UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS EXATAS E DA TERRA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENSINO DE CIÊNCIAS NATURAIS E MATEMÁTICA LUZIÂNIA ÂNGELLI LINS DE MEDEIROS COSMOEDUCAÇÃO: UMA ABORDAGEM TRANSDISCIPLINAR NO ENSINO DE ASTRONOMIA NATAL 2006 LUZIÂNIA ÂNGELLI LINS DE MEDEIROS COSMOEDUCAÇÃO: UMA ABORDAGEM TRANSDISCIPLINAR NO ENSINO DE ASTRONOMIA Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação de Ensino de Ciências Naturais e Matemática da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para obtenção do título de mestre em Ensino de Astronomia. Orientador: Prof. Dr. Luiz Carlos Jafelice NATAL 2006 Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / SISBI / Biblioteca Setorial Especializada do Centro de Ciências Exatas e da Terra – CCET. Medeiros, Luziânia Ângelli Lins de. Cosmoeducação : uma abordagem transdisciplinar no ensino de astronomia / Luziânia Ângelli Lins de Medeiros. – Natal, 2006. 118 f. : il. Orientador : Luiz Carlos Jafelice. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Exatas e da Terra. Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências Naturais e Matemática. 1. Astronomia – Educação – Dissertação. 2. Cosmologia – Dissertação. 3. Psicologia transpessoal – Dissertação. I. Jafelice, Luiz Carlos. II. Título. RN/UF/BSE-CCET CDU 52:37 LUZIÂNIA ÂNGELLI LINS DE MEDEIROS COSMOEDUCAÇÃO: UMA ABORDAGEM TRANSDISCIPLINAR NO ENSINO DE ASTRONOMIA Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação de Ensino de Ciências Naturais e Matemática da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para obtenção do título de mestre em Ensino de Astronomia. Aprovada em ____/____/_____ BANCA EXAMINADORA ________________________________________________________ Prof. Dr. Luiz Carlos Jafelice - Orientador Universidade Federal do Rio Grande do Norte ________________________________________________________ Prof. Dr. Amâncio César Santos Friaça Universidade de São Paulo ________________________________________________________ Profª.Drª. Maria da Conceição de Almeida Universidade Federal do Rio Grande do Norte Dedico esta dissertação, Aos meus pais e educadores Francisca e Melquíades que com determinação, trabalho e amor cultivaram em nosso lar a árvore do conhecimento. À querida filha Manuela pela doçura de sua companhia e apoio fraterno. AGRADECIMENTOS Agradeço... Ao amigo e orientador Luiz Carlos Jafelice pela ousadia e despojamento de transpor os muros conceituais dos centros acadêmicos das ciências humanas e exatas, visando essencialmente o desenvolvimento integral do ser humano; Ao Programa de Pós–Graduação em Ensino de Ciências Naturais e Matemáticas por acolher propostas dessa natureza que contribuem para o enriquecimento e integração do saber; Aos estudantes de Astronomia, graduandos em geografia das turmas de 2003 e 2004, esta primeira graduada este ano, por disponibilizar seu tempo e espaço para vivenciar as primeiras experiências de nossa proposta cosmoeducativa, nos estimulando a seguir adelante; Aos educadores da Escola Estadual Alceu Amoroso Lima pela participação, ânimo e postura aberta no curso de extensão: Laboratório em Cosmoeducação, colaborando para a validação da nossa proposta; A todos os colegas do programa, em especial aos amigos da Base de Pesquisa em Ensino de Física e de Astronomia, pelas discussões abertas e provocadoras que alimentavam as reflexões do nosso papel enquanto educadores; Aos amigos Emanuel Duarte, Milton Schivani, Walter Romero e Manuela Lamartine pelo apoio técnico e visual necessário em vários momentos desta jornada; À Cirlene Melo pelas orientações técnicas necessárias; À amiga Luciene pelo apoio contínuo e cumplicidade; À minha família que sempre me acolheu com carinho e respeito; Finalmente agradeço ao cosmo que nos inspira a ir além... RESUMO Este trabalho propõe uma abordagem transdisciplinar que integra exercícios da psicologia transpessoal e ensino de astronomia, visando possibilitar ao sujeito reincluir o céu na sua vivência diária, expandir sua consciência ambiental e eventualmente vivenciar a unidade ser humano-cosmo. Esta proposta pretende colaborar para suprir a carência em educação de iniciativas que promovam uma integração do conhecimento científico e da experiência humana que transcenda os objetivos materialistas e fragmentadores do sistema educacional atual. Fruto dessa carência, também a formação dos professores é precária no que se refere a uma abordagem integralizadora e transdisciplinar. Além disto, faz-se necessário propor alternativas para que os educadores possam lidar de modo mais assertivo com a crise ambiental e antropológica que vivenciamos, o que também abordamos nesta pesquisa. Nossa hipótese de trabalho é que conteúdos de astronomia, quando trabalhados segundo um enfoque holístico-antropológico e relacionados com práticas da psicologia transpessoal, podem vir a ser um eficiente veículo cultural-acadêmico, capaz de propiciar uma expansão de consciência e mudanças na concepção de mundo dos sujeitos em questão. Tais mudanças se fazem necessárias para que a existência de uma vida mais solidária, justa e ecologicamente equilibrada comece a prevalecer no planeta. O método utilizado em parte da coleta de dados foi o etnográfico, uma vez que uma interpretação de caráter antropológico está inextricavelmente associada a este tipo de intervenção educacional, a qual vai envolver de modo natural tanto etno-visões do universo, como elementos culturais específicos. O universo desta pesquisa foi inicialmente um grupo de estudantes da disciplina de Astronomia (Curso de Licenciatura em Geografia/UFRN), onde realizamos observação participante, entrevistas semi-abertas e as primeiras práticas vivenciais mencionadas. Após o tratamento dos primeiros dados coletados com esse grupo inicial, elaboramos um curso de extensão universitária, Laboratório em Cosmoeducação, e o oferecemos a professores do 1º e 2º ciclos do nível fundamental da Escola Estadual Alceu Amoroso Lima, localizada na zona Norte de Natal. Valorizamos nesse curso a auto-experimentação, para que os professores enriquecessem o seu repertório de vivências pessoais, estimulando reflexões meditativas e eventuais mudanças na concepção de mundo e na prática pedagógica dos mesmos. A atitude transdisciplinar permeou toda a nossa ação educacional, visto que esta abordagem transcende as fronteiras disciplinares, visando essencialmente o desenvolvimento integral do ser humano. O processo nos tem revelado o quanto a prática de “olhar o céu”, no sentido de reincluí-lo na vida diária, provoca um processo de expansão da consciência e de reintegração do eu em um patamar de inter-relação ambiental mais amplo. De acordo com os resultados alcançados, ficou evidente a ocorrência de mudanças conceituais e existenciais em relação à visão de mundo dos professores participantes, reforçando a idéia de que a interface entre o ensino de astronomia e as práticas de psicologia transpessoal pode contribuir para a recuperação de uma relação holística entre o ser humano e o cosmo e inspirar o surgimento de uma ética mais abrangente, fundamentada em princípios universalistas, equânimes e sustentáveis. Palavras-chave: Ensino de astronomia. Psicologia transpessoal. Consciência cósmica. Transdisciplinaridade. Cosmoeducação. Consciência ambiental ampliada. ABSTRACT This work proposes a transdisciplinary approach that integrates transpersonal psychology exercises with astronomy teaching, seeking to allow one to reintegrate the sky in his/her daily life, expand his/her environmental awareness and eventually experiment the unity between human and cosmos. This proposal intends to collaborate with the supplying of education, which lacks initiatives of this kind, with the promotion of an integration of the scientific knowledge with the human experience that transcends the materialistic and fragmentary objectives of the current educational system. As a result of that lack, the teachers’ formation is also poor as for an integral and transdisciplinary approach. Besides, we also approached in this research the necessity to propose alternatives so that the educators may work in a more assertive way with the environmental and anthropological crisis in which we are living. Our working hypothesis is that the contents of astronomy, when they are dealt in a holistic- anthropological focus and are related with transpersonal psychology practices, can come to be an efficient cultural-academic vehicle, capable of propitiating an expansion of consciousness and changes in the way one conceives the world. Such changes are necessary so that a more solidary, fair and ecologically balanced life may come to exist and prevail in the planet. Part of the collection of data was done through the ethnographic method, once an anthropological interpretation is inextricably associated with this kind of educational intervention, which will naturally include ethno-visions of the universe as well as specific cultural elements. In the beginning the scope of this research was a group of students attending the Astronomy assignment in an undergraduate Geography course (UFRN), in which we accomplished participant observation, half-open interviews and the first experimental practices mentioned. After the evaluation of the first data collected from that initial group, we elaborated an academic extension course, Laboratory in Cosmoeducation, and we offered it to teachers of the 1st and 2nd cycles of the fundamental level of the Alceu Amoroso Lima State School, located in the North Zone of Natal. We prized self-experimentation in that course, so that the teachers could enrich their repertoire of personal experiences, stimulating meditative reflections and eventual changes in the ways of conceiving the world and in their pedagogical practice. The transdisciplinary attitude permeated all our educational action, because this approach transcends the boundaries of disciplines, seeking essentially the integral development of the human being. The process has made us realize that the practice of “looking at the sky”, as a way of reintegrating it into daily life, provokes a process of expansion of the consciousness and of reintegration of the self in a wider level of environmental interrelation. According to the results, the occurrence of conceptual and existential changes of the world vision of the participant teachers was evident, reassuring ourselves of the idea that the interface between astronomy teaching and the practices of transpersonal psychology can contribute to the recovery of a holistic relationship between the human being and the cosmos and to inspire the arising of a more wide-ranging ethics, based on universal, impartial and sustainable values. Keywords: Astronomy teaching. Transpersonal Psychology. Cosmic conciousness. Transdisciplinarity. Cosmoeducation. Expanded environmental awareness. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Quadro 1 Visões educacionais 22 Esquema 1 Cartografia da consciência 29 Quadro 2 Reflexões adicionais: exemplos específicos para educação em astronomia 37 Figura 1 Momento coletivo durante a vivência do eclipse lunar interiorizado 49 Figura 2 Compartilhando experiências da vivência som e respiração 51 Figura 3 Exemplo de mandala feito durante a prática 56 Figura 4 Instrumento tibetano citado na(s) prática(s) 60 Figura 5 Dinâmica de observação 68 Figura 6 Observação do sol pelas crianças 70 Figura 7 Exemplo de modelo mandálico para as origens 72 Figura 8 Exemplo de modelo de forças opostas para as origens 72 Figura 9 Exemplo de modelo de intervenção divina para as origens 72 Figura 10 Montagem do calendário lunar 76 Figura 11 Guarda-chuva=abóbada celeste 78 Figura 12 Observação do céu com telescópio em Santana do Matos/RN 81 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 11 2 SEPARAÇÃO ENTRE O SER HUMANO E O COSMO: UM OLHAR SOBRE O PROBLEMA 16 2.1 CRISE CONCEITUAL E FRAGMENTAÇÃO 17 2.2 PARADIGMAS E MODELOS DE REALIDADE 18 2.2.1 Percepção e realidade: o sujeito e sua concepção de mundo 20 2.3 VISÕES EM EDUCAÇÃO 22 3 CULTIVANDO A UNIDADE SER HUMANO-COSMO: UMA PROPOSTA DE SUPERAÇÃO 25 3.1 BREVE HISTÓRICO DA PSICOLOGIA NO OCIDENTE 25 3.2 DEFINIÇÃO DE PSICOLOGIA TRANSPESSOAL 27 3.3 ESTADOS DE CONSCIÊNCIA 28 3.3.1 Consciência Cósmica 30 3.3.1.1 Cosmoeducação 32 3.4 PRIMEIRAS ASSOCIAÇÕES ENTRE PSICOLOGIA TRANSPESSOAL E ASTRONOMIA 32 3.5 O POTENCIAL AUTOTRANSFORMADOR DA ASTRONOMIA 34 3.5.1 Abordagem antropológica no ensino de astronomia 35 3.6 HIPÓTESE DE TRABALHO 37 3.7 TRANSDISCIPLINARIDADE: A BUSCA DA UNIDADE NA DIVERSIDADE EM EDUCAÇÃO 38 4 INTEGRANDO O ASPECTO TRANSCENDENTE À FORMAÇÃO DE PROFESSORES: A PROPOSTA NA PRÁTICA 42 4.1 FERRAMENTAS DE INVESTIGAÇÃO 43 4.1.1 Questionário 43 4.1.2 Observação participante 44 4.1.3 Entrevista Semi-Estruturada 45 4.2 PRIMEIRAS EXPERIMENTAÇÕES 45 4.2.1 Expressão corporal e sonora do eclipse lunar interiorizado 46 4.2.2 Som e respiração 50 4.2.3 Representação mandálica da origem do universo 52 4.3 CURSO DE EXTENSÃO: “LABORATÓRIO EM COSMOEDUCAÇÃO”. 57 4.3.1 Identificando a cosmologia prévia do sujeito 58 4.3.2 Motivação mais profunda 59 4.3.3 Exercício de imaginação 60 4.3.4 Autobiografia 61 4.3.5 Exercício de percepção seletiva 63 4.3.6 Exercício de percepção visual em 180º 64 4.3.7 No topo do planeta terra 65 4.3.8 Filme zoom cósmico 66 4.3.9 Dinâmica de observação 68 4.3.10 Observando o sol 69 4.3.11 Representação pictórica: das origens e do céu 71 4.3.12 Texto coletivo 73 4.3.13 Ache a lua no céu 73 4.3.14 Montagem do calendário lunar 75 4.3.15 Representando a abóbada celeste com um guarda-chuva 76 4.3.16 Aula de campo 78 4.3.17 Retrospectiva do curso 81 5 RESULTADOS E CONCLUSÃO 83 5.1 COSMOLOGIA PRÉVIA DO SUJEITO 83 5.1.1 Concepção de Universo 83 5.1.2 Significado do céu 85 5.1.3 Concepção de origem 87 5.1.4 Concepção da relação entre seres humanos e tudo o mais que existe no universo 88 5.2 MUDANÇAS NA CONCEPÇÃO DE MUNDO 89 5.3 COMENTÁRIOS FINAIS 94 REFERÊNCIAS 98 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 103 APÊNDICES 105 APÊNDICE A: Ementa do curso de extensão universitária “laboratório em cosmoeducação” 106 APÊNDICE B: Questionário inicial aplicado no curso de extensão “laboratório em cosmoeducação” 110 APÊNDICE C: Avaliação final do curso 111 ANEXOS 113 ANEXO A: Descobertas sobre a lua 114 ANEXO B: Texto coletivo sobre início de tudo que existe 118 11 1 INTRODUÇÃO As motivações para este trabalho são inúmeras. Porém, a que considero mais profunda é a que visa propor práticas e reflexões que contribuam para a expansão da consciência humana além dos limites conceituais que estamos habituados. Com isto esperamos propiciar o desenvolvimento de uma concepção de mundo mais ampla e a emergência de valores éticos mais equânimes e solidários, que não se restrinjam à moral humana, mas que incluam toda a biodiversidade do planeta e do cosmo, sendo pautados na responsabilidade universal. A idéia base deste trabalho consiste em reunir elementos de astronomia, incluindo práticas sistemáticas de observações do céu, com vivências da psicologia transpessoal e aplicá-las no contexto educacional com professores do ensino fundamental, a fim de facilitar um contato existencial dos mesmos com as coisas do céu e favorecer uma expansão da visão de mundo e da consciência ambiental desses sujeitos. Esta proposta cosmoeducativa é uma iniciativa de inspiração claramente transdisciplinar, uma vez que transcende as fronteiras disciplinares em questão, visando o desenvolvimento integral do ser humano. É importante destacar que tal iniciativa é pioneira ao propor a aplicação dessa conjunção teórico-vivencial de caráter psico-cognitivo no contexto educacional. Neste sentido ainda há muito a ser desenvolvido e implementado nesta linha de trabalho. Convém ressaltar que esta proposta faz confluir de maneira construtiva e integradora vários domínios do conhecimento, como, por exemplo, psicologia transpessoal, física quântica, astronomia, ecologia profunda e todo um conjunto de reflexões filosóficas associadas. Embora estes domínios já existiam isoladamente ou com interconexões parciais entre eles, eles começam aqui a dialogar entre si a fim de comporem uma matizada e rica urdidura em direção à educação do ser humano como um ser cósmico. Consideramos que grande parte da pertinência deste trabalho vem da constatação de que há uma enorme carência em educação de iniciativas que promovam uma integração do conhecimento em prol do autoconhecimento e que transcendam os objetivos materialistas e fragmentadores do sistema educacional atual. Observa-se também que há uma precária formação dos professores segundo uma abordagem transdisciplinar, visto que as atuais formações curriculares e continuadas dos professores dos ensinos médio e fundamental ainda são muito teóricas e reducionistas, aderindo ao paradigma cartesiano. Estes cursos de formação carecem de uma abordagem mais vivencial, que propicie aos professores 12 oportunidades de autoconhecimento e autotransformação, que servirão de base para as mudanças a serem levadas para a sala de aula, inclusive no que diz respeito aos conteúdos transversais do meio ambiente. Este trabalho também pretende ser nossa resposta à crise ambiental e antropológica que experienciamos nos dias atuais, caracterizada pela destruição dos recursos naturais, pela discriminação cultural, sem falar nos genocídios conseqüentes de guerras. O detalhe é que habitamos o mesmo planeta, que dentro da escala macrocósmica é uma pequena casa. Neste sentido, somos parte de uma mesma família planetária que precisa aprender a se colocar no lugar do outro e a respeitar as diferenças. Este tipo de reflexão é proposto no nosso trabalho com o intuito de expandir a consciência ambiental e de ampliar a visão de mundo, estimulando a emergência de valores éticos mais universalistas, uma vez que essa crise multifacetada decorre, em grande parte, da forma fragmentada e mercantilista que nós, humanos, passamos a ver e a nos relacionar com o meio ambiente em que estamos inseridos. Na maioria das vezes, quando falamos em meio ambiente, apontamos para fora de nós, considerando-o como tudo aquilo que nos cerca. Geralmente não nos damos conta de que somos parte integrante deste ambiente e, portanto, somos o ambiente. Também é comum não incluirmos o céu e todo o cosmo quando nos referimos ao meio ambiente em que vivemos. Este modo fragmentado de ver o mundo e a nós mesmos é decorrente do modelo mecanicista prevalecente para explicar a realidade. Esse modelo determina uma atitude predatória em relação ao ambiente, que está fora. Esta visão tem acarretado danos ambientais sem precedentes na história humana, sendo uma questão vital a emergência de uma nova forma de perceber e interagir com a natureza. Neste ponto é pertinente repetir reflexões constantes do livro Meio Ambiente e Saúde – Temas Transversais, dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) do 3o e 4o Ciclos do Ensino Fundamental (BRASIL, 1998, p. 179): Faz parte dessa nova visão de mundo a percepção de que o ser humano não é o centro da natureza, e deveria se comportar não como seu dono, mas percebendo-se como parte dela, e resgatar a noção de sua sacralidade, respeitada e celebrada por diversas culturas tradicionais antigas e contemporâneas. Nos dias atuais, a ecologia já inclui uma análise ecocêntrica mais universal, que transcende as bases físicas da visão antropocêntrica, na qual o ser humano é o centro da natureza e que prevaleceu (e ainda é vista, com freqüência, de modo acrítico) durante muito 13 tempo na cultura ocidental. É importante destacar que esta mudança de foco central, com as muitas implicações e reorientações associadas, tem suas conseqüências inevitáveis e grandes em educação e que estas já começaram a ser devidamente contempladas por alguns educadores (HUTCHISON, 2000; MORIN, 2002; O’SULLIVAN, 2004; vide discussões e referências lá contidas). De acordo com esse novo olhar, o ser humano é tido como parte integrante do meio ambiente circundante e o conceito de ambiente é ampliado, uma vez que este inclui, de uma maneira equânime, não só os ambientes físicos e os seres humanos, como também todos os seres vivos e as complexas inter-relações entre todos esses elementos. Mesmo nesse novo olhar, contudo, ainda não está explícito, ou enfatizado como deveria, o fato de que uma concepção realmente ampliada de meio ambiente implica incluir-se no mesmo também “o céu”, isto é, “o resto” do universo, física e simbolicamente falando. Neste sentido, o discurso existencial decorrente da visão ecocêntrica mais recente consiste em significativo avanço, ao apontar a necessidade da reconexão do ser humano com a natureza, com o planeta. Porém, tal visão ainda é relativamente limitada ao conceber as reais interconexões em um nível de fato cósmico. Portanto, cientes dessa carência, ou viés, que continua presente nessa nova visão, em nosso trabalho vamos ainda além. Por isto, visamos trabalhar a reconexão do ser humano com o cosmo, explicitando a importância desse tipo de reconexão e propondo formas de se explorar as implicações da mesma. Esta necessidade de reconectar-se com o cosmo, incluindo o planeta, a natureza e além do ambiente puramente terrestre, ao qual estamos fisicamente restritos, tem inspirado fortemente este trabalho, que denominamos, portanto, de cosmoeducação. Este se ergue e se estrutura a partir de conteúdos de astronomia aliados a exercícios de psicologia transpessoal, trabalhados numa perspectiva transdisciplinar. Esta proposta educacional visa diminuir a fenda existente entre conhecimento científico e experiência humana, no sentido de propiciar, em primeira instância, ao educador a vivência da unidade ser humano-cosmo, como também a ocorrência de potenciais mudanças na concepção de mundo dos sujeitos envolvidos. Tal proposta é realizada tendo em vista o desenvolvimento de uma cidadania fundamentada em valores ético-morais mais universalistas, ao mesmo tempo em que compatíveis com a existência plural das culturas. Este trabalho também objetiva oferecer elementos para que a educação, e o ensino de astronomia, em particular, possam fomentar a superação da fragmentação intelectual e valorizar a experiência subjetiva, o imaginário e o aspecto transcendente como sendo relevantes para o desenvolvimento integral do aluno. Ainda com este trabalho, buscamos 14 expandir o conceito de meio ambiente, incluindo o céu no mesmo, e instrumentalizar os professores para tratar temas básicos de astronomia desde o início do primeiro ciclo do ensino fundamental. Finalmente, pretendemos com esta dissertação disponibilizar subsídios teórico-práticos que sirvam de instrumento motivacional e orientador de práticas educacionais e pedagógicas para aqueles educadores mais inquietos diante da multifacetada crise que vivenciamos na sociedade (pós-)moderna e que estão em busca de inovar sua prática pessoal e profissional. Na seção 2 apresentamos o problema da separação entre o ser humano e o cosmo cultivado há alguns séculos na cultura ocidental e suas conseqüências nos dias atuais, especialmente no que diz respeito à crise ambiental sem precedentes que vivemos. Abordamos os atuais paradigmas científicos e respectivas concepções de realidade, bem como os níveis de percepção do sujeito segundo a fenomenologia. Apresentamos algumas visões educacionais propostas por O’Sullivan (2004) e discutimos o importante papel que a educação tem a desempenhar no cenário global. Na seção 3 apontamos uma proposta de superação para a crise de fragmentação decorrente da visão dualista herdada pelo paradigma newtoniano-cartesiano. Tal proposta se fundamenta na interface entre a psicologia transpessoal e o ensino de astronomia. Definimos a psicologia transpessoal bem como seu objeto de estudo e cartografia da consciência. Refletimos sobre o potencial autotransformador da astronomia quando tratada segundo uma abordagem antropológica e holística. Defendemos aqui, nesse capítulo, que a astronomia é uma porta cultural através da qual o homem moderno (re) estabelece suas relações com o céu, podendo readquirir, através da mesma, o hábito do contato com as coisas do céu, redescobrindo-o. Apresentamos nossa hipótese de trabalho e explicitamos as bases da abordagem transdisciplinar utilizada na realização da proposta. Na seção 4 compartilhamos o percurso metodológico trilhado por nós, o qual foi sendo definido a partir da estratégia que adotamos. A proposta, estruturada a partir de temas de astronomia associados a exercícios da psicologia transpessoal, foi aplicada inicialmente a um grupo de estudantes graduandos em Geografia, que cursavam a disciplina de Astronomia, e, num segundo momento, a professores do 1º e 2º ciclos do nível fundamental (antiga 1ª a 4ª séries), uma vez que estes lecionam todas as disciplinas para a mesma turma, tendo, assim, maior possibilidade de atuar numa perspectiva inter, multi e transdisciplinar com seus alunos. Durante a pesquisa realizada com os professores, utilizamos instrumentos como questionário, entrevista semi-estruturada e observação participante, por exemplo, devido ao método etnográfico ter sido, em parte, adotado na coleta de dados, sendo tais instrumentos, 15 então, componentes do repertório operacional desse método. Consideramos tal método relevante neste caso porque uma interpretação de caráter antropológico está inextricavelmente associada ao tipo de intervenção educacional que propomos, a qual vai envolver de modo natural tanto etno-visões do universo, como elementos culturais específicos. Ainda nessa seção, descrevemos as primeiras experiências que contribuíram para a elaboração do curso de extensão: “Laboratório em Cosmoeducação”, bem como os exercícios e vivências propostos no próprio curso e eventuais comentários feitos pelos participantes sobre aqueles. Na seção 5 comentamos os resultados de nossa prática com base na análise dos discursos, tanto orais, quanto escritos e simbólicos (desenhos, mandalas, comunicação não- verbal), dos professores participantes, assim como as conclusões obtidas a partir dessa análise. Observamos que os conteúdos abordados em astronomia causam uma forte repercussão na psique humana, possivelmente, por um lado, por tais conteúdos apresentarem dimensões que extrapolam a nossa imaginação e, por outro lado, por nos remeterem a um passado longínquo (ancestralidade) e mesmo à nossa própria origem, contida na origem do universo. A psicologia transpessoal encara este fato como uma predisposição da pessoa em transcender seus limites conceituais, para entregar-se ao movimento de transformação contínua do universo e descobrir sua identidade cósmica e infinita. De um modo geral, concluímos que os resultados reforçaram o pressuposto de que temas de astronomia, se trabalhados segundo abordagem holístico-antropológica e, em particular, relacionados com exercícios e técnicas da psicologia transpessoal, funcionam como uma porta cultural e acadêmica para a conscientização da unidade existencial entre o ser humano e o cosmo, favorecendo mudanças na visão de mundo dos educadores. 16 2 SEPARAÇÃO ENTRE O SER HUMANO E O COSMO: UM OLHAR SOBRE O PROBLEMA “O ser humano vivencia a si mesmo, seus pensamentos, como algo separado do resto do universo – numa espécie de ilusão de ótica de sua consciência. E essa ilusão é um tipo de prisão que nos restringe a nossos desejos pessoais, conceitos e ao afeto apenas pelas pessoas mais próximas. Nossa principal tarefa é a de nos livrarmos dessa prisão, ampliando o nosso círculo de compaixão, para que ele abranja todos os seres vivos e toda a natureza em sua beleza. Ninguém conseguirá atingir completamente este objetivo, mas lutar pela sua realização já é por si só parte de nossa liberação e alicerce de nossa segurança interior.” (Einstein) O século XX se caracterizou por grandes contrastes no que se refere à relação do ser humano com o meio ambiente em que vive. À medida que se foi adquirindo conhecimento acerca do universo, se foi, por outro lado, perdendo a intimidade com o mesmo. Este estado de coisas é peculiar e seria paradoxal se ele não nos dissesse, na verdade, mais sobre como se dá, e o que significa, o conhecimento na cultura ocidental, do que sobre as potencialidades e formas de conhecimento disponíveis aos seres humanos. No caminho epistemológico que foi sendo consagrado como privilegiado em nossa cultura, portanto, um aumento de conhecimento implica, de modo quase inevitável, em um afastamento de possíveis integrações do conhecedor com o que vai sendo conhecido. Assim, atualmente, a pesquisa espacial, por exemplo, vem realizando avanços sem precedentes na história da astronomia, no entanto a maioria das pessoas perdeu o contato com o céu. Ao contrário de nossos ancestrais, que tinham um contato direto e vivencial com as coisas do céu, o ser humano ocidental moderno, especialmente habitante de grandes centros urbanos, tem excluído metade do espaço de sua vida. Segundo o arqueoastrônomo Aveni (1993, p. 20): Tudo o que aprendemos sobre o céu hoje é adquirido por meio de livros e, ocasionalmente, da visita a um planetário. Exceto, talvez, quando abrimos a porta à noite para colocar o lixo para fora ou quando saímos do carro no caminho para casa e damos uma olhada para cima para ver se poderá chover amanhã, vivemos em um mundo basicamente sem consciência da metade de espaço visível que está acima do nível de nossos olhos. O trecho acima ilustra o quanto nos distanciamos da experiência direta com o ambiente circundante que inclui as coisas do céu, bem como torna explícita a enorme fenda existente entre conhecimento científico e experiência humana. Segundo Varela, Thompson e Rosch (2003, p. 31), “A não ser que nos posicionemos para além dessas oposições, o abismo 17 entre a ciência e a experiência em nossa sociedade irá aumentar. [...] A experiência e a compreensão científica são como duas pernas sem as quais não podemos caminhar”. Os avanços tecnológicos aeroespaciais nos permitem viajar fisicamente além da órbita planetária e, no entanto, a maior parte das pessoas está desconectada de uma instância existencial, que não só representa a outra metade do meio ambiente físico, mas que reflete em nosso imaginário uma estrutura de unidade, constância e harmonia precisa, devido às repetições diárias e sazonais regulares dos ciclos realizados pelos corpos celestes. É relevante destacar, seguindo Jafelice (2006a), que ao longo da história da humanidade, especialmente em seus primórdios, o céu inspirou fortemente a organização de estruturas espaciais, temporais e sócio-culturais em nossos antepassados mais distantes, como, por exemplo, as orientações celestes para a elaboração de calendários lunares, de arquiteturas de templos, de rituais e festejos de equinócios e solstícios ou a realização das grandes navegações. “A relação do céu com a terra constituiu a nossa forma de estar no mundo enquanto espécie animal e, portanto o céu está constitutivamente em nós” (JAFELICE, 2006a; grifo do autor e nosso). Segundo Jafelice (2003a, p.1): astronomia e autoconhecimento na história antiga da humanidade estão indissociáveis e caminham paralelos. Essa relação sempre esteve presente pela vertente da forma que o ser humano existe no planeta: em estreita relação com o ambiente que o cerca. Esse ambiente, por sua vez, mantém estreita conexão com o céu, pois este determina, em última instância, o que ocorre com aquele. Portanto, a conexão entre céu (astronomia), terra (meio ambiente) e seres humanos (parte do todo) é direta e clara. 