, é a ponte de concreto sobre o Rio Potengi, nomeada como Ponte Costa e Silva, mas popularmente conhecida como Ponte de Igapó, em referência ao bairro da Zona Norte de Natal. Segundo Costa, a construção da ponte junto à precedente constituição do primeiro Código de Obras de Natal, em 1968, “podem ser considerados como marcos temporais para a constituição dos sistemas viários e da própria expansão urbana da cidade do Natal” (2014, p. 45). Inclusive, outras legislações são citadas por Costa reforçando o “grande interesse do capital hegemônico em regulamentar os usos do espaço natalense”, especialmente do capital imobiliário, “o qual se expandia fortemente para as regiões sul e norte da cidade” (2014, p. 45): tratam-se dos Planos Diretores Municipais de 1974 e de 1984 e ainda dos Planos de Transporte de 1981 e 1988. Em seguida à construção da Ponte de Igapó, temos alguns marcos direcionados agora à expansão da Zona Sul da cidade: duplicação da BR101 e da Avenida Senador Salgado Filho, em 1972; a construção do Viaduto de Ponta Negra, em 1974, para servir à ligação da recém duplicada BR101 à dita estrada para Ponta Negra, que havia sido construída no ano anterior ao viaduto. Essa estrada foi duplicada em 1975, e atualmente corresponde à importante Avenida Engenheiro Roberto Freire; Por fim, destaca-se o Viaduto Juvenal Lamartine, conhecido por “Viaduto do Baldo”, em 1979, interligando a Avenida Prudente de Morais à Avenida Rafael Fernandes, conhecida por “Avenida do Contorno”, voltando-se mais à porção central da cidade. Segundo Galvão, “a constituição de tais fixos viários na região sul da cidade, possibilitavam e garantiam uma expansão mercantil nunca antes vista na história natalense” (2011, p. 83), que ocorreram paralelamente às importantes edificações e obras públicas, tal como a do campus central da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em 1972, a construção do estádio Machadão (1972) e do Centro-Administrativo do Estado (1974). Além dos conjuntos habitacionais, que surgiam na Zona Sul (como Potilândia, Mirassol, Neópolis), o setor de serviços começou a despontar nas décadas de 1970 e 1980, como foi a rede de Supermercados Nordestão; o Centro de Abastecimento do Rio Grande do Norte (CEASA); Serviço Social da Indústria (SESI) e o Terminal Rodoviário de Natal, este último localizado na Zona Oeste da Cidade, mas, aproveitando-se, como atesta Galvão (2011), da recém modernizada Avenida Capitão Mor-Gouveia, que liga diretamente o Terminal à Zona Sul32. 32 Como lembra Galvão (2011), embora essas construções, a parte central da cidade ainda seria detentora de grande parte dos estabelecimentos comerciais. 42 Nas décadas seguintes, prosseguiu o processo de ampliação e adequação de vias urbanas, sendo aqui importante destacar: a duplicação da Ponte de Igapó, em 1988; as obras de prolongamento da Avenida Prudente de Morais, interligando os bairros de Candelária e Pitimbu, em 1993; a construção do Túnel de Neópolis, interligando a BR101 a Avenida das Alagoas, no Bairro de Neópolis, em 1996; e a inauguração do conhecido “Viaduto da URBANA”, em 1998, facilitando o fluxo entre a Zona Norte às Zonas Oeste e Sul de Natal. Na década seguinte, duas maiores estruturas se destacam: o Complexo Viário do Quarto Centenário, inaugurado em 2000, na Zona Sul da Cidade, e o Complexo Viário Ulisses de Góis, conhecido por Complexo Viário da Zona Norte, em 2002. Por fim, destacamos a construção da Ponte Newton Navarro, em 2007, sendo esta o segundo acesso existente entre a parte sul de Natal à Zona Norte. A questão dos transportes é aqui imperativa, inclusive por termos sinalizado como os Planos de Transportes de Natal constituíram documentos importantes para o reforço do uso dos espaços e atuação do capital hegemônico na cidade. Janice Caiafa (2002) discorre sobre as cidades enquanto promotora de “espaços de circulação” e como o transporte público pode servir à fuga e à resistência do controle do Estado e das amarras capitalistas, ao propiciar o “ir para não reconhecer”, ou seja, “a viagem da diferença”. Desse modo, defende que “não há a rigor deslocamento, e portanto cidade, se só é possível movimentar-se em automóveis privados e em espaços já previstos – os caminhos do condomínio, os passeios do shopping” (2002, p.21). A autora cita, nesse sentido, como as cidades “orientadas para o carro” seguem modelos capitalistas do deslocamento individual, favorecendo, portanto, às classes mais abastadas, em detrimento do incentivo às políticas de transporte coletivo. Desse modo, explica-se, em Natal, uma Zona Sul que concentra os maiores investimentos em mudanças na estrutura viária, visando justamente o transporte automotivo (apesar dos Planos de Transporte de Natal ainda contemplarem a Zona Norte da cidade como também área “mais favorável à expansão urbana). Apresentava-se, no Plano de Transporte de 1981, uma inédita preocupação com o número de veículos em circulação no espaço urbano: Natal comportava, então, uma frota de 30 mil veículos, mas atualmente, segundo dados do Departamento Estadual de 43 Trânsito do RN (DETRAN), há mais de 370 mil veículos só na capital33, cuja população totaliza 877.662 habitantes (IBGE, 2016)34. Além disso, a reflexão de Caiafa (2002) pode ser associada ao que apontou Galvão sobre o Plano de Transporte de 1981: “não houve maiores sugestões sobre possível ampliação do sistema de transporte coletivo para além da região central da cidade, mesmo com o estudo, contraditoriamente, apontando uma dispersão no incremento urbano natalense” (2011, p. 87). O autor ainda destaca que “na atualidade, contudo, o sistema de transporte por ônibus ainda segue as bases lançadas desde os seus primórdios no espaço natalense” (ibid), ou seja, mantém direcionado aos fluxos da região central da cidade. Retomando todos esses aspectos, segundo especialistas, houve recorrentemente, nas lógicas urbanísticas de Natal, uma forte preocupação com uma imagem “moderna” que aparece, por exemplo, com destaque em programas de governo (LOPES JR, 1997; SILVA, 2011). Assim sendo, essa imagem acabou por ser retomada nos debates em torno da construção de uma política de transporte urbano e o destino a ser dado para o uso de carroças na atualidade. Como uma resposta a essa imagem, alguns carroceiros chegaram a se posicionar, em audiências públicas, sobre a importância da carroça como elemento histórico da construção identitária e estrutural da cidade de Natal, já que era um transporte “que já está desde o início do século, desde o início dos tempos”. Essas significações e sensibilidades, que afloram em relação ao que se deseja por uma cidade “moderna”, acabam, portanto, repercutindo no trabalho cotidiano (e no futuro da ocupação) dos carroceiros. É o que eles definem ou traduzem como “aperto” ou “pressão”, que passam a sentir mais intensamente à medida que se acelera o processo urbanizador de Natal, configurando-se atualmente na ameaça efetiva da proibição de sua forma de trabalho tradicional, caracterizada pelo uso urbano de animais. Nas entrevistas, a maioria das falas dos carroceiros, embora um pouco divididas, argumentava em torno de uma presença maior de carroças quando começaram suas atividades como trabalhadores, em média há 32 anos, verificando-se o uso frequente de carroça para transporte e sustento familiar. Em paralelo, havia aqueles que defendiam a existência maior de carroças na atualidade, justificando isso em razão, principalmente, do aumento do desemprego e até do crescimento da cidade. É 33 DETRAN. Distribuição da frota do Rio Grande do Norte, segundo o tipo de veículo. Disponível em: , acesso em outubro de 2016. 34 IBGE. Rio Grande do Norte/ Natal. Disponível em: , acesso em outubro de 2016. 44 preciso destacar que, nesse grupo, estavam os carroceiros que iniciaram a atividade mais recentemente, em comparação com os outros, em uma média de quase 24 anos de serviços. Apesar disso, todos os carroceiros são unânimes a respeito de uma maior dificuldade do trabalho nos dias atuais, a dita “pressão”, comparado a um passado em que podiam circular mais tranquilamente pela cidade, embora eu tenha ouvido de um deles que “sempre existiu isso de querer acabar com a carroça”. Nesse sentido, durante a pesquisa de campo, sobretudo, e reafirmado nas entrevistas, obtive relatos de uma Natal que possuía outras formas de encarar o trabalho dos carroceiros, mesmo que isso possa ser uma idealização do passado. Se atualmente encontramos uma forma de trabalho frequentemente vigiada e contestada, foi relatado, em diversos momentos pelos carroceiros, um passado que era vivido mais livremente na cidade. Quando resgatavam essas memórias, havia certo tom de prazer e orgulho em relatar como podiam desfrutar de espaços mais próprios de sociabilidade, mas também narravam como participavam de diversos eventos sociais da cidade, inclusive como figuras de destaque. Chegaram a descrever antigos eventos, já desaparecidos, tal como a “cavalgada de verão”, que se iniciava na praia de Santa Rita e seguia até a praia de Muriú. Outro evento importante para os carroceiros, ainda existente, são as “feiras de trocas de cavalos”, que foram, no entanto, consideravelmente restringidas. Vavá chegou a me contar, em especial, de uma grande feira que existia ao lado da Escola Estadual Winston Churchill, que fica próxima da Cidade Alta, mas que deixou de existir. Porém, podemos citar ainda a existência de duas feiras em áreas periféricas do município de Natal. Mais uma mudança enfrentada pelos carroceiros foi ainda comentada por Vavá que destacava a redução na quantidade de pontos de carroceiro, citando, por exemplo, o caso de várias “praças” que deixaram de existir, inclusive algumas próximas do bairro de Alecrim, tal como a que era organizada na Avenida 9. Além desses espaços de sociabilidade mais voltados aos carroceiros, obtive também relatos sobre sua participação em grandes eventos públicos da cidade. Nesse sentido, eles acompanhavam o calendário festivo da cidade, quando podiam, em geral, ser contratados para realizarem serviços. Segundo soube, eles eram pagos para fazer o transporte de pessoas pela cidade durante o carnaval. Até recentemente, em meados de 2000, os carroceiros eram convidados a participar de um bloco chamado “Burro elétrico” no chamado “carnaval fora de 45 época”, o Carnatal35, que ocorre no fim de novembro ou início de dezembro, quando também faziam o serviço de transporte das pessoas. Alguns carroceiros chegaram a relatar participação em festividades de algumas escolas36 e, mesmo, no período junino, das quadrilhas de bairros, quando eram chamados a fazer parte de cenários representativos da tradição rural. Tudo isso servia como exemplo de um passado de “muitos passeios e festas”. Ao realizar uma comparação com os dias atuais, Vavá chegou a dizer: “Eu alcancei em São João quadrilha que levava cinco, seis carroças [...] era aquela brincadeira bonita, como se fosse um pé de serra, né?! Hoje é aquele negócio sem graça”. Além do uso de carroças para eventos festivos, elas eram usadas de forma recorrente para o transporte de pessoas para hospitais e postos de saúde37, inclusive chegaram a me dizer que até mesmo serviam para “carregar defunto”. Outro destaque que surgiu na fala de muitos foi a realização de serviços de coleta de resíduos a melhores pagamentos, o que motivou, inclusive, a vários preferirem o trabalho na carroça para o sustento familiar. Como uma das mudanças desse quadro, em algumas falas, destacou-se o surgimento do serviço de disk entulho como algo que prejudicou os rendimentos dos carroceiros, especialmente daqueles que trabalham em áreas mais nobres de Natal. Mas Ednaldo, que é morador de uma área mais carente da cidade, garantiu-me que o disk entulho em nada atrapalhou seu esquema de trabalho, pois onde mora “a população não paga esse valor mais alto”, apenas contratando o disk entulho “quando tem que tirar uma quantidade maior”. Deve-se notar aqui que há uma grande diferença entre os valores cobrados, pois, enquanto os carroceiros estipulam uma faixa de 20 a 30 reais por viagem, utilizar as caçambas do disk entulho, que suporta um volume de resíduos bem maior que as carroças, está na faixa de 230 a 250 reais, segundo me informaram. Mas, enquanto uma população descarta a contratação do disk entulho pelo seu valor mais elevado, em bairros mais nobres, especialmente em se tratando de condomínios residenciais verticais, a substituição das carroças pelas caçambas se tornou mais frequente nos últimos anos. Nesse sentido, um carroceiro constatou a perda gradativa de trabalho: “aqui no (ponto do) depósito tinha o quê? Umas 12 ou 13 carroças trabalhando e não parava. Não parava, era o dia todinho e não parava”. 35 Carnaval fora de época de Natal, ainda existente. 36 Citando inclusive unidades escolares bastante conhecidas em Natal, como o Colégio Marista e o Chapeuzinho Vermelho. 37 Ainda há situações do uso das carroças para esses fins, concentrando-se mais nas áreas periféricas. 46 1.1 Outra Natal: organização e apoio ao trabalho dos carroceiros As mudanças em relação à forma de lidar com as carroças também referem-se às esferas político-administrativas municipais. Nessa direção, foi-nos relatado como, no passado, o trabalho na carroça encontrava maior respaldo e apoio do governo municipal, inclusive para a execução de atividades públicas. Por exemplo, houve antes a concessão de incentivos aos carroceiros, tal como a doação de parte da alimentação de seus animais, durante certa administração da Prefeitura. Segundo Reginaldo, havia um projeto de um órgão da Prefeitura – que ele não soube identificar, mas localizou a sede na Rua Mipibu, que provia em torno de metade da dieta dos animais usados na tração, doando sacos de farelo de trigo e milho. Isso parece ter ocorrido por volta dos anos de 1979 a 1980, quando o governador era Lavoisier Maia (ARENA)38 e seu primo José Agripino Maia foi empossado prefeito de Natal. Na ocasião, houve também o emplacamento das carroças. Em pesquisa documental que realizei nos arquivos da Associação dos Carroceiros de Natal, tive acesso a um documento que parece indicar qual era o órgão público referido por Reginaldo. Tratava-se de uma convocação para que os carroceiros comparecessem às unidades da Coordenação do Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL), sendo uma delas na Rua Mipibu, justamente para proceder ao emplacamento das carroças. Além desse incentivo para a alimentação dos animais, soubemos ainda sobre a contratação pela Companhia de Serviços Urbanos de Natal (URBANA) de carroças para complementar a coleta de resíduos na cidade. Também através dos arquivos da Associação dos Carroceiros, pude ter uma precisão maior das épocas e datas em que esses serviços foram realizados, já que alguns interlocutores pareceram confusos em recuperar os anos exatos das atividades. Assim, encontrei documentos que atestavam um período entre 1993 a 2002, quando se deu a participação das carroças na limpeza pública de Natal. Identificava algumas referências – já que não localizei os próprios documentos – aos convênios que foram praticados, sinalizando alguns números: convênio nº 02/96 e nº 01/99, firmados diretamente entre a URBANA e a Associação dos Carroceiros de Natal. Nesse sentido, é interessante ver como a tração animal por burros e cavalos está imbricada, em diferentes configurações, na 38 Permaneceu no Arena de 1965 até 1980, quando ocorreu o fim do bipartidarimo que vigorou no período da Ditadura Militar de 1964. Depois, Lavosier iria compor o quadro do PDS, partido sucessor direto do ARENA. 47 história da limpeza pública de vários países (EIGENHEER, 2009), tal como ocorreu no Brasil em meados do século XIX e início do XX, sendo posteriormente substituída por carros. No contrato assinado pelos carroceiros foi possível determinar a carga horária de seis horas diárias (07h às 13h) que fixava, além disso, algumas exigências: a preservação da “condição semovente” do animal visando a atenção para “este não entrar em estado de completa exaustão”. Explicitava claramente a proibição expressa de condução das carroças por menores e de ingestão de bebida alcoólica. Aos carroceiros também cabia a adequação de suas carroças para o serviço, uniformizando-as e, em caso necessário, reformando-as. Para elas, eram determinadas as seguintes dimensões: 1,55m de comprimento, 1,20m de largura e 0,30m de altura, o que corresponde a um volume de pouco mais de meio metro cúbico. Nos arquivos, encontrei um pedido da Associação para adquirir o fardamento dos carroceiros e um termo de responsabilidade em que um deles se comprometia a preservar um “garfo” e um “vassourão” que recebia para realizar suas atividades. O carroceiro Borges me contou que era um “trabalho bem organizado” e que havia um gari acompanhando os carroceiros na coleta. Nesse sentido, encontrei listas que sinalizavam esse trabalho conjunto, descrevendo nomes de carroceiros e garis, e os equipamentos utilizados: carroças, carros de mão, caixas estacionárias e containers. Figura 01: Carroceiros da coleta de resíduos em Natal pela URBANA Fonte: Arquivos da Associação dos Carroceiros de Natal Em relação ao pagamento que recebiam, verifiquei um recibo, datado de 1999, que declarava a entrega de um valor líquido de R$ 87,03 para um carroceiro. Nos contratos que 48 observava da Associação, ela recebia um valor líquido médio de 14 mil reais por mês através do convênio (considerando os recibos encontrados entre os anos de 2000 a 2002). Vavá chegou a me dizer que esse acordo com a URBANA perdurou até a Associação perder sua presidência. Contudo, anos depois, ele voltaria a ser estabelecido por uma espécie de presidência temporária, intermediada por uma empresa terceirizada. Essa retomada se deu no ano de 2004, tal como podemos verificar na carteira de trabalho de Reginaldo: Figura 02: Carteira de trabalho de Reginaldo [grifos em vermelho são da pesquisadora] Fonte: Arquivo da pesquisadora Segundo Reginaldo, a Golf Prestadora de Serviços era uma empresa terceirizada contratada pela URBANA. Através de sua carteira de trabalho vemos que o contrato com a empresa durou poucos meses. Alguns carroceiros comentaram ter ocorrido problemas na gestão da Associação dos Carroceiros, inclusive pela mudança de presidência, que impediram a continuidade desses contratos. Em relação a esses contratos, nada pude encontrar nos arquivos da Associação. No entanto, diversos documentos ajudam a explicar a necessidade real dessas contratações para a limpeza urbana, especialmente as comunicações institucionais entre a URBANA e a Associação dos Carroceiros. Assim, um documento da Associação apontava: “a nossa associação presta serviços a nossa comunidade [...] em diversos bairros de nossa cidade, notadamente nos locais de difícil acesso ou intrafegável para outro tipo de veículo”. Diante das listas de carroceiros contratados, relacionados aos números de suas 49 carroças e às ruas em que eram designados a trabalhar, atestamos que esses locais descritos no documento se localizam principalmente na Zona Norte e Zona Oeste de Natal. Nesse sentido, convém destacar as solicitações de aumento do número de carroças que realizavam o serviço de limpeza pública. Nas referências que se fazia ao convênio nº 01/99, foi assinalado um aumento de 35 para 50 carroças. Na mesma direção, encontrei outros documentos da URBANA: um que solicitava, em 1999, a contratação de mais uma carroça para uma rua da Zona Oeste, “beneficiando 446 residências, com aproximadamente 2.230 moradores”; e outro, do ano de 2000, que solicitava um aumento, justificado da seguinte maneira: “sem sombra de dúvidas a URBANA não poderá se furtar em adotar medidas no sentido da contratação de mais 06 (seis) carroças de tração animal, para com isso sanar comprometimento de saúde populacional (grifos meus)”. Por fim, é importante destacar que há nas falas, sobretudo de Adailton, Borges e Vavá – reconhecidamente os carroceiros mais antigos, que começaram a trabalhar, respectivamente, há 40, 45 e 55 anos39 – a descrição de outros contextos que são fundamentais para entender um idioma ou lógica de trocas e favores que esteve bastante presente no cotidiano dos carroceiros. Trata-se da participação dos carroceiros nas manifestações políticas-partidárias de décadas atrás. Os três citaram com mais detalhes o uso de carroças em campanhas eleitorais, até mesmo como palanque improvisado, especialmente por volta das décadas de 1980 e 1990. Entre os políticos, destacavam-se os nomes de Geraldo Melo40, Aluízio Alves41, Garibaldi Alves42, Henrique Alves43, Lavoisier Maia44, José Agripino Maia45, Wilma de Faria46, Tarcísio Ribeiro47 e Nelson Freire48 – alguns deles, inclusive, ainda ativos na vida política estadual e nacional. Em diálogo com Adailton, ele me explicaria como se dava essa relação: Adailton: - Os políticos de 80 [...] tudo fazia política em carroça. 39 Desses, não está em atividade apenas Borges que deixou o trabalho em carroças há dois anos. 40 À época no PDS e, depois, PMDB, atual PMDB. 41 Falecido. À época PMDB. 42 PMDB. 43 PMDB. 44 À época PDS e, depois, PDT. Atual PSDB. 45 À época PDS e, depois, PFL. Atual DEM. 46 PDS, e depois, PDT. Atual PTdoB. 47 PMDB. 48 Não localizado vínculo atual. Desfiliado do PPB e do PSB. 50 Pesquisadora: - O senhor já participou de alguma? Adailton: - Muitas. Pesquisadora: - O senhor apoiava um político e ia? Adailton: - É, o político apoiava a gente, dava aquela mixaria e um saco de farelo ainda mais. A gente ia, passava a noite todinha. Nesse sentido, Vavá também descreveu com saudosismo: “a gente fazia passeata aqui demais [...] era um carnaval. A gente ia daqui até Ceará-mirim de carroça, (ia) para Macaíba. (havia) Aqueles carros carregados de laranja, dava aos carroceiros, era uma coisa linda, na época”. E Borges, enquanto uma das lideranças dos carroceiros que chegou a ser presidente da Associação, contou-me como ele se envolveu mais intensamente em campanhas políticas, tornando-se organizador daquilo que Adailton chamou de “burreata”. Borges afirmou que um político ou seus assessores o procuravam e solicitavam uma determinada quantidade de carroças em seus atos e, então, Borges fazia o convite aos carroceiros, revelando que já dispunha de uma rede de conhecidos que o seguiam nesses eventos. Entendendo esta rede como a formação interpessoal de relações entre carroceiros em um contexto ou período específico, podemos associá-la ao conjunto-em-ação de Mayer (2010), principalmente em termos de uma atividade política, o que está articulado de modo interessante ao trabalho de Palmeira e Heredia. Esses dois autores descrevem este período específico como o “tempo da política”, quando há, em uma de suas consequências, justamente “a contaminação das relações sociais pela política”, o que “leva à exacerbação de solidariedades e a uma proximidade física e social entre os que, naquelas situações concebidas como ‘normais’, mantêm-se pessoalmente vinculados, conquanto cada um ‘no seu devido lugar’” (PALMEIRA e HEREDIA, 2010, p.181). Retomando a narrativa de Borges, ele chegou a revelar que havia, em especial, outro grupo liderado por um carroceiro chamado Clemente, também ex-presidente da Associação, que, por vezes, optava pela adesão a uma corrente política adversária de Borges, mas este garantia que não havia conflito direto e os carroceiros “se respeitavam” em suas diferenças. Mais propriamente ao fim desses eventos, não há um entendimento claro sobre. Por isso, diferentes perspectivas despontaram. Uma delas versava sobre os problemas internos da Associação como fator que enfraqueceu a relação com os políticos. Outra aludia ao que seria 51 um “enriquecimento” da classe política que agora “prefere carros às carroças”; e, por fim, foi citado ainda o que entendem por ser a perda da tradição do uso de carroças. Mesmo com o fim desse tipo de campanha eleitoral, a relação de Borges com algumas figuras políticas foi tanta que ele ainda nutre admiração por algumas delas, por exemplo, ao ponto de dizer que se hoje existe um “movimento” para retirar as carroças se deve ao desconhecimento de Agripino Maia (DEM) e de Wilma de Faria (PTdoB). Esse envolvimento mais intenso com determinadas correntes políticas também aparece na fala de Vavá, que afirma ser “bacurau”49 até hoje. Outro exemplo pode ser dado ainda por Borges, que chegou a destacar com muita veemência, em sua defesa sobre a permanência das carroças, do comício em que esteve presente o ex-presidente militar João Figueiredo, realizado no bairro do Alecrim. Segundo Borges, o último presidente militar teria afirmado que “nunca se acabaria carroças em Natal”. Nos dias atuais, chegou avaliar que “não está havendo união que é pra existir, que antigamente existia”. Ao ser perguntado sobre que união existia, ele continuava: “Os políticos davam mais oportunidade a gente”. É, assim, nesse viés de uma ordem sociopolítica, que envolvia clientelismo e assistencialismo, que podemos citar ainda o incentivo para a construção da sede da Associação de Carroceiros de Natal, pelos governos municipal e estadual. Obviamente, nessa teia de relações, a entidade não deixaria de ser envolvida. De modo geral, quando os carroceiros me contavam sobre tantas mudanças em relação à participação na vida da cidade, não sabiam identificar as razões pelas quais todas essas práticas foram sendo perdidas aos poucos. Eles vagamente identificavam o “aperto” a um período nos últimos seis a dez anos, coincidindo, portanto, com as discussões e projetos públicos da cidade de Natal para receber a Copa do Mundo. Um deles chegou a citar o aumento do fluxo de trânsito na cidade, o que fez “a governadoria olhar a gente”. Como consequência do “aperto” em torno da atividade dos carroceiros, pude conhecer dois que chegaram a optar, em momentos distintos, por abandonar o ponto da praça. Um deles, Moisés, já havia deixado o ponto há mais de um ano e o outro, Leandro, no decorrer da minha pesquisa de campo. Os dois venderam suas carroças e seus animais da tração. Contudo, Leandro ainda permaneceria, na sua residência, com um cavalo de vaquejada, evento que gosta de disputar. Ambos alegaram que preferiam abandonar o trabalho de carroceiro 49 Símbolo que representa a oligarca família Alves de forte influência na política do Estado do Rio Grande do Norte. 52 justamente por causa da “pressão” que sentiam. Deve-se aqui destacar como essa “pressão” acaba refletindo também em problemas emocionais e de saúde, como o caso de Borges, que me narrava estar “doente dos nervos”, próximo socialmente da descrição de Duarte (1986). Moisés, um senhor de idade bem avançada, passou então a viver fazendo pequenos serviços com carrinho de mão. Já Leandro conseguiu um emprego de pedreiro através de familiares, que ocupou temporariamente. Além deles, conheceria, de forma rápida, em uma comunidade carente da Zona Oeste de Natal, um carroceiro, Francisco, que assim como Moisés e Leandro vendeu a carroça e seu animal. Entre aqueles que eu conhecia, despontava um sentimento de que agora são “perseguidos”, como um deles me colocou: por pessoas que antes “dependiam” dos carroceiros, referindo-se, dessa forma, a uma população que precisava mais dos seus serviços. Sentem, assim, falta de uma época onde não “tinha essas acusações que tem hoje” e “não tinha piada”, para falar de situações que precisam lidar atualmente. Um deles concluía sobre o trabalho de carroceiro “antes era mesmo normal”. 1.2 A Associação dos Carroceiros de Natal Pude conhecer parte da história da Associação através, sobretudo, de Borges e Vavá, que foram fundadores da entidade, compondo sua primeira diretoria. Através de Borges tive acesso a uma narrativa da fundação e de muitas das questões internas. Vavá foi mais comedido no repasse das informações, sendo muitas vezes evasivo, sobretudo nas questões que dizem respeito aos conflitos em torno da Associação. Porém, com ele conseguiria acesso aos arquivos da entidade, onde encontrei documentos e fotografias importantes para entender boa parte da história e de relações que envolviam a Associação, sem contar o acesso a dados cadastrais dos carroceiros que me permitiram entender as suas trajetórias individuais e coletivas na cidade50. 50 Para conseguir visualizar todas as pastas e documentos que lá se encontravam, Vavá me recebeu e acompanhou durante três tardes consecutivas na Associação. Apesar de existir apenas três gavetas com documentos, de um total de quatro do pequeno armário, havia muitos papeis que estavam dispersos. Tentei organizar o máximo que pude e fui fotografando os que julgava, à primeira vista, mais importantes. Vavá, talvez por motivos de cansaço ou até mesmo de desconfiança, tentava acelerar minhas visitas, propondo, inclusive, que eu não olhasse determinadas pastas. Justifiquei que poderia haver documentos importantes ali e o convencia a abrirmos juntos. Muito do que, em certos momentos, eu entendia como desconfiança se deve sobretudo ao fato da posição de Vavá diante da Associação, que desenvolveremos mais à frente nesse tópico. Eu, em todo o tempo 53 Contudo, a principal narrativa que resgata a fundação da Associação e apoia a presente dissertação é, assim, a de Borges. Ele, ao narrar a história da entidade, narrava muito de sua própria história de vida (BOURDIEU 1998; 2003), em virtude de sua forte relação com ela, inclusive pude perceber, nas entrevistas que tive com ele, como esse envolvimento ainda existe mesmo após seu relativo afastamento, revelado através do conhecimento a respeito de algumas movimentações realizadas em torno da representação da entidade, quando, por exemplo, mostra-se ciente de interesses em disputa, chegando até a ser parte consultada nos conflitos internos. Além disso, o fato de ser grande amigo de Vavá que, atualmente, reside em uma casa que pertence ao terreno da entidade, também o torna mais próximo da Associação, pois ela é tema presente em suas conversas, tal como, por vezes, me revelou. Ao falar da história da Associação, Borges se mostrava orgulhoso ao contar sobre como vencera a eleição para ser seu primeiro presidente, alguns anos antes da inauguração da sede própria, na Zona Oeste, em Natal. Ele não sabia precisar exatamente o ano de criação da Associação, mas sinalizou entre 1979 para 1980. Ao pesquisar os arquivos da entidade, encontrei seu estatuto, publicado no Diário Oficial51 de 10 de junho de 1980. Borges explicou que foi a Prefeitura de Natal, na época administrada por José Agripino Maia (então filiado à Aliança Renovadora Nacional – ARENA)52, que convidou os carroceiros, através do Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL)53, a discutir a formação de uma associação da categoria, em uma reunião que contou com a presença de uma senhora chamada Lourdes Guerra, que era, então, a coordenadora do MOBRAL. Vavá também confirmou que a que estivemos na Associação, era honesta, revelando o documento que eu visualizava e que fotografaria. Aqui, vale resgatar outro contexto quando Vavá me afirmou, em um momento bem anterior ao meu acesso ao arquivo da Associação, que não tinha permitido o acesso de outra pessoa interessada em verificar os documentos da entidade. Apesar dessa postura mais desconfiada de Vavá também para comigo, é importante destacar, em contrapartida, um momento de muita confiança, quando me permitiu levar as fichas dos carroceiros associados para que pudesse tirar xerox, uma vez que havia uma pilha considerável de documentos, tornando o ato de fotografar muito mais demorado. 51 Não há a sinalização sobre a qual âmbito se refere o Diário Oficial, acredito que pelo teor das demais publicações na página seja referente ao município de Natal. 52 José Agripino assumiu a prefeitura de Natal no mandato de 1979 a 1982, durante o regime militar no País, tendo seu nome indicado pelo então governador e primo Lavoisier Maia e, em seguida, homologado pela Assembleia Legislativa do RN. Depois, venceria as eleições em 1982, quando o país retomava a democratização política, para o cargo de governador do Estado, que assumiu no período de 1983 a 1986 pelo partido PDS. 53 Segundo Ventura (2001), o Mobral não se restringia à alfabetização e ao ensino das então quatro primeiras séries do ensino fundamental, “ampliava-se e diversificava-se o campo de atuação, o que pôde ser percebido pelos seus vários programas, lançados na média de um por ano, na década de 1970, os quais iam desde o Programa de Alfabetização Funcional até (para surpresa de muitos) o Programa de Atendimento Pré-Escolar, passando pelo Programa de Profissionalização e pelo Programa de Educação Comunitária para o Trabalho.”, VENTURA, Jaqueline P. Educação de Jovens e Adultos Trabalhadores no Brasil: revendo alguns marcos históricos, disponível em: , acesso em out de 2015. 54 Associação surgiu através do MOBRAL, mas não soube entrar em detalhes sobre isso. Assim, marcava-se esta peculiaridade já na constituição da Associação dos Carroceiros de Natal pois surgia de uma iniciativa não dos próprios carroceiros organizados (como foi o caso de muitas entidades surgidas no mesmo período) mas sim impulsionado por ações governamentais. Borges me contava que, nesse período, outras associações mais populares surgiram da mesma forma, como foi a das lavadeiras, por exemplo, entidade fundada em concomitância ao dos carroceiros. Após o final de seu primeiro mandato54, Borges venceu mais outra eleição da diretoria da Associação, mas negociou com seu vice, Antoniel, para alternarem seus cargos, pois ele trabalhava, segundo me explicou, como carroceiro em uma empresa e não dispunha de tempo para resolver as questões da entidade. Borges esteve um pouco confuso em recordar a sequência das pessoas que presidiram a Associação até chegar então a Clemente. Segundo Borges, ao concorrer com Clemente, ele ganhou de novo a eleição e, assim, propôs o mesmo tipo de acordo que fez a Antoniel em relação à alternância dos cargos. Clemente acabou aceitando e assumiria a presidência da Associação por um período aproximado de 20 anos até falecer, atropelado por um trem55, uma tragédia que foi aludida diversas vezes pelos carroceiros, sendo ela muito recorrentemente associada a uma espécie de sinal da justiça divina em razão da insatisfação que tinham da gestão de Clemente, sobretudo devido aos atos de corrupção que ele era acusado56. Portanto, foi durante o mandato de Clemente que a construção do prédio-sede da Associação foi finalizado. Sua inauguração ocorreu no ano de 1985, quando José Agripino (Já pelo Partido Democrático Social – PDS) assumiu o governo do estado e Marcos César Formiga Ramos (PDS)57 era prefeito de Natal. No interior da Associação, encontramos uma placa de inauguração que atesta essas informações. Já bastante desgastada e com marcas de 54 Conforme me disse Borges, cada mandato tinha duração de um ano. 55 Encontrei na Associação um ofício em que a Câmara dos Vereadores de Natal declarava um “profundo pesar” pelo falecimento do ex-presidente da Associação, datado de 18 de abril de 2002. Em busca pela internet, localizei apenas uma notícia sobre o acidente que vitimou o senhor Clemente, que por ser antiga, só é possível a visualização em cache. Segundo consta na notícia, a Companhia Brasileira de Serviços Urbanos (CBTU) era condenada pelo acidente que aconteceu em 26 de março de 2002. 56 Borges esclareceu que, desde o ano em que Clemente assumiu o cargo de presidente, não foram mais realizadas eleições para a entidade. Contou que, em poucos anos de gestão de Clemente, ele decidira romper por não concordar com algumas práticas que, segundo ele, vinham sendo tomadas. 57 Marcos Formiga foi prefeito de Natal no período de 1983 a 1986. 55 uma pintura não muito cuidadosa, esta placa58 marca a data precisa de inauguração no dia 01 de agosto e apresenta a construção do prédio como fruto de um convênio entre o Governo do Estado do RN, a Prefeitura Municipal de Natal, a Secretaria de Planejamento do Estado (SEPLAN) e a Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (SEMSUR). Na placa, há um detalhe interessante, que é a sinalização do espaço como compartilhado entre carroceiros e lavadeiras. Tanto Borges quanto Vavá contaram que, apesar dessa placa, as lavadeiras nunca ocuparam o espaço, já que elas possuíam outra sede perto do terminal de ônibus no bairro Cidade da Esperança, também na Zona Oeste de Natal. Vavá chegou a afirmar que a associação serviu, por vários anos, como espaço para a realização de aulas para os carroceiros, visando sua alfabetização e escolarização. O local também serviu para os encontros do clube de mães de um bairro da Zona Oeste. Segundo Borges, o prédio da Associação foi inaugurado já com uma casa em anexo que tinha como finalidade abrigar algum carroceiro que precisasse de moradia. Atualmente, nesta casa, reside Vavá. Antes dele, ela foi ocupada por outro carroceiro, que após desavença com Clemente, optara por deixar o local. Assim, Borges, que já tinha rompido com Clemente, indicou Vavá, seu aliado, para morar nessa casa, embora o próprio Vavá também passasse a ter divergência com Clemente, mas resistiu, e permanece residindo na casa pertencente à Associação por mais de vinte anos, segundo me contou. Foi após o falecimento de Clemente que Vavá passa a cuidar efetivamente da Associação, o que também teria sido acordado com Borges. Depois disso, a entidade não teve nenhum representante legal, embora, em algumas situações, tenha sido pontuada a presença de um carroceiro, Edmar, que teria realizado esta representação política por um curto período. Segundo Borges, este carroceiro não chegou a ser representante oficial da Associação. Vavá depois me daria mais informações. Explicou que a esposa de Clemente, conhecida por Socorro, após o falecimento deste, tentou prosseguir a gestão da Associação (mostrando aqui como as relações familiares têm importante presença), mas acabou perdendo uma eleição justamente para Edmar que assumiu a presidência e deu continuidade aos contratos para limpeza pública, através da empresa Golf. Entretanto, carroceiros narram ter ocorrido 58 Na placa, com algum esforço, podemos ler as seguintes informações: Associação dos Carroceiros e Lavadeiras. Inaugurada em 01/08/1985; Governador do Estado do R.G.N. – José Agripino Maia; Prefeito da Cidade do Natal – Marcos Formiga; Secretário de Planejamento do Estado – Manoel Pereira dos Santos; Secretário Municipal de Serviços Urbanos – Marcílio Carrilho; Superintendente de Obras do Município – João Augusto da Cunha Melo; Convênio – Governo do Estado/ PMN/ SEPLAN/ SENSUR 56 denúncias de fraudes nos contratos e os serviços prestados pelos carroceiros foram interrompidos. A partir das conversas que tive, fui me apercebendo de que a Associação esteve atrelada comumente a interesses e disputas político-partidárias. Borges contou sobre as visitas de alguns políticos potiguares importantes da época à Associação, tais como os já citados José Agripino Maia e Wilma Faria, mas também Jessé Pinto Freire Filho59, Nelson Freire e Tarcísio Ribeiro. Essas visitas aconteciam até em sua residência ou na de Clemente. Fiquei surpresa com todos estes fatos e, certa vez, quando ouvia os relatos de Borges, sua filha chegou a interromper a entrevista para me explicar que “era muita politicagem [...] Naquela época, rolava muita verba, muito dinheiro”. Ela estava se referindo aos projetos que a entidade esteve envolvida, além dos próprios recursos destinados à construção do prédio-sede da Associação, sem contar os programas assistenciais, tal como a entrega de cesta básica, chamada por Borges de “sacolão”, ou a entrega de litros de leite. Vavá descreveu do mesmo modo, mas ele ressaltou que a grande presença de políticos na Associação era devida aos “contatos” que Clemente tinha estabelecido. Tanto Borges quanto Vavá falaram de doações que a Associação recebia desses políticos, especialmente em anos eleitorais. Ao discutir sobre a temática da mediação, Valle tece algumas considerações sobre o clientelismo político. Dentre elas, o autor destaca como “o clientelismo político pode operar em termos das redes e fluxos de melhoria, suporte e desenvolvimento local, ocupando funções próprias do aparelho de Estado, além de criar uma base político-eleitoral” (2015, p. 29). Apoiando-se em diversas pesquisas, esclarece que quando os políticos: “ajudam”, “atendem pedidos”, “recorrem”, ou “procuram apoio” a seus eleitores, estão criando e mantendo relações “complexas” de um sistema de reciprocidade, cujos sentidos e efeitos se apresentam através de aparelhos burocráticos, partidos, corporações e outras agências vistas como “modernas”, supostamente isentas de personalismo, mas que acabam sendo constituídas através de relações pessoais, lealdades e facções políticas. (ibid) Da mesma forma, Palmeira e Heredia (2010) descrevem como no “tempo da política” são comuns recebimento de benesses em troca de sua declaração de voto, uma equação simples que representa na verdade a comunhão entre a fidelidade do eleitor e, em contrapartida, o apoio e suporte de um mediador. Assim sendo, os autores mostram como “inserir-se em uma facção torna-se, pois, uma imposição” (ibid: p.177). Essa discussão se 59 Falecido. PFL. 57 apresenta próxima do que Boissevain (2010) destaca a respeito dos indivíduos que agem como “empreendedores sociais”, movendo-se por interesses próprios. Ou seja, no caso em questão daqueles que declaram seu voto, seria a perspectiva de “ter a quem recorrer em caso de necessidade” (PALMEIRA e HEREDIA, 2010). Enfim, pude verificar, a partir da pesquisa nos arquivos da Associação, que a entidade tinha uma rotina e uma direção pautada em práticas clientelistas, tais como as que descrevemos, mas também assistencialistas. Dessa forma, eu verifiquei os mais diversos pedidos através de ofícios, das mais variadas ordens e destinatários, entre eles: pá, carro de mão, caixa estacionária, peixe da semana santa, brindes para entrega nos dias dos pais e das mães, redução de taxa do Imposto Sobre Serviço (ISS), para aqueles que trabalhavam para a URBANA, redução pela metade da multa aplicada em casos de apreensão de animais, e até um conjunto habitacional de 50 casas, que Vavá me confirmou nunca ter sido adquirido. Retomando Valle, ele comenta “como as práticas de mediação podem estar associadas a questões, eventos e contextos tanto cotidianos como singulares que não se restringem à política eleitoral" já que “as relações entre Estado e sociedade civil são fluídas e definidas por múltiplas linhas cuja própria complexidade constitui a vida societária” (2015, p.30). Para corroborar a dimensão efetiva de tais práticas, foi muito interessante encontrar, em uma sala ao fundo do prédio da Associação, as fotografias dos políticos que inauguraram a Associação: Agripino Maia e Marcos Formiga. Havia entre eles a foto de outro político, Nelson Freire, que Vavá não soube explicar porque afinal ele estava ali incluído, entre os outros, limitando-se a dizer que ele também “apoiava” os carroceiros. No meio das fotos, havia um retrato do próprio Clemente. De cara, mostrou-se significativa a preservação dessas fotografias em bom estado na Associação, quando encontraria na mesma sala diversos objetos dispersos e amontoados, assemelhando-se este cômodo muito a um depósito. Nesse sentido, embora Vavá demonstrasse preocupação com os documentos da Associação, seus arquivos estavam revirados e não demonstravam o mesmo apreço que parecia dedicado às imagens. 58 Figura 03: Retratos expostos em parede da Associação – A ordem da esquerda para a direita: Marcos Formiga, Nelson Freire, o carroceiro Clemente e o governador José Agripino. Fonte: Arquivo da pesquisadora No decorrer do trabalho de campo, fui me inteirando aos poucos das dinâmicas políticas e das negociações internas que afetaram, ao longo dos anos, a gestão da Associação. Assim, foi se fortalecendo a impressão de uma entidade permeada por redes de relações pessoais e familiares. Vavá atualmente é o responsável pela manutenção do prédio da Associação, residindo em um imóvel que também é parte do terreno da entidade. Ele mora com familiares que também estão distribuídos em outras casas na vizinhança. Se, no começo de meu campo, Vavá se mostrava mais resistente a aceitar algum presidente na Associação, chegando inclusive a afirmar que “nenhum carroceiro entraria na Associação”, grande parte dessa resistência, movida principalmente por desconfiança, parece ter sido bastante diminuída, em especial, quando passou a existir a atuação de Santos, presidente de um Conselho Comunitário de bairro na Zona Oeste, que se tornou uma figura de destaque na discussão da política de retirada de carroças, quando assume a representação temporária dos carroceiros junto a outras pessoas. Santos teve de enfrentar, de início, a resistência de Vavá. Só que isso foi sendo revisto aos poucos, deixando Vavá aparentemente mais confiante e seguro sobre a retomada de uma presidência na Associação. Assim, quando frequentei a casa de Vavá, ele já apresentava um discurso mais flexível nesse sentido, concordando com a candidatura do carroceiro Ednaldo, que também passou a se destacar no contexto das discussões nas audiências públicas, para o cargo de presidente, que estava sendo articulada também por Santos. Mas ainda havia outro carroceiro interessado nesse cargo, que 59 inclusive declarara sua intenção em audiência; foi o carroceiro Joaquim, mas ele não encontraria, até onde eu pude acompanhar, maior adesão ao seu nome. É certo que Santos, desde que assumiu uma das representações dos carroceiros nas audiências públicas para tratar da retirada das carroças, enfrentava desconfianças em torno de seu nome por parte de vários carroceiros. Ele não encontrava legitimidade enquanto representante, sobretudo, por não ser efetivamente um carroceiro, um entendimento que ouviria não apenas dos carroceiros, mas também de alguns agentes públicos, tal como uma assistente social da Prefeitura com quem conversei sobre a questão. Santos era, então, acusado de transformar a situação dos carroceiros em plataforma para uma possível campanha política. Confirmando a possibilidade de sua candidatura a vereador, Santos afirmava que sua decisão estava além da questão dos carroceiros, pois ele seria candidato do mesmo jeito, citando que está envolvido em diversas outras questões políticas da cidade. Santos estava ainda envolvido em outra acusação, que nasce de um receio entre os carroceiros de ele querer “fungar a Associação”, ou seja, planejar uma apropriação do prédio para benefício próprio. Nesse sentido, conversando com Santos, eu me solidarizava uma vez que eu mesma também tinha sido acusada da mesma forma. Seguindo essa direção, é interessante destacar a condição da Associação enquanto um local de disputas internas. Há por parte de vários carroceiros a visão engrandecida do espaço. Em meu olhar, trata-se de um prédio bem simples, mas, para eles, esse espaço tem grande valor societário, comunitário e político, além de ser igualmente uma fonte de riqueza. Especialmente para Vavá e Borges o prédio em si ganha mais qualidades. Na avaliação dos dois, desde quando foi inaugurado, o prédio continua a ser “bonito e bom”. Quando comecei a pesquisa de campo”, a fachada do prédio estava um pouco descascada, mas poucos meses depois a pintura foi posta em dia. Dentro da Associação, há um grande espaço aberto, como podemos observar através da imagem a seguir: 60 Figura 04: Visão principal do interior da Associação dos Carroceiros de Natal Fonte: Arquivo da pesquisadora Ao final, à direita, temos dois banheiros igualmente simples, com muitas partes gastas e escurecidas pela ação do tempo. Em frente aos banheiros, há um tipo de copa, onde estão dispostos alguns freezers e onde, inusitadamente, encontramos também o armário que contém os arquivos da Associação. A sala seguinte ao espaço da copa, na esquerda, é um pequeno espaço onde estão depositados diversos materiais, entre eles várias cadeiras e algumas mesas de plástico, típicas de eventos (Cf. Apêndice A). Além dos eventos festivos para os quais o salão do prédio é alugado, por exemplo aniversários e as confraternizações de outras entidades comunitárias, Vavá me falou que o prédio também é solicitado, pela secretaria de saúde municipal de empréstimo para campanhas de vacinação. Nessa conversa, ele revelou sua preocupação com a energia elétrica que acabou por ser cortada. Ela vinha sendo custeada, segundo afirmou, pela Prefeitura desde a inauguração da sede. Se a Prefeitura realmente era a responsável pelo pagamento dessa conta de energia, pode-se pensar como as autoridades públicas municipais passaram a ver diferentemente a Associação em termos políticos. É possível considerar que o corte da energia pode ainda ter contribuído para a mudança de postura de Vavá, que eu observaria no decorrer do campo, quando ele se tornou aos poucos mais anuente a respeito da retomada de um presidente para a Associação. Apesar de todas as polêmicas em torno de Vavá, até mesmo entre aqueles que exigiam dele a representação e mobilização dos carroceiros, tal como Reginaldo e Bola, alguns reconheciam a importância que ele tinha para a manutenção e preservação da entidade, 61 pois defendiam que se não fossem os cuidados de Vavá, a Associação estaria deteriorada ou ainda, cogitaram, a Prefeitura já poderia já ter reavido o espaço, sendo este prédio, como vimos, uma doação governamental a uma categoria prestes a perder seu reconhecimento dos órgãos públicos. Borges ia mais além em sua defesa, pois achava justo que Vavá recebesse algum retorno pelo cuidado que dedicava à Associação, ou seja, como uma compensação por seus esforços pessoais. Esse retorno se configura justamente no recebimento dos valores do aluguel do espaço da Associação, que ainda são aplicados na própria entidade. Borges me contou, por exemplo, que foi Vavá que tinha providenciado o “forro” do teto do prédio, como uma das melhorias que ocorreu na entidade. Por isso, Vavá também se dizia responsável por manter em funcionamento a Associação e, assim, achava legítimo que ele “ganhasse um bocadinho”. Além de mover alguns conflitos, eram trocas e favores que se evidenciavam através de uma associação comunitária, construída a partir da moralidade do trabalho e de uma ocupação comum. Em razão da dinâmica de rivalidades e conflitos internos da Associação, sem contar os limites causados pela ausência de representação política, aparece, de algum modo, a desvantagem institucional enfrentada pelos carroceiros diante da questão da retirada dos veículos de tração animal na cidade, que, para além disso, já é uma disputa bastante desigual em termos sociopolíticos. A inoperância da Associação serve, por exemplo, à justificativa dada pelos poderes públicos de que os carroceiros são difíceis de serem contatados, o que lhes excluía, de algum modo, do processo mais direto de elaboração da PMRVTA. Um representante da SEMSUR chegou a dizer, na audiência de 18 de junho de 2015, que “procurou muito e não achou” a Associação, embora Santos tenha rebatido isso, pois “todo mundo diz” onde fica a “sede dos carroceiros no bairro Dix-Sept Rosado”. Segundo ele, “qualquer carroceiro, perguntando, sabe”. Desse modo, essa “inoperância” é, em parte, relativa, pois nos embates em torno da PMRVTA há a participação da Associação e de seus membros, ainda que seja de um modo diferente do que se espera de uma política organizacional e representativa mais eficiente. De qualquer modo, isso não reduz os impasses de entendimento e às informações desencontradas de alguns carroceiros, que surgiram nas audiências, como quando um deles perguntou a respeito da realização de “concurso” para poderem, segundo seu entendimento, assumirem as vagas de emprego do “projeto da Prefeitura”. Além disso, isso expõe ainda a dificuldade de articulação dos carroceiros de 62 modo mais centralizado – embora observemos algumas organizações a nível mais local e reduzido. Borges foi o último representante, pela Associação dos Carroceiros de Natal, que a categoria teve nas audiências, assumindo essa condição nos anos de 2011 e 2012, mas deixou, afirmava, devido a sua idade avançada, colocando um desejo de encontrar “uma pessoa que se dedicasse”. Diante da ausência de representante legal, eleito pelos carroceiros, desde quando Borges abandonou essa função (apesar de haver dúvidas quanto à própria legitimidade de Borges no cargo, haja vista o histórico “irregular” de ausência de eleição por mais de vinte anos), muitos dos carroceiros e familiares com quem mantive contato se mostraram incomodados quanto a isso. Pude notar que eles enxergam a “necessidade” de formalizar uma representação política, que se torna, para eles, crucial diante da ameaça da retirada de carroças. Assim, só os problemas da Associação terem aparecido a mim, mesmo sem muitos detalhes, logo nos primeiros contatos, seja na casa da família de Vavá ou na praça, por si só revelam muita coisa. Nessa perspectiva, uma fala de Ednaldo traz clareza a respeito de como essa “necessidade” na verdade foi sendo construída em torno das discussões da Política Municipal de Retirada de Veículos de Tração Animal (PMRVTA), onde nesse âmbito é exigida uma participação ao nível institucional e burocrático: Pesquisadora: - O senhor acha que é necessário ter um presidente? Ednaldo: Tem que ter. Pesquisadora: - Vocês estão sentindo falta? Ednaldo: - Não. Não é que estejamos sentindo falta, a necessidade está obrigando a ter um. Como o promotor Marcio Diógenes disse que nós não vamos ser recebidos por nem um órgão. Eu vou chegar lá (e dizer) ‘Quero ser ouvido’ (vão responder) ‘Quem é você?’ eu não sou ninguém. Portanto, sua fala apresenta como as relações mais pessoais e familiares que estão presentes na Associação e, além dela, na forma de organização sociopolítica dos carroceiros se mostram incompatíveis com as vias em que se está discutindo a política, o que mais uma vez se afirma em fala do promotor citado por Ednaldo: 63 Quando eles estiveram na minha promotoria, fizeram uma movimentação60, eu perguntei ‘vem cá, o que vocês estão dizendo?’ E eles ‘Doutor, nós não sabemos o que está acontecendo, nós não temos informação, nós não participamos do processo’. Enfim, ‘ninguém nos chama para conversar’. Eu digo ‘gente, vocês tem associação? Tem entidades? Constituam uma entidade e venham imediatamente participar das discussões’. ‘Tem advogado?’ ‘Não’. Constituam um advogado e venham defender seus direitos e nós vamos discutir nos fóruns legítimos como vai se dar esse processo de mudança respeitando o lado da proteção dos animais e o lado humano, o lado das famílias que estão desabrigadas. Embora a Associação dos Carroceiros de Natal seja a principal na cidade, em relação a reconhecimento político e oficial, até das autoridades públicas, tive notícias de outra entidade, cuja sede se situava na Zona Norte, mas ela, segundo Borges, destinava-se a representar apenas os carroceiros desta zona administrativa. Borges me contou que a casa, onde ficava sua sede, foi uma doação pessoal do político Tarcísio Ribeiro61 para ele, que decidiu, então, criar a Associação, que se localiza na Avenida Boa Sorte, no bairro de Nossa Senhora da Apresentação. Só que, mais uma vez afirmando sua indisponibilidade de tempo, passou a casa para outro carroceiro que acabou se tornando o morador do lugar, o que levou à inoperância dessa Associação. Também acreditei que havia uma entidade que dispunha de um prédio físico no bairro em que Ednaldo mora, em área popular da Zona Sul de Natal, e que ele seria o presidente, julgando assim erroneamente a partir da forma como ele se apresentava nas audiências. Depois, em contato com ele, soube que as reuniões aconteciam em sua casa, mas, segundo ele, eram pouco frequentadas, ocorrendo hoje de forma mais rara, até mesmo porque vários carroceiros de seu bairro deixaram a atividade. Apesar disso, é possível entender que, no bairro, ainda existe essa unidade política local, pautada em uma rede social de relações e vínculos societários, mesmo se é pouco operante em termos organizacionais, mas ela carrega uma potencialidade comunitária, assim como verificamos em outros bairros da Zona Oeste e também na Zona Norte que conseguiram se articular para a realização de dois atos, um em 2015 e outro em 2016. 60 Provavelmente se referia ao ato realizado em 26 de abril de 2015. 61 Na audiência de 2011, Borges chega a se referir a Tarcísio como o “baluarte dos carroceiros de Natal”. 