UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS GRADUAÇÃO EM DIREITO RAUL VICTOR RODRIGUES DO NASCIMENTO A HUMANIDADE E OS DESUMANOS: UM ESTUDO SOBRE OS OBSTÁCULOS NA EFETIVAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS NATAL/RN 2017 RAUL VICTOR RODRIGUES DO NASCIMENTO A HUMANIDADE E OS DESUMANOS: UM ESTUDO SOBRE OS OBSTÁCULOS NA EFETIVAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS Monografia apresentada ao Curso de Direito sob a orientação do Professor Mestre Fábio Wellington Ataíde Alves como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em Direito, do Centro de Ciências Sociais Aplicadas, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Orientador: Fábio Wellington Ataíde Alves. NATAL/RN 2017 “Canalizamos a violência vingativa no sistema penal, mas nos silenciosamos quando o poder punitivo rompe os diques de contenção jurídica do direito penal e eclode em massacres, cujos autores são precisamente os que, segundo o discurso, têm a função de preveni-los1”. Eugenio Raúl Zaffaroni First they came for the Socialists, and I did not speak out - Because I was not a Socialist. Then they came for the Trade Unionists, and I did not speak out - Because I was not a Trade Unionist. Then they came for the Jews, and I did not speak out - Because I was not a Jew. Then they came for me - and there was no one left to speak for me2. Poema intitulado “First they came…”, de autoria de Martin Niemöller “En este lugar maldito donde reina la tristeza, no se castiga el delito, se castiga la pobreza3”. José Revueltas, poema que o revolucionário supostamente escreveu nas paredes de sua cela na prisão de Lecumberri 1 ZAFFARONI, Eugenio Raul. A Palavra dos Mortos: conferências de criminologia cautelar. Rio de Janeiro: Saraiva, 2012. P. 383. 2 Tradução livre: Primeiro vieram pelos socialistas, e eu não disse nada – porque eu não era um socialista. Então vieram pelos sindicalistas, e eu não disse nada – porque eu não era um sindicalista. Então vieram pelos judeus, e eu não disse nada – porque eu não era um judeu. Então vieram por mim – e não havia mais ninguém para falar por mim. 3 Tradução livre: Neste lugar maldito onde reina a pobreza, não se castiga o delito, se castiga a pobreza. AGRADECIMENTOS A mamãe, que me deu o gosto pelas letras e pela leitura, por representar, para mim, a pessoa que mais me ajudou a ser o que sou (apesar dos gritos). A papai, que é um humanista autêntico (desses que são sem saber que são), e que me inspira sempre a ser sempre melhor com as pessoas do que sou hoje. A Aninha, por ser a melhor irmã que alguém poderia ter, por ser minha cúmplice leal e por sempre me ajudar quando eu preciso de ajuda. A minha tia, avó e mãe (ter duas é para poucos), por desde cedo moldar em mim esse respeito pela humanidade do outro, que as vezes é tão difícil de ter. A toda a minha família, que, sem dúvidas, é a melhor família do mundo (apesar dos gritos, de novo, e de todo mundo ser um pouco meio louco). אני מודה למשפחה הישראלית שלי: אשר שטיינר, אלי מרסיאנו ולינדה כהן. תודה שנתתם לי בית בישראל וכל כך הרבה אהבה! עם שלושתכם, יכולתי להבין את המשמעות האמיתית של ישראל - ומה יהיה יהודי. !אני מודה! ואני מקווה שנוכל לחלוק את השבת יחד בקרוב To Addameer – I must say shukran iktir for everything I’ve learned with and from you. Every little thing I’ve seen in Palestine made me the human being I am today. And I must also say thanks because you guys made me learn how to brew the best coffee ever. A William (Juninho) Los, o melhor (e mais abusado) revisor que qualquer pessoa poderia ter. A meus amigos e amigas, agradeço pela atenção e pela amizade sincera que temos. Não vou citar o nome de cada um porque não quero esquecer ninguém (a lista é grande), mas tenho certeza de que minha consideração não é algo fácil de esconder, portanto, saibam que eu agradeço todos vocês por ter tomado parte ao longo desta jornada (que já nem parece tão longa assim). A todos e todas que fizeram do Núcleo Penitenciário do Motyrum uma das razões pelas quais cheguei até aqui – e pelas quais sou o que sou hoje. As dificuldades foram muitas, mas tenho certeza de que fizemos a diferença onde nos foi permitido trabalhar. A Juliana Melo, por ser um anjo na minha vida, e na vida de tanta gente além de mim. A Fábio Ataíde, por ter me dado a mão no primeiro artigo que escrevi, cinco anos atrás. A Ryanny, por ter sido a pessoa que escreveu esse primeiro artigo e por ter colocado na minha cabeça que eu era um pesquisador. As pessoas que fazem o FRONT, pelo que todos nós fizemos e pelo que todos nós ainda vamos fazer! A Gabriela Wanderley, por ser quem é e por ter me ajudado a colocar meu nome na lista de aprovados do exame da Ordem dos Advogados do Brasil. A Rodrigo, tão peculiar quanto eu, que me escuta com atenção e sempre me deu os melhores conselhos. A Luísa, por me dar lições de como eu deveria ser que muitas vezes fazem mais sentido do que eu gostaria. A Ana Cristina (in memoriam), a fonoaudióloga que me mostrou que eu podia entrar e sair de onde eu quisesse. A vocês do CPS/UA, por fazer de ambientes hostis lugares mais iluminados. Aos colegas de trabalho do ADJ, pelos bons momentos e pelo aprendizado valioso. RESUMO A ineficácia dos direitos humanos apresenta uma problemática relevante para a contemporaneidade, na medida em que se manifesta em todas as crises humanitárias dos últimos séculos. Como, porém, assegurar a eficácia dos direitos humanos? Este é um dilema antigo e persistente que merece um estudo aprofundado, na medida em que os direitos humanos compõem hoje o cerne de políticas internacionais e nacionais voltadas para a dignidade da pessoa humana. Num primeiro momento, foi realizado o estudo do conceito de direitos humanos, em sua associação com a noção de humanidade, e sua trajetória material dentro da história das sociedades humanas. Em seguida, houve o estudo dos processos sociais que propiciam a violação de direitos humanos, para, logo depois, analisar as violações em dois casos emblemáticos: o das prisões brasileiras, com a criminalização da pobreza, e o da prisão política de palestinos por Israel. A metodologia empregada foi a bibliográfica, com pesquisa na literatura especializada nacional e estrangeira, em conjunto com a pesquisa etnográfica, levando em consideração a vivência do autor nas prisões do Brasil e de Israel. Em reconhecimento às peculiaridades da pesquisa, o trabalho teve caráter predominantemente transdisciplinar. Como resultados, identificou-se a predominância de diversos processos sociais de desumanização que incitam violações de direitos e a participação do Estado na manutenção e na promoção dessas mesmas formas de discriminação, essencialmente fundamentadas no reconhecimento do outro como “não humano” e, portanto, indignos de ser considerados como sujeitos de direitos humanos. Palavras-chave: Direitos Humanos; Humanidade; Efetividade; Conflito Israel-Palestina; criminalização da pobreza no Brasil. ABSTRACT The ineffectiveness of human rights presents a relevant problem under contemporaneity, as it manifests itself in all humanitarian crises of the last centuries. Nevertheless, how is it possible to ensure effectiveness of human rights? This is an old and persistent dilemma that deserves an in-depth study, comprehending that human rights are the heart of international and national policies focused on the dignity of the human person. Initially, the concept of human rights was studied in its association with the notion of humanity, and its material trajectory within the history of human societies. After that, the study of social processes that induces violation of human rights was proceeded by a study of violations in two emblematic cases: the case of Brazilian prisons, with the criminalization of poverty, and the case of Palestinian’s political imprisonment by Israel. The methodology used was the bibliographical one, with research within national and foreign specialized literature, accompanied with ethnographic research, considering author’s personal experience in Israeli and Brazilian prisons. In recognition of the peculiarities of this research, the work was predominantly transdisciplinary. As a result, it was identified the predominance of several social processes of dehumanization that incites violations of human rights and the State’s participation in maintenance and promotion of these forms of discrimination, essentially based on the recognition of the other as "nonhuman" and, therefore, unworthy of being considered a subject of human rights. Keywords: Human rights; Humanity; Effectiveness; Israel-Palestine Conflict; Brazilian criminalization of poverty. SUMÁRIO 1. PREFÁCIO..........................................................................................................................11 2. DIREITOS HUMANOS COMO DIREITOS DA HUMANIDADE...............................13 2.1. Criticismo: da relativização cultural à problematização de humanidade..................17 2.2. Direitos humanos como direitos da humanidade: propondo uma nova forma de conceituar direitos humanos..................................................................................................21 3. A INVENÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: UMA ANÁLISE SOBRE A CONCEPÇÃO DE HUMANIDADE AO LONGO DO TEMPO.......................................23 3.1. Considerações iniciais: direitos humanos como direitos do outro...............................24 3.2. Afeto: a compreensão de humanidade das relações familiares....................................26 3.3. Religião: a compreensão de humanidade dos religiosamente dignos..........................30 3.4. Capital: a compreensão de humanidade dos detentores dos meios de produção.......34 3.5. Nacionalismo: a compreensão de humanidade da supremacia nacional e racial......38 3.6. A compreensão universal de humanidade.....................................................................42 3.7. Considerações finais.........................................................................................................44 4. A FÁBRICA DOS DESUMANOS E AS ENGRENAGENS DA DESUMANIDADE..45 5. ISRAEL: PRESOS POLÍTICOS PALESTINOS NA TERRA SANTA........................55 5.1. Do lado israelense do muro.............................................................................................58 5.2. Do lado palestino do muro...............................................................................................64 5.3. Os presos políticos palestinos e as prisões administrativas israelenses.......................67 6. BRASIL: PRISÕES E MASSACRES NA TERRA DO CARNAVAL..........................72 6.1 Prisões brasileiras: moedores de carne e humanidade..................................................78 6.2. A monstruosa anatomia do genocídio brasileiro...........................................................84 6.3. Alcaçuz..............................................................................................................................95 7. EPÍLOGO..........................................................................................................................101 REFERÊNCIAS....................................................................................................................103 11 1. PREFÁCIO Os direitos humanos ocupam o centro de muitas das grandes crises vivenciados pelas diferentes sociedades ao redor do mundo, seja no passado, seja durante a contemporaneidade, seja no futuro provável – e, em sua maioria, as crises suscitam debates profundos sobre a efetividade (ou a inefetividade) dos direitos humanos, porque, em geral, são iniciadas pela dificuldade ou pela completa incapacidade de efetivação desses direitos por parte da sociedade ou do Estado. Quantos conflitos, guerras e crises teriam sido evitadas se direitos humanos houvessem sido respeitados, efetivados e garantidos anteriormente? Todos nós trazemos essa resposta na consciência. A necessidade de efetivar direitos humanos é antiga e remete aos primeiros capítulos do conceito dentro da modernidade, mas continua sendo uma necessidade premente dentro de todas as sociedades humanas contemporâneas, em que, pela primeira vez, se reconheceu o quanto é importante garantir esses direitos, tão básicos e inerentes à pessoa humana, depois das medidas desumanizadas adotadas, perpetradas e endossadas por Estados cuja missão deveria ser, teoricamente, zelar pela vida e pela coexistência pacífica de seres humanos. Inicialmente, devo advertir que certas partes deste trabalho terão uma motivação fortemente política centrada na promoção de direitos humanos, que vai transparecer ao longo das próximas páginas. Acredito que todo escrito carrega consigo as crenças e convicções do escritor e, portanto, penso que, por uma questão de honestidade, é importante deixar claro que algumas das páginas seguintes expressam as minhas crenças pessoais na importância dos direitos humanos e em sua própria universalidade, o que, contudo, não representa um óbice ao caráter científico do trabalho, como se verá adiante. Nestes termos, o objetivo de meu trabalho é apresentar as dificuldades que se apresentam a par das tentativas de efetivação de direitos humanos – por que é tão difícil concretizá-los? Ainda, busco definir quais são os processos que perpetuam as dificuldades e os obstáculos no reconhecimento de direitos humanos – o que ocorre para que esses direitos humanos quase sempre sejam tolhidos, bloqueados e violados? Estas são as perguntas que pretendo responder ao longo das próximas páginas. Para poder responde-las da melhor forma possível, vou recorrer à literatura, nacional e estrangeira, que verse sobre direitos humanos e sobre os processos sociais associados com o binômio efetivação/violação desses direitos. Meu trabalho pretende ser fortemente transdisciplinar – ultrapassando a pesquisa interdisciplinar e multidisciplinar, desejo abordar 12 as questões que norteiam este estudo por meio de uma integração de diferentes áreas do conhecimento, porque acredito que qualquer esforço realizado de forma distinta (privilegiando uma disciplina em detrimento de outras) seria falho e não poderia responder os questionamentos em sua totalidade (ou o mais próximo dela). Neste sentido, as presentes páginas irão conter referências à sociologia, ao direito, à antropologia, à economia, à histórica, à psicologia, à teologia, entre outros campos do conhecimento humano, o que com certeza contribuirá com uma riqueza de conhecimento muito útil na construção deste estudo. Em se tratando da nomenclatura empregada, não adotarei a grafia que geralmente é utilizada na escrita de determinados conceitos, como “Direito” e “Nação”, por entender que essa forma de grafia não é essencialmente necessária – e também por uma questão de igualdade entre diferentes áreas do conhecimento. Apesar disso, empregarei o uso da inicial maiúscula em “Estado” por uma questão semântica – não para engrandecer esse instituto, mas para individualiza-lo e responsabiliza-lo no desempenho de suas funções, que muitas vezes comportam a violação de direitos humanos. Assim sendo, destinarei o primeiro capítulo a apresentar os direitos humanos em sua acepção moderna, além de sua trajetória histórico-legal recente. Ademais, esboçarei uma conceituação própria em conjunto de uma proposta de classificação, ambas centradas na relação de direitos humanos com a própria humanidade. Logo depois, no segundo capítulo, realizarei uma reconstrução meramente hipotética da trajetória histórica dos direitos humanos, desde as primeiras comunidades humanas até a contemporaneidade, indicando como cada forma de organização social formulava sua própria forma de definir a “humanidade”. No terceiro capítulo, me debruçarei sobre os diferentes processos sociais e estatais de conformação e estruturação do que é e do que não é considerado humano, implicando, assim na criação ou na eliminação de obstáculos à efetivação dos direitos humanos. Por fim, no quarto e no quinto capítulo, apresento as violações associadas às prisões e à criminalização da pobreza no Brasil, e às prisões políticas de palestinos em Israel, onde irei inserir relatos e observações de minha vivência pessoal, o que dota este trabalho de um caráter etnográfico, porquanto fui extensionista nas prisões brasileiras durante todos os meus cinco anos de graduação, e também vivenciei a realidade das prisões israelenses e da luta palestina contra a ocupação, no verão de 2016 e no inverno de 2015. A razão pela qual escolhi esses dois casos específicos não é outra senão a familiaridade com que possa tratar das duas realidades, por estar seguro o suficiente com o caso brasileiro e o caso israelense/palestino, optei por essa análise, que será colmatada entre a pesquisa bibliográfica e os registros pertinentes de minha vivência. 13 Por fim, ressalvo que a linguagem empregada será técnica, mas tomarei o cuidado de manter o texto acessível, de fácil leitura e que permita a compreensão pelo maior número de pessoas, porque acredito que o conhecimento produzido dentro de uma universidade pública deve ser potencialmente compreendido por todos – incluindo, obviamente, aqueles que estão além de seus muros. 2. DIREITOS HUMANOS COMO DIREITOS DA HUMANIDADE “Nehuatl nictlazotla in centzontototl icuicauh, nehuatl nictlazotla in chalchihuitl Itlapaliz ihuan in ahuiacmeh xochimeh; zan oc cenca noicniuhtzin in tlacatl, nehuatl nictlazotla4.” Poema atribuído a Nezahualcóyotl5, mas provavelmente de autoria desconhecida Este trabalho irá tratar essencialmente de direitos humanos. Por esse motivo, reconheço a necessidade de escrever algumas poucas páginas que possam servir como uma forma de apresentar (ou reapresentar) o que são, afinal, esses direitos. Particularmente, penso que os direitos humanos tenham existido de forma material e substancial em todas as fases da história humana (inclusive antes da formação dos Estados, na esteira do pensamento de John Locke6), fato que procuro demonstrar no capítulo seguinte. Apesar disso, é preciso assinalar que o conceito de direitos humanos é um conceito recente, fruto das mudanças sociais, políticas, econômicas e culturais que se sucederam ao fim da Segunda Guerra Mundial. As origens mais remotas do conceito moderno de direitos humanos se encontram nos pensadores do início da Era Moderna, em meio a intensos debates sobre a condição humana, ao exemplo dos chamados “direitos naturais7” de Locke e do estudo de David Hume sobre a 4 Em espanhol: “Yo amo el canto del centzontli, ave de las cuatrocentas voces, yo amo el color del jade y el embriagante perfume de las flores, más, por sobre todas las cosas, yo amo a mi hermano el hombre”. Tradução Livre: Eu amo o canto do zenzontle, pássaro das quatrocentas vozes, eu amo a cor do jade e o embriagante perfume das flores, mas sobre todas as coisas, eu amo o meu irmão, o homem. 5 Apesar da autoria do poema ser contestada, Nezahualcóyotl, o Rei-Poeta, foi o governante da cidade-estado de Texcoco que estabeleceu, em conjunto com os líderes das cidades de Tlacopan e México-Tenochtitlan, a Tríplice Aliança do vale do México, última confederação de Estados indígenas antes da Conquista espanhola e do massacre violento que se seguiu. Reverenciado até os dias de hoje, Nezahualcóyotl foi um entusiasta das ciências e das artes, autêntico humanista indígena, cujo legado é fonte de orgulho para o povo mexicano. 6 LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil e Outros Escritos. Petrópolis: Vozes, 1994. 7 Ibidem. 14 “natureza humana8”. Além disso, é muito importante mencionar o momento político de forte contestação das estruturas estatais da época, mantidas na vigência do sistema político- ideológico hegemônico das monarquias absolutistas – resultando nos movimentos revolucionários que sacudiram a América e a Europa nos anos seguintes. Em seu surgimento, porém, a concepção de direitos humanos não possuía o mesmo sentido que possui hoje, o que provavelmente também será observado no futuro, porque a conceituação de direitos humanos não é estática e, muito menos, estanque – ela está atrelada à conjuntura de seu momento histórico específico e às demandas dos sujeitos que exercem protagonismo dentro de sua própria época. O professor Roland Burke9, por exemplo, trata das modificações na compreensão de direitos humanos impostas pelos países do chamado Terceiro Mundo durante o período de descolonização que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial, em que a sociedade internacional teve de reconhecer a existência de um direito humano à autodeterminação dos povos, algo que as potências imperialistas muito provavelmente não desejavam quando encabeçaram o processo de declaração e reconhecimento dos direitos previstos na Carta das Nações Unidas (o que para eles deve ter tido o efeito, com o perdão da expressão, de um “tiro no pé”) - para Burke, “decolonization was the most powerful shaping influence on the human rights program between 1950 and 197910”. A ideia de direitos humanos está, ainda, intrinsecamente relacionada à dignidade da pessoa humana – isto significa dizer que os direitos humanos são o conjunto de direitos básicos que permitem ao indivíduo viver em condições mínimas de dignidade. A conceituação de direitos humanos delineada pelo professor Antonio Enrique Pérez Luño detém muitas similaridades com a definição que apresentei anteriormente, razão pela qual transcrevo-a integralmente a seguir: Los derechos humanos aparecen como un conjunto de facultades e instituciones que, en cada momento histórico, concretan las exigencias de la dignidad, la libertad y la igualdad humana, las cuales deben ser reconocidas positivamente por los ordenamientos jurídicos a nivel nacional e internacional11. 8 HUME, David. Tratado da Natureza Humana. São Paulo: UNESP, 2009. 9 BURKE, Roland. Decolonization and the Evolution of International Human Rights. Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 2010. 10 Ibidem. Tradução livre: Descolonização foi a mais poderosa influência formadora no programa de direitos humanos entre 1950 e 1979. 11 LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucion. 6 ed. Madrid: Tecnos, 1999. p. 48. Tradução livre: Os direitos humanos surgem como um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, dão concretude às exigências de dignidade, liberdade e igualdade humana, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional. 15 Esses direitos também podem ser entendidos como princípios morais: ideias, ideais e crenças que envolvem a pessoa humana individual e a própria humanidade como um todo unitário. Como forma de ilustrar as afirmações, recorro ao seguinte excerto retirado da extremamente didática “The Human Rights Encyclopedia” [tradução livre: A Enciclopédia dos Direitos Humanos]: They are a set of ideas and beliefs that all people are endowed with certain privileges and responsibilities. The privileges include everything from the right to speak openly without fear, to the right to decent shelter and healthcare. The responsibility associated with this idea is the shared obligation that we all must defend one another’s human rights. Each person has a set of human rights. Yet there are some people who take these rights away. We have an obligation to protect not only our own rights, but those of others. Finally, rights are attached to people. All people have the same rights. Just as there is a moral prohibition against murder, there is also a moral imperative that requires us to defend the human rights of all men, women, and children. Not all people share this view. But then, not all people obey laws against murder12. Em suma: os direitos humanos da contemporaneidade se associam fortemente aos valores e crenças que concernem à vida, ao livre pensamento, à igualdade e à isonomia, à liberdade religiosa, à livre expressão, ao direito de ir e vir, ao direito do devido processo legal, à autodeterminação dos povos, à proibição da escravidão e da tortura, entre outros. Não posso, porém, deixar de mencionar os intensos debates que se desenrolam atualmente, tanto no nível internacional quanto no nível nacional, que, em geral, tratam do reconhecimento de uma gama variada de direitos: o direito à informação, à comunicação e à tecnologia, à liberdade sexual, à igualdade de gênero, à liberdade reprodutiva, ao mercado, ao meio ambiente, entre tantos outros. Esses direitos são, em sua essência, direitos frágeis, que muitas vezes também são excessivamente vulneráveis e necessitam da intervenção direta do Estado para que sejam reconhecidos, efetivados e respeitados – seja através de uma omissão (os chamados direitos 12 LEWIS, James; SKUTSCH, Carl. The Human Rights Encyclopedia. vol. 01. Nova York: M. E. Sharpe Inc., 2001. p. 15. Tradução livre: Eles são um conjunto de ideias e crenças segundo as quais todas as pessoas são dotadas de certos direitos e deveres. Os direitos incluem tudo, desde o direito de falar abertamente e sem medo ao direito à moradia decente e à saúde. O dever associado a esta ideia é a obrigação compartilhada de que todos nós devemos defender os direitos humanos uns dos outros. Cada pessoa é dotada de direitos humanos. No entanto, existem algumas pessoas que lutam contra esses mesmos direitos. Temos a obrigação de proteger não só os nossos direitos, mas também os direitos dos outros. Ainda, os direitos estão vinculados às pessoas: todos têm os mesmos direitos. Assim como existe uma proibição moral contra o assassinato, há também um imperativo moral que nos obriga a defender os direitos humanos de todos os homens, mulheres e crianças. Nem todas as pessoas compartilham essa visão. E nem todas as pessoas obedecem às leis contra o assassinato. 16 negativos, em que todos, incluindo o Estado, devem respeitar determinados limites individuais13), seja através de uma ação afirmativa (os direitos positivos, cuja efetivação requer o empenho indispensável do Estado e da sociedade14). Dentro dos direitos humanos positivos, penso que seja imperativo mencionar os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, que surgiram após a promulgação da Carta das Nações Unidas em 194515 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos16, que foi proclamada logo depois, em 1948, estabelecendo a estrutura de organizações e organismos (ao exemplo da ONU Mulheres e da UNESCO) que viriam a compor o sistema universal de direitos humanos. Paralelamente, é ainda importante mencionar os sistemas regionais de direitos humanos – o Sistema Interamericano, o Sistema Africano e o Sistema Europeu – que vêm desempenhando a importante e difícil função de efetivar e reconhecer direitos humanos nos mais recônditos extremos do mundo. Existem doze documentos internacionais basilares que declaram e reconhecem direitos humanos num nível primário para os sistemas de direitos humanos. São as Convenções de Genebra (quatro, no total, que versam sobre o direito humanitário) e os oito principais tratados internacionais adotados em nível universal, as Convenções das Nações Unidas: sobre os Direitos da Criança (1); sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2); sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (3); sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (4); sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias (5); Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (6); em conjunto com o 13 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. 14 Ibidem. 15 Conforme declara a Carta das Nações Unidas: Artigo 1. Os propósitos das Nações unidas são: 1. Manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim: tomar, coletivamente, medidas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz; 2. Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal; 3. Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião; e 4. Ser um centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução desses objetivos comuns. 16 A Declaração enuncia: Preâmbulo Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo; [...] Considerando que é essencial a proteção dos direitos do Homem através de um regime de direito, para que o Homem não seja compelido, em supremo recurso, à revolta contra a tirania e a opressão; 17 Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (7) e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (8). Os direitos humanos reconhecidos dentro do ordenamento jurídico de um país (em especial, por sua constituição) são conhecidos pela doutrina como direitos fundamentais17 – o que redundou no surgimento da denominação “direitos humanos fundamentais”. É importante mencionar que parte dos pesquisadores da ciência jurídica apresentam certa resistência à associar a antiga concepção de estados soberanos com a obrigação de oferecer reconhecimento e efetivar direitos humanos, por entender que esses direitos, por sua natureza supostamente “internacional”, não produzem efeitos e nem devem ser observados pelo Estado soberano quando não estão incluídos no rol de direitos humanos fundamentais18. 2.1 Criticismo: da relativização cultural à problematização de humanidade Como toda criação humana, a conceituação dos direitos humanos também é alvo de críticas, muitas das quais são importantes de fato, razão pela qual não creio que seja adequado deixar de tratar dessas críticas ao longo desta pesquisa. O criticismo aos direitos humanos pode ser resumido a três críticas específicas. A primeira diz respeito à negação do princípio da soberania estatal, consagrado durante a Era Moderna e, até hoje, considerado um dos fundamentos do Estado. A segunda crítica versa sobre a imposição de valores ocidentais e judaico-cristãos (que estariam supostamente no cerne dos direitos humanos) ao resto do mundo, não-ocidental e não-judaico-cristão. A terceira trata da própria polêmica ao redor da ideia de “natureza humana”. Quando ao dilema aparente entre direitos humanos e soberania estatal, reforço o que escrevi anteriormente quando abordei de forma breve a denominação de “direitos fundamentais”, mencionando a existência de segmentos da ciência jurídica que defendem uma existência dos direitos humanos condicionada ao reconhecido estatal e ao processo de incorporação das prescrições internacionais ao direito interno19. Trata-se de uma crítica que chama atenção, porque, de fato, há uma incoerência gritante entre o grande número de 17 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 5. ed. São Paulos: Atlas, 2014. 18 Ibidem. 19 Ibidem. 18 Estados violadores de direitos humanos e a quantidade de Estados que se comprometeram com o respeito a esses mesmos direitos ao assinar seus tratados e convenções internacionais20. Este tema, o da primazia do direito internacional, não é meu objeto de pesquisa, razão pela qual creio que seja suficiente esclarecer que este debate apresenta um prognóstico favorável aos direitos humanos dentro da academia. Contudo, acredito que as violações de direitos humanos perpetradas pelos Estados aconteçam, em parte (e somente em parte), porque a concepção de soberania absoluta se mantém invicta, quase inquestionável dentro dos ideais promovidos pelos Estados – sendo ainda legitimada pelos pesquisadores e cientistas que decidem deliberadamente defender a manutenção dessa dicotomia. Tendo em mente que o ato de produzir conhecimento é um ato político, acredito que defender conscientemente a soberania absoluta do Estado seja, também, a defesa da conjuntura sociopolítica fundamentada na estatização da violência – cujo uso passa a ser o elemento constitutivo da política, conforme bem observado por Michel Foucault dentro dos dispositivos disciplinares e reguladores da vida cotidiana21. Encerro a discussão fazendo uso dos ensinamentos de Sérgio Resende de Barros, para quem não deve haver qualquer separação entre direitos humanos e direitos fundamentais, porque a existência dessa dicotomia retira humanidade ao direito fundamental e fundamentalidade ao direito humano22. Por sua vez, a crítica dos direitos humanos como imposição dos valores ocidentais e judaico-cristãos tem sua origem nos fundamentos morais que orientaram a concepção do conceito desses direitos, notavelmente moldada sobre uma lógica ocidental, calcada nos valores da sociedade cristã e capitalista. Nestes termos, os direitos humanos não contemplariam as particularidades culturais das distintas sociedades dispersas ao redor do mundo, o que inviabilizaria a sua pretensão de universalidade. A questão versa sobre o sentimento de superioridade exercido pelos ocidentais – considerando que os direitos humanos nascem internacionalmente no auge do imperialismo – e pode ser descrita por meio da concepção de relativismo cultural, primeiramente esboçada pelo antropólogo Franz Boas em 1887, entendendo que a cultura “is not something absolute, but that it is relative, and that our ideas and conceptions are true only so far as our civilization [na acepção de cultura] goes”.23 Sintetizando a ideia de Boas, uma cultura não 20 LEWIS, James; SKUTSCH, Carl. The Human Rights Encyclopedia. vol. 01. Nova York: M. E. Sharpe Inc., 2001. 21 FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 22 BARROS, Sérgio Resende de. Direitos Humanos: paradoxo da civilização. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. 