1 ORDEM E DISCIPLINA, SENTIMENTOS E EMOÇÕES: UMA HISTÓRIA DA PENITENCIÁRIA DE ALCAÇUZ LAÍS LUZ DE MENEZES 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS LINHA DE PESQUISA II: CULTURA, PODER E REPRESENTAÇOES ESPACIAIS ORDEM E DISCIPLINA, SENTIMENTOS E EMOÇÕES: UMA HISTÓRIA DA PENITENCIÁRIA DE ALCAÇUZ LAÍS LUZ DE MENEZES NATAL/RN 2016 3 LAÍS LUZ DE MENEZES ORDEM E DISCIPLINA, SENTIMENTOS E EMOÇÕES: UMA HISTÓRIA DA PENITENCIÁRIA DE ALCAÇUZ Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre no Curso de Pós-graduação em História, Área de Concentração em História e Espaços, Linha de pesquisa II, Cultura, Poder e Representações Espaciais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação do Prof. Dr. Sebastião Leal Ferreira Vargas Netto. . NATAL/RN 2016 4 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA Menezes, Laís Luz de. Ordem e disciplina, sentimentos e emoções : uma história da Penitenciária de Alcaçuz / Laís Luz de Menezes. - 2016. 207 f.: il. Dissertação mestrado - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em História, 2016. Orientador: Prof. Dr. Sebastião Leal Ferreira Vargas Netto. 1. História oral. 2. Prisões - Rio Grande do Norte. 3. Penitenciária Estadual de Alcaçuz. I. Vargas Netto, Sebastião Leal Ferreira. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 343.811(813.2) 5 LAÍS LUZ DE MENEZES ORDEM E DISCIPLINA, SENTIMENTOS E EMOÇÕES: UMA HISTÓRIA DA PENITENCIÁRIA DE ALCAÇUZ Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela comissão formada pelos professores: ________________________________________ Dr. Sebastião Ferreira Leal Vargas Netto Orientador _________________________________________ Dr. Ângela Meirelles de Oliveira Avaliador Externo ao Programa __________________________________________ Dr. Henrique Alonso A. Rodrigues Pereira Avaliador Interno ao Programa ___________________________________________ Dr. Raimundo Nonato Araújo da Rocha Suplente Natal, 2016 6 Aos meus colaboradores. 7 AGRADECIMENTOS Finalizada a dissertação. Sinto um alívio imenso. Escrevê-la foi prazeroso, mas sem dúvida alguma, foi um trabalho bastante árduo e estressante. Ainda bem que para construí-lo, tive a ajuda de algumas pessoas muito importantes, que me forneceram o apoio essencial nessa jornada. Primeiramente, gostaria de agradecer ao meu orientador Sebastião Vargas, que me incentivou desde a época da graduação a buscar um tema de pesquisa no ambiente prisional, já que esse era também o meu ambiente de trabalho, o que poderia tornar mais fácil algumas etapas da pesquisa. Agradeço a sua imensa generosidade em aceitar me orientar, mesmo o meu trabalho não estando ligado diretamente à sua área de pesquisa. Ele simplesmente acreditou que daria certo e embarcamos juntos nessa jornada pelo complexo universo da prisão. Aos meus colaboradores, seria pouco agradecer com um simples “obrigada”. MUITÍSSIMO OBRIGADA. Sem as histórias narradas por vocês, esse trabalho jamais poderia ter se concretizado. Aos membros da banca de qualificação e de defesa, agradeço pela presença na banca e por todas as contribuições dadas para o desenvolvimento da pesquisa. Aos professores das disciplinas da pós-graduação – Durval, Santiago, Renato, Arrais e Margarida – por ampliar os meus conhecimentos a respeito da relação História & Espaços. Aos professores da graduação, pelos conhecimentos transmitidos e por despertar em mim a paixão pelo ofício do historiador, em especial à Maria Emília, que me introduziu no mundo da pesquisa. Aos funcionários do PPGH/UFRN, especialmente ao secretário Luan, sempre pronto a prestar informações e “quebrar galhos”. Ao CAPES que proporcionou o meu intercâmbio de pesquisa para o Rio de Janeiro e São Paulo, financiando a viagem através do Programa Nacional de Cooperação Acadêmica – Novas Fronteiras (PROCAD-NF). 8 Aos meus colegas de turma do PPGH, em especial a Gildy e André, por todas as ideias trocadas e também pelas idas ao “Bar de Mãe” após dias estressantes de aulas e pesquisas. Ao amigo Arlan, por ter me possibilitado o acesso a algumas fontes para o desenvolvimento da pesquisa. À Francisca de Paiva Forte, educadora do universo prisional, que se solidarizou com a minha pesquisa e compartilhou comigo o resultado do seu trabalho feito com os internos da penitenciária de Alcaçuz. Ao amigo Leonardo Santos, também pesquisador do universo prisional, pelas conversas e referências trocadas. Aos amigos historiadores: Priscilla, Narizinho, Cecília e Nilsinho. Obrigada pelas discussões acadêmicas muito proveitosas e pelas opiniões sempre sinceras. Obrigada também pelos diversos momentos de descontração que só nós sabemos fazer. Agradeço, em especial, a Narizinho pela ajuda na transcrição das entrevistas. Às amigas de trabalho da penitenciária, agradeço muito pelas vezes que trocaram comigo os dias de serviço para que eu pudesse comparecer às aulas do mestrado, congressos ou me dedicar à pesquisa. Ao meu companheiro Ari, por sempre me incentivar em prosseguir na vida acadêmica e pela sua paciência em ler trechos da dissertação ou escutar a minha leitura. Aos meus amigos e familiares, pela compreensão em respeitar os meus momentos de isolamento para a escrita desse trabalho. Aos meus cachorros, Pepito, Pituca e Kika, por me proporcionar alegrias em meio ao estresse e, especialmente, à Kika, pela companhia silenciosa aos meus pés, enquanto eu me dedicava à construção deste trabalho. 9 Somos todos prisioneros. Quien no está preso de La necesidad, está preso Del miedo”. Eduardo Galeano. 10 RESUMO Neste trabalho, pretende-se analisar o espaço da Penitenciária Estadual de Alcaçuz (PEA), inaugurada no ano de 1998 e localizada no município de Nísia Floresta (RN), a qual abriga uma média de mil homens em cumprimento de pena privativa de liberdade no regime fechado. No tocante à contribuição teórica, utilizaremos principalmente os autores Michel Foucault (instituição disciplinar), Augusto Thompson (sistema de poder), Erving Goffman (instituição total), Yi-Fu Tuan (lugar) e Michel de Certeau (subjetividade). Portanto, pretendemos demonstrar que a penitenciária é um espaço multifacetado, ora pode ser enxergado como um espaço de objetividades, no qual impera a ordem e a disciplina, ora pode ser enxergada como um lugar permeado pelas subjetividades de seus integrantes (agentes penitenciários, apenados e visitantes). Nesse sentido, enxergamos a existência de três lugares de destaque: o lugar de reencontro (pela perspectiva dos visitantes), o lugar do aprisionamento (pela perspectiva do apenado) e o lugar de trabalho (pela perspectiva do agente penitenciário). Buscamos, assim, problematizar esses lugares, nos questionando como esses sujeitos vêm ocupando e se apropriando do espaço prisional? E o que esse espaço vem produzindo nesses sujeitos? Para o desenvolvimento do trabalho foram utilizadas, além de outras fontes, entrevistas colhidas com agentes, apenados e visitantes, utilizando a metodologia da história oral. PALAVRAS-CHAVE: História Oral; História da prisão no Rio Grande do Norte; Espaço Prisional. 11 ABSTRACT In this work, we intend to analyze the space of the State Penitentiary Alcaçuz (PEA), which opened in 1998 and located in the county of Nisia Floresta (RN), which houses an average of thousand men in fulfillment of deprivation of liberty in closed regime. With regard to theoretical contribution, we will use mainly the authors Michel Foucault (disciplinary institution), Augusto Thompson (power system), Erving Goffman (total institution), Yi-Fu Tuan (place) and Michel de Certeau (subjectivity). Therefore, we intend to demonstrate that the prison is a multifaceted space, sometimes can be understood as an space of objectivities, where order and discipline prevails, sometimes can be understood as a place permeated by subjectivity of its members (prison guards, inmates and visitors). In this sense, we see the existence of three prominent places: the place of reunion (from the perspective of visitors), the place of imprisonment (from the perspective of inmates) and the place of work (from the perspective of prison guard). Therefore, we seek interrogate these places, questioning how these people have been occupying and appropriating the prison space? And what this space has been producing in these people? For the development of the work were used in addition to other sources, interviews with prison guards, inmates and visitors, using the methodology of oral history. KEYMORDS: Oral History, Prison History in Rio Grande do Norte; Prison Space. 12 SUMÁRIO INTRODUÇÃO...........................................................................................................13 PARTE I – A pesquisa: caminhos percorridos.........................................................22 Capítulo 1: As formas e os meios da pesquisa...........................................................23 1.1. Escolha do tema......................................................................................................23 1.2. Fontes e metodologia..............................................................................................24 1.3. Uma “história viva”: debates entre história e memória...........................................28 1.4. Historiografia das prisões: diversos olhares sobre a prisão.....................................33 PARTE II – Panorama do sistema prisional brasileiro.............................................44 Capítulo 2: O sistema penitenciário atual: encarceramento em massa...................45 2.1. O Brasil e sua política criminal: influências............................................................45 2.2. Consequência da política criminal brasileira: hiperencarceramento........................48 2.3. Reformas legislativas e institucionais: caos no sistema prisional............................51 2.4. Soluções para o hiperencarceramento......................................................................64 2.5. Perfil do preso brasileiro..........................................................................................66 2.6. A legislação penitenciária no Brasil.........................................................................71 Capítulo 3: Raízes do sistema penitenciário brasileiro..............................................76 3.1. O sistema penitenciário do Rio Grande do Norte: as primeiras prisões e as penas aplicadas na Colônia e no Império..................................................................................76 3.2. A República e a evolução do sistema penitenciário norte-rio-grandense.................89 PARTE III – Entre espaços e lugares: uma análise espacial da Penitenciária de Alcaçuz............................................................................................................................96 Capítulo 4: A Penitenciária de Alcaçuz e seus espaços..............................................97 4.1. O espaço externo: localização e arredores................................................................97 4.2. O espaço interno: descrição dos espaços/lugares da penitenciária...........................99 4.2.1. Os pavilhões...............................................................................................99 4.2.2. A adaptação.............................................................................................104 4.2.3. O setor dos trabalhadores........................................................................106 4.2.4. “Minha Cela, Minha Vida”.....................................................................108 4.2.5. Horizonte.................................................................................................110 4.2.6. A parte administrativa.............................................................................110 4.2.6.1. A recepção................................................................................111 4.2.6.2. As salas da chefia, o setor administrativo e jurídico................116 4.2.6.3. O parlatório..............................................................................116 4.2.6.4. Os setores médico e odontológico...........................................117 4.2.6.5. O setor de nutrição e o refeitório.............................................118 4.2.6.6. Os alojamentos dos agentes.....................................................118 Capítulo 5: A penitenciária e suas rotinas...............................................................120 5.1. O dia a dia dos internos.........................................................................................120 5.2. A visita e a “temida” revista íntima.......................................................................123 5.2.1. A expectativa e a preparação para a visita..............................................123 5.2.2. A entrada na penitenciária: intermináveis filas.......................................130 13 5.2.3. Finalmente: entrando na sala de revista íntima.......................................135 5.3. Conflitos no espaço: rebeliões, fugas e mortes......................................................143 5.3.1. Rebeliões: “revoltados pra caralho”........................................................144 5.3.2. Em busca da liberdade: o histórico de fugas..........................................154 5.3.3. Mortes.....................................................................................................158 Capítulo 6: Entre espaços e lugares, sentimentos e emoções: subjetividades e a questão espacial...........................................................................................................163 6.1. O lugar de reencontro............................................................................................164 6.2. O lugar de trabalho................................................................................................170 6.3. O lugar de aprisionamento.....................................................................................176 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................186 REFERÊNCIAS.........................................................................................................188 ANEXOS......................................................................................................................200 14 INTRODUÇÃO Depois de 23 anos frequentando cadeias, não faz sentido especular como eu seria sem ter vivido essa experiência; o homem é o conjunto dos acontecimentos armazenados em sua memória e daqueles que relegou ao esquecimento. Apesar da ressalva, tenho certeza de que seria mais ingênuo e mais simplório. A maturidade talvez não me tivesse trazido com tanta clareza a percepção de que entre o bem e o mal existe uma zona cinzenta semelhante àquela que separa os bons dos maus, os generosos dos egocêntricos. Conheceria muito menos meu país, as grandezas e mesquinharias da sociedade em que vivo, teria aprendido menos medicina, perdido as demonstrações de solidariedade a que assisti, deixado de ver a que níveis pode chegar o sofrimento, a restrição de espaço, a dor física, a perversidade, a falta de caráter, a violência contra o mais fraco e o desprezo pela vida dos outros. Faria uma ideia muito mais rasa da complexidade da alma humana 1 . (Dráuzio Varella, Carcereiros). A epígrafe que abre este texto introdutório mostra a relação do médico Dráuzio Varella 2 com o espaço do cárcere. Lendo esse trecho de sua obra, imediatamente me senti tocada e percebi que as suas palavras se aplicavam perfeitamente ao que penso sobre a minha relação com o espaço prisional. Desde 2010, sou agente penitenciária 3 – não convivi tanto nesse ambiente como Dráuzio – mas já consigo partilhar dos mesmos sentimentos por ele expressos. A penitenciária é uma instituição muito complexa. Do mesmo modo que é possível presenciar nesse espaço situações degradantes e humilhantes e visualizar a pior face do ser humano é também possível enxergar demonstrações de afeto, carinho e sensibilidade, nos mostrando que mesmo num ambiente tão crítico, o ser humano pode surpreender e ter atitudes jamais esperadas. Essa é a complexidade da alma humana a que se refere o médico. Realmente, se eu nunca tivesse frequentado um presídio, a minha ideia da complexidade humana seria muito rasa. O meu contato com o ambiente prisional se deu 1 VARELLA, Drauzio. Carcereiros. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 2 Dráuzio Varella, médico paulista, iniciou em 1989 um trabalho voluntário de combate à AIDS na Penitenciária do Carandiru e lá trabalhou por mais de dez anos. As experiências obtidas nesses anos de contato com o ambiente prisional são narradas nos livros Estação Carandiru e Carcereiros. 3 Desempenho o cargo de agente penitenciário na Penitenciária de Alcaçuz, que será o objeto de investigação e cenário desta pesquisa. 15 por necessidade. Atraída pela estabilidade de um cargo público, resolvi prestar o concurso. Ressalto que esse nunca foi o meu sonho. Dificilmente alguém anseia ocupar tal cargo. Pelo contrário, os temores são grandes e assim foi comigo. Ouvi de diversos amigos e familiares que deveria desistir, mas segui em frente, abracei a minha escolha e não me arrependi. Pelo contrário, sou grata por ter tido a oportunidade de entrar em contato com esse ambiente, o que possibilitou a minha relação com uma gama de sujeitos e suas complexidades. Assim, a partir das minhas experiências e daquilo que presenciei no presídio, tive um grande aprendizado. Vendo a dor, me fortaleci. Amadureci. Fazer uma pesquisa sobre o sistema prisional mostra-se muito importante devido à situação que estamos vivendo atualmente, caracterizada por um encarceramento em massa, dado o aumento notório da população carcerária brasileira a cada ano. Observamos no Brasil a adoção de premissas neoliberais, o que tem tornado o país autoritário no que se refere ao controle dos crimes. Identifica-se um recrudescimento da punição, caracterizado pelo aumento das penas, cárceres sempre super populosos e graves violações aos direitos humanos. Normalmente, a condição de vida encontrada numa prisão é inferior à situação mais miserável da cidade ou do estado. O modelo de penalidade sob a égide do neoliberalismo, segundo Wacquant 4 , pretende remediar com um “mais Estado” policial e penitenciário o “menor Estado” econômico e social, que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países. Ele afirma ainda que o sistema carcerário contemporâneo pune com a função de banir e excluir. O cárcere seria uma fábrica de imobilidade, um local de contenção para lixo humano contemporâneo – pobres e miseráveis – pelo maior tempo possível. Além disso, foi aprovada na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 171/93 5 para redução da maioridade penal no caso de crimes hediondos, homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte, que contou com grande apoio da mídia e da sociedade civil. Para essa PEC ser aprovada definitivamente, ainda precisa ser votada no Senado. Se a aprovação se confirmar nessa Casa Legislativa, 4 WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 5 Essa PEC tinha como proposta a alteração da redação do art. 228 da Constituição Federal, a fim de tornar imputável penalmente o maior de dezesseis anos. Sofreu algumas alterações e foi aprovada a redução da maioridade penal somente para um determinado rol de crimes. 16 certamente contribuirá para o aumento do número de encarcerados. Aliado a isso, ainda destacam-se os debates acerca das privatizações dos presídios, que também têm se mostrado como um fator de aumento das prisões. O retrato do cárcere brasileiro não costuma sensibilizar, é uma realidade que só piora. Grande parte da sociedade, muitas vezes insuflada pela mídia, clama pela repressão dos crimes, por mais punição e apoia políticas mais duras. Portanto, com esta pesquisa, ao expor o contexto de uma penitenciária em particular, propomos também uma reflexão sobre o sistema no qual ela se encontra inserida, seus rumos, seus problemas, suas crises. Sistema esse que tem se mostrado extremamente falido, excludente e desagregador. Ligadas às condições degradantes e desumanas dos presídios surgem rebeliões e fugas, que aconteceram com frequência nos últimos anos e foram presença constante na mídia nacional e local. Podemos citar como exemplo o caso do Complexo de Pedrinhas no Maranhão 6 e as rebeliões e fugas nas penitenciárias do estado do Rio Grande do Norte 7 , com destaque para as ocorridas no presídio objeto deste estudo, que é o maior do estado. Inclusive, durante a escrita deste trabalho alguns caminhos precisaram ser modificados, devido às diversas rebeliões ocorridas na Penitenciária de Alcaçuz. Foi afetada principalmente a realização das entrevistas com apenados e visitantes, que ficou paralisada por alguns meses, até que as rotinas no presídio se normalizaram. Dada a grande visibilidade dessas revoltas, resolvemos apresentar uma narrativa do acontecido pelo “olhar” de quem esteve lá dentro e também fazer uma reflexão sobre os motivos que levaram esses homens a se rebelar. Um ambiente como um presídio abre infindas possibilidades de pesquisa. Certamente, ao investigar essa instituição prisional, poderíamos ter seguido diversos rumos, mas escolhemos contar uma história da Penitenciária de Alcaçuz com foco na questão do espaço, devido às exigências do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGH/UFRN) ao qual este trabalho está vinculado, que centra as suas pesquisas na discussão das conexões entre História e Espaços. 6 O Complexo de Pedrinhas passou por uma série de rebeliões entre os meses de janeiro e setembro de 2014, com registro de muitos feridos e mortes violentas. 7 O estado do RN vivenciou um verdadeiro caos no seu sistema prisional, que teve início no mês de março de 2015, ocasionado por uma sequência de rebeliões e fugas em seus presídios, sendo a situação mais crítica a da Penitenciária de Alcaçuz, que até agora ainda não foi totalmente controlada pelas autoridades. 17 O espaço é uma categoria central nas pesquisas de cunho historiográfico. Qualquer acontecimento histórico possui uma dimensão espacial, isto é, se refere ou se remete a um dado recorte espacial. O Programa de Pós-Graduação em História da UFRN busca incentivar esses estudos, pois detectou que este foco de análise tem sido um pouco negligenciado na produção do conhecimento histórico: A ênfase dada à dimensão temporal, que caracteriza a disciplina histórica, tem levado, muitas vezes, a que o espaço seja pensado como um a priori, um dado prévio, um “já lá” que não precisa ser pensado historicamente. Cidade ou campo, passado longínquo ou passado próximo – o espaço é objeto de produção e de apropriação: decisivo nas lutas sociais, participa da segregação social, é suporte de identidades, registro de relações sociais, políticas, culturais ou econômicas, consagração do império da mercadoria ou das experiências espirituais, tela onde se inscrevem os símbolos das elites e de onde elas são derrubadas, centro das utopias, documento do entusiasmo com o progresso. Todos são espaços e nascem da relação necessária entre tempo e extensão, ou da necessidade imperiosa de que haja espaço para que o tempo corra. Numa palavra, para que haja história 8 . Buscamos, então, centrar a discussão em torno de duas questões: como os sujeitos vêm ocupando e se apropriando do espaço da penitenciária de Alcaçuz? O que esse espaço vem produzindo nesses sujeitos? Os sujeitos a que nos referimos são os que integram esse espaço: agentes penitenciários, apenados e visitantes. Para tanto, o recorte temporal a ser trabalhado neste estudo tem início no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, mais precisamente quando se iniciou a construção da penitenciária – inaugurada no dia 26 de março de 1998 – a fim de que seja compreendido o contexto no qual foi edificada. Tal recorte se estenderá até o tempo presente, pois serão estudadas as práticas que já ocorreram e as que estão sendo realizadas nesse espaço. Bem como os usos, apropriações e significações atribuídas ao espaço pelos sujeitos que o ocupam. Por apropriação entende-se o modo como os sujeitos possuem acesso a esse espaço. No caso dos agentes penitenciários e funcionários da parte administrativa da instituição, esse acesso se dá em razão das atividades laborais lá desempenhadas. Já o 8 Texto presente na apresentação do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGH/UFRN). Disponível em: http://www.cchla.ufrn.br/ppgh. 18 acesso dos apenados ocorre de maneira coercitiva, uma vez que são encaminhados à penitenciária e lá deverão obrigatoriamente permanecer sob a custódia do Estado até o final do cumprimento de suas penas. O acesso dos visitantes é espontâneo, bastando que solicitem à instituição e comprovem o vínculo familiar ou afetivo com o recluso, sendo justificado pelo anseio em reencontrar o encarcerado. Durante o processo de escrita, fui questionada quanto ao meu envolvimento com o objeto de estudo, pelo fato de eu trabalhar lá, o que poderia trazer problemas para o bom andamento da pesquisa. Desde o início, sempre fui enfática em afirmar que via a minha relação com o objeto mais como um elemento facilitador, do que como um obstáculo. Afinal, como eu trabalho no ambiente prisional, não precisei enfrentar trâmites burocráticos para ter acesso a ele. Tive mais abertura do que qualquer outro pesquisador para conversar com as pessoas, circular, observar, fotografar. Quanto aos obstáculos, questionavam a minha parcialidade: considero que uma total imparcialidade na pesquisa é impossível, afinal, o pesquisador tem os seus próprios sentimentos e opiniões. Todavia, deve tomar os devidos cuidados para que isso não interfira negativamente nos resultados de seu trabalho. Ou seja, deve sempre exercer o senso crítico e emitir conclusões pautadas em dados teóricos e empíricos. O fato de eu trabalhar nessa penitenciária não me garante a compreensão dos vários níveis da instituição penitenciária. O agente penitenciário para compreender a instituição não pode se valer somente da experiência cotidiana que tem nesse espaço, precisa se valer de outros dados, outras fontes. Foi isso que eu fiz. Então, para realizar esse processo de compreensão da realidade, fiz uso do conceito metafórico da imaginação sociológica 9 , que corresponde ao ato que nos permite ir além das nossas experiências e observações pessoais para compreender temas públicos de maior amplitude. A imaginação sociológica nos solicita, especialmente, que sejamos capazes de pensar nos distanciando das rotinas familiares de nossas vidas cotidianas para poder vê-las como se fossem algo novo. Para o desenvolvimento da pesquisa, enxergarmos a penitenciária sob duas perspectivas espaciais. O conceito de espaço na sua dimensão objetiva, física, material: assim, pretendemos apresentar uma descrição desse espaço prisional, das rotinas lá desempenhadas, enfim, uma história do cotidiano dessa penitenciária, de suas 9 MILLS, Wright C. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975. 19 continuidades e descontinuidades, mudanças e permanências. Como a penitenciária tem uma fundação recente e está em pleno funcionamento, muitas dessas histórias aconteceram há pouco ou ainda estão acontecendo. Logo, a história aqui contada é, em essência, uma história do tempo presente 10 . Utilizaremos também o conceito de espaço na sua dimensão subjetiva, simbólica: espaço enquanto construção humana, edificado a partir das experiências que os sujeitos vivenciam nele, o que denominaremos de “lugar”. Buscamos, portanto, apresentar as relações que os sujeitos desenvolvem com esse espaço prisional, como são afetados por essas relações e os sentimentos e emoções despertadas. Entenderemos, portanto, a penitenciária como um espaço que pode ser enxergado por duas dimensões. Na sua dimensão objetiva ou física, que diz respeito a toda a sua estrutura material, aos diversos setores que estão agrupados neste espaço físico. Ao tratar da penitenciária sob essa dimensão usaremos a terminologia “espaço” e estaremos enxergando a penitenciária como um espaço de ordem e disciplina, que nos permitem conceituá-la como um “espaço disciplinar”, uma “instituição total” e um “sistema social de poder”, de acordo com o suporte teórico dos conceitos trabalhados por Goffman 11 , Foucault 12 , e Thompson 13 . Já quando estivermos nos referindo ao espaço da penitenciária na sua dimensão subjetiva ou simbólica, o nomearemos de “lugar”, valendo-nos das contribuições teóricas de Tuan 14 e Certeau 15 , que trazem a discussão em torno do espaço para o plano das subjetividades. Ao centrarmos nossas discussões no plano simbólico, identificamos a existência de três lugares de destaque: o lugar de reencontro (pela perspectiva dos visitantes), o lugar de aprisionamento (pela perspectiva do apenado) e o lugar de trabalho (pela perspectiva do agente penitenciário). Ainda nessa lógica do simbólico, entenderemos a penitenciária enquanto uma “paisagem do medo16”, devido aos sentimentos que esse lugar provoca nas pessoas. 10 Ver: PÔRTO JUNIOR, Gilson (Org.). História do tempo presente. Bauru: EDUSC, 2007; CHAUVEAU, Agnès; TÉTARD, Philippe (Orgs.). Questões para a história do tempo presente. Bauru: EDUSC, 1999. 11 GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Editora Perspectiva, 1961. 12 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. 13 THOMPSON, Augusto. A questão penitenciária. Rio de Janeiro: Forense, 1998. 14 TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983 15 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998. 16 TUAN, Yi-Fu. Paisagens do medo. São Paulo: Editora UNESP, 2005. 20 Experimente imaginar-se preso. Para grande parte dos sujeitos as sensações não seriam boas. Pânico. Agonia. Desespero. Claustrofobia. Medo. Não precisa nem recorrer à imaginação, basta vivenciar a sensação de passar perto de um presídio. Muitas pessoas “tremem” diante dessa circunstância. Com relação a esses casos, posso citar uma experiência pessoal: a penitenciária em que trabalho fica no caminho que dá acesso a uma lagoa. Para chegar até lá, é necessário passar muito próximo dos muros da prisão, já que é necessário contorná-la. Nas minhas diversas idas à lagoa com amigos, não foi raro escutar relatos de desconforto e medo por estar tão perto de um presídio. Podemos ligar esta pesquisa ao campo da História Cultural, já que aborda aspectos cotidianos, sociais e culturais do espaço prisional e de seus sujeitos, sendo oportuno também destacar que essa pesquisa por abordar a temática dos “encarcerados”, trabalha, assim, a questão das minorias e dos marginalizados, que é um dos interesses da História Antropológica 17 . As fontes principais utilizadas foram as entrevistas quando demos voz para que os agentes penitenciários, visitantes e presos pudessem contar um pouco da sua relação com o espaço da penitenciária e dos fatos cotidianos que lá acontecem. Além disso, utilizamos cordéis produzidos pelos internos, os quais narram o cotidiano na instituição. Por se tratar de uma história muito atual, as fontes documentais que nos contam a história dessa penitenciária dizem respeito principalmente aos jornais e alguns documentos legais, que também foram utilizados por nós na construção da pesquisa. Além da graduação em História, sou graduada em Direito e exerci a advocacia por um curto período, portanto, esse conhecimento foi de muita utilidade no trato com termos jurídicos. Ao narrar essa história da penitenciária de Alcaçuz, buscamos problematizar os documentos sejam orais ou escritos, sempre com um olhar crítico, que é o papel do historiador. Nessa narrativa, identificamos uma aproximação entre história e 17 A aproximação com a antropologia permitiu a incorporação de novas fontes à investigação histórica. Através do intenso intercâmbio com a antropologia, mitos, rituais e imagens foram transformados em fontes históricas. O uso de fontes ligadas à repressão, como da inquisição, inquéritos policiais e processos judiciais, tem se mostrado extremamente fértil. Ver: CASTRO, Hebe. “História Social” In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Domínios da História: Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 45-58. 21 jornalismo 18 , na medida em que foi feito um relato de fatos acontecidos no espaço do presídio e alguns desses fatos foram contados na medida em que aconteciam. Também houve um diálogo da história com as ciências sociais, enquanto historiadora da oralidade, fiz uso dos ensinamentos da sociologia e da antropologia, no trato e compreensão dos sujeitos e nas técnicas etnográficas de observação do cotidiano. Não foi estabelecida uma hierarquia entre os documentos, por exemplo, não foi feita diferenciação entre um artigo de jornal e a fala de um entrevistado. Todos eles foram entendidos como discursos produtores da realidade e as condições de produção de cada um deles foram levadas em consideração ao analisá-los. Esses documentos não foram utilizados como prova absoluta da “verdade”, mas como um material a ser trabalhado, interrogado, problematizado. Para esse trabalho de problematização, fizemos uso de uma vasta bibliografia, nos valendo, assim, da contribuição de diversas obras e trabalhos acadêmicos, que nos capacitou a realizar esse trabalho de questionamento do documento. Contribuíram muito nesse processo as disciplinas cursadas no primeiro ano do mestrado. Também foi de grande contribuição o intercâmbio que fiz no Rio de Janeiro – proporcionado pelo Programa Nacional de Cooperação Acadêmica, Novas Fronteiras (PROCAD-NF) – onde pude realizar um levantamento bibliográfico nos acervos das bibliotecas da UERJ, UFRJ e UFF. Além disso, tive a oportunidade de participar do XVI Simpósio Regional de História – Saberes e práticas científicas, realizado no período de 28 de julho a 01 de agosto de 2014, na Universidade Santa Úrsula. Nesse evento apresentei a comunicação oral intitulada: "Por dentro da instituição prisional: uma análise do espaço carcerário e de seus sujeitos", que era o meu projeto para esta pesquisa e recebi muitas contribuições dos participantes do evento para incorporar ao trabalho, principalmente dos coordenadores do simpósio o Dr. Felipe Santos Magalhães, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e a Dra. Marilene Antunes Sant‟anna, da Universidade Gama Filho. Este trabalho encontra-se dividido em três partes. A primeira apresenta os caminhos percorridos para a confecção da pesquisa, assim, de início, expusemos as nossas escolhas teórico-metodológicas, apresentamos a problemática, a discussão 18 Para saber mais ver: RIOUX, Jean-Pierre. “Entre história e jornalismo”. In: CHAUVEAU, Agnès; TÉTARD, Philippe (Orgs.). Questões para a história do tempo presente. Bauru: EDUSC, 1999. 22 bibliográfica, o uso da metodologia da história oral, os debates entre memória e história, a observação do cotidiano, o trato das fontes. Posteriormente, dedicamos atenção especial às entrevistas, fontes principais da pesquisa, contando como foi realizado o trabalho de campo. Na segunda parte, que contém dois capítulos, procuramos refletir sobre os problemas seculares do sistema penitenciário do Brasil. No primeiro capítulo, expomos em detalhes o panorama do atual sistema prisional brasileiro, com dados sobre a política criminal adotada, a população carcerária e sua evolução, perfil dos presos, legislação penitenciária etc. No segundo momento, apresentamos a trajetória histórica do sistema penitenciário norte-rio-grandense. A terceira parte está dividida em três capítulos e traz uma articulação da prática com a teoria, apresentando os conceitos que alicerçaram a pesquisa, aplicados ao ambiente prisional estudado. No primeiro momento, utilizando, principalmente, as falas dos entrevistados, apresentamos uma descrição do espaço físico da Penitenciária de Alcaçuz. Em seguida, utilizando os depoimentos aliados às outras fontes, abordamos as rotinas e acontecimentos cotidianos do presídio, como rebeliões, fugas e mortes. Por fim, expomos uma descrição dos “lugares” identificados nesse espaço, que nos mostram os sentimentos e emoções dos depoentes em contato com o ambiente prisional. 23 PARTE I – A pesquisa: caminhos percorridos “Encarcerados somos todos, mais ou menos entre os muros do nosso egoísmo; talvez, para se evadir, não há ajuda mais eficaz do que aquelas que possam nos oferecer esses pobres que estão materialmente fechados entre os muros da penitenciária”. Carnelluti, As Misérias do Processo Penal. 24 Capítulo 1 – As formas e os meios da pesquisa 1.1. Escolha do tema A escolha de desenvolver um estudo tendo como foco o ambiente prisional surgiu, principalmente, em razão da relação que estabeleci com esse espaço, que é o meu lugar de trabalho. Então, devido a minha familiaridade com essa instituição, achei que seria mais fácil e mais produtivo selecionar um tema de pesquisa que estivesse presente diretamente no meu cotidiano. Assim, resolvi estudar a Penitenciária de Alcaçuz, pois sempre que eu comparecesse ao meu trabalho, estaria adquirindo conhecimentos para o estudo, seja numa mera observação das rotinas, em conversas informais ou então nas conversas dirigidas com agentes penitenciários, presos ou visitantes. As minhas vivências no ambiente prisional também me motivaram a escolhê-lo como tema de análise. O fato de eu trabalhar na penitenciária fez com que eu tivesse acesso a um mundo até então desconhecido para mim. Ao entrar em contato com as rotinas da prisão, suas complexidades, acontecimentos e desdobramentos, desenvolvi certa curiosidade e senti necessidade de estudar e compreender essa instituição penitenciária, assim como a relação entre ela e os sujeitos que a integram, suas práticas, interesses, discursos, conflitos e semelhanças. Foi ainda determinante para a seleção desse tema, o meu gosto pessoal por narrativas que retratam o cotidiano prisional. Talvez pelo fato da prisão representar um espaço escondido, a respeito do qual é criado todo um mistério, assim como diversas lendas sobre os fatos que lá ocorrem. Instigada pela curiosidade, sempre gostei dessas narrativas. Posso citar como exemplo o filme Carandiru (1993), inspirado no livro Estação Carandiru de Dráuzio Varella e com direção de Hector Babenco, que fez muito sucesso, narrando o cotidiano desse presídio e suas variadas histórias de crime, vingança, amor e amizade que culminam num trágico e vergonhoso massacre. Citando um exemplo mais atual, destaca-se a série do canal Netflix Orange is the new Black (2014), misto de comédia e drama, escrita por Lauren Morelli e inspirada na história real de Piper Kerman, que foi sentenciada a um ano e três meses de prisão depois de ser condenada por transporte de drogas. De modo criativo, o seriado mostra o 25 que ela vivenciou em seu cotidiano numa prisão feminina dos Estados Unidos. Ao assisti-lo, adentramos no universo prisional e entramos em contato com todas as suas complexidades e particularidades: a amizade e a solidariedade que se cria intramuros coexistem perfeitamente com intrigas e disputas. Sexo casual e amores não correspondidos convivem com sinceras histórias de amor construídas e aperfeiçoadas no cárcere. 1.2. Fontes e metodologia Já que a pesquisa tem como foco o espaço da Penitenciária de Alcaçuz, faz-se extremamente necessário ouvir os sujeitos que o integram, logo, utilizamos a metodologia da história oral, que nos auxiliou na compreensão dos comportamentos dos sujeitos e suas sensibilidades. Para esse uso, nos valemos das contribuições teóricas do historiador José Carlos Sebe Bom Meihy. Todavia, necessário salientar que fizemos uso da história oral híbrida, que utiliza os depoimentos associados a outros documentos escritos. No caso, utilizamos também jornais, cordéis e a legislação penal e penitenciária. Segundo Meihy, quase que naturalmente a história oral privilegia o estudo das minorias, dos grupos sociais que se encontram deslocados, excluídos, marginalizados. Então, suas narrações são utilizadas para: Propor uma “outra história‟‟, ou história „‟vista de baixo‟‟, de ângulo incomum sobre determinada realidade em contraposição ao silenciamento ou à visão “majoritária” e institucionalizada, assumida como aquela que devemos reconhecer como “versão oficial”. Por lógico, a visão dos grupos de poder interessa, como contraponto para o diálogo com os desvalidos 19 . Ao propor uma história da Penitenciária de Alcaçuz, naturalmente, propomos uma história de um grupo social deslocado, marginalizado. Afinal, o presídio é aquele espaço em que ninguém quer estar, que não possui visibilidade social. É o local de guarda dos excluídos, onde são aprisionados os miseráveis. Obviamente, ao narrar essa 19 MEIHY, José Carlos Sebe Bom; HOLANDA, Fabíola. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto, 2011. p. 52. 26 história, é necessário contrapor as vozes dos marginalizados com outros discursos e outras fontes. A colaboração dos entrevistados é o fator primordial para a realização das entrevistas, afinal, os sujeitos que irão nos fornecer detalhes de suas vivências precisam se sentir motivados e estimulados a compartilhar informações, o que muitas vezes não é um trabalho fácil. Dividir lembranças, normalmente, desperta um turbilhão de sentimentos e emoções, muitas dessas não tão agradáveis, que podem acabar desmotivando e desencorajando o indivíduo a continuar o processo de “partilha”. Assim, para realizar as sessões de entrevistas, é de suma importância o planejamento do pesquisador, de modo que estabeleça os fins que deseja obter com as entrevistas e, a partir disso, possa direcioná-las para as finalidades almejadas. Se não o fizer, corre o risco de transformar as entrevistas num bate papo sem rumo. O ato de entrevistar consiste, portanto, em dirigir a conversação de maneira a obter informações relevantes para os objetivos da pesquisa. Optamos por realizar o tipo de entrevista de natureza aberta, que: “flui interativamente na conversa e acomoda digressões que podem bem abrir rotas de investigação novas, inicialmente não aventadas pelo pesquisador”20. Nessa medida, as entrevistas não se basearam num questionário pronto, com questões estruturadas, selecionamos os assuntos eleitos como principais para as conversas com os colaboradores e a partir de determinado tema, era iniciada uma conversa livre e à medida que a conversa ia fluindo, os questionamentos eram feitos. Portanto, embora a entrevista não se prendesse a um conjunto de questões, ela era feita de maneira ordenada, seguindo os tópicos selecionados. Nesse tipo de entrevista, portanto, o pesquisador pode reformular as questões ao longo da conversa com o colaborador, sempre as direcionando ao fim desejado. Assim, “o conceito de colaboração implica, pelo menos, presença de dois ou mais participantes em uma ou múltiplas sessões de entrevistas gravadas segundo princípios planejados e com fins estabelecidos” 21. Apropriando-nos desse conceito, ao longo do trabalho, ao nos referirmos aos sujeitos entrevistados, os nomearemos de colaboradores, para não 20 ANGROSINO, Michael. Etnografia e observação participante. Porto Alegre: Artmed, 2009.p. 62. 21 MEIHY; HOLANDA, História Oral, p. 117. 27 tornar o termo tão repetitivo, também serão tratados como interlocutores, entrevistados ou depoentes. Nesse processo de colaboração é também primordial que o pesquisador desenvolva suas sensibilidades, a fim de entender o colaborador, respeitá-lo e, de certa forma, também “colaborar” com ele, o que se dá quando o pesquisador é cordial e deixa transparecer que o processo de escutar a narrativa está sendo muito prazeroso. Deve deixar que, dentro do planejado, a narrativa seja feita da forma mais livre possível, para que o colaborador narre aquilo que lhe é instintivo ou sensível, em vez de falas pré- construídas, o que pode trazer contribuições riquíssimas para o estudo. É igualmente importante que o pesquisador não faça julgamentos ou emita expressões de repulsa ou desagrado em relação ao que está sendo narrado, pois pode desencorajar o colaborador a prosseguir. Deve ainda aguçar os seus sentidos, para que possa analisar os “vazios” nos depoimentos, aquilo que não foi dito, questionando os sentidos e motivações. Assim como precisa estar com os sentidos mais aguçados para ser capaz de perceber sentimentos e emoções despertadas por certas falas, que podem estar presentes num sorriso sincero, numa lágrima que escorre pelo canto do olho ou num simples franzir de testa. A colaboração é, portanto, caracterizada pela sensibilidade do encontro entre as duas partes. Nesse sentido, o trabalho de entrevista reuniu também algumas características da entrevista em profundidade, a qual “objetiva sondar significados, explorar nuances, capturar as áreas obscuras que podem escapar às questões de múltipla escolha que meramente se aproximam da superfície de um problema”22. Durante a realização das entrevistas, foram tomados uma série de cuidados como: não fazer perguntas que pareciam dizer ao entrevistado a resposta que se desejava ouvir, assim como foram evitadas perguntas com respostas embutidas. Tive o devido cuidado em não interromper as narrativas, somente quando o colaborador estava se desviando muito do assunto em debate, era feita uma interferência com o intuito de trazê-lo de volta para a direção pretendida com a conversa. Busquei também atentar para quando o interlocutor tentava introduzir um tema novo que me parecia importante, então, redirecionava a entrevista para ouvir a história. Procurei ainda ficar muito atenta aos sinais não verbais esboçados pelos entrevistados (raiva, aborrecimento, felicidade 22 ANGROSINO, Etnografia e observação participante, p. 62. 28 etc.), pois algumas vezes o “não dito” – representado por uma emoção – nos diz muito mais do que o “dito” expressamente. Na realização do trabalho de entrevistas, fiz uso de um caderno de campo, no qual eu tomava notas sobre as narrativas, anotava pontos que me chamavam atenção nas falas e registrava as expressões e emoções dos meus interlocutores. Também registrava sempre as impressões das entrevistas, pontos positivos e negativos, que poderiam me ser úteis nas entrevistas seguintes. Além disso, utilizei esse caderno para também fazer anotações sobre as observações que eu fazia do cotidiano e das rotinas do presídio, logo, muitas das histórias narradas são frutos desse meu trabalho de observação. Buscamos selecionar os entrevistados de modo a refletir a heterogeneidade do grupo, justamente, para nos certificar de que teríamos uma boa visão geral de todos os diferentes elementos dentro do grupo estudado. A análise dos dados foi pautada pela busca de padrões nas falas e pela busca de significados nesses padrões. Ao procurar identificar padrões, procurei questionar como os colaboradores compreendem a sua relação com o espaço da penitenciária de Alcaçuz? Como eles afetam esse espaço e como são afetados pelo espaço? Quais sentimentos e emoções são provocados em consequência dessa relação? A escolha dos colaboradores se deu devido à facilidade de contato com eles, portanto, os internos entrevistados foram aqueles que desenvolvem algum tipo de atividade laboral nas dependências administrativas da penitenciária. Não consegui conversar diretamente com os internos reclusos nos pavilhões em razão das rebeliões ocorridas na instituição 23 . Para ter acesso às falas desses internos contei com a colaboração da professora do sistema prisional, Francisca de Paiva Forte, que comparecia para ministrar aulas para eles. Paralelamente às aulas, ela desenvolvia com os apenados um projeto de literatura de cordel para que, através desse gênero literário, eles se expressassem e contassem um pouco das vivências no cotidiano prisional. Assim, ela me cedeu esse material e pude ter acesso às vozes desses apenados 24 . Os agentes penitenciários entrevistados foram aqueles com os quais tenho mais afinidade e no tocante aos visitantes, privilegiei o contato com as mulheres, visto que 23 Por causa das rebeliões, o acesso aos internos ficou bastante restrito e perigoso, uma vez que foram quebradas todas as grades das celas e eles passaram a ficar circulando completamente livres pelo interior dos pavilhões. 24 O anexo I traz na íntegra os versos produzidos pelos internos. 29 são maioria e tenho contato direto com elas ao realizar o procedimento de revista íntima, que as capacita a entrar na unidade prisional nos dias de visita. Por fim, busquei conversar com as que me pareceram mais “amigáveis”. O anonimato foi escolhido por razões de segurança, intencionando preservar os interlocutores, tendo cada um deles recebido um nome fictício. Todo esse trabalho de campo foi permeado por muitos desafios dentre os quais destaco a dificuldade em ganhar a confiança dos apenados e dos visitantes para que se sentissem mais a vontade no momento de realização das entrevistas. Foi também um pouco difícil fazer com que os agentes penitenciários levassem a sério as entrevistas, devido à grande intimidade entre nós, muitos faziam brincadeiras durante as entrevistas. No entanto, destaco também como positiva essa intimidade, pois tive mais abertura para perguntar, questionar e observar. 1.3. Uma “história viva”: debates entre história e memória Atualmente, a história oral é inerente aos debates sobre tendências da história contemporânea e se apresenta como uma alternativa para o estudo da sociedade através de uma documentação construída pela utilização dos testemunhos, que são transcritos posteriormente. De acordo com o historiador Sebastião Vargas (2007), ela implica uma percepção do passado como algo que tem continuidade hoje e cujo processo histórico não se encontra acabado. É isso que a define como uma “história viva”, uma história do tempo presente. O maior problema dos historiadores ao lidar com a história do tempo presente diz respeito às conclusões que pretende alcançar com a pesquisa. Ao trabalhar com um período muito recente, no qual os fatos estão acontecendo em paralelo ao trabalho de escrita do estudo, o historiador acaba por ficar impedido de obter conclusões mais precisas e trabalha com projeções tendenciais vinculadas ao presente 25 . É também muito criticada a relação que o historiador do tempo presente desenvolve com o seu objeto de estudo “vivo”. Questiona-se que o autor por trabalhar com um tema tão recente – que muitas vezes está ligado ao seu cotidiano – poderia 25 VARGAS NETTO, Sebastião Leal Ferreira. A mística resistência: culturas, histórias e imaginários rebeldes nos movimentos sociais latino-americanos. Tese. (Doutorado em História Social). São Paulo: USP, 2007. p.40. 30 acabar não conseguindo manter-se imparcial na realização da pesquisa. Sobre esse aspecto, entendemos que é impossível alcançar uma total imparcialidade frente a um tema de estudo, logo, cabe ao pesquisador não se deixar afetar plenamente pelo objeto estudado para que tenha a capacidade de se posicionar de maneira crítica frente ao tema. Exercendo esse senso crítico, defendemos que é totalmente válido ao pesquisador expor suas opções, engajamentos e opiniões. Nesse sentido, Hobsbawn afirma: Todo historiador tem seu próprio tempo de vida, “um poleiro” particular a partir do qual sondar o mundo... Mas quando não escrevemos sobre a Antiguidade clássica ou sobre o século XIX, mas sobre o nosso próprio tempo, é inevitável que a experiência pessoal desses tempos modelem a maneira como os vemos, e até a maneira como avaliamos a evidência à qual todos nós, não obstante nossas opiniões, devemos recorrer e apresentar. 26 Ainda segundo o historiador do tempo presente Sebastião Vargas (2007), a razão de ser da história oral é justamente a presença do passado no presente dos indivíduos, se constituindo a partir dos “arquivos vivos” que são as pessoas e, por isso, é classificada como uma “história viva”. Assim, além de oferecer uma singela mudança do conceito de história, passa a dar sentido à trajetória de vida dos entrevistados e dos leitores, que passam a se sentir integrantes da conjuntura em que vivem e a entender a sequência histórica. A história oral não objetiva dar total ênfase ao documento oral, deixando a documentação escrita à margem. Pelo contrário, visa a transformar a documentação oral em escrita e, a partir daí, inseri-la no amplo campo de fontes a que o pesquisador do tempo presente precisa acessar 27 . Ao fazermos uso da história oral, essencialmente estamos trabalhando com o conceito de memória, já que estamos tendo acesso às memórias dos colaboradores. Assim, desde os anos 60 e 70, quando a história oral se estabeleceu como prática e movimento, os historiadores orais debatem questões referentes à memória e à história. Com relação a esse entrelaçamento entre os campos da história e da memória, a história oral tem sido essencial, não tanto por seus produtos, mas mais por seus processos, pois possibilita um envolvimento maior na recuperação e na reapropriação do passado. Como a utilização da história oral nos leva, obrigatoriamente, a estabelecer uma relação 26 HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.p. 244-245. 27 VARGAS NETTO, A mística resistência, p. 41. 31 com a memória, selecionamos três autores para nos orientar na compreensão desse binômio história-memória. No sentido básico do termo, Henry Rousso conceitua a memória como a presença do passado: “é uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado, um passado que nunca é aquele do indivíduo somente, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional”.28 Logo, pode-se dizer que a história oral é sempre social, uma vez que o sujeito só se explica na vida em comunidade. Assim, ao analisar as falas dos depoentes, é de extrema importância a observância do sujeito em relação ao contexto no qual se encontra inserido. Rousso entende que toda memória é coletiva e tem como atributo garantir a continuidade do tempo e permitir resistir à alteridade, “ao tempo que muda”, às rupturas que são o destino de toda vida humana. Constitui, então, um elemento essencial da identidade, da percepção de si e dos outros. Já para Paul Ricouer 29 , a memória também está intimamente relacionada ao passado, pois não teríamos outro recurso de referência ao passado, senão a própria memória. Inclusive, estaria vinculada à memória a pretensão de ser fiel ao passado, sendo a memória o melhor que temos para significar algo que aconteceu. Embora exista essa relação íntima da memória com o passado, ele ressalta que a memória também se relaciona com o presente. Nesse sentido, Rossi 30 afirma que, tendo por base as exigências do presente, a memória reconfigura sempre o passado. Ou seja, é se baseando pelo que está sendo vivenciado no presente, que são construídas as narrativas dos sujeitos sobre o passado. Quando se aborda a temática da memória, automaticamente, está sendo tratada a questão do esquecimento. Isso porque, ao construírem as narrativas, os sujeitos esquecem algumas coisas, consciente ou inconscientemente. Deste modo, o esquecimento é considerado parte integrante da 28 ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 2006. p. 94. 