64 1.3 Tecendo trajetórias: Carroceiros de ontem e de hoje Retomando o resgate histórico para agora dar conta mais propriamente das trajetórias individuais e coletivas de carroceiros na cidade, gostaria de analisar os documentos cadastrais que pesquisei na sede da Associação de Carroceiros de Natal, articulando-os com os questionários e entrevistas que realizei. Na sede, entre os arquivos que tive acesso, encontraria várias fichas de carroceiros. Cabe um parêntesis sobre este tipo de documento: essas fichas, especialmente criadas por um órgão estatal, como veremos mais adiante, aproximam-se daquilo que Alexandre afirma sobre os usos e implicações dos documentos oficiais (como a identidade pessoal, por exemplo) que também podemos estender à situação das fichas: “Os documentos são forjados no intuito de controle populacional e identificação dos indivíduos a fim de atribuir-lhes direitos e deveres” (2015, p.18). Baseando-se nas contribuições de Anna Laura Stoller, Alexandre ainda posiciona os documentos para além de apenas fontes históricas mas como “materialidades produtoras de conhecimento”, a partir de um uso crítico: “A análise dos arquivos escritos permite pensar não apenas os fatos ali produzidos, as categorias utilizadas para falar de experiências e modos de ser, mas também entender quais argumentos (saberes) são evidenciados e quais são silenciados, que discursos se repetem e conformam poderes e quais são, eventualmente, rejeitados.” (2015, p. 19) Dessa forma, ao passo que folheava os documentos percebia como elas poderiam me conceder um forte subsídio para confirmar uma relação dessas pessoas com o mundo rural, uma vez que alguns elementos nesse sentido já se evidenciavam. Embora essas fichas mostrassem tamanha importância para o registro social e histórico dos carroceiros, elas eram muito pouco cuidadas na Associação e até mesmo ignoradas por quase todos os carroceiros que tive contato. Encontrei as fichas dispersas em uma das gavetas do armário da entidade, algumas delas em meio a outros documentos. Selecionei todas que localizei e as arquivei em uma pasta específica, mostrando a Vavá esta nova disposição. No total, consegui recuperar 215 fichas (Cf. modelo em Anexo A). Grande parte dessas fichas cadastrais conta com fotografias, e algumas trazem a inscrição “falecido”. Quase todas estão datadas, sendo apenas 11 fora dessa condição. Muitas delas estão datilografadas e outras escritas à mão. As fichas mais antigas são datadas do ano de 1980 (cinco anos antes da 65 instalação do prédio da Associação) e as últimas são do ano de 1999. As fichas cujo preenchimento está mais completo são as fichas iniciais, organizadas a partir da data do cadastro, embora ainda haja alguns dados ausentes entre elas. A partir de 1986, o preenchimento das fichas começa a ficar comprometido, iniciando com a ausência dos dados financeiros dos carroceiros. O preenchimento, depois disso, focava apenas nos dados iniciais (nome completo, endereço, naturalidade, data de nascimento, estado civil e documentos, abarcando muitas vezes também “grau de instrução”), passando então à “relação de dependentes”, que também, em algumas poucas vezes, não foi preenchida. Nesse sentido, o ano de 1999 se destaca pela ausência até mesmo dos dados da família, com preenchimento apenas dos dados iniciais, à exclusão do item “grau de instrução”. A própria estrutura das fichas foi algumas vezes modificada, mas apenas para acrescentar os nomes do pai e da mãe ou a informação se a casa era própria. Após o cruzamento de informações obtidas através de Vavá e Borges, identificamos que esses documentos foram elaborados e aplicados por uma equipe do MOBRAL. Posteriormente, após a inauguração da Associação dos Carroceiros, eles passam então a ser aplicados pela esposa de Clemente, que, ao contrário do esposo, era alfabetizada. Para fazer a análise desses dados, procedi à construção de uma grande tabela, onde inseri as informações das fichas. De modo a direcionar a interpretação, a tabela foi organizada seguindo a ordem cronológica de nascimentos dos carroceiros. Os dados obtidos compreendem datas de nascimento dos carroceiros que variam de 1906 a 1980, o que mostra grande alcance temporal. Observamos uma forte predominância masculina: de todas as fichas, apenas 06 são de mulheres. A grande maioria dos associados se declarava “casado”, e, em geral, tinham famílias bem numerosas. Além disso, mesmo alguns que se declararam “solteiro”, também possuíam uma companheira e filhos. Assim, bem poucos solteiros não declararam dependentes. A grande maioria dos carroceiros (73%) residia na Zona Oeste62 de Natal, sendo os bairros mais citados, por ordem de aparição, os de Bom Pastor, Felipe Camarão, Quintas, Cidade Nova, Nossa Senhora de Nazaré e Dix-Sept Rosado. Os bairros que hoje são as Zonas Leste63, Norte64 e Sul65 representam, respectivamente, 12%, 9% e 6%. Esse grande percentual 62 As Zonas Administrativas em Natal só seriam criadas pela Lei Ordinária nº. 03878/89 63 Na Zona Leste, os bairros que mais comportavam carroceiros eram Alecrim (60%) e Mãe Luíza (16%) 64 Na Zona Norte, os bairros mais citados foram Lagoa Azul e Potengi (36% cada). 66 de moradores da Zona Oeste pode se explicar, entre outros, pela proximidade com a Associação dos Carroceiros de Natal, localizada na mesma região. Quanto à naturalidade, grande parte desses carroceiros é originária de municípios do interior do Rio Grande do Norte. Os nascidos em Natal só se apresentam de forma mais significativa após o ano de 1956. Assim, enquadram-se 153 carroceiros nascidos até esse ano. Desses, apenas 17 são natalenses, correspondendo a 11%. Em relação aos 62 demais, nascidos de 1956 em diante, encontraremos 35 carroceiros naturais de Natal, subindo a porcentagem para 56%. Há ainda algumas pessoas que nasceram em outros estados, sendo o mais citado a Paraíba66, mas que apresenta pouca expressividade. Esses dados são, dessa forma, muito importantes, portanto, para atestar como a migração do campo para a cidade é uma questão crucial para entendermos historicamente a atividade do carroceiro e a formação de uma “ocupação” específica de trabalho. Nesse sentido, podemos observar o fluxo migratório no gráfico67 abaixo: Figura 05 – Gráfico da migração dos carroceiros da Associação de Natal Fonte: a pesquisadora 65 Na Zona Sul, destaque para os bairros de Nova Descoberta (46%) e Lagoa Nova (30%). 66 Da Paraíba encontramos 12 carroceiros, todos do interior, especialmente a cidade de Araruna de onde vieram 05 pessoas. De outros estados, encontramos poucos carroceiros: dos interiores, 02 de Minas Gerais e 01 de Rondônia; e das capitais, 02 de Pará, 01 de são Paulo e 02 do Rio de Janeiro. 67 Apenas 07 fichas foram desconsideradas aqui pois estava ausente a data de nascimento ou a naturalidade do carroceiro. Qu an tid ad e Período 0 5 10 15 20 25 30 Natal Leste-Agreste Potiguar Centro-Oeste Potiguar 67 Aqui, separamos os períodos tomando por início o ano de nascimento do carroceiro mais antigo, dividindo, a partir de então, a cada dez anos. O último período presente no gráfico agrupa uma quantidade de anos maior para compensar a escassez de cadastros de carroceiros nascidos no período. Para marcar uma diferença entre campo e cidade, destacamos a capital Natal dos demais municípios e agrupamos algumas mesorregiões do Rio Grande do Norte, considerando a proximidade entre elas e buscando a otimização do gráfico. Dentre os municípios mais recorrentes que se localizam no Leste-Agreste Potiguar, destacamos, por ordem de citações: Macaíba, São Gonçalo do Amarante, Santa Cruz, São José do Mipibu, Goianinha, São Paulo do Potengi, e Nova Cruz. Provavelmente, a proximidade com a cidade de Natal foi um facilitador para a migração para a capital. Já entre o Centro-Oeste Potiguar, bem menos expressiva que a região anterior, surgem com mais destaque as cidades de Campo Grande68, Ipanguaçu, Taipú, Angicos, Assú e Currais Novos. Através do gráfico, pode-se observar que, com o passar dos anos, os nascimentos no interior passam a decair, enquanto em Natal ascendem. É provável cogitarmos aqui, dentre outras, uma tradição rural deslocada com a família que é reapropriada por esses carroceiros, a exemplo do que pudemos acompanhar entre aqueles que entrevistamos. Outros dados que podemos resgatar nas fichas dos carroceiros da Associação vai também reforçar a forte relação com o campo: tratam-se dos itens que indagavam a “ocupação inicial” ou “ocupação anterior” dos carroceiros. Entre aqueles mais antigos, são listadas diversas atividades que remetem ao mundo rural: agricultor (que aparece com destaque), vaqueiro, salineiro, etc. Além delas, aparecem de modo mais pontual: tropeiro69, curtume70, talhador71, magarefe72, marchante73, carvoeiro74, cabeceiro75, entre outras. Além dessas atividades, são citadas como anteriores outras não tão específicas do campo como as demais: pedreiro, servente de pedreiro, operário e ambulante (que, no preenchimento das fichas, de um 68 Aparece como o antigo nome de “Augusto Severo”. 69 Transportavam grandes quantidades de mercadorias em tropas de burros, jumentos ou cavalos. 70 Trabalho com processamento de couro cru. 71 Corte de carne. 72 Abate animais e preparação da carne. 73 Negociante de carnes para açougues. 74 Produção de carvão. 75 Transportava cargas na cabeça. 68 modo geral, eram encaradas como “profissões”76, ao contrário de “carroceiro”). Essas ocupações se apresentam de modo bem mais diverso quando tomamos os carroceiros mais antigos, a partir da referência do ano de 1956, lembrando que é a partir de então que Natal começa a se destacar como local de nascimento. Após esse ano, há um aumento significativo daqueles que declaravam não terem assumido outras trabalhos senão o de carroceiro. Esse quadro, obtido através da análise das fichas dos carroceiros, apesar de encontrarmos algumas diferenças geracionais se assemelha muito aos dados conseguidos com os carroceiros que conheci e entrevistei. Carroceiros de hoje Os carroceiros que conheci no decorrer da pesquisa também reforçam a predominância masculina. Conheci (poucas) mulheres apenas quando visitei algumas comunidades da Zona Oeste e na feira de cavalos da Zona Norte. No mais, em todos os espaços a presença masculina era unânime. Eles moravam em locais variados na cidade, tais como os bairros de Mãe Luiza, Passo da Pátria, Redinha, Nova Descoberta, Dix-Sept Rosado, Guarapes, Planalto, Felipe Camarão, Cidade Nova, que são consideradas áreas populares e/ou periféricas da cidade de Natal. Ainda há que se considerar alguns carroceiros que residem em outras cidades da chamada Grande Natal77. Para conseguir sinalizar uma faixa etária tenho que considerar apenas os carroceiros que conheci em seus pontos de trabalho, uma vez que o universo é bastante amplo. Por exemplo, é possível ver a presença de jovens e crianças circulando nas carroças, especialmente nas áreas periféricas. Mesmo com esse recorte, a faixa etária entre eles é bem variada, girando em torno de 17 a 69 anos. Muitos me disseram que estavam há décadas nessa atividade, pois tinham começado a usar carroças para trabalho e deslocamentos quando eram 76 Havia ainda um sentido regulador nessa disposição que se evidenciava com a seguinte pergunta: “Em caso afirmativo, por quê não exerce? (a profissão)”. Mesmo desconsiderando, em geral, “carroceiro” e mesmo outras atividades mais do campo enquanto “profissões”, algumas fichas acabam designando desta forma. 77 Assim era o caso dos carroceiros Cleantro e Leandro que, antes moradores do bairro de Mãe Luiza, residiram por muitos anos na cidade de Extremoz/RN. Apesar da distância, os dois permaneciam no mesmo ponto de trabalho na zona sul de Natal. Ambos retornaram à capital recentemente após, coincidentemente, os dois terem se divorciado. 69 ainda crianças ou adolescentes78. Dentre os carroceiros que acompanhei, pude realizar entrevista com onze. Nessas entrevistas, tentei também obter um regaste de suas trajetórias. Dos onze, oito são nascidos em Natal, mas, em contrapartida, apresentaram um dado importante da ligação de suas famílias com o campo: seis possuem mãe e pai nascidos do interior do estado; quatro possuem, pelo menos, um dos pais do interior; apenas um carroceiro mais jovem, que aprendeu o trabalho na carroça com o sogro, não tem vínculo com o interior, declarando que sua mãe é natural de Recife. Em relação às origens dos avós, alguns não souberam informar. Não obstante, dos dados obtidos, cinco possuíam os avós maternos e paternos com origem no interior. São citadas variadas cidades de origem familiar, entre elas: São Gonçalo do Amarante, Caiçara do Norte, Extremoz, Assu. Nesse sentido, a migração feita pela família chega a aparecer nas falas de alguns como uma forma de buscar “melhores condições”. Inclusive, também na análise das fichas dos carroceiros da Associação, quando era pedido que estes justificassem as mudanças de atividades e/ou profissão, havia esse reforço da marca migratória que era justificada pelo entendimento de que “na época tudo era difícil", pois havia “uma falta de incentivo” e assim “não tava dando mais”. Esse tipo de justificativa era encontrada especialmente de famílias com trabalho na agricultura. Nesse sentido, pode-se trazer Wolf (1970) que destacava a existência de relações assimétricas de poder no campo, que acabam por gerar ônus permanente aos camponeses, levando-os à subordinação no desenvolvimento de suas práticas agrícolas e de criação de gado. Voltando-nos a uma realidade mais local, Heredia (2008) revela um cenário no Nordeste brasileiro em que grupos camponeses foram expropriados de suas posses produtivas em áreas de plantation, em especial na década de 1970. A autora apresenta, assim, as disputas desiguais que se originaram entre os interesses dos grandes produtores (que em grande medida se dedicaram ao plantio da cana-de-açúcar) e os dos camponeses, pequenos produtores, forçando-os, dentre outras alternativas, a se “deslocar para os aglomerados urbanos, passando a vender sua força de trabalho” (HEREDIA, 2008, p.62) A relação com um modo de vida rural se mostra ainda nas falas dos entrevistados, quando se recupera as ocupações de seus pais: cinco destacam a condição de agricultor de seus genitores, outros dois têm pais carroceiros. Em relação aos avós, das respostas que obtive considerando as duas filiações, destacam-se as atividades de agricultura e pescaria. Também é 78 A média geral dos carroceiros que entrevistei correspondente a 30 anos de serviço. 70 interessante destacar que um dos entrevistados comentou que ele mesmo, até pouco tempo atrás, “plantava coisinha pouca no quintal”, quando residia na cidade de Extremoz, onde dispunha de mais terra para cultivo. Uma fala de Borges, que nascera no interior, apresenta elementos significativos para entendermos como era esse modo de vida rural, quando ele comentava sobre os saberes e técnicas que aprendera para o trato com os animais de tração: Pesquisadora: - Como o senhor aprendeu? Borges: - Eu não trabalhava na agricultura lá (na cidade de origem)? Eu cuidava de animais. Comecei com dez anos, eu tomava conta de quatorze reses para dar de comer, e de dois animais que prestavam serviço; uma jumenta e cavalo de papai. Eu cortava macambira para dar [...] cortava bem miudinho que é forte igual a milho”. Nessa direção, a rotina da grande maioria dos pais e avós dos carroceiros é descrita como atravessada pela criação de diversos animais, para além dos cavalos e bois. Uma experiência que também, podemos dizer, migra e atualmente se traduz na presença recorrente, na cidade, de galinhas e patos, além de alguns casos, mais pontuais, como a presença de porcos e carneiros nos quintais desses carroceiros. Nesse sentido, um deles, que também se dedicava à criação de porco e carneiro, justificava as razões que os levaram a se limitar aos cuidados de cavalos e galinhas: “o espaço ficou pouco”, quando a família resolveu construir no terreno. Os entrevistados declararam ter começado suas atividades na carroça por influência de familiares, especialmente das figuras paternas, ou então influenciados por amigos, como era o caso mesmo de Borges, apesar dessa sua experiência no interior. Assim como ele, havia outros que também me narravam a decisão de ser carroceiro pela influência de amigos, mas, de mesmo modo, já traziam uma experiência com animais de tração, como cavalos e bois, através de seus familiares. Foram os casos de Cleantro e Leandro, esses já nascidos em Natal, que me contaram que seus pais, que viviam no interior do estado, possuíam cavalos de vaquejada, ou como chamam de “esteira”, e, no caso de Leandro, também carroças de boi. Discutindo agora um pouco sobre essa tradição rural que está aqui envolvida e que se encontra situada no espaço urbano, trazemos algumas apresentações de Hannerz (2015) quanto à Escola de Chicago que se debruçou sobre a temática da migração, campo e cidade, tomando por referência a própria Chicago, esta que passou do “praticamente nada para se tornar uma grande metrópole” (2015, p. 28). Como um exemplo, estava The Hobo de Nels Anderson, em 1923, que apresentava o trabalhador migrante “nascido e criado nos Estados 71 Unidos, que se deslocava pelo país sem planos determinados” (2015, p. 41). É possível então acompanhar um debate sobre o chamado “continuum folk-urbano” que tentava dar conta e aliar as análises encontradas em Louis Wirth, quanto ao “modo de vida” urbano, e o que seria seu oposto, a “folk society”, sendo esta objeto do trabalho desenvolvido por Robert Redfield no México. Nesses dois extremos, estariam situadas as diferentes sociedades, caminhando entre aquelas mais “folk”, que seriam mais coesas e harmônicas mas também mais atrasadas, em contrapartida às sociedades mais urbanas, marcadas pelo grande contingente populacional, heterogeneidade e, portanto, redução dos contatos entre seus integrantes. Hannerz (2015) então apresenta as críticas levantadas a ambas pesquisas, que questionam a forma como esses dois tipos de sociedades são encarados como sistemas fechados, não contemplando, por exemplo, o trânsito frequente entre campo e cidade. Nesse sentido, desenvolveu-se ainda uma pesquisa importante que mostrou a não necessária inter-relação entre tamanho, densidade e heterogeneidade designados por Wirth como próprios de espaços urbanos. Descreve Hannerz que esta pesquisa foi desenvolvida por Marvin Harris (1956) a partir da realidade brasileira em Minas Velhas, onde se encontrava um ambiente de muita diversidade, mas de baixo quantitativo populacional. Ruben Oliven (1996) da mesma forma reforça as condições diferentes encontradas no Brasil que questionam essa dicotomia e esquemas rígidos e, como diz o autor, dificultam a definição do que é urbano e rural, citando, por exemplo, os processos migratórios no país que são intensos do campo à cidade, além do caso dos bóias-frias que, trabalham no campo, mesmo residentes nas cidades. Além disso, Oliven, considera, tomando por referência o estudo de Antonio Cândido, “Os Parceiros do Rio Bonito”, dois aspectos que demonstram a imiscuidade entre os mundos entendidos como rurais e urbanos: o primeiro diz respeito “à tendência do meio rural incorporar cada vez mais padrões culturais que se originam e são difundidos a partir de cidades” (1996, p. 23); e o segundo, quanto ao fato de que: Embora o migrante já esteja munido de alguns padrões culturais que o ajudarão na adaptação ao meio urbano, este processo certamente não é monolítico ou homogêneo, já que qualquer indivíduo se depara constantemente com uma variedade de situações nas quais diferentes aspectos estão envolvidos, não havendo por que esperar que seu comportamento seja igual em todas elas (ibid: p.24) Vale aqui trazer um pouco mais de Cândido (2001), cuja análise se deu a partir de alguns municípios paulistas, especialmente a cidade de Bofete. Ele discorre sobre os impactos 72 na vida “caipira” quanto à “influência da economia capitalista” (2001, p. 251) e sua paralela “incorporação progressiva à esfera da cultura urbana” (ibid, p. 271). O autor apresenta que, enquanto parte dos “caipiras” optam pela permanência no campo – porém assumindo as imposições dos novos padrões de vida – outros acabam migrando e se proletarizando, adentrando especialmente a cargos na indústria. Contudo, Cândido observa que não estamos diante de uma aceitação ou rejeição total dos novos modos de vida, e, sim que “há uma série de gradações que se interpõem entre os respectivos tipos extremos, dando lugar a uma continuidade” (ibid, p. 272). Nesse sentido, o que poderíamos dizer a respeito desta atividade dos carroceiros em Natal, cujo traço da migração está tão presente? Não se trata aqui de apontar seu trabalho como um tipo de reminiscência do passado, mas entender em que medida a formação da cidade de Natal, mesmo no século XX, decorreu de processos históricos que interligavam rural e urbano de modo complexo e cooperante. Quer dizer, então, que temos aqui um tipo de continuum da experiência do campo na cidade que é invisibilizada pelos discursos da modernidade e do turismo cosmopolita, que tem se popularizado e disseminado em diversas escalas, tanto locais como nacionais e globais. Seria, portanto, a invisibilização de experiências sociais presentes em áreas onde moram trabalhadores pobres, lugares de ruas carroçáveis em que as carroças são veículos de presença muito comum, apesar de que nossa pesquisa mostra ainda que o trabalho nas carroças existe também em áreas ditas “nobres” e nos bairros das camadas médias natalenses por ser um serviço barato de frete. É imprescindível ainda destacar que, além de uma experiência ou influência de certa forma rural através sobretudo de familiares, também deve ser considerado aquilo que especialmente dois carroceiros colocaram como a necessidade de estabelecer uma fonte de renda diante das dificuldades em conseguir emprego. Um, ex-presidiário, que diz ter encontrado na carroça a oportunidade de “ter alguma coisa”, e de “mostrar para sociedade que tinha mudado”; e o mais jovem da praça, que vivia de realizar trabalhos temporários em oficinas de pintura de carro e agora é pai. 73 1.4 Novos tempos, novas exigências: uma síntese Retomando as discussões propostas neste capítulo, vemos, portanto, como não cabe uma separação rigorosa entre campo e cidade, como vimos apresentando, mas o fato de considerar algumas especificidades, os novos padrões de vida que as cidades exigem em sua influência. Assim, encontramos, por exemplo, como estratégica a necessidade de ampliação da malha viária, favorecendo diretamente aos capitais hegemônicos, que no caso de Natal, esteve fortemente atrelado ao setor imobiliário, e, especialmente, nas últimas décadas, à construção da imagem moderna voltada ao turismo. Essas grandes mudanças no trânsito e na mobilidade urbana impactaram, aliás, diretamente na vida dos carroceiros. Também observamos mudanças na forma de trabalho, como no surgimento e desaparecimento de novas ocupações. Destaca-se especialmente a ampliação de cargos na indústria e comércio, assim como Hannerz (2015) comenta sobre o caso de Chicago, destacando a organização política em sindicatos e grupos por parte de uma recente classe trabalhadora. Temos então uma proximidade com a história dos carroceiros em Natal, que formam uma Associação representativa, dentre outros modos de mobilização, embora surgida por políticas governamentais, que passa a negociar assistência com os setores públicos, como aquela para a organização e manutenção do próprio trabalho. Paralelamente, ocorria uma intensa e frequente rede de relações clientelistas em torno dessa Associação, em grande medida, em que os carroceiros se envolviam mais diretamente. Assim, o que o carroceiro Adailton comenta sobre o “abandono” dos políticos configura-se no afastamento de uma classe política que opta por não se associar mais às figuras dos carroceiros, da mesma forma como não levantam discursos em defesa dessa classe, com algumas exceções. Desse modo, a ameaça à esta atividade repercute também na ausência do “quem recorrer”. Pensando agora as trajetórias dos carroceiros, Oliven (1996) apresenta algumas pesquisas desenvolvidas com migrantes que acabaram por reafirmar a escolha destes pelo emprego regular e assalariado nas cidades, que, apesar da rigidez e monotonia do trabalho fabril, propiciam “uma segurança e independência” que seriam “inexistentes no campo” (1996, p.26). Contudo, adverte que: 74 existe uma parte considerável da força de trabalho que sobrevive no chamado setor informal de trabalho, desempenhando uma série de atividades e biscates. Este setor tem todas as conhecidas desvantagens de variação de rendimentos devido à falta de trabalho regular, ausência de qualquer cobertura por parte da assistência social, falta de amparo legal ou regulamentação do trabalho, etc. Ele tem, entretanto, vantagens como não exigir credenciais oficiais de educação, de ter horas de trabalho flexíveis, de permitir o trabalho “por conta própria" e de não implicar em disciplina e autoridade de trabalho, de servir a pessoas que às vezes teriam dificuldade de obter empregos no setor formal de trabalho (mulheres, crianças, velhos, deficientes físicos, etc.) e de permitir ter várias atividades simultaneamente (inclusive a de trabalhar ao mesmo tempo no setor formal e no informal). (1996, p.36, grifos meus) O que o autor aponta foi aquilo que observamos em nosso trabalho de campo com os condutores de carroça, mas com outras nuances envolvidas: os carroceiros vivenciam uma experiência social na cidade que, de certo modo, tem afinidade com as experiências de suas famílias de origem, que são muitas vezes reapropriadas e ressignificadas em um contexto urbano. Nesse sentido, não se pode explicar, como veremos no próximo capítulo, o trabalho dos carroceiros apenas pela “incapacidade da economia de países como o Brasil de oferecer empregos regulares a sua população urbana em idade de trabalhar” (OLIVEN, 1996, p. 26). Além disso, é preciso acrescentar que esta experiência da circulação de carroças não necessariamente está atrelada ao trabalho, sendo muitas vezes utilizadas como veículo de deslocamento da família, especialmente entre os carroceiros de renda mais baixa, como veremos no capítulo seguinte. 75 CAPÍTULO II - VIDA CARROCEIRA “eu sempre fui o ferrão, eu nunca fui o boi[...] sendo carroceiro eu sou o ferrão” - Borges, em entrevista, 2015. Na pesquisa etnográfica, fui aos poucos compreendendo, a partir dos contatos pessoais que fazia no ponto da praça, mais sobre o cotidiano que envolve o trabalho dos carroceiros. O que eu pude observar de suas atividades diárias foram pessoas afetadas por toda sorte de doenças, sequelas e descuidos físicos, adquiridos pelo trabalho árduo em ambientes inóspitos; acidentes no trânsito; roubo de seus animais; intervenções policiais e vigilância, mas que, mesmo assim, demonstravam afinidades entre si e satisfação pessoal na forma como exerciam seu trabalho. Durante minhas idas ao “campo”, não ouvi qualquer relato de meus interlocutores que deixasse a entender que eles desejavam estar em outra atividade, embora alguns tenham começado o trabalho de carroceiro, como já discorremos, por não terem encontrado outra alternativa, e acabavam por criar uma afinidade com este trabalho. Assim, o que ouvi de vários carroceiros foi que “não tem trabalho melhor para pobre do que a carroça”, “carroça é bom demais”, “adoro carroça”, “não tem emprego como a carroça” e “eu amo a profissão de carroceiro”. Foi nessa direção que também se deu grande parte dos posicionamentos dos carroceiros nas audiências públicas – quando na discussão da retirada dos VTA’s – ao declararem o desejo de continuar realizando suas atividades, mesmo chegando alguns a colocarem uma disposição, para tanto, em utilizar a “carroça elétrica” ou o “cavalo mecânico”79. O prazer em ser carroceiro também se apresentou quando poucos conseguiam citar aspectos negativos do trabalho, quando eu perguntava de modo mais direto. Assim, a grande maioria construía seus discursos ignorando todas as dificuldades com as quais lidam. Borges, por exemplo, afirmaria: Pesquisadora: - O senhor acha que tem alguma coisa ruim em ser carroceiro? Borges: - Não, hoje tem as perseguições. Não é a ruindade de ninguém ser carroceiro, tem as perseguições. 79 Foram essas expressões que encontrei em falas dos personagens desta pesquisa, mas há uma outra denominação mais difundida que é “cavalo de lata”, que nomeia, inclusive, um projeto de criação desses equipamentos pelo engenheiro Jason Duani Vargas. Embora muitas vezes haja o entendimento de que se trata apenas de um modelo, na verdade existem vários tipos de equipamentos com capacidades e valores diferentes, assim como Rodrigo Vidal, dirigente da Secretaria Executiva dos Direitos dos Animais (SEDA) da cidade de Recife/PE, esclareceu na audiência de 17 de junho de 2015. 76 Pesquisadora: - Que perseguições o senhor fala? Borges: - Quer perseguição maior que acabar as carroças em Natal? É um desastre isso aí. Embora tenha a intenção de demonstrar sua afinidade com o trabalho de carroceiro, essa construção não deixa de ser reflexo da tentativa de reforçar a própria atividade diante de um cenário em que ela está ameaçada, tal como aparece na fala de Borges. Essa construção simbólico-política agia, por sua vez, também como um reforço da própria identidade social de carroceiro. É pensando o trabalho como promotor de uma identidade específica que entendemos como o fim ou a interrupção de uma atividade acaba repercutindo profundamente em mundos sociais e modos de vida específicos, tal como Eckert (2012) e Bezerra (2014) mostram em suas pesquisas ao investigarem o universo dos trabalhadores de minas que foram fechadas em diferentes contextos. Apesar dos carroceiros não apresentarem de modo direto as dificuldades de seu trabalho, elas apareceram mais claramente durante a pesquisa de campo e quando dialogávamos sobre outras questões. Mesmo que destaquemos a afinidade com o trabalho nas carroças, também não podemos desconsiderá-lo como fruto de condições de desigualdade social80. Nesse sentido, quase sempre essa afinidade também se relacionava com a necessidade de subsistência econômica, destacando aí o sustento de famílias; era a forma que encontraram de conseguir seu “ganha pão”. Assim, atrelado a isso aparecia outra justificativa para a afinidade com esta forma de trabalho, pois “todo dia tem dinheiro”, embora obviamente isso seja um exagero para expressar uma frequência boa na realização de serviços e a garantia de uma considerada boa remuneração Além disso, muitas vezes destacavam o pagamento do serviço no ato como uma vantagem da atividade. 80 Embora o Município desconheça o universo de carroceiros na cidade, estimando uma quantidade de dois mil, Daniele, assistente social da Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social (SEMTAS), afirmaria que através de um estudo socioprofissional que estavam a realizar – sobre o qual detalharemos no quarto capítulo – confirmavam-se as “características sociais de vulnerabilidade” de muitos dos carroceiros. Segundo ela, muitos não estavam inclusive cadastrados em programas de assistência dos governos, mesmo tendo esse direito assegurado e que alguns não possuíam até mesmo documentos de identidade. Sobre esse aspecto é importante ver Pussetti e Brazzabeni (2011) que vão discutir as intervenções sociais que visam aliviar o sofrimento social daqueles identificados por “vulneráveis” mas que, em contrapartida, acabam reforçando desigualdades. 77 Poucas vezes perguntei diretamente quanto eles recebiam e o fiz somente quando a conversa se mostrava favorável, principalmente nas entrevistas gravadas. No mais, eles mesmos acabavam por me revelar seus rendimentos. Através de variados contatos, pôde se revelar uma grande oscilação entre as rendas dos carroceiros, que variavam seguindo, de um modo geral, algumas categorias encontradas na pesquisa de campo. Temos, assim, duas maiores divisões: os carroceiros de frete, que recebem os melhores rendimentos e os carroceiros de reciclagem. Os primeiros são aqueles que trabalham realizando transporte de cargas e os segundos, tal como o nome indica, trabalham mais com catação de materiais. Além dessas, há outras categorizações que contemplam seus locais de trabalho. Assim, há os carroceiros que trabalham em um local mais fixo que são aqueles ditos “de ponto”. Também são aqui incluídos os “de praça” que adquire o mesmo significado de “ponto”. Inicialmente, acreditei que “de praça” se referia a pontos localizados em praças públicas, assim como era a situação dos carroceiros com quem eu mais tive proximidade, mas depois entenderia que “praça” pode ser aplicada aos mesmos contextos em que há ponto de carroceiros. É recorrente a vinculação dos carroceiros “de ponto” a estabelecimentos comerciais, sobretudo depósitos de material de construção81, por isso trata-se aqui de carroceiros de frete. Os carroceiros descreviam o ponto como um lugar de permanência e resistência, ou seja, que, mesmo diante de alguns conflitos com a vizinhança, persistia. Porém, essa mesma vizinhança era indicada ainda como testemunha da existência do ponto, conferindo seu reconhecimento. E há aqueles carroceiros identificados como “de rua” ou “solto” que trabalham circulando pela cidade. Circular é um termo importante aqui, sendo usado em relação ao trânsito das carroças especialmente para a busca por serviços. Nesse sentido, uma fala de um carroceiro é interessante, ele diria: “eu não sou carroceiro de frete, eu circulo”. Nesse caso, o “circular” era utilizado para se opor aos carroceiros que ficam nos pontos. Entretanto, nem todo carroceiro de frete trabalha em ponto, vários são “soltos”, mas, de fato, uma grande parte 81 Também os agentes do Município de Natal, através dos representantes da Companhia de Serviços Urbanos de Natal (URBANA), Ítalo Alves e Juliana Ubarana, contemplam o entendimento dos diferentes tipos de carroceiros. Mas, seguindo o interesse de suas posições, consideram uma divisão voltada mais ao tipo de material que os carroceiros transportam. Assim, descreviam a seguinte divisão: “grupo construção civil dos depósitos”, explicado como “pessoas que trabalham fazendo frete para empresas de material de construção de pequeno porte”; ainda os “carroceiros de poda ou Resíduos da Construção Civil (RCC)”, que são “pessoas que fazem frete por meio de contratação dos moradores que desejam descartar resíduos de poda de jardins e outros, além de pequenas quantidades de resíduos da construção civil”; e também os “carroceiros da coleta seletiva”. Juliana Ubarana ainda acrescentaria os “de mudança” domiciliar. 78 dos carroceiros “soltos” é formada por aqueles de reciclagem82. Ainda sobre o termo “circular”, é importante destacar também que ele pode ser utilizado para além da procura por serviços, quando contempla o prazer no andar de carroça. Assim, alguns carroceiros diriam que “circulavam” quando comentavam passeios que davam no veículo. Retomando a questão financeira, entre os carroceiros de frete, Ednaldo, que também é solto, afirma receber três mil reais por mês e, inclusive, manter um ajudante de mil e duzentos reais, muito em virtude da grande lista de clientes que possuía, atendendo duas áreas que se divisam, uma mais “nobre” e outra popular. Seu caso era, porém, excepcional. Outros carroceiros de frete, da praça e do depósito, ganhavam na faixa de um salário mínimo a mil e quinhentos reais. Nesse sentido, Borges, por exemplo, declararia na audiência de 2011 que “não tem nenhum (carroceiro) aqui que ganhe menos de um salário mínimo, não tem nenhum aqui, é de um salário mínimo para mais que nós ganhamos aqui. Agora, tem dia que não se ganha. Tem dia que sai (algum serviço) e tem dia, dois, três dias, que não”. Ele parece considerar apenas seu ciclo de relações, a partir da realidade do depósito que freqüentava, já que ainda há aqueles que, de longe, se mostram os mais precários, pois situaram sua renda por volta de quatrocentos a seiscentos reais. Esses últimos foram carroceiros que conheci nas comunidades da Zona Oeste apresentadas por Santos, sobre as quais discorremos em seguida neste capítulo. Essa diferença é interessante também para pensar a própria aplicação da política de retirada das carroças. Enquanto uns, como Ednaldo, argumentavam que não conseguirão obter uma renda tão boa quando proibirem o trânsito de carroças, outros, mais carentes, como Antônia, que conheci na Zona Oeste, focaram mais na dependência dos animais como transporte, já que para eles a mudança de atividade, proposta pelo Município com uma perspectiva de um retorno monetário maior, por si só poderia fazer mais sentido para os agentes do poder público. Dessa forma, entre aqueles que eram “de frete”, muitas vezes a boa remuneração estava evidenciada. Um deles foi até mais extremo ao dizer que “carroceiro é o único meio de vida que tem para pobre”, quando apontou ser esta a atividade mais satisfatória economicamente, e que também garante algumas condições de trabalho melhores pela 82 Embora na audiência realizada em 2011, que tive acesso através de registro de áudio, um representante do movimento dos catadores tenha colocado a categoria de “carroceiros avulsos” para falar daqueles que trabalham com reciclagem, eu não a encontraria entre os carroceiros que tive contato diretamente. O próprio representante colocava seu conhecimento limitado em relação às realidades dos carroceiros de Natal, declarando um entendimento maior apenas em relação aos carroceiros que trabalham com a coleta seletiva. 79 autonomia na atividade. Nesse sentido, foi interessante observar nas fichas de cadastro dos carroceiros da Associação de Natal, mesmo naquele questionário conciso, alguns indícios deste mesmo entendimento, de como a carroça pode ser uma escolha mais rentável. Assim, quando justificavam a opção pela carroça, em detrimento de outras atividades que realizavam anteriormente, algumas das respostas encontradas foram: “não dava para ganhar o suficiente”, “ganhava muito pouco” “não davam para sobreviver” e “carroceiro rende mais” 83. Também encontraríamos outras expressões que parecem demonstrar a afinidade com a atividade e sua autonomia: “achei melhor na carroça” e “não tinha condições de independência que a carroça oferece”84. Dessa forma, compreendemos que, mesmo em condições socioeconômicas limitadas, as carroças são escolhas valorizadas por essas pessoas, onde podem encontrar não apenas o ganho pecuniário, mas exercer o que muitos dizem ser o “sentir-se bem” e o “prazer” que tem com a circulação nas carroças e a lida com o animal. Apontam, portanto, para o entendimento de que a atividade de carroceiro não é apenas fruto de condições desiguais de acesso mas compõe um modo de vida. Por exemplo, um carroceiro chegou a me dizer de sua carroça: “isso aqui é meu carro”. Assim, acabava trazendo, digamos, para uma linguagem urbana o que significava ter uma carroça, o que ia além da necessidade do deslocamento; marcava-se também o orgulho que transparecia ainda nos cuidados da manutenção do veículo. Portanto, deve-se entender que se tratam de pessoas que reforçam o desempenho de suas atividades com autonomia, a partir dos conhecimentos de mundo específicos e de suas redes de relações. Nessa perspectiva, de modo bem semelhante ao que encontramos em Godoi, Menezes e Marin (2009) quando comentam do assalariamento do homem do campo para manter a sua condição camponesa, alguns carroceiros mantinham estratégias de vida específicas a fim de continuar desfrutando de seus valores sociais e culturais, revelando assumir empregos formais por breves períodos, para conservar, dessa maneira, condições que possibilitem suas aposentadorias no futuro. Leandro me contou que dois carroceiros conseguiram se aposentar dessa forma, considerando que “tem que saber administrar”. É 83As atividades declaradas foram ambulante, agricultor, operário, cabeceiro, carvoeiro e servente de pedreiro. 84 Além disso, encontraria ainda nos documentos dos carroceiros da Associação as justificativas de aposentados que fazem da carroça uma fonte complementar de renda, sendo que dois deles destacavam uma aposentadoria por invalidez. Outro carroceiro declara que está nesta atividade devido a “problemas de saúde” que o impossibilitaria de assumir outras funções, pois entende que “o trabalho de carroceiro é mais leve”. Assim, esses dados parecem apontar para a flexibilização encontrada no trabalho da carroça (do tipo e do tempo de serviço a ser realizado), que apresentaremos no tópico seguinte, em oposição a uma maior rigidez em seus trabalhos anteriores. 80 importante destacar que, para tanto, não se observava apenas o benefício individual. Cleantro, nesse sentido, explicaria: “tem que assinar a carteira porque vai construir família”. Queria dizer com isso que um emprego formal oferecia certa segurança para o sustento familiar. Apesar dessa estratégia, a maioria não apresentava essa preocupação em ter um trabalho formal, assinando carteira. Essa maioria está mesmo ligada ao trabalho nas carroças, afirmando o desejo de permanecer nessa forma até quando a saúde possibilite. Ainda em número bem menor que os demais, havia aqueles que declaravam, mesmo gostando de ser carroceiro, que poderiam mudar de profissão sem maiores problemas mas, em contrapartida, se uniam a uma voz quase uníssona entre seus pares de que manteriam suas relações com seus animais. Pensando nessa afinidade em torno do uso das carroças, quando os três carroceiros, que apresentamos no capítulo anterior, abandonam suas atividades não o fazem por vontade de estarem em outras formas de trabalho, mas como uma antecipação à política de retirada das carroças em Natal. Depois, a venda da carroça se mostrava um negócio encarado como mal sucedido, quando crescia o desejo de retorno à atividade. Francisco, da Zona Oeste, dizia-se arrependido da venda e afirmava já estar procurando “outra carroça para sobreviver”. Já Moisés não conseguira se afastar por completo, mesmo que temporariamente, ele ainda convidava João da praça para realizar alguns serviços em parceria, quando o uso de seu carrinho de mão se tornava inviável. Além disso, no dia em que conversamos, Moisés afirmou sua esperança de que “as coisas melhorassem” e ele pudesse reaver sua carroça e voltar ao ponto da praça. Ele chegou a ser interrompido por Cleantro que defendeu que isso não aconteceria, pois “os carroceiros vão acabar”. Em relação a Leandro, que abandonara a carroça para assumir a função de pedreiro, alguns carroceiros já afirmavam que ele não “aguentaria” este novo trabalho e que voltaria depois de alguns meses, o que de fato aconteceu. Leandro retornara ao ponto onde passara a dividir serviços com Cleantro. Depois me contaria que não tinha deixado a atividade por completo, e que comparecia algumas vezes ao ponto, em geral aos sábados quando tinha folga na empresa que o tinha contratado. Mas foi Borges que teve realmente que se afastar da atividade definitivamente já há dois anos, pela idade avançada também, entretanto, a causa motivadora, contou-me, foi gerada por denúncias de vizinhos, através de abaixo-assinado nos órgãos municipais, que levaram à proibição da guarda do seu cavalo, que ele dispunha em um terreno em frente a sua casa. Sobre essa proibição, Borges afirmava que foi afetado profundamente diante do que julgava 81 ter sido “a maior covardia do mundo”. Ele acredita que a proibição de manter seu cavalo está relacionada aos problemas de saúde que enfrenta atualmente: Borges: - Quem mais acabou comigo foi esse acabamento dessa minha carroça. Pesquisadora: - Foi o quê? Borges: - Acabar, deixar de andar de carroça, foi mesmo que dar uma machadada em mim. Eu convivi quarenta e poucos anos sendo carroceiro e o “cabra” chegar e tirar uma vida todinha dessa! Assim, ele demonstrava profunda irritação, que se mesclava com tristeza com o ocorrido. Alegava que a guarda naquele terreno atendia às suas necessidades por estar perto de sua casa, de modo que ele podia verificar o animal com frequência e não precisaria se deslocar a uma longa distância para encontrar o animal. Borges, que, portanto, enfrentara concretamente, por via de uma determinação governamental, a proibição de cuidar de seu animal, foi sem dúvidas aquele que mais declarava sua saúde comprometida por isso. Chegou a dizer, também para me sensibilizar, que sonhava com seu cavalo e que teria ficado “doente” depois desse acontecimento. Comentava então ter dado “uma crise” nele, que “enfraquecera sua mente”, afirmando ainda como precisou ir ao neurologista realizar alguns exames. Muito de seu posicionamento vai ao encontro do que Duarte (1986) identifica quanto ao fenômeno do nervoso nas classes trabalhadoras urbanas, que se constitui, como o autor aborda, em um “campo próprio de significação”, onde inclusive os efeitos na “mente” correspondem a um dos principais sintomas do nervoso. Dessa forma, mostrando a variação de classe, o autor questiona a forma comum e o universalismo com que são encarados os problemas e distúrbios que acometem os sujeitos. O que também é defendido por Kleinman, Das e Lock (1997) que mostram a saúde como um processo e ao mesmo tempo um indicador social, estando muitas vezes relacionada às condições de pobreza, por exemplo. Nesse sentido, discorrem sobre como o sofrimento é, de fato, uma experiência social que pode ser fruto de uma “violência política” produzida pelas diversas formas de poder. O apego de Borges com o trabalho de carroceiro apareceu também no zelo com que ele ainda conserva o seu chicote e alguns arreios de animais, que fez questão de me mostrar quando estive em sua casa. Além disso, repararia em uma miniatura de cavalo decorando sua estante. Os familiares que residiam com Borges, a esposa e a filha, preocupam-se com essas fortes demonstrações emotivas e me contavam como acreditam ter sido melhor ele perder a 82 carroça pela idade de Borges, mesmo que suas finanças tenham piorado, sustentando-se apenas das aposentadorias de Borges e de sua esposa. Apesar disso, eram testemunhas do que declaravam ser o “amor” que ele tinha pela atividade de carroceiro e pelos cavalos. Apesar dessa ligação afetiva e emocional do carroceiro com sua atividade, não se pode desconsiderar que esta escolha se fez porque ela consegue atender às necessidades da família. Assim, se houve uma família que, em muitos casos, foi importante para influenciar na escolha e afinidade com esta forma de trabalho, através de sua própria reprodução social, teremos, então, uma nova geração que será praticamente determinante para que o carroceiro continue na atividade. De fato, o número de filhos é bem oscilante, mas todos da praça/ponto que fiz etnografia tinha, ao menos, um filho, chegando ao máximo de seis, que foram declarados por dois carroceiros. Apenas um não é pai, residindo com seus genitores. Entre todos os carroceiros que conheci fora da praça, Vavá era o que tinha mais descendentes: treze filhos. Eles comentavam serem os responsáveis pela manutenção financeira da casa, ou seja, são os próprios chefes da família, corporificando “a ideia de autoridade enquanto mediação da família com o mundo externo. Ele é a autoridade moral, responsável pela respeitabilidade familiar. Sua presença faz da família uma entidade moral positiva, na medida em que ele garante o respeito. Ele, portanto, responde pela família” (SARTI, 1994, p. 78). Na mesma direção, Zaluar (2000) comenta sobre “a ética do provedor” que acaba conduzindo também a uma perspectiva positiva do trabalho, a partir da obrigação com os demais familiares. Mas ainda, para alguns carroceiros, a renda familiar também contava com os rendimentos de outras atividades assumidas por suas companheiras, como de empregada doméstica e auxiliar de serviços gerais. Porém, a maioria declarou que a parceira concentrava seus esforços nas tarefas domésticas. Assim, a família, esta “ordem moral, fundada num dar, receber e retribuir contínuos” (SARTI, 1994, p.116), de obrigações morais entre os membros, podia até mesmo compartilhar alguns dos cuidados com os animais, especialmente em relação a aqueles que dispõem seus animais em casa, apesar da responsabilidade obviamente ser centrada no carroceiro. Por exemplo, Leandro contava como ele ensina suas companheiras a alimentar os cavalos para o caso de quando ele está ausente. Mesmo identifiquemos certo tipo de herança familiar no uso das carroças, tomando o contexto etnográfico, há, entretanto, uma espécie de inovação a respeito da participação dos 83 filhos. Ao passo que os carroceiros mais velhos, como Vavá e Adailton, transmitiram o saber do ofício dos carroceiros aos descendentes e demonstravam compreender esse processo de forma bem mais espontânea; outros marcavam uma diferença a respeito da continuidade do trabalho na família, pois admitiram que não queriam que seus filhos continuassem a trabalhar em carroça, privilegiando, em suas falas, a importância da escolarização, que eles mesmos não tiveram. Cleantro, por exemplo, quando contava que seu filho gostava bastante de cavalo e de carroça85, declarava: “essa semana eu trouxe ele aqui e ele disse: ‘o senhor vai me dar a sua carroça pra mim’”, então Cleantro teria respondido: ‘Mas eu não quero você em carroça não, menino. Eu quero que você estude e seja alguém na vida’”. Ednaldo é outro que agira de forma parecida com seu filho: Ednaldo: - Eu nunca quis filho meu em cima de carroça. Pesquisadora: - Por que o senhor não quis? Ednaldo: Porque eu queria meus filhos em uma faculdade. Eu tinha um filho meu que por sinal era funcionário público e fez questão de sair da URBANA por justa causa, por irresponsabilidade. Ele era um garoto na faixa de 28, 29 anos, do meu primeiro casamento. Ele veio morar aqui comigo e eu botei ele para trabalhar. Entreguei uma pá a ele. Eu disse: ‘pegue, meu filho, essa pá’. Ele olhou pra mim e eu disse: ‘encha essa carroça aí’ e fui me sentar na sombra. Ele é branquinho, e eu deixei ele enchendo a carroça. Não chegou a encher meia carroça. [...] Eu cheguei para ele e disse: ‘me diga uma coisa, meu filho, o que pesa mais é essa pá ou uma caneta, um lápis?’ e ele disse: ‘a pá’. Eu disse: ‘então, você vai pra casa estudar para ser gente e deixe que da pá cuido eu’. Essas situações – em que os carroceiros não entendem seu trabalho como adequado aos seus filhos, pois não o fariam “alguém” ou “gente”, e mais ainda, no caso de Ednaldo em que se transforma em um tipo de castigo – parecem contrastar com o valor e importância que demonstram em ser carroceiros. Mesmo que isso leve à compreensão de que internalizam, dessa forma, alguns dos discursos hierárquicos entre os saberes e o trabalho, acredito que não é o caso de que se anule a satisfação e mesmo orgulho que esses trabalhadores têm em ser carroceiro. Parece mais que se vislumbra outros aprendizados e perspectivas para os filhos, em trabalhos menos desgastantes, menos árduos, considerando especialmente a via da escolarização. Talvez também nesse sentido que muitos carroceiros negavam o uso da carroça por seus familiares. 85 É interessante aqui acrescentar o que Lopes (2013) descreve, em sua etnografia, ser o fascínio, também compartilhado entre crianças, do universo country e sertanejo. 84 Nas narrativas dos carroceiros, as carroças aparecem como um investimento coletivo não só para a família, mas que também poderia ser da família. Por exemplo, Bola contava como a mãe contribuiu na compra de uma carroça para ele, da mesma forma como aconteceu a Luciano. Apesar de poder considerar esse tipo de apoio, houve uma fala de Leandro que contava como sua mãe fora contra sua proximidade com as carroças, quando ele ainda era criança, mesmo que o pai trabalhasse também com elas no interior. Leandro também contava, inclusive, como ainda sofre rejeição de seus irmãos por estar nesta forma de trabalho. Leandro: - Minha mãe sempre não gostou (que fosse carroceiro) e meus irmãos também. Pesquisadora: Eles não gostam, os seus irmãos? Leandro: Não gostam, dizem que é um trabalho muito fácil [...] Pesquisadora: Muito fácil? Leandro: É, em termo que assim eles querem dizer que é um trabalho de preguiçoso. Pesquisadora: (Risos) Preguiçoso?! Como é que eles dizem que é um trabalho de preguiçoso? Leandro: É porque é um serviço que é discriminado, entendeu? Porém, em relação às companheiras que teve, Leandro comentava, no decorrer da entrevista, como elas tinham que aceitar sua condição de carroceiro para que a relação prosseguisse: “quando eu conheço uma pessoa eu digo logo. (Perguntam) ‘Você trabalha de quê?’. (Respondo) ‘Trabalho de tudo mas o trabalho que eu gosto de trabalhar é carroceiro. E eu gosto de animal’”. Deve-se reiterar a importância familiar. É para ela, a família, como unidade de vínculo societário e moral, pautado em vínculos de parentesco, que se volta o uso das carroças. Cynthia Sarti descreve “a importância da família para os pobres urbanos como componente estrutural de seu lugar no mundo social” (1994, p. 59). Isso porque a família ou “grupo doméstico” para as camadas populares constitui-se em uma “unidade mínima” em contraposição ao “sujeito social isolado que valorizamos sob a categoria de indivíduo”, assemelhando-se fortemente, apesar das suas diferenças, à família camponesa (DUARTE, 1995, p. 34). Além disso, é preciso considerar o que Sarti avalia: 85 Num país onde os recursos de sobrevivências são privados, dada a precariedade de serviços públicos de educação, saúde, amparo à velhice e à infância, somados fragilidade dos sindicatos e partidos políticos como instrumentos de mediação entre o indivíduo e a sociedade, enfim, diante da ausência de instituições públicas eficazes, como salientou Eunice Durham, o processo de adaptação ao meio urbano e a vida cotidiana dos pobres, inclusive dos nascidos na cidade, é estruturalmente mediado pela família. (1994, p.60) É considerando esses aspectos que compreendemos como a família faz parte central das suas concepções e da sua visão de mundo, orientando a vida social dos carroceiros, à medida que se tornam o valor de referência dessas pessoas: A família não é apenas o elo afetivo mais forte dos pobres, o núcleo da sua sobrevivência material e espiritual, o instrumento através do qual viabilizam seu modo de vida, mas é o próprio substrato de sua identidade social. Em poucas palavras, a família constitui uma questão ontológica para os pobres. Sua importância não é funcional, seu valor não é meramente instrumental, mas se refere à sua identidade de ser social e serve de parâmetro moral para sua explicação do mundo (SARTI, 1994, p. 61). Foi nessa direção que várias vezes os carroceiros buscavam saber mais de mim e de minhas referências pessoais, como saber de onde vieram meus pais, onde eu morava e com quem. O mais insistente foi Borges que todas as vezes em que o visitei buscava saber como estavam meus familiares e pedia que eles o visitassem. Isso vai ao encontro de uma afirmação de que a família vem em primeiro lugar e que ela parece adquirir um status de sacralidade tanto que um senhor, em uma reunião de carroceiros realizada na Zona Oeste, disse que duvidava da retirada das carroças porque ele tinha “uma família para cuidar”. A família é tão importante e evidente que chegou até mesmo a virar um slogan de um dos representantes dos carroceiros. Ele me contara ter tomado ciência a respeito do uso de sua frase “por trás de uma carroça, há uma família” pelo prefeito da cidade, Carlos Eduardo, sentindo-se lesado por isso, já que reivindicava sua autoria. É, portanto, observando essa importância e presença da família que compreendemos a experiência social em alguns pontos, locais de moradias e de sociabilidade de carroceiros na cidade de Natal, que conhecemos no decorrer da pesquisa de campo. 86 2.1 Ser carroceiro Mas, então, o que é ser carroceiro? Dois momentos me pareceram representativos nesse sentido, apontando uma direção para esta questão. Um deles foi quando, no ponto do depósito, eu encontrei Pedro, neto de Adailton. Como Adailton não estava, eu comentei sobre a pesquisa que estava realizando e perguntei a Pedro se ele era carroceiro. Ele me respondeu diretamente que não, o que me espantou, pois estava confiante em uma resposta positiva, já que alguns carroceiros da praça tinham se referido a ele enquanto carroceiro. Diante da resposta inusitada, eu perguntei: “como assim?”. Ele respondeu, então, que apenas andava na carroça, mas que não “cuidava dos animais”. Esse fato me revelava algo que vinha percebendo: como a compreensão de ser carroceiro exige conhecimentos e técnicas sobre o trato com os animais. Assim, para ser um “carroceiro bom” é preciso saber ao menos “tratar” do animal, tanto que para Pedro – que se mostrava a outros aparentemente como carroceiro também, a julgar por sua circulação em carroça – a ausência dos cuidados aos animais se torna condição suficiente para que ele não se identificasse como um. O trato com os animais está bastante associado a uma satisfação em sua prática assim, como encontramos na relação entre os Nuer e seu gado (EVANS-PRITCHARD, 2013) e incide especialmente sobre a alimentação e saúde. É nesse sentido que o carroceiro precisa dispor de parte do seu dia de trabalho para providenciar as refeições e higiene dos animais, além de, quando necessário, aplicar remédios e tratar ferimentos. Essa relação para com os animais é de grande importância para a compreensão das dinâmicas de trabalho, redes de relações e de sociabilidade dos carroceiros, o que envolve outros aspectos sobre os quais nos voltaremos de forma mais detalhada no próximo capítulo. Em outro momento, a questão do que se entende por ser carroceiro se apresentou. Isso aconteceu na praça, onde conheci Luiz, jovem que, em todas as vezes que fui ao local, surgia na carroça ao lado de seu irmão Luciano. Logo no começo das minhas visitas, perguntei a João quantos carroceiros eram daquele ponto, ele me respondeu que oito e enumerava levando em consideração seu filho Binho que, raras vezes, vai à Praça, já que prefere estar circulando nas ruas, mas não contava Luiz. Comentei da falta e, então, João me respondeu que Luiz não era carroceiro, apenas “ajudava” o irmão. Achei estranho, mas, a princípio, pensei que fosse uma noção particular de João. Um dia pude conversar com Luiz, 87 depois de muitas idas ao local, já que nosso contato foi bem difícil, pois ele parecia não ter interesse em conversar. Muitas vezes, sentava afastado, ficando às vezes sozinho na carroça86. Enfim, quando Luiz um dia se mostrou disposto a conversar comigo, o que me surpreendeu, perguntei desde quando ele era carroceiro. Então ele me responderia que não era carroceiro. Imediatamente, lembrei do que João tinha me dito e, então, quis saber a razão de sua resposta. Assim, Luiz me explicou o seguinte, levando-me à reflexão: “por que eu não sou o dono da carroça”. Completou que era o ajudante do irmão. Essa declaração me alertava para o fato de ser dono, de ter a propriedade da carroça enquanto um entendimento compartilhado em relação ao que é ser carroceiro, envolvendo, desse modo, a questão do controle efetivo dos instrumentos de trabalho. Foi, nesse sentido, que notei como em diferentes momentos isso tinha sido sinalizado a mim, quando alguns narraram parte de suas histórias dando destaque à compra da carroça como dado importante para a auto-percepção como carroceiro. Um deles, inclusive, questionaria de forma retórica “carroceiro não é o proprietário?!”. Por isso que Moisés, por exemplo, perdera este reconhecimento (próprio e dos demais) ao vender sua carroça, embora ele ainda faça uso dela. Assim, a propriedade da carroça como instrumento de trabalho se evidenciava como o elemento determinante para alguém ser identificado como carroceiro. Todavia alguns agentes de secretarias municipais chegaram a comentar sobre carroças que são alugadas para que “carroceiros” realizem serviços. Entretanto, isso parece ser bem específico, pois não tive relatos dessa natureza entre os carroceiros que conheci. Contudo, se usar ou transitar na carroça não é, então, suficiente para ser um carroceiro, pois é preciso ser o seu proprietário, em contrapartida, o transitar não chega a ser diminuído. Um exemplo foi quando Borges defendeu que um amigo seu era, de fato, carroceiro, porque ele não tinha “uma carroça de fachada”, já que também “andava na carroça”, sinalizando, assim, que a propriedade da carroça precisa estar aliada ao seu uso efetivo, em trânsito, o que exige, por sua vez, conhecimentos sobre como guiar o veículo, incluindo a importante habilidade de contornar situações de perigo nas ruas. Desse modo, há uma forte relação entre a propriedade da carroça e usá-la, “andar” com ela, para o reconhecimento societário como carroceiro. Isso foi, inclusive, bastante ressaltado nas entrevistas, quando me diziam claramente que carroceiro é aquele que, dono de sua carroça, transita nela: “(torna-se carroceiro) no momento em que você bota uma carroça. 86 Em dois momentos, eu tentei, inclusive, conversar, mas ele se calava e quem me respondia era seu irmão. 