23 BOAS, Franz. Museums of Ethnology and their classification. Science, Nova York, n. 228, vol. 9, p. 589, 1887. P. 589. Disponível em: . Acesso em: 02 nov. 2017. Tradução 19 pode ser interpretada por meio de outra – não há hierarquias entre elas, nem uma cultura que seja melhor do que outra, porque o intérprete sempre emitirá o seu juízo sobre determinada cultura partindo da sua cultura particular. No contexto de globalização, o relativismo cultural entra em conflito com a pretensão de universalidade dos direitos humanos, porque o universalismo desconsidera as particularidades e singularidades culturais ao impor ao mundo as suas “verdades”, oriundas do pensamento ocidental-capitalista e dos valores judaico-cristãs. Trata-se de um panorama concatenado ainda no conflito ideológico entre Ocidente e Oriente, que Slavoj Žižek descreve de forma dúplice, com a criação de um ocidental na mente de um oriental e a criação de um oriental na mente de um ocidental24. Edward Said, por sua vez, retratará o conflito de forma inigualável ao escrever que, para os ocidentais, [...] os orientais e os árabes são crédulos, “sem energia e iniciativa”; [...] os orientais não sabem caminhar numa estrada ou num pavimento (suas mentes desordenadas não compreendem o que o inteligente europeu apreende imediatamente, que as tradas e os pavimentos são feitos para caminhar); os orientais são mentirosos contumazes, são “letárgicos e desconfiados”, e em tudo opõem-se à clareza, à franqueza, e à nobreza da raça anglo-saxônica [...], o Oriental é descrito como algo que se julga (como um tribunal), algo que se estuda e descreve (como num currículo), algo que se disciplina (como numa escola ou prisão), algo que se ilustra (como num manual de zoologia). O ponto é que em cada um desses casos o Oriente é contado e representado por estruturas dominadoras. [...] O Oriente era visto como se estruturado pela sala de aula, pela corte criminal, pela prisão, pelo manual ilustrado. O Orientalismo é, portanto, o conhecimento do Oriente que coloca as coisas orientais na aula, no tribunal, na prisão ou no manual, para escrutínio, estudo, julgamento, disciplina ou governo25. Penso que esta seja, de fato, uma consideração importante que requer a atenção de todos aqueles que veem nos direitos humanos um instrumento de promoção de igualdade e dignidade. Para tanto, é necessário repensar, ressignificar e reestruturar esses direitos, no sentido de que possam ser universalizáveis sem desempenhar uma função de opressão ou imperialismo – trata-se, portanto, da necessidade de que a própria prestação dos direitos humanos seja mantida em padrões humanizados, capazes de contemplar seus sujeitos em todas as suas singularidades e peculiaridades. livre: [A cultura] não é algo absoluto, mas relativo; nossas ideias e concepções só são verdadeiras no que diz respeito à nossa civilização. 24 ŽIŽEK, Slavoj. Violência. São Paulo: Boitempo, 2014. 25 SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 71-74. 20 O professor Alessandro Baratta chegou a uma conclusão semelhante ao analisar a pauta feminista e sua realização com a crítica do direito, asseverando a importância da inclusão de novas formas de pensamento crítico dentro do saber já organizado e constituído, com o objetivo de identificar as estruturas de dominação que legitimam e são legitimadas pelo conhecimento estabelecido e consagrado. Trata-se, para Baratta, de um processo importantíssimo que desconstrói para reconstruir, que desmistifica as grandes narrações da ciência e da cultura dominante não para se refugiar em uma narrativa de validade limitada no tempo e no espaço, [...] mas, sim, para reconstruir um conhecimento que, sem negar as conquistas da ciência moderna, vai além das distorções da mesma em prol de projetos de dominação [...] tornando-se, desse modo, indispensável alimento teórico das alianças e das lutas para a emancipação e o desenvolvimento humanos26. A última crítica a ser analisada diz respeito à “natureza humana” que reveste a subjetividade (e – por que não? – o cerne essencial) dos direitos humanos. A conceituação consagrada pela doutrina tem na natureza humana uma das razões de ser dos direitos humanos: para João Baptista Herkenhoff, os direitos humanos são os direitos dos seres humanos “por sua própria natureza humana, pela dignidade que a ela é inerente. São direitos que não resultam de uma concessão da sociedade política, pelo contrário, são direitos que a sociedade política tem o dever de consagrar e de garantir27”, enquanto, para José Castán Tobeñas, os direitos humanos são os direitos da “persona humana – considerada tanto en su aspecto individual como comunitario – que corresponden a ésta por su propia naturaleza (de esencia, a un mismo tiempo, corpórea, espiritual y social)” 28. A natureza humana ocupa, então, uma posição determinante dentro dos fundamentos dos direitos humanos, razão pela qual sofre críticas acentuadas na medida em que a própria existência de uma “natureza humana” é questionável, além das dificuldades prementes em expandir o valor de igualdade para todos os seres humanos, o que inviabiliza a visualização de uma “natureza humana” comum a todos os indivíduos, sem exceção. O professor Alain de Benoist sintetiza esta crítica adiante: 26 BARATTA, Alessandro. Ética e Pós-Modernidade. In: Ester Kosovski (Org.). Ética na Comunicação. Rio de Janeiro: Mauad, 1995. p. 35-36. 27 HERKENHOFF, João Baptista. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Editora Acadêmica, 1994. p.30. 28 TOBAÑES, José Castán. Los Derechos del Hombre. Madrid: Reus Editorial, 1976. p. 13. Tradução livre: “os direitos da pessoa humana – considerada tanto em seu aspecto individual como comunitário – que correspondem à esta por sua própria natureza (de essência corpórea, espiritual e social, simultaneamente). 21 Cette démarche se heurte à de très grandes difficultés, à commencer par le fait qu'il n'existe pas de consensus sur la – nature humaine –. Au cours de l'histoire, la notion même de “nature” a fait l'objet des définitions les plus contradictoires. Pour les Anciens, la nature humaine ordonne les individus au bien commun. Pour les Modernes, elle légitime leur droit de poursuivre n'importe quelle fin, si bien qu’ils n'ont fondamentalement en commun que ce droit. En outre, une fois qu'on a démontré qu'il existe une nature humaine, on n'a nullement démontré qu'il en découle que l'homme a des droits au sens que la doctrine des droits de l'homme donne à ce mot29. Neste ponto, introduzo o pensamento do professor John Rawls sobre os direitos humanos, exposto de forma brilhante ao longo das páginas do livro “O Direito dos Povos”30, onde Rawls aborda uma concepção de direitos humanos essencialmente voltada para os ideais de paz e justiça social (a de uma “utopia realista”). Para John Rawls, os direitos humanos são as normas mínimas das instituições políticas e das relações internacionais – e, portanto, são as fontes de legitimidade do Estado e das relações entre Estados31. Apesar de reconhecer as dificuldades na efetivação de direitos humanos dentro de um padrão de igualdade entre todos os sujeitos, John Rawls acredita que esta não é uma realidade impossível, ou restrita aos países do Ocidente (como muitos autores defendem, e que eu, particularmente, considero uma ideia problemática), mas que apenas depende da existência de certas condições de direito e justiça: a de um sistema social que não é tirânico, que respeita minimamente os direitos e liberdades individuais, ouvindo e dialogando com os dissidentes, promovendo a paz e os direitos humanos – o sistema ideal que Rawls compreende como característico dos “povos decentes32”. Preciso reconhecer que não existe nenhuma verdade absoluta dentro da polêmica erguida ao redor do que se entende por “natureza humana”. Penso, porém, que o quadro descrito por John Rawls apresente um prognóstico promissor – o de uma “natureza humana” que se afirma dia a dia através das instituições básicas – que não necessariamente necessitam ter caráter oficial – das sociedades humanas. Na verdade, acredito que este seja mais um dos capítulos da trajetória dos direitos humanos ao longo da história, o que me remete, uma vez 29 DE BENOIST, Alain. Au-delà des Droits de L’Homme: pour deféndre des libertés. Lille: Krisis, 2016. p. 20. Tradução livre: Esta abordagem está repleta de grandes dificuldades, começando pelo fato de que não há consenso sobre a "natureza humana". Ao longo da história, a própria noção de "natureza" tem sido objeto das definições mais contraditórias. Para os antigos, a natureza humana leva os indivíduos ao bem comum. Para a modernidade, a natureza humana legitima o direito individual de buscar o que quer que seja, de modo que os indivíduos somente possuam este direito em comum. Para além disso, uma vez que se tenha comprovado a existência de fato de uma natureza humana, não houve qualquer demonstração de que o homem é possuidor dos direitos no sentido dado pela doutrina. 30 RAWLS, John. O Direito dos Povos. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 31 Ibidem. 32 Ibidem. 22 mais, à necessidade de que a academia assuma um posicionamento não obrigatoriamente uníssono, mas concernente quanto ao reconhecimento da humanidade dos seres humanos como característica que venha a nos fazer iguais em virtude de nossas diferenças. 2.2 Direitos humanos como direitos da humanidade: propondo uma nova forma de conceituar direitos humanos Ao desempenhar o papel de pesquisador escrevendo a monografia de sua graduação, me preocupo com a função que tenho de criar conhecimento – para além da mera reprodução dos pesquisadores que me precedem no tempo. É por isso que, com humildade, apresento minha concepção particular de direitos humanos a seguir, construída, em grande parte, por meio da sintetização das ideias anteriores e em conjunto com minha vivência particular nas prisões do Brasil e de Israel. Os direitos humanos são aqueles que pertencem à humanidade como um todo, porque garantem a todos os seres humanos uma existência minimamente digna, capaz de lhes proporcionar o melhor desenvolvimento de suas capacidades, não estando de forma alguma condicionados ao reconhecimento de um Estado ou à declaração formal em um documento legal – são direitos que existem em função da humanidade e dela não se dissociam, sob circunstância alguma.: enquanto houver seres humanos, haverá direitos humanos. Ou, ainda, de forma simplificada: os direitos humanos são, portanto, os direitos da humanidade, que proporcionam aos seres humanos os componentes necessários para a afirmação de sua condição humana inerente. Como conclusão deste fragmento do trabalho, realizo a propositura de uma classificação que melhor compreende minha conceituação desses direitos, deixando de lado, intencionalmente, as classes mais técnicas e pormenorizadas (como a classificação em gerações ou dimensões, entre outras). Neste sentido, os direitos humanos são: Perpétuos, porque se mantêm na mais absoluta continuidade ao longo do tempo, não havendo nenhuma causa capaz de impedir a sua eficácia, salvo o exercício de outro direito humano; Impreteríveis ou de eficácia plena, porque exercem todos os seus efeitos, com quem quer que seja (inclusive o Estado), em qualquer condição e independentemente de reconhecimento, declaração, previsão ou regulamentação; 23 Irrenunciáveis, porque, como não se pode renunciar à própria condição humana, não é possível que se renuncie a um desses direitos; Essenciais, porque são o cerne mais básico da vida humana, sem os quais esta não seria possível em condições mínimas de dignidade; Indivisíveis e interdependentes, porque a completude da vida humana só é assegurada com o respeito dos mais diversos direitos humanos básicos; Universais, porque pertencem a todos os seres humanos, não admitindo qualquer discriminação; Naturais, porque são inerentes à própria humanidade e, portanto, estão indissoluvelmente relacionados à sua própria existência. Incessantes, porque não deixam de existir em função do não-reconhecimento promovido por um Estado, ou ainda quando não houve declaração oficial de sua existência. 3. A INVENÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: UMA ANÁLISE SOBRE A CONCEPÇÃO DE HUMANIDADE AO LONGO DO TEMPO Os direitos humanos são conceituados, de forma geral, como aqueles que pertencem a todo e qualquer ser humano em função da sua humanidade própria. Uma análise superficial da história talvez permita concluir que os direitos humanos sejam uma invenção recente, que apenas se manifestou depois do fim da Segunda Guerra Mundial, após os horrores do Holocausto – segundo essa mesma análise superficial da história, a afirmação que fiz anteriormente pode ser considerada uma afirmação absurda, tendo em vista os incontáveis genocídios, massacres e discriminações que ocorreram desde o surgimento da sociedade humana, na mais completa obliteração dos “direitos humanos” de suas vítimas. Considero, porém, que esta seja uma análise importante, pese-se a sua superficialidade. Entender que a história dos direitos humanos está repleta de grandes violações é fundamental para compreender a evolução dos direitos humanos ao longo da trajetória das sociedades humanas, justamente porque são essas terríveis violações quem demonstram que o núcleo do conceito permaneceu quase inalterado ao longo de milênios – o que mudou ao longo do tempo não foi a compreensão de “o que são os direitos humanos”, mas de “quem é humano”. É essa trajetória que pretendo percorrer ao longo das próximas páginas. Não se trata, porém, de uma rota direta, mas de uma estrada repleta de veredas obscuras, vias diferentes 24 que vão dar no mesmo lugar e caminhos que podem levar de volta ao início. A antropologia, a sociologia, a filosofia, psicologia social e a história (em especial, a história do direito) servirão como mapa e bússola nesta jornada, que começa exatamente no mesmo lugar em que nós começamos a ser o que somos. 3.1 Considerações iniciais: direitos humanos como direitos do outro A real efetivação dos direitos humanos talvez seja o maior desafio vivenciado pelo direito atualmente. As dificuldades, em grande parte, se devem a uma determinada característica específica dos direitos humanos: a de que, muitas vezes, esses direitos irão defender e proteger determinadas minorias sociais que não eram, até recentemente, consideradas como sujeitos de direitos. Para explicar este fato específico (além das análises que farei adiante), irei recorrer ao estudo do Outro. O conceito do Outro é dessemelhante e oposto aos conceitos do “Eu”, do “Nós” e do “Mesmo”. A concepção do Outro está atrelada à ideia de alteridade, que trata da socialização humana por meio do convívio entre o “Eu” e “Outro”, sendo, segundo o antropólogo Gilberto Velho, força motriz e expressão33 do caráter social humano. Ainda segundo Velho, a ideia do Outro reforça “que a diferença [entre “Eu” e “Outro”] constitui a vida social, à medida que esta efetiva-se através das dinâmicas sociais. Assim sendo a diferença é, simultaneamente, a base da vida social e fonte permanente de tensão e conflito34”. A alteridade é, assim sendo, a interação entre o “eu” e o “outro”, a contato entre o “interior” e o “exterior”, que conformará a identidade do sujeito, moldada por meio da distinção entre a parte íntima do indivíduo e a parte correspondente ao mundo externo, como bem defende Lev Vygotsky35. Para o pensamento do psicanalista Jacques Lacan, interpretado pelo filósofo Slavoj Žižek, o conceito comporta mais um fato notável: a existência do Grande Outro36, que pode ser considerado como The symbolic order, society’s unwritten constitution, is the second nature of every speaking being: it is here, yet it remains ultimately impenetrable – I can never put it in front of me and grasp it. It is as if we, subjects of language, talk and interact like puppets, our speech and gestures dictated by some nameless all-pervasive agency. Does this mean that, for Lacan, we human individuals 33 VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. 6. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1996. 34 Ibidem. p. 16. 35 VYGOSTKY, Lev. Formação Social da Mente. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991. 36 LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. 25 are mere epiphenomena, shadows with no real power of our own, that our self- perception as autonomous free agents is a kind of user’s illusion blinding us to the fact that we are tools in the hands of the big Other that hides behind the screen and pulls the strings? There are, however, many features of the big Other that get lost in this simplified notion. […] In spite of all its grounding power, the big Other is fragile, insubstantial, properly virtual, in the sense that its status is that of a subjective presupposition. It exists only in so far as subjects act as if it exists. Its status is similar to that of an ideological cause like Communism or Nation: it is the substance of the individuals who recognize themselves in it, the ground of their whole existence, the point of reference that provides the ultimate horizon of meaning, something for which these individuals are ready to give their lives, yet the only thing that really exists are these individuals and their activity, so this substance is actual only in so far as individuals believe in it and act accordingly37. Para Lacan, então, a noção de “Outro” não se confunde com o conceito de “grande Outro”, porque este último é a textura da subjetividade humana, de onde são provenientes as normas, expectativas, direitos, proibições, significados, e tantas outras manifestações da estrutura social38 – talvez seja correto admitir, portanto, que o “grande Outro” atue no controle das ações do “Eu” através dos valores construídos e internalizadas por força da cultura em que o “Eu” está inserido. Acredito firmemente que esta seja uma questão central na eficácia dos direitos humanos: os mais diversos países comportam as mais diversas culturas, o que implica numa multidão de valores culturais e esta, por sua vez, numa relativização de valores culturais e morais. Isto muitas vezes representa uma grande fragilidade para o reconhecimento de direitos humanos. Busco os ensinamentos de Philip Zimbardo para ressaltar um fenômeno específico que, penso eu, está no âmago de todas as crises humanitárias vivenciadas pela humanidade: 37 ŽIŽEK, Slavoj. How To Read Lacan. Nova York: W. W. Norton & Company, 2006. p. 8-10. Tradução livre: A ordem simbólica, a constituição não-escrita da sociedade, é a segunda natureza de cada ser falante: está aqui, mas ainda assim permanece impenetrável – eu não posso colocá-la em frente de mim e agarrá-la. É como se nós, sujeitos de linguagem, conversássemos e interagíssemos como fantoches, nosso discurso e gestos ditados por algum operador omnipresente. Isso significa que, para Lacan, nós, indivíduos humanos, somos meros epifenômenos, sombras sem poder real próprio, que nossa auto percepção como agentes livres e autônomos é uma espécie de ilusão do grande Outro, que nos cega ao fato de que somos ferramentas nas mãos do grande Outro que se esconde atrás da tela e puxa as cordas? Há, no entanto, muitas características do grande Outro que se perdem nesta noção simplificada. [...] Apesar de todo o seu poder de base, o grande Outro é frágil, insubstancial, propriamente virtual, no sentido de que seu status é o de um pressuposto subjetivo. Ele existe somente na medida em que os sujeitos atuam como se existisse. Seu status é semelhante ao de uma causa ideológica como o comunismo ou a nação: é a substância dos indivíduos que se reconhecem nele, o fundamento de toda a sua existência, o ponto de referência que fornece o horizonte final do significado, algo para o qual esses indivíduos estão prontos para sacrificar suas vidas, ainda que a única coisa que exista sejam esses indivíduos e a atividade deles, essa substância, então, somente é real na medida em que os indivíduos acreditam nela e com ela agem de acordo. 38 LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. 26 A desumanização é o conceito central em nossa compreensão da “desumanidade do homem com o homem”. A desumanização ocorre sempre que alguns seres humanos consideram outros seres humanos excluídos da ordem moral de ser uma pessoa humana. Os objetos desse processo psicológico perdem sua condição humana aos olhos dos desumanizadores. Ao identificar certos indivíduos ou grupos como estando fora da esfera humana, os agentes desumanizadores suspendem a moralidade que pode normalmente governar ações razoáveis para com seus semelhantes. A desumanização é um processo central no preconceito, no racismo e na discriminação. A desumanização estigmatiza os outros, atribuindo-lhes uma “identidade estragada”. [...] Sob tais circunstâncias, torna-se possível que pessoas normais, moralmente justas, e até mesmo frequentemente idealistas realizem atos de crueldade destrutiva. Não corresponder às qualidades humanas de outras pessoas automaticamente facilita as ações desumanas39. Apesar da existência de diplomas legais que reconheçam e declarem direitos humanos que pertencem a todos, como lidar com o fenômeno da desumanização? É difícil responder. 3.2 Afeto: a compreensão de humanidade das relações familiares As primeiras comunidades humanas estavam firmemente consolidadas sobre vínculos familiares, laços consanguíneos e relações de parentesco. Não é difícil entender o motivo: a família é a primeira instituição social que o ser humano conhece, logo após o nascimento, e é por meio da família que as primeiras normas sociais são ensinadas ao indivíduo. As condições primitivas de segurança, alimentação e organização social foram os fatores que moldaram as primeiras comunidades humanas em pequenos grupos essencialmente familiares, regidos por relações de afeto. Esse tipo de organização social se calcava principalmente no que o professor Axel Honneth chamou de Teoria do Reconhecimento, especificamente em relação à primeira esfera das relações sociais: a do amor. Segundo Honneth, numa síntese muito breve, essas relações primárias são tecidas dentro das famílias (não importa a forma de configuração familiar, que é amplamente variável de cultura para cultura) desde o nascimento do indivíduo, estando estruturadas ao redor da simpatia, do afeto, da atração-mútua e do reconhecimento da 39 ZIMBARDO, Philip. O Efeito Lúcifer. Rio de Janeiro: Record, 2012. p. 430. 27 autonomia e da independência do outro40. Precisamente, são as relações afetivas tecidas entre pais e filhos, cônjuges, amigos e parentes que permitem o reconhecimento da autonomia individual através da confiança que se cria e se mantém por intermédio das relações afetivas41. Para o professor Axel Honneth42, o processo de reconhecimento se inicia com o nascimento da criança e, nos meses iniciais, se limita à relação entre mãe e filho, quando a criança começa a identificar o mundo ao seu redor, chegando ao ponto de ruptura em que diferencia a mãe de si mesmo: é aqui que nasce a autonomia e a independência do indivíduo, quando a criança começa a construir a perspectiva de que a mãe é um ser independente, também passa a experimentar confiança nos cuidados maternos e familiares – é essa capacidade que Axel Honneth acredita ser a mais básica no desenvolvimento da moralidade e o alicerce fundamental das relações sociais entre adultos43. Essas comunidades iniciais muito provavelmente foram regidas por costumes, a primeira expressão do direito dentro da história das sociedades humanas (um direito não escrito, essencialmente oral), mantidas pela prática reiterada e bem aceita de determinados atos dentro do convívio social, conservados pela tradição oral e responsáveis pela coesão social das pequenas comunidades, regidas pelo reconhecimento afetivo e pelas relações de parentesco. Quanto aos costumes, recorro às observações do professor Bronisław Malinowski, que, embora sejam alvo de críticas relacionadas especialmente à sua visão de cultura, permitem demonstrar a existência desse direito alicerçado no costume junto aos grupos sociais primitivos, como bem assinala ao relatar que as comunidades primitivas [...]têm uma classe de regras compulsórias, sem nenhum caráter mítico, não enunciadas “em nome de Deus” nem impostas por nenhuma sanção sobrenatural, mas providas de uma força aglomeradora puramente social. [...] A força do hábito, a reverência pela autoridade tradicional e um apego sentimental a isso, o desejo de satisfazer a opinião pública – tudo se combina para fazer com que o costume seja obedecido pelo próprio mérito. [...] De modo geral, as regras são seguidas porque sua utilidade prática é reconhecida pela razão e comprovada pela experiência. Outras recomendações de como portar-se no convívio44. 40 HONNETH, Axel. Luta Pelo Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Rio de Janeiro: Editora 34, 2003. 41 Ibidem. 42 Ibidem. 43 Ibidem. 44MALINOWSKI, Bronisław. Crime e costume na sociedade selvagem. Brasília: Editora UnB, 2003. p. 44. 28 Para que a comunidade se perpetuasse, suas narrativas mitológicas precisavam ser contadas e recontadas ao longo do tempo, o que acontecia principalmente de forma oral, considerando que essas narrativas eram responsáveis por forjar e reforçar os laços entre os diversos integrantes da comunidade, justamente porque serviam para gerar a autoidentificação com o grupo e, em consequência, estimular o sentimento individual de pertencimento ao corpo social. É exatamente neste ponto que observo a manifestação mais evidente da primeira forma de compreender a “humanidade” esboçada ao longo da história: a compreensão de que somente é humano aquele que pertence à comunidade específica, o “parente” – uma compreensão que se fundamenta necessariamente sobre os laços consanguíneos, reais ou simbólicos, entre os membros de um mesmo grupo ou “grande família”. Trata-se, especificamente, da compreensão de humanidade atrelada ao período histórico dos humanos caçadores e coletores, o que corresponde, segundo Ernest André Gellner45, ao primeiro dos três períodos que compõem a história humana. Essa compreensão, contudo, não é estanque, nem muito menos imutável: se, por um lado, está muito evidente nas comunidades que adotam a endogamia (casamentos restritamente realizados entre membros do mesmo grupo), irá se tornar cada vez mais maleável quando a comunidade passa a permitir a exogamia, o que não só ocasiona o aumento populacional e a diversidade dentro do grupo, mas também admite uma flexibilização (por meio do casamento) no entendimento do que é considerado “parente” e, portanto, humano. Devo alertar, ainda, que é plenamente possível que a consideração de humanidade sofra mudanças: sob uma miríade de fatores, quem é considerado humano hoje pode deixar de ser assim considerado amanhã. Acredito que o trabalho do antropólogo Ioan Lewis seja de especial importância para a formulação desse entendimento. Lewis centrou sua obra na sociedade somali, fortemente baseada em comunidades, e escreveu a seguinte passagem sobre as consequências da Guerra Civil de 199146 sobre a relação entre as comunidades e seus membros: That such exogamic preferences are not static aspects of culture or social organization but, on the contrary, reflect wider socio-political circumstances 45 GELLNER, Ernest. Nações e nacionalismo. Lisboa: Gradiva, 1993. O filósofo e antropólogo Ernest Gellner considera que a história humana se divide em três períodos: o caçador/coletor, o agrário e o industrial, especificamente caracterizados com base nas características socioeconômicas e nos meios de produção próprios de cada período. 46 A Guerra Civil Somali tem forte relação com as comunidades que compõem o tecido social da Somália. Siad Barre, o ditador militar somali, deu causa ao conflito quando começou a perseguir e atacar grupos dissidentes fortemente associados aos clãs que se opunham ao governo ditatorial. 29 (which may change over time) was poignantly illustrated in the prolonged blood-bath of inter-clan fighting which accompanied the collapse of the Somali state in 1991. Clan loyalties epitomized in the formation of clan militias, were intensified to an unprecedented degree and, in areas formerly characterized by clan heterogeneity, with people of different clans living together harmoniously and inter-marrying, marriage outside one’s own clan became the exception rather than, as formerly, the rule. Indeed, in the devastated capital, Mogadishu, women who had married outside their our clan found themselves at a serious disadvantage, they and their children being disowned and left unprotected by both sets of kin. Insecurity required maximum clan solidarity, including now clan endogamy rather than exogamy47. De forma semelhante, o genocídio de Ruanda – ocorrido entre 7 de abril e 15 de julho de 1994 – demonstra a instabilidade extrema da compreensão de humanidade. Dentro das relações sociais, diretamente influenciadas por contextos socioeconômicos, a compreensão de humanidade passa a existir dentro de categorias oscilantes sob a perspectiva de comunidades distintas. Em Ruanda, um dos hutus que levou o genocídio à cabo descreveu que a pior dos episódios que presenciou foi “matar o meu vizinho; costumávamos beber juntos e seu gado pastava na minha grama. Ele era como um parente48”. Esse relato também evidencia a questão da Teoria do Reconhecimento abordada por Axel Honneth49, demonstrando um rompimento na confiança mútua estruturada através das relações afetivas de uma comunidade. Ambos os relatos reforçam o quanto uma mesma compreensão de humanidade baseada nas relações entre comunidades distintas pode sofrer modificações ao longo do tempo. Devo frisar, ainda, que essa compreensão (assim como as seguintes) foi descrita em moldes genéricos – e por isso, também devo mencionar expressamente que cada compreensão pode possuir peculiaridades diversas, tão inerentes às próprias peculiaridades das diferentes sociedades humanas. 47 LEWIS, Ioan Myrddin. Blood and Bone: call of kindship in Somali society. Lawrenceville: The Red Sea Press, 1994. p. 51. Tradução livre: O fato de que as preferências exogâmicas não sejam aspectos estáticos da cultura ou da organização social, mas, pelo contrário, refletem circunstâncias sociopolíticas mais amplas (que podem mudar ao longo do tempo) foi ilustrado de forma pungente no banho de sangue prolongado do conflito interclã que ocorreu em conjunto com o colapso do estado da Somália em 1991. As lealdades de clã simbolizadas na formação de milícias foram intensificadas a um grau sem precedentes e, em áreas anteriormente caracterizadas pela heterogeneidade de clãs, com pessoas de diferentes clãs vivendo juntos harmoniosamente e casando-se, casar-se fora do próprio clã tornou-se a exceção em vez de, como antigamente, a regra. De fato, na capital devastada, Mogadíscio, as mulheres que se casaram fora de seu clã encontraram-se em uma séria desvantagem – elas e seus filhos foram repudiados e deixados desprotegidos por ambos os parentes. A insegurança exigia a máxima solidariedade do clã, incluindo agora a endogamia do clã em vez da exogamia. 48 ZIMBARDO, Philip. O Efeito Lúcifer. Rio de Janeiro: Record, 2012. p. 34. 49 HONNETH, Axel. Luta Pelo Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Rio de Janeiro: Editora 34, 2003. 30 3.3 Religião: a compreensão de humanidade dos religiosamente dignos Foi a religião quem ensinou ao direito escrito a engatinhar. As primeiras normas jurídicas escritas são também normas de natureza religiosa, o que coloca em evidência a relação íntima travada entre o direito e a religião. As crenças religiosas foram fundamentais para que nossos ancestrais se organizassem em grupos sociais coesos – hoje se acredita que o surgimento das pinturas rupestres e dos primeiros sepultamentos rituais foram tão importantes para o estabelecimento das sociedades quanto o desenvolvimento da tecnologia. Contudo, o advento das religiões provavelmente não veio acompanhado de um grau complexo de organização, que só seria alcançado muito tempo depois. O conceito de religião está longe de ser consensual. O professor Émile Durkheim50 acreditava que a religião é um sistema unificado de crenças e práticas relacionadas com coisas sagradas – que, por sua vez, estavam separadas do cotidiano e às vezes proibidas, em virtude da existência de crenças e práticas capazes de unir aqueles que nelas acreditam dentro de uma única comunidade moral. Durkheim ainda defendia que as coisas sagradas não se limitavam aos espíritos e deuses – na verdade, as coisas sagradas podiam ser absolutamente qualquer coisa: uma liberdade garantida pelas crenças, mitos e dogmas religiosos, os únicos responsáveis por expressar as virtudes, os poderes e a própria natureza do que é considerado sagrado51. O antropólogo Clifford Geertz traçou um conceito distinto de religião, partindo das diferentes conceituações formuladas anteriormente e com base no estudo de diferentes expressões religiosas distribuídas ao redor do mundo. Para Geertz, a religião é um Sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que as disposições e motivações parecem singularmente realistas. [...] A perspectiva religiosa difere da perspectiva do senso comum, como já dissemos, porque se move além das realidades da vida cotidiana em direção a outras mais amplas, que as corrigem e completam, e sua preocupação definidora não é a ação sobre as realidades mais amplas, mas sua aceitação, a fé nelas. [...] Mais uma vez, a essência da ação religiosa constitui, de um ponto de vista analítico, imbuir um certo complexo específico de símbolos – da metafísica que formulam e do estilo de vida que recomendam – de uma autoridade persuasiva. A religião é sociologicamente interessante não porque, como positivismo vulgar o 50 DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Paulus, 2017. 51Ibidem. 