29 RICOEUR, Paul. A Memória, a História, o Esquecimento. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007. 30 ROSSI, Paolo. O Passado, a Memória, o Esquecimento: seis ensaios da história das ideais. São Paulo: EDUNESP, 2010 32 memória. Para Paolo Rossi 31, esse “apagar” tem a ver com esconder, ocultar, despistar, afastar a verdade, destruí-la. A partir desse apoio teórico, entendemos, portanto, a memória como uma construção subjetiva, organizada segundo uma lógica criada pelo próprio sujeito para se referir ao passado e que é fortemente influenciada pelas vivências do sujeito no presente. Logo, enquanto construção, a memória pode, muitas vezes, não corresponder aos fatos concretos, objetivos e materiais. Esse fato faz com muitos estudos de história oral sejam questionados e por vezes desacreditados: Para muitos que nada entendem de história oral, a confiabilidade das entrevistas é fato suspeito, pois a memória falha, erra, desvia, camufla, destorce, inventa. Mas é exatamente isso que interessa. Lembremos: o respeito à empiria expressa no fazer do documento é o tesouro buscado pela história oral capaz de revelar a subjetividade contida nas variações do parâmetro dado pelo estabelecido como verdade 32 . Portanto, ao trabalhar com a história oral, pretendemos atentar para esses esquecimentos, investigá-los, questioná-los, assim como toda a narrativa oral. Para que pudéssemos realizar essa tarefa de investigação e questionamento, utilizamos como suporte a análise de outras documentações, que foram os jornais e a legislação prisional. Foi utilizado, principalmente, o jornal Tribuna do Norte, quando buscamos informações sobre o sistema penitenciário estadual e a Penitenciária de Alcaçuz. Usamos também Relatórios dos Presidentes da Província e descrições do historiador Luís da Câmara Cascudo presentes na obra História da Cidade do Natal, quando procuramos informações sobre a trajetória histórica do sistema prisional do Rio Grande do Norte. Foi feita, então, uma história oral híbrida, de acordo com a qual: Preza-se o poder da “conversa”, contatos ou diálogos com outros documentos, sejam iconográficos ou escritos (...) A história oral híbrida tem outro objetivo, ao relativizar a força única da expressão oral, de maneira quase que natural, exige-se a equiparação dos argumentos derivados de entrevistas com outros emanados de diversas 31 Idem. 32 MEIHY; HOLANDA, História Oral, p.124. 33 fontes. Nesses casos, o que vale mais é a força temática que tira a força da lógica da construção da narrativa oral 33 . Fizemos, portanto, uso da história oral em diálogo com outros documentos, os quais foram desierarquizados, por exemplo, não foi feita diferenciação entre um artigo de jornal e a fala de um entrevistado. Todos eles foram entendidos como discursos produtores da realidade e as condições de produção de cada um deles foram levadas em consideração ao analisá-los historicamente. Esses documentos não foram utilizados como prova absoluta da “verdade”, mas como um material a ser trabalhado, interrogado, problematizado. Para esse trabalho de problematização, fizemos uso de uma vasta bibliografia, nos valendo, assim, da contribuição de diversas obras e trabalhos acadêmicos, o que nos capacitou a realizar esse trabalho de questionamento do documento. No tocante aos aspectos metodológicos, em diálogo com a antropologia, fizemos uso de algumas técnicas de etnografia e observação participante, que são muito comuns quando se pesquisa o ambiente prisional. A pesquisa dos etnógrafos é centrada basicamente nas vidas cotidianas das pessoas que eles estudam. Nesse sentido, o uso dessas técnicas na pesquisa se justifica, já que ao estudar o espaço da Penitenciária de Alcaçuz, também estamos estudando os sujeitos inseridos nesse espaço. Assim, durante o período em que estive in loco fazendo a pesquisa, busquei participar de maneira subjetiva das vidas das pessoas estudadas. Devido à minha condição de funcionária da penitenciária, eu já desenvolvia uma relação com esses indivíduos, logo, não houve problemas em fazer uma observação pautada pela subjetividade, buscando compreender as relações entre os sujeitos e a penitenciária e os sentimentos envolvidos. Foi possível fazer uma observação detalhada das três categorias de sujeitos, procurando detectar como essas pessoas se apropriavam do espaço da penitenciária e os usos que faziam dele, assim como nos interessou observar as maneiras pelas quais afetavam o espaço e por ele eram afetados. Procuramos ainda observar se seus comportamentos correspondiam a muitas de suas afirmações nas entrevistas e também observar situações e emoções não descritas por eles expressamente. Paralelo a isso, 33 Ibidem, p. 129-130. 34 procurei desempenhar, na medida do possível, um papel de observadora objetiva daquelas vidas, buscando me distanciar um pouco para que as minhas análises não ficassem tão contaminadas em razão da minha proximidade com o objeto de estudo. Ao concluir o trabalho de observação, busquei fazer anotações no caderno de campo – uma narrativa – buscando contar a minha experiência de vivências e interações no presídio, enquanto desenvolvia a pesquisa. Ao narrar essas histórias, busquei fazê-lo de modo realístico e objetivo, apresentando numerosos detalhes para auxiliar o leitor a compreender o grupo estudado. A análise das fontes, no tocante à compreensão historiográfica e conceitual, foi ainda alicerçada nas pesquisas relacionadas ao estudo das prisões, seu cotidiano e questões sentimentais envolvidas. 1.4. Historiografia das prisões: diversos olhares sobre a prisão O estudo acerca da temática do crime, da prisão, da política e da justiça criminal vem ganhando a cada dia mais destaque. É possível observar esse fenômeno principalmente a partir do século XX, quando os historiadores e também os pesquisadores de outras áreas (antropologia, serviço social, sociologia, psicologia, direito etc.) passaram a se debruçar sobre novas fontes de trabalho, estando incluídas nessa nova perspectiva as fontes criminais e policiais. Logo, houve um grande avanço na produção acadêmica, foram criados grupos de trabalhos (GTs) 34 , núcleos de estudos 35 e projetos de pesquisas 36 , que culminaram na escrita de artigos científicos, monografias, dissertações e teses. Com isso, pode-se observar uma consolidação desse campo de trabalho, o que tem levado muitos pesquisadores a se interessarem por essa área. Na área de história, a produção acadêmica ainda é pequena, o que faz com que 34 Por exemplo, o GT da ANPUH-RS sobre política, crime e justiça criminal, que tem como objetivo reunir e aprofundar leituras e discussões sobre questões relativas ao crime e à Justiça criminal (polícia, leis e judiciário criminal, prisão). 35 Destacamos o Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV/USP), que é um dos Núcleos de Apoio à Pesquisa da Universidade de São Paulo. Fundado em 1987, vem desenvolvendo pesquisas e formando pesquisadores, tendo como uma de suas principais características a abordagem interdisciplinar na discussão as relações entre violência, democracia e diretos humanos. Ver: http://www.nevusp.orgr. 36No âmbito da UFRN, merecem destaque os projetos “Etnografias do Judiciário e do sistema prisional. Justiça e criminalidade em perspectiva” e “Justiça, família e punição: perspectivas do cárcere a partir da visão de familiares de pessoas privadas de liberdade”, desenvolvidos pela Dra. Juliana Melo, professora do Departamento de Antropologia da UFRN. 35 tenhamos de nos valer das contribuições de outras áreas de conhecimento na busca por inspiração e embasamento conceitual para a pesquisa sobre a temática prisional. Foi no fim dos anos 1970 que se passou a discutir a possibilidade de se considerar as prisões enquanto um objeto de investigação, sob o qual o pesquisador poderia se debruçar. Isso se deu principalmente pelo lançamento, em 1975, do livro Vigiar e Punir, do filósofo Michel Foucault. Dada a grande influência desse intelectual no Brasil, logo, os pesquisadores brasileiros puderam ter acesso a sua obra, a qual nos apresenta a evolução da maneira de punir, que antes objetivava castigar o corpo, quando primava pela violência física como punição. E, depois, passou a castigar a alma, com o aprisionamento do indivíduo numa instituição correcional – onde impera o controle, a ordem e a disciplina – buscando domesticar os corpos, corrigi-los, para que não mais transgridam. Assim, nasceu a prisão moderna. A ditadura militar também contribuiu muito para trazer a prisão para a discussão acadêmica no Brasil, afinal, nesse período da história brasileira, muitos professores, pesquisadores e intelectuais tiveram seus corpos violentados, torturados e aprisionados. Com isso, em momentos finais da ditadura, os debates sobre a prisão e os direitos humanos ganharam força, afinal, pessoas próximas haviam sido atingidas. Tratava-se, assim, de divulgar um discurso sobre os direitos humanos na prisão. A produção historiográfica brasileira sobre as prisões se encontra ainda em processo de consolidação. Mas, podemos afirmar que essas instituições já têm sido pesquisadas sob as mais diversas óticas: como regimes disciplinares associados à emergência do capitalismo, em relação às mudanças da sensibilidade de uma sociedade acerca do castigo, como uma expressão de angústia da burguesia emergente, ou ainda como ramificações de um Estado cada dia mais complexo. No entanto, poucos esforços têm sido dedicados à esfera das representações, à ideia de prisão no imaginário social. Nessa medida, se mostra importante examinar distintas narrativas da vida prisional, a fim de nos oferecer algumas respostas à questão da receptividade na punição pelo público 37 . Dentre as obras publicadas, merece destaque As prisões de São Paulo, 1822- 1940 38 , do sociólogo Fernando Salla, que tendo como pano de fundo a Penitenciária de 37 BRETAS, Marcos Luiz. “O que os olhos não veem: histórias das prisões do Rio de Janeiro”. In: BRETAS, Marcos; COSTA, Marcos; MAIA, Clarisse; NETO, Flávio (Orgs.). História das prisões no Brasil – vol. II. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. 38 SALLA, Fernando. As prisões de São Paulo, 1822-1940. São Paulo: Annablume, 1999. 36 São Paulo, nos apresenta um trabalho sócio histórico sobre a punição no contexto paulista, nos contando a história da prisão no estado de São Paulo desde a Independência brasileira até a década de 1940. Todavia, esse trabalho pode também ser aplicado ao cenário brasileiro como um todo, dada a posição de destaque ocupada por São Paulo. O cenário narrado por Salla, pautado em dados e análises, nos mostra um sistema penitenciário em frangalhos, marcado pelos conflitos, pela distância entre o discurso legal e a prática, pelo tratamento desigual entre as camadas sociais. Esse pesquisador, em sua dissertação de mestrado 39 , direcionou também suas pesquisas para a história da prisão, realizando uma revisão histórica do trabalho penal e estabelecendo uma relação entre este e o processo de privatização do sistema prisional. Outra produção que se destaca é o livro Os signos da opressão, 40 de Regina Célia Pedroso, originado da sua dissertação de mestrado em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Esse trabalho objetiva resgatar o conceito de exclusão social enquanto um legado autoritário do Império Colonial português. Adaptando a temática para a realidade do Brasil contemporâneo, Pedroso, analisando as condições dos cárceres brasileiros, nos propõe uma redefinição do conceito de cidadania e uma reflexão sobre os Direitos Humanos. Então, nos alerta para a urgente necessidade de reformulação do sistema penitenciário brasileiro. A historiadora Elizabeth Cancelli produziu também importante pesquisa 41 sobre o estudo da instituição prisional, tendo como foco o Carandiru. Buscou mostrar o porquê dessa penitenciária ter se transformado em modelo de eficiência, higiene e controle. Questiona o excesso de controle e intervenção sobre os indivíduos, característico das instituições totais. E, aponta a grande influência exercida por psiquiatras no tratamento dos presos dessa unidade. Merece ainda destaque o livro História das prisões no Brasil 42 , uma coletânea de artigos, que conta com dois volumes sobre a questão prisional no Brasil. A obra foi organizada com o intuito de não silenciar sobre um tema tão presente no nosso 39 SALLA, Fernando. O Trabalho Penal: uma revisão histórica e as perspectivas frente às privatizações das prisões. Dissertação. (Mestrado em Sociologia). São Paulo: USP, 1991. 40 PEDROSO, Regina Célia. Os signos da opressão: história e violência nas prisões brasileiras. São Paulo: Imprensa Oficial SP, 2003. 41 CANCELLI, Elizabeth. Carandiru: a prisão, o psiquiatra e o preso. Brasília: Editora da UNB, 2005. 42 BRETAS, Marcos; COSTA, Marcos; MAIA, Clarisse; NETO, Flávio (Orgs.). História das prisões no Brasil – vol. I. Rio de Janeiro: Rocco, 2009 e BRETAS, Marcos; COSTA, Marcos; MAIA, Clarisse; NETO, Flávio (Orgs.). História das prisões no Brasil – vol. II. Rio de Janeiro: Rocco, 2009 37 cotidiano, afinal, o Brasil é um país marcado por problemas no sistema prisional, desde as suas origens. Problemas nas penitenciárias do país são tema frequente nos noticiários e jornais e aparecem ligados intimamente ao grave problema de insegurança pública, que parece se tornar maior dia após dia. As notícias sobre o campo prisional que ilustram as telas dos noticiários são dos mais variados tipos: superlotação das prisões, explosões de violência, rebeliões, fugas e mortes. Enfim, é noticiado um colapso iminente do sistema carcerário. Sobre esse aspecto, esse livro nos alerta que, como historiadores, devemos atentar que esse colapso é iminente há muito tempo. Questões como a criminalidade, sua aparente ausência de solução e sua punição, que normalmente não satisfaz a sociedade, são debatidas há bastante tempo. Nessa medida, ao organizarem uma coletânea sobre a história da punição e do encarceramento no Brasil, os autores ambicionam contribuir para a compreensão de um tema que persiste em constranger o sistema democrático da sociedade. Ao nos fornecer o conhecimento sobre a prisão, nos possibilita a compreensão de uma parte significativa dos sistemas normativos da sociedade. Também inspirou os autores a organizar a coletânea sobre esse tema, o fato de, até então, não existir nenhum trabalho que contemplasse o tema nos diversos períodos. Assim, ao reunir os artigos, acabaram por fazer um estudo comparativo das prisões nas diversas épocas e nas diversas regiões do Brasil, com isso, podemos observar semelhanças e diferenças entre as penitenciárias ao redor do país, além de continuidades e descontinuidades do sistema prisional brasileiro. Os autores preocuparam-se em reunir textos que refletissem diferentes posturas dos historiadores frente ao legado de Foucault, justamente para expor a grande diversidade que participa da construção de novos caminhos na história da prisão e as inúmeras possibilidades de investigação sobre o mesmo objeto. Portanto, os trabalhos agrupados tratam das mais diversas temáticas, como: a apresentação de uma história institucional; o discurso administrativo e sua argumentação sobre o poder; o perfil dos presos, sua vida cotidiana e suas maneiras de interagir com a prisão. 38 O ensaio 43 que inicia a obra nos conta uma breve história da prisão na América Latina, seu surgimento, sua vida cotidiana, o nascimento de uma subcultura carcerária e a relação do público com a prisão. Conclui que as prisões, do período estudado estão longe de serem instituições modelos e que não desempenham os fins para os quais foram edificadas. Apresenta como causas: as limitações financeiras e instabilidades políticas, estruturas estatais débeis e mecanismos corruptos de recrutamento e controle nas diferentes instâncias da burocracia estatal, os quais criavam problemas para a administração das prisões e aplicação das leis. Merece igual destaque a história das prisões no Rio de Janeiro 44 escrita por Marcos Luiz Bretas, um dos organizadores do livro. Antes de nos apresentar uma reconstrução histórica dos modelos de prisão e suas práticas, com foco no Rio de Janeiro, ele nos fala um pouco sobre o fascínio que a temática prisional exerce sobre os indivíduos. Assim, nos informa que muito antes da propagação das ideias pregadas pelo Iluminismo e pela Revolução Francesa – responsáveis por incentivar a luta pela extinção das punições humilhantes, cruéis e arbitrárias – já existia um público que ansiava por narrativas sobre masmorras e prisões. Bretas, então, justifica essa afirmação devido à enorme popularidade de romances sobre prisões nos séculos XIX e XX. Até hoje, podemos observar que histórias sobre o espaço oculto da prisão despertam interesse das pessoas, talvez por revelar um mundo desconhecido, secreto e permitir algum entendimento sobre esse mundo. Isso pode ser atestado pelo grande sucesso e recorde de audiência de algumas séries de televisão e filmes que retratam esse universo. Portanto, a coletânea História das prisões no Brasil nos proporciona conhecer a evolução do sistema prisional brasileiro, além do contexto de fundação, cotidiano e funcionamento de alguns estabelecimentos prisionais específicos, como o presídio de Fernando de Noronha no século XIX 45 , o Calabouço e o Aljube 46 , a Casa de Correção 43 AGUIRRE, Carlos. “Cárcere e sociedade na América Latina”. In: BRETAS, Marcos; COSTA, Marcos; MAIA, Clarisse; NETO, Flávio (Orgs.). História das prisões no Brasil – vol. I. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. 44 BRETAS, Marcos Luiz. “O que os olhos não veem: histórias das prisões do Rio de Janeiro”. In: BRETAS, Marcos; COSTA, Marcos; MAIA, Clarisse; NETO, Flávio (Orgs.). História das prisões no Brasil – vol. II. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. 45 COSTA, Marcos Paulo Pedrosa. “Fernando e o mundo: o presídio de Fernando de Noronha no século XIX”. In: BRETAS, Marcos; COSTA, Marcos; MAIA, Clarisse; NETO, Flávio (Orgs.). História das prisões no Brasil – vol. I. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. 39 do Rio de Janeiro 47 , a Casa de Detenção do Recife 48 e a Escola Correcional do Recife 49 . Podemos também obter informações sobre as prisões paulistas dos oitocentos 50 , os presídios cariocas no período de 1790 a 1821 51 e a história das prisões do Ceará 52 . Ainda nos são apresentados os mais diversos modos de punição já utilizados, por exemplo, a pena de morte e degredo 53 , punição corporal, trabalho e recrutamento forçados na Marinha 54 . Conforme constatamos, a produção acadêmica sobre a temática prisional, em sua maioria, vem sendo produzida – nas mais diversas áreas do conhecimento e com variados enfoques – pelos programas de pós-graduação do país. Existem pesquisas que abordam essa temática estabelecendo comparações entre dois contextos. Por exemplo, vinculada às ciências sociais, a dissertação de Rafael Godói 55 , na qual o autor faz 46 O Calabouço era uma prisão estabelecida para escravos detidos por punição disciplinar e/ou fugitivos, localizada, desde os tempos das colônias, numa instalação militar ao pé do morro do Castelo, em frente à Baía de Guanabara. A maioria dos cativos era enviada para lá por seus senhores para receber açoites corretivos. Já o Aljube era um cárcere eclesiástico, localizado ao pé do morro da Conceição, que foi cedido ao estado, entre 1808 e 1856. Tornou-se o destino da maioria dos presos, escravos ou livres, que aguardavam julgamento ou eram condenados por pequenos delitos ou crimes comuns. Ver: HOLLOWAY, Thomas. “O calabouço e o aljube do Rio de janeiro do século XIX”. In: BRETAS, Marcos; COSTA, Marcos; MAIA, Clarisse; NETO, Flávio (Orgs.). História das prisões no Brasil – vol. I. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. 47SANT‟ANNA, Marilene Antunes. “Trabalhos e conflitos na Casa de Correção do Rio de Janeiro”. In: BRETAS, Marcos; COSTA, Marcos; MAIA, Clarisse; NETO, Flávio (Orgs.). História das prisões no Brasil – vol. I. Rio de Janeiro: Rocco, 2009; CHAZKEL, Amy. Uma perigosíssima lição: a casa de detenção do Rio de Janeiro na Primeira República. In: BRETAS, Marcos; COSTA, Marcos; MAIA, Clarisse; NETO, Flávio (Orgs.). História das prisões no Brasil – vol. II. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. 48MAIA, Clarissa Nunes. “A Casa de Detenção do Recife: controle e conflitos (1855-1915)”. In: BRETAS, Marcos; COSTA, Marcos; MAIA, Clarisse; NETO, Flávio (Orgs.). História das prisões no Brasil – vol. II. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. 49 MENEZES, Mozart Vergetti de. “A Escola Correcional do Recife (1909-1929)”. In: BRETAS, Marcos; COSTA, Marcos; MAIA, Clarisse; NETO, Flávio (Orgs.). História das prisões no Brasil – vol. II. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. 50 FERREIRA, Ricardo Alexandre. “O tronco na enxovia: escravos e livres nas prisões paulistas dos oitocentos”. In: BRETAS, Marcos; COSTA, Marcos; MAIA, Clarisse; NETO, Flávio (Orgs.). História das prisões no Brasil – vol. I. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. 51ARAÚJO, Carlos Eduardo M. de.” Entre dois cativeiros: escravidão urbana e sistema prisional no Rio de Janeiro, 1790-1821”. In: BRETAS, Marcos; COSTA, Marcos; MAIA, Clarisse; NETO, Flávio (Orgs.). História das prisões no Brasil – vol. I. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. 52 FERNANDES, Silviana Mariz; PIMENTEL FILHO, José Ernesto; FONTELES NETO, Francisco Linhares. “Cárceres, cadeias e o nascimento da prisão no Ceará”. In: BRETAS, Marcos; COSTA, Marcos; MAIA, Clarisse; NETO, Flávio (Orgs.). História das prisões no Brasil – vol. II. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. 53 NEDER, Gizlene. “Sentimentos e ideias jurídicas no Brasil: pena de morte e degredo em dois tempos”. In: BRETAS, Marcos; COSTA, Marcos; MAIA, Clarisse; NETO, Flávio (Orgs.). História das prisões no Brasil – vol. I. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. 54 FONSECA, Paloma Siqueira. “A Presiganga Real (1808-1831): trabalho forçado e punição corporal na Marinha”. In: BRETAS, Marcos; COSTA, Marcos; MAIA, Clarisse; NETO, Flávio (Orgs.). História das prisões no Brasil – vol. I. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. 55 GODOI, Rafael. Ao redor e através da prisão: cartografias do dispositivo carcerário contemporâneo. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais).São Paulo: USP, 2010. 40 uma comparação entre a realidade carcerária de São Paulo e da região da Catalunha, confrontando os dois contextos sociais distintos e não se limitando apenas ao espaço prisional, mas investigando também os seus arredores, onde se desenvolvem diversas relações sociais que estão ligadas ao espaço do cárcere. Na área de direito penal, pode ser citada a tese de Ana Gabriela Mendes Braga 56 ,que tem como objeto a análise das intervenções da sociedade civil no cárcere à luz do conceito de reintegração social, buscando compreender as formas e impactos de diversos projetos que propõem a reaproximação sociedade civil-cárcere. Para isso, a autora compara alguns projetos de intervenção em estabelecimentos penitenciários de São Paulo e da Catalunha. Em estudo anterior, Braga 57 centra a discussão no cotidiano do cárcere e das regras que o regem, analisando como essas normas e as demandas institucionais conformam o indivíduo preso, argumentando que o processo de prisionização traz impactos à identidade do preso. Também na área de direito penal, o trabalho de Jovacy Peter Filho 58 consistiu em identificar, a partir de um enfoque crítico e clínico- criminológico, o que caracteriza e singulariza a reintegração social frente às demais propostas político-criminais tradicionalmente aplicadas ao cenário da execução penal. Na Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) foi produzida por Bruno Ferreira Teixeira 59 uma dissertação que trata do sistema penitenciário, mas se diferencia das outras, pois dá especial atenção às vítimas deste, buscando compreender a função social do sistema penitenciário. Assim, tem como objetivo conhecer e denunciar a referida função, entendendo o sistema penitenciário como um espaço que, para além da importância que lhe é atribuída na sociedade capitalista, deve ser combatido, não só em suas deficiências, mas em seu próprio funcionamento. 56 BRAGA, Ana Gabriela Mendes. Reintegração social: discursos e práticas na prisão – um estudo comparado. Tese. (Doutorado em Direito Penal). São Paulo: USP, 2012. 57 BRAGA, Ana Gabriela Mendes. A identidade do preso e as leis do cárcere. Dissertação. (Mestrado em Direito Penal). São Paulo: USP, 2008. 58 PETER FILHO, Jovacy. Reintegração social: um diálogo entre a sociedade e o cárcere. Dissertação. (Mestrado em Direito Penal) São Paulo: USP, 2011. 59 TEIXEIRA, Bruno Ferreira. Gato escaldado em teto de zinco quente: uma análise do sistema penitenciário. Dissertação. (Mestrado em Serviço Social). Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. 41 Ainda na área de serviço social, o estudo de Jardim 60 buscou conhecer e analisar os modos de inserção dos familiares nos mecanismos de tratamento penal, nos apresentando o cotidiano da prisão sobre a ótica dos familiares dos internos. Com isso, permite maior visibilidade às vivências desses familiares a partir das histórias que são descritas e analisadas, como também, uma percepção crítica quanto às dinâmicas prisionais, apontando para os diversos tipos de penalizações dirigidas aos familiares. Modificando o foco e abordando a temática da prisão sob a ótica do agente penitenciário, destaca-se a tese de Arlindo da Silva Lourenço 61 , que está inserida no campo da psicologia social e objetivou estudar a psicologia dos agentes de segurança penitenciária, como integrantes de um grupo profissional no exercício de sua função no interior do espaço prisional. Destacamos também a produção intelectual da UFRN, através dos seus cursos de graduação e programas de pós-graduação, que vêm se fortalecendo na abordagem da temática prisional, com a criação de projetos de pesquisa, grupos de discussão e estudos, além da realização de palestras e seminários relacionados a esse tema. É essencial mencionarmos o Núcleo Penitenciário, criado dentro do Programa Motyrum 62 , tratando-se a princípio de um projeto do curso de Direito da UFRN. Ele surgiu diante da necessidade de se levar as discussões relacionadas aos direitos humanos, que já eram feitas pelo Motyrum nos ambientes rurais, urbanos e com crianças e adolescentes, para dentro do ambiente carcerário e demais espaços em que se pode observar debates sobre crime, pena, segurança pública etc. Esses debates, especialmente em se tratando de ambientes como os de privação de liberdade, em que é comum a ocorrência de superlotação, maus-tratos, abusos, má ou inexistente prestação 60 JARDIM, Ana Caroline Montezano Gonsales. Famílias e prisões (Sobre)vivências de tratamento penal. Dissertação. (Mestrado em Serviço Social). Porto Alegre: PUC, 2010. 61 LOURENÇO, Arlindo da Silva. O espaço de vida do agente de segurança penitenciária no cárcere: entre gaiolas, ratoeiras e aquários. Tese. (Doutorado em Psicologia Social). São Paulo: USP, 2010. 62 O Motyrum é um programa de ensino, pesquisa e extensão da UFRN e que conta também com estudantes de outras instituições: UNI-RN, Faculdade Estácio de Sá, Faculdade Maurício de Nassau, UNP e UERN. Nele reúnem-se estudantes dos cursos de Direito, Psicologia, História, Ciências Sociais, Pedagogia, Serviço Social, Gestão de Políticas Públicas, Engenharia Civil, Artes Visuais, Design Gráfico e Comunicação Social, assim como moradores de comunidades urbanas e rurais, presos e adolescentes em situação de vulnerabilidade. Tem como objetivo principal a emancipação política dos estudantes universitários e dos espaços onde atua para a construção de um mundo justo, livre e solidário. Utilizando a educação popular em direitos humanos, inspirados por Paulo Freire, atuam nas comunidades problematizando as dificuldades encontradas no cotidiano dos moradores, procurando aprofundar as problemáticas e construir soluções em conjunto, desenvolvendo a capacidade de compreensão da realidade que nos envolve, de todos os participantes, estudantes e moradores. O Programa é dividido em seis núcleos: Rural; Urbano; Penitenciário; Infanto-Juvenil; Indígena e o Escritório Popular. Ver: . 42 de assistência médica, odontológica, jurídica e educacional, entre outras características caóticas, têm sido julgados de grande importância nos dias atuais. Esse núcleo de pesquisa têm sido bastante atuante, inclusive fundou a Revista Transgressões: ciências criminais em debate 63 , que é um periódico científico, pioneiro no âmbito do Rio Grande do Norte, mantido por extensionistas e pesquisadores integrantes do grupo. Tem como objetivo difundir e disseminar o debate acadêmico e popular dentro das ciências criminais e sua relação com as sociedades contemporâneas, contemplando a interdisciplinaridade entre as ciências e o reconhecimento e a busca pela efetivação dos direitos humanos para todo e qualquer sujeito dento das conjunturas criminológicas. Mostra-se também importante a atuação do Programa de Educação Tutorial (PET) do curso de Ciências Sociais da UFRN, que tem como coordenador o professor Dr. Alípio de Sousa. A essência desse programa é o compromisso em aprimorar os cursos de graduação, através de ações de ensino, pesquisa e extensão. Pautando-se por esse objetivo, o PET sempre busca promover momentos de debate e reflexão, através de palestras, seminários e exibições de filmes. Realizado no mês de maio de 2015, o seminário Segurança Pública, políticas penais e sistema carcerário no Brasil hoje foi muito esclarecedor, apresentando importantes contribuições sobre as políticas penais adotadas pelo Brasil hoje, as quais têm contribuído para o inchaço do sistema penitenciário, o que só aprofunda as suas mazelas históricas. Por fim, mencionamos o projeto de pesquisa Etnografias do Judiciário e do sistema prisional. Justiça e criminalidade em perspectiva coordenado pela Dra. Juliana Melo, professora do Departamento de Antropologia. Esse projeto tem como objetivo realizar etnografias sobre o Sistema Judiciário e Prisional, em âmbito local e nacional. Assim, busca analisar em maior densidade como se dão as formas de acesso à justiça no Brasil e compreender as diferentes significações que o termo justiça e criminalidade ganham para aqueles que acionam a justiça como instrumento para administração de conflitos. Sobre as produções acadêmicas na UFRN, destacamos os estudos do pesquisador Leonardo Santos, participante do projeto de etnografias. Na área da 63 Ver: . 43 antropologia, com foco nas emoções, Santos 64 desenvolveu um trabalho com o intuito de entender ainda que parcialmente, como as prisioneiras adentraram no “mundo do crime”, como elas lidam com a vida atrás das grades e quais suas expectativas quanto ao seu futuro. Como resultado, foi detectado em todos os fragmentos de história de vida obtidos o fator comum do amor em meio ao crime e ao cumprimento da pena. Dando continuidade a essa pesquisa, Santos 65 passou a se interrogar sobre a influência das emoções no cotidiano prisional, concluindo que as emoções têm uma influência determinante nas relações de poder e afeto, concluiu, por exemplo, que as emoções comandam o agir das mulheres, sejam elas apenadas ou agentes. Na área de serviço social, foi feita por Cláudia Gabriele da Silva 66 uma dissertação tratando da questão da mulher encarcerada no Complexo Penal Dr. João Chaves, que teve como objetivo investigar os principais determinantes que levaram as mulheres da instituição a inserirem-se como sujeitos da criminalidade. Também nessa área, Davi 67 realizou um estudo sobre a reincidência criminal na realidade do cotidiano da Penitenciária Estadual de Parnamirim, no qual objetivou analisar e investigar os fatores determinantes que podem contribuir para a reincidência dos apenados no cotidiano prisional. Então, atestou que levam o apenado a reincidir as precárias condições do atual sistema penitenciário, assim como a omissão do Estado, que não dispõe dos meios necessários para a reinserção do interno. Conclui que não é possível tratar da questão da reincidência até que exista uma política criminal verdadeiramente comprometida com a dignidade humana. Vinculada à área de ciências sociais, o trabalho de Oliveira 68 versa sobre a linguagem como prática social no cotidiano da prisão, atestando que a linguagem representa a complexidade das relações sociais nesse espaço, com efeitos de sentidos diversos, em função da situação e do momento. Assim, Oliveira nos apresenta a 64 SANTOS, Leonardo Alves dos. Entre o amor, o crime e a solidão: Cotidiano e Histórias de Vida de Mulheres em Situação de Prisão no Complexo Penal Dr. João Chaves. Monografia. (Graduação em Ciências Sociais). Natal: UFRN, 2011. 65 SANTOS, Leonardo Alves dos. Emoção e penalidade: mulheres no Complexo Penal Dr. João Chaves – Natal/RN. Dissertação. (Mestrado em Antropologia Social). Natal: UFRN, 2015. 66 SILVA, Cláudia Gabriele da. Mulher como sujeito da criminalidade: um estudo sobre a realidade das presidiárias do complexo penal Dr. João chaves – Natal/RN. Dissertação. (Mestrado em Serviço Social). Natal: UFRN, 2008. 67 DAVI, Laudilene Gomes. A reincidência criminal no cotidiano prisional da Penitenciária Estadual de Parnamirim – PEP. Dissertação. (Mestrado em Serviço Social). Natal: UFRN, 2011. 68 OLIVEIRA, Hilderline Câmara de. Códigos de sustentação da linguagem no cotidiano prisional do Rio Grande do Norte: Penitenciária Estadual de Parnamirim. Tese. (Doutorado em Ciências Sociais) Natal: UFRN, 2010. 44 linguagem da prisão e nos mostra que além da função de comunicação, ela assume e representa elemento central para a sociabilidade humana, contribui para a sua dinâmica e se configura como uma das formas de resistência dos reclusos contra os mecanismos de controle, disciplina e vigilância do sistema penitenciário. Portanto, ao nos apresentar a linguagem usada prisão, nos aproxima do cotidiano do presídio sob a ótica do interno. Ligado também às ciências sociais, importante destacar o trabalho de Luana Oliveira 69 , centrado na presença da religião evangélica no cotidiano prisional, com o objetivo de estudar o significado sociológico da conversão às igrejas evangélicas de presos, abordando também a questão das emoções despertadas pela religião. O trabalho de Oliveira é muito importante por abordar o mesmo objeto de investigação, então, foi de grande utilidade por nos fornecer o conhecimento de algumas práticas e vivências ocorridas no espaço da Penitenciária de Alcaçuz. Já na área de psicologia, Márcia Santos 70 nos apresenta o cotidiano prisional sob a perspectiva de dois agentes penitenciários e identifica a influência negativa que o trabalho exerce sobre eles, dadas as péssimas condições de trabalho, no tocante à higiene e segurança. Essa diversidade de trabalhos sobre os mais diversos temas relacionados à prisão nos permite compreender um pouco mais esse complexo objeto de estudo. Para estudá- lo, é fundamental conhecer sua história e contexto de nascimento, assim como importa conhecer seu cotidiano e suas práticas, bem como os sujeitos que compõem o ambiente prisional e com ele interagem. Principalmente porque para responder aos questionamentos propostos por esta pesquisa, se faz necessário conhecer o cotidiano do presídio sob a ótica dos três sujeitos integrantes desse espaço e as emoções que são ali vivenciadas por eles. Portanto, a partir dos estudos citados, entramos em contato com essas visões e emoções, o que nos inspira a observar, compreender e investigar o cotidiano do presídio aqui investigado e as subjetividades que circundam esse espaço. Não menos essencial é conhecer a legislação que regula a questão prisional no Brasil, então, as pesquisas da área jurídica nos auxiliam nesse sentido. 69 OLIVEIRA, Luana Maria Lyra Carreras Correa de. Os filhos evangélicos no Novo Caldeirão do Diabo: a conversão religiosa na Penitenciária de Alcaçuz. Dissertação. (Mestrado em Ciências Sociais). Natal: UFRN, 2012. 70 SANTOS, Márcia Maria dos. Agente penitenciário: trabalho no cárcere. Dissertação. (Mestrado em Psicologia). Natal: UFRN, 2010. 45 PARTE II – Panorama do sistema prisional brasileiro “Sistema dez: Dez graçado, Dez humano, Dez truidor, Dez ligado, Dez figurado, Dez engonçado, Dez agregador, Dez temperado , Dez trambelhado, Dez informado”. Frase escrita à mão, vista pela CPI do sistema carcerário, em uma porta na Penitenciária Lemos de Brito em Salvador. 46 Capítulo 2. O sistema penitenciário atual: encarceramento em massa 2.1. O Brasil e sua política criminal 71 : influências Atualmente, em diversos países – entre eles o Brasil – é possível observar um fenômeno de aprisionamento em massa, caracterizado pelas altas taxas de prisões efetuadas e que estaria intimamente ligado à difusão da penalidade sob a égide do neoliberalismo 72 , que prega uma punição mais rígida. De acordo com o sociólogo Loïc Wacquant (2011), esse fenômeno foi inventado nos Estados Unidos – por institutos de consultoria da era Reagan 73 – com o intuito de estabelecer novo regime de emprego desregulamentado. Segundo Wacquant, difundiu-se, nos Estados Unidos, a tese de que o sistema penal contribui diretamente para regular os segmentos inferiores do mercado de trabalho, pois, de modo direto, o encarceramento retira os indivíduos à força do mercado de trabalho, fazendo com que os postos de trabalho fiquem vagos, diminuindo artificialmente o nível de desemprego. E, secundariamente, são criadas novas oportunidades de emprego ligadas ao setor de bens e serviços carcerários, os quais se elevam com a privatização, comum no sistema penitenciário estadunidense. Além disso, 71 As políticas criminais são aquelas que definem crimes e punições e integram as políticas públicas voltadas à segurança. É o programa do Estado para controlar a criminalidade e se baseia, por exemplo, em mudanças sociais; avanços e descobertas da criminologia; dados empíricos, entre outros. A partir da análise desses dados, surgem princípios e recomendações para a reforma da legislação criminal e dos órgãos encarregados de sua aplicação. Para saber mais ver: BATISTA, Nilo. "Fragmentos de um discurso sedicioso." In: Revista Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro, ano 1, n. 1, 1996; SALLA, Fernando. "Novos e velhos desafios para as Políticas de Segurança Pública no Brasil." In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 11, n. 43, 2003, Editora Revista dos Tribunais. 72 O modelo político-econômico conhecido como neoliberalismo corresponde ao conjunto de medidas que se opõem ao Estado de Bem-Estar de estilo keynesiano e social-democrata e que leva ao afastamento do Estado da regulação da economia, com a entrega da regularização do mundo econômico à sua própria lógica – a lei do mercado, o capitalismo radical, sem freios ou limites. Uma das principais características desse modelo é o corte entre o econômico e o social, no qual o que importa é o primeiro e a produtividade e a competitividade são convertidas nos objetivos fundamentais da ação humana. Para saber mais ver: BOURDIEU, Pierre. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro: Zahar, 2008; ARAÚJO JÚNIOR, Isac Tolentino de. “A contemporaneidade da prisão e do sistema punitivo: sistema pós-correcional no capitalismo de barbárie”. In: Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, Rio de Janeiro: vol. 3, n.1, 2011, p. 33-61. 73 A era Reagan foi o período no qual os Estados Unidos estiveram sob o governo do republicano Ronald Reagan, que se estendeu de 1981 a 1989 e foi marcado por uma postura de governo conservadora e adoção de uma política neoliberal. Para saber mais ver: SILVA, Rodrigo Cândido da. “Era Reagan: política externa, militarização e conservadorismo estadunidense na “Nova Guerra Fria”. In: VI Congresso Internacional de História. Disponível em: http://www.cih.uem.br/anais/2013/trabalhos/251_trabalho.pdf. Acesso em: 01 jul. 2015; HARVEY, David. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2008; RAMONET, Ignácio. Geopolítica do caos. Petrópolis: Vozes, 2009. 47 o encarceramento maciço é responsável por acelerar o desenvolvimento do trabalho assalariado baseado na economia informal, já que o grande número de egressos do sistema prisional dificilmente conseguirá ocupar postos de empregos formais, então, terão que se submeter a trabalhos degradantes. De acordo com Wacquant (2011), essa política partiu principalmente de Washington e Nova Iorque, em fins da década de 1970 e durante a década de 1980, sendo possível observar um aumento estrondoso da população carcerária em um período no qual a criminalidade estagnava e depois recuava. O principal instituto de consultoria a disseminar essa nova política criminal foi o Manhattan Institute que, em conjunto com a mídia e com as figuras do prefeito de Nova Iorque Rudolph Giulianni 74 , do ex-chefe de polícia William Brantton 75 e do cientista político Charles Murray, foram os principais apoiadores e propagadores dessa política que pregava o lema da “lei e ordem” e a “tolerância zero” aos delitos. O Manhattan Institute foi o responsável por vulgarizar a teoria “da vidraça quebrada”76 (Broken Windows Theory), adaptada do ditado popular “quem rouba um ovo rouba um boi”, a qual sustenta que a luta contra os pequenos distúrbios cotidianos seria responsável por fazer recuar as grandes patologias criminais. Seguindo essa lógica, a polícia de Nova Iorque inicia uma forte repressão aos delitos de menor potencial ofensivo. Passa a reprimir com dureza o pequeno traficante, jogo, ameaças, sujeira, embriaguez, vagabundagem 77 . Observa-se que a ênfase dessa política está em reprimir e encarcerar, mesmo que pelos crimes mais banais, acreditando ser essa a única solução para a redução da criminalidade. Assim, a política da “tolerância zero” tinha como principal prática o Stop and Fisk, o que significava submeter a um controle 78 na rua qualquer transeunte 74 Giuliani foi prefeito da cidade de Nova Iorque pelo partido Republicano no período 1994-2001. A sua gestão se caracterizou por um rigoroso combate aos crimes, impondo “lei e ordem” reinaugurando a política de segurança pública – iniciada por Reagan – conhecida como “tolerância zero” em relação ao cometimento de delitos. 75 Foi chefe de polícia durante o governo de Giuliani. 76 Essa teoria foi formulada, em 1982, pelos criminologistas James Q. Wilson e George Kelling em artigo publicado pela revista Atlantic Monthly. 77 WACQUANT, Löic. As prisões da miséria. Rio de janeiro: Zahar, 2011, p. 35. 78 Ver discussão sobre Biopoder na sociedade de controle em: HARDT, Michael; NEGRI, Antônio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 42-43. Segundo os autores, na sociedade do controle, é assegurada obediência a suas regras e mecanismos de inclusão e/ou de exclusão, por meio de instituições disciplinares – como a prisão – que estruturam o terreno social e fornecem explicações lógicas adequadas 48 “razoavelmente suspeitoso”. Normalmente, se voltava contra os pobres e negros, principais ocupantes do espaço público, portanto, esse controle excessivo estava dirigido para uma limpeza étnica e de classe desse espaço através da força policial. Constituía-se numa verdadeira penalização da pobreza, aumentando consideravelmente o número de encarcerados, mas primando por aprisionar os miseráveis. Assim, foram constituídas as prisões da miséria, de que nos fala Wacquant. Tomando como base essa lógica, principalmente na cidade de Nova Iorque, procedeu-se à adoção de “medidas de limpeza policial” das ruas e de encarceramento dos pobres, miseráveis, inúteis e insubmissos à ditadura do mercado desregulamentado. Para Wacquant (2011), esse novo “bom senso punitivo” criado nos Estados Unidos objetivava desconstruir o Estado de Bem-estar e se revelava como uma transição do Estado social para o Estado penal, do Estado providência ao Estado penitência. Assim, os Estados Unidos passaram a utilizar “o hiperencarceramento como um estranha política antipobreza”79, o que marca o começo de um governo de insegurança social, “que une a mão invisível do mercado de trabalho desregulado ao punho de ferro de um aparato punitivo, onipresente e intrusivo”80. Aos poucos, esse novo senso comum penal foi exportado de Nova Iorque para outras partes do mundo. Primeiramente chega à Europa, atingindo países como Itália, Alemanha, França, Inglaterra e Áustria. Chega também ao continente africano e às Américas. Por exemplo, em agosto de 1998, é lançada no México uma “Cruzada nacional contra o crime”. Em setembro do mesmo ano, Buenos Aires passa a aplicar “a doutrina elaborada por Giuliani”. E, nessa conjuntura, chega ao Brasil: Em janeiro de 1999, depois da visita de dois altos funcionários da polícia de Nova Iorque, o novo governador de Brasília, Joaquim Roriz, anuncia a aplicação imediata da „tolerância zero‟ mediante a contratação imediata de 800 policiais civis e militares suplementares em resposta a uma onda de crimes de sangue do tipo que a capital brasileira conhece periodicamente. Aos críticos dessa política que argumentam que isso vai se traduzir por um súbito aumento da população encarcerada, embora o sistema penitenciário já esteja à para a “razão da disciplina”. Essa sociedade seria administrada pelo biopoder, que é a forma de poder que regula a vida social por dentro, acompanhando-a, interpretando-a, absorvendo-a e a rearticulando. 79 Ibidem, p. 19. 80 Idem. 49 beira de uma explosão, o governador retruca que bastarão então construir novas prisões 81 . 2.2. Consequência da política criminal brasileira: hiperencarceramento Paulatinamente, foi sendo inserida no Brasil a adoção de algumas premissas dessa nova política criminal iniciada nos Estados Unidos, que culminou na evolução da taxa de encarceramento brasileira. Sendo essa a principal consequência da adoção dessa política criminal mais rígida, centrada no aprisionamento dos indivíduos como forma de resolver o problema da insegurança pública. Assim, essa política se baseia na crença de que ao encarcerar mais indivíduos, e, consequentemente, retirá-los das ruas, haveria uma diminuição das taxas de crimes, o que aumentaria a segurança. O Ministério da Justiça divulgou, em 2014, dados mais recentes 82 sobre a realidade carcerária brasileira, constatando esse grande aumento no número de presos, como podemos observar no gráfico abaixo, retirado do sítio eletrônico da organização Conectas Direitos Humanos 83 : Gráfico 1- Evolução da população carcerária brasileira 84 81 Ibidem, p. 39. 82 Esses dados estão presentes no Mapa das Prisões, divulgado em 2014, mas que contém dados de 2013. 83 A Conectas é uma organização não governamental internacional, sem fins lucrativos, fundada em setembro de 2001 em São Paulo. Tem a missão de promover a efetivação dos direitos humanos e do Estado Democrático de Direito, no Sul global – África, América Latina e Ásia. Desde janeiro de 2006, possui status consultivo junto à Organização das Nações Unidas (ONU) e desde maio de 2009, dispõe de status de observador na Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos. Essa organização publica regularmente, em seu sítio eletrônico, os dados públicos sobre a situação dos presídios brasileiros, tendo como objetivo desenhar um cenário cada vez mais complexo e atualizado da situação, pautando com dados o debate sobre segurança pública e contribuindo com a formulação de soluções mais adequadas para os problemas do sistema. Para saber mais ver: www.conectas.org. 84 Fonte: Ministério da Justiça. Jun. 2013, extraído do site: http://www.conectas.org/pt/noticia/25378- mapa-das-prisoes. Acesso em 02 jun. 2015. 50 É possível observar, portanto, uma crescente evolução do número de encarcerados que, tendo iniciado em fins dos anos 1990, foi se aprofundando nos anos 2000 e continua em ascensão. De acordo com uma pesquisa feita pelo Centro Internacional de Estudos Prisionais da Inglaterra (King‟s College de Londres), em 2014, o Brasil passou a ter a terceira maior população carcerária do mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos e da China, conforme a tabela abaixo 85 : Tabela 1- Ranking dos países com as maiores populações carcerárias 86 Estados Unidos 2.228.424 China 1.701.344 Brasil 711.463 Rússia 676.400 Índia 385.135 Tailândia 296.577 México 249.912 Irã 217.000 África do Sul 157.394 Indonésia 154.00 Com relação à crescente evolução no número de encarcerados no Brasil, importante mencionar também uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa e Cultura Luís Flávio Gomes (IPC – LFG)87. Essa pesquisa levou em consideração o período de 20 anos, entre os anos 1990 e 2010 e constatou que o Brasil é o país que mais apresentou crescimento da população carcerária do mundo, tendo apresentado um aumento de 450%. Essa pesquisa indica ainda que, no mesmo período, os Estados 85 Os dados da tabela levam em consideração também as prisões domiciliares. O número de pessoas efetivamente presas no sistema penitenciário brasileiro, de acordo com essa pesquisa, é de 563.526. Assim, se desconsiderarmos a quantidade de prisões domiciliares, o Brasil ocupa a quarta posição na tabela, ficando atrás da Rússia. 86 Tabela confeccionada pela autora com dados do King‟s College de Londres, extraídos do site: http://www.kcl.ac.uk/depsta/law/research/icps/worldbrief/wpb_stats.php?area=all&category=wb_poptotal 87 O instituto mudou de nome e atualmente se chama Instituto Avante Brasil – IAB (Instituto da Prevenção do Crime e da Violência). É uma entidade sem fins lucrativos e que tem por escopo facilitar o acesso às informações e pesquisas sobre os mais diversos temas acadêmicos e científicos. Realiza pesquisas, cria fontes de dados, acompanha e avalia as diversas políticas adotadas e implementadas pelas autoridades e, sobretudo, contribui para a elaboração de políticas públicas nas suas áreas de atuação. Para saber mais ver: http://www.institutoavantebrasil.com.br. 51 Unidos apresentaram crescimento de 77%, a China de 31% e a Rússia de 17% 88 . Observa-se, portanto, que a população carcerária vem crescendo num ritmo bastante acelerado, enquanto que nos outros países esse crescimento se dá de maneira mais lenta, inclusive com períodos de decréscimo, conforme podemos observar no gráfico abaixo: Gráfico 2- Evolução das populações carcerárias por país 89 Essa pesquisa fez ainda uma projeção carcerária, utilizando como dados a movimentação carcerária do Brasil no período de 2005 a 2010 e a dos Estados Unidos no período de 2007 a 2009. Detectou, então, que, se as taxas de encarceramento brasileiras continuarem a subir nesse ritmo, em 2034, o Brasil terá a maior taxa de aprisionados do mundo, superando a população carcerária estadunidense. O estudo fez esses cálculos tendo como base a taxa média de crescimento da população carcerária brasileira no período pesquisado, o que corresponde a 6,80% ao ano. Com relação aos Estados Unidos, o cálculo baseou-se na taxa de redução da população carcerária no período estudado, correspondente a -0,03% por biênio e aproximadamente -0,0139% por ano. Assim, calcularam que, em 2034, os Estados Unidos terão 2.289.401 reclusos, já o Brasil passaria a ter 2.415.905. Essa grande evolução do número de presos explica-se pelo recrudescimento da punição, que em parte, pode ser justificado por um forte clamor midiático e social favorável a punições cada vez mais duras e severas, o que termina por estimular mudanças nas legislações com essa finalidade. Sobre esse endurecimento das punições, 88 Dados extraídos do site: http://www.ipcluizflaviogomes.com.br. 89 Dados extraídos do site: http://www.kcl.ac.uk/depsta/law/research/icps/worldbrief/. 52 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) 90 se posicionou, num documento oficial 91 , atestando que vinha observando, nas Américas, uma tendência generalizada de maior uso do encarceramento e que havia uma extrema necessidade de rever algumas políticas criminais implementadas. 2.3. Reformas legislativas e institucionais: caos no sistema prisional Essa tendência estaria sendo usada por muitos Estados como resposta à grande insegurança vivenciada no cotidiano e ao clamor da sociedade. Assim, muitos países passaram a adotar medidas legislativas e institucionais para fundamentar o maior uso do encarceramento como solução para o problema de segurança pública. A partir da última década, é possível observar essas reformas legislativas pautadas na restrição das garantias legais aplicáveis aos casos de prisões, aumento das prisões preventivas e das penas, ampliação do rol de delitos puníveis com pena de prisão, não utilização de medidas alternativas à prisão e restrição às possibilidades de concessão de medidas que oportunizam ao recluso ir progressivamente atingindo a liberdade 92 . No caso brasileiro, um exemplo dessa política criminal é a Lei dos Crimes Hediondos 93 , que regula a aplicação de pena para crimes considerados mais graves, apresenta então um rol taxativo dos crimes considerados hediondos ou a eles equiparados, como o latrocínio, homicídio qualificado, estupro, tráfico, tortura, 90 A Comissão Interamericana de Direitos Humanos foi uma das principais instituições criadas pela Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA) para a proteção e promoção dos direitos humanos. Sua sede é em Washington, EUA, e durante as sessões, a Comissão ouve as denúncias de indivíduos e representantes de organizações de abusos contra os direitos humanos. Sua principal tarefa é ouvir e supervisionar as petições que são apresentadas contra algum Estado-membro da OEA denunciando abusos contra os direitos humanos. Os direitos humanos universalmente protegidos pela Comissão e, portanto, elegíveis à petição para sua proteção, são aqueles encontrados na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. Os Estados que ratificaram a Convenção Americana de Direitos Humanos estão circunscritos pelos direitos humanos garantidos na Convenção, os quais são monitorados pela Comissão. Dados extraídos do site: http://www.mpma.mp.br/arquivos/COCOM/arquivos/centros_de_apoio/cao_direitos_humanos/direitos_h umanos/textos/sistemaInteramericano.htm 91 Informe sobre el uso de la prisión preventiva em las Américas, publicado no dia 30 de dezembro de 2013. Disponível em: www.oas.org/es/cidh/ppl/informes/pdfs/informe-pp-2013-es.pdf. Acesso em 02 jul. 2015. 