88 Você comprou uma carroça, é o proprietário e está andando na rua: (pode falar) eu sou um carroceiro”. A mesma argumentação girava em torno de um carroceiro da praça, que, assim como Luiz, antes era visto enquanto ajudante, mas que mudaria seu status a partir da compra de uma carroça: “ele agora pode dizer que é carroceiro porque agora ele é proprietário da carroça dele. Pode dizer que é um carroceiro, mas antigamente ele não era, não. Só andava na carroça de Cleantro”. Apesar disso, alguns de meus interlocutores mantinham também uma noção de identidade muito forte, mesmo sem “estar na função”. Embora Moisés me dissesse que não era mais carroceiro depois que vendera sua carroça, Borges já prosseguia de modo oposto e afirmava que “nunca vou deixar de ser carroceiro”. O mesmo se deu com Leandro, que, mesmo trabalhando na carroça de Cleantro, afirmava sua identidade como carroceiro. Essa era uma identidade que se consolidara nos vários anos de serviço, em sua trajetória de vida, e uma vez afirmada (diferente de Moisés), não encontrava questionamentos dos demais. Retomando ao aspecto da propriedade da carroça, deve-se relacioná-lo ao tema da autonomia pessoal e social como trabalhador, valorizando-se o modo que esta forma de trabalho proporciona e à condição de “donos” do seu próprio trabalho. Muitos reforçaram essa condição como uma grande vantagem encontrada na carroça: “a propriedade é sua, ninguém manda”, valorizando, assim, o não ser “mandado”. Reginaldo traduziria como: “não leva xincada de um e de outro.” Ao ser perguntado sobre o que era a xincada, prosseguiu: Reginaldo: - É porque às vezes você chega num horário... É para chegar de sete horas, passou de sete horas já estão brigando com você e no meu emprego não, isso não existe. Pesquisadora: - O senhor é o dono do seu trabalho... Reginaldo: - É, eu sou o dono, saio a hora que eu quero, chego a hora que quero, eu vou no dia que eu quero, entendeu? O que Reginaldo comenta vai ao encontro do que Zaluar descreve sobre os trabalhadores das camadas populares: A própria atividade do trabalhador o coloca diante de um outro problema que marca as relações de trabalho no Brasil: o autoritarismo. Isto traz à baila mais uma vez o ethos masculino que torna qualquer ferida na dignidade do trabalhador difícil de ser aceita e que clama pela democratização das relações de trabalho. É que a noção de ‘moral do homem’ torna as relações autoritárias com os subalternos uma fonte permanente de conflitos e, no limite, uma razão a mais para a imagem negativa do trabalho e seu consequente abandono. Ainda mais, para o trabalhador que reage diante de um patrão ou um chefe autoritário e abandonar o emprego, existe a 89 alternativa de se tornar um biscateiro e passar a buscar ‘serviço’ por conta própria. (ZALUAR, 2000, p. 145, grifos meus) Era por isso que alguns, que tinham antes trabalhado em outras atividades (servente de pedreiro, pedreiro, pintor e auxiliar de serviços gerais), preferiam se manter como carroceiros. Muitos, tal como Reginaldo, destacavam a liberdade que tinham de decidir, por exemplo, um dia ou até mesmo dias de folga quando não estavam dispostos ao serviço, definido por alguns, embora poucos, como “empreitada” ou “empeleitada”87. Tratava-se, é claro, de uma decisão calculada, obviamente, considerando a importância e necessidade de cada dia de trabalho para o sustento familiar. Da mesma forma, seguia a decisão de montar os horários de trabalho, considerando muitas vezes o número de serviços realizados no dia para avaliar o tempo necessário a continuar circulando ou se manter no ponto, embora esse cálculo, tal como foi apresentado, também devesse considerar o trato com os animais. Assim, o serviço se concentrava pela manhã para que, à tarde, alguns cuidados fossem providenciados, tal como deixar o animal pastar em um terreno baldio e/ou coletar o capim dos animais. Em geral, pude acompanhar que o dia de trabalho dos carroceiros era considerado até meio-dia ou às 13 horas, mas, em dias de maior necessidade, quando na carência de serviços, o trabalho se estendia por mais uma ou, no máximo, duas horas. Uma vez, cheguei a rir com os carroceiros quando eles zombavam de Bola que esticara um dia de seu trabalho na praça até às 15 horas. Luciano brincou que Bola ia “fechar o depósito”, o que provocou riso pelo exagero da afirmação, já que, conforme fui informada, o funcionamento do depósito se encerra às 18 horas. Mas Bola chegava a ir mais além. Ele era o único da praça que, por vezes, estendia sua jornada até às 17 horas, o que lhe acarretava muitas queixas e recriminações, sendo, assim, acusado comumente de “maus-tratos” aos animais. Também a chegada ao ponto era realizada em horários variados, mas muitos, em média, chegavam na praça depois das 09 horas da manhã, pois estavam a circular em busca de serviço ou mesmo realizando alguns já agendados. Alguns me contaram que começavam a trabalhar por volta de 07 a 08 horas da manhã, mas levantavam bem mais cedo, entre 04 a 05 horas, para preparar os animais, providenciando sua alimentação e higienização. 87 A categoria empreitada ou empeleitada tem sido identificada por diversos trabalhos que lidam com coletividades rurais, tanto agricultores (Sigaud, 1979) como quilombolas (Valle, 2013). Certamente, o uso da categoria mostra as intercessões e fluxos entre processos históricos no campo e nas cidades do Rio Grande do Norte. 90 Sobre a frequência dos serviços na praça, pude presenciar um período de “fracasso” como João me colocou: há quatro dias não apareceu trabalho no ponto. Senti certa apreensão e a necessidade de João, em especial, estar sempre voltando a esse assunto em nossas conversas. Quando os serviços estavam escassos, em um período “difícil”, “fraco”, a circulação pela cidade em busca de oportunidades de trabalho se intensificava de modo que alguns nem iam ao ponto. Assim, esses carroceiros de praça se tornavam de rua, desse modo, abandonando seu ponto temporariamente para estarem a circular na cidade: “Porque às vezes não tem frete aqui [...] aí, nós vamos andar nas ruas”. Dessa forma, é importante salientar que não há uma rigidez nessas categorias de classificação, já que muitos carroceiros transitam entre elas, sendo a maior preocupação o retorno monetário, o que podia comportar também a mudança do tipo de serviço realizado. Assim, alguns ainda podiam deixar de ser de frete temporariamente para assumir serviços típicos dos trabalhadores de reciclagem. Em relação aos carroceiros da praça, especificamente, muitos dos serviços advinham de demandas do depósito de material de construção, localizado na frente do ponto. Assim, boa parte do trabalho voltava-se ao frete dos materiais de construção, mas havia ainda uma flexibilização para atender outros serviços como “limpar terreno”, recolher “metralha”88, além de frete de móveis ou de outros materiais para descarte. Grande parte dos serviços era contratada na própria praça, solicitados por pessoas que aparentavam pertencer a segmentos das camadas médias de Natal. Eram normalmente clientes do depósito de materiais de construção que preferiam solicitar o serviço dos carroceiros ao invés de aguardar a liberação do carro que o estabelecimento dispõe que, frequentemente, estava ocupado. Muitos dos clientes chegavam em veículos, alguns deles em carros de luxo89. Outros chegavam a pé e se identificavam como moradores daquela região da cidade, apontando as direções que os carroceiros deveriam tomar para localizar suas residências. Ainda cheguei a observar algumas ligações que os carroceiros recebiam em seus celulares. Uma vez, perguntei a João se cada carroceiro tinha clientes fixos e ele me confirmou, mas poucas vezes presenciei na praça um cliente procurando por um carroceiro em particular. Na maioria das ocasiões, o serviço poderia ser realizado por qualquer um. 88 “Metralha” é um termo comum para se referir aos Resíduos da Construção Civil. 89 Principalmente os clientes que estavam a realizar compras no depósito de material de construção. Verifiquei, assim, algumas vezes a presença de carros 4x4 ou de modelos mais clássicos. 91 Quando aparecia um serviço, havia certo entusiasmo que transparecia em suas fisionomias e na disposição em atender os clientes. Nesse momento, havia uma pressa para atender logo a demanda como uma forma de firmar o serviço e não correr o risco de perdê-lo. Quando se tratava de clientes do depósito, os carroceiros tinham acesso ao estoque de materiais, adentrando no lugar através de um grande portão de metal. De longe, algumas vezes pude ver os carroceiros fazendo a seleção do material e verificando se o pedido do comprador coincidia com o que o depósito estava entregando, o que acabava por conferir uma garantia para o próprio carroceiro. Mas quando o serviço a ser realizado demandava ferramentas que não estavam de posse do carroceiro, poderia agendar a realização. De modo frequente, os carroceiros contaram que circulavam carregando faca e facão (especialmente para tirar o capim para o animal), mas também cordas e pá, definida por um de meus interlocutores como “a caneta do carroceiro” devido a sua fundamental importância. Os carroceiros da praça me contavam que os valores dos serviços dependiam da quantidade e do material a ser transportado, mas calculavam em torno de 20 a 30 reais em cada “viagem”. Embora alguns tenham afirmado que não faziam serviço por uma quantia abaixo de R$20,00, Leandro uma vez chegou a reclamar dos carroceiros (não especificando se havia referência a algum de seu ponto) que faziam serviços por 10 reais. Porém, este valor em outro ponto, o do depósito, é o convencional. Essa diferença na cobrança é explicada pela influência direta do proprietário do depósito. Como este estabelecimento permite uma proximidade maior com as carroças, liberando a guarda e o trânsito dos animais em seu terreno, o proprietário acaba decidindo pelos carroceiros o preço dos serviços que são lá solicitados, o que gerava certa irritação dos carroceiros dali. Um deles, comentando que “o dono do depósito não puxa para o lado do carroceiro, puxa para o cliente”, revelaria como precisavam pegar serviços por fora, muitas vezes sem o proprietário do depósito saber, para poder melhorar suas rendas. Em relação ao depósito do ponto da praça já havia separação maior. Os carroceiros ficavam no lado oposto da rua, adentrando o terreno somente, como colocamos, nos casos em que um serviço fora contratado. Os carroceiros da praça comentavam sobre a rivalidade com a proprietária do depósito, de como já tinham sido alertados do desgosto de suas presenças ali. Como este depósito buscava dissociar-se da imagem dos carroceiros, não tinham interferência alguma nos serviços. Assim, eles ficavam desimpedidos para estipular os valores que queriam e, portanto, valorizar o próprio trabalho que realizavam. Foi nesse sentido, por exemplo, que um carroceiro externo à praça 92 comentaria como o depósito da praça era “competente”. Ele se equivocara imaginando que seria o estabelecimento a definir os valores dos serviços dos carroceiros. Ou seja, para ele, aqueles preços também correspondiam ao esforço depreendido na realização dos serviços. Além disso, pensar que o depósito estipulava o valor do trabalho mostra como a influência dos depósitos de materiais de construção no serviço dos carroceiros parece ser frequente. A relação com os clientes nem sempre era tranquila (embora na maioria das vezes tenha se mostrado e sido descrita assim): presenciei reclamações dos carroceiros por não terem sido pagos conforme o combinado e também por tentativas de clientes em renegociar valores previamente acertados, quando os carroceiros chegavam ao local do serviço, situação esta em que os carroceiros declaravam a opção muitas vezes pela desistência do trabalho. Também houve queixas de clientes que não concordavam com a quantidade de “viagens” que o carroceiro determinava que era preciso90. Uma vez, houve uma situação que causou bastante desconforto entre os carroceiros no ponto da praça. Um cliente do depósito chamara algum carroceiro para um serviço, então Cleantro se dirigiu ao estabelecimento, depois retornando e comentando que o cliente não aceitara o valor que ele estipulara de R$ 20,00. O cliente bastante insatisfeito gritava da porta do depósito “cadê a concorrência?” e perguntava “quem faz por R$ 15?” Ficamos diante de um impasse: de um lado, o cliente a gritar e esperar, e, do outro, nós e nenhum carroceiro disposto91 a aceitar o serviço. Jurandir tentou, assim, mediar o conflito insistindo para que Cleantro aceitasse e justificando que o cliente era um morador daquela região, mas Cleantro manteve-se contrariado. Então, Luiz, influenciado por João, resolveu fazer o serviço e saiu em direção ao depósito com a carroça do irmão. Depois, Jurandir olharia para mim e diria: “está vendo como carroceiro sofre humilhação até dos clientes?”. Eu tive que concordar, balançando com a cabeça. Depois estive a pensar que Luiz foi a melhor saída para essa situação tensa, pois, enquanto “ajudante”, não seria cobrado mais pelos demais carroceiros por ter aceitado um serviço abaixo do que eles convencionam. Esse fato nos leva a discorrer sobre a divisão dos serviços no ponto da praça, que foi algo a me causar estranheza, pois não existia um controle mais rígido, tal como uma espécie de “fila”, assim como muito se vê no trabalho de taxistas, por exemplo. Os serviços são 90 Aqui como um necessário saber ao carroceiro está a capacidade nos cálculos rápidos e as habilidades nas negociações, tanto para os pagamentos quanto para os dimensionamentos das cargas que eles e os animais podem carregar. Era o que alguns mostravam muitas vezes quando assim que recebiam um pedido de serviços, começavam a calcular as viagens necessárias ou o tempo que seria despendido para chegar a um acordo com o cliente. O que também considerava, se fosse o caso, já o caminho a ser percorrido. 91 Além de Cleantro, estavam presentes João, Alvinho e Luciano. 93 realizados por aqueles que primeiro se apresentam aos clientes ou por aqueles para os quais os clientes se apresentam primeiro. No entanto, aliado a isso, havia uma noção aparentemente acordada entre eles: quem realizasse mais serviços, deixava a vez para aquele que no dia fizera menos. Quando algum deles burlava esse tipo de acordo tácito, havia momentos de acusação apenas entre os carroceiros, quando discutiam e enumeravam explicitamente quantas viagens cada um fez. Um dia, porém, o acordo mútuo não foi bem sucedido e acusações foram trocadas entre os carroceiros na frente de um cliente, causando uma situação de bastante desconforto. É importante destacar que esses conflitos só foram presenciados por mim no decorrer das visitas à praça, pois no início do “campo” muitos deles destacavam as relações próximas e solidárias que tinham, chegando até mesmo a se referirem mutuamente como “irmãos”, para dar ênfase à uma união e harmonia idealizadas, pautadas nos significados da família como uma unidade societária. Apesar dessa solidariedade na divisão dos serviços, mesmo se burlada em certos momentos, muitas vezes cheguei a ouvir sobre a “desunião” dos carroceiros, que acabava por invisibilizar, além dessa, ainda outras situações de solidariedade como as parcerias que fazem para a realização dos serviços. Essas parcerias consistiam em uma divisão do trabalho e do pagamento por um determinado serviço, o que geralmente ocorria entre pares mais constantes. Embora essa divisão também se assentasse na preservação do animal, ela tinha uma dimensão importante da solidariedade, o que detectei mais claramente quando Bola não pôde mais circular com sua égua depois de uma autuação do Setor de Apreensões de Animais da Secretaria Municipal de Serviços Urbanos92. Após a proibição aplicada por este serviço público, Bola continuou a se deslocar de ônibus até a praça para dividir serviços com os carroceiros da praça, em especial com Reginaldo. Mesmo que as divisões se estabeleçam em qualquer idade, elas são mais necessárias nos idosos, muitas vezes dependendo mais das relações de suporte mútuo e solidariedade para continuar em suas atividades. Vavá, por exemplo, tinha um companheiro próximo para quando surgisse “um negócio pesado”. Apesar de se somar benefícios desta divisão na agilidade para a realização dos serviços e na economia 92 Bola tinha dois animais: um cavalo e uma égua. O cavalo foi emprestado para um carroceiro que não era do ponto. Segundo Bola, o conhecido “acabou” com o seu animal, pois foi devolvido bastante ferido e com o pelo caído em algumas áreas, também caminhando com muita dificuldade, uma imagem que me comoveu bastante. Este cavalo tinha sido levado ao ponto amarrado atrás da carroça de Bola, que era conduzida pela égua. Foi ele que Bola pensou em trocar em uma feira, sendo então guardado. Depois, sua égua também ficaria com os cascos inflamados em decorrência das poças de água que se formavam pelo período chuvoso em que estávamos. Como Bola insistira em trabalhar com esta égua, acabou sendo denunciado por populares e sofreu, então, uma autuação da SEMSUR. 94 do esforço pessoal, o que se evidenciava era uma dimensão mais coletiva do trabalho do que mesmo um sentido exclusivamente individual: “aqui (no ponto) é rachado no meio”. Deve-se registrar que o ponto se configura como um espaço social de muita descontração, mesmo se conflitos existissem. Isso também era encarado como uma das vantagens da atividade em carroça naqueles locais. Muitos carroceiros mantinham relações de amizade de várias décadas, vários deles, inclusive, iniciaram as suas atividades de trabalho sob influência de outro com o qual dividiam o ponto. Em geral, se conheciam desde a infância nos locais onde moravam ou, em certos casos, havia mesmo laços de parentesco entre eles. Alguns argumentavam que gostavam de ser carroceiro porque ali se “ganha dinheiro, se diverte e conversa com todo mundo”. Outra vez, meu interlocutor chegou a considerar: “o melhor meio de vida que eu arrumei foi ser carroceiro, (pois) foi onde eu arrumei muitos amigos” e era onde se estava “do lado de gente do meu nível”. Nesse sentido, se destacava a autonomia de um trabalho que dava as condições de possibilidade para esse clima de descontração e de maior comunicação. Leandro exemplificaria que, se estivesse em um emprego formal, talvez nem entrevista estaria me dando. Mesmo que considerassem o ponto como um local em que os carroceiros apenas “se juntam”, havia um controle bem rigoroso de quem passasse a trabalhar no lugar. A partir das suas falas, pude compreender como a chegada e inserção no ponto obedecia a uma rede de relações que existia previamente, pois a entrada de um novo carroceiro dependia de contatos que um deles já possuía para a aceitação seguinte dos demais. Diversas vezes, contaram que quando um carroceiro simplesmente “se juntava” ali era, então, informado que já havia número suficiente de pessoas e carroças e que procurasse outro espaço para se fixar. Muitos deles declararam preocupação em manter o espaço da praça e o serviço “organizado”, em uma tentativa de obter uma maior aceitação do ponto com a vizinhança. Assim, com o controle do espaço, os carroceiros queriam evitar aquilo que entendiam como “muita gente de fora vem só para bagunçar”. Quando eu fiz pesquisa, fazia seis anos que o último carroceiro entrou para o ponto. Voltando-nos agora mais para os saberes mais particulares dos carroceiros, grande parte está profundamente ligada à lida com o animal, questão que será mais aprofundada no capítulo seguinte. Um deles, de grande importância, é aquilo que Lopes (2013) também identifica: uma “avaliação estética apurada” que os permitiam fazer considerações através da 95 observação do corpo e comportamento dos animais93. Apropriando-me das expressões utilizadas em “campo”, nomeio por conhecimento só de ver, destacando esta dimensão da estética animal para o carroceiro, de modo a situá-lo enquanto demarcador das relações entre os carroceiros, alimentando um complexo de acusações e parcerias. Faz parte da rotina dos carroceiros não apenas o cuidado com o animal, mas também o cuidado com a carroça. Uma das principais tarefas é a verificação regular dos “rolamentos” que fixam a roda da carroça, para que quando ressecados, pelo uso, sejam lubrificados. A falta desse cuidado pode ocasionar episódios e situações complicadas, uma vez que pode haver a quebra do “rolamento” e a roda se soltar. Isso aconteceu com Alvinho e repercutiu de modo mais sério, pois além de ter sofrido com a dificuldade de uma carroça imobilizada, ela, que ficara encostada junto à uma loja enquanto Alvinho buscava ajuda, ainda seria apreendida pela SEMSUR. Além dessa preocupação com o “rolamento”, é preciso verificar se as tábuas que formam a carroça estão em bom estado para poder carregar os materiais. Os carroceiros contavam-me que ao localizarem uma peça apodrecida ou quebrada, providenciavam logo a substituição. Embora haja esses cuidados mais ou menos difundidos entre os carroceiros, há ainda aqueles que se especializam em consertar carroças, tal como Vavá, que é normalmente requisitado por outros para esta função. As duas fotos seguintes apresentam as peças que compõem as carroças. Não é possível apontar o rolamento por estar embutido no eixo. Figura 06: Peças da carroça (visão lateral) Fonte: Arquivo da pesquisadora 93 Lopes (2013) considera ainda não apenas os olhos como canal deste saber; sinaliza como o corpo do carroceiro também aprende e armazena conhecimento. 96 Figura 07: Peças da carroça (visão traseira) Fonte: Arquivo da pesquisadora Na Zona Oeste, ainda conheceria uma oficina de carroças. Apesar do carroceiro não estar em casa, sua esposa, conhecida de Santos que nos apresentou, foi bastante gentil e permitiu que eu fotografasse o espaço. Na frente e lateral da casa, várias carroças ficavam dispostas, enquanto a oficina ficava aos fundos. Era bem simples, contando com uma pequena mesa ao centro, onde estavam algumas ferramentas, rodeada por diversos materiais, muitos pedaços de madeira e ainda outros que tive muita dificuldade em identificar. Figura 08: Oficina de carroças Fonte: Arquivo da pesquisadora 97 Ainda é preciso considerar como fundamental, como já assinalei, os conhecimentos para a condução da carroça nas ruas e no trânsito de Natal. Sobre esse aspecto, pude avaliar quando andei algumas vezes de carroça, conduzida por meus interlocutores. Chacoalhando bastante, tínhamos as ruas pela frente e os carros nos rodeando. Eu ficava apreensiva, duvidando de uma resposta rápida do animal aos carros que pareciam avançar sobre nós. Se para mim aquele era um momento de tensão, eles se mostravam, e não seria diferente, bastante tranquilos e habituados com aquele cenário. A maior surpresa que tive foi em relação ao intenso chacoalhar das carroças, por isso depois descobriria que esta era a razão pela qual, como já descrevemos, os carroceiros não me convidavam e nem me encorajavam a subir nos veículos. Isso aconteceu também com outras pessoas, pois Jurandir chegou a comentar como ele ficara dolorido assim que iniciara seus passeios nas carroças, acompanhando os amigos do ponto da praça, mas depois, assim como os demais, seu corpo se acostumara. Essas práticas e saberes dos carroceiros, somadas a outras, muitas vezes estavam associados a condutas morais que são cobradas para a atividade, não apenas cobranças externas, mas que se internalizavam em hierarquizações entre os carroceiros. É o que veremos agora. 2.2 O bom-profissional O dia a dia dos carroceiros também é marcado por controles e vigilâncias recorrentes de suas atividades, que se manifestam, por exemplo, em abordagens policiais, destacando principalmente os policiais civis, que trabalham à paisana e, por vezes, agiam de modo violento e/ou agressivo para com os carroceiros. Também eram narradas algumas abordagens dos guardas de trânsito que, alegavam os carroceiros, costumeiramente os tratavam de forma ríspida. Esse controle ainda se fazia muitas vezes através da vizinhança, inclusive vários carroceiros me falavam de uma rejeição ao ponto pelos moradores vizinhos da praça. Bola, por exemplo, apontou um desses moradores quando ele passava pelo ponto, mas garantia que quando ele precisou já veio contratar os carroceiros. Além disso, ocorriam outras formas de vigilância por parte da população, tal como aconteceu com João que, desconcertado, me falou 98 que, ao transitar pelas ruas do bairro de Cidade Nova, se viu sendo fotografado por um casal que estava em um carro. Os controles, vigilâncias e as denúncias que passam e vivenciam os carroceiros acabam por subsistir entre eles mesmos, reforçando e ampliando diferenças, de modo que acabam por se acusarem mutuamente. Por exemplo, entre os carroceiros da praça, as acusações não se limitavam ao direito na execução dos serviços, também havia um controle minucioso e sistemático entre eles, bastante recorrente nas falas de todos os carroceiros que entrevistei, o que gerava uma dinâmica de rumores e acusações sobre despejos irregulares dos resíduos, violência para com os animais, embriaguez na condução das carroças e trânsito de menores, entre outras. Essa “vigilância” mútua era reflexo nítido do controle governamental e social exercido sobre eles. Algo interessante, nesse sentido, foi perceber as mudanças que o grupo adotou no decorrer do meu trabalho de campo. Se, em um primeiro momento, os cavalos ficavam alinhados ao meio-fio sob o sol, ao retornar ao “campo” não encontraria mais os cavalos nessa disposição, à exceção de quando havia paradas rápidas. Os cavalos passaram a ficar no meio da praça, ou alinhadas na lateral da praça, para poder descansar sob as sombras. Eu comentei sobre essa nova disposição, sendo respondida por um carroceiro como se aquela fosse uma organização que existia há bastante tempo, ignorando meu conhecimento a respeito. Em outro dia, saberia, por outros carroceiros, da queixa de uma protetora dos animais que, segundo eles, era esposa de um militar, sobre a necessidade de colocarem seus animais sob as sombras. Assim, aceitando e seguindo essa cobrança, é interessante destacar como Leandro, na feira de cavalos, preocupou-se em colocar seu animal na sombra e reclamou de quem não o fez. É diante desse cenário de constantes denúncias que surge a figura do “bom profissional”, em uma tentativa de legitimar a forma de trabalho dos carroceiros a partir de diversas diferenciações: tenta-se, no fundo, afirmar a “qualidade” (moral) de um tipo pela negação do outro. Contudo, ao passo que as acusações serviam ao fortalecimento dessa imagem de “bom profissional”, elas acabam também fragilizando a própria construção, por sua aplicação difusa. Além disso, ainda há que se considerar a forma estereotipada que muitas vezes assumia a versão oposta, os “maus profissionais”. É nesse sentido, por exemplo, que surge nas falas de alguns a ideia de que os carroceiros que trabalham à noite “caçando reciclagem” são ladrões. Não à toa, a marca “de reciclagem” se destacava nessa fala. 99 Avançando nessa direção, há uma forte diferenciação social e moral entre os carroceiros que são “de frete” e os “de reciclagem”, onde os primeiros se reconhecem como os que estão em melhores posições. Considerando a questão econômica, as melhores rendas são, de fato, daqueles que trabalham com frete e, por isso, evidenciam também possuir, em geral, os melhores animais. Desse modo, era interessante perceber como alguns carroceiros “de frete”, mesmo realizando atividades típicas dos trabalhadores “de reciclagem” (tal como coletar equipamentos eletrônicos quebrados e revistas velhas), eles marcavam sua posição social firmemente como trabalhadores “de frete”. Ednaldo, por exemplo, à medida em que afirmava como a reciclagem é importante para a natureza e que era algo que ele “não abre mão” de fazer, do mesmo modo nomeava-se carroceiro “de frete”. O critério para definição desta identidade considerava obviamente os tipos de resíduos com os quais operam majoritariamente; porém, outra questão acabava aparecendo por trás das falas de alguns que se diziam “de frete”: era a necessidade de se distanciar daqueles carroceiros que trabalham com catação de lixo, “na sujeira”, o que aparecia no modo como faziam questão de mostrar como trabalhavam limpos e como evitavam se sujar. Cleantro, por exemplo, apontava a preocupação e a cobrança que tinham com a higiene e como isso também é cobrado internamente na praça, como marco diferenciador: Aqui tem uns sem vergonha que bagunça. A gente dá uns carão neles. É por que tem que procurar limpar, né?! Traz as coisas deixa aí e não leva. Tem que procurar manter limpo por que... Você não vive aqui? Você vai viver na sujeira? Não existe viver na sujeira. Você vai viver dentro de lixo? Jurandir, em seguida, lembraria uma situação que tinha acontecido dias antes. Eu já tinha avistado um grupo de três homens em uma carroça, que vieram à praça tentar realizar uma troca de animais com João. Na saída, Jurandir comentou de modo ressaltado como estes homens deixaram as fezes do animal na rua, sem qualquer preocupação, diferente dos carroceiros do ponto que procediam à limpeza. Essa preocupação pela limpeza apareceu ainda de modo mais incisivo na fala de Leandro que comentava que por ele “andar limpo”, “a discriminação” com ele “é muito pouca”; e prosseguia: “tem cabra que tem prazer em entrar em um bar todo melado, sujeira, tudo”. Segundo ele, a higiene era também uma cobrança de muitos clientes. Colombijn e Rial (2016) chamam a atenção para o fato de que não há uma correspondência direta entre lixo e sujeira, apontando que, na famosa discussão de Mary 100 Douglas (1976), ela voltava-se mais em relação à última, pouco se detendo sobre o lixo de fato. Contudo, os próprios autores consideram que: “a ideia de Douglas de poluição como algo perigoso é extremamente útil para a compreensão da posição social das pessoas que lidam com resíduos e que através da ‘contaminação’ ritual ou ‘contágio’, se tornam simbolicamente contaminadas”. (2016, p.19). Dessa maneira, veremos nos capítulos 4 e 5, como existe um forte estigma (GOFFMAN, 1978) que se impõe sobre os carroceiros de um modo geral a partir dessa relação com o lixo. Mas, o que observamos aqui, é como esse estigma acabava repercutindo também entre os próprios carroceiros, dividindo-os entre os que são “mais limpos” que os outros. Além da diferenciação entre o carroceiro “de frete” e o “de reciclagem”, havia outra, embora não tão marcada moralmente como esta, que se dava entre os carroceiros “de ponto” daqueles que são “soltos”. Nesse sentido, um carroceiro argumentaria para defender sua condição de carroceiro fixo: Onde tem um depósito é melhor você encontrar uma carroça do que no meio da rua e é mais garantido do que do meio da rua [...] Qualquer coisa que acontecer na sua casa, que a senhora quiser me culpar, vai atrás de quem? Vem bater aqui. E no meio da rua? Também se pode considerar outro modo de diferenciação mais voltada propriamente para os fatores econômicos, sem deixar de ter também uma dimensão moral. Foi o caso de Vavá, por exemplo, quando se referiu aos carroceiros que “vivem embaixo do viaduto”, que cobram valores mais baixos para realizarem serviços como a destinação de resíduos. Para Vavá, esses carroceiros chegam mesmo a “prejudicar” os clientes que contratam os serviços, pois são aqueles que não têm a preocupação que Vavá pessoalmente tinha de destinar os resíduos corretamente. Embora o comentário crítico se voltasse aos preços praticados pelos serviços e sua devida qualidade, essa diferenciação, digamos, mais econômica também se mostraria em outras formas de acusação, como veremos na questão do roubo dos animais. Apesar desses contrastes entre carroceiros, as acusações não recaíam, como já sinalizamos, exclusivamente em um tipo específico de trabalhador, mas eram, na verdade, mais disseminadas. Assim, a categorização e a identificação do “bom profissional” não estavam necessariamente atreladas apenas aos carroceiros “de frete”, apesar de, algumas vezes, assim parecer diante de todas as construções hierarquizantes que faziam em relação aos 101 demais. Desse modo, apesar de haver vários outros recortes e qualificações94, que visam diferenciar os carroceiros, a principal divisão era esta do “bom” e do “mau profissional”, sendo inclusive esta construção apresentada nas audiências públicas para defender a manutenção das atividades nas carroças. Para ter legitimidade, a construção do “bom profissional” tenta reunir as exigências sociais e morais em torno do que se acredita ser o trabalho idealizado de carroceiro. É o que aponta Goffman: “quando o indivíduo se apresenta diante dos outros, seu desempenho tenderá a incorporar e exemplificar os valores oficialmente reconhecidos pela sociedade e até realmente mais do que o comportamento do indivíduo como um todo” (1975, p. 41). Nesse sentido, o “bom profissional” é nada mais que uma fachada (GOFFMAN, 1975) que buscava representar um uso das carroças mais voltado aos aspectos formais do trabalho, fachada esta que não deixava de ter uma conotação ou valor moral. Contudo, por mais que se esforçassem nessa representação, por vezes, ela apresentava rupturas, como era o caso de algumas acusações que chegava a colocar em xeque os próprios denunciantes. Assim, alguns carroceiros condenavam o trânsito de crianças nas carroças, mas muitos deles me relatavam como iniciaram suas atividades justamente no período infantil ou quando eram adolescentes. Um deles comentou: “eu sou contra um menino na rua que não sabe o que está fazendo”. Percebendo, depois, como ele aparentava cair em contradição, antes mesmo que eu pudesse colocar qualquer coisa, argumentaria, que no caso dele: “apesar de que quando eu comecei ser carroceiro eu era de menor, mas eu sempre fui uma pessoa responsável”. Outros também se defenderiam, argumentando que nos seus casos era diferente porque “não andavam só” ou justificavam que, nos dias atuais, há mais riscos e problemas pois o “trânsito aumentou muito”. Também para preservar a fachada do “bom profissional” muitos negaram veementemente o uso das carroças pelos familiares. Contudo, entre eles, havia alguns que, em outros momentos, já tinha sido revelada essa presença. Inclusive eu cheguei a observar, por exemplo, em um dia na praça, a chegada de um carroceiro acompanhado por um menino de 12 anos que era seu vizinho e que gostava muito de andar em carroça. Ainda que inicialmente negassem, outros acabariam, no decorrer das entrevistas, 94 Por exemplo, ainda se pode considerar algumas colocações de carroceiros mais velhos que defendiam um recorte geracional, tratando os mais jovens como os mais irresponsáveis e os que não sabem cuidar dos animais, o que chegou também a ser acompanhado na fala de uma protetora. Vavá, por exemplo, diria que antes havia um pessoal de mais “qualidade” do que encontra hoje: “Agora tem um pessoal novo, errado, fazendo o que não era para fazer”. 102 revelando como as carroças também podiam servir como meio de transporte, em situações variadas, tal como “fazer a feira”, “comprar roupas” e, mesmo, em momentos de lazer como o deslocamento para vaquejadas. Se a presença das crianças nas carroças apresentava inconsistências com a fachada, esse também era o caso da ingestão de bebida alcoólica. Assim, à medida que alguns carroceiros criticavam outro da praça por dirigir a carroça sob efeito de álcool, eu os observaria, em certos momentos, na mesma prática, embora o acusado, de fato, tenha uma prática mais recorrente, sendo provavelmente por isso que no seu caso, as denúncias ganhavam visibilidade e se cristalizavam em torno de sua pessoa. Aproveitamos aqui, tomando de exemplo o caso desse carroceiro, para considerar que embora algumas associações de certa forma se cristalizassem, havia outras identidades que competiam. Dessa forma, mesmo que ele fosse acusado de embriaguez, sendo visto como descuidado, por outro lado, havia um respeito por ele ser um dos carroceiros mais antigos daquele ponto. Retomando às acusações, havia discursos bem frequentes a respeito de “vícios” entre os carroceiros, sendo o mais destacado deles justamente a ingestão de bebidas alcoólicas, mas que se ampliava para abarcar outras substâncias. Um dos carroceiros comentaria para demarcar a diferença em contornos morais: “tem aquele que só trabalha para o vício, mas tem aquele que trabalha para melhorar de vida e para sustentar uma família”. Esse mesmo carroceiro ainda agregaria a questão econômica à moral: “É a realidade do nosso país, quanto mais pobre mais dado a vícios”. Foi nessa direção que foram acusados os três carroceiros que surgiram na praça para trocar animal com João. Alguns me comentaram que eles, identificados como moradores de rua, eram “viciados”. Ainda há outras trocas de acusações em torno dos conhecimentos para o trânsito95 e também de roubos96, mas, neste último caso, a questão das diferenças econômicas voltaria a aparecer. Permeava uma noção de que por terem os melhores rendimentos, os carroceiros “de frete” não se dariam aos roubos: “os outros roubam e nós que leva a culpa”. Foi assim, que, por exemplo, um dos carroceiros comentou sobre uma comunidade que eu visitaria com 95 Uma fala é representativa nesse sentido: “tem carroceiro que entra em certos cantos que não é para entrar, faz contramão, deixa um animal estacionado em um canto totalmente proibido, não tem noção das coisas”. 96 Discorrendo especificamente sobre o roubo de animais, um comentava “foram os próprios amigos, amigos não, dizem que são amigos. Eu sei quem foi, agora só não tenho provas [...] tem uma equipe que tanto leva, quanto traz”. 103 Santos na Zona Oeste afirmando que lá “tem uma raça que, pelo amor de deus, não pode ver nada”, alegando que eram moradores dessa região que praticavam os roubos. Porém, as maiores acusações giravam em torno dos “maus-tratos” aos animais, que são justamente onde mais se fundamentam as denúncias e cobranças sociais, mas não só por isso, já que é preciso considerar que o saber prático e os conhecimentos dos carroceiros têm profundas relações com a lida e o cuidado dos animais. Assim, é preciso aqui o resgate do conhecimento só de ver. É este conhecimento que possibilita e fundamenta as acusações e a consequente “vergonha” dos donos. Para proceder a esses modos de acusação, diziam-me reconhecer os animais “gordos” e os que não estão sendo bem cuidados, o que já garante a ocorrência de “maus-tratos”. Segundo Leandro, “o animal fica triste, desanimado, encostando a cabeça”. Luciano seguia a mesma lógica argumentativa “quando o animal está maltratado a gente sabe que não cuida direito [...] vê assim: a gente vai pelo corpo do bicho”. Este saber parece assumir a forma de um conhecimento incontestável; quando eu perguntava o porquê deles acusarem um colega de trabalho de “maus-tratos”, respondiam com um misto de convicção e certa irritação: “está magro, minha filha”, “não estou dizendo?!” ou “porque eu sei”. Acontecia que tinham, como já descrevemos, grande sensibilidade em relação a aparência dos animais, conseguiam perceber rapidamente animais magros e por isso, maltratados, coisa que para mim era muito difícil de acompanhar, a não ser se fosse, é claro, uma situação bem mais extrema. Nos cuidados com os animais, o uso que se faz do chicote97 aparece também como um elemento divisor dos “bons” e “maus profissionais”. Com muita precaução pelo que poderiam me revelar, muitos negavam qualquer uso do chicote, colocando posições como a de que achavam uma “maldade” sua utilização. Foi depois de alguma insistência minha que comentaram sobre alguns casos em que o chicote poderia ser usado98. Entretanto, outros começaram a falar abertamente, o que até me estimulou a adentrar nessa questão. Dessa forma, alguns comentavam que o chicote era como uma “chave da partida”, argumentando que “é um impulsozinho que o cabra dá”, que se voltam mais propriamente para as situações em que o animal se recusa a transitar por determinado caminho. Essa “partida” está bastante relacionada ao evitar ou escapar de situações de perigo no trânsito, por exemplo, quando os 97 O chicote pode ainda ser nomeado por “macaca”. 98 Foi preciso posicionar como eu compreendia as diferenciações que existem no “campo”, considerando ter ciência de que eram os “ignorantes”, como frequentemente se denomina, a fazerem um uso errado do chicote. 104 cavalos se assustam e podem fazer uma ré arriscada, conduzindo, com o chicote, o cavalo a avançar em determinada direção. Se, às vezes, o uso do chicote pode acontecer para as partidas, de modo contrário, o uso para parar o cavalo é indubitavelmente “maus-tratos”, por que bastariam as rédeas para isso. Assim, os carroceiros garantiam utilizar o chicote na “tábua da carroça”, o que observei corresponder a dois movimentos diferentes: um deles é bater com o cabo do chicote na parte de madeira de dentro da carroça ou no banco do assento; já o outro corresponde a aplicar uma chicotada de forma mais leve, direcionando-a à longa peça de madeira da carroça que acompanha o corpo do animal, “o braço da carroça” (ver figura 06, na página 93) . Dessa forma, procedendo com a chicotada, como diziam também, “na lateral da carroça”, evitavam atingir diretamente sobre o lombo do bicho. Portanto, os momentos para a aplicação do chicote deveriam ser devidamente justificados, utilizados em casos de maior necessidade para não corresponder aos maus-tratos. Afirmaram, nesse sentido, um uso bastante condenável do chicote para fazer o animal “andar à força” ou daqueles que tinham um “vício” ou uma “mania” de bater: “ele está sempre rodando o chicote e batendo. Aquilo é maltrato”. Esse tipo de ação era associada por muitos à ideia de “espancamento”: “você está espancando mesmo, como eu vejo algumas vezes aí. É maltrato também, isso dói”. “Maltratar” também aparece nas falas de carroceiros como utilizar animais idosos no trabalho, ficar por muitas horas em serviço – ou seja, mais de seis a sete horas diárias –, além de circular com a carroça em alta velocidade, pois alguns alegavam que o atrito do casco do animal com o asfalto pode machucar, especialmente quando a carroça está carregada99: “Se vai carregado, pra quê eu correr?”. Nesse sentido, um dos carroceiros utilizou uma expressão interessante para distinguir o “maltrato” de um uso não violento dos animais, que resumia, desse modo, a diferença entre a postura de um “bom” para o “mau profissional”: é a de tratar o bicho em um acordo que o bicho vai. Dessa forma, havia uma preocupação, entre os carroceiros que entrevistamos, de se alinhar discurso e prática aos padrões de comportamento moral e socialmente aceitáveis, era o que um dos carroceiros defenderia ser preciso “fazer a coisa certa para não chamar a atenção”. Nessa direção, esses carroceiros, que se autoidentificavam como “bons profissionais”, preocupados com o aspecto formal do trabalho – o que, por exemplo, levava-os a assumir responsabilidades e garantias pelo serviço realizado e também a investir nos equipamentos de 99 Termo que muitas vezes era associado ao transporte excessivo de cargas, mas nem sempre, às vezes era utilizado para sinalizar apenas a lotação da carroça. 105 trabalho, incluindo os animais – acabavam por desmerecer e mesmo envergonhar outros carroceiros que para eles aparentavam não seguir suas preocupações e os parâmetros sociais e morais que valorizavam. 2.3 Ampliando a pesquisa: três comunidades da Zona Oeste Durante a pesquisa, duas áreas de Natal foram apontadas por alguns agentes governamentais e por vários carroceiros como as que mais registram a presença de carroças: as Zonas Norte e Oeste, sendo esta última especialmente destacada porque reuniria o maior número de veículos em circulação. Em especial, os carroceiros descreviam cenários e relações profundamente dependentes das carroças nessas regiões. Assim, foi de enorme importância a visita a algumas comunidades na Zona Oeste, acompanhada por Santos, o que me permitiu compreender e visualizar uma dimensão bem mais heterogênea e abrangente das redes de pessoas que utilizam as carroças, já que até então meu contato e minha apreensão tinham se detido aos carroceiros que usavam as carroças em um sentido, digamos, mais “profissional”. O que eu conheci em algumas comunidades da Zona Oeste foi uma realidade que se mostrava ainda mais precária do que a já precária situação vivida por aqueles carroceiros que, até então, conhecia, ampliando minha visão das desigualdades que incluíam muito mais pessoas que usavam carroças e seus animais na cidade, ela mesma multifacetada em sua extensão. Esse novo universo em que brevemente me inseri foi fundamental para alargar consideravelmente a compreensão de quem são as pessoas que dependem das carroças e da própria finalidade do uso das carroças. Assim, conheci e observei mulheres, crianças e jovens na direção de carroças ou montados em animais, embora as primeiras ainda poucas. Desse modo, foram nesses espaços mais periféricos que a presença da família em torno do uso das carroças e dos animais se mostrou bem mais intensa. Esses cenários (as comunidades visitadas na Zona Oeste mas também a da feira de trocas de cavalos, a ser descrita no próximo capítulo) tinham em comum entre si uma estrutura de ruas carroçáveis que apresentavam certa dificuldade de acesso, também pela distância do centro da cidade. Todavia, ao contrário do que acontecia na feira de cavalos, que conheci depois e onde se impunha o momento lúdico do espaço, nas comunidades que visitei na Zona Oeste, as falas e narrativas ouvidas se concentravam nas condições de carência e precariedade social, focando a relação com o animal nesse aspecto, embora obviamente não desconsideramos as relações lúdicas que 106 possam ter com seus animais. Cheguei, inclusive, a rever um dos moradores daquela região que antes eu tinha conhecido na feira de cavalos. Acredito que muitas dessas narrativas de sofrimento (Kleinman, Das e Lock, 1997) aconteciam pela minha presença e de Santos em uma tentativa de visibilizar as situações vividas e de nos mobilizar emocionalmente. Também Santos, em um momento, deixou clara sua intenção de me apresentar o lugar que ele julgava ser o mais “desumano”, o mais precário de todos a conhecer e, assim, me causar um grande choque ao adentrar em um novo mundo. Ainda avalio como ele foi bem sucedido na sua estratégia: ali, na primeira comunidade, que também me tinha sido indicada por uma agente governamental do município, mostrou-se uma realidade para mim muito dura. Logo na entrada, já se percebia uma verdadeira arquitetura do improviso: pedaços de madeira unidos um ao outro, plástico, alumínio, mesclavam-se com alvenaria. Muita coisa valia para moldar as casas, e muitas vezes a fragilidade se apresentava, quando, por exemplo, um grande pedaço de pano servia como telhado. Se, por um lado, admirava e respeitava a capacidade criativa dessas pessoas em construir com poucos recursos suas próprias moradias, por outro, marcava-se fortemente a profunda desigualdade societária ali presente. Figura 09: Entrada da primeira comunidade visitada na Zona Oeste Fonte: Arquivo da pesquisadora As carroças pareciam ganhar mais força como meio de sobrevivência de toda aquela comunidade. Os carroceiros a quem Santos me apresentava afirmavam que quase todos os moradores da região tinham uma carroça, um deles até chegou a declarar sobre a necessidade de adquirir este veículo naquele contexto “aqui quem não tem uma carroça é pobre de esmola”. Assim, a carroça ali não era só crucial para o “ganha pão”, mas era condição a 107 possibilitar o deslocamento das pessoas. Uma imagem que foi recorrente nos discursos dos moradores com os quais conversava foi a de ser esta comunidade uma “ilha”, fazendo referência ao isolamento físico, mas que era também simbólico. Um morador chegou a comentar que aquele lugar “era uma Natal que o povo da Zona Sul não conhece”. Os relatos giravam em torno de denúncia ao esquecimento da comunidade pela gestão pública, especialmente na área de saúde. Reclamavam, assim, dos serviços de assistência ambulatorial que, afirmavam, negavam-se a entrar na comunidade, e ressaltavam como, então, as carroças cumpriam essa função. Antonia, a primeira moradora a Santos me apresentar, líder da comunidade e também carroceira, comentaria que um dia foi prestado socorro a um homem baleado através do uso de uma carroça. Os moradores relatavam e se queixavam, ainda mais, que a única presença institucional do Estado era a polícia, cuja violência mostra-se infelizmente comum a outras comunidades pobres e periféricas100. Nesse sentido, afirmavam o quanto “tudo” era difícil para eles, focando sobretudo os serviços básicos inoperantes. Quando entramos na comunidade, Santos, Antonia e eu, cheguei a observar várias carroças desatracadas e poucos animais que, tal como nas demais comunidades que eu conheci naquele dia, estavam presos por cordas em terrenos abertos, ou ficavam em pequenos e médios cercados. Havia ainda animais soltos, embora fossem poucos. Naquele horário, por volta das 10 horas, muitos carroceiros estavam a trabalhar. Ainda assim, conversamos com algumas pessoas que estavam em suas casas e eram conhecidos de Santos ou, então, outros que passavam por ali em suas carroças. Em especial, a presença de jumentos era bem mais observada na comunidade do que nos outros espaços que até então tinha visitado, superando aparentemente o número de cavalos. Além disso, a maioria dos cavalos que avistaria nesse dia eram bem mais franzinos do que, em geral, aqueles usados nos pontos. 100 Santos até me comentaria de uma viatura da polícia, denunciada a nível nacional, em 2015, que atendia a Zona Oeste da cidade, e era bastante conhecida por aquela comunidade. Os policiais praticavam diversos crimes na região incluindo tortura e extorsão. O caso ficou conhecido como a “viatura do mal”. Disponível em: , acesso em 20 de maio de 2016. 108 Figura 10: Carroceiro e seu jumento Fonte: Arquivo da pesquisadora No mesmo dia, Santos e eu conheceríamos mais duas comunidades da Zona Oeste. Passamos pouco tempo na segunda delas, apenas conhecendo a casa da oficina de carroças e conversando um pouco com algumas pessoas. Na terceira comunidade, já nos demoramos mais e, depois de várias conversas, fomos recepcionados na casa de um carroceiro. Em forte contraste com a primeira comunidade que visitamos, as casas das duas comunidades eram de alvenaria, ainda que, em geral, não contassem com acabamento nas paredes. Contudo, os problemas de saneamento básico eram os mesmos nos três lugares, sendo visível o esgoto a céu aberto e as grandes áreas de lixo. Figura 11: Terceira comunidade visitada na Zona Oeste Fonte: Arquivo da pesquisadora 109 Nas três comunidades, mostrava-se como mais comum o trabalho “da reciclagem”, inclusive as carroças eram utilizadas, sobretudo na primeira comunidade, para o transporte das “paredes das casas”, como afirmou Antonia. Embora tenha sido frequente ver dispostos materiais recicláveis em espaços ao lado ou nos quintais das casas de vários carroceiros que conhecia, e até mesmo “lixões”, foi nessa primeira comunidade a situação mais impactante. Figura 12: Resíduos encontrados na primeira comunidade da Zona Oeste Fonte: Arquivo da pesquisadora Na primeira comunidade, encontramos um espaço onde ficavam grandes pilhas de materiais, apesar de termos avistados outras ali também, mas que não tinham as proporções destas. Conversando com um carroceiro que morava ao lado desse espaço, ele explicaria que parte dos resíduos, presentes no local, era de sua propriedade e provinham de suas catações. Apontando para os resíduos que possuía, explicou que utilizava grandes sacos onde guardava os materiais que catava nas ruas. Esses grandes volumes eram chamados de “bergue”. Além disso, comentou que os carroceiros que trabalhavam com o transporte de bergue eram acusados de maus-tratos dos animais, quando estavam nas ruas, pois os grandes sacos aparentavam ter peso excessivo. Contudo, ele garantiu que não era esse seu caso, pois os materiais são em geral plásticos leves, como as muitas embalagens que vimos selecionadas. 110 Figura 13: Bergue Fonte: Arquivo da pesquisadora Ainda na última comunidade, quando estava na casa de um carroceiro, observei igualmente pilhas de materiais de recicláveis, que estavam dispersos no terreno da casa, onde seus filhos brincavam. Ele me confirmaria que, tanto ele quanto sua esposa, sobreviviam trabalhando com reciclagem. Em certo momento, ele me falou de sua renda, que era complementada com o bolsa família101, que, aliás, fazia parte da renda também de alguns carroceiros da praça e do depósito. Perguntei quanto ele tirava mensalmente com a carroça e me falou que oscilava entre 500 a 600 reais por mês, mas que, às vezes, caía a 400 reais, tal como outros tinham sinalizado. Assim, foi através dessas comunidades que eu conheceria uma nova condição socioeconômica entre os carroceiros, de bem maior precariedade. Por exemplo, outro homem chegou a comentar que até 10 reais seria um rendimento bem recebido por ele em um só dia, o que contrasta muito com o que os carroceiros da praça esperavam ganhar. Para os últimos, como mostrei antes, apenas uma viagem por serviço era calculado de 20 a 30 reais, e mesmo os do depósito, que a contragosto faziam uma viagem por 10 reais, estavam assim bem distantes de corresponder à previsão de um dia de serviço. Mesmo para conseguir essa baixa renda, vários carroceiros dessas comunidades contavam que era 101 “O Bolsa Família é um programa federal destinado às famílias em situação de pobreza e extrema pobreza, com renda per capita de até R$ 154 mensais, que associa à transferência do benefício financeiro do acesso aos direitos sociais básicos - saúde, alimentação, educação e assistência social. Através do Bolsa Família, o governo federal concede mensalmente benefícios em dinheiro para famílias mais necessitadas”. Disponível em: , acesso em: 22 de setembro de 2016. 111 necessária sua circulação em bairros mais abastados da cidade, pois era onde conseguiam encontrar mais materiais e serviços que não dispunham em suas localidades. Apesar dessas diferenças socioeconômicas mais visíveis, alguns elementos eram notadamente comuns entre todos os carroceiros, como, por exemplo, o “apego” declarado aos animais, mas, sobretudo, o valor social e moral da autonomia obtida através do trabalho árduo e digno. Como uma carroceira, que conheci na segunda comunidade, que deixara de ser doméstica para sobreviver da carroça, chegando a afirmar que não queria “alguém mandando” nela: Figura 14: Carroceira de reciclagem Fonte: Arquivo da pesquisadora Os carroceiros dessas comunidades traziam fortes marcas de disputa de classe, o que me impressionou. Um dos carroceiros, nesse sentido, dizia entender que a política de retirada de carroças era fruto de uma “elite não quer ver pobre na rua”. Outro chegou a associar essa política a uma questão de racismo. Inclusive, este último ainda teceu críticas às pessoas que iam visitar a sua comunidade, o que podia estar sendo dirigido à minha presença ali também. Ele se mostrava descrente do interesse daqueles que ali passavam, comentando especialmente sobre a presença de políticos. Chegou até a comentar, talvez pensando na sua posição como catador de resíduos sólidos, que as pessoas apertam a sua mão, mas “em casa lavam”. 112 2.4 O trabalho como valor moral Leite Lopes (2013) apresenta como o trabalho foi um tema estudado tradicionalmente por antropólogos; que mesmo não sendo central, apareceria relacionado a outros aspectos. Assim, o autor apresenta as contribuições da Antropologia, que ajudaram a romper com o senso comum, inclusive acadêmico, cujo foco voltava-se ao “pólo moderno da transformação capitalista, a fábrica e seus operários”. Invertia-se, assim o protagonismo para aqueles “a quem tais mudanças estavam deslocando e destruindo: os artesãos, trabalhadores rurais e camponeses, os trabalhadores a domicílio” (2013, p.72). A antropologia produziu, dessa maneira, através de seus métodos, uma crítica fundamental “à tese de origem rural da classe operária como algo que a tornava ‘arcaica’ e ‘incipiente’ (2013, p.67). Uma discussão sobre o trabalho não deixaria de estar presente sendo necessário refletir sobre sua importância de modo central para as camadas populares e os valores que estão em jogo. Algumas pesquisas são significativas nesse sentido, como as de Duarte (1986), Sarti (1994) e Zaluar (2000). Elas mostram como o trabalho é elemento central na existência das camadas populares e que está profundamente atrelado à família mas não apenas no que compete pelas condições materiais já que há uma intensa moralidade envolvida. Como sintetiza Zaluar: “o trabalhador respeitável é membro de uma família” (2000, p.89). É dessa forma que temos o trabalho encarado sob uma perspectiva positiva por conter valores morais que vão atuar como afirmação pessoal e social dos trabalhadores. Assim, o trabalho implica em honra, como analisa Sarti (1994), que não se refere à posição social, mas à uma virtude moral conseguida através da disposição e força para o trabalho, o famoso “ser pau para toda obra”. Ela ainda comenta como esta disposição para os trabalhadores “é vivida como o fundamento de sua autonomia. Para tê-la, no entanto, é preciso saúde, um valor relacionado ao trabalho. O corpo é o instrumento do trabalho, não apenas para sobreviver, mas para mostrar-se forte. Também a saúde tem um valor moral” (ibid: p. 124). Como vimos, foi o que também mostrou Duarte (1986) ao discorrer sobre uma série de perturbações que incidem sobre as classes populares em eventuais ocorrências que afetem a corporalidade mas que repercutem na vida moral. Considerando esses aspectos, Sarti aborda a relação entre a família e o trabalho: 113 Na moral do homem, ser homem forte para trabalhar é condição necessária, mas não suficiente para a afirmação de sua virilidade. Um homem, para ser homem, precisa também de uma família. A categoria pai de família complementa a auto-imagem masculina. A moral do homem que tem força e disposição para trabalhar, articula-se à moral do provedor, que traz dinheiro para dentro de casa, imbricando-se para definir a autoridade masculina e entrelaçando o sentido do trabalho à família (1994, p.131). Por isso, especialmente para os homens chefes de família, a identificação social enquanto trabalhador acaba também atribuindo um sentido positivo às existências nas camadas populares. É, portanto, o trabalho “muito mais que o instrumento da sobrevivência material, mas constitui o substrato da identidade masculina, forjando um jeito de ser homem. É condição de sua autonomia moral, ou seja, da afirmação positiva de si, que lhe permite dizer: eu sou” (ibid: p. 119). São esses valores que se evidenciam quanto ao trabalho dos carroceiros, cuja idealização encontramos no bom-profissional. Essa representação acaba abarcando a oposição da “responsabilidade”, como muitas vezes colocaram, que garante a honra, respeito e dignidade, versus o “descuido”, e por isso, a vergonha. Nesse sentido, aproximar-se do perfil do bom-profissional, gera orgulho e o reconhecimento dos demais. Por ser, então, o trabalho profundamente relacionado à própria moralidade do homem é que encontramos diversas queixas e irritação, entre os carroceiros, frente às intervenções sofridas em sua forma de trabalhar. Muitas vezes elas eram encaradas como “abusos”, isso porque essas intervenções confrontam diretamente a autonomia tão valorizada pelos carroceiros. Nesse sentido, ouvia algumas expressões como “não aguento abuso de ninguém, não”, “eu gosto de mandar, não de ser mandado” e “eu não nasci para ser o prego, eu nasci para ser o martelo”. Era por isso que muitos carroceiros relatavam como mesmo entre eles é difícil um diálogo a respeito da tentativa de indicar ao outro como seria uma melhor forma de trabalhar: “Ele é uma pessoa ignorante, se for falar qualquer coisa ele já vem com quatro pedras na mão para cima da pessoa. É uma pessoa que não sabe se expressar com ninguém, tudo dele é querer brigar com as pessoas”, contava-me um carroceiro sobre um colega que não aceitava suas críticas. Entretanto, é oportuno considerar como essa valorização pessoal, o orgulho propriamente dito, pode conviver com relações assistencialistas e clientelistas. Assim, não havia vergonha, por exemplo, de precisar de alguns auxílios como foi o caso de Diego, que comentamos ser ajudado por um açougueiro na alimentação da casa, ou ainda acontecer de uma filha de um carroceiro vir me pedir um emprego. Da mesma forma, a própria realização 114 do trabalho: muitos comentaram como, às vezes circulando, observavam metralhas ou podas, por exemplo, nas calçadas de algumas casas e então batiam à porta oferecendo o serviço de limpeza. Apenas um carroceiro marcava sua resistência a isso, mostrando-se orgulhoso em não pedir. Entretanto, esse mesmo carroceiro revelaria como pediu ajuda para a compra do seu primeiro cavalo. Dada essa importância do trabalho nas camadas populares e considerando então o atual contexto, cabe atentar sobre a ameaça à continuidade da atividade dos carroceiros que vai incidir sobre a identidade dessas pessoas e de seu mundo social, podemos dizer promovendo um verdadeiro sofrimento social (Kleinman, Das e Lock, 1997). Um caso que se aproxima, nesse sentido, é retratado em Cornélia Eckert (2012) que apresenta a situação do fechamento de uma mina em La Grand-Combe, na França, como reflexo dos processos de modernização. Segundo a autora, quando a mina fechou foram com ela “valores de referência de um grupo, de uma prática social e um modo de vida” (2012, p. 19). Ou seja, os mineiros que ali trabalhavam tiveram modificada “toda a trama cotidiana de existência” e seu “corpo social desintegrado”. Houve, assim, a “desestruturação da comunidade de mineiros, porque ‘a profissão não existe mais’, a não ser nas deformidades que secretaram a morte da mina: os mineiros aposentados, o patrimônio mineiro, a memória ‘do’ social”. (2012, p. 63-64). Ela mostra ainda como foi necessário a partir desta “ruptura dramática” que as famílias re- ordenassem as suas projeções, mas não sem enfrentarem, pela morte da mina, as sensações de insegurança com o futuro; de “vazio”, deixado “tanto pela crise da principal fonte de produção (a mina) como pela morte de uma tradição” (ibid: p.65), e ainda de “caos pela perda de referências da comunidade de trabalho, espaços e formas de sociabilidade” (ibid: p.68). 