2.1 CRISE CONCEITUAL E FRAGMENTAÇÃO A condição de distanciamento do ser humano moderno do ambiente em que vive, incluindo a natureza, o céu, os outros seres e suas inter-relações, tem causado graves problemas de ordens diversas, com sérias implicações para o equilíbrio pessoal e planetário. Vivemos um momento de crise generalizada, especialmente devido aos desequilíbrios ambientais e culturais, provocada por um modo fragmentado e reducionista de perceber a nós mesmos e ao mundo. 18 Segundo Capra (c1996, p.23, grifo nosso), físico e ecologista, no seu livro Teia da vida: [...] Defrontamos-nos com toda uma série de problemas globais que estão danificando a biosfera e a vida humana de uma forma alarmante, e que pode se tornar irreversível. [...] Tais problemas não podem ser entendidos isoladamente. São problemas sistêmicos, o que significa que estão interligados e são interdependentes. Por exemplo, somente será possível estabilizar a população quando a pobreza for reduzida em âmbito mundial. A extinção de espécies animais e vegetais numa escala massiva continuará enquanto o Hemisfério Meridional estiver sob o fardo de enormes dívidas.[...] Esses problemas refletem diferentes facetas de uma única crise: a crise de percepção. Nesse sentido, tal crise descrita por Capra (c1996) deriva da maneira que vemos a nós mesmos e a realidade à nossa volta, a qual, conseqüentemente, determina a maneira como agimos em relação a outros seres humanos, à biosfera e ao universo. Segundo citação do livro Meio Ambiente e Saúde – Temas Transversais, dos PCN do 1o e 2o Ciclos do Ensino Fundamental (BRASIL, 1997, p. 22, grifo nosso): [...] a questão ambiental representa quase uma síntese dos impasses que o atual modelo de civilização acarreta. Consideram que aquilo a que se assiste, no final do século XX, não é só uma crise ambiental, mas uma crise civilizatória. E que a superação dos problemas exigirá mudanças profundas na concepção de mundo, de natureza, de poder, de bem-estar, tendo por base novos valores individuais e sociais. Faz parte dessa nova visão de mundo a percepção de que o homem não é o centro da natureza. A partir das citações acima e seguindo o pensamento de Matthews (1994), é possível inferir que essa série de problemas humanos e ambientais necessita de uma compreensão científica mais ampla, da qual ainda estamos muito carentes, uma vez que a prática educacional, especialmente a educação em ciência no ocidente, também está fortemente caracterizada pela fragmentação. 2.2 PARADIGMAS E MODELOS DE REALIDADE Um paradigma científico consiste num sistema de referências constituído de concepções, valores, técnicas, etc. compartilhado por uma dada comunidade científica e utilizado pela mesma para definir e lidar com problemas. 19 De acordo com Matos (1992), atualmente pode-se observar no mundo ocidental científico a presença de duas realidades básicas originadas a partir de dois paradigmas científicos distintos: a realidade cartesiana-newtoniana e a realidade da física moderna. O paradigma cartesiano, o qual vem modelando a sociedade moderna ocidental há mais de três séculos, teve início com a chamada revolução científica caracterizada por descobertas em física, astronomia e matemática no final do século XVI e início do séc. XVII, associadas principalmente aos nomes de Copérnico, Galileu, Descartes, Bacon e Newton. A denominação deste paradigma como cartesiano-newtoniano é devido à forte influência do pensamento conceitual de Descartes (cartesiano), cujo todo pode ser entendido através da análise das pequenas partes que o compõem, mais tarde coroado com a mecânica de Newton (newtoniana). Podemos dizer que algumas palavras-chaves que caracterizam o paradigma mecanicista são: racionalismo, reducionismo e linearidade. Tal paradigma se edifica a partir do princípio da separação entre mente e matéria, e concebe o mundo como sendo formado por objetos cuja existência é independente da consciência humana. Segundo essa visão de mundo, o universo é formado por um conjunto de objetos mais ou menos separados entre si, ou visto como um sistema mecânico onde o ser humano é percebido como uma máquina ou uma parte elementar isolada, onde a vida em sociedade é baseada na crença de que o progresso material ilimitado pode ser obtido pelo desenvolvimento econômico e tecnológico. A realidade da física moderna, onde esta é fundamentada em conceitos da teoria quântica e da teoria da relatividade, vai de encontro à realidade descrita pela mecânica de Newton. Segundo Toben e Wolf (1982), a teoria quântica aponta para uma conexidade, de acordo com a qual as observações efetuadas sobre um objeto de fato afetam os resultados observados, pois o ato de observação afeta o estado quântico do próprio objeto observado, interferindo na dinâmica futura do mesmo, isto é, afetando-o mesmo quando não haja mais entre ambos qualquer tipo de contato físico conhecido. Segundo Heisenberg (1971 apud CAPRA, c1996, p.41-42), um dos fundadores da teoria quântica: “O mundo aparece assim como um complicado tecido de eventos, no qual conexões de diferentes tipos se alternam, se sobrepõem ou se combinam e, por meio disso, determinam a textura do todo”. Segundo este paradigma, o universo consiste numa teia dinâmica onde tudo está interligado com tudo, onde não existe separação entre o sujeito e o objeto, sendo o ser 20 humano parte integrante deste todo, refletindo em si mesmo o macrocosmo, tal qual uma holografia1. Dois termos que a nosso ver sintetizam estas realidades fundamentadas nesses dois paradigmas – cartesiano-newtoniano e da física moderna –, são, respectivamente: Dualismo e Unidade. 2.2.1 Percepção e realidade: o sujeito e sua concepção de mundo O foco do nosso trabalho é a concepção de mundo dos sujeitos envolvidos, a qual determina a forma de estes lidarem com o universo em que vivem. Com a finalidade de entender como o sujeito constrói a concepção de mundo, utilizaremos como referência a abordagem fenomenológica. Como explica Bertolucci (1991), a realidade, segundo a fenomenologia, é uma experiência do sujeito, o qual é ativo em sua percepção, mesmo que inconscientemente. De acordo com esta abordagem, a realidade percebida depende da atividade da consciência, a qual consiste no princípio fundamental que produz significado do mundo, estando vinculada a algumas variáveis como, por exemplo, o condicionamento social, a cultura, os estímulos do meio ambiente, a idade. Enquanto, em oposição a esta proposta, o naturalismo advoga que as coisas externas existem tais como são vistas e o sujeito capta a realidade sensorialmente, através dos estímulos que lhes chegam aos sentidos, a fenomenologia argumenta que o indivíduo tem, em cada momento vivido, uma “posição” afetiva, imaginária, perceptiva ou cognitiva, que é a origem do sentido que capta do mundo. Dessa forma, perceber muda de acordo com o estado de consciência e, portanto, as realidades existem de acordo com estes estados de consciência que o sujeito experiencia num 1 Imagem tridimensional, também chamada de holograma, onde cada parte reflete o todo da figura. Segundo Morin (2003, p. 34), “o holograma é uma imagem física, concebida por Gabor, que, diferentemente das imagens fotográficas e fílmicas comuns, é projetado ao espaço em três dimensões, produzindo uma assombrosa sensação de relevo e cor. O objeto holografado encontra-se restituído, em sua imagem, com uma fidelidade notável. [...] Como afirma Pinson, cada ponto do objeto holografado é ‘memorizado’ por todo o holograma, e cada ponto do holograma contém a presença do objeto em sua totalidade ou quase. Desse modo a ruptura da imagem holográfica não determina imagens mutiladas, mas imagens completas, que se tornam cada vez menos precisas à medida que se multiplicam. O holograma demonstra, portanto, a realidade física de um tipo assombroso de organização, na qual o todo está na parte que está no todo, e na qual a parte poderia ser mais ou menos apta a recriar o todo”. 21 dado momento. Em suma, deverão existir tantas realidades quantos forem os estados de consciência vivenciados pelo sujeito perceptivo. Portanto, não é possível explorar a realidade sem explorar a nós mesmos, tanto por sermos como por criarmos a realidade que exploramos. De acordo com Matos, o que nos faz ficar na 1ª realidade descrita pelo paradigma cartesiano, e perceber a separação entre nós e tudo o mais que existe são nossos exteroceptores (agarradores de fora) ou nossos cinco sentidos (tato, olfato, paladar, audição e principalmente a visão), os quais funcionam como pinças. Neste sentido, passamos a vida toda tentando segurar as coisas, imprimindo aquela forma na memória sem perceber a transformação (informação verbal)2. Ainda segundo Matos (1992), se olharmos para um sólido edifício possivelmente iremos experienciar esta construção como algo imutável, sem pensar que aqueles materiais não estavam ali há quinhentos anos atrás ou que não estarão, quinhentos anos à frente. Raramente pensamos que todos aqueles materiais compostos de moléculas e átomos estão em movimento e transformação constante. Perceber este nível de atuação, ou pelo menos se conscientizar deste estado, exige o exercício da observação em profundidade, a qual requer uma mudança na forma de estar no mundo. Portanto, num estado de consciência usual ou ordinária de vigília, não somos capazes de perceber a “conexidade” proposta pela mecânica quântica, mas, sim, aptos a ver o universo num contexto de separação proposto pelo paradigma newtoniano-cartesiano. Isto também se deve ao condicionamento de pelo menos três séculos de inculcação quanto à forma de perceber a realidade segundo as premissas deste paradigma dualista. No entanto, pesquisas de vanguarda na área da psique humana no ocidente, desde o final da década de 60 do século passado, exploram os estados modificados de consciência, diferentes da vigília, que transcendem o conceito de identidade individual e permitem ao sujeito vivenciar a interconexão descrita pela física quântica, ou pelo menos um tipo de interconexão que, quando expressa em palavras, se assemelha muito à verbalização da interconexão oriunda da abordagem quântica. Neste movimento de expansão da percepção de si mesmo, o ser humano pode se sentir um só com o universo, celebrando sua identidade cósmica e despertando em si valores éticos como responsabilidade universal, solidariedade e fraternidade. Como disse o poeta William Blake: “se as portas da percepção fossem purificadas, tudo apareceria ao homem tal como é infinito”. 2 Informação obtida durante aula do módulo IV - Percepção e realidade - do Curso de Especialização em Psicologia e Psicoterapia Transpessoal, realizado em setembro de 1996 em Recife-PE. 22 2.3 VISÕES EM EDUCAÇÃO No âmbito do sistema educacional, o paradigma mecanicista se expressa através de propostas educacionais modernistas que atuam no sentido de alimentar os interesses mercadológicos do sistema industrial, reforçando valores individualistas, materialistas e competitivos, que, por sua vez, contribuem para um distanciamento de si mesmo, do outro, da natureza e do universo. Em seu livro Aprendizagem Transformadora, O’Sullivan (2004) assume a existência de três visões em educação: uma progressista, de acordo com o paradigma mecanicista newtoniano- cartesiano, outra tradicional e uma terceira emergente e biocêntrica. O quadro seguinte ilustra e especifica mais em detalhe cada uma dessas visões. Características / Visão Tecnozóico-progressista Orgânico-conservador Ecozóico-transformador História / visão de mundo educacional Moderna Antimoderna Pós-moderna Relação com a comunidade e com o mundo natural Exploradora Tradicional Reflexiva / interativa Visão do tempo Evolutiva Cíclica / estática Desenvolvimento temporal Visão do espaço Pluralista Essencialista orgânica Orgânica / interativa Metáfora básica Mecanicista Orgânica antropológica (corpo humano) Biocêntrica (isto é, rede orgânica da vida), "o círculo da vida" Visão do conflito Superficial/ amenizadora Perversão / anarquia Criativa Características educacionais contemporâneas Progressista Tradicional Emergente Quadro 1 - Visões educacionais Fonte: O’Sullivan (2004, p. 86) O sistema educacional ainda se encontra fortemente caracterizado pela visão tecnozóico-progressista, cujos valores de natureza egocêntrica e fragmentada têm contribuído, em grande escala, para promover a crise ambiental que vai se agravando e pondo em risco o sistema de vida da terra, deixando o planeta num estado emergencial de alerta. De acordo com O’Sullivan (2004, p.26), “a tarefa educacional essencial de nosso tempo é fazer a opção em favor de um hábitat planetário sustentável para seres vivos interdependentes, além e contra o apelo disfuncional do mercado competitivo global”. Neste sentido, reconhecemos o importante papel que a educação tem a desempenhar no cenário global, como agente transformador, fomentando a quebra de paradigmas e o desenvolvimento de valores elevados compartilháveis, especialmente no que diz respeito a 23 uma relação mutuamente benéfica entre os seres humanos, o planeta e o cosmo, visando a construção de uma sociedade menos progressista e mais evoluída. De acordo com Vajpeyi (1995), a proposta de qualquer sistema educacional é, de alguma forma, promover o desenvolvimento integral do indivíduo, contextualizando o aprendizado, para que esclareça o aluno sobre si mesmo e as relações com o meio ambiente que o cerca. Neste ponto, o atual sistema educacional tem falhado em grande escala, especialmente no que diz respeito à relação com o meio ambiente natural que o cerca. Ao contrário disso, a educação tem, até certo ponto, ignorado o impacto desta forma predadora do ser humano em relação à natureza em prol de servir a uma visão global baseada no comércio e no progresso econômico. Esta visão modernista em educação, voltada para atender as necessidades industriais, funciona mais como problema que solução para a crise ambiental que põe em risco a vida do planeta. Diante disso, são necessárias profundas mudanças no sistema educacional para que os educadores se posicionem de modo mais assertivo frente aos graves problemas ambientais dos dias atuais. Vide também, nestas mesmas linhas de argumentação e discussão, Hutchison (2000). “Estamos adquirindo uma consciência planetária global mediante processos que envolvem o terror, bem como a atração” (SWIMME ; BERRY, 1992 apud O’SULLIVAN, 2004, p.45). Estes autores consideram que estamos vivenciando um período de transição, que leva ao fim um longo termo da história da terra que chamam de “cenozóico” e dá início a um novo período de sua história, que eles denominam “ecozóico”. Como exemplos do terror que nos cerca em escala planetária, podemos citar o aquecimento global (efeito estufa), envolvendo as mudanças climáticas, o buraco na camada de ozônio, o lixo tóxico, as chuvas ácidas, a poluição do ar, a escassez de água potável à medida que a demanda aumenta acima do ritmo da reposição, a redução das florestas tropicais, a extinção de várias espécies, entre outros assombros que exige de nós uma resposta urgente no sentido de reparar a relação do ser humano com o planeta. Ainda segundo O’Sullivan (2004, p. 48), “o desafio educacional é saber como atingir um nível constante de conscientização em relação a esses problemas e mantê-lo em primeiro plano em nossa percepção cultural”. Essa tarefa não será fácil uma vez que não fomos educados para ter consciência planetária. Neste sentido, O’Sullivan (2004) propõe uma educação planetária transformadora, para a qual sinaliza a necessidade de um grau de alfabetização mais ampla, a qual denominou “alfabetização terrestre” ou “alfabetização ecológica”. 24 Segundo Morin (2002, p. 75-76) “a união planetária é a exigência racional mínima de um mundo encolhido e interdependente. Tal união pede a consciência um sentimento de pertencimento mútuo que nos una à nossa terra, considerada como primeira e última pátria”. Ainda de acordo com Morin (2002, p. 76-77): [...] todos os humanos, desde o século XX, vivem os mesmos problemas fundamentais de vida e de morte e estão unidos na mesma comunidade de destino planetário. Por isso é necessário aprender a ‘estar aqui’ no planeta. Aprender a estar aqui significa: aprender a viver, a dividir, a comunicar, a comungar; é o que se aprende somente nas - e por meio de – culturas singulares. Precisamos doravante aprender a ser, viver, dividir e comunicar como humanos do planeta terra, não mais somente pertencer a uma cultura, mas também ser terrenos. Devemo-nos dedicar não só a dominar, mas a condicionar, melhorar, compreender. Devemos inscrever em nós: a consciência antropológica, que reconhece a unidade na diversidade; a consciência ecológica, isto é, a consciência de habitar, com todos os seres mortais, a mesma esfera viva (biosfera): reconhecer nossa união consubstancial com a biosfera conduz ao abandono do sonho prometéico do domínio do universo para nutrir a aspiração de convivibilidade sobre a terra; a consciência cívica terrena, isto é, da responsabilidade e da solidariedade para com os filhos da terra; a consciência espiritual da condição humana que decorre do exercício complexo do pensamento e que nos permite, ao mesmo tempo, criticar-nos mutuamente e autocriticar-nos e compreender-nos mutuamente. É necessário ensinar não mais a opor o universal às pátrias, mas a unir concentricamente as pátrias - familiares, regionais, nacionais européias - e a integrá-las no universo concreto da pátria terrestre. Entendo que neste tipo de alfabetização ecológica e planetária se faz necessário cultivar aspectos humanos altamente desprezados pela educação formal, voltada para a produtividade, que são a contemplação, a imaginação e a subjetividade. Considero que estes elementos são essenciais para o conhecimento e o autoconhecimento, bem como para o desenvolvimento de uma relação mais integrada com o planeta e com o universo. Enquanto educadores preocupados com o desenvolvimento integral do ser humano e suas relações com o ambiente em que está inserido, incluindo-se neste o céu, como também com o desenvolvimento de uma sociedade sustentável, buscamos refletir neste trabalho sobre soluções para superar essa fragmentação e propiciar condições para que os professores possam promover potenciais mudanças na concepção de mundo e, conseqüentemente, na prática pedagógica, através de ações no âmbito da educação, segundo um enfoque transdisciplinar. 25 3 CULTIVANDO A UNIDADE SER HUMANO-COSMO: UMA PROPOSTA DE SUPERAÇÃO “A base social de nossa percepção deveria ser a certeza física de que a energia é tudo que existe. Deveria ser feito um esforço gigantesco para levar-nos a perceber energia como energia” (Juan Matos). A necessidade de recuperar uma relação holística com o universo, e de vivenciar mais a unidade, a harmonia e suas implicações na vida diária, através de uma mudança na nossa concepção de mundo e de nós mesmos, parece ser imprescindível, uma vez que os problemas globais apontados exigem de nós uma visão sistêmica da realidade, onde todas as coisas estão integradas, formando uma teia interativa e complexa. Neste contexto, o paradigma mecanicista se revela insuficiente para cultivar uma visão mais integrada da realidade, sendo, pois, emergencial adotar-se um novo paradigma que comporte tais anseios. Neste sentido, recorremos a uma abordagem transdisciplinar em educação, ou seja, um enfoque que segundo Nicolescu (2001) comportasse naturalmente a transgressão das fronteiras entre as disciplinas, que, no presente caso, trata-se de astronomia e de psicologia transpessoal, com o objetivo de criar uma seqüência experimental a partir da interface entre essas duas áreas do conhecimento, visando, por assim dizer, o cultivo existencial da unidade entre o ser humano e o cosmo. Portanto, consideramos útil, para fins didáticos de entendimento do caminho que percorremos, definirmos de forma breve a psicologia transpessoal e a astronomia enquanto áreas do saber. 3.1 BREVE HISTÓRICO DA PSICOLOGIA NO OCIDENTE Como descreve Saldanha (1997), a origem da psicologia no ocidente remonta à Grécia antiga, a partir das reflexões de filósofos que buscaram sistematizar seus questionamentos sobre a natureza humana. Dentre eles, destacam-se Sócrates, que com ênfase na racionalidade lançou o postulado norteador da busca interior: Conhece-te a ti mesmo, e Platão, que teorizou a imortalidade da alma, constituindo um esboço da primeira teoria em psicologia. Ainda na Grécia antiga, vale ressaltar o pensamento aristotélico, evidenciando a mortalidade e a pertinência da alma em relação ao corpo. 26 Na idade média, predominou o conhecimento religioso, cujos principais representantes foram Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. No renascimento, o conceito de dualidade corpo e mente, proposto por Descartes, favoreceu o surgimento da psicofisiologia, já no século XIX. Ao final do século XIX, com o intuito de ser legitimada enquanto ciência, a psicologia se separa da filosofia, adquire um método experimental e renega o aspecto subjetivo do humano, reduzindo-o ao comportamento observável, passível de ser validado cientificamente. Surge então, na Alemanha, o behaviorismo, considerado primeira força em psicologia. Paralelamente a esse movimento desenvolviam-se estudos na área clínica, no que se refere ao tratamento das patologias, onde não se abandonou o aspecto subjetivo, culminando com a teoria do inconsciente de Sigmund Freud e o surgimento da segunda força em psicologia - a psicanálise. Como sintetizou Berger (2001, p. 44-45): “behaviorismo e psicanálise lançaram as bases da psicologia experimental e clínica que perdurou por grande parte do século XX”. Na década de 60 do século passado, surge nos EUA um novo movimento na área da psicologia, que se opõe às idéias das escolas anteriores e critica a ênfase no aspecto patológico em detrimento do aspecto sadio, por um lado, e o interesse unilateral pelas experiências passíveis de experimentação, por outro, ignorando aspectos cruciais, como a consciência e o bem estar psicológico. Surgia então, o movimento humanista, a terceira força em psicologia, cujo foco de interesse era o crescimento pessoal com base nos aspectos positivos do humano. Um dos principais expoentes dessa linha de pensamento foi Abraham Maslow, que desenvolveu um estudo sobre experiências culminantes, caracterizadas por sentimento de grande êxtase, deslumbramento, admiração e a perda de localização no tempo e no espaço. No final da década de 60, como desdobramento da psicologia humanista, surge, também nos EUA, uma abordagem em psicologia que visa explorar as dimensões transcendentes da natureza humana e seu potencial de auto-realização, a qual se denominou psicologia transpessoal, termo preconizado por Carl Gustav Jung, psiquiatra e psicólogo suíço, nascido no séc. XIX e atuante até meados do séc. XX. Considerada a quarta força em psicologia, a transpessoal surge como resposta ao materialismo científico e avança preocupando-se com a humanidade do homem, a busca do sentido da vida e da existência. É importante ressaltar que estas linhas psicológicas, humanista e transpessoal, com raízes no existencialismo e na fenomenologia, surgiram em meio ao contexto cultural do movimento pós-guerra nos EUA, onde o sonho materialista começava a ser questionado e buscavam-se novas formas de se estar no mundo. O desejo de paz e harmonia se revelava na 27 disseminação de práticas orientais, como yoga, zen-budismo, diferentes tipos de meditação, nas experiências com drogas psicodélicas, na sensibilidade por questões ambientais ecológicas. 3.2 DEFINIÇÃO DE PSICOLOGIA TRANSPESSOAL Matos (1992, p. 9), resume da seguinte maneira o percurso e o significado da psicologia transpessoal, desde suas formas originais no oriente até sua formalização no ocidente: A psicologia transpessoal que oficialmente foi fundada na primavera de 1969 com a publicação da primeira revista científica: the journal of transpersonal psychology, na Califórnia, já existia em parâmetros científicos diferentes dos nossos atuais há vários milênios. Há mais de 5 mil anos atrás já se praticava a psicologia transpessoal na Índia, há 4 mil anos atrás no antigo Egito e há mais de 10 mil anos no Tibet de uma forma bastante complexa e sofisticada. No entanto, desde os primórdios do homem, num contexto xamanístico, se tem praticado esta forma de Psicologia que estuda o indivíduo per si, o indivíduo como um ser cósmico. Pode-se observar, a partir deste trecho, o aspecto transcultural presente nesta abordagem psicológica, visto que a experiência de transcendência é comum ao ser humano desde os primórdios da civilização, sendo independente da cultura, da etnia, da localização geográfica e temporal e tendo despertado o interesse de vários povos em diferentes contextos. O termo transpessoal vem do latim: trans significa além de, e pessoal que é da pessoa. Portanto, diz respeito ao que está além do pessoal, que extrapola a noção do eu ou os limites do ego. A psicologia transpessoal estuda o ser humano em sua totalidade, contemplando os aspectos individuais, sociais, culturais, ecológicos e cósmicos. Este último aspecto é inovador e diferencial, pois inclui o céu e o universo como sendo parte integrante do meio ambiente, ampliando-o para o infinito. Uma vez que tudo está interconectado, o ser humano também está conectado com tudo que existe, inclusive com o cosmo, sendo parte integrante deste e em última análise pode ser considerado o próprio universo, legitimando a associação entre microcosmo e macrocosmo, onde cada micro-parte integrante do universo reflete o macro em níveis diferentes de complexidade. 