92 Ibidem, p. 34. 93 Essa é a Lei 8072, publicada em 25 de julho de 1990, que definiu, em seu artigo 1º, quais são os crimes hediondos e passou a impor tratamento penal mais severo a esses crimes e aos equiparados a eles. Para saber mais ver: VAZ, Paulo Junio Pereira. Lei dos crimes hediondos e suas recentes alterações: Aspectos polêmicos. Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/lei-dos-crimes-hediondos- e-suas-recentes-altera%C3%A7%C3%B5es-aspectos-pol%C3%AAmicos. Acesso em 05 jul. 2015. 53 terrorismo, etc. No ano de 2007, essa lei sofreu alterações e aumentou o tempo para o apenado ter acesso ao benefício da progressão de regime prisional. Anteriormente, o recluso poderia obter a progressão de regime após o cumprimento de um sexto de sua pena condicionado a um bom comportamento carcerário. Com a mudança nessa lei, só é possível a obtenção do benefício após o cumprimento de dois quintos da pena, se o apenado for réu primário e três quintos, se for reincidente. Portanto, foi criado um obstáculo para que essas pessoas, aos poucos, fossem atingindo a liberdade. Como exemplo de endurecimento da punição, podemos mencionar também o caso da lei que criou o Regime Disciplinar Diferenciado – RDD94, o que representou um maior rigor no sistema de cumprimento das penas, pois a legislação passou a prescrever uma grande limitação aos direitos dos presos condenados e provisórios que viessem a cometer fato previsto como crime doloso, que ocasionasse subversão da ordem ou disciplina da instituição prisional. E também àqueles sobre os quais houvesse suspeita de envolvimento com organizações criminosas, quadrilha ou bando. Como é possível observar no artigo 52 da referida lei: Art. 52: A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características: I- duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada; II - recolhimento em cela individual; III - visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas; IV - o preso terá direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol. § 1o O regime disciplinar diferenciado também poderá abrigar presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade. § 2o Estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando. , 94 O RDD foi criado em 2003 pela lei 10.792, que alterou que alterou a lei 7.210/84 (Lei de Execução Penal). 54 Atualmente, outra questão que vêm sendo bastante discutida por toda a sociedade é a redução da maioridade penal, que foi aprovada na Câmara dos Deputados através da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 171/93. A proposta seguirá para votação no Senado, onde também deverá ser votada em dois turnos e, para ser aprovada, precisa do voto favorável de três quintos dos parlamentares. Se for realmente aprovada, contribuirá muito para aumentar o caos do sistema prisional, uma vez que provocará o aumento do número de internos do sistema prisional. Todavia, o principal exemplo que contribui para o inchaço do sistema penitenciário diz respeito à aplicação da lei relativa à prisão preventiva, que é regulada pelo Código de Processo Penal (artigos 311 a 316) e sofreu algumas alterações em 2011, pela lei 12.403 95 . A aplicação da prisão preventiva sempre foi encarada como exceção, em razão do princípio da presunção de inocência ou princípio da presunção de não culpabilidade. De acordo com esse princípio, ninguém deve ser considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória 96 . Assim, a regra é a de que o acusado responda ao processo em liberdade e que a prisão preventiva se apresente como medida excepcional, sendo imposta pelo juiz ou tribunal competente, somente nos casos previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal, que são os seguintes: como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. Além disso, é imprescindível que não seja cabível a adoção de alguma das medidas cautelares restritivas, previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal, como: monitoração eletrônica, recolhimento domiciliar noturno e nos dias de folga, proibição de ausentar-se do país com retenção do passaporte etc. É possível observar que na prática, a prisão preventiva, que deveria ser uma exceção, acaba sendo utilizada de maneira excessiva. Isso ocorre porque a legislação que a regula termina não sendo totalmente clara com relação às hipóteses nas quais é cabível a prisão preventiva. Por exemplo, quando a lei prescreve o cabimento da prisão 95 Essa lei foi publicada em 04 de maio de 2011e alterou dispositivos do Código de Processo Penal, relativos à prisão processual, fiança, liberdade provisória e demais medidas cautelares. 96 Para saber mais ver: RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 25. 55 preventiva “como garantia da ordem pública”, o faz de maneira muito vaga, cabendo ao juiz discricionariamente decidir se é ou não hipótese de prisão. Do mesmo modo acontece quando a lei prevê a prisão preventiva “para assegurar a aplicação da lei penal”. Normalmente, a prisão acaba sendo decretada em desfavor daqueles que não possuem um emprego formal e/ou residência fixa, pois, em tese, julga-se que essas pessoas estariam mais propensas a fugir e se evadiriam da aplicação da lei. Termina por haver um julgamento e uma condenação antecipada, uma verdadeira penalização da pobreza, que está intimamente ligada à tese de Wacquant (2011) sobre o aprisionamento dos miseráveis. É possível constatar essa situação de abuso na utilização da prisão preventiva através do gráfico abaixo, o qual nos mostra o grande percentual de presos provisórios no Brasil: Gráfico 3- Quantidade de presos por regime de detenção no Brasil 97 De acordo com esse gráfico, o percentual de presos provisório é de 44%, enquanto que o percentual de internos submetidos ao regime fechado é de 39%. Os submetidos ao regime semiaberto correspondem a 13,5%, já aqueles que cumprem pena no regime aberto são 2,9%. Estão cumprindo medida de segurança de internação 0,5% e 97 Fonte: Ministério da Justiça. Jun. 2013, extraído do site: http://www.conectas.org/pt/noticia/25378- mapa-das-prisoes. Acesso 02. Jul. 2015. 56 tratamento ambulatorial 0,1%. Sobre a quantidade de presos em cada regime de detenção, existe outra fonte de dados 98 , do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), divulgada também em junho de 2013, que traz dados um pouco diferentes dos apresentados pelo Ministério da Justiça (MJ), mas que também aponta um grande número de pessoas submetidas à prisão provisória. De acordo com os dados do CNJ, o percentual de presos provisórios seria de 32,47%, enquanto que os presos submetidos aos demais regimes corresponderiam a 46,73% e aqueles que cumprem prisão domiciliar seriam 20,79%. Todas essas informações devem ser analisadas com ressalvas, uma vez que cada instituição utiliza uma metodologia para a colheita dos dados. O Ministério da Justiça utiliza dados fornecidos pelos governos estaduais, que são responsáveis pela maioria dos estabelecimentos prisionais brasileiros, assim, os números estão sujeitos às leituras e parâmetros estabelecidos por cada administração. Já o CNJ utiliza os dados tendo como base levantamentos feitos nas varas de execução penal e incluiu também nesse balanço os presos em regime domiciliar, o que gerou uma diferença de quase 30% em relação à população carcerária apontada pelo Ministério da Justiça. Sobre a utilização da prisão preventiva, foi publicado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no final de 2013, o Informe sobre o uso da prisão preventiva nas Américas 99 , uma vez que a Comissão detectou que o respeito aos direitos das pessoas privadas de liberdade é um dos principais desafios que enfrentam os Estados membros 100 da Organização de Estados Americanos (OEA) e que, com o uso excessivo dessa modalidade de prisão, acaba por haver uma violação aos direitos humanos desses indivíduos. Assim, faz-se extremamente necessário debater a questão, sendo o propósito desse Informe contribuir para a diminuição do número de prisões preventivas, ajudando, os Estados membros da OEA no cumprimento de suas obrigações internacionais. Além de ser uma ferramenta útil para o trabalho de instituições e organizações comprometidas com a promoção e defesa dos direitos das pessoas encarceradas. 98 Dados disponíveis no site: http://www.conectas.org/pt/noticia/25378-mapa-das-prisoes. Acesso 02. Jul. 2015. 99 Original em espanhol. Disponível em: www.oas.org/es/cidh/ppl/informes/pdfs/informe-pp-2013-es.pdf. 100 O Brasil é um dos 21 membros originais da Organização dos Estados Americanos (OEA), que se reuniram na IX Conferência Internacional Americana, realizada em Bogotá, no ano de 1948, para a assinatura da Carta da OEA, que deu início à Organização. Dados extraídos do site:https://www.oas.org/pt/sobre/estados_membros.asp. Acesso 01 jul. 2015. 57 O Informe aponta que existem causas de diversas naturezas a justificar o uso da prisão preventiva, estando elas relacionadas, principalmente, à ênfase dada às políticas criminais que propõem níveis maiores de encarceramento como solução para a insegurança vivenciada no cotidiano, o que corrobora a tese de Wacquant (2011). Isso tem levado diversos países a promover uma série de reformas legais, as quais têm gerado um aumento das prisões preventivas. Tem também muito impacto nesse aumento a pressão exercida pela mídia e pela opinião pública, que anseiam por ver encarcerados aqueles que cometem crimes. Isso acaba por exercer influência nas autoridades judiciais encarregadas de aplicar a prisão preventiva 101 . A esses fatores, somam-se a demora nos trâmites dos processos penais e a ausência de uma assessoria jurídica adequada, o que acaba por fazer com que a prisão preventiva se prolongue. Podemos observar no gráfico abaixo que, no Brasil, há um descompasso entre o número de defensores públicos e o de juízes e promotores: Gráfico 4- Equilíbrio nos órgãos do sistema de justiça 102 A quantidade de promotores (9,9 mil) é praticamente o dobro da de defensores (5 mil), enquanto que a quantia de magistrados (11,8 mil) ultrapassa o dobro dos defensores. Assim, observa-se um desequilíbrio estrutural e financeiro entre esses três órgãos – Defensoria Pública, Ministério Público e Judiciário – e fica nítido, que as 101 Informe sobre el uso de la prisión preventiva em las Américas. p.9. Disponível em: www.oas.org/es/cidh/ppl/informes/pdfs/informe-pp-2013-es.pdf. Acesso 02 jul. 2015. 102 Fonte: Associação Nacional de Defensores Públicos (Anadep) e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Dados de 2013, extraídos do site: http://www.conectas.org/pt/noticia/25378-mapa-das- prisoes. 58 prioridades da política criminal brasileira estão centradas na acusação e punição, em detrimento da defesa dos acusados, o que só faz aumentar o número de encarcerados, inchando o sistema penitenciário. Os efeitos dessa política criminal, responsável pela aplicação excessiva da prisão preventiva, estão diretamente ligados ao inchaço do sistema penitenciário, o que acaba por incentivar a construção de mais presídios e centrar os investimentos públicos no aparelhamento dessas instituições. A realidade brasileira pode ser visualizada no gráfico abaixo, que traz a distribuição orçamentária do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN): Gráfico 5- Distribuição Orçamentaria do Fundo Penitenciário Nacional 103 Observa-se que a maior parte dos gastos do FUNPEN destina-se à construção de novas penitenciárias, boa parte é empregada na manutenção e aparelhamento das unidades prisionais, enquanto que uma parcela ínfima se destina ao apoio de medidas alternativas à pena de prisão, que seriam uma solução eficaz para a diminuição do número de prisões. 103 Fonte: Ministério da Justiça. Dados de 2011, extraídos do site: http://www.conectas.org/pt/noticia/25378-mapa-das-prisoes. 59 Mesmo com esse apoio à construção de presídios, não se consegue resolver o problema da superlotação 104 , uma vez que esse já é um problema crônico e com o número de presos aumentando a cada dia, fica impossível que a construção das cadeias acompanhe esse crescimento exponencial. Os altos níveis de superlotação das cadeias geram uma série de problemas, inicialmente, para os governos estaduais e federais devido aos altos gastos 105 , mas principalmente com relação à violação dos direitos fundamentais dos reclusos, como a integridade física. A superlotação provoca um aumento nos níveis de violência entre os internos; impede que disponham de um mínimo de privacidade; dificulta o acesso aos serviços básicos, como o acesso à água e a tratamento de saúde. Por exemplo, há apenas um clínico geral para cada 1,4 mil presos, um médico ginecologista para cada grupo de 1,7 mil mulheres presas e um psiquiatra para cada grupo de 2 mil presos 106 . Facilita ainda a proliferação de doenças; cria um ambiente no qual as condições de salubridade e higiene são deploráveis; constitui em si mesmo um fator de risco em situações de emergência; restringe o acesso dos internos a atividades produtivas; propicia a corrupção; afeta o contato dos reclusos com os familiares; e acaba por gerar infindos problemas para a gestão da instituição prisional 107 . Também encontramos informações sobre essa situação deplorável encontrada nos presídios brasileiros num relatório divulgado pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Sistema Carcerário 108 , que atestou: A superlotação é talvez a mãe de todos os demais problemas do sistema carcerário. Celas superlotadas ocasionam insalubridade, doenças, motins, rebeliões, mortes, degradação da pessoa humana. A 104 De acordo com o Diagnóstico de Pessoas Presas, divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça, com dados de 2013, o sistema penitenciário brasileiro se encontra superlotado, apresentado um déficit de 206.307 vagas. Se for computada nessa estatística a prisão domiciliar, o déficit é de 354.244 vagas. Dados extraídos do site: http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/diagnostico_de_pessoas_presas_correcao.pdf. 105 O custo mensal médio de cada preso é R$ 1.600,00, enquanto que o custo médio para se criar uma vaga no sistema prisional está em torno de R$ 20.000,00. Dados extraídos da: CPI sistema carcerário. Brasília: Centro de Documentação e Informação – Edições Câmara, 2009, p. 221-222. 106 Dados extraídos do site: http://www.conectas.org/pt/noticia/25378-mapa-das-prisoes. 107 Informe sobre el uso de la prisión preventiva em las Américas. p. 109. Disponível em: www.oas.org/es/cidh/ppl/informes/pdfs/informe-pp-2013-es.pdf. Acesso em 02 jul. 2015. 108 Essa CPI tem a finalidade de investigar a realidade do sistema carcerário brasileiro, com destaque para a superlotação dos presídios, custos sociais e econômicos desses estabelecimentos, a permanência de encarcerados que já cumpriram pena, a violência dentro das instituições prisionais, a corrupção, o crime organizado e suas ramificações nos presídios e de buscar soluções para o efetivo cumprimento da LEP.O último relatório foi divulgado em 2009. 60 CPI encontrou homens amontoados como lixo humano em celas cheias, se revezando para dormir, ou dormindo em cima do vaso sanitário 109 . A ressocialização acaba também comprometida diante da situação encontrada nos cárceres brasileiros. Como estão diante de uma situação de “abandono” por parte do Estado, muitos internos acabam recorrendo às organizações criminosas 110 – que se fazem presentes dentro das penitenciárias – em busca de alguma proteção. Mesmo que o interno não passe a integrar uma organização, diante da realidade vivenciada no interior dos presídios, dificilmente, são proporcionadas condições de ressocialização: O ideário da ressocialização do criminoso, de um tratamento humanista do condenado (...) vem se tornando cada vez mais formalista. Aquele ideário pode estar contemplado nas legislações, mas é sistematicamente corroído pelas práticas institucionais. É cada vez mais evidente que a gestão da pena de prisão tornou-se um problema de custos e de manutenção da ordem interna dos estabelecimentos de encarceramento, o que fez crescer de modo contundente as práticas punitivas no interior das prisões 111 . Sobre a ressocialização há uma previsão expressa na Lei de Execuções Penais, que no artigo 10 assinala: “a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade”. Além da LEP, o Código Penal, em seu artigo 59, assegura que a aplicação da pena deve ser 109 CPI sistema carcerário. Brasília: Centro de Documentação e Informação – Edições Câmara, 2009, p. 247. 110 Segundo a CPI do sistema carcerário são várias as siglas e nomenclaturas das organizações criminosas, que atuam, principalmente, no Rio de Janeiro e São Paulo. Destacam-se, em São Paulo: PCC – Primeiro Comando da Capital; TCC – Terceiro Comando da Capital; CRBC – Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade; CDL – Comando Democrático da Liberdade e Seita Satânica. No Rio de Janeiro são conhecidas as facções: CV – Comando Vermelho; TC – Terceiro Comando; ADA – Amigos dos Amigos; IDI – Inimigos dos Inimigos e AI – Amigos de Israel. (CPI sistema carcerário, 2009, p.56). Essas organizações possuem ramificações pelos estados, assim, como existem facções próprias a cada estado. No caso do Rio Grande do Norte, na Penitenciária Estadual de Alcaçuz, foi constatada a presença do PCC e de uma organização própria, o Sindicato do RN. A presença dessas organizações criminosas mostra a presença de um poder paralelo ao poder oficial do Estado. A facção, por vezes, oferece ao criminoso uma proteção que o Estado nem sempre consegue oferecer, por exemplo, contra brigas e mortes no interior e fora das unidades prisionais. Daí se explica o fato de possuírem muitos adeptos. Para saber mais sobre organizações criminosas ver: ADORNO, Sérgio; SALLA, Fernando. “Criminalidade organizada nas prisões e os ataques do PCC”. Estudos Avançados, São Paulo, v. 21, n. 61, dez. 2007. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010340142007000300002&lng=pt&nrm=iso; BIONDI, Karina. Junto e misturado: uma etnografia do PCC. São Paulo: Terceiro Tempo, 2010; SOUZA, Percival de. Sindicato do crime: PCC e outros grupos. São Paulo: Ediouro, 2006. 111SALLA; Fernando. “A retomada do encarceramento, as masmorras high tech e a atualidade do pensamento de Michel Foucault”. In: Cadernos da FCC. v. 9, n.1, 2000, p. 37-38. 61 destinada à reprovação e prevenção do crime. Assim, em razão dessa previsão legal, compete ao Estado promover condições para a ressocialização dos reclusos justamente para prevenir o cometimento de novos delitos. Todavia, esse dever não vem sendo observado, o que se constata ao se verificar a situação dos cárceres brasileiros. Nesse sentido, é oportuno citar o trabalho da assistente social Laudilene Gomes, que desenvolveu uma pesquisa sobre a reincidência criminal no cotidiano prisional da Penitenciária Estadual de Parnamirim, no Rio Grande do Norte, e chegou às seguintes conclusões: O projeto de ressocialização da pena privativa de liberdade acaba sendo visto como algo utópico, visto que as prisões ao invés de reintegrar o condenado ao convívio social, estão fugindo de qualquer objetivo a ensejar a dita ressocialização, devido à falta de estrutura física e organizacional em que se encontram. A questão da recuperação do condenado é atualmente contestada por muitos criminalistas brasileiros, pois não estamos conseguindo cumprir a intenção legislativa, sobretudo quando se sabe que os índices de reincidência no Brasil são alarmantes, segundo o DEPEN de cada dez apenados que saem da prisão, sete voltam a delinquir, numa demonstração clara de que há falhas gritantes no âmbito do sistema penitenciário do país. 112 Outra grave consequência da superlotação é a impossibilidade de classificar os presos em provisórios ou sentenciados. Conforme determina a Lei de Execuções Penais, em seu artigo 84, “o preso provisório ficará separado do condenado por sentença transitada em julgado”. Logo, os presos provisórios devem ficar num estabelecimento distinto dos que já foram condenados, para que haja o respeito ao princípio da presunção de inocência. Todavia, os presos provisórios que deveriam ficar separados, por vezes, dividem o mesmo espaço com os condenados em razão da superlotação. E, quando há uma separação, acabam submetidos a condições mais precárias que os condenados, pois, normalmente são alojados em delegacias de polícia ou nos Centros de Detenções Provisórias (CDP), os quais, em geral, não possuem condições adequadas para uma estadia mais prolongada. Portanto, na maioria das vezes, os presos provisórios são expostos às mesmas condições que os condenados, ou até piores. Sobre esse assunto, o Informe sobre o uso 112 DAVI, Laudilene Gomes. A reincidência criminal no cotidiano prisional da Penitenciária Estadual de Parnamirim – PEP. Natal: UFRN, 2011. Mestrado (Dissertação em Serviço Social), p.50-51. 62 da prisão preventiva nas Américas traz a informação de que as pessoas submetidas à modalidade de prisão preventiva sofrem grandes tensões, além de impacto psicológico e emocional em razão de estarem privados de liberdade sem terem sido condenados. Inclusive destaca que os índices de suicídios cometidos em prisões são maiores entre os presos provisórios 113 . Ressalta, então, a extrema necessidade de se revisar a aplicação dessa modalidade de prisão e de rodeá-la das máximas garantias jurídicas. As orientações desse Informe sustentam que, além do princípio da presunção inocência, outros dois princípios essenciais se apresentam como justificativa para o não uso excessivo da prisão preventiva: o princípio do trato humano e o princípio da posição de garantidor do Estado. O primeiro assegura que toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com respeito à sua dignidade humana e seus direitos fundamentais. Ou seja, a prisão de uma pessoa não deve levá-la a sofrer mais restrições ou sofrimentos do que aqueles inerentes à privação de liberdade. Já o princípio da posição de garantidor do Estado assegura que o Estado, ao privar de liberdade um indivíduo, assume uma posição de garantidor de seus direitos fundamentais, em particular do direito à vida e à integridade física. O que significa que o exercício do poder de custódia leva consigo a responsabilidade especial de assegurar que a privação de liberdade cumpra o seu propósito e não conduza à violação de outros direitos. Neste sentido, é fundamental a satisfação das necessidades básicas dos reclusos: serviços médicos, alimentação e água potável, além de condições básicas de higiene e segurança interna 114 . No Informe, há ainda uma orientação clara de que a aplicação da prisão preventiva como exceção é um elemento que, necessariamente deve estar presente em toda política criminal que leve em consideração as diretrizes do Sistema Interamericano. Logo, a decretação de uma prisão preventiva deve ser sempre medida excepcional e estar de acordo com os critérios de necessidade e proporcionalidade 115 . Abordando essa questão, existem diversas normas em instrumentos internacionais, por exemplo, a 113 Informe sobre el uso de la prisión preventiva em las Américas. p. 4. Disponível em: www.oas.org/es/cidh/ppl/informes/pdfs/informe-pp-2013-es.pdf. Acesso em 02 jul. 2015. 114 Ibidem, p. 6. 115 Ibidem, p.7. 63 Convenção Americana de Direitos Humanos 116 estabelece que “ninguém pode ser submetido a detenção ou encarceramento arbitrário”117. Dispõe ainda que toda pessoa presa “tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo”118. Igualmente, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem119 dispõe que: “todo indivíduo, que tenha sido privado da sua liberdade, tem o direito de que o juiz (...) o julgue sem protelação injustificada ou, caso contrário, de ser posto em liberdade”120. Podem ser citadas ainda as Regras Mínimas para o Tratamento dos Presos 121 da Organização das Nações Unidas (ONU), que estabelecem princípios e regras de uma boa organização penitenciária e da prática relativa ao tratamento dos prisioneiros. Esse documento, em seu artigo 84, prevê que os presos ainda não julgados devem ser submetidos a um tratamento especial, como: ser mantidos separados dos presos condenados 122 . Portanto, observa-se, que a situação do Brasil, no tocante à política criminal, reflete uma situação que também vem sendo vivenciada em outros países do continente americano, conforme indica o Informe sobre as prisões nas Américas. Também aborda essa questão, um trabalho realizado pelos pesquisadores Salla e Ballesteros 123 , que estudaram as condições das prisões na América do Sul, descreveram e analisaram os 116 A Convenção Americana de Direitos Humanos, também chamada de Pacto de San José da Costa Rica, é um tratado internacional entre os países membros da OEA e que foi subscrita durante a Conferência Especializada Interamericana de Direitos Humanos, realizada em 22 de novembro de 1969, na cidade de San José da Costa Rica. É uma das bases do sistema interamericano de proteção dos Direitos Humanos. 117 Convenção Americana de Direitos Humanos. art. 7.3. Disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm. Acesso em 03 jul. 2015. 118 Ibidem, art. 7.5. 119 Essa é uma declaração internacional que foi aprovada em 1948, na IX Conferência Internacional Americana, realizada em Bogotá, a mesma conferência em que foi criada a OEA. É aplicável a todos os países membro da OEA. Seu texto inclui os direitos humanos que precisam ser protegidos e também os deveres que os indivíduos têm com a sociedade. 120 Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. Art. XXV. Disponível em: http://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/b.Declaração_Americana.htm. Acesso em 03 jul. 2015. 121 Essas regras foram adotadas pelo 1º Congresso das Nações Unidas sobre prevenção do crime e tratamento de delinquentes, realizado em Genebra, em 1955 e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social da ONU em 1957. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/lex52.htm 122 Regras Mínimas para o tratamento dos presos. art. 85.1. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/lex52.htm. Acesso em 03 jul. 2015. 123 SALLA, Fernando; BALLESTEROS, Paula Rodriguez. Democracia, Direitos Humanos e Condições das Prisões na América do Sul. Paper para o Research Project da Geneva Academy of International Humanitarian Law and Human Rights. nov. 2008. Disponível em:www.nevusp.org/portugues. Acesso em 04 jul. 2015. 64 sistemas prisionais do Brasil, Argentina e Chile. Constataram semelhanças entre os três sistemas, notadamente no tocante ao encarceramento massivo e à violação dos direitos humanos. Fizeram, então, uma análise dos aspectos sociais, políticos e institucionais que tornaram possíveis as graves violações de direitos humanos impostas aos indivíduos no âmbito da justiça criminal e nas instituições prisionais. Essa situação, conforme discutido, se originou devido à adoção de algumas premissas de uma política criminal neoliberal difundida pelos Estados Unidos a partir dos anos 1990. Criou-se, então, uma nova percepção de que os riscos devem ser minimizados, as políticas de prevenção ao crime devem ser ampliadas, e que os criminosos devem ser punidos e controlados com mais rigor. Salla e Ballesteros destacam ainda a influência das ditaduras militares vivenciadas nesses países, as quais deixaram um legado que ainda se mantém vivo: Seja pela ideologia e cultura política que deixaram, seja pela desestruturação das instituições e dos processos democráticos com o uso abusivo da repressão – em especial da violência física – para garantir a manutenção da ordem ocorridos no passado, ou enfim pela fragilidade do Estado na promoção dos direitos dos cidadãos. Enfim, são fatores que atualmente influenciam a consolidação das democracias brasileira, argentina e chilena 124 . Assim, a ditadura militar teria deixado uma herança de rigidez, abusos, repressão e excesso de punição, o que acabaria influenciando as mentalidades para apoiarem políticas criminais mais rígidas. Em razão da adoção dessa postura política aliado a outros fatores, no caso brasileiro, detecta-se um sistema prisional totalmente falido, caracterizado pelo excesso de encarceramento, ausência de um fornecimento adequado de acesso à justiça, superlotação, impossibilidade de ressocialização e graves violações aos direitos humanos em razão das péssimas condições encontradas nas penitenciárias. Esse inchaço do sistema penitenciário é, em grande medida, estimulado pelo uso abusivo das prisões preventivas, o que está relacionado à adoção, pelo Brasil, de uma política criminal rígida. Diante dessa situação, diversas organizações nacionais e internacionais – como a Conectas e a OEA – e parte da sociedade civil têm questionado essa opção pelo encarceramento massivo, assim como têm se posicionado de forma 124 Ibidem, p.4. 65 contrária a essa escolha política e proposto soluções para a diminuição do número de encarceramentos. 2.4. Soluções para o hiperencarceramento Conforme vimos, observa-se que o uso não excepcional e prolongado da prisão preventiva tem um impacto direto no aumento da população carcerária e termina por contribuir para o aumento das consequências negativas da superlotação para os reclusos e para a própria administração penal. O uso excessivo dessa medida é contrário à essência do Estado Democrático de Direito, assim como a implantação de políticas criminais orientadas a legalizar o uso da prisão preventiva como uma forma de justiça “antecipada” está à margem do devido processo legal. Além do que é contrário ao regime estabelecido pela Convenção e Declaração Americanas e aos princípios que inspiram a Carta da OEA. Ademais, é politicamente irresponsável que os Estados se elidam do dever de adotar políticas de longo prazo mais eficazes na resolução dos problemas de segurança pública, mediante a adoção de simples medidas populistas de curto prazo, que acabam trazendo um grande ônus financeiro para o Estado 125 . Portanto, as soluções para o problema do encarceramento em massa estariam na adoção de políticas e estratégias que culminassem em reformas legislativas e institucionais necessárias para assegurar um uso mais racional da prisão preventiva, a fim de que realmente só se recorra a essa medida de forma excepcional. Assim como se faz extremamente necessária a observância dos prazos máximos estabelecidos legalmente para a permanência das pessoas em prisão preventiva 126 . É igualmente importante a promoção e o uso de outras medidas cautelares, como a monitoração eletrônica, que já estão presentes na legislação, mas são raramente aplicadas. Contribuiria ainda a adoção de uma política pública mais ampla, visando ao funcionamento eficaz do sistema de justiça penal e propondo estratégias gerais de prevenção de delitos, além de uma menor repressão para os delitos considerados mais leves, que são aqueles cometidos sem violência ou grave ameaça, isto é, delitos que afetam tão somente o patrimônio, como um furto simples. 125 Informe sobre el uso de la prisión preventiva em las Américas. p. 45-46. Disponível em: www.oas.org/es/cidh/ppl/informes/pdfs/informe-pp-2013-es.pdf.Acesso em 02 jul. 2015. 126 Ibidem, p. 110. 66 Conforme dito, uma alternativa para a redução do número de encarcerados é justamente a adoção de uma maneira de punir mais branda, também conhecida como postura garantista ou aplicação do direito penal mínimo 127 . Sobre os estudiosos dessa tendência, podemos destacar dois juristas que a apoiam: o argentino Raúl Zaffaroni e o brasileiro Rogério Greco. No tocante ao sistema penal latino-americano, o jurista argentino atesta a existência de uma crise no sistema punitivo, “que se manifesta em uma progressiva „perda‟ das „penas‟, isto é, as penas como inflição de dor sem sentido”128. Justamente devido às características do sistema penal e penitenciário da América Latina é que Zaffaroni assume essa posição. Observamos um sistema penitenciário falido que pune enfaticamente uma determinada classe social e termina não conseguindo propiciar ao condenado condições de ressocialização. Então, acaba somente por submetê-lo a uma realidade degradante, que o impõe uma “dor sem sentido” ou ainda uma dor eminentemente vingativa, pois a prisão termina funcionando apenas como uma “retribuição” pelo crime cometido, uma vez que a experiência no cárcere dificilmente contribuirá para que o recluso saia ressocializado. Pelo contrário, em razão das condições encontradas nas cadeias, os bandidos terminam por se especializarem nas práticas delituosas, funcionando as cadeias como verdadeiras “universidades do crime”. Portanto, teria o sistema penal perdido a sua legitimidade e as penas aplicadas seriam “perdidas”, conforme as ideias de Zaffaroni (2010). Em razão disso, é defendida a aplicação do direito penal mínimo, segundo o jurista Rogério Greco: A tarefa de selecionar os bens [jurídicos a serem tutelados pelo Estado] parte, primeiramente, da sua valoração de acordo com uma 127 A teoria do garantismo penal foi criada pelo jurista italiano Luigi Ferrrajoli, o garantismo é conceituado por ele não só como uma teoria do Direito, mas também como modelo normativo e filosofia política. Assim, Ferrajoli entende o garantismo a partir de três planos: no plano epistemológico como um sistema cognitivo ou de poder mínimo, no plano político como uma técnica de tutela que pode minimizar a violência e maximizar a liberdade, e no plano jurídico como um sistema de vínculos impostos ao poder punitivo do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos. Ver: GIL, Lise Anne de Borba Franzoni. O garantismo jurídico de Luigi Ferrajoli e a teoria da argumentação jurídica de Robert Alexy: uma aproximação teórica. Florianópolis: UFSC, 2006. Dissertação (Mestrado em Direito). 128 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de janeiro: Revan, 2010,p.12 67 concepção minimalista, na qual somente aqueles realmente importantes poderão merecer a proteção do Direito Penal 129 . Assim, de acordo com esse entendimento, mereceriam a tutela do direito penal apenas os bens jurídicos mais relevantes, como a vida. Todavia, importa salientar que: O direito penal mínimo não gira em torno tão somente do princípio da intervenção mínima (que é, afinal, um dos principais), mas sim de vários outros postulados que convergem para o mesmo pensamento. Um exemplo disso é o princípio da proporcionalidade, que deve orientar a punição estatal (quando imprescindível). Em suma, significa estabelecer limites da atuação do Estado nas condutas humanas com o fim de punir de fato os crimes mais relevantes, porém deixando outros tipos penais pouco relevantes para serem resolvidos em outras searas do direito. Também cabe ressaltar a importância da adoção do direito penal mínimo no combate à criminalidade, tendo em vista a criação de meios ressocializadores mais efetivos aos egressos da prisão, da aplicação de penas alternativas, dentre tantos outros exemplos 130 . Portanto, além de desprezar a reprimenda aos delitos mais leves – repassando a questão para outras searas do direito, como a cível – a postura garantista reclama o uso do princípio da proporcionalidade para orientar as punições e também a utilização de medidas que oportunizem a ressocialização dos condenados, contribuindo, para a redução da criminalidade. Assim, observa-se que a adoção do direito penal mínimo pode ser uma solução na diminuição do fenômeno de hiperencarceramento vivenciado pelo Brasil. 2.5. Perfil do preso brasileiro “O Judiciário não quer e tem medo da pobreza. Ele gosta é de colocar a pobreza na cadeia” Domingos Dutra 131 . 129 GRECO, Rogério. Direito penal do equilíbrio: uma visão minimalista do direito penal. 4.ed. Rio deJaneiro: Impetus. 2009, p. 66. 130 TELLES, Juliana Maria Martins. Direito penal mínimo: a influência da tutela penal mínima no combate à criminalidade. Fortaleza: UECE, 2010. Monografia (Especialização em Direito Penal e Processual Penal). 131 Frase dita pelo deputado Domingos Dutra, relator da CPI do sistema carcerário no relatório divulgado em 2009. CPI sistema carcerário. Brasília: Centro de Documentação e Informação – Edições Câmara, 2009, p. 213. 68 Analisando os números dos encarcerados no Brasil, pode-se constatar que há uma desigualdade entre aqueles que se encontram presos e os que delinquem, uma vez que o cometimento de crimes está presente em todas as classes sociais, mas há um uso excessivo da prisão notadamente para os pobres e miseráveis. Identificamos, assim, um encarceramento massivo voltado para um segmento social específico, o que nos permite enquadrar o caso brasileiro dentro da tese proposta por Wacquant (2011). Sobre esse tipo de encarceramento, o jurista e sociólogo David Garland (2001) defende que dois elementos essenciais o caracterizam: Um deles consiste no drástico e abrupto aumento dos números. O encarceramento massivo implica altas taxas de encarceramento e populações carcerárias de dimensões que extrapolam marcadamente os padrões históricos e comparativamente com as normas encontradas em outras sociedades do gênero. O outro destaque é a concentração social dos efeitos do encarceramento. O encarceramento se torna um encarceramento massivo quando essas medidas deixam de ser pensadas apenas como o encarceramento individual do transgressor e passam a ser um encarceramento sistemático de grupos inteiros da população 132 . É possível identificar o primeiro elemento a partir da análise dos dados apresentados no início do capítulo, que mostram a evolução das taxas de encarcerados no Brasil. A respeito do segundo elemento caracterizador do encarceramento massivo, podemos identificá-lo, no caso brasileiro, devido à opção política de encarcerar o setor mais miserável da população, que corresponde justamente àquelas pessoas que não tiveram acesso à educação. E, consequentemente, não possuem uma fonte formal de renda ou, se possuem, são mal remuneradas, o que pode vir a estimular o cometimento de delitos 133 . Assim, no gráfico abaixo, observa-se esse encarceramento do segmento social mais carente: 132 GARLAND, David. The culture of control: crime and social order in contemporary society. Chicago: The University of Chicago Press, 2001, p. 17. 133 Sobre a história dos processos de encarceramento e dos tipos de encarcerados ver: “Sobre a Prisão”. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2001, p. 73-81. 69 Gráfico 6 - Nível de escolaridade da população carcerária brasileira 134 No tocante ao nível de escolaridade, a maioria da população carcerária, 57,46%, possui somente o ensino fundamental, já 19,13% possuem também o ensino médio e 12,50% são ao menos alfabetizados. Apenas uma pequena parcela, 1,26%, possui o nível superior ou mais. Os dados de 4,42% não foram informados. Sobre o perfil da população carcerária, observamos ainda que ela é composta majoritariamente por pretos e pardos, os quais correspondem a 61,68%. Já os brancos são 35,31% e os pertencentes a outras etnias 3,02%, conforme o gráfico abaixo: Gráfico 7- Cor da pele e etnia da população carcerária brasileira 135 Portanto, após a análise desses dados sobre o perfil do preso brasileiro, não resta dúvidas de que o Brasil fez a opção pelo hiperencarceramento, nos moldes debatidos por Garland (2001). Seguindo as ideias desse jurista e as do sociólogo Wacquant, 134 Fonte: Ministério da Justiça. Jun. 2013, extraído do site: http://www.conectas.org/pt/noticia/25378- mapa-das-prisoes. 135 Fonte: Ministério da Justiça. Jun. 2013, extraído do site: http://www.conectas.org/pt/noticia/25378- mapa-das-prisoes. Acesso em 03 jul. 2015. 70 identifica-se a criação de um padrão do encarcerado, que seria adotado de acordo com a opção de política criminal seguida pelo Estado. Para o jurista argentino Zaffaroni: Na América Latina, o estereótipo sempre se alimenta das características de homens jovens das classes mais carentes, salvo nos momentos de violência política ou terrorismo de estado escancarado, nos quais o estereótipo se desvia para varões das classes médias 136 . Conforme observamos nos dados anteriores, a maior parte dos encarcerados brasileiros pertence a uma classe mais carente e, no gráfico abaixo, podemos observar que o encarceramento no Brasil atinge, principalmente, a parcela jovem da população, conforme afirma Zaffaroni: Gráfico 8 – Faixa etária da população carcerária brasileira137 Ainda sobre essa seleção de estereótipos, Zaffaroni afirma que: O sistema penal atua sempre seletivamente e seleciona de acordo com estereótipos fabricados pelos meios de comunicação de massa. Estes estereótipos permitem a catalogação dos criminosos que combinam com a imagem que corresponde à descrição fabricada, deixando de 136 ZAFFARONI, Em busca das penas perdidas, p.131. 137 Fonte: Ministério da Justiça. Jun. 2013, extraído do site: http://www.conectas.org/pt/noticia/25378- mapa-das-prisoes. Acesso em 03 jul. 2015. 71 fora outros tipos de delinquentes (delinquência de colarinho branco, dourada, de trânsito etc.) 138 . Assim, ele defende que haveria uma interferência desses meios de comunicação na criação dos padrões de criminosos. No Brasil, é possível identificar essa situação, por exemplo, devido à existência de alguns programas televisivos de cunho sensacionalista, que exploram a questão da criminalidade, dando extrema visibilidade aos crimes mais violentos e cruéis – normalmente aqueles cometidos pela parcela mais carente da população – e reclamando duras penas aos transgressores. Portanto, recebem mais visibilidade crimes como homicídio e roubo, além do tráfico de drogas, que são justamente os mais cometidos e punidos pelo sistema penal brasileiro: Gráfico 9– Tipo de crime cometido por gênero139 Também é feita pela mídia a divulgação de crimes cometidos pelo segmento social mais rico. Mas, a exposição desse tipo de criminoso se dá em menor grau, e, mesmo que ocorra a prisão dessas pessoas, em geral, não permanecessem por muito 138 ZAFFARONI, Em busca das penas perdidas, p.130. 139 Fonte: Ministério da Justiça. Jun. 2013, extraído do site: http://www.conectas.org/pt/noticia/25378- mapa-das-prisoes. Acesso em 03 jul. 2015. 72 tempo na cadeia, como podemos constatar através dos dados apresentados pela CPI do sistema carcerário: A CPI observou a total ausência nas cadeias e presídios brasileiros de gente de posses, embora sejam frequentes as denúncias publicadas pela mídia, relatando o envolvimento de pessoas de classes médias e alta em crimes de homicídio, corrupção, fraude, acidente de trânsito e outros classificados como delitos do “colarinho branco”. São rotineiras e em elevado número as prisões de envolvidos com estes tipos de crimes, mas a permanência dos mesmos atrás das grades é uma raridade 140 . Assim, observamos uma punição intensiva a determinados delitos, enquanto que a punição a outros, assim como a cobrança dessa punição pelos meios de comunicação é um pouco esquecida, principalmente no caso de crimes que envolvem o segmento social mais abastado. Portanto, ao se analisar – a partir dos dados apresentados nos gráficos – o perfil da população carcerária brasileira e também ao refletir sobre as ideias propostas por Garland (2001), Wacquant (2011) e Zaffaroni (2010), fica nítida a opção do Brasil pela criminalização e encarceramento da pobreza. 2.6. A legislação penitenciária no Brasil Atualmente, existem diversos instrumentos legais que abordam a questão penitenciária, alguns de abrangência e eficácia internacional, aos quais o Brasil aderiu e se comprometeu a respeitar os seus ditames, como a Convenção e a Declaração Americanas e as Regras Mínimas para o Tratamento dos Presos da ONU. No caso da legislação penitenciária brasileira, além dessas normas internacionais, regula a questão a Constituição Federal, assim como a Lei 7.210 de 11 de julho de 1984, também conhecida como Lei de Execução Penal (LEP), que regula as diretrizes do sistema penitenciário do Brasil, aplicando-se aos presos provisórios e aos condenados. Além dessa lei específica, o Código Penal (Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940) e o Processual Penal (Decreto-lei n.º 3.689, de 3 de outubro de 140 CPI sistema carcerário. Brasília: Centro de Documentação e Informação – Edições Câmara, 2009, p.47. 73 1941) trazem algumas normas sobre administração penitenciária, prisão e punição. Assim como as seguintes leis: a Lei Complementar n.º 79, de 7 de janeiro de 1994, que cria o FUNPEN (Fundo Penitenciário Nacional), a Lei n.º 9.099, de 26 de setembro de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais; a Lei n.º 10.259, de 12 de julho de 2001, que dispõe sobre a instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal. Podemos citar ainda: Decretos do Poder Executivo, Portarias Ministeriais, Resoluções do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e Portarias do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Nesse estudo, iremos abordar com mais ênfase a LEP que trata especificamente da questão penitenciária, apresentando os artigos que julgamos principais para a compreensão do sistema penitenciário brasileiro. De acordo com os artigos iniciais dessa lei (artigos 1º ao 11), é objetivo da execução penal efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e internado. Assevera também que lhe serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei e que não haverá distinções de quaisquer naturezas como racial, social, religiosa ou política. Afirma ainda que o Estado deverá recorrer à cooperação da comunidade nas atividades de execução da pena e da medida de segurança 141 . E tem o dever de fornecer assistência ao recluso e também ao egresso, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade. Reforça, portanto, o objetivo ressocializador da pena. No Brasil, de acordo com os artigos 82 a 104 da LEP, o cumprimento das penas pode ocorrer em estabelecimentos penais de cinco tipos, que variam conforme o regime 142 de cumprimento de pena a que esteja submetido o recluso: penitenciária; 141 A medida de segurança está regulada nos artigos 171 a 179 da LEP e se impõe, por decisão motivada do juiz ou Tribunal competente, àqueles condenados que apresentem algum tipo de transtorno psiquiátrico e são submetidos a um tratamento ambulatorial ou à internação em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico. Essas pessoas são consideradas inimputáveis ou semi-imputáveis, ou seja, entende-se que, em razão do transtorno psiquiátrico, não possuíam capacidade de entender o caráter ilícito do fato delituoso cometido ou tinham essa capacidade reduzida. Logo, não podem ser submetidas a uma punição comum. Ao se referir a essas pessoas, usa-se o termo “internado”. 142 No Brasil, existem três regimes de cumprimento de pena, de acordo com o artigo 33 do Código Penal: a pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semiaberto ou aberto. A de detenção, em regime semiaberto, ou aberto, salvo necessidade de transferência a regime fechado. Sobre a execução dessas penas, prevê o parágrafo 2º desse artigo: As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso: a) o condenado a pena superior a oito anos deverá começar a cumpri-la em regime fechado; b) o condenado não reincidente, cuja pena seja superior a quatro 74 colônia agrícola, industrial ou similar; casa do albergado; cadeia pública; hospital de custódia e tratamento psiquiátrico. A penitenciária se destina aos condenados à pena de reclusão em regime fechado. Deve ser construída em local afastado do centro urbano, mas a uma distância que não impossibilite a visitação. Há a previsão de que o condenado seja alojado em cela individual com dormitório, aparelho sanitário e lavatório, além disso, deve possuir alguns requisitos básicos: área mínima de seis metros quadrados e salubridade do ambiente com aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana. Se não for possível o alojamento individual nessas condições, a cela deve seguir os seguintes padrões: Tabela 2 – Dimensões mínimas para celas143 Já a colônia agrícola deve abrigar aqueles condenados que estão cumprindo a pena em regime semiaberto, sendo permitido o alojamento em compartimentos coletivos, desde que haja uma seleção adequada dos presos e não se exceda o limite de capacidade máxima. Aqueles condenados que estão cumprindo pena em regime aberto ou submetidos a pena de limitação de fim de semana devem cumpri-la na casa de albergado. Sua localização deve ser no centro urbano, separada dos demais estabelecimentos e sem obstáculos físicos contra a fuga. Cada região deve ter ao menos uma, que também deve contar com serviços de fiscalização e orientação dos condenados. A cadeia pública se destina ao recolhimento dos presos provisórios e há a previsão de que cada comarca tenha ao menos um estabelecimento desse tipo, instalado próximo de centro urbano, a fim de facilitar a permanência do recluso próximo ao seu anos e não exceda a oito anos, poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semiaberto; c) o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a quatro anos, poderá desde o início, cumpri- la em regime aberto. 143 Essas são as diretrizes básicas para construção, ampliação e reforma de estabelecimentos penais, divulgadas pelo Ministério da Justiça em 2006. Dados extraídos da: CPI sistema carcerário. Brasília: Centro de Documentação e Informação – Edições Câmara, 2009, p. 243. Capacidade (vaga) Tipo Área Mínima (m2) 01 Cela individual 6,00 02 Cela coletiva 7,00 03 Cela coletiva 7,50 04 Cela coletiva 8,00 05 Cela coletiva 9,00 06 Cela coletiva 10,00 75 meio social e familiar. Por fim, o hospital de custódia é destinado aos condenados acometidos de transtornos psiquiátricos. Outra parte importante da LEP diz respeito à previsão dos deveres, direitos e a questão disciplinar nos estabelecimentos prisionais, esses assuntos estão abordados no Capítulo IV da referida lei, nos artigos 38 ao 52. São deveres dos presos provisórios ou condenados: comportamento disciplinado e cumprimento fiel da sentença; obediência ao servidor e respeito a qualquer pessoa com quem deva relacionar-se; urbanidade e respeito no trato com os demais condenados; conduta oposta aos movimentos individuais ou coletivos de fuga ou de subversão à ordem ou à disciplina; execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas; submissão à sanção disciplinar imposta; indenização à vitima ou aos seus sucessores; indenização ao Estado, quando possível, das despesas realizadas com a sua manutenção, mediante desconto proporcional da remuneração do trabalho; higiene pessoal e asseio da cela ou alojamento; conservação dos objetos de uso pessoal. No que diz respeito aos direitos dos internos, há a previsão de respeito à integridade física e moral, além do fornecimento pelo Estado de alimentação suficiente e vestuário; atribuição de trabalho e sua remuneração; Previdência Social; constituição de pecúlio; proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação; exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas, desde que compatíveis com a execução da pena; assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa; proteção contra qualquer forma de sensacionalismo; entrevista pessoal e reservada com o advogado; visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados; chamamento nominal; igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena; audiência especial com o diretor do estabelecimento; representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito; contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes; atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob pena da responsabilidade da autoridade judiciária competente. A LEP se apresenta como uma lei pioneira e muito importante para regulação da execução penal. Sua promulgação no ano de 1984 – antes mesmo da Constituição de 1988, que veio consagrar o respeito à dignidade humana – se mostra de extrema 76 importância, pois se propôs a abordar um tema que, até então, não estava previsto especificamente na legislação brasileira. Logo, veio proporcionar uma maior segurança jurídica àqueles que se encontram em cumprimento de penas, uma vez que regulamentou temas essenciais, como as características dos estabelecimentos prisionais e os direitos e deveres dos reclusos. Entretanto, detecta-se um problema na aplicação dessa lei e dos outros instrumentos legais que regulam a questão prisional, uma vez que, na prática, dificilmente seus preceitos são observados, especialmente no tocante aos direitos dos presos. Isso pode ser constatado com base nos dados apresentados anteriormente sobre a situação carcerária brasileira. 77 Capítulo 3 – Raízes do sistema penitenciário brasileiro “Que vai fazer agora o governo? Vai demitir o administrador da Casa de Detenção? Daqui a pouco será obrigado a demitir o cidadão que o substituir, e as coisas continuarão no mesmo pé – porque a causa dos abusos não reside na incapacidade de um funcionário, mas num vício essencial do sistema, num defeito orgânico do aparelho penitenciário. E não há de ser a demissão de um administrador que há de consertar o que já nasceu torto e quebrado”. Olavo Bilac, 1902. A epígrafe que abre este capítulo ilustra que o sistema penitenciário brasileiro, desde suas origens, já apresentava problemas. Ou seja, nos mostra um sistema que já nasceu eivado de vícios, contaminado por uma série de defeitos. Esse trecho escrito por Olavo Bilac, no princípio do século XX, poderia muito bem ter sido escrito na atualidade. É recorrente a veiculação pela mídia de notícias informando sobre rebeliões e fugas pelos presídios das mais variadas regiões brasileiras, que culminam na demissão dos seus administradores 144 . 