115 CAPÍTULO III – ANIMAIS “meus animais são o meu trabalho” -Vavá, em entrevista, 2016. Dentre os conhecimentos necessários ao trabalho de carroceiro, como já colocamos, o trato com o animal realmente se destaca. O que consegui perceber foi uma relação mais voltada para lidar com o animal, especificamente os cavalos, burros e jumentos, enquanto instrumento de trabalho, embora isso obviamente não excluísse outras formas de se pensar essa relação. Por exemplo, Lawrence (2005) apresenta uma dimensão da relação homem e cavalo a partir do caso dos rodeios. Ela mostra como há uma hierarquia que se estabelece na relação com os humanos, onde os animais assumem diferentes graus na escala de selvagem a manso. Alguns cavalos conseguem assumir um significado de camaradagem tão próximo, tal como os cowboys, o que permite, inclusive, a entrada deles nesses estabelecimentos ao que a autora entende como se tornam “momentaneamente humanizados”. O uso de animais para o trabalho vai de acordo com antropólogos que estudaram de modo clássico o meio rural do Nordeste, tal como Heredia (1979). Algumas variações podiam ocorrer: Garcia Jr (1983), por exemplo, descreve um cenário onde os pequenos produtores da Zona da Mata Pernambucana decidiram não utilizar mais animais no roçado. Cavalos e burros eram usados “exclusivamente para transporte de membros da família e de carga”, enquanto o gado (cuja posse era menos frequente) tinha sua criação “ligada ao fornecimento de leite e/ou abate posterior” (1983, p.120). É importante destacar que há uma ampla literatura mais recente que trata das relações entre animais e humanos e que abordam variados aspectos para além do uso para o trabalho, dimensão esta que mais se evidencia em nossa pesquisa. Para citar apenas alguns autores no exterior, um expoente é Tim Ingold (2007) que trata especialmente de uma discussão ontológica sobre humano e animal. Descola (1998) se soma a esse debate a partir do caso dos animais nas cosmologias amazônicas. Porém, encontramos em Haraway (2011) uma discussão sobre o lugar dos animais de laboratório que são pensados por ela enquanto trabalhadores, sendo, assim, nesse aspecto, mais próximo do universo que nos propomos a discutir. No contexto brasileiro, há o trabalho de Guilherme Sá (2006) que versa sobre a relação entre primatas e os primatólogos em um contexto de pesquisa científica. Por outro 116 lado, encontramos trabalhos como o de Segata (2012), que traz a questão dos sentimentos e da afetividade em relação aos animais domésticos. Esses animais aparecem ainda nas pesquisas de Lewgoy et al (2015) e Osório (2011), entre outros, mas que estão, entretanto, mais voltadas à discussão política e moral do protecionismo animal. Em um contexto mais familiar, a dissertação de Vilela (2013) abordou o ativismo vegano em Natal, investigando sua mobilização política em relação aos animais. Podemos citar ainda o uso de animais para esporte no Rio Grande do Norte, relacionado às vaquejadas (Aires, 2008), além do estudo de Matos (2016) sobre as brigas de galos entre os Potiguara da Paraíba. Em resumo, a literatura desta área de estudo vem se ampliando significativamente, mas não é intenção do presente trabalho fazer um balanço teórico exaustivo. Algumas questões sobre a relação entre humanos e animais merecem ser discutidas com mais ênfase neste capítulo. Uma delas envolve o trabalho, a sobrevivência econômica e a manutenção da família. Várias vezes ouvi os carroceiros dizerem, tanto nas audiências, quanto em pontos de trabalho visitados, da necessidade de cuidar dos animais, respaldada pela justificativa de que era seu “instrumento de trabalho” ou, ainda, o “meio” que usavam para sustentar a família e, por isso, ele deveria ser “zelado”. Assim, os animais utilizados pelos carroceiros se configuram, portanto, como um importante investimento econômico (Garcia Jr e Heredia, 2009) para a realização de suas atividades, visando sobretudo a provisão da família. Para além de se fazer em termos do tempo presente, isso considera também garantir o sustento familiar no futuro, em caso de necessidade. Foi o que Leandro traduziu para mim: “Você, pai de família, vê seus filhos e sua mulher, em casa, precisando de alguma coisa e você corre para um lado e dá errado; corre para o outro e dá errado. Você tem que fazer o quê? Vender um objeto que você tenha, por isso que eu gosto de ter três, quatro cavalos, porque em uma situação dessas, assim, eu chego e vendo. Aí eu pego o dinheiro, entrego e pago todinho (referindo-se às dívidas). Quando eu vou ganhando, eu reponho e vou juntando de novo: pego, compro e coloco no lugar de novo (o cavalo). Você tem que ser uma pessoa sábia”. Nesse sentido, a fala de Leandro é o nítido reforço da condição desses animais também enquanto reserva para os momentos de precisão (Garcia Jr e Heredia, 2009, p. 236), demonstrando, dessa forma, o que seria uma “sabedoria” no manejo dos bens e rendimentos. Porém, outro aspecto está associado a essa questão econômica e ao trabalho, isto é, a existência de analogias ao transporte em geral, muitas vezes girando em torno da comparação com os carros. Por exemplo, isso apareceu quando Vavá, de modo semelhante a Borges em 117 uma das audiências, me explicaria que o uso do chicote era necessário, como narrado anteriormente, por ele ser “a chave para dar a partida”. Outra situação foi quando eu perguntei, na praça, a alguns carroceiros porque eles trocavam de animais e um deles me responderia: “não se troca de carro? A gente troca de animal”. Claro que não podemos desconsiderar, como indicamos anteriormente, também relações de intimidade e de troca, digamos, emocional/afetiva com seus animais. Foi esse o exemplo de João, que gostava de me contar várias histórias dos animais que teve, tal como do cavalo Moreno que, segundo ele, dava a pata quando ele pedia, à semelhança de um cachorro, e também de sua égua Charmosa, que esteve em minhas primeiras visitas na praça, mas depois foi substituída por Tubarão, já que ficou “prenha” e teve de descansar do parto. Uma das vezes que João falou de Charmosa me apontou a pulseira com que tinha presenteado a besta102. Interessante também, nesse sentido,é notar a própria nomeação dos animais. Na praça, além de Charmosa, conheceria também Baby, Roberto Carlos, Titela e Espinafre, embora houvesse outros animais que continuavam sem nomes. Apesar dessa ligação mais afetiva, é importante considerar aquilo que Sahlins (2003) nos lembra: a existência de uma relação entre cavalos e humanos, tradicionalmente, mais de trabalho. 3.1 Criando uma rede de relações A aquisição de animais se dava geralmente através de trocas, embora sua compra também ocorresse. Em relação à frequência das trocas dos animais entre os carroceiros, essa era uma questão, inclusive, para os protetores de animais. Em uma audiência pública, uma protetora interpretaria desta forma: “vocês trocam muito de animais, certo? Os animais são bastante debilitados então se troca muito porque eles não são bem cuidados”. Essa é uma afirmação bastante limitada em relação à prática das trocas de animais pelos carroceiros. Embora tenha visto que, em uma situação, a troca foi desejada em razão do estado debilitado do animal – o que não exclui, portanto, esta possibilidade – as trocas ocorriam por outras razões: para investir em seu equipamento de trabalho; quando o animal não se mostra disposto para o serviço, recusando carregar a carroça; e, especialmente, para manter uma rede de parceria e sociabilidade entre os carroceiros. Além da avaliação da força do animal, era possível considerar ainda a estética. Nesse sentido, Jurandir me contou como foi o início do 102Termo frequentemente usado para se referir às éguas em particular. 118 trabalho de Cleantro no ponto: “Esse aqui chegou montado em um jumento, hoje já tem Roberto Carlos (risos)”, que era o cavalo mais vistoso da praça. No tempo que frequentei a praça, os carroceiros tanto me descreveram quanto eu pude presenciar como são realizadas as trocas: primeiro é preciso chegar a um acordo a respeito dos valores dos animais que estão em negociação. Os valores que me foram declarados no ponto da praça, variavam entre 400 a 1.400 reais. O burro de João era o animal de menor valor, enquanto o cavalo Roberto Carlos era o de maior. Mas obviamente, os animais poderiam estar em outras faixas de preço, como, por exemplo, Vavá, que, em entrevista, afirmou que cada um de seus dois cavalos valiam R$1.500. Enfim, diante de um acerto, procedia-se à troca: aquele que tinha o animal com o custo menor, obviamente arcava com a diferença no preço, que poderia, inclusive, ser parcelada. Toda essa negociação acontecia de modo bem informal, pois geralmente eram feitas através de conhecidos. Nesse sentido, conhecer o carroceiro com quem iria realizar uma troca era uma questão importante na negociação: para que, por um lado, fosse possível localizar o devedor para fazer a cobrança e, por outro, ele estivesse mais confiante em relação ao animal a ser adquirido. Assim, alguns me disseram que às vezes podiam pegar um animal que “não dá para o serviço”, que é quando o animal rejeita a carroça e se nega a puxá-la. Em uma proximidade com os animais de laboratórios de que trata Haraway, evidencia-se o que a autora chamou de “graus de liberdade”, que inclui “a possibilidade das experiências não funcionarem se os animais e outros organismos não cooperarem” (2011, p.32) Então era preciso ter alguma garantia, que era conseguida através da relação de proximidade com o outro carroceiro. Leandro, por exemplo, contou-me de uma vez quando adquiriu um cavalo que rejeitou puxar a carroça. Afirmou que, como conhecia o trocador, procurou-o de novo para poder pegar outro animal, alegando: “rapaz, esse cavalo aqui não deu para mim, não”. Segundo ele, isso é algo corriqueiro e não gera maior questionamento. Portanto, encontramos aqui o fortalecimento da parceria através da confiança já que se troca preferencialmente com aquela pessoa que se confia. Nesse sentido, a palavra aparece aqui também como um elemento fundamental para firmar a negociação. Isso ocorre porque, nas concepções morais dos carroceiros, a palavra é importante. Ao falarmos especialmente sobre as vendas e trocas de cavalos, era comum ouvir: “o que vale do homem é a palavra” e “o homem que não cumpre o que fala para mim não vale nada”. Assim, é um elemento fundamental na relação entre os homens, sendo muitos acordos 119 firmados e garantidos apenas por ela. Ou seja, a palavra torna-se então um tipo de “crédito” onde se troca a confiança, cujo significado está relacionado à dádiva e sua reciprocidade envolvida (MAUSS, 2003). A palavra é válida principalmente entre aqueles que “tem nome” e, assim, os carroceiros gostavam de enfatizar como eram conhecidos: “até hoje eu sou conhecido no meio deles (dos carroceiros) como um cara que compra e paga”. Era preciso então reforçar suas qualidades morais para que não colocasse em risco todo o esforço pela construção do “nome”, ainda mais em um contexto que Ednaldo comentava, que é o da restrição da confiança através da palavra: “Não são todos (em quem se pode confiar), hoje já mudou a coisa”. Mas ainda a palavra às vezes pode ser dada por empréstimo, quando um carroceiro assume a responsabilidade por outro que não tem o mesmo reconhecimento de que usufrui. Assim me explicava Ednaldo: “Hoje você faz um negócio desse (a compra parcelada) se você tiver nome. Pronto, hoje eu falo por outros ‘pode vender que eu pago, se ele não pagar, eu pago’, porque eu cobro dele”. Além dessa possibilidade de parcelamento, muitas vezes me foi sinalizado como a compra dos animais e da carroça pode não depender de ter uma quantia já em posse, ou seja, pode ocorrer totalmente no “fiado”, de modo que isso facilita bastante a aquisição desses animais como bens e reforça o caráter de investimento da atividade: “você compra a carroça, trabalha e produz para poder pagar”, explicaria ainda Ednaldo. Embora as trocas ocorressem entre os carroceiros do próprio ponto ou entre pontos diferentes103, há locais específicos voltados para esse tipo de negociação. Acabei por saber, então, da existência de feiras de troca de cavalos, onde os carroceiros destacavam uma significativa presença de seus pares e que já me indicavam, através de suas descrições, ser este um espaço mais próprio de relações e sociabilidade. Contaram-me que esses eventos aconteciam paralelamente às feiras livres de vários bairros, mas, como já mencionamos, elas foram “acabando”104, sem me especificar claramente o motivo. Apesar disso, fui informada mais recentemente da existência ainda de duas feiras, próprias para essas trocas, que ocorrem na Zona Norte de Natal, das quais estive presente em uma delas e confirmei ser este um 103 Era por isto que muitos carroceiros conseguiam elencar quase todos, senão todos, os colegas que frequentavam outros pontos que eles mais tinham contato. Além disso, também conheciam diversos outros carroceiros soltos, relacionando-os aos bairros onde moravam. Jurandir uma vez comentou que os carroceiros do ponto do depósito e do ponto da praça, em especial, estão sempre mantendo contato. 104Alguns acusavam a promotora do meio ambiente de ter sido a responsável por ter “acabado” com os cavalos nas feiras livres, o que retomaremos no decorrer deste trabalho. 120 evento bastante importante para o fortalecimento de uma rede social (BARNES, 2010) de contatos e parcerias. Tratarei com mais detalhe sobre a feira visitada em tópico mais adiante. Ainda que as feiras de troca de cavalos tenham forte apelo para a sociabilidade, motivada pela relação dos carroceiros com os animais, esse caráter também se estende, momentaneamente, a outros espaços. Por exemplo, uma vez conversando na praça, Jurandir contava que, os carroceiros bebem no bar perto do local – o que ocorre geralmente no sábado, já que folgam no domingo – e “começa o troca-troca”. Além do aspecto lúdico, esses momentos também serviam, inclusive, para o fortalecimento dos laços de parceria e confiança entre os carroceiros, sendo ele necessário para firmar a rede de contatos. Nesse sentido, vale recuperar, em comparação, um elemento etnográfico do trabalho clássico de Evans-Pritchard: “A atitude do Nuer e seu relacionamento com povos vizinhos são influenciados pelo amor ao gado e pelo desejo de adquiri-lo” (2013, p.23). Desta forma, quando a protetora entende ser a troca fruto somente de condições debilitadas dos animais, ela desconhece a importante dimensão desse tipo de relação que, além disso, também se configura através da possibilidade de ser uma fonte extra de recursos: Borges e Vavá, por exemplo, são dois trocadores, dedicando-se aos cuidados de alguns animais debilitados para vender ou trocar. Certa vez, Vavá me contou como tinha adquirido e aperfeiçoado o conhecimento para avaliar um animal e imaginar o porte que ele poderia alcançar. De fato, como Borges e Vavá são carroceiros mais velhos e gozam de reconhecimento por conta disso: eles são procurados por alguns carroceiros para realizar diretamente a troca ou a venda de animais que estavam mais debilitados105. 3.2 O “zelo” Além do investimento econômico com os bichos e com os equipamentos da carroça, o cuidado com os animais era bem evidente, pois se construía através da alimentação e da preocupação com a saúde dos animais. Presenciei, assim, várias vezes carroceiros preparando a refeição e alimentando os cavalos no ponto da praça. A dieta dos animais é bastante diversificada, a critério do dono do animal, que também realiza em horários bem variados, a 105Um exemplo bem recente, nesse sentido, foi quando fui, em uma das vezes, à casa de Borges e ele me disse que Reginaldo tinha passado em sua casa, antes de eu chegar, e ofereceu a égua de Bola que estava machucada. Contudo, Borges teve de negar, pois não tinha onde colocá-la. 121 depender principalmente da rotina de trabalho que o carroceiro e o animal tem106. Apesar da variedade, em geral, era frequente servirem “pau de bananeira”, que adquiriam em terrenos baldios, e que podiam também ser comprados. Os grandes troncos eram cortados habilidosamente em pequenos pedaços e dispostos em baldes. Essa alimentação incluía, por vezes, ainda farelo de trigo e/ou de milho. Figura 15: Cavalos, em distintos contextos, alimentando-se da mistura de “pau de bananeira” e farelo Fonte: Arquivo da pesquisadora Além disso, muitos carroceiros contaram que tinham a prática de levar o animal para pastar à tarde e/ou noite107 em alguns terrenos baldios. Enquanto um acreditava que o melhor mesmo era que o animal se alimentasse sozinho com capim, outros carroceiros faziam a retirada de um estoque dos vegetais. Foi isso que fez Diego, que me levou à coleta de “rama” e “capim-elefante” para alimentar seu cavalo, logo após nossa entrevista (Cf. Apêndice B). Assim, pude presenciar a coleta de alimento para seu animal. Só pela observação, pude perceber como isso exigia bastante esforço físico: eu via como Diego ficava ofegante e suava muito, especialmente porque estávamos sob um intenso sol. Ele me explicou, assim como outros carroceiros, que coletava o capim ao final da tarde e que estava ali comigo, por volta de 106 Por exemplo, Leandro falava como era danoso montar uma dieta baseada em uma ração mais forte para animais que ficavam reclusos, ou que não tinham uma rotina de maior rendimento, pois os cavalos poderiam ter cólicas, chegando até a óbito. Borges também me afirmava que os cavalos utilizados em vaquejadas, identificados por “de esteira” ou de “corrida”, precisam ter uma alimentação diferenciada, segundo ele, “coisa forte” como aveia, milho, mel, mandioca, que não “faça barriga” como a alimentação dos cavalos “de carroça”. 107 O relato de deixar os animais pastarem à noite toda foi dado por João e Ednaldo que dispõem seus animais em terrenos baldios. 122 14 horas, apenas para me mostrar como fazia a coleta. A todo momento, ele justificava que coletar capim era algo corriqueiro, mostrando sua habilidade em caminhar pelo terreno e como escolhia os vegetais mais adequados. Foram pouco mais de trinta minutos até ele encher a carroça com gramíneas108. Figura 16: Coleta da “rama” Fonte: Arquivo da pesquisadora Retomando à questão da alimentação, além do capim e dos vegetais frescos como o pau de bananeira, outros produtos eram usados como alimento, por exemplo “casca de soja”, “casca ou bucha de algodão109”, milho ou xerém (tipo de farinha de milho). Ainda podiam ser incluídos um pouco de sal, mel ou melado de cana para “dar gosto” à refeição do animal. Esses alimentos mais específicos como os farelos de trigo e de milho, a soja e o algodão eram comprados em lojas especializadas, as “casas de ração”110. No geral, somando todos os produtos usados, os carroceiros declaravam gastar em torno de 200 a 500 reais por mês com a alimentação, considerando um a dois animais. Também cheguei a conhecer, além da compra e da própria coleta, outra forma de obter os alimentos: através das doações que os carroceiros recebiam de conhecidos, clientes, 108 Só de andar por entre o tapete verde que estava à nossa frente já me causava certo pavor pelo medo de me ferir em algum objeto cortante ou de ser picada por algum inseto. Quando eu perguntei a Diego se não havia esse risco, ele sorriu e garantiu para eu não me preocupar, indicando-me trilhas em que eu estaria mais segura para caminhar. 109 Aqui temos mais um exemplo de como o critério para construir a dieta parte de uma avaliação baseada na experiência particular de cada carroceiro. Enquanto Vavá me diria não gostar de dar partes do algodão porque, segundo ele, o animal “inchava”, em contrapartida, outros carroceiros avaliavam como uma boa alimentação, que deixava o animal saciado. 110 Duas lojas me foram indicadas: uma no bairro do Alecrim e outra na Av. Bernardo Vieira. 123 ou vizinhos de suas casas ou dos pontos de trabalho. Por exemplo, era o caso da “casca de feijão verde” e da “palha de milho” que, contaram-me, eram separadas por senhoras que vendiam esses alimentos em barracas próximas ao ponto da praça. Ainda observei algumas pessoas fazendo doações para os animais no próprio ponto: um funcionário de um condomínio do bairro trazia uma sacola grande cheia de restos de espigas de milho e o dono do bar vizinho que enviou restos de frutas através de Alvinho. Vavá chegou também a me contar que amigos dele, que trabalhavam em um supermercado, entregavam algumas vezes frutas que perdiam seu valor comercial por estarem muito maduras ou apodrecidas. Além dos cuidados com a alimentação, muitos carroceiros me contaram do banho diário nos cavalos, em média dois por dia: um na saída para o trabalho e outro no retorno. Era igualmente alvo de atenção diária a retirada e verificação dos arreios do animal, pois eles podiam se ferir quando usados por muito tempo e sem algumas precauções, tal como a de não apertar demais. Figura 17: Arreios Fonte: Arquivo da pesquisadora Em “campo”, também pude observar outros cuidados com a higiene e saúde, como quando faziam a limpeza das fezes e urina dos animais ou quando despejavam gasolina nos cascos dos animais, que, segundo alguns carroceiros, enrijece os cascos para evitar desgaste com o atrito do asfalto. Alguns deles explicaram que há uma região central do casco, que eles chamam de “feme”, que pode inflamar, caso não haja o cuidado de colocar gasolina. Isso também pode ocorrer em períodos chuvosos, pois o contato com a água também acarreta 124 inflamação. Os carroceiros garantiam ainda o uso de remédios111 e vacinas quando era necessário, sendo, muitas vezes, orientados pelos atendentes das lojas especializadas. Mas ainda sobre os cuidados com a saúde dos animais, algumas vezes observei carroceiros descrevendo seus tratamentos: por exemplo, para limpar o “catarro” do cavalo se aplica um remédio específico e se higieniza diariamente o “cocho” com água quente. Cleantro também me contaria de uma situação em que foi preciso até realizar uma pequena cirurgia no animal com a colocação de pontos: ele narrava a ocorrência de um acidente em que seu cavalo ficou ferido necessitando de 10 pontos que foram realizados por ele e um amigo: Pesquisadora:- Vocês que fizeram? Cleantro: - Foi, eu ajudei o rapaz a fazer, um amigo da gente que não é veterinário mas sabe fazer. A gente comprou os medicamentos, aplicou e fez. 3.3 Roubos Dispor os animais em um local seguro era uma precaução a fim de evitar roubos. Também como parte do investimento feito em seus animais, dentre os gastos que tinham, alguns carroceiros podiam pagar o aluguel de currais112, embora outros tivessem espaço apropriado nos quintais de suas residências. Também ouvi algumas histórias de conflitos com vizinhos, mas não chegaram a ser denunciados ao setor de apreensões de animais da Prefeitura, tal como aconteceu com Borges. Havia também os que trabalhavam em depósito de material de construção e contavam com o apoio do proprietário do estabelecimento para guardar seus animais no local. Alguns deixavam, porém, seus animais gratuitamente em terrenos cercados de conhecidos. Quase na contramão dessas possibilidades, estavam aqueles que deixavam seus animais em terrenos baldios, sendo esta última forma a mais contestada entre os carroceiros que convivi com mais proximidade, apesar de achar que essa situação possa ser diferente em outro contexto, tal como nas áreas visitadas na Zona Oeste, onde eu observaria animais em terrenos abertos. Na praça, João era o único carroceiro que não se importava em deixar seus animais para passar a noite em um terreno aberto, próximo a uma praia, ao contrário de seus 111 Por exemplo, para combater verminose. 112 Era o caso de Cleantro, que aluga um espaço na Zona Leste de Natal por 50 reais ao mês. 125 colegas de ponto113. Sobre essa questão, João sofria reprimendas dos outros carroceiros: uma vez quando perguntei se ele não temia o roubo de seus animais, alguns colegas me responderam que ele era “doido”. João me justificou, do mesmo modo como respondia às repreensões, que não tinha medo pois, de forma irônica, contava que seus animais eram “muito bonitos” para serem roubados. Contudo, embora esses carroceiros repreendessem João, alguns chegaram a adotar a mesma prática: Alvinho e Bola que passaram pela situação de ter os espaços onde guardam os animais alagados, em um período de chuvas frequentes. Como essa situação pode ferir os cascos dos animais, optaram, assim, por arriscar deixar os bichos soltos no mesmo terreno que João. Além de João, também havia Ednaldo, que, mesmo depois de ter sido roubado, ainda deixava os animais em terrenos baldios, mas o fazia sob outras justificativas: “é o tipo de animal que não se mata para comer e vender, então mais cedo ou mais tarde aparece”. A isso, ele acrescentava que sua rede de contatos lhe ajudava: “eu conheço muita gente, muita gente me conhece, conhece meus animais”. Dentre os relatos de roubos de animais, é interessante discorrer sobre como atua a rede de contatos e parcerias em tais situações, o que vem a tornar possível, de fato, o resgate de um animal. Há várias histórias desse tipo, sinalizando também como o roubo é uma situação frequente na vida dos carroceiros. Dentre elas, por exemplo, há alguns casos vividos por Bola, que me contou que havia sido roubado três vezes, quando, na época, deixava seu animal no mesmo terreno que João. Nas três ocorrências, Bola perdera a mesma égua que, através de conhecidos, foi resgatada. Na primeira vez, Bola recebeu um aviso de Cleantro, seu colega de ponto, que avistara a égua no município de Extremoz. Na segunda vez, um carroceiro conhecido havia localizado o animal em outro município, Goianinha. Mas, na terceira vez, ele teve sua égua e, ainda mais, um burro roubados do terreno onde deixara os animais. A égua não seria mais encontrada, embora tivesse sorte com o outro animal. Neste caso, não só Bola perdera seus animais, mas Reginaldo também perdeu seu cavalo. Depois do roubo, os dois foram avisados por seus vizinhos que três homens levaram os animais. Os carroceiros fizeram buscas no bairro, mas sem sucesso. Só meses depois, Bola conseguiria recuperaria seu burro no bairro do Planalto, também apoiado pela informações de outros carroceiros. 113 Uma vez, quando eu passava de carro perto de onde João mora, cheguei a avistá-lo puxando dois animais e atravessando com aparente dificuldade uma via movimentada por volta de 18 horas. 126 Bola me narrou um tipo de estratégia que adotava para facilitar a recuperação de seus animais: a primeira atitude era registrar um Boletim de Ocorrência na polícia, onde era fundamental a descrição das características do animal. Na posse do documento, Bola se dirigia aos locais onde era informado do paradeiro do animal. Em Extremoz e no Planalto, ele se passou por um eventual interessado em comprar o animal para ter acesso a ele. Nas duas situações, foi preciso que todos os envolvidos comparecessem à delegacia, onde Bola mostrou seu documento e conseguiu provar a posse dos animais. Já em Goianinha, o resgate foi realizado por seu irmão, que apenas chegou a ameaçar de levar o caso à polícia, sendo suficiente para reaver o animal. Contudo, a postura de Bola não é a mais comum entre os carroceiros. Ao invés de priorizarem as vias institucionais, vários carroceiros apenas aguardavam notícias de paradeiro de seus animais e, então, optavam pelo enfrentamento mais direto, pois o faziam diante da certeza de sua posse. Dessa forma, Borges chegou a me contar que seu cavalo foi roubado uma vez, mas, depois do alerta de um vizinho, conseguiu recuperá-lo, localizando-o em companhia de um amigo carroceiro, na comunidade do Passo da Pátria. Diante de minhas dúvidas sobre o desenrolar dos fatos, Borges explicou com muita convicção que ele era o dono e, assim, teve “direito” de reclamar e que não havia a ser questionado. Assim também fez Vavá que, ao ser informado por um amigo do cavalo roubado, garantia que o animal era dele. Quando eu perguntei se tinha enfrentado algum problema para reaver o animal, ele respondeu: “não, que era meu (o cavalo), se alguém quisesse estrebuchar viesse atrás de mim”. Dizia, dessa forma que se alguém contestasse sua posse, poderia procurá-lo para a averiguação. Os dois carroceiros mostravam um significado específico de “direito”, pautado em fundamentos morais e de caráter, mas que se valia ainda da descrição física dos bichos, focando em suas marcas e detalhes específicos. Se fosse preciso, pessoas seriam chamadas como testemunhas a fim de provar a posse do animal, tal como fez Ednaldo “Quando aparece, é meu, é meu e é meu! Eu tenho testemunhas, sei a quem eu comprei, porque eu não compro nada a qualquer pessoa. Eu sei a quem eu comprei, paguei, tenho testemunha”. Assim, vemos como estão em disputa aspectos morais para considerar a posse dos animais, o que envolve, inclusive, a recuperação de todos os envolvidos com a troca dos cavalos e jumentos. Nesse sentido, é preciso retomar a rede de contatos e parceria que autoriza e confirma a posse do animal. 127 A julgar pela quase sempre participação conjunta de algum colega de atividade, sem contar vizinhos ou apenas amigos, seja no reconhecimento e informação do paradeiro dos animais ou em seu próprio resgate, vemos, mais uma vez, a grande importância da formação e manutenção de uma rede de relações. Foi Vavá quem narrou como conseguira recuperar o cavalo roubado de Ednaldo, exemplificando muito bem como essa rede de relações e contatos se efetivava. Em termos morais, estava em jogo o “nome” de alguém e sua respeitabilidade: Ednaldo mesmo, roubaram um cavalo dele fazia quase um ano. Eu estou lá na feira e ia passando o cavalo de Ednaldo, eu vendi até a ele. Ele tem uma cicatriz nos quartos [...]. (afirmou) ‘Ei, vem cá, esse cavalo de quem é?’ (responderam) ‘Esse cavalo eu apanhei de Chiquinho’ (que é) um colega da gente que mora lá no Planalto. (prosseguiu) ‘Rapaz, diga a ele que esse cavalo é de Ednaldo que ele sabe quem é’. Aí pronto: no outro dia ele foi deixar o cavalo só no conhecimento, né?! Nesse sentido, surpreendeu-me o alcance objetivo da rede de relações sociais e a força moral em relação à posse do animal, o direito que o justifica, tal como no caso da égua de Bola, achada em Goianinha, a mais de 52 quilômetros de Natal, ou da situação vivida por Ednaldo que recebeu a notícia de que sua burra estava no estado da Paraíba, distante quase 100 quilômetros. Pode ser interessante destacar que eu mesma, no decorrer das visitas à praça, comecei a reconhecer os animais e a relacioná-los imediatamente à presença de seu dono, quando no início do “campo” isto era um exercício muito difícil, embora eu recorresse também às características dos equipamentos das carroças. Mesmo que seja possível pensar em marcações a ferro nos animais, para facilitar a identificação, é importante salientar que, na praça, eu só observaria esse tipo de marcação no cavalo Roberto Carlos (não à toa, o mais robusto do ponto) e depois no burro de João. A ausência de marcação pode ser explicada pela frequente troca de animais, mas alguns carroceiros também declararam ter a precaução de evitar a dor da marcação no animal. Um deles me disse, orgulhoso, não ter precisado do recurso de marcação: “eu nunca ferrei um animal meu, conheço só pelo jeito que tem”. Desse modo, as pessoas que reconheciam os animais roubados dos carroceiros se pautavam provavelmente em outras observações, além da marcação, que podia até nem existir. Talvez dependesse muito mais das relações que tinham com os donos dos animais. Como me diria Ednaldo sobre sua burra, localizada na Paraíba: “Ela tem uma característica que é só dela e que todos conhecem”. Entretanto, na visita que fiz a uma feira de cavalo, eu observaria uma quantidade mais presente de marcações nos animais. 128 Um dos carroceiros, inclusive, chegou a me declarar que era preciso ter a marcação para firmar sua posse, sinalizando, assim, certa especificidade sobre o assunto. 3.4 Feira de cavalos Como apontamos, as feiras de cavalos se apresentam como eventos importantes para a manutenção e ampliação da rede societária dos carroceiros, além de se configurarem enquanto espaços de sociabilidade. No início da pesquisa de campo, tive notícia da existência de três feiras em Natal, sendo uma localizada na Zona Oeste e duas localizadas na Zona Norte da cidade, uma das quais, contavam-me, já estava praticamente extinta. Com o passar do tempo, soube do declínio da feira da Zona Oeste, mas, em contrapartida, fiquei ciente do crescimento de outra feira, também na Zona Norte. Em 2016, os carroceiros afirmaram existir, portanto, duas feiras mais ativas na cidade, ambas ocorrendo nesta região da cidade. Além das feiras, são importantes as cavalgadas, ocasiões em que vários carroceiros e cavaleiros se reúnem para seguir um determinado percurso, tal como as carreatas e grupos de ciclistas. Contudo, as cavalgadas ocorrem eventualmente114, enquanto as feiras de cavalos ocorrem em um dia da semana. Além desses dois eventos, havia um pequeno número de carroceiros que participava de vaquejadas, levando seus próprios animais para esse tipo de competição115. De fato, a maioria dos carroceiros que conheci nos pontos não demonstrava interesse nesse tipo de evento, um até chegou a se opor: “Eu tinha um cavalo na época muito bom de corrida, vendi. [...] Mas para sair em dia de domingo para farrear em cima do meu cavalo, não! Meus animais são para estar em casa”. Assim, foi na feira de cavalos que eu conheci mais carroceiros envolvidos em vaquejadas, inclusive sendo esta o foco de várias conversas, tal como Leandro e Cleantro, que deixaram um dia de serviço para me levarem à feira na Zona Norte de Natal. Dentre os carroceiros, Leandro era o mais entusiasmado, chegando a descrever como ele e seu cavalo alcançaram o primeiro lugar em muitas vaquejadas. Segundo 114 Eu apenas ouviria comentários sobre a realização de uma cavalgada mas sem data certa ainda. Tempos depois, soube da realização de uma na semana santa de 2016. 115 Aires (2008) que fez um trabalho sobre vaquejadas no Rio Grande do Norte não chega a comentar especificamente sobre a participação de carroceiros nesses eventos. 129 ele, sua casa era “cheia de troféus”, gabando-se também de ser muito conhecido entre os vaqueiros. Dizia-me que seu cavalo era “de esteira”. Vale dizer que Câmara Cascudo usa essa expressão em um verbete sobre vaquejada, onde ele descreve que “esteira” é o “vaqueiro da esquerda, mantendo a rês em possível linha reta evitando a fugida” (1976, p. 37)116. Foram Leandro e Cleantro, assim, meus principais interlocutores para que eu conhecesse uma feira de cavalos. Marcamos um ponto de encontro e dirigimo-nos até o local da feira através de um veículo que nomeiam por “charrete”, sendo esta a única vez que andei nesse tipo de transporte. A charrete é semelhante à carroça; a diferença basicamente consiste na substituição do grande vão de madeira e uma tábua de assento que compõem a carroça por um longo assento acolchoado, onde cabem de duas a três pessoas. Além disso, muitas das charretes contam com um encosto para os pés. Dessa forma, possui uma estrutura voltada propriamente para locomoção de pessoas, diferente da carroça que serve também ao transporte de carga. Assim, andar na charrete foi bem mais confortável do que na carroça117. Figura 18: Charrete Fonte: Arquivo da pesquisadora 116 Para acompanhar propriamente a vaquejada, ver livro de Cascudo (1976). 117 Embora também seja chacoalhante, eu sentia uma estabilidade maior na charrete, até porque eu conseguia me segurar de forma mais firme. Mesmo para subir há mais conforto, pois a charrete dispõe de um suporte que facilita o ato, o que na carroça já é meio improvisado, precisando apoiar o pé na peça de madeira que atraca a carroça na “cangaia” do animal. 130 Ao chegar ao local marcado, observei algumas carroças em um ponto bem movimentado da cidade. Leandro explicou que eram comerciantes que vendiam camarão, transportado pelas carroças. Seguimos, Leandro, Cleantro e eu no meio do banco da charrete. Ao longo do caminho que seguimos rumo à feira, outra cidade se abriu aos meus olhos. Desde o começo passamos por uma área bastante popular de Natal, mas, a princípio, transitávamos por ruas calçadas que depois se transformaram em barro com todos os seus desníveis comuns. Chegamos a uma área onde, assim como em partes da Zona Oeste, visualizamos diversas ruas carroçáveis a perder de vista e muitas carroças circulando. Ao avistar uma grande área repleta por cavalos, passei a supor: chegamos à feira. Adentrando o amplo terreno, ficava uma casa, cujo cercado continha aproximadamente oito animais: pertenciam ao dono da casa e organizador da feira. Havia poucas pessoas no lugar por volta de 10 horas, mas, ao longo do dia, chegaram outras mais. No total, acredito terem comparecido uma média de trinta pessoas entre adultos e crianças. Os carroceiros presentes reconheceram Leandro e Cleantro e, então, nos chamaram para sentar em uma das poucas mesas dispostas. Ao redor de nós, eu observaria mais charretes que carroças, reforçando a atmosfera de diversão, indicando que, assim, não havia uma preocupação maior com o trabalho. Contudo, uma carroça desatracada despertou minha atenção, pois estava carregada de pau de bananeira. Ao fundo, um homem banhava com uma mangueira vários cavalos, que estavam em fila. Aliás, como o nome do evento sugere, havia a presença maciça desse animal, em média uns 20 entre nós, enquanto havia apenas um burro no lugar. No decorrer da feira, teríamos conversas, sobretudo, acerca dos animais, quando não de seus donos118. Assim, observei claramente, em uma paráfrase dos Nuers (EVANS- PRITCHARD, 2013), o interesse pelos cavalos por parte dos carroceiros. As conversas eram muito ricas em relação aos animais, mais do que habitualmente eu presenciava nas praças, também pela situação mais propícia em que estávamos. Era construída, dessa forma, uma forma de sociabilidade em torno do animal. 118 Muito pelos contatos e amizades que Cleantro e Leandro tinham, minha presença foi bem aceita no local logo de início, quando eu mal me posicionava. Depois eu seria meio que “cobrada” a entrar nas brincadeiras e na conversa. Então, senti-me bastante confortável para bebermos juntos e depois estaria brincando com eles. Penso que, na verdade, consegui me integrar muito bem com as pessoas. 131 Figura 19: Feira de cavalo na Zona Norte Fonte: Arquivo da pesquisadora Entre nós, estavam homens de mais experiência; os jovens sentaram-se mais afastados. Eles comentavam sobre os roubos de animais que alguns colegas tinham sofrido, mas, em especial, sobre o comportamento e físico dos bichos119. Assim, ouviria expressões como um determinado animal era “manhoso”, mas outras elogiosas como: “essa égua dá muito leite, olha os peitos dela!”, “ela tem muita frente”, para falar do porte e presença de uma égua. Além disso, valorizavam os dentes de um cavalo, pois eram de “primeira muda”120, e, tal como ouviria na praça, o uso de adjetivos como “jeitoso” e “famoso”. As feiras eram, portanto, um lugar de excelência para a exposição dos animais, onde eles passam pelo crivo dos ali presentes e que vai direcionar muito, a partir do resultado da avaliação, sobre o que dizer do próprio dono do bicho. É esse tipo de situação que justifica o uso do termo “famoso”, quando se elogia um animal. “famoso” é aquele animal vistoso, que adquire “fama” na rede de relações dos carroceiros. Como ouviria em outro momento: “cavalo bonito chama a atenção”. Por outro lado, baseados no conhecimento só de ver, havia repreensão aos donos dos animais que ficavam visivelmente mais “fracos”, o que era um questionamento compartilhado durante as rodas de conversa. Isso aconteceu quando um carroceiro de nome Vivaldi, que conheci na feira, apontou, apesar da distância que se 119 Foi na feira que me apresentaram, falando das vaquejadas, sobre as diferentes raças de cavalos: “criolo gaúcho”, “pit horse” e “quarto de milha”, são exemplos de “puro sangue” e há ainda os “pangarés” que não têm raça, e foram comparados aos cachorros “vira-latas”. 120 Fazendo lembrar do dito popular: “cavalo dado não se olha os dentes”. 132 encontrava do animal, para uma égua cuja genitália estava coberta por carrapatos. Essa situação provocou inquietação entre todos que estavam no lugar e, depois, chegou aos ouvidos do dono do animal, Bento, quando ele apareceu. Esse homem era, inclusive, o organizador da feira, mas esta condição não o poupou de crítica. Vivaldi perguntou, em tom descontraído, se ele não tinha “vergonha” de estar com um animal nessas condições e, depois, reforçaria o constrangimento, apontando o caso como uma “seboseira”. Essa foi a única repreensão de modo público que ocorreria na feira. As outras poucas foram feitas de modo mais particular. Aliás, ao organizador também não se pouparam as queixas jocosas para reclamarem da feira: da falta de som e de comida. Muitos estavam irritados e Leandro até pediu desculpas a mim. Vivaldi parecia o mais irritado entre todos e falava que Bento era “miserável”. Quando seu tom de fala escapava do modo mais descontraído, alguns carroceiros o lembravam de estar em uma “festa” e que, assim, ele “deixasse isso para lá”, em uma tentativa de garantir o clima mais alegre no evento. Portanto, era preciso um esforço para evitar uma escalada maior de conflito e manter a sociabilidade do ambiente. Nesse aspecto, destacamos aqui a interação entre os indivíduos naquilo que Simmel (2006) aponta como sociação, a forma na qual esses indivíduos “se desenvolvem conjuntamente em direção a uma unidade” na qual seus interesses podem se realizar. Simmel (2006) apresenta, então, o conceito de sociabilidade como uma “forma lúdica” da sociação, que ultrapassa “o resultado das necessidades e interesses específicos” para destacar a efetividade do momento nas formas de sociação que “são acompanhadas por um sentimento e uma satisfação de estar justamente socializado, pelo valor da formação da sociedade enquanto tal” (SIMMEL, 2006, p. 64) Era o que observava na feira: os carroceiros não iam apenas interessados nas trocas, em uma relação estritamente econômica, a propósito poucas trocas se realizaram. Boa parte do que motivava a participação na feira era justamente desfrutar de um momento lúdico entre pessoas conhecidas e pertencentes ao mesmo mundo social. Em uma situação de briga, todo o evento voltado ao prazer poderia ser posto à prova, apesar do conflito ser, como também analisou Simmel (1983), uma forma de interação. Outro momento interessante, nesse sentido, foi quando se juntou, momentaneamente, em nossa roda de conversa um desafeto de Vivaldi, que não manifestou nenhuma contrariedade ou rancor até o carroceiro sair, quando, então, expôs seu desgosto pela situação. Essa feira foi considerada “fraca” por todos que ali estiveram presentes, tanto pela pouca quantidade de pessoas, pois me disseram que era normal que houvesse em torno de 50 a 133 60 participantes. Mas a organização da feira foi outro fator negativo e criticado. A falta do som foi uma queixa recorrente que o organizador da feira não teve como resolver. De fato, quando os carroceiros da praça me descreviam as feiras, um dos elementos que destacavam era justamente a música. Como parte da organização do evento, era necessário ter comida e bebida, que normalmente eram vendidos pelos organizadores. Cheguei a me lembrar de quando Bola me alertou que, se eu fosse a uma feira, levasse “dinheiro para poder comer lá”. No decorrer da “festa”, os carroceiros passaram a fazer comparações com outras feiras de cavalo de Natal e de cidades adjacentes, avaliando como, nessas outras, os organizadores “sabiam administrar” o evento. Apesar das queixas, Bento tentou resolver as divergências e ofereceu a alimentação gratuitamente, seguindo as insinuações e indiretas de vários carroceiros. Assim, pagamos apenas as bebidas121. Portanto, as feiras surgem como um momento lúdico de encontro e congregação, mas há também interesse por parte da organização de aumentar a renda. Também Diego, do ponto do depósito, contou-me que, apesar das ameaças envolvendo o uso dos animais em carroças, desejava montar uma feira de cavalos em sua residência na Zona Oeste para, segundo ele, receber os amigos e ganhar um “dinheirinho”. Certamente, as feiras também eram vantajosas economicamente aos carroceiros, pois eles podiam encontrar diversos animais e arreios para troca122, avaliando os “produtos” e os preços, e mesmo pechinchando. Algumas trocas e vendas ou apenas tentativas ocorreram de modo público, gritando o objeto e o valor. Outras, também poucas, negociações (exitosas ou não) aconteceram de modo mais discreto. Uma delas foi tão rápida, que só depois eu pude escutar os detalhes e comentários sobre a “troca” feita pelos carroceiros que estavam à mesa comigo, surpreendendo-me quanto à sutileza e rapidez da negociação e a dificuldade que tive de registrar todo o processo.Outras situações passaram despercebidas por todos nós e eram informadas por outros carroceiros que acompanharam como testemunhas. Em uma das vezes, observei como isso acontecia: quando sinalizava-se corporalmente a tentativa de troca, um dos cavalos era examinado por outro mais detalhadamente, juntou-se um pequeno grupo ao 121 Como uma mostra da predominância desse universo masculino, foi o caso de quando recebemos a conta e eu fui pagar minha parte. Um dos carroceiros comentava, em tom de deboche, que onde ele bebia “mulher não pagava”. De fato, sentei-me ao redor apenas de homens já que as mulheres ficavam mais afastadas, na varanda da casa, conversando. Depois uma das esposas conversaria um pouco com a gente mas depois retornaria ao assento com outras mulheres. Leandro até me questionou se meu “esposo” não achava ruim de eu estar ali, mostrando seu estranhamento diante de um tipo de “subversão” que era minha presença. Então, entrando no clima de brincadeira do ambiente, eu respondi que quem “mandava em casa” era eu. Todos riram. 122 Não observei negociações sobre carroças, embora acredite que possam também ocorrer nesses eventos. 134 redor para observar o que acontecia. Essas situações reafirmavam como a testemunha e as informações estão disseminadas entre a rede dos carroceiros. As conversas e relações estavam tão imersas naquela atmosfera de diversão que a política de retirada das carroças das ruas de Natal quase não chegou a ser comentada. Ela o seria apenas quando, em um momento, eu fui ao banheiro e, quando retornava de súbito, um deles falava sobre um “abaixo-assinado” que os carroceiros estavam mobilizando em resposta à política. Eu, que até então não tinha revelado minha condição de pesquisadora, pois não desejava “conduzir” diálogos, mas apenas conhecer o ambiente, considerei bastante estranho e pude perceber como o meu papel tinha sido “revelado” por um dos carroceiros que me levara. Depois, Leandro comentaria discretamente que fora Cleantro que falou que eu fazia uma pesquisa, comentando que ele era “bocão”. Essa tentativa de responder a algum interesse meu ficara naquela situação forçosa e mal colocada, que imediatamente seria encerrada com poucas confirmações. Assim, logo voltávamos aos diálogos de antes. Deixamos a feira em torno das 16 horas. Ela marcaria em mim imagens recorrentes de cavalos, que vinham em minha mente e ainda estão presentes em meus flashes de memória. 3.5 O homem e o animal A relação do carroceiro com seu animal é tão próxima que está associada até mesmo à forma de indicar alguém123. Várias vezes, ouvi frases como, por exemplo: “José? Um que tem uma burra?”. Algumas dessas perguntas foram dirigidas a mim, quando ignoravam meu desconhecimento de grande parte de suas redes de relações, mostrando-me certa forma corriqueira de apresentação do colega carroceiro. Embora esta proximidade com os animais fosse firmada na parceria da jornada de trabalho diária, não havia, na maioria das vezes, uma ligação do carroceiro, necessariamente, a um animal específico, embora isso pudesse ocorrer eventualmente. Porém, não se tratava de uma relação com um animal de estimação, tal como discute Segata (2012). Entretanto, poderia ocorrer o que alguns carroceiros denominaram de “apego”, quando considerava excelente a interação e disposição para o trabalho de um determinado animal. Isso, por 123Algo que também é feito pelo local de moradia ou, em menor aparição, por seu local de trabalho, já que nem todos trabalham em pontos. 135 exemplo, aparecia na fala de Ednaldo quando ele narrava sobre o caso de uma burra que lhe tinha sido roubada. Ele chegou a me dizer que, em casos de roubo, não realizava boletim de ocorrência (BO) na delegacia, mas, como gostava da burra, dessa vez ele tinha feito, mostrando a utilização da via institucional para reforçar sua posse sobre o animal: “Eu fiz [BO] dessa burra mula porque eu era muito apegado a ela, um animal bom, dócil, aí eu fiz, mas os outros não, geralmente eu esperava encontrar o ladrão”. Portanto, o “apego” está relacionado necessariamente ao animal “bom” para o serviço e de fácil temperamento124. Nesse sentido, os carroceiros apresentam um conhecimento específico sobre as características físicas e temperamentais dos bichos, que são equacionadas para assim decidir pela escolha de um companheiro de trabalho. Pude reparar o conhecimento e percepção sobre um cavalo ou burro, tal como ser “o tipo de animal que nunca para de comer”, que sentem muitas cócegas, e que, quando na carroça estacionada, andam para trás os animais estão sinalizando um desejo de passear. Dessa forma, havia aqueles carroceiros que optavam por um “burro-mulo”125 (categoria que usam frequentemente para falar dos burros) pois eles seriam mais resistentes, carregando as maiores cargas, sendo por isso vistos como os “melhores” para o trabalho de carroça. Assim, de modo geral, eram os animais mais caros126. Apesar disso, a grande maioria dos carroceiros que conheci adquiriu cavalo que também possuía força para grandes cargas. Mas, mesmo se menor que a dos “burro-mulo”, eram os cavalos, porém, mais velozes. Outra característica em que os últimos se destacariam era também seu temperamento, já que eles são descritos como mais fáceis de lidar, enquanto os burros “cismam”127, “pegam raiva”, “são manhosos” pois eles também se “apegam” ao dono o que dificulta inclusive a realização das trocas128. Contudo, os carroceiros apontavam também como, às vezes, é possível encontrar um cavalo mais forte do que os demais, o que compensava, assim, os atributos dos burros: “o bom mesmo é o ‘burro mulo’, mas quando você acerta um cavalo como Roberto Carlos, não 124 Lopes (2013) constrói uma interessante estrutura analítica para tratar dessa relação em seus aspectos afetivo, produtivo e relacional. 125 Um “burro mulo” é resultado do acasalamento entre uma égua e um jumento. 126 Obviamente, não se considera apenas a espécie do animal, é preciso uma avaliação da idade e condições físicas. Por exemplo, como descrevemos, João adquirira um burro que pela idade mais avançada era o de menor valor entre os animais que trabalhavam na praça. 127 Os cavalos também podem “cismar”, que é quando evitam de passar por determinado percurso. Entretanto, entre os burros isso é mais frequente. 128 Segundo Vavá, principalmente a burra quando está no cio. 136 tem ‘burro mulo’ melhor que ele”129. Não se fazia uso de jumentos entre os carroceiros que acompanhei, mas contaram-me como esses animais suportavam bem menos peso e que eles eram mais usados por pessoas mais carentes, já que são os animais mais baratos para carroça. A convivência entre o homem e o animal vai depender do “jeito” em que essa relação está pautada. O “jeito” corresponde às habilidades, conhecimentos e formas particulares de ensino e de aprendizagem, buscando aquilo que Lopes (2013) define como uma “linguagem compartilhada”. Um deles chegaria a afirmar que “tudo é o jeito” na lida com o animal. Embora cada carroceiro construa seu “jeito”, há alguns saberes e técnicas amplamente conhecidos para o “ensino” dos animais, tal como a introdução deles ao trabalho na carroça, que deve ser realizada de um modo cuidadoso, mais compreensivo, colocando pouco peso nas primeiras viagens, que devem ter uma velocidade mais reduzida para o animal gradativamente se adaptar ao uso dos arreios. Também é preciso estabelecer alguns entendimentos mínimos entre o homem e o animal para possibilitar o trânsito nas carroças: como na realização das curvas e em relação ao momento do freio, sendo a rédea, portanto, um elemento fundamental130 Muitos me mostravam como “batem (com o pau do chicote) na tábua (da carroça)” para que o cavalo compreenda a partida, tanto pelo som quanto pelo impacto. Portanto, essa relação no trato com o animal exige paciência e insistência contínua, principalmente porque nem todos os cavalos “têm tendência para ser bom”. É o animal dócil que atende aos comandos do dono e que vira “jeitoso”. Borges e Vavá se vangloriavam de serem bons amansadores de animais e alegavam que eram bastante conhecidos entre os carroceiros por isso. Vavá afirmava que era apelidado de “catimbozeiro” por saber “tratar do animal”, mas alegava, na verdade, que ele sabia “ajeitar”. Borges também compartilhava desse orgulho, dizendo que recebia de outros carroceiros a alcunha de “feiticeiro”. A relação entre os dois, homem e animal, continuada diariamente através dos entendimentos mínimos, ainda depende profundamente do comportamento e temperamento de ambos, cuja habilidade para estabelecer a relação também faz parte do “jeito”, tanto que Ednaldo diria até que o animal “não é domesticado, ele se acostuma com o dono. Ele se acostumar com você, acabou-se”. Dessa forma, é o “costume” de um com o outro, na inserção 129 Ednaldo foi um que escolhera ter um exemplar das duas espécies que utilizava conforme o tipo de serviço que realizaria. Exemplificava: para uma poda, era o cavalo e, para metralha, o burro. 130 No dia em que coletei capim com Diego, em cima da carroça, ele me daria a rédea para segurar enquanto abriria um portão. Fiquei bastante insegura ao passo que sentia a tensão existente na rédea. Tive uma grande apreensão sobre perder o controle. 137 cuidadosa na rotina diária, que se impõe e não na montagem de um ambiente e situação para construir a relação. Assim, diferente do que é descrito por Lopes (2013), entre os relatos dos carroceiros que conheci, não aparece a necessidade de espaços específicos para a realização de uma doma como que condicionada à disponibilidade de terreno em “grandes áreas verdes”. O que acontece é a domesticação131 disseminada pelas ruas da cidade, atentando-se, para tanto, à circulação em espaços de pouco movimento. Se, por um lado, os carroceiros são tão próximos, como parceiros, a seus animais, por outro lado, não podem fraquejar ou vacilar na manutenção da relação hierárquica quando ela consegue se consolidar. Assim, o “jeito” também considera uma postura firme para tratar o animal: “falar sério, agora se você chegar com medo, fazendo ‘pantim’, é que é pior. Se demonstrar que não tem medo dele, aí ele lhe obedece”. A expressão “fazer pantim” também aparece em Câmara Cascudo, que diria: “Pantim, do francês pantin, é exagerar, inventar perigos, desfigurando as dimensões normais e lógicas” (1976, p. 37). Carroceiros justificam a postura firme porque “se o animal soubesse a força que ele tem, homem nenhum domava ele"132. É importante deixar claro que nessa postura firme exclui-se a “ignorância” do mau- trato; primeiro por que, comentavam, de nada adiantaria bater, e, segundo, que isso poderia ter a reação oposta e levar ao estrago na relação: “se dá no bicho, ele pega raiva [...] se agrada, ele vem para perto de você”. Nesse contexto, o chicote surge como um recurso voltado à contenção do animal propriamente em momentos de perigo, quando ele se assusta já que “é próprio do animal se assustar, do instinto dele”, mas que, de todo modo, acaba também contribuindo para a hierarquia da relação. Contudo, os carroceiros também consideram que há certa permissividade dos animais para estar na carroça: “se ele disser que não quer, não adianta você estar batendo, você pega ele e troca noutro”. Assim, nem todo cavalo “dá para carroça”, o que leva, por exemplo, a alguns deles se tornarem “de esteira”. Contudo, mesmo os cavalos que já são “de carroça” podem ser ou tornarem-se “arredios”133, mordendo e dando coices. Lopes alerta para que: 131 A domesticação é muito próxima do que os carroceiros colocam por “costume”, embora o último traga a relação para uma esfera de mais intimidade, que a domesticação não parece conter mesmo que se considere nela também uma interação. 