28 3.3 ESTADOS DE CONSCIÊNCIA A psicologia transpessoal tem como objeto de estudo os estados de consciência, incluindo aqueles invulgares ou modificados. Como vimos na seção anterior, os estados de consciência delineiam a percepção de diferentes níveis de realidade e são considerados manifestações da psique humana. Segundo Saldanha (1997), Charles Tart, pioneiro na conceituação de estados de consciência, os define como padrões generalizados de funcionamento psicológico. “É um sistema constituído por subsistemas e subestruturas, onde determinada quantidade de energia, sob a forma de atenção, mantém determinado estado de consciência ou provoca ruptura desse sistema, passando, então, o experienciador, para outro sistema ou estado de consciência” (SALDANHA,1997, p. 52). De acordo com esta abordagem transpessoal, a experiência humana apresenta-se dentro de um vastíssimo espectro de possibilidades. Para uma maior compreensão dessa dinâmica, faz-se necessário um mapeamento das regiões do inconsciente, a fim de hierarquizar e ordenar esses diferentes níveis. Nas palavras de Bertolucci (1991, p. 19), “se ficarmos apenas ‘no interior’ da vivência subjetiva, cairemos em um excesso de relativismo e na ausência de um ponto de vista que permita uma correta avaliação das diversas formas de consciência”. Utilizando diferentes terminologias, autores consideram de uma forma geral três domínios conscienciais: o autobiográfico, que se refere às experiências desde o nascimento até o momento presente da história de vida do sujeito; o perinatal, que corresponde às experiências vivenciadas no período intra-uterino; e o transpessoal, que engloba todas as experiências que se diferenciam e transcendem os domínios anteriores. Diferentes cartografias da consciência foram propostas por diferentes autores transpessoais como, por exemplo, Stanislav Grof, Ken Wilber e Pierre Weil. Assim como Saldanha (1997), optamos por adotar a cartografia proposta por Kenneth Ring, devido ao aspecto didático da mesma. De acordo com o mapa proposto por Ring (1978 apud SALDANHA, 1997, p. 62), a consciência possui regiões pessoais e transpessoais de acordo com o esquema e caracterizações abaixo: 29 Esquema 1 – Cartografia da Consciência Fonte: Saldanha (1997, p. 62) Estado de vigília: estado usual de consciência, caracterizado por conteúdos do cotidiano, bem como por atividade de ondas cerebrais com freqüência de 14 a 30 ciclos por segundo, onde a maioria das pessoas se mantém a maior parte do tempo. Pré-consciente: conteúdos facilmente acessados a partir de evocações diretas, devido à proximidade destes do estado de vigília. Inconsciente psicodinâmico: trata-se do inconsciente individual descrito por Freud e que compreende conteúdos autobiográficos que vão desde o nascimento até o momento atual. Tais conteúdos possuem carga afetiva normalmente esquecida, porém atuante no psiquismo humano. Inconsciente ontogenético: compreende as experiências intra-uterinas, descritas por Grof através do modelo das matrizes perinatais básicas (MPB), elaborado a partir das fases do nascimento biológico. Este nível de consciência inclui as experiências de morte-nascimento e representa uma zona de transição do nível pessoal ao transpessoal. Inconsciente transindividual: envolve: a) experiências ancestrais, onde o sujeito revive episódios das vidas dos seus ancestrais e sente-se explorando o próprio código genético; b) experiências coletivas e raciais, em que o sujeito vivencia episódios provenientes de outras culturas, de acordo com um inconsciente coletivo que contém toda a história da humanidade; 30 c) experiências arquetípicas, aquelas correlacionadas com a idéia de inconsciente coletivo de Jung, constituindo-se por símbolos universais da experiência humana, imagens primordiais ou arquétipos; e d) as vivências de existências anteriores, que transcendem a vida atual do sujeito e são constituídas por experiências com conteúdos de forte teor emocional que reportam a outro tempo e lugar, extrapolando a biologia e a genética, dando ao sujeito uma compreensão da evolução através das sucessivas existências. Inconsciente filogenético: envolve experiências além das formas humanas, da própria seqüência evolutiva do planeta terra, tanto orgânicas como inorgânicas. Tais vivências podem vir acompanhadas por mudanças nos reflexos neurológicos e por fenômenos motores anormais, que parecem estar relacionados com a ativação das redes nervosas arcaicas. Inconsciente extraterreno: estado de consciência que se estende para além do planeta, por exemplo, experiência de estar fora do corpo, e encontros com entes queridos em outras dimensões. Aqui se incluem os fenômenos de percepção extra-sensorial, como clarividência e telepatia, entre outros amplamente estudados pela parapsicologia e atual conscienciologia3. Superconsciente: denominado por outros autores como supraconsciente, este nível se caracteriza pela percepção ampla da realidade e apreensão intuitiva do fenômeno da unidade e da relação homem-cosmo. Vácuo: estado além de qualquer conteúdo, além do tempo e do espaço, que transcende toda a dualidade, correspondente ao nirvana, na filosofia budista, ou à cosmoconsciência, na conscienciologia. É importante lembrar que no nosso psiquismo esses níveis de consciência e seus conteúdos interagem num todo complexo e interligado. Muitas vezes se interpenetram ou são experienciados em frações de segundo, demonstrando que consciente e inconsciente são dimensões de uma mesma realidade. 3.3.1 Consciência Cósmica Dentro deste espectro dos estados de consciência estudados pela psicologia transpessoal, identificamos o estado da consciência cósmica e suas implicações na relação ser humano-cosmo como elemento de interseção com os conteúdos de astronomia, a serem 3 Conscienciologia é uma neociência fundamentada no paradigma consciencial, que pesquisa a consciência de forma integral, com vários corpos interagindo energeticamente em múltiplas dimensões, dentro de um ciclo multiexistencial. 31 adaptados e inseridos na formação de professores, como um poderoso agente de possíveis mudanças na visão de mundo e de valores dos educadores em questão. O termo consciência cósmica traduz uma experiência onde o sujeito vivencia um senso de profunda unidade com o universo, percebendo-se como parte indissociável do mesmo. Observando os relatos de quem já vivenciou esta experiência, constata-se um enorme potencial autotransformador no que diz respeito aos princípios e valores pessoais. Na definição de Weil (1989, p. 19), consciência cósmica trata-se de: [...] uma experiência em que determinadas pessoas percebem a unidade do cosmos, se percebem dentro dela (e não fora, como muitos poderiam imaginar), a experiência é acompanhada de sentimentos de profunda paz, plenitude, amor a todos os seres. Compreende-se de um relance o funcionamento e a razão de ser dos universos, a relatividade das três dimensões do tempo e do espaço, a insignificância e ilusão do mundo em que vivemos, os erros monumentais cometidos por muitos seres humanos; uma iluminação acompanha muitas destas percepções. A morte é vista apenas como uma passagem para outra espécie de existência e o medo dela desaparece totalmente. Ela pode ser e é, em geral o resultado de uma longa e lenta evolução; às vezes no entanto, ela constitui o início de uma profunda transformação no sentido dos valores mais elevados da humanidade; neste último caso ela acontece em momento inesperado. Grof (1994 apud SALDANHA, 1997, p. 52) define a consciência como “a expressão e reflexo de uma inteligência cósmica que permeia todo o universo e toda a existência. Somos campos ilimitados de consciência, transcendendo tempo, espaço, matéria e causalidade linear.” O cerne da psicologia transpessoal é a vivência da unidade cósmica como algo desejável e curativo. Para se ter esta vivência faz-se necessário mudar de um estado de consciência de vigília ordinária, onde geralmente não somos capazes de experienciar esta interdependência ou interconectividade, para um estado de consciência ampliado, onde a visão do eu, separado do ambiente, tende a ser transcendida, dando lugar a uma cosmovisão que integra o microcosmo ao macrocosmo. Neste sentido, elevar o estado de consciência representa condição sine qua non para se experienciar a realidade da unidade com o universo. A compreensão dos conteúdos de astronomia requer uma capacidade de abstração e de se colocar além da nossa perspectiva pessoal e planetária. Este exercício, ao nosso ver, favorece a ampliação da visão de mundo, que, aliado às práticas de psicologia transpessoal, propicia condições para que o sujeito vivencie um estado elevado de consciência capaz de promover a emergência de insights, intuições e descobertas sobre este estado de interdependência existente entre todas as coisas 32 do universo. Conforme já mencionado, esta experiência que agrega temas de astronomia e técnicas da psicologia transpessoal é apresentada aqui como uma possibilidade de superação para a crise de fragmentação. 3.3.1.1 Cosmoeducação Entende-se por cosmoeducação o desenvolvimento vivencial da unidade ser humano- cosmo. Este conceito foi proposto pelo psicólogo transpessoal Weil (1989, p. 72), a partir da hipótese de que “a dissolução do ego através da ampliação do campo dos níveis de realidade, da desidentificação dos diferentes planos experienciais e do controle dos diferentes degraus da consciência, é o caminho para a consciência cósmica”. Ou seja, para vivenciar esta realidade de total integração com o cosmo é necessário uma ampliação da consciência para níveis elevados que transcendem a dualidade espaço-tempo. Este termo foi sugerido de forma visionária, onde o autor vislumbrou a possibilidade do surgimento de uma cosmopsicologia, que estuda a unidade ser humano-cosmo, a qual fundamentaria uma cosmoeducação e uma cosmoterapia. Desde o primeiro momento em que me deparei com o termo cosmoeducação me senti estimulada a criar algum programa que propiciasse o desenvolvimento prático dessa teoria. 3.4 PRIMEIRAS ASSOCIAÇÕES ENTRE PSICOLOGIA TRANSPESSOAL E ASTRONOMIA Nos PCN do 3º e 4º ciclos do Ensino Fundamental em Ciências Naturais, Eixo Temático: terra e universo encontramos um trecho que traduz nossa idéia inicial (BRASIL, 1999, p. 41): Compreender o universo, projetando-se para além do horizonte terrestre, para dimensões maiores de espaço e de tempo, pode nos dar novo significado aos limites do nosso planeta, de nossa existência no cosmos, ao passo que, paradoxalmente, as várias transformações que aqui ocorrem e as relações entre os vários componentes do ambiente terrestre podem nos dar dimensão da nossa enorme responsabilidade pela biosfera. 33 Aqui se propõe uma ampliação da visão de mundo numa perspectiva cósmica. Entendemos que quando o nosso referencial é ampliado, sai do nosso “umbigo”, do nosso bairro, da nossa cidade, país, continente, planeta, galáxia, etc., há uma tendência a minimizarmos as diferenças, preconceitos, e a desenvolvermos uma atitude mais universalista e solidária. Conseqüentemente, tomamos consciência que não só estamos influenciando o nosso lar, o nosso trabalho, mas todo o planeta e todo o universo. Ou também, se recorrermos a uma leitura mediada por conceitos de física moderna atualmente aceitos para uma modelização de muitos aspectos fundamentais da realidade, podemos interpretar que tudo está interligado de acordo com a realidade energética proposta pela física quântica. O conteúdo deste trecho retirado dos PCN teve ressonância com algumas idéias que haviam me ocorrido há alguns anos, quando participei de um minicurso em cosmologia chamado O universo em que vivemos4. Durante aquele curso, foram abordados temas como nascimento das estrelas, galáxias, buracos negros, origem do universo, tempo de vida do sol, entre outros. A escala das grandezas e dimensões macrocósmicas proporcionou uma expansão da visão de universo, antes limitada por uma perspectiva desde a terra. A partir de então, percebi o potencial de tais conteúdos de astronomia em proporcionar uma ampliação da visão de mundo, de meio ambiente e da conseqüente responsabilidade pessoal frente aos problemas globais, na medida em que a pessoa se percebe de modo mais integrado no universo. Nesta ocasião, apareceram para mim as primeiras associações entre psicologia transpessoal e astronomia, bem como a curiosidade em investigar a interface entre estas duas áreas do conhecimento e aplicá-la em educação, visando potenciais mudanças na visão de mundo dos educadores e conseqüentes mudanças de valores. À medida que começamos a relacionar temas de astronomia com vivências de psicologia transpessoal e a vivenciá-las com os alunos, naturalmente esta prática foi remetida para o termo cosmoeducação. Esta palavra traduz bastante a nossa proposta de que através do conhecimento do cosmo (astronomia) e da conscientização de que fazemos parte deste (psicologia transpessoal), é possível desenvolver o senso cosmológico, que, em última instância, nos faz sentir um só com o universo. 4 Minicurso com carga horária de 6 horas, ministrado por professores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), durante a 50ª Reunião Anual da SBPC, realizada de 12 a 17 de julho de 1998, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 34 3.5 O POTENCIAL AUTOTRANSFORMADOR DA ASTRONOMIA Astronomia constitui uma sub-área da física, que trata da posição, movimentos, constituição e evolução dos astros. Em outras palavras, estuda as coisas do céu do ponto de vista exclusivamente científico, isto é, de sua constituição material-energética quantitativamente falando, conforme o conhecimento construído através da ciência (ocidental) foi se caracterizando. Através desta área do saber acessamos informações sobre as dimensões do universo conhecido e tentamos inferir previsões sobre sua parte desconhecida. A tentativa de compreendermos estes conteúdos exige de nós uma capacidade de abstração que normalmente nos transporta para domínios incomuns de nossa imaginação, promovendo, quase que via de regra, uma ampliação da consciência. Neste sentido, é possível perceber o potencial da astronomia enquanto porta cultural acadêmica para o despertar de uma identidade cósmica. Contudo, como destaca Jafelice (2006c)5: Essa ‘porta de entrada’ não pode ser adequadamente explorada, por quem defende uma perspectiva de educação integral do ser humano, se a abordagem ao estudo da astronomia continuar restrita aos seus aspectos técnico-científico formais, como habitualmente é feito em cursos, disciplinas e materiais de ensino e de divulgação de astronomia existentes. Nestas abordagens convencionais, não há, por um lado, uma discussão crítica sobre o significado do conhecimento científico, nem há, por outro lado, uma ampliação de interpretações que incorpore possibilidades não racionais significativas para nós, humanos, de nos relacionarmos com os conteúdos daquela área do saber, possibilidades de caráter fortemente integrador em termos psíquicos, cognitivos, culturais e sociais. Estas são possibilidades de teor simbólico-representacional, aceitas como constitutivas do humano em outras áreas do conhecimento, como em psicologia, sociologia, antropologia, por exemplo, mas normalmente excluídas, enquanto aporte válido à construção do conhecimento relevante, nas áreas de ciências exatas e biológicas. A compartimentação do saber, que foi se estabelecendo em nossa cultura e as implicações para o pensamento daí decorrentes – tanto aquelas de ordem organizativa e estruturadora, como as de ordem enviesadora e limitante –, precisam ser revisadas com urgência e determinação. E a área de educação, desde que também se submeta a tal revisão paradigmática e metodológica, é particularmente sensível e estratégica nesse empreendimento revisionista e na transformação dessa revisão em ações inovadoras e crescedoras para os sujeitos envolvidos. A reaproximação e um diálogo frutificador entre as culturas humanística e científica precisam ser, em parte, restaurados e, em parte, recriados em nossa cultura, pois constituem etapas fundamentais a colaborar na solução da crise civilizatória em que vivemos. 5 Vide também Jafelice (2002c, 2004, 2006b), onde essas discussões são mais aprofundadas. 35 Desde os primórdios da história da humanidade pode-se observar que as coisas do céu despertavam a curiosidade e o fascínio do ser humano. Consideramos que a chave deste processo está na capacidade de vivenciar tais conteúdos de forma integral, não só através da intelectualidade supervalorizada pela educação atual, mas através das sensações, intuições e subjetividade próprias da construção do saber. De acordo com esta forma de pensar, supomos que os conteúdos de astronomia trabalhados apenas do ponto de vista tradicional (no sentido mais conservador e limitador deste termo), de modo a valorizar somente o acúmulo de informações, dados matemáticos e tecnicidades em geral, não propiciam condições favoráveis para potenciais mudanças na visão de mundo do sujeito em questão. Por mais fascinante e envolvente que seja um conhecimento, isso não garante que ele, por si só, seja transformador. A forma como esse saber será vivenciado é que proporcionará, ou não, mudanças no modo do educando perceber o mundo. 3.5.1 Abordagem antropológica no ensino de astronomia As sementes desse trabalho transdisciplinar encontraram solo fértil na iniciativa humanística que o Prof. Luiz Carlos Jafelice vem desenvolvendo ao longo de pelo menos uma década de atuação docente em ensino de astronomia, onde ele tem lecionado esta disciplina sob uma ótica antropológica, holística e cultural. Enfim, como ele mesmo explicita: Uma ótica transdisciplinar, tanto pela forma de abordar, re-significar e encaminhar os conteúdos ditos específicos das muitas áreas participantes, quanto pela perspectiva pós-moderna com que as questões de método, de referenciais teóricos e de práxis são encaradas e redefinidas, para atender à educação integral de ordem maior almejada (JAFELICE, 2006c). De acordo com essa abordagem, a astronomia é um excitante e provocador instrumento através do qual o indivíduo pode desenvolver a observação do céu, buscando reconectar-se com este, ampliando a noção de meio ambiente e eventualmente modificando sua visão de si mesmo e do mundo ao seu redor. Nesta abordagem o foco é o desenvolvimento humano integral. Explicitando mais ainda este ponto básico, Jafelice (2006c) resume: O foco não é apenas a construção (ou ‘aquisição’, como se costuma pressupor nas abordagens convencionais) de conhecimentos específicos em astronomia, desde as perspectivas disciplinar e tecnocrata-progressista convencionais. Da forma que entendemos uma abordagem antropológica 36 holística, a astronomia, embora continua tendo uma importância e interesse em si mesma, é uma desculpa, pode-se dizer – por ser biológica e historicamente relevante ao humano e trazer muitas vantagens dos pontos de vista psicológico, cognitivo e cultural associadas a isto – para ser usada como estímulo e incentivo àquilo que, de fato, mais carecemos atualmente, que são o sentir, o pensar e o agir solidários, cooperativos, éticos, desde uma cosmovisão biocêntrica e sistêmica, decorrentes do aprofundamento de um processo comprometido de autoconhecimento. Segundo, por exemplo, Jafelice (2005a) a abordagem antropológica se justifica devido aos elementos culturais e, portanto, educacionais permearem nosso imaginário através de representações simbólicas criadas e vividas por nós enquanto seres humanos. Essa abordagem investe na recuperação vivencial da relação humana com o ambiente, com as outras culturas humanas e com o cosmo. Portanto, de tal enfoque pode-se extrair “substância, contextura e inspiração para práticas educacionais diversas” (JAFELICE, 2002d, p. 64)6. Outro ponto fundamental desta abordagem, para o desenvolvimento de nossa proposta, é o exercício de tentar se colocar no lugar do outro e, até onde possível, ver o mundo segundo a perspectiva do outro. Nota-se que este aspecto é extremamente necessário, por um lado, para o desenvolvimento de uma genuína solidariedade, uma vez que ao se colocar no lugar do outro o sujeito sai do seu ego, se reconhece no outro, e cria possibilidades de empatia e de sensibilização, e por outro lado, para promover a conscientização da existência de múltiplas formas de entender e se relacionar com o ambiente ao redor, seja na mesma cultura ou em culturas diferentes (vide, neste sentido, JAFELICE, 2002c, p. 9-10). Essa abordagem comporta também naturalmente elementos sobre o meio ambiente, por entender que a própria origem e desenvolvimento de nossa forma de ser e pensar enquanto espécie foi definida pela relação dos seres humanos com o ambiente, ao longo da história da humanidade. Aqui, entenda-se por meio ambiente tudo que compõe o céu e a terra, lembrando que esta última é regida por ritmos e ciclos astronômicos e, portanto, de origem celeste. Então, ao longo da disciplina de astronomia, segundo essa abordagem, o desafio é reintegrar essas questões, ligadas a essa outra metade do espaço, e descobrir como que poderíamos recuperar isso de modo reintegrador em nossas vidas. A perspectiva aqui é dupla: primeiro recuperar o contato com as coisas do céu pelo simples enriquecimento de cada um enquanto pessoa, enquanto ser humano, e, depois, como instrumentalização de cada um como educador, que lecionará tais assuntos (JAFELICE, 2006a). 6 vide também Jafelice (2001a). 37 Segue abaixo um quadro comparativo entre a educação astronômica tradicional e a antropológica em questão. Educação astronômica tradicional: a imagem pela imagem, vazia; apelo visual Educação astronômica antropológica: A o que há de significativo por trás das projeções; processos psicológicos nosso lugar no universo (fisicamente falando) A o lugar do universo em nós (simbolicamente falando) jovem não se interessa por ciência A o natural é o ser humano procurar sentido maior em tudo em que se envolve a abóbada celeste é esférica; etc., etc., etc. A o céu não é único; há tantos céus quantas culturas humanas a astrologia: grande bobagem e perigo; exemplo do mal pensar; ramo equivocado das origens históricas da astronomia A a astrologia: pensamento analógico; unidade cósmica; ricos conteúdos e processos psíquicos envolvidos a alquimia: idem, ibidem (química) A a alquimia: idem/ibidem aquilo que contribuiu direta ou indiretamente para a moderna astronomia ocidental serve, caso contrário é pitoresco ou curiosidade para quem tem tempo para essas coisas A aquilo que não contribuiu diretamente para a moderna astronomia ocidental é mais um exemplo da diversidade de formas culturais e de possibilidades de pensamentos humanos fundamentais Quadro 2 – Reflexões adicionais: exemplos específicos para educação em astronomia Fonte: Jafelice (2004, p. 36) 3.6 HIPÓTESE DE TRABALHO Em consonância com o que temos argumentado, pensamos na hipótese de que conteúdos de astronomia, quando trabalhados segundo um enfoque antropológico do caráter acima exposto, e associados com práticas da psicologia transpessoal, podem vir a ser um eficiente veículo cultural-acadêmico capaz de proporcionar uma expansão de consciência e promover mudanças na concepção de mundo dos sujeitos em questão, mudanças essas que se fazem necessárias para que a existência de uma vida mais solidária, justa e ecologicamente equilibrada comece a prevalecer no planeta. O espírito de solidariedade humana e de parentesco com toda a vida é fortalecido quando vivemos com reverência o mistério da existência, com gratidão pelo presente da vida, e com humildade considerando o lugar que ocupa o ser humano na natureza. Necessitamos com urgência de uma visão de valores básicos para proporcionar um fundamento ético à emergente comunidade mundial. (Carta..., 2004, p. 40) 38 Para testar a hipótese proposta foi elaborada uma seqüência experimental fundamentada na abordagem transdisciplinar, que teve como mote gerador temas de astronomia associados a vivências de psicologia transpessoal adaptadas para o contexto educacional de formação de professores dos primeiros ciclos do ensino fundamental. 3.7 TRANSDISCIPLINARIDADE: A BUSCA DA UNIDADE NA DIVERSIDADE EM EDUCAÇÃO A educação contemporânea sofre profundamente com o eclipse da dimensão espiritual de nosso mundo e universo. Em nosso tempo, a espiritualidade foi seriamente comprometida por sua identificação com as religiões institucionalizadas. (O’SULLIVAN, 2004, p. 376, grifo nosso.) De acordo com Weil (1997 apud O’SULLIVAN, 2004, p. 376), “a religião procura institucionalizar a espiritualidade e, em muitos casos, isso é feito mais pela perpetuação da instituição do que pelo bem-estar explícito do indivíduo”. Portanto, a espiritualidade referida aqui não é sinônimo de religião, mas, sim, refere-se a dimensões não físicas, imateriais, de nosso ser, o qual transcende a materialidade da nossa existência física, bem como as barreiras conceituais da nossa cultura. Esta dimensão faz parte da vivência do ser humano, quer queira a ciência ou não. Atualmente, especificamente na sociedade ocidental, o predomínio da ideologia cientificista tem ignorado as dimensões humanas, as quais não se pode manipular através de leis e de métodos objetivos. Qualquer outro conhecimento que não seja científico é considerado fantasia, fruto da imaginação, algo sem valor e que não merece nossa atenção nem respeito. Esta cegueira tem sido uma ameaça para nossa própria espécie, uma vez que a complexidade da crise civilizatória ou de percepção, que comentamos no capítulo anterior, exige da sociedade global (nós) uma compreensão e atitude complexa, a qual requer a valorização do desenvolvimento integral do ser humano, e este inclui funções psíquicas, como emoção, sensação e intuição. A transdisciplinaridade é uma abordagem recente que comporta este anseio transcendente, uma vez que transgride as fronteiras das disciplinas e vai além delas, reconhecendo a unidade na diversidade bem como percebendo a diversidade na unidade. Como esclarece D’Ambrósio (1997, p. 9): 39 A transdisciplinaridade não constitui uma nova filosofia. Nem uma nova metafísica. Nem uma ciência das ciências e muito menos, como alguns dizem, uma nova postura religiosa. Nem é, como insistem em mostrá-la, um modismo. O essencial na transdisciplinaridade reside numa postura de reconhecimento onde não há espaço e tempo culturais privilegiados que permitam julgar e hierarquizar - como mais corretos ou mais verdadeiros - complexos de explicação e convivência com a realidade que nos cerca. [...] Na sua essência a transdisciplinaridade é transcultural. Como escreve O’Sullivan (2004, p. 377): “a diversidade é um dos ingredientes necessários à espiritualidade saudável [...]”. Segundo Nicolescu (2005), a unidade na diversidade e a diversidade através da unidade é inerente à transdisciplinaridade. Ou ainda, com Barbosa (2005, p. 361): A atitude transdisciplinar precisa ser entendida como abertura para perceber o novo na educação, disposição para a mudança de paradigma epistemológico, compreensão do movimento que propõe a incerteza, articulação dos saberes e aceitação de que a transdisciplinaridade possibilita a compreensão do mundo presente. Para alcançar esta compreensão do mundo presente, o caminho ou método transdisciplinar, trilhado por um número significativo de pesquisadores em diversos países, se ergue a partir de três pilares, sendo estes: a complexidade, os níveis de realidade e a lógica da inclusão. A complexidade compreende a interdependência entre todas as coisas e fenômenos dos universos físicos, sociais, culturais, constituindo uma teia multidimensional de relações onde nada está isolado. Neste sentido, a complexidade exalta a riqueza de elementos contidos na diversidade, indo de encontro ao empobrecimento da visão humana limitada pela ilusão da fragmentação e pela ênfase na racionalidade (em particular na limitante racionalidade cientificista dominante). Segundo Barbosa (2005, p. 363), “a educação transdisciplinar possibilita desenvolver uma pedagogia da incerteza que propõe condições para o educando buscar soluções para problemas concretos apresentados pela existência”. Nesta perspectiva o educando aprende a aprender. Os níveis de realidade, já discutidos na seção anterior, em 2.2.1, percepção e realidade: o sujeito e sua concepção de mundo, são entendidos aqui de forma semelhante, admitindo-se a existência de diferentes níveis de realidade correspondentes aos diferentes níveis de percepção; estes últimos, por sua vez, são determinados pela posição em que se encontra o sujeito-observador e seu repertório cultural como um todo. Assim sendo, “a gestão educacional transdisciplinar possibilita ao educador perceber a vida da escola de diversos 40 pontos e notar que o que se vê de um ponto do espaço da escola pode ser visto de outra maneira de outro ponto” (BARBOSA, 2005, p. 365). O terceiro pilar que sustenta a metodologia transdisciplinar é a lógica da inclusão, a qual defende a valorização do conhecimento prévio do educando através de suas vivências e de sua cultura. Esta visão vai de encontro à lógica da educação positivista, onde o que mais interessa é o professor e as informações que ele ‘tem que’ passar para o aluno e depois avaliá- lo para ver o quanto o aluno é capaz de reproduzir. De acordo com a lógica da inclusão, o ponto de partida é a valorização do educando, de sua interioridade. Para perceber a interioridade do aluno é preciso que o educador esteja fazendo esse caminho de reconhecimento e valorização da sua própria subjetividade. Só assim desenvolverá a sensibilidade para perceber os movimentos mais sutis da subjetividade do aluno. Esta percepção mais sutil, que vai além da superfície dos fatos e nos permite ver em profundidade, pode ser vivenciada através da prática reflexiva e meditativa, a qual ainda não é comum no meio educacional. Neste sentido, estamos diante de uma necessidade de mudança na forma de entender o processo educacional e a quem ele atende. Se, enquanto educadores, estamos preocupados com o desenvolvimento integral do ser humano e, conseqüentemente, com a construção de uma sociedade mais equânime, parece ser mais lógico nos voltarmos para nós mesmos num movimento de redescobrirmos nossa própria subjetividade, valorizá-la a fim de estimular essa descoberta pessoal no nosso aluno. Dessa forma, mudamos o foco da ação educacional para o estudante em sua complexidade existencial. Segundo Barbosa (2005, p. 367-368), A percepção da interioridade do sujeito é um aprendizado de meditação. O professor que medita consegue alcançar o sentimento dos seus alunos além da exterioridade que apresentam.[...] Na nossa prática educacional não estamos acostumados a exercícios de reflexão que desperte a subjetividade meditativa. Esta colocação do autor é bastante pertinente ao nosso ver e presente ao longo das práticas que realizamos com nossos sujeitos, pois entendemos que a vivência meditativa geralmente nos permite elevar o nosso estado de consciência, ampliar nossas percepções e ver em profundidade as inter-relações das coisas e fatos que nos cercam. 