3.1. O sistema penitenciário do Rio Grande do Norte: as primeiras prisões e as penas aplicadas na Colônia e no Império No Rio Grande do Norte, o primeiro estabelecimento utilizado como prisão de que se tem notícia é o Forte dos Reis Magos, que teve sua construção iniciada em 1598 e concluída em 1614 145 . Tinha como principal finalidade a proteção da cidade do Natal, que se edificaria no seu entorno: O forte foi erguido a setecentos e cinquenta metros da barra em cima do arrecife, ilhado nas marés altas. É lugar melhor e mais lógico, anunciando e defendendo a cidade futura (...) a forma clássica do forte marítimo (...) o modelo do polígono estrelado. O tenalhão abica para o norte, mirando a barra, com os dois salientes. No final, a gola termina por dois baluartes. O da destra, na curvatura, oculta o portão, entrada 144 É comum a demissão dos gestores após situações de fugas e rebeliões que, normalmente, estão relacionadas a vícios inerentes ao sistema penitenciário. Por exemplo, a diretora da Penitenciária Estadual de Alcaçuz, Dinorá Simas, foi afastada devido à ocorrência de uma série de rebeliões no mês de março de 2015. 145 CASCUDO, Luís da Câmara. História da Cidade do Natal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. p.26 78 única, ainda defendida por um cofre de franqueamento, para quatro atiradores e, sobrepostos, à cortina ou gola, os caminhos de ronda e uma banqueta de mosquetaria. Com sessenta e quatro metros de comprimento, perímetro de duzentos e quarenta, frente e gola de sessenta metros, o forte artilhava-se de maneira irrepreensível. Atiraria por canhoeiras e a mosquetaria pela gola em seteira no cofre ou de visada na banqueta. A artilharia principal atirava a barbeta 146 . Embora não fosse sua finalidade precípua, o forte acabou sendo utilizado também como prisão, tendo funcionado durante os séculos XVII a XIX. Lá eram encontradas “duas prisões, uma para militares desobedientes e uma prisão subterrânea composta por três salas, onde ficavam os prisioneiros de guerra e em sua maioria acusados de traição 147”. Nessas salas, era possível observar um sistema punitivo que tinha como objetivo o suplício 148 do condenado: As três salas subterrâneas foram projetadas para níveis supliciantes diferentes, sendo assim a primeira sala conhecida como calabouço, era uma sala onde o supliciado passava por chicotadas, queimaduras e outras torturas físicas que levava ao quebramento de ossos e desfiguração do corpo. A segunda sala ou “sala escura” era uma sala sem qualquer entrada de luz onde o supliciado ficava de quatro a cinco dias e depois era levado e exposto ao sol, onde muitos por consequência ficavam cegos. E a terceira sala que era a prisão e também usada como casamata em caso de algum ataque ao forte. Esta última sala continha uma câmara inferior onde era atirado o supliciado muitas vezes após ter passado pelas duas salas anteriores, a câmara tem o chão de arrecifes onde se o supliciado não morresse ao cair nele, morreria quando a maré enchesse, já que esse era ligado diretamente ao mar 149 . Portanto, durante o período da Colônia (1500-1822) e também em parte do Império (1822-1889), o Forte funcionou como prisão, ao mesmo tempo em que foram sendo construídas cadeias no território norte-rio-grandense. A partir do Império, passou- se a ter mais notícias sobre as condições das cadeias existentes nas províncias, principalmente, devido ao registro através de fontes oficiais, sendo as principais os 146 Ibidem, p. 25-26. 147 SANTOS, Leonardo Alves dos. Entre o amor, o crime e a solidão: cotidiano e histórias de vida de mulheres em situação de prisão no Complexo Penal Dr. João Chaves. Natal: UFRN, 2011. Monografia. (Graduação em Ciências Sociais), p. 37. 148Sobre as penas que objetivavam o suplício dos condenados, ver: FOUCAULT, Michel. “O corpo dos condenados”. In: Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1999; FOUCAULT, Michel. “A ostentação dos suplícios”. In: Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1999. 149 SANTOS, Entre o amor, o crime e a solidão, p. 37-38. 79 Relatórios dos Presidentes de Províncias. Através dessas fontes, se tem informação de que os modelos de cadeia do Império remontavam ao modelo colonial 150 . A Cadeia Pública e a Câmara Municipal dividiam o mesmo prédio, que possuía dois pavimentos, sendo o primeiro ocupado pela cadeia e o segundo pela Câmara, eram as chamadas Câmaras de Casa e Cadeia. A parte interna da prisão possuía os seguintes compartimentos: As enxovias, salas e celas onde ficavam os presos – homens, mulheres, negros e galés. Para penetrar no seu interior, era necessário descer por escadas de mão móveis. Havia as salas-livres, indicadas pela Justiça para o cumprimento de prisão fora do cárcere, e as salas fechadas ou salas fortes para guardarem presos. Ainda existia uma sala denominada de segredo ou moxinga, onde eram realizados interrogatórios - podendo ser aplicado torturas -, de presos que tivessem cometidos crimes graves. Além das prisões comuns existia o aljube, destinada ao encarceramento de pessoas que cometeram crimes eclesiásticos ou de lesa-majestade 151 . Assim, além do Forte dos Reis Magos, passou a funcionar na cidade do Natal, a partir de 1722, a Cadeia Pública que – seguindo esse modelo penitenciário – dividia o prédio com a Câmara Municipal. Ela ficava localizada numa esquina da Rua Grande ou Rua da Cadeia, no entorno da Praça André de Albuquerque (atual Rua Presidente Passos no Centro da cidade) e, segundo a descrição do folclorista e historiador Luís da Câmara Cascudo: Erguia-se, sólida e maciça, com as paredes de pedra, arcadas da cantaria, dois janelões baixos e cinco no sobrado, com o xadrezado de ferro, saindo de cápsulas de chumbo, respirando vida colonial, impondo-se pelo aspecto atarracado, feio, sujo, pesado, opressor (...) Conservava a fisionomia severa e sinistra de uma fortaleza, um resto 150 Não somente o modelo penitenciário, mas diversas outras heranças do período colonial foram incorporadas à vida do Império. A Província do Rio Grande do Norte, embora pequena, refletia as características da sociedade brasileira imperial: muito influenciada pela religião católica e marcada pelo domínio masculino, que baseava suas ações numa pretensa superioridade branca. Até porque, nessa sociedade, ainda persistia a escravidão que, aos poucos, rompia suas amarras. A economia era essencialmente agrária, baseada no sistema de latifúndio e com uso de mão de obra escrava que, paulatinamente, foi sendo substituída pelo uso de trabalhadores livre. Para saber mais sobre o período imperial, ver: FARIAS, Genilson de Azevedo. Auta de Souza, a poeta de “pele clara, um moreno doce”: memória e cultura da intelectualidade afrodescendente no Rio Grande do Norte. Natal: UFRN, 2013. Dissertação. (Mestrado em Ciências Sociais). Nesse trabalho, Farias apresenta um capítulo que traz as características da Província do Rio Grande do Norte oitocentista, que é o cenário de sua história. 151 OLIVEIRA, Fernanda Amaral de. “Os modelos penitenciários no século XIX”. In: Seminário Nacional de História da Historiografia: historiografia brasileira e modernidade. Disponível em:. Acesso em 02 jun. 2015. 80 de castelo roqueiro, ainda fiel ao passado (...) Detrás das grades negras, os presos furavam a vida com olhares famintos (...) Possuía originalmente um salão, escuro, lajeado, escorregadiço, com duas janelas para a Rua Grande e uma para o poente abrigando o grupo dos criminosos, velhos e moços, misturados, sem suspeita de higiene, ideia de asseio, esperança de piedade 152 . A partir dessa descrição, é possível observar que os detentos vivenciavam um cotidiano de sofrimento e privações, devido às condições precárias – por exemplo, de falta de iluminação e higiene – a que eram submetidos na Cadeia Pública de Natal. Existem outras fontes que confirmam essa situação, por exemplo, Cascudo (1980) cita uma informação prestada, em 4 de fevereiro de 1846, pelo tenente de artilharia Francisco Primo de Souza Aguiar ao Presidente Casimiro José de Morais Sarmento: Os presos de ambos os sexos nunca se banhavam e cozinhavam na sala da prisão, sobre o solo coberto de pedras irregulares, de superfície úmida e lodosa. Os que não possuíam redes deitavam-se em tábuas soltas e as fezes eram lançadas num barril que ficava todo o dia a um canto 153 . Câmara Cascudo menciona também um relatório de 1878 do Chefe de Polícia Dr. Joaquim Tavares da Costa Miranda, que apresenta uma descrição desse espaço prisional conceituado por ele como “uma furna em que seres vivos se apodrecem, maldizendo a sociedade, que os condenou a uma morte lenta em uma masmorra infecta, repugnante e asquerosa 154”. Nesse mesmo relatório são ainda apresentadas as características encontradas nessa cadeia: O ar é insuficiente para a respiração dos sentenciados, a luz crepuscular, que bruxuleia na enxovia, não aviventa a organização; o chão é frio, úmido e sórdido; os presos fazem despejo de águas servidas e urinam dentro da mesma enxovia, e o lixo e a podridão, saindo da cadeia pela fachada posterior, se escoam pelo cano, rampa abaixo, formando um espoeiro onde constantemente alguns porcos se regalam. Dentro da mesma enxovia os detentos lavam carne e cozinham: tudo ali é tétrico e medonho: tudo denuncia uma postergação da lei da higiene; tudo diz que ali está um lugar em que a sociedade exerce a vindicta, e não a mansão de recolhimento e meditação em que a consciência do delinquente sob a farpa dos 152 CASCUDO, História da Cidade do Natal, p. 146. 153 Ibidem, p. 147. 154 Idem 81 remorsos o regenera para entregá-lo de novo à comunhão social. A prisão é comum; o sistema celular nunca foi aqui ensaiado. Os sentenciados não têm espaço para dormir, ficam ali tão conchegados, como abelhas na colmeia 155 . Diante do edifício da Casa de Câmara e Cadeia, localizava-se o Pelourinho da cidade do Natal, que ficava no meio do largo da praça André de Albuquerque e foi muito utilizado para aplicação de penas nesse período, embora não fosse essa a finalidade principal de sua edificação. Segundo Cascudo (1980), decorre da ignorância a interpretação do Pelourinho como um sinal de martírio e humilhação, pois ele é o “documento mais nobre da cidade. Símbolo de sua autonomia e jurisdição municipal, atesta a presença da justiça permanente e os direitos da população governar-se por intermédio de seus eleitos 156” ou ainda é “a imagem originária da independência municipalista, a liberdade administrativa dos conselhos, a soberania democrática expressa na letra dos forais 157”. Com o tempo, ele foi assumindo outras finalidades e passou a ser “uma testemunha da onipotência do monarca158”. Cascudo conta que, segundo a tradição oral, o pelourinho correspondia a: Uma coluna de alvenaria, sem topo nem remate artístico (...) encimado por um globo de argamassa e, no primeiro terço superior, atravessava a coluna uma haste de ferro, terminando em ganchos. Esses ganchos serviam para amarrar os criminosos que sofriam penas de exibição, de exposição pública 159 . Ser atado ao pelourinho por algumas horas – num ritual de exposição pública – era a pena aos violadores e transgressores da legalidade administrativa. Era, portanto, temido por variados tipos de criminosos da época: Vadios, ladrões, gatunos, falsários, os que furtam no peso da carne, do pão, do peixe, do vinho, vendem mercadorias viciadas, alimentos podres, os que dão assuada e gritaria durante as horas caladas da noite 160 . 155 Ibidem, p. 147-148. 156 Ibidem, p. 346. 157 Ibidem, p. 347. 158 Idem. 159 Ibidem, p. 346-347. 160 Ibidem, p. 346. 82 Esse temor se dava, principalmente, porque a exposição ao pelourinho ocorria à luz do dia, então, os criminosos poderiam ser vistos pelos habitantes da cidade. Devido à curiosidade, uma grande quantidade de pessoas comparecia e por lá ficava algumas horas para comentar o crime e vaiar os delinquentes. Eles eram reconhecidos e identificados, então, poderiam ser apontados nas ruas como criminosos, não poderiam mais transitar em determinados lugares porque causariam receios ou mal-estar, podendo até ser expulsos. Assim, essa punição pública tinha como finalidade ser uma reprimenda pelo ilícito cometido, mas, principalmente, incutir o medo nos indivíduos para evitar a delinquência. Uma vez que a população visse o grande constrangimento vivenciado por aqueles que se submetiam à execução da pena – expostos aos olhares de todos – ficava nítida a certeza da punição e os seus trágicos efeitos. Portanto, essa maneira de punir publicamente tinha o condão de causar mais impacto do que quando o criminoso era preso numa cadeia, isolado do mundo, já que lá, o seu sofrimento não seria revelado a toda coletividade. Câmara Cascudo considera que esse modo de punir “era um princípio de vulgarização da pena, levando o criminoso até o povo e este, participando do fato, tornaria a reincidência mais difícil e rara 161”. No Império, não havia somente a pena de prisão e a de exposição pública no pelourinho. Pior do que isso era a aplicação da pena de morte, que perdurou no Brasil até 1876, quando um negro escravo foi enforcado em Pilar, Alagoas 162 . Já na província do Rio Grande do Norte: “Valentim José Barbosa, pardo, de 25 anos, foi o derradeiro justiçado em Natal. Não havendo quem o enforcasse fuzilaram-no na manhã de 7 de agosto de 1847 163”. Sobre a utilização da pena capital, Câmara Cascudo (1980) nos conta que eram raras as sentenças de morte na província Rio Grande do Norte e se davam principalmente por enforcamento, mas também poderia ser por fuzilamento. Em Natal, armava-se a forca na Praça do Quartel da Tropa de Linha ou então onde se localizava o Mercado do Peixe (posteriormente transformado no Mercado Público de Cidade Alta): 161 Ibidem, p. 347. 162 Ibidem, p. 158. 163 Idem. 83 Não ficava armada, assombrando os transeuntes, numa ameaça constante. A lei mandava desarmá-la logo após o suplício. E sua construção era rápida, durante apenas algumas horas de trabalho, tarefa que e fazia ao escurecer da véspera da execução ou nas horas da madrugada do dia maldito. As despesas seriam pagas pelo governo da Província. Não havia carrasco oficial. Designava-se um sentenciado de igual pena e, em sua falta outro qualquer preso pobre de justiça (...) A forca se erguia numa extremidade do tablado alto, espécie de palanque sem coberta, ao ar livre. Tinha, no braço horizontal, uma argola de ferro onde passava a corda, bem nova e untada de sebo para escorregar no pescoço do condenado 164 . Sobre os rituais que circundavam a aplicação da pena de morte, Cascudo (1980) os descreve em riquíssimos detalhes, dando destaque ao costume que se tinha de colher auxílios financeiros para a celebração de uma missão em benefício do espírito daquele que seria condenado. Assim, durante um dia todo, o preso ia algemado com uma sacola nas mãos, acompanhado por um soldado, suplicar – de porta em porta – uma ajuda material para pagar a missa, que assistiria de joelhos e, no meio da cerimônia, ocorreria a sua execução. Havia também o ritual de preparar o condenado para o cumprimento da pena. Na manhã da execução, o réu era asseado e barbeado e, só então, se dirigia para acompanhar a missa, que ocorria na Igreja Matriz. Entretanto, a missa só seria assistida até certo ponto: “quando o sacristão badalava a campainha no momento de santos, santos, santos, o comandante da escolta fazia levantar o condenado e o cortejo seguia para a forca 165”. Não era permitido aos condenados que assistissem a missa por completo, pois “se estivesse presente quando o sacerdote fizesse a elevação, e pedisse a existência, estaria válido”. Com esse recurso oral escaparia da forca, portanto, não poderia presenciar essa parte da missa. No cortejo até a forca, o condenado era acompanhado pelo padre e por soldados armados, sob o comando de um oficial. O caminho que eles seguiam passava pelas ruas principais da cidade: rua Grande (atual Praça André de Albuquerque), rua Santo Antônio, rua do Sebo (atual General Osório), rua da Palha (atual Vigário Bartolomeu), rua Nova (atual Rio Branco) e seguiam até a Praça do Peixe (nas proximidades do Mercado Público da Cidade Alta), onde estaria armada a forca. Chegando ao local, diversas pessoas já se encontravam lá aguardando para assistir ao suplício público do 164 Ibidem, p. 148-149. 165 Ibidem, p. 145. 84 condenado, seja por piedade ou pela atração do “espetáculo”166. Muitas delas levavam os filhos a fim de que a execução servisse de exemplo, assim como muitos alunos eram levados pelos professores. A execução deveria ocorrer no início da manhã – às oito ou nove horas – e não poderia acontecer na véspera do domingo, dia santo ou festa nacional, segundo prescrevia o Código Criminal da época 167 . Cascudo descreve o ritual de execução da seguinte maneira: O padre vinha com o condenado desde a prisão e ao pé da forca oferecia-lhe a última dádiva das senhoras católicas da cidade, pão-de- ló e vinho do Porto. O réu mastigava e bebia, inconscientemente, para retardar a subida à forca. Depois, de degrau em degrau, chegava ao alto, com o carrasco, seu companheiro de crime, que lhe pedia perdão, já marcado para o mesmo final 168 . O carrasco ficava, então, esperando um sinal ser emitido a fim de que executasse a pena: “em Natal o aceno que fazia o carrasco sacudir o condenado para a morte era o Juiz Municipal tirar o chapéu 169”. Diante desse sinal, poderia empurrar a vítima, que devido ao peso do próprio corpo, seria estrangulada. Esse estrangulamento poderia ser apressado pelo executor da pena, que poderia saltar aos ombros do enforcado ou puxá-lo pelos pés, o que tornaria mais rápida a asfixia. Sobre esse terrível suplício, Cascudo afirma que “quem ficasse na primeira fila da assistência ouvia, no estertor derradeiro, o estalejar das vértebras cervicais que se partiam 170”. Após a morte, o condenado ainda permanecia algumas horas pendurado na forca e sua família poderia reclamar o corpo para sepultá-lo numa cerimônia modesta, sem nenhuma pompa, conforme determinava a legislação criminal da época. Se o corpo não fosse reclamado, o governo providenciava o sepultamento na Capela de Nossa Senhora do Rosário 171 . 166 Sobre as punições que atingiam os corpos dos condenados, constituindo-se em verdadeiros suplícios, ver: FOUCAULT, Michel. “O corpo dos condenados”. In: Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987; FOUCAULT, Michel. “A ostentação dos suplícios”. In: Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. 167 Idem. 168 Idem. 169 Ibidem, p. 146 170 Idem. 171 Idem. 85 Existia ainda a pena de galés 172 – imposta àqueles que cometiam crimes contra a Igreja – e que consistia em uma pena de trabalhos forçados nas embarcações conhecidas como galés, que eram movidas a remo. Portanto, os condenados eram submetidos a um esforço degradante e expostos a um ambiente sujo e sem ventilação. Poderia ser por um período de tempo determinado ou então perpétua. Segundo Cascudo, a aplicação dessa pena na província do Rio Grande do Norte teve destaque quando: “depois de Valentim Barbosa, as raras sentenças de morte foram, no Recurso-da-Graça 173 , comutadas para galés-perpétuas 174”. As descrições de Luís da Câmara Cascudo sobre o sistema penitenciário do Império são corroboradas pelas informações apresentadas nos Relatórios dos Presidentes da Província do Rio Grande do Norte, que nos proporcionam o conhecimento sobre as características e funcionamento do sistema penitenciário imperial. O relatório de 1838 do Presidente Dantas Pinajé traz um relato sobre o estado físico em que se encontravam as cadeias da província. Nesse ano, existiam na província sete cadeias, também chamadas casas de prisão, construídas em algumas vilas da Província. Sobre essas cadeias, Pinajé relata estar impossibilitado de fornecer informações mais precisas sobre o estado em que se encontram, pois mesmo tendo solicitado informações às respectivas Câmaras, nem todas elas prestaram os devidos esclarecimentos, então, apresenta a situação de algumas casas de prisão: Do mau estado da cadeia de Extremoz os conhecereis lendo o oficio da respectiva câmara (...) A cadeia da vila de acari posso afirmar-vos que é nova e ainda não apresenta ruína: a de São José acha-se reparada e segura como acaba de informar-me um morador dali e a da vila da princesa também foi há pouco consertada a custa da quota de 400 reis voltada para esse mister na lei do orçamento de 1836, mas faltando dinheiro ou tempo para se acabar a casa superior, destinada para os trabalhos da câmara e do júri ainda não está seguro o teto da prisão e por ali se evadem os presos. 175 172 Para saber mais sobre essa pena ver: SILVA, Emanuel Luiz Souza e. “Condenados às galés”. Revista de História. Disponível em: http://www.revistadehistória.com.br/secao/artigos/condenados-s-gales. Acesso em 20 jul. 2015. 173 O Recurso da Graça poderia ser feito pelo réu, em petição dirigida ao imperador, no prazo de oito dias de sua intimação. 174 CASCUDO, História da Cidade do Natal, p. 158. 175 Relatório do Presidente de Província Dantas Pinajé – 1838. 86 Nesse relato, observamos que algumas casas de prisão se encontravam em bom estado, mas é notório que o sistema penitenciário apresentava deficiências estruturais, em razão de problemas na estrutura física das cadeias que precisavam de constantes reparos. Devido à ausência de recursos para a realização dos consertos, acabava sendo proporcionada aos internos uma oportunidade de se evadir da prisão. Assim, por causa dessas deficiências, a insegurança era constante em alguns estabelecimentos prisionais, não havendo o respeito à ordem: A cadeia desta cidade [Vila do príncipe], posto que conserve os presos da justiça auxiliada por uma força diária de dez praças, todavia não esta muito segura: mais grades estão arruinadas e o seu interno, bem como o de todas as mais, assemelha-se a um cemitério das ordens e antigos costumes de nossa primeira metrópole 176 . Sobre a situação dessa cadeia, o presidente Dantas Pinajé afirma que o governo já fora cientificado da situação a fim de fossem tomadas as devidas providências. Na sua fala abaixo, observamos ainda que já havia uma noção das condições adequadas para uma casa de prisão, pois a Constituição do Império trazia essa previsão. Assim, sabia-se que as cadeias deveriam apresentar condições que proporcionassem o respeito ao ser humano preso, buscando ressocializá-lo, em vez de oprimi-lo: O governo informado do estado desta prisão, e certo de que as cadeias devem ser seguras, limpas, e bem arejadas, na forma da constituição do império, está cuidando de seu asseio e segurança para que desta sorte e ela se torne, mas própria para prevenir o crime, e melhorar os costumes, do que para oprimir a humanidade 177 . Todavia, dificilmente essas condições eram respeitadas, dado o estado crítico no qual se encontravam as cadeias da Província do Rio Grande do Norte desse período. No relatório do ano seguinte, de autoria do Presidente Assis Mascarenhas, observa-se que muitos dos problemas já apontados em relatórios anteriores – como a necessidade de realização de reparos na estrutura física das cadeias – persistem, sendo justificados, principalmente, em razão da escassez de recursos enviados para a Província, que não são suficientes para o conserto de todas elas: 176 Idem. 177 Idem. 87 Algumas Vilas estão ainda sem prisões, e as que existem em outras precisam de grandes consertos, não só para comodidade dos presos, se não também para se evitarem as fugas tantas vezes tentadas, e em algumas levadas a efeito. Reconheço que não é possível contribuir ao mesmo tempo todas as Cadeias, de que a Província há mister, em consertar as que se acham arruinadas, atenda a modicidade das rendas Provinciais; mas seria conveniente que o Governo fosse desde já habilitado para cuidar daquelas, que julgasse mais necessárias, e, mencionarei de preferência as destas Capital, S. José, Portalegre, e Apodi 178 . A urgente necessidade de que sejam feitos consertos nas cadeias – por questões de segurança e comodidade da prisão – é novamente ressaltada em 1841, no relatório do Presidente Barbosa de Moura, que reivindicava a necessidade de conserto nas cadeias das vilas de São José e Portalegre. Os anos passam e as péssimas condições das cadeias persistem na Província do Rio Grande do Norte, conforme nos apresenta o relatório do Presidente Joaquim Cunha, de 1851: A da Villa do Extremoz ameaça ruína, e quanto mais demora houver no conserto, mais caro custara ele. A da capital, além de outros defeitos, é acanhada para o número de presos, que constantemente contêm, e que sempre excede a trinta 179 . Detecta-se, a partir desse exemplo, que o problema da superlotação das prisões já se apresentava no Império. Mesmo sendo pequeno o número de reclusos, a cadeia da Capital era pequena para abrigá-los. Uma cadeia lotada só serve para aumentar as mazelas que abriga, contribuindo para a revolta dos presos, o que culmina em tentativas de fuga. Sobre essa situação da cadeia da Capital, o presidente Marcelino Nunes, em 1859, relata um cotidiano de superlotação e constante necessidade de reparos a fim de se evitar fugas: Não tendo este edifício a precisa capacidade para conter o grande número de presos que nele se conservam constantemente aguardava a vinda de um Engenheiro Militar por mim requisitado ao Exm. Sr. Ministro da Guerra em data de 9 de Abril deste ano, sob n° 99, além de dar um plano das obras que convém fazerem-se para novas 178 Relatório do Presidente de Província Assis Mascarenhas – 1839. 179 Relatório do Presidente de Província Joaquim da Cunha – 1851. 88 acomodações, sem grande prejuízo do mesmo edifício. Mais três arrombamentos ultimamente feitos pelos presos obrigaram-se a empreender algumas obras de segurança. Com este propósito mandei fazer no recinto da grande prisão central em todas as suas dimensões de 45 palmos de comprimento e 39 de largura uma grande escavação com 5 palmos de profundidades para ser entulhada com pedra e cal e uma camada de Lages na superfície que as tarimbas fossem colocadas sobre sapatas também de pedra e cal, 2 palmos acima das Lages e que, do sobrado que já tem, fosse todo forrado internamente de madeiras de boa qualidade. Estão concluídas estas obras 180 . Tratando também da falta de estrutura do sistema prisional, o Presidente Bernardo de Passos, no relatório de 1856, afirma que a insegurança das prisões – que não dispõem da estrutura necessária – é um dos desafios com que a polícia precisa lidar cotidianamente. Para abordar esse tema, conta a história do preso Cosme Franco de Oliveira, que tendo adoecido, precisou ser escoltado para uma enfermaria fora da prisão, de onde acabou se evadindo. Assim, reforça a necessidade de construção de uma enfermaria dentro da cadeia para abrigar os presos doentes: A falta de prisões seguras com as comodidades necessárias é uma das muitas dificuldades, com que luta a polícia no exercício de suas funções. A fuga do preso Cosme Franco de Oliveira condenado à morte por sentença passada em julgado, é mais uma prova desta verdade. Enquanto a epidemia flagelava esta capital, vários presos foram acometidos; quaisquer que fossem seus crimes, a humanidade reclama seus direitos, obrigava imperiosamente a prestarem-se lhes os socorros precisos, não podendo porém serem tratados dentro da enxovia, forçoso era removê-los para outro lugar que oferecesse a necessária segurança, infelizmente este requisito era difícil, senão impossível ser satisfeito; nestas circunstâncias tomaram-se as cautelas possíveis , expedindo-se as necessárias ordens, para que fosse a casa em que se achavam-se os presos afetados da epidemia, rodeado de sentinelas, houvessem uma dentro da enfermaria; todavia o sentenciado a morte evadiu-se. As sentinelas do respectivo quartel foram submetidas aos competentes processos, e pela repartição de polícia dadas as providências para a captura do evadido. Este fato aponta a necessidade de edificação de uma enfermaria própria para tratamento de presos que adoecerem. Com efeito, havendo na cadeia desta capital sempre grande número de criminosos e muitos de importância, acontece repetidas vezes adoecerem alguns; e havendo de serem tratados fora da prisão, não há conveniente confiar só às 180 Relatório do Presidente de Província Antônio Marcelino Nunes – 1859. 89 sentinelas a guarda de tais presos, como a experiência vai mostrando 181 . Nos relatórios dos Presidentes da Província é ainda constante a reclamação sobre a deficiência de recursos financeiros não somente para reparos na estrutura física das cadeias, como também para a manutenção dos presos: “a quota consignada para sustento dos presos pobres esgotou-se muito antes do fim do ano, pelo que fui obrigado a recorrer a outras, e reduzir de cem a oitenta réis a diária dos presos” 182. No relatório de 1856, é também reforçado pelo Presidente Bernardo de Passos que a quantia destinada a suprir as necessidades dos reclusos não está sendo suficiente: A quota votada para sustento dos presos nos orçamentos anteriores não tem sido suficiente; porquanto mal chega para a mesquinha diária de oitenta réis, dada unicamente, aos da cadeia da capital; e quando, ou por se achar esta prisão muito cheia, ou por motivos de segurança, parte dos criminosos são removidos para a fortaleza, aonde não podem tirar lucro algum de seus trabalhos, sofrem verdadeira penúria: além de que tenho recebido reclamações de sustento para os presos pobres de outras cadeias, sem que as tenha podido satisfazer por falta dos meios necessários. Tem igualmente sido insuficiente a quota voltada para luzes das prisões: semelhante despesa não deve ser encarada como ato de mera caridade, mas como medida de segurança; porquanto os movimentos dos presos, que, envolvidos nas trevas, minam à cadeia, ou tentam qualquer outro meio de evasão 183 . Passados alguns anos, a situação das cadeias da província permanece inalterável, tanto que em setembro de 1863, o Presidente Olinto José Meira dizia à Assembleia Provincial: Não existe em toda a Província uma cadeia digna deste nome. A da Capital, que consta do andar térreo da Casa da Câmara, necessita de grandes melhoramentos e asseio para tornar-se apenas mais sofrível. Não a considero capaz de atingir o estado de uma boa cadeia por mais que se despenda e se lhe faça para este fim 184”. 181 Relatório do Presidente de Província Bernardo de Passos – 1856. 182 Relatório do Presidente de Província André de Albuquerque Maranhão – 1843. 183 Relatório do Presidente de Província Bernardo de Passos – 1856. 184 CASCUDO, História da Cidade do Natal, p. 148. 90 Diante dessa fala, observamos que o próprio Presidente da Província enxergava com descrença os estabelecimentos prisionais, não os considerando dignos. Assim, em razão dessas condições observadas nos estabelecimentos carcerários, dificilmente, algum criminoso sairia da prisão ressocializado, disposto a mudar de vida. Pelo contrário, a exposição no ambiente prisional às piores mazelas, causa revolta no ser humano, o que é praticamente incompatível com a ressocialização. Portanto, após a análise das descrições do historiador Câmara Cascudo e dos relatórios dos Presidentes de Província do Rio Grande do Norte, pudemos identificar que, já no Império, existiam problemas ligados à criminalidade, justiça e punição. Eram constantes relatos de ocorrências de crimes no cotidiano da província, assim como a ausência de cadeias suficientes e em bom estado para abrigar os criminosos. No Império além da pena de prisão, ainda eram aplicadas penas extremamente cruéis, com especial destaque para a pena de morte, a exposição pública no pelourinho e a galés. Aos poucos essas penas cruéis foram sendo abolidas 185 e persistiu, no período da República, a pena de prisão 186 . Conforme observado nos relatórios e nas descrições, desde o Império, os estabelecimentos prisionais apresentam péssimas condições. Portanto, é possível concluir que o espaço prisional, desde sua criação na Província do Rio Grande do Norte, reunia características que o permitem conceituá-lo como precário. Os recursos para manutenção dos presos e dos estabelecimentos prisionais eram escassos. Não existiam prisões em todas as vilas e as prisões que existiam eram sujas, mal arejadas e, em geral, pequenas, o que terminava ocasionando o problema da superlotação. Nessa época, já havia o pensamento na necessidade de fornecer um tratamento digno ao recluso, mas esse tratamento – pautado no respeito à dignidade da pessoa humana – não era encontrado na prática somente na teoria, pois estava previsto na Constituição do período. A criminalidade e os problemas inerentes a ela sempre estiveram presente na vida do Império e se perpetuam até hoje. 3.2. A República e a evolução do sistema penitenciário norte-rio-grandense 185 Na atualidade, é admitida a pena de morte somente em caso de guerra declarada, de acordo com o art. 5º, XLVII, da Constituição Federal de 1988. 186 Atualmente, além da pena privativa de liberdade, existem as penas de interdição de direitos e de multa, segundo o artigo 32 do Código Penal. 91 Com o transcorrer do tempo, a Cadeia Pública de Natal foi ficando extremamente pequena para abrigar aqueles que delinquiam. Então, já no período republicano, foi necessário arranjar outro espaço para abrigá-los. Surgiu, assim, a Casa de Detenção de Natal, no bairro de Petrópolis, que foi inaugurada em 1911. Hoje, o prédio funciona como Centro de Turismo de Natal. Passados alguns anos, foi necessário arranjar um espaço ainda maior para abrigar a quantidade de presos, que aumentava a cada dia. Então, em 1953, quando ainda estava em funcionamento a Casa de Detenção, teve início a construção de um novo presídio na estrada da Redinha, no bairro Potengi, zona norte de Natal: a Colônia Agrícola e Penal Dr. João Chaves, também conhecida como Penitenciária Central Dr. João Chaves, que foi inaugurada em 1968 187 . Com a inauguração dessa nova penitenciária, os presos da Casa de Detenção de Natal foram sendo transferidos para lá e, em 1969, ela foi desativada. Assim, a João Chaves passou a funcionar como a principal instituição prisional do estado, sendo inclusive considerada de segurança máxima. Aos poucos, a penitenciária foi ficando superlotada (chegando a receber mais que o triplo de sua capacidade), em razão do estado não investir na construção de novas unidades. E, nos anos 1990, a situação chegou a um ponto crítico 188 . Ela era a única instituição de regime fechado do estado 189 e, em razão da superlotação, todas as mazelas provocadas pelo cárcere foram sendo majoradas, principalmente a violência. A cadeia, então, recebeu o apelido de “Caldeirão do Diabo”. A penitenciária recebeu esse apelido devido ao seu cotidiano, marcado por problemas como fugas, tentativas de fuga, suicídios, desentendimentos entre os internos e uma grande ocorrência de crimes, muitos deles causados por motivos banais e marcados por um excesso de crueldade, como decapitações e esquartejamentos. Nesse período, destacou-se um trio de presos, que ficou conhecido como “a Santíssima Trindade do Diabo”, formado por Naldinho do Mereto, Paulo Queixada e Demir. 187 SANTOS, Entre o amor, o crime e a solidão, p. 37-39. 188Em matéria do jornal Tribuna do Norte: “SUPERLOTAÇÃO causa tensão e medo na João Chaves”. Tribuna do Norte, Natal, 18 jan. 1998. O secretário de Justiça e Cidadania da época Carlos Eduardo Alves, responsável pelo sistema penitenciário, afirmou: “Da forma como está o sistema penitenciário, nós não estamos administrando, estamos apagando fogueira [...] Essa situação não pode continuar, a omissão gerou um verdadeiro caldeirão do diabo”. 189“SUPERLOTAÇÃO causa tensão e medo na João Chaves”. Tribuna do Norte, Natal, 18 jan. 1998. 92 Ganharam essa alcunha devido ao grande número de mortes que lhes foram atribuídas durante o período em que estiveram reclusos na Colônia Penal Dr. João Chaves 190 . Após anos de descaso e em razão dessa situação crítica, o governo do estado – a partir da gestão de Garibaldi Alves Filho (1995-2002) – passou a investir em melhorias no sistema penitenciário, objetivando não só acabar com a superlotação, como também diminuir as dificuldades, aumentar a segurança, e tornar o preso mais sociável, inclusive fazê-lo produzir. Assim, foi providenciada a construção de dois novos presídios: a penitenciária Dr. Francisco Nogueira Fernandes (Penitenciária Estadual de Alcaçuz), em Nísia Floresta e o presídio do Seridó, em Caicó 191 . Além disso, foram feitos planos de reformar o presídio Dr. Mário Negócio, de Mossoró, para que lá fosse implantado também o regime fechado, pois até então, só funcionava com o regime semiaberto, implantado em 1997. Esse regime e o aberto passaram a funcionar também em Natal, num prédio vizinho à penitenciária Dr. João Chaves, onde foram construídos dois pavilhões para o regime semiaberto e edificada uma Casa de Albergue para regime aberto, além de um Hospital de Custódia, inaugurado em 1998. Antes da inauguração, aqueles condenados que necessitavam de tratamento psiquiátrico precisavam fazê-lo na Paraíba. Foram feitos também investimentos para a informatização dos presídios 192 . O Rio Grande do Norte, até então, possuía um dos sistemas penitenciários mais atrasados do país; finalmente, com a instalação dos três regimes de cumprimento de pena, o sistema ficou completo. A construção do presídio de Caicó e a reforma do presídio de Mossoró tinham como objetivo também a regionalização do cumprimento da pena 193 . Ao cumprir a pena na sua região, o preso recebe a assistência da família, o que facilita sua recuperação e a reintegração à sociedade. Como somente a João Chaves estava funcionando como penitenciária para cumprimento de pena em regime fechado, muitos presos eram obrigados a deixarem as suas regiões para cumprir a pena na capital. Diante dessa situação, muitas vezes, a família se deslocava também para Natal, na tentativa de dar assistência ao preso que cumpria a pena. Isso acabava gerando um problema social, pois, normalmente, essas pessoas não possuíam nem emprego nem moradia e acabavam morando nas ruas. Para evitar esses problemas, o governo resolveu investir na 190“MEMÓRIAS de um cárcere potiguar”. Tribuna do Norte, Natal, 26 mar. 2006. 191“GOVERNO inicia presídio do Seridó em Caicó”. Tribuna do Norte, Natal, 13 jul. 1997. 192“DESMONTANDO o caldeirão do diabo”. Tribuna do Norte, Natal, 26 abr. 1998. 193 Idem. 93 “regionalização”. Assim, os presos da região oeste ficariam no presídio de Mossoró, que receberia melhorias; os da região Seridó ficariam no novo presídio em Caicó; e Alcaçuz abrigaria os presos da Grande Natal 194 . As obras da Penitenciária de Alcaçuz tiveram início em 1988, mas ficaram paralisadas durante um longo período de tempo, sendo retomadas somente em 1997, durante o governo de Garibaldi Alves Filho. De acordo com o secretário de justiça Carlos Eduardo, o investimento foi estimado em aproximadamente oito milhões 195 e ela foi projetada – seguindo as normas do DEPEN – para ser um presídio de segurança máxima, abrigando presos em regime fechado, onde as possibilidades de fuga seriam praticamente impossíveis. No projeto 196 , havia a previsão de um muro de aproximadamente sete metros de altura, construído em torno dos 40 mil metros quadrados da área da penitenciária. Além do muro, havia a previsão de que o terreno fosse cercado e que, entre o muro e a cerca, houvesse policiamento para reforçar a segurança. Quando concluída, era previsto que a penitenciária tivesse três pavilhões masculinos, um feminino e um de extrema segurança. Previa-se também uma unidade de lazer: com quadra de esportes e campo de futebol, refeitório, cozinha, prédio da administração e para os agentes penitenciários, além de um hospital penitenciário, com enfermeiros e celas para isolamento dos presos com doenças contagiosas. Haveria ainda instalações para oficinas, como marceneiros, onde os presos teriam oportunidade para se profissionalizar 197 . Os reclusos seriam vigiados durante 24 horas por meio eletrônico. O sistema de água e luz seria controlado pelos agentes penitenciários e o piso foi todo reforçado para evitar a escavação de túneis. Estava previsto que até mesmo para lavar as mãos, o preso teria que pedir licença ao carcereiro, que teria o controle das válvulas dos banheiros 198 . 194“SUPERLOTAÇÃO causa tensão e medo na João Chaves”. Tribuna do Norte, Natal, 18 jan. 1998. 195Quando concluída, o gasto total chegou a 15 milhões de reais. Fonte: “SEGURANÇA máxima no novo presídio: primeira etapa do presídio de Alcaçuz é inaugurada e vai receber 255 detentos”. Tribuna do Norte, Natal, 26 mar. 1998. 196 A construção da penitenciária foi baseada num projeto desenvolvido por Lavinia Negreiros e Rosanne Albuquerque para o trabalho de conclusão do curso de Arquitetura da UFRN, no ano de 1988. Entretanto, o projeto não foi completamente executado. 197 Tribuna do Norte, Natal, 13 jul. 1997. 198“SEGURANÇA máxima no novo presídio: primeira etapa do presídio de Alcaçuz é inaugurada e vai receber 255 detentos”. Tribuna do Norte, Natal, 26 mar. 1998. 94 Antes mesmo de ser inaugurado, o novo estabelecimento prisional já era muito comentado e temido pelos internos da João Chaves, que temiam serem transferidos para lá, pois perderiam as regalias adquiridas, já que a nova penitenciária seria de segurança máxima. Em razão disso, com receio da ocorrência de rebeliões e tentativas de resgate, a secretaria de Justiça e Cidadania manteve em sigilo o esquema de transferência e os nomes daqueles que seriam transferidos 199 . A inauguração da penitenciária de Alcaçuz ocorreu em 26 de março de 1998, quando foi entregue a primeira etapa da obra, que permitia abrigar 255 presos. A capacidade completa seria para alojar 500 internos. Os primeiros detentos a ocuparem o novo presídio começaram a chegar no dia 31 de março. Inicialmente, só chegaram 30 internos, aqueles que estavam encarregados das máquinas da padaria e da lavanderia da cadeia. Eles iriam preparar o presídio para a chegada dos outros. Foi uma chegada bem peculiar, pois faltou energia durante a transferência dos presos 200 . Essa transferência representou um marco para o sistema penitenciário do Rio Grande do Norte, pois provocou uma grande mudança ao proporcionar o “desmonte” do Caldeirão do Diabo. A nova penitenciária era considerada referência nacional pelos dispositivos de segurança máxima e respeito às condições humanas, em razão das condições que proporcionaria aos internos 201 . Sobre essa inauguração em particular e sobre outras melhorias que vinham sendo implantadas no sistema penitenciário do estado, o secretário Carlos Eduardo afirmou: “É o fim da superlotação. É o fim dos depósitos de presos no Estado. Por uma questão de dignidade. Caldeirão do Diabo, a partir de agora será apenas uma lembrança triste do passado”202. Por um período, realmente, a penitenciária funcionou bem, contando com serviços de assistências aos internos e sem superlotação, conforme garantiu Ígor Pípolo, o primeiro diretor da instituição, ao afirmar – nos primeiros dias de funcionamento da 199“PENITENCIÁRIA – transferência deve ser no início de abril”. Tribuna do Norte, Natal, 23 mar. 1998. 200“PRESOS começam a ser transferidos para Alcaçuz: faltou energia na chegada dos primeiros trinta detentos ao novo presídio. Transferências concluídas até 15 de abril”. Tribuna do Norte, Natal, 31 mar. 1998. 201“GARIBALDI inaugura 1ª etapa de Alcaçuz: presídio com modernos equipamentos de segurança tem capacidade para 255 presos”. Tribuna do Norte, Natal, 26 mar. 1998. 202“DESMONTANDO o caldeirão do diabo”. Tribuna do Norte, Natal, 26 abr. 1998. 95 prisão – que cada preso teria uma cama e um espaço definido na penitenciária de Alcaçuz 203 . Sobre as condições de inauguração da nova penitenciária ele afirmou ainda: Alcaçuz foi concebida em momento interessante. O governo tinha intenção de acabar com o antigo Caldeirão do Diabo, como era conhecida a João Chaves. Com isso, foi criada toda uma estrutura para suportar esse novo modelo penitenciário. Na verdade, Alcaçuz teve sua construção não só na parte física, mas também na parte conceitual, na parte de infraestrutura. Eu lembro que na época um grande avanço foi uma parceria com a UFRN, que disponibilizava profissionais para fazer controle interno da evolução dos presos. Funcionava como uma comissão disciplinar com advogados, assistente social, psiquiatra e psicólogo. Então, a gente conseguia acompanhar e dar condição digna de moradia 204 . A superlotação pode até ter chegado ao fim, mas foi por um curto período de tempo. Mesmo com todas as melhorias proporcionadas, os problemas inerentes ao sistema penitenciário continuaram presentes no cotidiano prisional, como as fugas. Apenas quatro meses após a inauguração ocorreu a primeira evasão 205 . E, o transcorrer do tempo aliado à falta de investimentos no sistema prisional fez com que paulatinamente, as melhorias fossem extintas, a estrutura física sofresse deterioração e a superlotação chegasse a Alcaçuz, agravando os problemas cotidianos e transformando-a numa espécie de “Novo Caldeirão do Diabo206”, como veremos no capítulo seguinte. Além da construção da Penitenciária Estadual de Alcaçuz, foram sendo construídas outras instituições prisionais em diversas localidades do estado. Atualmente, o Rio Grande do Norte conta com os seguintes estabelecimentos para a guarda dos delinquentes: Cadeia Pública de Caraúbas; Cadeia Pública de Mossoró – Des. Manoel Onofre de Souza; Complexo Penal Estadual Agrícola Dr. Mário Negócio; Cadeia Pública de Natal – Raimundo Nonato; Cadeia Pública de Nova Cruz; Complexo Penal Dr. João Chaves; Complexo Penal Regional de Pau dos Ferros; Penitenciária Estadual de Parnamirim – Des. João Marinho da Silva; Unidade Psiquiátrica de Custódia e 203 Idem. 204PÍPOLO, Igor. “Primeiro diretor do presídio de Alcaçuz fala sobre o sistema prisional do Rio Grande do Norte e apresenta alguns caminhos para ressocialização: depoimento”. [06 ago. 2011]. Natal: Portal BO. Entrevista concedida a Thyago Macedo e Sérgio Costa. Disponível em: http://portalbo.com/materia/Igor-Pipolo-penitenciarias-tem-que-receber-preso-ruim-e-soltar-uma-pessoa- boa. Acesso em 10 jul. 2015. 205“ALCAÇUZ: Uma história de fragilidade e fugas”. Tribuna do Norte, Natal, 14 dez. 2014. 206 Essa expressão tem sido usada pela mídia local para se referir à penitenciária de Alcaçuz, em razão dos constantes problemas vivenciados em seu cotidiano. 96 Tratamento; Penitenciária Estadual do Seridó; Penitenciária Estadual Rogério Coutinho Madruga; Centro de Detenção Provisória da Ribeira; Centro de Detenção Provisória da Zona Norte; Centro de Detenção Provisória da Zona Sul. Todas essas unidades prisionais são administradas por um diretor 207 , que pode ou não ser agente penitenciário. A direção da unidade está subordinada à Coordenadoria de Administração Penitenciária (COAPE), que, por sua vez, está subordinada à Secretaria de Estado da Justiça e da Cidadania (SEJUC). Conforme podemos visualizar no organograma abaixo: Organograma 1 – Hierarquia da administração penitenciária do RN208 207 De acordo com o artigo 75 da LEP, o ocupante do cargo de diretor de estabelecimento deverá satisfazer os seguintes requisitos: I - ser portador de diploma de nível superior de Direito, ou Psicologia, ou Ciências Sociais, ou Pedagogia, ou Serviços Sociais; II - possuir experiência administrativa na área; III - ter idoneidade moral e reconhecida aptidão para o desempenho da função. Parágrafo único. O diretor deverá residir no estabelecimento, ou nas proximidades, e dedicará tempo integral à sua função. 208 Fonte: DAVI, Laudilene Gomes. A reincidência criminal no cotidiano prisional da Penitenciária Estadual de Parnamirim – PEP. Dissertação. (Mestrado em Serviço Social). Natal: UFRN, 2011. 97 PARTE III – Entre espaços e lugares: uma análise espacial da Penitenciária de Alcaçuz “De repente, num único segundo, toda a minha passagem pela prisão veio-me à cabeça. Lembrei-me de cada detalhe e situação dos últimos anos, os companheiros, as torturas, os gestos de bondade, a solidariedade, a luta pela sobrevivência, as revoltas, as dores da solidão. Ficou tudo gravado em minha memória. Um homem nunca é o mesmo depois da cadeia”. Jocenir, Diário de um detento: o livro. 98 Capítulo 4 – A Penitenciária de Alcaçuz Alcaçuz foi construído para desafogar Antes só existia neste lugar Dunas, matas a capinar. Muitos animais para caçar Viviam pessoas pra se alimentar Apareceu Alcaçuz, só para atrapalhar 209 . 4.1. O espaço externo: localização e arredores A Penitenciária Dr. Francisco Nogueira Fernandes, também conhecida como Penitenciária Estadual de Alcaçuz (PEA), está localizada no município de Nísia Floresta (RN), distante 30 km do centro de Natal. A penitenciária está localizada numa comunidade rural de Nísia Floresta, denominada Alcaçuz, devido à proximidade de uma lagoa de mesmo nome. A instituição prisional fica numa área isolada, cercada por dunas e vegetação abundante. Quando foi inaugurada, em 1998, a região era ainda mais inóspita, pois os primeiros moradores chegavam paulatinamente para se instalar na área. Para se ter acesso à penitenciária é necessário utilizar uma estrada de terra batida bastante precária, que, em períodos de chuva, torna-se praticamente inacessível. Ao longo da estrada, é possível observar diversas moradias bem simples, mas também alguns condomínios fechados, chácaras, granjas, estabelecimentos comerciais (mercadinho, restaurantes, lojas de material de construção), uma escola estadual e uma modesta praça de frente à pequena igrejinha da comunidade, que é muito utilizada pelos moradores locais para a realização de exercícios físicos. Entretanto, quanto mais perto chegamos dos limites da penitenciária, torna-se mais escassa a presença de habitações. Isso pode ser justificado pelo medo que a proximidade de uma instituição prisional causa em algumas pessoas. Segundo o geógrafo Yi-Fu Tuan: “os medos são experimentados por indivíduos e, nesse sentido, são subjetivos; alguns, no entanto, são, sem dúvida, produzidos por um meio ambiente ameaçador, outros não 210”. O presídio, normalmente, é encarado pelos sujeitos como um ambiente aterrorizante, afinal, é o local de guarda de criminosos, muitos deles 209 Verso escrito por um interno. O anexo I contém os versos na íntegra. 210 TUAN, Yi-Fu. Paisagens do medo. São Paulo: Editora UNESP, 2005, p. 7. 99 extremamente perigosos. Portanto, é um ambiente que se teme. Nessa lógica, Tuan o define como uma paisagem do medo: Paisagens do medo? Se pararmos para refletir quais são elas, certamente inúmeras imagens acudirão à nossa mente: medo do escuro e a sensação de abandono quando criança; ansiedade em lugares desconhecidos ou em reuniões sociais; pavor dos mortos e do sobrenatural; medo das doenças, guerras e catástrofes naturais; desconforto ao ver hospitais e prisões; medo de assaltantes em ruas desertas e em certos bairros; ansiedade diante da possibilidade de rompimento da ordem mundial 211 . Assim, esse sentimento de desconforto sentido pelos sujeitos ao estar perto de um presídio justifica, em parte, a presença de poucas habitações ao seu redor. Nos arredores do presídio, encontramos poucas casinhas simples – algumas até mesmo habitadas por familiares dos homens que se encontram reclusos – que se mudam para lá com o intuito de estarem mais perto do familiar preso. Sobre essa mudança, conversei com duas companheiras de internos que a justificaram, principalmente, como uma maneira de economizar dinheiro. Como o presídio fica distante da capital, é comum que os visitantes precisem pegar mais de um transporte público para chegar até lá, pagar um táxi ou então um dos muitos carros fretados, que levam as pessoas para as visitas. É também um fator de motivação para a mudança, o fato de que, ao estarem perto do presídio, evitam o desgaste de ter que carregar crianças e pesadas sacolas – com os mantimentos para o interno – numa longa viagem, que, por vezes, precisa ser feita em pé, no transporte público. Por fim, é motivante o fato de poderem ocupar os primeiros lugares na fila formada em dias de visitação, assim, podem ficar mais tempo na companhia do familiar preso. Algumas dessas casas localizadas nos arredores da penitenciária estão inseridas num esquema comercial e servem como ponto de apoio para visitantes que não moram nas imediações, mas pagam uma taxa ao morador – de cinco a dez reais – e têm direito a uma cama ou colchão para pernoitar. E, assim, conseguem dormir próximo ao presídio e ter acesso mais rápido à instituição prisional nos dias de visita. Nesses pontos de apoio, é possível também pagar uma taxa para utilizar o banheiro, tomar um banho ou simplesmente trocar de roupa, o que é muito útil para os familiares, que, muitas vezes, 211 Idem. 100 esperam por horas e até dormem nas filas para ter acesso à visita. Nos arredores da Penitenciária de Alcaçuz encontramos também pequenos comércios, que se formam apenas nos dias de visita, que são os de maior movimentação na penitenciária. Os comércios formados são dos mais variados tipos: desde a simples venda de alimentos e materiais de higiene até alugueis de roupas adequadas para a visitação, passando também pela guarda de pertences, enquanto os familiares se encontram na visita. 4.2. O espaço interno: descrição dos espaços/lugares da penitenciária 4.2.1. Os pavilhões A estrutura da penitenciária de Alcaçuz está composta por pavilhões, numerados de um a quatro 212 , todos dentro dos limites de um alto muro rodeado por arames farpados, no qual estão presentes diversas guaritas ocupadas por policiais militares, responsáveis pela guarda externa do presídio e que, munidos de armamentos, mantêm uma vigilância permanente sobre tal espaço, fazendo revezamentos em turnos. Imagem 1: Vista aérea da Penitenciária Estadual de Alcaçuz 213 212 A penitenciária já contou com um quinto pavilhão, que atualmente funciona como um presídio independente (Rogério Coutinho Madruga) e fica localizado por trás do pavilhão 4. 213 Fonte: Tribuna do Norte. (Marcações feitas pela autora). 