132 Uma fala de modo idêntico é também descrita por Lopes (2013, p. 53), sinalizando, dessa maneira, um entendimento recorrente sobre a construção da “dominação” do homem nesta atividade. 133 Cleantro me disse que quando se está com um cavalo “arredio” é preciso redobrar a atenção, especialmente no momento em que se dá banho, já que é uma situação mais propícia ao cavalo “se assustar”. 138 “O convívio com os carroceiros mostra que o amansamento nunca é total e que a dinâmica diária é construída a partir dessa tensão entre protagonismos: ora a linguagem/força do homem define a ação, ora é a personalidade/força do animal que a determina, dois extremos de uma variação produzida no encontro de ambos” (2013, p. 57) Nesse sentido, Leandro seria um que me contaria como algumas de suas tentativas de conduzir animais à carroça foram frustradas, mostrando como o temperamento do animal pode ser determinante para a realização ou não do trabalho. Quando perguntei se tinha fracassado com algum cavalo, ele respondeu: “Já (risos). Já levei muitas vezes carroça para casa no espinhaço, puxando nas mãos”. Ao ser perguntado sobre o cavalo, continuaria: “Atrás da carroça, amarrado, mangando134 de mim que eu virei o cavalo (risos)”. Na praça, soube ainda de outra situação que exemplifica o que Lopes (2013: 57) interpreta como “tensão entre protagonismos”. Contaram-me sobre o caso em que um cavalo agredira seu dono no local de trabalho. Os carroceiros, talvez em exagero, contavam que o cavalo “ia matando” o homem: “Ele derrubou e ficou dando com as patas nele [...] É como se ele quisesse se vingar de alguma coisa, está entendendo?”. Através da insinuação de “maus-tratos” que o carroceiro já era acusado de praticar, eles também reforçavam a capacidade reativa dos animais. Ainda que houvesse esses impasses, a relação entre carroceiros e animais corria sem maiores percalços, quando conseguia se firmar, e se configurava como um “relacionamento simbiótico”, assim como aparece no trabalho de Evans-Pritchard, apesar de ser necessário guardar as diferenças: “gados e homens mantêm sua vida graças aos serviços recíprocos” (2013 p. 45). A relação, mantida então através do “zelo”, pesava diretamente na condição de ter orgulho dos animais: “Eu gosto de zelar. O que é bonito é pra se ver”.Nesse aspecto, presenciei uma cena interessante após uma entrevista com Vavá, quando ele me levou para ver seus animais. Assim que vi um dos cavalos, comentei sobre a beleza do bicho por seu tamanho e robustez, percebendo a vaidade de Vavá. Pedi para tirar uma fotografia, e quando vou tirá-la, para minha surpresa, Vavá se dirige para o lado do cavalo, portando-se orgulhosamente como o responsável pelo animal que atraiu meus olhares135. 134 Caçoando. 135 Outro momento parecido foi quando pedi para tirar uma foto da charrete. Imediatamente, Leandro sobe no veículo. Aqui não era o caso do orgulho do animal, afinal nem era dele, mas de assumir uma postura orgulhosa de ser carroceiro. 139 Figura 20: Vavá e seu cavalo: orgulho Fonte: Arquivo da pesquisadora O “zelo”, na perspectiva que gera o orgulho, era também visto como uma forma positiva do próprio trabalho. Muitos me diziam como gostavam de cuidar de seus animais e como isso estava associado a uma satisfação pessoal ao acompanhar o retorno dos cuidados no corpo do bicho, como foi o caso de Cleantro: Cleantro: você precisa do animal, você não sobrevive dele?! Você tem que cuidar dele, tem que dar de comer, tem que dar um banho, ajeitar, cuidar do bicho direitinho. Pesquisadora: Você acha que cuidar do animal é um ponto positivo (no seu trabalho)? Cleantro: É sim porque você tem prazer de ver seu animal bonito. Essa fala nos permite destacar o modo em que o cotidiano e o mundo social dos carroceiros são marcados por uma intensa relação com seus animais. “Acabar” com essa relação era uma das questões levantadas por alguns carroceiros para falar inclusive das repercussões negativas da política de retirada de carroças. Ao perguntar sobre o que um carroceiro sentiria falta com a implantação dessa política pública, recebi a seguinte resposta: “Saber que tinha meu bicho para eu cuidar. É como você ter aquele trabalho certo”. Nesse sentido, por diversas vezes ouvi falar do “apego” aos animais para caracterizar ou sinalizar a profunda ligação de cavalos e burros com os saberes, as práticas, os modos de vida e o mundo social desses homens, configurando-se, portanto, como uma relação “norteadora do universo carroceiro” (LOPES, 2013, p. 37). 140 Recuperando as condições assumidas pelos animais usados na tração enquanto trabalhadores, é pertinente apontar Haraway (2011): “No idioma laboral, os animais são sujeitos de trabalho, não apenas objetos trabalhados” (2011, p. 42). Isso se mostrava efetivo na lida diária nas carroças. Assim, a vontade do animal tem de ser considerada no compartilhamento das situações de trabalho, chegando até a casos em que o próprio carroceiro tenha que puxar a carroça quando o animal não coopera. Nesse sentido, uma busca por diminuir o sofrimento dos animais também se evidenciava, criando-se estratégias para tanto, como já descrevemos: por exemplo, no uso do chicote quando evitava-se a aplicação direta no animal. Também o “zelo” agia nessa direção, sendo um caso bem representativo a escolha de ingredientes para melhorar o sabor da comida dos bichos. O próprio conhecimento sobre o corpo do animal contém essa perspectiva. Nesse sentido, essas práticas mostram uma necessidade de consenso, o “acordo” entre homem e animal quanto às condições de trabalho, obtido através de códigos comuns, do temperamento de ambos, e, como defende Haraway (ibid), da responsabilidade prática e moral no cuidado. 141 CAPÍTULO IV - A CONSTRUÇÃO DE UMA POLÍTICA PÚBLICA Os carroceiros não podem ficar achando ‘eu trabalho como carroceiro e quero morrer carroceiro’, não adianta. O progresso quando vem, ele atropela e vai. - Protetora dos animais, em audiência pública de 06 de abril de 2016. Nos dois últimos capítulos, tratei das práticas sociais dos carroceiros e dos usos dos animais, mas agora pretendo me voltar a outro plano de realidade, cuja análise permitirá entender os efeitos sociais diretos da emergência de um debate público e da formulação de uma política específica quanto a esses mesmos carroceiros e seus animais. Apresento e discuto, portanto, que debate e política são estes. Através da leitura minuciosa da Ação Civil Pública (ACP), de 21 de agosto de 2012, movida pelo Ministério Público do Estado contra a Prefeitura de Natal, podemos recuperar parte do histórico das discussões em torno da atividade dos carroceiros que levam à construção da Política Municipal de Retirada dos Veículos de Tração Animal (PMRVTA) que até o momento se encontra na forma de minuta de lei. Segundo consta na ACP, os debates se iniciaram em algumas audiências públicas no ano de 2010, quando houve uma reclamação da ONG Patamada de que a Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (SEMSUR) “não estaria tratando de maneira adequada os jumentos abandonados e resgatados na rua” (MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RN, 2012, p. 02). A partir de então, o documento alega que o caso foi “ampliado para discutir a situação dos animais de tração” em Natal, apontando “muita relutância” do Município em atender às demandas das Organizações Não Governamentais (ONGs), apresentadas como “ambientalistas”, que sustentavam “a necessidade de controle do transporte realizado por animais de tração, tendo em vista a necessidade de protegê-los dos evidentes maus-tratos a que são submetidos pelos carroceiros” (ibid). Surgiu, então, a proposta de cadastramento dos condutores de carroça, que chegou a ser realizado com o auxílio das próprias ONGs, após o Município ter admitido “a necessidade de fazer esse controle”, visando “embasar uma política pública”. Nesse sentido, foi convocada uma audiência, em 16 de setembro de 2011, realizada no auditório da Procuradoria Geral de Justiça, por iniciativa do Ministério Público e da 28ª Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente da Comarca de Natal. Estiveram 142 presentes os seguintes atores sociais na mesa do debate: a Promotora Rossana Sudário, que fez a coordenação da sessão; Ítalo Alves, à época um dos gerentes da Companhia de Serviços Urbano de Natal (URBANA); o major Correia Lima, comandante, até então, da Companhia Independente de Proteção Ambiental (CIPAM) da Polícia Militar do RN. Também compondo a mesa, estavam as representantes de duas organizações não-governamentais, a ONG Animais e o Instituto Fluke, além da veterinária Carla Belke, do Conselho de Medicina Veterinária, que agregava ao debate a autoridade de um saber profissional e especializado. Todos estes representando, segundo disseram, “a voz dos animais”. Além deles, estavam igualmente os representantes da Associação de Carroceiros de Natal e do Movimento Nacional dos Catadores, que privilegiou muito mais a situação vivida pelos carroceiros que trabalhavam com a coleta seletiva136. Nesta ocasião, Ítalo Alves da URBANA, órgão público municipal voltado à limpeza urbana, apresentou a proposta de substituição das carroças movidas a tração animal pelas Carroças Elétricas Veiculáveis (CEV), sendo este o ponto central da sessão. Em razão disso, participou uma representante do Banco do Brasil para discutir a viabilidade do financiamento desses novos equipamentos137. Após essa audiência, é relatada na ACP ainda uma reunião posterior agora no Banco do Nordeste “também para discutir a proposta e um possível financiamento dos veículos para os carroceiros” (MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RN, 2012, p.02). Só que, desde então, não havia ocorrido “qualquer evolução significativa no cumprimento das obrigações assumidas” pelo Município, principalmente no envio do que seria uma proposta de projeto de lei “prevendo a retirada gradativa do transporte por tração animal em nossa cidade” (ibid, p. 03). Diante do que seria visto como omissão política do Município, a promotoria justificou a necessidade de judicializar a questão através da ação civil pública, cujo intuito seria: coibir a conduta lesiva do requerido (Município de Natal) e garantir o direito de cidadania ambiental de todos os cidadãos natalenses prejudicados pelos maus-tratos aos equídeos e demais transtornos ambientais e urbanísticos em decorrência da 136 O representante dos catadores declarou: “não conheço a atividade de todos os carroceiros [...] o que eu conheço são os companheiros que vieram lá do lixão de Cidade Nova e foram pra rua porque não encontram outro tipo de atividade. Dentre esses têm aproximadamente 300 companheiros catadores que dependem dessa atividade que tem esse veículo de tração animal para sua sobrevivência”. 137 Essas presenças são descritas tendo por base a escuta do áudio da audiência, mas são destacadas outras presenças na página de notícias do Ministério Público: representantes da Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana (SEMOB), da Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (SEMSUR), da Procuradoria Geral do Município. Disponível em: , acesso em novembro de 2014. 143 circulação ilegal e ilegítima dos carroceiros pelas vias urbanas em nossa cidade. (idem, p.03-04, grifos meus) A elaboração da ACP foi embasada no Código Sanitário de Natal138, citado também na posterior elaboração da PMRVTA, que já proibia desde o ano de 1999 a “criação e manutenção” de animais “ungulados”139 em área urbana. Além do Código, a ACP também se apoia, dentre várias outras legislações, na Constituição Federal, para cobrar da Prefeitura a proteção da fauna contra “crueldades com os animais”, e na lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, observando: A atual situação de maus-tratos a que são submetidos os equídeos em nossa cidade, a degradação urbanística provocada pelo trânsito de carroças, veículo eminentemente rural, a existência de lixões em vários pontos de nossa capital em decorrência das atividades dos carroceiros e a possibilidade da transmissão do mormo para os seres humanos por esse trânsito indevido de equídeos nas nossas ruas constituem poluição nos exatos termos da Lei 6938/81 (idem, p. 06) Entre 2012 e 2013, mais duas audiências públicas foram realizadas (veja Apêndice C). Até que, em 1º de agosto de 2013, o Ministério Público do Estado do RN e o Município de Natal “firmaram Termo de Compromisso pelo qual o Município assumiu formalmente uma série de obrigações para disciplinar o tráfego de carroças nas ruas de Natal, entre as quais se destaca a retirada definitiva”140. Após a assinatura do termo, o cenário de discussão pareceu se acalmar. Seria alegado que os agentes municipais se focavam na própria construção dos termos da PMRVTA. Além disso, o Município declarou estar se preparando para encaminhar o cadastramento dos carroceiros através da SEMTAS. Contudo, embora não possamos destacar algum posicionamento da prefeitura nesse período, tivemos conhecimento de um ato organizado pelos carroceiros em 30 de abril de 2015, quando saíram da sede de sua Associação em direção ao prédio do Ministério Público. Segundo a imprensa, o ato contou com aproximadamente 50 pessoas, o que foi confirmado por um articulador do evento, que passaria a assumir uma das representações dos carroceiros nas audiências seguintes. 138 Composto pelas leis nº 5132, de 29 de setembro de 1999 e nº 5118, de 22 de julho de 1999 139 Animais ungulados são aqueles que possuem casco. 140 Este acordo foi homologado no dia 27 de setembro de 2013 por juizado federal, estabelecendo a proibição definitiva do tráfego de veículos de tração animal na capital no prazo de cinco anos contados a partir da data da sentença ainda do juiz Luiz Alberto. Disponível em: http://www.tjrn.jus.br/index.php/comunicacao/noticias/ 4199-prefeitura-tem-cinco-anos-para-retirar-definitivamente-carrocas-das-ruas-de-natal>, acesso em novembro de 2015. 144 Após cinco anos do despontar político da questão, houve mais uma audiência pública, em 17 de junho de 2015, na Câmara Municipal de Natal, convocada para discutir, dentre outras questões relacionadas aos animais (como a castração de cães e gatos), a situação dos carroceiros em Natal. Estava à frente dessa audiência a Frente Parlamentar em Defesa dos Animais, presidida pelo vereador Sandro Pimentel (PSOL), que coordenou a sessão e convidou para compor a mesa: Marcio Luiz Diógenes, representante da Promotoria de Justiça e Defesa do Meio Ambiente, em substituição a Rossana Sudário; e representante dos carroceiros. Representando os setores de fiscalização e controle da Prefeitura, foram convidados: Úrsula Priscila da Silva, gerente do Centro de Controle de Zoonoses da Secretaria Municipal de Saúde; Antonio Falcão, chefe do Setor de Remoção e Apreensão de Animais da Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (SEMSUR) e Leonardo Almeida, chefe do Setor de Fiscalização da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo (SEMURB). Essa audiência não tinha como finalidade apresentar e discutir a política que prevê a retirada das carroças, mas ela pareceu atender, de modo específico, muito mais a uma proposta de política municipal voltada aos animais, fato esse que se relaciona a situações igualmente vividas em cidades brasileiras. Nesse sentido, foi convidado o vereador Rodrigo Vidal (PSB)141, que tinha assumido a Secretaria Executiva dos Direitos dos Animais (SEDA) de Recife, para apresentar o caso desta cidade. Vidal discorreu sobre a política instituída na capital pernambucana em relação à proibição da circulação de carroças. Diferentemente da proposta de Natal, que ainda não havia sido apresentada aos carroceiros, a proibição em Recife foi instituída de forma gradativa, pois os carroceiros também estavam sendo cadastrados a fim de regulamentar sua atividade, mas proibindo-se, segundo disse, o surgimento de novos carroceiros: Não surgem novos carroceiros e aos carroceiros que já exercem a atividade: regulamentar, colocar placa, faixa, microchipagem no cavalo, fazer os exames para poder exercer aquela atividade. Só eles! Não vai poder transferir pra o filho, nem pra tia, nem pra ninguém! E nesse processo a gente vai fazer também a inclusão de novas opções de profissão, novas opções de veículos motorizados: os cavalos de lata ou elétricos ou a diesel, gasolina. Para os que disserem ‘não, eu quero ser carroceiro até o resto da minha vida’, a gente vai deixar. Em respeito à tradição do carroceiro. 141 À época compunha o quadro do PDT. 145 Após sua fala, Vidal receberia vários aplausos, chegando a afirmar que “essas palmas aí são dos carroceiros aqui presentes, essa que é a ideia”. Embora eu não tivesse ido na audiência, a essa altura eu já estava “em campo”, frequentando a praça, especialmente. Ali, nenhum dos carroceiros sabia desta audiência e, por isso, não pude comparecer, apesar de depois ter conseguido o vídeo da sessão, através da TV Câmara, responsável pelas gravações. Contudo, no dia seguinte, em 18 de junho, encontrei com Vavá na praça, que me contou ter participado do evento, demonstrando certo contentamento sobre o que tinha sido apresentado pelo vereador pernambucano. Na interpretação de Vavá, ele iria poder continuar com suas atividades como carroceiro, o que demonstra um mal-entendido: o modelo de Recife não seria o mesmo a ser implantado em Natal. Essa impressão equivocada me pareceu ter sido aceita e compartilhada entre os demais carroceiros e seus representantes. Foi isto que Santos, por exemplo, também demonstrou, quando declarou em outra audiência posterior: O companheiro Sandro (Pimentel, vereador de Natal) falou lá na Audiência Pública que ele ficou super feliz, também fiquei Sandro super feliz com a apresentação que Rodrigo Vidal trouxe para que fosse copiado aqui em Natal, mas fiquei triste porque no dia seguinte temos uma reunião no Ministério Público e foi categoricamente dito que queria acabar com a carroça, com os trabalhadores de carroça, acabar, de maneira foi dito isso à mídia. Nessa fala, Santos faz referência à audiência do dia 18 de junho na sede das Promotorias de Justiça de Natal, por convocação da 28ª Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente. Como Vavá me alertara pela manhã que a audiência seria realizada na parte da tarde, resolvi estar presente e passei a comparecer em outros eventos do mesmo caráter que se seguiram. Compondo a mesa, estava a promotora Rossana Sudário, que coordenou a reunião; além da procuradora do Município, Cássia Bulhões; e Antonio Falcão, da SEMSUR. Em particular, destaco a participação na plateia de muitas protetoras dos animais, inclusive uma conhecida jornalista de Natal. Por parte dos carroceiros, estavam Ednaldo, representante dos carroceiros de uma comunidade na Zona Sul, e Joaquim, além de Santos como representante da Associação dos carroceiros de Natal. Na audiência, foram apresentados os encaminhamentos das autoridades municipais para a efetivação da retirada das carroças e, de forma sucinta, alguns pontos da Política Municipal de Retirada de Veículos de Tração Animal (PMRVTA). Assim, os carroceiros puderam constatar o equívoco que tiveram na audiência anterior, o que viria a marcar de forma ainda mais intensa o conflito entre os agentes. 146 4.1 Etnografando uma audiência pública Mais uma audiência pública foi realizada, no dia 24 de junho de 2015, no Centro Municipal de Referência em Educação Aluízio Alves (CEMURE), na Zona Oeste da cidade, convocada pela Prefeitura de Natal e dirigindo-se especialmente aos carroceiros. De todas as audiências que participei, essa foi, sem dúvida, a que tinha maior número de carroceiros presentes. À luz de uma abordagem etnográfica, pretendo discutir em detalhes como ela ocorreu, inclusive me posicionando no evento. Apoio-me, para tanto, em pesquisas antropológicas que etnografaram lutas políticas urbanas. Um trabalho instigante foi o de Carlos Nelson Ferreira dos Santos (1981) que deteve-se no caso de algumas comunidades populares que sofreram o impacto de projetos de planejamento urbano na cidade do Rio de Janeiro. Foi importante considerar o estudo de José Sérgio Leite Lopes et al (2004) que analisaram uma audiência pública para o licenciamento de uma usina nuclear em Angra dos Reis. Além disso, observou-se a audiência como uma situação social específica, que merecia cuidado especial na apresentação do evento, seguindo a proposta de Gluckman (2010). Nessa audiência, logo quando cheguei, percebi que estavam algumas pessoas, em torno de oito a dez, sendo homens, mulheres e crianças, encostadas na parede da unidade, mas mais afastadas da portaria. Estacionadas à frente delas, havia duas carroças. Ao mesmo momento que entrei no CEMURE, adentrou uma equipe de um canal de TV, sendo um cinegrafista e uma repórter. Chegamos ao auditório mas vimos que estava ainda cedo, apenas um homem, representante de uma secretaria da prefeitura, estava no espaço. Observando o saguão do auditório, notei que assistentes sociais da SEMTAS conversavam, formando um grupo só de mulheres. Em outro canto, estava um homem que reconheceria como membro de um movimento comunitário da Zona Oeste. Ao seu lado, uma mochila e duas faixas que me chamaram atenção. Enquanto aguardava no auditório, percebi que um dos primeiros a chegar foi o vereador Sandro Pimentel (PSOL). Com o passar do tempo, foram entrando representantes das secretarias municipais. Como plano de fundo, era exibido um vídeo dos benefícios da construção do CEMURE realizada pela prefeitura para a população. Após mais gente entrar no recinto, um fato chamou a atenção de todos os presentes, que voltaram os olhos para a entrada do auditório: vários carroceiros e familiares, em torno de 147 40 a 50 pessoas entraram na sala com bastante alarde, conversando entre si. Além deles, chegaram mais funcionárias da SEMTAS. No meu ponto de vista, essa entrada foi estratégica a fim de demonstrar força e união. Sentaram-se, porém, espalhados por todo o lugar. A grande presença de carroceiros destoava do que aconteceu na audiência anterior, quando era perceptível sua pouca participação. Outros carroceiros continuaram a entrar no auditório, formando, em sua grande maioria, grupos de três a cinco homens, embora seus familiares também, mulheres e crianças. Esse fluxo de carroceiros perdurou por um bom tempo. Alguns minutos depois disso, chegava, em contraste, a promotora Rossana Sudário, que estava acompanhada por quatro seguranças, que também se sentaram dispersos no auditório. A promotora se dirigiu de imediato às primeiras cadeiras. Também entraram minutos depois, dois procuradores do Município, Jonny Costa e Cássia Bulhões. Enquanto isso duas equipes de televisão iniciaram seus trabalhos, entrevistando algumas pessoas. Em certo momento, chamou minha atenção quando um representante dos carroceiros também entrou, carregando as faixas que eu tinha antes visto e distribuiu para homens nas laterais do auditório. Se tomarmos a audiência como um todo, ela se desenrolou em cinco sessões: a primeira com intervenção de nove a dez minutos de cada membro da mesa de abertura. Quando a mesa foi composta, encontravam-se presentes os agentes cruciais para se entender a formulação da PMRVTA: Ministério Público, Prefeitura, Câmara dos Vereadores e carroceiros142. Após as devidas apresentações, o procurador geral do Município, Jonny Costa, iniciou a fala da mesa. Nesse exato momento, as duas faixas trazidas pelos carroceiros foram levantadas. Atrás de mim estava uma delas com a seguinte frase “Os carroceiros pedem justiça”, enquanto na outra estava escrito “Nós carroceiros somos trabalhadores. Não somos corruptos”. Mais uma vez os olhares se voltam aos carroceiros e instala-se um breve burburinho entre os presentes. Da mesa, os representantes das agências convidadas procuravam ignorar a situação; exceto o dos carroceiros que mantinha-se em uma postura afirmativa. O procurador Jonny Costa interrompeu por pouco tempo sua fala para retomá-la, evidenciando a reação que as faixas lhe provocaram. Elas ficariam levantadas até que todos os representantes que compunham a mesa se manifestassem. 142 Ainda compôs a mesa o representante da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Rio Grande do Norte (FECOMERCIO), cuja participação nos debates da PMRVTA só ocorreu nesta audiência. Sua presença provavelmente buscava representar a possibilidade aos carroceiros do vínculo empregatício. 148 Em seguida, foi a vez da apresentação dos representantes dos órgãos municipais da SEMURB, URBANA e SEMTAS. Considerando suas respectivas áreas de saber especializado e técnico, cada um fez uso de apresentação em Power Point, projetando especialmente imagens. As duas primeiras secretarias enfocaram mais nas denúncias relacionadas às atividades dos carroceiros, seguindo uma abordagem mais pedagógica. O representante da SEMURB, por exemplo, destacava a importância da “sensibilização” e “conscientização” para, a partir disso, começar a discorrer sobre o que seria um comportamento ético, pontuando “eu preciso fazer o correto independente de ser fiscalizado”, mas ponderando, logo em seguida: “lógico que existe a fiscalização também, tá?”. Já a agente da SEMTAS explicaria os processos do cadastramento dos carroceiros. Em um terceiro momento, Cássia Bulhões, a procuradora do Município, apresentou mais longamente a minuta da Política Municipal de Retirada dos Veículos de Tração Animal (PMRVTA) mostrando o texto do documento. Assim, a proposta de Política seria apresentada publicamente de forma mais detalhada, em comparação com a audiência anterior, realizada no dia 18 de junho do mesmo ano, contemplando todos os capítulos do documento. Acontece que esse documento sofreria mais mudanças, que seriam apresentadas em outra audiência realizada no ano seguinte, em 2016. Contudo, a principal linha de ação do Município permaneceria: direcionar os carroceiros a assumirem novos postos de trabalho, promovendo a profissionalização deles através de cursos. No quarto bloco, abriu-se o debate à plateia. Cada intervenção deveria ocorrer em apenas um minuto, tempo alegado para permitir a participação de um maior número de pessoas. Assim, esse pequeno espaço para o público, diga-se majoritariamente composto de carroceiros, refletia, de fato, as relações concretas desiguais entre os segmentos. Contudo, alguns carroceiros foram especialmente incisivos na crítica ao pequeno tempo de intervenção, queixando-se da tremenda desigualdade que ali ocorria. De algum modo, resistindo a esta restrição, vários deles extrapolaram o tempo estipulado. Entre aqueles que se manifestavam, fortes discursos emocionais imperavam, que ainda se refletiam no tom de voz e na postura ao se expressar. Entre os carroceiros, muitos demonstravam uma preocupação clara com o futuro, com o que entendiam ser o interesse dos demais agentes ali presentes em “acabar” com eles. Um chegou mesmo a dizer “é fácil chegar e esmagar a gente”. Assim, foram bastante recorrentes falas como: “vou viver de quê?”. Outros ainda comentariam a Política a partir da sua situação particular: “tenho 55 anos, quem 149 é que vai dar emprego a mim que sou da favela?” e outro “depois que a lei estiver pronta, o que é que pode acontecer? Se não der certo o projeto da Prefeitura e se eu voltar pra minha carroça, como é que fica minha situação?”. Desse modo, alguns carroceiros tentaram sensibilizar, especialmente os representantes do poder público, implorando “consciência”. Um deles de forma mais enfática afirmou: “eu só peço isso: pensem primeiro. Não faça só fundo, da vontade, do desejo de mudar”. Foi nessa direção que os carroceiros acabaram focando suas falas na busca das garantias, que, em um primeiro momento, relacionava-se à busca por um “emprego permanente”143. Mas esse discurso emocionado ainda apareceu com uma protetora – a propósito segmento de presença bastante tímida nessa audiência, contando apenas com essa fala. A protetora chegou a elevar bastante sua voz pela defesa dos animais, aqueles que ela dizia representar. Acusou os carroceiros de serem “egoístas” por só pensarem em suas próprias vidas, esquecendo da situação dos animais. Dessa forma, depois ela se mostraria muito irritada pelas cobranças das garantias que eram feitas pelos carroceiros: “garantia, essa palavra está me incomodando muito desde o início de tudo isso. Garantia? Garantia não existe nenhuma!” E completou: “É só confiar e tentar se qualificar e acreditar em vocês, que vocês vão ser capazes de progredir, de fazer lucros”. Nesse sentido, a promotora Rossana Sudário que foi outra a negar a garantia de forma enfática, defendendo que: O que é que nós podemos fazer? Nós podemos dar o nosso melhor. Nós podemos fazer o nosso trabalho. Trabalho é uma coisa que é mantida se nós fizermos esse trabalho com garra, com força. Tem muita gente que hoje está trabalhando e pode ser dispensado por que não está trabalhando direito. Assim, as garantias acabavam por ser transferidas aos próprios carroceiros, o que foi evidenciado também na fala da representante do Município, Cássia Bulhões: “obviamente, que a manutenção de cada um no mercado de trabalho vai depender do desempenho pessoal”. Além disso, apresentou-se também um impasse, se realmente os carroceiros poderiam ter garantia, já que era alegado que não existia previsão de aposentadoria: “morre amanhã, a sua 143 Contudo, entendemos como a garantia é mais que isso. É uma noção que está ligada de modo mais profundo à própria manutenção familiar, é uma necessidade de segurança em relação ao sustento que eles obtêm com o uso das carroças, possibilitando, da mesma forma que aparece em Neves ao tratar dos camponeses: “uma “autonomia relativa, que, em geral, é qualificada pela contraposição a formas abusivas de exploração e à instabilidade na posição de trabalhador” (NEVES, 2008, p. 304). 150 esposa vai ter garantia de quê? Da carroça?”, diria o vereador Sandro Pimentel. Segundo ele, a Prefeitura teria responsabilidade de resolver esse problema. Até mesmo um guarda ambiental chegou a se posicionar, chamando minha atenção por estar fardado e armado. Ele demonstrou grande irritação: “não sei por que alguém está questionando se vai fazer isso, se vai fazer aquilo”. Segundo ele, as autoridades públicas presentes estavam propondo mudança na qualidade de vida dos carroceiros, pois era uma “oportunidade de evolução que a vida oferece, mas os senhores continuam querendo somente aquilo, achando que só pode ter aquilo. Você pode mais, foi lançado o desafio”. A própria promotora Rossana Sudário falou nesse sentido “Uma coisa que nunca muda é que tudo muda, mas infelizmente a gente tem esse... [...] tem determinada situação que a gente quer sempre viver daquela forma, não quer mudar” Dessa forma, víamos, portanto, um conflito representado pelo antagonismo entre duas perspectivas de mundo: mudança versus garantia. Ainda haveria certas provocações de carroceiros, mas também de líderes comunitários e de movimentos sociais que ali participavam. Desdenhavam da proposta do “emprego” da Prefeitura, destacando o grande ceticismo com sua efetivação e com o tipo de ocupação a ser indicada. Mas ainda, muitas vezes, dirigiram-se especialmente à promotoria do meio ambiente, entendendo-a como a autora do processo e que, portanto, tinha o dever moral de responder pelo futuro dos carroceiros. Ela, em uma de suas respostas, demorara mais que o tempo previsto, sendo cobrada pela plateia por isso. Dessa maneira, um clima de rivalidade e tensão se efetivou especialmente nessa etapa de participação da plateia: vaias e aplausos estavam em disputa, permeadas por gritos e as mais variadas manifestações. Quase nenhuma fala passara sem essas intervenções. Esse clima tentava ser amornado com algumas falas de “construção coletiva” em prol do “bem-estar da sociedade”, especialmente no último momento da sessão, quando, por fim, os representantes dos segmentos utilizaram de mais dois a cinco minutos para fazerem as considerações finais. Apenas a fala do representante dos carroceiros destoava nesse momento. Ele não assumia, nesse momento, esse discurso “de harmonia”, aproveitou seu momento para destacar a ineficiência e falácia do Município, discorrendo especialmente sobre a situação da limpeza pública em Natal. Comentava sobre acordos que haviam sido realizados com os carroceiros mas não cumpridos, como na criação dos eco-pontos, sobre os quais retomaremos mais à frente. Encerrava-se, assim, a sessão de pouco mais de três horas de duração. 151 Discutindo as audiências públicas, Leite Lopes et al (2004) tecem considerações sobre algumas perspectivas em torno desses eventos. Assim, mesmo considerando as audiências como “marcos históricos” dos processos democráticos, destacam como elas não deixam de estar marcadas pelas desigualdades que se mostram presentes nas formas de participação. Portanto, evidenciava-se, nas audiências para a construção da PMRVTA, uma assimetria social através da própria comunicação, inclusive pela acentuada desigualdade de fala, não apenas no quesito do tempo, mas ainda quanto àqueles que merecem ou não ser ouvidos. Ou seja, os agentes do poder público e especialistas, em especial, usufruem de posição institucional e capital cultural para falar com a validade não permitida aos carroceiros. Dando destaque à participação de um corpo técnico que busca “conscientizar” a plateia, vale então resgatar Souza Lima (2002, p. 11) que aponta como essas intervenções de especialistas, portadores de “certos saberes que se cristalizam em torno da administração”, acabam se configurando como um dos importantes aspectos da formação do Estado. A realização da audiência cujo foco central era a discussão de uma política pública evidenciava a atuação de certa administração, marcada por crença144 e materialidade145, que inclui, dentre outros, o jogo político partidário, o Direito e mesmo as ONGs (Teixeira e Souza Lima, 2010). Nesse sentido, destaca-se um Estado no exercício de seu poder tutelar, sobre o qual Souza Lima busca descrever “um modo específico de estatização de certos poderes incidentes sobre o espaço através do controle e da alocação diferencial e hierarquizadas de populações para as quais se criam estatutos diferenciados e discricionários nos planos jurídicos e/ou administrativos” (2002, p.13-14). Desse modo, através da audiência que presenciamos, pudemos observar a representação de um Estado “no sentido performático e figurativo da administração pública” (ibid, p.12) que atuava como o próprio tutor jurídico de uma população encarada por “vulnerável”, instituindo saberes específicos sobre ela. Assim, visualizamos propriamente um forte alinhamento dos setores e conhecimentos socialmente posicionados: judiciário, executivo, legislativo, imprensa, e parte de um saber científico que se articulam a construir verdades que acabam por reafirmar privilégios sociais, além de garantir total domínio no campo. Portanto, através desta política de retirada de carroças criam um espaço privilegiado para efetivar um processo maior de impedimento da circulação das próprias pessoas (os carroceiros) e, dessa forma, do próprio acesso à cidade. 144 “Logo como entramados de afetos e sentimentos” (SOUZA LIMA, 2013, p.12). 145 “Códigos, normas, e instituições da administração governamental” (SOUZA LIMA, 2013, p.12). 152 Também seguimos Simmel (1983) no entendimento que o conflito possui um aspecto positivo e integrador, como na forma de “preservar os limites”. Temos então a própria “integração real da classe dominante”, usando os termos de Bourdieu (2007), em oposição direta a um grupo que se vê diante da necessidade de articular uma organização tentando fazer frente às mudanças que lhes são impostas. Dessa forma, os carroceiros tentam demonstrar seu poder diante do que classificam ser luta, corporificando uma oposição que, afirma Simmel, “faz sentir que não somos completamente vítimas das circunstâncias” (1983, p. 127). Assumiam a posição de “interlocutores [...] privilegiados nos processos contemporâneos de permanente construção do Estado ao reivindicarem direitos e se organizarem por eles” (SOUZA LIMA, 2013, p.12). Contudo, o que se pode averiguar nas audiências é, muitas vezes, a desqualificação e a omissão diante dos posicionamentos dos carroceiros. O tipo de participação democrática a que se tenta aludir nas audiências é posto em cheque mais ainda quando destacamos a própria negociação restrita entre o Ministério Público e o Município de Natal, que culminou na assinatura do Termo de Compromisso, oficializando um acordo para retirar os veículos movidos à tração animal da cidade. Esse acordo entre as duas esferas demonstra claramente de que formas as decisões fundamentais são tomadas: sem a presença dos próprios carroceiros. Portanto, este espaço decisivo de negociações foi o que não pôde ser acessado pelos carroceiros de forma alguma, fazendo-nos refletir sobre quais são realmente as condições objetivas de possibilidade que os carroceiros têm para propor modificações de seu próprio interesse para a definição de uma política pública que os atinge diretamente. Foi como um dos representantes dos carroceiros comentaria, ao narrar como o modelo da cidade de Recife/PE teria agradado aos carroceiros, “mas o poder público não deu a mínima importância, porque o juiz já carimbou que quer tirar”. 4.2 O cadastramento Para a construção da PMRVTA, o cadastramento era um ponto de atenção maior por parte das autoridades municipais, especialmente na audiência realizada no CEMURE. Segundo a assistente social da SEMTAS que estava presente, os Centros de Referência em 153 Assistência Social (CRAS)146 seriam os locais de cadastramento, onde uma entrevista seria realizada com os carroceiros. Com o cadastro de “todos” os carroceiros em Natal, seria possível, segundo diziam, ter dados para “traçar o perfil socioprofissional dos condutores de veículo de tração animal e conhecer a realidade socioeconômica das famílias”. Pretendiam identificar os cursos de qualificação profissional que atendessem aos interesses dos carroceiros e, assim, em seguida promover a “reinserção” no mundo do trabalho, sem restringir ao emprego formal com carteira assinada. Também seria ali preenchido um prontuário a fim de promover o acompanhamento da família. Na ocasião também seria verificada a situação do carroceiro em relação ao Cadastro Único, mantido, então, pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS)147. Contudo, esse cadastramento não foi a primeira iniciativa para mapear os carroceiros na cidade. Soube de uma campanha anterior de cadastramento em 2003, relatado tanto por Ednaldo quanto pela diretora da URBANA. As fotos seguintes ilustram isso. Figura 21: Comprovante de cadastramento de carroceiro em 2003 Fonte: Arquivo Pessoal de Ednaldo, 2016. 146 Na audiência do CEMURE, a SEMTAS chegou a avisar também sobre a distribuição de um folder informativo sobre a pesquisa onde contém o endereço e telefones das unidades dos CRAS (Cf. Anexo B). 147 “é um instrumento que identifica e caracteriza as famílias de baixa renda, entendidas como aquelas que têm: renda mensal de até meio salário mínimo por pessoa; ou renda mensal total de até três salários mínimos. O Cadastro Único permite conhecer a realidade socioeconômica dessas famílias, trazendo informações de todo o núcleo familiar, das características do domicílio, das formas de acesso a serviços públicos essenciais e, também, dados de cada um dos componentes da família. O Governo Federal, por meio de um sistema informatizado, consolida os dados coletados no Cadastro Único. A partir daí, o poder público pode formular e implementar políticas específicas, que contribuem para a redução das vulnerabilidades sociais a que essas famílias estão expostas. O Cadastro Único é coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), devendo ser obrigatoriamente utilizado para seleção de beneficiários de programas sociais do Governo Federal, como o Bolsa Família”. Disponível em: , acesso em 06 de julho de 2015. 154 Segundo a servidora da URBANA, o órgão teria realizado um cadastramento “piloto”, que se iniciou justamente no bairro de Nova Descoberta, onde residia Ednaldo. Os carroceiros seriam identificados a partir dos pontos de depósito de resíduos. Mas ela chegou a afirmar que havia muita resistência por parte dos carroceiros: “depois de muita conversa, (os carroceiros) aceitaram participar”. A URBANA acabou interrompendo depois projeto. Figura 22: Carroceiros em Nova Descoberta organizados para realizar o cadastramento em 2003 Fonte: Arquivo pessoal de Ednaldo, 2016. Em 2010, houve outro cadastramento pela URBANA, que chegou a registrar 760 carroceiros, inclusive suas fichas compõem o material incluído na ACP. Moisés foi um dos carroceiros cadastrados na época, chegando a me mostrar, no ponto da Praça, um comprovante de seu cadastro, assim como outro carroceiro quando eu estive na Zona Oeste (Cf. Apêndice D). Protetoras ligadas às ONGs colaboraram do cadastramento e uma delas chegou a lembrar que, apenas nos bairros do Planalto e de Felipe Camarão, registraram 300 carroceiros148. 148 Um protetor dos animais tecia um relato, suas “primeiras impressões” sobre o cadastramento que colaborara em 2010. Segundo ele, a ação durou poucos dias: de 03 a 12 de novembro de 2010. Disponível em: 155 Figura 23: Cartaz de divulgação do cadastramento dos carroceiros em 2010. Fonte: Bichinhos Precisam de Lar. Disponível em: , acesso em: 09 de julho de 2016 Baseados nos dados do cadastramento foi definido um perfil social e se atestou, entre outros, a baixa escolaridade da grande maioria. Foi também a partir dele que se chegou à estimativa de 1500 a 2 mil carroceiros em atividade em Natal. Os dois cadastramentos foram realizados com o intuito declarado da URBANA de ter, por um lado, um perfil social e, por outro, de padronizar as carroças, pintando-as e emplacando-as149. Ou seja, pretendia-se, como melhor definiu Ednaldo: “todo mundo ficar certinho, legalizado”. Dessa forma, não é difícil perceber como esses cadastramentos são tentativas de um Estado em expandir seu controle sobre uma população que até hoje persiste desconhecida, até mesmo em termos quantitativos150, embora algumas noções tenham se delineado com o cadastramento de 2010. Portanto, o cadastramento que está sendo aplicado visando subsidiar a PMRVTA não atende , acesso em 09 de julho de 2016. 149 Pode ser que outras secretarias estivessem envolvidas nesse cadastramento e mesmo que outros tenham sido realizados. Por exemplo, uma protetora declarava ter sido voluntária em um cadastramento realizado pela SEMSUR por volta de 2011. 150 Uma representante de SEMTAS, na audiência realizada no dia 06 de abril de 2016, assume “a gente não sabe, de fato, quantos carroceiros nós temos em Natal”. 156 apenas à uma demanda de “incluir” os carroceiros; pois trata-se de uma técnica de governo: “gerir a população significa geri-la em profundidade, minuciosamente, no detalhe” (FOUCAULT, 2015, p. 428). Nesse sentido, Foucault mostra como os dados estatísticos servem fundamentalmente às práticas governamentais em que a família é tomada como um instrumento privilegiado para efetivar seus próprios efeitos. Corroborando com isso, alguns carroceiros confirmavam o preenchimento de um formulário e a realização de entrevista onde eram abordadas questões pessoais e da família. Algumas delas me foram relatadas por um carroceiro: “eu fiz o cadastro do CRAS e perguntam se já foi preso, se tem um envolvimento com bebidas, se fuma [...] se teve envolvimento com drogas”. Essas perguntas apontavam para um caráter enviesado do cadastramento, especialmente uma delas que chega a impressionar: “você tem inimigo?”. Entretanto, como uma fuga a esse controle, parte dos carroceiros mostram resistência à realização do cadastramento151 e/ou a negação de sua condição de carroceiro, quando questionados pelos assistentes sociais152, embora essa estratégia tenha sido justificada por alguns carroceiros como reflexo do desconhecimento do próprio processo. Nesse sentido, tanto a Promotora Rossana Sudário quanto a Procuradora Cássia Bulhões colocavam, que caso os carroceiros não se cadastrassem, eles não estariam isentos de consequências reais, uma vez que teriam suas carroças apreendidas. A Promotora chegou a afirmar que “se os senhores (carroceiros) não fizerem esses cadastros, a secretaria não vai saber que os senhores existem, se a Secretaria não sabe que os senhores existem, vai ser resolvido de qualquer forma”. Nesse aspecto, havia um contraste entre os carroceiros que não realizam o cadastramento pelo medo, pela negação e/ou desconfiança para com a PMRVTA, em uma tentativa assim de não se visibilizarem ao Estado, escapando do controle do governo; mas havia aqueles que enxergam um caminho pelo cadastramento, acordando que pode ser uma via de disputa, pois através da definição do quantitativo entendem que podem negociar. Nesse último grupo estão também, especialmente, os representantes dos carroceiros. Como a Prefeitura não dispunha de dados significativos, os representantes mostravam irritação pelo “descaso” do poder público, que não conseguia nem ao menos cadastrar os carroceiros. 151 Daniele, assistente social da SEMTAS, revelava, na audiência de 24 de junho de 2015, que o cadastramento estava sendo realizado desde abril do mesmo ano, mas que em maio houve o que chamou de “um estranhamento” dos condutores que não mais procuraram os CRAS. A partir de então a SEMTAS se lança em campanhas, procura carroceiros em seus pontos de trabalho e moradias a fim de conseguir cadastrá-los. 152 Segundo informou a assistente social Daniele também na audiência do dia 24 de junho de 2015. 157 Para convencer à realização do cadastramento, além da abordagem que ameaçava com uma possível apreensão, os agentes do poder público também pretendiam mostrar que o cadastramento seria “em benefício dos próprios carroceiros”, pois serviria para embasar uma política municipal de inclusão social, o que foi algumas vezes associado à possibilidade do recebimento de direitos e auxílios governamentais que não usufruíam por desconhecimento. Nesse sentido, pedia-se que o cadastramento fosse encarado como uma “oportunidade de mudança” e “não como uma punição”. Ao perceberem isso, os representantes dos carroceiros, provavelmente avaliando as consequências de burlar esse cadastramento, confirmavam, então, a sua realização e a divulgação da necessidade, momento em que também aceitavam o tom de cooperação e construção coletiva que os demais agentes se esforçavam em construir. Contudo, mais uma vez diante da falta da garantia, um deles se posicionaria marcando o poder de luta dos carroceiros. Respondendo diretamente à Promotora do Meio Ambiente, declarou: A senhora como promotora vai agir a lei, né isso? E a gente, como razão de trabalhador, vai agir nossas forças também [...] Nós vamos também nos confrontar, não tem problema nenhum, entendeu? Por que é aquela coisa, tem a lei, tem. Vamos trabalhar com a questão da lei: tanto vocês têm a lei da questão da defesa dos animais como a gente tem a lei da defesa do trabalho e a gente em momento algum vai procurar se amedrontar. Depois dessa apresentação sobre os processos que conduziram à atual minuta da PMRVTA, e do que objetiva esta lei, pretendemos agora contrapor as diferentes versões existentes entre os agentes do poder público, ativistas e aliados dos movimentos de proteção animal, e os carroceiros em torno da construção desta política. Nos conflitos e disputas mais publicamente aparentes, alguns pontos tiveram grande destaque: a mobilidade urbana, a destinação dos resíduos e o uso dos animais. Esses três aspectos eram declarados pelos agentes do poder público como as principais preocupações ambientais decorrentes do trabalho do carroceiro. Pretendo discutir os dois primeiros tópicos no presente capítulo, enquanto a questão dos animais será tratada no último desta dissertação, por estar mais profundamente relacionada a um campo de disputas políticas e morais com uma dimensão tanto emocional específica. 158 4.3 Discutindo a mobilidade urbana A questão do trânsito assumia também um papel importante para justificar a proibição da circulação das carroças em Natal, sendo muitas vezes destacada junto à defesa dos animais. Eram, assim, creditados à circulação de carroças e dos animais “inúmeros transtornos”, tais como impedir o “bom fluxo do trânsito” e causar acidentes. Sob estas considerações, havia a compreensão de que a carroça era um veículo característico da área rural, o que estava também, como discorremos, relacionado à defesa da saúde dos animais. No que competia à política de trânsito, o fundamental era, alegavam agentes do poder público, “que nossa cidade tenha um trânsito que flua de maneira adequada”. Em 2011, quando surgiu a proposta de uso das carroças elétricas veiculáveis (CEV), uma das protetoras ponderaria “um carrinho desse andando na cidade a 25 por hora... parou o trânsito”. A promotora do meio ambiente reiterava também a mesma preocupação, destacando a necessidade da substituição por CEVs ser avaliada pela Secretaria de Mobilidade Urbana do Município. Evidenciava-se a importância que o trânsito tinha para a discussão da política e não apenas o bem-estar animal. Buscar entender o conflito em torno do trânsito remete-nos a uma reflexão sobre os diferentes acessos e usos do espaço físico das cidades que são estabelecidos hierarquicamente, refletindo, desse modo as profundas diferenças sociais. Em um estudo sobre a circulação de ônibus e o sistema de transporte público urbano, Caiafa apresenta como os obstáculos e as dificuldades para a mobilidade na cidade “pode ser operadora de exclusão social e distribuição de poder” (2002, p. 22), mostrando que “no mundo capitalista” predomina a ênfase no transporte individual, que é a dependência do automóvel, como forma de “favorecer os mais ricos”. Essa perspectiva também foi apontada em Figueiro: para alguns carroceiros o desrespeito dos motoristas perpassa não só sua categoria, mas todos aqueles que circulam no espaço público, o que nos faz pensar na própria relação de poder que se encontra envolvida com a condição circular de carro, condição esta que qualifica o sujeito a ter mais “direitos” de circular no espaço urbano (basta pensar na extrema dificuldade de fazer os motoristas pararem na faixa de pedestre, o que nos leva a concluir que os motoristas acreditam possuir prioridade em relação aos demais transeuntes. (FIGUEIRO, 2011, p. 12). Assim, para além dos carroceiros, temos diversos outros sujeitos a disputarem o acesso e a circulação livre pela cidade. Por exemplo, Araújo, que estudou a rotina repleta de 159 obstáculos vivenciada por pessoas com deficiência e cadeirantes em Natal, defenderia “por vezes, negamos seu acesso à cidade e, com isso, ignoramos sua existência social” (2012, p. 135). Podemos, portanto, perceber sutis aproximações com as vivências dos carroceiros (mas também a de ciclistas, por exemplo), pois as disputas de circulação no espaço urbano não são apenas físicas, mas também sociais. Nesse sentido, alguns carroceiros chegavam a realçar os dilemas referentes às diferenças de classe que marcam a disputa em torno da circulação e acesso à cidade, tal como Santos: “o problema é o seguinte: antes os carroceiros tinham a sua vida, tinham a liberdade de caminhar nas ruas, não tem mais por que Natal está lotada de veículos e está incomodando quem tem seus carros importados”. Se, por um lado, do ponto de vista dos motoristas, as carroças dificultam o trânsito e podem causar acidentes; do outro, temos os carroceiros que, embora se mantivessem tranquilos no trânsito, têm que lidar com a disputa com os carros pelo espaço das ruas: “o trânsito está péssimo, porque ele (o motorista) vê uma carroça dessa quer botar por cima”. Assim, é frequente o relato de agressões sofridas no trânsito: "ficam buzinando”, “xingam”, “soltam uma piada”. Um carroceiro faria um relato nesse sentido, marcando a disputa com os motoristas: muita gente tem carro mas não respeita a gente. Por que, um dia desses, vinha eu e minha esposa o carro passou, a gente vinha normal na nossa mão, o carro vinha na mão dele, entrou na frente do meu animal [...] Ele não deu sinal e entrou no meio [...] então queremos respeito também como vocês também querem respeito com a gente. Para vários carroceiros, essa disputa produz um histórico e uma memória física de acidentes através das marcas, inchaços e remendos no próprio corpo. Certa vez, Reginaldo contou como um carro bateu na traseira de sua carroça, levando ele e o animal ao chão. Passou, então, a carregar na perna uma placa de platina por causa do acidente. Leandro foi outro a relatar um grave acidente. Segundo ele, um carro parou ao lado de sua carroça e, em seguida, uma porta bruscamente seria aberta. Esse movimento assustou seu animal que saiu correndo agitado. Leandro caiu ao chão, segurando as rédeas, sendo arrastado pela carroça desenfreada. Precisou de muita força para se recompor e conseguir parar o animal, o que causou a quebra de um braço. Se em Recife, a proposta adotada para a continuidade da atividade de quem já é carroceiro, apresentada pelo Secretário Rodrigo Vidal na audiência de 17 de junho de 2015, 160 foi a de restrição de circulação em determinadas ruas, alguns carroceiros interlocutores de Natal demonstravam que já entendiam essa necessidade tanto pela compreensão de que “tem canto em que a carroça atrapalha” como também para garantir sua própria segurança. Alguns deles me comentaram a grande dificuldade de transitar em certas áreas de bairros como Alecrim ao menos no período diurno. Garantiam ainda a necessidade de seguir as regras de trânsito para diminuir o risco de acidente. Ao andar preferencialmente na faixa da direita, um deles diria que “estar na carroça é a mesma coisa de estar no carro”. Era assim que a acusação da embriaguez na condução das carroças, muito evidenciada nas discussões da política, sofria repreendas entre os próprios carroceiros. Essa necessidade de cuidados no trânsito, além de contemplar a saúde dos carroceiros e de seus animais, ainda era marcada por uma preocupação financeira, assim como Joaquim explicou: Quando a gente transportava mercadoria das feiras livres pra outra feira em carroça, que hoje já mudou, já é mais carro, havia essa necessidade da gente fazer esse translado e naquele tempo a gente não tinha tanto medo de bater em carro. Hoje, a gente tem medo de bater nos carros porque a gente sabe que um companheiro que está aqui, que tem o poder aquisitivo melhorzinho, só uma lanterna do carro dele custa 3 mil reais, enquanto o nosso animal custa 300, 500. Aí quer dizer, a gente que tem responsabilidade, que sobrevive realmente da carroça. A gente tem medo até de bater no carro de vocês, do animal se assustar como aconteceu diversas vezes. Hoje não tem espaço pra gente trabalhar nos centros. Assim, além da diferença econômica e do custo financeiro que precisava ser calculado em relação a possíveis acidentes, Joaquim mostrava também através dessa fala como o acesso dos carroceiros no espaço da cidade foi sendo limitado aos poucos a partir do crescimento urbano de Natal e o aumento da frota de carros, acirrando a disputa pela cidade. Nesse sentido, cheguei a presenciar uma situação parecida no ponto dos carroceiros da praça, quando o local era, por vezes, tomado por veículos como local de estacionamento. Apesar disso, um carroceiro defendia que havia pouca incidência de acidentes envolvendo carroças no trânsito, comentando que “é difícil ver uma carroça (em acidentes), a gente vê mais carro”. O debate sobre o trânsito agregava outra denúncia em torno do uso das carroças: a presença de menores. Além do trabalho infantil, era salientada a insegurança de suas presenças nas carroças, que poderiam trazer consequências tanto para o animal, quanto para 161 os motoristas, que dividem o espaço do trânsito153. Assim, uma professora universitária da área do Direito, em audiência em 2015, chegou a pontuar sobre os menores: Ficam muito nervosos... Meninos de 16, 15 anos, quando estão na carroça e os carrões, que não têm paciência, buzinam, o que é que eles fazem? Açoitam o animal. Ver um carro grande buzinando para sair do caminho, quem mais sofre é o animal porque o menino é... tem medo que o dono do carro saia, vá discutir com ele, vá puxar, vá bater... então bate no animal. Obviamente, não se desconsidera a ocorrência de trabalho infantil nesses contextos, o que, por sua vez, se relaciona à compreensão das relações familiares fundadas “num código de lealdades e de obrigações mútuas” (SARTI, 1994, p. 60). Porém, é preciso retomar a compreensão de que a carroça não é somente um instrumento de trabalho – um veículo de carga, como consta no Código Brasileiro de Trânsito – mas é também um veículo de transporte, assim como aparece na fala de uma carroceira em audiência quando argumentava sobre os cuidados que dedicavam aos animais: não é só pra trabalhar. O animal (e a carroça) da gente serve também para prestar socorro, para levar ao hospital. Por que a gente, carroceiro, não tem condições de pagar um táxi, não tem condições de levar um filho da gente, colocar dentro de um carro pra levar pra o hospital. Dessa forma, expunha-se a necessidade do transporte da família através da carroça. Portanto, é entendendo a carroça também como meio de locomoção, e não apenas de trabalho, que podemos compreender a presença de menores nelas. Mas a visão de uma protetora sobre a questão era a de que “a carroça é transporte apenas para o trabalho. Ele não utiliza como transporte para fazer compra”. De fato, como vimos no segundo capítulo, há aqueles carroceiros que declaram utilizar a carroça mais como forma de trabalho, embora alguns deles, em algum momento, conduzissem a família na carroça. Foi por isso que a questão da presença de menores gerava divisão entre os carroceiros. Borges, por exemplo, afirmaria que achava “imoral” uma criança na carroça, mesmo considerando apenas o deslocamento, a lotação no veículo; outros já condenariam mais a condução pelas crianças, enquanto, como apontamos, em alguns contextos essa presença fosse mais visível. Santos, mais próximo a essa realidade, tentava justificar o trabalho e condução realizada pelos jovens, alegando que 153 A Procuradora Cássia Bulhões afirmaria, em audiência, que essa situação de menores na condução de carroças “gera muita insegurança tanto ao próprio condutor da carroça, como as pessoas que circulam”. 