31 colocaria, ela descreve a ordem social (e se o faz é de forma não só muito oblíqua, mas também muito incompleta), mas porque ela – a religião – a modela, tal como fazem o ambiente, o poder político, a riqueza, a obrigação jurídica, a afeição pessoal e um sentido de beleza52. Com base nessas concepções, penso que a religião tenha, pouco a pouco, assumido a função de elemento de coesão social das comunidades humanas. As modificações no estilo de vida – que passou a ser sedentário após a invenção da agricultura e a domesticação de vários tipos de animais e plantas – permitiram verdadeiras explosões demográficas: nascem os primeiros vilarejos, que originariam as pequenas cidades. Diante dessa nova realidade, a ordem jurídica exclusivamente baseada nas relações de parentesco começa a perder eficiência. A transição entre as comunidades nômades e o estabelecimento das comunidades sedentárias repercutiu intensamente nas religiões – a partir desse ponto, as crenças religiosas começaram a adquirir mais e mais complexidade, um reflexo das novas formas de organização social. Fora justamente esse alto grau de complexidade das religiões organizadas quem permitiria a manutenção da paz entre indivíduos de comunidades diferentes que não tinham nenhum grau de parentesco – suplantando (mas não totalmente) as antigas relações de sangue que fundamentavam a organização social das sociedades humanas. Prova disso é a extensão territorial alcançada por religiões diversas: o judaísmo53, o cristianismo, o islamismo54 e o budismo reuniram sob a sua bandeira uma infinidade de comunidades, povos, etnias e culturas distintas, assumindo, não raro, dimensões transcontinentais. O mais antigo documento jurídico encontrado até o momento é o Código de Ur- Nammu, que remonta à Mesopotâmia de mais de cinco mil anos atrás. Apesar de não haver sido encontrado em sua totalidade, o prólogo do código foi preservado e serve para demonstrar que era a religião quem fornecia ao direito os fundamentos de sua eficácia: ao longo das primeiras linhas, diferentes divindades são invocadas pelo rei Ur-Nammu para legitimar sua posição e exigir o respeito às leis por parte de seus súditos – leis essas que não tratavam, em sua maioria, de matérias essencialmente religiosas. 52 GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008. p. 67-87. 53 A religião judaica experimentou um período de acentuado crescimento na bacia do Mar Mediterrâneo antes da expansão do cristianismo, veja-se em: SAND, Shlomo. A Invenção do Povo Judeu. São Paulo: Benvirá, 2011. 54 A história do islamismo demonstra justamente o poder da religião em superar as limitações impostas pelos clãs – o profeta Muhammad unificou a Arábia sob o islamismo, superando a antiga divisão geopolítica essencialmente baseada em clãs com base no poder unificante das religiões. A Constituição de Medina, concebida no ano 622 d.C. por Muhammad, foi um documento que inaugurou uma era de avanços notáveis no campo dos direitos humanos, especialmente quanto ao direito de família, da segurança social, das mulheres, dos escravos e das minorias étnicas, conforme: LEWIS, Bernard. The Arabs in History. Nova York: Oxford University Press, 2002. p. 42. 32 Por outro lado, o próprio Código de Ur-Nammu serve para ilustrar a perpetuação da mesma discriminação no entendimento da humanidade dos indivíduos caracterizados como “inumanos” em função de uma peculiaridade intensamente variável (que poderia ser etária, de gênero, sexual, de castas, entre tantas outras). Veja-se o seguinte excerto: […] 6. If a man violates the rights of another and deflowers the virgin wife of a young man, they shall kill that male. […] 8. If a man acts in violation of the rights of another and deflowers the virgin slave woman of a man, he shall weigh and deliver 5 shekels of silver55. As duas proibições detêm múltiplas discriminações de humanidade. De um lado, demonstram a predominância dos valores machistas na sociedade mesopotâmica – os direitos sobre o corpo da mulher pertenciam ao seu marido, e não à própria mulher – de outro, evidenciam a diferença entre os valores socialmente atribuídos a uma mulher livre e uma mulher escrava, porque o legislador mesopotâmico impôs penas distintas a uma mesma conduta (a de violar uma mulher), tratando a violação sexual de uma mulher livre com mais reprovabilidade (pena de morte) do que a violação de uma mulher escrava (pena pecuniária). Não é de se estranhar, assim, que a relação entre a religião e o direito tenha sido tão íntima quanto a de um aluno e sua professora do primário. As religiões proclamavam a ordem cósmica das coisas, seus dogmas estabeleciam a moral e seus rituais garantiam a manutenção do mundo – ecos que permeiam, até hoje, o mundo da ciência do direito. O processo judicial, por assim dizer, nada mais é do que um ritual constituído com o objetivo de preservar a manutenção do mundo das normas jurídicas – se ele não é devidamente observado, as normas perdem sua eficácia e, por isso, deixam de manifestar sua existência, a manifestação jurídica da ideia de caos. Para a melhor visualização desta afirmação, bem como para uma compreensão de forma mais sensível, recorro ao trabalho de Clifford Geertz: É no ritual – isto é, no comportamento consagrado – que se origina, de alguma forma, essa convicção de que as concepções religiosas são verídicas e de que as diretivas religiosas são corretas. É em alguma espécie de forma cerimonial [...] que as disposições e motivações induzidas pelos símbolos sagrados nos homens e as concepções gerais da ordem da existência que eles formulam para os homens se encontram e se reforçam umas às outras. Num 55 ROTH, Martha Tobi. Laws collections from Mesopotamia and Asia Minor. Atlanta: Scholar Press, 1995. p. 17-18. Tradução livre: [...] 6. Se um homem violar os direitos de outro e deflorar a esposa virgem de um homem jovem, ele deverá ser morto. [...] 8. Se um homem age em violação dos direitos de outro e deflorar a escrava virgem de um homem, ele deverá pesar e entregar ao ofendido 5 shekels de prata. 33 ritual, o mundo vivido e o mundo imaginado fundem-se sob a mediação de um único conjunto de formas simbólicas, tornando-se um mundo único e produzindo aquela transformação idiossincrática no sentido de realidade [...]. Entretanto, apesar de qualquer ritual religiosa, não importa quão aparentemente automático ou convencional (se é verdadeiramente automático ou meramente convencional, não é religioso), envolver essa fusão simbólica do ethos com a visão do mundo, são principalmente os rituais mais elaborados e geralmente mais públicos que modelam a consciência espiritual de um povo, aquele nos quais são reunidos, de um lado, uma gama mais ampla de disposições e motivações e, de outo, de concepções metafísicas56. As duas compreensões ainda se diferenciam em função do grande número de pessoas que a religião pode englobar, um número muito maior do que o restrito grupo composto pelos "parentes" de uma comunidade, justamente porque a religião não enfrenta os limites de requisitos de sangue ou relacionamento familiar. Isto não significa que a compreensão religiosa de humanidade tenha a pretensão de ser universal: ainda que cada religião possua características próprias e particulares, a história das religiões demonstra a existência de grupos sociais mantidos em posição de inferioridade segundo os mandamentos e dogmas religiosos, como já foi demonstrado anteriormente através da análise de dois excertos do Código de Ur-Nammu. Penso que esta compreensão de humanidade se baseie, então, no conceito de “dignidade religiosa”: a humanidade passa a ser vista como a característica dos “dignos”, daqueles que se inserem no padrão estabelecido pela religião e dele não se distanciam. Deixar de obedecer à lei passa a ser uma ofensa à divindade – e não mais à coletividade – o que se insere dentro da nova lógica de submissão às autoridades centralizadas que se estabeleceram com o advento das religiões organizadas. Não se deve confundir, porém, que o termo “indigno” seja necessariamente um sinônimo de “infiel”, porque somente os dogmas de uma religião específica poderão estabelecer em que moldes se dará essa relação. São os dogmas religiosos quem estabelecem, dentro da compreensão religiosa de humanidade, os critérios do que é “digno” ou “indigno” – implicando numa compreensão flexível de humanidade que estará refletida na visão particular de cada religião sobre determinada matéria. É plenamente possível que uma religião específica considere “indigno” um indivíduo que os dogmas religiosos de outra assinalem como “digno”. De forma similar, é ainda possível concluir que uma religião possa modificar seu padrão estabelecido de dignidade ao longo do tempo, na medida em que as religiões e seus dogmas são, essencialmente, instituição sociais, e, sendo assim, estão sujeitas aos processos 56GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008. p. 82-33. 34 de ressignificação, tão comuns e recorrentes nas sociedades humanas – cada contexto histórico particular possuirá seus próprios “dignos e indignos”, partindo do modelo ideal de dignidade formulado com base nas religiões predominantes em um certo espaço. Trata-se, portanto, da compreensão de humanidade relacionada com o período agrário da história, segundo a visão de Gellner57, essencialmente caracterizado por sociedades heterogêneas, ou seja, sociedades extremamente pluriétnicas e pluriculturais, regidas pela “ordem natural” estabelecida pelas religiões e as classes sociais dominantes: o clero e a aristocracia. A história está repleta de exemplos que retratam a manifestação desta compreensão de humanidade formulada sobre o conceito de “dignidade religiosa”, definitivamente atrelados às condições socioeconômicas de seu momento histórico. Por exemplo: a Europa e a América presenciaram, durante a Renascença e a ascensão do Iluminismo, a perseguição generalizada e o massacre de judeus, ciganos, minorias religiosas, hereges58 e mulheres consideradas bruxas59 – segmentos historicamente considerados como “indignos” pelas religiões cristãs da Europa Ocidental. De forma similar, a compreensão de humanidade centrada na dignidade religiosa forneceu a legitimação das Cruzadas, da Colonização da América e dos massacres sangrentos de “infiéis” levados à cabo pelos europeus ao redor do mundo. Ainda, é essa mesma compreensão religiosa quem fornece a legitimação extremista que imbui as ações terroristas da Al Qaeda e da guerra movida pelo Daesh no Oriente Médio contemporâneo. 3.4 Capital: a compreensão de humanidade dos detentores dos meios de produção Os primórdios desta concepção de humanidade se relacionam intimamente com a colonização da América e o estabelecido de sistemas de plantation baseados na mão-de-obra escrava. Durante os séculos que precederam a instauração do capitalismo consolidado, pessoas foram tratadas como mercadoria em função da cor da pele, sendo removidas de sua terra-natal e transportadas em condições subumanas para o outro lado do oceano, onde deveriam viver uma vida degradante, debaixo do sol escaldante, dos açoites, do ar pesado das 57 GELLNER, Ernest. Nações e nacionalismo. Lisboa: Gradiva, 1993. 58 Acerca da perseguição dos indivíduos tidos como heréticos, o processo judicial envolvido e a própria caracterização social, econômica e cultural das vítimas, penso que seja de especial interesse a seguinte obra: GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 59 Sobre a relação entre grupos tão distintos, sua inserção na cultura europeia e sobre o imaginário cultural, folclórico e religioso que sustentou a caça às bruxas, ver: GINZBURG, Carlo. História Noturna: decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 35 minas de prata e outro.... Das ramas das lavouras de cana-de-açúcar, café, cacau e tantos outros60.... Ali61, o humano começa a ser visto como objeto, como coisa, numa amplitude territorial generalizada que se expandiu por meio das navegações dos europeus, rasgando os mares em busca de temperos e mercadorias. O mercantilismo, o acúmulo de metais e o pacto colonial favoreceram a instalação da pedra fundamental do sistema capitalista industrial na Ásia, na África e nas Américas – enquanto isso, a coisificação do humano avançava ferozmente. Tempos depois, o Reino Unido do Século XVIII estava bem longe de qualquer idealização de um glorioso passado europeu: a Grã-Bretanha estava entulhada com cidades de ruas sujas e malcheirosas, o campesinato era quase que exclusivamente sem-terra e a realeza britânica dificilmente poderia ser descrita com a mesma pompa e suntuosidade de outros monarcas da época62 – considerando que, quase cem anos antes, um rei inglês perdeu sua coroada cabeça depois de ser condenado por ter traído o próprio reino durante a Guerra Civil Inglesa. Um observador da época talvez tivesse alguma dificuldade em acreditar que aquele país insular iria mudar definitivamente a história de toda as sociedades humanas nos anos seguintes, quando as ruas sujas e malcheirosas da Grã-Bretanha se tornariam ainda mais sujas e malcheirosas, o campesinato sem-terra continuaria sem-terra (mas agora servindo como mão-de-obra abundante) e a conjuntura política, que se tornara imensamente propícia, consolidaria a ascensão da mais importante modificação tecnológica depois da invenção da agricultura: a Revolução Industrial, que modificou de forma decisiva os meios de produção, a paisagem, a sociedade e a história da Grã-Bretanha, da Europa e do resto do mundo. Durante as décadas seguintes à de 1780, as pedras do calçamento das cidades britânicas começam a retumbar por causa do estampido das fábricas que se reproduziam como coelhos soltos num pasto. A indústria algodoeira, que se beneficiara imensamente da Revolução Industrial, implicou em grandes mudanças na economia britânica e, pouco depois, na economia mundial, com consequências impactantes para a história. Ao longo da Europa Continental, outros países sofrem o efeito da Revolução Industrial e iniciam o desenvolvimento de suas próprias expressões industriais. 60 RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 61 Os antigos romanos talvez tenham sfabe aproximado desta forma de pensar sobre seus próprios escravos, mas penso que não em tamanha intensidade e com uma estratificação tão forte. 62 HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções: 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009. 36 Como resultado desse processo, os meios de produção e comunicação passam por verdadeiras revoluções sucessivas, capazes de intensificar as relações sociais e de consolidar definitivamente o capitalismo como o novo sistema socioeconômico europeu – e, logo depois, do resto do mundo. O globo começava a ficar “menor”: as “distâncias se aproximavam”, o transporte de coisas e pessoas se dinamizava e a comunicação deixava de ser tão difícil e incerta quanto antes63. O feudalismo se tornava, pouco a pouco, uma estrutura indesejável, ultrapassada e cada vez mais desajustada em face do nascimento do capitalismo, que transmutara rapidamente a conjuntura socioeconômica europeia. O clero e a aristocracia começam a perder a posição hegemônica que possuíam dentro das sociedades agrárias – a industrialização impôs uma nova ordem social à Europa, que, com a ascensão dos Estados Nacionais e do capitalismo, se estratificou em classes regidas pela posse dos meios de produção. Dentro da divisão dos períodos históricos estabelecida por Gellner, esse momento inaugura o início do período industrial64, que iria testemunhar a ascensão de uma ideologia política cuja predominância se faz sentir até os dias de hoje: o nacionalismo – do qual falarei adiante. O processo de modificações sociais gerado pela ascensão do capitalismo foi extremamente profundo e imoderado, capaz de impor às sociedades uma nova distinção extremamente sensível historicamente: a das sociedades que pertencem ao período pré- capitalismo e ao das sociedades que pertencem ao período do pós-capitalismo. Com os valores do capitalismo, as estruturas econômicas locais sofreram uma desarticulação quase sempre violenta que desestabilizou as sociedades agrárias, que precisaram se adequar urgentemente à nova ordem socioeconômica emergente. A classe camponesa sem-terra tornara-se, rapidamente, mão de obra barata e abundante, tendo quase nada além do próprio trabalho para oferecer como meio de sobrevivência dentro da nova lógica socioeconômica – a classe proletária. Karl Marx resume bem essa nova dinâmica: Não é suficiente que as condições de trabalho sejam concentradas em massa, na forma de capital, em um dos polos da sociedade, enquanto o outro polo são massas agrupadas de homens que não possuem nada além da própria força do trabalho. Nem é suficiente que eles sejam compelidos a vender-se voluntariamente. O avanço da produção capitalista desenvolve uma classe trabalhadora que, através da educação, da tradição e do hábito, julga as condições desse modo de produção leis autoevidentes da natureza65. 63 Ibidem. 64 GELLNER, Ernest. Nações e nacionalismo. Lisboa: Gradiva, 1993. 65 MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. v. 1. p. 827. 37 Sob a conjuntura inaugurada com o capitalismo, o indivíduo sofre um reposicionamento dentro das engrenagens do pensamento mercadológico: o proletário é visto como uma mercadoria (mão-de-obra) e as mercadorias produzidas começam a ser compreendidas como verdadeiras entidades animadas que exercem domínio sobre as pessoas66. Além disso, a abolição da escravatura tornou-se uma causa promovida pelos ideais capitalistas, justamente porque os milhões de negros possuídos por brancos poderiam servir melhor como mercadorias (mão-de-obra) do que como meras coisas possuídas, em função da rotatividade e da movimentação inerente do próprio sistema67. Para o antropólogo Michael Taussig, Tal paradoxo socialmente instituído constitui-se porque, ao contrário das antigas maneiras de organização que unia as pessoas em relações diretas de produção e troca (em geral estabelecidas de acordo com o controle que possuíam sobre os meios de produção), o mercado coloca-se entre as pessoas, mediando a consciência direta das relações sociais através das leis abstratas que regem a relação entre as mercadorias. O modo de produção camponês difere do modo capitalista em diversos aspectos. Sob o capitalismo, a força de trabalho proletária perde o controle sobre os meios de produção, um controle que os camponeses, por sua vez, possuem. O camponês utiliza dinheiro – e não capital – e vende para comprar, enquanto o capitalista usa dinheiro como capital para comprar e depois vender com a geração de lucro que ele adicionará ao capital, repetindo o circuito em uma escala sempre crescente, até que o empreendimento morra. [...] Conhecidos como “mercadorias”, bens e serviços sob o capitalismo diferem, e muito, de suas contrapartes nos sistemas pré-capitalistas de subsistência. Apesar de serem, de fato, os mesmos artigos, eles são diferentes dos pontos de vida social e conceitual68. A transformação do ser humano em “mercadoria” impactou a compreensão de humanidade de forma ímpar: o “humano” deixava de ser o “dignamente religioso” para tornar-se o “possuidor de capital”. Para esta compreensão, a humanidade se estendia apenas àqueles que, por força de sua condição, detinham os meios de produção e, assim sendo, podiam produzir capital. Todos aqueles que apenas dispunham da própria mão-de-obra pertenciam a uma categoria inferior, submetida a condições extremamente desumanas e degradantes, muito bem ilustradas pelas condições da Inglaterra durante a Revolução Industrial e dos senhores e seus escravos no sistema de plantation da América Colonial. 66 TAUSSIG, Michael. O Diabo e o Fetichismo da Mercadoria na América do Sul. São Paulo: UNESP, 2010. 67 HOBSBAWM, Eric. Era do Capital: 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009. 68 TAUSSIG, Michael. O Diabo e o Fetichismo da Mercadoria na América do Sul. São Paulo: UNESP, 2010. p. 52-53. 38 A arte retratou esse período de forma ímpar – a literatura, por exemplo, trouxe “Oliver Twist”69 e “Tempos Difíceis”70, de Charles Dickens, em que o escritor testemunha os impactos sociais da Revolução Industrial e a degradação das classes mais pobres. Além disso, é imperioso mencionar “Os Miseráveis”71, de Victor Hugo, que retrata os impactos da Revolução Industrial na França de forma ímpar e extremamente sensível por meio da criação de personagens típicos e intensamente carismáticos. Quanto à questão da escravidão e do genocídio negro, não posso deixar de mencionar o livro biográfico “Um Defeito de Cor72”, de Ana Maria Gonçalves, que conta a história verídica de uma africana trazida ao Brasil por mercadores de escravos e a sua trajetória marcada pela dor e por dificuldades. 3.5 Nacionalismo: a compreensão de humanidade da supremacia nacional e racial Dentre todas as compreensões de humanidade, esta é a única cujo nascimento tem local e data bem definidos: a Europa do século XIX, ou, mais precisamente, a cidade de Londres do ano de 1865, quando Francis Galton, um primo distante de Charles Darwin, publicou “Hereditary Talent and Character” [Tradução livre: Talento e Caráter Hereditário], artigo inspirado, em grande parte, pelas ideias veiculadas por seu primo em A Evolução das Espécies. Durante as décadas que se seguiram, Galton expandiu e estruturou o conceito de “eugenia” – uma aplicação das ideias darwinistas de evolucionismo às características humanas, o darwinismo social, partindo basicamente das crenças raciais da época. As ideias eugênicas de Galton foram se estruturando ao longo de sua obra – nos anos seguintes, Francis Galton publicaria três livros que expandiram as concepções iniciais de eugenia: “Hereditary Genius73” [Tradução livre: Gênio Hereditário], em 1869, “Inquiries into Human Faculty and Its Development74” [Tradução livre: Estudos Sobre a Faculdade Humana e seu Desenvolvimento], em 1883, e “Natural Inheritance75” [Tradução livre: Herança Natural], em 1889. Em consideravelmente pouco tempo depois, a concepção de 69 DICKENS, Charles. Oliver Twist. São Paulo: Melhoramentos, 2012. 70 DICKENS, Charles. Tempos Difíceis. São Paulo: Boitempo, 2014. 71 HUGO, Victor. Os Miseráveis. São Paulo: Martin Claret, 2014. 72 GONÇALVES, Ana Maria. Um Defeito de Cor. São Paulo: Record, 2006. 73 GALTON, Francis. Hereditary Genius: an inquiry into its laws and consequences. Londres: Macmillan and Co., 1869. Disponível em: . Acesso em: 31 de out. de 2017. 74 GALTON, Francis. Inquiries into Human Faculty and Its Development. 2. ed. Londres: J.M. Dent. & Co., 1907. Disponível em: . Acesso em: 31 de out. de 2017. 75 GALTON, Francis. Natural Inheritance. Londres: Macmillan and Co., 1889. Disponível em: . Acesso em: 31 de out. de 2017. 39 Galton se alastrou pelos círculos acadêmicos de todo o mundo, deixando uma herança indelével por onde passou. No mesmo período, um médico judio-italiano iniciou uma série de experimentos com os corpos de vivos e mortos, essencialmente influenciado pelas ideias de Charles Darwin. A pesquisa terminou com a publicação de “O Homem Delinquente76” em 1876, de Cesare Lombroso, obra que defenderia a existência de determinadas características morfológicas existentes nos criminosos homens que, supostamente, não se manifestam naqueles que nascem sem a “herança criminosa”. Anos depois, em 1893, Cesare Lombroso, em conjunto com Guglielmo Ferrero, publicaria “A Mulher Delinquente, a Prostitua e a Mulher Normal77”, em que defenderia que a mulher criminosa e a mulher prostituta são uma “corrupção” da mulher normal. Darwin, Galton e Lombroso pertenciam a um período histórico muito singular, fruto do intenso processo de mudanças políticas, sociais, econômicas e culturais que sacudido a Europa ao longo dos séculos anteriores. A sociedade europeia havia mudado rapidamente, deixando de lado a antiga estrutura social agrária para se embrenhar mais e mais na estratificação tortuosa da sociedade industrial. O antigo continente, outrora fragmentado numa infinidade de pequenos Estados, deu lugar a uma nova Europa consolidada em Estados Nacionais, com uma administração pública fortemente centralizada e uniforme. Surge uma forma distinta de sociedade, que será promovida por esses novos Estados: a sociedade nacional, unida sob uma a cultura padrão estatal, estabelecida e incentivada através de políticas estatais especialmente designadas para esse fim78. A multidão de idiomas e dialetos que havia caracterizado a sociedade agrária europeia passa a ser combatida pelos novos Estados, que pretendem a unificação dos nacionais sob uma única língua, um dos primeiros alicerces da construção de uma nação: Os cidadãos da sociedade industrial têm de possuir a capacidade de comunicar uns com os outros a um nível abstracto, de preferência numa língua única. Isto torna necessário que todos os Estados, incluindo os do velho coração do noroeste da Europa, criem sistemas escolares que mobilizem as pessoas e lhes dêem habilitações para participarem numa sociedade humanística e técnica79. 76 LOMBROSO, Cesare. O Homem Delinquente. São Paulo: Ícone, 2007 77 LOMBROSO, Cesare; FERRERO, Guglielmo. A Mulher Delinquente, a Prostituta e a Mulher Normal. Joinville: Clube de Autores, 2017. 78 KOHN, Hans. História do Nacionalismo. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1987. 79 HALL, John; IKENBERRY, Gilford John. O Estado. Lisboa: Livraria Bertrand, 1975. p. 125. 40 Segundo Ernest Gellner80, o nacionalismo é o fenômeno social moderno criador das nações, que seria composto, em suma, pela união entre cultura e política. Para o autor, existem duas definições básicas que se complementam dentro da relação de nacionalismo, política e cultura: dois indivíduos compõem a mesma nação quando necessariamente compartilham uma mesma cultura81 e quando se reconhecem mutuamente na qualidade de pertencentes a essa mesma nação82 – o que significa dizer, na última análise de Gellner, que são os indivíduos quem fazem as nações. O professor Benedict Anderson realizou um trabalho extenso no estudo do nacionalismo. Segundo ele, as nações são “uma comunidade política imaginada – e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e , ao mesmo tempo, soberana83”. Comunidades, porque o nacionalismo apregoa que, não importam as desigualdades, a exploração desproporcional e os conflitos sociais internos, a nação sempre será entendida dentro da mais profunda fraternidade; imaginadas, porque os membros de qualquer nação jamais conhecerão a maioria de seus companheiros, embora todos eles venham a acreditar que vivam em comunidade; limitadas, porque, não importa o tamanho de uma nação, em algum ponto existirá uma fronteira a partir da qual estarão as outras nações humanas; soberanas, por fim, porque cada nação se considera detentora do direito de autodeterminação. O nacionalismo, adotado pelos Estados Nacionais e firmemente promovido por eles até os dias de hoje, fez com que a sociedade industrial se centrasse no conceito de nação – da mesma forma com que a sociedade agrária estava centrada nas religiões – e para isso, criou e promoveu as “comunidades imaginárias84” de Anderson por meio da difusão de mitologias e de uma historiografia de caráter nacional. O nacionalismo britânico, por exemplo, traçou as raízes de seu povo nos bretões, os antigos habitantes das Ilhas Britânicas, enquanto o nacionalismo na Grécia remontou as origens dos gregos nos antigos helenos. Para tanto, elaboram-se historiografias nacionais mitológicas, capazes de consagrar as pretensões dos Estados Nacionais emergentes e confirmar suas supostas raízes míticas. É neste ponto da história humana que as ideias de eugenia obtiveram maior repercussão, quando ultrapassaram os limites dos círculos acadêmicos e influenciaram 80 Ibidem. 81 “Dois homens são da mesma nação se e somente se eles dividem a mesma cultura; quando, por sua vez, cultura significa um sistema de ideias, signos, associações e modos de comportamento e de comunicação”. Ibidem, p. 7. 82 “Dois homens são da mesma nação se e somente se eles se reconhecem como pertencentes à mesma nação. Em outros termos, são os homens que fazem as nações”. Ibidem, p. 7. 83 ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 32-34. 84 Ibidem. 41 decididamente as sociedades humanas, tendo impactado a cultura, a economia e a política dos mais diversos países europeus por mais de 50 anos. O nacionalismo, em conjunto com o Darwinismo Social, colocou a ideia de “raça” no ápice da ideologia dos Estados Nacionais – um processo que só entraria em declínio depois do fim da Segunda Guerra Mundial, quando os horrores do holocausto se tornaram públicos e a ideia de eugenia foi rapidamente repudiada. As atrocidades cometidas pelo nazismo alemão haviam sido justificadas através das concepções eugênicas, que atribuíam à “raça ariana” a supremacia sobre as demais85. A busca pela pureza levou ao procedimento de limpeza social que culminou no genocídio de judeus, ciganos, homossexuais, pessoas deficientes, Testemunhas de Jeová e dissidentes políticos, entre outras minorias sociais86. Os outros Estados, em grande parte, mantiveram certa conivência com o nazismo de Adolf Hitler. Prova disso foi a viagem do MS St. Louis, navio de refugiados judeus alemães que teve que retornar à Europa depois de tentar atracar em Cuba, Estados Unidos e Canadá, sem sucesso, história imortalizada pelo clássico do cinema “A Viagem dos Condenados87”, de 1976. Contudo, penso que não é correto acreditar que essas ideias foram completamente abandonadas. Uma análise histórica da segregação racial nos Estados Unidos da América (incluindo, neste caso, a edição de leis antimiscigenação) e na África do Sul, por exemplo, demonstram o quanto as ideias persistiram, com fortes ecos na Teoria do Etiquetamento Social88 dentro desses países. É com base neste contexto histórico que extraio a compreensão de humanidade formulada por força do nacionalismo e da ideia de eugenia: a de que somente é humano o “superior”, ou seja, o indivíduo que pertence à etnia ou à classe social considerada biologicamente superior com base nos pressupostos pseudocientíficos do darwinismo social que, por vezes, persistem dentro da cultura. As discriminações de humanidade persistem (o que se evidencia expressamente no extermínio de deficientes promovido pelos nazistas, além das minorias sociais) e se fundamentam na ideal de pureza da raça e na limpeza social. Para esta compreensão, que teve um apogeu relativamente curto em comparação às demais (embora hoje passe por um processo de ascensão), a humanidade era um atributo 85 BESANCON, Alain. A Infelicidade do Século: sobre o comunismo, o nazismo e a unicidade da Shoah. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. 86 Ibidem. 87 VOYAGE OF THE DAMNED. Produção de Robert Fryer e William Hill. Londres: Sir Lew Grade, 1976. 1 Videocassete (155 min.): VHS, Ntsc, com. color. Legendado. Port. 88 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011. 42 inerente à pureza e à supremacia da raça – as raças inferiores, tidas como “selvagens” ou “bárbaras”, não detinham as mesmas prerrogativas e, portanto, eram consideradas desmerecedoras dos atributos de humanidade, o que conferia às raças “superiores” o direito de agir com as “inferiores” com total liberdade, o que se demonstrou de forma lamentável dentro do Holocausto e de todos os genocídios com motivação similar. Acontece que essa compreensão ainda persiste, embora de forma velada dentro dos meios de difusão de valores. Para testemunhar sobre o que foi dito anteriormente, invoco as palavras de Hannah Arendt em “Eichmann em Jerusalém89”, obra em que se analisou o julgamento de um oficial nazista levado à cabo por judeus em Israel: O problema com Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais. Do ponto de vista de nossas instituições e de nossos padrões morais de julgamento, essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois implicava que – como foi dito insistentemente em Nuremberg [durante o julgamento dos crimes de guerra nazistas] pelos acusados e seus advogados – esse era um tipo novo de criminoso, efetivamente hostis generis humani90, que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado91. O relato trabalha o conceito de banalização do mal, segundo o qual os “inimigos da humanidade” não devem ser vistos como sendo exceções: monstros, pervertidos e sádicos, mas sim indivíduos dentro da mais perfeita normalidade. A ideia de banalização do mal, associada com as diferentes compreensões de humanidade e as discriminações do que é humano, demonstra o quanto a efetivação e o respeito dos direitos humanos são frágeis e podem, com certa facilidade, ser completamente obliterados. 3.6 A compreensão universal de humanidade Entre todas as compreensões de humanidade, esta é a mais abrangente: trata-se da compreensão universal de humanidade, segundo a qual todos os membros de nossa espécie são seres humanos. Todos e todas, sem exceção, pertencem à mesma humanidade, que é 89 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 90 Tradução livre do latim: “inimigo da humanidade”. 91 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 299. 