101 Além da vigilância dos policiais que é feita externamente, há a vigilância realizada pelos agentes penitenciários, que é feita na parte interna do presídio. Policiais e agentes desempenham, portanto, um intenso trabalho de vigilância, que ameaça os reclusos, os tolhe e cria obstáculos a uma possível fuga. Partindo dessa descrição, é possível compreendermos essa penitenciária como uma instituição disciplinar, definida por Foucault como: Esse espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os indivíduos estão inseridos num lugar fixo, onde os menores movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são registrados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é exercido sem divisão, segundo uma figura hierárquica contínua, onde cada indivíduo é constantemente localizado, examinado e distribuído 214 . Assim, de acordo com essa concepção, compreenderemos a prisão como uma instituição disciplinar. Todavia, ao fazer uso de tal definição é necessário adicionar algumas ressalvas ao conceito. Isso porque Foucault ao pensar as instituições disciplinares, considera que não necessariamente elas correspondem a um lugar fechado, permanentemente vigiado, como podem ser abertas, sem uma intensa vigilância. Ou seja, são um lugar fechado ou aberto, mas que é controlado, regrado pela distribuição dos corpos que o habitam. Visa, com isso, evitar aglomerados, através de uma boa distribuição dos corpos. Justamente o que ocorre no caso do espaço prisional estudado, já que cada corpo tem o seu espaço determinado: uma cela e que – embora também seja habitada por outros corpos – dentro dela, esse corpo possui um espaço específico, que pode ser uma cama ou um colchão no chão. Muitas vezes esse espaço é precário em razão da situação de superlotação e calamidade vivenciada na penitenciária de Alcaçuz, que reflete a realidade do sistema penitenciário brasileiro. Mas, não deixa de ser um lugar específico do apenado, do qual ele não pode sair sem autorização e com o qual ele vai estabelecendo vínculos. Portanto, as instituições disciplinares são – para Foucault (1987) – rede de lugares distribuídos e ocupados por corpos, buscando instaurar uma ordenação desses 214 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 221. 102 corpos e que não se sustenta necessariamente pela vigilância, mas também pela disciplina. Então, utilizando essa definição de Foucault, neste trabalho, entenderemos a prisão como uma instituição disciplinar, mas aplicando as devidas ressalvas, já que no exemplo estudado, a referida instituição carcerária, corresponde a um espaço sob vigilância constante. Entretanto, ao nos referirmos a essa vigilância permanente, também se faz necessário adicionar outra ressalva em relação a esse conceito. Isso porque há a vigilância constante feita pelos agentes e policiais, mas, essa vigilância não se faz presente a todo instante no interior dos pavilhões e celas. Logo, os internos desfrutam de momentos de “certa liberdade”. Os pavilhões se encontram bastante desgastados em razão da falta de investimentos na conservação da estrutura física dos prédios e também devido à própria ação dos internos que depredam o patrimônio público seja durante rebeliões ou então para tentar fugir 215 . Assim, cavam túneis, arrancam vasos sanitários, quebram grades, paredes e cadeados. Sobre as condições encontradas nos pavilhões, as agentes Maria e Marta, descrevem-nas: Os pavilhões, meu deus, é uma “bagaça” mesmo. Tem fossa estourada próximo, tem muito lixo mesmo, tem alguns que as celas são até limpinhas, que é um pessoal mais limpinho né? Mas a maioria é muita sujeira, comida estragada que o presídio fornece que eles não comem. Eles não comem porque as mulheres levam comida pra eles, então, eles não comem, aí, ficam jogando lá no meio, próximo às celas, lá nos corredores das celas, dos pavilhões. E é muito sujo, é um lugar, assim... que não tem muita luz, não circula ar, assim... é horrível lá. Sinceramente, fede muito também, os colchões velhos, nojentos, tudo sujo mesmo, é horrível. Não gostei 216 . Os pavilhões... é até difícil falar. São todos deteriorados as celas são deterioradas. As camas são tudo quebradas, os sanitários não existem, é tudo uns buracos. É, as torneiras quebradas, chuveiro adaptado com negócio de vassoura, o cabo da vassoura, tudo adaptado. Cheio de baratas, uma vez eu tive lá tava cheio de baratas. As camas tudo quebradas, o que era feito de alvenaria são buracos cobertos com colchões 217 . 215 O presídio passou por uma série de reformas, pois teve a sua estrutura física bastante degradada em razão de uma série de rebeliões ocorridas no mês de março de 2015. As reformas tiveram início em março e foram concluídas em 2015, mas mesmo as partes consertadas já sofreram novas depredações pelos internos. 216 ENTREVISTA, MARIA, Nísia Floresta, 01 mar. 2015. 217 ENTREVISTA, MARTA, Nísia Floresta, 15 mar. 2015. 103 A partir dessas descrições, observamos que esses homens estão submetidos a condições degradantes e humilhantes que vão contra toda a legislação penitenciária que trata de seus direitos e dificulta as possibilidades de ressocialização. Ao entrar no ambiente dos pavilhões as sensações despertadas são as piores possíveis, como vemos na fala da agente Emília: “quando eu adentrei nos pavilhões, eu senti aquele ambiente pesado, insalubre, quente, sem ventilação. Eu senti um clima muito pesado, então, eu acho que o pavilhão, onde os presos residem é o pior lugar do presídio 218”. A agente Marta também define os pavilhões como o pior lugar do presídio, mas diferente de Emília que justifica essa definição pelas condições estruturais lá encontradas, Marta o faz pensando na presença dos internos que lá estão custodiados e no perigo que eles podem oferecer: “o pior lugar são os pavilhões, que você está diante de tantos criminosos, ali você está correndo um risco iminente maior de acontecer algo 219”. As celas, em geral, estão superlotadas. As camas são de alvenaria e são conhecidas como “pedras”. Normalmente as celas possuem beliches e são projetadas para acolher de seis a oito internos, mas há algumas celas individuais ou para dois apenados. Atualmente não há camas para todos os internos, por isso alguns precisam dormir em colchões no chão ou, aqueles que não possuem, dormem no próprio chão. Isso acontece porque dificilmente o governo fornece colchões para distribuição entre os internos, então, eles dependem de amigos ou familiares para trazer. Portanto, aqueles que não possuem ninguém para trazer acabam ficando sem. Os internos apelidam o chão de “BR”, assim, diz-se que aquele apenado que está dormindo no chão, está deitado na “BR”. Existe ainda a possibilidade de dormirem em “redes”, que são improvisadas com lençóis, o que nem sempre é uma boa ideia, pois já houve casos de internos se machucarem porque caíram na “BR” ou ainda porque foram atingidos pelo colega que dormia na “rede” e caiu.220 Conforme narrado nos relatos, a situação vivenciada pelos reclusos é crítica. As celas possuem condições deploráveis. O vaso sanitário é colocado enterrado no chão e fica sempre aberto, além do que muitas vezes falta água, impossibilitando que se dê descarga. O chuveiro é um buraco que jorra água da parede. Há muito lixo espalhado pela cela, principalmente restos de alimentos, o que é um forte atrativo para baratas, 218 ENTREVISTA, EMÍLIA, Nísia Floresta, 01 mar. 2015. 219 ENTREVISTA, MARTA, Nísia Floresta, 15 mar. 2015. 220 ENTREVISTA, RAFAEL, Nísia Floresta, 14 mar. 2016. 104 ratos, moscas e mosquitos. Chama a atenção o calor insuportável e a iluminação precária, o que contribui para espalhar o mau cheiro. Misturam-se os odores de corpos suados, mofo e alimentos em decomposição. Ainda sobre o interior das celas, chama atenção de maneira positiva a criatividade dos internos ao improvisar e criar determinados objetos para facilitar o dia- a-dia na prisão, por exemplo, é comum construírem uma espécie de fogão feito com tijolo e resistência elétrica. Providenciam ainda maneiras de isolar as camas – com lençóis, ganchos na parede e um varal – para que tenham mais privacidade. São feitas ainda gambiarras elétricas para fazer os televisores e ventiladores funcionarem. E, para momentos de descontração, constroem cachimbos improvisados com os materiais mais improváveis, como um osso de galinha. Observa-se também que os internos gostam de se diferenciar uns dos outros, nunca querem parecer igual ao colega de confinamento. Com essa finalidade criam, por exemplo, colares, pulseiras e anéis, utilizando o papel alumínio da embalagem das quentinhas de alimentação que recebem diariamente. Os quatro pavilhões são parecidos, há pouca diferença na estrutura física: possuem um hall de entrada do pavilhão, uma quadra para banho de sol e são divididos por alas, nas quais se encontram as celas, que ocupam somente um lado do corredor. Apenas o pavilhão 1 difere um pouco dessa estrutura, pois possui um primeiro andar. Segundo o agente Rafael 221 , esse pavilhão – por ser o maior – é o mais temido pelos agentes, porque o consideram muito inseguro, pois os presos ficam acima da cabeça dos agentes. Para ele, é inadmissível essa estrutura do pavilhão 1, o que deveria ocorrer era os agentes circularem na parte de cima e os presos embaixo, como acontece em algumas unidades prisionais 222 . Tenta-se fazer uma divisão dos criminosos ao enviá-los para os pavilhões, mas nem sempre isso é feito, conforme nos relata o agente “Emanuel”: Deveria ter atenção em relação aos crimes na distribuição, procurar separar por crime, mas muitas vezes não ocorre. Assaltantes de banco e crime organizado, normalmente estão concentrados no pavilhão 2. Estupradores são isolados, normalmente estão concentrados no 221 ENTREVISTA, RAFAEL, Nísia Floresta, 14 mar. 2016. 222 Um exemplo de instituição prisional que possui essa estrutura é o Presídio Rogério Coutinho Madruga, também localizado em Nísia Floresta. 105 pavilhão 3. Normalmente, não quer dizer que fiquem lá todos, mas a maioria fica 223 . Assim, observamos que nem sempre é feita essa divisão, o que pode acabar contribuindo para a ocorrência de brigas entre os internos, que podem culminar até em mortes 224 , Principalmente no caso de estupradores e daqueles que cometem homicídios contra crianças, pois mesmo os criminosos costumam repudiar esses delitos e, normalmente, anseiam por aplicar uma punição física a esses tipos de transgressores. 4.2.2. A adaptação Dentro dos limites da instituição também está presente um setor conhecido como “adaptação” ou “chapa”, destinado a abrigar os apenados que estão chegando à instituição e, antes de serem encaminhados aos pavilhões, passam um determinado período por lá – de quinze a trinta dias – enquanto é decidido a que pavilhão serão remanejados. É preciso esperar esse tempo de “adaptação” porque se verifica qual pavilhão está com vagas e se o novato não possui algum “inimigo” – também recluso na instituição – a fim de que sejam colocados em lugares distintos. Esse setor também se destina a abrigar os presos que desrespeitaram alguma norma da instituição, logo, são encaminhados à “chapa” para cumprir um período de sanção disciplinar, o famoso “castigo”. O setor de adaptação foi construído com a finalidade de servir de local para os internos receberem a visita íntima. Assim, os internos sairiam do pavilhão para receber suas visitas nesse setor. Ao término da visita, seriam revistados e retornariam aos seus pavilhões, o que evitaria o recebimento de materiais ilícitos. Mas, essa dinâmica de visitas não chegou a acontecer e os internos recebem suas companheiras nos pavilhões. O detento Marcos nos apresenta alguns detalhes acerca das características das celas da adaptação: 223 ENTREVISTA, EMANUEL, Nísia Floresta, 13 jan. 2015. 224 Durante o ano de 2015, no sistema penitenciário do Rio Grande do Norte ocorreu uma série de rebeliões, as quais culminaram em diversas mortes de apenados, devido a brigas entre facções criminosas rivais (Sindicato do RN e PCC). Em razão disso, a administração do sistema penitenciário resolveu separar os internos por facções. Assim, a Penitenciária Estadual de Alcaçuz passou a abrigar exclusivamente internos da facção Sindicato do RN, além daqueles que não pertencem a facções. O pavilhão 3 é conhecido como “a massa”, pois abriga internos sem facção. 106 Tem 3m x 3,5m, é menor que uma baia de cavalo, uma baia de cavalo tem 4m x 4m, é pequeno, então é um espaço com uma cama, por que aquela área foi feita pra ser é parlatório, pra receber visita íntima, então tem uma cama de casal, uma “pedra” de casal né, só que, naquilo ali, numa salinha dessa aí, tem sete ou oito. Eu já vi com doze ou treze, meu Deus! É totalmente insalubre, totalmente insalubre. Eu tô falando insalubridade quanto à luz, luminosidade, aeração 225 . Podemos ter a noção de que essas celas são muito pequenas, insalubres e superlotadas. Ainda sobre a descrição desse setor, existe um hall de entrada, além de: Um único corredor com 25 celas umas de frente para as outras. Em cada cela onde deveria ter normalmente um preso, tem nove, dez presos (...) Eles não recebem visita, não recebem alimento externo, só o de dentro do presídio. Chega luz nas celas, mas pouca luz. Não é como nas celas dos pavilhões, mas eles recebem luz. A porta é o que agente chama de chapa, ela é chapada, mas de uns meses para cá, ela recebeu uns furos 226 . Ficava praticamente escuro. Tem uma janelinha. Tem uma entrada de ar tanto de um lado quanto de outro da cela. Tanto do lado do corredor da adaptação quanto para a área externa do prédio 227 . Assim, os apenados que estão reclusos na adaptação são submetidos a uma rotina diária diversa daqueles que se encontram nos pavilhões, além de não poderem receber visita nem alimento externo, eles não têm direito de usufruir do banho de sol. Somente é permitido que os familiares lhes tragam material de higiene e de limpeza. Portanto, a permanência nesse setor acaba sendo uma experiência muito sofrida, já que os internos ficam trancados numa pequena cela escura e lotada, tendo de dormir praticamente grudados uns nos outros. Esse é também um fator que contribui muito para a transmissão de doenças no ambiente da adaptação, constituindo-se num lugar propício para o contágio de doenças de pele e de tuberculose, ainda presente nos presídios. Sobre isso, o interno Marcos, que presta alguns serviços médicos na unidade 228 , afirma: “eles [agentes] colocam muitas vezes as pessoas sem roupas, dormindo uns colados nos 225 ENTREVISTA, MARCOS, Nísia Floresta, 13 set. 2014. 226 Os furos na porta foram feitos em razão de um pedido informal do juiz da Vara de Execuções Penais à direção da unidade prisional, para que os internos tivessem uma estadia mais digna nesse setor. 227 ENTREVISTA, EMANUEL, Nísia Floresta, 13 jan. 2015. 228 Antes de ser preso, o interno Marcos era médico. Então, ele trabalha na unidade fazendo a distribuição de medicamentos. 107 outro. Então, eu atendi muito, atendo direto dermato-micoses, dermatoses profundas que são as chamadas “chanhas”, palavra horrível, grosseira né, é um desastre229”. A realidade da adaptação e o sofrimento que provoca nos internos é tão notória, que alguns agentes penitenciários costumam considerá-la o pior lugar do presídio: O pior lugar para mim dentro da cadeia é o setor de adaptação, do castigo, que serve como triagem dos presos e sanção disciplinar. Então, é um local que eles não recebem visita. Tem o material de limpeza e higiene que eles recebem normalmente, mas comida e visita dos familiares simplesmente não têm. Então, creio que acaba sendo o local mais cruel 230 . Além de ser considerada um lugar ruim devido às privações a que submete o recluso, a adaptação também é enxergada negativamente devido ao isolamento imposto ao interno, o que pode acabar ocasionando transtornos psicológicos, conforme o relato da agente Maria: “eu acho lá, a chapa, o pior lugar do presídio, lá já aconteceu muito suicídio. Você fica isolado no local, termina mexendo psicologicamente com a pessoa, a pessoa não aguenta e termina se suicidando”231. A situação é tão crítica que termina emocionando aqueles que presenciam o sofrimento dos apenados da adaptação, segundo Marcos “você vê coisas horríveis, o que eu já vi de dor de fome, sabe pra mim é... uma coisa mais desumana a adaptação, o primeiro dia que eu fui lá e eu sou muito realista de falar pra você, eu vim e sentei nessa cadeira que eu tô aqui e chorei”232. 4.2.3. O setor dos trabalhadores O setor dos trabalhadores é aquele no qual moram os presos que desempenham algum tipo de trabalho no presídio, por exemplo, existem os responsáveis pela cozinha e pela limpeza. Além daqueles que se encarregam de entregar as refeições cotidianas aos outros reclusos, que são conhecidos como “pagadores”. E os que são responsáveis pela abertura dos pavilhões, chamados de “abridores”. Existem ainda eletricistas, encanadores e pedreiros, além dos que trabalham numa fábrica de bolas e numa de 229 ENTREVISTA, MARCOS, Nísia Floresta, 13 set. 2014. 230 ENTREVISTA, EMANUEL, Nísia Floresta, 13 jan. 2015. 231 ENTREVISTA, MARIA, Nísia Floresta, 01 mar. 2015. 232 ENTREVISTA, MARCOS, Nísia Floresta, 13 set. 2014. 108 cartuchos para impressoras, todas localizadas dentro dos muros da instituição. Assim, por terem uma rotina diferenciada da dos demais reclusos – acordam mais cedo e se recolhem mais tarde em suas celas – moram nesse setor, que se localiza mais próximo da área administrativa da penitenciária, na qual ficam os agentes penitenciários, responsáveis pela abertura e fechamento dos portões. Portanto, o trabalho dos agentes é facilitado, já que não precisam se deslocar muito para fazer a abertura ou trancamento. Nesse setor também moram aqueles presos que não têm condições de serem encaminhados aos pavilhões, por exemplo, ex-policiais militares e internos jurados de morte. O setor dos trabalhadores é também conhecido como setor médico. Esse nome se remete à época de inauguração do presídio, quando – conforme o projeto da penitenciária – lá deveria funcionar um setor de assistência ao preso, que contaria com atendimento psicológico, médico e social. Na época, inclusive, chegou a funcionar o serviço de classificação 233 dos presos, que está previsto como obrigatório na Lei de Execução Penal, mas atualmente não funciona na Penitenciária de Alcaçuz. Os internos que residem nesse setor possuem alguns privilégios em relação àqueles que estão trancados nos pavilhões. Como eles trabalham, suas celas são abertas todos os dias. Logo, podem circular e tomar banho de sol todos os dias. Aqueles que estão nos pavilhões tomam banho de sol em dias alternados e na quarta feira todos tem esse benefício, pois é o dia da visita íntima 234 . O ambiente do setor médico, em si, é mais agradável, mais arejado. Recebe uma maior quantidade de iluminação e entrada de ar. Fica próximo à administração, o que facilita a comunicação dos internos, caso queiram falar com algum agente ou com a direção. Em frente ao prédio do setor médico há um gramado – usado às vezes pelos presos para jogar bola ou fazer caminhada – essa estrutura de grama é isolada por uma cerca de arame farpado. Nesse setor, há uma condição melhor de moradia, pois as celas não são superlotadas. Existem também privilégios para aqueles que trabalham diretamente na 233 O serviço de classificação dos presos está previsto nos artigos 5 a 9 da LEP. A classificação se dá segundo os antecedentes e personalidade do interno a fim de orientar a individualização da execução. Há a previsão de que seja feita por Comissão Técnica de Classificação, existente em cada estabelecimento, presidida pelo diretor e composta, no mínimo por dois chefes de serviço, um psicólogo, um psiquiatra e um assistente social, nos casos de condenados a pena privativa de liberdade. Nos demais casos a Comissão atuará junto ao Juízo da Execução e será integrada por fiscais do serviço social. 234 Essa norma para o banho de sol não vem sendo cumprida desde a rebelião ocorrida em março de 2015, pois os apenados se encontram soltos nos pavilhões. Assim, podem tomar banho de sol todos os dias. 109 parte administrativa do presídio, pois podem comer a mesma comida feita para os agentes e policiais. São também beneficiados com relação aos materiais que os familiares trazem, pois às vezes, lhes é permitido receber os mantimentos num dia da semana diverso do dia de visita. Ou então, receber algum livro ou alimento diferente, como um chocolate, que não é permitido para os outros reclusos. Por vezes também o acesso dos visitantes a esse preso é facilitado, em razão de serem considerados de “confiança” pela direção, muitas vezes as visitas não precisam passar por tantos trâmites para encontrar o apenado. Em razão desses privilégios, morar no setor médico é o desejo de muito internos e também porque, como lá possuem acesso ao trabalho, serão beneficiados pela remição 235 da pena. A partir do relato abaixo do interno Marcos que mora nesse setor, podemos ver como a realidade vivida por ele é diferenciada da dos outros internos: Bom eu tenho graças a Deus a condição de estar aqui [no setor médico], numa condição um pouco melhor, que é condição de prestador de serviços. Então, é... não estou tão “achacado” nos pavilhões, não estou tão cerceado da liberdade do mundo externo, aqui dentro tenho até uma certa liberdade, porque eu me alimento bem(...) posso ter tempo para estudar, para ler. Então a minha vivência aqui, ela é menos dolorosa, do que a da maioria dos que estão tão aventados, humilhados nos pavilhões muito cheios. Então, isso também me propicia, eu acho que uma capacidade de manter a mente aberta, uma mente mais pensante. Uma mente pensante é uma mente não limitada como eles têm 236 . 4.2.4. “Minha Cela, Minha Vida”237 Esse setor é bem pequeno, com capacidade para poucos internos. Lá funcionava uma cozinha, no qual os internos trabalhavam e se transformou numa cela. Foi criado recentemente, aproximadamente há uns dois anos atrás, com o propósito de abrigar aqueles internos que iriam estudar através do Programa Nacional de Inclusão de Jovens 235 A remição é um direito do apenado e está prevista nos artigos 126 a 130 da LEP. Assim, através do estudo ou do trabalho, o interno, que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto, pode remir parte do tempo da execução da pena, na seguinte razão: um dia de pena a cada três dias de trabalho; um dia de pena a cada doze horas de frequência escolar - atividade de ensino fundamental, médio, inclusive profissionalizante, ou superior, ou ainda de requalificação profissional, divididas, no mínimo, em três dias. 236 ENTREVISTA, MARCOS, Nísia Floresta, 13 set. 2014. 237 Aproximadamente no segundo semestre de 2015, com a mudança de direção da instituição, o setor que antes era conhecido como “Minha Cela”, passou a ser denominado “Inferninho” pelos internos. 110 (PROJOVEM). De acordo com a pesquisadora Eliane Bezerra, esse programa tem como objetivo: Atender os jovens que não tenham concluído o ensino fundamental, mas que saibam fazer uso da leitura e da escrita. O interessante desta modalidade de ensino é a busca da integração da educação de jovens e adultos com a qualificação profissional e o exercício de cidadania. Vale ressaltar que o público do PROJOVEM somente conclui seus estudos quando participa de uma avaliação, cujo propósito é medir o processo de ensino e aprendizagem. Em sendo aprovados, os alunos obtêm a certificação do ensino fundamental 238 . O PROJOVEM possui as seguintes subdivisões: PROJOVEM Urbano; PROJOVEM Campo – Saberes da Terra; PROJOVEM Adolescente – Serviço Socioeducativo; e PROJOVEM Trabalhador. A aplicação do programa nos presídios se enquadra no PROJOVEM Urbano em Unidades Prisionais (PJUP) e resulta de um termo de cooperação, firmado entre a Secretaria Nacional de Juventude e o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), no âmbito das ações do Programa Nacional de Segurança com Cidadania (PRONASCI) 239 . Os programas foram implantados em respeito ao direito ao estudo do interno, que, em termos de legislação nacional, está previsto na Lei de Execução Penal (LEP), no capítulo que trata da assistência à educação. Há a previsão no artigo 17 de que “a assistência educacional compreenderá a instrução escolar e a formação profissional do preso e do internado”. E o artigo 18 prevê que “o ensino de 1º grau será obrigatório, integrando-se no sistema escolar da Unidade Federativa”. O Regimento Interno dos estabelecimentos prisionais do estado do Rio Grande do Norte também traz essa previsão nos moldes estabelecidos pelo LEP, conforme exposto no artigo 112: “a assistência educacional compreenderá a instrução escolar, englobando o ensino fundamental e médio, bem como a formação profissional do preso” e no artigo 114: “o ensino fundamental será obrigatório, integrando-se no sistema escolar público”. 238 MEDEIROS, Eliane Bezerra Lima de. A implementação do Projovem no Complexo Penal Dr. João Chaves – Pavilhão Feminino: desafios e perspectivas. Monografia. (Especialização em ensino de jovens e adultos com ênfase no sistema prisional). Natal: Instituto de Educação Superior Presidente Kennedy, 2014, p. 5. 239AGUIAR, Alexandre. “Direito à educação de jovens privados de liberdade: a experiência do Projovem Urbano em unidades prisionais”. Em Aberto, Brasília, v.24, n. 86, p. 75-88, nov. 2011. 111 Então, diante da instalação desse programa em Alcaçuz, os internos – a maioria jovens – foram remanejados para a Minha Cela, Minha Vida. Esse setor foi escolhido porque fica localizado próximo às salas de aula, assim, facilitaria o trabalho dos agentes quando fosse necessário encaminhar os apenados às salas de aula. O nome dado ao setor pela direção da unidade foi “Minha Cela”, mas os internos associaram esse nome ao programa do governo federal “Minha Casa, Minha Vida” e apelidaram o novo setor de “Minha Cela, Minha Vida”. O programa de educação ficou sem funcionar em Alcaçuz devido às reformas que foram feitas na penitenciária para restaurar os estragos causados durante a série de rebeliões. Houve uma breve retomada no segundo semestre de 2015, mas o clima de tensão e revolta se instalou novamente no ambiente prisional, impedindo o andamento das aulas. Todavia, os internos continuaram morando nesse setor: aqueles que estudavam e também foram instalados lá alguns que, por motivos diversos, não podem morar nos pavilhões, aqueles que são ameaçados e os discriminados, por exemplo, os gays e travestis. Portanto, foram encaminhados para a “Minha Cela”, que agrupa poucos internos e é um ambiente mais tranquilo do que os pavilhões. 4.2.5. “Horizonte”240 Esse setor também foi criado recentemente, no ano de 2015 e é bem pequeno, possui três celas e fica vizinho ao pavilhão 2, praticamente encostado com a parede do pavilhão. Abriga aqueles apenados que não podem morar nos pavilhões. 4.2.6. A parte administrativa Para acessar a penitenciária de Alcaçuz, é necessário atravessar um portão eletrônico, que é controlado pelos policiais militares da guarda externa. Ultrapassado esse portão, chega-se ao estacionamento da penitenciária, que é de paralelepípedos. Caminhando mais um pouco, encontra-se um portão que dá acesso ao hall de entrada da penitenciária. De frente a esse portão, há outro que dá acesso aos pavilhões. Chegando ao hall de entrada encontramos um televisor, alguns bancos de cimento e cadeiras, além 240Esse setor é também denominado “Novo Horizonte”, que é como os internos gostam de chamá-lo. 112 de uma janela com grades, na qual ocorre o atendimento da recepção. Vemos também dois corredores, um dá acesso à parte de serviços administrativos, composta pelas salas da direção, vice direção e do chefe de equipe; de audiências; SIAG; parlatório; refeitório; setor jurídico, médico, odontológico e de nutrição. Já o outro, dá acesso às salas da recepção e da revista íntima, além da armaria e dos alojamentos masculino e feminino. 4.2.6.1. A recepção Na sala da recepção trabalham as agentes penitenciárias, que estão divididas em duas equipes e são responsáveis pela realização de alguns serviços administrativos, assim como lhes cabe realizar, em dias de visita aos internos, o procedimento de cadastro e revista dos visitantes. Nos dias de visitação (quartas, sábados e domingos) comparece uma equipe completa, que se alterna semanalmente com a outra equipe. Nos dias em que não há visita, comparece somente um membro da equipe para realizar serviços administrativos. Todas as pessoas que comparecem ao presídio devem passar pela recepção e apresentar um documento oficial com foto. Então, é feito um cadastro num livro de ocorrências para registrar a presença da pessoa e o que foi fazer na instituição penitenciária. No dia de serviço administrativo, é feito atendimento aos familiares dos internos e advogados, além do recebimento de materiais que podem ser entregues aos presos como remédio, ventilador e colchão. Os outros mantimentos são levados pelos familiares, exclusivamente, nos dias de visita. Normalmente, é um dia de trabalho menos estressante do que os dias que têm visita, quando comparecem mais pessoas à unidade. Mas, pode também ser encarado como monótono e solitário, em comparação ao trabalho nos dias de visita que são mais “agitados”. A agente Maria caracteriza o dia de trabalho administrativo como: Tranquilo, assim, porque não tem as visitantes, mas ao mesmo tempo é monótono, porque eu não gosto de ficar muito sozinha. E eu me sinto sozinha, porque praticamente só tem a gente de mulher, fica uma mulher por dia e o resto é tudo homem (...) eu fico um pouco ociosa, o tempo demora a passar 241 . 241 ENTREVISTA, MARIA, Nísia Floresta, 01 mar. 2015. 113 Nos dias de atendimento administrativo, o principal serviço realizado pela recepção é a confecção da carteira dos visitantes, que em sua maioria, são mães e companheiras dos internos. Ao longo dos anos, as normas para a visitação sofreram algumas modificações, em alguns períodos foram bastante rígidas, em outros mais maleáveis. Atualmente, é permitida a visita dos seguintes familiares: pai, mãe, avós, tios, irmãos maiores de 18 anos, filhos (se menores de idade, devem estar devidamente acompanhados da mãe ou avós) e companheiras ou cônjuge. No caso do apenado não possuir nenhum desses parentes para visitá-lo, a direção da unidade analisa o caso e, em caráter excepcional, pode autorizar a visita de pessoa diversa, como primos ou amigos 242 . Podem entrar duas pessoas a cada visita, excetuadas as crianças. Para ter acesso às visitas na penitenciária, os visitantes devem apresentar a seguinte documentação (originais e uma xerox): carteira de identidade (RG) e Cadastro de Pessoa Física (CPF); comprovante de residência em nome próprio ou dos pais atualizado (dos últimos três meses), se não possuir deve apresentar uma declaração de residência autenticada em cartório; declaração de antecedentes criminais emitida pelo Tribunal de Justiça do RN (podendo ser retirada pelo site da instituição) e uma foto tamanho 3x4. As companheiras devem acrescentar certidão de casamento ou declaração de união estável, comprovando o vínculo anterior com o apenado que intenciona visitar, assinada por duas testemunhas e reconhecida em cartório. Caso possua filhos menores de idade com o interno, deve ser apresentada também a certidão de nascimento do filho, a fim de comprovação da paternidade. Assim, receberá autorização para trazer o filho à unidade nos dias da visita social, sempre munida do documento da criança. Durante um tempo, foi exigido que, além dessa documentação, as companheiras, mães, avós, tias e filhas maiores de idade dos internos apresentassem exames: de sangue VDRL (teste para sífilis) e HBsAg (teste para Hepatite B), além do exame ginecológico, o preventivo ou Papanicolau. Caso houvesse alguma alteração nos exames, deveria ser apresentado um laudo médico atestando que a paciente foi submetida a tratamento e não apresentava mais alteração em seu estado de saúde. Apenas se eximiam da apresentação 242 De acordo com o artigo 41, X, da LEP, o interno tem direito de receber a visitado cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados. Acontece que a direção da unidade limita a quantidade de parentes aptos a fazer a carteira e restringe a visita de amigos para evitar um excesso de visitantes na penitenciária de Alcaçuz, dado o grande número de internos. 114 dos referidos exames os homens e as mulheres consideradas idosas, ou seja, a partir dos 60 anos. A exigência dos exames médicos teve início no final do primeiro semestre de 2014 e durou até o início de 2015. De acordo com a agente Maria, os exames passaram a ser exigidos: Para as mulheres de fora não trazerem mais doenças pra os presos aqui, porque quanto mais doenças os presos tenham, mais necessita tirá-los dos pavilhões e levar para os hospitais. E, não tem agentes suficientes para estar nesse movimento, não tem viatura suficiente pra tá levando presos pra hospital, não tem agente suficiente pra ficar com o preso no hospital. Então, quanto menos doença entrar aqui, menos problema vai ser pros agentes, né, que é insuficiente o número 243 . Portanto, passou-se a exigi-los, porque foi observado um aumento considerável no número de apenados contaminados com doenças sexualmente transmissíveis. Configurou-se, então, um problema na unidade prisional, haja vista a inexistência de medicação suficiente e a dificuldade na realização de escolta dos internos ao hospital. Tudo isso está relacionado às deficiências estruturais do sistema prisional: escassez de medicação, ausência de viaturas, déficit de agentes, inexistência de uma equipe de saúde na própria unidade para atender os internos. Diante dessa situação, a estratégia adotada pela direção foi a de exigir das visitantes os referidos exames, para evitar que pessoas contaminadas ingressassem na unidade. Então, as novas visitantes e as antigas precisaram apresentá-los para poderem prosseguir normalmente com as visitas. A exigência dos documentos para autorizar a visita às dependências da penitenciária nunca havia sido tão rígida. Passou a haver um maior rigor a partir do segundo semestre de 2012, quando houve mudança na direção, que passou a ser ocupada por Dinorá Simas, que se estendeu até o início de 2014. Essa mudança com relação à documentação se deu devido às características de trabalho da gestora que tem como marca a rigidez, sendo conhecida por gerir com “punho de ferro”244. 243 ENTREVISTA, MARIA, Nísia Floresta, 01 mar. 2015. 244 REVISTA BZZZ, Natal: ano 3, n. 23, maio 2015. Essa publicação apresentou uma reportagem sobre a gestora, na qual narra a sua história e o seu destemor, enquanto primeira mulher a comandar a maior penitenciária do Rio Grande do Norte. A reportagem apresenta ainda a gestora como “mão de ferro”, que não se sente intimidada diante dos detentos, nem mesmo dos mais periculosos. 115 Assim, ciente de determinadas práticas permitidas por gestões anteriores, passou a investigar com bastante rigor o cotidiano da instituição. Constatou que estava havendo praticamente um “esquema de prostituição” na PEA, dado que alguns internos faziam uma substituição frequente de suas companheiras, sendo, portanto, impossível a comprovação de um vínculo anterior ao cárcere. Observou-se ainda que algumas dessas “companheiras” não sabiam sequer o nome completo do apenado visitado. Logo, para pôr fim a esse esquema de visitação irregular, a direção da unidade resolveu recolher todas as carteiras de visitantes e solicitou que, para regularizar a visitação, todos trouxessem a documentação citada anteriormente, pois em gestões anteriores nem sempre essa documentação era observada com rigor. Sobre as modificações feitas pela gestora, a agente Maria fala: Uma das mudanças foi em relação a fazer a carteira de visitante, porque, antes, qualquer pessoa chegava aqui aí virava visitante. Aí rolava muita prostituição aqui, muita gente vinha, aqui era uma festa. As mães dos presos arranjavam mulher pros filhos pra não vir, não passar pela revista, botavam as mulheres pra vir. Tipo assim, pagavam e elas vinham. E agora não, depois de Dinorá, a gente começou a pedir mais documentação, pedir exames médicos, exigir uma comprovação maior realmente de vínculo, né? Apesar de que de todo jeito, elas tentam burlar, não tem jeito, é uma coisa... Além disso, foi adotado o uso do “termo de suspensão de visitas”245, documento que deve ser assinado pelo apenado que deseja cancelar a visita de sua companheira. Após a assinatura, só é possível cadastrar uma nova visitante transcorrido o prazo de seis meses. A agente Maria afirma que o termo foi implantado “porque todos os dias os presos trocavam de mulher aqui. Nem os caras aí fora não arranjavam tanta mulher quanto os presos de Alcaçuz (risos), era um show 246”. Portanto, a exigência da assinatura desse documento se deu para tentar controlar a mudança excessiva de companheiras pelos internos. Essa direção passou a exigir também que a declaração da união estável fosse submetida à análise da assistente social do sistema prisional, a fim de que o vínculo fosse, de fato, comprovado. Essa exigência foi extinta no segundo semestre de 2014, em razão do número de internos da penitenciária ter aumentado consideravelmente, 245 Ver Anexo II. 246 ENTREVISTA, MARIA, Nísia Floresta, 01 mar. 2015. 116 chegando a pouco mais de mil. Então, o trabalho da assistente social ficou praticamente impossível de ser realizado, uma vez que o atendimento às companheiras só ocorria uma vez por semana e não se limitava à conferência dos documentos de união estável, pois ela também desempenhava atribuições ligadas às outras unidades prisionais do estado. Sobre a postura dessa diretora, a agente Emília fala: Dinorá é muito rígida, muito correta, então, ela não é a favor de que tenha muitas mulheres visitando aqui, sem um vínculo realmente emocional/afetivo com o apenado. O que é muito certo e correto porque aqui são muitas visitantes para muitos apenados e aí realmente a gente tem que dificultar essa prostituição, inibir de alguma forma 247 . Portanto, essas novas exigências agradaram algumas agentes que tinham o pensamento igual ao da gestora. Todavia, essa mudança desagradou bastante os internos e as visitantes que foram mais afetadas. Inclusive, chegou a gerar conflitos entre as agentes e as visitantes, como narra a agente Maria sobre o período de exigência dos exames: É o preventivo que toda mulher tem que fazer mesmo, mas quando a gente pede é um horror. Porque elas ficam indignadas em ter que fazer isso. Assim, porque tudo é assim, tudo aqui é conflito, sempre existe aquele conflito entre os agentes e os visitantes, porque acham que os agentes são o mal, assim, e eles são as vítimas entendeu? Aí fica esse jogo de empurra pra cá empurra pra lá, existe esse conflito muito grande. Mas, o preventivo é uma coisa que qualquer pessoa faz. Assim, observamos que, ao longo do tempo, os documentos foram sendo modificados de acordo com o que a direção da unidade julgava adequado a cada época. O período no qual foram exigidos os exames médicos foi bastante complicado, pois acabou se apresentando como um fator dificultador para as visitas. Algumas pessoas não tinham plano de saúde ou dinheiro para pagar pelos exames, então, eram obrigadas a esperar a realização pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o que demorava bastante. Tinha também o caso das senhoras muito humildes, principalmente de cidades do interior, que se recusavam a fazer o exame preventivo, pois não possuíam o hábito de ir ao médico por vergonha e nunca tinham feito esse exame. Se a pessoa apresentasse alguma alteração no exame, era exigida a comprovação do tratamento, o que levava 247 ENTREVISTA, EMÍLIA, Nísia Floresta, 01 mar. 2015. 117 algum tempo para ser realizado. Diante de toda essa burocracia, as queixas das visitantes eram muitas. E tinham certo fundamento. Afinal, com esse procedimento estava havendo uma espécie de punição para o familiar que se via obrigado a se submeter a uma série de exames para poder ter contato com o preso. Em razão das reclamações, a exigência foi extinta pela Coordenação de Administração Penitenciária (COAPE), hierarquicamente superior à direção da unidade prisional. 4.2.6.2. As salas da chefia, o setor administrativo e jurídico As salas da direção, vice e do chefe de equipe são salas pequenas, a de audiências é um pouco maior. O setor administrativo, também conhecido como SIAG, é onde ficam os prontuários dos apenados, que trazem os dados pessoais, assim como informações sobre o crime cometido, tempo total de pena e períodos para atingir os benefícios de progressão de regime ou liberdade condicional. Lá é feito o registro de chegada e de saída dos internos e de colocação e mudança de cela; além da emissão de alguns documentos, como atestado de conduta carcerária. Nesse setor ficam também arquivadas as sindicâncias 248 , que são abertas contra os presos quando eles cometem algum ato ilícito na instituição. O SIAG funciona ainda como setor pessoal da instituição, lá fica arquivada também a documentação relativa aos agentes penitenciários. Já o setor jurídico é responsável, principalmente, por verificar os prazos e providenciar a liberação dos internos quando vão progredir de regime ou atingir o benefício da liberdade condicional ou ainda quando recebem alvará de soltura. 4.2.6.3. O parlatório O parlatório é o local reservado para a conversa entre o apenado e o seu advogado. Corresponde a uma parede que contém da sua metade para cima um material plástico grosso transparente e algumas cabines, isoladas lateralmente. Ficam em pé – de 248 Quando o preso comete algum ato contrário às normas da instituição, deve ser aberta uma sindicância para apurar a autoria do ilícito e só então punir o responsável. 118 um lado o advogado, do outro o interno – e se comunicam por furos feitos no material transparente. Há também um espaço para passar documentos. 4.2.6.4. Os setores médico e odontológico O setor médico é uma sala grande que armazena os remédios enviados pelo governo para a instituição e os remédios “tarja preta” trazidos pelos familiares para os internos. Como essa medicação é controlada, não pode ser entregue de uma só vez para o interno, para evitar venda de medicação e uso abusivo. Então, o remédio fica guardado nesse setor e é entregue diariamente. O responsável pelo setor é o interno Marcos. Na sala, além dos armários para a guarda da medicação existe uma maca, onde são feitos pequenos atendimentos, como suturas e aplicação de injeções. A sala do dentista fica normalmente vazia, porque raras são as vezes que algum comparece à instituição. Segundo a agente Emília, o atendimento odontológico: “é uma coisa pontual, consegue uma parceria durante um tempo aí ele vem atender aqui 249”. Portanto, observa-se que em Alcaçuz não há uma assistência adequada ao interno conforme prevê a legislação penitenciária. Por um curto período de tempo, tentou-se implantar no sistema prisional do estado uma equipe de saúde composta por agentes penitenciários que iriam prestar atendimento aos presos nas suas áreas de formação profissional. Acabou não dando certo devido à falta de investimentos por parte do governo. A agente Emília, que tem formação em psicologia, nos conta sobre a sua participação nessa equipe: Não funcionou. Funcionou, assim, em torno de dois meses, mas, como nós não tínhamos estrutura na época, a dentista que fazia parte não tinha os equipamentos, não tinha remédio, não tinha curativo. Então, a gente passou esses dois meses atrás de posto de saúde pra conseguir parceria. Eu que sou psicóloga, na época, cheguei a atender na João Chaves umas três ou quatro presas, consegui fazer algumas intervenções pontuais. Foi em 2013 que a gente atuou esses poucos meses. (...) Então, foi algo que durou pouco tempo, além de não ter estrutura, carro para nos levar para presídios mais distantes, não ter material no caso da dentista para fazer atendimento, acabou que não vingou. Todos eram agentes: enfermeira, dentista, tinha uma 249 ENTREVISTA, EMÍLIA, Nísia Floresta, 01 mar. 2015. 119 farmacêutica, eu com psicóloga e tinha um rapaz também como psicólogo 250 . 4.2.6.5. O setor de nutrição e o refeitório O setor de nutrição é relativamente novo, foi criado por volta de 2012, através de um contrato feito pelo governo com a empresa PJ Refeições Coletivas. Com a inauguração desse setor, a penitenciária passou a contar com uma nutricionista que organiza o cardápio e a quantidade de alimentos necessários para fazer as refeições dos agentes e dos presos. E também com um chefe de cozinha que auxilia os internos na preparação dos alimentos. A criação desse setor foi enxergada como positiva: Depois que o setor de nutrição passou a funcionar aqui, a gente come bem, tem sobremesa, tem diversidade na alimentação, no almoço, no café da manhã, que antes não tinha. Então, pra mim foi um avanço muito bom, a gente saber que vai ter uma comida boa, que vai comer bem, ser bem alimentado, durante o período que estiver aqui 251 . No segundo semestre de 2015, o refeitório passou por uma reforma para ser ampliado. Conta com a parte da cozinha – que foi modernizada – e com uma grande mesa de madeira, na qual os agentes fazem as refeições. Além de ser o local destinado à alimentação é também um lugar de sociabilidade dos agentes, aonde se vai – nos intervalos do trabalho – para descansar e jogar conversa fora, normalmente com café e bolachas. 4.2.6.6. Os alojamentos dos agentes Os alojamentos masculino e feminino ficam no corredor oposto ao que dá acesso à área que engloba os setores administrativos do presídio. O alojamento feminino fica no térreo e o masculino fica no andar superior, praticamente em cima do alojamento das agentes. Possuem camas, beliches, armários e banheiro. O alojamento masculino é bem maior que o feminino, até porque a quantidade de homens é superior a de mulheres. 250 Idem. 251 Idem. 120 Como os homens precisam pernoitar na unidade, o alojamento masculino possui uma melhor estrutura física, contando, por exemplo, com um aparelho de ar condicionado. Atualmente, os alojamentos apresentam boas condições, pois foram feitos reparos 252 , mas as condições eram muito precárias, como podemos ver no relato da agente Maria: O alojamento é um vão que tem um banheiro e tem duas camas (1 beliche e 1 cama de solteiro). Não está muito organizado, porque o banheiro está com problemas de infiltração. Então, lá de cima, quando os meninos usam o banheiro lá de cima, acontece que suja o banheiro todinho aqui em baixo. Tá precisando de uma reforma o alojamento feminino. E, acredito que o masculino também esteja precisando, porque é mais gente que usa lá 253 . 252 O presídio todo passou por reformas no primeiro semestre de 2015 após as rebeliões do mês de março. 253 ENTREVISTA, MARIA, Nísia Floresta, 01 mar. 2015. 121 Capítulo 5: A penitenciária e suas rotinas 5.1. O dia a dia dos internos Aqui estou, mais um dia. Sob o olhar sanguinário do vigia. Você não sabe como é caminhar com a cabeça na mira de uma HK. Metralhadora alemã ou de Israel. Estraçalha ladrão que nem papel. Na muralha, em pé, mais um cidadão José. Servindo o Estado, um PM bom. (...) Os dias são iguais. Acendo um cigarro, vejo o dia passar. Mato o tempo pra ele não me matar. (...) O relógio da cadeia anda em câmera lenta Diário de um Detento, Racionais MC’s. A rotina diária dos reclusos tem início no princípio da manhã, quando eles recebem a primeira refeição do dia, entregue pelos “pagadores254”. Às sete horas da manhã, os agentes penitenciários costumavam se dirigir a esses pavilhões para fazer a conferência dos apenados e abrir as celas, liberando o acesso dos internos ao pátio. Entretanto, devido à onda de rebeliões iniciadas em março de 2015, a cadeia teve a sua rotina alterada. Os pavilhões foram todos destruídos pelos internos, que quebraram paredes e arrancaram grades das celas. Assim, ficaram todos soltos dentro do pavilhão, contidos apenas pelo portão de ferro que tranca o pavilhão e pelo grande muro que circunda todo o complexo prisional. Ainda em 2015, foram realizadas reformas na penitenciária, que foi reerguida. Todavia, os internos não aceitaram ficar trancados nas celas e, novamente, quebraram todas as grades para ficarem soltos no interior dos pavilhões. Portanto, em razão dessa situação, os agentes não ingressam mais nos pavilhões, devido à insegurança. Apenas o fazem com o apoio de grupamentos especiais em situações críticas. Segundo o agente “Emanuel”, a abertura dos pavilhões se dava desta maneira: 254 Internos que entregam as refeições aos outros. 122 Hoje o procedimento também é diferente de antigamente, pelo fato de que hoje está bem mais disciplinado. A gente entra, se a gente pisar no pavilhão, no hall do pavilhão, na entrada do pavilhão, os presos ao escutar, eles já vão para a posição que é de procedimento: sentar no chão virado de costas para o agente, cabeça baixa e mão na cabeça. Tanto para abrir quanto para fechar é assim. Também serve para a adaptação e, se eles quiserem falar com o agente, é só levantar a mão, sem olhar para o agente e pede permissão para falar. Antes, eles não sentavam, não ficavam de costas para o agente, ficavam amontoados próximos à entrada da cela; olhando, querendo intimidar o agente; televisão ligada, gritaria. Além disso, que eu falei, televisão é desligada, ninguém fala e, se quiser falar, pede autorização 255 . Os pavilhões eram abertos para que os apenados desfrutassem do “banho de sol”, que se estendia até quinze horas, quando eram novamente trancados em suas celas pelos agentes e era feita uma nova conferência. Havia uma alternância entre os dias que os pavilhões eram abertos para o banho de sol. Num dia pavilhões um e três, noutro dia pavilhões dois e quatro. Apenas nas quartas-feiras todos os pavilhões eram abertos para o recebimento da visita íntima. Observa-se, portanto, que os homens aprisionados estão submetidos a todo um regramento institucional, que preza pela ordem e disciplina, objetivando manter os corpos disciplinados. Mesmo não estando mais submetidos há essa rotina de controle mais rígida, ainda devem obedecer a ordens e ter disciplina. Segundo essa lógica, podemos enxergar a Penitenciária de Alcaçuz como um sistema social em operação, conforme o conceito de Augusto Thompson, de acordo com o qual a penitenciária é vista como um sistema social de poder e representa: Uma tentativa para a criação e manutenção de um grupamento humano submetido a um regime de controle total, ou quase total. As regulações minuciosas, estendendo-se a toda área da vida individual, a vigilância constante, a concentração de poder nas mãos de uns poucos, o abismo entre os que mandam e os que obedecem, a impossibilidade de simbiose de posições entre os membros das duas classes – tudo concorre para identificar o regime prisional como um regime total 256 . Assim, observa-se que Thompson, tal qual Foucault (1987), também dá ênfase à questão do poder em sua abordagem sobre o espaço da prisão, dando destaque à 255 ENTREVISTA, EMANUEL, Nísia Floresta, 13 jan. 2015. 256 THOMPSON, Augusto. A questão penitenciária. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 22. 123 concentração do poder, que fica nas mãos de poucos, enquanto a massa desprovida de tal poder, deve se submeter a ele. Então, partindo dessa definição que qualifica a prisão como um sistema de poder, é possível aplicá-la ao caso da penitenciária de Alcaçuz, pois nesse espaço, observamos as características apontadas por Thompson. Os internos têm todos os detalhes de sua vida regulados de maneira minuciosa, já que possuem horários determinados para fazer as refeições, tomar banho de sol, receber visitas, entre outros. Enfim, só podem fazer o que estiver estritamente previsto nas normas institucionais e caso resolvam violá-las, estão sujeitos a uma punição. Há, assim, um grande abismo entre os que emanam as ordens e os que as obedecem, além da impossibilidade de troca de posições. Logo, entenderemos a cadeia como um sistema de poder caracterizado pela regulação e vigilância permanente. Ao estudar essa instituição prisional, também a entenderemos como uma instituição total, definida por Erving Goffman como: Um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada As prisões servem como exemplo claro disso, desde que consideremos que o aspecto característico de prisões pode ser encontrado em instituições cujos participantes não se comportaram de forma ilegal 257 . Tomando como base essa definição, entenderemos a prisão como uma instituição total, já que o espaço da penitenciária serve de moradia para os internos, além de local de trabalho, pois não lhes é permitido realizar nenhuma atividade laboral fora dos limites do presídio. Além disso, esses indivíduos estão submetidos a uma única autoridade – a do Estado que os puniu – e que se encontra materializada na figura da direção da unidade e dos agentes penitenciários. Todas as atividades realizadas por eles possuem horários pré-determinados e são constantemente observadas, além do que sempre são realizadas em conjunto com os demais internos. Ao fazer uso de tais conceituações, necessário se faz relativizá-las. Conforme discutimos no capítulo anterior, os internos desfrutam de “certa liberdade” dentro da instituição disciplinar. A vida deles é formalmente administrada até certo ponto. É 257 GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Editora Perspectiva, 1961, p. 11. 124 exercida uma vigilância constante sobre o espaço como um todo da penitenciária de Alcaçuz, o que se caracteriza pela presença de policiais militares nas guaritas e agentes penitenciários no interior da unidade, sempre atentos a tumultos ou a uma possível tentativa de fuga. Todavia, devido à estrutura do presídio, a parte interna dos pavilhões não fica visível aos servidores responsáveis pela guarda dos presos, que ficam na parte administrativa. Logo, no interior desses pavilhões não há vigilância constante nem controle total, havendo, portanto, liberdade para os internos desempenharem diversas atividades, muitas dessas proibidas, como consumo de drogas e uso de aparelhos celulares. Essa vigilância ocorria quando os agentes acessavam os pavilhões duas vezes ao dia para fazer a “chamada” dos internos e durante as revistas de rotina em busca de ilícitos. Mas, agora não há a conferência diária dos reclusos, logo, a vigilância e o controle do interior dos pavilhões só ocorrem ocasionalmente quando há a realização das revistas nos pavilhões, justamente em busca desses materiais ilícitos. 5.2. A visita e a “temida” revista íntima Nada deixa um homem mais doente que o abandono dos parentes. Diário de um Detento, RacionaisMC’s. 5.2.1. A expectativa e a preparação para a visita É possível afirmar que os dias nos quais acontece a visita na penitenciária são aguardados com uma imensa expectativa pelos apenados e também pelos visitantes, afinal, ocorrerá o tão esperado reencontro entre eles. A preparação para a visita se inicia já no dia anterior. De um lado, os internos começam a arrumar suas celas para o recebimento das visitas. É feita a limpeza da cela, os lençóis são trocados e é providenciada uma roupa limpa para receber os familiares. Do outro lado, os visitantes dão início à organização dos mantimentos que serão levados para o interno. Para as pessoas que virão de longe, já é o momento de “pegar a estrada” rumo à penitenciária. A maioria dos familiares que visitam os internos na Penitenciária de Alcaçuz reside na capital do estado ou nas cidades vizinhas. Todavia, algumas pessoas moram em cidades do interior ou até em outros estados, o que faz com que precisem encarar uma longa viagem até a penitenciária. 