162 era através das carroças que os jovens tinham uma “oportunidade” que o poder público lhes negava, complementando: “a nossa educação é de má qualidade”. Contudo, ele me dizia que quando avistava especialmente crianças nas carroças, alertava os carroceiros: “camarada, eu sei que você não tem carro, que já traz essa criança para não deixar em casa, mas evite de andar com essas crianças porque querem um motivo para tomar essas carroças”. 4.4 Sobre o despejo (irregular) de resíduos Mais um ponto que se destacava nas discussões sobre a PMRVTA era a disposição irregular de resíduos, que era associada muitas vezes à ação de carroceiros, que “sujam a cidade”. Dessa forma, aparecia, por exemplo, já na ação civil pública: Além dos maus-tratos aos animais e prejuízos ao trânsito em nossa cidade, os carroceiros são responsáveis por criar vários lixões em diversos bairros. (MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RN, 2012, p. 3, grifos meus) Embora algumas vezes fosse ponderado que os focos de lixo não eram exclusividade das ações de carroceiros, como foi o caso da representante da URBANA, que ainda destacava uma disposição irregular de parte de moradores e mesmo de empresas, havia, entretanto, uma ênfase na responsabilidade dos carroceiros na criação, mas também na manutenção de “lixões”, o que perpassava as diversas falas nas audiências154. Um dos depoimentos que denunciavam os despejos inadequados foi o da própria promotora do meio ambiente, que chegou a ilustrar com um exemplo pessoal, pois a rua onde morava, segundo ela, estava “tomada metade por poda porque simplesmente os senhores carroceiros deixaram lá”, referindo-se ao local, em tom jocoso, como um “lixão de estimação”. Em contrapartida, o carroceiro Ednaldo lembrava que os “lixões de estimação” também eram parte da realidade de suas vidas e moradias, defendendo assim como muitos carroceiros, que a criação de grande parte desses ambientes era provocada por populares. Entretanto, carroceiros também admitiam a origem de “lixões” em decorrência do próprio 154 Aqui consideramos a atuação da imprensa evidenciando e difundindo uma relação entre o trabalho dos carroceiros e o surgimento de lixões. Nesse sentido, trazemos um exemplo pertinente que é o de uma entrevista da Promotora do Meio Ambiente, Rossana Sudário, a um canal de grande visibilidade local, quando afirma: “Eu agora, antes de vir para cá, eu passei por um grande lixão e esse lixão quem produz são os carroceiros”. Disponível em: , acesso em novembro de 2015. 163 trabalho, mas a manutenção deles devia-se, alegavam, à ausência do poder público em cumprir as responsabilidades assumidas. Assim, já em 2011, um representante dos carroceiros levantava a questão da pequena quantidade de eco-pontos – que são estruturas que visam receber até um metro cúbico de podação ou Resíduos da Construção Civil (RCC)155 – para atender as demandas de destinação de resíduos de toda Natal. De fato, estamos mesmo diante de número bem pequeno: existe atualmente apenas três eco-pontos para atender toda a cidade, localizados em Ponta Negra (Zona Sul), Viaduto do Baldo (Zona Leste) e Parque dos Coqueiros (Zona Norte). Por isso, Santos defenderia que é a Prefeitura que “não dá condições”, pois os poucos eco-pontos inviabilizavam o descarte correto pela “distância desproporcional” entre eles. Foi assim que em uma audiência questionou: “os culpados são os carroceiros? Ah, bem, e os gestores públicos são o quê?”. Ele se queixava que os carroceiros vinham sendo “enganados” em relação a propostas de ampliação dos eco-pontos desde a gestão anterior da prefeita Micarla de Souza (PV, 2009-2012)156. Nesse sentido, um dos carroceiros, que admitia o descarte em área considerada irregular pela URBANA, manifestou- se: “eu não estou fazendo nada de ilegal, e (se) estou (é) porque eu estou colocando no lugar, em uma via pública, mas não é porque eu queira colocar; é porque os órgãos públicos competentes não arranjaram o local correto pra gente colocar”. A insatisfação com a gestão dos resíduos sólidos era também compartilhada com as protetoras. Algumas alegavam que eram os valores mais baixos praticados pelos carroceiros que estimulavam a sua contratação, em contrapartida às outras alternativas mais onerosas, como o serviço da URBANA e o do disk-entulho157. Comentavam, sobretudo, da destinação de resíduos de poda e de RCC ao que os agentes da URBANA alegavam nem ser de sua competência tal destinação, conforme determina as legislações ambientais, justificando os eco-pontos como uma tentativa do Município em resolver os problemas sanitários da cidade diante do que, segundo a diretora do órgão, era a “falta de educação generalizada e respeito” da população. 155 A diretora da URBANA explicaria que, nos eco-pontos, há um gari que confere a entrega dos resíduos em até 1m³ como ainda confere a composição do descarte pois não pode receber nenhum material além daqueles para os quais as estruturas se destinam. 156 Porém, também encontrariam, na nova gestão da URBANA, uma promessa, realizada na audiência de 18 de junho de 2015, quanto à ampliação dessas estruturas. 157 Uma das protetoras, por exemplo, explicou que em contato com a URBANA foi informada de uma taxa de 80 reais para fazer um serviço de coleta que ela precisava, a partir disso concluía “estimula a gente a usar os carroceiros que paga R$20,00”. 164 É diante desse cenário conturbado que o trabalho de parte de carroceiros ganha espaço e consegue se realizar. Nesse sentido, é recorrente nas falas de carroceiros, tanto nas audiências como nos pontos que frequentei, o destaque dado aos seus serviços para a limpeza pública, embora sem que seu trabalho fosse reconhecido pela URBANA. Consideravam não apenas os valores mais baixos que cobravam, mas também as atividades que realizavam em locais de difícil acesso, destacando, inclusive, a coleta e limpeza em terrenos particulares e domicílios. Ednaldo chegou a mencionar uma estimativa aproximada de seis toneladas de lixo por dia, que eram coletados através do trabalho nas carroças, apenas na área em que ele atuava, um bairro de 156,67 hectares e de uma população residente estimada em 12.281 no ano de 2007, segundo dados da SEMURB158. Há, desse modo um contato e demanda frequente da população, o que eu pude acompanhar, por exemplo, no ponto da praça. Esse incentivo da população à manutenção das atividades dos carroceiros já é evidenciada na ACP: A população, que também não recebe educação ambiental do requerido, contrata os carroceiros para retirar o lixo de frente de suas casas e estes levam para a frente de outras casas muito próximas dali, perpetuando a sujeira na rua, que apenas muda de local. Nesse sentido, as denúncias lançadas aos carroceiros chegavam aos contratantes dos serviços, o que era visto como “co-responsabilidade”, especialmente pela URBANA, baseada nas legislações específicas. Chamando a atenção para a participação popular na contratação dos serviços de carroceiros, os agentes do órgão público explicavam, em audiência, que a pessoa que contrata um serviço não autorizado assume o risco de infração, sendo autuada legalmente, justificando a fiscalização: “Quem contratou é co-responsável. Realmente a responsabilidade não é só de carroceiro”. Apesar disso, entretanto, as denúncias enfatizavam a ação dos carroceiros, também por serem eles os alvos das discussões da PMRVTA. Muitas falas destacavam as situações em que o carroceiro “tira (o lixo) da porta de uma casa e joga em outra”. Dessa forma, uma diretora da URBANA comentava sobre a dificuldade que a entidade encara quanto ao serviço de limpeza pública: “as consequências (dos descartes irregulares) são sofridas por nós. Passamos o dia inteiro recolhendo lixo na cidade”. Apontava a realização de mapeamentos dos locais de descarte irregular, sem saber precisar o número, 158 Esses dados foram extraídos do documento “Natal: meu bairro, minha cidade”, de 2009. 165 embora afirmasse ser, no mínimo, mais de cem focos de lixo em Natal159. Então, desabafava “É desgastante tirar mais de cem carradas160 diárias de resíduos clandestinos”. Ao considerar a situação “caótica”, reafirmou, em outro momento: “a gente volta os olhos muito para carroceiro, mas não é só carroceiro que suja a cidade”. Na audiência de 2011, o representante da URBANA chegou a revelar o incômodo da entidade diante da ação de carroceiros: Eu sei que vocês pegam (os sacos de lixo) às vezes para rasgar e para retirar o material reciclável e deixar aquele outro resíduo no chão para depois a URBANA recolher e isso é uma cadeia que vai enchendo a paciência de todo mundo, e todo mundo fica com raiva, e no final a briga toda é isso161. Assim, a servidora da URBANA comentou, em entrevista, sobre as práticas de alguns carroceiros que catavam os materiais recicláveis e jogavam os orgânicos nas ruas. Ela garantia que “eles (carroceiros) sabem a hora que passa a coleta” e que “todos os dias acontece isso (despejarem os resíduos nas ruas)”. Vale a pena destacar um dos casos que a diretora declarou ser “gritante com presença massiva” da ação de carroceiros que fica localizado na avenida Amintas Barros. A diretora queixava-se que ali a situação era bastante complicada para a URBANA, já que precisavam retirar uma média de dez caixas coletoras, duas vezes por dia, para os resíduos domiciliares. Para ela, era uma das situações mais graves da cidade, apelidando a área de “rua do lixo”, sendo esta inclusive retratada na ACP: 159 A diretora alegou que esses focos de lixo chegaram a um número impressionante de 700 locais, de 2011 para 2012, mas alegava “naquele período também o sistema de limpeza estava passando por problemas, mas de 2013 para cá esses pontos foram reduzidos”. 160 “Carrada”, explicava, sinaliza a lotação de uma unidade de coleta de resíduos, uma “carga” completa de material, seja de caçamba, de 6m³, ou de caixa estacionária, de 5m³, até mesmo de carroça, geralmente de 1m³. No caso, a fala da diretora se referia às caixas estacionárias. 161 Audiência realizada em 2011. 166 Figura 24: Carroceiros despejando resíduos no conhecido “lixão da Chesf” Fonte: MINISTÉRIO PÚBLICO, 2012, p. 23 Contudo, Santos explicou, na audiência da CEMURE, das razões que conduziram a ser este um local de grande despejo. Retomando a discussão da falta de eco-pontos, ele esclareceu que, ao assumir o Conselho Comunitário do bairro de Bom Pastor, detectou 27 focos de lixos. Em conversa com o diretor da URBANA, foi acertada a escolha dessa área por trás da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF) para destinação de lixo: “O lixão ficou naquele local porque foi um acordo que houve entre as lideranças, (entre) eu, como liderança, e a URBANA”. O descarte de resíduos no “lixão da CHESF” tinha sido, dessa forma, uma das alternativas encontradas junto ao próprio Município para reduzir a quantidade de focos de lixo no bairro. Isso mostra a complexa interação e coexistência do trabalho de carroceiros e das práticas de agências públicas da Prefeitura de Natal. Também quando eu visitei a Zona Oeste da cidade, passamos rapidamente por esta área por trás da CHESF e cheguei a observar carroceiros em meio às sacolas de lixo, dividindo o espaço com a coleta regularizada da URBANA. 167 Figura 25: Garis da limpeza urbana “dividindo” espaço com carroceiros no “lixão da Chesf” Fonte: Arquivo da pesquisadora Desse modo, Santos mostrava como tentou regularizar o trabalho dos carroceiros para a destinação dos resíduos, mesmo que, ainda assim, o local não fosse adequado aos padrões sanitários. Contudo, a diretora da URBANA frisava que regularização seria impossível: A URBANA não pode regularizar a coleta que eles fazem de resíduo porque é irregular. Eles não podem coletar esses resíduos orgânicos, eles não podem coletar resíduos de poda e RCC e descarregar em qualquer lugar. É uma atividade que a gente não tem como regularizar, salvo [...] os eco-pontos. Quando lembrei que os carroceiros tinham regularizado no passado suas atividades com a URBANA, ao serem contratados para a coleta em locais de difícil acesso, a diretora e sua colega de trabalho afirmaram que foi a dificuldade causada ao trânsito e a violência no uso dos animais que motivou, de fato, o fim do serviço162. Já em relação aos eco-pontos, caso em que poderia haver alguma regularização, ainda ponderou que essa situação enquadrava apenas os carroceiros que coletavam poucos resíduos, já que os eco-pontos não recebem quantidades acima de 1m³ por remetente163. Dessa forma, defendia que esta era a “única” forma da “atividade deles não estar nos prejudicando”. Nesse sentido, questionou a afirmação 162 Atualmente este serviço, nas ruas estreitas, é realizado por garis em carros de mão que despejam os materiais em caixas estacionárias; já nas ruas carroçáveis, utiliza-se de um trator e caçamba. 163 A diretora também considerava as situações em que os carroceiros não retiram pequenos volumes, quando ele pode tirar 05 carradas de resíduos, ou seja, cinco “viagens”, em sua carroça. Comentava assim que um volume desse já correspondia ao enchimento de uma caixa estacionária. Lembrava então a responsabilidade do gerador que deveria contratar, indicava, um serviço de caçamba. 168 dos carroceiros de estarem promovendo a limpeza da cidade: “como que faz a limpeza se está sujando?” Assim, ao contrário da ideia defendida e propagada pelos carroceiros, de que realizam um importante serviço de limpeza pública, preponderava, como já vimos comentando, uma noção de que esta forma de trabalho era um “desserviço” à cidade. A fim de comprovar essa noção, uma protetora na última audiência, realizada na Câmara de Vereadores, inclusive desqualificava a principal defesa dos carroceiros: “Nós temos um ponto de coleta (eco-ponto) em Ponta Negra que não funciona, os carroceiros não levam o lixo para esse ponto de coleta. Eles jogam nos lugares indevidos”. Apesar da URBANA e algumas protetoras reconhecerem que há outros agentes envolvidos nas causas que levam ao descarte irregular por parte dos carroceiros – os contratantes dos serviços e mesmo o próprio governo municipal – reforçava-se a visibilidade e culpabilização do trabalho dos carroceiros, encarado como “absolutamente degradador do meio ambiente”. Nesse sentido, é pertinente considerar como as “hierarquias sociais e étnicas desiguais são frequentemente reforçadas por campanhas discriminatórias para eliminar o lixo das cidades” (Colombijn e Rial, 2016, p.26) Entretanto, algumas pessoas, dentre elas protetoras dos animais e agentes do poder público, mostrando mais uma vez a heterogeneidade das manifestações, pareciam considerar a argumentação dos carroceiros e demonstravam uma preocupação com o fim dos serviços de coleta realizados por eles. Provavelmente para tentar “solucionar” o problema que a proibição das carroças poderia gerar à cidade, se uma grande quantidade de resíduos não fosse mais coletada, defendiam que a melhor solução seria “incluir” os carroceiros na coleta seletiva da cidade. Por exemplo, uma protetora dos animais, jornalista publicamente conhecida, chegou a defender: O problema dos carroceiros também envolve um problema ambiental muito grave que é o lixo. O lixo que é mal distribuído, mal jogado, mal acondicionado. Então, porque não uma parceria séria entre SEMURB, URBANA, carroceiros, pra qualificar essas pessoas? porque a coleta seletiva de lixo existe em Natal e de forma eficiente na Zona Sul e na Zona Leste. A coleta seletiva existe, alimenta e sustenta centenas de famílias então se isso fosse ampliado, isso poderia ser uma solução social e ambiental incluindo os carroceiros. Obviamente, também não chegamos a desconsiderar a percepção generalizante (e errônea) de que todos os carroceiros trabalham com lixo e, então, nada mais apropriado do que a reciclagem para eles. Aqui caberia lembrar de que não são todos os carroceiros que trabalham com coleta seletiva, apesar de poder haver uma flutuação entre os diferentes “tipos” 169 de carroceiros, como já destacamos no segundo capítulo. Mas o que se impõe a entender é se os carroceiros, mesmo os que já trabalham com coleta seletiva, irão se sentir “incluídos” nessa nova forma de trabalho. Essa questão será retomada a seguir, pois ela envolve não apenas a “solução” para a coleta de resíduos e supostamente para os carroceiros, mas também as dinâmicas sociais dessas pessoas, que estão relacionadas ao trato com seus animais. 170 CAPÍTULO V – EMOÇÕES, MORALIDADE E DIGNIDADE “Eles (carroceiros) têm horror a progresso. [...] Que se avance nesse projeto e nós vamos, sim, cada vez mais livrar Natal do século XVIII, do século XVII, não é?! Mas para isso vamos mudar uma cultura. Vamos mudar? Vamos sim, porque está errado, está equivocado, não é isso?!” - Carlos Eduardo, Prefeito de Natal, em reunião no dia 08 de dezembro de 2015. Como abordei no primeiro capítulo, o debate sobre o impedimento do uso das carroças está imersa na pretensão de modernidade que a cidade de Natal almeja, parte constituinte de seu processo de urbanização turística (LOPES JR, 1997). A mensagem da Prefeitura encaminhando a minuta da política de retirada dos veículos de tração animal à Câmara dos Vereadores é então emblemática. Ao passo que ponderava como “os animais protegidos pela presente proposição têm sido, historicamente, desde a sua domesticação, utilizados para o transporte de cargas”, prosseguia: “contudo, o atual estágio de evolução da sociedade, aliado à nova paisagem urbana, não podem conviver com a utilização de tais animais atrelados a veículos”. Na mesma direção, uma protetora também declarava a incompatibilidade entre o ser moderno e as carroças: “é a coisa mais sensata que aconteceu foi essa da retirada dos carroceiros. Isso não existe mais. Nós estamos na era da tecnologia e ainda se tem carroceiros”. Nesse sentido, atrelada às concepções modernistas e considerando o potencial turístico da cidade é que destacamos a confirmação de Natal enquanto uma das sedes para a realização de jogos da Copa do Mundo de 2014. Este evento foi importante para o início das discussões em torno do uso de carroças, o que, inclusive, associa-se ao período em que é declarada a percepção do aumento da “pressão” por diversos carroceiros. Sediar jogos da Copa exigiria da cidade novos padrões urbanos e modernos que contrastam diretamente com o trânsito das carroças, marcado por sua referência rural e “do passado”. Por exemplo, a promotora Rossana Sudário torna isso mais claro quando faz a seguinte declaração na audiência de 2011: Eu acho importante que o poder público perceba que não pode ter a copa com esse tipo de atividade [...] a gente tem que acabar com essa atividade medieval. É importante que se for pra copa, que é importante, que se continue depois. Eu espero que essa copa sirva para que a gente dê um salto quantitativo, dê um salto quântico na nossa cidade que a gente vá e acabe com várias práticas medievais, que a gente 171 consiga essa questão da defesa da fauna, que é minha atribuição aqui em Natal e eu tenho conversado muito com as ONGs sobre isso. Nesta audiência, a Copa seria um elemento de destaque, quando algumas das falas evidenciavam a preocupação com a presença “chocante” de carroceiros nas ruas, especialmente ao considerarem o olhar do estrangeiro que visitaria a cidade nos dias do evento164. A promotora do Meio Ambiente, persistente nessa temática, na ocasião, alegaria: “As pessoas têm que saber que a gente vai receber muitos estrangeiros, culturas diferentes, e que essa situação de maus tratos aos animais não é suportável para essas pessoas que vão chegar aqui. Vão imaginar o quê?!”. Também na ação civil pública essa condição seria reforçada: Essa situação (de “inúmeras agressões ambientais provocadas pelos carroceiros”) se torna ainda mais grave porque dentro de alguns meses iremos sediar jogos da Copa do Mundo, que se realizará no ano de 2014, e iremos receber inúmeros turistas estrangeiros em nossa cidade. Essa intensa degradação ambiental poderá ser notícia internacional, pois é inconcebível para qualquer pessoa que tenha o mínimo de sensibilidade que asnos e cavalos continuem a ser açoitados nas ruas para puxar carroças e espalhar lixões, enquanto impedem o livre fluxo de trânsito, que já é caótico em decorrência do enorme número de carros que lotam todos os dias nossas ruas. (MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RN, 2012, p. 08, grifos meus) Dessa forma, a cidade deveria se adequar ao evento e não poderia abrigar essas práticas “medievais”, pois, tal como ainda diria a promotora, “os estrangeiros vão pensar que a gente voltou ao passado”. Portanto, uma vez que receberíamos pessoas de diferentes localidades do mundo, preocupava a imagem de uma cidade que seria compartilhada por todos os natalenses e incomodava profundamente se ela estivesse associada à presença de carroças como algo próprio da realidade local. Assim comentava uma protetora em entrevista: Se eu fico indignada, imagina uma pessoa de uma cultura mais evoluída que a nossa. Por que todos os estrangeiros falam mal do Brasil, principalmente do Nordeste. Já falam que somos índios, que não temos cultura nenhuma e somos todos analfabetos, aí chega aqui e vê um carroceiro. Nesse sentido, a condição turística de Natal é também bastante reforçada para retirar as carroças: “A maioria dos turistas são de fora e nos países deles não existe mais isso. Quer dizer, eles querem mostrar uma cidade linda com carroceiro?!”. Assim, uma forte aversão 164 Mas não qualquer estrangeiro que capta as atenções e que verdadeiramente preocupa: frequentemente as falas contornavam e se concentravam naqueles oriundos dos países ditos de “primeiro mundo”. 172 estética à circulação das carroças e a seus trabalhadores também se sobressaia, o que ilustrava uma linguagem cultural das emoções. Por isso, exige-se dos carroceiros que eles também se “modernizem”, ou seja, abandonem suas práticas “do passado”, e que possam compactuar com essa noção da Natal moderna. Até mesmo o fato de carroceiros utilizarem aparelhos celulares chegou a ser considerado como algo que supostamente provava a capacidade deles de se modernizarem: “porque carroceiro é coitadinho, mas todos têm celulares de última geração. São coitadinhos entre aspas, porque todos têm celular, então, não (são coitadinhos). Se eles têm celular, eles têm que avançar”, diria uma protetora, em entrevista. Nesse sentido, é evidente como a pretensão de modernidade, manifesta nos debates pela retirada de carroças dos que clamam às mudanças, parte também de um confronto de classes, assim como Sarti (1994) identificou em seu trabalho sobre a família em camadas populares. A “modernização”, afirma a autora, é encarada como “condição para a mudança social, deixando de ver que este processo, assim concebido, pressupõe elites modernizantes, ‘iluminadas’, as que ‘sabem’ e em nome deste ‘saber’ agem no suposto benefício dos que não ‘sabem’, reforçando os mecanismos excludentes na sociedade brasileira” (1994, p. 62). 5.1 Controvérsias sobre o uso dos animais Apesar desse apelo à modernidade, a principal questão declarada para motivar a Política Municipal de Retirada dos Veículos de Tração Animal, como vimos, é a utilização dos animais pelos carroceiros, que, na grande maioria das vezes, é apresentada, nas discussões que envolvem esta política, como uma relação abusiva, estando frequentemente associada a ideia de “maus-tratos”. Tomando por base essas denúncias, a Ação Civil Pública (ACP) foi tecida visando a proibição definitiva do trânsito de carroças em Natal. O documento apoia-se no Código Sanitário de Natal, dentre outras legislações, para destacar outras questões além da já então determinada “proibição do trânsito de animais ungulados em área urbana”, assim, somam-se, a esse argumento, o que seria: a necessidade de um alvará que o Código exigia para permitir o uso dos animais; a proibição de “utilização de animais feridos, enfraquecidos ou doentes em serviços de tração”; e a determinação de que o trânsito de animais só seja permitido “quando estes forem vacinados, registrados e devidamente atrelados”. Diante disso, 173 a argumentação da ação civil pública, em tom alarmista, é a de que “não é preciso dizer que seus animais não são vacinados, não estão registrados e muitos deles estão doentes. Os que não estão doentes, em razão do forte estresse a que são submetidos, certamente logo ficarão enfermos e serão abandonados na rua”. (MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RN, 2012, p.7, grifos meus). A propósito, é preciso destacar como na ACP encontramos reiteradas vezes este tom alarmista, quando podemos acompanhar uma linguagem direcionada para impressionar. O documento traz, por exemplo, fotografias que registram casos de violências aos animais em diversas situações, algumas inclusive em que se é claramente perceptível tratar-se de contextos estrangeiros, sobre as quais menciona: “foram retiradas do google e demonstram os maus-tratos a que estão submetidos os animais de tração em qualquer local onde esse pernicioso transporte é realizado”. (MINISTÉRIO PÚBLICO DO RN, 2012. p. 03 grifos meus). Figura 26: Fotografia de cavalo transportando peso excessivo, compondo peça do Ministério Público Fonte: MINISTÉRIO PÚBLICO DO RN, 2012, p. 35 Ou seja, a Promotoria acaba generalizando grosseiramente diferentes tradições e formas de lidar com o animal para acusar a todas de violência. Além disso, reiterando o intuito de impressionar, na ACP encontramos a citação e inserção de reportagens da imprensa local atestando os prejuízos ao meio ambiente pelas dificuldades que as carroças ocasionam ao trânsito e pelos despejos irregulares de resíduos. Também a ACP apresenta uma linguagem acentuadamente rígida ao abordar a situação dos carroceiros. Por exemplo, se ao passo que no curral municipal, onde os animais sofriam diversas e sérias violências, como veremos adiante, 174 a acusação contida no documento é a de que a unidade responsável, SEMSUR, “não estaria tratando de maneira adequada” os animais, já em se tratando dos carroceiros, esses agiriam com “evidentes maus-tratos”, além das “inúmeras degradações ambientais”. Esse tom alarmista, fruto de uma parcialidade devidamente calculada do documento, ainda se mostra quando apresenta diversas leis que reforçariam o impedimento do uso de carroças, citando em especial, como vimos destacando, o Código Sanitário de Natal; ignorando claramente certa legislação posterior. São as Leis nº 5.601/2004, de 29 de dezembro de 2004, que “institui o Código Municipal de Defesa e Bem-Estar Animal” e nº 5.862, de 22 de abril de 2008, que “Disciplina as normas de tráfego de veículos de tração animal”. Ambas expressamente admitiam a circulação de carroças na área urbana de Natal, sendo a primeira voltada às obrigações em relação à saúde dos animais utilizados na tração, e a segunda sobre os equipamentos exigidos aos Veículos de Tração Animal (VTAs) visando licenças para circulação, dentre outros. Portanto, não encontrávamos, considerando esta legislação, diga-se recente, uma sensibilidade em relação aos animais mais fortemente disseminada e posicionada que chega a questionar totalmente o uso de carroças como agora165. O que tínhamos era o Poder Municipal se mostrando atento ao trabalho dos carroceiros para sua regulamentação, e não o impedimento total da circulação dos VTAs. Contudo, mesmo agora para este Município, a lida do carroceiro com seu animal é entendida e visibilizada apenas de forma negativa, de tal maneira que uma das protetoras entrevistadas chega até mesmo a afirmar que “eles (carroceiros) não têm nenhuma relação (com os animais) porque eles cometem muitos maus-tratos”. Nesse sentido, o trabalho nas carroças era entendido como uma “violência” infligida a “seres indefesos”, que dependem da “proteção” e da “voz”, em especial, daquelas pessoas vinculadas a ONGs, significativamente auto-identificadas ou categorizadas socialmente como “protetoras”. Cabe então questionar: o que são os maus-tratos? Nitidamente, estamos diante de visões distintas entre os carroceiros e um discurso predominante e hegemônico, presente nas audiências166, consoante com certa defesa animal. Esta forma de defesa reforça a problematização que faz Lacerda (1994) sobre a ideia de “violência” como uma variável cultural. Assim, protetoras e agentes municipais 165 A propósito, é curioso notar que essas duas leis foram homologadas à época na gestão do prefeito Carlos Eduardo, o mesmo que administra a cidade atualmente, quando, nessa sua nova gestão, assumiu o compromisso para a retirada das carroças. 166 Apesar disso, algumas vozes admitiam existirem carroceiros que não “maltratam” seus animais, embora reforçassem serem estes a “minoria”. 175 constatavam a “violência”, a “crueldade” e a “escravidão” que eram causadas pelos carroceiros, enquanto discorriam sobre quais seriam as formas ideais de cuidar dos animais. Isso nos remete para o que apontam alguns autores que estão refletindo sobre as novas sensibilidades e moralidades ocidentais associadas à proteção animal (DESCOLA, 1998; LEWGOY et al, 2015; VILELA, 2013; MATOS, 2012). Em alguns aspectos, chego a compartilhar de alguns destes valores com as protetoras, quando, por exemplo, uma delas e mesmo a promotora do meio ambiente se colocaram enquanto vegetarianas. Contudo, essas novas sensibilidades167, que refletem o que Descola (1998) chama de “manifestações de simpatia”, não incluem igualmente todos os animais, uma vez que, acionam e estabelecem hierarquias entre eles a partir de noções antropocêntricas. Nesse sentido, são os mamíferos melhor situados nessa pirâmide “em função de seu comportamento, fisiologia, faculdades cognitivas ou da capacidade que lhes é atribuída de sentir emoções” (DESCOLA, 1998, p.23). Essa hierarquia aparece na fala de uma das protetoras entrevistada ao fazer certo desabafo quando alegava haver pouca participação das protetoras na construção da PMRVTA: Isso é uma coisa que a gente tem que trabalhar ainda com a militância da causa animal, que animal não é só gato e cachorro. [...] Ninguém é obrigado a ser vegetariano, mas eu acredito que quando você defende animais, você tem a obrigação de defender a vida, então você não pode comer animal morto. Então, referente à alimentação, cada um na sua, a gente respeita, mas acho que fica essa lacuna. Sobressaem, então, as seguintes questões: por que, nesse caso, há uma tolerância bem maior? Por que essas protetoras também não são cruéis? Não se trata aqui de defender a bandeira do vegetarianismo, mas desejamos apontar, de fato, a forma fluida que encontramos na proteção animal. Apesar de citar diversas leis visando a proibição do uso e circulação dos animais ungulados na cidade, a própria ACP especificava as exceções contidas no Código Sanitário de Natal: §1º Ficam excluídas da proibição contida no caput deste artigo, o emprego de animais para atividades militares e animais em exposição, atividades desportivas, cívicas, religiosas ou de lazer e diversão pública, organizadas por 167 Que, aponta Descola, nos países latinos destaca-se em decorrência de aversão ao sofrimento desnecessário e a consciência de uma responsabilidade moral da espécie humana em assegurar o bem-estar dos demais seres; ao passo que em países do norte da Europa e nos Estados Unidos é crescente o movimento deep ecology “que considera todos os componentes do meio natural como sujeitos de direitos homólogos aos humanos” (DESCOLA, 1998, p.23). Apesar dessa diferenciação, para pensar as relações com os animais, o autor concentra- se nas variáveis culturais mais gerais a partir de “cosmologias pré-modernas”, que contrapõe ao ocidente. 176 associações próprias devidamente legalizadas, em conformidade com as normas técnicas pertinentes. (Lei Municipal n. 5.132/99 apud MINISTÉRIO PÚBLICO DO RN, 2012, p. 06-07, grifos do autor). Praticamente, as mesmas exceções aparecem na minuta da PMRTVA168, que, segundo a interpretação da ACP, “não contemplam os carroceiros”, segundo as razões que já expomos no início deste capítulo: os maus-tratos. Além disso, a ação civil pública traz outra questão: É importante destacar que, em Assembleia da Unesco, foi proclamada em Bruxelas, Bélgica, a DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DOS ANIMAIS, sendo o Brasil um dos países signatários. Esse documento conta com 14 artigos que determinam, dentre outros direitos, que todos animais nascem iguais perante a vida e têm o mesmo direito a existência e a proteção, devendo ser tratados com respeito e consideração, não devendo ser submetidos a maus-tratos, nem serem explorados para divertimento do homem. (ibid, p. 9, grifos do autor). Se, por um lado, o argumento quanto ao uso dos animais confirma as exceções do Código Sanitário de Natal, por outro, destaca a Declaração dos Direitos dos Animais que, por sua vez, além de questionar o uso dos animais pelos carroceiros, questiona até mesmo as próprias exceções do Código. Essa maneira fluida de lidar com a defesa animal nos leva a questionar: o que move às possibilidade jurídico-moral de usos de outros animais para entretenimento, por exemplo, que compõem as exceções da lei municipal? Quer dizer, enquanto a percepção de “violência” é associada e ganha mais corpo no caso dos carroceiros, os “maus-tratos” aos animais são ignorados ou relativizados nas exceções presentes na PMRTVA. Não são em todas situações, resgatando os termos de Sahlins (2003), em que os cavalos estão em uma posição servil, privado de sua liberdade? Considerando, então, a noção bastante empregada de “maus-tratos” para avaliar o trabalho dos carroceiros, será que estes mesmos animais, que, segundo a promotora do Meio Ambiente, “sofrem só de estar num trânsito caótico”, também não sofreriam ao estar presentes em eventos como, por exemplo, paradas militares, vaquejadas, rodeios, onde encontramos grande movimentação e barulho? Será que os animais não sofrem “maus-tratos” nesses eventos? Como isso é garantido? Essa diferença no modo de encarar o uso dos animais foi uma questão trazida por alguns carroceiros, tal como os cavalos de corrida, para reforçar, 168 Consta na atual minuta da PMRVTA, em seu artigo 5º: “I - a utilização de animais pelos órgãos de natureza militar, para o desempenho de suas atividades; e II – a participação de animais, com prévia autorização do Poder Executivo, em exposições, eventos cívicos, esportivos, atividades de educação, saúde, lazer ou turismo, desde que comprovada a ausência de risco de maus-tratos aos animais”. 177 assim, a percepção da discriminação social que passam. Reginaldo, por exemplo, diria que ninguém questiona o uso dos animais nas corridas porque são um “evento de pessoas ricas”. Na audiência de 2011, um carroceiro argumentaria: “já que é pra acabar com a carroça [...] por que não vão nas corridas ver os maus-tratos, o que um cavalo sofre na corrida?”. Foi questionado, então, pela Promotora. Apesar disso, na audiência de 24 de junho de 2015, ela mesma traria o mesmo caso dos cavalos de corrida para destacar que nesse tipo de evento são dispensados cuidados aos animais: “os animais, os cavalos de corrida, os animais de gente muito rica são tratados com música clássica para não se estressarem e não sentir dor”. Defendia que os cavalos de corrida “não são tratados como aqui na cidade”, inclusive, salientando que recebiam tratamento com “musicoterapia” para “desestressar”, tamanha a sensibilidade desses animais: “só estresse já provoca dor no cavalo”. Na mesma direção, algumas protetoras e agentes do poder público davam como exemplo o uso de cavalos em outros contextos no exterior, por exemplo, a Bélgica, Portugal e a cidade de Nova Iorque. Nesses lugares, “há uma diferença enorme”, “não tem cabimento” comparar com as “carroças maravilhosas” e os cavalos “lindíssimos”, “enormes”, “limpos” e “bem-cuidados”. Percebe-se que a principal questão era, de fato, as condições de trabalho dos animais. Mas, então, como estabelecer o que é “trabalho”, “estresse” e “cuidado” para um cavalo? Defendia-se, sobretudo, a “libertação” dos animais em projeção à idealização do campo, ou seja, do mundo rural, visto como pacato em oposição à zona urbana caótica que estressava os bichos e assim os maltratava. Nas falas das protetoras entrevistadas, os animais eram associados a seu “habitat”, digamos natural, em sua adaptação ao meio rural, o que levava em consideração, sobretudo, o contato com o solo. Nessa direção, uma delas alegaria: O animal de grande porte é um animal trabalhador. No campo, ele é adaptado para isso (para trabalhar). O jumento, por exemplo, é um animal extremamente resistente, ele pode subir uma serra, mas ele tem que estar no habitat dele, pisando em areia, ele não tem o casco para pisar em asfalto. A protetora continuou com seu raciocínio, reforçando ainda mais essa idealização, através da valorização do homem do campo: Pesquisadora: Você acha que esses problemas (de maus-tratos) não existem no campo? Protetora: Não existem, é incrível. Vou dar um exemplo a você: uma protetora, presidente de uma ONG, fez um levantamento em todos os quartéis de polícia que 178 usam cavalaria. Sabe qual o pior, que maltratava os animais? O de Natal, que tinha mais recursos. O homem do interior, ele trata o animal, pode até ser com a brutalidade, mas ele tem o cuidado de saber que aquele animal ajuda ele nos afazeres do dia a dia. Então, ele tem a preocupação de dar uma água, um comer e tal. Já aqui em Natal, as pessoas não veem assim, é como eu lhe disse: usam, depois abandonam, se ficar doente (o animal), abandonam, se morrer... Dessa forma, essa protetora marcava um evidente contraste entre campo e cidade, que resgatava as “atitudes emocionais poderosas” associadas a esses espaços (WILLIAMS, 2013). Assim, mesmo a “brutalidade” com os animais podia ser justificada no campo, já que também se observava o “cuidado”. Chama a atenção, portanto, como essa mesma ponderação não existe em relação aos carroceiros que também precisam da “ajuda dos animais nos afazeres do dia a dia”, mas não se reconhece, de um mesmo modo geral, os seus cuidados com os animais. Nas falas de outras protetoras, apresentavam-se alguns matizes e divergências sobre a relação do homem e os animais no campo, embora reafirmassem a idealização do campo como espaço ideal para a vida dos animais. Uma delas considerava a necessidade de se observar qual tratamento seria dado ao bicho, enquanto outra apontava para o abandono de animais. Esta última destacou essa situação a partir da fala do prefeito de Natal, Carlos Eduardo Alves (PDT), quando ele se referiu, durante a reunião ocorrida na Prefeitura, à “questão cultural enraizada secularmente” própria do uso de carroças169. Assim, essa protetora criticou veementemente esta posição, argumentando que “no interior, qualquer interior que você for hoje em dia, é só moto. Os animais foram abandonados, é só moto. [...] essa cultura que ele diz que existe, não existe mais”. Assim, ela defendia o fim do uso de carroças até mesmo no espaço rural porque tratava-se, mais uma vez, de uma prática cultural “do passado”. É importante destacar que o tratamento adequado e o espaço ideal para os animais apoiava-se nos saberes da medicina veterinária, que validava e autorizava ainda mais os argumentos: “eles (veterinários) dizem que racham os cascos”. Era assim que discorriam sobre como o andar no asfalto causava “dores terríveis” aos animais e sobre a necessidade da ferradura. Essa questão da ferradura mobilizou muitas das falas de protetoras e agentes dos poderes públicos, de forma que um deles, em entrevista, chegou a declarar que só de encontrar o animal na rua sem ferradura o carroceiro já podia ser autuado por maus-tratos. Contudo, ele completaria que o setor responsável se omite, em geral, desta autuação, pois, se 169 Diria o prefeito: “A carroça é uma questão cultural, a gente vai lutar aqui, está certo? Contra uma questão cultural enraizada secularmente” 179 assim procedesse, o Município conduziria quase todos, senão todos, os carroceiros a responder processo administrativo. Mas ele alegaria que, em contrapartida, buscam esclarecer os carroceiros da necessidade que defendem da ferradura. Diante da evidência científica e da presença de veterinários, não importava considerar e nem responder a qualquer argumento que derivasse da razão prática dos carroceiros, tal como disse um deles em audiência: “um animal meio dia em ponto no sol quente para colocar ferradura eu não sou de acordo sabe por quê? Porque a ferradura escorrega na hora que você for subir uma calçada e ele cai”170. Uma das protetoras traduziu inequivocamente: “somente esse profissional (veterinário) tem a capacidade de dizer o que o animal tem”. Outra delas chegou a afirmar que “uma coisa que é gravíssima: nunca esses animais passaram por um médico veterinário”. Tínhamos então um discurso médico-científico que ditava a “verdade” (FOUCAULT, 2015) sobre a forma de lidar com os animais. Um discurso que, inclusive, reforçava ainda uma questão sanitária: a preocupação com transmissão de doenças decorrentes da presença dos animais que, alegavam, eram risco até mesmo aos carroceiros. Essa verdade repercutia em formas de poder sobre os carroceiros, que chegavam, por sua vez, até mesmo a defendê-la. Ednaldo, por exemplo, chegou a comentar, em audiência, que tinha dificuldade em cuidar de seus animais devido à ausência de um médico veterinário que pudesse avaliar gratuitamente as condições físicas dos bichos, embora esse tipo de queixa não aparecesse mais em outras falas: “só de eu não ter um médico, especialista, para dar uma olhada no animal, isso dói em mim. Mas eu acho que o poder público poderia disponibilizar um veterinário para atender nossos animais”. Outra colocação, nesse sentido, por um carroceiro só surgiria também em audiência, o que nos remete a refletir se os posicionamentos desses carroceiros já não seriam um reflexo das cobranças que eles precisavam encarar nesses espaços de debate, assim como observamos a mudança na disposição dos animais na praça, descrita no segundo capítulo. Até porque foi frequente encontrar carroceiros que riam do 170 Na audiência de 2011, onde estava presente a veterinária Carla Belke, representante do Conselho de Medicina Veterinária, que também se posicionaria sobre a questão da ferradura. Em uma tentativa de traduzir aos carroceiros o que tentava explicar, Carla perguntou “qual dos senhores anda, com o tempo de verão, com o pé descalço no meio da rua?”. Ao ter a confirmação inesperada de um carroceiro, que podia estar sendo sincero ou estar mesmo em provocação à veterinária, Carla logo acrescentaria “o senhor consegue andar? Então o senhor é o único. Se as outras pessoas querem proteger os pés, tem que proteger as patinhas deles (dos animais), está bom?”. 180 argumento da doença, pois em oposição a ele estavam anos e décadas de trabalho com os animais. Protetoras e agentes do poder público se revezavam em “ensinar” aos carroceiros como eles deveriam lidar com seus animais, provavelmente para amenizar o “problema” e diminuir o “sofrimento” dos animais, tudo isso feito à base de denúncias variadas. Nesse sentido, uma protetora, que dizia haver uso maior de jumentos do que cavalos na tração de carroças, sugeriu aos carroceiros que adaptassem seus veículos a estes animais menores para que não gerasse uma “coluna selada”, ou seja, quando o peso da carga recai sobre a coluna do animal, abaixando-a. Também algumas vezes os carroceiros foram acusados de não suprirem alimentação adequada a seus animais, chegando-se a comentar que a comida se restringia à base de “graminha” (o que, sublinhava-se, “não supre as necessidades energéticas dos animais”) ou até mesmo “lixo”. Além disso, os carroceiros exporiam seus animais a “uma jornada de trabalho extenuante”, submetendo-os a esforços “sobrenaturais”. Também como forma de amenizar a “crueldade” dos carroceiros, surgiram propostas de que eles passassem por um “trabalho de formação” pedagógica, voltado à “defesa da causa animal”. A princípio, a Prefeitura teria responsabilidade por essa “formação”, mas uma das protetoras chegou a indicar que alguns carroceiros mais presentes nas audiências fizessem esse tipo de trabalho de conscientização: Vocês que são mais abertos, vocês poderiam reunir o grupo de vocês, Associação e tudo e vocês mesmos fazer o trabalho que nós fazemos de forma autônoma, sem esperar a Prefeitura, dar palestras... Como vocês entendem, são mais sensíveis para essa questão de não maltratar os animais, dá palestra! Orienta os seus amigos! Aqui se evidencia um aspecto interessante que é a noção presente na militância de defesa dos animais da “autoatribuição de responsabilidade, na medida em que o pronome pessoal ‘você’, indica que o poder de mudança ou permanência é posto nas mãos das próprias pessoas” (VILELA, 2013, p. 160), aqui, no caso, deveriam ser os próprios carroceiros em um esforço de autoconscientização e mudança. Contudo, todas as protetoras e vários agentes entrevistados tinham um longo rol de denúncias de maus-tratos que combateram ou tiveram notícias. Relatavam-me casos de teor bastante grave de violência para com os animais como: mutilações de genitália ou de outras partes do corpo dos bichos; excessivo peso que leva à quebra das patas dianteiras; abusos sexuais; manter a carroça atrelada ao animal por vários dias causando diversos ferimentos, 181 entre outros. Na Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo (SEMURB), onde funciona um setor de fiscalização ambiental, por exemplo, conseguiríamos uma apresentação composta por várias fotografias que eram mostradas aos carroceiros, quando estes eram conduzidos à instituição ao serem flagrados com animais feridos ou debilitados. As imagens apresentavam especialmente situações de ferimentos nos animais, sendo uma das mais graves delas a de um cavalo vítima de um tiro: Figura 27: Slide denunciando ferimento de animal Fonte: SEMURB Além dessas imagens, a apresentação comportava fotografias que expunham casos de desnutrição dos animais, mas também aquelas que exibiam denúncias de disposição irregular de resíduos. 182 Figura 28: Slide denunciando magreza de cavalo Fonte: SEMURB É diante desse conjunto de denúncias que a promotora do meio ambiente chegou a afirmar: “ninguém aguenta mais ver animal na rua sofrendo com fome, com sede e apanhando”. Como já discorremos no capítulo 2, esta não é apenas uma acusação externa, pois os próprios carroceiros e seus defensores apresentavam críticas e denúncias de colegas. Certa vez, Santos me falou que flagrara um carroceiro batendo com o chicote no rosto do animal. Todos esses relatos e essas imagens conseguiam me impressionar bastante, atingindo os objetivos pretendidos por aquele que me contava. Esse tipo de crítica me afetava tão emocionalmente que eu chegava ao ponto de esquecer, por um momento, aquilo que eu tinha observado na própria experiência do campo, tal como, por exemplo, a relação dos carroceiros e seus animais baseada na honra, no orgulho e na sociabilidade, entre outros, e mesmo como isso acabava por agir como uma garantia da não ocorrência de maus-tratos. Nesse campo de acusações, o chicote entrava como um elemento gerador de grande debate. O uso do objeto era totalmente condenado pelas protetoras, mas era visto como uma necessidade entre os carroceiros em momentos específicos. Para eles, não se tratava de evidência de “maus-tratos”, o que só acontecia se a utilização do chicote fosse sem precisão, ou seja, quando o chicote era usado em um momento que não o justificasse, configurando-se através do significado do espancar. Em uma tentativa de esclarecer esse uso, um carroceiro, na audiência de 2011, declarou: 183 a gente precisa certas coisas porque a profissão (de carroceiro) é o seguinte: se dá no animal porque às vezes o animal não é feito para aquele serviço; às vezes está com a carga dele assim (provavelmente gesticulando); por que esperta. Por que a chave do motorista é a chave do carro, não é isso? E a chave do carroceiro é o quê? A chave do carroceiro é o chicote. Você não pode ser identificado como carroceiro sem estar com o chicote nas costas, entendeu? No decorrer desta audiência, uma protetora retomaria a colocação do carroceiro para demonstrar como aquilo a comovera: O senhor falou ‘o chicote é a chave do carro do carroceiro’, isso é cruel, você ter que ouvir um negócio desses (ouvem-se palmas). Porque a gente precisa que os animais... eles, quando bem cuidados, eles obedecem uma palavra, um olhar, não precisa de chicote, pelo amor de Deus! Fiquei chocada, mas é isso mesmo a gente tem que ouvir de tudo um pouco. Esse assunto ganhara destaque: também contrariando o uso dos chicotes, outra protetora salientava a necessidade de se usar outra linguagem com o animal, estabelecendo uma relação com mais “sintonia”. Eu já parei muito carroceiro pra conversar e parei um que ele não tinha chicote. Eu achei maravilhoso e eu fui conversar com ele e ele: ‘não, meu cavalo foi treinado a escutar a minha voz’. Eu achei lindo, eu chorei na hora que ouvi isso de um carroceiro. Então, realmente não precisa do chicote”. O relato da protetora seria acompanhado pela promotora Rossana Sudário, que também destacou a possibilidade de “sintonia” e “conexão” entre o carroceiro e seu animal, o que tornaria desnecessário o uso do chicote. Essas situações mostravam como era difícil o diálogo entre os agentes sobre o modo de lidar com os animais. Este uso do chicote era a própria afirmação, para as protetoras e alguns representantes do poder público, de um forte indício da “crueldade” dos carroceiros. Conscientes, então, dos valores envolvidos, grande parte dos carroceiros negligenciavam, em suas falas, o uso do chicote, destacando aquilo que muitos nomearam por “carinho” pelos animais. Por isto, pela delicadeza da questão, abordar o uso do chicote nas entrevistas demandou um maior cuidado. Enquanto nas audiências o chicote parecia sumir das falas dos carroceiros; nas entrevistas, muitos deles, a exemplo de Borges, acabavam reivindicando o uso do chicote não apenas como um instrumento de trabalho, mas como elemento identitário do carroceiro. Entretanto, apesar de inúmeras denúncias se concentrarem na relação do carroceiro com seu animal, é importante destacar como as protetoras também teciam uma relação hostil 184 com a Prefeitura de Natal em torno do cuidado com os animais, o que era visto muitas vezes como uma responsabilidade ignorada do Executivo municipal. Assim, uma questão é bastante pertinente. Trata-se das denúncias das protetoras, em especial, mas também levantada pela Promotoria do Meio Ambiente, sobre o tratamento dado aos cavalos e jumentos, no Curral Municipal, localizado no bairro das Quintas171. Ironicamente, o próprio espaço esteve envolvido em denúncias de maus-tratos de animais pertencentes aos próprios carroceiros e que lhes foram apreendidos172. Em outubro de 2014, o vereador Sandro Pimentel fez uma denúncia através de vídeo postado na internet173. Criticou que os animais que estavam neste curral não dispunham de uma alimentação adequada, até mesmo passavam fome. No vídeo, apareciam alguns animais em péssimo estado de saúde, desnutridos e/ou com ferimentos, chegando até a mostrar um cavalo com uma pata quebrada. Esses fatos coincidem com o que me foi narrado pelos carroceiros do ponto da praça, quando aludiam a situações em que foram reaver seus animais apreendidos e os encontraram “magros”. Assim, muitas vezes ouvi declarações de que era na “mucura”, expressão para se referir ao Curral da Prefeitura, que os animais eram, de fato, maltratados. Esse descaso da Prefeitura é uma contradição óbvia com a defesa dos animais que as autoridades municipais conclamam na PMRTVA, o que faz reforçar a ideia de que o real motivo que leva ao Município assumir essa pauta se deve em grande medida à decisão judicial e à pressão das protetoras dos animais, mostrando a força desses dois segmentos perante a Política. 5.2 Moralidade, Emoções e Dignidade Agora, vamos nos voltar mais a respeito das questões morais e emocionais que perpassam os debates da Política, compondo um complexo jogo entre os diferentes agentes na busca pela adesão pública às suas causas. A própria motivação inicial dessas discussões se dá 171 Lembramos aqui que na Ação Civil Pública denúncia desse teor já era sinalizada em 2010. 172 Tanto Vavá, em nosso primeiro contato, quanto Sandro Pimentel, em vídeo gravado no Curral da Prefeitura, esclarecem que as apreensões dos animais se dão em virtude de denúncias de maus-tratos ou então pela presença de animais soltos nas ruas. Vavá defenderia que alguns carroceiros têm essa prática de não prender seus animais. Ele relatou ainda que para a soltura dos animais que são levados ao curral é necessário o pagamento de uma taxa no valor de cinquenta reais (outros carroceiros me falaram em 40 reais) que, dependendo das condições econômicas de um carroceiro, pode ser um valor alto. 173 Maus tratos no Curral da Prefeitura de Natal, disponível em: , acesso em setembro de 2015. 185 justamente em termos de um trabalho emocional, segundo Lutz (1988), que se configurou a partir da mobilização de pessoas vinculadas a ONGs que significativamente se denominam “protetoras”. Como um marcador social, o gênero aqui se destaca em virtude da grande presença feminina neste debate e nos espaços onde esta política pública vem sendo tratada, o que pode de algum modo repercutir também no nível das discussões. Isso aparece também em outras pesquisas, tanto no exterior (GROVES, 2001) como no Brasil, evidenciada pelo trabalho de Lewgoy et al. (2015) no contexto do Rio Grande do Sul, que analisou, em particular, um grupo de protetoras de animais e aponta como entre elas: Se a espécie humana é hobbesianamente estigmatizada como fonte do mal radical e do abuso e crueldade contra os animais, há uma implícita essencialização do gênero masculino como ‘representante natural’ dessa tendência à crueldade e uma cobrança moral maior das mulheres para desempenharem o papel ‘natural’ de mães de animais de estimação. (2015, p. 92, grifos nossos) Como vimos, há, por parte das protetoras envolvidas nas discussões da política, uma profunda aversão à lida do carroceiro com seu animal, encarada com “extremamente cruel”, o que se associa especialmente ao fato de que a grande maioria dos carroceiros são homens, embora, como vimos no segundo capítulo, algumas mulheres façam uso também de carroças em seu cotidiano. Ainda assim, as acusações se constroem através de uma retórica em que o homem carroceiro é o principal referente. Ao contrário do valor utilitário (SAHLINS, 2003) atribuído aos animais pelos carroceiros, entre as protetoras, “os animais são circulados não como objetos, pois nunca intermediados por dinheiro ou outros objetos, mas como sujeitos visto que se imagina que são respeitados em suas preferências (alimentares, de sono, etc)” (OSÓRIO, 2011, p. 01). Então, especialmente o modo com que os carroceiros, em geral, utilizam seus animais incide diretamente, e de uma forma poderosa, na criação de concepções morais sobre quem são essas pessoas. Estabelecem-se, dessa forma, fronteiras que se mostram bem mais rígidas do que, como vimos no tópico anterior, com protetoras que praticam uma dieta carnívora, por exemplo. Elas não são chegam a ser taxadas de cruéis ou violentas, dentre outros modos de acusação que já pesam sobre aqueles que fazem uso dos animais para transporte e trabalho. Considerar estas representações, que são criadas em torno dos carroceiros, leva-nos a uma reflexão sobre os regimes de verdade (FOUCAULT, 2015) e como eles acabam reverberando no contexto da política, observando algumas de suas repercussões. Ou seja, não interessa aqui saber quem está com a “verdade”, e nem valorizar e 186 privilegiar uma causa em detrimento de outra, mas apresentar e discutir as consequências que estão sendo causadas pelas “verdades” que são estabelecidas e constantemente acionadas. Nesse sentido, são, então, mobilizadas muitas formas de denúncia, o que acaba, fazendo aqui uma aproximação com a teorização de Bourdieu (1983), constituindo um campo entre agentes com diferente capital social/cultural, que igualmente disputam um jogo de emoções e moralidades com o propósito de desqualificar o oponente. Dessa maneira, o que observamos de forma bastante recorrente são posicionamentos que sustentam a retirada das carroças e que levam a questionamentos do caráter dos próprios carroceiros, pois o que dizer dessas pessoas que vivem e trabalham “às custas dos animais” através desse transporte “pernicioso”? Foi, nesse sentido, que apareceram falas de forte teor emocional como a de uma protetora de animais em audiência pública: Eles (os animais) sentem fome, sede, frio, medo e vocês proporcionam isso também, vocês tão sendo egoísta com eles e com vocês. Se dê uma chance, dê uma chance a vocês mesmos de crescerem, não ficando com o espírito acanho, achando que é só o animal que vai dar o pão a vocês. Outra protetora, também em audiência, quando comentava sobre o quão condenável é o uso do chicote, afirmaria: “Também a gente tem ver que esse tipo de atividade do carroceiro em si ele brutaliza o ser humano”. Já na Ação Civil Pública, movida pela Promotoria do Meio Ambiente, cita-se uma autora “advogada ambientalista” Edna Cardoso Dias para trazer à discussão do uso dos animais pelos carroceiros (embora não faça uma relação de modo mais direto) que “estudos demonstram que a crueldade contra o animal é um passo inicial de um potencial criminoso. A vida de assassinos em massa e de criminosos violentos demonstra que estes, quando crianças, infligiam maus-tratos aos animais” (DIAS, 2000, p. 345-346, apud MINISTÉRIO PÚBLICO, 2012, p. 8, grifos nossos). Assim, a moralidade dos carroceiros era constantemente questionada: eles são os “brutos”, “insensíveis”, “cruéis”, “egoístas”, “malvados” que maltratam os animais. Nesse sentido, uma protetora lançaria ainda a seguinte representação moral dos carroceiros: “a maioria são homens gordos, obesos, com o peso lá atrás e o animalzinho ali na frente”, invertendo, assim, de uma forma interessante as concepções de obesidade nociva que aparecem em Don Kulick, 2009: no caso dele, são os cães obesos vítimas de maus-tratos por seus donos; aqui, são os carroceiros obesos que maltratam os animais. Portanto, nós vemos perfeitamente, de um modo geral, como a “noção de violência certamente figura como um demarcador poderoso das 187 fronteiras intergrupais” (LACERDA, 1994, p.128). Aqui, no contexto da PMRTVA em Natal, as protetoras dos animais não tinham seus parâmetros morais publicamente confrontados. Ao contrário, eram louvadas pela preocupação “abnegada” com os “indefesos” e “inocentes” animais. As acusações feitas por aqueles, podemos dizer, “empreendedores morais” questionam centralmente o caráter dos carroceiros a partir de suas relações com os animais, mas somam-se a outras questões que alimentam e reforçam forte estigmatização moral (GOFFMAN, 1978) e seu perfil, digamos, “desviante” (BECKER, 2008). Nesse sentido, seriam os carroceiros os “medievais”, atrapalhando o trânsito com suas práticas “do passado”, “analfabetos” que degradam o meio ambiente “sujando” a cidade, “ignorantes”, embora essa suposta ignorância não fosse uma justificativa menor para amenizar a culpa dos carroceiros, pois há uma índole moral em jogo: “apesar de serem pessoas ignorantes, ignorância não é maldade”, comentaria uma protetora. Além disso, “a grande maioria” ou “muitos” dos carroceiros seriam “alcoólatras”, até mesmo “drogados”. Uma situação em que se reforçava essa qualificação moral, em particular, ocorreu quando entrevistava uma protetora em sua residência e, por coincidência, passava um carroceiro na rua. Ela chegou, então, a fazer este reforço apoiando-se na aparência física do homem, a conotar o evidente estigma da pessoa que usa crack: “Porque você já viu pela aparência dele que ele é usuário de crack, pelo corpo dele você vê [...] porque está osso puro o cara”. Assim, em algumas falas, até mesmo os corpos dos carroceiros evidenciaram suas moralidades, como gordos ou como magros. A denúncia de roubo também se fazia presente e é importante aqui pois os carroceiros são frequentemente entendidos como “ladrões” ou “criminosos” que “muitas vezes transportam roubos” ou “usam a carroça para praticar crimes”174. Seriam também agressivos já que, quando um “cidadão” tenta conversar, eles “agridem”, “xingam”, “ameaçam com uma faca, um facão175”, “se bobear, leva”, eles até “matam”... Essas acusações, além de repercutirem entre os carroceiros, como na exclusão de alguns de suas redes de relações, também levavam a constrangimentos públicos como nas frequentes 174 Essa situação do transporte de roubos foi também comentada no ponto da praça por Jurandir que inclusive reforçou também uma imagem estigmatizada de carroceiros. Chegou a dizer que se eu visse carroceiro à noite poderia desconfiar, por que era “ladrão”, mas depois ponderaria que havia áreas na cidade em que só era possível o trânsito à noite. 