43 caracterizada, sobretudo, por sua diversidade que se manifesta na pluralidade de culturas, idiomas, crenças, etnias, tecnologias e expressões artísticas. O caráter “universal” não permite a existência das discriminações de humanidade que são tão frequentes nas outras compreensões: as diferenças entre indivíduos já não são um motivo válido para afastar a humanidade de quem é diferente – a noção de igualdade começa a se amoldar à nova forma de compreender o humano e a própria humanidade. A compreensão universal de humanidade, contudo, não é uma compreensão recente, apesar de seu fortalecimento ter ocorrido somente após a Segunda Guerra Mundial. A primeira declaração universal de direitos humanos está contida no Cilindro de Ciro92 – um antigo documento de argila que remonta ao século VI a.C., em que o grande monarca do Império Aquemênida reconheceu uma série de garantias individuais e a liberdade religiosa de todos os seus súditos. Os milênios seguintes admitiram o florescimento de diversos documentos semelhantes em lugares distintos: os Editos de Asoca do Império Mauri no século III a.C.93, a Constituição de Medina de 62294 e a Magna Carta da Inglaterra de 121595. O debate sobre a humanidade dos povos indígenas gerado pela colonização, as ideias promovidas pelo Iluminismo e os movimentos revolucionários na França e nos Estados Unidos da América trouxeram contribuições importantíssimas para o amadurecimento da compreensão de humanidade, porque colocaram em debate a condição humana do “diferente”. Nos Estados Unidos da América, a Declaração de Independência de 1776 anunciou: “todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes são vida, liberdade e busca da felicidade96”. Poucos anos depois, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, associada com a Revolução Francesa e aprovada pela Assembleia Nacional da França em 1789, efetuou o reconhecimento de que “os homens nascem e são livres e iguais em direitos97”. Há, é claro, uma trajetória muito longa antes da consolidação da compreensão universal de humanidade. Trata-se de uma história riquíssima, pois está repleta das obras de muitos dos grandes pensadores, como o francês Jean-Jacques Rousseau e o inglês John 92 THE BRITISH MUSEUM. The Cyrus Cylinder. Disponível em: < https://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?objectId=327188&par tId=1>. Acesso em: 02 de out. de 2017. 93 SINGH, Upinder. A History of Ancient and Early Medieval India: from the Stone Age to the 12th Century. Delhi: Pearson Longman, 2008. 94 LEWIS, Bernard. The Arabs in History. Nova York: Oxford University Press, 2002. 95 HOLT, James. Magna Carta. 3 ed. Cambridge: Cambrige University Pres, 2015. 96 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Declaração de Independência. 1776. 97 REPÚBLICA FRANCESA. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. 1789. 44 Locke, além dos mais diversos capítulos históricos que demonstram as fortes dificuldades que representaram barreiras difíceis de derrubar. É inevitável reconhecer, porém, que a compreensão universal de humanidade só se consolidou depois da carnificina do holocausto nazista, que abriu os olhos – talvez à força – da sociedade internacional para as consequências de uma ideia de humanidade seletiva. A partir de então, o estabelecimento da Organização das Nações Unidas e de diversos outros entes internacionais iniciaram a promoção dos direitos humanos que pertencem à toda humanidade. Recorro, agora, ao estudo que o professor Samuel Moyn realizou sobre a história dos direitos humanos: There is no doubt that, after decolonization and the civil rights movement ended formal empire and racism, the language of human rights provided a potent antitolatitarian weapon for the first time. […] The emergence of “democracy promotion” revealed that human rights would have to incorporate concrete policy commitments and fuller-bodied social thinking to be meaningful, and to address the wide range of problems that required more than a set of abstract moral norms. The pure struggle of morality would have to enter the realm where political visions clash, with its hard choices, compromising bargains, and dirty hands98. A compreensão universal de humanidade ainda enfrenta grandes obstáculos, que subsistem, em sua maioria, porque as formas seletivas de compreender “o que é humano” persistem dentro das diferentes sociedades ao redor do mundo, o que implica numa relativização de humanidade que não é somente perniciosa para o reconhecimento de direitos humanos, mas também muitas vezes impõe duras penas à sua eficácia. A humanidade ainda precisa aprender a reconhecer o que é humano. 3.7 Considerações finais 98 MOYN, Samuel. The Last Utopia: human rights in history. Cambridge: The Belknap Press, 2010. p. 217-218. Tradução livre: Não há dúvida de que, após a descolonização e o movimento dos direitos civis, encerrando o império formal e o racismo, a linguagem dos direitos humanos proporcionou uma poderosa arma antitotalitária pela primeira vez. [...] O surgimento da "promoção da democracia" revelou que os direitos humanos teriam que incorporar compromissos políticos concretos e o adotar completamente o pensamento social para serem significativos e abordar a ampla gama de problemas que exigiam mais do que um conjunto de normas morais abstratas. A pura luta da moral teria que entrar no reino onde as visões políticas se chocam, com suas escolhas difíceis, barganhas comprometedoras e mãos sujas. 45 Ao longo das últimas páginas, propus uma nova forma de entender a trajetória dos direitos humanos a partir das diferentes concepções de humanidade que foram prevalentes em determinado momento histórico. Penso que seja importante ressaltar que tive que realizar uma descrição geral para poder alcançar um intervalo histórico tão longo, o que significou sacrificar a abundância de minúcias e detalhes que definem a história humana em prol de uma construção científica coesa. Seguindo essa mesma linha de raciocínio, também é necessário reforçar a ideia de que as diferentes concepções de humanidade não são estáticas (como parte do pensamento humano, sofrem mudanças constantemente), muito menos absolutas – muitas vezes, haverá mais de uma concepção de humanidade habitando no ideário de um mesmo grupo, embora existam as concepções predominantes em dado período de tempo. Há, porém, uma última consideração a se fazer. A leitura atenta deste capítulo talvez cause uma inquietação: não haveria uma outra compreensão de humanidade, baseada na dissidência política de uma ideologia vigente e constituída? Esta indagação faz certo sentido: o massacre dos dissidentes promovido por Stálin na União Soviética, o macarthismo nos Estados Unidos da América durante a Guerra Fria, o Período de Terror após a Revolução Francesa – não seriam indícios suficientes da existência dessa forma de compreender a humanidade? Penso que o fator “dissidência” seja, até o presente momento e desde tempos antigos, mais uma das formas de discriminação – e não um dos próprios padrões segundo os quais se colmataram as diferentes concepções de humanidade. Uma breve análise baseada nos mesmos períodos históricos (e suas respectivas ideologias) permitem concluir que a dissidência política não foi a base principiológica exclusiva de nenhuma das concepções de humanidade, mas um “coadjuvante” que, muito provavelmente, vem acompanhando a trajetória das sociedades humanas desde tempos ancestrais. 4. A FÁBRICA DOS DESUMANOS E AS ENGRENAGENS DA DESUMANIDADE “You eat meat and you kill things that are better than you are, and then you say how bad, and even killers, your children are. You made your children what they are... 46 These children that come at you with knives, they are your children. You taught them. I didn't teach them. I just tried to help them stand up…99” Excerto do testemunho de Charles Mason durante o julgamento dos assassinatos Tate-LaBianca, em 1970. Após trabalhar sobre as diferentes formas de compreender a “humanidade”, ou seja, os sujeitos dos direitos humanos, aprofundo os processos através dos quais o fenômeno da desumanização100 se manifesta – em suma, os processos que permitem que seres humanos deixem de considerar outros seres humanos como parte da própria humanidade, o que implicará na violação de direitos humanos. Não tenho, por óbvio, a pretensão de mapear de forma profunda como cada uma dessas variáveis vai se comportar, mas tento traçar um panorama geral, como se verá a seguir. Inicialmente, acredito que os direitos humanos e a sua eficácia estejam firmemente atrelados às concepções de poder e verdade, cunhadas e desenvolvidas por Michel Foucault ao longo de sua obra. Primeiramente, como ponto de partida, introduzo a ideia de poder trabalhada por Foucault em “A Microfísica do Poder”, segundo a qual não se deve [...] tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de uma classe sobre as outras, mas ter bem presente que o poder – desde que não seja considerado de muito longe – não é algo que se possa dividir entre aqueles que o possuem e o detêm exclusivamente e aqueles que não o possuem e lhe são submetidos. O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui e ali, nunca está em mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas, os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder, e de sofrer sua ação; nunca são alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles. Não se trata de conceber o indivíduo como uma espécie de núcleo elementar, átomo primitivo, matéria múltipla e inerte que o poder golpearia e sobre o qual se aplicaria, submetendo os indivíduos ou estraçalhando-os. Efetivamente, aquilo que faz com que um corpo, gestos, discursos e desejos sejam identificados e constituídos enquanto indivíduos é um dos primeiros efeitos do poder. Ou seja, o indivíduo não é o outro do poder: é um de seus primeiros efeitos. O indivíduo é um efeito do poder e simultaneamente, ou pelo próprio fato de ser um efeito, é seu centro de transmissão. O poder passa através do indivíduo que ele constituiu.101 99 Tradução livre: Vocês comem carne e matam coisas que são melhores do que vocês são, e então vocês dizem o quão más, e até mesmo assassinas, são as suas crianças. Vocês fizeram de suas crianças o que elas são... Essas crianças que vêm até vocês com facas, elas são suas crianças. Vocês as ensinaram. Eu não as ensinei. Eu apenas tentei ajuda-las a se erguer... 100 ZIMBARDO, Philip. O Efeito Lúcifer. Rio de Janeiro: Record, 2012. 101 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 1972. p. 183-184. 47 Para Foucault, o poder é uma rede de conexões e interconexões que perpassa o tecido social, sendo exercido nas mais diversas relações sociais entre diferentes indivíduos ou grupos. Para que se admita a existência do poder, é necessário ainda admitir que certas pessoas exercem poder sobre outras102, o que implicará, consequentemente, no oferecimento de resistência por parte daquele sobre quem o poder foi exercido – é o que Foucault expressa ao declarar que “onde há poder, há resistência103”. Assim, o poder é contínuo – ele não começa, nem termina, mas se reproduz de forma intermitente e perpétua, porque é uma das estruturas imanentes da sociedade. Existem duas formas de perceber o poder. A primeira: a percepção jurídica, baseada no Estado e suas instituições, que se manifesta nas leis, nas proibições e nas consequências da desobediência. A segunda: a percepção estratégica, que se fundamenta nas relações de poder que compõem o tecido social e que se estrutura ao redor da ideia de que o poder impõe um verdadeiro “conflito” de indivíduo contra indivíduo, grupo contra grupo104. Por sua vez, segundo Foucault, a percepção jurídica de poder está estruturada segundo a noção de que o poder é propriedade exclusiva das instituições regulamentadoras (ao exemplo do Estado), justificando-se por meio da edificação moral e ética da sociedade, o que somente é possível através do processo de construção da verdade105. Agora chegamos ao conceito de verdade: uma construção social que se manifesta nas relações de poder e que se emprega como mecanismo de disciplina para o comportamento social106 – a verdade é, portanto, um dos meios (provavelmente o mais eficiente de todos) para se exercer e consolidar o poder que movimenta as relações sociais. Não há, para Foucault, uma verdade universal – para ele, as verdades são sociais, construídas por uma série de fatores distintos – incluindo o próprio poder instituído pelas normas sociais e pelas leis estabelecidas oficialmente107. É como sintetiza: Para assinalar simplesmente, não o próprio mecanismo da relação entre poder, direito e verdade, mas a intensidade da relação e sua constância, digamos isto: somos forçados a produzir a verdade pelo poder que exige essa verdade e que necessita dela para funcionar, temos de dizer a verdade, somos coagidos, somos condenados a confessar a verdade ou encontrá-la. O poder não para de questionar, de nos questionar; não para de inquirir, de registrar; ele institucionaliza a a busca da verdade, ele a profissionaliza, ele a 102 Ibidem. 103 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1985. p. 91. 104 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 1972. 105 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1985. 106 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 1972. 107 FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade: curso no Collège de France, (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 2000. 48 recompensa. Temos de produzir a verdade como, afinal de contas, temos de produzir riquezas, e temos de produzir a verdade para produzir riquezas. E, de outro lado, somos igualmente submetidos à verdade, no sentido de que a verdade é a norma; é o discurso verdadeiro que, ao menos em parte, decide; ele veicula, ele próprio propulsa efeitos de poder108. Segundo Foucault, ainda, a verdade tem cinco características fundantes: ela se submete a demandas econômicas e políticas, porque a verdade é necessária para movimentar a economia do poder político; ela comporta, por diversos meios, uma grande difusão e um intenso consumo, porque é difundida pela educação formal e disponibilizada pelos veículos de livre informação; sua produção e transmissão ocorrem sob a direção dominante (mas não exclusiva) de determinadas instituições políticas ou econômicas de caráter oficial; ela está baseada firmemente no discurso científico e nas instituições científicas responsáveis por sua produção; ela ocupa posição central no debate político e nas lutas ideológicas109. No âmbito da percepção jurídica do poder, são o Estado e suas instituições quem irão desempenhar as funções de constituir, promover e legitimar a verdade – e será essa verdade construída e ostentada pelo Estado quem irá servir para legitimá-lo em suas mais diversas atividades – incluindo a violação de direitos humanos. Cada sociedade dispõe da sua própria verdade (ou verdades), que se manifesta através dos discursos endossados socialmente, estabelecendo o grande paradigma que determina o que deve ser considerado falso ou verdadeiro, real ou irreal. Diante disso, é de se questionar: quais mecanismos e instituições jurídicas e sociais têm a prerrogativa de estabelecer a verdade que legitima os direitos humanos? Ou ainda, de que forma é possível constituir uma verdade coerente com o regime dos direitos humanos que seja absorvida pelos mais diversos poderes constituídos ao longo do mundo? Mais inquietante, porém, é se questionar: como evitar que uma verdade estruturada sob a ideia de direitos humanos não seja uma forma de violentar esses mesmos direitos? Contemporaneamente, é ainda importante apontar a intensa prevalência dentro do meio estatal da ideia de “biopolítica110” estabelecida após o século XIX, com base nos paradigmas estabelecidos pelo nacionalismo e sob as concepções do evolucionismo darwinista - as ideias de eugenia, supremacia racial e higiene social. É o “biopoder”, que Foucault define como “o conjunto de mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, 108 Ibidem. p. 29. 109 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 1972. 110 FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade: curso no Collège de France, (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 2000. 49 constitui suas características biológicas fundamentais vai poder entrar numa política, numa estratégia política, numa estratégia geral de poder111”. Trata-se de uma nova lógica estatal, em que o poder manipula o corpo social como se fosse um corpo biológico: a maior preocupação é mantê-lo saudável, afastando-o dos agentes nocivos capazes de oferecer alguma forma de contágio ou de contaminação112. A vida humana passa a ser um elemento politizado – o objetivo do governo passa a ser a sobrevivência da população, que não pode perecer e deve permanecer viva. As medidas adotadas pelo Estado começam a adquirir um caráter médico, especialmente voltado para a “saúde” do corpo social, que se persegue por meio de políticas públicas, as quais, por sua vez, se norteiam através de um novo conhecimento específico especialmente desenvolvido pela nova ordem: surgem os índices de mortalidade e natalidade, o mapeamento social, as estatísticas e o estudo analítico dos números da sociedade – é necessário medir, estabelecer parâmetros e ter total ciência das características do tecido social. A ideia de “biopolítica” se manifesta de forma patente e cruel nos crimes cometidos pela Alemanha Nazista, mas também se expressa por meio das políticas de controle de natalidade, de planejamento familiar, de vacinação obrigatória... Enfim: estabelecer de que forma a biopolítica se relaciona com a efetivação de direitos humanos não é apenas interessante, mas uma compreensão necessária e devidamente importante quando se busca a universalização desses direitos. Ainda, creio que seja importante trazer à discussão o conceito de homo sacer formulado por Giorgio Agamben com base num antigo instituto romano, segundo o qual aquele que cometia uma transgressão em face dos deuses se tornava homo sacer, ou seja: intocável para o Estado, de quem não podia receber a morte oficial, do sacrifício, mas a quem todos os outros poderiam dar morte sem ser penalizados113. Ao desenvolver as ideias de biopolítica e biopoder de Foucault114, em especial a ideia de “vida nua”, o professor Agamben entendia que, quando a vida do indivíduo é completamente inserida dentro da política estatal, ou seja, quando o Estado passa a tutela-lo inteiramente em todos os seus aspectos, a submissão do indivíduo ao poder estatal é tamanha que ele passa a se tornar uma espécie de homo sacer, completamente vulnerável e suscetível 111 FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População: curso no Collège de France, (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008. 112 Ibidem. 113 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: no poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002. 114 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1985. 50 ao que o Estado venha a decidir, inclusive por ocasião dos regimes de exceção. Como sintetiza: [...] soberano e homo sacer apresentam duas figuras simétricas, que têm a mesma estrutura e são correlatadas, no sentido de que o soberano é aquele em relação ao qual todos os homens são potencialmente homines sacri e homo sacer é aquele em relação ao qual todos os homens agem como soberanos115. O domínio da biopolítica e do biopoder, dentro dessas novas lógicas, colocam o indivíduo numa posição fragilizada, em que a nova política estatal é capaz de uma gama ilimitada de procedimentos e medidas que já não podem mais ser restringidas: o que se evidencia não somente nos campos de concentração da Alemanha, mas também nos campos de refugiados para imigrantes clandestinos na Itália, os campos de estupro étnico na antiga Iugoslávia, entre outras instituições que desvelam a figura do indivíduo sob a mais completa dominação do Estado. De forma similar, acredito que a efetividade de direitos humanos também está atrelada à ideia cunhada por Pierre Bourdieu de capital social, que, segundo o sociólogo, é “um conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão vinculados a um grupo, por sua vez constituído por um conjunto de agentes que não só são dotados de propriedades comuns, mas também por relações permanentes e úteis116”. Os fatores que determinam a quantidade de capital social de que o indivíduo pode dispor são, para Bourdieu117, a extensão da rede de relações que o indivíduo pode mobilizar em conjunto com o volume de outras formas de capital (econômico, simbólico ou cultural) na posse individual exclusiva. O capital social se traduz por meio das relações tecidas por um indivíduo ou um grupo com outros indivíduos ou grupos ao longo de sua existência – quanto mais capital social, mais inserido está o indivíduo ou o grupo dentro de uma sociedade, e mais facilitada torna-se a efetivação e o respeito dos direitos e garantias individuais e coletivos. As trocas de capital social entre indivíduos e grupos são componentes básico da força motriz que movimenta as sociedades humanas – mas, para ter capital social, Bourdieu reconhece que o indivíduo necessita possuir uma quantidade mínima de capital econômico, simbólico ou cultural118, sem a qual é impossível gerar e dispor de capital social: esse processo estabelece 115 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: no poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002. p. 92. 116 BOURDIEU, Pierre. O Capital Social: notas provisórias. In: NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio (Org.). Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 67 117 Ibidem. 118 Ibidem. 51 discriminações que muitas vezes se relacionam de forma acentuada com a violação dos direitos humanos daqueles que não dispõem de capital social suficiente. Acredito que seja importante considerar, ainda, que a efetivação de direitos humanos tem uma relação estreita com os processos de construção, reprodução e manutenção da imagem de “inimigo” dentro de uma sociedade – às vezes, processos que ocorrem em função da ausência, da omissão, do recuo e da própria hegemonia do Estado sobre um espaço, principalmente em momentos caracterizados por algum tipo de crise ou de ruptura com a ordem pré-estabelecida. Nessa ótica, o “inimigo” oferece perigo à humanidade e, portanto, já não deve mais ser considerado humano: é um monstro, um agente patogênico, a manifestação do mal que precisa ser exterminada, esterilizada e exorcizada do tecido social. Essa conjuntura incorpora as influências exercidas pela sociedade no âmbito do próprio direito – tendo em vista que o direito é uma expressão da própria sociedade, sendo socialmente pensado e socialmente produzido. Assim, o “inimigo” torna-se uma categoria juridicamente relevante, na medida em que, para a sociedade contemporânea ocidental, os instrumentos jurídicos passam a ser considerados publicamente como o meio adequado para a solução de conflitos (embora não seja o único). Este processo de categorização aparece de forma mais intensa nos momentos de crise acentuada e de forma menos intensa em outras circunstâncias, condições propícias para a gênese do Direito Penal do Inimigo, que se volta, segundo o professor Eugenio Raúl Zaffaroni, contra os indivíduos que, por seu comportamento, externam uma pretensão de ruptura ou destruição da ordem normativa vigente e, portanto, perdem o status de pessoa e cidadão, submetendo-se a um verdadeiro direito penal de exceção, cujas sanções têm por finalidade primordial na mais a restauração da vigência normativa, mas assegurar a própria existência da sociedade em face desses indivíduos. O direito penal tem como uma de suas marcantes características o combate a perigos, isso representa, em muitos casos, a antecipação de punibilidade, na qual o inimigo é interceptado, em um estado inicial, apenas pela periculosidade que pode ostentar em relação à sociedade.119 Dessa conjuntura, a sociedade passa a reproduzir discursos inflamados que tratam da situação emergencial vivenciada – que pode, inclusive, não ser real, mas apenas fruto da tensão social vivenciada num momento específico. É assim que discursos como a literatura da caça às bruxas, representada pelo Martelo das Feiticeiras120, os Protocolos dos Sábios de 119 ZAFFARONI, Eugenio Raul. O Inimigo no Direito Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. Ibidem. p. 76. 120 KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. O Martelo das Feiticeiras. Rio de Janeiro: BestBolso, 2015. 52 Sião121 e os diversos tabloides nos EUA da Guerra Fria obtiveram uma rápida disseminação entre os segmentos populacionais – inclusive os mais humildes – e se constituíram como verdadeiras expressões da verdade, ainda que retratassem fatos inteiramente ficcionais: pouco depois, cada um deles desempenharia funções importantes na legitimação de perseguições que resultaram na mais completa negação da condição humana dos perseguidos. Para esterilizar o “inimigo”, todo esforço é válido e justificável – afinal, o “inimigo” é excepcional e demanda, por assim ser, medidas excepcionais. Nesse contexto, a ideia de expansão do Direito Penal adquire relevância e procedência junto às camadas sociais por causa da situação de emergência, com a proposta de ser empregado somente até a resolução do “problema” vivenciado – o que na prática irá implicar numa realidade social instável, porque a “caçada do inimigo” juridicamente legitimada muitas vezes terá consequências difíceis de predizer. Como Zaffaroni bem dirá a seguir, ao tratar dos impactos do estabelecimento dessa mentalidade junto ao Direito Penal: Poder-se-ia dizer que, assim como propõe encerrar o direito penal do inimigo num compartimento estanque para salvar o resto do direito penal (do cidadão), ele também aspira a limitar o caráter de não pessoa do inimigo quanto à intensidade da despersonalização. Tudo isso se coloca como uma limitação aos princípios do Estado de direito, imposta pela necessidade e em sua estrita medida. Sem dúvida, esta tática de contenção está destinada ao fracasso, porque não reconhece quer para os teóricos – e sobretudo para os práticos – da exceção, esta sempre invoca uma necessidade que não conhece lei nem limites122. Anteriormente, escrevi um artigo em que estudei a histeria coletiva e suas consequências para uma sociedade atingida por esse fenômeno. Nele, estudei casos emblemáticos, como o da caça às bruxas na Europa Iluminista, o processo das bruxas de Salem e a perseguição aos comunistas, ambos nos Estados Unidos, e a onda de linchamentos que ocorreram recentemente no Brasil. Após essa análise, que não deixou de tomar em consideração trabalhos anteriores, defini um conceito para o fenômeno da histeria coletiva que melhor se aproximasse das ciências criminais: É possível definir sucintamente a histeria coletiva dentro das ciências criminais como sendo o fenômeno social, intrinsecamente comunicativo, em que um número variado de pessoas sob tensão/estresse social, de maior ou menor intensidade, causada pelo temor generalizado da convicção de perigo/risco proporcionada pela existência de um agente imaginário nocivo, 121 AUTOR DESCONHECIDO. OS Protocolos dos Sábios de Sião. Porto Alegre: Revisão, 1991. 122 ZAFFARONI, Eugenio Raul. O Inimigo no Direito Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. Ibidem. p. 161. 53 realiza uma série de atos mais ou menos gravosos visando à neutralização/eliminação da ameaça e a dissipação da tensão123. Os momentos de histeria coletiva são o ponto alto das “crises” vivenciadas pela sociedade, que entra em convulsão e se prepara para expurgar o “inimigo” de seu interior – e as convulsões, de uma maneira ou de outra, muito provavelmente serão (ou tentarão ser) legitimadas por uma ordem jurídica vigente, com a instalação (ou tentativa de instalação) de um regime jurídico-penal como mecanismo pelo qual o inimigo é extirpado e o corpo social retorna à condição ideal de sanidade – mais uma vez, aparecem as ideias de higiene social e de eugenia. Logicamente, não é sempre que a violação generalizada de direitos humanos se associa com momentos de crise intensa – há casos em que o próprio cotidiano de uma sociedade, o dia a dia comum, irá implicar na degeneração do valor atribuído a todos os seres humanos igualmente. Quando isso acontece, as instituições do Estado vão absorvendo e promovendo as modificações no valor socialmente atribuído aos sujeitos de direitos humanos, porque a constituição da sociedade vai se transmutando e impondo modificações na ordem constitucional do Estado. Trata-se da manifestação do que o professor Karl Loewenstein chamou de Teoria da Erosão da Consciência Constitucional124, que acontece sempre que a sociedade e o Estado passam a desprestigiar mais e mais, de forma rotineira, as normas estabelecidas por uma constituição escrita, ocasionando uma incompatibilidade entre a ordem constitucional formal e a constituição material da sociedade, recentemente adulterada por meio do processo erosão mencionado por Karl Loewenstein. A constituição material125 é o conjunto de normas, sejam elas escritas ou não- escritas, que estruturam o Estado e as relações de poder dentro dele, e que proporcionam aos membros de uma sociedade os meios de efetivação de seus direitos e garantias. A constituição formal é o documento escrito por si só126 (que não precisa, necessariamente, ser uma codificação única, condensada), em que o Estado e uma sociedade definem seus valores, sua configuração e seus planos para o futuro. Não há, obviamente, uma sociedade ideal em que a constituição material está consubstanciada na constituição formal – sempre haverá alguma 123 RODRIGUES DO NASCIMENTO, Raul Victor. Pandemônio Comungado: delineando o conceito de “Histeria Coletiva” no âmbito das ciências criminais. Revista Transgressões, Natal, vol. 3, n. 1, maio 2015. pp. 201-225. p. 219. 124 LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. Barcelona: Ariel, 1983. 125 LASSALE, Ferdinand. A Essência da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. 126 Ibidem. 54 falta de sintonia entre elas. E é justamente o tamanho da diacronia quem irá definir a efetividade ou inefetividade de uma constituição formal – quanto maior, menos efetiva serão as normas constitucionais escritas. O processo de erosão da consciência constitucional ocorre quando o Estado e/ou a sociedade desvaloriza sua própria constituição escrita, ou seja, o Estado deixa de obedecer às normas constitucionais e a sociedade deixa de observa-las e de prezar por sua efetivação127. É o que Karl Loewenstein sintetiza a seguir: La triste verdad es que la constitución se ha distanciado emocional y intelectualmente de los destinatarios del poder. Para el “hombre de la calle” la constitución significa muy poco. [...] Las decisiones políticas conformadoras son dominio de los políticos; para su ejecución están llamados tan sólo los técnicos constitucionalistas y especialistas. La masa de la población ha perdido su interés en la constitución, y ésta, por tanto, su valor afectivo para el pueblo. Esto es un hecho indiscutible y alarmante. [...] Hoy, manipulada por los políticos profesionales, la constitución ha cesado de ser una realidad viva para la masa de los destinatarios del poder. […] Parece difícil pensar que la constitución signifique algo, en cualquier lugar, para el hombre medio triturado entre las fuerzas de arriba y de abajo; su actitud ante “su” constitución es de indiferencia, porque ésta se muestra indiferente ante él. […] La constitución no puede salvar el abismo entre pobreza y riqueza; no puede traer ni comida, ni casa, ni ropa, ni educación, ni descanso, es decir, las necesidades esenciales de la vida128. De forma óbvia, o fenômeno da erosão das normas constitucionais pode implicar em pesados prejuízos para o reconhecimento e direitos humanos, que nem sequer vai prejudicar apenas os direitos das minorias (que, em geral, tendem a ser mais prejudicadas). Quando as normas escritas de uma constituição deixam de ser consideradas dentro da adoção de medidas pelo Estado, ou quando a constituição formal é sumariamente ignorada pela população em seu dia a dia, o vácuo normativo que se segue é preocupante, na medida em que poderá ser ocupado por qualquer norma, baseada em praticamente qualquer valor, incluindo, nestes casos, os valores que advogam contra direitos humanos. 127 LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. Barcelona: Ariel, 1983. 128 Ibidem. p. 227-229. Tradução livre: A triste verdade é que a constituição se distanciou emocional e intelectualmente dos destinatários do poder. Para o "homem na rua", a constituição significa muito pouco. [...] As decisões políticas decisivas são domínio dos políticos; apenas os técnicos e especialistas constitucionalistas são chamados para sua execução. A massa da população perdeu seu interesse na constituição e, portanto, a constituição perdeu seu valor afetivo para as pessoas. Este é um fato incontestável e alarmante. [...] Hoje, manipulada por políticos profissionais, a constituição deixou de ser uma realidade viva para a massa dos destinatários do poder. [...] Parece difícil pensar que a constituição significa qualquer coisa, em qualquer lugar, para o homem esmagado entre as forças acima e abaixo; Sua atitude em relação à "sua" constituição é de indiferença, porque a constituição é indiferente a ele. [...] A constituição não pode preencher o abismo entre pobreza e riqueza; não pode trazer comida, nem casa, nem roupa, nem educação, nem repouso, isto é, as necessidades essenciais da vida 55 Considerando todas as ponderações feitas até agora, acredito fortemente que a exposição anteriormente realizada demonstra, em grande parte, os processos por meio dos quais direitos humanos são respeitados e violados rotineiramente, erguendo uma ponte entre o conceito de desumanização cunhado por Philip Zimbardo129 e toda a problematização elencada por Michel Foucault, Pierre Bourdieu, Karl Loewenstein e Raúl Eugenio Zaffaroni, que descrevem de forma muito pertinente os processos de construção e desconstrução daqueles considerados dignos e indignos de humanidade. Adiante, me debruço sobre o estudo de dois casos em que é plenamente possível delinear os processos mencionados nas páginas anteriores, em conjunto com as compreensões de humanidade que se entrelaçam para implicar em violações sumárias de direitos humanos. 