41 Nesse processo de aprofundar nossas percepções nos deparamos com as faculdades de ver o invisível que permeia o imaginário dos sujeitos e de ouvir o meio ambiente além do audível. Faculdades estas tão importantes para criar empatia com nossos alunos e nos tornarmos um só com estes. Para ilustrar, reproduzimos aqui uma lenda chinesa citada em Barbosa (2005, p. 368). Na antiga China um certo príncipe procurou o mestre para aprender a relacionar-se com outras pessoas. O mestre deu-lhe um exercício que o príncipe deveria ir à floresta para ouvir os sons que ali se manifestavam. O príncipe dirigiu-se à floresta e por um ano ficou ouvindo os sons. Voltou ao mestre e disse: “Mestre pude ouvir o canto dos cucos, o roçar das folhas, o alvoroço dos beija-flores, a brisa batendo suavemente na grama, o zumbido das abelhas e o barulho do vento cortando os céus”. Quando terminou a explicação o mestre mandou-o de volta à floresta para ouvir tudo o mais que fosse possível. Foram longos dias e noites que o príncipe esteve sozinho na floresta, ouvindo, ouvindo. Mas não conseguiu distinguir nada de novo. Certa manhã, sentado entre as árvores da floresta começou a distinguir sons vagos, diferentes de tudo que já tinha ouvido e sem pressa passou horas e horas ouvindo pacientemente.Quando retornou ao templo, o mestre lhe perguntou o que mais ele tinha conseguido ouvir e então o príncipe disse: “quando prestei mais atenção, pude ouvir o inaudível - o som das flores se abrindo, do sol aquecendo a terra e da grama bebendo o orvalho da manhã”. O mestre acenou com a cabeça em sinal de aprovação. 42 4 INTEGRANDO O ASPECTO TRANSCENDENTE À FORMAÇÃO DE PROFESSORES: A PROPOSTA NA PRÁTICA “Caminante, son tus huellas el camino, y nada más; caminante, no hay camino,se hace camino al andar. Al andar se hace camino,y al volver la vista atrás se ve la senda que nunca se ha de volver a pisar. Caminante, no hay camino,sino estelas en la mar.” (Trecho de Provérbios y Cantares, de Antonio Machado) Este trecho do poema de Antonio Machado traduz bastante o nosso percurso metodológico, uma vez que, ao longo de nossa jornada, pensamos o método em função da estratégia e não em função do programa, como tradicionalmente se faz. Segundo Morin, Ciurana e Motta (2003, p. 29): O programa constitui uma organização predeterminada da ação. A estratégia encontra recursos, faz contornos, realiza investimentos e desvios. O programa efetua a repetição do mesmo no mesmo, ou seja, necessita de condições estáveis para sua execução. A estratégia é aberta, evolutiva, enfrenta o imprevisto, o novo. O programa não improvisa nem inova, mas a estratégia sim. O programa só pode experimentar uma dose fraca e superficial de risco e de obstáculos em seu desenvolvimento. Para alcançar seus fins, a estratégia se desdobra em situações aleatórias, utiliza o risco, o obstáculo, a diversidade. O programa tolera apenas uma dose fraca e superficial de erros em seu funcionamento. A estratégia tira proveito de seus erros. O programa necessita de um controle e de uma vigilância. A estratégia não só necessita deles, mas também, a todo o momento, de concorrência, iniciativa, decisão e reflexão. Neste sentido, a nossa prática foi dando o tom de como fazer, por onde ir, quando parar. Fomos escolhendo o caminho a ser trilhado ao mesmo tempo em que fomos escolhidos por ele. Primamos pela integração dos elementos envolvidos na pesquisa e nos incluímos neste processo. Seria, inclusive, incoerente com a proposta de caráter transdisciplinar que, desde o início, pretendíamos desenvolver e implementar, adotarmos outra postura no que concerne a questão metodológica. Iniciamos as experimentações com estudantes da disciplina de Astronomia, do Curso de Licenciatura em Geografia da UFRN. Elaboramos algumas vivências associando conteúdos de astronomia, que estavam sendo trabalhados na disciplina, com exercícios de psicologia transpessoal, com o objetivo de despertar outros sensores cognitivos que possam apreender de um modo sensível a inter-relação entre tudo o que existe. Este foi nosso primeiro grupo real de indivíduos, para testar a aplicabilidade e a pertinência da proposta concebida e corrigir pontos falhos detectados. Esta escolha se deu principalmente devido à facilidade de 43 acesso a esse grupo e porque ele estava vivenciando exatamente aspectos fundamentais para nosso trabalho, que envolve, em particular, o tratamento de temas de astronomia segundo uma abordagem antropológica holística, no contexto da formação de professores. Após o tratamento dos primeiros dados coletados a partir deste primeiro grupo, construímos uma seqüência experimental que, ao nosso ver, pudesse atender aos objetivos propostos. Essa seqüência foi aplicada a professores do 1º e 2º ciclos do nível fundamental (antiga 1ª a 4ª séries) de uma Escola Estadual localizada na zona Norte de Natal através de um curso de extensão universitária. A escolha do universo de nossa pesquisa se justifica devido a esses professores lecionarem todas as disciplinas para a mesma turma, apresentando uma maior possibilidade de interconectar conteúdos, bem como ir além deles, atuando numa perspectiva interdisciplinar e transdisciplinar. Pretendíamos responder às duas questões básicas enunciadas abaixo: 1. É possível promover mudanças na concepção de mundo dos educadores, através da utilização de temas de astronomia aliados às práticas de psicologia transpessoal? 2. Quais temas astronômicos e vivências psicológicas são mais favoráveis para promover a ampliação da visão de mundo pretendida? 4.1 FERRAMENTAS DE INVESTIGAÇÃO Adotamos em nossa coleta de dados, em parte, o método etnográfico. Tal método é relevante neste caso porque uma interpretação de caráter antropológico, como a pretendida por nós, está inextricavelmente associada ao tipo de intervenção educacional que propomos, a qual vai envolver de modo natural tanto etno-visões do universo, como elementos culturais específicos. Isto explica nossa adoção também de instrumentos de investigação como questionário, entrevista semi-estruturada e observação participante, por exemplo. 4.1.1 Questionário Elaboramos e aplicamos um questionário inicial e final aberto, para os professores- experimentadores da proposta em questão. O uso do questionário se justifica devido ao fato de que este instrumento possibilita que, para cada pessoa, as perguntas sejam feitas da mesma forma, permitindo assim uma melhor comparação entre as respostas. 44 A vantagem do questionário aberto para esta pesquisa é a possibilidade de recolher dados ou informações mais ricas e variadas. Aqui não nos prendemos à possível desvantagem do uso do questionário com perguntas abertas, devido às maiores dificuldades envolvidas no processo de redução dos dados, pois as respostas têm que ser codificadas e analisadas uma a uma. Ao contrário, exploramos o objetivo desse instrumento, que é o de é captar a complexidade da realidade subjetiva dos sujeitos envolvidos. Assim, identificamos ressonância com Morin (1998, p. 170), quando este fala sobre o método que elaborou em Plozévet: O princípio do método consiste em favorecer a emergência dos dados concretos, em apreender as realidades humanas sob diversas dimensões, em não procurar anular, mas sim revelar, os caracteres individualizados do terreno, a começar pelo indivíduo sociológico que é uma comuna, em reconhecer os traços originais da dupla natureza, singular e microcósmica, do fenômeno estudado. Buscamos apreender esta complexa teia produzida a partir da percepção de mundo do sujeito. Ao final de cada prática os participantes produzem relatos de experiência, que complementam o questionário e revelam, em maior escala, a subjetividade dos envolvidos. 4.1.2 Observação participante O fato de o pesquisador integrar-se e participar do dia-a-dia escolar dos alunos e professores permite uma compreensão mais ampla e realista a respeito do grupo. Embora sua disponibilidade como observador é relativamente limitada, a integração lograda pode levar o pesquisador a alcançar uma qualidade e profundidade de informação que seriam inacessíveis de outra forma. Estamos falando de capacidade perceptiva, a qual exige muita disciplina do observador de participar e ao mesmo tempo observar de fora, de ser igual a todos e ao mesmo tempo diferente, num perfeito movimento de expande-contrai contínuo, obedecendo à lógica do terceiro incluído, de ser um observador e um não observador simultaneamente. Segundo Morin (1998, p. 172), as disposições necessárias à observação são: Um interesse constante pelas idéias gerais, pela humanidade singular e as realidades concretas. Em compensação, a atitude puramente profissional atrofia a percepção; o interesse monomaníaco por uma idéia única mutila-a; a indiferença pelos seres humanos é cegueira; a indiferença pelas idéias não deixa ver a proliferação de sinais que o mundo fenomenal constitui; a carência da função decifradora conduz à carência da função perceptora, e reciprocamente. 45 4.1.3 Entrevista semi-estruturada Este instrumento foi utilizado ocasionalmente para buscar maior clareza além das respostas dadas, criando um espaço de maior interação. Assim, as entrevistas realizadas neste trabalho foram elaboradas a partir de conteúdos já mencionados pelo sujeito, podendo vir à tona, durante a interação, questões relacionadas que não estavam previstas, legitimando o tipo da entrevista. A vantagem de se usar este instrumento é a investigação além das respostas escritas, podendo nos revelar mais a intimidade do sujeito em questão, bem como trazer à tona componentes fundamentais expressos através de outras linguagens (como a corporal, a gestual) e níveis (como o emocional, o interacional), além de outros elementos relevantes e inusitados para a pesquisa. 4.2 PRIMEIRAS EXPERIMENTAÇÕES Na disciplina de Astronomia, obrigatória para estudantes do Curso de Licenciatura em Geografia da UFRN, elaboramos e aplicamos ao longo do primeiro semestre letivo de 2003, em horários extra-aula, normalmente antes desta, algumas práticas que mesclavam elementos de astronomia, que estavam sendo trabalhados em sala de aula, e exercícios da psicologia transpessoal7. O objetivo inicial deste trabalho experimental era avaliar até que ponto esta combinação poderia estimular a afloração de conteúdos imaginários significativos para a interação subjetiva dos estudantes com as coisas do céu. A partir daí, pretendia-se fomentar a compreensão existencial das relações de interdependência do sujeito com tudo o que existe, bem como a conscientização do senso cosmológico e reconhecimento de sua identidade cósmica. Exploramos aqui mudanças de estado de consciência e a percepção de conteúdos associados à astronomia (MEDEIROS; JAFELICE, 2003). Propusemos, ao longo daquele semestre, vivências opcionais que incluíam, por exemplo, exercícios de relaxamento, meditação, sons autóctones, expressão corporal, imaginação ativa, pinturas de mandalas pessoais e redescoberta do céu diurno e noturno. Vale salientar que essas práticas, com exceção das que envolveram a redescoberta do céu diurno e noturno, foram aplicadas na própria sala de aula onde a disciplina era lecionada, espaço físico 7 É pertinente ressaltar que esta fase exploratória da pesquisa foi iniciada antes do meu ingresso oficial no Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências Naturais e Matemática da UFRN, o qual veio ocorrer em 2004. 46 que não apresentava condições ambientais adequadas para tais vivências. Porém, foi o único espaço de que dispusemos, embora este inconveniente não chegou a impedir que as práticas pudessem atingir seus objetivos. Outro inconveniente para a realização destas práticas foi a indisponibilidade de tempo de vários estudantes. Portanto, cerca de 30% da turma participou das práticas propostas durante o semestre. As práticas descritas a seguir foram realizadas com esse grupo de estudantes em dias diferentes, envolvendo temas variados da astronomia. Em decorrência da dificuldade de coincidir as respectivas disponibilidades de tempo dos interessados em experienciar voluntariamente as práticas propostas, tivemos, ao longo das vivências realizadas com esse grupo, uma variação de participantes dentro do percentual de participação citado. 4.2.1 Expressão Corporal/Sonora do Eclipse Lunar Interiorizado O primeiro exercício experimentado por este grupo envolvia a representação simbólica do eclipse lunar. Estávamos a dois dias de acontecer um eclipse lunar, os rumores sobre o assunto eram uma constante entre os estudantes e os elementos curiosidade e fascínio estavam em evidência. Aproveitando este momento propício de sensibilização por parte do grupo em relação a este tema, decidimos propor uma vivência que tivesse como mote gerador o eclipse lunar. O objetivo desta prática consistiu, de um modo geral, em mobilizar os estudantes de astronomia para as relações existentes entre eles mesmos e os eventos que acontecem no ambiente ao redor, neste caso o fenômeno natural do eclipse da lua. Num nível específico, pretendia-se promover no estudante um contato subjetivo com o eclipse lunar bem como uma conscientização das inter-relações entre o que acontece dentro e fora de si mesmo. É importante frisar que se havia chamado a atenção para tal fenômeno na disciplina, porém nada sobre eclipse havia sido trabalhado ainda em aula, nem os participantes desta prática haviam estudado ou lido nada sobre o assunto; além disto, eles não tinham nenhum conhecimento sobre o que consistia essa prática. Após exercícios de consciência corporal e espacial, como, andar na sala em diferentes direções, ritmos e níveis, redescobrindo o ambiente, foi sugerido que cada um dos alunos encontrasse um lugar na sala e se acomodasse ali, relaxando o corpo de olhos fechados. Foi dado o comando de que seriam mencionadas duas palavras e que eles deveriam observar as 47 imagens e sensações que eventualmente pudessem emergir como resposta espontânea dentro deles. As palavras mencionadas foram 'Eclipse Lunar'. Em seguida foi sugerido que cada um buscasse um som e um movimento capaz de expressar a imagem e/ou sensação que tiveram. Por fim, de pé e ainda no mesmo lugar, eles deveriam expressar através do corpo e da voz o seu som/movimento e, posteriormente, movendo-se pelo espaço, deveriam expressar-se no coletivo, buscando uma unidade entre os vários sons/movimentos ali presentes, dentro e fora de cada um. Após a prática sentamos em círculo e cada um compartilhou a experiência vivenciada. Em síntese, a vivência constituiu-se de três momentos: um de sensibilização, onde o objetivo central foi desconstruir condicionamentos operantes em relação ao meio ambiente, ao corpo e a utilização dos sentidos, de modo a facilitar um contato com o imaginário e o subjetivo. Os outros dois momentos tiveram caráter pessoal e coletivo, pois inicialmente foi proposto um contato subjetivo pessoal com o eclipse lunar, o qual deveria ser representado através do corpo (som e movimento) e depois compor um cenário coletivo formado pelas representações individuais e suas inter-relações. Seguem alguns trechos dos relatos verbais dos alunos relativos ao momento pessoal da prática: Eu não tive uma sensação boa. Eu não consegui ver. Mesmo tendo visto várias imagens de eclipse, tanto do sol quanto da lua, mas não conseguia visualizá-lo na prática. Ficou muito escuro e veio um tipo de sensação RUIM e uma imagem muito recorrente de um cavalo preto, como se eu estivesse meio embaixo do cavalo. O cavalo aparecendo num plano mais alto e o eclipse por trás, entenderam? Eu via um cavalo refungando, meio torcendo a cabeça, relinchando. O cavalo eclipsou o eclipse. Eu estava até com medo de falar isso, mas foi exatamente esta imagem. Eu sabia que tinha o eclipse por trás, tinha aquela pouca luz da lua, mas o cavalo sempre na frente, e também muito assustado. Quando você falou as palavras eclipse lunar, eu vi um monte de gente gritando e correndo com medo, se afastando. Depois vi um monte de gente formando um círculo e batendo o pé, como se aquela força, aquele batido de pé fosse para espantar algo ruim. E continuaram batendo, batendo, batendo pé, ao redor de uma fogueira como se a força da marcha de várias pessoas ia espantar aquele mal. Era uma coisa que nunca ninguém tinha visto e sentiam muito medo. Sempre viam a lua lá, no caso, ela estava cheia e de repente uma coisa encobriu a lua e o medo tomava conta das pessoas que nem sabiam o que era e só queriam espantar. Até que depois a sombra sumiu e aí veio o alívio por saber que aquilo não era definitivo, mas passageiro. Eu tive a sensação de que no eclipse tinha algo que não era bom. Uma sensação de escuridão, como se a terra chegasse num local onde se lutava... Tinha alguma coisa errada. Fiquei me sentindo só, e incapaz de mudar alguma coisa. Algo parecido com destruição. Tentei visualizar o eclipse mas havia muita escuridão, algo muito estranho no ar, um vento frio, uma solidão, as nuvens se movimentando, uma sensação ruim. A imagem que me veio é que eu estava fugindo de alguma coisa. 48 Observamos nos três relatos acima claros conteúdos míticos aflorados. É constante nestes a recorrência de elementos de caráter nefasto e destrutivo, provocadores de medo e maus presságios, tal como foram vivenciados pelos estudantes quando em contato imaginário e subjetivo com o eclipse lunar. É interessante nos reportarmos à teoria do inconsciente coletivo, proposta por Jung, onde registros ancestrais continuam latentes na nossa memória individual (inconsciente pessoal), como um legado da humanidade em cada um de nós, e podem ser acionados mediante estímulos específicos. É pertinente lembrar que inúmeras culturas interpretavam o eclipse lunar como algo que é pernicioso e mau. Como exemplo, podemos citar a “lua Cris”, que está relacionada a doenças, sofrimentos e desgraças: “Cris” é corruptela de eclipse (eclipse → ecris → cris), e é como era popularmente chamado o eclipse lunar em Portugal, em um passado mais remoto. Os medos associados ao evento também vieram para o Brasil com os colonizadores portugueses. A mudança de cor que ocorre com a lua durante o eclipse, por exemplo, era associada a doença, coisa nefasta. Por empatia, quem olhasse para a lua enquanto ela estivesse nessa crise corria o risco de pegar sua doença. Por isto era muito importante se prevenir. Aconselhava-se também acordar as pessoas que estivessem dormindo nesse momento, para evitar que elas ficassem dormindo para sempre. Em muitos lugares as pessoas saiam para o quintal ou plantações gritando para as árvores frutíferas acordarem e atentarem para a lua cris, para que não lhe adviessem malefícios. (JAFELICE, 2003b, com base no Dicionário do Folclore Brasileiro, de L. C. Cascudo, Rio de Janeiro: Ediouro, 1998). Após expressarem-se individualmente, através de representações corporais e sonoras, os participantes foram convidados a interagir com o coletivo, sem, no entanto, perderem o referencial de sua representação pessoal. Seguem alguns trechos compartilhados pelos mesmos ao final da vivência coletiva: Eu fiquei no meio e os meninos ficaram me rodeando, eu me senti como se eu fosse a fogueira e eles tivessem fazendo a mesma coisa que as pessoas estavam fazendo ao redor da fogueira na minha imaginação. Eu parei, mas foi para vivenciar a minha fogueira, os meninos começaram a me rodear e pensei: está tudo certo. Eu fui atraído por L. porque ela estava como que marchando. Eu fui atraído para seguir o passo dela... [t]entando me integrar no que ela viu com o que eu vi, foi o que fazia mais sentido. Os passos dela me atraíram, não sei porque. A pisada me atraia. Eu estava tentando sair de algum canto e me aproximar de alguém. 49 Figura 1 - Momento coletivo durante a vivência do eclipse lunar interiorizado. Foi possível observar que houve uma atração generalizada pelo som vigoroso provindo das pisadas de uma das participantes. Segundo os relatos, o ritmo dava força e firmeza para enfrentar as emoções aflitivas vivenciadas durante esta prática. É interessante refletir sobre a importância do ritmo em nossas vidas. Ainda no ventre de nossas mães conhecemos o som ritmado das batidas do coração de nossa genitora. É comum em algumas comunidades indígenas, o xamã ou pajé ‘bater o tambor’ para representar as batidas do coração da mãe terra, a fim de obter uma maior conexão com o arquétipo da mãe cósmica. As batidas ritmadas do tambor, em algumas culturas também servem de ponte para acessar estados mais profundos do inconsciente. Nesta prática podemos inferir que tal atração pelo som ritmado do ‘pisar’ de um deles sugere uma identificação com um inconsciente arcaico, uma busca de conexão com os ritmos cósmicos. Os estudantes demonstraram em seus relatos uma necessidade de se agrupar, de sentir calor, de se unir. A fogueira sentida por um dos participantes parece expressar a luz que nos é ocultada durante o eclipse lunar pela sombra da terra. Observamos, durante o momento coletivo, que os participantes criaram uma unidade dinâmica, onde a expressão corporal e 50 sonora de cada um encontrou sentido e complementação enquanto interagiam, gerando sentimentos de integração, tranqüilidade e segurança. Aparentemente o contato existencial com o fenômeno do eclipse lunar, realizado daquela maneira inesperada e espontânea pelos sujeitos, tornou possível a emergência de estados arquetípicos e de partes integrantes de um inconsciente arcaico e coletivo. Essa vivência propiciou aos participantes uma maior conexão entre o seu mundo interno e externo. Para eles, o espaço entre o "si mesmo" e o fenômeno do eclipse lunar passou a ser um significativo elo entre suas manifestações psíquicas interiores e o evento eclíptico lunar. 4.2.2 Som e Respiração Esta prática iniciou-se com todos sentados e de olhos fechados. Pediu-se que todos ficassem atentos aos sons do ambiente. Em seguida a professora-facilitadora produziu um som ressonante a partir de um instrumento tibetano, composto de metal e madeira, com o objetivo de promover nos experimentadores um estado de ‘centração cognitiva’. Voltou-se ao silêncio e foi sugerido ao grupo que observasse o movimento da respiração sem interferir no ritmo da mesma, atentos às manobras de entrada e saída do ar. Quando tomamos a respiração como foco de nossa atenção, há uma tendência natural de ela se tornar mais profunda, permitindo que desfrutemos deste movimento natural e vital de cada instante. Após alguns momentos concentrados neste movimento, foi sugerido que cada um buscasse identificar-se com o ar e sua natureza fluida. Ao imaginar-se transformado no ar, a pessoa deveria sentir-se como o ar, preenchendo os espaços dentro e fora de si e ampliando cada vez mais estes espaços, vivenciando a realidade dentro de si e fora de si. Após alguns instantes de silêncio, foi dado o comando para que voltassem a identificar-se com o corpo físico, tomando consciência dos sons e do ambiente ao redor, e que abrissem os olhos. Neste momento lhes foram dadas algumas questões para serem respondidas por escrito que promoviam reflexões sobre as impressões do dentro e do fora, diferenças e/ou semelhanças, bem como as relações, entre estas duas instâncias. 51 Figura 2 - Compartilhando experiências da vivência “som e respiração”. Seguem algumas expressões pessoais compartilhadas a partir da vivência: Eu me senti um plasma indo para dentro e para fora. Fora é mais liberto, dentro tem limites. O dentro é difícil de compreender, de andar por ele, é escuro. E o fora é o horizonte, é claro, mais fácil para andar. Porém, um não fica sem o outro. Senti que não consegui me desfazer ou desbloquear minha 'pequena consciência. Pra mim, depois de um tempo, dentro e fora era a mesma coisa. Eu senti uma leveza, uma fluidez. Dentro é abstrato e fora é mais real. A gente conhece muito pouco dentro. O dentro era infinito, o fora era infinito, quanto mais eu entrava mais fundo ficava. De acordo com os depoimentos dos alunos, ficou evidenciado que alguns vivenciaram o dentro e o fora como duas realidades bem diferentes. Outros, entretanto, experienciaram ambos os ambientes como realidades semelhantes. Para o primeiro grupo, o fora está associado à imagem do horizonte e a sentimentos de liberdade e leveza, enquanto que o dentro está relacionado à prisão, medo e limites. Ao passo que o segundo grupo parece que transcendeu o mundo conceitual e, portanto, percebeu uma única realidade. Isto sugere que quando o diálogo interno é diminuído, abre-se espaço para uma percepção mais ampliada do real. O mundo conceitual parece funcionar como uma barreira que impede a visão da unidade. 52 4.2.3 Representação mandálica da origem do universo Este tema sobre as origens é bastante provocador. Na primeira aula da disciplina de astronomia é aplicada a prática não-verbal de representação pictórica sobre o início de tudo o que existe8. Observa-se, nesse momento da prática, uma reação de surpresa dos alunos frente ao inesperado. Ao longo de anos da aplicação dessa prática, notou-se a recorrência de estruturas circulares e concêntricas como resultado expressivo dos desenhos feitos. A partir deste fato, um tanto animador, pensou-se em adaptar esta prática pedagógica ao contexto da psicologia transpessoal, utilizando exercício de relaxamento e a prática da arte transpessoal do mandala. Mandala é uma palavra em sânscrito que quer dizer círculo. Etimologicamente, significa essência de si mesmo. Segundo Matos (1998), podemos encontrar em diversas culturas, ao longo do tempo, o mandala como uma expressão artística, refletindo a busca de todos os seres humanos pela essência de sua natureza, podendo ser encontrados nas pinturas rupestres em inúmeros sítios arqueológicos no Brasil, em particular no Rio Grande do Norte, nas danças circulares de povos indígenas brasileiros, nas pirâmides maias e astecas, muitas vezes tridimensionais, nos vitrais de inúmeras catedrais, como a de Notre Dame, em Paris, entre outros mais sofisticados como os mandalas tibetanos feitos de areia colorida, representando vários aspectos do cosmo. Estes são mandalas com medidas extremamente exatas, símbolos e cores específicas, com o objetivo de levar a pessoa a vivenciar estados elevados de consciência, visando a iluminação. Esta técnica milenar foi adaptada para o contexto da psicologia transpessoal por Kellog (1984 apud MATOS, 1998), que dedicou grande parte da sua vida a pesquisar mandalas e iniciou a experimentação com pacientes, em hospital psiquiátrico, com vários tipos de problemas mentais, a qual resultou na descoberta do teste projetivo do mandala. A proposta era de trabalhar os arquétipos9 e resgatar a conexão com as memórias escondidas, bem como com o aspecto da infinitude. A técnica desenvolvida por Kellog tem sido amplamente aplicada e divulgada pelo psicólogo e psicoterapeuta transpessoal Léo Matos, em cursos de especialização e workshops que ministra no Brasil e no exterior há pelo menos duas décadas. Segundo Matos (1998, p. 6- 8 Vide Jafelice (2004, p. 38-39) e Jafelice (2005, p. 9) para detalhamentos e discussões mais aprofundadas sobre as estratégias e práticas adotadas nessa primeira aula. 9 Segundo Jung, arquétipos são estruturas psíquicas antigas ou imagens primordiais que integram o inconsciente coletivo. Por exemplo, a criança divina, o herói, o velho sábio, a mãe primordial. 53 7): “o mandala é basicamente representado como um círculo dentro de um quadrado [...] o quadrado no mandala simboliza o finito, o nível pessoal e cartesiano de percepção dos objetos. O círculo simboliza o infinito, o nível transpessoal”. O círculo também está relacionado ao céu e o quadrado à terra10. O material necessário para a realização do mandala é um papel branco quadrado (40x40cm), com gramatura variando entre 40 e 60 mg, um círculo de diâmetro de aproximadamente 30 cm e giz pastel. Neste contexto, que não é psicoterapêutico, mas visa acessar níveis transpessoais de consciência, utilizou-se o tema da origem do universo como estímulo inicial, a fim de provocar a emergência de conteúdos arquetípicos relacionados a este assunto tão intrigante, que nos remete à origem de tudo o que existe, inclusive de nós mesmos. A prática iniciou-se com exercícios corporais envolvendo as articulações, visando aliviar tensões e liberar mais o corpo. Em seguida, ouviu-se música africana vibrante e se estimulou a soltura corporal através de movimentos espontâneos, a fim de desformatar posturas corporais cotidianas, por vezes reprimidas, e dinamizar a energia vital. Após esta saturação corporal foi sugerido um exercício de relaxamento, por se entender que este é necessário para promover diminuição na freqüência de ondas cerebrais, propiciando uma maior abertura para os canais psíquicos inconscientes, transpondo as barreiras conceituais e resistentes do estado de vigília. Este momento foi realizado com todos sentados, coluna ereta, com o ambiente na penumbra. Sugeriu-se que fechassem os olhos para diminuir os estímulos visuais, a fim de facilitar a relaxação físico-mental e seguissem o comando de voltar a atenção para o corpo e a respiração. O momento central desta prática é quando a facilitadora sugeriu que os alunos, os quais ainda estavam de olhos fechados, observassem que imagem, ou imagens, emergiram à mente quando ouviram as palavras 'Origem do universo'. Deu-se um tempo para que tais imagens viessem à tona e, em seguida, pediu-se para que todos abrissem os olhos e, ao encontrar o material de mandala à frente, a pessoa concentrasse a atenção no centro do círculo 10 Como destaca Jafelice (2006c): “A circunferência está associada, em muitas culturas humanas, ao celeste, ao divino, ao inacessível ao ser humano, representando, assim, a equanimidade, isotropia, imutabilidade, perfeição, à qual aquela figura geométrica pode simbolicamente remeter, e o quadrado costuma estar associado ao terrestre, ao humano, àquilo acessível, representando, então, as quatro direções cardeais, anisotropia, mutabilidade, imperfeição (quebra), em parte também pelo contraste ou antagonismo geométrico em comparação com a circunferência. Contudo, ambas as representações abrigam um simbolismo organizador - que expressa uma unidade desdobrada na complementaridade das duas representações -, criado em resposta às nossas necessidades de estrutura, orientação e significado para os intermundos físico, psíquico, natural, cultural, enfim, para o que significa ser parte imanente do cosmo”. 