125 A visitante Sheila 258 , moça jovem, mãe de três filhos pequenos, conta que morava em uma cidade do interior quando o companheiro foi preso. Para visitá-lo, precisava se submeter semanalmente a uma viagem de cinco horas até a penitenciária. Segundo ela, era uma rotina muito cansativa e estressante, principalmente quando viajava com as crianças. Conseguiu, então, uma transferência para que o companheiro ficasse custodiado na cidade em que morava. Todavia, no novo presídio, o esposo passou a se relacionar com outras mulheres, uma vez que lá existe uma ala composta por presas e nos dias de visita, com as aberturas das celas, há o contato entre elas e os presos. Sheila afirma que o período no qual o companheiro manteve esses relacionamentos extraconjugais foi um “inferno”. Assim, buscou o retorno do companheiro à Penitenciária de Alcaçuz e ficou muito feliz ao conseguir. Afinal, preferia se submeter a uma rotina de viagens constantes do que ser traída. Essa rotina acabou se tornando muito desgastante e Sheila decidiu se mudar para a capital para ficar mais perto da penitenciária. Deixou dois de seus filhos com os avós e se mudou com a filha menor. Assim como Sheila, que fez a opção de se distanciar dos filhos, outras visitantes narram experiências de muito sacrifício para estarem sempre presentes nas visitas. São pessoas, por exemplo, que economizam o pouco dinheiro que têm para pagar as viagens. Muitas vezes não é possível comparecer todas as semanas, então, comparecem uma ou duas vezes ao mês. A essa despesa soma-se o gasto com os mantimentos levados para o interno, o que acaba por inviabilizar um maior número de visitas ao mês. Mesmo as pessoas que moram mais próximo ao presídio também enfrentam dificuldades para comparecer às visitas. Em razão da penitenciária se localizar numa zona rural, o deslocamento até lá se torna difícil para quem não dispõe de um meio de transporte próprio. Não há uma linha de transporte público regular que atenda a região. Apenas nos dias de visita, uma linha de ônibus é disponibilizada para fazer o transporte dos visitantes. São feitas somente duas viagens, uma pela manhã e outra no final da tarde, ao término da visita. E se a estrada de barro que leva ao presídio estiver em condições muito ruins – principalmente nos períodos de chuva – o ônibus não faz o trajeto. Fora essa opção, é possível pegar um transporte público até o distrito de Pium, que fica a uns três quilômetros do presídio. Chegando lá, é possível contratar o serviço 258 ENTREVISTA, SHEILA, Nísia Floresta, 16 dez. 2015. 126 de moto-táxi que conduz o visitante até o presídio. Quem não pode pagar, muitas vezes faz o percurso a pé, carregando pesadas sacolas. Outra opção – um pouco mais cara – é ir de táxi ou então em carros fretados. Natália 259 , moradora de um bairro periférico da capital, conta que sua jornada rumo à penitenciária tem início nas primeiras horas da madrugada, quando o carro fretado passa em sua residência. Ela é a primeira a ser buscada, então, o carro continua a jornada, passando por diversas residências em diferentes bairros da capital, em busca de mais visitantes. Concluída a lotação do carro, ele segue em direção ao presídio, aonde chega por volta das quatro horas. De acordo com Natália, essa rotina a deixa muito cansada, pois praticamente não consegue dormir. Mais cansativo ainda é para as crianças que são privadas de uma noite tranquila de sono. Natália tem um filho, que raramente leva para a visita, pois segundo ela, a criança fica muito “enjoada” por não conseguir dormir direito. É possível observar isso em diversas outras crianças, que ficam irritadiças e choram bastante ou então já chegam para a visita adormecidas nos colos das mães. A partir desses relatos, constata-se que praticamente nenhuma dificuldade impede essas mulheres de se fazerem presentes a cada visita lotando as filas de espera. A vontade de visitar o interno supera todas as adversidades, como a distância, a falta de dinheiro e de meio de transporte. Até mesmo questões de saúde não se apresentam como um obstáculo para algumas dessas pessoas. De vez em quando, algumas visitantes mesmo não estando muito bem de saúde insistem em comparecer às visitas e acabam passando mal durante a visita, seja por problemas de saúde mais graves, como hipertensão ou ainda em razão de situações mais simples, como febre ou dor de cabeça. O caso que considero mais impactante é o de Daiane 260 , uma jovem que foi mãe muito cedo, ainda menor de idade e quando o companheiro ainda estava em liberdade. Passado pouco tempo do nascimento do primeiro filho, Daiane recebeu a notícia de que havia engravidado novamente, período que coincidiu com a prisão de seu companheiro. Assim, ela passou a visitá-lo grávida e sempre acompanhada do primogênito, o que se repetiu durante todos os meses da 259 ENTREVISTA, NATÁLIA, Nísia Floresta, 16 dez. 2015. 260 ENTREVISTA, DAIANE, Nísia Floresta, 01 mar. 2015. 127 gestação. Se a rotina de um dia de visita já é cansativa para uma pessoa em condições normais, imagine para uma mulher grávida acompanhada de uma criança pequena. Entretanto, o que mais impressiona na história de Daiane e da sua vontade incomensurável de comparecer às visitas, é o fato de que após ter o seu filho – de parto cesáreo – na semana seguinte, ela compareceu à penitenciária com o intuito de visitar o companheiro. E, só não concretizou o seu intento, pois devido a questões de segurança relativas à saúde dela e do recém-nascido, não teve a visita liberada. A penitenciária é um local muito insalubre, totalmente inadequado para uma pessoa cirurgiada e um recém-nascido entrarem. Além do que, ao fazer o procedimento de revista íntima, poderia acabar causando uma complicação cirúrgica. Foi muito difícil convencê-la a ir embora, pois aos prantos implorava para participar da visita, não importando as consequências. Afirmava que o seu maior desejo era poder entrar e apresentar ao pai o filho recém-nascido. Conversou-se com ela a fim de que entendesse o risco que ela e a criança corriam e lhe foi explicado que o mais adequado seria aguardar passar o período de “resguardo” para que normalizasse a sua rotina de visitas. Ela continuou inconformada, então, abriu-se uma exceção para que o interno saísse do pavilhão e viesse à entrada do presídio para conhecer o filho. Assim foi feito e, aparentemente conformada, a mulher foi embora com a promessa de que só retornaria às visitas superado o “resguardo”. Todavia, enorme foi a surpresa dos agentes, quando na visita da semana seguinte ela retornou acompanhada dos dois filhos e trazendo pesadas sacolas. Dessa vez, não foi aberta exceção e ela precisou retornar sem ter acesso ao companheiro. Diante de situações como essas, observamos a importância que essas pessoas atribuem à visita, ao ponto, por exemplo, de arriscar a própria saúde e a do filho. Esse sacrifício todo é, muitas vezes, explicado em razão do amor que dizem sentir pelo interno. É um ponto em comum nos relatos das visitantes a afirmação de que ficam muito ansiosas na expectativa pelo dia da visita, afinal, poderão “matar” a saudade do familiar recluso. A visitante Viviane 261 , em meio a um sorriso largo, conta que a expectativa pelo dia da visita é realmente muito grande devido à saudade do companheiro. Segundo ela, conta os minutos para encontrar o companheiro e abraçá-lo ou como ela prefere falar: enchê-lo de “arrochos”. Além de Viviane, muitas outras 261 ENTREVISTA, VIVIANE, Nísia Floresta, 24 jan. 2016. 128 visitantes chegam à penitenciária com muita pressa para entrar e encontrar logo o companheiro, indagadas sobre o porquê de tanta ansiedade, não se constrangem em afirmar que estão “doidas para namorar”. Ao término da tão esperada visita íntima, é possível constatar que o dia “reservado” ao namoro foi proveitoso pela aparência das visitantes: sorrisos frouxos, cabelos molhados e até mesmo pescoços marcados. Em meio a relatos de um amor “incondicional”, que justificaria a presença constante dessas visitantes, existem relatos de mulheres que só comparecem às visitas, pois temem perder a própria vida. É o caso daquelas mulheres que são ameaçadas pelos companheiros para que sempre compareçam. A visitante Mara 262 , cujo companheiro está preso, pois matou a ex-mulher, teme ter o mesmo fim. Logo, sempre se faz presente nos dias de visitação. Sobre essa questão de intimidações às companheiras, alguns dos casos acabam por extrapolar o campo da ameaça, chegando às vias de fato. É o caso de algumas mulheres que já sofreram agressões no interior dos pavilhões e saíram da visita machucadas: Não é muito frequente as mulheres serem agredidas aí dentro [da penitenciária]. Mas já aconteceram sim alguns casos de mulheres saindo daí com o olho roxo. Normalmente, elas tentam esconder porque se algum agente visualizar vai dar problema pro preso, que vai ter que responder um castigo por ter batido na mulher. Mesmo tendo sido agredidas elas costumam querer continuar visitando, nunca vi nenhuma que apanhou pedir pra cancelar a carteira. Não sei se é por medo ou por amor que continuam a visitar 263 . A expectativa pelo dia da visita é sentida igualmente pelos internos, que anseiam reencontrar os familiares. Inclusive, devido à grande importância que atribuem a esse dia, é utilizado como meio de punição para eles a perda do direito de receber o familiar no dia de visita. Isso pode acontecer, por exemplo, nos casos de rebeliões ou tentativas de fugas. Diante de um desses casos, a direção pode decidir pelo cancelamento da visita para o pavilhão envolvido no problema. Como os internos esperam muito pelo dia de visita, essa medida pode ser útil para contê-los, no sentido de buscarem evitar problemas para não ter a visita cancelada. 262 ENTREVISTA, MARA, Nísia Floresta, 12 set. 2015. 263 ENTREVISTA, ÍSIS, Nísia Floresta, 15 nov. 2015. 129 No tocante às visitas íntimas, outro fato observado é que há uma troca constante de companheiras por alguns apenados. As companheiras são normalmente canceladas em razão de desentendimentos com os internos ou então porque deixam de comparecer às visitas. Assim, é comum que eles enviem bilhetes – também conhecidos como “catataus” – solicitando o cancelamento das companheiras. Após esse pedido, é enviado um documento (termo de suspensão de visita) para o interno, a fim de que o assine, oficializando a desistência da visita e tome ciência de que só poderá cadastrar nova companheira ou recadastrar a mesma, quando transcorrer o prazo de seis meses. As formas de se arranjar uma companheira dentro do presídio são das mais variadas possíveis. Normalmente, são as mulheres com quem os presos conviviam fora da cadeia que costumam vir visitá-los, entretanto, há o caso dos “namoros” arranjados. Pode ser o caso da mãe do interno, que arranja uma mulher para vir visitá-lo ou ainda de uma visitante que arruma uma amiga para vir visitar o companheiro de cela do marido. Ouvi também relatos de mães afirmando terem arranjado mulheres para os filhos, com a intenção de que a nova companheira passasse a comparecer às visitas trazendo os mantimentos do interno e elas pudessem deixar de visitá-los semanalmente. Assim como escutei os relatos dessas mães, escutei o de muitas outras que tinham como maior desejo arrumar uma mulher para o filho a fim de que, com isso, não precisassem mais comparecer à visita com tanta frequência. Analisando os relatos dessas pessoas, observa-se que, para elas, o intuito maior de comparecer às visitas se resume à entrega de mantimentos para o interno. A partir do momento em que arranjam outra pessoa para fazê-lo, deixam de vir ou reduzem as idas ao presídio, pois não suportam o ambiente. Do mesmo modo que os apenados enviam “catataus” solicitando o cancelamento das mulheres, o fazem perguntando se o nome já está “limpo” para poder cadastrar uma nova mulher, ou seja, se já transcorreu o prazo de seis meses desde o cancelamento da companheira anterior. A partir daí, observamos que há uma grande ansiedade por parte dos apenados em receber uma companheira na visita íntima, o que nos faz enxergar como é importante receber uma visita para eles. Conversando com os internos 264 sobre esse aspecto da importância da visita, é um ponto comum entre eles o fato de desejarem muito ter uma visita íntima. Um dia, no refeitório, conversando com mais duas colegas de trabalho, falávamos sobre como é, de certo modo, fácil arranjar uma namorada 264 Os internos entrevistados foram aqueles que desempenham alguma atividade laboral na parte administrativa do presídio, seja nas áreas da cozinha, limpeza, burocrática ou enfermaria. 130 dentro da unidade, dada a grande rotatividade de mulheres que se cadastram para visitar os apenados. O interno Francisco 265 , que trabalha no setor de limpeza, estava no refeitório e afirmou que ainda não tinha tido essa “sorte”, mas que desejava muito conseguir uma mulher para visitá-lo. Para Francisco, torna-se mais complicado de encontrar uma companheira, pois ele não recebe visita de familiares ou amigos, que poderiam facilitar o encontro. Diferente de Francisco, os internos Gustavo 266 e Evandro 267 tiveram “sorte” e conseguiram arranjar uma namorada para visitá-los. Gustavo conseguiu por meio de um amigo o contato com uma mulher para visitá-lo, que comparece esporadicamente, enquanto isso Evandro já teve mais de uma namorada “arranjada”. A agente Ísis descreve o encontro com uma delas: Após um longo tempo sem ter visita íntima, arrumaram uma mulher pra vir visitá-lo, acho que foi a família dele que arranjou. Aí a mulher tinha ficado de vir num final de semana (...) ele passou a semana todo ansioso, falando pra todo mundo que essa mulher ia vir. Foi um movimento danado aqui, falou pra todos agentes, aí foi criada uma expectativa em torno da visita dessa mulher. No dia que ele foi receber a mulher, todos os agentes de serviço no dia já sabiam da história e queriam ver quem era a mulher, assim como queriam ver a cara dele ao encontrá-la. Quando ela chegou, houve certa discrição por parte dos agentes, mas todos queriam conferir, assim, pelo “canto do olho” quem era a mulher tão aguardada. Eu mesmo e as agentes que estavam comigo na sala de revista ficamos olhando pela janela o encontro dele com a mulher. Sobre o amplo rodízio de visitantes, o agente Rafael 268 destaca que a condição de ser a “visita de um interno”, se tornou uma espécie de profissão. Embora seja de difícil comprovação, é sabido pela instituição prisional que algumas mulheres somente comparecem aos dias de visitação, porque são remuneradas para essa finalidade. Todavia, importa salientar que elas constituem a minoria. Além disso, Rafael aponta outro motivo que justificaria o interesse de tantas mulheres em visitarem algum interno no presídio. Para ele, as visitantes se sentem importantes e valorizadas pelos internos, que muitas vezes as tratam como “princesas”, pois sentem medo de perder a visita. Rafael acredita ainda que a regra existente entre os internos – segundo a qual todos eles 265 ENTREVISTA, FRANCISCO, Nísia Floresta, 16 jan. 2016. 266 ENTREVISTA, GUSTAVO, Nísia Floresta, 16 jan. 2016. 267 ENTREVISTA, EVANDRO, Nísia Floresta, 16 jan. 2016. 268 ENTREVISTA, RAFAEL, Nísia Floresta, 14 mar. 2016. 131 devem virar de costas quando a visitante passa pelo pavilhão – contribui para que a visitante se sinta uma pessoa importante, quase uma “joia preciosa”. Afinal, não poderá ser visualizada por nenhum interno, apenas pelo próprio companheiro. É possível relacionar o depoimento de Rafael com muitas das histórias que já ouvi na sala de revista durante esses anos que trabalho no sistema prisional. Vi muitas mulheres se dedicarem anos a visitar o companheiro na cadeia e comemorarem a saída dele, apostando na construção de uma vida a dois fora do presídio. Imensa era a minha surpresa quando retornavam algum tempo depois com a intenção de visitar outro interno. Eu as questionava sobre o que tinha acontecido para motivar o rompimento da relação, em geral, as respostas eram que quando o marido alcançava a liberdade não queria mais saber delas, saíam em busca de amantes e não paravam em casa para lhes dar assistência. Logo, preferiam continuar mantendo um relacionamento com um companheiro preso, que as tratam bem e valorizam a presença delas nos dias de visita. Por fim, a respeito da importância da visita para os internos, podemos concluir que ela torna-se essencial não só por trazer o sexo 269 , que é importante para distrair e acalmar os ânimos dos internos. Mas também porque se apresenta como uma companhia diferente da cotidiana, com um tom de voz, cheiro e corpo distintos daqueles presentes no dia a dia do presídio. Além disso, a visita serve para trazer afeto, notícias do mundo exterior, consolar, aconselhar, chorar junto, buscar soluções para os problemas e até para fazer planejamentos junto, seja para o bem ou para o mal. Portanto, a visita é importante na medida em que diversifica o cotidiano prisional 270 . 5.2.2. A entrada na penitenciária: intermináveis filas O procedimento para entrada dos visitantes na penitenciária é marcado pela espera em longas filas. A primeira delas se forma na parte exterior da unidade prisional. 269 O sexo adquire uma importância muito grande na cadeia, talvez justificado pela carência dos internos num ambiente de exclusão. Por exemplo, muitos internos que não tinham relações homossexuais quando estavam em liberdade, passam a ter dentro do presídio. Normalmente, só assumem a posição “ativa” no ato sexual. Observa-se dentro da instituição prisional uma disputa muito grande entre os internos para “namorar” com aqueles que são os homossexuais “assumidos”, presentes no cotidiano da prisão em menor número. Os “assumidos” são aqueles que assumem características femininas, seja na maneira de vestir, falar ou se comportar. E, normalmente, são os parceiros “passivos” do ato sexual, logo, são os mais procurados e desejados. Para eles, nunca falta sexo na cadeia. 270 Para um trabalho específico sobre visita íntima ver: BASSANI, Fernanda. Visita íntima: o gerenciamento da sexualidade nas prisões do Brasil. Dissertação. (Mestrado em Psicologia Social e Institucional). Porto Alegre: UFRGS, 2013. 132 Sobre essa fila, a agente Maria comenta: “o dia de visita é muito tumultuado. Logo quando a gente chega, dá de cara, na entrada do presídio, com um monte de mulher querendo entrar. Muita, muita gente, parece uma feira 271.” Realmente, a comparação feita por Maria é oportuna. A fila que se forma do lado de fora da penitenciária é extensa, bastante tumultuada e barulhenta. Misturam-se barulhos de conversas com choros e gritos de crianças. Crianças brincam e correm por entre as sacolas enfileiradas dos visitantes. Por vezes acontecem algumas brigas, em geral, por causa do lugar na fila. A espera é ainda marcada por um excesso de cuidados. Cuidado para não perder o lugar na fila. Cuidado com os mantimentos trazidos para que não sejam furtados ou para que não seja colocado nenhum material ilícito dentro das sacolas. Cuidado com as crianças a fim de que não se percam ou se machuquem em meio a tantas pessoas. Essa fila começa a se formar na noite que antecede a visita social, os visitantes – basicamente mulheres e crianças 272 – começam a chegar. Os dias de visita social – sábados e domingos – contam com maior número de visitantes, já que é permitida a entrada de dois familiares adultos, além dos filhos menores do interno. É também o dia no qual os familiares levam mantimentos para o apenado. Portanto, a entrada dos visitantes acaba sendo mais lenta, devido à necessidade de revista dos mantimentos e das pessoas. Por isso, os familiares acabam chegando à penitenciária no dia anterior, com o objetivo de conseguir entrar o mais rápido possível e passar mais tempo com o interno. Nos dias de visita íntima – quartas-feiras – as visitantes levam para o interno apenas o almoço. Como o procedimento de entrada é mais célere, as companheiras chegam no mesmo dia da visita, nas primeiras horas da manhã. Aquelas pessoas que optam por pernoitar na fila de espera se submetem a uma noite de desconforto. É praticamente impossível dormir. Consegue-se, no máximo, cochilar. Algumas visitantes dormem no interior dos carros ou trazem barracas de acampamento para dormir, o que lhes confere maior conforto e um sono mais sossegado. Após essa noite mal dormida, observa-se um festival de bocejos, semblantes cansados e crianças estressadas. Essa é uma rotina que acaba massacrando o corpo e também a alma dos visitantes 273 . 271 ENTREVISTA, MARIA, Nísia Floresta, 01 mar. 2015. 272 Num final de semana de visita, comparece à Penitenciária de Alcaçuz uma média de seiscentas pessoas, entre adultos e crianças. Desse total, aproximadamente um por cento são homens adultos. 273 Ao afirmar que a rotina de visitas na Penitenciária de Alcaçuz massacra o corpo e a alma dos visitantes, pode-se estabelecer uma relação com a obra Vigiar e Punir, de Foucault. Nessa obra, Foucault desenvolve 133 Amanhecido o dia, aproximadamente às oito horas da manhã, o acesso é liberado para que os visitantes entrem na penitenciária, podendo entrar até às doze horas no dia de visita social e até às onze horas no dia da visita íntima. De cada vez, seguindo a ordem da fila, mediante a entrega de uma ficha, é colocado para dentro um grupo formado por aproximadamente quarenta visitantes. Esse grupo irá ocupar uma segunda fila, formada no estacionamento do presídio em direção à recepção, onde será conferida e guardada a documentação 274 do visitante num prendedor de roupas numerado. Ao visitante será entregue uma nova ficha com a mesma numeração do prendedor a fim de que receba sua documentação ao término da visita, que ocorre às quinze horas. Feito esse cadastro, é formada uma terceira fila em direção ao hall de entrada da penitenciária. Nessa fila, os familiares aguardam para passar com os pertences trazidos por um pórtico detector de metais. Ultrapassado o pórtico, chega-se ao hall da penitenciária, onde se forma a quarta fila. Dessa vez, a espera é pela realização da revista dos mantimentos trazidos, que é feita com a utilização de uma máquina de raios- X e, posteriormente, é feita uma conferência manual dos itens trazidos, no tocante à permissibilidade e à quantidade dos produtos. Concluída essa revista, o número da ficha que a visitante traz consigo é anotado nas sacolas dos mantimentos para evitar que as sacolas sejam trocadas de maneira intencional ou não. De acordo com a agente Maria, essa anotação acontece “para ninguém roubar a feira uma da outra, nem trocar. Já aconteceu bastante de pegarem feiras umas das outras e ficar gente sem feira, sempre acontecia esses desvios 275”. a ideia de que a penalidade moderna atinge a alma dos condenados, quando os aprisiona numa instituição correcional. Diferentemente da penalidade antiga, que tinha como foco o corpo do condenado. Partindo dessa ideia de Foucault, ao analisar a situação dos visitantes, é possível entender essa rotina de visita como uma transposição da pena para o familiar do recluso, que acaba tendo o seu corpo e alma massacrados devido à dura rotina que lhes é imposta para que consiga realizar a visita. Os familiares submetem-se ainda a situações degradantes como o agachamento realizado em espelhos para demonstrar que não há nada nas partes íntimas. Com isso, viola-se o princípio da pessoalidade da pena, que se respeitado, após a visita, o interno que deveria submeter-se ao agachamento. Além disso, no tocante à longa espera nas filas, dever-se-ia optar por visitas em horários agendados, a fim de preservar a dignidade humana e não permitir a transcendência da pena para o núcleo familiar. Formalmente, o ordenamento jurídico brasileiro garante aos familiares do recluso dignidade humana fundamental para que a pena não atinja a família. Entretanto, materialmente isso não ocorre, viola-se a dignidade humana do familiar a cada visita realizada. Sobre essa temática ver: OLIVEIRA, Sara Mariana Fonseca Nunes de. “O desrespeito ao princípio da intranscendência da pena: seu impacto sobre o núcleo familiar”. In: Revista Transgressões, vol. 2, n. 1, 2014. 274 Nos dias de visita, é exigido dos visitantes que apresentem a carteira de visitante do presídio, acompanhada de um documento oficial com foto. No caso de estarem trazendo menores de idade, devem apresentar o documento do menor. 275 ENTREVISTA, MARIA, Nísia Floresta, 01 mar. 2015. 134 Durante muito tempo, a revista desses mantimentos foi feita de maneira manual 276 . Então, havia a necessidade de manipular a alimentação levada pelos familiares. Era necessário fatiar bolos e salgados, assim como mexer com talheres a alimentação. Em razão disso, surgiam muitas reclamações dos familiares de que a alimentação não era manuseada com o devido cuidado. Por exemplo, reclamava-se que o bolo era esmagado e que ao mexer uma vasilha com comida, não havia a preocupação em limpar o talher para mexer a vasilha seguinte, o que contribuiria para estragar a comida. Essas reclamações diminuíram com a chegada da máquina própria para realização da revista de alimentos. A relação dos itens permitidos para adentrar semanalmente no presídio em dias de visita social é limitada, estando escrita apenas em frente e verso de uma folha de papel ofício 277 . É possível entender essa restrição como um aspecto punitivo, numa lógica de que devido o sujeito estar preso, não deveria ter acesso a uma alimentação diversificada e saborosa. Nesse sentido, entre risos, a agente Maria indaga: “Por que pode entrar [para o apenado] o doce de goiaba e o de leite não? Por que é mais gostoso? 278”. Realmente essa é uma questão para se refletir. Muitas vezes, normas simples da instituição prisional – como essa relativa à alimentação – acabam tendo também um caráter de punir – mais uma vez – o interno, impedindo que se alimente de certos gêneros alimentícios. Não é raro, durante a revista da alimentação levada pelos familiares, presenciar agentes penitenciários, ao barrar algum item proibido, emitir comentários do tipo: “Se quisesse comer isso [alimento proibido], não tinha vindo pra cadeia”. Dentre os itens contidos na lista de mantimentos, há a parte da alimentação, que se limita a produtos simples como: pão de forma, manteiga, algumas frutas, queijo, presunto ou mortadela, açúcar, leite, suco em pó, refrigerante e bolachas sem recheio. 276 No ano de 2010, a penitenciária contava com uma máquina de raios-x, que quebrou nesse mesmo ano. Somente no segundo semestre de 2015 foi adquirida uma nova máquina. 277 Ver Anexo III. Ao longo do tempo, a lista de alimentos permitidos sofreu algumas alterações, com a supressão e/ou acréscimo de alguns itens. Por exemplo, durante algum tempo foi permitida a entrada de suco para os internos, que era trazido pelo familiar acondicionado numa garrafa plástica transparente. Todavia, descobriu-se que em alguns desses sucos eram adicionados remédios “controlados”, que são capazes de causar alterações psíquicas naqueles que o ingerem, principalmente se ingeridos em grande quantidade. Durante certo tempo foi permitida também a entrada de alimentos crus, como ovos e farinha de milho para fazer cuscuz, mas decidiu-se pela retirada dos mini fogões elétricos das celas, então, vetou- se a entrada de tais gêneros alimentícios. A lista de alimentos se constitui ainda num elemento de negociação com os internos, por exemplo, durante uma rebelião, os internos podem solicitar como condição para extingui-la a inclusão de novos itens na lista. 278 ENTREVISTA, MARIA, Nísia Floresta, 01 mar. 2015. 135 Também é permitido levar materiais de higiene, tais quais: papel higiênico, pasta e escova dental, sabonete, desodorante, xampu, água sanitária, barbeador e sabão em pó. Além disso, podem ser levadas toalhas e lençóis para os apenados, todos de cores claras e roupas, que se restringem a cuecas claras, camisetas brancas e calções azuis. Por fim, é permitida a entrada de isqueiro, cigarros e fumo boró. Além do encontro com os familiares, os dias da visita são muito esperados pelos reclusos, justamente por causa desses mantimentos levados pelos familiares. Segundo o agente Rafael 279 , o recebimento desses materiais é muito importante para os internos, que às vezes os utilizam em “negociações comerciais” com outros apenados. Por exemplo, um mantimento pode ser trocado por uma faxina na cela ou ainda por uma porção de droga. Assim, quando recebem as sacolas dos familiares, antes de desfrutarem da companhia da visita, vão fazer a distribuição dos mantimentos, para “quitar as dívidas”. Muitos dos alimentos trazidos pelos visitantes não estão presentes no cotidiano do presídio, então, para o interno, esse é um dia especial, pois terá direito a fazer uma refeição diversa da cotidiana, o que lhe aproximará um pouco do mundo externo. Em razão da limitação imposta pela lista de alimentos, a maior diversidade na alimentação dos internos está presente nos dois quilos de alimentação levada pronta pelos familiares para o almoço nos dias de visita. Logo, diante da imensa importância atribuída a essa alimentação diferenciada, muitos familiares capricham nas refeições levadas ao presídio, inclusive, por vezes, os próprios internos fazem “encomendas” ao familiar sobre o que desejam comer na visita seguinte. Assim, não é incomum ver em algumas marmitas iguarias como: peixe, camarão, batata frita, lasanhas, macarronadas, acompanhadas de sobremesas. Conforme dito, todos esses itens trazidos pelos familiares devem ser submetidos a uma revista feita pelos agentes penitenciários. Ao fazer a revista da alimentação, é possível observar o carinho e zelo com que muitos familiares levam os mantimentos: Eu observo que, realmente, há toda uma preocupação de alguns familiares com a feira levada pra o interno. Muitas vezes vemos que as comidas são bem embaladinhas. Por exemplo, a vasilha que traz o almoço muitas vezes vem enrolada no papel filme ou alumínio e 279 ENTREVISTA, RAFAEL, Nísia Floresta, 14 mar. 2016. 136 também num pano de prato para evitar que derrame e suje as outras coisas da sacola e também para conservar um pouco mais a temperatura da comida. A água muitas vezes é trazida congelada para que chegue ao interno gelada. Há também uma preocupação muito grande para não azedar a comida que, normalmente, é feita no dia anterior. Outra coisa também é com relação às frutas trazidas que devem entrar cortadas e sem casca. Há uma preocupação em cortar a banana somente na hora da revista de alimentos para que não fique “preta” quando o interno for comer280. Sobre a revista dos mantimentos, o agente Rafael 281 afirma que ela é motivo de um estresse muito grande entre agentes e visitantes, que muitas vezes tentam entrar com materiais que não estão presentes na lista da instituição e acabam discutindo com os agentes. Rafael afirma que são usadas as mais diversas desculpas para tentar entrar com o material, por exemplo: “afirmam que outro agente deixou; que na semana passada era diferente ou então que esqueceu o que podia trazer porque só vem ao presídio de 15 em 15 dias ou uma vez ao mês”.282 Feita a revista dos pertences trazidos, os homens – como comparecem em menor número – são automaticamente levados para a realização da revista íntima 283 pelos agentes penitenciários. Já as mulheres precisam aguardar numa quinta fila para ter acesso à sala de revista íntima. 5.2.3. Finalmente: entrando na sala de revista íntima Esta é uma infame e terrível história Vista sem dó, todos os dias Uma revista que se lê vexatória Exame vexame para toda a família Visita que gera dor e desespero Se chega pelo amor, se sai com o medo Agacha, agacha, mãe de criminosa Agacha pra eu ver se sua vagina tem droga Agacha, agacha, pai de vagabundo Agacha pra eu ver se tem celular no seu fundo Ainda se sonha em uma prisão que tem a cura Mas quanto é crua a maldita prisão Que prende o sonho e o corpo tortura E vê o inferno como a melhor solução Espera e prepara uma vil armadilha 280 ENTREVISTA, ÍSIS, Nísia Floresta, 15 nov. 2015. 281 ENTREVISTA, RAFAEL, Nísia Floresta, 14mar. 2016. 282 Idem. 283 Os homens ao se submeterem ao procedimento de revista íntima devem retirar todas as peças de roupa, que serão conferidas minuciosamente e, posteriormente devem se agachar, mas não diante de um espelho, como ocorre com as mulheres. No caso dos menores de idade, apenas as roupas são conferidas. 137 E o preso nunca mais vai ver sua família Agacha, agacha, mulher de bandido É melhor você chupar se quiser ver seu marido Agacha, agacha filho do diabo Agacha e não chora ao ser maltratado A pena não apenas dá pena ao apenado Pune seus pais, seus irmãos e seus filhos Todos em volta do pobre condenado Sofrem sem culpa o mesmo destino E aprendem, assim, o profundo segredo Dignidade não se tem, se compra com dinheiro Agacha, agacha, toda a família Agacha e sinta como a revista é íntima Agacha, agacha, e venha a próxima Tire a roupa, agache e fique de cócoras Agacha, agacha, família do defunto Agacha e chora a crueldade do mundo VEXATÓRIA À (RE)VISTA, Luís Alfredo Macedo Soares 284 Após a passagem por uma série de filas, enfim, as mulheres chegam à tão “temida” sala de revista, na qual irão se submeter a uma minuciosa revista íntima, último procedimento a que deverão passar para poder reencontrar o familiar preso. Observa-se a criação de um “mito” sobre os procedimentos ocorridos na sala de revista íntima. Principalmente quando as mulheres vão passar pela revista pela primeira vez, chegam a pensar que existe um excesso de rigidez no procedimento: que vão precisar deitar em macas ginecológicas ou ainda que serão submetidas ao exame ginecológico do “toque”. Há também a propagação da ideia de que as agentes têm o papel de “carrascas” e as tratarão com rispidez e ignorância. Segundo a agente Ísis, não é raro ver uma visita comentar: “Nossa! Como vocês são simpáticas! Não imaginava que a revista seria dessa maneira... O pessoal [outras visitantes] faz um bicho de sete cabeças, mas a revista é tranquila”.285 Ainda de acordo com Ísis, também é comum as visitantes fazerem observações a cerca do perfil das agentes penitenciárias, com afirmações do tipo: “Mulher, como vocês são bonitas, femininas... Não esperava encontrar isso aqui”286. A criação e propagação do “mito” de uma revista excessivamente severa talvez se justifique por a penitenciária de Alcaçuz ter um maior histórico de apreensão de 284 Essa poesia foi publicada na Revista Transgressões, v.2, n.2, 2014. 285 ENTREVISTA, ÍSIS, Nísia Floresta, 15 nov. 2015. 286 Idem. 138 drogas durante a revista íntima do que outras unidades prisionais. O que é ocasionado não pelo grau de rigidez da revista, que é semelhante em todas as unidades do estado, mas pelo fato de que é o maior presídio do estado e o que recebe, consequentemente, mais visitantes. Todavia, esse histórico de maior apreensão de drogas pode contribuir para o pensamento de que há um rigor excessivo na revista íntima na Penitenciária de Alcaçuz. Também pode ser fundamento desse pensamento o histórico de algumas funcionárias da instituição com posturas ríspidas. E, por fim, necessário se faz considerar que, por si só, a prática da revista íntima se constitui num processo rígido, mas não nos moldes que, muitas vezes, são imaginados pelas visitantes. Com relação à construção do perfil da agente penitenciária pelas visitantes, provavelmente se justifique em razão da construção feita pela indústria televisiva, que nos seriados e novelas costuma retratar as agentes penitenciárias com perfil masculinizado. A entrada na sala de revista é feita por uma pequena porta sanfonada. Ao entrar, chega-se num corredor estreito, que possui duas entradas para duas salas pequenas. O lado oposto da sala de revista também possui duas aberturas e um corredor estreito que leva a uma porta de ferro que dá acesso ao interior do presídio. Nesse outro corredor em frente das aberturas, as agentes colocam duas cadeiras de plástico e dois espelhos no chão para fazer a revista das mulheres: “Nós pegamos umas cadeiras dessas de plástico e mandamos cortar pra ficar um pouco mais baixo e podermos ficar, assim, abaixadas com um espelho praticamente embaixo da vagina das mulheres 287”. No interior dessas salas têm algumas cadeiras para que as visitantes coloquem as roupas ou então para que se sentem. Há também um trocador de bebês improvisado para que façam a troca das fraldas das crianças, que devem ser descartadas obrigatoriamente e substituídas por uma nova. Mesmo que não seja a primeira vez na sala de revista, por diversas vezes, quando as mulheres vão se submeter ao procedimento de revista ficam muito nervosas e envergonhadas, inclusive, algumas chegam até a chorar. Normalmente, as mulheres que já comparecem às visitas há mais tempo não se envergonham de se submeter à revista. Muitas delas tiram a roupa com a maior naturalidade, por exemplo, enquanto ri ou conversa com outra visitante ou com uma agente. Todavia, algumas mulheres nunca se acostumam a tal situação, mesmo que já frequentem a penitenciária há bastante tempo. 287 ENTREVISTA, MARIA, Nísia Floresta, 01 mar. 2015. 139 O que é justificado por se tratar de um procedimento vexatório, traumático, invasivo e constrangedor, que pode ser constatado pela seguinte descrição: Lá entrando [na sala de revista], a agente pede para tirar a roupa. A gente chama de oito em oito [mulheres], porque são duas salinhas de revista, para colocar quatro de cada lado. Aí fica bem tranquilo, assim, a quantidade. No momento, só ficam três agentes: duas sentadas no espelho para fazer a revista do espelho e uma olhando a roupa. A que tá olhando as roupas, verifica cada peça, peça por peça, o cabelo, manda abrir a boca, se tiver alguma coisa na boca manda cuspir. É bem rígido, olha as sandálias, aí, após fazer a revista da roupa, elas vão para a revista do espelho, onde elas agacham três vezes abrem a vagina e o ânus, fazendo movimento de contração: contrair e relaxar, para ver se tem alguma coisa ilícita, alguma droga, celular (...) se tiver menstruada também não entra, estando menstruada, com corrimento ou usando creme vaginal. Aí, elas voltam [vão embora] e elas já estão conscientes disso. Depois disso, elas podem se vestir e a gente manda que elas passem pela porta que dá acesso ao presídio mesmo. Aí elas vão lá e tem outra portinha também que elas pegam as compras que tão numeradas e vão para o pavilhão 288 . Não é permitida a entrada de mulheres menstruadas, com algum tipo de corrimento ou fazendo uso de pomada vaginal, pois impossibilita a visualização do canal da vagina. Logo, não é possível saber se carregam dentro de si algum material proibido: Ao fazer o movimento relaxando e contraindo, se sangrar ou estiverem com algum creme ou tiverem com algum corrimento, elas têm de voltar automaticamente, elas não podem entrar no presídio, pois pode ser um indício que tenha alguma droga ali, um celular, um carregador 289 . Quando é constatado que alguma mulher se encontra nessa situação, elas devem ir embora levando os pertences trazidos. O procedimento de revista é diferenciado para os menores de idade: “em relação às crianças e adolescentes, a gente pede só pra baixar a roupa, elas não fazem esses agachamentos, só as mulheres a partir dos 18 anos que fazem”.290 A prática de ter que retirar a roupa causa constrangimento a algumas crianças, que chegam a dar muito trabalho para se despir, tendo que ter as roupas 288 Idem. Em meados do segundo semestre de 2015 foi acrescentado a esse procedimento de revista íntima, a obrigatoriedade das mulheres se sentarem numa banqueta com sensor para detectar metais. 289 ENTREVISTA, EMÍLIA, Nísia Floresta, 01 mar. 2015. 290 Idem. 140 retiradas à força pelas mães. Algumas dessas crianças têm essa reação por vergonha, outras por medo, pois chegam a pensar que as agentes são médicas. Isso acontece porque durante a realização da revista íntima, as agentes utilizam luvas e máscaras. Então, as crianças acabam por imaginar que estão indo ao médico e terão que tomar remédio ou vacina. Tão logo imaginem isso, caem no choro. Por outro lado, algumas crianças não têm vergonha ou medo e já internalizaram o procedimento de modo que tiram a roupa com a maior naturalidade. Inclusive chegam até a imitar os movimentos de agachamento realizados pelas mulheres no espelho. A revista das crianças e adolescentes acontece na mesma sala onde acontece a revista das mulheres. Há a divisão por sexo quando os meninos já estão um pouco mais crescidos (aproximadamente com cinco anos), quando passam a ser revistados pelos agentes no mesmo local onde se ocorre a revista dos homens. A respeito da presença das crianças na sala de revista, a agente Emília afirma: “um fator legal das crianças, às vezes, é que permite que o ambiente seja menos hostil, porque a gente brinca com a criança, conversa, acaba tornando o ambiente mais agradável 291”. Apesar desse aspecto positivo, Emília faz uma crítica sobre essa situação das crianças serem revistadas na mesma sala das mulheres: Não tem um espaço específico para as crianças. Então, as crianças acabam observando o comportamento das mães ao realizar a revista, de modo que algumas delas até repetem como as mães fazem, tipo o agachamento, elas se agacham quando a mãe faz. Então, acredito que deveria ter um espaço para as crianças nesse momento e não existe, é tudo misturado 292 . Embora o procedimento de revista íntima cause um grande constrangimento aos familiares, esse constrangimento é também sentido pelas agentes penitenciárias, principalmente quando iniciam na profissão. Afinal, é desenvolvido um trabalho no qual será necessário lidar com pessoas totalmente despidas e inspecioná-las minuciosamente: Inicialmente, quando eu comecei a trabalhar era meio vexatório ver tanta mulher nua, despida, ter que verificar sua roupa seu cabelo. E é um tanto... Às vezes dá um mau cheiro, porque você está lidando ali 291 Idem. 292 Idem. 141 com pessoas que estão nuas. É uma situação realmente que dá mau cheiro, não tem como não dar 293 . Acho a revista, assim, constrangedora pra mim. Sinto nojo porque é uma parte íntima. As pessoas saem de casa fedendo, sujas. É... as pessoas não se depilam, vêm do jeito que estão em casa. Sem higienização. Umas têm um corrimento desagradável. Outras ficam fedendo 294 . O meu primeiro dia de serviço na penitenciária foi justamente num dia de domingo, que é dia de visita. Eu achei, assim, tudo muito estranho. Lembro que quando eu fui para a sala de revista e coloquei as luvas e a máscara, senti uma sensação muito estranha. As mãos começaram a suar dentro das luvas. Comecei a ficar meio sem ar por causa da máscara. Deu um calor danado. Achei horrível esse primeiro contato. Pensei que nunca ia me acostumar a respirar dentro de uma máscara. Mas rapidinho me acostumei. Outra coisa que me causou um certo impacto foi ver um monte de mulher nua. Mulher de todo jeito: feia, bonita, magra, gorda, muitas delas com mau cheiro. Aquilo me deu agonia, sei lá. Fiquei meio impressionada. Quando eu fui dormir fiquei com aquela cena na cabeça. Mas também rapidamente me acostumei. Hoje eu nem penso mais nas coisas que acontecem dentro da sala de revista. Quando eu saio daqui [da penitenciária] me desligo totalmente ou quase... 295 . Quando Ísis afirma que se desliga “quase” totalmente das coisas que acontecem no interior da sala de revista é porque algumas das experiências ocorridas lá realmente são marcantes, sendo difíceis de serem esquecidas: Olha, realmente a situação mais marcante que eu tenho pra contar aqui da sala de revista foi o dia que eu encontrei uma lombriga. Caramba, eu achei aquilo nojento demais! Pra você ver como é insalubre o nosso trabalho (...) nós tínhamos dado uma pausa na revista pra almoçar quando voltamos pra sala [de revista], eu entrei na frente aí vi aquela coisa estranha comprida no chão, meio amarela, assim, quase da largura de um dedo. Aí eu fiquei achando estranho, mas não identifiquei logo que era uma lombriga. Aí, chamei a agente que vinha atrás pra olhar aí ela logo deu um grito: é uma lombriga!!!! Nós duas saímos correndo com nojo e chamamos o interno da limpeza pra retirar. (...) Eu nunca pensei ver isso aqui, mas ainda bem que eu não vi saindo de dentro da mulher ou da criança que carregava... 296 Outra situação que me marcou muito aqui foi uma discussão que eu e outra agente tivemos com uma visitante e se iniciou aqui dentro da sala de revista. A mulher era esposa de um preso ex-PM [policial militar] e se achava melhor que as outras. Aí chegou na sala de revista 293 Idem. 294 ENTREVISTA, MARTA, Nísia Floresta, 15 mar. 2015. 295 ENTREVISTA, ÍSIS, Nísia Floresta, 15 nov. 2015. 296 Idem. 142 toda cheia de “não me toque”, sem querer realizar o procedimento, queria entrar sem passar pela revista. Aí informamos que ela não poderia entrar sem fazer o procedimento e mandamos que ela fosse embora. O marido dela morava no setor médico [que fica próximo ao hall de entrada da penitenciária] aí de repente ele apareceu no portão [do hall] e ficou ameaçando eu e a outra agente, falando que iria nos pegar quando saísse da cadeia (...) Fizemos a ocorrência na delegacia e ele foi condenado pelo crime de ameaça. Depois ele até pediu desculpa, mas é uma situação que dá medo né, poxa o cara fazia parte de um grupo de extermínio, matar mais uma ou duas pessoas não faz diferença pra ele 297 . Também acho impactante assim as situações de apreensões de droga na sala de revista, quando acontece da mulher ser presa e ter filho pequeno. Já aconteceu aqui inclusive caso de mulher trazer droga e tá acompanhada do filho pequeno, muitas vezes bebê de colo. Aí, as mulheres ficam chorando, fazendo o maior “show”, causa um impacto, né. Não que eu sinta pena delas. Eu sinto pena dos filhos que vão ter que ficar longe da mãe. Outra situação de apreensão de droga que marcou muito foi de uma jovem que ao ser levada para o ITEP pra fazer o exame e constatar se trazia mesmo droga, dentro da viatura ela começou a retirar a droga que estava no ânus e fez a maior sujeira no carro. Mas as agentes pegaram o pacote com a droga. Pra piorar quando chegou lá [no ITEP] saiu correndo no meio da rua, deu o maior trabalho pras agentes pegarem. Mas ela foi presa 298 . Observamos, portanto, que são dos mais variados tipos as experiências que marcam o cotidiano de trabalho das agentes penitenciárias, vão desde situações muito peculiares, como o dia no qual foi encontrada uma lombriga na sala de revista ou então situações mais corriqueiras, como apreensões de drogas ou discussões com visitantes. Assim, diante de tais situações, o trabalho desempenhado pelas agentes é normalmente caracterizado como um serviço desagradável: Então... São muitas mulheres, acaba ficando muito cansativo porque não é um serviço tão agradável, a gente tá ali verificando se alguém tá trazendo alguma droga, todo mundo que passa pela gente é suspeito. Então, existe aquela relação um pouco hostil, diríamos, porque as mulheres são suspeitas. (...) Assim... O trabalho não é muito estimulante justamente por essa questão de hostilidade que há no próprio trabalho em si. A gente está sempre investigando, as visitantes são sempre pessoas suspeitas, então, não é uma relação tão fácil, não é um trabalho que a gente está ajudando as pessoas, é um trabalho que a gente está observando e verificando se elas estão trazendo alguma coisa errada para o presídio 299 . 297 Idem. 298 Idem. 299 ENTREVISTA, EMÍLIA, Nísia Floresta, 01 mar. 2015. 143 É bastante estressante, porque, assim, como a gente lida com muita gente, muita coisa pode acontecer. Às vezes a discordância entre nós e os visitantes, às vezes a gente precisa mandar uma pessoa voltar [ir embora sem poder visitar], a pessoa reage de forma agressiva, desrespeitosa com a gente. E, assim, pelo menos eu tento não tá batendo de frente com a pessoa, digo assim só: „não‟. Sou curta e grossa e não vou bater de frente, bater boca porque eu acho que não leva a nada. E também, assim, trato com educação, para que a pessoa também me trate com educação, porque, assim, eu acho que não há necessidade porque a pessoa tem alguém preso aqui, o familiar tenha que pagar pela pessoa que está presa aqui. Vou tratar ela mal? Gritar? Não tem necessidade disso. Apesar de que às vezes eles se alteram e tudo, mas não adianta bater de frente, é uma mistura muito grande, é muita coisa aqui que se envolve (...) Trabalhar no sistema prisional é muito complicado, tem muita coisa envolvida, muita gente, questão de sentimento, de pessoas. Têm coisas que acontecem, que até mexem um pouco com você, tipo assim, você vê pessoas, famílias de preso que sofrem porque tem que vir aqui. Crianças também que sofrem, que passam por situações que não seria legal passar. Pelo menos eu que tenho filho não queria essa vida pro meu filho: que chega cedo, fica com sono, com fome, pra entrar num presídio que é um lugar tão... assim, tão sujo, que não é local pra criança, entendeu? Isso assim, causa na gente uma questão de pena, de piedade das crianças e às vezes dos idosos também, que tem que passar por isso, não porque ele escolheu, mas por causa do filho, né? Que uma mãe não quer o mal do filho... 300 Ao mesmo tempo em que há esse aspecto desagradável e estressante do serviço, outros aspectos acabam amenizando essa situação e facilitando a rotina de trabalho: Assim, as relações entre as agentes acabam facilitando, porque como é mais de uma agente em dia de revista, então, dá para o clima não ficar tão ruim, já que estamos sempre conversando, dialogando e temos autonomia para decidir algumas coisas em equipe. Acho que como tem mais de uma pessoa em dia de revista, uma equipe, acho que facilita, acaba não sendo tão ruim o trabalho, porque a gente acaba tomando a decisão em conjunto 301 . Quando a agente Emília afirma que considera ser mais fácil desempenhar o trabalho em equipe está fazendo uma comparação com os dias de trabalho nos quais as agentes realizam atendimento na recepção do presídio, que é feito por apenas uma funcionária a cada dia. Então, as decisões a serem tomadas se concentram em uma única pessoa, o que acaba fazendo com que as pessoas façam mais questionamentos sobre as decisões tomadas pela agente: 300 ENTREVISTA, MARIA, Nísia Floresta, 01 mar. 2015. 301 ENTREVISTA, EMÍLIA, Nísia Floresta, 01 mar. 2015. 144 Então, assim, a relação não é tão fácil da gente com nossos “clientes”, né, que são as visitas, o atendimento. Ou como a gente realmente, no dia a dia administrativo, pede muita documentação, então, acaba gerando um dissabor com as visitantes. Elas ficam chateadas porque não podem confeccionar a carteira naquele dia em virtude da burocracia, muitos documentos e aí não é uma relação tão agradável 302 . Conclui-se que o dia de visita é muito aguardado pelos apenados e por seus familiares, sendo de extrema importância para o cotidiano prisional por possibilitar aos internos um pouco de “contato” com o mundo exterior. Assim, esse dia pode ser considerado como uma maneira de reduzir o estresse dos reclusos. Os procedimentos para entrada dos visitantes na Penitenciária de Alcaçuz são definidos pela palavra “espera”, que se materializa em intermináveis filas. Já a revista íntima pode ser caracterizada como vexatória, degradante, humilhante e constrangedora. Essas características são sentidas tanto pelas mulheres que precisam se submeter a ela quanto pelas agentes penitenciárias, que definem o serviço como desagradável. De início, tantos as visitantes quanto as agentes sentem um maior constrangimento com o procedimento, o que é explicado dado que o novo causa impacto, mas o ser humano se adapta e aos poucos se acostuma às situações mais adversas. Muitas das vezes criando soluções para as adversidades encontradas, por exemplo, a maioria das agentes opta pelo uso de duas máscaras ao invés de uma, para evitar sentir o mau cheiro que possa ser espalhado pela sala de revista. 5.3. Conflitos no espaço: rebeliões, fugas e mortes. “Uma cadeia obedece a leis e códigos de conduta próprios, e um tênue equilíbrio de forças mantém a ordem entre os dois lados das grades. De um lado, os presos, frequentemente apinhados em condições subumanas, esquecidos pelo poder público. De outro os agentes responsáveis por vigiá-los”. Carcereiros, Drauzio Varella. 302 Idem. 145 A penitenciária é um espaço muito conflituoso, por si só é um ambiente no qual ninguém deseja estar. Logo, pode-se dizer que a fuga é um desejo constante de alguns internos, os quais buscam incessantemente novas maneiras de escapar. Além disso, no ambiente prisional – marcado pelas privações – o menor dos problemas, simples desentendimentos podem adquirir grandes proporções, capazes de motivar a eclosão de uma rebelião, uma agressão ou até mesmo uma morte. Banaliza-se a vida. É criado um espaço de tensão constante. 5.3.1. Rebeliões: “revoltados pra caralho” Revoltado pra caralho Revolta contra o sistema A revolta é demais Mas revoltado pra caralho E revoltado pra caralho Tá fechada a união do crime com os aliados. 303 Revolta de Alcaçuz, Jadson Henrique Ao longo da história da Penitenciária de Alcaçuz, foram muitas as ocorrências de rebeliões 304 , amplamente noticiadas pela mídia. Esses movimentos de revolta são organizados pelos apenados em razão dos mais diversos motivos, por exemplo, porque tiveram uma tentativa de fuga frustrada ou porque reivindicam melhores condições de vida na prisão ou ainda porque alegam que os familiares sofreram maus-tratos durante o procedimento de revista para entrada na penitenciária. Normalmente, essas rebeliões chegam a durar no máximo um dia inteiro, pois são rapidamente controladas pelos 303 Trecho do rap “Revolta de Alcaçuz” feito pelo interno Jadson Henrique e divulgado na internet durante a onda de rebeliões ocorrida na Penitenciária de Alcaçuz no mês de março de 2015. Na música o interno expressa a revolta dos apenados com o sistema penitenciário e culpa a então diretora da unidade Dinorá Simas, fazendo ameaças a ela e ao juiz de Execuções Penais, Henrique Baltazar. Por ter escrito e divulgado esse rap, o interno foi acusado do crime de ameaça e está respondendo a um processo judicial. 