5. ISRAEL: PRESOS POLÍTICOS PALESTINOS NA TERRA SANTA “In Israel, in order to be a realist, you mus//t believe in miracles130”. David Ben-Gurion. “The Palestinians are the only nation in the world that feels with certainty that today is better than what the days ahead will hold. Tomorrow always heralds a worse situation131”. Mahmoud Darwish. As duas epígrafes deste capítulo são muito representativas das duas narrativas antagônicas que concernem israelenses e palestinos, árabes e judeus. Neste capítulo pretendo inicialmente apresentar um panorama geral sobre o conflito, para, depois, tratar especificamente do instituto da prisão administrativa. Inicialmente, realizo uma breve exposição sobre a história recente do conflito, para, logo em seguida, apresentar as narrativas de israelenses e palestinos, o que me permitirá, afinal, demonstrar as prisões administrativas das contradições e da dicotomia determinante entre israelenses e palestinos. A questão Israel-Palestina é, provavelmente, o conflito mais noticiado de toda a contemporaneidade – o que pode ser atribuído ao grande conflito ideológico entre o Ocidente colonizador e o Oriente colonizado, que se evidencia fortemente em cada um dos capítulos turbulentos dessa história. O conflito entre Israel e Palestina tornou-se, também, o conflito 129 ZIMBARDO, Philip. O Efeito Lúcifer. Rio de Janeiro: Record, 2012. 130 Tradução livre: Em Israel, é preciso acreditar em milagres para ser realista. 131 Tradução livre: Os palestinos são a única nação no mundo que sente com certeza que o dia de hoje é melhor do que o que os dias à frente irão trazer. O amanhã sempre anuncia uma situação pior. 56 entre árabes e judeus, o que reveste a questão com um caráter preponderantemente étnico e religiosos. A ocupação dos territórios palestinos, a ascensão do Terrorismo e da Guerra ao Terror, por fim, cimentam a estrutura retesada do conflito132. As origens da hostilidade remontam ao final do século XIX e início do século XX, quando as primeiras levas de imigrantes se estabeleceram ao longo da Palestina, então parte do Império Otomano que em breve iria se esfacelar depois da Primeira Guerra Mundial133. Com a ascensão do nacionalismo e da violenta perseguição de judeus na Europa, a teoria de um nacionalismo judaico começa a ser formulada: o povo judeu passa a ser visto com um povo errante que devia retornar ao seu único lar, a Terra Santa – nas décadas seguintes, essa ideia inspirou uma série de migrações de judeus (chamadas de aliyah, ascensão, aliyot em plural) que formaram as primeiras comunidades contemporâneas de imigrantes judeus na Terra Santa. Em grande parte, as primeiras aliyot foram desencorajadas pela Grã-Bretanha, que havia estabelecido um protetorado na Palestina com o fim da Primeira Guerra Mundial e a derrota do Império Otomano. Ainda assim, nenhum esforço eficaz foi realizado para impedir o aumento da população judaica no território palestino. A situação só mudou depois do fim da Segunda Guerra Mundial, quando os horrores do Holocausto foram expostos. Em 1947, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou o plano de divisão do território Palestino, com grande resistência dos países árabes presentes. Em 14 de maio de 1948, a independência do Estado de Israel é declarada, enfurecendo os países árabes vizinhos, que invadiram o território israelense no dia seguinte, iniciando a Guerra Árabe-Israelense de 1948. O conflito se encerrou um ano depois, em 1949, com o estabelecimento da “Linha Verde” como fronteira entre o Estado Árabe e o Estado Judeu – Jerusalém, cidade sagrada de árabes e judeus, deveria permanecer como uma cidade sob regime especial, nem árabe, nem judeu. Com o fim da guerra, mais de 700.000 refugiados palestinos haviam fugido ou sido expulsos de suas comunidades – suas casas, em sua maioria, foram destruídas pelo governo israelense, que até hoje nega o direito de retorno aos refugiados e seus descendentes134 – evento que ficou conhecido como “a Catástrofe”, a Nakba, em árabe. Os árabes que continuaram no interior dos limites estabelecidos ao longo das diversas guerras após 1948 foram incorporados pelo Estado Israelense e considerados 132 BREGMAN, Ahron. La Ocupación: Israel y los territorios palestinos. Barcelona: Editora Crítica, 2014. 133 BREGMAN, Ahron. Cursed Victory: a history of Israel and the occupied territories, 1967 to the Present. Nova York: Pegasus Books, 2015. 134 PAPPE, Ilan. The Ethnic Cleansing of Palestine. Londres: Oneworld, 2017. 57 cidadãos de pleno direito, embora não devam prestar serviço militar obrigatório, à diferença dos drusos, que hoje prestam serviço militar obrigatório. Em 1967, estoura a Guerra dos Seis Dias, em que a cidade santa de Jerusalém é anexada pelas forças israelenses, o que serviu para aumentar a inimizade nutrida pela população do mundo árabe contra a minoria judaica, que, historicamente, havia florescido no interior dos países árabes em relativa liberdade e tolerância. Disso resultaram uma série de violentas perseguições e a expulsão de comunidades judaicas inteiras que viviam nos países árabes – esses refugiados, então, foram se estabelecer em Israel em sua maioria135. Outras guerras ocorreram ao longo dos anos seguintes e, embora nenhuma grande derrota tenha sido imposta a Israel, os dirigentes do novo Estado Israelense perceberam que sua supremacia militar não seria eterna136 – essa constatação me parece ter dado origem ao processo de paz com os países vizinhos. A relação com os palestinos, contudo, apenas foi se degradando, o que culminou na declaração da Primeira Intifada (que, em árabe, significa “levante” ou “revolta”) – encerrada somente após a assinatura dos Acordos de Paz de Oslo, em 1993, em que Israel reconheceu, entre outras coisas, a existência da Autoridade Palestina. Os acordos, contudo, tiveram pouco sucesso, porque uma nova revolta aconteceu menos de dez anos depois, quando, em setembro de 2000, os palestinos declararam a Segunda Intifada, cujo término somente se daria quatro anos depois, em 2005. A estratégia empregada pelos palestinos – em especial, suas ações terroristas – motivou o estabelecimento de checkpoints nos pontos de acesso do território israelense e a construção de dois muros em todo o entorno dos territórios sob controle da Autoridade Palestina: a faixa de Gaza e a Cisjordânia137. Com a construção do muro, era esperado que os ataques terroristas diminuíssem e que a ameaça representada pelos palestinos estivesse debaixo do mais firme monitoramento. Em nome da segurança pública israelense, o governo de Ariel Sharon encarcerou todo um povo por meio da construção do muro e do estabelecimento de checkpoints que categorizam aqueles a quem é permitido entrar e sair. A medida é intensamente criticada, inclusive pela Corte Internacional de Justiça138, na medida em que representa o aprofundamento das políticas de segregação racial e o estabelecimento de um regime de 135 SAND, Shlomo. A Invenção da Terra de Israel: da Terra Santa à Terra Pátria. São Paulo: Benvirá, 2014. 136 BREGMAN, Ahron. Cursed Victory: a history of Israel and the occupied territories, 1967 to the Present. Nova York: Pegasus Books, 2015. 137 CHOMSKY, Noam; PAPPE, Ilan. Gaza In Crisis: reflections on Israel’s war against the Palestinians. Chicago: Haymarket Books, 2010. 138 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Legal Consequences of the Construction of a Wall in the Occupied Palestinian Territory. Disponível em: < http://www.icj-cij.org/en/case/131>. Acesso em: 10 nov. 2017. 58 apertheid, como muitos ativistas palestinos e pesquisadores tendem a nomear o sistema israelense. O muro intensifica a dicotomia entre israelenses e palestinos, acirrando o antagonismo entre o israelense/colono e o palestino/terrorista, além de efetivar a perpetuação de violações de direitos humanos motivadas, basicamente, por discriminações de ordem étnica e religiosa. Encerro esta introdução inicial recorrendo às palavras de Shlomo Sand, cujos ensinamentos representam, para mim, uma grande referência acadêmica e política: Não se pode esquecer que, antes de formular uma ideia sobre uma mudança da política identitária israelense, seria preciso se libertar dessa maldita e interminável ocupação que nos leva ao inferno. A relação com o outro, com o cidadão de segunda classe de Israel, está intrinsecamente ligada à relação com aquele que vive em um imenso infortúnio, muito baixo na cadeia de ações de graça sionistas. Essa população oprimida, vivendo sob ocupação há quase cinquenta anos, privada de direitos políticos e cívicos, em uma terra que o “Estado dos judeus” considera como sua, está abandonada pela política internacional. Reconheço que meu sonho de um final de ocupação e da criação de uma confederação entre as duas repúblicas, israelense e palestina, havia subestimado a relação de forças entre as duas partes139. Ironicamente, o título dado por Shlomo Sand ao livro que acabei de citar foi “Como Deixei de Ser Judeu”, o que me remete à única alternativa existente que permita a Israel uma reconciliação com os direitos humanos: deixar de ser Estado Judeu para tornar-se Estado de todos aqueles que vivem dentro de suas fronteiras. 5.1 Do lado israelense do muro כי שמך צורב את השפתיים כנשיקת שרף אם אשכחך ירושלים אשר כולה זהב Estrofe140 final de “Yerushalayim Shel Zahav”, tema da Guerra dos Seis Dias, composição de Naomi Shemer. Apesar de o Estado Israelense ter surgido oficialmente no ano de 1948, o nacionalismo israelense é mais antigo e remonta ao surgimento do sionismo141 em 1897, 139 SAND, Shlomo. Como Deixei de Ser Judeu. São Paulo: Benvirá, 2015. 140 Tradução livre: O teu nome queimará meus lábios como o beijo de um serafim caso eu te esqueça, Jerusalém, que é toda em ouro... 141 SAND, Shlomo. A Invenção da Terra de Israel: da Terra Santa à Terra Pátria. São Paulo: Benvirá, 2014. 59 movimento político que buscava a criação de um Estado Nacional judeu142 e que hoje luta pela consolidação do povoamento judaico no território do antigo Reino de Israel. Quando veio a independência do Estado de Israel, a Palestina já contava com uma grande colônia judaica, que, nas décadas anteriores, havia inclusive revivido143 o hebraico, que deixou de ser apenas uma língua sagrada para se tornar uma língua falada. Com a declaração de independência, Israel abriu suas portas para receber todos os judeus do mundo. A população israelense não era homogênea (como ainda não é hoje), justamente porque os judeus de todo o mundo haviam existido em comunidades dispersas ao redor do globo, razão pela qual o governo de Israel precisava promover uma forte homogeneização cultural. Para isso, foi necessário mais do que o ensino obrigatório do hebraico para os imigrantes que chegavam, onda após onda, à terra de Israel. A única saída foi recorrer ao mítico passado comum do povo judeu, registrado ao longo das páginas da Bíblia. Por esse mesmo motivo, o governo de Israel até hoje promove a arqueologia bíblica e a inserção do estudo obrigatório da narrativa religiosa no currículo escolar144. A memória do Holocausto é um dos componentes vivos do cotidiano israelense, que é constantemente invocado e reverenciado dentro da vida cívica nacional, o que muitas vezes apresenta uma relação “desconfortável” com a memória da questão palestina – se a memória do Holocausto está viva dentro dos israelenses, a memória das tragédias palestinas está bem viva na geografia local – o Memorial do Holocausto Yad Vashem, por exemplo, está construído diante das ruínas da vila palestina de Deir Yassin, onde, em 1948, mais de cem civis foram brutalmente assassinados por paramilitares judeus145. Hoje, há um estabelecimento de saúde mental construído sobre as ruínas de Deir Yassin, onde não há nenhuma menção que testemunhe o passado do local. De forma similar, a geografia e a paisagem do território israelense sofreram mudanças acentuadas ao longo das décadas que se seguiram à declaração de independência de Israel: as vilas palestinas foram, em sua maioria, destruídas e ocultadas debaixo de florestas, parques nacionais, kibutzim e outros marcos geográficos146. A toponímia também sofreu modificações acentuadas: as cidades, as vilas e os acidentes geográficos adquiriram novas feições judaicas – Nablus torna-se Shechem, Al- Khalil torna-se Hebrom, AlQuds (Jerusalém, para os árabes) torna-se Yerushalayim, nomes 142 Que se expressa no moto “uma terra sem povo para um povo sem terra”. 143 RABIN, Chaim. A Short History of the Hebrew Language. Jerusalém: Agência Judaica, 1973. 144 SAND, Shlomo. A Invenção do Povo Judeu. São Paulo: Benvirá, 2011. 145 SAND, Shlomo. A Invenção da Terra de Israel: da Terra Santa à Terra Pátria. São Paulo: Benvirá, 2014. 146 BENVENISTI, Meron. Sacred Landscape: the buried history of the Holy Land since 1948. Oakland: University of California Press, 2000. 60 que passam a substituir a antiga toponímia árabe, inclusive nas placas de trânsito147. A própria leitura da geografia ao longo do tempo mudou: o relevo passam a existir em função de um mítico passado bíblico, em que cada pedra, monte, vale e colina são associados com algum rei ou profeta que, na historiografia israelense, são indiscutivelmente os ancestrais do povo judeu148. Jerusalém, anexada ao território israelense em 1967, é declarada a capital única e indivisível do Estado de Israel, que não hesita em promover, dentro das ruas da Cidade Velha, seus símbolos nacionais e religiosos – em cada porta da muralha de Jerusalém, mesmo na dos bairros árabes, há um mezuzah, um amuleto fixado nos umbrais das portas judaicas. Apesar de ser mais fácil observar uma forte estratificação entre os judeus israelenses e os árabes israelenses, é igualmente possível observar estratos sociais determinados por força do grupo étnico judaico: os ashkenazim – os judeus europeus – ocupam o topo da hierarquia social, sendo seguidos de perto pelos sephardim – os judeus da Península Ibérica e do Marrocos, pelos mizrahim – os judeus do mundo árabe (ou judeus árabes) – e pelos judeus etíopes, que enfrentam as maiores dificuldades socioeconômicas dentro da sociedade israelense, além de discriminação racial149. A discriminação social existente como fruto da estratificação entre ashkenazim e os demais judeus de Israel já foi tão profunda que esteve presente em fatos decisivos da história israelense. Yigal Amir, terrorista judeu que assassinou o Primeiro-Ministro de Israel, Yitzchak Rabin, em novembro de 1995, tinha entre suas motivações a necessidade de “provar o seu valor” para os pais de sua ex-noiva, que impediram o casamento porque Yigal Amir era mizrahi, de família iemenita, enquanto a noiva era de família ashkenaz150. Ao assassinar Rabin, considerado um traidor dos Judeus por estar conduzindo com o inimigo as negociações de paz de Oslo, Yigal Amir procurava provar o seu valor como membro orgulhoso e digno dentro da sociedade judaica. De forma similar, o segmento religioso judaico também vem representando uma forma de discriminação: os judeus ortodoxos, que são endossados oficialmente pelo Estado Israelense, são especialmente intolerantes151 para com os judeus reformados, que praticam 147 Ibidem. 148 SAND, Shlomo. A Invenção da Terra de Israel: da Terra Santa à Terra Pátria. São Paulo: Benvirá, 2014. 149 FORWARD. Ethiopian Israelis Clash With Police as Anti-Racism Protests Escalate. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2017. 150 THE NEW YORK TIMES. A Son of Israel: Rabin’s Assassin – a special report – belief to blood: the making of Rabin’s killer. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2017. 151 NEWSWEEK. Reform Jews Are Worse Than Holocaust Deniers, Says Former Chief Rabbi of Israel. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2017. 61 uma forma de judaísmo reinterpretada à contemporaneidade. Atualmente, há um forte embate (as vezes extremamente violento) sobre a possibilidade de as mulheres judias expressarem sua fé e participarem ativamente em rituais judaicos152 no Muro Ocidental (o lugar mais sagrado para a religião judaica). Não devo deixar de mencionar, ainda, as células terroristas judaicas que continuam em atividade153 – todos os anos, alguns punhados de judeus “extremistas” ou “radicais” (como a mídia prefere chamá-los) são presos pela polícia israelense. Em 2015, um judeu ultraortodoxo esfaqueou seis pessoas na Parada Gay de Jerusalém154 – uma delas, uma garota de dezesseis anos, morreu logo depois. Em Israel, o serviço militar é obrigatório para todos e todas – ninguém é dispensado, com poucas exceções além dos religiosos judeus, dos árabes israelenses e dos drusos religiosos. Isso significa dizer que a população de Israel é uma população essencialmente militarizada, o que contribuiu fortemente para a consolidação da identidade israelense, na medida em que o treinamento das Forças Israelenses de Defesa contribui para a formação de uma mentalidade patriótica e nacionalista nos jovens recrutas – entre 18 e 29 anos de idade para homens, e 18 e 26 para mulheres155. Hoje, os sionistas se articulam no sentido de construir e ocupar assentamentos no território da Cisjordânia, que cabia à Palestina segundo os acordos internacionais estabelecidos. No pensamento sionista, os judeus devem ocupar toda a Terra Santa, nas fronteiras ancestrais dos míticos templos bíblicos, razão pela qual os assentamentos se justificam, na medida em que foram construídos nas terras que outrora foram conhecidos como Judeia e Samaria. A construção e a manutenção de assentamentos sofrem críticas constantes, inclusive da Assembleia Geral156 e do Conselho de Segurança das Nações Unidas157, mas o governo israelense mantém firme a sua pretensão em ocupar a Cisjordânia. Nas palavras de Binyamin Netanyahu, atual presidente de Israel: “We are here to stay, forever […], there will be no more uprooting of settlements in the land of Israel. It has been proven that it does not help 152 JEWISH TELEGRAPHIC AGENCY. Women of the Wall Says Haredi Israeli Lawmaker Compared Them To Dogs. Disponível em: < https://www.jta.org/2017/11/02/news-opinion/israel-middle-east/haredi- israeli-lawmaker-appears-to-compare-non-orthodox-jews-to-dogs>. Acesso em: 10 nov. 2017. 153 PEDAHZUR, Ami. Jewish Terrorism in Israel. Nova York: Columbia University, 2011. 154 HAARETZ. Ultra-Orthodox Man Convicted of Murder for Fatal Teen Stabbing at Jerusalem Gay Pride Parade. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2017. 155 ESTADO DE ISRAEL. Israeli Defense Service Law. Disponível em: < http://www.mfa.gov.il/mfa/mfa- archive/1980-1989/pages/defence%20service%20law%20-consolidated%20version--%205746-1.aspx>. Acesso em: 10 nov. 2017. 156 ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolução 39/146 de 14 de dezembro de 1984. 157 CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolução 446 de 22 de março de 1979. 62 peace. We’ve uprooted settlements, what did we get? We received missiles. It will no happen anymore. And there’s another reasons that we will look after this place, because it looks after us. In light of everything that is occurring around us, we can just imagine the result. So we we will not fold. We are guarding Samaria against those who want to uproot us. We will deepen our roots, build, strength and settle158”. Por óbvio, a sociedade israelense comporta uma série de contradições, oriunda, principalmente, de seu passado colonial (e sem ignorar o seu presente), na medida em que as estruturas sociais constituídas desde 1948 refletem o processo turbulento de criação e consolidação de um novo Estado – por colonos que muitas vezes nem sequer dispunham de uma identidade em comum – e num território que já se encontrava ocupado por uma população autóctone. As consequências desse processo trariam impactos profundos para os “não-judeus” da Terra Santa – os dirigentes de Israel talvez não soubessem, mas foram responsáveis por impulsionar o crescimento da identidade palestina. Quanto ao ambiente vivenciado por israelenses judeus no convívio direto com árabes e palestinos, vou recorrer à minha própria vivência para descrever, em parte, o peso dessa realidade. Quando estive em Israel e na Palestina, em 2015, apenas vesti minha identidade brasileira, o que me permitia circular por todos os lugares com facilidade e ser bem recebido onde quer que eu fosse. Em 2015, morei por alguns meses em Ramallah (centro administrativo e econômico da Cisjordânia) e nos bairros predominantemente árabes da Cidade Velha de Jerusalém – contudo, também viajei por todo o país, desde as Colinas de Golã, no Norte, até o deserto do Sul. Ser brasileiro sempre despertava simpatia, por causa do samba, do futebol, da beleza das praias e do povo.... Enfim: eu agradava de forma igual árabes e judeus, israelenses e palestinos, onde quer que eu fosse. Em 2016, estive em Tel-Aviv (nesse período, só fui ao outro lado do muro uma única vez) vivendo uma vida plenamente judaica. Quando visitei Jerusalém, agora usando uma quipá, percebi uma mudança substancial no tratamento dos árabes – lembro fixamente que somente um senhor de idade me tratou bem, o que acabou me gerando uma repreensão grave de dois adolescentes judeus, mais jovens do que eu, que haviam presenciado nossa conversa. Ser brasileiro havia significado uma forma de ter acesso a todos os espaços – ser judeu (o que 158 HAARETZ. Netanyahu Vows to Never Remove Israeli Settlements From West Bank: ‘we’are here to stay forever’. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2017. Tradução livre: "Estamos aqui para ficar, para sempre [...], não haverá mais desocupação de assentamentos na terra de Israel. Está provado que isso não ajuda a trazer paz. Nós removemos assentamentos, o que obtivemos? Recebemos mísseis. Não haverá mais nada. E há outros motivos para cuidar desse lugar, porque isso nos ajuda. À luz de tudo o que está ocorrendo ao nosso redor, podemos imaginar o resultado. Então, não podemos retroceder. Estamos protegendo a Samaria daqueles que querem nos remover daqui. Vamos aprofundar nossas raízes, construir, fortalecer e ocupar”. 63 se manifestava simbolicamente pela quipá que eu estava usando, um pequeno pedaço de tecido que comportava uma associação simbólica tão grande) havia me tornado, ao mesmo tempo, vítima e inimigo. Quando visitei a Cisjordânia, por fim, não consegui me sentir tão seguro quanto havia me sentido no ano anterior. As ruas de Ramallah, antes tão acolhedoras, se tornaram incômodas embora nada houvesse mudado de fato. Não tive coragem de visitar todos os amigos que havia feito (no final, acabei visitando apenas um) – e nem tive coragem de retornar ao escritório da organização em que havia trabalhado, porque pensava que eles iriam me enxergar como um traidor. Não devo ter passado mais de uma hora em Ramallah, porque a sensação de não ser recebido (ou de estar infiltrado na casa do inimigo) era tudo que eu podia sentir agora. Eu pertencia ao outro lado do muro. 5.2 Do lado palestino do muro البيت لنا و القدس لنا و بأيدينا سنعيد بهاء القدس بايدينا للقدس سالم آ ت Versos159 de “Zahrat Al-Madaen”, canção interpretada por Fairuz. O que diferencia a identidade dos palestinos da identidade do restante dos árabes do Levante não é o dialeto palestino do arábico, nem a sua relação com os lugares santos ou as suas expressões culturais particulares – o que torna o palestino distinto dos sírios, dos jordanianos e dos libaneses é o movimento de resistência que se iniciou paralelamente às tentativas de estabelecimento de um estado judeu na Palestina. Para a forjadura da identidade palestina, o sionismo foi o martelo e o Estado de Israel a bigorna: foi somente depois de 1948, com as sucessivas guerras e debaixo das várias derrotas que o sentimento de pertencimento a um povo palestino surgiu e ascendeu como fonte de coesão social. A afirmação seguinte talvez cause estranheza ao leitor ou à leitora, mas há fortes indícios de que os palestinos de hoje descendem da antiga população judia dos tempos de Herodes. O fato de que os judeus foram um povo expulso de sua terra após a destruição de Jerusalém no ano 70 de nossa era é puramente mitológico: Shlomo Sand, historiador judeu, reúne fontes diversas que demonstram que os judeus nunca foram forçados a abandonar a 159 Tradução livre: Este é o nosso lar e AlQuds [um dos nomes de Jerusalém em arábico] no pertence, e em nossas mãos iremos celebrar o esplendor de AlQuds, por nossas mãos a paz retornará à AlQuds. 64 Palestina160 – uma parte deles de fato migrou de forma voluntária, e outra permaneceu exatamente no mesmo lugar – os judeus que ali permaneceram161 eventualmente se converteram ao cristianismo e ao islamismo, uma hipótese que havia sido formulada por dirigentes israelenses, como o próprio Ben-Gurion. Os ancestrais dos palestinos foram retratados pelos cronistas cruzados – os felás da terra162 –, pela literatura dos peregrinos e por todos os viajantes que passaram pela Terra Santa durante o regime Otomano. Eram, notoriamente, camponeses e pastores, que cultivavam vinhedos e olivais. Havia, ainda, pequenas comunidades judias nas cidades da Palestina, em especial na Galileia, ao exemplo das comunidades de Tiberias, Safed e Hebrom. Antes do estabelecimento de Israel, a convivência entre comunidades era pacífica e próspera163. A nakba, o muro e a opressão sofrida pelos palestinos tornaram-se poderosos símbolos para o pensamento nacional – os campos de refugiados, que se multiplicaram guerra depois de guerra, são, até hoje, centros políticos de resistência164 – muitos dos refugiados ainda guardam chaves de portas que não existem mais, as únicas lembranças que possuem das antigas vilas e cidades que a nakba apagou. Nas vilas e cidades arrasadas, a única construção que ficou de pé foram os cemitérios e, em alguns casos, as mesquitas e santuários. Para o povo palestino, as cores da bandeira, a kufiyah (o lenço palestino), a imagem de Yasser Arafat e a cúpula dourada da mesquita do Domo da Rocha em Jerusalém são os símbolos máximos da Palestina – isso sem mencionar os mártires, homens e mulheres que perderam suas vidas em nome da causa de seu povo e que são reverenciados como exemplos, dignos de carinho, reverência e admiração. Quando estive na Palestina, em 2015 e 2016, vi diversos cartazes com o rosto de pessoas mortas em embates com o exército e a polícia israelense – lembro fixamente que, em janeiro de 2015, vi diversos cartazes com os rostos de dois palestinos que haviam assassinado seis pessoas com machados, cutelos e uma arma-de- fogo, numa sinagoga em Jerusalém dois meses antes, tendo sido mortos pela polícia em seguida. 160 SAND, Shlomo. A Invenção do Povo Judeu. São Paulo: Benvirá, 2011. 161 É importante mencionar que a grande difusão territorial de judeus se deve ao fato de que o judaísmo era uma religião prosélita como o cristianismo, tendo convertido diversos grupos sociais em variadas regiões do mundo, desde a Península Ibérica, passando pelos confins da África e da Rússia, até a China no Extremo Oriente. 162 AUTOR DESCONHECIDO. Gesta Francorum. Disponível em: . Acesso em: 19 nov. 2017. 163 SAND, Shlomo. A Invenção do Povo Judeu. São Paulo: Benvirá, 2011. 164 BENVENISTI, Meron. Sacred Landscape: the buried history of the Holy Land since 1948. Oakland: University of California Press, 2000. 65 A juventude palestina está no fogo-cruzado entre o choque de valores do Ocidente e do Oriente. De um lado, a colonização israelense e o nível de vida superior ostentado pelos vizinhos do outro lado do muro – do outro, os valores tradicionais da sociedade islâmica primitiva - engolfados por esse torvelinho, muitos se voltam para o islão como única alternativa real de se sentirem pertencentes a algo, porque todas as maravilhas oferecidas (carros, motos, mansões, etc.) pelo capitalismo são difíceis ou impossíveis165. De maneira similar, vivenciar de mãos atadas a opressão diária de geração após geração de sua própria família implica num sentimento de revolta imanente – uma das estruturas primordiais do nacionalismo palestino. Diante disso, o terrorismo como forma de martirização torna-se uma possibilidade tentadora, na medida em que permite a solução de dilemas internos que antes eram condenados à passividade. Paralelamente a tudo isso, os palestinos também sofrem por ter que observar as modificações profundas no território em que viviam – diante de seus próprios olhos, seu passado é destruído e negado, os túmulos de seus ancestrais desaparecem por debaixo das ervas daninhas, seus lugares sagrados já não lhes pertencem e não podem ser visitados como antes – a própria história palestina sofre, constantemente, tentativas cada vez mais frequentes de obliteração. Os palestinos passam por privações constantes – sua indústria e agricultura não podem competir com a indústria e a agricultura israelense, que é subvencionada por fortes investimentos nacionais e internacionais, o que força os trabalhadores palestinos a vender sua mão-de-obra por baixo preço, além de dificultar o desenvolvimento local. Nas cidades, bairros e vilas palestinas, a falta de água e energia elétrica são frequentes – todas as casas palestinas possuem tonéis de plástico preto por cima do teto para o armazenamento de água166. Não existe um Estado Palestino – a Autoridade Palestina, reconhecida por meio dos Acordos de Oslo, possui competência extremamente limitada, que nem sequer é uniforme em todo o seu território. Sendo assim, os palestinos, muitas vezes, se submetem ao controle israelense, ainda que estejam, formalmente, dentro da Faixa de Gaza e da Cisjordânia. Em diversas vilas, há protestos semanais contra o domínio israelense, que invariavelmente terminam em algum tipo de embate entre o exército israelense e os civis palestinos. Em Jerusalém, especialmente na Cidade Velha, os habitantes enfrentam proibições distintas, que vão desde a impossibilidade de deixar a cidade por certo tempo (sob pena de perder o direito de retornar) até o impedimento de realizar reformas e expandir residências 165 DERMANT, Peter. O Mundo Muçulmano. São Paulo: Contexto, 2004. 166 MABÍLIA, Adriana. Viagem à Palestina: prisão à céu aberto. São Paulo: José Olympio, 2013. 66 (que se justifica sob o patrimônio histórico das construções, mas não se aplica com o mesmo rigor aos edifícios do Bairro Judeu). A situação dos lugares santos da Mesquita de AlAqsa e do Domo da Rocha passa por momentos de instabilidade constantemente – as vezes, o acesso aos recintos sagrados é negado pela polícia, o que quase sempre termina em protestos violentos e em embates maiores dentro da Cisjordânia. Os palestinos até hoje reivindicam Jerusalém como sendo sua capital, uma demanda que sempre vem à tona dentro dos protestos que tratam das questões envolvendo a cidade. Atualmente, o parlamento israelense, o Knesset, está prestes a aprovar a “Lei do Estado Nacional”, que impõe aos magistrados o dever de julgar conforme as prescrições religiosas da lei judaica quando não houver previsão legal sobre a matéria ou precedente judicial. Além disso, a “Lei do Estado Nacional167” estabelece que Israel é um Estado puramente judeu, o que desconsidera de forma gritante a existência de diversas minorias no seio do Estado Israelense – incluindo seus cidadãos árabes. Mais uma vez, decido recorrer à minha vivência para ilustrar a força poderosa exercida pelo ambiente conflituoso sobre os palestinos e sua forma de compreender os israelenses. Em 2015, quando estagiei numa organização de defesa e promoção dos direitos dos presos políticos palestinos em Ramallah, me aproximei muito de uma colega de trabalho palestina que vou chamar de Nour – nossa relação tornou-se muito próxima e logo nos tornamos bons amigos. Enquanto o estágio durou, Nour e eu fomos inseparáveis. Sempre conversávamos muito, e numa dessas conversas ela me definiu seu posicionamento sobre a questão Israel- Palestina: Eu não quero paz com os judeus. Eu quero a terra que me pertence. Eu não quero um Estado, eu não quero dois Estados, essa terra é a terra palestina que pertence aos palestinos. Os judeus não têm direito nenhum sobre a Palestina, eles não deviam estar aqui, eles têm que voltar para onde vieram. Enquanto houver judeus aqui, não vai haver paz, por que nós não aceitaremos menos do que nos pertence. Se for necessário, mataremos todos para ter nossa terra de volta. Me parecia paradoxal ouvir isso de uma pessoa tão amável, prestativa e, sobretudo, uma defensora convicta dos direitos humanos, que havia se sensibilizado imensamente quando mostrei fotos das prisões brasileiras – mas o fato é que a desumanização não costuma enxergar muitos limites. Quando, em 2016, assumi minhas raízes judaicas e demonstrei esse 167 HAARETZ. Knesset Advances Controversial Bill Prescribing Jewish Law in Absence of Legal Precedent. Disponível em: . Acesso em: 02 nov. 2017. 