54 desenhado na folha quadrada e relaxasse o olhar em silêncio, tendo como fundo mental as imagens que emergiram ao pensar na origem do universo. Sugeriu-se que, se mantendo em silêncio, cada um criasse um desenho partindo do centro para as extremidades do papel, sempre entrando em contato com o sentimento que aquilo estava dando para a pessoa. Após a conclusão do desenho, deu-se o comando de que a pessoa relaxasse mais a visão e buscasse perceber o mandala à sua frente como um espaço tridimensional, e daí imaginar-se adentrando no espaço do seu desenho. Em seguida, pediu-se que a pessoa se conscientizasse do sentimento e da vibração que esse espaço estava lhe dando naquele momento. Após a conclusão desta vivência, foram disponibilizadas folhas de papel A4 em branco e foram enunciadas algumas questões, uma por vez, com tempo de cerca de 2 minutos para responderem cada questão (só então a questão seguinte era formulada). As questões propostas, e a ordem de apresentação, foram: 1) O que sentiu quando entrou no seu desenho?; 2)Como se originou tudo que há?; 3) De que substância você é feito?; 4) De que substância é feito o universo?; 5) Como você se relaciona com o cosmo?; 6) O que é o universo?; 7) Quem é você?; 8) O que mais gostou e menos gostou na prática? Seguem abaixo alguns comentários dos alunos após esta vivência: Relaciono o desenho com o olho humano. Ao ouvir as palavras origem do universo senti que há uma força centrífuga que está atraindo tudo o que há no universo para o centro. Parece que o universo foi criado meio do nada. É como um ponto se expandindo, como quando uma pedra caindo num lago de águas paradas. Tudo começou de uma partícula em algum lugar. Esta partícula caiu no meio e foi se chocando com outras partículas e se propagando. Na hora de imaginar sobre a origem do universo vi um ponto de luz que origina tudo. Tudo está sendo atraído por esse ponto que não sai do lugar. Tudo que está no espaço é atraído por esse ponto. Isso me dá um sentimento de dependência total. Se eu me soltasse agora, o único lugar que eu iria era para este ponto. Quando me imaginei entrando no desenho me senti muito pequena, como se fosse a cabeça de uma agulha no palheiro, ou um labirinto sem fim. Conforme eu ia entrando na figura o espaço aumentava e era uma espécie de espiral que ia me puxando para o infinito. Senti um aquecimento muito intenso durante a vivência. É interessante notar nesses relatos a recorrência de um ponto original aglutinador, de onde surge tudo o que há no universo. Esta expansão da matéria a partir de um ponto luminoso assemelha-se à descrição da teoria científica da grande explosão (“Big Bang”) para a origem do universo. De acordo com esta teoria, a expansão universal hoje verificada pelos 55 astrônomos ainda seria conseqüência da “explosão” inicial, que teria ocorrido em torno de 15 bilhões de anos atrás. Neste sentido, nossos resultados com esta prática podem reforçar, em princípio, a hipótese levantada por Jafelice (2004, p. 39) na subseção “Big Bang” e Psique Humana Ocidental?, de que apesar daquela teoria receber oposições científicas sérias e, pelo menos em parte, procedentes, ela “sobrevive com tantos adeptos, antes por atender a necessidades psicológicas fundamentais humanas, do que por suas justificativas de caráter científico”. Em particular, como destaca Jafelice (2006c), “necessidades ocidentais, com forte matiz monoteísta em suas estruturações”. Esta hipótese se baseia em levantamentos, feitos por Jafelice, após muitas aplicações da prática do desenho sobre o início de tudo que existe, mencionada, com diferentes grupos, e das discussões e análises dos desenhos resultantes com quem os fez. Segundo Jafelice (2004), esses levantamentos, inclusive quantitativos, mostram que a recorrência de figuras mandálicas envolvendo desenhos de origens, ocorre com relativa freqüência (em mais de 30% dos casos), mesmo em pessoas que declararam não estar pensando conscientemente na referida teoria ao desenhar tais figuras. Tal hipótese ainda é apenas especulativa e carece de algum estudo consistente que possa confirmá-la ou refutá-la. Levantamos aqui a possibilidade de que o presente estudo pode corroborar a hipótese de que o modelo da grande explosão está sendo incorporado pela cultura ocidental não só pela questão determinista das supostas verdades científicas, mas também, e talvez principalmente, porque, de alguma maneira, tal teoria ressoa com conteúdos psíquicos arcaicos e inconscientes, forjados nessa cultura, como Jafelice (2004) sugere. Ou, talvez, ainda, as associações espontâneas que afloraram através dessa prática podem estar indicando, conforme Jafelice (2006c) reflete, que: Por outro lado, a recorrência daquelas figuras mandálicas, no contexto em que surgem, pode até mesmo estar expressando, eventualmente, processos e fenômenos de caráter ontológico primordial propriamente dito, uma vez que as conexões entre física, psicologia e cultura ainda pertencem a uma área inexplorada cientificamente. Outro aspecto recorrente nos comentários dos alunos sobre esta vivência é a indefinição, o vazio, o nada. Estes elementos representam a grande interrogação sobre as origens e o quanto este tema transcende a nossa capacidade conceitual. Como reforça Jafelice (2006c), “esses são elementos de caráter nitidamente mítico”. 56 Igualmente importante é o senso de infinitude, que aparece nos relatos dos alunos, especialmente em suas definições de universo, e o senso de unidade, presente nas definições sobre si mesmo. Ambos são descritos abaixo: Figura 3 - Exemplo de Mandala feito durante a prática. O que é o universo? Tudo aquilo que existe. Podendo ser ainda somente pra mim o que eu idealizo (sonhos), no meu pensamento sendo o meu universo. É um espaço infinito, sem limitações e que está repleto de inúmeras coisas. Um conjunto de várias coisas desconhecidas que geraram algo grandioso, porém inexplicável. O universo é uma abstração. É parte de mim. Onde tudo está. Quem é você? Sou um movimento circular. Me acho uma formiga em relação ao mundo. Uma pequena partícula de todo o universo existente e a maior parte do meu universo. 57 Continuando a minha espécie. Na imensidão do universo eu me vejo como um grão, uma pequena parte deste conjunto de energia. O objetivo desta vivência foi o de propiciar, através da arte transpessoal do mandala, um contato subjetivo com conteúdos psíquicos e arquetípicos relacionados ao tema das origens, o qual ecoa em nosso inconsciente como uma das curiosidades mais remotas e fundamentais do ser humano – Como tudo surgiu? Quem sou? De onde vim e para onde vou? 4.3 CURSO DE EXTENSÃO: “LABORATÓRIO EM COSMOEDUCAÇÃO” A partir deste trabalho experimental com estudantes de astronomia da licenciatura em Geografia, elaboramos um curso de extensão onde incluímos as práticas mencionadas acima e criamos outras, utilizando elementos de astronomia e de psicologia transpessoal. O curso se destinou a professores do 1°. e 2°. ciclo do ensino fundamental. A escolha deste público alvo se justifica por entendermos que o professor polivalente tem maiores probabilidades de acompanhar a evolução dos alunos nas diversas áreas do seu desenvolvimento integral. O plano inicial foi o de oferecer este curso nas dependências da UFRN, e ele foi divulgado em diversas escolas públicas, especialmente do entorno desta universidade. Porém, encontramos extrema dificuldade por parte dos educadores de participarem efetivamente, devido à incompatibilidade de horários. Depois de mais de uma tentativa frustrada, decidimos por eleger uma escola interessada em realizar o curso nas suas dependências. A Escola Estadual Alceu Amoroso Lima, localizada em Nova Natal, na zona Norte da cidade, apresentava iniciativa pedagógica interdisciplinar envolvendo astronomia, o que facilitou o contato inicial com a diretoria da escola. A proposta foi bem acolhida pela equipe pedagógica e de docentes, que se mostraram interessados em experimentar novas práticas. Nos foi aberto um espaço para participar da semana pedagógica, onde propusemos uma vivência e apresentamos, em linhas gerais, a ementa do curso de extensão, intitulado: Laboratório em cosmoeducação para professores de 1° e 2° ciclos do nível fundamental. O curso se realizou nas dependências da própria escola, de 04 de março a 18 de junho de 2005, e contou com a participação de 15 professores do 1° e 2° ciclo do nível fundamental. A carga horária foi de 40 horas, compreendendo dezesseis encontros semanais, mais aulas de campo. Tratou-se de uma proposta vivencial-teórica, que teve como mote gerador temas de 58 astronomia, com a finalidade de refletir e ampliar a concepção de mundo dos professores e os valores vinculados a esta, como também observar a influência dessa visão pessoal na prática pedagógica dos mesmos. Dentre os objetivos propostos, destacou-se: promover e valorizar a vivência pessoal do professor; refletir sobre a concepção de mundo adotada e a prática educacional no nível fundamental; propor exercícios vivenciais que possam facilitar uma ampliação desta concepção de mundo; discutir a aplicação dos conteúdos relativos ao eixo temático “terra e universo” na disciplina de ciências, bem como em outras disciplinas; elaborar práticas educacionais inéditas visando o desenvolvimento de uma atuação pedagógica mais integrada e integradora; favorecer e estimular o autoconhecimento. Buscamos, através de exercícios de relaxamento, meditação, sons autóctones, expressão corporal, imaginação ativa, pinturas de mandalas pessoais, redescoberta do céu diurno e noturno, entre outras práticas, sensibilizar o participante a entrar em contato consigo mesmo, identificar sua concepção de mundo e refletir de forma crítica sobre suas percepções e realidades. A seguir descrevemos tais práticas. É importante fazer a ressalva de que os educadores interessados em aplicar tais vivências com seus respectivos alunos, devem investir numa formação plural, buscando obter suas próprias experiências coletivas e individuais no campo do autoconhecimento. Destacamos esta recomendação porque consideramos que, para aplicar as técnicas aqui propostas, o facilitador ou educador precisa ter sensibilidade, intuição, razão e afetividade. Desta forma, ele estará melhor preparado para lidar com os conteúdos emergentes de outro ser humano e encaminhar as práticas e discussões com o máximo de discernimento, ponderação e cuidado constantes, respeitando sempre os limites dos envolvidos. 4.3.1 Identificando a cosmologia prévia do sujeito O primeiro encontro teve como objetivo identificar a cosmologia prévia do sujeito, participante do curso, incluindo aspectos relativos a: 1. Concepção de universo (mundo); 2. Concepção de origem, ou não, desse universo; e 3. Concepção da relação entre seres humanos e tudo o mais que existe no universo. Para isso foi sugerido que, no primeiro momento, cada participante discorresse sobre a afirmação: “O que significa o universo para mim”. Em seguida, aplicou-se um questionário aberto com as seguintes perguntas: 1) O que significa o céu para você?; 2) Como você se 59 sente quando olha para o céu?; 3) O que lhe chama mais atenção no céu?; 4) Com que freqüência você costuma olhar para o céu?; 5) Quais as relações que você percebe entre o céu e a terra?; 6) Quais as relações que você percebe entre tudo o que existe no cosmo?; 7) Você acha que o universo teve uma origem ou não? Por quê e/ou como?; 8) Qual o lugar ou o papel do ser humano no universo? Tais questões foram enunciadas uma por vez, que era quando cada participante tomava conhecimento da referida questão, só passando para a seguinte quando a anterior tivesse sido respondida por todos. Com este procedimento visamos evitar que, ou pelo menos minimizar a possibilidade de que, a pessoa se armasse, ou se prevenisse, em função da seqüência de perguntas futuras e/ou passadas que tivesse pela frente, e respondesse uma pergunta tentando atender supostas expectativas da professora-facilitadora ou do que seria “mais certo” ou “mais conveniente” se responder. No segundo momento foi aberto um espaço para eventuais comentários sobre as questões propostas e/ou a redação, os quais são analisados na sub-seção 5.1. 4.3.2 Motivação mais profunda Este exercício foi adotado no início do curso e teve como objetivo propiciar ao participante um clima favorável à introspecção e ao contato com sua motivação mais profunda para estar participando do curso. Estar consciente da motivação mais profunda pode dar ao participante mais poder de ação na direção do que ele necessita obter do curso e favorecer que ele tire o maior proveito do mesmo. Esta prática, claro, pode e deve ser aplicada no dia a dia, para nos dar mais consciência sobre o que nos move a tomar as atitudes que tomamos, servindo, assim, como uma ferramenta para o autoconhecimento. Inicialmente foi sugerido que os participantes buscassem um local na sala e acomodassem seu corpo numa posição confortável (neste caso se acomodaram em carteiras dispostas na sala) e, de olhos fechados, concentrassem a atenção no movimento fisiológico da respiração, a fim de “aterrissarem” no momento presente. À medida que se concentram na respiração, esta tende a se tornar mais longa, ou seja, desde o abdômen, e, portanto, tende a promover um estado de relaxamento, facilitando o contato com o corpo. Em seguida foi sugerido que cada um se perguntasse sobre “o que está me motivando a participar deste curso” e ficasse atento às inúmeras respostas que pudessem emergir à consciência, e, então, continuasse a ecoar esta pergunta no interior de si mesmo, a fim de obter a resposta mais 60 profunda, ou aquela que estava mais latente. Ao identificarem a motivação mais profunda, pediu-se para observarem se havia alguma associação desta com alguma parte do corpo. Com isto, estava-se estimulando o conhecimento de si mesmo ao se integrar mente e corpo, uma vez que o nosso pensamento emite uma “vibração” que reverbera no corpo. Segundo a filosofia do budismo tibetano: “O efeito de nossas ações depende inteiramente da intenção ou motivação que está por trás delas, e não da sua magnitude” (RINPOCHE, 1999, p. 130). 4.3.3 Exercício de imaginação Esta prática costuma ser realizada de preferência de olhos fechados. A facilitadora deu um comando aos participantes para que buscassem um estado de relaxamento corporal a partir da respiração e se conscientizassem das partes do corpo que estivessem em contato com a superfície, das sensações de temperatura, dos cheiros e odores, dos sons do ambiente, buscando desta forma ampliar as percepções através dos sentidos físicos. Em seguida, a facilitadora tocou um instrumento tibetano produzindo um som mântrico e facilitando um estado de centração cognitiva nos participantes. Após alguns instantes de repetição deste som, este cessa e foi sugerido que a pessoa lembrasse de um momento em que parou para contemplar o céu, se era dia ou noite e o que chamou mais atenção. Em seguida, foi proposto que a pessoa se imaginasse revivendo aquela experiência e observasse como se sentia enquanto contemplava o céu. Depois, ao abrir os olhos, a pessoa encontrou, à sua frente, uma folha A4 e giz pastel, para que expressasse a sua vivência através de um desenho livre. Figura 4 - Instrumento tibetano citado na(s) prática(s). 61 Esta vivência foi aplicada no início do curso, com o objetivo de trazer à tona experiências pessoais de contato com o céu e os sentimentos agregados, bem como sensibilizar os participantes para a temática a ser vivenciada ao longo do curso. Seguem comentários pessoais compartilhados pelos participantes após esta vivência: Quando você começou a produzir o som então ali foi como se eu fosse entrando num túnel, como se eu fosse com o som. Foi indo e quando você disse para observar o céu que é uma coisa que eu me identifico muito aí melhorou ainda mais e veio para mim a época, que foi o que coloquei no desenho, que eu era criança e vivia no interior, em Jandaíra. Eu sou de João Câmara e ia passar férias lá, pois minhas primas iam para lá. E foi lá que eu descobri o céu. Desenhei o círculo porque para mim foi um seguimento, simbolizando o grupo fechado, a união do grupo. E ao mesmo tempo quando nós fechamos os olhos tudo para mim foi uma experiência que levou à oportunidade de emoções interiores e que no final quando abri os olhos foi uma sensação de paz. 4.3.4 Autobiografia Esta prática consistiu no participante escrever sobre si mesmo, relatando as experiências mais relevantes que compõem a sua história de vida e que o faz único em sua individualidade. O objetivo foi de facilitar ao participante um entendimento sobre si mesmo através de uma auto-reflexão acerca da sua história de vida. Antes de iniciar a autobiografia propriamente dita, foi proposto um exercício de imaginação, realizado, de preferência, com os olhos fechados, em que a pessoa deveria lembrar de quando era criança e observar como percebia o mundo naquela idade e o que sentia. Este exercício visou sensibilizar a pessoa para as memórias anteriores, facilitando a emergência da história de vida, bem como possibilitar maior empatia com o seu aluno, que está criança agora. Após o exercício foi sugerido um roteiro de perguntas para estimular que as lembranças antigas da infância viessem à tona e facilitar o registro da autobiografia. Exemplo de questões mencionadas: Como aprendi a ver o mundo e com quem aprendi? Onde passei a infância? Como foi a vivência familiar? Como foi a relação com a vizinhança? Como foi o período escolar? O que acontecia de mais interessante na cidade? O que acontecia de mais interessante na escola? Qual a experiência mais importante vivenciada até hoje? (seja onde ou quando for), entre outras. A autobiografia também contribuiu para perceber o perfil do professor com o qual estávamos trabalhando. Neste caso, a maioria viveu, durante a infância, em municípios no 62 interior do estado, tendo, muitos deles, experimentado a palmatória, como ferramenta punitiva para promoção do saber, o que, geralmente, em vez disto promoveu dificuldades de aprendizagem e repressão do espírito criativo. Em todas as histórias, a família e a escola influenciaram consideravelmente a forma de ver e de se relacionar com o mundo. Isso pode fazer refletir, enquanto educadores hoje, como estamos influenciando na construção da visão de mundo do nosso aluno. Esta reflexão traz em si, para aqueles com certa sensibilidade de se perceber no lugar do outro, maior responsabilidade quanto às suas atitudes para com os alunos. Percebemos que a religião cristã está bastante presente na maneira como percebem o mundo ao seu redor, especialmente no que diz respeito à origem do universo11, como indicam, por exemplo, os relatos a seguir: [...] meus pais falavam que o mundo era coberto pelas águas e não havia dia; tudo era trevas e que o espírito de Deus andava sobre as águas. comecei a compreender o mundo através da religião [...] quando pequena meus pais me levavam para as novenas, espécie de reuniões religiosas da igreja católica feitas nas casas no interior. aprendi desde criança ouvindo os mais velhos que Deus criou o universo, hoje sei que há várias teorias que explicam o seu surgimento. É interessante notar nas autobiografias, que cerca de 20 a 30 anos atrás, a poluição luminosa ainda não era predominante, mesmo nos centros urbanos, e os astros celestes tinham uma maior participação e influência no cotidiano das pessoas, como ilustra o relato abaixo: [...]quando criança morávamos em um bairro de Natal hoje conhecido como Lagoa Nova, mas que anteriormente só havia mato e algumas casinhas e por isto tínhamos poucos vizinhos. Minha mãe só nos deixava brincar em frente de casa nas noites de lua cheia. 11 Segundo Jafelice (2006c): “Isto reforça a hipótese de Jafelice (2004, p. 39) [comentada anteriormente (em 4.2.3)], de que aspectos culturais envolvendo um deus criador, responsável pelo início e evolução de tudo que existe, predispõem fortemente as pessoas dessas culturas, do ponto de vista psicológico, a identificarem a teoria cosmológica da grande explosão como sendo a expressão da verdade ontológica sobre a cosmogênese, em vez de aquela ser vista como é, isto é, apenas como uma teoria científica, resultado da construção humana de um conhecimento limitado às informações a que se teve acesso até o momento e passíveis de serem apreendidas e trabalhadas segundo a racionalidade científica atual e limitado às possibilidades cognitivas humanas. Tal conhecimento não deve ser visto como sendo de caráter teleológico; ele não está, necessariamente, se aproximando de A Verdade (se é que esta existe e é acessível e compreensível), e é, pela própria forma de construção, transitório.” 63 4.3.5 Exercício de percepção seletiva A facilitadora pediu para que todos caminhassem, individualmente, em silêncio, pela área da escola e observassem, especialmente, todas as coisas de cor AZUL. Ao retornarem à sala foi solicitado que recordassem aquilo que viram de cor LARANJA, no ambiente. Este é um exercício de ativação do sentido visual, com o objetivo de avaliar e refletir sobre a percepção do foco, sem perder a visão de conjunto. Dos quinze participantes, apenas três professores (20%) recordaram o que haviam visto no ambiente de cor laranja. Os demais (80%) reagiram com ar de surpresa e simplesmente não lembravam de qualquer coisa de cor laranja no ambiente. Isto acontece devido ao modo de percepção seletiva, muito comum em nossa cultura ocidental, em particular. Neste tipo de percepção, selecionamos uma parte e isolamos esta parte do resto, ou seja, fixamos o olhar num objeto em particular e excluímos o contexto em que este está inserido. Este exercício pode nos levar a refletir o quanto nos auto-sugerimos a ver o mundo sobre determinado ponto de vista que não é o nosso, ou melhor, de um ponto de vista que certamente não é o único, nem é o mais conveniente, no sentido de comportar uma convivência fundamentada na justiça e na harmonia, que acolhe o plural e o diverso desde uma perspectiva de solidariedade e cooperação, de respeito ao outro e consciência ambiental cósmica. Pediu-se para identificar o azul no ambiente da escola e a maioria dos participantes focou a atenção simplesmente neste elemento, desprezando outros elementos dispostos no meio ambiente em questão. Isso demonstra o despreparo para perceber as partes e o todo, vício cognitivo reforçado pelos caminhos que a educação tradicional tem adotado há muito tempo, em especial a educação científica. Se ampliarmos esta reflexão para o sistema educacional, em particular para a formação de professores, podemos dizer que muitas vezes a prática docente é orientada no sentido de desenvolver apenas o aspecto intelectual, atendendo à ideologia fragmentadora dominante, sem ao menos questionar as necessidades vitais dos estudantes. Estas transcendem, em muito, sua mera formação intelectual. E mesmo esta formação, por mais pertinente e importante que seja, e o é, quando trabalhada ela não precisa tampouco se restringir aos moldes, prescrições e limitações ditados pela referida ideologia, como costuma acontecer. 64 O objetivo desta vivência foi de trazer a reflexão e a conscientização de alguns condicionamentos e vícios da prática educacional de cada um e propiciar a ativação do senso crítico sobre qualquer comando que nos é sugerido, para que possamos exercitar o questionamento, a reflexão e promover possíveis mudanças na prática pedagógica. 4.3.6 Exercício de percepção visual em 180º Este exercício foi realizado no pátio da escola ao ar livre e teve dois momentos. Inicialmente os participantes foram estimulados a caminharem num ritmo que lhes permitisse contemplar o ambiente, incluindo o céu diurno, sem pressa. Foi sugerida a suspensão da comunicação verbal durante o exercício. Percebemos a contemplação como um atributo importante para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e solidária. A contemplação, porém, não é nada estimulada e, portanto, é pouco desenvolvida na sociedade ocidental, uma vez que tal atributo não atende à lógica de produção do sistema capitalista. A escola, por sua vez, vinculada a este sistema, não estimula aquele tipo de atributo. Contemplar, segundo o Houaiss (2002), quer dizer “fixar o olhar em (alguém, algo ou si mesmo); com encantamento; com admiração; observar atentamente”; quer dizer ainda, “aprofundar-se em reflexões; meditar; fazer suposições; imaginar”. Nestas definições aparecem elementos fundamentais para o desenvolvimento integral do ser humano, que, volto a dizer, são raramente estimulados pelo sistema educacional vigente, tais como: o encantamento, a meditação e a imaginação. Estes elementos parecem representar um contrafluxo aos interesses mercadológicos que atualmente predominam, e a maior conseqüência disso é o empobrecimento do ser humano, que se reflete principalmente na relação abusiva e predatória com o meio ambiente. No segundo momento desta prática foi sugerido aos participantes transcenderem o sentido da visão como a utilizamos no dia-a-dia. Normalmente focalizamos o olhar para perceber as coisas ao nosso redor. Além do processo fisiológico de formação da imagem, temos um sistema de associação entre aquilo que vemos e o significado que nos é dado culturalmente através da língua nativa. Com essa prática foi proposto que cada participante buscasse relaxar a visão, desfocalizando a mesma, na tentativa de perceber o ambiente a partir de uma visão de 180°. Ou seja, a pessoa deveria optar por não focalizar ou fixar a visão em algum alvo, ou imagem, no ambiente, mas, sim, se esforçar em ampliar o campo de visão incluindo um plano semi-circular. 65 Este momento da prática teve como objetivo a diminuição do diálogo interno, próprio do estado usual de vigília, onde nos comunicamos internamente através de nosso repertório de imagens internas e em seguida com o ambiente ao nosso redor. Esta forma usual de comunicação é útil para nos definirmos enquanto indivíduos, contudo implica numa visão fragmentada da realidade. Ao desfocalizar o olhar de um alvo específico e ampliar o campo visual é possível ir além do diálogo interno, que, na maioria das vezes, separa o sujeito do ambiente, e criar possibilidades para a emergência de novas formas de se relacionar com o meio ambiente, como, por exemplo, experimentando-o de maneira mais direta, estimulando o processo da intuição. Com esta prática buscou-se, então, instigar funções psíquicas tais como a contemplação e a intuição, às quais é atribuído imenso valor no (re)estabelecimento de contato com o céu, bem como na construção de valores humanos éticos em favor da vida e do bem-comum. 4.3.7 No topo do planeta terra A idéia de que somos egos isolados, existindo no universo e separadamente deste, nos mantém no nível dualístico da realidade. Esta vivência teve como objetivo expandir a nossa percepção, partindo da escala do microcosmo pessoal para o macrocosmo, no sentido de despertar a cosmicidade de nós mesmos. Inicialmente foi dado o comando para que a pessoa colocasse o corpo numa posição confortável, de preferência de olhos fechados, e mantivesse a coluna ereta, enquanto se conscientizava da sua respiração. Como já descrito anteriormente, a prática psicoterápica em psicologia transpessoal tem revelado que à medida que mantemos a atenção repousando sobre a respiração, esta tende a se tornar naturalmente mais profunda, ou seja, desde o abdômen, e, portanto, tende a promover um estado de relaxamento. A partir desse estado de relaxamento, foi sugerido que a pessoa expandisse a sua consciência para a sala de aula e se conscientizasse daquele espaço, incluindo os sons do lugar. Em seguida, sugeriu-se que ela fosse mais além e tomasse consciência da escola, do bairro. Naquele caso, estávamos num bairro localizado na zona Norte de Natal, então foi dado o comando para que os alunos ampliassem a consciência para o rio Potengi, divisa com a zona Sul da cidade, até que expandissem a consciência para a cidade Natal e daí para o estado do Rio Grande do Norte, e suas fronteiras, como os estados da Paraíba ao sul, Ceará a oeste e 66 oceano atlântico a leste e a norte, e expandissem suas percepções em todas as direções. Visualizassem o Brasil, a América Latina, as Américas Central e do Norte, os continentes africano e europeu, depois Ásia e Oceania. Este esforço circular em perceber o globo visou à tomada de consciência de que se está no topo do planeta terra. Foi se estimulando a pessoa a integrar a percepção de que se está no topo do planeta terra, na costa do Brasil, na cidade de Natal e no corpo simultaneamente. Foi sugerido para que a pessoa relaxasse mais ainda e se conscientizasse de que a terra está girando em torno do sol, assim como os outros oito planetas12 do sistema solar, e daí, então, expandisse a consciência para a via Láctea, uma ilha de estrelas no universo, contendo da ordem de cem bilhões de estrelas. Neste contínuo de ampliar a consciência, pediu-se para que a pessoa relaxasse mais ainda e buscasse expandir a consciência para todo o universo e sentir que estava consciente do corpo e do universo, do qual também era uma parte, ao mesmo tempo. 