175 Lembramos que, como vimos nos capítulos anteriores, a faca e o facão aqui denunciados são equipamentos que fazem parte da rotina de trabalho dos carroceiros para realizar serviços de podação como ainda para retirar o capim para a alimentação dos animais. 188 acusações de roubo e em abordagens policiais violentas. Um carroceiro contou ter estado na mira de um disparo de um policial, mas, por sorte, o tiro não o atingiu. Todas estas acusações contra os carroceiros projetam representações sobre eles cujos significados aproximam-se muito do teor percebido por Coelho (2010) em sua pesquisa sobre as narrativas de violência: os assaltantes eram associados com a desordem que causam na cidade, por sua ignorância, sujeira e pobreza. Tudo isso conta com o reforço cultural da imprensa, igualmente comprometida em circular argumentos morais, como veremos adiante. Curiosamente, apesar de estarem diante de grandes cobranças e como colocam “pressões”, sendo alvo de enorme indignação moral, uma grande maioria dos carroceiros, tanto em nossa pesquisa etnográfica quanto nas audiências públicas, demonstrava uma forte resistência em abandonar seu trabalho e suas atividades cotidianas nas carroças. Eles salientavam a afinidade e disposição para a manutenção de sua forma de trabalho, especialmente pela autonomia que ela oferece, o que era encarado como “comodismo”. Uma das protetoras comentava como entendia que os carroceiros na verdade “não querem sair muito desse ambiente de conforto que eles vivem”. Surpreendia, assim, a resistência e recusa da grande maioria dos carroceiros de abandonar suas atividades de trabalho, o que reafirmava aos demais agentes a ignorância que associavam àqueles: “A prefeitura vai oferecer tudo isso para eles, só que eles não querem. Quer dizer, eles estão acomodados. Igual quando fizemos o cadastro aqui. Essas pessoas não têm sonhos. Elas não têm objetivos. Para elas, viver agora ta bom demais. ‘qual é o teu sonho?’ ‘ah, meu sonho é ter uma casinha própria’, ‘ah, qual é teu sonho?’ ‘é ter uma casinha’, ‘qual é teu sonho?’ ‘não sei’. São pessoas que não têm objetivos. O que ela vai passar para o filho? Se ela mesmo não tem nada dentro dela.” O que surpreendia, no fundo, era a vontade dos carroceiros de permanecer naquela função “menosprezada”, em “um trabalho que não leva a grande coisa”, “que é humilhante para o animal, mas, mais ainda, para o homem”, que está em uma “condição sub-humana”. É claro que estavam, assim, marcadas diferenças de classe entre os atores sociais e grupos em discussão, embora as protetoras e alguns agentes do poder público se esforçassem por negar essa questão. Declaravam uma preocupação coletiva e genuína com o bem-estar dos animais e as condições sanitárias e de circulação na cidade, mas afirmavam também defender o “ser humano”, ou seja, os carroceiros. Assim, causava espanto o que consistia, segundo uma protetora, a falta de “procurar uma melhoria, uma qualidade de vida”. Para as protetoras e os agentes do poder público, 189 mudar essa situação em que os carroceiros estão dependia apenas deles, que precisavam ter “garra” e “força de vontade” para que pudessem “progredir”, “evoluir” e, por fim, adequarem- se ao que seriam “as regras sociais”. A retirada das carroças precisa ser encarada como um “desafio” lançado aos carroceiros. Esse era o discurso imperante da mudança, que contrastava diretamente com a garantia exigida pelos carroceiros. A mudança adquiria sempre uma perspectiva positiva: o momento de “crise” que os carroceiros enfrentavam era uma “oportunidade de mudança” que “poderia ser uma oportunidade muito melhor” e para isso eles tinham que se “permitir” e “aceitar”. Nesse sentido, também foi colocado por uma protetora que os carroceiros também não precisavam do apoio das autoridades municipais de Natal para, inclusive, arranjar outra forma de trabalho: “Essa questão de esperar pela Prefeitura... A Prefeitura, ela é muito passiva. Corram atrás também! Vão atrás de um trabalho! Movam-se também!”. Mostrando mais uma vez a “passividade” dos carroceiros e sua relação nociva com os animais, uma das protetoras, na audiência pública de 2016, realizada na Câmara dos Vereadores, cobrava moralmente aqueles carroceiros que, para ela, “ignoravam” os maus-tratos que fossem praticados por um colega, tornando-se, portanto, cúmplices e, por isto, também culpados: O que a gente observa: a própria Associação dos Carroceiros [...] eles admitem os maus-tratos, mas eles não instituem, não orientam, não fazem nenhum tipo de campanha para que eles mesmos acabem com a questão dos maus-tratos [...] Até hoje eu não vi nenhuma campanha, nenhum programa por parte deles de querer desmistificar essa questão de que eles mesmos cometem os maus-tratos. Então eles admitem, e eles ignoram. Essa acusação tentava minar a defesa dos carroceiros que, de fato, reconhecia a ocorrência dos maus-tratos entre seus pares, mas utilizava-se da imagem do bom-profissional como forma de diferenciá-los. Até algumas vezes, alguns carroceiros e seus representantes destacavam a ocorrência de “confrontos” e “combates” entre eles sobre essa questão. Santos alegava, por exemplo: “nós somos contrários [...] a quem tem um animal maltrapilho, magro”. E defendia que: “em momento algum somos contrários à questão da defesa dos animais [...] nós conflitamos com algumas pessoas com os animais cortados, feridos, essas coisas todas. Nós temos esse conflito”. Nessa direção, alguns carroceiros narravam tentativas de convencimento para que colegas fizessem “a coisa certa” principalmente no que cabia ao uso dos animais (mas não somente por isso). Comentavam como era, algumas vezes, difícil o diálogo mesmo entre eles. Entretanto, se a vergonha que se espalha nas redes de contatos dos 190 carroceiros não era suficiente para aliar alguns ao perfil do bom-profissional, caso ocorressem intervenções de maior repressão, as consequências eram encaradas como justas por que se fez por “merecer”. O caso de Bola é bem representativo. Um dos carroceiros contou: “uma vez um policial pegou o Bola, tomou o chicote e deu com o cabo nas costas dele [...] foram duas lapadas”. Diante disso, outro carroceiro comentando esse caso defenderia que Bola “merece apanhar porque maltrata. Se ele não tivesse dado (no animal), não tinha apanhado”. O mesmo aconteceu com Alvinho, quando sua carroça foi apreendida pela SEMSUR. Embora o rolamento tenha quebrado, provavelmente por falta de manutenção, os momentos em que ele bebia eram usados como justificativa para defender a intervenção que sofrera: “Não tenho pena, não, sabe por quê? Porque o cabra vem trabalhar, aí quer beber? Vá pra casa, ajeite sua carroça. Então, quer beber, tome uma ‘chamadinha’ de uma ou duas. Aí vai para casa, chega em casa e você arreia seu animal, aí pode beber”. Nesse sentido, muitos carroceiros acabavam defendendo até mesmo a fiscalização governamental em suas atividades. A relação dos carroceiros e seus animais, independente das acusações de “maus- tratos”, chegou a ser encarada como uma “manha”, vista, por vezes, como uma “dependência” desnecessária já que eles podem “reconstruir sua vida em torno da bicicleta. (já que) Vários fazem isso”. Era por eles insistirem no uso dos animais que os carroceiros causavam também certa irritação por não colaborarem efetivamente para a mudança: “Eles têm resistência de aceitar qualquer ideia” e “nunca são a favor de nada”. É interessante notar que o “apego” que os carroceiros declaravam por seus animais aparecia de modo muito aproximado nas falas e era, de fato, experimentado pelas protetoras em relação aos animais que diziam proteger. Foi assim que encontrei uma situação peculiar ao entrevistar uma protetora em sua residência repleta de gatos, aproximadamente vinte, além de mais de cinco cachorros de porte pequeno a médio. Além desses, ela era envolvida nos cuidados de quase cem gatos e cinquenta cachorros, que ficavam em outra residência. Estando ali naquela casa não poderia deixar de traçar paralelos daquela situação que ali observava e o que eu tinha experimentado na feira de cavalos, onde, da mesma forma, animal e humano mantinham uma relação de grande proximidade. Além disso, também algumas narrativas se aproximavam: da mesma maneira que as protetoras entrevistadas comentavam sobre uma afinidade “desde criança” com os animais, inclusive até mesmo sinalizando esse período da vida como a certeza de ser uma protetora, um carroceiro também comentaria: “já vim com o dom de gostar de animal”. 191 Com bem menos capital social/cultural e força política, ou seja, não tão bem posicionados nesse campo político, os carroceiros entravam nesse jogo centrando suas defesas na afirmação de suas autoridades morais enquanto trabalhadores, como forma de recuperar sua “dignidade”. Foi o que apresentaram em uma daquelas faixas levantadas em audiência, que descrevemos no tópico 4.1: “nós carroceiros somos trabalhadores. Não somos corruptos”. Essa era claramente uma posição de enfrentamento diante de uma mesa, naquela ocasião, composta por pessoas envolvidas nas esferas de poder público. Nesse sentido, ao passo que a frase fazia referência à noção bastante difundida de corrupção que permeia essas esferas, sobretudo nos últimos anos no país, tentava aludir a um merecimento moral que os carroceiros teriam em detrimento daqueles que seriam “corruptos”, validando o trabalho do carroceiro por estar fundado no valor da honestidade, o que também garantia a dignidade do grupo. Enquanto os demais agentes negavam uma discussão de classe, carroceiros e seus representantes, ao contrário, reforçavam essa diferença, principalmente para reivindicar o papel de vítima. Um deles, por exemplo, declarou “chega de maus-tratos com a classe pobre”. Já outro afirmou “nós estamos levando chicotada”, revelando, assim, como buscaram se colocar na posição e experiência do animal na tração sob a ótica dos defensores, em uma tentativa de traduzir a posição em que acreditavam estar assumindo perante a PMRTVA. Tentavam mostrar, assim, serem eles as verdadeiras vítimas e não os animais. Muitos carroceiros argumentaram em termos de um sentimento de discriminação e de desigualdade. Um deles afirmou, em audiência, “hoje eu estava ali nas Quintas e vejo os dejetos jogados pela CAERN176, onde é que tem um centro de tratamento? Quem é que está sendo punido?” Também, nesse sentido, um dos representantes dos carroceiros chegou a declarar, em resposta à acusação dos maus-tratos aos animais, que “o maior estatuto é maltratado por esses governantes que está na carta magna desta Constituição e ninguém vê isso”, remetendo-se, assim, à falta de acessos à educação, saúde, lazer, entre outros. Eram falas que se mesclavam ao sentimento de indignação, pois “a verdade” é que “nossa periferia é discriminada como marginais”. Da mesma forma, foi trazida com indignação a utilização do termo “infrator” presente na PMRTVA para dizer que serão assim julgados “se não der certo o projeto e (o carroceiro) voltar ao trabalho dele”. Somado a isso, os representantes denunciavam uma tentativa de “demonizar” a atividade dos carroceiros e lutavam pela retirada das carroças com “dignidade”, uma vez que entendiam e combatiam uma ideia que o 176 Companhia de Águas e Esgotos do RN. 192 poder público “vai tirar de qualquer jeito”. Enquanto os carroceiros reafirmavam sua própria moralidade e defendiam uma retirada “digna”; para os demais agentes, a dignidade residia justamente em sair desse tipo de atividade. Uma das agentes do poder público comentava: Essas pessoas precisam ser encaminhadas para uma questão formal de modo que eles tenham um trabalho digno, não que o carroceiro seja indigno, mas dentro de salubridade, por que a gente sabe que não tem nenhuma proteção de EPI177, nada, então em condições dignas de trabalho. Se, para essa agente, a falta de dignidade estava nas condições de trabalho dos carroceiros, sem equipamentos de segurança, para outra era justamente a relação do carroceiro com seu animal que estava em questão: “o que é que nós queremos também? Que os senhores consigam trabalhar de maneira digna, de maneira adequada e para isso trabalhar com o animal tem sido muito mais difícil para vocês também”. Mas essa dignidade não se voltava apenas aos homens, estendia-se aos animais. Dessa forma, já que os carroceiros “usufruíam” dos animais, eles são cobrados moralmente a “tratá-los com dignidade”. Em contrapartida, os carroceiros argumentavam que havia “dignidade” na relação, traduzindo os “cuidados” que tinham para com os animais como uma forma de “carinho”, desenvolvendo, assim, uma linguagem emotiva para sensibilizar. Dessa forma, um dos representantes dos carroceiros afirmou “a questão da gente ter o animal digno, tem pessoas que diz... diz não, nós vemos lá, que trata melhor seu animal que seu próprio filho [...] porque ele diz que é de onde tira seu próprio sustento”. Assim, tentavam mostrar que não eram pessoas brutas, mas sim que também tinham bons sentimentos em relação a seus animais. Nesse sentido, alguns carroceiros também pontuavam o fato de terem mais de um animal para permutar os dias de trabalho pensando justamente no bem-estar do bicho. Contudo, em situações de dificuldade, mostravam como elas eram compartilhadas entre homem e animal. Por exemplo, sobre uma acusação de que os carroceiros dão “lixo” a seus animais, um representante argumentou: “tem morador na nossa comunidade que come lixo, que vai catar lixo e pega os restos mortais do frango, pega os restos mortais dos açougues que vão deixar nos pontos de lixo”. Dessa forma, é interessante comparar que, enquanto as protetoras têm um rol de denúncias de maus-tratos aos animais, como apresentamos no tópico anterior, os carroceiros detêm um conjunto de 177 Equipamento de Proteção Individual. 193 narrativas de sofrimento fundamentado, especialmente, pelas condições de pobreza e pelo estigma (GOFFMAN, 1978) que sofrem. Portanto, vemos como o conflito político se tornava uma disputa moral, que buscava convencer muitas vezes por uma linguagem e uma política das emoções. Como a mais disputada delas, nestes debates, estava a piedade. Ela era requerida para os animais, quando, por exemplo, apresentavam-se fotos e vídeos. Aliás, uma das maiores estratégias das pessoas envolvidas mais diretamente nas causas animais é o uso de imagens para as denúncias ou sensibilização (VILELA, 2013; LEWGOY et al, 2015), entre outros, funcionando então como um “catalisador de emoções” (OSORIO, 2011, p.05). No caso das protetoras, em especial, lembramos a forte articulação através de redes sociais eletrônicas. Assim, denúncias ligadas às imagens facilmente se disseminam e comovem. Na audiência de setembro de 2011, uma protetora dos animais chegou a declarar que “a gente tem fotos, vocês colocam em terreno baldio” para falar dos despejos irregulares de resíduos. Ou, então, a compaixão era parte da defesa dos carroceiros quando estes aludiam à necessidade “da sobrevivência humana”, assim, sustentando-se fortemente suas argumentações em torno das condições de pobreza em que vivem, inclusive para justificar a atitude agressiva de alguns carroceiros (sempre a minoria)178. Um deles chegou a argumentar que “os carroceiros vivem dentro da favela, convivem com o crime, que recebe pressão desde menino [...] é isso que vivemos, vivemos dentro de uma favela, [...] é a lei é do mais forte [...] é a lei da vida, é a lei da sobrevivência”. Havia, portanto, uma disputa em torno da piedade atrelada à vitimização, ou seja, à definição de quem era vítima e a razão disso. A promotora do meio ambiente chegou mesmo a declarar que sabia que “o animal que está sofrendo mais por que está sendo muitas vezes açoitado”. Desse modo, ela acabava reforçando a denúncia dos carroceiros de que, no contexto das discussões da PMRVTA, havia uma percepção desigual sobre quem era vítima e que, por isso, demandava mais direitos (SOUZA LIMA, 2013); eles denunciavam como os animais pareciam sair ganhando. Esse tipo de conflito do mesmo modo aparecia no cenário da “Lei das Carroças”, em Porto Alegre: Toda a disputa envolvendo a prefeitura, militantes da causa animal em Porto Alegre e carroceiros constituiu-se em torno dos cavalos que puxam carroças, e não dos humanos que puxam carrinhos. O que parece moralmente condenável não é o trabalho humano, e se ele ocorre, muitas vezes, nas mesmas condições extenuantes 178 Está presente também nas discussões da PMRTVA uma disputa entre as quantificações das denúncias, representadas pela aplicação dos termos “maioria” e “minoria”. 194 que o dos cavalos, ou se os “carrinheiros” carregam tanto peso quanto uma carroça sustenta. O que está em jogo é a condenação do valor utilitário atribuído aos cavalos, de seu uso como instrumento de trabalho. (MATOS, 2012, p.100, grifos nossos) Dessa forma, em contrapartida à promotora, um representante dos carroceiros questionou: “o que eu vejo aqui é o pessoal está querendo respeitar os animais e onde é que ficam os seres humanos?”. Nessa direção, muitas das falas dos carroceiros e dos líderes comunitários (muito provavelmente em virtude de todos esses tipos de posicionamentos que davam ênfase ao cuidado do animal e que ainda desqualificava os próprios carroceiros) apoiavam-se na dicotomia entre homem e animal, questionando se esse podia ter mais direitos que eles, homens que sustentavam famílias. Contudo, mesmo a ideia do sustento da família como componente moral era rebatida frente ao que seria o “sofrimento” animal. Assim diria a promotora do meio ambiente: “não é por que os senhores têm família que vão ter o direito de ficar maltratando também famílias de animais”. Então, a “defesa da sobrevivência humana” reiterava o sofrimento dos carroceiros que eram “perseguidos e discriminados”. Era, assim, que os carroceiros contavam, especialmente nas entrevistas, sobre os conflitos no trânsito, quando muitas vezes comentam serem destratados, e sobre abordagens em relação ao uso dos animais que têm se tornado frequentes em suas rotinas. Uma acusação recorrente era o de peso excessivo nas carroças, além do uso do chicote. Um deles comentou sobre a vigilância e abordagens agressivas que teve que encarar, afirmando: “é por isso que a pessoa que anda na carroça se revolta com um negócio desse”179. A mesma “revolta” aparecia em algumas acusações que sofriam de roubo: “isso é um pouco revoltante porque a pessoa vive trabalhando, procurando trabalhar, já para não pegar no alheio e a pessoa ser acusada de coisas que não fez”. Isso se somava ainda a vergonha, tal como um carroceiro relatou que chegou a chorar, após uma acusação de roubo, tamanho foi seu constrangimento. Nesse sentido, foi interessante quando um carroceiro afirmou e jogou, em uma audiência, justamente com a ideia do carroceiro “criminoso”: “se vocês inventarem de tirar sem ajudar a população, vocês vão fazer muitos daqui amanhã estar nos presídios públicos [...] porque vão tirar os carroceiros, vão se tornar o quê?”. 179 Obviamente, nem sempre as respostas eram mais afirmativas. Observei como também ocorriam muitas vezes respostas acanhadas e passivas em determinados momentos. Foi quando Diego fora acusado de violentar o animal; ele me diria que nada respondera na ocasião, pois não ia discutir “com uma autoridade” que foi como enxergara a pessoa que o abordara. 195 Entretanto, alguns carroceiros demonstravam como sentiam o desprezo de algumas pessoas por seu trabalho: “as pessoas gostam muito de mim, mas é aquela coisa ‘ah, é um carroceiro’. A gente percebe aquela vozinha” já que são eles, argumentava, que “fazem o trabalho sujo”. Outra fala narrava emotivamente como “o carroceiro é a terceira pessoa depois de ninguém. Quando não existir mais ninguém, a terceira pessoa depois de ninguém é o carroceiro”. Por fim, outro avaliava como o “o carroceiro nunca, mesmo saindo da atividade de carroça, não vai deixar de ser carroceiro”, dito não para afirmar a afinidade dos carroceiros com sua forma de trabalho, mas para afirmar que apesar de inseri-los em outras formas de trabalho, eles continuarão sendo discriminados. Contudo, apesar da discriminação que narravam, como contraponto, marcavam o orgulho de dizer que é carroceiro: “eu sou um homem livre, não devo a ninguém, não. Eu sou um carroceiro livre, sou pobre e tenho vergonha”; “eu fiz o meu nome com o cabo da pá, hoje eu me orgulho de ser um profissional, sim. Eu me orgulho de ser um trabalhador braçal”; “hoje eu não comi nada não mas amanhã eu trabalho e como porque todo trabalhador é digno do seu salário”. Estas falas reforçavam a dignidade conseguida através do trabalho, como trouxemos no capítulo 2. Entretanto, um relato de carroceiro em uma comunidade na Zona Oeste particularmente me comoveu. Ele contou que foi acusado do roubo de um cachorro por um homem que o abordara na rua. Ao verificar a carroça e nada encontrar, o acusador teria oferecido dez reais para remediar a situação de mal-estar que ele provocara, o que, ao meu ver, acabara sendo mais uma grosseria. Só que, para minha surpresa, esse carroceiro contou ter ficado satisfeito com a quantia recebida e por isso não “ligara” já que ele, alegava, conseguira “fazer seu dia”. Essa postura me apontou para uma outra compreensão de dignidade que pode também estar envolvida nos contextos do trabalho dos carroceiros. Ou seja, receber aqueles dez reais parecia bem mais importante para o carroceiro do que mostrar-se “indignado” com a situação. Retomando à questão das diferenças de classe, ela estava tão presente nas falas de carroceiros que levava a alguns a entenderem a política de retirada das carroças como uma iniciativa “dos poderosos”, sem saberem precisar quem, que “têm dinheiro e quer pisar na gente”. Frequentemente se mostravam “revoltados”, “indignados”, “humilhados”, “magoados” diante das discussões em torno da proibição de suas atividades. Um deles chegou a declarar: “Eu acho até que seja desumano isso aí [...] vai deixar muito pai de família desempregado, sem ter o que dar para os filhos”. Nas entrevistas, alguns discorreram até 196 mesmo sobre a forma de participação deles na política, denunciando os processos de exclusão nos debates: Eu me sinto impotente porque enquanto eles falaram, cada um tinha uma hora pra falar naquela (audiência) lá de cidade da esperança, deram um minuto para cada carroceiro. [...] Um minuto! Você acha justo? O grupo dominante tem uma hora cada um, massacra um miserável que não tem nem o que comer direito, que vive comendo no sol, poeira, tomando banho de chuva, muitos deles sendo humilhados... Ter um minuto pra falar, pra se defender?! Na mesma direção, Santos discorreu sobre como se sentia ao ter conhecimento da reunião que ocorreu na Prefeitura de Natal, em dezembro de 2015, para a qual não haviam sido convidados os carroceiros: revolta [...] pela falta de respeito que eles (o poder público) têm com o trabalhador [...] a gente se sente traído como cidadão [...] eu elejo representantes, eu elejo gestores para dar suporte [...] E na hora que o gestor municipal como o senhor prefeito faz isso junto com uma minoria da sociedade, que é a minoria, a elite é a minoria, [...] (eu me sinto) covardemente traído. Motivados pela “impotência” e pelo “medo” que sofriam, é necessário ressaltar que, ao serem “pressionados”, alguns carroceiros, como dissemos no capítulo anterior, já antecipavam deixar seu trabalho e suas atividades cotidianas com as carroças. Enquanto as protetoras e grande parte dos agentes municipais e autoridades públicas se dizem “aliviados” com a proibição das carroças, os carroceiros entendiam todo o processo como uma “injustiça” e “maldade” com os trabalhadores. As distinções morais que atuavam sobre os carroceiros eram tão marcadas que até mesmo alguns agentes municipais que agem como mediadores, voltando-se à tentativa de compreensão do mundo social dos carroceiros, sofriam diversas críticas. Uma das protetoras chegou a comentar a respeito da Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social (SEMTAS) “a maioria ali é assistente social e tem dó. Vão olhar a casa da pessoa (carroceiro), vão ver a situação da pessoa e tem dó. Só que para mim dó não funciona. Se eu estou oferecendo um curso para você evoluir, porque você não se agarra nisso?” Da mesma forma, acontecia ao Prefeito de Natal, quando este tentava apresentar um fator “cultural e secular” que imperava no uso das carroças para justificar como demandaria tempo retirar as carroças de circulação. 197 5.3 A fabricação da maioria Nessa direção, não bastava apenas acusar o trabalho dos carroceiros, pois era preciso justificar uma necessidade de controle da população envolvida com o uso dos VTAs de forma que ela se mostre de fato verdadeira. Foi, então, que a noção de maioria passa a ser um elemento-chave associado às denúncias feitas sobre o trabalho dos carroceiros. Assim, os agentes do poder público, e ONGs em geral, sustentavam a defesa de uma série de intervenções de ordem moral, pedagógica e também de controle, através das medidas judiciais e de vigilância policial e civil de uma forma generalizada. Deve-se, então, considerar o trabalho da imprensa, que se trata de um agente de destaque, pois atua fabricando e disseminando as denúncias em torno do trabalho dos carroceiros e transmitindo, em geral, uma ideia do “interesse coletivo” pelo fim das carroças. As notícias abordavam especialmente as dificuldades no trânsito e também a disposição irregular dos resíduos, apesar de, algumas vezes, esses temas conduzirem a denunciar a lida com o animal. Entretanto um caso de maior divulgação, que aconteceu recentemente180, focava no uso dos animais. A denúncia teve origem em uma página de notícias na internet que reuniu cenas dos mais diversos crimes, entre eles frequentemente assassinatos, onde eram expostos corpos humanos perfurados e mutilados sem nenhuma precaução181. Apesar desse perfil, uma das postagens dedicou-se à “denúncia” de “enforcamento” de um cavalo que era utilizado por um carroceiro, alcançando uma das maiores repercussões da página ao menos naquele mês. Essa “informação ‘posta em imagens’ que a notícia agregava contribuía para “um efeito de drama que é próprio para suscitar muito diretamente emoções coletivas” (CHAMPAGNE, 2003: 64). O que também ocorreu, por exemplo, no caso da visão midiática da AIDS que, sobretudo na década de 1980, foi prolífica em articular dita “informação” objetiva com forte conteúdo moral, o que suscitou uma experiência disseminada de medo e aversão das pessoas doentes, definidas como “aidéticas” (VALLE, 2002). 180 Em 16 de abril de 2016. 181 Essa página, meses depois, chegou a ser removida da rede social que a hospedava. Segundo matéria publicada no Novo Jornal comentando o caso: “a rede social não informou o motivo da suspensão da página, conhecida por divulgar imagens de violência explícita e por usar conteúdo jornalístico produzido pelos tradicionais veículos de comunicação do estado sem autorização”. A matéria ainda narra uma situação em que a página removida teria divulgado equivocadamente a foto de um homem como autor de crime em que ele não estava envolvido. Disponível em: , acesso em 28 de julho de 2016. 198 Nesse sentido, também alguns comentários que seguiram à notícia da morte do cavalo causam impressão pela agressividade das palavras, transmitindo a revolta e o ódio que aquela informação causava: “merece levar um mói de pau”, “merece uma surra da boa”, “merece ser enforcado da mesma maneira”. A violência que acabavam de acusar era assim rebatida com mais violência, embora aqui no campo hipotético, mas que acabavam conduzindo ao reforço das diferenciações morais. Era possível, então, averiguar os modos discursivos de indignação que se produziram no debate público em Natal. Um dos diálogos, estabelecido nos comentários da notícia, foi bem representativo. Um rapaz se posicionou: “Sabemos que os carroceiros precisam (de trabalho), porém eles não veem limite na carga colocada para o animal levar, a maioria são um bando de ignorantes”. Uma jovem respondeu: “Além de ignorantes, a maioria são uns bêbados, alcoólatras”. Outra complementou: “E malvados também, espancam tanto que dá dó”. Em seguida, outros dois retrucaram a fala do primeiro. Um deles comentou: “A maioria não é um bocado de ignorante, não, pois conheço vários ignorantes que tratam muito bem os animais. A maioria é um monte de bandido mesmo [...]”. Por seu turno, o outro ainda complementou: “o carroceiro precisa? E o coitado do cavalo? Você acha que ele precisa de quê? Todo mundo lutando para erradicar de vez essa imundície, você me vem com um comentário desse e ainda diz que precisa?! Eca”. Apresenta-se aqui um exemplo claro da articulação dos modos de produção da imprensa e as “representações públicas” que operam processos de estigmatização, o que nos leva a pensar, certamente, nos modos em que a grande imprensa constrói e conforma mal-estares sociais, aquilo que Patrick Champagne (2003) nomeia como a visão mediática. Assim, como um de seus “efeitos da mediatização”, encontramos o reforço dos estereótipos em seus poderosos efeitos de ordem simbólica que, no caso dos carroceiros em questão, acentuam-se diante daquilo que Champagne alertava: “os dominados são os menos aptos a poderem controlar sua própria representação” (ibid, p. 68). Nesse sentido, tínhamos notícias apresentando os carroceiros como os “vilões da limpeza urbana”182, um dos “nós de congestionamento do trânsito na cidade”183, eram a própria “conduta animalesca todos os dias nas ruas”184, enfim, cuja atuação “nas ruas da cidade provoca reclamações”185. Paralelo a isso, 182 Jornal de Hoje, de 09 de fevereiro de 2010. Disponível em: MINISTÉRIO PÚBLICO DO RN (2012, p. 36). 183 Tribuna do Norte, de 13 de agosto de 2014. Disponível em: , acesso em 23 de julho de 2016. 184 Tribuna do Norte, de 20 de janeiro de 2010. Disponível em: MINISTÉRIO PÚBLICO DO RN (2012, p. 47). 185 Tribuna do Norte, de 30 de outubro de 2007. Disponível em: MINISTÉRIO PÚBLICO DO RN (2012, p. 41). 199 também chama atenção a recorrência do termo “disciplina” nas reportagens, acentuando uma noção da necessidade de controle de uma “desordem” que seria o trabalho dos carroceiros na cidade. Foi, então, interessante localizar nos anexos da ação civil pública uma reportagem datada de 2006, ou seja, quase quatro anos antes das primeiras iniciativas para discussão da política de retirada das carroças, a seguinte cobrança: “falta uma lei específica para punir carroceiros infratores”186. Inclusive, é nítida a sondagem e presença recorrente desta imprensa nos encontros e audiências. Uma imprensa militante, aliada a determinados setores sociais, é um importante instrumento reforçando frequentemente a necessidade de fazer a política funcionar, mas que faz isso também produzindo uma “falsa democracia”, como diria Champanhe. Era interessante, dessa forma, conhecer alguns carroceiros que foram abordados por determinados veículos de comunicação a fim de que pudessem apresentar sua “versão” dos fatos. Contudo, entendemos como essas matérias visavam a “fabricação do acontecimento” e que “nada mais faz, na maioria das vezes, que reforçar as interpretações espontâneas e mobiliza, portanto, os prejulgamentos e tende, por isso, a redobrá-los” (CHAMPAGNE, ibid, p. 64). Aliás, estas mesmas diferenças de classe que Champagne considera ainda aparecem quando protetoras conseguem divulgar mais amplamente suas perspectivas, não somente nas redes sociais, mas como foi, por exemplo, na publicidade através de um outdoor que foi instalado em dois pontos da cidade, de muita semelhança com as imagens e retórica de sensibilização que a imprensa produzia. 186 Tribuna do Norte, de 31 de janeiro de 2006. Disponível em: MINISTÉRIO PÚBLICO DO RN (2012, p. 44). 200 Figura 29: Campanha da proteção animal em Natal/RN Fonte: Arquivo da pesquisadora Uma das protetoras, que se juntara a mais duas para o financiamento desta campanha, comentava o sucesso do empreendimento: “a gente colocou esse outdoor [...] e foi muito visto, foi muito bombardeado. Eu acho que de todas as coisas que a gente já fez para o animal essa aí foi uma forma muito proveitosa de chamar a atenção da sociedade para isso”. Segundo comentou, o outdoor ainda levava em consideração o fato de ser o mês de dezembro como estratégia de campanha por ser o período natalino. O outdoor deixava revelar ainda mais: a dimensão da devoção religiosa no modo de operar da proteção animal, associada a um valor cristão da compaixão, assim como é mencionado em Lewgoy et al (2015). Nessa direção, a protetora ainda afirmaria: A minha ideia a priori foi colocar esse outdoor no natal porque Jesus foi transportado em um jumento. Eu queria tocar essa coisa: a sensibilidade por parte de Jesus [...] Essa é a nossa ideia aqui: a de lembrar a nosso povo que o animal, o jumento, é um animal sagrado. Ele transportou a família de Jesus, tem toda uma história por trás dele. Eu pensei: por que a gente não usa a simbologia do jumentinho com Jesus para comparar com a atual? Então a gente colocou um jumentinho andando na areia e o outro andando no asfalto com a sobrecarga, faminto, doente, debilitado, para ter esse comparativo. Se retomamos a questão da imprensa, inclusive a partir da reportagem do cavalo vítima de “enforcamento”, um comentário de uma radialista da cidade deixou claro ainda 201 como esse tipo de ação de divulgação e sua posição eram espaços privilegiados para a disseminação das denúncias: Que absurdo! Cadê o responsável preso e pagando pelo crime? Gente, eu fico totalmente indignada com isso. Já presenciei inúmeras vezes carroceiros sacrificando e batendo com porretes nesses inocentes. Pelo amor de Deus, vamos fazer alguma coisa! Eu como formadora de opinião continuarei falando desse descaso com os animais, e também falarei assim que possível com o prefeito sobre a lei que proibiria carroças em vias urbanas (A PREFEITURA TEM QUE FAZER ALGUMA COISA) Cadê a defesa dos animais? Sou defensora, não sou política e nem pretendo, mas lutarei por uma punição aos culpados desses absurdos que acontecem com nossos animais. Não aguento mais. Havia, inclusive, também no contexto aqui pesquisado, uma protetora dos animais de destaque, jornalista, recentemente beneficiada com o título de cidadã natalense na Câmara dos Vereadores que foi concedido por seu trabalho jornalístico em canais televisivos, mas também pela defesa animal em que está envolvida. Na ocasião, ela havia reforçado: Quero agradecer a essa legião de pessoas do bem que dedicam horas preciosas dos seus dias para defender a dignidade dos animais. Mesmo diante de tantas necessidades humanas, existe solidariedade com essas vidas indefesas. Agora, para a minha felicidade ficar completa, gostaria de divulgar a seguinte notícia: a proibição das carroças de tração animal em Natal. Em síntese, diante de todo esse quadro, estamos presenciando exatamente como opera uma política da piedade, em que se torna central definir quem é realmente vítima de abusos, maus-tratos e como se operam os modos de desigualdade nesse campo. Nesse sentido, as denúncias que eram feitas as carroceiros evidenciavam, especialmente, a profunda aversão quanto a seus modos de vida, inclusive sinalizando as diferenças de classe entre os agentes. Por exemplo, foi o caso da protetora diminuir a importância da casa própria que surgiam, segundo ela, como o “sonho” dos carroceiros em um cadastramento. Sarti descreve como a realização da casa própria configurou-se “projeto central da existência dos trabalhadores que se estabeleceram na cidade”, diferenciando-os dos outros pobres, os “pobres mesmo” (1994, p. 28). Outro exemplo, na mesma direção, deu-se quando uma protetora, em audiência, ao falar diretamente aos carroceiros comentou: “O que a gente vê na rua, gente, me desculpe, mas a maioria são maus tratos. Vocês são minoria, eu fiquei feliz em ver vocês aqui porque 202 pra mim esse cenário de vocês não existia”. Assim, ela acabava demonstrando o conhecimento reduzido e localizado que tem dos carroceiros, uma mesma perspectiva que é fortalecida e disseminada por uma forte atuação forte da imprensa hegemônica. 203 JOGANDO COM A “SOLUÇÃO” (Considerações finais) Em 8 de dezembro de 2015 foi promovida uma reunião na sede da Prefeitura de Natal entre a Promotoria do Meio Ambiente e o Município e suas Secretarias com a finalidade de apresentar mais encaminhamentos e algumas mudanças na minuta do projeto de lei para a retirada dos veículos de tração animal. Nesse encontro, havia também a presença de aproximadamente dez protetoras de animais que reivindicavam, junto da Promotoria, a assinatura da minuta pelo Prefeito, que também participava, para, então, direcionamento do projeto à Câmara de Vereadores de Natal. Eu tomara ciência desta reunião através da circulação, em rede social, de um convite às protetoras realizado pela promotora do meio ambiente com intuito declarado de mostrar “insatisfação” com o Município pela “demora no cumprimento do acordo”. Apenas consegui participar da reunião e gravar um áudio com a ajuda das protetoras, após comunicar sobre a minha condição de pesquisadora. Ainda estiveram presentes os representantes da SEMSUR, SEMOB, SEMTAS, além da Procuradora do Município, Cássia Bulhões, e do Procurador Geral do Município, Johnny Costa. Dentre o grupo de protetores, destacou-se mais uma vez um médico veterinário, presidente de uma associação de protetores de animais, mas a representar igualmente um saber especializado e autorizado. Em algumas audiências, até mesmo em reuniões entre agentes do poder público e protetoras, chamou-me imediatamente a atenção não estavam presentes muitos carroceiros ou representantes, mas, em especial, nesta nenhum estava presente, tal como pude verificar in loco. Aliás, essa reunião me pareceu decisiva para a continuidade e regularização da PMRVTA. Poucos meses depois, tive acesso, através de protetoras, de uma cópia da nova minuta PMRVTA, que foi recebida pela Câmara dos Vereadores um dia após a reunião na Prefeitura. Em seguida, até o fechamento deste trabalho, uma última audiência aconteceria em 06 de abril de 2016, na mesma Câmara, mais uma vez convocada pela Frente Parlamentar dos Animais, na pessoa do vereador Sandro Pimentel (PSOL), com o intuito de discutir a minuta. Foi convidada a procuradora Cássia Bulhões, que apresentou as mudanças no documento. Com ela, compuseram a mesa os representantes da SEMSUR, Antônio Falcão, e da SEMURB, Gustavo Szilagyi, além da promotora Rossana Sudário. 204 Figura 30: Audiência pública na Câmara dos Vereadores de Natal em 06 de abril de 2016 Fonte: Arquivo da pesquisadora Estiveram presentes protetoras dos animais, embora dessa vez participassem representantes dos carroceiros, tais como Ednaldo e Santos. Adentrariam, depois de um tempo decorrido do início da sessão, alguns carroceiros, em torno de cinco a sete. Outros dez, em média, fecharam em protesto a avenida em frente ao prédio com seus veículos, carroças e charretes. Figura 31: Carroceiros em frente a Câmara dos Vereadores de Natal Fonte: Arquivo da pesquisadora 205 É importante destacar que os carroceiros que estavam do lado de fora da Câmara tiveram a entrada barrada por causa de suas roupas (bermudas) avaliadas como impróprias para adentrar o prédio. Esse fato evidencia o quadro de exclusão sistemática dos carroceiros aos espaços das audiências para debater a PMRVTA, sobre o qual nos voltaremos mais adiante. Figura 32: Carroceiros em frente a Câmara dos Vereadores de Natal (outro ângulo) Fonte: Arquivo da pesquisadora Segundo os agentes municipais, a minuta de lei foi elaborada a partir de reuniões técnicas nos últimos dois anos, mas, até o momento, está ainda em fase de tramitação para compor pauta de discussão dos vereadores. O documento propõe a implantação da política a partir de três eixos norteadores: 1) Programa de “Inclusão Sócio-produtiva”187, sob coordenação da SEMTAS, visando o ingresso dos condutores de Veículos de Tração Animal (VTA) no mercado de trabalho, incentivo a pequenos negócios no núcleo familiar e encaminhamento aos empreendimentos econômico-solidários. Desde a audiência no CEMURE, estava sendo declarada a intenção de oferecer cursos profissionalizantes e de capacitação primeiro para os carroceiros, mas depois essa proposta seria ampliada para abarcar os demais familiares a fim de facilitar uma “inclusão”, já que há grande resistência 187 Esta é uma nova nomenclatura que surge nas modificações da minuta que ocorreram após a audiência da CEMURE, quando era apresentado o antigo “Programa de Inclusão Sócio-Profissional”. Essa modificação parece ampliar as perspectivas quanto ao direcionamento dos carroceiros a novos postos e condições de trabalho. 206 dos carroceiros em abandonar suas atividades. Dessa forma, uma das consequências da PMRVTA poderá ser a perda do carroceiro de sua posição enquanto chefe de família, já que essa função pode vir a ser assumida por algum outro familiar. Também, na nova proposta de minuta, desaparece o apoio direto, explicitado no antigo documento, quanto à aquisição de veículos substitutos às carroças movidas por tração animal, uma alternativa que inclusive já vinha perdendo espaço na pauta de discussões propostas pelo Município. Nessa última audiência até então analisada para o fechamento desta dissertação, a representante da SEMTAS comentaria que a proposta de substituição por outro veículo enfraquecera por haver uma grande maioria de carroceiros analfabetos ou semianalfabetos, sendo esta condição impeditiva de retirar uma Carteira Nacional de Habilitação (CNH). O segundo eixo tratava-se do “Programa de educação ambiental”, direcionado à SEMURB, com o intuito de promover ações voltadas ao bem-estar dos animais; à destinação correta de resíduos e orientações quanto a aplicação da lei de retirada dos veículos de tração animal. Por fim, o terceiro eixo da PMRVTA era o Programa de Bem-estar dos Animais, que compete à SEMSUR, abarcando ações relativas ao funcionamento do curral municipal e à saúde dos animais que para lá fossem encaminhados, à identificação e controle na circulação temporária dos animais e à destinação dos animais ungulados apreendidos. A minuta estipulava um prazo de 90 dias, a partir da publicação da lei, para que as secretarias municipais elaborem estes programas que seriam, em seguida, apreciados pelo prefeito, “para ulterior regulação por intermédio de Decreto”. A partir da aprovação da lei, o documento estipula imediatamente a proibição da circulação de menor de 18 (dezoito) anos como condutor ou passageiro nos veículos de tração animal188, e a proibição da permanência de animais, de que trata esta Lei, soltos ou atados por cordas ou por outros meios, em vias ou em logradouros públicos, pavimentados ou não. Até o prazo final de um ano, pretendia-se proibir a circulação de veículos de tração animal, a condução de animais com cargas e o transito montado em todo o Município de Natal. A nova minuta apresentava uma mudança significativa na PMRVTA, que era a possibilidade de prorrogação da aplicação dessa última proibição por mais um ano, o que gerou crítica de uma das protetoras. Contudo, a procuradora do Município defendeu ainda contemplar o prazo previsto no acordo firmado pelo juizado. As penalidades previstas são 188 Prevendo multa de 100 reais pela infração e comunicação ao Conselho Tutelar. 207 além de multa189, a apreensão do animal, veículo e carga, quando caberá ainda a averiguação das condições de saúde do animal e posterior “alienação mediante doação, leilão ou adoção”. Outra novidade era a determinação da responsabilidade do condutor ou proprietário após o recolhimento do animal, da “remoção e retirada dos veículos de tração animal, bem como das respectivas cargas”, sendo a infração multada em 100 reais com apreensão da carga e do veículo. Desde a audiência do dia 24 de junho de 2015, a procuradora Cássia Bulhões já explicava que caberia à SEMURB a fiscalização nas ruas com o propósito de notificar e tomar as medidas de lavrar o Auto de Infração e Termo de Apreensão. Destacava ainda a atuação da SEMSUR na destinação dos animais e a possibilidade de participação da Guarda Municipal como auxiliar nesse processo, apresentando, desse modo, o aparato de controle e fiscalização do poder do Município. Assim, o condutor do veículo de tração animal teria um prazo, segundo a minuta de dez dias, para apresentar sua defesa na SEMURB, que avaliará e decidirá sobre a situação. Se não houver reclamação do proprietário do animal, nem a rejeição da defesa apresentada pelo carroceiro190, a SEMURB se responsabilizará por “adotar as providências relativas à alienação do animal apreendido”. Em situações em que sejam identificados “maus-tratos”, “comprovados por laudo médico-veterinário”, declara-se a perda do animal e “notitia criminis191 à Polícia Civil ou ao Ministério Público”, além de ser aplicada uma multa de 2.000 reais192, que já fora determinada pela Lei Municipal nº 6.320, de 1° de dezembro de 2011. Em caso de apreensão de carga ou veículo, estes serão devolvidos com a comprovação da propriedade. 189 Aqueles que infringirem a proibição da circulação de animal serão multados em 500 reais. Todas as multas, segundo a minuta, terão seus valores corrigidos no mês de janeiro de cada ano “mediante Decreto do Chefe do Poder Executivo, pelo índice utilizado para atualização dos créditos da Fazenda Pública do Município do Natal”. 190 É prevista a possibilidade de recurso em relação a decisão da SEMURB no prazo até então estipulado em cinco dias. Aqui também comporta uma modificação pois esse prazo na antiga minuta era de quinze dias. 191 “Comunicação do crime”. 192 Que já era dada pela Lei Municipal nº 6.320, de 1º de dezembro de 2011. 208 Figura 33: Veículo do Município para apreensão de animais Fonte: SEMURB Outro ponto que surge nas reformulações da minuta é a previsão de “definição das áreas de circulação de veículos de tração animal” a ser publicada posteriormente em decreto do prefeito. Na reunião ocorrida na prefeitura, Cássia Bulhões citaria essa restrição da circulação como uma “ideia de que ele (carroceiro) fique restrito ao bairro ou à região onde ele esteja situado por que hoje acontece muito do carroceiro sair de Cidade Nova para ir à Ponta Negra e voltar. A gente acabaria com esse trânsito”. A partir de todos os aspectos até agora apresentados, é perceptível a relação entre pontos de vista conflitantes que se dão entre os diversos agentes e instituições que foram descritos na análise, sobretudo os diversos representantes dos poderes públicos, que se posicionam e reivindicam, ao lado das entidades protetoras dos animais, o status de interesse coletivo, como a própria “voz natalense”; mas também os carroceiros, seus representantes e familiares, sobre algumas questões, quais sejam: qual e como deve ser o uso ou não dos animais; onde é aceitável o trânsito das carroças e suas implicações para a mobilidade urbana; a quem cabe a responsabilidade da destinação (incorreta) dos resíduos; além da própria forma de exercer (ou não) a atividade na carroça, entre outros. Entendemos aqui “conflito” através da perspectiva de Simmel, apontando que ao mesmo tempo que separa, ele põe em relação esses agentes: “o conflito está assim destinado a resolver dualismos divergentes; é um modo de conseguir algum tipo de unidade, ainda que através da aniquilação de uma das partes conflitantes” (SIMMEL, 1983, p. 122). 209 Para subsidiar a análise desses conflitos em torno da Política Municipal de Retirada de Veículos de Tração Animal (PMRVTA), fundamental foi recorrer ao suporte de Pierre Bourdieu (1983) em relação à teoria dos campos. Assim, o que podemos perceber, através das análises das audiências, são agentes diferentes atuando sobre a questão da retirada de veículos de tração animal que, por vezes, aproximavam estrategicamente seus discursos e práticas, mesmo que alguns deles aparentem uma unidade. Nessa direção, compreender o campo de disputas em torno da Política Municipal de Retirada de Veículos de Tração Animal passa necessariamente pela análise de um poder judiciário que, somando-se ao coro das protetoras dos animais na defesa do meio ambiente, atuou como força decisiva nesse campo. É o que observamos a partir da construção da Ação Civil Pública (ACP), que transferiu as discussões para uma esfera de sua própria expertise, ao judicializar a situação dos carroceiros. Deve-se ressaltar que se trata de um judiciário que esteve em conflito, por algum tempo, diretamente com o poder executivo, mas confrontando- se, especialmente, a favor da responsabilidade no que cabe à proteção dos animais. Na própria ACP constava a “relutância” da Prefeitura em atender ao pedido de controle dos veículos de tração animal. Contudo, observamos como ele, através de sua Procuradoria Geral, manifestou-se em oposição ao Ministério Público em duas ocasiões, formalizando dois documentos que podem ser resgatados nos autos do processo instalado pela ACP. Neles, o Município buscava se ausentar de responsabilidade aduzindo como “juridicamente impossível”193, o pedido da Promotoria do Meio Ambiente em relação à retirada dos animais ungulados da cidade, uma vez que não é seu ônus “criar e mantê-los”, justificava, “à guisa de alegados maus-tratos, praticados por particulares e não pela Administração Pública”. (MUNICÍPIO DE NATAL apud MINISTÉRIO PÚBLICO, 2012, p. 55). Manejando as legislações existentes, apresentava outra interpretação para a situação alarmada pelo Ministério Público (MP) no que se refere aos “maus-tratos” praticados pelos carroceiros em Natal. Resgatando o Código Civil que “prescreve a responsabilidade objetiva do proprietário do animal por danos por ele causados” (ibid, p. 1978), o Município evidenciava, dessa maneira, que um “eventual ato comissivo de maus-tratos é de exclusiva responsabilidade do proprietário do imóvel (sic), não podendo o Ente Público Municipal arcar com o ônus decorrente deste fato” (ibid, p. 1979). Defendia ainda que os maus-tratos se 193 Também eram consideradas as impossibilidades “física e material” no pedido de remoção de todos os animais ungulados de Natal, uma vez que o curral não teria as condições de receber essa demanda. 210 configuravam como um “tipo penal” que competiam justamente às atribuições do Ministério Público, e que, portanto, entendia como o último tentava “transferir” sua responsabilidade ao Município194. E até mesmo, em um momento, a Prefeitura, através da sua procuradoria, era taxativa ao ponderar que: Deve-se ressaltar, inclusive, que parte dos carroceiros desempenha atribuição de frete, especialmente junto às empresas de material de construção. Logo, o desempenho da atividade, em si, não configura prática de maus-tratos, nem tampouco poluição pelo eventual despejo de resíduos em local inapropriado. Revelava-se assim, de forma bem óbvia, uma posição totalmente contextual da Prefeitura de Natal, que chegava até mesmo, na situação que lhe cabia, a afirmar a possibilidade de um uso dos animais na tração sem “maus-tratos” e despejo irregular, autorizando certo tipo de serviço realizado por carroceiros. Reforçava da mesma forma quando discorria sobre o que afirmava ser um pedido do MP “desarrazoado e desproporcional” de retirar os animais ungulados da cidade195 “sem motivação específica, e mais, sem previsão legal, uma vez que a legislação municipal admite veículos de tração animal” (ibid, p. 1979, grifos nossos). A Prefeitura fazia, assim, referência às leis municipais, apresentadas no quinto capítulo, que expressamente autorizavam o trânsito de carroças na cidade. Apesar de seu posicionamento contrário à retirada dos animais ungulados, a Prefeitura considerava que a situação dependia da elaboração de “política pública”, pois o que havia eram “apenas normas esparsas que tratam de problemas pontuais, sem a preocupação relativa à questão social dela decorrente” (ibid, 2012, p. 56, grifos nossos). Dessa forma, era preciso observar não apenas a situação dos animais, mas “os demais aspectos que norteiam a atividade, quais sejam, a situação econômica e social dos proprietários dos animais que exercem a atividade de carroceiros, seja no transporte de fretes ou outros usos, legalmente admitidos” (ibid, p.1980). Nesse momento de negociações, é curiosa a forma como a situação 194 Nesse sentido, defendia como a postura do MP era um “equívoco”, tratando-se de “criação de obrigações que não possuem respaldo legal”, uma vez que “medidas de ordem administrativas são de atribuição exclusiva do Executivo, não cabendo ao Ministério Público, a seu talante, estabelecer quais medidas devem ser aplicadas pela Administração e ao Judiciário determinar providências que não foram instituídas por lei; tudo sob pena de atentado ao princípio da independência e harmonia dos Poderes consagrado no artigo 2º da Constituição Federal” (MUNICÍPIO DE NATAL apud MINISTÉRIO PÚBLICO, 2012, p. 56-57). 195 Em certo momento, o Município ponderava sobre sua competência em “apreender animais abandonados” e “coibir os maus-tratos”, porém, deixava claro não se equiparar ao pedido da promotoria para a remoção de todos os animais ungulados da cidade. 211 dramática em que estariam envolvidos os carroceiros e seus familiares é posta em consideração: “Ressalta que o deferimento do pedido liminar acarreta verdadeiro dano inverso, na medida em que deixará, de antemão, aproximadamente 700 famílias, sem renda” (ibid, 2012, p. 55, grifos nossos). Observando parte do processo da ação civil pública, em suas mais de 2.230 páginas, estamos diante de vários mecanismos do direito como os prazos para recurso, interpelações, contestações, etc., até a decisão judicial pelo impedimento do uso dos VTAs, que constroem uma aparência de decisão sólida e inconteste. Contudo, durante todo esse processo é mais do que óbvia a exclusão dos carroceiros nas questões fundamentais e que ainda se efetiva de forma bastante evidente. Então, não é de surpreender o início de um acordo extrajudicial entre o MP e a Prefeitura de Natal, narrado pela Promotoria do Meio Ambiente, que teria “procurado” o prefeito Carlos Eduardo, que se mostrou “muito sensível” à causa apresentada por ela, ocasião em que também acordaram o prazo de cinco anos para retirada das carroças196. Destaca-se o que uma protetora partícipe dessas negociações junto à Promotoria chegou a comentar: “se não fosse a gente pressionando talvez isso nunca tivesse saído”. Portanto, foi o poder judiciário uma força determinante para decidir pela retirada definitiva dos animais de tração das ruas. Tanto, obviamente, pela decisão judicial estipulando um prazo, quanto pela dedicação ao caso levado pela Promotoria do Meio Ambiente. É compreendendo parte dessas movimentações políticas, mesmo que superficialmente, que os carroceiros manifestam uma aversão profunda dirigida especialmente à Promotoria do Meio Ambiente, declaradamente na pessoa da Promotora Rossana Sudário197. Ela era o foco principal de queixas e enfrentamento dos carroceiros, o que personalizava o conflito: “Quem quer tirar os carroceiros das ruas é a promotoria pública, quem está mexendo realmente com 196 Há que se registrar aqui que houve uma primeira sentença judicial sobre a questão que foi negativa à ação do MP. Revelando a fragilidade do pedido, sentenciava o juiz: “No caso dos autos, constatamos que a prova documental acostada é insuficiente ao reconhecimento de que haja animais circulando livremente nas vias da cidade de modo que a providência perseguida mostre relevância e urgência para o provimento antecipatório perseguido” (PINHEIRO, Airton apud MINISTÉRIO PÚBLICO, 2012, p.1965). Assim, expunha aquilo que o Município, em sua manifestação, entregava: um uso feito pela Promotoria de “registros fotográficos não datados e sem a possibilidade de identificar a localização”. 197 Foi assim que a promotora do meio ambiente se tornou um assunto recorrente nas entrevistas que realizei, surgindo sempre espontaneamente. Também nas audiências alguns carroceiros e mesmo familiares, ou outras pessoas que vieram em defesa dos carroceiros nas audiências, mostraram uma indignação direcionada à promotora Rossana Sudário. Ela é reconhecida especialmente pelos noticiários televisivos, mas as limitações dos carroceiros em relação ao processo de retirada das carroças transparecem também à medida que muitos não sabem nem ao menos nomear a promotora. 