67 fato em minhas redes sociais, Nour me bloqueou e nunca mais tivemos qualquer tipo de contato – afinal, eu me tornei o inimigo. Apesar disso, compreendo a reação de Nour – afinal, viver debaixo da ocupação israelense é um inferno: no escritório em que trabalhamos, ativistas são constantemente presos – um deles havia sido preso pouco depois do meu retorno ao Brasil, outros foram presos logo depois e, na prisão, a tortura é uma prática comum – por mera perseguição política, enquanto, muito provavelmente, familiares e amigos de Nour foram vitimados pelo conflito. Nour era somente mais um soldado nascido e treinado debaixo do conflito travado por israelenses e palestinos, um ciclo vicioso que se repete geração após geração e do qual é difícil sair. 5.3 Os presos políticos palestinos e as prisões administrativas israelenses O sistema pelo qual palestinos são julgados e processados por israelenses está na mais completa, pura e evidente contradição com as normas de direito internacional oriundas dos mais diversos tratados de direitos humanos, que não vou listar ao longo das próximas páginas por questões de economicidade – para aprofundamento na questão, basta procurar algum relatório produzido por organizações locais de defesa de direitos humanos, como a Addameer, a Al-Haq, a Yesh Din, a B’Tselem e o Programa de Acompanhamento Ecumênico na Palestina e em Israel. Portanto, passo a descrever, o mais sucintamente o possível, as características do sistema e as violações de direitos humanos que nascem dele. Os Acordos de Oslo estabeleceram uma série de competências territoriais distintas sobre os territórios da Cisjordânia. A área urbana de cidades como Nablus e Ramallah, a Área A, é de competência exclusiva da Autoridade Palestina, que tutela tanto as questões civis quanto as questões de segurança. A Área B, por sua vez, tem controle político da Autoridade Palestina nas questões civis e controle israelense nas questões de segurança. A área C, por fim, é de total controle israelense, compondo a maior fração do território. Qualquer ato considerado como crime ou infração efetuada por palestinos no interior das Áreas B e C serão processados e julgados pelo Sistema Judicial Militar Israelense (incluindo crimes de trânsito). Quem determina, portanto, as infrações e delitos dentro do território de competência israelense é o exército, que hoje criminaliza quaisquer atividades cívicas168, como organizar e 168 ESTADO DE ISRAEL. Military Order 101 – “Order Regarding Prohibition of Incitement and Hostile Propaganda”. Disponível em: 68 participar de protestos, participar de assembleias ou vigílias, erguer bandeiras e outros símbolos políticos, imprimir e distribuir materiais de cunho político, realizar qualquer ação que incite a “opinião pública”, assim como qualquer ato que ofereça simpatia ou suporte às organizações consideradas hostis pelo governo de Israel, como o Hamas – organização política palestina no controle da Faixa de Gaza. Nesse sentido, qualquer ato pode ser inserido dentro desses tipos penais abertos, como atirar pedras no muro, cobrir o rosto com uma kufiyah ou defender os direitos dos palestinos de forma pacífica através de posts no Facebook169 – para Israel, a prisão de palestinos é provavelmente mais simples e rápida do que a prisão de qualquer israelense: ao exemplo dos crimes e infrações cometidos por colonos judeus de assentamentos ilegais na Cisjordânia, cujas denúncias e processos invariavelmente são arquivados170, uma situação que vem se perpetuando há mais de dez anos171. Qualquer uma dessas infrações pode motivar a prisão e o julgamento de um palestino, que será julgado por uma corte militar172. Com a emissão de uma ordem de prisão, a detenção dos acusados tende a ser realizada em checkpoints e protestos, ou, ainda, por meio de invasões realizadas por soldados das Forças Israelenses de Defesa, que invadem a residência do réu de forma truculenta, às vezes à noite e não raro causando prejuízos econômicos173. As agressões verbais e físicas são comuns, além da violência psicológica resultante da exibição de armas e da utilização de cães. Os julgamentos são realizados em hebraico, língua dos magistrados, que são israelenses – os palestinos, por sua vez, falam árabe e poucos detêm conhecimento suficiente do hebraico para poder compreender o que está acontecendo. Quando tem sorte, o acusado pode contar com um advogado que fale hebraico, ou com a presença de um soldado que fale árabe (embora, quase sempre, o tratamento oferecido pelo soldado seja extremamente desumanizado174). . Acesso em: 24 nov. 2017. 169 ADDAMEER. Annual Violations Report – Violations of Palestinian Prisoners Rights in Israeli Prisons. Ramallah: ADDAMEER, 2017. 170 YESH DIN. Mock Enforcement: the failure to enforce the Law on Israeli civilians in the West Bank. Tel Aviv: Yesh Din, 2015. 171 YESH DIN. Law Enforcement Upon Israeli Civilians in the West Bank. Tel Aviv: Yesh Din, 2006. 172 ESTADO DE ISRAEL. Military Order 378 of 1970. Disponível em: < http://www.geocities.ws/savepalestinenow/israelmilitaryorders/israelimilitaryorders.htm>. Acesso em: 24 nov. 2017. 173 B’TSELEM; HAMOKED. Back By The System: abuse and torture at the Shikma Interrogation Facility. Jerusalém: B’TSELEM, 2015. 174 ADDAMEER. Eyes on Israeli Military Court: a collection of impressions. Ramallah: ADDAMEER, 2012. 69 As provas empregadas no processo representam mais uma faceta do sistema violador de direitos humanos. Os julgamentos não são realizados dentro do princípio do devido processo legal, na medida em que não há, por exemplo, acesso dos réus e de seus advogados às provas e evidências “secretas” apresentadas aos juízes, mantidas por sigilo sob razões de “segurança pública”. Por outro lado, não é qualquer advogado palestino que poderá tomar a frente de uma causa: há sérias restrições relacionadas com a nacionalidade e o lugar de residência do advogado. Por exemplo: advogados palestinos com cidadania israelense possuem relativa liberdade para representar seus clientes, com exceção do território sob a Área A e da Faixa de Gaza – enquanto advogados palestinos de Gaza não podem deixar Gaza, advogados palestinos da Cisjordânia não podem deixar a Cisjordânia e advogados palestinos residentes em Jerusalém devem, todos os anos, prestar um novo exame de aptidão para que possam exercer a advocacia, algo que não é exigido dos advogados israelenses175. A tortura é legítima dentro do Estado Israelense – e as informações por ela obtida são empregadas como evidência em processos judiciais. Desde 1967, cerca de 75 detentos morreram nas prisões israelenses por consequência de sessões de tortura. A tortura, inclusive, é reconhecida pela Suprema Corte de Justiça, que em 1999 tentou estabelecer um limite de uso: os torturadores somente poderiam utilizar “pressão física moderada176” durante os interrogatórios, o que nem sequer é respeitado, conforme relatos de presos que alegam ter sofrido privação de sono, exposição à excesso de frio e calor por longo período, negativa de água e comida por muito tempo, tortura psicológica, o emprego de música extremamente alta dentro de suas celas, entre outras177. Além disso, é importante mencionar que as prisões administrativas não fazem distinção de idade e gênero: mulheres grávidas, crianças178 e idosos têm sido detidos discricionariamente. No interior das prisões não há respeito aos direitos dos presos à educação, comunicação com familiares e visitas, tratamento médico adequado e boa alimentação. Além disso, os presos religiosos não têm direito à alimentação de acordo com as regras de sua religião, ou muito menos estruturas adequadas para exercer seu culto religioso. 175 ADDAMEER. Administrative Detention in the Occupied Palestinian Territory: a legal analysis report. 4. ed. Ramallah: ADDAMEER, 2016. 176 Ibidem. 177 QATAMISH, Ribhi. Torture of Palestinian Political Prisoners in Israeli Prisons. Ramallah: ADDAMEER, 2003. 178 ADDAMEER. Imprisonment of Children. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2017. 70 Hoje, existem 6.198 presos políticos em Israel. 280 são crianças, 58 são mulheres e 463 presos são detentos administrativos179. Por outro lado, o Estado de Israel se nega a realizar qualquer tipo de reparação aos danos causados por suas forças de segurança aos palestinos – não raro, as incursões do exército israelense causam grandes prejuízos econômicos aos palestinos, que podem perder parte de suas lavouras, portas, janelas, portões, móveis, ornamentos, entre outros180. Além disso, os impactos da violência exercida nesses procedimentos não devem ser deixados de lado: as casas dos palestinos geralmente são habitadas por diversos núcleos familiares inter- relacionados, o que significa que muitas pessoas (incluindo bebês, crianças e idosos) sofrem as consequências da violência truculenta exercida pelas forças israelenses. O seguinte relato vem de um preso político palestino de quarenta anos de idade, um professor do primário detido em Jnaid no mês de agosto de 2008: “I was held for interrogation for 91 days. At the beginning of each ‘torture session’, a bag was placed over my head and tightened around my eyes. After tying my hands behind my back, I was then hung by my hands to the ceiling. In this position, they also lifted my legs and swung me and then flogged my feet. They tortured me in this way for two weeks from 8:00 a.m. until 1:00 a.m. They never stopped torturing me except during visits and meal times. After the two-week period, they forced me to remain in painful positions for long periods of time over an eight-day period but without beating me. Some of the positions included tying my hands behind my back without allowing me to sit down, forcing me to stand with my legs apart, balancing a stick between them. Whenever the stick would fall down, they would beat me with a baton or push me against the wall. They continued to torture me for 52 days, including during the month of Ramadan with the exception of the four days breaking the fast. During this time, they brought me meals in the mornings and evenings, but that did not stop them from tormenting me. On the contrary, they kept on telling me that the butchery had just started and that I hadn’t seen anything yet. The beatings were worse at night, especially from 11:00 p.m. to 1:00 a.m.; they called this period the ‘ceremonial period’. The torture affected me both physically and psychologically.”181 179 ADDAMEER. Statistics. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2017. 180 B’TSELEM. Israel’s Refusal to Compensate Palestinians for Damages Caused by Its Security Forces. Jerusalém: B’TSELEM, 2017. 181 ADDAMEER. Stolen Hope: political detention in the West Bank. Ramallah: ADDAMEER, 2011. p. 26. Tradução livre: "Eu fui mantido em interrogatório por 91 dias. No início de cada "sessão de tortura", um saco era colocado sobre minha cabeça e apertado ao redor dos meus olhos. Depois de amarrar as mãos atrás das minhas costas, eu era pendurado pelas mãos ao teto. Nesta posição, eles também levantaram minhas pernas e me balançaram e depois açoitaram meus pés. Eles me torturaram dessa maneira durante duas semanas a partir das 8:00 da manhã até as 1:00 da manhã do dia seguinte. Eles nunca pararam de me torturar, exceto durante as visitas e as refeições. Após o período de duas semanas, eles me forçaram a permanecer em posições dolorosas por longos períodos de tempo durante um período de oito dias mas sem me fazer capitular. Algumas das posições incluíam amarrar minhas mãos atrás das minhas costas sem me permitir sentar, forçando-me a ficar de pé com as pernas separadas, equilibrando uma vara entre elas. Sempre que a vara caía, eles me bateriam com um bastão ou me empurrariam contra a parede. Eles continuaram a me torturar por 52 dias, inclusive durante o mês 71 Dentro desse cenário, por fim, é imprescindível mencionar as detenções administrativas, que representam uma das faces mais cruéis e violadoras do regime de ocupação israelense, porque apresentam características ainda mais graves do que as prisões políticas em geral. As prisões administrativas são um procedimento previsto em lei que permite aos militares manter prisioneiros em custódia administrativa (ou seja, fora do sistema judicial) por tempo indefinido e sob segredo de Estado182. Na qualidade de presos administrativos, não há apresentação de acusações contra o réu nem o estabelecimento de um processo – ou seja: não há possibilidades reais de que o acusado seja condenado ou absolvido, mas apenas a custódia indefinida por razões de “segurança pública”. Após a prisão administrativa, um acusado pode ser mantido preso pelo período de 04 dias, prorrogáveis por mais 04, sem ser informado do motivo de sua prisão e sem ser levado à juízo. Durante esse tempo, a localização do preso pode permanecer desconhecida por sua família e por seus advogados, sob a justificativa de razões de “segurança pública”. O julgamento é, ainda, todo realizado em hebraico. O preso só será levado à juízo com o término dos 08 dias de prisão, quando a sua detenção administrativa será analisada por um juiz militar com base nas evidências secretas apresentadas pela Agência de Segurança Israelense, em uma audiência que não é aberta ao público. A ordem de prisão pode ser revogada, encurtada ou, o que ocorre na esmagadora maioria das vezes, confirmada. O preso tem direito de apelar da decisão que confirme a detenção administrativa para a Corte de Apelos de Detentos Administrativos, um dos componentes do sistema judicial militar, o que, em geral, é uma alternativa ineficaz, na medida em que o réu e seu defensor não têm acesso às provas, não havendo, portanto, a mínima possibilidade de oferecer uma defesa bem fundamentada e constituída de acordo com as informações provenientes dos autos. Em raras circunstâncias, o juiz responsável pode considerar as provas de caráter público e permitir a consulta por parte da defesa. Por sua vez, a apresentação das informações obtidas em interrogatórios para a defesa e o procurador militar demora meses, o que dificulta ainda do Ramadã, com a exceção dos quatro dias rompendo o jejum. Durante essa época, eles me trouxeram refeições nas manhãs e nas noites, mas isso não os impediu de me atormentar. Pelo contrário, eles continuavam falando que a carnificina tinha começado e que eu ainda não tinha visto nada. Os espancamentos eram piores à noite, especialmente a partir das 11:00 da noite até às 1:00 da manhã. Eles chamaram esse período de "período cerimonial". A tortura me afetou tanto fisicamente quanto psicologicamente ". 182 Ibidem. 72 mais o trabalho dos advogados do réu. Há, ainda, a possibilidade de que um recurso seja submetido à Suprema Corte de Justiça, mas, em sua maioria, os recursos são indeferidos. Caso a ordem de detenção administrativa tenha sido confirmada pelo juiz militar, ao término do prazo de seis meses uma nova prorrogação em tempo igual poderá ser deferida (geralmente sob alegações de “segurança pública) em um número ilimitado de vezes, desde que o detento seja “ouvido” em nova audiência secreta pelo juiz militar responsável. É comum, por exemplo, que presos julgados e condenados por infrações militares israelenses continuem encarcerados após o cumprimento da sentença através de uma ordem de detenção administrativa por “razões de segurança pública” – o que implica na perpetuação da prisão. Durante os 08 dias iniciais de detenção administrativa, o preso pode ser submetido à tortura (o que infelizmente ocorre de forma recorrente). Em suma: as detenções administrativas são um instituto que viola direitos humanos de forma flagrante – ao longo dos últimos parágrafos, expus de forma sucinta as principais características desse procedimento, que vi com meus próprios olhos na qualidade de voluntário da Addameer, organização sem fins lucrativos que trabalha em prol dos presos políticos palestinos e que elaborou as fontes empregadas nestas páginas. Trata-se de uma situação insustentável que, infelizmente, não vem apresentando mudanças positivas ao longo dos últimos anos. 6. BRASIL: PRISÕES E MASSACRES NA TERRA DO CARNAVAL “Se eu avançar, siga-me Se eu recuar, mate-me Se eu morrer, vingue-me Pois somos guerreiros do Comando Vermelho”. Excerto de um dos estatutos atribuídos ao Comando Vermelho183. “Art. II. Lutar sempre pela paz, justiça, liberdade, igualdade e união, visando ao crescimento da nossa organização, respeitando sempre a ética do crime”. Excerto de um dos estatutos atribuídos ao Primeiro Comando da Capital. Descrever o crime no Brasil em todas suas sutilezas é um trabalho desafiador que requer muitas páginas – em função disso, pretendo apresentar brevemente o cenário 183 Disponível em: . Acesso em: 02 nov. 2017. 73 contemporâneo da criminalidade brasileira sem, contanto, deixar de ter em vista as suas peculiaridades imanentes – o que, por si só, também não deixa de ser um trabalho desafiador. Sendo assim, destino as próximas páginas à sociedade brasileira e às várias raízes de suas diversas expressões criminosas. À diferença de outros países latinos, a construção de uma identidade nacionalista e cidadã dentro do Brasil é, ainda hoje, essencialmente precária. Os símbolos nacionais estabelecidos e subvencionados pelo governo muitas vezes são inexpressivos – me arrisco a dizer que, para muitos brasileiros, os feriados cívicos apenas têm um significado positivo porque representam um dia livre, sem escola e sem trabalho. As figuras heroicas brasileiras não inspiram grande devoção – Tiradentes, por exemplo, não me parece ser suficientemente carismático para inspirar mais do que um respeito distante, quase indiferente. Às vezes, o sentimento de identidade regional parece ser muito mais forte do que o sentimento de identidade nacional brasileira. Os símbolos patrióticos por excelência não surgiram através de um processo político bem definido, embora sejam extremamente populares e hoje sejam, em parte, subvencionados pelo Estado Brasileiro: o carnaval, o samba e o futebol. Em função disso, vou me arriscar mais uma vez para dizer que o verde e amarelo da bandeira talvez sejam tão populares hoje apenas por causa das camisas da Seleção Brasileira, realizando, assim, uma associação indireta com a bandeira nacional, o que me parece ter ficado muito evidente ao longo dos protestos “anticorrupção” dos últimos anos. Isso demonstra o quão difícil foi (e ainda é) a construção do sentimento de pertencimento à nação brasileira e, por consequência, da construção do próprio arquétipo de brasileiro. Quem é brasileiro? O que é brasileiro? O que é o brasileiro? Como distinguir entre o brasileiro e o não-brasileiro? Como, afinal, definir o que pertence ao Brasil? A resposta para todas estas questões é uma resposta difícil, justamente porque não há, dentro do processo de criação da “nação brasileira”, o surgimento de uma característica comum a todos os brasileiros capaz de induzir um forte sentimento nacional, ao contrário, por exemplo, do nacionalismo israelense baseado na ideia de povo judeu e no nacionalismo palestino de resistência. Quando, por exemplo, as concepções de eugenia e de Darwinismo social estavam em voga, a criação da ideia de uma “raça brasileira” é, essencialmente, paradoxal, porque “partiu de uma concepção peculiar acerca dos efeitos da mestiçagem, baseada na ideia de seleção 74 social184” – ou seja, a “raça brasileira” é, essencialmente, uma raça mestiça, conformada pela “mistura de sangue entre diversas raças”, que deveria ser “branqueada”, ou seja, uma raça miscigenada que necessitava ser submetida a um processo de purificação através do agente branco e europeu, filtrando as “poucas qualidades” das raças inferiores neste processo. É contraditório, portanto, que a superior “raça brasileira” venha surgir das raças “inferiores” que se agregaram e misturaram por força do processo de colonização. Esse formato de caracterização dos diferentes elementos que compõem a população brasileira se repete em outros autores, de modo mais ou menos sofisticado; implica ora na pressuposição de inferioridade racional, ora de inferioridade social dos negros, índios e seus mestiços que, mesmo quando chamados de “superiores”, sucumbem ao critério do atavismo, e jamais serão considerados iguais aos brancos185. As raízes do fenômeno criminal brasileiro se encontram no processo de colonização portuguesa186 que se instalou no território brasileiro após a chegada dos europeus à América. A sociedade brasileira nascente começava a se delinear como uma sociedade de fortes contrastes, baseada numa estratificação social rígida e muito bem definida: no topo, os portugueses detentores de terra e poder político, seguidos logo abaixo pelos portugueses pobres e pelos mestiços, que se posicionavam com supremacia sobre os negros escravos e os índios “selvagens”187. A colonização portuguesa trouxe ao Brasil a Inquisição e, com ela, as práticas judiciais, culturais, religiosas, sociais e econômicas características do sistema inquisitorial – uma ordem jurídica altamente intolerante e excludente que não sofre a restrição de limites, porque se constitui em um sistema penal sem fronteiras que, segundo o professor Nilo Batista, tem a tortura como fundamento, valoriza a delação e utiliza o espetáculo das execuções como meio pedagógico188. Os mecanismos introduzidos no Brasil pela Inquisição são caracterizados por uma dicotomia entre o caos infracional (que reveste o próprio infrator em corpo e alma) e a ordem jurídica essencialmente virtuosa – o combate ao crime tem o caráter de uma cruzada, e a 184 SEYFERTH, Giralda. A Invenção da Raça e o Poder Discriminatório dos Estereótipos. In: Anuário Antropológico/93. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995. pp. 175-203. p. 182. 185 Ibidem. p. 188. 186 BATISTA, Vera Malaguti. O Medo na Cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003. 187 RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 188 BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas do Sistema Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/Freitas Bastos, 2000. vol. 1. 75 aniquilação do ímpio (o extermínio do criminoso) é vista como medida justa e eficaz189. Dentro dessa ótica, o julgador desempenha uma função chancelada pela ordem divina e, portanto, se coloca acima do réu numa posição imunizada por força de sua missão sagrada. Nesta posição privilegiada, portanto, o juiz desempenha a função primordial de definir a verdade e de discernir entre o certo e o errado, o bem e o mal, o justo e o ímpio – uma estrutura estabelecida que detém a função de erradicar o caos e estabelecer a ordem, sendo, portanto, o único legitimado a desempenhar o encargo de avaliar e decidir sobre os fatos, a função de reconhecer e construir a verdade, o que o professor Kant de Lima ilustra a seguir: O sistema, assim, coloca todos juntos, mas separados e hierarquizados na conquista dos melhores lugares em uma estrutura que pode ser representada como piramidal. E como toda estrutura hierarquizada, piramidal, constituída de partes desiguais mas complementares, esta rejeita a explicitação do conflito, uma força disruptora que ameaça desarrumá-la. Quem está no topo, no vértice, é o único que tudo vê, cuja perspectiva é a verdadeira, pois os demais elementos têm apenas visões parciais do conjunto, tanto mais distorcidas quanto mais próximos à base se encontrem. Só vale a pena saber aquilo que poucos sabem, pois só assim tenho a garantia de obter efeitos confiáveis; a informação a que todos têm acesso de nada vale190. Nos tempos de colônia – e, depois, durante o Império, a estratificação social podia ser rígida, mas não era tenaz o suficiente para conter a inquietação dos oprimidos. A história brasileira está repleta de insurgências contra a ordem e o poder constituídos – fato que trouxe consequências profundas para o estabelecimento das práticas de controle anteriormente mencionadas dentro do ordenamento jurídico brasileiro. As revoltas dos oprimidos são comuns durante esse período – todos os livros de história do Brasil retratam dezenas delas, tanto nos tempos de colônia, quanto nos tempos de império, quanto depois, nos tempos de república – e as classes dominantes tremiam diante da possibilidade de insurgências de seus dominados, porque tinham vividamente na memória os relatos dos escravos negros que se rebelavam contra seus senhores e massacravam a família da Casa Grande: Era o grande medo suscitado pela sangrenta revolução em São Domingos [Haiti], onde os negros não só haviam se rebelado contra a escravidão na última década do século XVIII e proclamado sua independência em 1804, como também – sob a direção de Toussaint Louverture – colocaram em prática os grandes princípios da Revolução Francesa, o que acarretou 189 Ibidem. 190 KANT DE LIMA, Roberto. Polícia, justiça e sociedade no Brasil: uma abordagem comparativa dos modelos de administração de conflitos no espaço público. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 13, pp. 23-38. Nov. 1999. p. 25. 76 transtornos fatais para muitos senhores de escravos, suas famílias e propriedades191. O Brasil que recebeu a corte portuguesa e que logo depois tornou-se independente obteve influências do pensamento europeu vigente – as primeiras ideias higienistas chegam ao Brasil em conjunto com os portugueses que fugiam de Napoleão: “nos meados de 30 do século XIX, o discurso médico se destacará no combate à desordem urbana, quando as questões da contaminação transbordarão do ar aos humanos, principalmente os humanos africanos [...] velhos preconceitos aliados a novas estatísticas192”. Os negros começam a ser vistos como matéria de saúde pública – são considerados tão perigosos quanto a falta de saneamento básico nas cidades, a proliferação de insetos e o contato constante com cadáveres em putrefação no interior das igrejas. Daí, provavelmente, saíram as bases “racionais” e pseudocientíficas para o que se tornaria a criminalização da pobreza no Brasil contemporâneo. Nesse contexto histórico, os negros são vistos como selvagens, que apresentam práticas culturais e religiosas que representam perigo para a incolumidade da sociedade branca constituída, de matriz europeia e, portanto, de um povo superior – as revoltas negras, como a revolta dos Malês, continuam a inspirar terror às elites, o que contribuiu de forma decisiva na formulação do inimigo dentro do pensamento jurídico brasileiro193. Com a abolição, em 1888, grande parte da população negra deixa o interior do país e começa a se estabelecer às margens dos centros urbanos, em especial nos acidentes geográficos que permaneciam desocupados por sua urbanização difícil, onde passaram a desempenhar funções socioeconômicas secundárias que não permitiriam a ascensão de sua condição socioeconômica, o que resultou na manutenção da negritude como classe social pobre, muitas vezes miserável, assolada pela fome e pelas dificuldades de acesso à espaços e oportunidades sociais. Como bem ilustra a professora Vera Malaguti: Permanente também foi o medo da insurreição escrava na conturbada década de 30 do século XIX no Rio de Janeiro e no Brasil. Medo da revolta, do Islã e sua capacidade integrativa e organizadora entre os escravos. Enquanto isso, a população negra ia reinventando suas vidas e suas lutas, sob o jugo da escravidão e com o revigoramento da repressão advindo do medo das rebeliões. Nas ruas do Rio de Janeiro eles eram hortelãos, caçadores, carregadores, almocreves, barqueiros, marinheiros, operários fabris, 191 AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda Negra, Medo Branco: o negro no imaginário das elites. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 35. 192 BATISTA, Vera Malaguti. O Medo na Cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 163. 193 ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015. 77 trabalhadores em pedreiras, acendedores de lampião, varredores de rua, artesãos, músicos, artistas, vendedores ambulantes, criados, pequenos proprietários. A recente historiografia brasileira trata de recuperar as lutas que as populações escravas travavam, no cotidiano, para refazer seus vínculos familiares, sua memória, sua língua, sua religiosidade194. Os negros deixam de ser escravos para se tornar pobres – e a criminalização que acompanhava a cor da pele em função da inferioridade da raça e do risco de revolta passa a ser a criminalização da pobreza – estigma que iria acompanhar essas populações marginalizadas durante o século seguinte. As favelas, fruto da urbanização deficiente proporcionada pelos contingentes de escravos libertos, tornaram-se o cenário clássico da criminalidade brasileira das grandes cidades, o que Orlando Zaccone expõe ao assinalar que “a periculosidade da presença de traficantes de drogas nas favelas cariocas é observada como elemento a ensejar a legitimidade das ações policias na produção de cadáveres195”. Como fruto desse processo histórico, surge o estereótipo brasileiro de criminoso, a típica categorização do inimigo penal descrito por Eugenio Raúl Zaffaroni196 e reproduzida constantemente pelos veículos midiáticos que constroem o imaginário brasileiro: a imagem cotidiana do traficante negro ou “moreno” com um fuzil nas mãos, em cima de um morro; o ladrão descalço que não hesita ante a possibilidade de esfaquear ou puxar o gatilho em troca de um cordão que talvez nem sequer seja feito de outro; o assassino inclemente de dezenas de pais-de-família e homens-de-bem – todas partes que compõem uma mesma “categoria fantasmática”, segundo a professora Vera Malaguti Batista, que surgiu como uma categoria policial, mas logo se difundiu para o direito, a psicologia, o jornalismo e a academia como um todo: a categoria daqueles que não tem rosto e não são mais humanos197. A guerra às drogas, por sua vez, acrescentou ainda mais instabilidade à mistura: a adoção da política e da ideologia de “guerra às drogas” por parte do Estado Brasileiro. Com a adoção dessa política, de origem estadunidense (foi formalmente declarada em 1971, por Richard Nixon, presidente dos Estados Unidos à época), o Brasil se insere na cruzada ideológica contra o uso e a produção de entorpecentes, que, na verdade, irá rapidamente se tornar uma perseguição violenta contra os produtores, distribuidores e usuários das 194 BATISTA, Vera Malaguti. O Medo na Cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 230. 195 ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015. 196 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O Inimigo no Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007. 197 BATISTA, Vera Malaguti. O Medo na Cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003. 78 substâncias proibidas – justamente porque é impossível fazer guerra contra “coisas”, como bem descreve a professora Maria Lúcia Karam: O paradigma bélico, explicitamente retratado na expressão ‘guerra às drogas’, lida com ‘inimigos’. Em uma guerra, quem deve ‘combater’ o ‘inimigo’, deve eliminá-lo. A ‘guerra às drogas’, como quaisquer outras guerras, é necessariamente violenta e letal. Policiais – militares ou civis – são colocados no ‘front’ para matar e morrer. Formal ou informalmente autorizados e mesmo estimulados por governantes, mídia e grande parte do conjunto da sociedade a praticar a violência, expõem-se a práticas ilegais e a sistemáticas violações de direitos humanos, inerentes a uma atuação fundada na guerra. A missão original das polícias de promover a paz e a harmonia assim se perde e sua imagem se deteriora, contaminada pela militarização explicitada na política de ‘guerra às drogas’. Naturalmente, os policiais – militares ou civis – não são nem os únicos nem os principais responsáveis pela violência produzida pelo sistema penal na ‘guerra às drogas’, mas são eles os preferencialmente alcançados por um estigma semelhante ao que recai sobre os selecionados para cumprir o aparentemente oposto papel do ‘criminoso’198. Por consequência disso, quem mais passa a sofrer dentro da nova realidade são os mais vulneráveis socialmente, que, no Brasil, correspondem aos negros, aos moradores das favelas, aos pobres e às demais populações marginalizadas. É um erro acreditar, porém, que esses sujeitos aceitariam essa nova condição na mais perfeita passividade. Eles se prepararam para a guerra. É dentro dessa conjuntura problemática e repleta de incongruências que devo inserir o estudo do sistema penal brasileiro (e, em especial, de suas prisões), considerando sua relação extremamente próxima com a problemática de raça, pobreza e marginalidade, que aprofundo adiante. 6.1 Prisões brasileiras: moedores de carne e humanidade “Paz, Justiça e Liberdade” Lema do Comando Vermelho e do Primeiro Comando da Capital. A decadência das prisões brasileiras é um fato bem conhecido há décadas, embora pouco ou nada tenha sido feito para que o quadro crítico sofresse melhorias durante esse período de tempo. Trabalhar com o sistema penitenciário parece ser uma tarefa difícil para os 198 KARAM, Maria Lucia. Violência, Militarização e ‘Guerra às Drogas’. In: KUCINSKI, Bernardo, et al. Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação. São Paulo: Boitempo, 2015. pp. 42-47. p. 45. 79 gestores públicos – e a crise política em que o Brasil se encontra imerso não auxilia o prognóstico negativo das prisões brasileiras ou, muito menos, dos índices de criminalidade. Hoje, mais do que nunca, o cárcere brasileiro pode desempenhar tanto a função de fim quando de início da passagem de um indivíduo pela prisão – o que acontece em razão da alta taxa de reincidência no sistema prisional brasileiro, que, infelizmente, não possui estatísticas suficientemente aptas para servir como parâmetro199 científico adequado, na medida em que os únicos dados existentes e com caráter oficial foram obtidos por meio dos estudos de somente quatro dos Estados da federação. A população encarcerada no sistema penitenciário brasileiro é, em suma, formada por negros e pardos – um reflexo social, fruto dos processos de criminalização e marginalização. Além disso, as prisões abrigam os pobres e, em sua maioria, pessoas pouco escolarizadas. É o que Percival de Souza descreveu a seguir, nos anos 1980, e que continua perfeitamente válido nos dias de hoje: A ironia dos presídios – “rico só vai para a cadeia em dia de visita” – já galgou as muralhas, chegou às faculdades, às secretarias de Estado. E como boomerang retornou aos presídios, onde se redefiniu como assunto pacífico, equivalente a sentença transitada em julgado, que a prisão seriam mesmo um lugar reservado para três tipos de p – agressiva referência aos pretos, aos pobres e às prostitutas. Algo tão chocante como os três b internos para manutenção de um mínimo de disciplina – bunda, bóia bola. Ou seja: tolerância ao homossexualismo, comida razoável e sempre partidas de futebol. Na Casa de Detenção [Carandiru], em São Paulo, essa regra não definida, mas tampão numa verdadeira panela de pressão, fez surgir a ideia do futebol das bichas, ou seja, partidas semanais de futebol entre pederastas passivos. Esses jogos têm uma assistência muito grande e, a julgar pela alegre reação da torcida, já organizada, e dos jogadores – que não admitem ser chamados de eles e muito menos por nomes masculinos – funcionam, mais do que um grotesco espetáculo, como um estranho calmante200. Com a consolidação do poder das facções, a homossexualidade é vista como uma prática condenável e indesejável, que deixa de ser tolerada segundo as regras do crime. As drogas, lícitas e ilícitas, que se popularizam depois dos anos 1980, ocupam bem a função de entreter os presos, que também disporão de televisões e aparelhos de rádio que vão servir para amenizar o ócio – e, futuramente, a sua ausência servirá como punição por parte da administração prisional, que saberá manipular a necessidade de entretenimento muito bem. 199 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Reincidência Criminal no Brasil: relatório de pesquisa. Brasília: IPEA, 2015. 