4.3.8 Filme zoom cósmico Esse filme é de produção canadense, da década de 70, do tipo curta-metragem, com 8 minutos de duração, que ilustra as relações de grandezas e escalas entre o macrocosmo e o microcosmo. O filme tem início numa imagem de um menino remando um pequeno barco num lago, levando consigo seu cachorro. A imagem é congelada e, então, as lentes começam a se distanciar mais e mais, até que o lago passa a ser um ponto azul no mapa geográfico. O foco das lentes se amplia mais ainda e passamos a ver a terra viajando ao redor do sol, bem como outros planetas, a via Láctea e além da galáxia. Ao chegar nas escalas galácticas, as lentes percorrem o caminho de volta, agora em um ritmo mais acelerado, até focalizar a imagem inicial do menino remando no lago. Agora as lentes vão se aproximando cada vez mais, e a pele do menino, sendo picada por um mosquito, passa a ser vista como uma imensa superfície. Entramos, então, no mundo dos tecidos orgânicos e das células, dos átomos e até a escala subatômica de um próton, ou seja, no universo de menor escala, para depois retornar, também em ritmo acelerado, ao ponto de referência, que é o menino remando no lago. A 12 Agora, o correto seria “assim como os outros sete planetas”, pois, após meados de agosto de 2006, a União Astronômica Internacional decidiu, em Assembléia, reclassificar Plutão para a recém criada categoria de planeta-anão. Porém, na época da referida prática, o sistema solar ainda tinha, oficialmente, nove planetas. 67 imagem volta ter movimento e som, com o cachorro latindo, e o menino prossegue remando até finalizar o filme. Este filme, apesar de ser relativamente antigo13, ainda pode ser considerado um pertinente recurso didático-pedagógico para ilustrar a complexidade dos universos em que vivemos. Em particular no que concerne aos constituintes físicos dos mesmos, bem como para ilustrar as relações entre o micro e o macrocosmo tendo como referencial a escala humana, que, em nosso caso, serve de ponto de transição entre essas duas dimensões de grandeza. Para efeitos didáticos, seguindo procedimento e orientações que Jafelice tem aplicado ao trabalhar com esse filme, é recomendado que este seja visto pelo menos duas vezes. A primeira vez – sem nenhuma interferência, nem comentário prévio, do professor –, deve permitir que os estudantes apreciem e sintam sobre o que se trata o conteúdo do vídeo a partir de suas próprias perspectivas, níveis de informação e concepções até aquele instante. Em um segundo momento desta prática, abre-se a discussão, estimulando os participantes a compartilharem o que sentiram e entenderam sobre o filme. No terceiro momento, o filme é exibido novamente. Desta vez, o professor deve fazer pausas em alguns pontos, para enfatizar as relações entre micro e macrocosmo, bem como prestar esclarecimentos sobre os elementos versados no filme, seja de ordem cosmológica, fisiológica ou subatômica, e atualizar ou complementar informações, que conhecimentos mais recentes aceitos exigiriam, corrigindo ou modificando o que está sendo mostrado no filme. No quarto e último momento da prática, retoma-se a discussão sobre o que foi sentido e entendido do filme, até que ponto ele interfere e transforma visões de mundo que os participantes tinham antes daquela prática e como esse filme poderia, eventualmente, ser aproveitado em sala de aula. No caso desta nossa prática, o filme contribuiu para enriquecer e agregar valores às experiências vivenciadas pelos participantes, especialmente nas práticas que envolveram som, respiração e exercício de imaginação, cujo objetivo comum foi o de promover um paralelo entre o microcosmo pessoal, “o que está ‘dentro’”, e o macrocosmo, “todo o ‘resto’”. 13 E, portanto, necessitar de atualizações quanto à estrutura e constituição do universo em escala cosmológica (com a inclusão de componentes como: matéria escura, “vazios”, quasares etc.; além do prosseguimento do afastamento da terra em escalas maiores, para incluir aglomerados, superaglomerados e, eventualmente, super-superaglomerados de galáxias), como também quanto aos constituintes e domínios da matéria nas dimensões subatômicas (com o prosseguimento da aproximação até escalas que incluíssem quarks, léptons etc.), da forma que tais constituintes, estruturas e domínios são conhecidos hoje, segundo as evidências observacionais, experimentais e modelos teóricos mais aceitos pela comunidade científica. 68 4.3.9 Dinâmica de observação Esta é uma prática de aquecimento adaptada e aplicada por Jafelice há vários anos, vide sua sistematização mais recente em Jafelice (2005b). Ela é feita em pares e trata-se de contato visual mútuo entre a dupla, disposta frente a frente. A tarefa se sub-dividiu em dois momentos. Inicialmente os parceiros da dupla que se encontraram frente a frente tiveram um minuto para se olharem mutuamente, buscando obter uma percepção global e detalhada do outro. Após este tempo, ambos viraram as costas para o outro e realizaram três mudanças em sua aparência. Ao fazê-las, a pessoa levantava o braço para que o facilitador, no caso o professor, soubesse que já havia realizado tais mudanças, mas a pessoa devia permanecer de costas, aguardando o comando para virar outra vez. Após o comando do professor, as duplas se observaram outra vez, descobriram as mudanças e foram descrevendo o que estava diferente do visual anterior. Após todos terem descoberto, as duplas voltaram ao visual do início, se observaram entre si e, novamente, se deram às costas, a fim de realizar outras três mudanças, diferentes daquelas feitas anteriormente. De novo repetiu-se o mesmo procedimento de esperar o comando do professor para se virar e então observar o outro no intuito de identificar as novas mudanças feitas. Ainda poderíamos repetir o processo uma terceira vez e, é claro, iria se tornando cada vez mais difícil achar o que mudar na aparência; por outro lado, iria se aguçando mais e mais a observação, o poder de discernimento, a atenção para os detalhes sem perder de vista o todo. Figura 5 – Dinâmica de observação. 69 Esta prática tem como objetivos propiciar a descontração e integração do grupo, bem como conscientizar os alunos sobre o processo de observação criteriosa, especialmente em relação às coisas do céu (JAFELICE, 2005b). Em astronomia, a observação deve ser continuada e sistemática, não basta a pessoa olhar uma vez, só quando lembrar. Quando você olha o céu, visando estabelecer uma relação duradoura, de troca e também de construção de um conhecimento sobre o mesmo, sobre seus objetos, fenômenos, regularidades e excepcionalidades, precisa olhá-lo de uma certa maneira, buscando uma certa relação, uma certa correlação. Este exercício ajuda na educação desse olhar atento do todo e das partes ao mesmo tempo, ele estimula exatamente esta observação de permanências e mudanças, quer dizer o que se manteve e o que se alterou, em relação a algo (um todo) que se está conhecendo em seu processo dinâmico. Em geral, estamos “correndo” tanto que não vemos as coisas. Para perceber os passos dos astros no céu, em particular, precisamos acompanhá-los dia após dia ou noite após noite. Então, este exercício pode ser diretamente associado à observação dos astros, ao acompanhamento sistemático do que é que muda no céu, quando e como, de um dia para outro. Neste sentido, é válido enfatizar a importância do tempo e do espaço para vivenciarmos os ritmos e ciclos cósmicos. 4.3.10 Observando o sol A maior atração do nosso céu, da perspectiva topocêntrica (isto é, desde o ponto de vista do lugar em que estamos, na superfície terrestre), é o sol, o nosso astro rei. Ele é a estrela mais importante para nós, habitantes deste planeta. Esta prática, de simples observação do sol, que tem como condição minimamente indispensável14 o uso de um vidro de soldador n° 14 (ou maior), objetivou propiciar contato com essa estrela, literalmente vital para nós. Esta oportunidade foi vivenciada pelos professores como algo inusitado e que despertou grande encantamento. 14 É importante ressaltar que todos os cuidados em relação à observação do sol foram muito enfatizados junto aos alunos. Foi particularmente destacado o grande perigo que significa da observação direta do sol, seja a olho nu ou, pior ainda, através de qualquer instrumento óptico de aumento. Insistiu-se também para que tais recomendações e cuidados fossem trabalhados com as crianças, alunos daqueles nossos alunos, e com quaisquer pessoas com quem eles tivessem contato. Estes são cuidados com a saúde, que precisam ser devidamente abordados pelos professores. 70 Do ponto de vista simbólico, o sol representa, em diversas culturas humanas primeiras, um grande poder proveniente do céu, que ilumina a tudo e a todos na terra, uma divindade que merece nossa reverência. A luz representa o aspecto transcendente, transpessoal que atua em múltiplas direções, dimensões e sem diferenciações. Durante este contato breve, através do vidro de soldador, ficaram evidenciados elementos arquetípicos na reação generalizada de entusiasmo profundo. As professoras expressaram uma estonteante alegria, como se tivessem estreitado as relações com algo tão além, com algo, de certa forma, até aquele instante, tão inacessível a um contato visual mais direto e “próximo”, que me fez lembrar um trecho do livro O Ar e os Sonhos: Ensaio sobre a imaginação do movimento, de Bachelard (2001, p. 187), que diz: “[...] a contemplação é tão naturalmente uma confidência, que tudo o que olhamos com olhar apaixonado, na aflição ou no desejo, nos devolve um olhar íntimo, um olhar de compaixão ou de amor”. Esta cumplicidade parece ter ocorrido entre os observadores e o sol, que naquele instante íntimo, propiciado graças ao vidro de soldador, intermediador protetor, perceberam que a estrela veio até cada um. O sentimento relatado após a observação era de unânime alegria. Esta experiência vem se somar a outras que vivenciamos neste curso, levando-nos a constatar a influência benéfica da contemplação das coisas do céu no estado de consciência dos humanos, no sentido de trazer e estimular harmonia e vitalidade. Figura 6– Observação do sol pelas crianças (com vidro de soldador No. 14). 71 Observação sobre os próximos itens: as atividades descritas em 4.3.11, 4.3.12, 4.3.13, 4.3.14 e 4.3.15, foram extraídas da abordagem antropológica holística com que o Prof. Luiz Carlos Jafelice vem ministrando a disciplina de Astronomia, para o Curso de Licenciatura em Geografia da UFRN, de 2001 a 2006, e fazendo outras intervenções em cursos e palestras e nas orientações de estudantes sobre o assunto, e foram aqui adaptadas para o contexto do curso de extensão Laboratório em Cosmoeducação. Para maiores fundamentações, informações e orientações, vide Jafelice (2002c; 2003a; 2004) e, em particular, Jafelice (2005a; 2006a). 4.3.11 Representação Pictórica das Origens e do Céu Esta atividade vem sendo praticada no primeiro dia de aula da disciplina de Astronomia segundo uma abordagem antropológica. Neste laboratório em cosmoeducação ela foi realizada nas primeiras aulas, como parte do processo de identificar a cosmologia pessoal. A prática consiste, inicialmente, em distribuir uma folha de papel A4 em branco para cada participante e disponibilizar, no centro da sala, giz de cera, lápis de cor e canetas hidracor de cores variadas. Após a distribuição do material, o professor solicita que os participantes desenhem “o início de tudo o que existe”, e escreve este texto entre aspas na lousa. Por se tratar de uma prática inusitada, normalmente gera inquietação por parte da turma e, eventualmente, surgem questionamentos sobre o que quer dizer esta atividade. Convém que, neste momento, o professor se abstenha das explicações complementares e simplesmente repita o comando e a frase que escreveu no quadro, estimulando o aluno a lidar com o inesperado e expressar aquilo que lhe ocorrer em seu imaginário. É importante dispensar a identificação de autoria do desenho, a fim de deixar o autor mais livre para expressar-se, já que este tema normalmente ativa regiões psíquicas ancestrais, desconhecidas do próprio autor, podendo causar algum desconforto na exposição à crítica e julgamento dos colegas mais racionais. Após todos terem concluído esta parte da atividade, recolhemos os desenhos sobre o início de tudo que existe e distribuímos uma segunda folha para cada um, e pedimos que desenhassem “o céu”. Utilizamos o mesmo procedimento anterior, de escrevermos este tema na lousa e de nos abstermos de maiores comentários (por exemplo, se era céu diurno ou noturno, visto desde onde, etc.). Enquanto os participantes executam este último desenho, os desenhos anteriores são dispostos sobre uma mesa grande. Após concluírem o desenho sobre 72 o céu, eles devem entregá-lo e se dirigirem ao local de exposição, para observar as diversas representações do início de tudo o que existe. Ao redor dos desenhos, cada participante que sentisse vontade de compartilhar com o grupo o que inspirou o seu desenho, tinha algum tempo para fazê-lo. Observamos que os participantes demonstraram maior familiaridade (e declarada facilidade bem maior em realizar seus desenhos) com o tema do céu do que com o das origens. A partir das representações pictóricas deste grupo, identificamos alguns padrões que se repetiram e que foram agrupados nas categorias15 definidas como “mandálicas”; “forças opostas”; “intervenção divina explícita”; “figuras circulares”; onde a segunda e terceira categorias foram confirmadas a partir dos relatos dos respectivos autores, posteriormente. Figura 7-Exemplo de modelo mandálico Figura 8- Exemplo de modelo de forças para as origens. opostas para as origens. Figura 9-Exemplo de modelo de intervenção divina para as origens. 15 É válido ressaltar que as categorias mencionadas foram criadas, originalmente, a partir de centenas de exemplos oriundos das aplicações dessa prática que o Prof. Luiz Carlos Jafelice fez, com os mais diversos grupos, durante muitos anos. Nesse nosso grupo, em particular, temos uma representatividade relativamente pequena daquelas categorias, devido às peculiaridades inerentes a ele. Dentro deste contexto, então, as ilustrações acima foram as que melhor se aproximaram das referidas categorias. 73 4.3.12 Texto coletivo No sentido de construir uma história coletiva própria do grupo em questão, adotamos esta prática, que consiste na elaboração grupal de um texto baseado no tema do primeiro desenho: “o início de tudo o que existe”. Inicialmente o grupo define o tamanho que terá a história, tendo ao menos três opções de espaços demarcados na lousa. Definido o tamanho, são enunciadas as regras para a construção da história, que consistem basicamente em falar um por vez para o professor e não haver comunicação entre os alunos participantes; é importante enfatizar que ninguém deve corrigir ninguém. O professor vai escrevendo na lousa aquilo que for sendo dito, obedecendo a ordem de quem for falando, até preencher o espaço acordado anteriormente para o tamanho da história. Ao concluir o texto, deve-se decidir, em grupo, se este terá um título ou não, sem que eles falem entre si. Se a maioria decidir (por votação simples, levantando o braço) que o texto terá um título, então, seguindo procedimento semelhante ao da composição da história, eles vão sugerindo alguns nomes (até completar a altura da lousa, para delimitar um espaço que garanta que não surjam nem títulos de menos, nem demais), que o professor escreve na lousa para serem votados. O título mais votado dará nome à história deste grupo. Uma vez concluídas essas etapas, o processo se completa com todos lendo juntos, em voz alta, o título e a história que fizeram. Em seguida, todos copiam da lousa o resultado daquela criação coletiva deles. 4.3.13 Ache a lua no céu Esta atividade é sugerida, como tarefa para casa, no primeiro dia de aula, para ser cobrada na segunda aula, e tem o objetivo de que a pessoa retome o contato com as coisas do céu. Este exercício inicial consiste em achar a lua no céu, desfrutar dessa visão sem expectativas, nem pressa, nem pensamentos dispersivos em paralelo, e, em seguida, imaginar- se um habitante nativo do Brasil de 500 anos atrás; e, ao final, escrever um relato sobre essa vivência pessoal para compartilhar com os colegas. Por que começar o contato com as coisas do céu através da lua? Por ser este astro mais familiar? Por estar mais próximo da terra? Por ser dos mais notáveis à noite? Por sofrer mudanças que exemplificam os ciclos e ritmos cósmicos? Todas as questões acima podem justificar o fato de eleger a lua como foco de nosso olhar para o céu, em particular como foco inicial de um exercício de re-contato com as coisas do céu. Contudo, talvez o motivo mais 74 significativo esteja na correspondência analógica entre nós, humanos, e a lua, especialmente por esta apresentar um ciclo de nascimento, esplendor e morte a cada mês. O fato de esse astro ressurgir no céu, reiniciando um novo ciclo mensalmente, inspira no ser humano a esperança da vida após a morte e estimula o gosto por dimensões desconhecidas da psique humana. É nestes termos que o historiador das religiões Mircea Eliade nos ensina sobre a relação ancestral que vem sendo tecida e enriquecida entre esse astro e nós, dos pontos de vista simbólico e psicológico. No texto didático “A lua e a Mística Lunar” (JAFELICE 2001b, a partir de excertos de Tratado de História das Religiões, de M. Eliade, São Paulo: Martins Fontes, 1993), essa questão é evidenciada na seguinte citação: O homem reconheceu-se na “vida” da lua, não somente porque sua própria vida tinha um fim, como a de todos os organismos, mas sobretudo porque ela tornava válidas, graças à “lua nova”, a sua sede de regeneração, as suas esperanças de renascimento. (ELIADE, 1993 apud JAFELICE, 2001b, p. 2) Diante dessa relação tão significativa entre a lua e nós, humanos, a lua pode ser um valioso elo entre nós e as coisas do céu. A exemplo disso, segue um relato feito por uma aluna do curso, durante a última aula: A experiência mais importante que vivenciei foi as observações feitas com a lua. Com ela tirei dúvidas e compreendi que a lua caminha, transforma-se, ilumina, orienta e modifica alguns momentos da vida dos seres que habitam o universo. Uma segunda etapa desta tarefa é entrevistar pessoas do nosso convívio, perguntando- lhes qual a sua relação com a lua; qual sua relação com a estrela d’alva; e ainda, para que servem as estrelas. Estas questões têm o objetivo de trazer à tona reflexões, informações e conscientizações sobre a relação do ser humano com as coisas do céu. No geral, se constata com este exercício o quanto a maioria das pessoas está distante das coisas do céu e, para muitas delas, o quanto essas questões são do domínio do absurdo, causando, em alguns casos, inclusive constrangimento para o próprio entrevistador. Por outro lado, em um extremo oposto, algumas poucas respostas podem nos surpreender como este tipo de conhecimento ainda está presente na vida de algumas pessoas. Como, por exemplo, nos relatos de um senhor, de aproximadamente 75 anos de idade, entrevistado por uma das alunas: A estrela D’alva é uma estrela grande e muito bonita. Ela passa seis meses nascendo no norte e seis meses nascendo no sul. Ela aparece antes do sol se pôr ou antes do sol nascer. Quando o sol nasce ela está bem mais alta que o sol. A lua minguante não é boa para o nascimento das aves e animais, pois não há força; a lua crescente é a lua do nascimento, é muito boa; a lua nova e a cheia é lua de muita força. 75 As informações dadas pelo senhor entrevistado, quanto à estrela d’alva, são claramente frutos da vivência de observação sistemática das coisas do céu, mesmo que elas não correspondam aos ciclos astronômicos precisos de Vênus, conforme se conhece cientificamente. Notemos que para se constatar que um astro muda de posição a cada seis meses é preciso observá-lo pelo menos durante 1 ano e, para se ter alguma segurança de que isto é algo regular, é preciso continuar observando-o pelo menos por alguns anos, e, ao que tudo indica, este senhor o fez. Claro que existem as tradições orais, que suprimem a necessidade de experiência pessoal direta de observação sistemática para se chegar a essas informações. No caso desse senhor, porém, pelo seu relato, elas foram obtidas por iniciativa e constância de acompanhamento dele. As informações sobre a lua, os astros e as coisas do céu, em geral, envolvem conhecimentos populares que merecem o nosso respeito, além de serem de grande importância do ponto de vista antropológico. Tais informações vêm sendo tema recorrente de pesquisa científica há algumas décadas, sobre trabalhos envolvendo conhecimentos autóctones e populares sobre o céu no Rio Grande do Norte, ver Romero et al.(2004) e Jafelice et al.(2004). Esses assuntos têm fomentado discussões na comunidade científica, em particular ao ressaltar a freqüente arrogância do saber acadêmico e o quanto a maioria das pessoas está bitolada ao modo cientificista de enxergar as coisas, promovendo muitas vezes alienação e acriticidade, ou seja, exatamente o oposto do que o discurso da cientificidade diz almejar e promover. 4.3.14 Montagem do calendário lunar A lua é o instrumento de medida universal. [...] O tempo controlado e medido por meio das fases da lua é, como dizíamos, um tempo “vivo”. Refere-se sempre a uma realidade biocósmica, a chuva ou as marés, as sementeiras ou o ciclo menstrual. (ELIADE, 1993 apud JAFELICE, 2001b, p. 2) Os primeiros calendários que se tem conhecimento são de origem lunar. A presente prática visa montar o calendário lunar desse grupo, a partir dos desenhos diários da lua feitos pelos participantes. Desenhar a lua diariamente, ou mesmo parte do céu, quando não dá para ver a lua, é tarefa complementar do exercício anterior, de achar a lua no céu e curtir esta visão. Nesta 76 segunda tarefa, cada um deve desenhar a lua, da forma que a enxerga no céu, em um pedaço de papel quadrado de 10cmX10cm. No verso, deve anotar a data, horário e direção em que olhava quando fez o desenho. Notemos que, neste caso, estaremos utilizando o pensamento analítico. Aqui, a observação detalhada do que está mudando na lua, de como está mudando ao longo dos dias em relação a um conjunto de estrelas, ou mesmo o que muda na lua numa mesma noite, são aspectos muito importantes para entrarmos na intimidade deste astro, aprendermos a encontrá-lo no céu e a acompanhar os tipos, formas e ritmos das mudanças pelas quais passa, partilhando de uma cumplicidade com o cosmo. Após pelo menos um ciclo de observação da lua, registramos, juntos, as descobertas feitas por cada um e reunimos as informações num único documento (ver Anexo A). Figura 10 – Montagem do calendário lunar. 4.3.15 Representando a abóbada celeste com um guarda-chuva Os saberes de astronomia exigem do aluno uma capacidade de abstração, de pensamento espacial e de se colocar no lugar do outro, na tentativa de compreender os movimentos cósmicos, numa escala de grandezas infinitamente maior do que a conhecida por nós aqui, no planeta. Para tanto, incluímos algumas práticas vivenciais no sentido de tornar possível, ou pelo menos de favorecer, a elaboração desses saberes através de associações com elementos já acessíveis ao cotidiano do aluno. Esta prática de representar a abóbada celeste através de um guarda-chuva, tem o objetivo de demonstrar a movimentação diária aparente da lua no céu, bem como de 77 concretizar o movimento real deste astro medido pelo seu deslocamento em relação a um grupo específico de estrelas, ao fundo, deslocamento este perceptível principalmente de um dia para o outro16. Neste caso, recortamos e colamos na parte interna do guarda-chuva figuras da lua em sua fase crescente e figuras de estrelas dispostas em conjunto. Após o professor ter identificado os pontos cardeais na sala onde a aula está acontecendo, ele posiciona a haste central do guarda-chuva na direção Sul-Norte (com a ponta do mesmo indicando o Sul), de modo que parte da tela do guarda-chuva aberto fique oculta, por trás de uma mesa, a fim de reproduzir um pouco mais de 180° da abóbada celeste vista por nós da perspectiva topocêntrica em que nos encontramos17. Aqui, especificamente, esta prática serviu como analogia para demonstrar, de modo um pouco mais concreto e acessível, o movimento real da lua com o passar dos dias, orientando e facilitando a observação do céu noturno e da lua. 16 Embora tal deslocamento seja notável em único intervalo de tempo entre o nascer e o respectivo ocaso da lua, para quem já está mais acostumado a acompanhar esse astro e refinou seu poder de observação. 17 Como salienta Jafelice (2006c): “O Rio Grande do Norte, em particular Natal, onde o curso aconteceu, tem latitudes em torno de 5º Sul. Isto significa que os alunos desse curso vivem em locais relativamente próximos à linha do equador. Por isto, a abóbada celeste vista por eles (isto é, a parte do céu sobre o horizonte, naturalmente) corresponde quase aos 180º a que o texto acima se refere (ou seja, seriam 180º se estivéssemos sobre um plano horizontal exatamente sobre a linha do equador). Portanto, a inclinação da haste do guarda-chuva aberto (sempre com aquela orientada na direção Sul- Norte e com o cabo do guarda-chuva no sentido Norte e a ponta do guarda-chuva apontando para o pólo celeste Sul) precisa ser devidamente levada em conta e adaptada a cada latitude onde esta prática for realizada. Isto deve ser feito porque tal haste deverá sempre ter uma direção paralela ao eixo de rotação da terra, uma vez que a “abóbada” representada pela tela do guarda-chuva simulará o movimento aparente que observamos no céu diariamente, o qual é conseqüência do movimento real da terra em torno de si mesma. Por isto é fundamental garantir, o melhor possível, o paralelismo entre a haste daquele e o eixo desta, pois é a terra girando de Oeste para Leste (movimento este que não sentimos, não percebemos, diretamente) que nos dará a impressão da abóbada celeste girando de Leste para Oeste (e, portanto, dos astros que “estão incrustados” naquela abóbada, “nascendo” no lado Leste e “se pondo” no lado Oeste).” 78 Figura 11 – Guarda-chuva representando a abóbada celeste. O relato a seguir, de uma das alunas do curso Laboratório em Cosmoeducação, sobre esta prática, é ilustrativo da pertinência pedagógica da mesma, para o objetivo que aquela almeja: No início das aulas achei difícil entender as fases da lua e o caminho que ela faz no céu, até chegar a aula em que a professora utilizou um guarda-chuva e a figura da lua. 4.3.16 Aula de Campo Indispensável e enriquecedora, a aula de campo realizada fora da luminosidade da cidade representa uma oportunidade de grandes revelações para aqueles que a vivenciam. O contato com o céu noturno requer baixa luminosidade (isto é, um local com a menor poluição luminosa possível), para que se tenha um céu de melhor qualidade para a observação, bem como silêncio e tempo para se contemplar18. Realizamos nossa aula de campo no sítio Mineiro, distrito de Santana do Matos, no estado do Rio Grande do Norte, há aproximadamente 290 km de Natal. A lua estava em sua fase nova, condição ideal para se observar o céu noturno (pois significa uma fonte de 18 Além disto, claro, é preciso que as condições meteorológicas contribuam. Este fator está fora de nosso controle organizacional. Mesmo assim, porém, podem-se minimizar as condições desfavoráveis. Para tal, é preciso conhecer o calendário anual de chuvas da região onde a aula de campo se dará e escolher datas mais convenientes, planejando aulas de campo em épocas sem chuvas, nem céu nublado. Convém, ainda neste sentido, marcarem-se aulas envolvendo pelo menos duas noites de observação, para se aumentar a chance de se ter pelo menos uma noite com céu propício para as finalidades pretendidas. Outros cuidados, relacionados à fase da lua, são comentados no texto. 