304 Para exemplificar, podemos citar a ocorrência das seguintes rebeliões: 10/08/2001: rebelião dos pavilhões 1 e 2 causada pelas medidas impostas à revista íntima das companheiras; 09/03/2004: pavilhão 2 se rebela e faz três agentes como reféns, que são liberados após sete horas de negociações; 29/04/2004: presos do pavilhão 1 se rebelam e fazem 24 reféns, entre agentes e mulheres em visita; 01/05/2004: a rebelião dos internos dura 41 horas; 01/02/2005: a rebelião com uma tentativa de fuga e quatro internos são mortos após confronto com agentes e polícia; 16/06/2010: houve uma rebelião no pavilhão 1, motivada pela rigidez na revista íntima dos familiares e pela transferência de presos condenados do pavilhão 3 para o 1; 03/05/2011: a rebelião ocorreu no pavilhão 2 e foi iniciada em razão de uma tentativa de fuga frustrada por policiais das guaritas; 14/09/2011: outra rebelião dessa vez nos pavilhões 1 e 3 teve como motivo a transferência de alguns internos da penitenciária; 15/01/2012: os internos se rebelaram devido à falta de alimentação completa no jantar; 7/11/2015: o pavilhão 2 se rebela após a descoberta de um túnel pelos agentes. 146 agentes penitenciários e policiais. Mesmo sendo contidas de maneira rápida, elas costumam deixar um rastro grande de destruição e desordem. Em questão de minutos, os internos quebram paredes, arrancam grades, arrombam cadeados e queimam colchões. E, em casos extremos, pessoas são feitas reféns e até mortes são registradas. Dentre as rebeliões ocorridas na Penitenciária de Alcaçuz, merece destaque a que teve início no dia 11 de março de 2015. Ela difere das outras porque acabou se estendendo por alguns dias e tomando proporções nunca antes imaginadas. Assim, dada à importância desse evento, apresentaremos em detalhes o ocorrido. A narrativa toma como base a minha vivência, já que estive na penitenciária nos dias de rebelião, assim como informações obtidas nos jornais. Era uma quarta-feira, dia de mais uma das visitas íntimas aos internos da penitenciária. Cheguei ao presídio no meu horário habitual, juntamente com o restante da equipe feminina escalada para este dia. A fila das visitantes já se encontrava formada no lado externo do presídio. Tudo estava na mais absoluta tranquilidade. Nada denunciava que aquele seria um dia diferente. Entretanto, aquele que deveria ser somente mais um dia normal de trabalho, no qual os internos receberiam a visita das suas companheiras, acabou se tornando um dia atípico, marcado por um clima de estresse, tensão e medo. Passado algum tempo da minha chegada à penitenciária, fui informada pelos meus colegas de trabalho – que estavam “largando” o plantão – de que não haveria visita para os pavilhões 1 e 4. No dia anterior, durante uma ronda, em cada um desses pavilhões havia sido descoberto um túnel, localizado na área da quadra usada pelos internos para o banho de sol. E, devido ao horário da descoberta – final da tarde – não foi possível averiguar a extensão dos túneis nem tomar providências no sentido de fechá-los. Quando a noite se aproxima, fica muito perigoso para os agentes transitarem por entre os pavilhões, dada a precariedade da iluminação. Assim, os agentes trancaram os internos nas suas devidas celas e teve que ficar para o dia seguinte a verificação dos danos. Devido aos túneis, a direção tomou a decisão de suspender a visita íntima para os dois pavilhões, pois como não se sabia a real extensão, havia a possibilidade dos internos se aproveitarem do dia de visita – no qual ficam circulado livremente pelo seu pavilhão – e se dirigirem à área da quadra para continuar a escavação e se aproveitar 147 desse momento para realizar uma tentativa de fuga. Recebida essa informação, nos apressamos em transmitir o aviso às mulheres que se encontravam na fila. Chegando lá fora, informamos do ocorrido e, como é de costume quando se dá uma notícia desse tipo, houve muita reclamação por parte das visitantes afetadas, já que seriam impedidas de encontrar os respectivos companheiros. Passado o bate boca inicial, algumas recolheram seus pertences e apressaram-se em retornar às suas casas, enquanto que outras decidiram permanecer em frente ao presídio e acompanhar o que se desenrolaria ao longo do dia. Transmitida a informação, seguimos normalmente com o nosso trabalho num dia de visita: distribuição de fichas às visitantes para entrada, revista da alimentação por elas levada e revista íntima. Durante os primeiros momentos de entrada das mulheres, que se inicia por volta das oito da manhã, não houve tumulto. Mas, transcorridos alguns minutos se iniciou uma revolta dos internos que não receberiam a visita. Mesmo a sala de revista íntima ficando distante dos pavilhões era possível ouvir gritos e batidas nas grades. Com o passar do tempo, os gritos foram ficando mais altos e as batidas cada vez mais intensas. A comunicação entre os internos trancados no pavilhão e a área administrativa da penitenciária se dá através do “abridor” do pavilhão, que é aquele apenado que trabalha na instituição com a função de abrir os pavilhões quando os agentes lhe ordenarem 305 . Nesse dia, o abridor trouxe o recado de que aquele tumulto vindo dos pavilhões tinha como motivo a suspensão da visita, mas que também refletia uma indignação dos apenados acerca do tratamento a que estavam sendo submetidos pela instituição. Os internos enviaram uma carta, na qual solicitavam a exoneração da atual diretora do presídio Dinorá Simas e a transferência de alguns agentes penitenciários, que teriam posturas mais “rígidas” com apenados e visitantes. Reclamavam também da falta de estrutura nas cadeias, da recorrente superlotação e também de não estar sendo respeitado o direito de alguns presos à progressão do regime. Solicitavam ainda que alguns itens fossem adicionados à lista de alimentos permitidos para serem trazidos pelos familiares, uma vez que se queixavam da alimentação fornecida pelo Estado. 305 Por exemplo, eles podem abrir as celas para que um interno se dirija do pavilhão à área administrativa para falar com seu advogado ou com direção, podem também levar algum material (TV, colchão, remédio, ventilador etc.) trazido pelo familiar para entregar ao apenado, ou ainda podem trazer recados variados do pavilhão: reivindicações, insatisfações, informações sobre doentes etc. 148 Diante dos acontecimentos, que a cada instante pareciam ir ganhando mais volume, a direção comunicou o ocorrido às instâncias superiores (COAPE e SEJUC) 306 e providenciou que os grupamentos especiais, habituados a lidar com situações de crise, se encaminhassem à Penitenciária de Alcaçuz, uma vez que o número de agentes penitenciários de plantão na unidade era insuficiente 307 para fazer a contenção da rebelião. O primeiro a chegar foi o BPCHOQUE 308 da Polícia Militar, seguidos do GOE 309 , GEP 310 e GPOC 311 , da SEJUC 312 . Deveria ser por volta de 10 horas da manhã quando o BPCHOQUE chegou à penitenciária. A tropa não chegou completa, mas chegaram diversos integrantes acompanhados de cães e munidos de armamentos letais e não letais. Em poucos minutos se organizaram na formação padrão 313 no hall de entrada. Posição normalmente ocupada quando vão adentrar o presídio e invadir os pavilhões. Pensou-se que a situação logo se resolveria, ou seja, os pavilhões rebelados seriam invadidos e a situação seria contornada. Imagem: Tropa de Choque ingressando na unidade 314 Paralelo a isso, a entrada das visitantes para os demais pavilhões prosseguia normalmente. As mulheres continuavam chegando para ver seus companheiros diante 306 Coordenadoria de Administração Penitenciária (COAPE) e Secretaria de Estado da Justiça e da Cidadania (SEJUC). 307 As equipes de plantão na penitenciária de Alcaçuz são compostas por uma média de oito agentes a cada dia, responsáveis pela custódia de aproximadamente 1000 internos. 308 Batalhão de Choque da Polícia Militar (BPCHOQUE). 309 Grupo de Operações Especiais (GOE). 310 Grupo de Escolta Penal (GEP). 311 Grupo de Operações com cães (GPOC). 312 Secretaria de Estado da Justiça e da Cidadania (SEJUC), responsável pelo sistema penitenciário. 313 Organização em fila. 314 Fonte: Wellington Rocha/Portal no Ar. Março 15. 149 do caos instalado. Em meio a fumaça, gritos e barulhos de destruição, dávamos continuidade aos procedimentos de revista íntima. Na sala destinada a essa finalidade, o que víamos eram mulheres apavoradas, completamente tomadas pelo medo, pois mesmo não sendo o pavilhão que elas iriam visitar que estava em meio à desordem, elas sentiam-se tocadas completamente por uma sensação de insegurança. Afinal, não se sabia o que iria acontecer dali para frente. Algumas visitantes comentavam sobre a possibilidade dos outros pavilhões também aderirem à revolta e decidirem impedir a saída dos familiares – mantendo-os como “reféns” – como já ocorreu em outras ocasiões nessa instituição315. Inclusive, a visitante Gisélia 316 narrou que esteve presente em um desses momentos. Há aproximadamente nove anos, ela estava grávida e visitava seu ex-companheiro – também criminoso e recluso na penitenciária de Alcaçuz – quando houve uma revolta no pavilhão dele e ela foi impedida de sair ao término do horário da visita. Sobre esse momento, ela relatou que naquela época era muito jovem, imatura e estava loucamente apaixonada. Logo, achou “o máximo” ficar “refém” no pavilhão, pois a permanência junto ao seu amado foi estendida, inclusive, teve o privilégio de dormir ao lado dele. Ela contou que tiveram uma linda noite de amor, deitados no pátio, observando as luas e as estrelas. Apesar desse relato apaixonado, atualmente, Gisélia narrou que está mais “pé no chão” e que em hipótese alguma acharia bom ficar “refém” no pavilhão com seu atual companheiro. Ela falou que estava com receio de entrar para a visita, mas desejava muito encontrar o marido, então teria que arriscar. Assim como ela, as demais mulheres também demonstravam esse sentimento. Relatavam sentir medo, tensão e insegurança, mas não desistiam da visita. Naquele dia, questionei praticamente todas as mulheres que entraram para a visita se elas iriam mesmo entrar no presídio diante da situação instalada. Fiz essa pergunta por que me causava estranhamento o fato de uma pessoa decidir livremente adentrar num espaço conflituoso. Esperava, sinceramente, que, diante das circunstâncias, algumas delas desistissem da visita. Mas, prontamente, todas responderam que sim. Não iriam desistir da visita, afinal, era o companheiro que estava lá preso e desejavam muito vê-lo. 315 Por exemplo, no ano de 2010, durante uma rebelião, as visitantes foram impedidas de sair dos pavilhões no horário de término da visita, sendo liberadas somente na manhã do dia seguinte. 316 ENTREVISTA, GISÉLIA, Nísia Floresta, 11mar. 2015. 150 Pode ser que dentre tantas mulheres que ingressaram nesse dia no presídio, existiam algumas como a Gisélia do passado, que achariam bom serem feitas reféns e desfrutar de uma noite de amor ao luar com seu companheiro. Todavia, a maioria das mulheres, mesmo não tendo desistido da visita, mostrava-se receosa de que a situação de rebelião viesse a envolver os outros pavilhões e elas terminassem – sem querer – bem no centro da confusão. Até porque algumas delas frequentam o presídio sem que os familiares ou patrões saibam, então, se envolvidas numa rebelião, acabariam por ter uma exposição indesejada. O dia se encerrou e não houve tentativa de contenção dos internos que seguiam quebrando os pavilhões e arrancando as grades das celas, a fim de que pudessem ficar soltos dentro dos pavilhões. Segundo informava a direção do presídio, não havia chegado a autorização das instâncias superiores para que os grupamentos especiais pudessem invadir os pavilhões rebelados. Chegou a ser publicada a notícia de que havia chegado ao fim o motim iniciado nos pavilhões 1 e 4. O jornal Tribuna do Norte 317 noticiou que o motim havia se encerrado ainda no dia 11, após nove horas de negociação entre os presos e a direção, ocorrida com a mediação da OAB, pois os internos temiam retaliações. Houve, portanto, um final momentâneo da revolta, uma vez que no dia seguinte ela foi retomada com força total. A revolta que, inicialmente, se restringia a dois pavilhões de Alcaçuz, logo foi se estendendo para os demais. E, aos poucos, foi se ampliando 318 até chegar a outras unidades prisionais do estado 319 . Assim, foi sendo feito um grande estrago na estrutura dos presídios, causando grandes prejuízos ao estado, mas também aos familiares dos internos. Quando eles quebram, molham e queimam objetos como colchões, lençóis e ventiladores, no outro dia, os familiares se sentem na obrigação de vir deixar – o mais rápido possível – novos objetos. 317“MOTIM em Alcaçuz dura nove horas”. Tribuna do Norte, Natal, 12 mar. 2015. 318 Atribui-se essa expansão das rebeliões para outros presídios à comunicação entre os presos das diversas unidades por meio de telefones celulares. (“TRÊS presídios do RN enfrentam motins simultâneos”. Tribuna do Norte, Natal, 13 mar. 2015). 319 Além da Penitenciária de Alcaçuz, foram registradas rebeliões nas seguintes unidades prisionais: Penitenciária Estadual de Parnamirim, Penitenciária Agrícola Doutor Mário Negócio (Mossoró), Penitenciária Estadual Desembargador Francisco Pereira da Nóbrega (Caicó), Centro de Detenção Provisória do Potengi (Natal), Centro de Detenção Provisória da Zona Norte (Natal), Centro de Detenção Provisória da Ribeira (Natal), Centro de Detenção Provisória de São Paulo do Potengi, Complexo Prisional João Chaves (Natal), Presídio Provisório Professor Raimundo Nonato Fernandes (Natal). 151 Imagem: Pavilhão em chamas durante a rebelião 320 Imagem: Destruição no interior dos pavilhões 321 . Em meio às rebeliões, começaram a surgir reivindicações dos internos para extingui-las. A exigência que mais chamava a atenção – pela ousadia – era a de solicitar a exoneração de alguns diretores das unidades prisionais, entre os quais estava o nome de Dinorá, então diretora de Alcaçuz. Com os boatos de que os gestores seriam exonerados para atender aos pedidos dos presos, a SEJUC se apressou em emitir um comunicado, garantindo a permanência dos diretores nos cargos 322 . Dos presídios, o clima de destruição e insegurança se estendeu também às ruas da capital e região metropolitana, levando pânico para a população norte-rio- grandense 323 . No dia 16 de março, foram registrados ataques a cinco ônibus, quatro 320 Fonte: SEJUC/RN. 321 Fonte: No Minuto. 322“SEJUC nega exoneração de diretores”. Tribuna do Norte, Natal, 14 mar. 2015. 323 O fato de partirem ordens de dentro das unidades prisionais para que se realizassem ataques pelas ruas não é novidade no Rio Grande do Norte. No dia 14 de setembro de 2011, ocorreu uma revolta dos presos das penitenciárias de Alcaçuz e Parnamirim. Dois dias após, foram registrados sete ataques a ônibus em várias regiões da capital. Na época, o motivo inicial apontado para a revolta dos internos foi o controle feito pela direção com relação à alimentação levada pelos familiares e também o rigor empregado com relação à circulação dos apenados pelos pavilhões. Em Alcaçuz, reivindicava-se ainda a volta dos internos 152 deles em Natal e um no município de Parnamirim 324 . Sobre esse crime, a polícia prendeu um homem, que assumiu a autoria do ataque e confessou que a ordem para atear fogo nos veículos estava partindo da Penitenciária de Alcaçuz. Afirmou ainda que pelo serviço, receberia a quantia de duzentos reais e cinquenta gramas de maconha 325 . Em razão desses ataques, instalou-se um clima de tensão e medo em Natal e arredores. O pânico foi tão grande que mudou a rotina das pessoas: lojas fecharam mais cedo, colégios e faculdades suspenderam as aulas, ônibus pararam de circular e a população evitou sair de casa. Certamente que houve gravidade nos ataques, mas não nos moldes imaginados pela população; o que contribuiu para a disseminação de um medo generalizado foram boatos falsos espalhados principalmente pelas redes sociais e pelo aplicativo Whatsapp. Imagem: Ônibus incendiado em Natal 326 Esses boatos noticiavam a existência de uma diversidade de crimes: assassinatos, arrastões em bares e faculdades, roubos de carros, tiroteios pelas ruas, incêndio no shopping, pessoas matando “quem visse pela frente”, distribuição de armas entre os bandidos para novos ataques e apreensão de dinamites numa casa nas proximidades do para o pavilhão 4 de onde haviam sido retirados após a descoberta de um túnel. Com o controle da rebelião, 16 internos identificados como líderes foram transferidos para o presídio federal de Mossoró. Essa transferência teria sido o motivo para ataques a ônibus, nas ruas de Natal, em 16 de setembro. Num intervalo de seis horas, foram registradas sete tentativas de incêndio pela polícia. Na época, esses ataques foram atribuídos à atuação da facção criminosa PCC, que teria coordenado os ataques. Todavia, alguns analista de segurança pública defendem a tese de que não necessariamente exista uma célula do PCC no RN, mas de que os bandidos teriam uma rede de conexão muito importante e durante os ataques se colocam como PCC, inclusive em pichações, visando à intimidação das pessoas. (“ANALISTAS não atribuem ações ao PCC”. Tribuna do Norte, Natal, 18 mar. 2015). 324 CRIMINOSOS incendeiam cinco ônibus e uma viatura. Tribuna do Norte, Natal, 17 mar. 2015. 325“ORDEM para incêndios saiu de Alcaçuz”. Tribuna do Norte, Natal, 18 mar. 2015. 326 Fonte: Alex Regis/Tribuna do Norte. 153 presídio de Alcaçuz. Nenhum dos crimes noticiados foi confirmado pela polícia, apenas a apreensão na casa que existiu, mas não havia explosivo no local. Todos esses boatos espalhados nas redes sociais levaram a Secretaria de Segurança (SESED) a emitir um pedido nas redes sociais para que as pessoas não compartilhassem informações sobre supostos crimes que não haviam sido confirmados. Durante toda a noite do dia 16, o perfil da SESED numa rede social emitiu postagens identificando os boatos 327 . Paralelo a isso, presos divulgavam vídeos expondo reivindicações e mostrando a destruição que imperava nas cadeias, o que contribuía também para aumentar o medo sentido pela população. A situação ganhou tanto destaque que, no dia seguinte aos ataques, diversos jornais, inclusive de âmbito nacional, noticiaram o ocorrido. Por exemplo, o jornal Tribuna do Norte estampou em sua capa a seguinte manchete: CALAMIDADE – cinco ônibus queimados, cinco presídios destruídos, mil boatos e uma cidade em pânico. Realmente foi muito oportuna a manchete escolhida para o jornal, afinal, o Rio Grande do Norte vivenciava uma verdadeira situação de calamidade. Em razão desse caos instalado, o governo do estado decretou calamidade no sistema prisional. Em razão disso, o governo passou a garantir o pagamento de diárias operacionais extras para reforço no policiamento e custódia dos internos. Além disso, passou a contar com o apoio de 200 militares da Força Nacional para reforçar a segurança e com dois helicópteros para a patrulha do espaço aéreo 328 . No dia 18 de março – após uma semana do início – finalmente, as rebeliões chegaram ao fim. Isso aconteceu depois da realização de uma reunião entre representantes da OAB, dos Direitos Humanos e presos da penitenciária de Alcaçuz, intermediada pelo juiz de Execuções Penais Henrique Baltazar. As negociações para encerrar as rebeliões contaram ainda com a intermediação de um membro da pastoral carcerária da Igreja Católica, que forneceu o número do telefone de um interno que estava preso em Alcaçuz. De posse desse número, o juiz Baltazar fez contato com o apenado e formou uma comissão com um membro do Ministério Público Estadual 327“ONDA de boatos aterroriza o natalense”. Tribuna do Norte, Natal, 18 mar. 2015. 328“GOVERNO do RN decreta calamidade”. Tribuna do Norte, Natal, 17 mar. 2015. 154 (MPE), um membro da OAB e um do Conselho Estadual dos Direitos Humanos. Foi formado também um grupo de cinco presos para dialogar com essa comissão 329 . As principais reivindicações dos apenados foram: transformar a revista íntima em procedimento menos vexatório, rever os procedimentos de alimentação externa e analisar processos para dar acesso à progressão de pena. Segundo Baltazar: “todas as coisas são razoáveis. Não houve nenhuma exigência que não pudesse ser atendida”330.Ao final da conversa com os internos, a rebelião foi dada como encerrada e os ataques a ônibus também. O acordo também previa a retirada pelos internos de todo o material resultante da destruição de dentro dos pavilhões, além da não resistência à entrada da polícia. O rastro de destruição deixado pelos dias de rebelião foi grande. Aproximadamente mil vagas do sistema prisional foram destruídas: grades e celas quebradas, colchões e lençóis queimados. Não foram registradas fugas, nem mortes. Apenas alguns presos e agentes penitenciários ficaram levemente feridos 331 . É possível relacionar toda essa situação de crise à inércia estatal, no que tange à ausência de investimentos no sistema prisional do Rio Grande do Norte, que se encontra numa situação calamitosa, devido às condições das cadeias – poucas, velhas e deterioradas – e à insuficiência de agentes penitenciários. Imagem: Internos recolhem material depredado 332 329“APÓS motins, Alcaçuz terá revista”. Tribuna do Norte, Natal, 18 mar. 2015. 330 Idem. 331 “GOVERNO do RN decreta calamidade”. Tribuna do Norte, Natal, 17 mar. 2015. 332 Fonte: No Minuto. 155 5.3.2. Em busca da liberdade: o histórico de fugas da penitenciária de Alcaçuz O dia tá chuvoso. O clima tá tenso. Vários tentaram fugir, eu também quero. Mas de um a cem, a minha chance é zero. Será que Deus ouviu minha oração? Será que o juiz aceitou apelação? (Diário de um Detento, Racionais MC’s) Conforme afirma o fragmento da música acima, a vontade de alcançar a liberdade permeia constantemente o pensamento dos internos, que apelam tanto para a justiça, como para as divindades, em busca de se verem livres da reclusão. Não tendo suas apelações atendidas, partem em busca de estratégias para escapar da prisão, sendo dos mais variados tipos as artimanhas utilizadas pelos presos para tentar se evadir. Desde a inauguração da penitenciária, diversas foram as ocorrências de fugas. Para se ter uma ideia, apenas quatro meses após o início do funcionamento, houve a primeira fuga 333 , que serviu para se contrapor à ideia de que a penitenciária era de segurança máxima. Logo, ficou provado que a segurança oferecida era mínima. No caso da penitenciária de Alcaçuz, em geral, as fugas acontecem através de túneis 334 , já que a penitenciária foi erguida sobre um terreno de dunas, que facilita a escavação. As fugas se tornaram ainda mais frequentes a partir das rebeliões de março de 2015 335 . Como os internos quebraram todas as grades das celas 336 , ficaram com amplo acesso ao pavilhão em que estão presos, podendo escavar em qualquer parte. Antes, ficavam com o acesso limitado às suas celas e só podiam frequentar as áreas comuns durante os banhos de sol. Outro ponto que facilita a escavação é a ausência de vigilância constante no interior dos 333 26/07/1998: quatro meses após inaugurada, a primeira fuga. Otacílio Soares da Costa, considerado preso de confiança, sai pela porta da frente para consulta médica e foge. (“ALCAÇUZ: uma história de fragilidade e fugas”. Tribuna do Norte, Natal, 14 dez. 2014). 334 17/01/2010: quinze presos do pavilhão 4 fogem usando túnel de 20m de comprimento e 3m de profundidade; 05/05/2010: sete presos fogem usando o mesmo túnel da fuga de janeiro; 24/06/2010: cinco presos fogem do pavilhão 4 usando a mesma estrutura de túnel de fugas anteriores; 29/09/2011: nove presos fogem por túnel também no pavilhão 4; 10/01/2012: mais quatro homes fogem e SEJUC assume não dispor de dinheiro para fechar túneis corretamente; 03/12/2012: túnel no pavilhão 1 é utilizado por seis internos para fuga. (“ALCAÇUZ: uma história de fragilidade e fugas”. Tribuna do Norte, Natal, 14 dez. 2014). 335 Somente no mês de abril de 2015, 67 apenados fugiram utilizando túneis. (“ALCAÇUZ vive rotina de fugas”. Tribuna do Norte, Natal, 23abril 2015). Em 2016, esse número continuou crescendo e no mês de junho de 2016, haviam sido registradas 35 fugas e 244 fugitivos. (“SEJUC confirma 33 fugas em Alcaçuz”. Tribuna do Norte, Natal, 10 jun. 2016). 336 A estrutura do presídio passou por reforma e foi completamente consertada, mas os internos não aceitam permanecer trancados. Afirmam que se forem trancados irão quebrar novamente toda a estrutura dos pavilhões. 156 pavilhões pelos agentes penitenciários, que devido ao baixo contingente de profissionais, ficam impossibilitados de entrar diariamente nos pavilhões, já que os apenados estão soltos. Essa entrada só é possível se houver apoio da polícia militar ou de grupamentos especiais do sistema penitenciário. A existência de guaritas desativadas e a falta de iluminação nos arredores da penitenciária contribuem também para uma maior ocorrência de fugas. Imagem: Grande escavação no pavilhão 1 (2015) 337 Imagem: “Caverna” descoberta no pavilhão 1 (2014)338 337 Fonte: Portal BO. 338 Fonte: COAPE. 157 Imagem: Túnel embaixo da cama de alvenaria (2015) 339 Imagem: Saída do túnel na parte externa do presídio (2016) 340 Imagem: Interno morre soterrado tentando fugir (2015) 341 Embora o modo mais usado seja o túnel, diversos são os meios de fuga utilizados pelos internos, podemos citar também as “terezas342” usadas para escalar o 339 Fonte: Portal BO. 340 Fonte: G1/RN. 341 Fonte: Portal BO. 342 Tereza é uma espécie de corda feita pelos apenados com lençóis e pedaços de pano. 158 muro 343 . Há ainda registro de fugas após os internos serrarem as grades das celas 344 , pulando pelo telhado 345 , durante saídas para atendimento médico 346 e saindo às escondidas em carros que adentraram a unidade prisional 347 . Registram-se também histórias inusitadas como a de um preso que tentou fugir se vestindo de mulher 348 e uma verdadeira fuga cinematográfica, arquitetada pelo famoso bandido do oeste potiguar Valdetário Carneiro 349 , considerado um criminoso de alta periculosidade. Valdetário chegou à penitenciária de Alcaçuz no dia 06 de junho de 2000. Lá chegando encontrou dois de seus parceiros de crime: o primo Cimar Carneiro e Leodécio Reinaldo Pereira, conhecido como Diamor. A partir daí, passaram a planejar a melhor maneira de fugir da prisão. A polícia foi informada sobre a suposta fuga, tendo recebido a informação de que o filho de Valdetário seria o suposto executor da ação para resgate do pai. Na tentativa de impedir essa fuga, durante várias noites, policiais se revezaram fazendo o patrulhamento dos arredores da penitenciária. Passaram-se vários dias e nada aconteceu, até que o bando de Valdetário decidiu agir num final de semana, quando normalmente há um menor efetivo fazendo a guarda do presídio: Noite de 4 de novembro de 2000, um sábado, exatamente cinco meses após a prisão de Valdetário (...) Duas caminhonetes, uma Ford Ranger 343 08/11/1998: Severino Ramos e Isaac Laurentino fogem pulando o muro usando terezas; 28/04/1999: onze aproveitam a falta de sentinelas e fogem do pavilhão 2 usando terezas; 14/07/1999: mais oito presos fogem do pavilhão 2 usando terezas; 07/05/2004: sete homens fogem pulando o muro da unidade; 28/04/2005: três presos fogem fazendo uso de terezas; 30/04/2006: fogem seis presos do pavilhão 3 pulando o muro; 26/06/2009: quatro presos se aproveitam da falta de vigilância e fogem com uma escada feita de cordas; 08/06/2012: Dois internos fogem com a ajuda das terezas. (“ALCAÇUZ: uma história de fragilidade e fugas”. Tribuna do Norte, Natal, 14 dez. 2014). 344 06/07/2002: cinco internos serram grades e fogem do pavilhão 1; 03/08/2006: dois internos fogem após serrarem as grades e pular o muro; 17/07/2007: dez presos fogem após serrarem as grades. (“ALCAÇUZ: uma história de fragilidade e fugas”. Tribuna do Norte, Natal, 14 dez. 2014). 345 19/12/2008: Valdgley Souza do Nascimento escapa do presídio pelo telhado da administração. (“ALCAÇUZ: uma história de fragilidade e fugas”. Tribuna do Norte, Natal, 14 dez. 2014). 346 26/08/1998: Cláudio Bandeira e Edvaldo Costa de Faria saem escoltados para um posto médico e fogem no retorno para a penitenciária. (“ALCAÇUZ: uma história de fragilidade e fugas”. Tribuna do Norte, Natal, 14 dez. 2014). 347 04/07/2000: Antônio Carlos Correia, Nildo Alves e Jailson Serra fogem escondidos no carro que distribuía leite ao presídio. (“ALCAÇUZ: uma história de fragilidade e fugas”. Tribuna do Norte, Natal, 14 dez. 2014). 348 13/05/2003: Francisco Canindé Silva tentou fugir vestido de mulher. Usando peruca e salto, só foi reconhecido por causa da barba. (“ALCAÇUZ: uma história de fragilidade e fugas”. Tribuna do Norte, Natal, 14 dez. 2014). 349 Valdetário era um bandido muito temido, ganhou fama pelos feitos criminosos espetaculosos. Comandava assaltos a bancos e homicídios. Para alguns era tido como um herói, devido à opção de assaltar somente bancos e porque pregava a proteção aos pequenos produtores sertanejos. Foi morto em dezembro de 2003 por uma ação policial e o seu velório na cidade de Caraúbas/RN foi acompanhado por uma multidão. (“A HISTÓRIA do Valdetário de „carne e osso‟”. Tribuna do Norte, Natal, 08 dez. 2013). 159 e uma Chevrolet Silverado, aparecem nas imediações de Alcaçuz. Como em um filme hollywoodiano de guerra, armados com granadas, metralhadoras e fuzis de uso exclusivo das Forças Armadas, o grupo que estava nos carros tomou uma das guaritas do presídio. Os homens colocam duas escadas com mais de dez metros nos muros da cadeia. Por elas passam Val, Cimar e Diamor. Eles sobem nas caminhonetes, que desaparecem velozmente pelas estradas de barro que dão acesso ao presídio. Outros 27 presos aproveitam a ação e também ganham a liberdade. Desses, dez foram recapturados e outros seis morreram logo após escaparem da unidade prisional 350 . Portanto, através das matérias jornalísticas citadas, pode-se constatar a grande ocorrência de fugas na Penitenciária de Alcaçuz, principalmente, nos últimos dois anos. Várias são as maneiras utilizadas pelos internos para burlar a vigilância e conseguir atingir a tão desejada liberdade. Muitas das tentativas são frustradas pelos agentes penitenciários e policiais, que diariamente se esforçam no sentido de fazer uma patrulha efetiva do presídio. Assim, acabam descobrindo túneis, desarticulando planos de fuga e recapturando fugitivos. Para alguns dos internos, a opção pela fuga acaba se mostrando traiçoeira, pois na busca pela liberdade acabam encontrando a morte, seja em razão de confrontos com a polícia ou pela própria natureza do meio escolhido para a fuga, que é o caso da morte por soterramento. 5.3.3. Mortes Tem uma cela lá em cima fechada. Desde terça-feira ninguém abre pra nada. Só o cheiro de morte e Pinho Sol. Um preso se enforcou com o lençol. Qual que foi? Quem sabe? Não conta. (...) De madrugada eu senti um calafrio. Não era do vento, não era do frio. Acertos de conta tem quase todo dia. Ia ter outra logo mais, eu sabia. Diário de um Detento, Racionais MC’s. Normalmente, a morte é um assunto evitado pela maioria das pessoas e bastante temido. No cotidiano prisional, a morte se faz sempre presente, afinal, vários dos 350 BARBOSA, Rafael; NASCIMENTO, Paulo. Valdetário Carneiro: a essência da bala. Natal: Editora Tribo, 2013, p. 82-83. 160 homens que ali estão foram presos por envolvimentos em mortes, sendo muitos desses “matadores profissionais”. Assim, é comum que os presos comentem sobre as mortes pelas quais foram responsáveis, até como uma maneira de se impor perante os outros reclusos e mostrar que merecem respeito. Além disso, a cadeia é um local onde há muitas disputas por poder, seja no âmbito interno ou até externo. Nesse espaço são criadas rivalidades ou então acabam se encontrando criminosos rivais, que passam a disputar, por exemplo, o controle de um pavilhão ou o tráfico de drogas em determinada região. Então, diante de tal rivalidade, a morte fica onipresente, há sempre uma preocupação em torno dela. Desconfia-se de todos e uma estratégia de proteção é geralmente traçada, seja captando aliados ou se armando com facas artesanais. Por fim, o estresse causado pela privação de liberdade é responsável por exaltar os ânimos dos detentos, o que pode ocasionar mortes pelos motivos mais banais. Além disso, os suicídios são comuns nas prisões. Todavia, o principal motivo para as mortes dentro da penitenciária é a rivalidade entre os internos. Normalmente, as mortes são causadas por armas brancas 351 ou por enforcamento 352 , mas já foram registrados, inclusive, casos de mortes por arma de fogo 353 . 351 No dia 09/11/2009, os internos Ney Armstrong e Antônio Fernandes de Oliveira assassinaram o detento Francenildo de Oliveira, conhecido por “Ciclone. Teriam utilizado uma faca artesanal para matá- lo. “DETENTOS acusados da morte de "Ciclone" vão ficar 30 dias em isolamento”. Disponível em: http://www.nominuto.com/noticias/policia/detentos-acusados-da-morte-de-ciclone-vao-ficar-30-dias-em- isolamento/41554/. Acesso em: 28 jun. 2016. No dia 10/09/2012, o interno Ivanildo Batista de Farias, conhecido como “Miolim”, que cumpria pena na ala de adaptação foi morto a facadas por um desafeto, o preso Antônio Fernandes de Oliveira, o “Pá e Bola”. “PRESO que estava no 'castigo' é morto à facadas dentro de Alcaçuz, no RN”. Disponível em: http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2012/09/preso-que-estava-no-castigo-e-morto-facadas- dentro-de-alcacuz-no-rn.html. Acesso em: 28 jun. 2016. Na manhã do dia 21/02/2013, Lindemberg de Melo e Souza foi assassinado a golpes de faca durante uma briga ocorrida no pavilhão 2. “PRESO morre e outro é esfaqueado durante briga no maior presídio do RN”. Disponível em: http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2013/02/preso-morre-e-outro-e- esfaqueado-durante-briga-no-maior-presidio-do-rn.html. Acesso em: 28 jun. 2016. 352 No dia 14 de março de 2009, o interno 'Pá e Bola' confessou ter matado o preso Silvânio da Silva Alves com um lençol amarrado no pescoço. Para cometer o crime, ele contou com a ajuda de outro preso, que segurava em uma das extremidades do lençol e apertava contra o pescoço da vítima. “PRESO que estava no 'castigo' é morto à facadas dentro de Alcaçuz, no RN”. Disponível em: http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2012/09/preso-que-estava-no-castigo-e-morto-facadas- dentro-de-alcacuz-no-rn.html. Acesso em: 28 jun. 2016. No dia 6/10/2015, o interno José Wilde é encontrado morto no pavilhão 1, vítima de enforcamento. “PRESO é encontrado morto em Penitenciária de Alcaçuz”. Disponível em: http://www.nominuto.com/noticias/preso-e-encontrado-morto-em-penitenciaria-de-alcacuz/131401/. Acesso em: 28 jun. 2016. O interno Rogério Dias Sabino foi morto no pavilhão 1 no dia 22 de fevereiro de 2016, com sinais de agressão e enforcamento. Já na madrugada do dia 09 de março de 2016, o preso 'André Pé Seco' foi encontrado com uma corda amarrada no pescoço, dependurado em uma trave de futebol na quadra do pavilhão 2. “PRESO é encontrado morto em Penitenciária de Alcaçuz”. Disponível em: 161 Imagem: Corpo de interno trazido num carrinho de mão (2015) 354 Imagem: Preso morre enforcado no pavilhão 1 (2015) 355 Imagem: Interno morre enforcado no pavilhão 2 (2016) 356 http://www.nominuto.com/noticias/policia/preso-e-encontrado-morto-na-penitenciaria-estadual-de- alcacuz/137193/. Acesso em: 28 jun. 2016. 353No final da manhã do dia 24/04/2011, o presidiário identificado como “Bombado” assassinou a tiros o ex-policial militar Bebeto, que cumpria pena por participação em grupo de extermínio. Provavelmente a morte ocorreu por questões de rivalidades entre os dois internos. “PRESIDIÁRIO mata ex-PM dentro da penitenciária de Alcaçuz”. Disponível em: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/presidiario-mata-ex- pm-dentro-da-penitenciaria-de-alcacuz/179404. Acesso em: 28 jun. 2016. Na tarde do dia 28 de julho 2011, o interno Antônio Maia dos Santos, conhecido como “Mainha” ou “Baianinho”, foi morto a tiros por Humberto Alves Saldanha, o “Galego de Antenor”. Rixas familiares foram apontadas como o motivo da morte. “MORTE por arma de fogo em Alcaçuz”. Disponível em: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/morte-por-arma-de-fogo-em-alcacuz/190442. Acesso em 28 jun. 2016. 354 Fonte: Anderson Barbosa - G1/RN. 355 Fonte: No Minuto. 356 Fonte: Portal BO. 162 As mortes causadas por armas brancas e enforcamento são mais frequentes devido ao fácil acesso aos instrumentos. No primeiro caso, muitas dessas armas são fabricadas com a utilização de pedaços metálicos arrancados da própria estrutura da penitenciária. Já no caso do enforcamento também é fácil para os internos realizá-lo, uma vez que possuem acesso a lençóis e peças de roupa, os quais podem ser usados para essa finalidade. Nesse tipo de morte, se bem executada, há ainda a possibilidade de tentar simular a ocorrência de um suicídio. Importante salientar que algumas das mortes já registradas na penitenciária chocam pela demonstração de grande crueldade e desprezo pela vida humana. Os casos que considero mais emblemáticos são as mortes dos internos José Teodósio da Silva e Magno Boaventura. A morte de José, também conhecido como “Caicó” ocorreu no dia 19 de fevereiro de 2008 durante o banho de sol. Ele teve a cabeça decepada pelo interno João Maria do Nascimento, o “João Gordo”, que justificou o crime como uma maneira de defesa, já que teria sido ameaçado por “Caicó”, então, preferiu se antecipar e arrancar a cabeça do desafeto 357 . Imagem: Preso decapitado (2008) 358 Já a morte do interno Magno Boaventura, vulgarmente chamado de 'Bode Zé', aconteceu no dia 3 de maio de 2011. Ele foi morto com características de tortura e brutalidade. Foi decapitado e teve o seu cadáver destruído. O seu peito foi aberto com o auxílio de facas artesanais, seus órgãos foram retirados e espalhados pelas celas e alguns 357“LATROCIDA é degolado dentro de Alcaçuz por ter dado tapa em rival”. Disponível em: http://www.nominuto.com/noticias/policia/latrocida-e-degolado-dentro-de-alcacuz-por-ter-dado-tapa-em- rival/12186/. Acesso em 28 jun. 2016. 358 Fonte: No Minuto. 163 deles foram lançados ao fogo para queimar junto a colchões. Conta-se ainda que o seu coração teria sido arrancado, assado e comido por outros detentos 359 . Imagem: Cabeça de Bode Zé é levada em balde (2011) 360 Para os agentes penitenciários e também para os internos, que já estão acostumados à rotina prisional, a ocorrência dessas mortes não chega a causar tanto choque ou desconforto. Causa certo impacto inicialmente, mas acaba sendo enxergada como um fato normal e intrínseco ao cotidiano da prisão. Logo, não choca tanto ver as cabeças dos internos serem carregadas em baldes ou visualizar seus corpos sem vida chegando ao hall de entrada em cima de carrinhos mão: Já entrei no pavilhão e visualizei o interno sem vida. Já visualizei também muitos internos agonizando. Já vi vários sendo socorridos com facas ainda enfiadas no corpo. É uma imagem que realmente choca bastante. Aquilo fica gravado na memória, mas como faz parte do meu cotidiano trabalhar aqui, tenho que me acostumar, aí não fico pensando nisso. Acabo achando normal pra rotina do presídio. Até porque o agente tem que se acostumar com isso. Se não se acostumar, não serve pra essa profissão 361 . 359“DETENTO é decapitado durante rebelião em Alcaçuz”. Disponível em: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/detento-e-decapitado-durante-rebeliao-em-alcacuz/180212. Acesso em: 28 jun. 2016. 360 Fonte: Emanuel Amaral/Tribuna do Norte. 361 ENTREVISTA, ÍSIS, Nísia Floresta, 15 nov. 2015. 164 Capítulo 6: Entre espaços e lugares, sentimentos e emoções: subjetividades e a questão espacial A penitenciária é um espaço multifacetado, que pode ser enxergado sob várias perspectivas, justamente, porque reúne três categorias de sujeitos (o agente, o apenado e o visitante) num mesmo espaço e cada um desses sujeitos se apropria e desenvolve uma relação com esse espaço. Por apropriação entende-se o modo como os sujeitos possuem acesso a esse espaço. No caso dos agentes penitenciários e funcionários da parte administrativa da instituição, esse acesso se dá em razão das atividades laborais lá desempenhadas. Já o acesso dos apenados ocorre de maneira coercitiva, uma vez que são encaminhados à penitenciária e lá deverão, obrigatoriamente, permanecer sob a custódia do Estado até o final do cumprimento de suas penas. O acesso dos visitantes é espontâneo, bastando que solicitem à instituição e comprovem o vínculo familiar ou afetivo com o recluso, sendo justificado pelo anseio em reencontrar o encarcerado. Partindo da lógica de que é possível enxergar o espaço da penitenciária por várias perspectivas, dadas as categorias de sujeitos que o ocupam, identificamos, portanto, a relação do espaço com as subjetividades 362 . De acordo com o geógrafo Yi- Fu Tuan, diversas são as maneiras de experienciar e interpretar os espaços e lugares. Para Tuan, as ideias de espaço e lugar não podem ser definidas uma sem a outra. Nesse sentido, o conceito de espaço está relacionado ao aspecto objetivo, ao que ainda não foi experienciado pelo sujeito; já o lugar é aquele que o sujeito conhece de modo íntimo, remete ao espaço experienciado/praticado pelo ser humano. Assim, a partir dessas experiências obtidas, Tuan considera que o ser humano desenvolve para com os lugares sentimentos complexos que por vezes são ambivalentes 363 . Após uma análise das entrevistas realizadas, é possível observar essa situação descrita pelo geógrafo no que diz respeito às três categorias de sujeitos que ocupam o espaço da Penitenciária de Alcaçuz. Observa-se que a partir do momento em que os sujeitos passam a se relacionar com esse espaço, desenvolvem uma infinidade de sentimentos para com ele, assim como passam a conhecê-lo de modo íntimo. Logo, o 362 Para debater essa relação, usamos as contribuições teóricas de Tuan e Certeau. (TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983; CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998) 363 TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983, p. 7. 165 que antes era um espaço transforma-se em lugar para o sujeito, de acordo com o conceito de Tuan. Portanto, a penitenciária passa a ser caracterizada como um lugar para os sujeitos que a ocupam. Nessa lógica, cada sujeito dará um sentido a esse lugar e desenvolverá sentimentos diversos. Assim, é possível identificar três lugares: o lugar de reencontro (pela perspectiva do visitante), o lugar de aprisionamento (pela perspectiva do apenado) e o lugar de trabalho (pela perspectiva do agente). Importante salientar que nada impede uma categoria de sujeito de experienciar o espaço por mais de uma perspectiva, de modo que, por exemplo, o interno visualize a penitenciária como um lugar de reencontro, mas também como um lugar de aprisionamento ou ainda como um lugar de trabalho. Todavia, ressaltamos aqui, as perspectivas que julgamos ter maior destaque para cada grupo de sujeitos. 6.1. O visitante e o lugar de reencontro No que diz respeito ao visitante, destacamos o entendimento da penitenciária encarada como um lugar de reencontro, dado que seu único objetivo em comparecer à unidade prisional é a visita ao interno com o qual possui um vínculo familiar ou afetivo. Conforme já debatido no tópico referente à visita 364 , observa-se que esse reencontro entre os visitantes e os internos é cercado de muita ansiedade e expectativa, sendo a ele atribuída grande importância. Há toda uma preparação para esse momento, que passa pela escolha da roupa que será utilizada, a maquiagem e até a lingerie. É impossível não observar a preocupação excessiva das visitantes – notadamente das companheiras – com a aparência, ou seja, com a maneira pela qual irão se apresentar para os maridos. Essa preocupação das mulheres é maior principalmente no dia da visita íntima e gira em torno de estarem bem vestidas, maquiadas e perfumadas. Embora haja uma limitação com relação à vestimenta utilizada pelas mulheres 365 nos dias de visita – devem utilizar calças ou saias longas de malha, camiseta branca e sandálias de plástico tipo “havaianas” – é possível constatar que elas se preocupam bastante com a aparência. O tipo de roupa mais utilizado por elas é a calça “legging”, que é bastante justa e por vezes causa um enorme trabalho – durante a revista íntima – 364 5.2. A visita e a “temida” revista íntima. 365 Ver Anexo IV. 166 para ser retirada e novamente colocada, especialmente se os corpos estiverem suados. Portanto, dentro desse padrão de vestuário, para se destacar, as visitantes utilizam modelos de calças com cores diferentes, estampas, aplicações, texturas e até com brilho. Grande parte delas alega que prefere usar esse tipo de calça – mais justa no corpo – porque como, obrigatoriamente, terão que usar camiseta, no entendimento delas, essa calça combinaria melhor. Já se utilizassem a saia longa com a camiseta, ficariam com a aparência mais “gorda”, pois ambas as peças são folgadas. E parecer “gorda” para o marido não é uma opção. Sobre essa preocupação em estarem “apresentáveis” para os companheiros, um fato muito curioso me intrigava. Eu passei a observar que uma grande parte das visitantes chegava para a visita com a camiseta pelo avesso e após se submeterem ao procedimento de revista íntima saíam vestindo a camiseta pelo lado normal. Minha curiosidade foi aumentando e um dia resolvi questionar uma das visitantes do porquê de usar a camisa pelo avesso. Ela prontamente me informou que as mulheres vestiam as camisetas pelo avesso para que não sujassem o lado normal durante o período em que estavam esperando para entrar no presídio. Assim, só colocavam a camisa corretamente após passar pela revista íntima. Logo, estariam limpas ao reencontrar os internos. Para se diferenciar, algumas das visitantes investem ainda na customização das sandálias modelo “havaianas”, aplicando pedrarias e miçangas para que o calçado se destaque. Também faz sucesso entre elas a utilização das sandálias desse modelo confeccionadas por grifes, como a Carmen Steffens. Logo, é perceptível que as visitantes não gostam da padronização do vestuário 366 , afinal, desejariam comparecer às visitas com as roupas que usam no cotidiano. Além da limitação aos trajes utilizados, não é permitida a entrada de piercings ou qualquer tipo de bijuteria, sendo liberada apenas a entrada da aliança. É essa a proibição que as visitantes mais tentam burlar. Como esses adereços são pequenos, elas tentam escondê-los para, transcorrida a revista íntima, recolocá-los. Normalmente, elas desejam entrar com piercings ou brincos e tentam escondê-los dentro da boca ou então no fundo da calcinha ou ainda tentam cobrir as orelhas com os cabelos para que os brincos não sejam visualizados. 366 O vestuário das visitantes é padronizado por uma questão de segurança para que, por exemplo, numa situação de rebelião sejam facilmente identificadas. Além disso, para evitar que compareçam a instituição prisional com materiais não permitidos nas vestimentas, como os metálicos e também para coibir o uso de roupas muito “provocantes”, como as decotadas. 167 A lingerie é outra grande preocupação dessas mulheres, o modelo que predomina é o fio dental, dos mais variados tecidos e cores, com exceção da preta que é proibida. Nos dias de visita íntima a preocupação com essa peça de roupa é maior, inclusive, algumas mulheres vão para a visita íntima vestindo fantasias sexuais por baixo de suas roupas, assim, nada impede que numa semana o interno receba a visita de uma enfermeira e na semana seguinte de uma colegial, por exemplo. Nesses dias, muitas das visitantes comparecem munidas de preservativos, dos mais diversos tipos, inclusive com sabores, denunciando que o dia será muito bem aproveitado. Algumas delas já tentaram trazer “brinquedos sexuais”, além de géis e lubrificantes, mas as normas da instituição não permitem a entrada desses objetos. Além da preocupação com o vestuário e apetrechos sexuais, as visitantes capricham bastante na maquiagem, muitas delas até exageram um pouco. Não é difícil ver rostos pintados com maquiagens bem chamativas, como bocas pintadas com batom rosa-choque e olhos delineados com sombra verde cintilante. Outra grande preocupação delas é estarem cheirosas e com aparência de banho tomado. Devido ao calor da cidade e à longa espera na fila, isso se torna um pouco difícil. Acredito que a estratégia mais utilizada por elas é se encher de perfume ainda quando estão fora do presídio, já que não poderão entrar com os frascos. Digo isso porque não é raro sentir aromas pronunciados de perfumes, sendo os florais os mais utilizados. Confesso que nem sempre são agradáveis, ainda mais nas primeiras horas da manhã. Outras visitantes preferem levar dentro do sutiã um pequeno frasco, tipo de “amostra grátis”, contendo o perfume e passá-lo na sala de revista, onde joga fora o frasco. Utiliza-se ainda a estratégia de levar dentro da roupa um algodão embebido em perfume, para esfregar na pele quando for entrar no presídio. Ainda sobre a preocupação das visitantes com a aparência, existiu durante um tempo entre elas uma “moda” de ir para a visita com o corpo meio brilhoso besuntado de hidratante com glitter. Chegavam todas brilhando para o reencontro com o respectivo companheiro. Por fim, também há toda uma preocupação em organizar os mantimentos que serão trazidos para o interno, para que nenhum item seja esquecido. Observa-se, então, que é criada uma imensa expectativa e todas as atenções do visitante se voltam para esse momento de reencontrar o familiar, logo, a penitenciária é essencialmente um lugar de reencontro para o visitante. Apesar de toda essa ansiedade e preparação minuciosa para o dia de visita, nos relatos das mulheres é um ponto em comum o fato de que sentem 168 medo do ambiente prisional. A maioria delas sente um medo “controlado”, isto é, têm um sentimento de repulsa para com o lugar. Preferiam não estar ali em razão dos perigos aos quais estão expostas, mas como desejam ver o familiar, deixam um pouco de lado esse sentimento negativo para não serem dominadas por ele. Já algumas pessoas não conseguem se desvincular desse sentimento e ficam visivelmente nervosas ao entrar na penitenciária. São pessoas que chegam a tremer, suar e chorar ao comparecer às visitas. Detectamos, assim, a ambivalência de sentimentos na relação das pessoas com o lugar. Ou seja, mesmo sentindo medo, contraditoriamente, as visitantes anseiam pela chegada do dia da visita, no qual irão reencontrar o familiar recluso. E é justamente pelo sentimento em relação a essa pessoa que irão enfrentar o medo sentido e desejarão entrar o mais rápido possível no ambiente que tanto temem. E, lá entrando, por alguns momentos, esquecerão o medo sentido e desejarão prolongar ao máximo a permanência nesse ambiente que considera hostil para desfrutar da companhia do familiar. Vejamos abaixo o caso de uma visitante. Marileide 367 , mãe de um interno, mulher de boas condições financeiras, mas de aparência sofrida. Não gosta nem um pouco do presídio, sofre em todas as visitas. Afirma que tem problemas nos “nervos”. Sente muito medo. Além disso, nunca se acostuma aos procedimentos de revista íntima, sente muita vergonha, ocasionalmente é vista com as mãos trêmulas e os olhos marejados ao retirar as roupas. Abandonar o seu filho não é uma opção. Afirma sentir muita saudade, por isso comparece a todas as visitas e anseia pelo reencontro com o filho, inclusive prepara – para utilizar nas visitas – camisetas com frases “motivacionais”, buscando levar um pouco de incentivo e força para que o filho suporte o cumprimento da pena. O amor incondicional de mãe a obriga a enfrentar o medo e se submeter a todos esses procedimentos que a massacram visita após visita. Conforme observamos na situação narrada, Marileide vivencia sentimentos ambivalentes: o medo do ambiente e a ansiedade para que o dia da visita chegue logo. No caso dela, assim como no da maioria das visitantes, esse medo é enfrentado em razão da existência de um sentimento mais forte, arrebatador e (des)orientador: o amor sentido pelo apenado. Guiadas por esse sentimento e em nome dele, uma multidão de 367 ENTREVISTA, MARILEIDE, Nísia Floresta, 15fev. 2015. 169 mulheres lota – nos dias de visita – a frente da penitenciária em infindáveis filas à procura do tão esperado reencontro com o amado. São avós, mães, tias, irmãs e, em maior número, companheiras, algumas trazendo no colo filhos, frutos desse amor, muitos concebidos ali mesmo, durante uma visita íntima. Assim como Marileide, a visitante abaixo justifica sua presença constante nas visitas em razão desse sentimento. Laila 368 , companheira de um interno, morena, sensual, tatuada, cabelos longos e cacheados, fala com gírias, anseia pelos dias de visita e não falta um, declara um amor incomensurável ao seu companheiro: capaz de, diante da ausência do amado, sentir febre e calafrios. E com o reencontro, ser tomada por fortes arrepios. Um dia, numa das costumeiras visitas, foi presa em flagrante no presídio, tentava entrar com drogas para ele. Segundo ela, “em nome do amor que sentia”, o que a levava a atender a todos os desejos dele. Como exceção, podemos citar o caso da visitante a seguir, que anseia pelos dias de visita e, aparentemente, não sente medo de comparecer à instituição prisional, pois julga que lá terá sossego em comparação à sua rotina cotidiana. Esse é o caso de Dona Graça 369 , avó de um interno, senhora simpática, materialmente pobre, mas rica de espírito, sempre com um sorriso no rosto e de bem com a vida, gosta muito de vir ao presídio, relata que comparece à penitenciária com o objetivo de dormir durante toda a visita, pois julga ser esse um lugar tranquilo em comparação à sua residência, onde ajuda na criação de vários netos, que não a deixam sossegar. Só no presídio consegue relaxar e dormir bem. Fica ansiosa para chegar o dia da visita, pois irá ao encontro de seu neto e, finalmente, irá descansar. Com a frequência constante no presídio a cada visita, relações de afinidade são desenvolvidas com o espaço, que vai se transformando em lugar. Os visitantes passam a conhecer de modo íntimo as dependências da instituição prisional nas quais circulam. Por exemplo, no caso das companheiras, conhecem todas as minúcias da cama do interno. Já no caso de outros parentes que visitam o apenado, terão mais intimidade com outras áreas do presídio como o hall de entrada do pavilhão, onde durante as visitas, os presos e os familiares costumam ficar sentados conversando 370 . Com relação aos filhos 368 ENTREVISTA, LAILA, Natal, 10dez. 2014. 