200 SOUZA, Percival de. O Prisioneiro da Grade de Ferro. São Paulo: Traço Editora, 1983. P. 65. 80 Ao longo de minha vivência, já presenciei famílias inteiras com passagem pela prisão – recentemente, por exemplo, acompanhei o caso em que a amante (que agia como segunda esposa) de um preso de Alcaçuz foi detida num flagrante controverso. Meses depois, sua própria filha, acabaria presa em outro flagrante, dessa vez acompanhada por seu namorado, ambos acusados de tráfico de drogas. De forma similar, em minha experiência como extensionista na Ala Feminina da Penitenciária Estadual Doutor João Chaves, conheci diversas mães cujos filhos também estavam presos ou já haviam passado pela prisão – isso quando os próprios maridos, pais, tios, primos e irmãos dessas mulheres não se encontravam na prisão ou já não haviam passado por elas. A prisão figura, assim, como lugar-comum de narrativas individuais e familiares – desempenhando uma função inimaginável para aqueles que não se inserem dentro do estereotipo criminal: a de ser cenário para momentos calorosos de paixão ou amor familiar201. Dentro da ideia de pena fortemente influenciada pela ideia católica do Inferno, não parece coerente que a ternura e o amor floresçam em meio a um lugar tenebroso, matizado com as cores e as dores infernais. É possível admitir, portanto, que as tramas familiares estão fortemente imiscuídas dentro da prisão – não raro, histórias de amor começam e terminam por trás das grades, o que também resulta na questão da gravidez e da maternidade no interior do cárcere202, isso sem mencionar a revista íntima vexatória, em que mulheres se submetem à obrigação de expor e abrir sua genitália sobre um espelho em troca de encontrar seus parentes ou companheiros203. Todas essas questões trazem uma preocupação muito relevante: a da transcendência da pena, que não é admissível dentro da ordem constitucional brasileira, mas que, na prática se verifica constantemente em meio às práticas do dia a dia nos estabelecimentos penitenciários locais. Há, ainda, diversas mulheres que obtém uma condenação pelo tráfico de drogas ao assumir o “negócio da família” depois da prisão do companheiro, o que representa um incremento na prática delituosa feminina e implica na modificação da ideia social de que as mulheres não cometem delitos – o estereotipo pejorativo de “mulher de bandido” deixa de ser meramente passivo e começa a ser substituído pela “mulher bandida”. O crime já não é mais uma área exclusivamente masculina – e mesmo dentro do crime organizado já há uma 201 VARELLA, Dráuzio. Prisioneiras. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 202 QUEIROZ, Nana. Presos Que Menstruam. Rio de Janeiro: Record, 2015. 203 Ibidem. 81 inserção feminina notável. Ser mulher na prisão, porém, ainda continua sendo um desafio – dentro do cárcere, falta até absorvente204. É neste sentido que as prisões brasileiras, como instituição essencialmente degradante e desumana, desempenham hoje uma função fundamental do fenômeno criminoso – e, sendo assim, também paradoxal, porque, na teoria, a função das prisões é combater o crime – na medida em que atuam como centro estratégico de recrutamento, ensino, articulação e organização para as diversas facções criminosas formadas por apenados205, como o Primeiro Comando da Capital (São Paulo), o Comando Vermelho (Rio de Janeiro), a Família do Norte (Amazonas), a Okaida [corruptela da Al Qaeda de Osama Bin Laden] e os Estados Unidos (Paraíba), e o Sindicato do Crime do Rio Grande do Norte. Em grande parte, este quadro se origina por causa da superlotação dos estabelecimentos prisionais do país – sobre a população encarcerada no Brasil e o número de vagas oferecidas pelo sistema carcerário brasileiro, o levantamento do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) assinalava em 2014 o discrepante número de 607.731 apenados que ocupam 376.669 das vagas existentes, o que gera um déficit de 231.062 vagas necessárias para que a população já encarcerada pudesse ser abrigada de forma adequada206 segundo a legislação específica existente e as garantias constitucionais que, na teoria, são asseguradas aos apenados. A discrepância entre apenados e vagas de carceragem disponíveis é antiga e, provavelmente, um problema inerente à estrutura prisional brasileira. Em 2000, existiam 135.710 vagas disponíveis para 232.755 apenados, com o déficit de 97.045 vagas necessárias. Sete anos depois, em 2007, o número de vagas disponíveis sequer dobrou, com 249.515, enquanto o número de apenados continuava crescendo, na faixa dos 422.373 presos, gerando um déficit de 172.858 vagas207, resultando em praticamente o dobro do déficit que existia sete anos antes. “No Brasil, em um espaço concebido para custodiar apenas dez indivíduos, há, em média, 16 pessoas encarceradas208”. O déficit de vagas não manteve no período de 2007-2014 (aumento de 58.204 vagas necessárias) o ritmo acentuado de crescimento que demonstrou no período de 2000-2007 (aumento de 75.813 vagas necessárias), embora a população de apenados continuasse crescendo num ritmo relativamente uniforme – no período 2007-2014, o aumento do número 204 VARELLA, Dráuzio. Prisioneiras. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 205 AMORIM, Carlos. Assalto ao poder: o crime organizado. Rio de Janeiro: Record, 2010. 206 DEPEN - DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen 2014. Brasília: Ministério da Justiça, 2014. p. 23. 207 Ibidem. p. 23. 208 Ibidem. p. 37. 82 de apenados foi de 185.358, enquanto em 2000-2007 o aumento foi de 189.618 apenados209. Ainda sobre as vagas disponíveis na carceragem brasileira, diz o Departamento Penitenciário Nacional, sobre a heterogeneidade da capacidade dos estabelecimentos penais brasileiros: As unidades prisionais brasileiras possuem capacidades muito distintas – a média é de 265 vagas por unidade, entretanto a unidade com maior capacidade chega a 2.696 vagas. Observa-se uma diferença entre as Unidades da Federação em relação ao porte das unidades. No Tocantins a capacidade média das unidades é de 53 vagas, com um máximo de 432 vagas em uma unidade, situação muito diversa do estado de São Paulo, que apresenta uma capacidade média de 805 vagas, chegando a uma unidade com o máximo de 2.696 vagas. É possível observar uma diferença significativa no porte das unidades entre as regiões do Brasil. A região Sudeste apresenta a maior capacidade média das unidades prisionais (485 vagas), seguida da região Sul (317 vagas), da região Centro-Oeste (148 vagas), da região Norte (145 vagas), e, por fim, da região Nordeste (128 vagas)210. Este é, seguramente, um efeito da construção de novos estabelecimentos penais e a ampliação dos já existentes, tendo em vista que a leitura dos dados não indica uma diminuição na criminalidade e no fenômeno criminoso, mas apenas um singelo aumento nas vagas do sistema carcerário disponível – ou seja, entre 2000 e 2014, construíram-se novas prisões. O DEPEN confirma a suposição ao admitir que “quatro em cada dez unidades têm menos de uma década de existência211” – a maior fração das unidades prisionais212, 267 ao todo, tinha, em 2014, menos de 5 anos de funcionamento – o que demonstra a instalação de uma política pública de construção de prisões que é incapaz de atender às demandas crescentes do sistema penitenciário, embora seja questionável acreditar que o encarceramento seja solução para os problemas apresentados. Teoricamente, o Estado tem obrigação legal de fornecer seis tipos de assistência aos apenados: material; religiosa; social; médica; jurídica; educacional, nos termos do parágrafo único do artigo 10º da Lei de Execução Penal. Ironicamente, a única assistência efetivamente assegurada aos presos tem sido a religiosa – justamente porque não é prestada pelo Estado, mas pelas diversas instituições religiosas que se voltam para o cárcere, como a Pastoral Carcerária. As disfunções na estrutura prisional são cada vez mais acentuadas – a umidade, falta de circulação de ar, o calor ou frio extremos, a falta de iluminação e de higidez – o que facilita 209 Ibidem. p. 23. 210 Ibidem. p. 25. 211 Ibidem. p. 29. 212 Ibidem. p. 29. 83 a proliferação de doenças de pele, tuberculose, hepatite e outras doenças infectocontagiosas. Ratos e baratas dividem o espaço exíguo das celas com os presos constantemente, o que é ainda mais propício considerando a estrutura sanitária, que quase sempre está em péssimas condições. Doenças sexualmente transmissíveis também são comuns e tem uma taxa muito alta de incidência nos presídios em função do contato sexual entre presos, do compartilhamento de lâminas e de outras formas de exposição213. A superlotação dos presídios é, obviamente, um dos fatores que agravam em muito essa situação. Problemas psicológicos e psiquiátricos são comuns – há presos que entram em um bom estado de saúde mental e saem das cadeias direto para instituições de tratamento psiquiátrico, por culpa da realidade social no interior do cárcere, da ociosidade do interior da cadeia e do ambiente inóspito das prisões, que também é essencialmente desumano. A utilização constante de remédios “tarja preta” sem prescrição é mais uma das marcas da realidade prisional – principalmente nos estabelecimentos prisionais femininos214. A manutenção da ordem nas prisões não se deve à disciplina instalada pelo Estado, mas ao próprio sistema estabelecido dentro da prisão pelos próprios presos – dentro dessa realidade prisional, os agentes penitenciários e a presença do Estado são meros coadjuvantes. Em cada prisão, há regras estabelecidas pela “ética do crime” que devem ser seguidas e obedecidas, sob pena da imposição de penas que podem chegar à própria morte. Anos atrás, escrevi um artigo em que trabalhei uma dessas regras, segundo as quais o preso condenado por estupro é estuprado no interior das prisões – prática que ainda se verifica e serve para demonstrar o poder dessa outra “expressão jurídica” dentro das prisões brasileiras. A prisão acompanhará o preso pelo resto da vida: o estigma é forte e sempre presente. Ele está firmemente aderido ao indivíduo e a sociedade dificilmente deixará de enxergar nele o estereotipo de um “bandido”. Sem opção e debaixo do preso opressivo do estigma, o indivíduo que deixou a prisão provavelmente não terá outra escolha além de retornar ao crime, porque a sociedade que o condenou não será a mesma sociedade que irá absorvê-lo, embora a ideia de “ressocialização” ainda seja socialmente válida. E o ciclo começa outra vez. Acreditar que as prisões somente causam efeitos negativos nos presos é errado. Os agentes penitenciários também sofrem de diversas formas os efeitos da condição prisional, na medida em que estão dentro do mesmo ambiente extremamente tenso e desumano que os próprios presos. Problemas psicológicos, dificuldades em se relacionar, crises de pânico e 213 VARELLA, Dráuzio. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 214 QUEIROZ, Nana. Presos Que Menstruam. Rio de Janeiro: Record, 2015. 84 ansiedade, problemas familiares e doenças agravadas pelo cárcere são comuns215. A falta de condições básicas de trabalho é também um problema grave que assola as prisões de todo o Brasil – e a remuneração nem sempre é adequada à função desempenhada. As prisões brasileiras não exercem função de disciplina, de ressocialização ou de ensino – são apenas e tão somente moedores de coisas humanas, que entram ali incertos sobre sua condição e saem com a certeza de que sua humanidade será constantemente negada, aonde quer que vá. Este não é um processo, porém, que atinge somente aos presos. Agentes penitenciários, policiais, apenados, seus familiares, suas mulheres e seus maridos, ativistas em direitos humanos, membros de organizações religiosas – todos, sem exceções, irão sentir na pele o hálito da desumanização, que deixará marcas profundas na memória e na condição psicológica de todos aqueles que são expostos e se inserem à pestilência do cárcere. 6.2 A monstruosa anatomia do genocídio brasileiro “Na minha época de jovem, as cova era funda. Era sete palmos, mas o que acontecia? Morria dez por mês. Hoje morre cem por dia”. Coveiro não identificado da cidade do Rio de Janeiro. Ao longo das últimas décadas, surge um novo elemento na paisagem dos subúrbios dos centros urbanos brasileiros, embora não seja um elemento facilmente visível. Trata-se dos cemitérios clandestinos, localizados em sua maioria nas proximidades das zonas suburbanas, camuflados pelos acidentes geográficos locais e perfeitamente integrados aos elementos naturais da localidade – as matas da grande São Paulo216, os morros do Rio de Janeiro217, os 215 VARELLA, Dráuzio. Carcereiros. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 216 G1. Em Natal, Moradores do Mosquito Colocam Corpos na Rua e Fecham Acesso à Ponte de Igapó. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2017. G1. Com Ajuda de Cão Farejador, PM Acha Dois Corpos em Manguezal no RN. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2017. TRIBUNA DO NORTE. Corpo de Policial Militar Desaparecido é Encontrado no Mangue. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2017. 217 UOL NOTÍCIAS. Saiba Como a Polícia Encontrou Um Cemitério Clandestino do PCC na Grande São Paulo. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2017. G1. Polícia Civil Descobre Cemitério Clandestino na Zona Sul de SP. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2017. ESTADÃO. Polícia Prende ‘Coveiro’ do PCC e Descobre Cemitério Clandestino. Disponível em: < http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,policia-prende-coveiro-do-pcc-e- descobre-cemiterio-clandestino,965806>. Acesso em: 20 nov. 2017. 85 mangues do Natal218. A existência desses locais é reveladora, porque indica a demanda cada vez maior de aparelhos que possam absorver os cadáveres produzidos em larga escala pela guerra às drogas – um processo que só pode ser nomeado como genocídio. Os cemitérios clandestinos não são suficientes para manter seus mortos na clandestinidade. Surge a necessidade do desenvolvimento de um conhecimento técnico adequado para a disposição dos cadáveres – matar não é suficiente, é preciso dificultar o reconhecimento dos restos e apagar a identidade dos mortos “socialmente relevantes”. Digitais são extraídas, mandíbulas são removidas, corpos são carbonizados em pneus e elementos químicos são adicionados aos cadáveres para acelerar o processo de decomposição219. Os mortos “socialmente irrelevantes” muitas vezes nem sequer são considerados dignos do sepultamento clandestino, porque suas mortes não serão investigadas à fundo pela polícia e porque o impacto social da tragédia é nulo ou mínimo – nesses casos, os mortos são deixados onde morreram, ou então transportados para um lugar de fácil acesso, onde serão encontrados, recolhidos e enviados ao instituto de perícia local. Caso não venham a ser reclamados por seus familiares dentro de um prazo, os cadáveres poderão ser enterrados (como indigentes se não forem identificados) ou enviados para um anatômico universitário. Os cemitérios clandestinos são o destino final de todos aqueles que são condenados à pena de morte dentro da ordem jurídica estabelecida pelas facções criminosas, que nasceu dentro do cárcere, ultrapassou os muros da prisão, fincou raízes na periferia das cidades e já não se restringe apenas aos assuntos do crime. A lei das facções tutela a vida nas comunidades em que o crime organizado se estabeleceu como poder constituído – lugares em que a soberania estadual é meramente nominal, onde a ausência do Estado proporcionou ao crime organizado as condições propícias para a sua consolidação: foi esse vácuo de poder quem garantiu ao crime organizado uma base territorial nuclear para a sua estruturação fora do cárcere. Dentro desse processo, as prisões brasileiras foram o ventre que pariu o crime organizado. Nesse parto difícil, a obstetra habilidosa foi a estratégia das táticas de guerrilha 218 G1. Identificados Corpos Encontrados em Cemitério Clandestino, em Agra. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2017 R7. Polícia Encontra Cemitério Clandestino do Tráfico na Baixada (RJ). Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2017. FOLHA DE SÃO PAULO. Polícia Encontra Cemitério Clandestino. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2017. 219 AMORIM, Carlos. Comando Vermelho: a história secreta do crime organizado. Rio de Janeiro: Record, 1994. 86 empregadas pela esquerda durante o regime militar220. A data e o local do nascimento são bem definidos: o Presídio Cândido Mendes, na Ilha Grande, Rio de Janeiro, no ano de 1979, quando os presos oprimidos pelas condições terríveis da prisão se articularam para criar o Comando Vermelho, originalmente apenas um grupo coeso voltado para a pacificação no interior do presídio e na promoção de seus interesses (fugas, prestação de assistência jurídica aos condenados sem advogados, a subsistência das famílias dos presos, entre outros)221. Para financiar suas operações, o Comando Vermelho empregava o resultado de assalto à bancos e carros-fortes222. O tráfico de drogas, porém, logo se mostraria uma alternativa mais rentável para as facções criminosas, que adotam cada vez mais a feição e o modus operandi de empresas223 a partir de então – uma tendência internacional que se manifesta fortemente nas redes de comercialização e produção clandestina de entorpecentes. A força de atração exercida pela consolidação do mercado clandestino das drogas era (e ainda é) irresistível224, o que levou o crime organizado a colocar o assalto de bancos e carros fortes em segundo plano – o tráfico de drogas representava, ainda, uma operação menos arriscada. Assim, as facções criminosas nascidas nas prisões se inserem dentro da nova cadeia econômica e se tornam, por assim dizer, sedes brasileiras de um empreendimento multinacional, conforme Carlos Amorim: É maior do que os negócios globais do petróleo, que giram em torno de 640 bilhões de dólares por ano. Bem maior do que a indústria automobilística. Companhias aéreas – ou marítimas – nem chegam perto. Mesmo as mineradoras e o comércio de ouro e diamantes ficam longe. Representa algo em torno de 10% do PIB norte-americano, a maior economia do mundo. Estamos falando do Crime Organizado S/A, sociedade anônima mesmo, um conglomerado de organizações e empresas que administra o negócio de maior liquidez do planeta. A cada ano, a megaoperação movimenta aproximadamente 1,5 trilhão de dólares – ou 3,6 milhões de reais, muito mais do que todo o PIB brasileiro, já a oitava economia do mundo. Crime Organizado S/A é um empreendimento moderno, globalizado, diversificado, atua em todos os continentes, controla políticos, governos, juízes, exércitos. Elege deputados e senadores. Faz suas próprias leis e as aplica com rapidez impressionante. Também elege presidentes, comando organizações civis e militares. Financia a fabricação de armamentos, as lavouras de coca, de papoula e maconha, além dos laboratórios de drogas sintéticas. Reina de maneira quase invisível, porém onipresente. Torce a seu bel-prazer as regras internacionais de convivência. Patrocina os narco-Estados, alimenta o 220 LIMA, William da Silva. Quatrocentos Contra Um. 2. ed. São Paulo: Labortexto, 2001. 221 AMORIM, Carlos. Comando Vermelho: a história secreta do crime organizado. Rio de Janeiro: Record, 1994. 222 Ibidem. 223 Ibidem. 224 BARCELLOS, Caco. Abusado: o dano do Morro Dona Marta. Rio de Janeiro: Record, 2003. 87 terrorismo e promove genocídios, como os ocorridos nos conflitos armados na África pós-1960 ou nas guerras dos Bálcãs, nos anos 1990225. Com a ascensão do Comando Vermelho (e suas operações bem-sucedidas e, posteriormente, extremamente lucrativas), diversas outras facções criminosas são criadas, seguindo de perto o exemplo bem-sucedido da pioneira: os Amigos dos Amigos e o Terceiro Comando, no Rio de Janeiro, além do Primeiro Comando da Capital (PCC), que logo alcançaria uma posição de hegemonia em São Paulo que lhe permitiria celebrar uma aliança duradoura com o Comando Vermelho226 - essa aliança somente seria rompida anos depois, no final de 2016. A aliança era oportuna, porque permitia uma coexistência pacífica, sem atritos nem fricções entre as fronteiras dos territórios pertencentes às maiores facções criminosas do país. Assim, o Comando Vermelho e Primeiro Comando da Capital podiam focar sua atenção em negócios mais importantes: a expansão de suas atividades pelo território nacional e a sua maior inserção dentro do mercado internacional de entorpecentes. Com a consolidação e a expansão das facções para o resto do Brasil, surgem facções criminosas nos Estados “invadidos” imbuídas pelo sentimento de resistência ou de dissidência: a criminalidade local não aceita se submeter à ordem estabelecida pelas facções “de fora”. É o caso do Sindicato do Crime do Rio Grande do Norte, que surgiu como uma dissidência do próprio PCC e se consolidou como resposta ao avanço da facção nas terras potiguares – que se legitima por meio da narrativa de luta entre a facção “da terra” que impede a invasão da facção “de fora”. Há uma distinção entre a forma de expansão do Comando Vermelho e a forma de expansão do Primeiro Comando da Capital. O Comando busca firmar alianças locais, sem necessariamente promover o estabelecimento de suas unidades em todos os Estados em que busca se manifestar – a Família do Norte e o Comando Vermelho mantém uma relação desse tipo, em que as organizações são aliadas, “irmãs”, e não necessariamente se submetem uma à outra. O Primeiro Comando da Capital, por sua vez, tende a instalar novas células ao longo dos Estados, lutando pela hegemonia sobre as demais facções e opondo suas regras de forma incisiva sobre a criminalidade local. Essas facções criminosas se beneficiam imensamente da superlotação prisional, que hoje representa uma grande deficiência – tanto em função da estrutura precária das prisões quanto em função da falta de vagas disponíveis para acomodar adequadamente uma população que cresce e não para de crescer. Quanto mais presos custodiados dentro de uma 225 AMORIM, Carlos. Assalto ao poder: o crime organizado. Rio de Janeiro: Record, 2010. p. 353-354. 226 AMORIM, Carlos. CV-PCC: a irmandade do crime. Rio de Janeiro: Record, 2003. 88 única prisão, maior o número de indivíduos disponíveis para arregimentação do crime organizado – o que o Estado vem endossando ao adotar a política de construção de estabelecimentos prisionais de grande porte, com várias centenas de vagas. O processo de consolidação das facções criminosas que surgiram nas prisões e ultrapassaram os muros das penitenciárias envolveu o intercurso de outros sujeitos além dos próprios presos – o estabelecimento de novas operações demandavam o emprego de técnicas especializadas nos mais diversos campos, uma logística complexa traduzida pela união entre o cotidiano de um empreendimento econômico comum com as atividades paramilitares de ataque e defesa dos territórios. Dentro desse processo, é importante mencionar o protagonismo dos refugiados africanos que chegaram aos portos brasileiros de Santos, Recife e Rio de Janeiro vindo dos conflitos internos de países como Angola e Moçambique, veteranos de guerra e ex-participantes das guerrilhas que foram prontamente absorvidos pelo crime organizado como treinadores dos soldados do tráfico. Os veteranos da África não foram os únicos – o poder do tráfico e as vantagens financeiras oferecidas pelo lucro das drogas são suficientes para trazer outros sujeitos para dentro da esfera de influência do crime organizado. A guerra era iminente – guerra contra outras as facções criminosas, contra as milícias, contra o Estado, contra os grupos de extermínio – e as facções tiveram que se preparar para combater e sobreviver. Adquirir a técnica, a estratégia e o armamento bélico encabeçam a agenda dos traficantes – capturar um fuzil da polícia ou da facção rival torna-se motivo de orgulho dentro da estrutura social do tráfico. Sobre esse processo armamentista, o repórter Carlos Amorim descreve o seguinte: As quadrilhas se armam para a proteção contra os rivais, os inimigos no negócio das drogas, os “alemães”. As armas, os especialistas, as bombas e os foguetes são empregados contra os grupos que disputam o controle dos “territórios”, que invadem as favelas durante a noite. Entre os invasores, geralmente utilizando uniformes negros, máscaras de camuflagem e capacetes, estão os “outros”, possivelmente ex-militares – quase nunca as forças públicas, especialmente porque estas não entram em favelas e periferias durante a noite. Os combates são travados no escuro, porque a primeira providência é detonar os transformadores de energia, mergulhando o bairro na escuridão. É neste cenário que gente treinada pelas Forças Armadas adquire papel preponderante. Sabem se deslocar no labirinto das favelas e bairros pobres. Conseguem ver o inimigo – inclusive com visores noturnos – onde ninguém saberia se orientar. Possuem formação em medicina de guerra. O uso desses equipamentos e táticas foram aprendidos nas Forças Armadas de um país chamado Brasil227. 227 AMORIM, Carlos. Assalto ao poder: o crime organizado. Rio de Janeiro: Record, 2010. p. 407. 89 As facções criminosas foram bem-sucedidas onde o Estado falhou miseravelmente por mais de cem ano: foram esses grupos criminosos quem primeiro proporcionaram uma forte identidade de pertencimento aos marginalizados, aos excluídos e aos que historicamente tiveram sua condição humana constantemente negada. O grande potencial de facções como o PCC, o Comando Vermelho e o Sindicato do Crime está em sua capacidade de reunir, agregar e valorizar228 sujeitos marcados por uma trajetória de privações e carências – entre o trabalho informal, serviços considerados desprezíveis e a falta de inserção no mercado de trabalho, a vida no crime representa uma alternativa econômica muito atrativa229. Além disso, a compreensão cultural que vem se estabelecendo entre a população marginal faz com que a vida no crime seja revestida por um fascínio heroico, muitas vezes marcado por um sentimento de resistência à ordem social endossada pelo Estado e fortemente discriminadora. Ainda, o próprio sentimento de pertencimento à facção criminosa muitas vezes representará o primeiro sentimento de pertencimento do indivíduo a alguma coisa230 - as facções são vistas como grandes famílias – seus membros são “irmãos” e suas esposas são “cunhadas”. A vida no tráfico começa cedo e pode se organizar como uma carreira vitalícia – os membros se inserem na cadeia produtiva ainda quando crianças, ocupando a função de “aviõezinhos” e “olheiros”, à postos para levar e trazer pequenas quantidades de drogas, recados e informações sobre a posição de policiais militares e das facções inimigas231. Logo depois, o indivíduo pode ascender na hierarquia social do tráfico e ocupar uma miríade de posições relacionadas à produção e à distribuição de entorpecentes, além da defesa bélica do “território”. As mais diversas histórias de vida de traficantes famosos são testemunhas, ao exemplo da biografia de Juliano VP232, comandante do Comando Vermelho sediado na favela de Santa Marta, no bairro do Botafogo, Rio de Janeiro, registrada por Caco Barcellos em “Abusado: o dono do morro Dona Marta”. As facções criminosas de origem criminal não são, porém, os únicos protagonistas dentro do crime organizado. Quando o Comando Vermelho, os Amigos dos Amigos e o Terceiro Comando da Capital (além das diversas pequenas facções e dos traficantes independentes) se firmaram nas favelas do Rio de Janeiro, na década de 1980, um segmento específico da população se articulou em grupos para combater o poder hegemônico do tráfico: 228 BIONDI, Karina. Junto e Misturado: Imanência e Transcendência no PCC. São Carlos: UFSCar, 2009. 229 BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003. 230 BIONDI, Karina. Junto e Misturado: Imanência e Transcendência no PCC. São Carlos: UFSCar, 2009. 231 MV BILL; ATHAYDE, Celso. Falcão – Meninos do Tráfico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. 232 BARCELLOS, Caco. Abusado: o dano do Morro Dona Marta. Rio de Janeiro: Record, 2003. 90 policiais e ex-policiais, bombeiros, militares e afins, que tinham o know how das armas de fogo e o desejo de fazer justiça com as próprias mãos233. Depois de expulsar os traficantes, os milicianos se mostraram tão cruéis e violentos quanto os antigos “donos” das favelas. Alguns passaram a controlar o tráfico, ocupando o vácuo deixado pelos traficantes, embora o principal lucro das milícias venha do controle absoluto exercido pelos milicianos sobre as atividades econômicas locais: o transporte público, a distribuição de gás, os “gatos” nos serviços de TV à cabo, Internet e energia elétrica234... A violência se tornou o principal meio de manutenção da ordem dos milicianos – e com ela, os cemitérios clandestinos criados pelos traficantes crescem ainda mais. O presente relato, extraído das memórias de um ex-policial militar do Rio de Janeiro, narra o processo de execução de um dos condenados pelo tribunal das milícias, que paralelamente também é o ritual de admissão (o “batismo) de um novo membro: Arrastaram o moribundo até que ele caísse da caçamba, batendo com força no chão a cabeça e o tronco. [...] Levaram o condenado até a luz artificial e passaram a lhe fazer diversas perguntas, ao que ele não mais tentou dissimular sua intenção primária e contou tudo: que estava a mando de traficantes de uma quadrilha desejosa de retomar o local de onde havia sido expulsa; que foi até o campo da milícia obrigado, sob ameaça de morte, sua e da família, se não cooperasse; que nunca mais apareceria por lá; que pelo amor de Deus não o matassem; que lhe deixassem ir embora pela mãe, doente e dependente dele… Altino vem atravessando a escuridão até revelar- se como num jogo de espelhos, trazendo consigo três pneus velhos de carro. Ao percebê-lo e divisá-lo, o jovem homem algemado emite urros lancinantes de agonia, baba e cospe, gemendo como um animal ruminante. Mesmo sem forças, tenta levantar e escapar do inevitável. Debate-se e esperneia, clamando: “Não, não, pelo amor de Deus… Deus… não, socorro… Deus…”, e Tiago batendo na sua fronte com o tambor do revólver até as pernas pararem de sacudir, e Alcino lhe encaixando os pneus de forma a prender seus braços na altura dos cotovelos e as pernas na junção dos joelhos; ainda sobra um para ser empilhado no tronco, deixando pouco de sua cabeça exposta [...]. Marcelinho pega de dentro da cabine da caminhonete uma garrafa PET com dois litros de gasolina e despeja em cima dos pneus, encharcando as vestes, o corpo, as mucosas do pobre. É hora da expiação. Os carrascos deliberam sobre atirar ou não antes, para que a queima decorra com o indivíduo já morto, mas Marcelinho apenas emite um deboche qualquer e acende um palito de fósforo. [...] . O palito aceso encontra vapor inflamável antes de tocar o líquido, e as chamas se elevam furiosamente para depois se espalhar uniformes, percorrendo todo o corpo condenado. Os gritos não duram mais do que quatro segundos. São sufocados pelo torpor. Mas ele ainda está bem vivo, sentindo a morte o abraçar, os órgãos internos derretendo pelo calor do afago. Jorge vê a pele inchar, esbranquiçar e romper em bolhas enormes, e só aí, não por 233 NOGUEIRA, Rodrigo. Como Nascem os Monstros: a história de um ex-soldado da polícia militar do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Topbooks, 2013. 234 Ibidem. 