79 luminosidade relativamente intensa, neste caso de origem celeste, a menos; a luz da lua interfere na visibilidade, se o objetivo for a observação de estrelas, planetas e objetos de céu profundo). Depois de uma longa viagem, chegamos ao sítio ao anoitecer. Após nos instalarmos no sítio, nos reunimos ao ar livre para dar início às atividades práticas de observação. No primeiro momento sugerimos a cada participante simplesmente desfrutar a visão do céu noturno, sem a poluição luminosa dos centros urbanos, e curtir este momento, sem se preocupar em achar algo já conhecido ou que tenha ouvido falar. Durante este momento o professor-facilitador deve orientar as pessoas para que evitem qualquer expectativa e se permitam atribuir significados próprios ao que estão vendo. Sugerimos, nesse momento, que a pessoa busque permanecer num estado de passividade alerta, onde ela se predisponha àquela experiência sem expectativas, porém, ao mesmo tempo, que fique atenta ao que está acontecendo com ela, em termos de associação de idéias, sentimentos, sensações e percepções. Após certo tempo nos reunimos outra vez para compartilhar o que cada um vivenciou e percebeu. O estado de admiração e êxtase quanto àquele céu estrelado foi uma constante entre as primeiras afirmações de nossos professores-alunos, encantados pela imagem daquele céu isento da poluição luminosa, tão comum nos centros urbanos. Outro ponto comum entre os professores foi o estado de paz que descreviam ao compartilhar a experiência de desfrutar aquele céu. Mais uma vez me ocorreu na lembrança de um trecho de Bachelard (2001, p. 184): O céu estrelado é o mais lento dos móbeis naturais. Na ordem da lentidão, é o primeiro móbil. Essa lentidão confere um caráter suave e tranqüilo. É o objeto de uma adesão inconsciente que pode dar uma impressão singular, uma impressão de leveza aérea total. Aqui é importante trazer à tona o fato de que o céu, no sentido físico, é um só. Porém, este mesmo céu pode parecer diferente para diferentes pessoas da mesma cultura e pode parecer mais diferente ainda para pessoas de culturas diferentes; para maiores reflexões e aprofundamentos sobre estes pontos, vide Jafelice (2005c). Se fizermos uma viagem imaginária para a Babilônia de há 4000 anos, encontraremos o início de uma estruturação acerca do céu. Aquele “mesmo céu” (fisicamente falando) também estava sendo visto e interpretado pelas civilizações pré-colombianas e pelos índios brasileiros. Pode-se dizer que esses diferentes povos, diante do mesmo céu, quer dizer, da mesma influência ambiental física, enxergaram significados diferentes, conforme a sua cultura. Nossa cultura ocidental 80 herdou muito da visão do céu originalmente dos babilônios, à qual se agregaram as influências e modificações posteriores dos gregos. Neste momento da prática, então, convidamos os participantes a identificarem algumas coisas que fazem parte desta cultura. E sugerimos que achassem o Cruzeiro do Sul e, a partir deste, o pólo sul celeste; Alfa e Beta de Centauro; a constelação de Escorpião; entre outros astros celestes mais notáveis que estivessem visíveis, como Júpiter estava, naquela época, por exemplo. Após nos deleitarmos um bom tempo com o prazer de ligar mentalmente as estrelas no céu, para obter uma figura que é significativa para nossa cultura, partimos para a observação do céu através do telescópio. Este momento também é estimulante para todos, uma vez que desperta outros aspectos, como a curiosidade e a expectativa de se tornar mais próximo de um astro e, quem sabe, poder desvendar algum segredo longínquo. Muitas vezes, contudo, o telescópio tem frustrado tais expectativas, uma vez que as imagens que visualizamos através de seus espelhos e lentes não correspondem àquilo imaginado, não indo muito além, principalmente no caso de estrelas, daquilo a que já temos acesso a partir da visão a olho nu. Com este grupo, observamos a estrela mais próxima da terra (depois do sol): a alpha centauri (como é tecnicamente chamada a estrela Alfa de Centauro, a estrela mais brilhante desta constelação), que está a 4,4 anos-luz de distância da terra. Neste caso, em particular, sim, foi possível ter algum resultado surpreendente, diferente do que notamos a olho nu, pois pudemos observar que se trata de um sistema estelar formado por duas estrelas (quer dizer, na verdade formado por três estrelas, conforme explicamos para os alunos, porém, isto só é observável com telescópios muito grandes; o nosso nos permitiu apenas enxergá-la como uma estrela dupla; mas isto já causou um grande impacto nos alunos). Depois observamos Júpiter e suas luas galileanas. 81 Figura 12 – Observação do céu com telescópio em Santana do Matos/RN. Como última atividade desta noite, voltamos a observar, em silêncio, o céu noturno a olho nu, numa atitude contemplativa. Foram dados os comandos de escolher algum astro ou conjunto de astros delimitado; fixar o olhar no(s) astro(s) escolhido(s); buscar estabelecer uma relação íntima com o(s) mesmo(s); registrar internamente qualquer percepção, ou idéia, ou sentimento, que surgir; ampliar ao máximo esta relação com o cosmo e, ainda em silêncio, recolher-se ao leito, neste caso a rede, e dormir impregnado das imagens e das sensações provocadas por esta vivência. No dia seguinte, na ocasião do café da manhã, comentamos sobre a qualidade do sono e a ocorrência, se rememorada, de algum sonho. Aqui expressamos a valorização por funções imaginárias e subjetivas próprias do sonhar. Segue outra citação retirada de Bachelard (2001, p. 201), que traduz a relação do sonho e sua função cosmogônica: O sonho é a cosmogonia de uma noite. Todas as noites o sonhador recomeça o mundo. Todo ser que sabe desprender-se das preocupações do dia, que sabe dar ao seu devaneio todos os poderes da solidão, devolve ao devaneio sua função cosmogônica. 4.3.17 Retrospectiva do curso Aqui o participante é estimulado a relembrar a sua própria jornada no curso e tem como objetivos propiciar a auto-avaliação e integrar as experiências vividas no curso à sua vida pessoal, comunitária, social e pedagógica (neste caso). Este momento é realizado de 82 preferência de olhos fechados e o professor vai citando as atividades que foram propostas desde o primeiro dia até o momento atual, enfatizando práticas vivenciadas, conteúdos aprendidos, trocas de experiência, aula de campo, etc. Nesta retrospectiva é importante incluir tarefas de casa, momentos de insights, vivências com parentes e amigos relacionadas ao céu, que foram relevantes para a pessoa e vivenciados fora da sala de aula. Este aspecto é muito importante do ponto de vista da aprendizagem significativa, uma vez que boa parte do aprendizado se dá fora da sala de aula, no dia-a-dia, onde o sujeito associa o conteúdo trabalhado no curso (isto é, em uma situação de ensino formal qualquer) com sua vivência diária. Consideramos importante sugerir tarefas de casa estimulantes, que facilitem que o aluno experiencie o aprendizado como algo contínuo, ininterrupto e integrado com suas experiências cotidianas. Por fim, pedimos para que a pessoa entre em contato com a experiência mais importante vivenciada por ela durante este período e reviva essa experiência. Ao abrir os olhos e retornar ao estado de vigília física, lhe serão dadas algumas questões para serem respondidas em seguida, tais como: “Qual a experiência mais importante que você vivenciou durante este período? Que implicações práticas isto teve na sua vida em geral (por exemplo, na interação com familiares) e, em especial, na sua atuação em sala de aula com os alunos? Dê exemplos reais.” Estas questões foram respondidas por escrito e, depois, compartilhadas com o grande grupo. As auto-avaliações gerais e particulares, e as discussões desencadeadas nessa etapa final, encerraram formalmente o curso. 83 5 RESULTADOS E CONCLUSÃO Nesta seção apresentamos uma breve análise da cosmologia prévia dos sujeitos em questão, abrangendo sua concepção de universo (mundo), sua concepção de origem, ou não, desse universo e a concepção da relação entre seres humanos e tudo o mais que existe no cosmo. Em seguida discorremos sobre as mudanças ocorridas com os alunos (professores) ao longo do curso e as influências dessas mudanças em suas práticas pedagógicas e em suas vidas diárias. 5.1 COSMOLOGIA PRÉVIA DOS SUJEITOS Como explicitado em 4.3.1, o primeiro encontro do curso de extensão Laboratório em Cosmoeducação teve como objetivo identificar a cosmologia prévia do sujeito, participante do curso, incluindo aspectos relativos a: 1. Concepção de universo (mundo); 2. Concepção de origem, ou não, desse universo; e 3. Concepção da relação entre seres humanos e tudo o mais que existe no universo. A seguir em 5.1.1, 5.1.2, 5.1.3 e 5.1.4, comentamos cada aspecto mencionado a partir das respostas dos participantes. 5.1.1 Concepção de universo De acordo com as redações sobre “o que significa o universo para mim”, aplicada no primeiro encontro do curso de extensão Laboratório em Cosmoeducação, criamos algumas categorias para representar as palavras-chaves identificadas nos relatos dos alunos. Expressões que traziam em seu bojo alguma dúvida, como, por exemplo expressões do tipo: “enigmático”; “indecifrável”; “indefinido”; “espaço finito ou infinito?”, foram identificadas como indefinição ou incognoscível, conforme exemplificadas nas transcrições literais dos relatos feitas abaixo, cujo grifo é nosso; este tem o objetivo de destacar palavras-chaves das categorias de análise do discurso definidas por nós. O universo para mim é indefinido. É um conjunto de astros luminosos que não sei nem explicar. Penso que o universo é um mundo de descobertas. Nele vivemos uma viagem imaginária, dentro de uma nave apropriada a levar pessoas para lugares distantes e desconhecidos, 84 onde jamais iremos chegar. Nesta imagem, iremos passar pelo centro da terra e conhecer as maravilhas do espaço sideral em que muitas vezes de longe sonhamos com estes milhões de pontos luminosos que brilham no imenso céu. As dúvidas são muitas quando falamos no universo, quem sabe um dia o homem possa conhecer o verdadeiro sentido de sua existência. Quando penso em universo me vem logo a idéia de mundo, esse espaço finito ou infinito, formado por bilhões ou milhões de galáxias, em uma das quais está situado o meu planeta terra; a nossa galáxia chama-se via Láctea. Segundo os cientistas as galáxias que formam o universo continuam se expandindo, isso significa que o universo pode ser infinito, mas muitas vezes me pergunto até onde irá essa expansão. Enfim o universo é o que conheço por mundo, finito ou infinito é real e certamente expressa a grandeza do seu criador, sim, pois pra mim há um criador, a ciência tem suas teorias para tentar explicar a formação do mesmo, mas deixa muito a desejar, prefiro acreditar que acima de toda essa grandeza há um grande criador. Outras redações que se caracterizaram por expressões que se referiam à dimensão de grandeza, tais como, “imensidão”; “abrangente”; “espaço ilimitado”; “longe do alcance”; foram interpretadas aqui como sendo de caráter transcendente, conforme mostram os exemplos de relatos a seguir, também literais e com grifo nosso, pelo motivo já exposto: O universo representa a imensidão por ser algo longe do nosso alcance. Para mim o sol representa a vida porque é fundamental para a nossa sobrevivência. As estrelas são misteriosas porque é algo que nos dá curiosidade, e a lua é bela por sua imensidão. Quando falo em universo vejo o quanto é abrangente este vocábulo para mim. O universo é um espaço celeste onde vivemos e convivemos com tudo e com todos. O universo é o espaço que abrange a todos e a tudo que queremos saber. O universo representa a imensidão do que já foi descoberto, do que se está por descobrir e também do imaginário. E principalmente nesse universo que ainda é desconhecido meus pensamentos e imaginação podem passear e constatar que ainda temos muito que descobrir e aprender. Eu acho que o universo é um espaço ilimitado. Outras “definições” de universo fizeram referência às coisas do céu e da terra, como “estrelas”; “astros”; “sol”; “lua”; “planetas”; “águas”; “seres”; e foram codificadas como sendo do âmbito da materialidade e da forma, conforme demonstradas nos relatos abaixo (grifo nosso): Tudo que há no universo é de grande importância para mim, assim como a beleza da lua e das estrelas, a grandeza e o calor do sol, a imensidão das águas dos rios e mares, tanto quanto os demais seres que convivem entre nós. O universo para mim é tudo que está ligado a ele, ou seja, o sol, a lua, as estrelas e os planetas. 85 O universo para mim é tudo que existe, como: os astros, as estrelas, os cometas, os animais, os vegetais e os minerais, ou seja, tudo que forma o mundo cientificamente. Constatamos, neste grupo de professores, uma maior ocorrência de respostas do tipo transcendente e incognoscível. A cosmologia desses sujeitos pode revelar que pensar em definir o universo transpõe a nossa capacidade cognitiva, retratando assim a limitação conceitual do ser humano para apreender o macrocosmo. Por outro lado, o aspecto transcendente inerente à natureza humana pode ser ativado e despertar outros sentidos capazes de perceber a imensidão do universo. Observamos, contudo, dos relatos expostos, que praticamente todos ainda mantêm, naturalmente, o forte viés de nossa cultura ocidental, que reforça o pensamento dicotômico, a compartimentação cartesiana, a separação entre sujeito e objeto, terra e céu, e coloca “o universo” como sendo algo exterior a cada um de nós, e mesmo extraterrestre. Como enfatiza Jafelice (2002c, p.4, grifo do autor), “em vez de nos perguntarmos, conforme escutamos com freqüência, qual é nosso lugar no universo? – questão que, em geral, trai uma limitada visão, tentando encaminhar a discussão apenas sobre qual é nosso lugar físico no universo –, ‘[u]ma pergunta mais pertinente seria: qual é o lugar do universo em nós?’”19 Jafelice (2006c) chama a atenção de que: aquele viés está presente nos cursos, textos, veículos da mídia e materiais de divulgação de astronomia, praticamente sem exceção. Ele representa um desvio grave, que afeta muito a percepção das pessoas e a possibilidade de formularem uma outra concepção de si mesmas, do universo, da inter- relação entre o que existe. 5.1.2 Significado do céu “O que significa o céu para você?” Esta questão é bastante pertinente para este trabalho, uma vez que se busca aqui um re-contato com essa parte do meio ambiente física e simbolicamente falando. Ao se depararem com essa questão, 40% das respostas dos participantes se referiram aos astros celestes, ao céu astronômico, como mostram os relatos abaixo: 19 Vide também, neste sentido, o quadro comparativo entre a educação astronômica tradicional e a antropológica, que reproduzimos na subseção 3.5.1, contendo reflexões de Jafelice (2004, p. 36). 86 O céu significa o universo, onde podemos estudar os corpos celestes que nele existe. O céu é parte do universo pois é lá que estão os satélites, e para mim significa brilho, luz. O céu é uma parte do universo onde se encontra diversos astros como: satélites, cometas, estrelas,etc. Um espaço onde fica os astros. É a abóbada celeste e é nela que vemos bilhões de estrelas, a lua, o sol, etc. Espaço onde se movem os astros. Observando essas definições do céu, notamos que as mesmas refletem uma visão dicotômica do mesmo em relação a nós. Ou seja, mais uma vez, o céu aparece como algo separado do ser humano; o céu está lá, é a morada dos astros. Não nos damos nem conta de que a terra é um corpo celeste, um planeta, e, portanto, está no céu, e, se estamos na terra, conseqüentemente estamos no céu e este céu está em nós, pois nos relacionamos com ele o tempo inteiro, quer tenhamos consciência deste fato ou não. Outros 35% das respostas dadas pelos professores sobre o significado do céu estavam relacionados ao céu da religião cristã, conforme exemplificam os relatos a seguir: O céu significa para mim o lugar onde um dia eu irei morar com Jesus. O céu para mim é a casa celestial, morada de Deus, onde com certeza eu um dia vou morar. Um lugar de rara beleza; morada de Deus e do que é eterno e muitas vezes enigmático. Do ponto de vista religioso, é o lugar para onde vão as pessoas que seguiram a palavra de Cristo aqui na terra. É pertinente mencionar que 100% da turma têm formação religiosa de orientação cristã, seja católico ou protestante. A partir deste dado, é importante notar as forças culturais predominantes, particularmente no ocidente, na formação de nossas opiniões e pontos de vista. Neste grupo, notadamente, ora o aspecto científico, ora o religioso, determinou o significado do céu. O conflito entre o aspecto espiritual, claramente influenciado por conceitos religiosos judaico-cristãos, e o aspecto materialista, exposto pelos conceitos científicos, fica evidenciado, em particular, no seguinte relato: Antigamente eu via o céu como se fosse o teto da terra, e acima dele morava Deus, Jesus e os anjos. Hoje como sei que a terra não é fixa, e que é apenas um pontinho no universo, esse céu lindo que durante o dia posso contemplar o sol, as nuvens e seu azul maravilhoso, e a noite ele é revestido pela lua e as estrelas, formando assim um 87 espetáculo maravilhoso, não passa apenas de uma camada de ar. Mas, mesmo assim acredito que onde meus olhos não podem contemplar há realmente um céu que não é teto da terra, mas o revestimento do universo que realmente é a morada do meu criador. O conflito entre essas duas forças fica claramente exposto quando essa aluna diz: “[...] esse céu lindo que durante o dia posso contemplar o sol, as nuvens e seu azul maravilhoso, e a noite ele é revestido pela lua e as estrelas, formando assim um espetáculo maravilhoso, não passa apenas de uma camada de ar. [...]”. Aqui há uma quebra de sensibilidade. Aquele céu que encantava e inspirava com sua beleza, não passa de uma mera camada de ar. Percebe-se nesse pequeno trecho, o quanto o saber científico pode ser refletido pela pessoa como a perda da sensibilidade e de qualquer poesia. Como se o conhecimento científico reduzisse o “objeto” a um conceito de materialidade fria, que anula toda a beleza, a representação simbólica e o pensamento imaginário existentes. Cabe aqui questionar se a intenção do saber científico é a de anular ou de subestimar a fantasia, a imaginação e a poesia inerentes ao humano e à sua interpretação da natureza. E se assim o for, a quem serve esta ideologia? Os outros 25% das respostas relacionadas ao significado do céu, apontaram para o aspecto infinito, inacessível e idealizado, conforme podemos ver nos relatos abaixo: Significa uma imensidão por ser algo inacessível, longe do nosso alcance. O céu para mim, é um espaço infinito onde só existem coisas interessantes para serem descobertas a cada dia. O céu significa paz, um lugar onde não existe violência, discriminação, nem doença, lugar que nos dá a sensação de liberdade. 5.1.3 Concepção de origem De acordo com as respostas dos professores-alunos sobre a questão: “Você acha que o universo teve uma origem ou não? Por quê e/ou como?”, 80% do grupo respondeu afirmativamente, que o universo teve, sim, uma origem. Enquanto que apenas 20% tinham dúvidas e não sabiam explicar. Daqueles que responderam “sim”, 80% remetem a origem do universo a Deus, alguns, inclusive, fazendo referência direta ao Gênesis (início da Bíblia), conforme, por exemplo, explicitado abaixo no relato de uma aluna: Porque só Deus pode separar a água da terra. A separação entre o mar e a terra, eu creio que só Deus fizera com o seu poder. 88 Como explica Martins (1994, p. 9), “no mito bíblico da criação, existe apenas uma divindade, que produz todas as coisas. Nada surge por si próprio: parecem não existir forças ativas da matéria. É necessária a decisão e o poder de um deus para que tudo possa surgir”. Tem-se notado na cultura ocidental duas fortes tendências para explicar a origem de tudo o que existe: uma de natureza religiosa, e na maioria das vezes fundamentada no Gênesis, e outra de natureza científica, baseada na teoria da grande explosão ou do “Big Bang”. Neste grupo, fortemente caracterizado pelo pensamento cristão, surgem conflitos para explicar as origens, conforme expressado nos relatos abaixo: Alguns cientistas dizem que foi da explosão do “big bang”, mas na Bíblia há a afirmação de que tudo passou a existir pelo poder da palavra de deus. Sim. A teoria que a ciência usa para explicar a origem do mesmo é uma explosão que ficou conhecida como big bang, mas mesmo que tenha ocorrido a mesma, acredito que por traz dessa explosão há o poder e o querer de Deus e ele quis fazer tudo assim tão grande e maravilhoso para mostrar sua grandeza. Eu acho que Deus criou tudo e não que o universo surgiu de uma explosão como falam os cientistas. Mesmo não abrindo mão de sua crença, os professores mencionam o modelo da grande explosão e percebe-se o incômodo que esta teoria provoca, uma vez que ameaça as arraigadas concepções míticas de origem. 5.1.4 Concepção da relação entre seres humanos e tudo o mais que existe no universo Segundo análise da questão: “Quais as relações que você percebe entre o céu e a terra?”, cerca de 60% dos relatos dos alunos mencionaram os raios solares e o ciclo dia-noite, 40% citaram o ciclo da água, que provoca as chuvas. É interessante notar que ambos os elementos (raios solares e água) são vitais e imprescindíveis para as diversas manifestações da vida na terra. A ocorrência desses temas permitiu adentrar no tema transversal meio ambiente e saúde e abordar situações ambientais que colocam em risco a vida da terra e do ser humano como, por exemplo, o aquecimento global e o esgotamento da água potável no planeta. Dentre os demais relatos, um, em particular, expressou uma concepção de mundo geocêntrica20, como se mostra a seguir: 20 A terra vista como centro do universo. Todos os astros estariam girando ao redor da terra, que se manteria estática. 89 É que no céu tem astros; e os astros se movem ao redor da terra. A questão seguinte abordou “quais as relações percebidas entre tudo o que existe no cosmo?”; e, segundo a análise, 50% dos alunos sentiram dificuldades de refletir a respeito, tendo justificado a omissão da resposta pela falta de elementos disponíveis em seu repertório intelectual. Essa dificuldade ficou mais explicita à medida que se fez essa ampliação na questão (para abarcar as relações percebidas entre tudo o que existe no universo). Esse tipo de coisa, mais uma vez, remete para o modo fragmentado que estamos no mundo e nos relacionamos com o mesmo. Outros 40% admitiram existir relação entre tudo o que existe no cosmo, conforme podemos ver nos exemplos de relatos abaixo: Percebo que há uma relação entre todos os elementos, já que esse todo é composto de todas as partes e que são indissociáveis. Percebo que há uma relação de harmonia entre tudo o que existe no cosmo. Percebo uma relação de dependência e equilíbrio entre tudo o que existe. A força de atração é uma energia muito grande que permite uma organização maravilhosa. 5.2 MUDANÇAS NA CONCEPÇÃO DE MUNDO Ao final do curso foi aplicado um questionário com o objetivo de avaliar conteúdos vivenciados pelos participantes e as potenciais mudanças ocorridas a partir dessas vivências. A primeira questão consistia em descrever qual era a concepção de mundo antes de ter qualquer aula desse curso. A maioria das respostas (60%) enfatizou a limitação anterior, de perceber o mundo como sendo apenas a terra, conforme, por exemplo, nesses relatos escritos pelos alunos e citados abaixo: Antes do curso eu não costumava observar o céu. Antes eu via o mundo como sendo só a terra, hoje vejo o universo. Minha concepção de mundo era bastante limitada, pois só via o que estava próximo (terra). Eu via o mundo como se o mesmo fosse um círculo; se uma pessoa andasse em linha reta chegaria ao seu fim. 90 Os outros 40% apontaram para uma insuficiência de conhecimento sobre o universo, como mostram alguns dos relatos abaixo: Antes eu não tinha conhecimento do universo. Antes do curso a concepção que tinha do universo era solta, sem muito respaldo teórico e prático. Anteriormente só tinha a concepção do criacionismo. Este curso só veio enriquecer e acrescentar mais elementos acerca das origens do universo que são múltiplas. As mudanças ocorridas durante o curso foram relatadas pelos professores, que também apontaram elementos, conteúdos ou práticas que facilitaram tais mudanças. A pergunta era se durante o curso havia sido observada alguma mudança na forma de a pessoa ver o mundo e se relacionar com este e, caso a resposta fosse positiva, quais mudanças foram identificadas pela pessoa. Em caso negativo, pedia-se para responder por que ela achava que não houve mudança. Todos identificaram algum nível de transformação na sua cosmologia pessoal, tendo sobressaído como mudança verificável a inclusão da prática de olhar o céu na vivência do dia- a-dia, conforme mostram alguns dos registros abaixo: Para mim mudou a forma de observar o céu. Aprendi a observar melhor o universo e suas mudanças. Passei a observar a lua. Passei a ver o mundo com admiração e interesse, valorizando o universo e suas transformações. Após o curso comecei a ver o mundo de forma abrangente, em sua totalidade como um universo repleto de coisas descobertas e muitas a serem encontradas pelo homem. A minha vida profissional e particular também sofreu mudanças, pois como evangélica creio no que está na Bíblia, porém após o curso penso que não podemos nos fechar para outras formas de conceitos, pois podemos estar jogando fora oportunidades de aprendermos. Devido ao curso deixei de ser tão radical em relação a todos os assuntos que abordam as coisas relacionadas ao universo. Notamos que a atitude de observar as coisas do céu foi uma constante dentre os relatos dos participantes. Consideramos o desenvolvimento deste hábito de extrema importância para esta proposta cosmoeducativa, uma vez que o primeiro passo para reintegrarmos algo em nossas vidas é nos conscientizarmos de sua existência. Assim, o fato de esses professores 91 terem citado a inclusão da prática de observação do céu como mudança efetiva em suas vidas é interpretado por nós como condição inicial do processo de reconexão cósmica. Portanto, de acordo com as auto-avaliações dos professores participantes, ficou evidente a ocorrência de mudanças conceituais e existenciais em relação à visão de mundo anterior ao curso. Quando questionados sobre os elementos, conteúdos e/ou práticas que facilitaram tal mudança, a origem do universo foi citada em vários relatos como tendo sido um tema gerador de reflexões e questionamentos, enquanto outros mencionaram os exercícios propostos pela psicologia transpessoal, conforme exemplificados nos relatos abaixo: As práticas da psicologia transpessoal, que me possibilitaram ver o quanto precisamos fazer com que nossos alunos agucem as suas percepções através dos sentidos. A origem do universo. As observações e reflexões sobre como tudo começou. As oficinas de gravuras da representação do universo. As dinâmicas dos momentos de reflexão e observação do interior e exterior. O filme zoom cósmico. A prática envolvendo a respiração. Estes relatos demonstram o quanto o tema das origens incita a curiosidade humana e propicia reflexões e potenciais mudanças na forma de encarar o ainda não desvendado mistério da origem do universo, o qual inclui a nossa própria origem enquanto seres humanos. O reconhecimento explícito da importância das práticas em psicologia transpessoal por uma fração significativa dos participantes (40%) reforça a pertinência desse tipo de iniciativa, que valoriza e estimula o autoconhecimento, a subjetividade e a intuição. Quando questionados sobre se o curso influenciou na sua prática pedagógica e como, todos admitiram que o curso influenciou especialmente dando subsídios teórico-práticos para trabalhar com a criança a observação das coisas do céu. Uma das alunas acrescentou que: “o curso influenciou no sentido de desenvolver e trabalhar com meus alunos e buscar por essa autoconsciência de si neste cosmos e de outros corpos”. A questão seguinte pedia pelo menos dois exemplos de atividades que o professor pretende desenvolver em sala de aula, mas que não o faria se não tivesse participado do curso. Do grupo em questão, 80% dos professores mencionaram as práticas observacionais como um elemento a ser introduzido em sua prática pedagógica, incluindo a observação e registro das 92 fases da lua e a construção do calendário lunar, conteúdos que não seriam abordados caso não tivessem participado do curso. Outro exemplo que apareceu na maioria dos relatos dizia respeito aos exercícios e dinâmicas da psicologia transpessoal, as quais inspiraram os professores a adaptá-las à sua prática pedagógica. Notamos o quanto, na prática, as observações do céu e os exercícios meditativos visando expandir a visão de nós mesmos, parecem constituir elementos complementares para a promoção de potenciais mudanças na visão de mundo. Ainda durante o curso, alguns professores (cerca de 30%) relataram que já estavam experimentando a aplicação de alguns conteúdos vivenciados no Laboratório em Cosmoeducação com seus alunos. Quando perguntados sobre a segurança deles nos conteúdos do Eixo-temático: terra- universo que foi visto no curso, os participantes deveriam escolher entre as alternativas abaixo e comentar sua resposta, citando alguns dos conteúdos vistos no curso : (a) Ficou praticamente a mesma. (b) Confundiu algumas coisas que você já sabia. (c) Melhorou em alguns aspectos. (d) Melhorou bastante no geral. A análise das respostas mostrou que 80% optou pela alternativa (c) e 20% assinalou a letra (d). Seguem abaixo alguns comentários das respostas: Aprendi melhor a observar o universo. Esclareceu sobre orientação através dos pontos cardeais. A minha prática pedagógica e pessoal melhorou bastante, pois aprendi, através de uma prática tão simples de respirar, o quanto não fomos trabalhados para percebermos as pequenas e grandes coisas que são tão importantes e essenciais para nossas vidas. Aprendi a observar a terra e o céu de forma diferente. Criação do universo; mitologia e religião; sistema solar, galáxias e constelações, satélites e astronomia cultural. Os professores participantes do curso citaram como pontos positivos do mesmo a forma de trazer os conteúdos da Astronomia sempre fazendo a relação entre teoria e prática, proporcionando assim uma maior possibilidade de aplicação prática daqueles, bem como a criação do hábito da observação e investigação científica na prática pedagógica e no dia-a-dia. Como pontos negativos, os participantes foram unânimes em apontar o aspecto do pouco tempo das aulas e do curso, e sugeriram o aumento da carga horária para maior aprofundamento dos conteúdos trabalhados e das vivências experimentadas. 