212 os carroceiros. É como se fosse algo pessoal dela (promotora). Ela quer mostrar que ela é ela e acabou-se”. Aliás, os carroceiros do ponto da praça tinham a mesma reação . Por exemplo, um deles, quando me comentou sobre a diminuição das feiras de trocas de cavalo, chegou a dizer que foi “a promotora que acabou com tudo”, até porque muitos entendem que foi ela que “disse que ia dar um jeito nos carroceiros” e que ela “vai tomar o que a gente comprou, o que a gente tem”. Dentre os comentários sobre a promotora, alguns foram bastante interessantes quando pareciam dialogar hipoteticamente: “ela não acha que ser promotora é bom? Ser bom é carroceiro, que é de onde eu ganho o pão dos meus filhos, é de onde eu consigo alguma coisa na minha vida”. Outra fala afirmava a importância de seu conhecimento prático e de mundo em contraposição a um saber acadêmico do direito, buscando um tom educativo que gostaria de imprimir na relação da promotora com os carroceiros: E eles falando que os carroceiros são uns maus elementos. Eu digo ‘doutora, a senhora não está falando com animal, não. A senhora está falando para seres humanos iguais à senhora e com mais noção do que a senhora, por que a senhora tem mais saber do que eu mas não tem a noção que eu tenho’. Era mais explícito o antagonismo dos carroceiros à promotora do que mesmo com a Prefeitura de Natal. Um exemplo marcante disso foi o ato de protesto dos carroceiros, em 30 de abril de 2015, realizado estrategicamente na sede do Ministério Público – ao invés da Prefeitura – pois, segundo um dos organizadores do ato, “lá é que está a dona do processo, doutora Rossana Sudário, é a promotora. Esse processo é dela, ela que está pedindo junto de outras instituições em defesa dos animais para a retirada dos animais das ruas”198. Nesse sentido, um dos carroceiros foi bem contundente ao responder uma pergunta realizada no cadastramento da SEMTAS: Na entrevista (no cadastro realizado pela SEMTAS) eles perguntam [...] ‘tem algum inimigo?’ Eu digo ‘Tenho. A única inimiga que eu tenho é Rossana Sudario, é a minha inimiga número 1’. Eu deixo bem claro que ela é minha inimiga porque ela está querendo tirar o meu pão, o meu sustento que eu ganho dignamente. Para outra liderança dos carroceiros, a promotora Rossana Sudário era o “laço das elites” que está com o “grupinho” das protetoras. Essa rivalidade bastante acentuada gera 198 “Carroceiros - comitê popular natal de direitos 2015”, disponível em: , acesso em: set de 2015. 213 outras compreensões equivocadas199 dos carroceiros como o que deve ser um dever moral da promotora do meio ambiente em solucionar uma situação que, entendem, foi causada por ela: “se ela quer fazer cumprir a lei, certo... mas nos dê alternativas”. Um até mesmo exemplifica que a promotora poderia “verificar os carroceiros que maltratam e os que não maltratam”. E outro ainda considerava: Vai ser um desastre porque eu tenho certeza que ela não tem condições de dar de comer a quinze mil pessoas que tem. Por que todo carroceiro tem quatro filhos, três filhos... Todo carroceiro tem quatro, cinco, seis, oito, dez, doze, aí vai acabar como? Essa profusão nos modos de interpretar a figura da promotora advém não apenas dela ter assinado a elaboração da ação civil pública, como vimos, passo importante para desencadear a construção da PMRVTA (da qual a promotora busca se afastar, destacando não ser uma elaboração dela, mas da Prefeitura), mas também se dá em virtude de algumas de suas colocações mais diretas e francas. Além disso, a promotora também enfatiza, por vezes, uma preocupação intensa com a “resolução” da situação que entende por “degradadora” que é a atividade dos carroceiros: “O que eu quero dizer para os senhores é o seguinte: o meu trabalho eu vou fazer e vou brigar até o fim, que essa situação seja resolvida. Então, vamos colaborar?”. Em razão disso, a promotora Rossana Sudário tem a compreensão da negatividade de sua imagem diante dos carroceiros: “Eu sou uma pessoa conhecida, e [...] atrapalho, digamos, não são só os senhores. Eu já fui ameaçada inúmeras vezes”. Em contrapartida, com as protetoras, a promotora goza de muito prestígio e consideração, vendo nela uma grande aliada, pois, ainda que fossem poucas pessoas, conseguiram prevalecer seus 199 A rivalidade com a Promotora Rossana Sudário e a tentativa frequente de questioná-la provocou uma situação interessante que foi a atribuição equivocada de uma responsabilidade dela sobre a matança de 146 galos apreendidos em uma rinha desmanchada em Alto do Rodrigues/RN, em 11 de julho de 2011, pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), com apoio da Polícia Militar e da Polícia Rodoviária Federal. Alguns carroceiros da Praça e também Borges me relataram que a promotora tinha concedido uma entrevista falando sobre o caso e que ela tinha declarado uma anuência com a matança dos galos. A primeira vez que eu ouvi isso, tive um espanto e estranhei tamanha contradição, mas ao realizar buscas por notícias na internet, encontrava a informação de que, como o Estado não dispõe de abrigos para animais domésticos, a “solução” encontrada foi o abate desses animais pelo próprio IBAMA. A interferência da Promotora nesse caso foi uma declaração onde pedia ao Ministério Público Federal que investigasse a decisão do abate, argumentando que acreditava que “matar é maltratar muito mais esses animais”. Quando os carroceiros voltaram a citar o que entenderam ser um apoio da promotora à matança dos galos, eu tentei esclarecer que houve um equívoco, mas muitas vezes eles retornavam, especialmente Borges, com uma insistência em seus relatos. Sobre o caso da apreensão dos galos e a entrevista da promotora, ver as reportagens: , acesso em novembro de 2015 e , acesso em novembro de 2015. 214 interesses. Por isso, uma protetora chegou a afirmar ter sido a promotora “fundamental” nesse processo, ela também foi descrita como uma pessoa “engajada” que sempre recebe bem as protetoras. Entre esses pares de opostos, de forma mais mediadora apareciam os demais agentes do poder público, especialmente as secretarias municipais, embora grande parte delas deixasse explícito como o trabalho dos carroceiros incomodava, como a URBANA e SEMSUR, por exemplo. A que mais se voltava à observação e compreensão do cotidiano e perfis dos carroceiros, por sua natureza, era a SEMTAS, mas, às vezes, seus técnicos e gestores acabavam reiterando estereótipos destes trabalhadores, tal como sua propensão ao alcoolismo, ao uso de drogas e agressividade. O Prefeito de Natal também atuava, buscando uma mediação e conciliação, tal como na reunião de 08 de dezembro de 2015. Por um lado, o prefeito discorreu sobre a tradição das carroças e a dependências das famílias desse veículo e, por outro, também reafirmou os estereótipos dos carroceiros, por exemplo: Não vai ser da noite para o dia que vai tirar a carroça, não. Aqui os carroceiros reagem com faca por que eu me lembro na outra questão eles estavam jogando (lixo) ali na (comunidade) Beira Rio. Eu mandei a URBANA botar os fiscais para pegar as carroças deles, pegar o sujeito e ameaçar de cadeia. Eles partiram com a faca para cima e o cara da URBANA saiu correndo. Ou ele ficava para levar uma facada ou então era pé na bunda, né?! Saiu correndo tanto que [...] veio bater aqui, está certo? Se não os caras matam, eles matam porque eles bebem. Embora, muitas vezes, os agentes do poder público se esforçassem por destacar que suas perspectivas eram as mesmas da população natalense, uma presença marcante de representantes comunitários de bairros periféricos na defesa da “sobrevivência humana” colocava à prova essa construção200. Para Bourdieu, uma das estratégias201 da “classe dominante” é a construção de uma “integração fictícia da sociedade no seu conjunto”, servindo desse modo à “desmobilização da classe dominada” e, assim, a “legitimação da ordem estabelecida” (BOURDIEU, 2007). Por outro lado, se a Promotoria do Meio Ambiente, por exemplo, cita na ACP que “toda a sociedade é dramaticamente atingida pelos maus-tratos aos animais” (MINISTÉRIO PÚBLICO DO RN, 2012, p. 17), isso mostra muito mais que a 200 Dentre as entidades envolvidas, destacamos: Conselhos dos Bairros de Dix-Sept Rosado, Felipe Camarão e de Nazaré, e de algumas comunidades como Leningrado e Cambuim, todos da Zona Oeste de Natal. Da Zona Norte, compareceu um representante da Redinha. Ainda citamos o apoio de movimentos comunitários: Associação dos Moradores do Planalto, Movimento Ação Cultural do Km6 e Movimento Natal Agora. 201 Bourdieu traz a estratégia como “sequências de ações objetivamente orientadas para uma finalidade e observáveis em todos os campos” (2001, p. 169) 215 defesa animal depende de uma visão muito mais específica e circunstanciada, além de ser fluida e heterogênea, social e culturalmente. Os carroceiros frequentemente demonstravam sentir suas demandas invisibilizadas, “ninguém vem na periferia conhecer a realidade”, especialmente por parte de um poder público omisso. Assim, Santos comentou: “a única assistência que vai às favelas é a polícia para reprimir”. Toda essa omissão experimentada pelos carroceiros em suas comunidades é o que causa e alimenta as desconfianças com este poder público que prometia cursos profissionalizantes e oferta de emprego. Quando estive em uma das comunidades da Zona Oeste, cheguei a ouvir da esposa de um carroceiro: “a gente não se engana mais, não! Já fomos enganados muitas vezes”. Mas é pertinente pontuar como alguns vereadores não deixavam de dialogar com alguns carroceiros, especialmente em um ano eleitoral como o de 2016202. Assim, prestes a discutir e votar a PMRVTA, a Câmara de Vereadores demonstrava sinais de divisão. Por exemplo, enquanto o vereador Sandro Pimentel (PSOL) parece se situar mais próximo das protetoras, sendo inclusive seu marketing eleitoral construído nesse sentido203; o vereador Lucena (PT) esteve mais próximo dos carroceiros, mas não sem enfrentar resistências e desconfianças. Aliás, é importante destacar que o partido de oposição de qual Sandro Pimentel faz parte o leva a tecer várias críticas ao governo municipal, aproximando-se dos discursos da Promotoria do Meio Ambiente, quando ambos cobram, por exemplo, agilidade nos encaminhamentos a serem tomados. Assim enquanto os representantes da Prefeitura colocavam a possibilidade de extensão dos prazos, a promotora do meio ambiente Rossana Sudário pontuava constantemente a condição de atraso no processo de retirada das carroças e a necessidade de “urgência” da questão, chegando inclusive a fazer uma ameaça ao Município: “eu tenho vários acordos com o Município e termino não cobrando a multa porque entendo que é um órgão público, essa coisa toda, mas vai chegar o momento que eu vou ter que cobrar para vocês poderem ficar mais ligeiros”. Apesar de todas essas forças heterogêneas atuantes nesse contexto, uma grande divisão que podemos operar neste trabalho à guisa de análise é em relação aos agentes do poder público, aliados a algumas instituições de defesa dos animais, e os carroceiros, onde está presente uma diferença material ou simbólica significativa entre eles enquanto detentores de capital cultural, econômico e 202 Um dia Vavá me comentou também sobre o apoio de um vereador ainda na Associação, solicitando o prédio para a realização de eventos. 203 Contudo, nos debates da PMRVTA ele frisa preocupação com animais e carroceiros, inclusive destacando sua trajetória de homem do campo. 216 social, traduzindo então uma profunda relação de poder, neste jogo que é a própria construção da PMRVTA. É então, diante da construção dessa Política, que encontramos certo grupo de carroceiros que tenta se articular para impor uma resistência, um modo de fazer política que nomeiam por luta, buscando amenizar de alguma forma o impacto em suas rendas principalmente tendo em vista a garantia da sobrevivência familiar. Foi como um dos carroceiros comentaria participar das audiências “para defender a classe e o pão”. Assim, em relação aos carroceiros, encontramos uma organização bem mais limitada no aspecto da disseminação das informações, do que, por exemplo, as protetoras dos animais, que se articulam intensamente através das redes sociais. No caso dos carroceiros, a articulação é construída a partir de um contato pessoal, o dito “boca a boca”204. Foi o que pude acompanhar ao ser convidada a participar de reunião de carroceiros em um bairro da Zona Oeste de Natal. Na ocasião, comentaram sobre a organização através de “núcleos”, que se estabeleciam a partir das referências de moradias de alguns carroceiros mais conhecidos205. Desse modo, era significativo e coerente que esta reunião se realizara justamente na casa de um deles. A propósito, foi interessante participar dessa reunião com os carroceiros, acessando os bastidores da política neste espaço privilegiado, tal como foi minha presença na reunião ocorrida na Prefeitura, em dezembro de 2015. Observa-se um contraste entre as duas reuniões em suas diferenças materiais e de organização. Na reunião dos carroceiros, predominava a simplicidade do espaço e mesmo uma maior proximidade, a começar pela disposição dos assentos e das pessoas, mas que também ocorria pela apresentação de um interesse comum e coletivo, que se projetava a partir do “grupo” que ali se encontrava. 204 Também é pertinente pontuar o uso por Santos do carro de som para disseminar as comunicações com os carroceiros. Assim, esse mesmo uso seria feito pela SEMTAS para convidar os carroceiros ao cadastramento. 205 Foi interessante como Santos buscou aproximar os carroceiros através das redes sociais, o que ocorreu sem sucesso. No dia dessa reunião, Santos circularia um cadastro muito simples, onde ele procurava saber, dentre outros, o whatsapp e e-mail dos carroceiros. Apesar de uma grande parte ter celular, até mesmo para realizar os serviços, eu logo estranharia esses usos de um modo mais geral. Até me propus a rever o cadastro, quando inseri algumas informações sobre o número de familiares, por exemplo, mas senti-me constrangida em remover as informações das redes sociais que Santos requeria. Assim, esperei para ver e quando ao final da reunião algo em torno de 8 carroceiros fariam cadastro conosco. Nenhum utilizava esses recursos virtuais. 217 Figura 34: Reunião de carroceiros de Natal (visão central) Fonte: Igor Maia, 2016 Figura 35: Reunião de carroceiros de Natal (visão ampliada) Fonte: Igor Maia, 2016 Em contraste evidente, a reunião da Prefeitura, em uma sala bem mais equipada, marcava-se por mais uma racionalidade administrativa, definida por protocolos burocráticos e intermediada pelo chefe do executivo, sem contar a diversidade institucional dos vários agentes das secretarias municipais, o vereador, a promotora, a presença dos membros de ONGs, da medicina veterinária e da imprensa. 218 Figura 36: Reunião na Prefeitura de Natal Fonte: Arquivo da pesquisadora Desse modo, apresentava-se claramente nesta materialidade a diferença dos recursos e acessos que os carroceiros precisavam enfrentar. Até mesmo sua ausência, em uma reunião politicamente importante, quando deveriam estar presentes, diz muito, etnograficamente, e atestava, sem margem de dúvidas, a exclusão dos carroceiros na construção da PMRVTA. Santos ainda descrevia como soubera de “várias audiências (realizadas) na surdina, na calada da noite”. Uma das agentes municipais comentou também sobre “reuniões técnicas” que não caberia a participação dos carroceiros. Contudo, era mais comum a presença das protetoras dos animais nestas reuniões Assim, a discussão sobre o que é visto como “técnico” mostra, em especial, uma dinâmica política. Por isso, diante dessa balança de marcadores tão desiguais, que eu acabaria sendo posicionada e envolvida, de algum modo, como um peso que pudesse talvez diminuir essa diferença societária e política. Assim, eu acabaria me tornando uma espécie de assessora dos carroceiros, dando sugestões e repassando notícias e esclarecimentos. Nessa direção, coube a mim comentar, em um momento constrangedor, sobre as mudanças na minuta da PMRVTA para uma liderança, quando me vi caindo em um dilema ético ao observar seu desconhecimento do que seriam os novos termos do documento. Do mesmo modo, foi incômodo e constrangedor estar em uma situação em que eu tive acesso à impressão da minuta da PMRVTA atualizada para poder avaliar (sendo repassada a mim por uma protetora); documento que os representantes dos carroceiros só viriam a receber meses depois. Além disso, mesmo sua primeira versão também contou com significativo atraso para o 219 repasse aos representantes dos carroceiros. Foi assim que na audiência de 24 de junho de 2015 um deles reclamava que, até então, não tinha recebido o documento para poder avaliá-lo. É justamente essa exclusão no processo de elaboração da PMRVTA e a dificuldade que os carroceiros demonstravam em acompanhá-lo que gerou o ato, a “carroçada” em abril de 2015. Santos me revelou a compreensão equivocada que tinham sobre o período de remoção das carroças. Por isso, se organizaram através de conhecidos da Zona Oeste de Natal. Nessa manifestação, cujo alvo era a promotora Rossana Sudário, embora ela não fosse encontrada, os carroceiros foram recebidos pelo promotor Márcio Diógenes, que, em audiência realizada na Câmara dos Vereadores, em 2015, explicita justamente essa exclusão: Imagina só o avanço político que se deu na questão da defesa dos animais com a participação de todos os segmentos interessados, inclusive de um segmento que vai ser diretamente afetado quando for posto em prática a proibição de circulação de carroças em Natal. Então, eu pelo menos estou vendo pela primeira vez os carroceiros participarem dessa frente (palmas). Não me recordo, talvez eu tenha faltado em outra audiência, mas não me recordo de ter presenciado e, gente, isso é democracia, isso é transparência. [...] Desde que nós tenhamos o respeito e a iniciativa de chamá-los a participar; agora é participar efetivamente e não fazer o que nós fizemos até agora, não sabem nem se quer o que tem. Vai ter uma minuta de lei pra extinguir a profissão deles e eles sequer foram convidados a participar, pelo amor de deus! Eles têm que saber sim até pra garantir que, quando ocorrer essa mudança, os direitos deles vão ficar efetivamente garantidos. Como nós vamos tirar a segurança, a sustentabilidade de milhares... 2 mil famílias falou aí. Gente, como é que vamos tirar a sustentabilidade de 2 mil famílias em nome da defesa do animal que é correto, nós temos que defender, (é) uma justiça social mas, ao mesmo tempo, praticar uma injustiça social sem limites. Não podemos. Isso também foi reforçado pelo carroceiro Ednaldo na audiência realizada no dia seguinte na Promotoria de Justiça: Fiquei feliz ontem porque fui convidado a comparecer na Câmara dos Vereadores, eu nunca tinha entrado naquela casa [...] sempre fizeram reuniões é... nunca nos convidaram. Nós nunca participamos de nenhuma dessas reuniões, então quer dizer, quando nos pegam, nos pegam de surpresa. Contudo, apesar da confirmação do promotor Diógenes, os demais agentes acabavam construindo, reiteradamente, narrativas que apresentavam uma participação dos carroceiros em “inúmeras audiências”, com “presença massiva”, o que validaria aquilo que seria uma forma de comunhão e anuência com o que estava sendo discutido. Também reforçou-se, através da promotora Rossana Sudário, uma ocorrência do “máximo de divulgação possível” 220 em todas as reuniões, destacando a divulgação feita na televisão, que tinha sido realizada já pensando na acessibilidade deste veículo de comunicação206. Aliada a essa forma de exclusão que era a não convocação dos carroceiros nas discussões, temos ainda a própria inacessibilidade dos locais em que grande parte dessas discussões ocorreram. Santos, ainda em 2011, questionava o porquê de não realizar essas reuniões nas comunidades: “Eu faço uma crítica às ONGs porque essa discussão deveria ser nas comunidades porque muitos não vem pra cá pela questão da dificuldade (de acesso). Então, deveria estar discutindo nos Conselhos Comunitários, deveria estar discutindo nas escolas”. Essa dificuldade de acesso evidenciou-se, por exemplo, na manifestação dos carroceiros da Zona Norte de Natal, realizada na saída da ponte Newton Navarro, no dia 06 de abril de 2016. Figura 37: Mobilização de carroceiros na Zona Norte de Natal Fonte: Arquivo da pesquisadora Os carroceiros e familiares que compareceram explicavam que, além da chuva que caíra naquela manhã, a distância a ser percorrida até a Câmara dos Vereadores, cerca de 7 km, havia desestimulado alguns de seus pares, pois o trajeto de ida e volta demandaria muito esforço de seus animais, acentuado pela possibilidade de virem a enfrentar um deslocamento sob um sol forte, caso a chuva dissipasse. Dentre aqueles que participaram do ato, alguns 206 A promotora Rossana Sudário ainda chegou a afirmar diretamente a Ednaldo por sua queixa quanto a não convocação para algumas reuniões: “se o senhor especificamente não foi informado, foi uma dificuldade de comunicação que o senhor tem de receber essa comunicação também, certo?” e desconsiderava a questão prosseguindo que “agora a gente tem que ver daqui pra frente”. 221 carroceiros foram impedidos, como vimos, de entrar na Câmara. Assim, das audiências públicas que pudemos elencar, apenas uma foi efetivamente mais acessível aos moradores de parte da Zona Oeste, quando ocorreu no CEMURE, sendo, portanto, a que teve maior número de carroceiros. Mostrava-se assim como o espaço se configura em um condicionante à participação dos carroceiros na discussão sobre a retirada dos veículos de tração animal. Além disso, a participação dos carroceiros nas audiências lhes impõe um dilema, pois eles têm que abrir mão da realização de possíveis serviços. Foi o que veio à tona na fala de alguns carroceiros nas audiências, quando colocavam que deixaram de trabalhar para participarem daquelas reuniões, e o que também gerou algumas discussões no ponto da praça, por exemplo, onde ocorreram acusações em torno da não participação deles nas audiências. Apesar disso, podemos levar em conta que pode existir também um desinteresse mesmo por estar nessas reuniões, que não chegou a ser verbalizado pelos carroceiros da praça, mas foi o que se deu, por exemplo, quando João me falou que não quis ir realizar seu cadastramento e pediu para uma filha ir em seu lugar207. Outra narrativa era construída ainda pelos agentes do poder público e ONGs de proteção animal para servir à defesa da legitimidade na construção da PMRVTA. Configurava-se na preocupação em colocar uma abertura do processo e um interesse em “ouvir os carroceiros”. Nesse sentido, existia um esforço em convencer os carroceiros de uma ideia de “união”, “cooperação” e de “parceria”. Em muitos momentos, foi colocado, pelos agentes do poder público, que a PMRVTA era uma “construção coletiva”, de modo a negar a disputa de poder ali existente208. Apropriando-se desse discurso, alguns carroceiros, especialmente seus representantes e lideranças, também falaram que gostariam desse “elo” e “parceira” de modo a entrar no jogo mostrando-se como disponíveis ao diálogo e evitando o 207 Sobre a participação dos carroceiros nas audiências, em termos quantitativos, podemos narrar com mais proximidade apenas nas duas audiências que nos fizemos presentes. Assim, na sessão que ocorreu em 18 de junho, os carroceiros estavam número consideravelmente menor, o que me deu uma sensação da tamanha desigualdade que existia ali. Posso citar uma estimativa entre seis a oito carroceiros em uma sala que reunia aproximadamente 40 pessoas. Já na audiência de 24 de junho, acredito ter havido uma presença de 80 a 90 carroceiros numa audiência que estimo ter comportado umas 120 pessoas. E na audiência de 06 de abril de 2016, somavam-se uns 10 a 12 carroceiros, entre os que já estavam desde o início da sessão e os que adentrariam depois, vindos da Zona Norte. 208 Por exemplo, a promotora Rossana Sudário falou em “fazer isso em harmonia”, “vamos parar de acusação”, “vamos lutar juntos para que isso seja feito da melhor maneira possível” e chegou a dizer que “O que eu estou aqui propondo a todos vocês é isso: vamos ver se a gente esquece o passado, esquece essa coisa de protetores dos animais e carroceiros”. 222 confronto direto. Outros, entretanto, utilizaram dos momentos de fala apenas para reforçar a indignação e queixas com a política de retirada dos animais. Diante das disputas entre os agentes neste campo político, as autoridades públicas sinalizavam muitas vezes que, para resolver os “problemas ambientais” e da cidade causados pelo trabalho dos carroceiros, era preciso entender “a necessidade realmente que a atividade seja extinta”. Defendiam, dessa maneira, a legitimidade de sua posição institucional e política perante a “ilegitimidade” desta forma de trabalho. Através de todo o esforço de acusação social, tal como vimos, os agentes do poder público fundamentavam que “o interesse de todos nós que estamos aqui é que vocês vão fazer outra coisa”, o que está perfeitamente ajustado à proposta do encaminhamento dos carroceiros para outros tipos de trabalho. Essa era a “inclusão” proposta: retirar (excluir) os carroceiros de sua forma de trabalho e, mais que isso, de seu mundo social. Contudo, tornando ainda mais evidente e contraditória a defesa de que a “toda a população” deseja o fim deste trabalho, também despontava uma preocupação com a aceitação social da PMRVTA, pois, além da dependência das carroças em algumas áreas periféricas, há ainda grande demanda popular, mais ou menos generalizada, pelos serviços dos carroceiros. Algumas vezes, as autoridades mostravam-se preocupadas em fazer a “população a aceitar essa decisão”, para que a lei “cole”. Algo bem interessante aconteceu quando eu entrevistava um dos agentes municipais: uma servidora, presente no espaço em que a entrevista ocorria, em determinado momento falaria espontaneamente como seu irmão contratava carroceiros para transportar alguns resíduos, o que gerou depois risadas entre nós. Até mesmo uma colega de trabalho chegou a me pedir o número de telefone de carroceiros, pois precisava se livrar de um armário antigo. Diante dessas situações, não há como não questionar essa imagem de aversão total e generalizada ao trabalho dos carroceiros, tal como se faz querer crer no âmbito das discussões da PMRVTA; o que também leva a confirmar que não seriam apenas os setores mais carentes da sociedade que se utilizam desta forma de trabalho, o que eu já tinha observado também no ponto da praça, quando apareciam clientes das camadas médias. Foi, assim, que dentre as “soluções” apresentadas para o fim da circulação de carroças a que era frequentemente tratada como a ideal era, como mencionamos, a inserção dos carroceiros na coleta seletiva, através de duas cooperativas existentes, já que a avaliação que se fazia, de um modo geral, principalmente das protetoras, era a de que, dessa forma, será 223 uma adaptação direta209, uma visão que acabava revelando a pouca compreensão que têm sobre quem são os carroceiros. É importante voltar a dizer que essa “solução” acabava considerando também a preocupante consequência da “extinção” da atividade para a população, que passará a não dispor de uma alternativa barata e facilmente localizável para a destinação de seus resíduos. Então, desse modo, acabava sendo proposta uma mudança do trabalho, mas que continuasse a atender às necessidades da limpeza pública. Entretanto, a percepção social que homogeneizava os carroceiros foi rebatida algumas vezes, especialmente pelos agentes da Prefeitura de Natal, que ponderavam a existência dos diferentes “tipos” de carroceiros. Indicavam, dessa forma, a coleta seletiva para aqueles que já trabalham com a catação de materiais recicláveis. Mesmo que tenha ocorrido essa consideração por parte dos agentes municipais, também precisa ser problematizada a suposição de uma adaptação mais fácil para estes carroceiros. Mesmo que estejamos diante dos mesmos materiais de coleta, a proibição do uso de carroças vai trazer impactos profundos no modo de vida dessas pessoas, que é organização de seu modo de vida, dos carroceiros e de toda a família, em torno desse meio de transporte e de trabalho210. Por exemplo, esse é o caso da necessidade objetiva das carroças e charretes para os deslocamentos das famílias que não foi observada de modo algum pela política a ser implantada. Uma fala de uma protetora nesse sentido gerara inclusive um mal-estar em nossa conversa. Irritada, ela defendia que: Protetora: Você tem o bolsa família, você tem o tributo, você tem um monte de regalia, você quer mais? Você quer andar de graça no ônibus? Pesquisadora: A senhora acha que já tem o suficiente... Protetora: O que eles têm é suficiente, agora oferecendo cursos para eles melhorarem a vida deles é o melhor. O profundo impacto social na vida desses carroceiros, obviamente, também aconteceria em uma eventual substituição das carroças tradicionais pelas elétricas, apesar de 209 Nesse sentido, gostaria de destacar que eu mesma, antes do início do “campo”, tenha tido um entendimento parecido quando acreditava que “catadores” e “carroceiros” eram “grupos” bem semelhantes. 210 Na mesma direção, uma das representações dos carroceiros vem com a proposta de criar uma cooperativa que deveria ser gestada pelos próprios trabalhadores e que se dedicaria à reciclagem de Resíduos da Construção Civil e de poda. Defendia que a diferença desta cooperativa para as demais, já atuantes em Natal, seria justamente pela gestão de um espaço exclusivo dos carroceiros. Contudo, é facilmente perceptível como essa proposta se alia à ideia de que os carroceiros vão todos para a reciclagem. Mostrava a limitação que este representante tinha em falar pelos carroceiros. 224 que o próprio Município já sinaliza, como afirmamos, a dificuldade dessa alternativa alegando o alto índice de analfabetismo e baixa escolaridade como impedimento para a obtenção da CNH pelos carroceiros. A propósito, cabe aqui apontar a contradição neste tipo de argumento: por que é possível oferecer cursos para os carroceiros aprenderem outras profissões e/ou desenvolver outros trabalhos mas quando se trata de alfabetização ela sequer chega a ser considerada? Isso se torna ainda mais intrigante quando resgatamos o contexto de formação da própria Associação desses trabalhadores que se deu através justamente de um programa de alfabetização. Contudo, apesar dessas críticas, reiteramos que uma mudança dessa natureza (substituir os animais por outra forma de transporte) trará repercussões profundas devido à ausência deste animal que é de grande importância também para a manutenção, como vimos, das redes de contato e parceria entre carroceiros e ainda de seus espaços de sociabilidade. Nessa direção, destacamos o trato do animal como um dos principais saberes do carroceiro, constituindo-se, portanto, enquanto elemento central para a organização de um mundo social específico e na formação identitária dessas pessoas. Lembrando os animais como parte do patrimônio das famílias de carroceiros, evidenciava-se uma indisposição e revolta na possibilidade de terem seus animais apreendidos pelo poder público uma vez que são seus bens. “O que é meu ninguém pega” foi assim declarado por um deles para mim. A proximidade com os animais é tamanha que um dos carroceiros, que chegou a criar seis cavalos, em entrevista, até mesmo questiona: “quem vai dar seus animais? Só deixo de criar cavalo quando eu morrer”. Essa mesma concepção aparece no vídeo gravado na Associação dos Carroceiros de Natal, disponível na internet211, onde um homem declara: “eu posso até morrer, mas meu cavalinho do meu quintal não sai”. Apenas um dos que eu conversei e entrevistei chegou a falar em indenização, enquanto todos os outros se imaginavam presos e brigando por seus animais. Curiosamente, esse tipo de colocação de maior enfrentamento não apareceu nas audiências públicas, talvez porque estavam diante do aparato policial e de fiscalização. A propósito, todo esse aparato de segurança pública era uma presença marcante nas audiências, lembrando aos carroceiros as instâncias de fiscalização e repressão que iriam “fazer cumprir a lei”. É interessante trazer uma situação que envolveu os carroceiros quando realizaram o ato frente ao Ministério Público, tal como Ednaldo chegou a comparar com certo 211 “Carroceiros - comitê popular natal de direitos 2015”, disponível em: , acesso em: set de 2015. 225 exagero: “nunca vi nada tão rápido [...] como foi para chegar as viaturas em frente a promotoria pública. Mas foi ligeiro, mais rápido que um piscar de olhos”. Sem dúvidas, essas forças policiais se constituem como aparato necessário para fazer a PMRVTA acontecer, sendo assim como o cadastramento uma tática de governo (FOUCAULT, 2015). Nesse sentido, dois momentos foram significativos: uma participação do major Correia Lima, na mesa na audiência de 2011, e uma fala de um guarda ambiental, na audiência de 24 de junho de 2015. O major reconhecia a existência de policial que “não sabe dialogar com a população”, mas destacava a condição do policial enquanto “mediador de conflitos” que não poderia “deixar de fazer o que a lei manda”. Da mesma forma, posicionava-se o guarda ambiental sobre o papel da polícia: “chegar a hora [...] nós vamos lá fazer cumprir a lei e eu gostaria que os senhores, quando isso acontecesse, não olhasse de forma pejorativa para nós, os homens uniformizados”. E prosseguiu: “a oportunidade foi lançada, abrace, porque o tempo urge e vai chegar esse dia e eu queria que nesse dia, como todos os dias, eu estivesse sempre ao lado dos senhores, que fosse numa visão que eu estou tentando ajudar. Não tem um lado contra o outro, é todo mundo em busca de uma solução”. As consequências e o uso policial seriam trazidos de forma bem mais direta pela Promotora do Meio Ambiente: Quando as pessoas não quiserem se adequar tem a polícia que felizmente faz um excelente trabalho e a gente vai cada vez mais ver se consegue coibir esse tipo de maus tratos. A policia ambiental que está nas ruas é mais fácil de ver de quem está nos gabinetes, então vamos fazer educação ambiental mas também vamos reprimir, certo? Por isso, pela imposição que se dá através de variadas frentes, inclusive este uso da força física, carroceiros eram unânimes em afirmar como sentem a política como algo “péssimo”, “ruim”, “mal”, com a qual “muitos carroceiros vão sofrer”. Um dos representantes chegou a dizer que “está provado uma guerra entre os carroceiros e os militares”. Outro, nesse sentido, também afirmaria “tem muita gente que vai segurar esse osso, tem muita gente que vai para peia212, tem muita gente que vai transgredir porque vai ser uma transgressão porque na hora que for da lei mesmo, que a lei entrar em vigor, muita gente vai insistir”. Entretanto, entre as falas de carroceiros também se cogitava algumas alternativas a fim de evitar o confronto especialmente com as forças policiais e de fiscalização: alguns já se articulavam através da estratégia de “levar (o animal) para um curral ou um sítio” no interior 212 Referia-se ao confronto físico. 226 do Estado. Outra “solução” pensada foi declarada por Joaquim, que chegou a dizer: “para ser carroceiro na rua vão ter que ser transferidos de cidade, se quiser ser carroceiro”. Aqueles que não enxergavam essas possibilidades de deslocamento comentavam sobre sair da atividade, embora cogitassem deixar os animais guardados. Poucas pessoas falaram em vendê-los. Efetivamente, a discussão concreta da PMRVTA logo produziu impacto social. Como já apresentamos, uma delas foi mesmo o abandono da atividade por alguns carroceiros, que buscaram outra forma de trabalho. Houve ainda quem apenas substituiu a carroça, ou seja, prosseguindo com a realização dos serviços através do uso de carrinho de mão, por exemplo. Nessa direção, alguns carroceiros demonstraram o interesse nas carroças elétricas e quando o faziam era uma tentativa de preservar, ao menos, a autonomia tão valorizada em seu trabalho, já que a proposta de inserção em outras atividades mediante a realização de “cursos profissionalizantes” era vista como uma forma de submissão às concepções mais clássicas de trabalho, tal como, por exemplo, o uso de uniforme e, principalmente, a rigidez nos horários de trabalho. Nesse sentido, os carroceiros mostravam-se cientes da necessidade de uma nova forma de trabalho: “vai fazer um jeito para se viver, que não vai morrer de fome”. Assim, embora houvesse aqueles que chegaram a considerar um novo trabalho oferecido pela Prefeitura, muitos também previam a necessidade de terem outras estratégias de subsistência, pois desconfiavam do poder municipal. Além disso, alguns carroceiros avaliavam a perda significativa de renda, se eles se filiassem às cooperativas213. Entretanto, havia diferenças socioeconômicas entre aqueles que se utilizam das carroças, de modo que as alternativas dos carroceiros diante da PMRVTA eram variadas, mostrando uma efetiva complexidade em suas estratégias de sobrevivência. Por vezes, essa complexidade não conseguia ser explicada e disputada nem mesmo entre os representantes deste segmento. Assim, havia uma defesa de que os carroceiros “não ganham menos de um salário mínimo”, ganhando, portanto, relativamente bem na atividade, e que por isso não aceitariam estar em uma cooperativa, por exemplo, onde, alegavam, ganhariam menos. Entretanto, esta defesa parecia se contradizer quando começava a focar nos relatos de profunda miséria. Ora, se estão nessa situação tão 213 Na Praça, receberiam proposta de novos trabalhos Reginaldo e Luciano, que foram convidados a participar de uma usina de reciclagem para confeccionar vassouras através de garrafas pet. Ambos declinaram a oferta. Luciano apenas sorria meio desconcertado negando o interesse, já Reginaldo se mostrava muito irritado, e afirmou que se sentia indignado com essa possibilidade. Disse que tinha respondido à assistente social, que então propunha o novo trabalho, que preferia continuar na sua carroça até quando pudesse. 227 dramática porque não aceitar um emprego formal com salário que estava sendo oferecido? Essa era uma aparente contradição que ocorria, na verdade, como reflexo da dificuldade que os carroceiros tinham em defender aquilo que estava por trás de suas falas: a satisfação e afinidade em sua forma de trabalho, ainda mais quando ela é totalmente negada pelos demais agentes envolvidos. Pela diversidade e complexidade envolvidas, uma das falas mais sensatas nas audiências foi a de uma mulher militante de causas sociais, que se tornou amiga de Santos quando ambos se envolveram em outro debate público214. Embora não tão ativa – ao contrário do amigo – nas discussões pela retirada das carroças, ela tentava mediar as diferentes perspectivas em conflito: considerou, assim, ser impraticável apenas uma solução diante de demandas que se apresentavam através de várias frentes. Contudo, apesar dessa ponderação e de sua aparente aceitação pelos representantes governamentais, continuaria prevalecendo o fato de que essas frentes seriam pensadas e encaminhadas pelos agentes do poder público. Se, de fato, os carroceiros tinham alguma forma de atuação, sua margem de manobra era muito limitada. Por isso, em razão das incertezas em jogo, firmava-se a necessidade da garantia, tal como afirmou uma liderança: “carroceiros estão no desespero. Não tem nada para garantir a sobrevivência”. Assim, estavam os carroceiros, aguardando e lutando para “decidir o que vão fazer de bom, porque de ruim já estão fazendo”. Portanto, no decorrer deste trabalho, busquei apresentar vivências de carroceiros em Natal (a partir sobretudo do contato em alguns pontos de trabalho e locais de moradia) e como elas são encaradas por diversos agentes entre segmentos sociais e instituições que estão a se debruçar sobre a construção da Política Municipal de Retirada de Veículos de Tração Animal. O conflito existente entre os carroceiros e os demais agentes reflete uma relação de poder profundamente desigual que traduz uma disputa entre segmentos sociais, onde o discurso em prol da defesa dos animais não está isolado; ele se relaciona com várias outras questões que surgem nas discussões da PMRVTA. Trata-se também de um conflito social, tal como discorre Leite Lopes (2015), envolvendo formas de trabalho que estão por detrás do processo de formação de uma cidade. Ou seja, a situação particular dos carroceiros está atrelada diretamente à própria história urbana de Natal, que se desenvolve, de fato, em um primeiro momento, através do uso de tração animal e que então vem sendo especialmente, desde a última década, contestada, 214 Ambos militaram em defesa dos moradores atingidos pela Copa do Mundo em Natal/RN. 228 buscando sua eliminação em prol de um discurso de formação de uma cidade moderna. Nessa direção, conhecer as comunidades da Zona Oeste e a feira de cavalos na Zona Norte levam a questionar a visão de uma Natal totalmente urbana, o que me parece muito mais um projeto idealizado. É um projeto que se firma e se constrói em rejeição a certo modo de vivenciar e se apropriar da cidade, como o dos carroceiros que traçam referência com certa ruralidade a partir da reapropriação, muitas vezes, de saberes de uma família que migrou do campo. São vivências que comportam essa referência a outro mundo e que assumem aos olhos do que clamam pela modernidade a materialidade do que se entende por atraso. Além disso, deve-se considerar também a experiência de uma vida autônoma que fugiu e que ainda foge do controle governamental, tal como exemplifica-se na rejeição ao cadastramento exigido pelo poder municipal. Aliás, sobre as tentativas de cadastramento que foram realizadas em diferentes momentos para supostamente “conhecer” os carroceiros, afirma-se como não conseguiram propor ou efetivar medidas que mostrassem a essas pessoas que elas estavam, de fato, sendo ouvidas, quando muitos de seus apelos, como vimos no decorrer desta pesquisa, são ignorados por uma linguagem burocrática cuja análise de suas repercussões muito bem aparece Kleinman, Das e Lock (1997). Dessa forma, o cadastramento atual acaba sendo mais um instrumento dessa mesma linguagem, voltando-se mais realmente para a efetivação da política. Nessa direção, os posicionamentos observados entre os agentes envolvidos nesses debates demonstram desconhecer aspectos importantes do mundo social dos carroceiros, especialmente da relação que estabelecem com os animais; o que envolve além da dependência econômica e deslocamentos, a formação de redes sociais e de um mundo social, permeado de saberes e práticas específicas. Observamos, portanto, uma complexidade de atuação e de perfis dos condutores de carroça e de suas famílias que não se mostra efetivamente levada em consideração pelos operadores da PMRVTA, quando os homogeniza em busca de uma “solução” através da oferta de trabalho formal, especialmente, como vimos, buscando conduzi-los às cooperativas de reciclagem de resíduos sólidos. Desse modo, temos a própria invisibilização dos carroceiros, mesmo sendo eles um dos objetos centrais da PMRVTA. Através da pesquisa em campo, conseguimos, então, conhecer parte de uma rede diversificada de carroceiros que vem a contrastar fortemente com as representações que se impõem sobre essas pessoas, acionadas dos debates pela retirada das carroças. Além disso, 229 fugindo do foco dado aos traços de vulnerabilidade e pobreza dos carroceiros – mas sem desconsiderá-los – identificamos a satisfação e prazer encontrados através do uso das carroças e dos cuidados com os animais. O trabalho como carroceiro, especialmente, mostra-se uma alternativa (em grande medida prazerosa) encontrada em poucas oportunidades que suas condições sociais lhe dão. Dessa forma, podemos dizer que a “inclusão” dos carroceiros proposta com a PMRVTA é na verdade uma exclusão. Visa excluir seu mundo social e seus referenciais de vida, forçando-os a seguir e se inserir em lógicas e ideais de convívio social que são compartilhados pelos próprios agentes que levam a cabo esta Política. Ela acaba promovendo, o que poderíamos dizer, um tipo de limpeza social que é atestada, por exemplo, com a forte preocupação com a realização da Copa do Mundo em 2014. Nessa perspectiva, trabalhar muitas vezes com resíduos reforçam mais ainda essa aversão: carroceiros são os “poluentes”, em aproximação com Mary Douglas, que “nunca têm razão. Não estão no seu lugar ou atravessaram uma linha que não deveriam ter atravessado e este deslocamento resultou num perigo para alguém” (1976, p.134). Rodrigues (1995) discorria na mesma direção apresentando os processos históricos que levam à instalação de uma “política higienista no ocidente” preocupada em separar dos vivos as secreções de seus corpos, como também os mortos. Foi assim que ele descreve, por exemplo, os deslocamentos de cemitérios e lixões para fora dos limites das cidades. A aversão pelo contato com os resíduos é atestada também por Colombijn e Rial (2016), que, apoiando-se em alguns autores, vão comentar como a Modernização é simbolizada por limpeza e vice-versa. Pessoas que manipulam o lixo são facilmente associadas ao atraso. O estigma ligado à coleta de resíduos é quase universal. Além das considerações de natureza prática, como evitar o tráfego, por exemplo, coletores de lixo, muitas vezes, operam antes do amanhecer para ficarem fora da vista dos outros residentes. (2016, p. 26). Além desse debate, realizar uma pesquisa onde o uso dos animais é um dos temas centrais nas discussões de uma política pública conduz-nos facilmente a tecer algumas considerações mais propriamente sobre a defesa animal realizada nesses contextos. Sem buscar desmerecer o “cuidado com os animais”, compreendemos como esta “proteção” propaga discursos generalistas e reducionistas, consolidando um campo de disputas também em torno de moralidades e emoções. 230 Assim, a denúncia dos carroceiros de uma preocupação maior para com os animais do que com os humanos faz sentido quando se destacam elementos como uma jornada de trabalho “extenuante”, exposição ao sol, deficiência na alimentação, ferimentos, entre outros, como condições impostas de forma “insensível” pelos carroceiros exclusivamente aos animais, quando o que percebemos, muitas vezes, é que se trata de uma situação compartilhada, assim como aparece em Haraway (2011) embora não possamos desconsiderar uma relação hierárquica entre o homem e animal, em que pode ocorrer, de fato, agressões que, como vimos, já é mesmo admitido por vários carroceiros. Essa situação de retirada das carroças em Natal nos mostra como o discurso da defesa animal pode assumir uma faceta perigosa quando opera em associação com setores hegemônicos. Assim, há outros casos na história do País em que algumas relações entre o homem e animal passam a ser questionadas e que repercutem em medidas que acabam por reafirmar desigualdades e violências sociais. Um exemplo pertinente, nesse sentido, é o caso da perseguição a religiões afro-brasileiras, em decorrência dos sacrifícios animais, que gerou o Projeto de Lei 4331/12, de autoria do deputado Pastor Marcos Feliciano215 (PSC-SP) “que torna crime o sacrifício de animais em rituais religiosos”216. Roberta Possebon (2007) apresenta um quadro semelhante à situação dos carroceiros quando discorre sobre as acusações dos defensores dos animais às religiões afro-brasileiras cujas práticas são vistas também como “cruéis” e “ultrapassadas”. Inclusive cita de forma idêntica a instalação de uma Ação Civil Pública no município de Novo Hamburgo/RS, no ano de 2005, movida pelo Ministério Público da cidade, que pretendia “estabelecer a fiscalização do abate de animais em rituais religiosos”. Mostrando também o caráter desigual da disputa, autora chega a comentar: “Não obstante, os religiosos afro-brasileiros terem iniciado um movimento de defesa em prol de sua religião, a reação desencadeada até agora ainda é bastante fragmentada e limitada frente ao poderio de seus oponentes” (POSSEBON, 2007, p. 116). Contudo, aqui se considera, além da proteção animal, a atuação das religiões neopentecostais neste campo. Outro exemplo, é apontado em Chaves (1992) que destacava como um desafio à compreensão “o fato do movimento ecológico ter pedido o fim da violência da farra do boi 215 Aqui é interessante trazer uma fala de uma protetora dos animais na audiência realizada em 17 de junho de 2015. Referindo-se à Rodrigo Vidal, ela vai declarar: Eu quero iniciar dizendo que eu sou sua fã [...] Você pra mim é o nosso Feliciano nordestino”. 216 Disponível em: ; e , acesso em novembro de 2015. 231 através do uso da violência” quando, na semana santa de 1988, lideranças deste movimento pressionaram o governador do Estado de Santa Catarina a intervir com batalhões de choque da Política Militar nas comunidades açorianas “o que acabou gerando um violento e sério confronto em uma delas, resultando em pessoas feridas e várias prisões” (CHAVES, 1992, p.01). Assim, avaliamos o quão contraditória é uma defesa do animal que se diz a favor da libertação e contra o sofrimento, quando, para alcançar seus objetivos, faz uso de imposição, causando justamente sofrimento a humanos que não são considerados. Obviamente, que temos uma diferenciação entre os movimentos de proteção animal, o que fugia à proposta desta pesquisa, centrando-nos naquela que aparece nas audiências públicas. Nesse sentido, ressaltamos a grande complexidade que envolve o tema do uso das carroças. É dessa forma que estamos cientes da impossibilidade de abordá-la em totalidade e principalmente de apontar uma solução que está além das nossas capacidades. Centramo-nos em analisar as forças atuantes que compõem o quadro atual sobre a questão e os próprios termos da política pública (em tramitação) que determinará a proibição da circulação dos veículos de tração animal. Verificamos, dessa maneira, as hierarquias que se estabelecem entre os agentes em disputa que reiteram processos de violência e, consequentemente, sofrimento. Através do trabalho etnográfico, acabamos por questionar ainda alguns dos argumentos que são trazidos na defesa pelo impedimento da circulação das carroças, que vão desde “o desejo coletivo” da sociedade natalense, até às acusações de maus-tratos aos animais, igualmente generalizada. Compreendemos, desse modo, como certas moralidades e emoções atuam fortemente nesse campo político, produzindo e disseminando “verdades”. Assim, com esta pesquisa, buscamos ampliar o debate sobre o uso das carroças, considerando, para tanto, os processos sócio-históricos na cidade de Natal que conduziram a um conflito social ainda efervescente, que se oculta, de modo geral, a grande parte desta “sociedade natalense” mas cujo desenrolar se impõe de forma muito intensa e severa sobre o cotidiano dos carroceiros. 232 REFERÊNCIAS AIRES, Francisco Janio Filgueira. O "espetáculo do cabra macho" : um estudo sobre os vaqueiros nas vaquejada no Rio Grande do Norte. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2008. ALEXANDRE, Juliana Ribeiro. Emoções, documentos e subjetivação na construção de transexualidades em João Pessoa/PB. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2008. 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São Paulo: Brasiliense. 2000. 241 APÊNDICES APÊNDICE A – Imagens da Associação dos Carroceiros de Natal Figura 38: Copa da Associação dos Carroceiros de Natal Fonte: Arquivo da pesquisadora Figura 39: Sala da Associação dos Carroceiros de Natal Fonte: Arquivo da pesquisadora 242 APÊNDICE B – Coleta de rama e capim elefante Figura 40: A rama Fonte: Arquivo da pesquisadora Figura 41: Coleta do capim elefante Fonte: Arquivo da pesquisadora 243 APÊNDICE C - Quadro dos principais eventos para a construção da PMRVTA em Natal/RN 217 Essas presenças são descritas tendo por base a escuta do áudio da audiência, mas são destacadas outras presenças na página de notícias do Ministério Público: representantes da Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana (SEMOB), da Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (SEMSUR), da Procuradoria Geral do Município. Disponível em: , acesso em novembro de 2014. 218 Disponível em: , acesso em novembro de 2015. DATA - HORÁRIO EVENTO LOCAL PARTICIPANTES PROPOSTAS E POSIÇÕES 16/09/2011 – 10h Audiência Pública Auditório da Procuradoria Geral de Justiça/ Bairro: Candelária (Zona Sul) - Promotora do Meio Ambiente Rossana Sudário (Ministério Público - MP); - Ítalo Alves (URBANA); - Major Correia Lima (CIPAM). - Representante da ONG Animais; - Representante da ONG Instituto Fluke; - Veterinária Carla Belke (Conselho de Medicina Veterinária); - Representante da Associação de Carroceiros de Natal; - Representante do Movimento Nacional dos Catadores217. Convocada pela promotoria do meio ambiente, nesta audiência a URBANA apresentou a proposta de substituição das carroças movidas a tração animal pelas Carroças Elétricas Veiculáveis (CEV), sendo este o ponto central da sessão. Em razão disto, participou uma representante do Banco do Brasil para discutir a viabilidade do financiamento desses novos equipamentos 03/09/2012 - ? Audiência Pública Câmara Municipal de Natal/ Bairro: Tirol (Zona Leste) - Vereadora Sargento Regina (Partido PDT); - Promotora Rossana Sudário (MP); - Representante dos carroceiros; - Representante da ONG Patamada; - Fabíola de Souza Medeiros, representante da vigilância epidemiológica veterinária do Estado. Sob coordenação da vereadora Sargento Regina, propunha discutir a “situação social, humana e profissional dos carroceiros da cidade”218. 23/07/2013 - 9h Audiência de caráter conciliatório Fórum Miguel Seabra Fagundes. Bairro: Lagoa Nova Notificados: - SEMSUR; Solicitada pelo juiz de direito da 5ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Natal, Luiz Alberto Dantas 244 219 Segundo MINISTÉRIO PÚBLICO (2012), e também acompanhado através da página: , acesso em novembro de 2015. (Zona Sul) - SEMOB; - URBANA; - Centro de Zoonoses da capital; Filho, “em atenção a pedido da Promotoria do Meio Ambiente”. Segundo consta nos autos da ACP: na ocasião, o juiz determinou um prazo de dez dias para que o Município de Natal e o Ministério Público apresentassem “uma proposta escrita objetivando a solução do problema”.219 30/04/2015 - ? Ato organizado por carroceiro Saída da Zona Oeste em direção ao Ministério Público do RN/ Bairro: Tirol (Zona Leste) - Carroceiros O ato buscou confrontar a promotoria do meio ambiente quanto ao processo de retirada das carroças. Estabeleceu-se contato com o promotor Márcio Diógenes. 17/06/2015 - ? Audiência Pública Câmara Municipal de Natal/ Bairro: Tirol (Zona Leste) - Vereador Sandro Pimentel (PSOL) - Marcio Luiz Diógenes (MP); - Representante dos carroceiros; - Úrsula Priscila da Silva, gerente do Centro de Controle de Zoonoses da Secretaria Municipal de Saúde; - Antonio Falcão (SEMSUR); - Leonardo Almeida, chefe do Setor de Fiscalização da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo (SEMURB) - Rodrigo Vidal (SEDA-Recife/PE) Proposta da Frente Parlamentar em Defesa dos Animais, através do vereador Sandro Pimentel, para discutir, dentre outras questões relacionadas aos animais (como a castração de cães e gatos), a situação dos carroceiros em Natal. Essa audiência não se direcionou propriamente a apresentar e discutir a política que prevê a retirada das carroças, mas ela pareceu atender, de modo específico, muito mais a uma proposta de política municipal voltada aos animais, fato esse que se relaciona a situações igualmente vividas em cidades brasileiras. 18/06/2015 – 15h30min Audiência Pública Sede das Promotorias de Justiça de Natal/ Bairro: Tirol (Zona Leste) - Promotora Rossana Sudário; - Procuradora do Município, Cássia Bulhões; - Antonio Falcão (SEMSUR). Na plateia estavam presentes muitas protetoras dos animais, inclusive uma conhecida jornalista de Natal e alguns carroceiros. Convocada pela promotoria do meio ambiente, nesta audiência foram apresentados os encaminhamentos das autoridades municipais para a efetivação da retirada das carroças e, de forma sucinta, alguns pontos da Política Municipal de Retirada de Veículos de Tração Animal (PMRVTA). 24/06/2015 – 09h45min Audiência Pública Centro Municipal de Referência em - Jonny Costa, Procurador Geral do Município; Convocada pelo Município de Natal, foi apresentada a 245 Educação Aluízio Alves (CEMURE). Bairro: Cidade da Esperança (Zona Oeste) - Cássia Bulhões, procuradora do Município; - Promotora Rossana Sudário (MP); - Vereador Sandro Pimentel (PSOL); - Representante dos carroceiros; - Laumir Barreto, assessor da presidência da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Rio Grande do Norte (FECOMERCIO). - Célio Roberto (SEMURB); - Juliana Ubarana (URBANA) - Daniele (SEMTAS). Na plateia muitos carroceiros e algumas protetoras. minuta da PMRVTA, que depois sofreria alterações. Reforçou-se a necessidade do cadastramento dos carroceiros. 08/12/2015 – 17h Reunião e Assinatura da Minuta de Lei da PMRVTA Prefeitura de Natal/ Bairro: Cidade Alta (Zona Leste) - Prefeito Carlos Eduardo; - Procurador Geral do Município, Johnny Costa - Procuradora do Município Cássia Bulhões; - Representante da SEMSUR; - Representante da SEMOB; - Representante da SEMTAS; - Promotora Rossana Sudário (MP); - Protetoras dos animais. Dentre o grupo de protetores, destacou-se mais uma vez um médico veterinário, presidente de uma Associação de Protetores de animais. Apresentar mais encaminhamentos e algumas mudanças na minuta do projeto de lei de retirada dos veículos de tração animal. Em seguida, houve a assinatura do prefeito para encaminhamento à Câmara dos Vereadores da minuta da PMRVTA. 06/04/2016 – 09h Audiência Publica/ ato dos carroceiros Câmara Municipal de Natal/ Bairro Tirol (Zona Leste) - Vereador Sandro Pimentel (PSOL); - Procuradora do Município Cássia Bulhões; - Antônio Falcão (SEMSUR); - Gustavo Szilagyi (SEMURB); - Promotora Rossana Sudário (MP). Na plateia estiveram presentes protetoras dos animais e carroceiros. Mais uma vez convocada pela Frente Parlamentar dos Animais, na pessoa do vereador Sandro Pimentel (PSOL), com o intuito de discutir exclusivamente a minuta da PMRVTA. 246 APÊNDICE D – Comprovante de cadastramento de carroceiro no ano de 2010 Figura 42: Comprovante de cadastramento do ano de 2010 (frente) [modificado pela pesquisadora] Fonte: Arquivo de carroceiro Figura 43: Comprovante de cadastramento do ano de 2010 (verso) [modificado pela pesquisadora] Fonte: Arquivo de carroceiro 247 ANEXOS ANEXO A - Ficha de carroceiros vinculados à Associação dos Carroceiros de Natal Figura 44: Ficha de filiado da Associação dos Carroceiro de Natal (frente) [modificada pela pesquisadora] Fonte: Arquivo da Associação dos Carroceiros de Natal 248 Figura 45: Ficha de filiado da Associação dos Carroceiros de Natal (verso) [modificado pela pesquisadora] Fonte: Arquivo da Associação dos Carroceiros de Natal 249 ANEXO B - Folder explicativo da SEMTAS de pesquisa para subsidiar a PMRVTA Figura 46: Folder da SEMTAS (frente) Fonte: Ministério Público, ACP, 2012 250 Figura 47: Folder da SEMTAS (verso) Fonte: Ministério Público, ACP, 2012