91 misericórdia, e sim para terminar logo e voltar para a festa, Marcelinho, Tiago e Alcino sacam suas armas, e aguardam que Jorge saque o seu revólver também. Posicionam-se ao redor da brasa semimorta e descarregam o chumbo piedoso até as cargas se esgotarem235. Paralelamente ao crescimento do crime organizado, os antigos grupos de extermínio começam a se rearticular. Esses grupos, que haviam sido mais uma ferramenta do regime militar para a perseguição de dissidentes políticos, formados especialmente por policiais e bombeiros, agora dividem trabalham em três frentes principais: efetivar “justiça com as próprias mãos”, vingar os policiais assassinados pelos “bandidos” e fazer a “queima de arquivo” sempre que a impunidade dos membros esteja em risco236. Há, portanto, grande relação entre os grupos de extermínios constituídos hoje e o fenômeno da violência policial237, que estudo brevemente a seguir. As más condições de formação, pagamento, valorização, estrutura e treinamento dos policiais são bem conhecidas há décadas. Debaixo de condições precárias e dentro de um ambiente de guerra, é impossível acreditar que policiais civis e militares irão desempenhar sua função da melhor forma possível – a sociedade brasileira aplaude entusiasticamente cada tiro de fuzil disparado pelo Batalhão de Operações Especiais (BOPE) nos filmes238 da saga Tropa de Elite, mas, infelizmente, a mesma sociedade entusiasta da violência não arregala os olhos para a decadência enfrentada por essas corporações, apesar das deficiências estarem muito bem retratadas ao longo dos filmes e dos bestsellers239 que lhe deram origem. Muitos dos livros que tratam da polícia militar comportam uma riqueza de relatos pessoais especialmente significativos. A maioria desses relatos é unânime ao mencionar as dificuldades socioeconômicas vivenciadas pelos policiais militares, que, além de todas as carências inerentes à sua profissão, também sofrem dificuldades financeiras provenientes da remuneração incompatível com a periculosidade do serviço prestado. A corrupção, então, torna-se uma alternativa muito rentável e atraente, por causa dos salários baixos, nem sempre pagos em dia, somados com a proximidade constante com a circulação monetária acelerada do crime organizado, presente no dia a dia policial. “Ser incorruptível não enche a barriga da família. Todo homem tem seu preço. Eu tinha o meu. Muita gente dependia de mim. Minha família 235 Ibidem. p. 252-253. 236 Ibidem. 237 AMORIM, Carlos. Assalto ao poder: o crime organizado. Rio de Janeiro: Record, 2010. 238 TROPA DE ELITE. Produção de José Padilha e Marcos Prado. Zazen: Rio de Janeiro, 2007. 118 min. son. color. TROPA DE ELITE 2: O INIMIGO AGORA´E OUTRO. Produção de José Padilha e Marcos Prado. Zazen: Rio de Janeiro, 2010. 115 min. son. color. 239 SOARES, Luiz Eduardo. et al. Elite da Tropa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. SOARES, Luiz Eduardo. et al. Elite da Tropa 2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010. 92 não era grande, mas proporcionalmente ao meu salário, parecia imensa. Poxa! Eu arrisco a minha vida quase todo o dia e o que eu ganho com isso?.”240 Em sua maioria, a formação deficiente que os policiais recebem antes e durante o desempenho de suas funções não é adequada para o trato humanizado e para o melhor desempenho durante as situações críticas que fazem parte do cotidiano da atividade. A ausência de uma humanização dos policiais implica numa grande facilidade na absorção e reprodução de discursos de emergência teoricamente incompatíveis com a função policial que essas mesmas pessoas devem desempenhar cotidianamente: Por que o criminoso não atacou o sistema, seja lá o que isso signifique, se foi o sistema que o explorou, rejeitou, excluiu e humilhou? E por que tanta gente sofre os males do capitalismo e só um punhado vira assassino, estuprador, sequestrador e ladrão? Não estou me referindo ao pobre-diabo que rouba um prato de comida ou furta um antibiótico para o filho que está doente. Esses casos são diferentes, e acho que o tratamento tinha de ser outro, e nem deveria envolver polícia, Justiça criminal, pena e prisão. Mas o vagabundo profissional, o pistoleiro frio, o filho da puta que vende crack, ah!, por favor. O garotão que rouba para comprar droga; o play boy que bate em prostituta; o pobre revoltado que arrasta uma criança até a morte para roubar um carro... Não admito. Não aceito. E acho absurdo qualquer abordagem que não seja a da pena mais dura, mais severa possível. Bater, torturar, não. Dentro da lei. Prender e deixar mofar até morrer. Pena de morte? Não vejo problema nenhum a não ser por um aspecto: o fato de sermos humanos, os policiais, as testemunhas, os jurados e os juízes, e até os técnicos da perícia científica. Se a pena é irreversível, quem condena tem de ser infalível. Como isso não é possível — e os erros judiciais se multiplicam, no mundo todo —, não pode haver pena capital. De resto, sou duro. Aprendi a ser no dia a dia da polícia, sentindo, bem de perto, o cheiro do corpo que apodrece e das almas que se decompõem241. É, ainda, a polícia quem, na maioria dos casos, iniciará e estrutura a criação da “verdade” dentro de um processo judicial penal242, porque é a condução do Inquérito Policial está sob sua responsabilidade, nos termos do Título II do Código de Processo Penal Brasileiro. Isto significa, em suma, que cabe à autoridade policial apresentar ao julgador os fatos considerados “relevantes” para a persecução penal, inclusive quanto à configuração do próprio delito – ou seja, a versão dos fatos pronunciada pela polícia se materializa como um fato quase que absolutamente real, mesmo que não correspondam com o que aconteceu na realidade. 240 GUDEL, Leonardo. Sangue Azul: morte e corrupção na PM do Rio. São Paulo: Geração Editorial, 2009. p. 113. 241 SOARES, Luiz Eduardo. et al. Elite da Tropa 2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010. p. 170. 242 ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. 93 Em função de todas essas incoerências, a polícia desempenha uma função monstruosa: a de fazer morrer numa escala de produção industrial, justificadas principalmente sob uma série de escusas legais baseadas sobre a legítima defesa – os “autos de resistência”, onde o morto sempre é caracterizado como traficante ou criminoso bem conhecido, que, no momento do embate fatal, representava ameaça de morte ao policial, porque dispunha em seu poder algum tipo de armamento mortífero – tendo, ainda demonstrado a intenção de utilizá- lo243. A pesquisa nos arquivos do Notícias Populares [...] continuou a revelar um número sempre crescente de tiroteios entre policiais militares e pessoas suspeitas de serem criminosas. [...] Já tínhamos um resumo das notícias sobre mais de 3.200 tiroteios envolvendo pessoas suspeitas e policiais militares. Nesta fase da investigação o número de mortos civis era comparável ao de uma guerra. Uma estranha guerra onde é raro, muito raro, haver sobreviventes. De todos os tiroteios noticiados [...], apenas 28 acabaram com feridos entre as vítimas. Nenhum civil sobreviveu na impressionante maioria de 3.188 tiroteios. O saldo da pesquisa até aqui, se considerarmos verdadeiras as versões da PM, já significa um recorde em comparação às guerras convencionais, talvez um recorde mundial. [...] O saldo das baixas nos tiroteios das PM de São Paulo se constitui, portanto, em um fato histórico muito raro. Se os policiais de fato matam em legítima defesa, como alegam, eles são dignos de um prêmio pelo milagre de eficiência contra o inimigo. Superam em disparos de tiros fatais os combatentes da história de todas as batalhas nacionais. O saldo das vítimas dos tiroteios envolvendo PMs tem a proporção assustadora de 265 mortos para cada ferido. [...] Constatamos, por exemplo, que no mínimo 1.300 pessoas sem identificação foram mortas pela PM desde a sua criação. [...] Além de confirmar a triste fama, o grande número de desconhecidos tem um significado mais grave. Mostra no mínimo uma grande contradição. É a prova de que os matadores escolhem grande parte de seus inimigos sem nada saber sobre suas vidas. O contraditório é que, depois de mata-los, afirmam nos inquéritos que os mortos eram conhecidos criminosos244. A investigação geralmente não precisa identificar a autoria do homicídio – caracteristicamente, os policiais autores do crime se identificam de forma voluntária nos autos de resistência – é necessário somente reconstruir a trajetória de vida da vítima, onde serão incluídos os antecedentes criminais, os relatos de familiares e todas as circunstâncias relevantes, que, segundo Orlando Zaccone245, serão mais influentes na caracterização da legítima defesa do que as próprias circunstâncias do crime. Dos 308 processos analisados por Zaccone, 95% foram arquivados em função da legítima defesa, enquanto os outros 5% 243 ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015. 244 BARCELLOS, Caco. Rota 66: a história da polícia que mata. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 151-155. 245 ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015. 94 passaram por um “arquivamento implícito” – provavelmente foram deixados intencionalmente à deriva da morosidade judicial246. Devo mencionar ainda o quanto a relação entre a polícia militar e o crime organizado, nas suas mais diversas acepções, é uma relação complexa, às vezes contraditória e imensamente profunda, impossível de perscrutar e identificar onde começa e onde vai terminar – vários relatos tratam do desvio de armas apreendidas por policiais para os traficantes e milicianos, da facilitação de operações criminosas por parte da polícia, da recepção de propina mensal para o funcionamento de jogos de azar proibidos pela lei, da apropriação de objetos furtados apreendidos247... É igualmente difícil identificar onde essa lista começa e onde vai terminar. Há, ainda, muitas outras críticas tecidas à polícia militar e à polícia civil (embora as críticas à primeira sejam mais frequentes), muitas das quais foram reunidas no livro “Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação”, de organização de Bernardo Kucinski248, que recomendo fortemente para um maior aprofundamento, tendo em vista que acredito que a exposição feita até agora é suficiente para os interesses deste trabalho. Trago, porém, uma última reflexão: O principal desafio para os defensores dos direitos humanos e para quem sonha com políticas de segurança pública baseadas na promoção da cidadania superar a oposição entre polícia e direitos humanos. Esse é o pano de fundo de dramas cotidianos provocados pela política de guerra às drogas, da qual não há vencedores. A tragédia carioca e brasileira é ver homens de preto, quase todos pretos, matando homens pretos. A garantia de direitos e a proteção dos cidadãos precisam ser funções primordiais de qualquer política de segurança, e os policiais devem ser formados sob esses princípios. Nesse sentido, é essencial que nos questionemos sobre qual modelo de policiamento desejamos249. Traficantes, bandidos, milicianos, exterminadores, policiais, homens de bens e pais de famílias – todos, sem exceções, são soldados dentro do grande conflito em que a sociedade brasileira está completamente mergulhada, embora muitas vezes não se dê conta disso. O número de mortos cresceu, cresce e continuará a subir. Enquanto isso, coveiros pagos com o 246 Ibidem. p. 276. 247 NOGUEIRA, Rodrigo. Como Nascem os Monstros: a história de um ex-soldado da polícia militar do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Topbooks, 2013. GUDEL, Leonardo. Sangue Azul: morte e corrupção na PM do Rio. São Paulo: Geração Editorial, 2009. BARCELLOS, Caco. Rota 66: a história da polícia que mata. Rio de Janeiro: Record, 2005. 248 KUCINSKI, Bernardo, et al. Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação. São Paulo: Boitempo, 2015. 249 FREIXO, Marcelo. Prólogo: polícia e direitos humanos. In: KUCINSKI, Bernardo, et al. Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação. São Paulo: Boitempo, 2015. pp. 13. p. 13. 95 salário do Estado continuam a abrir mais e mais covas em cemitérios públicos, ao mesmo tempo em que coveiros pagos com o salário do crime continuam a abrir mais e mais covas em cemitérios clandestinos. Mas não importa o lugar onde fica a sepultura: os mortos são essencialmente os mesmos. Negros, pardos, “morenos”. Pobres, moradores da periferia, relativamente jovens e sem instrução, com inserção difícil no mercado de trabalho, quase sempre apresentados às atividades do crime desde muito cedo na vida, às vezes inseridos na vida criminosa por herança familiar. No futuro, os cemitérios clandestinos serão encontrados e irão despertar o mesmo sentimento despertado quando as valas de sepultamento dos negros que não sobreviveram à travessia do atlântico são descobertas por engano. Difícil, porém, é dizer que sentimento é esse. 6.3 Alcaçuz Sou testemunha ocular do que aconteceu em Alcaçuz no mês de janeiro de 2017, sob as lentes das câmeras de todo o mundo e debaixo da mais franca chancela do Estado. Por isso mesmo, acredito que tenho o dever de legar meu relato ao longo das páginas que virão a seguir. Não é adequado definir e classificar o que aconteceu em meados de janeiro como uma mera “rebelião”: as rebeliões brasileiras acontecem quando os apenados de uma unidade prisional exercem sua rebeldia contra alguém ou alguma coisa (em geral, o Estado, a administração prisional, os agentes penitenciários e as condições degradantes e desumanas a que são submetidos diariamente). Na compreensão sistemática da violência como comunicação, a rebelião é um ato de protesto contra a ordem social constituída pelo Estado, que tutela os corpos dos prisioneiros e os fazem sofrer. Alcaçuz já vivenciou diversas grandes rebeliões – por vezes, mais de uma por ano, como em 2015250 – e a motivação por trás de cada uma delas tinha forte caráter político: as condições absurdas de alimentação, saúde e higiene da prisão; o tratamento extremamente desumano imposto aos presos e seus familiares; a perpetuação da visita íntima feminina, 250 G1. Vídeo mostra destruição nos pavilhões de Alcaçuz após rebeliões. Disponível em: . Acesso em: 19 out. 2017. PORTAL BO. Presos fazem rebelião no Pavilhão 2 de Alcaçuz; veja vídeo. Disponível em: . Acesso em: 19 out. 2017. G1. Diretor da maior penitenciária do RN leva pedrada na cabeça. Disponível em: . Acesso em: 19 out 2017. 96 degradante e invasiva em sua essência; a superlotação da unidade prisional e as graves deficiências estruturais das unidades. Os objetivos de uma rebelião se expressam através das demandas dos rebelados – que se rebelam justamente com o objetivo de receber a atenção do poder público que lhes é negada em circunstâncias comuns. O que houve em Alcaçuz em janeiro de 2017 só pode ser definido como guerra – de que outra forma classificar o embate violento entre forças inimigas, o abundante derramamento de sangue e a tomada de troféus humanos após a carnificina? O Primeiro Comando da Capital reclamou cabeças humanas e o Sindicato do Crime do Rio Grande do Norte não demandou nada além de vingança. Isso não é rebelião – é guerra. A guerra em Alcaçuz representa a decadência do respeito à dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Brasileiro – trata-se de uma tragédia que poderia ter sido evitada, porque a administração pública tinha ciência comprovada de que a rivalidade entre as facções no interior de Alcaçuz logo tomaria feições extremamente gravosas251, o que culminou no assassinato brutal de um número de presos que ainda é desconhecido. O Estado diz que os mortos foram apenas vinte e seis, mas as testemunhas e as provas dizem o contrário: o relato dos presos e as fotos e os vídeos produzidos por eles são suficientes para afirmar que a cifra sangrenta é superior. A guerra estourou em 14 de janeiro, quando os presos vinculados a uma das facções invadiram o pavilhão da facção rival. Os relatos sobre esse momento inicial são muitos, e em sua maioria são contraditórios, o que colocou nascimento da crise sob obscuridade. Receio que não seja mais possível saber com certeza como tudo começou – as consequências, porém, são (até certo ponto) bem conhecidas: os próprios presos fotografaram a matança, que também foi registrada em audiovisual. Alcaçuz tonou-se um espetáculo. Na tarde do dia 14, os veículos midiáticos não demoraram a chegar: jornais grandes e pequenos, programas de televisão (alguns com streaming ao vivo), correspondentes de noticiários nacionais e internacionais, bloggers e fotógrafos – todos eles foram se instalar ao redor da prisão, por cima das dunas vermelhas e da vegetação de tabuleiro que circundam a prisão. As lentas das câmeras estavam voltadas para o interior dos muros, acompanhando meticulosamente cada um dos acontecimentos – 251 TRIBUNA DO NORTE. Sejuc foi alertada antes da rebelião. Disponível em: . Acesso em: 19 out. 2017. TRIBUNA DO NORTE. Nós não fomos omissos e o que aconteceu foi uma fatalidade. Disponível em: . Acesso em: 19 out. 20217. TRIBUNA DO NORTE. Alcaçuz uma ‘bomba relógio’, afirma relatório de abril de 2016. Disponível em: . Acesso em: 19 out. 2017. 97 naqueles dias, o trabalho dos repórteres e fotógrafos deve ter sido exaustivo, porque Alcaçuz tornou-se um campo de batalha nos dias seguintes. No dia seguinte, 15 de janeiro, um domingo, os corpos dos vinte e seis mortos são recolhidos. Enquanto isso, o Estado interrompe o fornecimento de água, energia elétrica e comida, situação que se manteria com poucas alterações por quase uma semana. A falta de água levou os presos à ingestão de água suja, além da exposição de dejetos e de água contaminada à céu aberto. Enquanto isso, a fome cada vez mais intensa teria levado os apenados ao canibalismo dos cadáveres dos inimigos, conforme relatos colhidos por mim e pela professora Juliana Gonçalves Melo252, um dos quais transcrevo a seguir: “O meu [marido] comeu gente aí dentro. ‘Tava’ com fome, não tinha o que comer, ele foi lá e comeu, porque era o que tinha. Quando ele me disse eu nem acreditei, porque ele tem um coração bom, mas ele ligou para mim e disse; ‘ô bem, tu não acredita no que eu fiz, tu não sabe, mas eu comi um coração, era tão duro que cada pedaço eu tinha que botar ‘pra’ descer com um gole de 51 [marca de aguardente popular no Rio Grande do Norte]”253. O pior de tudo é que a negativa de alimentos e água não foi geral: os presos localizados no Pavilhão V, associados ao Primeiro Comando da Capital, receberam mantimentos e água por cima do muro, através de uma roldana, algo que presenciei com meus próprios olhos e que as câmeras de fotógrafos capturaram – isso sob a aquiescência dos policiais, dos agentes penitenciários e da Força Nacional presentes. A imagem foi, inclusive, enviada num dos anexos remetidos à Comissão Interamericana, porque demonstra que, de alguma forma e por algum motivo, o Estado cedeu à uma das facções em detrimento da outra. A estratégia adotada pelas duas facções criminosas era essencialmente bélica: os pavilhões eram vistos como territórios; paliçadas foram levantadas como estruturas de defesa; batedores e vigias haviam sido posicionados no teto dos edifícios; o amplo uso de técnicas de intimidação e terror psicológico, como a ostentação de cadáveres e o som de milhares de faca sendo amoladas. Enquanto isso, as mulheres e os familiares dos presos aguardavam do lado de fora, onde permaneceram durante todos os dias de guerra, aguentando o sol tropical, o calor do verão, a falta de comida, água, conforto e sono. O desespero, a agonia, o silêncio cruciante e a violência policial eram o único suporte oferecido pelo Estado a essas pessoas, que 252 MELO, Juliana Gonçalves; RODRIGUES DO NASCIMENTO, Raul Victor. Notícias de Um Massacre Anunciado e Em Andamento: o poder de matar e deixar morrer à luz do Massacre no Presídio de Alcaçuz. Revista Brasileira de Segurança Pública, São Paulo, v. 11, n. 2, pp. 48.62, Ago/Set 2017. 253 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Solicitação de Medidas Cautelares Nº 101 de 2017. Washington: Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 2017. p. 44. 98 permaneceram nas imediações da prisão durante todo o período, sob uma situação de completo desamparo – presenciei, inclusive, diversas cenas de violência policial e de descaso por parte dos agentes do Estado. As informações emitidas pelo Estado eram genéricas e, em geral, tratavam apenas do número de mortos – não havia informações sobre aqueles que continuavam vivos no interior de Alcaçuz. O Estado muito provavelmente não sabia – e ainda não sabe – quem estava custodiado no interior das unidades quando a guerra estourou. As únicas informações confiáveis que essas pessoas receberam sobre a situação foram as informações transmitidas de dentro para fora, através dos milhares de celulares em poder dos presos, cujo uso – proibido nos presídios – passou a ser constante e sem pudor. O fim da batalha veio somente com a construção de um muro entre as duas unidades: de um lado, o território do PCC; do outro, o território do Sindicato. Já não é mais a pessoa do apenado quem vai definir se decide se alistar a uma ou outra facção: agora, o Estado define quem é quem por meio do muro254 – de um lado, PCC; do outro, Sindicato. A rivalidade se acirrou: agora, não há apenas a inimizade que nasce da dissidência que motivou a criação do Sindicato, mas também o imperativo de vingança: os mortos da primeira batalha ainda não foram adequadamente vingados por seus companheiros, que, sem dúvida, não hesitarão em vinga-los na primeira oportunidade que surgir. Nenhum promotor, defensor público, representante da Ordem dos Advogados do Brasil, magistrado ou governante estiveram presentes no local. A Força Nacional, o Exército e a Polícia Militar ocuparam o perímetro, mas as intervenções foram pequenas e muito pontuais, o que não se justifica com base na ideia de que havia perigo para os agentes do Estado, que detinham técnica, estratégia e armamento superiores. De fato, nenhum confronto foi registrado além de uma saraivada de pedras na manhã do dia 15, facilmente defletidas pelos escudos balísticos da força tática especial. Até hoje, não há nenhuma ação de responsabilização estatal em curso. A Defensoria Pública se mostrou escorregadia, apesar de ter se comprometido no sentido de trabalhar pelas vítimas e pelas condições carcerárias diante de diversos segmentos da sociedade potiguar e da própria Secretária Nacional de Direitos Humanos, na figura de Flávia Piovesan (que, inclusive, até o momento não ofereceu qualquer retorno acerca do encontro e das escutas com mulheres de presos). 254 G1. Muro substituirá contêiners para separar facções em Alcaçuz. Disponível em: < http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2017/01/muro-ira-substituir-containers-em-alcacuz-para- evitar-briga-entre-faccoes.html>. Acesso em: 28 out. 2017. 99 Os mortos foram entregues às famílias e muitos deles foram enterrados sem a cabeça – algumas das quais nem sequer foram encontradas. Não houve uma identificação adequada dos cadáveres – até então, há cadáveres que não foram identificados – nem muito menos uma investigação à fundo em Alcaçuz: presos relatam que cadáveres foram atirados nas fossas e enterrados em túneis de fuga, que até o presente momento não foram adequadamente verificados. Do lado de fora, a guerra continua. Chacinas255 estão ocorrendo constantemente, o que indica acertos de conta, tribunais do crime ou a atuação dos grupos de extermínio256 que existem no Rio Grande do Norte há décadas. Em novembro de 2017, o número anual de mortes por homicídio no Rio Grande do Norte era de 2.050257, o que significa que até o final do ano iremos muito provavelmente ultrapassar o número de vítimas do conflito de 2014 entre Israel e o Hamas em Gaza258 – o conflito brasileiro, porém, causa pouca comoção internacional e, no lugar de atrair a atenção pública para pressionar o Estado para a tomada de medidas eficazes, serve mais para a obtenção de lucro pela mídia sensacionalista local. As únicas informações obtidas sobre a situação atual de Alcaçuz são aquelas provenientes dos familiares e dos próprios apenados (em conversas com seus advogados ou nos casos em que saem do regime fechado), tendo em vista que as informações prestadas pelo Estado muitas vezes servem aos seus interesses de manter as aparências ilusórias de respeito e efetivação de direitos humanos. Segundo os apenados e seus familiares, hoje os presos de Alcaçuz ocupam celas superlotadas, onde têm que dividir uma única escova de dente e uma ou duas lâminas de barbear. A qualidade da comida sempre é inferior ao razoável, o oferecimento de água é deficiente, as doenças de pele se alastram como fogo em gasolina. Os cuidados médicos não são frequentes e não há acompanhamento médico constante nas unidades – há apenados 255 G1. Oito Chacinas Deixam 59 Mortos no RN em 2017. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2017. TRIBUNA DO NORTE. RN Acumula 14 Chacinas Em Pouco Mais de Um Ano. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2017. TRIBUNA DO NORTE. Em 11 meses, Rio Grande do Norte Registra 12 Chacinas. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2017. 256 G1. Apontado Como Membro De Grupo De Extermínio No RN, Policial Também É Suspeito De Prostituir Adolescentes. Disponível em: . Acesso em: 19 nov. 2017. NOVO. Grupo de Extermínio em Natal Contava Com Policiais de Três Batalhões. Disponível em: <>. 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Choques em baixa voltagem, spray de pimenta e muita tortura psicológica também foram relatados dentro do cotidiano estabelecido depois da guerra. Presos que executam erros na realização do procedimento disciplinar são agredidos – presos que pedem água são agredidos – presos que fazem quebram o silêncio são agredidos. Parte da nova rotina disciplinar estabelecida foi, inclusive, gravada em vídeo, em que é possível perceber a situação extremamente precária e a falta de trato minimamente humanizado, o que é um indício de tortura: “Tá olhando pra fora por que? Cabeça baixa. Não sabe como funciona? Baixa a cabeça, preso, to te vendo! Sentado, de costas, com a mão na cabeça! Senta!”259. Se um agente se sente à vontade para falar com um preso nestes termos diante das câmeras que vão reproduzir as imagens em rede nacional, imagine o que não faria à sós com ele. Dez meses depois, Alcaçuz conta com praticamente o dobro da população carcerária que continha no início de 2017260. Os familiares continuam sofrendo do lado de fora com a falta de informações, a dificuldade de diálogo com o Estado e com o procedimento arbitrário da visitação, que constantemente passa por modificações no sentido de dificultar o ingresso dos familiares ou de impedir a sua própria realização – uma questão que já foi, inclusive, judicializada e que culminou com a derrubada de uma proibição de visitas lançada como retaliação ao assassinato de um agente penitenciário261. Há famílias que buscam seus parentes desaparecidos depois da guerra – particularmente, venho acompanhando um caso em especial, 259 CONEXÃO REPÓRTER. A Longa Noite do Inferno de Alcaçuz. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2017. 260 G1. Seis Meses Após Massacre, Alcaçuz Tem Pavilhões Vazios E Pouca Vigilância. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2017. G1. Dez Meses Após Massacre, Alcaçuz Possui Quase O Dobro De Presos; 16 Ainda Estão ‘Sumidos’, Revela Sejuc. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2017. 261 G1. Ministro Suspende Decisão do Presidente do TJ e Visitas aos Presos do RN Voltam a Ser Liberadas. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2017. 101 o de Guilherme Ely Figueiredo da Silva, cujo pai, Francisco Luiz, até hoje não tem nenhuma posição oficial do paradeiro do filho262. A única ação corrente que visa a responsabilizar o Estado Brasileiro foi aquela proposta pelo grupo de ativistas em direitos humanos em que estou inserido, um Pedido de Medidas Cautelares endereçado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em que denunciamos a situação vivenciada pelos presos de Alcaçuz e todos os acontecimentos da guerra, além do que se sucedeu à construção do muro. Nosso grupo é formado, basicamente, pelos alunos e professores que estiveram diariamente em Alcaçuz durante os dias de crise, o que nos permitiu testemunhar a olhos nus cada episódio descrito anteriormente. Além do grupo, diversos entes da sociedade civil participaram da propositura do pedido, mas nenhum deles com base territorial potiguar além da Pastoral Carcerária do Rio Grande do Norte. A própria universidade em que apresento esta monografia nos deu às costas, o que foi especialmente decepcionante para todos nós, que dela fazemos parte. Mais uma vez, o abandono vivenciado durante a crise se repete: o Estado está ausente e a sociedade civil apenas observa tudo de longe, com receio de sujar as mãos. Quem fica: a Igreja e um punhado de universitários. Um dia, quem sabe, a Comissão Interamericana proporá uma ação à Corte Interamericana de Direitos Humanos em que o Estado será condenado a reconhecer sua falha. Até lá, o risco de que a guerra recomece persiste, mas nada de relevante é feito para evitar mais derramamentos de sangue – os presos alertam, mas presos não são ouvidos – e mortos sem cabeças não falam. 7. EPÍLOGO Ao longo das últimas páginas, esbocei uma nova proposta de compreensão dos direitos humanos, relacionada de forma visceral com a noção de humanidade, para, logo depois, demonstrar a existência de diferentes processos sociais, culturais e jurídicos capazes de permitir a violação sistemática e sumária desses mesmos direitos. Adiante, defendi que essas violações, por sua vez, seriam consideradas legítimas através de uma concepção de humanidade formulada por uma sociedade ou grupo social que privilegia determinados indivíduos ao passo em que discrimina outros. 262 TRIBUNA DO NORTE. Família Procura Preso Desaparecido Após Rebelião. Disponível em: <>. Acesso em: 20 nov. 2017. 102 Ao fim da jornada, apresentei os retratos de duas realidades distintas com quem possuo maior familiaridade – o caso do sistema prisional brasileiro e o dos presos políticos palestinos. Apesar desses dois casos não serem assim tão diferentes um do outro – por exemplo, ambos têm a ver com processos de colonização promovidos pelo Ocidente – as minúcias que caracterizam essas duas realidades são muito específicas, o que resulta na construção de “dois mundos” diametralmente opostos que se aproximam, na medida em que também se afastam – uma congruência paradoxal. A leitura dos dois últimos capítulos talvez permita concluir que somente o fim da criminalização da pobreza e da ocupação israelense poderão resolver as crises de direitos humanos que assolam brasileiros, israelenses e palestinos. Acredito que essa constatação não poderia estar mais distante do que julgo ser a verdade – a guerra às drogas e ocupação israelense é somente a faca que esfaqueia e que corta cabeças, mas não a mão que desfere o golpe. Encerrar as políticas que impulsionam a guerra às drogas e desocupar o território palestino não iriam trazer mais do que uma paz efêmera, puramente momentânea – quando as causas do conflito social permanecem, ensejam a reformulação do conflito, que talvez adquira novas formas, embora continue a reproduzir a mesma antiga essência – facas, afinal, podem ser facilmente substituídas. Quem empunha a faca? É difícil responder essa pergunta de forma clara e objetiva. Tanto no Brasil, quanto em Israel/Palestina, há um entrelaçamento de concepções de humanidade que resulta numa complexidade social evidente. Nessas realidades, os dilemas estruturais tendem a ser significados e ressignificados para que passam admitir a perpetuação da construção do “inimigo” – que, por sua vez, será ditada em conformidade com a categorização social de quem é e de quem não é humano. A produção de conhecimento e sua difusão ocupam funções importantes dentro desse processo, porque, além de influenciar as massas, fornecem propriedade e segurança às concepções afirmadas, defendidas e reproduzidas. O Estado, porém, desempenha uma função primordial dentro das sociedades contemporâneas: a de subvencionar a formulação das compreensões de humanidade. No Ocidente, é o Estado quem detém, geralmente, a maior fração de capital social dentro de uma sociedade, o que significa dizer que será o Estado quem irá impulsionar a maior parte das relações sociais atuantes na estruturação de categorias que definem e atribuem humanidade. Sendo assim, o Estado tem proeminência nos processos que irão legitimar a defesa de direitos humanos ou a sua violação – a ele cabe definir como, quando e onde atuará (e se atuará de 103 fato) em favor da promoção ou da aniquilação desses mesmos direitos, seja num nível simbólico, seja num nível factual. Dar e garantir eficácia aos direitos humanos não é necessariamente difícil, ou muito menos uma utopia inalcançável – quando tratamos do direito, devemos reconhecer acima de tudo que cada norma, cada lei e cada instituto jurídico não são parte de uma ordem cósmica, mas apenas mais uma das criações humanas socialmente construídas. A ordem cósmica talvez seja, de fato, difícil de modificar. Felizmente, o mesmo não é válido quando falamos sobre as criações humanas, como o direito. O direito está dentro da cultura, e culturas se modificam constantemente – como, portanto, modificar a cultura e o direito para garantir direitos humanos? Não tenho como oferecer resposta para este questionamento dentro deste trabalho, o que provavelmente poderá ser feito em outra oportunidade. Mas acredito que atingi os objetivos que pretendia atingir quando comecei a escrever estas páginas. Enquanto humanidade, o maior desafio que vivenciamos para a efetivação de direitos humanos não é um problema exclusivamente relacionado aos ordenamentos jurídicos, aos conflitos locais, às guerras, às dificuldades na promoção de normas internacionais ou ao próprio reconhecimento da existência de direitos humanos. Na verdade, o desafio que enfrentamos é um desafio antigo. Trata-se do desafio de perceber a redundância no fato de que toda humanidade é humana, e que todo ser humano é humano. Diante desse desafio, todos os outros problemas são problemas pequenos, o que não significa que não devem ser resolvidos e tratados com seriedade. Espero que, um dia, no futuro, os anos em que vivemos hoje representem ao menos um capítulo amargo necessário para que todas as pessoas do mundo possam se reconhecer uma nas outras – e que as nossas diferenças passem a ser compreendidas como sinal de igualdade. REFERÊNCIAS ADDAMEER. 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