93 De fato, o tempo é fator essencial para o desenvolvimento e consolidação dos conhecimentos sobre as coisas do céu21. Além disso, os temas propostos pela astronomia favorecem diversas discussões envolvendo relações com outras disciplinas, com o meio ambiente, com outras culturas, entre outras inter-relações que estimulam o pensamento crítico dos professores e que, portanto, demandam mais tempo. Sendo assim, para um trabalho futuro em formação de professores com o presente enfoque cosmoeducativo, precisaremos ampliar a carga horária, a fim de propiciar um maior espaço-tempo de aprendizagem. Por fim, quanto à experiência mais significativa vivenciada durante o curso, foi unânime aquela associada às práticas de observação do céu, sejam da lua, do sol ou de constelações. Isso demonstra o quanto redescobrir o céu diurno e noturno é importante para ampliar a noção de meio ambiente e promover potenciais mudanças na visão de mundo. Seguem abaixo relatos dos alunos sobre a experiência mais importante vivenciada durante o período do curso Laboratório em Cosmoeducação, conforme escritos pelos mesmos na última aula do curso: A experiência mais importante para mim foi a observação da lua. Essa vivência foi algo novo para mim. Depois disso passei a levar as crianças para observar a mudança da fase da lua. A experiência mais marcante entre muitas que tivemos e vivenciamos neste curso foi a observação do sol naquela aula anterior a esta, pois foi maravilhoso vê-lo. Após este dia comentei com meus alunos do 1° ciclo (2ª fase) sobre a beleza do sol, afinal, já havíamos trabalhado sobre a sua formação e importância dele para todos os seres vivos. Como Ana Lígia e Pedro Ivan (meus alunos) também tinham visto o sol através do vidro de soldador chamei-os para dar relatos sobre aquele espetáculo, porém como desde o início quando começamos o trabalho de observar sombras através da medição de um pau, adverti-os para que não olhassem diretamente para ele, pois assim como Galileu morreu cego de tanto observar as manchas do sol eles poderiam ter problemas de visão caso tentassem fazê-lo. A experiência mais importante que vivenciei foi as observações feitas com a lua. Com ela tirei dúvidas e compreendi que: a lua caminha, transforma-se, ilumina, orienta e modifica alguns momentos da vida dos seres que habitam o universo. Na vivência foi possível descobrir a importância de observarmos o céu e as coisas que fazem parte deste universo, com mais satisfação e aprendizagem. Em geral, as observações vieram lembrar que é importante passarmos a valorizar o universo e passar também esses momentos de descobertas para meus familiares e alunos. Com os familiares envolvi os mesmos a dar mais importância ao universo através das observações feitas comigo. 21 Este, em particular, é um dos motivos pelo qual o Prof. Luiz Carlos Jafelice inicia e desenvolve sua intervenção na disciplina de Astronomia, para o Curso de Licenciatura em Geografia da UFRN, através de atividades de (re)estabelecimento do contato dos alunos com as coisas do céu que permitam “dar tempo ao tempo, pois este é um elemento constituinte primordial dessa área do conhecimento” (Jafelice 2006c; vide discussões e aprofundamentos dessa estratégia pedagógica em Jafelice 2002c, 2004, 2005a e 2006a). 94 Na sala de aula, despertei os alunos para o contato com o céu e o que eles notavam que nele existe. A experiência mais importante foi a observação da lua. Passei a ver a lua com mais importância, pois antes não tinha essa visão de que a lua é tão importante para nós. Uma grande dificuldade que tive foi de observar a estrela Dalva, pois em momento algum consegui vê-la. Durante o período do curso a experiência mais importante para mim foi na aula 14 quando fomos olhar o sol. Como é belo. Olhando-o senti vontade de chegar mais perto do mesmo. Pensei que se Deus é luz, o sol é o olho de Deus. Levei aos alunos a prática de relaxamento, de olhos fechados sair da sala de aula e ir ao ambiente familiar pensando coisas boas para os familiares. A experiência mais importante foi na aula de campo no dia 04/06, pois eu nunca tinha visto um céu tão estrelado como naquela noite. Naquele momento eu não tinha conseguido achar escorpião, mas ao retornarmos da aula após as orientações dadas, eu consegui identificar no céu o escorpião tão falado e isso me deixou bastante realizada, pois se todas as minhas colegas tinham identificado o escorpião eu também iria conseguir. 5.3 COMENTÁRIOS FINAIS Ao longo deste trabalho buscamos explorar a interface psicologia/astronomia através de vivências da psicologia transpessoal com base em temas astronômicos e avaliar as conseqüências das mesmas nos processos de autoconhecimento, consciência ambiental e aprendizagem de conteúdos de astronomia. Como disse Jafelice (2005a), “todas essas tarefas visam recuperar, de modo vivencial, uma inter-relação maior e plena entre todos os seres vivos e as coisas da terra, do céu e do cosmo inteiro”. O processo nos tem revelado o quanto a prática de “olhar o céu”, no sentido de reincluí-lo na vida diária, provoca um processo de expansão da consciência e reintegração do eu em um patamar de inter-relação ambiental mais amplo. O propósito deste trabalho foi estimular tal processo, intensificá-lo, por assim dizer, e analisar as implicações desse tipo de intervenção nas vidas dos sujeitos que passam por tal experiência. A nossa hipótese de que astronomia, desde que abordada segundo um enfoque antropológico ou humanístico, pode servir como uma porta cultural muito estratégica e conveniente, através da qual o ser humano moderno (re) estabelece suas relações com o céu, podendo readquirir, através daquela, o hábito do contato com as coisas do céu , 95 redescobrindo-o, reintegrando-o em sua vida e ampliando sua consciência ambiental, tem se apresentado, a partir da análise dos resultados que obtivemos, bastante pertinente. Na prática, os exercícios que propusemos - de relaxamento, meditação, sons autóctones, expressão corporal, imaginação ativa, pinturas de mandalas pessoais, redescoberta do céu diurno e noturno, por exemplo -, efetivamente contribuíram para se acessar dimensões adormecidas em nós devido ao excesso da razão cartesiana e do condicionamento à vigília física ordinária a partir dos cinco sentidos físicos. O que se constata, em geral, é que quando o nosso aluno está em sala de aula, isto é, no estado de consciência usual de vigília, ele se percebe separado do conteúdo que está sendo estudado. Por exemplo: eu e a terra, eu e o sol, eu e a Via Láctea, eu e a lua, eu e os anéis de Saturno, eu e o Cruzeiro do Sul, eu e o universo. Enfim, neste contexto o “eu” se vê separado dos corpos astronômicos ou do universo como um todo, parecendo não haver relação maior entre eles, a não ser aquela existente entre “sujeito” e “objeto” (no caso, todo o resto) e, conseqüentemente, aquela do “eu” estar no universo (como já discutimos nas subseções 3.5.1, 4.3.1 e 4.3.7). Ao passo que num estado mais expandido de consciência, a realidade é vivenciada como uma unidade dinâmica, onde todas as coisas são interdependentes. Aqui, o estudante começa a se relacionar existencialmente com os objetos e fenômenos astronômicos e cósmicos. Ou seja, nesta situação estão simultaneamente presentes, com igual aporte, tanto eu na terra, eu no sistema solar, eu na Via Láctea, eu no cosmo, como o cosmo em mim, o sol em mim, etc. Nesse contexto, o estudante inicia um processo de percepção sistêmica das relações de interdependência que existem entre tudo. Em particular, das relações entre ele e tudo o mais que há no universo, ao mesmo tempo em que mantém sempre consciente o fato de ele ser uma parte deste e, como destaca Jafelice (2006c), “de ser uma parte tão essencial quanto qualquer outra para caracterizar o universo como este é, independente da grandeza ou miudeza, dimensionalmente falando, que essa parte tenha em termos relativos”. Com a repetição dessa vivência, pode-se consolidar um novo aprendizado que, conseqüentemente, propiciará a emergência de valores éticos mais universalistas no repertório existencial do sujeito. O estado de consciência usual do dia-a-dia, que normalmente experienciamos, não nos permite ter uma visão mais integrada entre o que existe “fora” de nós e nós mesmos e, freqüentemente, nos percebemos como estando dissociados dos eventos que ocorrem na natureza e no cosmo. 96 A partir de nossas intervenções e reflexões, observamos que esta emergente aliança entre a astronomia e a psicologia transpessoal vem se revelando para nós, experimentadores, como uma eficiente ferramenta para expandir a percepção, não só nos níveis conceitual e intelectual, mas principalmente nos níveis vivencial e transcendente. Vimos, ao longo da aplicação prática desta proposta cosmoeducativa, que os conteúdos abordados em astronomia têm grande repercussão na psique humana. Como já mencionamos, isto se dá, possivelmente, por um lado, pelo caráter inacessível de muitos daqueles conteúdos à nossa manipulação e imaginação e, por outro lado, pela própria identificação do céu com aspectos ancestrais, que remetem, inclusive, à nossa própria origem. A psicologia transpessoal aproveita este impacto como uma predisposição para a pessoa transcender seus limites conceituais, para entregar-se ao movimento de transformação contínua do universo e descobrir sua identidade cósmica e infinita. A vivência destes dois elementos, cosmicidade e infinitude, apresenta influência positiva no estado de equilíbrio psicológico do indivíduo, facilitando, a nosso ver, uma convivência mais harmoniosa com o meio ambiente (terra e céu) e com os demais seres existentes. À medida que esse estado de consciência expandida vai sendo cada vez mais vivenciado pelos professores e alunos é possível que ocorra uma mudança profunda de valores, capaz de levar ao desenvolvimento de uma ética cósmica baseada na responsabilidade universal, que se inicia pelo desejo de incorruptibilidade pessoal, instância onde começamos a superar nossas próprias incoerências e nos melhorando enquanto humanos. Daí a importância de se cultivar a valorização e a vivência do autoconhecimento e da autotransformação na prática educacional aqui proposta, para sermos capazes de superar o empobrecimento do humano, causado pela fragmentação com ênfase no racional, e exercer a atitude transdisciplinar de compreender o mundo presente. Dessa forma, podemos vir a legitimar o pensamento de Vajpeyi (1995), de que a proposta de qualquer sistema educacional é, de alguma forma, promover o desenvolvimento integral do indivíduo, contextualizando o aprendizado, para que esclareça o aluno sobre si mesmo e as relações com o meio ambiente que o cerca. Neste trabalho incluímos o céu como parte do ambiente. 97 Concluímos que a aplicação da proposta transdisciplinar que denominamos de cosmoeducação contribuiu para a recuperação do contato dos professores envolvidos com as coisas do céu, bem como para o processo de expansão do estado de consciência dos mesmos, e promoveu potenciais mudanças na concepção de mundo dos professores. Tais mudanças, portanto, refletem-se diretamente nas suas vidas (conforme reforçado, inclusive, pelos relatos colhidos), implicando em mudanças também em suas práticas pedagógicas. E com isto completa-se, assim, um grande circuito, aberto, que cresce, em espiral, possibilitando a inclusão e o benefício dos muitos alunos, atuais e futuros, desses professores, nesse processo transformador de consciências e ações. 98 REFERÊNCIAS AVENI, A. Conversando com os planetas. São Paulo: Mercuryo, 1993. BACHELARD, G. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento. São Paulo: Martins Fontes, 2001. BARBOSA, D. A atitude transdisciplinar na educação escolar. In: FRIAÇA, Amâncio et al. (Org.). Educação e transdisciplinaridade II. São Paulo: TRIOM, 2005. P. 361-377 BERGER, M. V. B. Educação transpessoal: integrando o saber ao ser no processo educativo. 2001. 371f. Tese (Doutorado em Educação na Área de Concentração: Psicologia Educacional) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas,2001. BERTOLUCCI, E. Psicologia do sagrado: psicoterapia transpessoal. São Paulo: Agora,1991. BRASIL. Ministério da educação. Secretaria de Educação Fundamental. 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Ementa do Curso: • Percepção e realidade: o sujeito e sua concepção de mundo. • Consciência cósmica: integração entre o microcosmo e macrocosmo. • Astronomia cultural, meio ambiente e educação holística. • Psicologia transpessoal na educação: autoconhecimento e pedagogia. • Ensino de alguns conteúdos básicos de astronomia no nível fundamental: uma abordagem transdisciplinar. 107 APRESENTAÇÃO Trata-se de uma proposta vivencial-teórica cujo mote gerador são temas de astronomia, com a finalidade de refletir e ampliar a concepção de mundo e os valores vinculados a esta, como também observar a influência desta visão pessoal na prática pedagógica. JUSTIFICATIVA A motivação para realizar este trabalho surgiu da necessidade constatada de apresentar elementos capazes de enriquecer a prática pedagógica no século XXI. Nos dias de hoje muito se fala sobre a interdisciplinaridade, multidisciplinaridade e transdisciplinaridade no ensino, todavia, será que o professor foi formado com esta orientação? Partindo da premissa de que estas metodologias que primam pela inter-relação e interconexão de diversos elementos são frutos de uma maneira integrada de pensar e agir, elaboramos uma proposta vivencial-teórica onde a atuação do professor tem como referencial a experiência subjetiva e pessoal. Portanto, esta proposta foi pensada no sentido de contribuir para a formação do professor, tendo em vista o desenvolvimento integral do ser humano. OBJETIVO GERAL Conscientizar-se da concepção de mundo pessoal e influências desta na prática pedagógica. OBJETIVOS ESPECÍFICOS • Promover e valorizar a vivência pessoal do professor; • Refletir sobre a concepção de mundo adotada e a prática educacional no nível fundamental; • Apresentar elementos que possam facilitar uma ampliação desta concepção de mundo; • Discutir a aplicação dos conteúdos relativos ao eixo temático “terra e universo” na disciplina de ciências bem como em outras disciplinas; • Elaborar práticas educacionais inéditas visando o desenvolvimento de uma atuação mais integrada e integradora; • Favorecer e estimular o autoconhecimento. METODOLOGIA A filosofia norteadora de nosso trabalho habitual está fundamentada na adoção de uma abordagem holística e no uso de uma variedade de práticas pedagógicas centradas no aluno. No presente caso estaremos adentrando em um campo relativamente inexplorado e propondo vivências inéditas no contexto em questão. As práticas desenvolvidas são tão diversas quanto, por exemplo: redescobrir o céu diurno e noturno; integrar o ensino de astronomia a aspectos culturais regionais; modelar utensílios autóctones em argila; montar calendários lunares; representar sentimentos envolvidos na relação com o cosmo e com as origens através de mandalas pessoais; etc. 108 Estão previstas também a realização de avaliações ao início e ao final do curso para aferir como, e até que ponto, as atividades desenvolvidas com o enfoque proposto modificaram a visão de mundo e a prática profissional dos participantes. Com base nessas avaliações da efetividade das práticas feitas e de suas implicações nos aspectos cognitivos, afetivo-emocionais e comportamentais, nossa proposta será enriquecida e aperfeiçoada para posteriores aplicações da mesma em outras instâncias. INFORMAÇÕES GERAIS Carga horária deste Curso: no mínimo 40 horas. A obtenção do certificado de conclusão deste Curso dependerá: a) da participação dos professores-alunos nas atividades desenvolvidas em classe, em campo e solicitadas para casa; b) da avaliação que faremos das mesmas; e c) da presença em no mínimo 80% das aulas (isto é, presença em no mínimo 32 horas de aula). A discussão sobre aulas de campo e eventuais assuntos pendentes será feita em classe. BIBLIOGRAFIA BÁSICA 1. AVENI, Anthony Conversando com os Planetas. São Paulo: Mercuryo, 1993. 2. BOCZKO, Roberto Conceitos de Astronomia. São Paulo: Edgard Blücher, 1984. 3. CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida: Uma Nova Compreensão Científica dos Sistemas Vivos. São Paulo: Cultrix, 1996. 4. HUTCHISON, David Educação Ecológica: Idéias sobre Consciência Ambiental. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000. 5. JAFELICE, Luiz C. Nós e os Céus: um Enfoque Antropológico para o Ensino de Astronomia. In: Vianna, Deise M. et al. (Eds.). ENCONTRO DE PESQUISA EM ENSINO DE FÍSICA, VIII, 2002, Águas de Lindóia. Atas... São Paulo: Sociedade Brasileira de Física, 2002. (CD-ROM, arquivo: CO19_1.pdf) (oral; trabalho 20p) [Também disponível no endereço: http://www.sbf1.if.usp.br/eventos/epef/viii/PDFs/CO19_1.pdf (acesso em 28/01/03).] 6. _______ . Educação Holística, Consciência Ambiental e Astronomia Cultural. In: Cardoso, Walmir et al. (Eds.) Encontro Brasileiro para o Ensino de Astronomia, VIII, 2004, São Paulo. Atas ... São Paulo: Sociedade Brasileira de Ensino de Astronomia, 2004. (CD-ROM) (conferência de encerramento; trabalho 45p). 7. MARTINS, Roberto A. O universo: Teorias sobre sua Origem e Evolução. São Paulo: Moderna (Coleção Polêmica; 3a. edição), 1994. 8. MEDEIROS, Luziânia A. L.; JAFELICE, Luiz C. Cosmoeducação: uma Proposta para o Ensino de Astronomia. In: Cardoso, Walmir et al. (Eds.) Encontro Brasileiro para o Ensino de Astronomia, VIII, 2004, São Paulo. Atas ... São Paulo: Sociedade Brasileira de Ensino de Astronomia, 2004. (CD-ROM) (painel; trabalho 5p). 9. MORIN, Edgar Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2000a. 10. PANZERA, Arjuna C. Planetas e estrelas: um guia prático de carta celeste. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. 11. ROZMAN, Deborah Meditando com Crianças: a Arte da Concentração e Interiorização. Sào Paulo: Brasiliense, 1979. 12. SALÓ, Julia; BARBUY, Santiago terra, Água, Ar, Fogo: para uma Oficina-Escola Inicial. São Paulo: ECE, 1977. 109 13. SCHLÖGL, Emerli Expansão Criativa: por uma Pedagogia da Autodescoberta. Petrópolis: Vozes, 2000. 14. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Parâmetros Curriculares Nacionais – 1º e 2º ciclo. Brasília: MEC/SEF, 1997. 15. WEIL, Pierre A Consciência Cósmica: Introdução à Psicologia Transpessoal. Petrópolis: Vozes, 1989. 110 APÊNDICE B - Questionário inicial aplicado na 1ª aula do curso de extensão Laboratório em Cosmoeducação Aula 01 Redação Tema: “O que significa o universo para mim”. (Note: não é uma pergunta; é uma afirmação.) Questionário: Instrução: o questionário deve ser passado na forma de ditado, uma questão por vez. Ou anotar a questão na lousa e após todos responderem passar para a seguinte. 1) O que significa o céu para você? 2) Como você se sente quando olha para o céu? 3) O que lhe chama mais atenção no céu? 4) Com que freqüência você costuma olhar para o céu? 5) Quais as relações que você percebe entre o céu e a terra? 6) Quais as relações que você percebe entre tudo o que existe no cosmo? 7) Você acha que o universo teve uma origem ou não? Por quê e/ou como? 8) Qual o lugar ou o papel do ser humano no universo? 111 APÊNDICE C - Avaliação final do curso Avaliação do Curso de Extensão “Laboratório em Cosmoeducação” Público Alvo: Professores de 1º e 2º ciclo Nível Fundamental Local: Escola Estadual Alceu Amoroso Lima Período: 04/03-18/06/05 1-Informações Pessoais: Nome: ___________________________________________________________________________ End: ___________________________________________________________________________ Fone E-mail: ___________________________________________________________________________ Escolaridade: ( ) 2º Grau ( ) 3º Grau ( ) Pós-Graduação Instituição(s) onde concluiu o 2º grau, 3º grau e/ou pós-graduação. ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ Principais cursos que participou como aluno e/ou como professor: ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ Tempo que leciona nesta escola. Cite as duas escolas anteriores a esta e o período em que lecionou. ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ Ciclo: ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ 112 II - Avaliação do Curso propriamente dita: 1) Você lembra qual era sua concepção de mundo antes de ter qualquer aula deste curso? Descreva. 2) Durante o curso ocorreu alguma mudança na forma de você ver o mundo? 2.1) Se sim, quais mudanças você identifica? 2.2) Ainda se você respondeu sim, cite quais foram os elementos, conteúdos e/ou práticas que facilitaram essa mudança? 2.3) Se a resposta tiver sido não, por que você acha que não ocorreu nenhuma mudança? 3) O curso influenciou na sua prática pedagógica? Como? 4) Dê pelo menos dois exemplos de atividades que você pretende desenvolver em sala de aula, mas que não faria se não tivesse participado do curso? 5) Quanto à sua segurança nos conteúdos do Eixo-temático: terra-universo, que foram vistos no curso: (a) Ficou praticamente a mesma. (b) Confundiu algumas coisas que você já sabia. (c) Melhorou em alguns aspectos. (d) Melhorou bastante no geral. Comente sua resposta citando alguns dos conteúdos vistos no curso. 6) Liste os pontos positivos e negativos do curso. 7) Comentários: ª Na sua opinião o que faltou neste curso? ª Se o curso continuasse o que você gostaria de ver? ª Que conteúdo(s) ou aula(s) você mais gostou? E qual(is) você menos gostou? ª O que achou mais difícil de entender? O que achou mais fácil? 8) Sugestões: Na sua opinião o que poderia ser acrescentado para o melhoramento deste curso? 113 ANEXOS 114 ANEXO A: Descobertas sobre a lua Descobertas sobre a lua Verbalizações dos participantes quanto às suas descobertas sobre a lua feitas durante o curso de extensão Laboratório em Cosmoeducação (descobertas feitas por eles só através de suas observações diretas, sistemáticas e diárias da lua durante cerca de 28 dias, isto é, durante quase um ciclo lunar22, intervalo de tempo em que não houve nenhuma intervenção expositiva ou explicação da facilitadora sobre as questões que foram descobertas independentemente pelos alunos): 1. A lua caminha no céu de leste para oeste numa única noite; 2. No decorrer dos dias ela começa a nascer mais tarde; 3. A parte iluminada vai crescendo e depois diminuindo ao longo do ciclo; 4. A lua muda de posição numa única noite; 5. A lua muda de cor: um dia está mais amarelada, noutro mais branca; 6. A forma dela está decrescendo de cima para baixo; 7. O desenho que vemos na lua muda ao longo de uma mesma noite; 8. De um dia para outro a posição da lua mudou em relação a um grupo de estrelas. Como parte do trabalho feito com os professores, para análise e elaboração formal dessas descobertas, partimos das verbalizações acima e utilizamos algumas outras informações sobre o assunto retiradas do texto Descobertas sobre a lua, de Jafelice (2003c). Desse trabalho, elaboramos um documento sistematizando e resumindo as principais descobertas que eles fizeram sobre a lua e incluindo informações adicionais importantes sobre o tema, que não haviam vindo à tona ainda. Cada participante do curso recebeu uma cópia desse documento, o qual achei importante incluir aqui: 22 Esse foi o tempo em que quase se completou uma lunação, isto é, foi o tempo entre o dia em que os alunos começaram a acompanhar a lua no céu sistematicamente e o momento da discussão na data mais próxima a se completar uma lunação (que é período que a lua leva para repetir uma dada fase e que é de, aproximadamente, 29,5 dias). Como as discussões eram feitas nos dias de aula e, no nosso caso, os encontros eram semanais, tivemos cerca de 28 dias para coletar e trabalhar os relatos aqui reproduzidos. 115 1. A lua caminha no céu de leste para oeste numa única noite; 2. No decorrer dos dias ela começa a nascer mais tarde; ou seja, sua posição no céu muda, para um dado horário, de um dia para o outro, e notamos que ela se desloca de oeste para leste com o passar dos dias; 3. Este deslocamento contínuo da lua de oeste para leste pode ser comprovado se tomarmos como referência um grupo de estrelas qualquer próximo a ela; de um dia para outro a posição da lua mudou em relação a este grupo de estrelas; pode-se perceber que a lua vai se afastando um bom tanto de distância desse conjunto em direção ao leste de dia para dia; e para notar isto não é preciso olhar a lua sempre no mesmo horário; basta memorizar sua posição relativa ao conjunto de estrelas, pois se constatará que a lua se afastou para o leste em relação ao conjunto de estrelas; 4. O movimento de leste para oeste é semelhante ao de todos os astros (como o sol, as estrelas, os planetas, os cometas, etc.). Pode-se dizer que este movimento é aparente; uma vez que todos os astros o realizam. Na verdade é a terra que está executando o movimento real, que é de oeste para leste, porém não sentimos esse movimento, então parece que são os astros que estão se movimentando de leste para oeste; 5. O movimento aparente da lua, de leste para oeste, entre seu nascer e seu ocaso, é bem mais notável que seu movimento real, de oeste para leste, que, em geral, só percebemos entre um dia e outro; porém é preciso ter claro que tal movimento real, apesar de menos acentuado, está acontecendo, praticamente no mesmo ritmo, o tempo todo, ininterruptamente; 6. A parte iluminada vai crescendo e depois diminuindo ao longo do ciclo; ou seja, a parte iluminada muda o tempo todo; 7. A lua muda de posição numa única noite; isso diz respeito à “inclinação” de suas “pontinhas” iluminadas ou das suas manchas. Enquanto ela percorre o céu, do nascente para o poente, a posição relativa entre suas partes iluminada e escura muda, uma começa “em cima” da outra e termina “embaixo”; 116 8. Observou-se mudança de cor: “um dia está mais amarelada, noutro mais branca”. A lua muda de coloração de dia para dia, ou mesmo durante um mesmo dia, dependendo do momento em que a vemos em seu caminho no céu. Isso se deve às camadas da atmosfera; 9. Às vezes se forma uma roda luminosa, um arco bem circular, em volta dela, com ela bem no centro; este fenômeno é conhecido popularmente como “bolandeira” (arco-íris da lua); 10. O desenho que vemos na lua muda ao longo de uma mesma noite, devido à parte iluminada que muda de inclinação. Porém, as manchas da lua continuam as mesmas de dia para dia; isto é, a face da lua que está voltada para nós, na terra, é sempre a mesma; isto é, muda a fração dessa face que podemos enxergar, porque parte dessa face não fica iluminada, mas conforme a lua vai ficando cheia, dá para ver todas as manchas dessa face da lua, e são sempre as mesmas o mês todo; 11. A forma dela está decrescendo de cima para baixo. Em que fase ela está quando isso acontece? Enquanto você ainda não está habituado aos ciclos lunares, só dá para saber a fase quando você a observa pelo menos dois dias consecutivos, ou próximos um do outro; aí é possível comparar as partes iluminadas dos dois dias e concluir se tal parte está aumentando (e, portanto a lua está na fase crescente, ou indo de nova para crescente, ou de crescente para cheia) ou está diminuindo (e, portanto ela está na fase minguante, ou indo de cheia para minguante ou de minguante para nova); 12. Quando a parte iluminada da lua está aumentando, nós a enxergamos pela tarde e na primeira metade da noite do mesmo dia (isto é, a parte da noite entre 18hs e meia- noite, cada dia em uma “altura” diferente, para um mesmo horário de observação); quando sua parte iluminada está diminuindo, nós a enxergamos na segunda metade da noite (isto é, a parte da noite entre meia-noite e 6h, também cada dia em uma altura diferente, para um mesmo horário de observação) e pela manhã seguinte; 13. A lua aparece, e bastante, durante o dia (isto é, aparece durante muitos dias e grande parte do dia claro ao longo de um mês, apesar de ser considerada o astro da noite ou a rainha da noite); 117 14. Ela não aparece no céu pelo menos uns três dias por mês; 15. Os formatos da lua nas fases crescente e minguante são parecidos, mas são invertidos, em relação à direção oeste, por exemplo, e além disto tais luas aparecem no céu, para uma dada altura, em horários diferentes. Durante a parte inicial da noite a fase crescente se assemelha a letra “C” e, umas três semanas depois, durante a parte final da noite, mais ou menos à mesma “altura” em que a lua crescente foi vista antes, a fase minguante se assemelha à “barriga” da letra “D”; 16. A lua tem infinitas faces, embora tenha sido estabelecida pelos gregos a existência de quatro fases para melhor organizar; contudo, é só observá-la todas as noites para descobrir que ela está mudando a todo o momento; ATENÇÃO: Que estes conhecimentos mais objetivos sirvam para aprofundar a sua relação com a lua, sem, entretanto, deixar de lado a subjetividade e as boas sensações que a contemplação desse astro pode promover no seu interior e irradiar para o meio externo. O que falta descobrir sobre a lua ainda? Muita coisa. Continue observando-a! 118 ANEXO B: Texto coletivo sobre o início de tudo que existe, criado pelos participantes do curso de extensão “Laboratório em Cosmoeducação” Certezas e Dúvidas No princípio não havia nada. Deus fez a terra. A terra vivia em trevas. O homem surgiu e começou a modificar a natureza e com isso surgiram coisas belas. Deus percebeu que em trevas o homem não podia viver, por isso criou o sol para governar o dia e a lua para governar a noite. Foi Deus que fez a separação entre a terra e as águas. Com o passar do tempo, o homem foi modificando tudo que Deus criou, os céus e as estrelas. Porém, há quem diga que tudo surgiu de uma grande explosão, a qual deu origem a tudo o que existe no céu e na terra. Hoje, estudos continuam sendo feitos sobre a origem do mundo e, mesmo com todos esses estudos, até hoje não se chegou a uma conclusão ou verdade sobre tal fato. A dúvida continua...