369 ENTREVISTA, GRAÇA, Nísia Floresta, 15 fev. 2015. 370 Durante os dias de visita social, se algum dos internos da cela for receber a companheira, aqueles que não possuem companheira devem receber seus familiares no hall do pavilhão ou na quadra de esportes, 170 pequenos do interno, desenvolverão relação de afinidade com as áreas que tenham uma função recreativa, no caso, a área da quadra dos pavilhões, onde podem brincar na companhia do pai ou de outras crianças. A exceção mais uma vez é o caso de Dona Graça, que apesar de ser avó do interno, conhece em detalhes sua cama, já que gosta de dormir durante as visitas. Sobre o contato com o ambiente carcerário e as relações entre os sujeitos, pude observar que há a construção de um sentimento de companheirismo entre as visitantes. Isto é, no lado externo do presídio – nas longas filas de espera madrugada adentro – laços fraternais são construídos. Enquanto aguardam, desenrolam-se longas conversas sobre os mais variados assuntos, as novatas recebem dicas de como devem se comportar, são avisadas sobre quais são agentes “chatas” e quais são “legais”371. Por vezes, a solidariedade impera entre elas: empresta-se dinheiro, guarda-se o lugar na fila e vigiam-se as “compras” enquanto a outra vai ao banheiro ou ainda é dada uma “mãozinha” segurando no colo o bebê enquanto a mãe passa pela revista íntima. Essa amizade pode também se fortalecer para além das filas de espera, por exemplo, racha-se o combustível para comparecer às visitas, divide-se o aluguel e até negócios são abertos em conjunto com a “amiga da fila”. Observa-se, após a análise dos três depoimentos, que, ao comparecer ao presídio para o reencontro com o interno visitado, cada uma dessas mulheres o faz com determinada finalidade. Dona Graça deseja sossego e tranquilidade ao reencontrar o neto, não quer ser incomodada em seu momento de descanso. Marileide almeja se fazer presente na vida do filho para que ele suporte o cumprimento da pena. Já Laila espera simplesmente um reencontro fervoroso com seu amado, quando irá satisfazer-lhe os desejos, mesmo que imorais ou ilegais. Constata-se ainda que as visitantes dão extrema importância ao reencontro com o apenado, o que as faz enfrentar sentimentos como medo e vergonha para comparecer às visitas. Portanto, a penitenciária é, principalmente, um lugar de reencontro para elas. Ao mesmo tempo em que vivenciam toda sorte de sentimentos negativos, ao para não atrapalhar a visita do interno com a mulher, que se transformará em “íntima”. Se mais de um apenado da mesma cela for receber a companheira, normalmente, é feito um rodízio da cela, cada um fica um determinado tempo com a esposa. Já nos dias de visita íntima, como o dia é todo reservado ao sexo, eles costumam isolar as camas com lençóis e ficam todos com suas companheiras dentro das celas. 371 Normalmente uma agente é definida como “chata” quando tem uma postura mais dura, rígida, não sorri e não estabelece diálogos com as visitantes. Já a agente considerada “legal” é aquela que tem uma postura mais flexível, é simpática e conversa com as visitantes. 171 comparecer a instituição entram também em contato com sentimentos positivos, seja o amor sentido pelo interno ou então a amizade construída nas longas filas de espera, que terminam por neutralizar um pouco a negatividade dos outros sentimentos fazendo com que possam desfrutar mais despreocupadas do dia de visita. Além disso, a afinidade construída com o lugar contribui nesse sentido, pois como já sabem o que vão encontrar dentro da penitenciária, não precisam temê-la tanto. O presídio pode ser enxergado também como um lugar de aprisionamento para aquelas visitantes que temem muito esse lugar ou então para aquelas que comparecem a contra gosto. Inclusive já ocorreram casos de visitantes passarem mal nos pavilhões e não aguentarem esperar o término da visita, porque estavam se sentindo sufocadas e vivenciando a sensação que estavam presas. 6.2. O agente e o lugar de trabalho No que diz respeito ao agente penitenciário, a sua relação com a instituição prisional se dá exclusivamente em razão do trabalho que lá desempenha. Assim, a penitenciária pode ser caracterizada como um lugar de trabalho. E, nesse lugar, o agente vai estabelecendo relações, criando vínculos afetivos e intimidade com o lugar. Aos poucos vai se afeiçoando a ele, inclusive, busca adaptar esse lugar – que é tão estigmatizado – aos seus gostos, para que se torne um ambiente mais agradável para si, o que tornará mais prazeroso os momentos de labor. Podemos citar como exemplo a fala do agente Emanuel, que afirmou: “o melhor lugar [da penitenciária], para mim, é o jardim que eu fiz, que eu pedi para fazer na frente da recepção do presídio, ameniza o ambiente, digamos assim, sombrio, que é o presídio”372. Com isso, observa-se que ele buscou dar um toque pessoal ao ambiente de trabalho, para que se sentisse mais a vontade nele. E, consequentemente, acabou por criar um sentimento de pertencimento a esse lugar. Enquanto isso, para a agente Maria, o melhor lugar é o refeitório: Bom lugar mesmo, assim, para os agentes, acho que é o refeitório né? (risos). Porque lá a gente descontrai um pouco, a gente conversa, a gente troca ideia, a gente come. Eu acho que o refeitório é, assim, um 372 ENTREVISTA, EMANUEL, Nísia Floresta, 13 jan. 2015. 172 pouco de passatempo pra sair da rotina, porque tipo assim, a sala de revista para as agentes é muito cansativa, a gente fica muito cansada depois de um dia de revista. A gente fica com dor de cabeça, o corpo doendo, a coluna, porque a posição é muito difícil 373 . Portanto, assim como Emanuel, Maria desenvolve também uma ligação com um lugar – no caso o refeitório – e o procura quando necessita descontrair um pouco, devido à rotina de trabalho um pouco estressante. Já as agentes Ísis e Marta consideram como melhor lugar o alojamento: Assim, o melhor lugar aqui pra mim, sem sombra de dúvida, é o alojamento porque é o lugar que eu posso ir nos horários de intervalo pra descansar um pouco e relaxar. Lá eu posso tomar um banho, dormir um pouco, além disso, tem as outras meninas [agentes] lá pra conversar e desestressar após um dia de revista. A gente faz a maior farra lá dentro, conversa, ri... Tem umas que falam até demais e não deixam as outras dormirem (risos) 374 . O melhor lugar da cadeia é até difícil dizer, porque não existe. Mas... o melhor lugar é, assim, o alojamento, porque aqui estou resguardada do que possa acontecer. Até porque eu não lido com armas pra me defender, até porque a gente pra ter direito a uma arma daquela tem que pedir autorização, então o lugar mais resguardado para mim é esse 375 . As duas agentes elegem o alojamento como o melhor lugar da penitenciária, entretanto, cada uma o elege por um motivo diverso. Para Ísis, a escolha se justifica, pois o alojamento oferece a ela condições propícias para descansar e desestressar após a jornada de trabalho. Já Marta, o escolhe como o melhor lugar, porque julga estar mais protegida em seu interior, portanto, o considera um lugar seguro. Como há poucas armas de fogo na instituição, a prioridade é que fiquem de posse dos agentes, uma vez que passam o dia todo na instituição e lidam diretamente com os internos. Além disso, há toda uma burocracia para que o agente faça a “cautela” de uma arma. É necessário preencher e assinar um formulário. É a essa autorização que Marta se refere na sua fala. Enquanto isso, a agente Emília elege outro lugar como o “melhor”, todavia o faz com a mesma finalidade de Marta, que é proteção e segurança: 373 ENTREVISTA, MARIA, Nísia Floresta, 01 mar. 2015. 374 ENTREVISTA, ÍSIS, Nísia Floresta, 15 nov. 2015. 375 ENTREVISTA, MARTA, Nísia Floresta, 15 mar. 2015. 173 Eu gosto da recepção e da entrada, do hall, porque, geralmente, no hall tem muitos agentes. É onde todo mundo se concentra, agente masculino, agente feminino, é onde tá passando a direção, então, dá uma sensação melhor de segurança, é onde estão circulando as pessoas 376 . Após a análise dos relatos de Marta e Emília, constatamos que a penitenciária é um espaço temido por elas, tanto que se sentem melhor nos lugares que julgam ser mais seguros. Assim, constroem afinidades com esses lugares e buscam, sempre que possível, estar neles. Mesmo havendo esse sentimento de medo do agente penitenciário que teme, por exemplo, ir trabalhar e não conseguir voltar para casa. Também há sentimentos bons ligados ao trabalho, normalmente, valoriza-se o trabalho e a ida até lá é prazerosa, pois foram desenvolvidas relações de afinidade com a penitenciária. Lá o agente se sente à vontade, construiu amizades, circula livremente, conhece a penitenciária em detalhes, elege os lugares nos quais se sente melhor e, inclusive, pode buscar maneiras de adaptá- los e torná-los mais agradáveis, como vimos anteriormente no caso de Emanuel e da construção do jardim. Ísis fala um pouco sobre as adaptações feitas nos lugares: Olha, aqui a gente não faz mais modificações porque é difícil, né. Muitas vezes depende de dinheiro pra fazer e nem sempre o estado vai fornecer. Aí também fica pesado pra gente pagar do próprio bolso quando envolve dinheiro. Mas a gente fica sempre pedindo por melhorias. Quando eu comecei a trabalhar aqui a sala de revista era bem menor do que é hoje aí exigimos que fosse aumentada. Não tinha ventilador, exigimos a colocação de um. O alojamento passou muito tempo em condições precárias a gente batalhou muito pra conseguir melhorar. Teve um tempo que levaram as camas e os nossos colchões, mas reclamamos aí trouxeram de volta. Já ficamos também sem ventilador no alojamento que é muito quente, mas arranjaram um. Todo quebrado, mas é melhor do que nada. A única coisa que está precisando é colocar uma porta no banheiro, fizeram uma reforma em todo o presídio, mas não colocaram a porta 377 . Mesmo com essa relação positiva desenvolvida com os lugares da penitenciária, não podemos esquecer que a relação com o espaço da penitenciária desperta, muitas vezes, sentimentos negativos nos agentes, como medo, angústia e até pânico, passíveis de causar problemas sérios de saúde que acarretem no afastamento do profissional. 376 ENTREVISTA, EMÍLIA, Nísia Floresta, 01 mar. 2015. 377 ENTREVISTA, ÍSIS, Nísia Floresta, 15 nov. 2015. 174 Nessa lógica, pela perspectiva do agente é possível encarar a penitenciária não somente como um lugar de trabalho, mas também como um lugar de aprisionamento. Isso ocorre porque o sujeito – rodeado por grades e cadeados – pode vir a desenvolver esses sentimentos negativos e acabar se sentindo aprisionado no local de trabalho. A localização da penitenciária, isolada da área urbana, também contribui para desenvolver esses sentimentos. Sobre isso, Maria relata: Me sinto bastante aprisionada, porque aqui é um lugar que a gente sempre está com aquela tensão de que pode acontecer alguma coisa e a gente não vai poder ir embora (...) Eu me sinto aprisionada porque aqui é praticamente uma ilha, por ser um lugar muito distante, não ter transporte, porque se a gente perder uma carona, vai ter que dormir aqui mesmo, ficar presa aqui (...) não tem como sair, só se for voando 378 . Analisando outros depoimentos, observei que normalmente a sensação de medo é vivenciada nos primeiros contatos com o ambiente prisional, assim como, para alguns agentes, existe o medo de se ver envolvido em algum caso de corrupção 379 por uma falsa acusação e até ser preso por isso. Já a sensação de aprisionamento é sentida, principalmente, quando os agentes pernoitam na penitenciária ou então se passam mais de um dia seguido trabalhando: Já senti [medo], logo no início. Eu achava tudo muito grande. Quando eu cheguei aqui, que eu entrei no hall, eu falei: meu deus, o que é que eu tô fazendo aqui. E, foi assim, um pouco, no começo, foi um pouquinho difícil, porque você não tem ideia aí fora como é aqui dentro. Tá entendendo? É outra vida, a gente que não é acostumado, a gente que nunca viu, assim, esse submundo... Porque é um submundo, é um mundo paralelo, eu acho. A gente que tá aí fora, não tem nunca essa visão de quem tá aqui dentro, de ver como as coisas acontecem aqui, sabe? Sofrimentos, morte, fuga e mil e uma coisas que podem acontecer, gente tentando trazer droga pro presídio. É a novidade, né? Então, a novidade assusta um pouco, mas depois, com o tempo, a gente se acostuma e fica normal. Porque tudo é o costume, a gente se acostuma com o que presta e com o que não presta (risos) 380 . 378 ENTREVISTA, MARIA, Nísia Floresta, 01 mar. 2015. 379 De vez em quando acontecem casos de corrupção no sistema penitenciário. No segundo semestre de 2015, um agente da penitenciária de Alcaçuz foi preso em flagrante dentro da unidade com uma grande quantidade de drogas e celulares que seriam entregues aos internos. “AGENTE entrando com droga e celular em presídio é exceção, garante diretor de Alcaçuz”. Tribuna do Norte, Natal, 29set. 2015. 380 ENTREVISTA, MARIA, Nísia Floresta, 01 mar. 2015 175 [No trabalho] tem estresse, tem medo, mas a gente consegue de certa forma relevar pela segurança que a gente tem na equipe que a gente trabalha, que eu trabalho. Dependendo um do outro, infelizmente há risco de vida, então, a gente tem que confiar no companheiro que está ao nosso lado. Então, acima disso tudo, tem o gostar e isso faz com que o trabalho fique menos estressante para a gente 381 . Como a penitenciária é um lugar conflituoso onde já ocorreu muita fuga e morte, me causa um pouco de medo. Não diria bem medo, porque eu considero o medo um sentimento muito forte. Acho que eu senti medo no início, logo que comecei a trabalhar aqui. Mas agora não sinto. Dá, assim, uma certa apreensão de não saber o que pode acontecer durante o plantão. Quando tá tendo alguma rebelião também fico um pouco apreensiva, porque pode terminar com algum agente refém, morto ou ferido. Aqui não é como um emprego normal que a gente sabe o que vai acontecer 382 . Eu ficava ansiosa para que o dia amanhecesse para eu poder ir embora porque era 24 horas, para mim era muito pesado 24 horas no presídio, era um aprisionamento, mas como agora eu não fico 24 horas, eu sei que determinada hora eu vou embora, então, já é mais tranquilo, eu não tenho essa sensação 383 . Sobre a sensação de se sentir preso no ambiente de trabalho, Rafael 384 faz uma comparação do trabalho do agente com o regime semiaberto de cumprimento de pena 385 . Para ele, é como se o agente estivesse cumprindo uma pena nesse tipo de regime, passa um período fora, mas, obrigatoriamente, deve retornar à unidade prisional. Já Marta, afirma que se sentiu presa após uma rotina de trabalhos na penitenciária: “Eu passei três dias trabalhando, eu me senti assim tão presa, eu queria que as horas passassem mais rápido. No outro dia quando eu saí, eu saí assim contrariada 386”. Trabalhar nesse tipo de ambiente que desperta nos funcionários esse sentimentos negativos, acaba repercutindo nos dias de folga, pois muitas vezes eles não conseguem se desligar totalmente dos fatos acontecidos no trabalho, assim como acaba criando uma ansiedade no dia anterior ao trabalho: Fico bem ansiosa, não consigo dormir direito. Fico pensando, assim, no horário que tem que chegar, no que vai acontecer. É tanta coisa 381 ENTREVISTA, EMANUEL, Nísia Floresta, 13 jan. 2015. 382 ENTREVISTA, ÍSIS, Nísia Floresta, 15 nov. 2015. 383 ENTREVISTA, EMÍLIA, Nísia Floresta, 01 mar. 2015. 384 ENTREVISTA, RAFAEL, Nísia Floresta, 14 mar. 2016. 385 O regime semiaberto está previsto no artigo 91 da Lei de Execuções Penais e é aquele que fornece ao apenado o direito de trabalhar ou estudar no ambiente externo ao presídio, se recolhendo na instituição durante o período noturno. 386 ENTREVISTA, MARTA, Nísia Floresta, 15 mar. 2015. 176 também, assim, no dia a dia que a gente vai ter. Se vai ter algum flagrante, eu penso, assim, um monte de coisa. Não consigo dormir direito, com uma ansiedade, acho que é normal porque o serviço da gente é bem estressante 387 . Para aqueles agentes que pernoitam na unidade prisional, o sono fica muito afetado, devido às noites mal dormidas na instituição. Segundo o agente Rafael 388 , essa rotina de privação de sono ocasiona uma fadiga incessante. Ele ressalta ainda que o estresse a que os agentes são submetidos, muitas vezes, causa insônia, tanto no dia que estão trabalhando, como no dia da folga. Essa situação, segundo ele, acaba gerando problemas no âmbito familiar, pois privado de sono, o agente fica mais suscetível a discussões. Em razão disso, muitos passam a recorrer ao uso de medicamentos para conseguir dormir. A rotina de trabalho numa instituição prisional pode ainda acarretar ao agente penitenciário uma série de graves distúrbios, como “a deterioração do funcionamento mental e do equilíbrio psicoafetivo”389. O fato de trabalhar na penitenciária acaba também por alterar a vida dos sujeitos. Com uma posição bastante radical, Rafael 390 afirma que, com o passar do tempo, os agentes vão perdendo a “humanidade”, isto é, passam a se acostumar e encarar como normais situações de agressões e mortes violentas. Ele observa ainda que muitas das linguagens próprias ao ambiente carcerário acabam, involuntariamente, sendo incorporadas ao vocabulário do agente. Além disso, é possível constatar que toda a rotina dos agentes passa a ser cercada de mais atenção. Os cuidados são redobrados ao frequentar lugares com aglomerações de pessoas. Alguns locais são evitados. Os mais paranoicos só ocupam mesas em bares e restaurantes se localizadas de frente para a porta de entrada. Sobre essa mudança na rotina, Marta afirma: “Eu me policio mais, assim, quando estou no mundo externo, nas ruas. Eu tenho mais cuidado, sou mais cautelosa, fico mais atenta diante de que eu trabalho com apenados, fico mais ligada nas coisas 391”. No mesmo sentido, Ísis, Emanuel e Emília afirmam: 387 ENTREVISTA, MARIA, Nísia Floresta, 01 mar. 2015. 388 ENTREVISTA, RAFAEL, Nísia Floresta, 14 mar. 2016. 389 SANTOS, Márcia Maria dos. Agente penitenciário: trabalho no cárcere. Dissertação. (Mestrado em Psicologia). Natal: UFRN, 2010, p. 18. 390 ENTREVISTA, RAFAEL, Nísia Floresta, 14 mar. 2016. 391 ENTREVISTA, MARTA, Nísia Floresta, 15 mar. 2015. 177 Eu adquiri o hábito de sempre andar com muita atenção, olhando pros lados, vendo se não tem nenhum conhecido tipo preso ou mulher de preso. Não é difícil cruzar com as mulheres principalmente quando eu frequento lugares, assim, digamos mais populares, tipo uma feira, determinada praia, shows gratuitos, bairros mais pobres, locais desse tipo. Aí ,se eu encontrar, fico mais atenta sempre observando a pessoa. A principal mudança foi a atenção redobrada que eu passei a ter fora do sistema [penitenciário]. Por exemplo, se eu vou para um restaurante, um bar, eu procuro ficar sentado de frente para a entrada, entendeu? Eu passei a ter mais atenção nas coisas justamente pelo fato de eu lidar com presos 392 . Ai meu deus, eu mudei muito, eu tinha uma visão muito inocente da vida, assim, de ser idealista, de acreditar nas pessoas, da questão da justiça mesmo, esse espírito. Com as experiências daqui, eu fiquei mais atenta à vida, mais esperta, até em termos de relações humanas 393 . Portanto, através da análise dos depoimentos, demonstramos a possibilidade de se enxergar a penitenciária como um lugar de aprisionamento na perspectiva do agente, já que a permanência no presídio e suas características são capazes de despertar, momentaneamente, um sentimento de aprisionamento no sujeito. Além disso, constata- se que o contato com esse ambiente termina influenciando e modificando alguns aspectos da vida desses sujeitos. Observa-se ainda que, conforme ocorre com as visitantes, cada agente vai se tornando mais ligado a um lugar da penitenciária, que é eleito de acordo com as afinidades construídas para com o lugar. Constrói-se afinidade porque se sente bem no lugar, seja porque lá descansa, come, se distrai, conversa, seja porque o lugar é uma paisagem que traz calma e tranquilidade em meio ao caos prisional. Ou ainda porque o lugar transmite a sensação de segurança em meio a um ambiente cercado de perigos iminentes. 6.3. O interno e o lugar de aprisionamento Para os internos, a penitenciária – obviamente – pode ser classificada como um lugar de aprisionamento, uma vez que lá eles estão reclusos, sob vigilância constante e de lá não podem sair, somente quando as suas penas chegarem ao fim. De fato, seus 392 ENTREVISTA, EMANUEL, Nísia Floresta, 13 jan. 2015. 393 ENTREVISTA, EMÍLIA, Nísia Floresta, 01 mar. 2015. 178 corpos estão aprisionados. Para o interno Marcos, “além do castigo ao corpo provocado pelo cárcere físico, há o castigo à mente, ocasionada pelo cárcere mental, o qual desperta sentimentos de angústia, tédio e ansiedade asfixiante 394”. Trancafiados, os internos vivenciam uma diversidade de sentimentos. Ao primeiro contato com a prisão, são normalmente tomados por um sofrimento arrebatador, já que serão obrigados a deixar para trás toda a sua vida anterior. Na visão de Marcos: “a mudança de um mundo onde nascemos e vivemos, toda a vida pregressa, agora, é substituída, por um mundo completamente diferente. Novas regras severas, com novas pessoas 395”. Assim, os apenados precisam se acostumar a uma nova vida, com novos hábitos e novas obrigações. Em geral, essa mudança é dura e de difícil aceitação. Portanto, é um ponto comum nos relatos dos apenados o sofrimento experimentado por estarem vivenciando um cotidiano de privação de liberdade numa penitenciária. Para o apenado Marcos “ser privado da liberdade, é como tirar o ar que se respira 396”, afirma ainda que o cotidiano na penitenciária é “uma visão do inferno (...) só não tem o diabo 397”. Já para o interno Felipe: “Alcaçuz não é lugar bom não. É lugar difícil de encontrar amigo que nos dê atenção. Vivo aqui desconsolado, sem visita ao meu lado 398”. Sobre o tempo de prisão em Alcaçuz, os internos Michel e Alexandre o definem com os seguintes versos: “Lembro-me com muita tristeza do tempo que lá passei. Foi tempo de aflição, pois muito que chorei 399”; “Abrindo o coração, estou preso, encarcerado, em uma grande solidão 400”. Está ainda presente no cotidiano dos internos os sentimentos de medo e a humilhação: Você tem medo de ser agredido fisicamente, medo de apanhar, você tem medo de serem roubadas as coisas, porque eles [outros internos] roubam as coisas, né. Às vezes você sai da cela, vai pra sei lá onde, eles roubam, entendeu? Dão “perdido”, então, você tem medo de ser roubado, você tem medo de apanhar, você tem medo de ser pego logo com uma infração (...) É... Eu já senti medo muito. Hoje eu já estou 394 ENTREVISTA, MARCOS, Nísia Floresta, 13 set. 2014. 395 Idem. 396 Idem. 397 Idem. 398 ENTREVISTA, FELIPE, Nísia Floresta, 14 jul. 2014. 399 ENTREVISTA, MICHEL, Nísia Floresta, 14 jul. 2014. 400 ENTREVISTA, ALEXANDRE, Nísia Floresta, 14 jul. 2014. 179 numa condição aqui né, que eu já não sinto medo, também evito estar me sentindo em casa. Bom, eu cheguei à conclusão de que o medo é a masmorra mais terrível que o ser humano pode viver, então, ninguém pode viver com medo. É preciso não ter medo e pra você não ter medo de conviver com o sistema, você precisa se adaptar a ele (...) eu fui me adaptando a me sentir humilhado, né (...) porque o agente penitenciário, às vezes, ele extrapola a função no momento em que ele sente prazer, você nota nos olhos, nas faces, né, o prazer de tratar com humilhação. Não é uma questão de segurança, é uma questão de prazer pessoal de alguns 401 . Quando se aborda essa questão dos sentimentos despertados pelo cárcere, normalmente, por motivos óbvios, há uma tendência a se fazer uma vinculação a sentimentos negativos como os apresentados anteriormente: medo, humilhação, solidão, dor, além de raiva, tédio, ódio, ira etc. E, realmente, esses são os sentimentos mais marcantes no cotidiano prisional, como vimos nos depoimentos. Todavia, é possível enxergar também sentimentos positivos ligados ao cárcere, como a amizade, a solidariedade e a esperança. É difícil falar da amizade no universo prisional, ambiente esse no qual, em geral, os reclusos desconfiam de tudo e de todos. Mas, estando submetidos a um ambiente de privação, no qual os únicos com quem conversar são os próprios colegas de cela, acabam sendo estabelecidos laços de amizade, mesmo que seja uma amizade momentânea, enquanto durar a pena. Nas intermináveis horas convivendo numa cela apertada, onde os espaços se confundem – é quase impossível ter um espaço exclusivamente privado – as intimidades são suprimidas, os pudores são relevados, tudo é coletivo. Materiais são tomados de empréstimo, experiências são trocadas, planos são combinados, lágrimas consoladas. A amizade é construída: “Naquele lugar sombrio, grandes amizades eu formei. Não quero de lá lembrar, mas esquecerei. Muitos anos de tristeza que na Penitenciaria de Alcaçuz eu passei 402”. Juntamente com a amizade, desenvolve-se o sentimento de solidariedade para com o outro companheiro de cárcere, que pode ser identificado através da análise do depoimento da agente Ísis sobre a morte da companheira de um interno dentro da penitenciária: 401 ENTREVISTA, MARCOS, Nísia Floresta, 13 set. 2014. 402 ENTREVISTA, MICHEL, Nísia Floresta, 14 jul. 2014. 180 Foi um momento bem tenso a morte dessa mulher, porque ela começou a passar mal dentro do pavilhão. Nós [as agentes] estávamos no nosso horário de descanso dentro do alojamento, quando uma colega [de trabalho] chegou muito aperreada dizendo que uma visitante estava passando muito mal. Rapidamente eu e a outra agente vestimos os uniformes e fomos pro hall [de entrada da penitenciária]. Chegando lá, lembro que a senhora realmente passava muito mal. Lembro-me dela dizer que já tinha tido um AVC. Logo pensamos que ela podia estar tendo outro AVC. O seu esposo a acompanhava e muito nervoso pedia que prestássemos socorro. Ligaram para o SAMU, mas foi informado que o socorro demoraria a chegar. Aí, a equipe masculina de serviço do dia se equipou e levou a mulher para o hospital. Quando ela foi levada já não conseguia andar. Foi colocada pelo esposo dentro da viatura com a ajuda de outro interno. Uma das agentes que tinha curso técnico de enfermagem acompanhou a mulher na viatura. Ainda chegou a fazer respiração boca a boca. Mas a senhora não resistiu e morreu no caminho do hospital. A morte dessa mulher foi uma situação, assim, bem trágica: a viatura estava levando a mulher bem rápido e acabou que furou um pneu da viatura na estrada de barro, mas ainda conseguiram andar até chegar a uma rua principal asfaltada que dá acesso às praias do litoral sul do estado. Pediram ajuda e um médico que estava passando parou para tentar ajudar. Depois, o SAMU chegou, mas não teve jeito de salvar a mulher 403 . Sobre essa ocorrência, Ísis afirma que “foi um momento muito difícil comunicar ao preso que a mulher havia falecido, ele ficou muito arrasado, mas recebeu a solidariedade dos outros internos que tentaram consolá-lo 404”. Inclusive, segundo ela, nos dias subsequentes à morte da senhora: Os internos lá do pavilhão dele ficavam trazendo informações [para os agentes] sobre como ele estava e pedindo remédios para ele. Ele ficou muito triste. Passou uns dias sem querer comer, bem arrasado mesmo, aí os companheiros do pavilhão ajudaram e ele se recuperou 405 . Portanto, observa-se que, apesar desses apenados serem capazes de cometer os mais infames crimes, ainda assim possuem um lado humano, fraterno, solidário, um senso de ajuda ao próximo. Foi através desse sentimento de solidariedade que o interno em questão conseguiu superar a dor da perda de sua companheira. Observo que os sentimentos dentro da instituição prisional ficam mais aflorados. Uma situação que não causaria tanta comoção fora da penitenciária é, às vezes, motivo de uma “enxurrada” de 403 ENTREVISTA, ÍSIS, Nísia Floresta, 15 nov. 2015. 404 Idem. 405 Idem. 181 lágrimas. Já vi interno chorar bastante ao reencontrar a mãe na penitenciária, enquanto que quando estava em liberdade nem sempre dava a atenção devida a ela. Assim como já vi interno chorar de dor alegando que estava muito doente, quando a situação nem era tão grave assim. Presenciei também algumas dores que me pareceram mais sinceras, como a do interno citado acima. Com essas dores eu me sensibilizei e fui solidária. Quando pude ofereci o meu ouvido para desabafos, uma palavra de conforto, um copo com água ou um simples medicamento. Assim como eu, outros agentes também se solidarizam com as dores sentidas pelos internos: Eu fiquei assim bem „sentida‟ com a morte dessa mulher, afinal eu presenciei o sofrimento da mulher passando mal, praticamente vi a mulher morrendo na frente do interno. Passei uns dias ainda com aquela cena na cabeça. Aí eu pensava, „poxa o cara tá preso e ainda perde a mulher, a única pessoa que vinha visitá-lo‟. Foi uma situação que tocou não só a mim, mas também as outras agentes que estavam comigo. Uma delas inclusive chegou a chorar diante da situação. A outra agente que havia acompanhado a mulher na viatura também ficou muito sensibilizada, inclusive, ela fez questão de ir ao pavilhão falar com o marido da mulher para dizer que tinha sido feito o possível para salvar a vida dela 406 . Além da solidariedade, está presente no cotidiano dos internos o sentimento de esperança, como vemos no seguinte verso: “Ninguém me visitou, mas sobrevivi. Fui forte, tive esperança 407”. Sobre esse sentimento mencionado por Michel, podemos entendê-lo como uma aposta do indivíduo na construção de um futuro melhor, no qual se apresentem novas oportunidades, através das quais o sujeito possa se desvincular do mundo do crime e, consequentemente, do universo prisional. Esse sentimento é vivenciado não só pelo apenado, mas também por seus familiares, que por vezes, acreditam na sua ressocialização e na construção de um futuro diverso do presente. Podemos relembrar aqui o caso de Marileide, mãe de um interno, que sempre se faz presente nos dias de visitas, mesmo a contra gosto. E aposta na recuperação do filho, inclusive, comparece às visitas vestindo camisetas com frases para motivá-lo. Assim como Michel, outros apenados mencionam em seus relatos esse sentimento: Estou levando a minha vida, com enorme emoção. Se amar é sofrer. Se sorrir é chorar. Talvez por trás de lágrimas, exista uma alegria de 406 Idem. 407 ENTREVISTA, MICHEL, Nísia Floresta, 14 jul. 2014. 182 ser humano. Exista uma esperança, de que tudo mude. De que todos sejam respeitados pelo que somos. E não pelo que parecemos 408 . Eu quero qualidade para me regenerar, para a sociedade voltar. Para melhor poder agir. Cultura e educação, essa é a direção, pro futuro garantir. Quero ser um homem respeitado. Exemplo de cidadão, por todos admirados. Ao pegar uma caneta e uma folha de papel, senti algo diferente, o mesmo que estar no céu. Por aqui eu vou ficando. Espero que cada vez melhorando, que é pra todos nós mudar 409 . Hoje em Alcaçuz está mais fácil sobreviver. Mas tem que ser forte pra o psicológico não abater. Pessoalmente penso muito em progredir no decorrer. Com respeito e os pés no chão eu correr. Mudar de situação e na sociedade vencer. Cuidar da minha filhinha e coisas boas fazer. E não voltar mais neste lugar a viver! 410 Nos três relatos expostos observamos a esperança na mudança. Michel espera que as coisas se modifiquem e que seja respeitado pela sociedade apesar de estar à margem dela. Felipe tem esperança numa regeneração, que o possibilite retornar à sociedade e dela ganhar respeito. Enxerga a educação como um meio de possibilitar a sua mudança de vida. No discurso de Ricardo, há esperança em conseguir progresso para “vencer na vida”, o que para ele, está ligado a ter condições de cuidar da filha e não mais se envolver com a criminalidade. Observamos, portanto, que além da vivência de sentimentos negativos ligados ao aprisionamento, no cotidiano prisional são vivenciados sentimentos positivos. Esses sentimentos que vão sendo construídos no “intramuros” da penitenciária contribuem para amenizar o sofrimento sentido pelos apenados. A visita também contribui para isso, na medida em que leva consigo alguns desses sentimentos positivos quando vai ao encontro do interno. Além disso, a própria amizade construída entre eles auxilia na diminuição do sofrimento e também no processo de conformação à situação de reclusão. A partir do momento em que vai ocorrendo essa conformação, os internos passam a explorar o espaço no qual estão aprisionados, assim, vai ocorrendo a aquisição de afinidades com o espaço, que se transforma em lugar. Semelhante ao que ocorre com os visitantes e com os agentes, os apenados vão, aos poucos, desenvolvendo sentimentos para com os lugares da penitenciária e passam a conhecê-los intimamente. Buscam maneiras de adaptá-los às suas necessidades. Logo, conhecem todos os detalhes 408 ENTREVISTA, ALEXANDRE, Nísia Floresta, 14 jul. 2014. 409 ENTREVISTA, FELIPE, Nísia Floresta, 14 jul. 2014. 410 ENTREVISTA, RICARDO, Nísia Floresta, 14 jul. 2014. 183 do pavilhão, das celas e até de áreas que não frequentam. Tudo isso se dá através de um intenso trabalho de observação, já que possuem bastante tempo ocioso para fazê-lo. Além do que muito interessa a alguns internos conhecer com uma riqueza de detalhes os lugares do presídio. Nessa lógica, são descobertos, por exemplo, lugares propícios para escavação de túneis, para espiar a rotina do presídio e para esconder materiais proibidos. Esses lugares assumem, portanto, uma grande importância para esses internos que desejam subverter a ordem e a disciplina da instituição. Essa subversão pode ocorrer pela fuga, através dos túneis cavados; pela espionagem feita através de buracos na parede para verificar a aproximação de algum agente ou ainda pelo uso de materiais não permitidos, como celulares e drogas, que são guardados em locais de difícil acesso para os agentes, nas chamadas “tocas”: Normalmente os internos fazem uma espécie de “tocas”, buracos nas paredes ou no chão para esconder os ilícitos. Também escondem próximo ao buraco do sanitário 411 , do chuveiro ou então no esgoto. Dentro dos colchões também, fazem um buraco e enfiam no meio do colchão. Tinham também o hábito de esconder na “carcaça” do ventilador 412 . Justamente em razão desse hábito dos internos, algumas regras da instituição sofreram modificações. Por exemplo, os ventiladores passaram a entrar no presídio já sem a “carcaça”, somente é permitida a entrada das partes essenciais para o funcionamento. A espessura dos colchões também foi reduzida, sendo permitida a entrada daqueles com até quatro dedos de largura. Passou a ser proibida ainda a entrada de materiais de higiene de cor branca, como sabonetes e pasta de dente, que eram espalhados nas paredes para mascarar as “tocas”. Também para coibir a posse e o uso dos materiais proibidos, passou a ser rotineira na penitenciária a realização de revista nos pavilhões, em busca de materiais que possam ter sido escondidos pelos internos nessas “tocas”. A agente Ísis narra uma dessas situações: 411 Com relação à utilização do sanitário como esconderijo, é comum que os internos – quando desconfiam da realização de uma revista – deixem o sanitário bem sujo para que os agentes tenham receio de colocar as mãos em seu interior. 412 ENTREVISTA, ÍSIS, Nísia Floresta, 15 nov. 2015. 184 Já aconteceu comigo uma situação muito nojenta. Eu estava dentro dos pavilhões, não lembro qual era, fazendo uma revista de rotina para procurar ilícitos como drogas, celulares e armas. Aí, de repente, eu meti minha mão num buraco no chão e saiu um monte de barata de lá. Eu tomei um susto, fiquei assim em pânico, porque eu morro de medo de barata, mas tive que me controlar, né. Eu não podia dentro de um pavilhão sair gritando feito louca, fazendo escândalo. Então, tive que me conter e continuar fazendo a revista, como se nada tivesse acontecido. Mas confesso que eu não consegui mais trabalhar direito só pensando nas baratas que poderiam aparecer 413 . Conforme observamos, os internos vão buscando maneiras de adaptar o espaço às suas necessidades, seja com a construção de um túnel ou uma “toca”. Assim, atribuem importância e desenvolvem ligações com os lugares construídos, por exemplo, o túnel representa a possibilidade de alcançar a liberdade e a “toca” representa um esconderijo seguro para um material que julga importante, como uma faca, um celular ou uma porção de droga. Enquanto isso, outros internos podem ter mais afinidade com lugares que remetam a lembranças dos familiares nos dias de visita, como a cama, onde recebem a companheira ou o hall do pavilhão, onde conversam com a mãe ou ainda a quadra, onde batem bola com o filho. Os internos podem ainda desenvolver essa relação de intimidade e afinidade com os lugares da instituição nos quais trabalham ou estudam, pois ao desempenhar tais rotinas acabam ocupando o corpo e a mente e esquecendo momentaneamente a situação de aprisionamento. Nessa lógica, é possível que a penitenciária seja enxergada como um lugar de trabalho por aqueles que lá desempenham atividades laborais. Do mesmo modo que pode ser a penitenciária pode caracterizada como um lugar de reencontro, para aqueles que recebem visita. O interno Marcos se enquadra nessa situação: trabalha na instituição prisional e recebe a visita de sua companheira. A partir da fala dele, observamos que ele reconhece como privilégio o fato de trabalhar na penitenciária, o que proporciona uma estadia mais “confortável”, com um pouco mais de liberdade do que os outros internos: Bom eu tenho graças a Deus a condição de estar aqui, numa condição um pouco melhor, que é a condição de prestador de serviços. Então não estou tão “achacado” nos pavilhões, não estou tão cerceado da liberdade do mundo externo (...). Aqui dentro tenho até uma certa 413 Idem. 185 liberdade, porque eu me alimento bem (...) Posso ter tempo para estudar, para ler. Então, a minha vivência aqui ela é menos dolosa, dolorosa, do que da maioria dos que estão tão aventados, humilhados nos pavilhões muito cheios. Então, isso também me propicia, eu acho que uma capacidade de manter a mente aberta, uma mente mais pensante. Uma mente pensante é uma mente não limitada 414 . Quando afirma que desfruta de certa liberdade, Marcos se refere ao fato de que pode circular livremente pela parte administrativa da instituição. Além disso, possui uma sala na qual trabalha e lá desfruta de certa privacidade. Pode ainda se alimentar da mesma comida servida aos agentes no refeitório. Assim, durante o dia a dia de trabalho na penitenciária, consegue se desligar um pouco da situação de aprisionamento, o que contribui para manter a sua mente aberta, pensante e não limitada, como ele filosofa no seu depoimento. Portanto, pela perspectiva de Marcos, também é possível enxergar a penitenciária como um lugar de trabalho, pois o mesmo desempenha atividades laborais e, inclusive, tais atividades são muito importantes para ele por terem o condão de libertar sua mente, conforme sua declaração. Nesse sentido, ele elege como melhor lugar da penitenciária a sala da enfermaria, onde trabalha, logo, esse é o lugar com o qual tem mais afinidade e onde se sente mais confortável. Na perspectiva dele, a penitenciária pode ainda ser caracterizada como um lugar de reencontro, visto que ele recebe a visita de sua companheira. Nesse lugar pode reencontrá-la nos dias de visita, sendo esse, um dos momentos mais esperados pelos internos, principalmente, porque têm a oportunidade de desfrutar de um momento íntimo com sua parceira. Esse momento é cercado de regras, a principal delas é o respeito à mulher do outro, não sendo permitido olhar diretamente e falar com ela, apenas se for extremamente necessário e com autorização. Ainda sobre o dia de visita e as regras que circundam esse momento, podemos destacar uma norma bastante curiosa, que é a proibição da masturbação no dia da visita e no dia posterior a ela. Essa regra se justificaria para evitar que os internos – ao se masturbar num lapso temporal próximo ao recebimento da visita – viessem a fantasiar com as companheiras dos outros ou ainda com os gemidos e gozos ouvidos num espaço de intimidade tão suprimida 415 . Para o recebimento das visitas, há uma preparação especial da cela. Marcos afirma que na cela dele “tem uma divisão assim no meio, digo uma divisória, um 414 ENTREVISTA, MARCOS, Nísia Floresta, 13 set. 2014. 415 ENTREVISTA, RAFAEL, Nísia Floresta, 14 mar. 2014. 186 tapumezinho e um lençol do outro lado 416”. Dessa maneira, ele divide a cela com o outro interno que recebe a visita da mãe. Nos dias de visita íntima, a preparação é diferente: “eu ponho mais lençol e tal e fico ali, temos uma certa intimidade restrita, assim né, é.. ninguém pode fazer aiaiuiui, né, não pode falar aiiiii... (...) É sem barulho, chega ao êxtase, mas aperta só os olhos 417”. 416 Idem. 417 Idem. 187 CONSIDERAÇÕES FINAIS Por fim, conclui-se que a penitenciária de Alcaçuz, enquanto espaço multifacetado, pode ser caracterizada como um espaço de objetividades, no qual imperam a ordem e a disciplina, uma vez que são estabelecidas rotinas a serem cumpridas pelos internos e a submissão a uma vigilância constante. Essa penitenciária pode também ser enxergada como um lugar permeado pelas subjetividades de seus sujeitos. Nesse sentido, identificamos a existência de três lugares principais: o lugar de reencontro (pela perspectiva do visitante), o lugar de aprisionamento (pela perspectiva do apenado) e o lugar de trabalho (pela perspectiva do agente penitenciário). Todavia, observamos que há um “cruzamento” entre os lugares, principalmente no tocante à perspectiva do apenado, que pode enxergar claramente a penitenciária pela ótica dos três lugares. Isso ocorre no caso em que o interno recebe visita e trabalha na instituição. Demonstramos também a possibilidade de se enxergar a penitenciária como um lugar de aprisionamento na perspectiva do agente penitenciário e também do visitante, já que a permanência no presídio e suas características são capazes de despertar um sentimento de aprisionamento no sujeito. Observa-se ainda que os sujeitos vêm ocupando essa instituição prisional, buscando conformá-la às suas necessidades pessoais, a fim de tornar mais agradável a sua estadia na instituição. Assim, à medida que vão buscando essa conformação espacial, acabam se apropriando dos lugares, ou seja, desenvolvendo com eles uma relação, por vezes modificando-os e atribuindo-lhes sentidos, os quais justificam a sua presença nele e a sua relação com ele. Sendo possível identificar um sentido principal para cada sujeito integrante (reencontro para o visitante, aprisionamento para o interno e trabalho para o agente), assim como sentidos secundários. E, esses lugares, conforme demonstrado, terminam por despertar nos sujeitos uma infinidade de sentimentos, tanto positivos como negativos. Sendo esses responsáveis por provocar a eclosão de muitos dos problemas cotidianos da penitenciária, como fugas, mortes e rebeliões. Conforme apresentado, a penitenciária de Alcaçuz, nos últimos anos, tem vivenciado uma situação de grave crise, iniciada por uma rebelião no ano de 2015, que alcançou grandes proporções e foi capaz de alterar a ordem e as rotinas prisionais. Ao se 188 refletir sobre os motivos que levaram esses internos a se rebelar, esbarramos em problemas históricos, que nos permitem concluir que esse colapso vivenciado na penitenciária é latente há muito tempo. Conforme verificamos, há bastante tempo o presídio sofre com problemas estruturais, que foram se agravando devido à ausência de investimentos por parte do poder público. Soma-se a isso a grande carência de servidores. Assim, constatamos um completo descaso dos governantes para com os apenados e o atendimento de suas necessidades básicas. Essa situação acaba afetando também agentes e visitantes, que sofrem igualmente as consequências. Diante de uma situação caótica instalada, em que possuem os direitos violados, os apenados acabam organizando movimentos de contestação, conforme eles mesmos justificam nas correspondências trocadas com a direção em momentos de crise. E os resultados disso são graves: destruição da estrutura física da penitenciária, pessoas feridas, fugas e até mortes. Destacamos, portanto, a urgente necessidade de fornecimento de um tratamento mais humano a esses homens. Observa-se ainda que os aprisionados na penitenciária de Alcaçuz são, em geral, jovens pobres e com baixa instrução escolar. Conforme se constatou esse modelo de punição está inserido na lógica da penalidade sob a égide neoliberal, que teve sua origem nos Estados Unidos em fins dos anos 1970 e início dos anos 1980, tendo se propagado para diversos países, incluindo o Brasil. Podemos atribuir a essa penalidade um caráter pornográfico, conforme conceitua Wacquant, uma vez que ela se desenvolve como teatro moral e espetáculo político 418 . Assim, essa lógica de punição se constitui numa maneira de punir desigual e contribui para a difusão da insegurança social, causando, por vezes, injustiças. Assim, constata-se a opção pela punição rigorosa à parcela mais carente da sociedade, aquela que está à margem, conforme nos diz a música dos Racionais MC‟s: “Cadeia? Guarda o que o sistema não quis. Esconde o que a novela não diz”419. 418 WACQUANT, Loïc.“A penalidade neoliberal em ação: Uma resposta aos meus críticos”. In: Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 5, n. 2, p. 265-273, jul./dez. 2013. 419 Trecho da música Diário de um detento. 189 REFERÊNCIAS: 1) Obras teóricas e bibliografia geral: ANGROSINO, Michael. Etnografia e observação participante. Porto Alegre: Artmed, 2009. BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008. BARBOSA, Rafael; NASCIMENTO, Paulo. Valdetário Carneiro: a essência da bala. Natal: Editora Tribo, 2013. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. _____. (Org.). A miséria do mundo . Rio de Janeiro: Vozes, 1997. _____. Ofício de sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Rio de janeiro: Vozes, 2007. _____. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro: Zahar, 2008 CASCUDO, Luis da Câmara. História da Cidade do Natal : IHGRN, 1980. _____. 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Disponível em: http://adcon.rn.gov.br/ACERVO/DPE/DOC/DOC000000000007149.PDF. 5) Entrevistas: ENTREVISTA, ALEXANDRE, Nísia Floresta, 14 jul. 2014. ENTREVISTA, DAIANE, Nísia Floresta, 01 mar. 2015. ENTREVISTA, EMANUEL, Nísia Floresta, 13 jan. 2015. ENTREVISTA, EMÍLIA, Nísia Floresta, 01 mar. 2015. ENTREVISTA, EVANDRO, Nísia Floresta, 16 jan. 2016. ENTREVISTA, FELIPE, Nísia Floresta, 14 jul. 2014. ENTREVISTA, FRANCISCO, Nísia Floresta, 16 jan. 2016. ENTREVISTA, GISÉLIA, Nísia Floresta, 11 mar. 2015. ENTREVISTA, GRAÇA, Nísia Floresta, 15 fev. 2015. ENTREVISTA, GUSTAVO, Nísia Floresta, 16 jan. 2016. ENTREVISTA, ÍSIS, Nísia Floresta, 15 nov. 2015. ENTREVISTA, LAILA, Natal, 10dez. 2014. ENTREVISTA, MARA, Nísia Floresta, 12 set. 2015. ENTREVISTA, MARCOS, Nísia Floresta, 13 set. 2014. ENTREVISTA, MARIA, Nísia Floresta, 01 mar. 2015. ENTREVISTA, MARILEIDE, Nísia Floresta, 15 fev. 2015. ENTREVISTA, MARTA, Nísia Floresta, 15 mar. 2015. ENTREVISTA, MICHEL, Nísia Floresta, 14 jul. 2014. ENTREVISTA, NATÁLIA, Nísia Floresta, 16 dez. 2015. 200 ENTREVISTA, RAFAEL, Nísia Floresta, 14 mar. 2016. ENTREVISTA, RICARDO, Nísia Floresta, 14 jul. 2014. ENTREVISTA, SHEILA, Nísia Floresta, 16 dez. 2015. ENTREVISTA, VIVIANE, Nísia Floresta, 24 jan. 2016. 201 ANEXOS 202 Anexo I – Relatos e Versos dos apenados Cordel e Crônicas Vamos começar nossa cultura popular Alcaçuz foi construído para desafogar Antes só existia neste lugar Dunas, matas à campinar. Muitos animais para caçar Viviam pessoas pra se alimentar Apareceu Alcaçuz, só para atrapalhar. Porque a população deixou de caçar E agora o povo vive a vagar E eu arrependido de está neste lugar Porque em Alcaçuz é um lugar ruim de morar. Sistema prisional, Alcaçuz A penitenciaria foi construída por uma reivindicação Como abaixo assinado da população Que de tanto ouvir nos jornais Contar os crimes da antiga detenção. Após crimes bárbaros acontecido pensando numa solução Houve um pacto dos presos: Demi, Paulo Queixada e Naldinho do Mereto Muitas fugas e vidas em destruição Através das drogas e bebidas faziam coisas sem razão. Já em outras épocas Alcaçuz vivia esta mesma condição Mas a inteligência do sistema esta mudando esta situação. Hoje em Alcaçuz está mais fácil sobreviver Mas tem que ser forte pra o psicológico não abater Pessoalmente penso muito em progredir no decorrer Com respeito e os pés no chão eu correr Mudar de situação e na sociedade vencer Cuidar da minha filhinha e coisas boas fazer E não voltar mais neste lugar a viver! As melhoras de um detento Alcaçuz não é lugar bom não é lugar difícil de encontrar amigo que nos dê atenção, vivo aqui desconsolado sem visita ao meu lado. Ainda não terminou tem a colônia do japonês da pra imaginar aonde é que vim parar. Agora estou aqui na vizinhança tentando confiança ganhar, para eu poder voltar 203 para minha terra natal e queria iniciar escola para me valorizar, e poder assim sonhar inteligência honrosa! O modelo escolhido para escola funcionar tem que salientar, eu quero qualidade para me regenerar para a sociedade voltar. Para melhor poder agir, cultura e educação essa é a direção, pro futuro garantir, Quero ser um homem respeitado Exemplo de cidadão, por todos admirados, ao pegar uma caneta e uma folha de papel Senti algo diferente, o mesmo que está no céu. Por aqui eu vou ficando Espero que cada vez melhorando, Que é pra todos nós mudar. Lembrança da cadeia Lembro-me com muita tristeza do tempo que lá passei Foi tempo de aflição, pois muito que chorei. Mas me vem uma tristeza quando me lembro dos que lá deixei Naquele lugar sombrio grandes amizades eu formei Não quero de lá lembrar, mas esquecerei. Muitos anos de tristeza que na Penitenciaria de Alcaçuz eu passei Ninguém me visitou, mas sobrevivi Fui forte tive esperança até que um dia de lá sai Hoje estou em liberdade me sinto muito feliz. Muito obrigado por me ouvir, Aqui deixo os meus versos para que possam refletir! Desabafo É um grande privilégio, Causa enorme emoção Meu nome é Marcos Alexandre, Conhecido como gigante É muito gratificante É grande satisfação, Falar da minha vida Falar da minha emoção É difícil falar da vida. 204 Abrindo o coração, Estou preso encancerado, Em uma grande solidão. Fiz poucos amigos Maiores inimigos. Estou levando a minha vida, Com enorme emoção. Se amar é sofrer Se sorrir é chorar Talvez por trás de lágrimas, Exista uma alegria de ser humano Exista uma esperança, de que tudo mude. De que todos sejam respeitados pelo que somos E não pelo que parecemos Não deixe que o mundo domine Mas que você um dia possa ser dominado. 205 Anexo II – Termo de suspensão de visitas TERMO DE DECLARAÇÃO SUSPENSÃO DE VISITAS Eu,_____________________________________________________ RG nº ________________SSP/RN e CPF nº __________________, declaro para os devidos fins que solicitei da direção desta Unidade Prisional a suspensão da visita da minha companheira, _____________________________________. Ciente de que não poderei restabelecer a visita da mesma. OBSERVAÇÃO: ART 157 inciso 2º (do regimento interno), Somente será autorizado o registro de um (a) visitante, ficando vedadas as substituições, salvo se ocorrer separação ou divórcio, no decurso do cumprimento de pena, obedecido o prazo mínimo de 6 (seis) meses com investigação do Serviço Social e decisão da Direção da Unidade Prisional ______________________________________________________________ NOME NISÍA FLORESTA/ RN, _____DE __________________DE _______ 206 Anexo III – Lista de alimentos Alimentos Visita Social Quantidade Observação Açúcar 01 kg Frutas Cortadas Sem Casca Mamão, Melancia, Melão, Banana Água Mineral 02 litros descongelada Biscoito Doce 03 unidades Sem recheio Biscoito Salgado 03 unidades Bolo 250g Doce goiaba/caju/banana 300g Leite em pó 500g Margarina 250g Mortadela ou presunto 250g fatiado Queijo 200g fatiado Salgado 04 unidades tamanho médio Suco em Pó 04 pacotes Maracujá, morango ou graviola Refrigerante 02 litros Guaraná ou fanta Sazon ou Caldo Knnor 5 unidades de cada Achocolatado 500g Bolacha do tipo broa branca ou preta 500g Higiene e limpeza Quantidade Observação Água Sanitária 01 litro Barbeador (descartável) 01 unidade Cotonete 01 caixa Cortador de unhas 01 unidade sem suporte pontiagudo Creme dental colorido 01 unidade Desodorante em creme 01 unidade Detergente líquido 01 unidade Escova dental de cabo curto 01 unidade Papel higiênico 01 pacote com 04 unidades Sabão em pó 500g Sabonete líquido 01 unidade Isqueiro transparente 01 unidade Shampoo 01 unidade Desinfetante 500 ml Vestimentas, cama e banho Quantidade Observação Camiseta branca com manga 02 unidades Cor branca, sem detalhes Short azul claro 02 unidades Cor azul claro, sem detalhes Cuecas 02 unidades Cores claras 207 Lençol solteiro 02 unidades Cores claras Sandália tipo havaiana 01 unidade Cor clara Toalha de banho 01 unidade Azul ou branca Cigarro 06 carteiras Fumo Boró 02 pacotes Visita íntima Quantidade Observação Refeição com sobremesa 02 kg de comida pronta 03 vasilhas no máximo Refrigerante 02 litros Guaraná ou fanta Preservativo 02 unidades 208 Anexo IV – Recomendações sobre a vestimenta a ser utilizada pelas visitantes da Penitenciária de Alcaçuz.  Camiseta branca (NÃO pode babylook)  Calça legging (de malha, cor clara - lisa ou estampada)  Saia comprida (de malha, cor clara - lisa ou estampada)  Sutiã OU TOP de cor clara (sem aspas, Sem enchimento, sem metal)  Calcinha de cor clara (sem forro preto)  Sandália estilo havaianas (cor clara e sem enfeites)  Sem joias, bijuterias, cintos, piercing ou megahair. Autorizado alianças  Prendedor de cabelo só de elástico (NÃO pode broche)  Não é permitida a entrada trajando vestido  Não entra menstruada  Gestantes tem entrada permitida até os 7 meses  CRIANÇAS: roupas de cor clara.